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brinca mais
aprende mais
A importância da atividade lúdica
para o desenvolvimento
cognitivo infantil
Denise Pozas
SISTEMA FECOMÉRCIO-RJ
SENAC RIO DE JANEIRO
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
____________________________________________________________
P897c
Pozas, Denise
Criança que brinca mais aprende mais [recurso eletrônico] : a importância da atividade lúdica
para o desenvolvimento cognitivo infantil / Denise Pozas. – Rio de Janeiro : Ed. Senac Rio de
Janeiro, 2012.
recurso digital : il.
Formato: ePub
Requisitos no sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7756-212-1 (recurso eletrônico)
Conhecer as armas para poder lutar. Parece-me que esse preceito muito se
aplica a este livro. Como comprovar, demonstrar ou validar questões em
um campo que lida com as singularidades e subjetividades de sujeitos
diversos? Apropriar-se das testagens – instrumentos reconhecidos e
legitimados cientificamente – foi a estratégia fundamental. Denise Pozas
poderia ter escolhido vários outros caminhos em sua investigação, mas fez a
opção mais desafiadora: transitar pelos diferentes paradigmas de pesquisa e,
com isso, fornecer um material ímpar para todos os que defendem a
importância da brincadeira livre para o desenvolvimento infantil. Em suas
próprias palavras: “essa pesquisa se refere à diversidade e à contradição
inerentes às ciências humanas”. Mais adiante, reafirma que “respeitando a
ideia positivista de ciência, a pesquisa utilizou instrumentos precisos e
tratamentos estatísticos que atribuem validade aos resultados”.
Assim o fez esta autora, Denise Pozas, que tive o prazer de conhecer na
década de 1990. Na época, ela era minha aluna na pós-graduação em
Educação Infantil da PUC-Rio, e, desde então, nossos caminhos continuam
em permanente fluxo de trocas e interseções – uma delas foi minha
participação como avaliadora externa em sua banca de defesa do mestrado
que originou este livro. Desse modo, nem Denise Pozas nem essa
investigação aqui trazida me são desconhecidas. Ao contrário, admiro as
duas, o que tornou o convite para escrever este prefácio uma tarefa
prazerosa e de rememoração.
Rememorar que o brincar e as brincadeiras fazem parte de minha vida
desde sempre: não apenas nas lembranças da criança-que-fui, mas também
por ter trabalhado diretamente com os pequeninos durante 15 anos, pelas
experiências vividas na maternidade de quatro filhas, por ser avó do Caio, e,
também, por lecionar diferentes conteúdos relacionados ao brincar nas
universidades, atuar seis anos como coordenadora de um museu que tem a
criança como protagonista e ainda prestar consultorias diversas na área.
Enfim, é desse lugar que leio e comento este livro, e é com base na crença
na importância do brincar e das brincadeiras para o desenvolvimento geral
da criança que vejo Denise Pozas bordar em sua obra um diálogo
privilegiado com três teóricos – Piaget, Vygotsky e Wallon – e contar com a
colaboração de outros tantos renomados pesquisadores da área lúdica.
Denise mostrou-se uma leitora atenta e perspicaz, capaz de perceber
nuances de aproximação e distanciamento entre seus interlocutores. Não
caiu nas armadilhas da pressa e da simplificação, tampouco desistiu da
missão de nos favorecer a compreensão desse campo teórico. Arrisco dizer
que, entre tantos conceitos, citações, testes e mensurações, o cerne deste
livro se encontra em uma frase de Vygotsky : “(...) o brinquedo contém
todas as tendências do desenvolvimento sob forma condensada, sendo, ele
mesmo, uma grande fonte de desenvolvimento” – e é como se isso a tivesse
impulsionado a buscar a resposta para a questão: Será que brincando
livremente se aprende mais?
A autora, ao eleger, então, o aspecto cognitivo como foco, debruça-se
sobre as diferentes concepções teóricas de seus interlocutores e adentra esse
denso universo com a segurança dos já experientes. Sim, porque também
ela não é novata nem iniciante na área – seus percursos acadêmico e
profissional lhe dão o lastro necessário a essa empreitada.
