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A ética da alteridade em Emmanuel Lévinas:

Uma resposta ao pensamento totalitário ocidental

Breno Júlio Stopa Farias

Resumo:Este artigo revisa o pensamento de Emmanuel Lévinas em uma busca


de superação da visão ética ocidental. Dentro dessa problemática surge o
seguinte questionamento: há possibilidade de se pensar em uma ética mesmo
depois das tragédias que ocorreram no século XX? De forma mais específica o
artigo buscará responder a seguinte pergunta: se o Outro é diferente do Eu,
porque então tenho o direito de objetificá-lo? Existe superioridade nessa relação
ética? Para isso o artigo trará um caminho a ser seguido, desde a origem do
pensamento do filósofo, com as suas duras críticas ao pensamento ocidental,
até o clímax de seu pensamento, que se dá no encontro do face a face.
Palavras-chave: Ética; Alteridade; Rosto; Responsabilidade.

Introdução

No século XX o mundo presenciou vários eventos dados como desumano


e que nos fazem pensar se existe uma ética que verdadeiramente funciona e
seja capaz de evitar essas atrocidades, me refiro aqui a eventos como o
holocausto, Holodomor e os Gulags. A pergunta mais geral em que esse artigo
se insere é: há possibilidade de se pensar em uma ética mesmo depois dessas
crueldades históricas realizadas pelo próprio homem em seus regimes
totalitários? Para responder a esse caráter mais geral, Levinas aponta o vínculo
entre identidade e violência, o que nos traz a seguinte pergunta: Se o Outro é
diferente do Eu, porque então tenho o direito de objetificá-lo? Existe
superioridade nessarelação ética? Para isso, o artigo apresentará um filósofo
que buscou alterar totalmente, desde as bases, o pensamento ético do mundo.
A metodologia usada é de caráter bibliográfico, focando principalmente na obra
“Ética e Infinito” e sendo apoiada por alguns comentadores do filósofo.

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Emmanuel Lévinas, nasceu em 12 de janeiro de 1906 em Kaunas, na
Lituânia, então parte do Império Russo. Veio de uma família religiosa e cresceu
imerso na tradição judaica. Em 1923, ele se mudou para a França para estudar
filosofia na Universidade de Estrasburgo. Durante seus anos de estudos foi
influenciado por filósofos como Edmund Husserl e Martin Heidegger, que eram
figuras importantes do movimento fenomenológico naquela época e aqui surge
a sua primeira inspiração, que deu vida ao seu doutorado, com o título de La
theorie de l’intituition dans la phénomenologie de Husserl (Teoria da intuição na
fenomenologia de Husserl).
Posteriormente aparece a Lévinas um outro polo de inspiração, a tradição
talmúdica, na qual Lévinas se atenta sobre o rosto humano. O Talmude é uma
das principais obras do judaísmo rabínico e contém nele debates, interpretações
e ensinamentos legais e éticos. Lévinas foi profundamente influenciado pelo
estudo do Talmude e pela tradição interpretativa rabínica. O método dialógico e
a ênfase na interpretação e na responsabilidade interpessoal encontrados no
Talmude tiveram um impacto importante em sua filosofia da alteridade e no valor
que ele atribui ao diálogo ético.
Não se pode esquecer de outra grande influência profundamente
marcante para o filósofo, a experiência traumática do Holocausto, que teve um
impacto significativo em sua reflexão filosófica, uma vez que sofreu na pele os
terrores da segunda guerra mundial. A falta de humanismo, as consequências
do totalitarismo e a violência sofridas por Lévinas nos campos de concentração
marcam sua individualidade com uma profunda veracidade, de modo que não é
possível ter profundidade no pensamento do autor sem tomar como referência a
sua biografia.
Para entender a contextualização em âmbito filosófico, Lévinas se
encontra entre os filósofos personalistas, que buscam colocar a pessoa como o
centro da discussão filosófica, fazendo com que a sua singularidade, dignidade
e valor sejam considerados e ela não seja tratada como mais uma em um
conjunto de massas facilmente manipulado. Os filósofos desta corrente tentam
buscar um olhar de alteridade para o indivíduo fazendo com que este seja
reconhecido como singular, se referindo a Lévinas podemos dizer que ele busca
levar até as últimas consequências um personalismo dialógico – mesma linha

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Martin Buber e Franz Rosenzweig – que se dará, no pensamento do filósofo, em
uma ética interpessoal.

