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SOCIOLOGIA

CONTEMPORÂNEA

Aline Michele
Nascimento Augustinho
As origens da sociologia
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Reconhecer o objeto de estudo da Sociologia.


 Descrever a perspectiva sociológica sobre a realidade.
 Distinguir ciências naturais de ciências sociais.

Introdução
Neste capítulo, você vai ver como a sociologia se constituiu como ciên-
cia e como o campo se estabeleceu no Brasil. A partir da influência de
pensadores clássicos europeus, o Brasil teve atores pioneiros na análise
da sociedade e das interações sociais com uma óptica próxima a das
ciências da natureza.
Ao longo do texto, você vai conhecer os objetos de estudo e interesse
da sociologia, bem como as leituras dessa ciência sobre a realidade e
os contextos analisados. Por fim, você vai ver como a sociologia se po-
siciona diante das ciências que lhe deram origem, as ciências naturais e
as ciências sociais.

A formação da sociologia e a identificação


de seus objetos
As reflexões sobre o comportamento humano sempre estiveram presentes em
sociedades e comunidades ao redor do mundo e ao longo do tempo, em épocas
e configurações sociais distintas. As pinturas rupestres feitas em cavernas e
elaboradas por hominídeos expressavam as formas de organização dos grupos
sociais que surgiam, as caças, os perigos vividos, os espaços visitados, as
viagens empreendidas. As representações pictóricas podem datar do período
Paleolítico, que se estendeu da origem do homem até 10.000 a.C. Ou seja, o
desejo de expressar, gravar e compreender a história humana está presente entre
indivíduos desde os primórdios das organizações sociais mais elementares.
2 As origens da sociologia

É possível que a identificação do indivíduo como parte de um grupo seja um


fator preponderante para a inclinação à reflexão a respeito dos contextos em
que o grupo se insere.
A expressão livre dos laços entre humanos deu espaço à reflexão, elaborada
pelos filósofos da Antiguidade Clássica, sobre a pureza, a moral e a função
de cada comportamento. Esse tipo de pensamento norteou as leituras sobre
interações sociais até meados do século XVIII. O Iluminismo, também cha-
mado de Século das Luzes, trouxe novas possibilidades de interpretação da
natureza do comportamento humano. Nesse período, passa-se a considerar a
complexidade das relações humanas, normalmente baseadas na estrutura de
organização política do Estado.
Mas são as rápidas transformações decorrentes da Revolução Industrial
as responsáveis pelo grande interesse em medir, projetar e identificar formas
de relações e comportamentos sociais. Devido à Revolução, se altera o modo
de produção, consumo e organização social e política. E isso tem um motivo:
o caos e os desequilíbrios sociais, desencadeados por situações nunca antes
conhecidas. Por isso, pensadores passaram a observar os comportamentos
sociais em busca de uma resposta para as transformações que se sucediam.
As dinâmicas sociais passaram a ser foco não apenas de observação, mas de
estudo. Por que essas dinâmicas acontecem da forma como acontecem? Quais
são os elementos que incidem sobre as organizações sociais? Quais elementos
as tornam estáveis, lineares, ou quais incitam o desejo por ruptura, por revo-
luções? E, para os pensadores cujos trabalhos deram origem à sociologia, a
questão preponderante era: como reorganizar ou reestabelecer as sociedades
após o caos?
Esses são alguns dos questionamentos que nortearam a definição de meto-
dologias para a observação e a análise de dinâmicas sociais e que culminaram
na delimitação de um campo científico específico, a sociologia. A ciência
das relações sociais nasce com o estigma de pousar o olhar sobre um objeto
instável, abstrato, difícil de ser controlado. Por isso, alguns autores que anali-
saram brilhantemente seus contextos sociais e históricos tiveram seus estudos
utilizados como base para a construção da sociologia como campo científico,
e seus métodos foram considerados integrantes do aporte que deu origem a
essa área de estudo.
Entre eles, destacam-se Auguste Comte, Karl Marx, Émile Durkheim e
Max Weber. Desses autores, apenas Karl Marx não define claramente etapas
ou métodos de análise e interpretação de interações sociais com o objetivo
de criar uma abordagem científica a ser retomada por futuros pesquisadores.
Mas a forma de organização de sua leitura sobre as estruturas sociais oferece
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tantos dados para o fortalecimento da sociologia como ciência que sua obra
se equipara, nesse sentido, às dos outros três estudiosos.
A seguir, você vai conhecer melhor a contribuição de cada um deles para
o estabelecimento e o fortalecimento da sociologia como campo científico.
Tenha em mente que, com exceção de Durkheim e Weber, os autores mais
importantes para a formação das teorias sociológicas clássicas não faziam
parte da mesma geração e analisavam contextos sociais, políticos e históricos
distintos.