Uma vez tecida a trama sobre o desenvolvimento cognitivo, a autora
borda sobre esta as questões relativas ao brincar e à brincadeira, inserindo o
leitor no contexto lúdico de maneira igualmente segura. A fluidez do tema
não a engana, nem Denise cai na tentação de afrouxar seu rigor científico
pela sedução que o assunto traz. Assim, ao fim deste bordado de pontos
firmes, surge o que será a sobreposição dessas duas abordagens: a discussão
em torno das relações entre brincar/brincadeira e desenvolvimento
cognitivo. E, mais uma vez, a autora toma o leitor pela mão e o conduz por
percursos que desembocarão em uma criteriosa pesquisa de campo –
certamente o que este livro tem de mais autoral e singular. Digo isso
porque, embora Denise Pozas tenha se mostrado competente no
enfrentamento do desafio teórico, todos sabemos que não foi a única a nos
brindar com esse enfoque, tampouco a inaugurar a aproximação entre seus
três interlocutores privilegiados. Diferentemente, o que este livro traz de
único é a trajetória empírica, uma investigação minuciosa e cuidadosa da
autora com as crianças de uma escola da rede privada de ensino do Rio de
Janeiro.
É exatamente aqui que brota aos olhos do leitor o que fora anunciado nas
linhas iniciais deste prefácio: o desafio de empreender uma pesquisa de
cunho quantitativo, com todo seu requerido instrumental, sob uma análise
qualiquantitativa. Depois de inúmeros pré-testes, testes e pós-testes com
três diferentes grupos de crianças – de controle, A e B –, a autora Denise
Pozas faz um imenso favor às meninas e aos meninos. Ela afirma,
cientificamente: brincar faz bem! Brincando, as crianças aprendem... e,
melhor ainda: brincando livremente, as crianças aprendem mais!
Assim, utilizando como âncora a obra de Fernando Sabino, cujo trecho
Denise Pozas escolhe para abrir o capítulo Conclusões e sugestões deste
livro, fecho este prefácio dizendo que, com certeza, ela traçou um caminho
novo e transformou o medo de enfrentar o desafio paradigmático em escada
para novos patamares da ciência, e, dessa procura pelo novo, deu-se o
grande encontro: o da validação científica que defende a importância do
livre brincar nas instituições educativas!
Obrigada!
Maria Isabel Leite
Pós-doutora em Arte-Educação, pesquisadora
da infância e da educação e editora do blog
Repensando Museus
Agradecimentos
Desenvolvimento cognitivo
Brincadeiras e jogos
Influência das
brincadeiras
e dos jogos no
desenvolvimento
cognitivo
Pesquisa
Premissas metodológicas
Todos esses referenciais teóricos que já faziam parte de meus estudos
sobre a criança, bem como minha atuação como psicóloga escolar,
coordenadora pedagógica e professora universitária sempre direcionada à
educação infantil, ajudaram a decidir o objeto de minha pesquisa. Tendo o
desenvolvimento cognitivo e as definições do brincar como pano de fundo,
o questionamento a ser respondido era: Que tipo de brincadeira, na escola,
mais promove o desenvolvimento cognitivo da criança – a livre ou a
dirigida?
A primeira questão a ser levantada para responder a essa pergunta era a
opção metodológica. Não havia a intenção de que minha pesquisa
apresentasse uma visão unidimensional. Estavam em foco crianças com
suas múltiplas linguagens, portanto era importante ter diferentes olhares
sobre o problema.
Como não é objeto deste livro versar sobre crises paradigmáticas ou
discorrer sobre o que é ou não científico, decidi que, para transformar a
realidade, seria necessário trazer opções metodológicas mais positivistas
para que os céticos pudessem se aproximar da questão do brincar com a
seriedade que esta merece.
O Positivismo admite como fonte única de conhecimento e critério de
verdade a experiência, os fatos positivos e os dados sensíveis, rejeitando
qualquer metafísica como interpretação ou justificação transcendente ou
imanente da experiência. Sendo assim, a preferência recaiu em utilizar
tabelas, variáveis, pré e pós-testes, grupo de controle, mas sem deixar de
fora de minhas observações a alegria, a poesia e o prazer.
Minha hipótese, empiricamente construída, era a de que a brincadeira
livre possibilitava maior desenvolvimento cognitivo exatamente por causa
de sua relação com o prazer e a autonomia. No entanto, isso precisava ser
comprovado com procedimentos científicos. Escolhi, então, uma escola de
classe média da rede privada de ensino do Rio de Janeiro para realizar a
pesquisa. Após conversa com o diretor e a coordenadora da Educação
Infantil, ficou definido que meu público-alvo seria composto de 27 crianças
na faixa etária entre 4 e 6 anos de três turmas da mesma série (manhã e
tarde).