O personalismo é uma filosofia que nasceu na Europa durante a


primeira metade do século XX e procede de múltiplas fontes, mas se
consolidou na França dos anos 1930 e adquiriu posteriormente uma
importância notável em toda Europa, influenciando acontecimentos
relevantes, como a Declaração da ONU sobre os Direitos Humanos, as
Constituições europeias posteriores à Segunda Guerra Mundial e o
Concílio Vaticano II. No entanto, desde os anos 1960, foi perdendo
relevância pela influência concomitante do marxismo, do
estruturalismo, da crise do pós-concílio, das correntes ideológicas
ligadas a maio de 1968, etc. (Burgos, 2018, p.11)

Essa filosofia busca estabelecer uma ética baseada nas relações


interpessoais, valorizando o respeito mútuo, a solidariedade, a responsabilidade
e a promoção do bem comum. A pessoa é vista como um ser relacional, inserido
em uma rede de interações sociais, políticas e culturais. Uma das principais
contribuições do personalismo é ressaltar a importância do diálogo, do encontro
entre as pessoas e do reconhecimento da alteridade. O outro é visto como um
ser único e irrepetível, com suas próprias experiências, necessidades e
aspirações, e o respeito por sua dignidade é considerado um valor fundamental.
Este artigo apresentará três seções: na primeira, a crítica levinasiana ao
pensamento metafísico ocidental, tido como filosofia primeira, destacando o
modo como esse tipo de pensamento racionalista é perigoso e violento,
mostrando assim a importância de uma mudança na base do pensamento para
que se retire o Eu do centro da discussão e coloque o outro. É evidenciado
também a importância da ética, de modo que ela não é tida como mais uma entre
outros temas filosóficos, mas é o que constitui a própria estrutura de
determinação da vida humana, considerada em profundidade.
A segunda, explana a noção e o conceito de Rosto, elaborado pelo filósofo
para se referir ao outro, a busca pelo olhar a esse rosto faz com que seja
suspenso todo juízo acerca da cultura e da camada social que esse outro se
encontre. Mostra-se também o vínculo que o filósofo faz entre o rosto e o
discurso, como se as palavras não fossem necessárias nessa relação do eu com
o outro. É no encontro faceaface que se estabelece a alteridade, a diferença do
eu para o outro, desse modo a face se torna um elemento essencial na sua
filosofia.

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Na terceira seção, é apresentada a importância e o significado profundo
que o filósofo dá ao tema da responsabilidade, visto que sua filosofia tem o seu
apogeu no encontro do face a face. Mostra-se aqui o caminho contrário ao
existencialismo quando se refere a liberdade do sujeito. A responsabilidade é
fulcral, visto que não escolho se desejo ser responsável, mas a presença do
rosto do outro me traz uma obrigação ética de responsabilidade. Através do tema
da responsabilidade o autor une de maneira brilhante o rosto e o mandamento
ético de “não matar”.

Seção 1 – Visão do outro x filosofia tradicional (metafísica)

No campo da ética, o personalismo se opõe a teorias que reduzem a


moralidade a princípios abstratos ou a sistemas rígidos de regras, defendendo
uma abordagem mais contextual e circunstancial. A ênfase é colocada nas
relações concretas entre pessoas e na busca do bem e da justiça em cada
situação particular. Sendo assim, o personalismo se torna antagônico de
movimentos como o fascismo, o nazismo e o marxismo.
Após ter vivenciado todas essas experiências traumáticas e sofrido
influência de pensamentos filosóficos como já expresso aqui, Lévinas vai ser
insistente ao criticar a tradição filosófica ocidental, que frequentemente colocou
o Eu e a razão no centro, negligenciando o papel do outro. Sua crítica desafia o
individualismo excessivo e a visão de mundo que coloca os interesses pessoais
acima dos interesses comuns. Em seu pensamento essa visão mais ontológica
do que ética foi a grande responsável pelas atrocidades vividas pela
humanidade. A partir daí, Lévinas vai elaborar a sua filosofia, tendo como ponto
de partida a ética e não a ontologia.

