O Debate acerca da Estrutura e a Agência nas Ciências
Sociais; A questão da relação ou ausência de relação entre os indivíduos e as formas de imposições exteriores não é nova para o campo das humanidades. Os primeiros filósofos gregos abordavam a questão quando separavam os fenômenos presenciados do mundo religioso. Discutiam a autonomia do indivíduo frente às imposições dos deuses e do destino. Assim também ocorreu com os debates que moveram os liberais, por exemplo, a partir do século XVII ao defender as liberdades individuais diante das opressões políticas das monarquias. No entanto, as ciências sociais colocaram a reflexão da temática em um patamar que envolve categorias e contextos complexos, podendo ser demonstrado pelos estudos de suas correntes e metodologias desde o século XIX.
De fato, desde os clássicos das ciências sociais, a agência e estrutura se
apresentam como tema debatido separando os autores e suas posições metodológicas. Debate ainda mais relevante no século XX com o advento do estruturalismo, seguido do pós-estruturalismo e as formulações pós-modernas e pós-coloniais.
O debate acerca da agência e estrutura é um dos temas que mais separam
autores e correntes dentro das ciências sociais. Enquanto Durkheim enfatizava os “fatos sociais”, ou seja, elementos externos ao indivíduo que condicionam a sua ação – como as instituições e a religião – tratando os fatos sociais como coisas com o objetivo de se diferenciar da psicologia, Weber se atentava para a dimensão da ação do indivíduo. O sociólogo francês para explicar suicídio, por exemplo, elabora uma rigorosa pesquisa percebendo que os motivos que levam os indivíduos a acabarem com a vida possui relação com o nível de coesão social e não com a dimensão psicológica. Nota-se que não há referência a ação do indivíduo, a agência é secundária diante da estrutura.
Postura diferente de Max Weber. O pensador alemão se debruça sobre a ação
do agente e seu significado. A agência é destacada na compreensão dos fenômenos sociais, pois esses são resultados de sua ação e do significado que produz. Isso aparece em sua análise da relação entre o capitalismo e a ética protestante. O capitalismo não é entendido somente como uma estrutura que evoluiu do feudalismo, ou seja, de uma maneira diacrônica, mas sim da relação do agente com uma forma peculiar de conduta e comportamento. Trata-se de uma conduta poupadora orientada por um cálculo racional alinhado com as prerrogativas do moderno capitalismo ocidental. A análise é deslocada não para o entendimento de uma estrutura que movimenta ação do agente, mas para a verificação de aptidão às necessidades da conjuntura social inaugurada pelo capitalismo.
A influência da posição weberiana é notável nas ciências humanas brasileira,
Florestan Fernandes possui significativos estudos sobre a emergência da ordem competitiva e a maneira como os agentes adquirem a racionalidade própria do moderno capitalismo ocidental, recentemente Jessé Souza – influenciado por Florestan Fernandes – abordou a temática da incorporação do negro na sociedade capitalista brasileira, o autor considerou a ausência por parte dos negros das condições psicossociais necessárias para serem incorporados à emergente sociedade capitalista.
O caso de Marx nos parece singular. A ênfase na estrutura, ou no modo de
produção contida nas obras de maturidade do autor, levaram alguns seguidores a secundarizar a importância de seus primeiros escritos e a desconsiderar a ação do agente em seus escritos políticos, provável que a interpretação de Althusser tenha contribuído para esse fato. A síntese de Marx nas primeiras linhas de 18 brumário de Louis Bonaparte é significativa de como compreender a dialética entre agência e estrutura para o autor. Ao dizer que os homens fazem a sua história, mas não a fazem sob as condições desejadas, Marx não atribui primazia de importância de uma sobre a outra, mas a trata em sua relação. Dizer que os homens fazem sua história é dizer também que eles constroem as condições que atuam sobre eles.
