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Construção Social da Realidade: Sociedade Como Realidade Objetiva

Pedro Augusto Gomes Krauss

O livro dos sociólogos Peter Berger e Thomas Luckamnn, A Construção Social


da Realidade: tratado de sociologia do conhecimento, foi lançado em 1966 nos
Estados Unidos e teve grande impacto na sociologia contemporânea. Trazendo a
filosofia fenomenológica para as ciências sociais, seguindo como principal referência
Albert Schultz, os autores buscaram compreender a formação e circulação do
conhecimento na sociedade. Vejamos a argumentação contida no segundo capítulo
do livro, sociedade com realidade objetiva.
A diferença do ser humano para os outros animais é que nossos instintos são
subdesenvolvidos. Nossos impulsos não são direcionados e especializados como os
de outros animais. Depois do nascimento, continuamos a nos desenvolver
biologicamente. Esse processo ocorre na relação com os objetos externos, naturais
e sociais. Além do desenvolvimento biológico, criamos o nosso eu, composto pelas
tipificações sociais e aparelho psicológico que estrutura nossa forma de pensar,
sentir e agir. O homem é corpo e, ao mesmo tempo, tem um corpo. A produção do
homem, portanto, é coletiva; a biologia apenas define os limites desta produção. A
criação da ordem social vem da busca por estabilidade que o homem não possui,
devido à sua abertura para o mundo.
Toda atividade humana pode tornar-se hábito, economizando esforços. A
institucionalização surge a partir do hábito, junto da tipificação recíproca das ações e
atores. As instituições têm historicidade e controlam o comportamento dos atores
(controle social primário). A rotinização das ações libera tensão entre os indivíduos e
facilita o desenvolvimento da divisão social do trabalho. No momento em que as
instituições são transmitidas às gerações seguintes, elas tornam-se objetivas. Isso
dá aparência natural à criação humana, dificultando a mudança da instituição. Essa
relação entre o ser humano e a sociedade é dialética, em um processo contínuo de
exteriorização (sociedade é produto humano), objetivação (sociedade é a realidade
objetiva) e interiorização (ser humano é produto social). Não sendo possível para o
indivíduo saber a função original da instituição, uma história legitimadora é
necessária; a reflexão da sociedade que dá lógica às instituições. Essa lógica faz
parte do conhecimento social, objetivado como a verdade inquestionável sobre a
realidade. A formação do conhecimento se processa pela mesma dialética da
institucionalização, e o último não é possível sem o primeiro.
A sedimentação é o processo pelo qual retemos pequena parte do que
experienciamos na consciência. Sem ela não teríamos biografia. Quando esse
processo ocorre coletivamente temos uma sedimentação intersubjetiva, formada a
partir de sistemas de sinais compartilhados, como a linguagem. Essa objetivação
pela linguagem tira a experiência de seu âmbito biográfico, tornando-a conhecimento
acessível objetivamente para todos os membros da sociedade. A linguagem se
transforma em uma coleção de sedimentações intersubjetivas. Através dela, as
instituições, reconhecidas como soluções permanentes para problemas
permanentes, são transmitidas. Alguns desses conhecimentos serão dados à
totalidade, outros, para determinados grupos tipificados; certos indivíduos serão
transmissores, outros, receptores.
A origem da ordem social se encontra na tipificação das ações dos indivíduos.
Uma ação de determinado tipo pode ser executada por qualquer ator de tipificação
coerente. A institucionalização depende da tipificação dos papéis, é a partir destes
que as instituições são incorporadas pelos indivíduos; atuar em um papel faz o
sujeito participar do mundo social, interioriza-lo faz este mundo se tornar a realidade.
O processo de formação dos papéis é semelhante ao da objetivação das
instituições. As instituições só existem quando seus papéis são representados,
portanto, os papéis representam as instituições. Todos eles representam a ordem
institucional; alguns frações desta, outros, sua totalidade. O conhecimento social é
dividido na parte comum e na parte específica, acessível apenas para determinados
papéis. A especialização do conhecimento impulsiona no seu acúmulo e acarreta na
figura do especialista.
A crescente especialização implica a necessidade de significações integradoras
mais complexas, capazes de abranger todos os grupos e seus interesses
conflitantes. A produção de excedente econômico traz a possibilidade de grupos
focados em atividades não produtivas, com tamanha especialidade que tornam-se
subuniversos. Estes competem entre si pelos recursos do excedente. Cada