A Ética para Lévinas é primeira e anterior a ontologia fundamental


existencialista e a fenomenologia transcendental porque é relação
entre entes humanos concretos e não relação entre um ente-inteligente
e o ser de um outro ente-inteligível. (Sales, 2005, p.108)

Dentro de toda essa pluralidade de fatos históricos e o acolhimento


mundial de diversas decisões tomadas olhando apenas para o Mesmo (conceito

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elaborado pelo filósofo para se referir ao outro como sendo igual a mim, não
levando em consideração a sua alteridade), e não para o Outro, Emmanuel
fundamenta o seu pensamento filosófico e inaugura a sua filosofia da alteridade
– alter, significa outro – tomando como base a ética e assumindo sobre o outro
uma responsabilidade profunda, de modo que seu rosto se torna para mim um
apelo ético para a responsabilidade. É importante salientar novamente quando
se fala em Lévinas, que a sua filosofia se desenvolve em meio ao conflito da
guerra e da perseguição racista do Nacional Socialismo, ou seja, a barbárie do
totalitarismo tendo como consequência o sofrimento e a morte de milhões de
rostos fazem com que o filósofo fortaleça a sua visão e convicto utilize uma
proibição ética, dada através da relação, de “não matar”. “O ‘Tu não matarás’ é
a primeira palavra do rosto. Ora, é uma ordem.” (LÉVINAS, 2007. p. 80)
Podemos utilizar a história de dois personagens muito bem conhecidos no
ocidente para ilustrar o movimento ético que a filosofia fez e aquele que Lévinas
almeja fazer para levar uma nova ética ao mundo. Ulisses, que simboliza o
movimento no qual a filosofia ocidental tomou durante o seu percurso, uma
filosofia centrada no ego e que almeja a conquista do ser, no pensamento de
Lévinas. Ulisses seria o movimento de um eterno retorno ao Mesmo e ao Eu,
onde se encontra o principal erro da filosofia ocidental. A outra história, essa sim
de acordo com pensamento do filósofo, é a história de Abraão, que abandona
para sempre seu lar rumo a uma terra desconhecida, elucidando um movimento
do Mesmo para o Outro que em tempo algum retorna para o Mesmo. Segundo
nos traz a história, Ulisses retorna a Ítaca, ou seja, encerra a trama retornando
ao conhecido. Abraão, movido por uma promessa, viaja para o desconhecido,
saindo do seu círculo e indo em direção a uma utopia. Lévinas nos mostra assim
que a filosofia ocidental só poderá ser superada quando transitar da existência
para o existente, do ser para o homem, do conhecido para o desconhecido, do
Mesmo para o Outro.
Ao enfatizar o tema da ética, é importante recordar que se trata de uma
relação de no mínimo duas pessoas, uma vez que, se existisse apenas um
homem no mundo a ética não entraria em questão. Portanto, a ética exige uma
intersubjetividade, sendo que a subjetividade – tema tão explorado por filósofos
contemporâneos a Lévinas como Heidegger e Husserl -, não dá conta de abordar
a ética já que esta está voltada para o sujeito em si mesmo. Aqui se encontra

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uma grande diferença entre o pensamento de Lévinas daqueles que o inspiraram
no ambiente filosófico. Esta saída de si ao encontro do outro, proposta pelo
filósofo judeu, fica mais clara na obra “Totalidade e Infinito”, onde ele vai defender
que a verdadeira filosofia é justamente a filosofia do amor, dado que ser filósofo
não é meramente amar a sabedoria, como apresenta a etimologia do termo
philosophie, mas se trata em ter mais sabedoria em amor, em amar o próximo.
Tendo isso como ponto de partida, Lévinas define a ética como filosofia primeira,
justamente pela importância que se dá à relação entre os seres. Na entrevista
dada pelo filósofo, encontrada na obra Ética e Infinito, é explicado mais
claramente a questão da responsabilidade do rosto, buscando sair do
subjetivismo e caminhar em direção ao Outro.

No livro [aqui ele cita a obra “Do outro modo de ser além da essência”],
falo da responsabilidade como estrutura essencial, primeira,
fundamental da subjectividade. (...). A ética, aqui, não aparece como
suplemento de uma base existencial prévia; é na ética entendida como
responsabilidade que se dá o próprio nó do subjectivo. Entendo a
responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como
responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz, ou não me diz
respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado
como rosto. (Lévinas, 2007, p. 87)

Desta forma, Lévinas propõe uma saída de si mesmo, um êxodo que


envolve uma autotranscedência que vai ao encontro do Outro e que o acolhe
com amor e bondade. Lévinas traduz essa saída através da ideia de infinito. O
infinito é a transcendência do outro, que rompe com a totalidade no sentido de
não se fundir nela e que se manifesta no rosto de outrem. E esse rompimento
com a totalidade se dá justamente porque a metafísica, segundo o filósofo, não
é entendida como a busca da verdade do ser, referente à que está contida na
essência das coisas. Todavia, ele busca uma filosofia que excede, que supera
essa metafísica tradicional e que é exterior à totalidade.