Essa interpretação de Marx parece secundarizada por boa parte de seus
seguidores, ou acontece de acentuar a ênfase para um dos seus lados, veja o debate, por exemplo, entre os historiadores Perry Anderson e Thompson, o primeiro privilegia a estrutura, o segundo o agente. Ou ainda, na filosofia Althusser e Lukács também possuem divergências fundamentais sobre a temática. Se fossemos selecionar qual das três abordagens acima mais influenciou teórica e metodologicamente as ciências sociais no século XX, a de Durkheim teria lugar de destaque. Não sem reservas, pois a influência de Weber e de Marx não são desconsideráveis. No entanto, o estruturalismo foi a corrente que ingressou com mais relevância na academia, principalmente nas décadas de 1950 e 1960. Não se trata de atribuir ao sociólogo francês a emergência do estruturalismo, no entanto, sua sociologia possui em comum com a corrente inaugurada pelos escritos do linguista Saussure o fato de secundarizar o papel da agência e reforçar a influência da estrutura.
De fato, a teoria de Saussure resultou na separação entre significante e
significado, entendendo o primeiro como uma estrutura que independe do segundo. Essa distinção influenciará de forma decisiva as ciências humanas no século XX. Roland Barthes, Lévi-Strauss, Althusser, Foucault em seu primeiro momento, entre outros grandes pensadores serão influenciados pelo linguista. O caso de Lévi-Strauss é significativo. As pesquisas do antropólogo procuravam encontrar nas sociedades “primitivas” uma estrutura comum, formas existentes que independiam da atuação dos indivíduos. Isso pode ser demonstrado pela proibição do incesto encontrado nas comunidades estudadas, ela é uma regra de caráter universal, o casamento, é ação da cultura sobre a imposição da regra.
A corrente estruturalista encontrou problemas em relação ao seu método e
objeto de estudos com o advento de movimentos sociais defensores da pluralidade e da afirmação de identidades. Maio de 1968 é simbólico para esse período. Dizer como Lacan que “as estruturas foram às ruas” demonstra, talvez, um limite para as posições estruturalistas. Outro impacto significativo foi a emancipação política de países da África e novas posturas políticas e culturais que emergiam com possibilidades de questionar e refletir sobre o sentido e significado da “civilização ocidental”. Não por acaso a teoria estruturalista teve que passar por reformulações, ou até mesmo rompimentos.
Entre os principais questionamentos aos estruturalistas se encontravam a
questão da universalidade das análises, da historicidade e da agência. O pós- estruturalismo ou neoestruturalismo, carrega do estruturalismo a ênfase na sincronia, mas, em alguma medida, atribui perspectivas distintas para a agência. O sujeito secundarizado pelos estruturalistas, retorna diante das novas configurações sociais. A pluralidade de identidades, as reivindicações de diversos grupos e os novos movimentos sociais demandam outros enfoques metodológicos e de objetos. Talvez Foucault seja o maior exemplo da guinada intelectual do período. De entusiasta do estruturalismo, influenciado pela genealogia de Nietzsche atribuindo uma forma singular de lidar com a historicidade, o filósofo francês finaliza sua carreira recorrendo ao sujeito para escrever sua história da sexualidade. Afinal, seria muito difícil encerrar a sexualidade sem fazer referência ao modo como o sujeito se identifica e a percebe em diferentes contextos.
Em um cenário de intensa mudança social, de novas reivindicações e de
necessidade de se posicionar politicamente – como fez Foucault – difícil se prender às formulações estruturalistas que procuram pelo invariável, sendo que se encontram no período as variedades. É nesse sentido que emerge o pós- estrutalismo, questionando a idealização universalista dos iluministas e mantendo a sincronia como fizeram os estruturalistas, mas acrescentando a pluralidade, alteridade, questionando métodos científicos universalizantes e abrindo um novo espaço para o sujeito. Talvez não aquele agente – tal como pensado por teorias assentadas em Max Weber, como o individualismo metodológico – mas um espaço em que a multiplicidade de atores são objetos de análises em seus distintos contextos.