Auguste Comte (1798–1857)


O francês Auguste Comte inicia seus estudos na Escola Politécnica ainda
adolescente, mas há uma pausa entre o início de seus estudos e a sua conclusão.
Tal pausa foi causada pelo fechamento temporário da Escola e depois por sua
expulsão. Após concluir os estudos, ele vive uma grave crise psicológico-
-emocional e se afasta da pesquisa por algum tempo. Sua primeira obra,
Plano de Trabalho Científico para Reorganizar a Sociedade, realizada em
1822, demonstra como imaginava recompor a sociedade num período de
intensas rupturas, em que a Europa vivia alternâncias de poder entre regimes
despóticos e revoluções. Comte foi secretário e amigo do Conde de Saint-
-Simon, nobre francês teórico do socialismo utópico. Contudo, rompeu com
o Conde após alguns anos, por não considerar definitivas as suas teorias sobre
as organizações sociais.
O positivismo comtiano define os parâmetros empíricos para a observação
das dinâmicas sociais. Além disso, é a teoria que define o objeto sociológico
como elemento próprio da ciência. Para Comte, se existiam leis que regiam
as ciências naturais, também existiam leis que regiam os objetos sociais. Para
conhecê-las, as etapas empíricas da observação à comparação deveriam ser
respeitadas. Foi Comte o teórico que definiu o termo “sociologia”.

Karl Marx (1818–1883)


De origem judaica, o alemão Karl Marx estudou direito, filosofia e história,
concluindo o doutorado ainda bem jovem, aos 23 anos. Voltado à filosofia
hegeliana, o jovem Marx escrevia artigos jornalísticos que questionavam a
organização política alemã e enfatizavam o aporte democrático. Por isso, foi
expulso e se mudou para a França, onde conheceu Engels. Seu posicionamento
político o levou a ser expulso também da França, então ele foi para a Ingla-
terra, onde permaneceu até a sua morte. O primeiro trabalho em que aparece
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sua marca metodológica mais importante para a sociologia, o materialismo


histórico, é O Manifesto do Partido Comunista, escrito em parceria com
Friedrich Engels, em 1848.
O materialismo histórico é uma teoria que entende que as relações entre
a produção e o consumo de mercadorias é o que determina as estruturas e
organizações sociais. Por isso, as grandes transformações históricas foram
pautadas pela alteração na forma de produção, do feudalismo para o mercan-
tilismo e depois para o capitalismo. Para Marx, o capitalismo causaria tensões
ininterruptas entre as classes, trabalhadores e burgueses, e essas tensões
levariam à tomada de poder pelos trabalhadores, que colapsariam o sistema
e estabeleceriam o comunismo. Para o autor, a marcha para o comunismo era
inevitável, por isso o materialismo histórico possui um viés determinista.

Émile Durkheim (1858–1917)


O francês Émile Durkheim também tinha origem judaica, mas declarava não
praticar nenhuma religião. Assim como Marx, estudou filosofia, porém seus
trabalhos se voltavam inteiramente à definição das metodologias de pesquisas
e aportes técnicos da sociologia. Sua carreira acadêmica se inicia com estudos
voltados para a ciência da educação. Criador da chamada “escola de sociologia
francesa”, Durkheim foi o primeiro acadêmico a ocupar a cátedra de ciências
sociais na Universidade de Sorbonne.
Durkheim dialoga em seus trabalhos com Comte e Marx, mas tem um
alinhamento maior com as teorias positivistas. Ele compreende que a socio-
logia tem objetos próprios e diferentes daqueles do direito, da filosofia e da
economia. Mas, diferente de Comte, Durkheim não acreditava em leis sociais,
e sim na determinação de métodos e etapas para a observação, a classificação
e a comparação dos fenômenos sociais, o que constituiria a verdadeira ciência
sociológica. A tipificação de comportamentos é um dos elementos usados pelo
pensador para chegar à observação científica dos fenômenos sociais.