Para Lévinas, a metafísica é o movimento de “saída do ser” - do


“mesmo de mim mesmo” - para o “outro de mim mesmo”. É a
excedência do ser ou a saída do ser. É ir em direção ao Outro, ao Bem,
ao “bem que está além do ser”. Nesse sentido, o Outro precede o Eu.
O Outro se torna transcendência. (Martins; Lepargneur, 2014. p. 7)

Conclui-se, a partir daí, que a metafísica adquire um novo significado para


Emmanuel Lévinas: ela é o esforço que é dado ao buscar uma saída do ser para

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o seu além, para o que é diferente, e é através dela que se dá a relação com a
exterioridade, em que o Eu aborda o outro sem ser evasivo no seu espaço, ou
sem destruir a sua alteridade, dando abertura para que este Outro também se
manifeste a mim. Esta é, portanto, a saída do subjetivismo. O filósofo vai definir
este argumento como o encontro do face a face. A transcendência tem como
propriedade fundamental a distância que separa o eu do outro. Esta não significa
uma distância comum, mas está relacionada ao próprio modo de existir do
outro."É no face-a-face humano que se irrompe todo sentido. Diante do rosto do
Outro, o sujeito se descobre responsável e lhe vem à ideia o Infinito." (LÉVINAS,
2007. p. 90)
Lévinas defende a ideia de que o que constitui o homem não é a sua
capacidade biológica, ou a sua razão, não obstante sua responsabilidade
incondicional com o outro. O filósofo, leva a sério a questão ética; para ele, esta
não é uma questão qualquer entre os outros temas filosóficos, mas é o que
constitui a própria estrutura de determinação da vida humana, considerada em
profundidade.

Seção 2 – Rosto e alteridade

O ponto chave de sua ética se dá no encontro do face a face, no encontro


com o rosto do outro. Chama-se rosto - visage - a manifestação daquilo que se
pode apresentar tão diretamente a um Eu. Na epifania do rosto, há algo que é
anterior ao conceito, à lógica, à teologia. O rosto (ideia do infinito) não é um
conteúdo a que se tenha acesso de forma objetiva e concreta, não se limita a
questão física ou plástica. Frente ao rosto que se dá a conhecer não se pode
atribuir rótulos ou qualquer explicação, pois este se trata da sensibilidade que
antecede a uma razão que faz o indivíduo atribuir um valor e pensar eticamente
o outro a partir do rosto. Assim, o rosto do Outro é um apelo que exige que seja
correspondido eticamente e de forma responsável.

Em primeiro lugar, há a própria verticalidade do rosto, a sua exposição


íntegra, sem defesa. A pele do rosto é a que permanece mais nua, mais
despida. A mais nua, se bem que de uma nudez decente. A mais
despida também: há no rosto uma pobreza essencial; a prova disto é
que se procura desmascarar tal pobreza assumindo atitudes,

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disfarçando. O rosto está exposto, ameaçado, como se nos convidasse
a um acto de violência. Ao mesmo tempo, o rosto é o que nos proíbe
de matar. (Lévinas, 2007, p. 78)

Lévinas usa a ideia do rosto baseada no Talmude, mas também porque


este é um símbolo de personalidade, de vida, no qual o Outro se revela. É nele
que o Outro apresenta a sua humanidade, o seu ser como pessoa, e é
justamente aí que se mostra na sua fragilidade e invoca do Outrem uma resposta
responsável. Lévinas transfere para a experiência do face a face a ideia do
infinito, a qual torna sabedoria para o Outro. Apesar de parecer uma ideia um
tanto simplista vindo do filósofo, vê-se que o rosto é a parte privilegiada do corpo.
Nela estão presentes os cinco sentidos do homem: tato, olfato, paladar, visão e
audição. No entanto, para o filósofo, esses não são os aspectos principais que
caracterizam e que dão importância ao rosto, mas aquilo que ele dará o nome
de epifania - o filósofo utiliza do termo para significar uma transcendência
presente a partir do rosto – que o torna uma expressão que não pode ser
apreendida, mas somente vislumbrada, que não dá conta de seu significado na
totalidade e desta forma torna-se manifestação.