A turma da manhã, com nove alunos (Matheus P., Marcos Paulo, Julyana,
Vitor, Leonardo, Paula Cristina, Luiza, Matheus e Mateus R.), seria o grupo
de controle, que só realizaria o pré e o pós-teste. A turma da tarde,
composta de 18 alunos, foi dividida em dois grupos de nove crianças cada
um. Esses grupos, além de realizarem o pré e o pós-teste, também seriam
submetidos a sessões de brincadeiras dirigidas (grupo A – Thalita, Gabriel,
Thamires, Rodrigo, Queyla, Fernanda, Phelipe, João Lucas e Ana Carolina)
e de brincadeiras livres (grupo B – Fernando, Amanda, João Marcus,
Adriano, Taís Cristina, Gabriela S., Gabriela G., João Marcos e Lúcia
Helena).
Para definir os instrumentos que seriam utilizados, optei por medir o
desenvolvimento cognitivo das crianças com base em três operações:
seriação, classificação e relacionamento de perspectivas. Foram
aplicados testes que avaliam o nível dessas operações nos três grupos de
crianças (de controle, A e B) antes e após a realização das sessões de
brincadeiras, configurando-se como o pré e o pós-teste. Essas três
operações apareceram em forma de atividades para as crianças nas sessões
de brincadeiras dirigidas.
As definições conceituais
Antes de iniciar o relato dessa experiência, é necessário estabelecer alguns
parâmetros relativos às concepções que embasaram a pesquisa.
As brincadeiras livres foram definidas como aquelas que apresentam as
seguintes características:
1. Liberdade de ação do jogador ou caráter voluntário, de motivação
interna e episódica da ação lúdica; prazer (ou desprazer), futilidade, o “não
sério” ou efeito positivo;
2. Regras (implícitas ou explícitas);
3. Relevância do processo de brincar (o caráter improdutivo), incerteza de
resultados;
4. Não literalidade, reflexão de segundo grau, representação da realidade,
imaginação;
5. Contextualização no tempo e no espaço.
A concepção de desenvolvimento cognitivo está diretamente relacionada
às teorias de meus interlocutores – Piaget, Vygotsky e Wallon. Segundo
Piaget,30 o progresso psíquico é comparável ao orgânico. Assim como o
corpo, que vai crescendo e amadurecendo até atingir um nível estável, a
vida mental evolui na direção de um equilíbrio final. O desenvolvimento é,
portanto, uma construção contínua em direção a uma equilibração
progressiva. Para Vygotsky,31 o homem passa de ser biológico para ser
sócio-histórico, pois seu funcionamento psicológico se dá nas relações da
pessoa com o mundo exterior, dentro de um processo histórico. Sendo
assim, é na cultura que o ser humano desenvolve suas funções psicológicas
superiores, e essa relação homem-mundo é mediada por sistemas
simbólicos, que podem ser instrumentos ou signos. Para Wallon,32 a
concepção de desenvolvimento cognitivo e a formação do “eu” caminham
paralelamente. Ambos são processos sócio-históricos, em constante
reformulação, formados na interação com as pessoas. O desenvolvimento
cognitivo, portanto, situa-se em um amplo contexto de construção social da
realidade.
O mundo social é, inicialmente, concebido pelas crianças dentro de um
universo simbólico, no qual as ações sociais se desenvolvem em um nível
de representatividade e as experiências são reconstruídas na brincadeira e
no jogo simbólico. Nesse processo de interação e de troca da pessoa com o
meio social, intervém o grau já atingido pela criança de organização interna.
Faz-se presente uma reciprocidade dialética entre o nível de
desenvolvimento cognitivo da criança e suas relações sociais. Assim como
o grau já atingido pela criança de organização interna influenciará as
relações sociais, estas, em outros momentos, propiciarão, por meio das
trocas com os parceiros, um crescimento cognitivo. Essas trocas têm no
contexto lúdico um campo fértil para seu aparecimento.
As brincadeiras dirigidas foram definidas como as que não são de livre
escolha da criança. Partindo do desejo do adulto, têm um planejamento
preestabelecido e com o objetivo pedagógico de desenvolver determinadas
habilidades; no caso da pesquisa, capacidade de seriação, classificação e
relacionamento de perspectivas. Os instrumentos utilizados consideram,
além do nível de conhecimento e da qualidade de pensamento de cada
criança, a forma como os testes são apresentados.