Max Weber (1864–1920)


O alemão Max Weber estudou história, economia e direito. Sua origem foi
intelectualmente privilegiada, já que, como filho de um político do Partido Na-
cional Democrata alemão, pôde ter contato com estudiosos e intelectuais de seu
tempo. Weber foi para os Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial.
Lá, passou a analisar aspectos de uma sociedade capitalista, comparando-os
às estruturas tradicionais morais e culturais da Alemanha, cuja corrupção
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ou enfraquecimento durante a República de Weimar o preocupava. Weber


transcende o positivismo de Comte, o materialismo de Marx e o funciona-
lismo de Durkheim, mas admite as contribuições de cada um desses aportes,
dialogando com seus teóricos em alguns trabalhos.
O pensador alemão criou a chamada sociologia compreensiva, um método
de análise que compreende as construções simbólicas de maneira subjetiva.
Ou seja, é um método que admite que o aparato sistêmico de significação
de fenômenos sociais é o que dá sentido à ação, e ele pode ser diferente em
contextos sociais, políticos e históricos distintos. Por isso, Weber contraria
o determinismo do materialismo histórico de Marx e a impossibilidade de
transcendência das estruturas sociais de Durkheim. Para ele, o espaço que
Marx deu aos conflitos entre classes como motor da história foi dado aos pro-
cessos de racionalização dos fenômenos sociais, em associação às dinâmicas
de dominação social.
Comte viveu todo o processo de erosão do poder da nobreza e da monarquia
francesa, bem como os impactos resultantes dos movimentos que culminaram
na Revolução Francesa, na ruptura da monarquia e na constituição da república
no país. Revoluções não são transições, não são alterações que ocorrem aos
poucos; não há espaço ou tempo para acomodações de mudanças. Para que
eclodam, é preciso que haja um momento anterior de caos. E os momentos
subsequentes à ruptura e à instalação de um novo modelo de organização
política e social costumam também ser pautados por desorganização e incer-
teza. Para Comte, porém, independentemente dos objetivos de um movimento
político e das alterações que ele poderia trazer às organizações sociais, deveria
haver espaço para se pensar em planejamento social e organização, pilares que
construiriam o bem-estar social. A racionalidade deveria nortear as ações e,
assim, estabeleceriam-se planos e etapas que ordenariam e manteriam seguras
e controladas quaisquer alterações na organização social.
Como você viu, Marx, Weber e Durkheim buscavam compreender as
causas e consequências das interações sociais. Eles verificavam o modo
como tais interações se conectavam com um contexto histórico comum e
avassalador para as estruturas tradicionais de organização social: a moder-
nidade. Por isso, alguns elementos estão presentes nas abordagens desses
autores. Entre eles, você pode considerar: as características estruturais e a
expansão do capitalismo, o processo de urbanização, a expansão da produ-
ção, a saturação do consumo doméstico e as expansões territoriais. Essas
transformações deram novas formas e sentidos às interações sociais. Os
mesmos elementos também tiveram impacto na organização, na estrutura e
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na função do Estado, de modo que a democracia e o liberalismo são pautas


para as análises sociológicas.
Como você pode perceber, a sociologia percorreu um longo caminho
para se estabelecer. Ela se fortaleceu a partir de teóricos com formação em
áreas diversas, que procuraram explicar ou dar sentido ao caos social que
acreditavam existir, ou às transformações que vivenciaram. Sua origem,
portanto, é resultado de um processo de construção de leituras sociais de
aproximadamente um século. Seu objeto de estudo, porém, é algo mais claro
de se observar nesse processo. A sociologia deixa de lado os impactos das
organizações do Estado ou de elementos sobrenaturais para se concentrar nas
práticas sociais que permitem a manutenção, a organização ou a ruptura de
sistemas de organização social, política e econômica.

Os interesses científicos não são inalteráveis, não permanecem os mesmos através


dos tempos. Os teóricos clássicos da sociologia estavam inseridos num contexto de
supervalorização das relações e dos padrões de comportamento social, nos períodos
subsequentes ao Iluminismo e à Revolução Industrial. O panorama contemporâneo
é bem diferente e há uma tendência social à individualização. A chamada geração Y
prefere estar sozinha, mas conectada a portais e plataformas digitais.