Penso antes que o acesso ao rosto é, num primeiro momento, ético.


Quando se vê um nariz, os olhos, a testa, um queixo e se podem
descrever, é que nos voltamos para outrem como para um objecto. A
melhor maneira de encontrar outrem é nem sequer atentar na cor dos
olhos! Quando se observa a cor dos olhos, não se está em relação
social com outrem. A relação com o rosto pode, sem dúvida, ser
dominada pela percepção, mas o que é especificamente rosto é o que
não se reduz a ele. (Lévinas, 2007, p. 77)

A manifestação do rosto é originalmente discurso, o rosto fala, ou melhor,


ele começa e torna possível todo discurso. A palavra manifestada no rosto é a
expressão que revela e que ao mesmo tempo é revelada, para o filósofo a
epifania do rosto é uma abordagem ao Outro sem verbalização, pois não
existindo relação com o outro sem linguagem o rosto se torna, originalmente,
discurso. Interessa, como é de relevância, entender que nesta relação do Eu
com o Outro, deve haver uma dissemelhança, de modo que o rosto do Outro não
pode ser visto como um objeto diante do Eu. Outro ponto importante é que para
que se tenha uma manifestação do rosto, é necessário um estado de nudez. Na
nudez do rosto se encontra a personalidade do ser. Nela, o Eu se encontra. A
nudez e a fragilidade do rosto do Outro é um pedido de cuidado ao Eu, essa
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exposição me convida e interpela a uma resposta de amor, mas um amor
desinteresseiro, amar ao ponto de se entregar para o Outro, mas não em sentido
erótico e sim no sentido de doação, de entrega de vida. Ora, a filosofia
levinasiana é pautada no tema do amor e amar é sacrificar-se ao Outro, de modo
que o Eu abandone a si para se doar ao Outro.
No rosto do Outro, o Eu contempla a si, pois nessa contemplação lhe é
exposto o quão separado ele é. Na experiência do face a face, o Eu se direciona
ao Outro em aproximação e quanto mais se unem, mais se percebe o quanto
estão separados.

Na expressão, um ser se apresenta a si mesmo. O ser que se


manifesta assiste a sua própria manifestação e, por conseguinte, apela
para mim. Essa assistência não é o neutro de uma imagem, mas uma
solicitação que me envolve a partir da sua miséria e da sua altura. (...)
Manifestar-se como rosto é impor-se para além da forma, manifestada
e puramente fenomenal, é apresentar-se de uma maneira irredutível à
manifestação, como a própria retidão do frente a frente, sem mediação
de nenhuma imagem na sua nudez, ou seja, na sua miséria e na sua
fome. (Lévinas, 2007, p.83)

Dessa forma, o discurso torna-se o princípio do ser e da objetividade, ou


seja, o ser ou o fenômeno encontra a sua gênese na palavra do Outro. Anterior
a toda e qualquer tematização sistemática, como palavra antes da palavra, a
filosofia primeira, portanto é a ética, pois a encontramos no princípio das
relações. Na alteridade, o Eu se encontra.
Durante boa parte dos estudos antropológicos, falou-se muito sobre
identidade, de coisas que identificam um ao Outro. No entanto, a análise
levinasiana é pautada naquilo que diferencia. Segundo o filósofo, essa ideia de
alteridade é justamente a de que todo ser humano interage socialmente com
todos os indivíduos e tem uma relação de interdependência. Isto é, o homem
está em sociedade em contato permanentemente com outras pessoas e, através
destes contatos, permanece a ideia de que nós somos distintos e diferentes.
Como afirma Farias (2006, p.10):

Alteridade será a palavra-chave desta ética ou desta filosofia. O


pensamento é um movimento que se dirige para a alteridade sem levar
a intenção de fazê-la parte deste movimento, como um resultado seu,
portanto, movimento sem finalidade. Alteridade é sempre aquilo que
permanece outro, mesmo com relação ao tema que serve de veículo
para esta filosofia. Não há enquadramento, sistema, reciprocidade ou
correlação. Outro significa sempre exterior, fora ou além de qualquer

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horizonte que um pensamento dito objetivante ou intencionalizante
poderia alcançar.