Um exemplo significativo é a leitura que Homi Bhabha realiza de Franz Fannon.
Bhabha destaca nos escritos do filósofo argelino a especificidade da localização da sua pergunta central: “o que deseja o homem negro?” Não é mais simplesmente o homem moderno ocidental, mas o “homem negro” que passou por singulares processos históricos de luta que formam a sua(s) identidade(s). De tal pergunta verifica-se a importância da subjetividade e do desejo – para não esquecer a influência da psicanálise – e, portanto, da importância do sujeito para a compreensão dos fenômenos sociais da “pós- modernidade”.
Duas teorias que não se referem diretamente ao estruturalismo ou pós-
estruturalismo procuram alternativas para se pensar a relação entre agência e estrutura. A Teoria da Estruturação do sociólogo inglês Anthony Giddens e a categoria de habitus do sociólogo francês Pierre Bourdieu.
Bourdieu elabora em sua teoria da prática social a relação entre o espaço
social – estrutura – e a atuação dos sujeitos – campo, habitus. Numa complexa formulação e relação entre as categorias, o sociólogo desenvolve o argumento de que os indivíduos se localizam no espaço social e se movem de acordo com o campo em que atua, possibilitando alterações no espaço social. O habitus permite a relação do sujeito com o espaço social, por meio dessa categoria é possível internalizar as determinações exteriores. Nota-se que há uma alternativa para se pensar sobre a agência e a estrutura, embora não fique muito clara as possibilidades de os sujeitos modificarem as estruturas alterando seu campo de ação ou fazendo parte de outro, assim como não se percebe nas formulações de Bourdieu, a possibilidade de o espaço social ser modificado por uma atuação consciente dos agentes.
Em Giddens também há a preocupação em relacionar agência e estrutura.
Para o sociólogo inglês, a estrutura requer o agente que além de internalizar as determinações externas a ressignifique. A estrutura só existe na medida em que os agentes a coloquem e movimento e lhe atribua significados. Daí a teoria da estruturalização.
Nota-se que o desenvolvimento das ciências sociais resulta no aprofundamento
da questão da relação entre agência e estrutura. Os estudiosos, com o tempo, parecem privilegiar a análise que aborda a relação entre as esferas e não mais um dos lados. Trata-se de importante fundamentação metodológica para orientar novas pesquisas, escapando tanto do objetivismo de Durkheim e dos estruturalistas, assim como do subjetivismo presente, em alguma medida, em Max Weber e nas teorias influenciadas por esse autor. Talvez tenha sido Marx, entre os clássicos, o que esboçou a relação entre agência e estrutura, se isso, talvez seus seguidores a tenham deformado com o tempo. Nota-se a presença dos debates sobre identidade, etnias, cultura e movimentos sociais, identificando o papel do sujeito na construção de suas perspectivas e de seu lugar de pertencimento. O agente estável das teorias predominantes são substituídos pela emergência do agente híbrido, que possui múltiplas identidades, que vivencia contextos culturais diversos e se encontra em constante mudança – muitas vezes contraditórias – devido ao acesso à informação e contato com distintas culturas ou por se encontrar em situações limites, como por exemplo, as formas de migração e de refugiados que caracterizam as sociedades contemporâneas. Um indivíduo afetado pelo contexto do qual emerge o refugiado – geograficamente e culturalmente flutuante e híbrido – não pode ser fechado numa categoria de classe, por exemplo, mas relacionado com as diversas situações e contextos culturais, políticos e sociais que afetam as suas perspectivas, a sua cultura e identidade. Autores como Stuart Hall e Homi Bahba demonstram essas situações híbridas.
Rever a ideia de retorno do indivíduo, trata-se de uma problematização de
paradígimas, não o sujeito fixo, mas o sujeito híbrido.