A realidade e a perspectiva sociológica


A definição da realidade e as interações estabelecidas dependem, para a
sociologia, das leituras possíveis para cada indivíduo. Essas possibilidades
seriam delimitadas pelas técnicas e comportamentos definidos e adquiridos
pelo convívio com o grupo social de origem. Veja, por exemplo, a pesquisa
sociológica sobre a memória realizada por Silva (2005). Ao se inserirem
numa sociedade que preza mais os valores de troca do que os valores de uso
dos objetos, os sujeitos da pesquisa perderam o objetivo principal da feitura
de cerâmica e, com ele, a matéria-prima das lembranças. Não estavam mais
no lugar onde nasceram e, se a sociabilidade se ancorava nas relações de
reconhecimento e pertencimento, desejar os mesmos utensílios utilizados pela
comunidade local era uma forma de não ficar à margem.
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Além disso, o espaço do assentamento já não era o mesmo do passado;


não havia homogeneidade na origem dos moradores. Eles vinham do Vale
do Jequitinhonha, em Minas Gerais, do interior de estados do Nordeste,
especialmente Bahia, Pernambuco e Alagoas, e de estados do Centro-Oeste
e do Sul do País, como Mato Grosso do Sul e Paraná. Essa gama de origens
diferentes fomentava conflitos e grupos rivais se punham em atrito devido
ao “desconhecimento prévio”. Assim, Silva (2005) observou dois desafios
metodológicos.
O primeiro desafio era fazer com que os depoentes compartilhassem o
mesmo objetivo da pesquisa: o resgate da memória. Aqui está o ponto-chave
que torna essa pesquisa tão interessante. A socióloga despiu-se dos conceitos
amplamente difundidos sobre o distanciamento demandado do pesquisador e
adotou uma metodologia que aproximava pesquisador e pesquisado por meio do
diálogo. A situação que inicialmente causou estranhamento e desconfiança por
parte dos sujeitos da pesquisa, especialmente dos líderes políticos (que tendiam
a generalizar as falas e, com isso, elevavam o risco de enviesar a pesquisa),
mostrou-se eficiente quando a autora seguiu um conceito de W. Mills que ela
mesma cita em seu texto: a imaginação sociológica tornou-se sua guia. Tomando
o diálogo como fonte de troca e saberes, Silva (2005) ministrou uma palestra
aos alunos do curso noturno do assentamento. Ela falou sobre a memória e a
sua importância para o processo de reconstrução da identidade e mesmo para a
constituição dos alunos como sujeitos históricos de uma nova história.
Já o segundo desafio girava em torno do caráter teórico-metodológico da
pesquisa. Como interpretar narrativas orais, interpretar silêncios, identificar
esquecimentos ou resistências? Como transformar falas em dados a serem
analisados, constituintes de uma trajetória? Como afirma Benjamin (1994):

A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo,


eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da
mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto e o lugar que ela ocupava
durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível,
não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a
mão intervém decisivamente com seus gestos apreendidos na experiência do
trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito.)

A interpretação é de que a relação entre pesquisado e pesquisador é artesanal,


é feita pelo trabalho das mãos. Inseridos num meio em que o objetivo era a pro-
dução dos objetos, os depoentes talvez se expressassem mais espontaneamente.
Se a ideia inicial da oficina de cerâmicas em argila se mostrou infrutífera, o
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mesmo não aconteceu com a oficina de fuxicos (pequenos círculos de tecido