Pensar desde a dimensão da alteridade, do Outro que permanece Outro,


significa pensar a transcendência na sua radicalidade. Todavia, a ética
apresentada por Lévinas exige uma racionalidade própria. Isto significa,
consequentemente, que esta racionalidade deve ser compreendida para além
do jogo ontológico das essências.
Compreender que não estamos sozinhos no mundo, implica de certa
maneira o nosso pensamento ético. Ora, se existe ética, comportamento moral
e humano é porque existem outras pessoas no mundo, além da minha
subjetividade. Por consequência, compreende que o Outro obriga o Eu a pensar,
não somente sobre si mesmo, mas também sobre suas ações, atitudes e
vontades. Segundo Lévinas (2007), o laço com outrem só se aperta como
responsabilidade, quer esta seja, aliás, aceite ou rejeitada, se saiba ou não como
assumi-la, possamos ou não fazer qualquer coisa de concreto por outrem.
No latim, a palavra Outro se traduz como alter, termo este de onde provém
a palavra alteridade, que remete então à preocupação que se dá ao Outro, e à
capacidade de sentir empatia e se dispor a ele. Nesse viés, observa-se o salto
que dá Lévinas em fazer da filosofia não um estudo somente relacionado ao Eu,
mas também, direcionado ao Outro, ao humanismo do Outro.
Além do mais, encontra-se no filósofo aquela mesma humanidade tratada
no homem de Heidegger, de um homem que não é mais visto como um sujeito,
mas como seres lançados no mundo. Lévinas, esclarece seu ponto de vista com
relação a estes escritos de Heidegger.

Habitualmente, fala-se da palavra ser como se fosse um substantivo,


embora seja, por excelência, um verbo. (...). Com Heidegger, na
palavra ser revelou-se a sua “versatilidade”, o que nele é
acontecimento, o “passar-se” do ser. Foi a esta sonoridade verbal que
Heidegger nos habituou. É inesquecível, ainda que banal atualmente,
esta reedução (sic) dos nossos ouvidos! (Lévinas, 2007, p.24)

De fato, ao notar o zelo que Lévinas tem pelo filósofo e a importância dele
em sua vida, é possível identificar semelhanças em suas abordagens com
relação ao ser. Segundo Duarte:

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Para Heidegger nós somos seres fundamentalmente lançados no
mundo, o que quer dizer que fundamentalmente nós não somos
exatamente alguma coisa. Nós somos já as relações que temos com o
mundo, com os outros e com as coisas. Nós não somos primeiros e
depois nos relacionamos com o mundo e com as pessoas. Todavia, já
somos isso que se constitui no interior das relações que entretemos.
Portanto, nenhum ser é encerrado dentro de si mesmo a priori. (Duarte,
2020)

A partir disto, encontra-se a grande semelhança nas abordagens de


ambos os filósofos e a inspiração levinasiana com relação ao tema da alteridade.
A partir dos dois filósofos, há então uma fuga desta “filosofia do ego”; entende-
se que o Eu já não pode mais ficar pensando em si mesmo, no sentido do
questionamento “quem sou eu?” para mim. É no encontro com o Outro que o Eu
entende suas necessidades e compreende suas limitações e potencialidades. A
partir daí, nasce de maneira natural a compreensão de que o Eu não está
sozinho e de que existem outros horizontes que devem ser alcançados.

Seção 3 - Responsabilidade

Foi demonstrado até aqui que o rosto é o que aparece, ou apareceria, se


pudesse se desnudar o sujeito de todas as camadas sociais e/ou culturais. E
esta é de fato, a mais absoluta nudez, pois se apresenta a verdade e a
vulnerabilidade. Em Lévinas, o rosto seria a potência do contato com a
alteridade, uma irrestrita abertura para o outro, onde ele não é possuído, nem
mesmo reconhecido. Mas até lá, é necessário entender o tema do humanismo
do Outro.
O Eu, não é uma substância, no entanto é uma relação. É no outro que o
Eu se encontra, se identifica, se percebe. Lévinas remonta uma estrutura de
pensamento filosófico que prioriza a conversa e a escuta. Por fim, o encontro.
Ora, sem o Outro, como já dito, não se dá um autêntico pensamento filosófico.
Lévinas se inspira em Martim Buber ao defender essa ideia do conhecimento
vindo do encontro: Conhecer é encontrar e encontrar é conhecer. Segundo
Lévinas,