subuniverso tem sua perspectiva sobre o mundo, permeada pelos seus interesses
como grupo, que podem divergir dos interesses individuais de seus membros. Os
estranhos devem ser mantidos fora e os participantes dentro do subuniverso. A
institucionalização acaba gerando o fenômeno da reificação, onde os fenômenos de
origem humana são vistos pelos indivíduos como coisas não humanas, ou, sobre
humanas. Processo de desumanização em que o homem não se percebe produtor
de seu mundo; este se apresenta como externo, incontrolável e natural. O ser
humano entende-se por aquilo que é tipificado socialmente.
As legitimações são objetivações de segunda ordem. Servem para integrar os
significados das instituições distintas a partir da produção de novas significações. A
legitimação justifica a ordem institucional. Informa o indivíduo como ele deve agir e
porque assim é o correto. Temos vários níveis de legitimação, desde proposições
pré teóricas até os universos simbólicos, onde o pragmatismo do cotidiano é
substituído pela ordem simbólica. Nesse patamar, a teoria dá significado à totalidade
da ordem institucional integrando-a. A biografia e a sociedade são vistas como
acontecendo dentro desse universo. Universo simbólico hierarquiza as realidades,
colocando a ordem institucional como realidade central. Isso nos dá segurança,
ancorando nossa identidade e biografia em bases inteligíveis, a legitimação da morte
é um exemplo disso. Mas o universo simbólico é frágil, realidades fora da realidade
da ordem institucional são constantes ameaças.
A partir da criação do universo simbólico que se abre a possibilidade de reflexão
sobre o mesmo. Todo universo simbólico é frágil e problemático, sua transmissão
nunca é perfeita. Grupos com concepções alternativas de realidade são ameaças
contínuas. A tradição faz renovações teóricas em resposta aos hereges, sejam eles
as culturas externas ou os divergentes internos. A dominância de um universo
simbólico sobre outro resulta mais das forças políticas de seus representantes que
de sua solidez teórica. Mecanismos conceituais seguem a ordem, não evolucionista,
de mitologia, teologia, filosofia e ciência. A permeabilidade de forças sagradas na
vida social diminui a cada nível enquanto, inversamente, os conhecimentos
específicos são mais especializados e afastados do conhecimento geral. Os
universos simbólicos têm uma terapêutica, composta por uma teoria sobre a
dissidência, aparelhos de diagnóstico e sistema de cura, para manter os indivíduos
desviantes dentro da realidade social. Negativamente, a aniquilação busca acabar
com os desviantes, a partir da sua exclusão social.
As concepções teóricas podem ser desenvolvidas pelos especialistas de maneira
distanciada da sociedade. Quando grupos sociais as incorporam, seus interesses
extra teóricos definiram o embate de uma concepção sobre as outras. Os interesses
dos grupos sociais com as concepções teóricas que assumem podem ser diferentes
dos interesses originais dos teóricos que as desenvolveram. A ideologia é a ligação
entre uma concepção de mundo com interesses objetivos de poder. A doutrina é
aceita pelo grupo por ressonar com seus interesses, ao mesmo tempo, os interesses
do grupo modificam a doutrina incorporada, mas essa relação não é
necessariamente lógica. O intelectual é um tipo de especialista marginal; tem uma
visão total para a sociedade, porém, não usa suas concepções para a legitimação,
mas para a transformação radical da ordem institucional. A revolução é o ato de
consagração da perspectiva do intelectual. No momento da vitória da revolução e
implantação de nova ordem, o intelectual, opositor da antiga ordem institucional,
torna-se o legitimador da nova ordem.
Esses são os principais argumentos contidos no segundo capítulo de Construção
social da realidade. Gostaria de destacar, brevemente, três pontos sobre a obra de
Berger e Luckmann. Em primeiro lugar, o texto consegue superar o paradigma da
sociologia clássica que separa e coloca em conflito indivíduo e sociedade. Na
sociologia do conhecimento, o indivíduo produz a sociedade ao mesmo tempo que é
produzido por ela, em um processo contínuo. Em segundo lugar, esse processo
contínuo de transformação dialética — exteriorização, objetivação e interiorização —
permite uma análise mais precisa, que não toma o objeto sociológico como
desintegrado e imóvel. Por último, quero ressaltar a sofisticação que tem a
ferramenta teórica para a análise do que Marx chama de superestrutura social. O
texto consegue aprofundar o estudo da ideologia e das instituições, integrando todo
o seu processo de criação, desenvolvimento, integração, legitimação e transmissão.

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