Entende-se como seriação ou ordenação uma operação lógica que
consiste em ordenar, dispor os elementos segundo sua grandeza crescente
ou decrescente. As conclusões piagetianas dizem que essa operação só
surge por volta dos 7 anos, mas tem suas raízes na fase sensório-motora,
quando a criança é capaz de construir uma torre de cubos com diferenças
dimensionais claras e imediatamente perceptíveis.
Para ordenar regrinhas com diferenças dimensionais pequenas, a criança
passa por etapas. Primeiro, compara pares ou pequenos conjuntos, mas não
os coordena entre si; em seguida, executa tateios empíricos, que constituem
regulações semirreversíveis, mas ainda não operatórias; finalmente, torna-se
capaz de procurar, comparando dois a dois, o elemento menor, depois o
menor dos que ficaram, e, assim, sucessivamente.33
Para verificar a capacidade de seriação, foi aplicada a Prova da Seriação
de Bastonetes (Anexo I),34 que tem como material uma série de dez
bastonetes graduados de 10cm a 16cm com uma diferença de 0,6cm entre
eles – um anteparo de papelão. Com o objetivo de avaliar a capacidade de
seriação, o examinador oferece à criança os dez bastonetes fora de ordem
para que ela tome conhecimento do material. Em seguida, solicita que ela
faça uma escadinha com todos esses pauzinhos, ordenando-os do menor
para o maior. Os resultados podem se apresentar em três níveis.
Nível 1: Ausência de seriação. As crianças dispõem os bastonetes em
qualquer ordem ou fazem diversas tentativas, mas não coordenam as séries,
ou fazem uma escada sem considerar o tamanho dos bastonetes.
Nível 2: Conduta intermediária. As crianças fazem uma série por ensaio
e erro, e comparam cada bastonete a todos os demais (seriação intuitiva).
Nível 3: Êxito.
A classificação é outra operação lógica que consiste na capacidade de
separar objetos, pessoas, fatos ou ideias em classes ou grupos, tendo por
critério uma ou várias características comuns. Suas origens podem ser
encontradas nas assimilações próprias dos esquemas sensório-motores, e
seu processo de construção também passa por etapas. Primeiro a criança
reúne objetos semelhantes, justapondo-os espacialmente em fileiras,
círculos, quadrados, de tal modo que a coleção forme uma figura no espaço
que sirva de expressão perceptiva, ou seja, acompanhada da imagem de
“extensão” da classe – as coleções figurais. Depois, os objetos são reunidos
em pequenos conjuntos, sem forma espacial, e podem se diferenciar em
subconjuntos – o que, segundo Goulart, são as coleções não figurais.
Para essa operação, foi utilizada a Prova das Classes – Mudança de
Critério (Anexo II), com fichas de figuras geométricas vermelhas e azuis –
três círculos e três quadrados pequenos de cada cor e três círculos e três
quadrados grandes de cada cor. Com o objetivo de avaliar a capacidade de
classificar objetos, o examinador dispõe as fichas fora de ordem sobre a
mesa e pede que a criança “arrume” de alguma forma. Os resultados podem
se apresentar em quatro níveis:
Nível 1: Coleções figurais. As crianças arrumam as fichas, estruturando
figuras de trem, casa, boneca etc. Podem também arrumar as fichas que
tenham alguma semelhança, mudando sempre o critério e não utilizando
todas.
Nível 2: Início de classificação. As crianças conseguem fazer pequenos
grupos não figurais, segundo diferentes critérios, coleções justapostas, sem
ligação entre si: é o “monte” das bolas vermelhas grandes, das bolas
pequenas vermelhas, dos quadrados vermelhos etc. Em um grau maior de
progresso, as crianças podem conseguir um começo de reagrupamento dos
subgrupos em classes gerais, sem alcançar uma antecipação de critérios.
Elas conseguem classificar por um critério somente.
Nível 3: Dicotomia segundo os dois critérios. As crianças iniciam a
tarefa já antecipando as possibilidades. Elas conseguem fazer e recapitular
corretamente duas dicotomias sucessivas, segundo dois critérios; o terceiro
critério só é descoberto com incitação do examinador. As crianças
conseguem classificar por dois critérios.
Nível 4: Dicotomia segundo os três critérios. Em um grau maior de
progresso, os três critérios são antecipados e utilizados espontaneamente.
As crianças conseguem classificar por três critérios.