franzido nas bordas por meio de um alinhavado simples que se assemelham a
pequenas flores e são matéria-prima para colchas, tapetes, toalhas e almofadas
artesanais, entre outros produtos). Nessa oficina, aprendendo uma arte nova, ou
relembrando os ensinamentos das mães e avós, as mulheres do assentamento
viram-se num ambiente em que as memórias puderam emergir por meio das
canções entoadas na execução do trabalho, que as lembravam de sua terra de
origem, suas famílias, suas tradições.
O estudo da história de uma vida não é a finalidade da sociologia. Ele leva à
construção da noção de trajetória como uma série de posições sucessivamente
ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) em um espaço de devir
e submetido a transformações incessantes. Os acontecimentos biográficos
definem-se antes como “alocações” e como “deslocamentos” no espaço social,
isto é, nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição dos diferentes
tipos de capital que estão em jogo no campo considerado.
Assim, diferente das biografias comuns, a trajetória descreve a série de
posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo indivíduo em estados sucessivos
do campo social. É apenas nas estruturas de um campo que se define o sentido
dessas posições sucessivas: as atitudes, o trabalho e tudo aquilo que torna o campo
interessante o suficiente para ser objeto de uma pesquisa. A coerência teórica
dessa metodologia se dá pelo fato de que o tempo do devir social dos indivíduos
e dos grupos já está estruturado por normas, definições sociais, representações
ou oportunidades típicas socialmente condicionadas de desenvolvimento ou de
orientação biográfica.
Apesar de muito elucidativas, é preciso estar atento ao fato de que as biogra-
fias, autobiografias e histórias de vida não revelam toda a vida de um indivíduo,
mas apenas uma versão selecionada de como ele deseja se apresentar. Natural-
mente, esse não é um processo descartável, já que também é importante conhecer
e verificar as interpretações que as pessoas fazem de sua própria experiência
para explicar parte do comportamento social.
Uma das maiores dificuldades das ciências humanas ao se estabelecerem
como disciplinas foi a criação e a adequação de ferramentas metodológicas
para tratar de seus objetos de pesquisa. A ideia era que, ao mesmo tempo em
que normatizassem a produção científica e acadêmica, as ferramentas também
legitimassem tais disciplinas, mostrando normatização e controle da pesquisa.
Havia grande dificuldade em mostrar que, embora afastadas das ciências na-
turais, necessitando de abordagens diferentes, as ciências cujos objetos eram
os homens e seus pensamentos, suas construções e interações sociais, podiam
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ser confiáveis; a volatilidade do objeto consistia mais em uma oportunidade do


que em um problema. Foi preciso construir modelos de certa forma rígidos, que
conferissem legitimidade às pesquisas das novas disciplinas que se formavam —
por muitas vezes, a quebra desses modelos mostrava certos vieses nas pesquisas.
Depois da criação da sociologia como disciplina, ocorreu o processo de
distinção entre ela e as demais ciências, a partir da formulação de metodologias
próprias ainda no século XIX. A interdisciplinaridade é retomada a partir de
fins do século XX, tornando as análises mais ricas e aprofundadas. Mas qual
é a trajetória da sociologia como disciplina? De acordo com Candido (2006),
pode-se dividir o processo de constituição da sociologia brasileira como ciência
em dois períodos.
No primeiro, entre 1880 e 1930, a sociologia seria “[...] praticada por intelec-
tuais não especializados, interessados principalmente em formular princípios
teóricos ou interpretar de modo global a sociedade brasileira” (CANDIDO,
2006, documento on-line). Nesse período, não haveria ensino nem pesquisa
empírica acerca de aspectos delimitados da realidade contemporânea. O
segundo período se construiria após a década de 1940, e nesses 10 anos entre
uma fase e outra é que a sociologia se incorpora ao ensino superior e passa
a ser tratada como instrumento de análise social. Nessa fase, surgem os pri-
meiros sociólogos de formação brasileira, que fomentam o segundo período
da sociologia no País.
Ainda segundo Candido (2006), a sociologia como campo científico sofre
duas influências tão decisivas que a marcam permanentemente: a do direito e a
do evolucionismo. No século XIX, o esforço de compreender o Estado, o universo
econômico e as estruturas políticas do País foi, essencialmente, do jurista, que
o autor determina como “[...] o intérprete por excelência da sociedade, que o
requeria a cada passo e sobre a qual estendeu o seu prestígio e maneira de ver
as coisas” (CANDIDO, 2006, p. 273). Contudo,

[...] como as teorias dominantes na segunda metade do século se achavam


marcadas pelo surto científico de então, notadamente a Biologia, que saiu dos
laboratórios para se divulgar de maneira triunfante, os juristas mergulharam
na fraseologia científica e se aproximaram, neste terreno, dos seus pares
menos aquinhoados, médicos e engenheiros, que com eles formavam a tríade
dominante da inteligência brasileira. Vemos então, na Sociologia, os juristas
inaugurarem uma orientação cientificista, como se dizia, que contou desde
logo com a cooperação de engenheiros e sobretudo médicos. A sociologia
brasileira formou-se, portanto, sob a égide do evolucionismo e recebeu dele
as preocupações e orientações fundamentais, que ainda hoje marcam vários
dos seus aspectos (CANDIDO, 2006, p. 273).
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De fato, os pensadores mais influentes do período, como Sílvio Romero e