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O incentivo inicial ao caminho do diálogo sobreveio-lhe principalmente
a partir do pensamento de Martim Buber, para o qual o Eu não é
substância, mas relação: existe somente enquanto se refere a um Tu,
cuja existência é dada pela palavra que dirige ao Eu. (Lévinas, 2007,
p. 8)

Deste modo, eu dialogo com o Outro, antes mesmo de eu criar uma


definição sobre ele. Ora, o filósofo vai afirmar, que de fato, o diálogo é justamente
essa relação entre desiguais. E aqui se vê a grande problemática: a
desigualdade. Voltando a falar de alteridade, é muito comum que as pessoas
possuam uma quantidade de pré-conceitos e pré-julgamentos, adquiridos sem
nenhuma vivência. Porém, o Outro não pode estar contido em conhecimentos
prévios. Na nossa cultura, especialmente, é muito comum que se crie
pensamentos como: o Outro é nada. O Outro é menos que Eu, o Outro é negro,
é homossexual, é herege, é imigrante. O rosto, ao revelar tal nudez e miséria,
invoca ao Eu um pedido de responsabilidade. Abrir-se a essa responsabilidade
pelo Outro não requer um ato de empatia, de altruísmo, mas, um ato de amor. O
rosto do Outro desafia o Eu na sua razão, “O rosto pede-me e ordena-me. A sua
significação não é uma ordem significada” (Lévinas, 2007). O desafio é
justamente porque o Outro não é um Outro igual ao Eu, mas um totalmente
Outro, que vai além, que é infinito. Neste momento, o Eu se depara com a
alteridade e é justamente aí em que ele se encontra.
O sentido da responsabilidade é um pedido de serviço. Acolher é
compreender que o Outro precisa de abrigo da mesma forma que o Eu precisa.
Isto é, encontrar o humanismo no outro homem. Podemos entender acolher, no
sentindo interno, mas no sentido externo também, “Dizer: eis-me aqui. Fazer
alguma coisa por outrem. Dar. Ser espírito humano é isso.” (Lévinas, 2007, p.89)
Nota-se, que a visão do filósofo contraria totalmente a visão existencialista
que tende a ver a responsabilidade como possível fruto da liberdade, para
Lévinas a liberdade só se dá quando se tem responsabilidade. Sobre isso
escreve Coutinho

Nessa nova perspectiva, o Eu é constituído pelo outro, e a liberdade


subjetiva, individual, que tende a ver o outro como aquele que irá
diminui-la (a liberdade), não encontra mais sentido. Ao colocar o outro
como prioridade, assume-se a responsabilidade por ele,
responsabilidade essa que não precisa ser solicitada, basta que o outro
se apresente, que esteja presente. De forma diversa ao
existencialismo, a responsabilidade não é fruto da liberdade e sim a

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liberdade seria fruto da responsabilidade. Isso faz com que, antes de
qualquer decisão, se pense se esta decisão estará em acordo com
minha responsabilidade pelo outro. (Coutinho, 2022, p. 101)

Por isso, Lévinas, propõe a experiência do faceaface, do êxodo do


egoísmo e do subjetivismo. Todavia, com todas essas afirmações, surge um
questionamento. Quem é esse outro que move no eu um desejo de
responsabilidade? Lévinas, parte do argumento bíblico do homem criado,
segundo a imagem e semelhança de Deus, e só aceita que se diga que o Rosto
é imagem, se se entender como “imagem de Deus”, não como um ícone, mas
significando caminhar no seu rasto. No argumento cristão, Jesus é o rosto do Pai
que se revela. Contemplando o Filho, encontra-se a misericórdia do Pai em seu
olhar.
Desta forma, O Rosto do próximo significa uma responsabilidade
irrecusável, precedendo todo o consentimento livre, todo o pacto e todo o
contato. Daqui que Ele permanece absolutamente “assimétrico” - termo dado por
Lévinas que se refere a curvatura de espaço intersubjetivo -, em relação a mim.
Refere-se como proximidade nunca totalmente próxima, não sendo o contato
com Outrem que anularia a “alteridade”. O surgimento do Outro, será a vida da
minha responsabilidade, que revela a finitude numa dimensão ética, porque o
homem não pode ilibar-se da chamada suplicante e exigente do Rosto do Outro-
homem. Esta proximidade não se revela com carácter espacial, mas sublinha,
naturalmente, o carácter contingente desta relação, porque o “próximo” é o
primeiro que chega. A proximidade consiste no fato de estar lançado e abraçado
a um “próximo” que é estranho, um absolutamente Outro.
Um dado importante quando falamos na ética da alteridade de Emmanuel
Lévinas, é entendermos que a relação intersubjetiva é uma relação não-
simétrica, ou seja, A minha responsabilidade pelo outro não quer dizer que o
outro seja responsável por mim, “Talvez, mas isso é assunto dele” (Lévinas,
2007), o que precisamos entender é que a responsabilidade parte do Eu para o
Outro e mesmo que ela custe a minha vida não posso esperar nada em troca,
pois a reciprocidade é uma atitude que está fora do Eu e portanto não cabe a
mim exercê-la. No seu livro Ética e Infinito (2007) Lévinas ilustra essa sua visão
da responsabilidade com uma frase de Dostoievsky, contida no livro “os irmãos
Karamazov” dizendo: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos,