Por definição, o relacionamento de perspectivas consiste na percepção
que a criança tem dela e do outro em relação ao espaço. Para Piaget,35 a
perspectiva intervém relativamente tarde no comportamento geométrico da
criança e depende de uma construção operatória, posterior ao processo de
descentralização. Supõe um relacionamento entre o objeto e o ponto de
vista próprio, tornado consciente de si mesmo, isto é, diferenciado dos
outros e coordenado com eles. Para isso, é necessária uma construção de
conjunto, como relacionar objetos entre si segundo um sistema de
coordenadas e os pontos de vista entre si segundo uma coordenação de
relações projetivas que correspondem aos diversos observadores possíveis.
As estruturas espaciais, bem como as temporais, são denominadas
infralógicas, não por serem inferiores às lógicas, mas porque expressam
uma circunstância cognitiva distinta. As estruturas infralógicas são
estruturas do mundo físico que dizem respeito à própria noção de objeto, às
relações entre o todo e as partes, às relações de posição e distância, e se
desenvolvem ao mesmo tempo em que as lógicas.
Para verificar o relacionamento das perspectivas, criei a Prova das
Fotografias, que consiste em uma adaptação da Prova das Montanhas de
Piaget, a qual procura chegar mais perto do contexto das crianças, por meio
de situações e objetos que fazem sentido para elas.
Piaget se vale da Prova das Montanhas para comprovar sua afirmativa de
que a criança pré-operatória, por não ter a capacidade de se descentralizar,
não consegue perceber pontos de vista diferentes. Nessa prova, há três
montanhas que se distinguem umas das outras pela cor e por determinadas
características (a neve em uma delas, uma cruz vermelha em outra etc.). A
criança senta-se em um dos lados da mesa com o modelo das três
montanhas a sua frente. O experimentador, então, mostra um bonequinho e
o coloca do outro lado da mesa, e pergunta à criança o que o boneco vê. São
apresentados cartões com fotografias das montanhas obtidas de vários
ângulos, e a criança deve escolher um.
Donaldson36 afirma que essa incapacidade de a criança perceber o que o
bonequinho vê não está somente relacionada à incapacidade de se
descentralizar e olhar o mundo de outra perspectiva, mas, também, a um
distanciamento dessas montanhas do contexto da criança.
Segundo ele, nesse exercício, não há nenhum jogo de motivos
interpessoais de um tipo que se fizesse instantaneamente inteligível. Desse
modo, o exercício das “montanhas” é abstrato em um aspecto muito
importante do ponto de vista psicológico: no sentido de ser abstraído de
todos os propósitos, sentimentos e esforços humanos básicos – ter um
sangue completamente frio. Nas veias das crianças de 3 anos ainda corre
um sangue quente.
Essa afirmativa, porém, não exclui a de Bergamin e Prudente,37 que diz
que o comportamento socialmente relevante é sempre produzido em uma
situação penetrada de compreensão, e esta depende não só da clareza com
que o cenário se apresenta à pessoa, mas também de seu nível de
conhecimento e de sua qualidade de pensamento.
Por concordar com a afirmação de Donaldson, desenvolvi a Prova das
Fotografias com o objetivo de construir um contexto mais significativo para
a criança. O material consiste na maquete de uma floresta com árvores,
flores e lago com patinhos, um boneco representando um menino com uma
máquina fotográfica pendurada no pescoço, uma coruja com cara de sabida
e um jequitibá de óculos. Além disso, havia oito cartões com fotografias da
maquete com a coruja e o jequitibá na floresta, de diferentes ângulos,
correspondentes às posições A, B, C, D, E, F, G e H.
Com o objetivo de avaliar a capacidade de a criança se pôr no lugar do
outro e relacionar diferentes pontos de vista, a prova é iniciada com o
examinador contando a história “Zeca Tá na Hora na floresta dos
diferentes” (Anexo III) para as crianças dos dois grupos (A e B) juntos,
mostrando os bonecos e a maquete da floresta. Depois, as crianças são
chamadas individualmente, é relembrado a elas o fato de Zeca ter tirado
fotografias da floresta de diferentes lugares, e são aplicadas as técnicas 1 e
2.
Técnica 1: Com a criança e o boneco Zeca sentados na posição A,
apresentar a fotografia correspondente àquele ângulo. Depois, passar o Zeca
para a posição E, apresentar as oito fotografias das diferentes posições e
pedir que a criança escolha, sem sair do lugar, a correspondente à posição
que o Zeca está agora. Repetir o procedimento nas posições: C, D, F e G.
