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Berger e Luckmann: A construção social da realidade.

Se você está lendo essa postagem significa que o mundo acabou e você
encontrou resquícios da civilização, rs. Não, ao contrário disso, se você
consegue ler esse texto é porque há um mundo socialmente construído: você
foi alfabetizado, ensinaram-lhe uma língua, trabalhadores produziram o
suporte no qual você lê, eu escrevi e publiquei o texto e (espero) essas ideias
farão parte do conhecimento que você portará consigo.

O processo acima descrito ilustra a tese de Peter Berger (1929-2017)


e Thomas Luckmann (1927-2016). Para esses dois sociólogos austro-
americanos, a sociedade resulta da construção social da realidade. Em miúdos,
o modo cotidiano pelo qual o indivíduo define a sociedade e percebe as ações
humanas e se interage com as pessoas constrói o mundo social. Assim, a
percepção dos sentidos em si é moldada pelos sentidos subjetivos atribuídos a
uma experiência objetivamente vivida.

Para fundamentar seu argumento, Berger e Luckmann propõe alguns


conceitos:

 Externalização: pensamentos, sentimentos, ideias que ganham formas.

 Objetificação ou reificação: a transformação dos pensamentos pela


linguagem e comportamento dentro de parâmetros sociais e sua
institucionalização nas artes, nas normas e nos hábitos.

 Internalização: com os parâmetros dos artefatos ou objetos


socialmente aceitos, o indivíduo tem consciência e interpreta o mundo.
Reflexivamente, externaliza seus pensamento com base nesses parâmetros.
 Habitualização: ações repetidas se tornam um parâmetro que serão
aceitos por outros que vierem depois.

 Institucionalização: o processo de implantar uma convenção ou norma


na sociedade. Isso acontece quando os hábitos se tornam normais ou
realidade.

 Realidade: uma qualidade inerente ao fenômeno a qual reconhecemos


que essa qualidade é associada ao fenômeno independentemente de nossa
vontade.

 Conhecimento: certeza que os fenômenos são reais e que possuem


características específicas.
Como as sociedades são diferentes, o que é considerado ser real em uma
cultura pode não ser em outra. Por exemplo, as 40 variedades de tons de
pele foram agrupadas em grupos discretos, criando-se “raças” e tornaram-se
reais em suas consequências, para citar outro sociólogo, o pioneiro W.I.
Thomas. Quem é Afro-American nos Estados Unidos (como o ator Wentworth
Miller) não pode ser assim reconhecido como negro/preto no Brasil enquanto
a própria concepção de negritude pode ser a coisa mais sem sentido na
Nigéria, onde alguém é hauçá, tiv ou iorubá.
Falando assim, esse modelo parece óbvio, mas é fruto da reflexão bem
trabalhada de Berger e Luckmann. Essa obviedade deve-se à popularização da
obra, escrita com um estilo prosaico e ensaístico que a faz interessante até
para leitores não iniciados nas ciências sociais. Na redação dessa obra teórica,
os autores tomaram o cuidado de evitar a ladainha de nomes de autores e
conceitos teóricos, relegando-os às notas, nas quais tecem suas análises
críticas.

O que hoje é lugar comum foi uma novidade nos anos 1960. Na época, a
teoria dos sistemas, o giro quantitativo na sociologia, as abordagens
“materialistas” na antropologia, o funcionalismo-estruturalista parsoniano
(além das grandes narrativas marxistas, estruturalistas e psicanalíticas) davam
um tom determinista às atividades humanas. Nesse ambiente intelectual,
demandavam-se a questão de como o ser humano se comportava e se
imaginava segundo um parâmetro coletivo e ainda assim retinha sua
individualidade.

Contrariando o propósito dos autores de não falar em nomes de teóricos, é


interessante traçar como o conceito de “construção social da realidade” dos
próprios autores depende da habitualização de conceitos prévios. Os autores
incorporaram de Durkheim a ideia de que o fenômeno social seja uma
realidade objetiva, não uma mera soma de indivíduos. Já a concepção
dinâmica da sociedade deve-se a Marx. O papel das ações sociais dos
indivíduos para moldar a vida e na conceptualização de uma visão de mundo é
uma ideia devida a Max Weber. A preocupação em compreender como
funciona o processo do conhecimento entre o social e o mental origina-se com
Karl Mannheim e Werner Stark. Já a abordagem a essa mesma questão é
visivelmente fenomenológica, na tradição de Max Scheler e Alfred Schütz. Os
autores inverteram o modelo de sistema social de Talcott Parsons, então em
voga, para minimizar o papel individual e considerar a história como
contingencial, não determinada pelos sistemas individual, cultural e social
proposto por Parsons. Ao internalizarem essas ideias, os autores
externalizaram seu próprio conceito de construção social de realidade. Assim,
essa teoria torna-se real no sentido de se conceber o mundo dessa forma.
Embora os autores tenham proposto uma sociologia do conhecimento, a obra é
lida mais como uma ontologia social. O livro não é geralmente visto como
uma tentativa de explicar como o indivíduo se comporta como um ser
cognoscente ao meio das informações socialmente produzidas. Normalmente
a obra é referenciada como uma explicação de como os hábitos se tornam
instituições e sua aceitação se torna a realidade. Por fim, essa realidade é
conhecida e aceita como natural.

Berger, que além de sociólogo era teólogo e cientista da religião, iria


notavelmente aplicar sua tese nas teorias do dossel sagrado e da secularização
(e mais tarde do pluralismo pós-secular). Para Berger, o dossel sagrado da
religião como instituição seria uma emergência desse processo de construir
socialmente a realidade. Consequentemente, a religião – independente de
discutir a realidade do seu conteúdo de crença – é real e afeta o sistema de
construção de sentidos do mundo.

Falando no natural, fundadas na ideologia do naturalismo, há pessoas que


gostam de problematizar que isso ou aquilo é uma “construção social”, ou
seja, com menos legitimidade. Trata-se de uma interpretação que minimiza (e
contraria o aspecto de agência humana) da obra de Berger e Luckmann. Sem
se ater ao juízo de valor de que o “natural é o melhor; o artificial, pior”, o
problema de querer invalidar um traço cultural ou uma instituição social como
menos importante ou sujeita às mudanças por mera volição é ignorar que a
construção social é real. Isto é, como as coisas reais externas à nós são
construídas socialmente, mas não dependem do livre-arbítrio das pessoas. Há
sim a agência humana para modificar a realidade, que ocorre no cotidiano do
indivíduo, mas não depende do poder, iniciativa e vontade — consciente ou
não — desse indivíduo para realizar uma modificação total da sociedade. Essa
transformação depende da interação recíproca, dialética, entre indivíduos e
entre o indivíduo e sociedade. Outras abordagens, como as teorias da
estruturação e da práxis, explicam como essas transformações ocorrem e,
apesar das diferenças, concordam que as mudanças sociais não processos
individuais que resultam em mudanças drásticas de uma hora para outra.

Referências:
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. The Social Construction of Reality: A Treatise in the Sociology of

Knowledge. Garden City, NY: Doubleday, 1966. No Brasil: A construção social da realidade: tratado de sociologia

do conhecimento. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 2014.

Texto disponível em: https://ensaiosenotas.com/2018/07/06/berger-e-luckmann-a-construcao-social-da-realidade/ .

Acesso em 24/03/2023.

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