Fernando de Azevedo, tiveram e assumiram influência darwinista e jurista.
Azevedo, um dos fundadores da disciplina no Brasil, foi influenciado por um
caldo de cultura científica — que ia dos juristas aos filósofos, passando pelos
defensores da biologia. No texto A Ciência da Humanidade: Sociologia...
Seu lugar entre a ciência, seu método, pode-se perceber em Sílvio Romero a
influência evolucionista, a partir da óptica jurista de análise social.
O direito constitui-se de fatos observáveis: as leis. Mas as leis existem
para regimentar uma sociedade, um corpo social que age, vive e discute; que,
portanto, está em constante movimento. Num Estado, cidadãos estão sob suas
leis, mas as leis não são as mesmas em países diferentes, nem se apresentam
a todos os cidadãos da mesma maneira. A ciência jurídica, portanto, pode
ser subdividida em vários ramos, que entram numa mesma variável geral:
a sociologia. Mas a sociologia é uma ciência? Esse questionamento sobre a
legitimidade da sociologia como ciência é para onde o olhar de Romero (2001)
se direciona, criticando os opositores da “ciência da sociedade”.
O maior crítico da sociologia brasileira é o poeta e jurista Tobias Barreto.
A crítica do jurista sergipano estaria especialmente desenvolvida em “estudos
alemães” e é apresentada no ensaio Variações antissociológicas. Seus argu-
mentos contrários à “ciência da sociedade” eram os seguintes:

 o estudo dos fenômenos sociais culminaria numa “pantosofia” (uma


ciência do “tudo”), que não é compatível com o espírito humano;
 culminaria também em sociolatria, ou seja, a exaltação da grandeza
humana, algo que para Barreto era inconciliável com uma ciência social;
 a liberdade invalidaria a sociologia: “Enquanto não se provar que a
vontade humana é uma força natural [...] como o calor e a eletricidade,
a sociologia nada vale” (BARRETO, 1962, p. 42);
 se a sociologia trata da sociedade, então seu objeto seria uma abstração
sem objetivo e haveria tantas sociologias quanto existem grupos sociais;
 homem, família e Estado não poderiam ter explicações e mecanismos,
como existem nos objetos das ciências naturais;
 a sociologia derivaria da ideia errada de que a sociedade é um indivíduo
diferente do Estado, assim sociologia e ciência política seriam ciências
diferentes;
 para Barreto (1962), a mania da “lei”, que regularia normas e épocas,
exposta com a estatística como prova para o fenômeno social, não
provaria nada;
As origens da sociologia 11

 o emparelhamento da sociologia com as ciências naturais não fun-


cionaria, pois não há uma ciência da natureza parecida com o que a
sociologia procurava ser em relação à sociedade.

Segundo Romero (2001, p. 54), “[...] não há dúvida de que o jurista de


Estudos de Direito tem em grande parte razão. Mas não se deve concluir do
abuso para a condenação geral da coisa. Porque alguns fantasistas andam por aí
a inventar engraçadas e insustentáveis leis sociológicas”. O trabalho do pesqui-
sador está em constante construção e transformação. O objeto demanda sempre
uma forma de olhar única, particular. Assim, transportar métodos de análises
conhecidos, eficazes anteriormente, nem sempre mostra-se eficiente. Mas o
trabalho dos sociólogos que se seguiram à delimitação do campo científico
mostra que, muito mais do que encaixar um objeto num tipo de abordagem
ou análise preexistente, é ofício do pesquisador procurar, desbravar, produzir
novos meios de se chegar ao seu tema, ao seu objeto.

Leia o artigo de Sérgio Sanandaj Mattos “História da Sociologia — A Origem”, disponível


no link a seguir.

https://goo.gl/aLko6p

Ciências naturais e sociologia: o trabalho de


Spencer na legitimação do campo sociológico
É interessante você observar que os pensadores da sociologia empreenderam
uma luta árdua para desenvolver metodologias próprias, e a ciência política
trava hoje a mesma batalha. Definida por alguns autores apenas como um
desdobramento ou uma ramificação da sociologia, já que seu foco é uma parte
importante da estrutura de qualquer sociedade (o Estado e as relações sociais
que advêm dele), a ciência política busca ainda hoje estabelecer metodologias
particulares, que a legitimem como ciência diversa da sociologia. Nesse cami-
nho, muitos criticam seus pensadores por utilizarem métodos quantitativos e
estatísticos em demasia, como numa clara oposição às experiências qualitativas
12 As origens da sociologia

mais utilizadas pela sociologia contemporânea, transformando-a, talvez,


numa ciência “dura”.
Mas, se para se opor à sociologia é preciso adotar metodologias quantita-
tivas, isso não poderia classificar a ciência política quase como uma ciência
matemática? É possível relacionar o modo como a ciência política trabalha
hoje para se diferenciar da sociologia com o modo como a sociologia trabalhou
para se diferenciar das ciências naturais no século XIX. Naquele período, a
classificação das ciências se dava em função de uma suposta complexidade,
como no modelo a seguir:

1. matemática
2. astronomia
3. física
4. biologia
5. sociologia

Aqui, a sociologia já se encaixava no plano das ciências, mas no menor


grau de complexidade. Para Spencer, o quadro não se definia em ordem de
importância, mas da seguinte maneira:

1. ciências abstratas
2. ciências abstrato-concretas
3. ciências concretas

Ou seja, para Spencer, haveria particularidades em cada ciência prove-


nientes da natureza de seus objetos, mas o rigor metodológico asseguraria a
sua classificação como ciência. Por isso, não poderia haver ciência mais ou
menos complexa, mais ou menos importante, ainda que houvesse diferenças
ocasionadas pelos objetos de estudo. O evolucionismo moderno quebrou
essas barreiras, como mostra Spencer na sua delimitação dos processos do
método de pesquisa:

1. observação
2. observação artificial
3. experimentação
As origens da sociologia 13

4. comparação
5. classificação
6. indução
7. dedução

O autor definiu e categorizou passos e assegurou que não haveria outros,


nem ciência que não precisasse deles. E a sociologia não fugiria à regra.
Spencer relata que, como cientista e sociólogo, seu objeto foi o próprio ato
de observar e desenvolver o método da sociologia. A partir de comparações
com temas e objetos da física, da biologia, da astronomia, da anatomia e da
química, ele chegou à conclusão que buscava: o método da sociologia é o
mesmo de todas as outras ciências.
Como você viu, a sociologia surgiu como uma “resposta científica” às
questões sociais que emergiram no século XIX, especialmente com o desenrolar
da Revolução Industrial. A sociedade em crise, desorganizada e em situação
de caos, levou pensadores a trabalharem numa resposta, numa saída para os
problemas sociais como a fome, a violência e o desemprego.
Comte e Durkheim trabalharam para que a ciência pudesse dar respostas e
direções para o restabelecimento da ordem. Já Marx viu no caos a expressão
de que as sociedades estavam inevitavelmente se transformando, e o desper-
tar das classes trabalhadoras levaria o processo em direção ao comunismo
mais objetivo. Mas todos os teóricos se fundamentaram nos diálogos com os
parâmetros empíricos das ciências naturais para a definição das práticas de
análise dos fenômenos sociais, pavimentando o caminho para os chamados
“sociólogos profissionais” do século XX.

Quer ver um panorama rápido e visual sobre a delimitação da sociologia enquanto


ciência? Acesse o vídeo disponível no link a seguir e aprenda mais sobre a construção
dos saberes e dos objetos sociológicos ao longo dos séculos XIX e XX.

https://goo.gl/ZGCZbP
14 As origens da sociologia

BARRETO, T. Estudos de sociologia. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Livro-Ministério


da Educação e Cultura, 1962.
BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN,
W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
CANDIDO, A. A sociologia no Brasil. Tempo Social, v. 18, n. 1, jun. 2006. Dispo-
nível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
-20702006000100015&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 3 dez. 2018.
ROMERO, S. Ensaio de filosofia do direito. São Paulo: Landy, 2001.
SILVA, M. A. P. M. Das mãos à memória. In: MARTINS, J. S; ECKERT, C; NOVAES, S. C; (Org.).
O imaginário e o poético nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 2005.

Leituras recomendadas
AZEVEDO, F. Princípios de sociologia: pequena introdução ao estudo da sociologia geral.
7. ed. rev. e amp. São Paulo: Melhoramentos, 1958.
CANAL FUTURA. Geração Z Com Dado Schneider | Entrevista. Youtube, jul. 2017. Dis-
ponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Y-FVrsdpYj4&feature=youtu.be>.
Acesso em: 3 dez. 2018.
SOARES, G. A. D. O calcanhar metodológico da ciência política no Brasil. Sociologia, n.
48, p. 27-52, maio, 2005.
SOCIOLOGIA é a ciência que estuda os chamados fatos sociais. G1, 2016. Disponível em:
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SVITRAS, C. História da sociologia: a origem. 2018. Disponível em: <http://sociologia-
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