Os resultados possíveis são:
Nível 1: Indiferenciação completa ou parcial entre o ponto de vista da
criança e do boneco. A criança não compreende o que lhe é solicitado.
Nível 2: Representação centrada no próprio ponto de vista. A criança
escolhe quadros que demonstram a centração em seu próprio ponto de vista.
A criança diz que alterar a posição do boneco não mudará a foto ou
escolhe as fotografias aleatoriamente, sem saber justificar o porquê.
Nível 3: Reações intermediárias com tentativas de diferenciação dos
pontos de vista. A criança permanece tão persuadida de que as relações
entre os elementos figurados da maquete são rígidas e invariáveis que se
limita a escolher um aspecto de destaque em relação à posição do boneco.
A criança começa a perceber que há diferença nos pontos de vista, mas
ainda não consegue justificar suas escolhas, acertando algumas e
errando outras.
Nível 4: Diferenciação e coordenação crescente das perspectivas e
relatividade verdadeira, mas incompleta. A criança descobre as relações de
posicionamento (à esquerda e à direita, na frente e atrás, em cima e
embaixo) entre os elementos vistos, mas só determina com exatidão uma
relação, negligenciando as demais. A criança já consegue perceber as
diferenças das posições mais fáceis (A, C, E e G), ainda confunde as
demais, mas sempre justifica sua escolha.
Nível 5: Relatividade completa das perspectivas. A criança é capaz de
fazer a correspondência mental entre os elementos figurados da maquete e
um quadro feito entre muitos. A criança percebe os diferentes pontos de
vista e justifica suas respostas.
Técnica 2: É o inverso da primeira. Em vez de encontrar a fotografia
correspondente, a criança tem de, com base na fotografia, descobrir onde
Zeca estava quando tirou a foto. Os resultados possíveis são:
Nível 1: Indiferenciação completa ou parcial entre o ponto de vista da
criança e o do boneco. A criança não compreende o que lhe é solicitado.
Nível 2: Representação centrada no próprio ponto de vista. A criança
coloca o boneco em uma posição próxima à sua, no meio de elementos
figurados (perto da coruja ou do lago) ou em qualquer lugar. A criança
pergunta onde o boneco está na foto ou aponta, na foto, a posição
solicitada.
Nível 3: Reações intermediárias com tentativas de diferenciação dos
pontos de vista. A criança parte da antecipação de que a cada ponto de vista
distinto corresponde uma posição determinada, mas ainda não tem a
compreensão das perspectivas nem de sua relatividade. A criança começa
a perceber que há diferença nos pontos de vista, mas ainda não
consegue justificar suas escolhas, acertando algumas e errando outras.
Nível 4: Diferenciação e coordenação crescente das perspectivas e
relatividade verdadeira, mas incompleta: a criança descobre as relações de
posicionamento (à esquerda e à direita, na frente e atrás, em cima e
embaixo) entre os elementos vistos, parte de uma relação qualquer, mas que
implica, ao mesmo tempo, uma relação entre os elementos figurados e a
posição do boneco. A criança já consegue perceber as diferenças das
posições mais fáceis (A, C, E e G), ainda confunde as demais, mas
sempre justifica sua escolha.
Nível 5: Relatividade completa das perspectivas. A criança descobre que
só existe para o boneco uma única posição que corresponda a um quadro
específico e vice-versa. A criança percebe os diferentes pontos de vista e
justifica suas respostas.
Pós-teste
O pós-teste do grupo de controle foi pela manhã. As crianças se
lembravam da história e do Zeca.
As crianças dos grupos A e B ficaram muito animadas com a volta do
personagem Zeca. Muitas já entravam na sala dizendo: “Ah, eu sei o que
vamos fazer.” O prévio conhecimento das provas e um envolvimento maior
comigo fizeram com que o pós-teste transcorresse com muita tranquilidade.
Resultados
Os resultados foram sendo medidos ao longo da pesquisa. A cada fase,
registros, tabelas e estatísticas davam o tom científico positivista,
respaldando as observações e conclusões qualitativas.
Em primeiro lugar, era necessário testar a hipótese de que os três grupos
(de controle, A e B) estavam no mesmo nível de desenvolvimento
cognitivo, não apresentando, portanto, diferença nos resultados das três
amostras no pré-teste. Assim, foi aplicada a Prova da Extensão da
Mediana39 e foi verificado que os três grupos não apresentavam diferenças
no pré-teste.