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e eu mais do que os outros”, esta frase sintetiza bem o seu pensamento, pois a
responsabilidade entendida por Lévinas é onde o Eu suporta tudo, até mesmo a
não reciprocidade da responsabilidade.

Não devido a esta ou aquela culpabilidade efetivamente minha, por


causa de faltas que tivesse cometido; mas porque sou responsável de
uma responsabilidade total, que responde por todos os outros e por
tudo o que é dos outros, mesmo pela sua responsabilidade. O eu tem
sempre uma responsabilidade a mais do que todos os outros (Lévinas,
2007, p.91).

Na responsabilidade entendida por Lévinas a afirmação da própria


identidade do eu humano se dá a partir da responsabilidade por outrem, isto é
“a partir da posição ou da deposição do eu soberano na consciência de si,
deposição que é, precisamente responsabilidade por outrem” (Lévinas, 2007). O
Eu é apenas Eu na medida em que sou responsável, onde se encontra a
identidade inalienável do sujeito para o filósofo, já que segundo essa visão,
“Posso substituir a todos, mas ninguém pode substituir-me”. Exclusivamente
cabe ao Eu a responsabilidade e humanamente o Eu não pode recusá-la, já que
é ela que faz o Ser adentrar sua própria identidade.

Considerações finais

Este artigo teve por objetivo explorar a filosofia da alteridade de


Emmanuel Lévinas, trazendo pontos importantes de seu pensamento para
entendermos o valor da pessoa humana e a sua singularidade. Buscando dar
uma resposta a regimes totalitários, coletivistas e individualistas, o personalismo
ético do filósofo esclarece a diferença interpessoal e ao mesmo tempo a
responsabilidade obrigatória do ser social com o Outro.
Essa diferença entre o Eu e o Outro fica marcada com o encontro do face
a face, demonstrando que a partir do rosto do outro encontra-se uma alteridade
e por issonão o posso objetificá-lo, como se existisse uma superioridade nessa
relação ética. Pelo contrário, o rosto do Outro é o que me ordena a ser
responsável pela sua existência e pela sua liberdade.

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Visando a sociedade que se encontra centrada na violência com o Outro,
Lévinas propõe uma ética na qual o indivíduo possa ter consciência do Outro
com a mesma intensidade que tem consciência de si. Assim Emmanuel Lévinas
apresenta uma resposta possível para os problemas principais de nossa época,
deixando claro que todo e qualquer ato de violência feito ao Outro faz com que
Eu me descaracterize, pois, a responsabilidade do Eu para com o Outro é o que
me faz ser humano.

Referências

BURGOS, Juan Manuel. Introdução ao personalismo. São Paulo: Cultor de


livros, 2018.

DUARTE, Pedro. O pensamento e a vida de Martin Heidegger. Youtube, 2020.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2CK0RZSqDwk&t=10.
Acesso em 24 de outubro de 2023.

FARIAS, André Brayner de. Para além da essência: racionalidade ética e


subjetividade no pensamento de Emmanuel Lévinas. 309 f. Tese (Doutorado
em Filosofia) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2006.

LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: editora70, 2013.

______. Ética e Infinito. ed. 70, Lisboa, 2007.

MARTINS, R. J; LEPARGNEUR, H. Introdução a Lévinas: Pensar a ética no


século XXI. São Paulo: Paulus, 2014.

SALES, Marcelo. O rosto do outro como fundamento ético em Emmanuel


Lévinas. Reflexão, vol. 30, núm. 88, p. 105-126. Pontifícia Universidade Católica
de Campinas, Campinas, 2005

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