Uma vez comprovado que os três grupos provinham da mesma população,
foi testada a hipótese de que haveria diferença significativa em cada grupo
entre os resultados do pré e do pós-teste, considerando-se que o
desenvolvimento cognitivo se processa em todos os três grupos. Nesse caso,
utilizou-se a Prova dos Sinais40 e ficou confirmado que houve diferença
significativa em cada grupo entre os resultados do pré e do pós-teste.
Em todas as provas e em todos os grupos, mais de uma criança apresentou
mudança de nível nos resultados. Essa mudança, na maioria dos casos, foi
para mais, com exceção do grupo de controle, na Prova das Fotografias –
técnica 1 –, na qual três crianças apresentaram mudança de nível, sendo que
uma para mais e duas para menos; e no grupo B, na Prova das Classes –
Mudança de Critério, na qual das três modificações de nível ocorridas, uma
foi para menos. Acredita-se que esses casos de mudança de nível para
menos tenham acontecido por falta de atenção ou de motivação das crianças
para realizar as tarefas no pós-teste. De qualquer modo, a porcentagem
dessa ocorrência em relação ao total da amostra não se apresentou como um
dado significativo.
Um aspecto relevante observado foi o número de crianças do grupo B que
apresentou aumento no nível dos resultados na Prova das Fotografias
técnica 1 (seis crianças) e técnica 2 (oito crianças), bem como na Prova das
Classes (seis crianças).
Pode-se dizer que as brincadeiras escolhidas pelo grupo durante as sessões
tiveram papel fundamental nesse quadro. Como já foi dito, o espaço da
brincadeira livre era rico em materiais, a fim de, exatamente, oportunizar o
desejo de exploração e de criação das crianças. Entre esses materiais
estavam dois baús com fantasias de espuma representando animais, que
tinham um corpo, tipo maiô, e um adereço para colocar na cabeça. Em
todas as sessões, as crianças se vestiam de animais para brincar ou
representar.
Como as fantasias eram guardadas sem a preocupação de uma arrumação
maior, cada vez que as crianças começavam a se vestir, tinham de,
invariavelmente, procurar a “cabeça” correspondente ao seu animal. Isso
também se tornava uma brincadeira com as trocas e as negociações: “Você
está com a cabeça do meu galo” , “Qual é a cabeça da borboleta?”, “Que
periquito é esse?”. Em todas as situações, era necessário classificar o animal
e separar os elementos necessários correspondentes à fantasia. Como
classificação é uma operação lógica que consiste na capacidade de separar
objetos, pessoas, fatos ou ideias em classes ou grupos, tendo por critério
uma ou várias características comuns durante as sessões de brincadeiras
livres, na busca e escolha das fantasias, as crianças do grupo B vivenciaram
bastante essa capacidade.
Outro dado importante foi o registro fotográfico feito por mim durante as
sessões. Esse registro foi adotado nos grupos A e B, porém no grupo A,
como a brincadeira era dirigida, a máquina fotográfica teve participação
secundária, pois o foco da sessão era a brincadeira coordenada pela
pesquisadora. Já no grupo B, muitas vezes, as crianças paravam de brincar
para ver a foto que havia sido tirada, faziam poses para que fossem
fotografadas ou pediam para tirar fotos das outras. Como a máquina era
digital, as crianças podiam ver no mesmo instante a foto que havia sido
tirada ou escolher na tela o que seria fotografado. Existia sempre um
movimento de fazer a pose, olhar a foto, olhar por cima da máquina para
ver o que estava sendo focalizado, voltar ao lugar da pose e assim por
diante. Esse movimento, que também virou uma grande brincadeira, fazia
com que as crianças tivessem a oportunidade de construir hipóteses a
respeito de como sairia a foto, por exemplo, e, ao mesmo tempo, pudessem
confrontá-las com a realidade.
Acredita-se que esses confrontos tenham desenvolvido nas crianças do
grupo B a capacidade de relacionar as perspectivas, que supõe um
relacionamento entre o objeto e o ponto de vista próprio, tornado consciente
de si mesmo, isto é, diferenciado dos outros e coordenado com eles,
capacidade essa que é medida na Prova das Fotografias.
Como todos os grupos apresentaram melhora, poder-se-ia supor que as
brincadeiras livres e dirigidas não teriam, necessariamente, influenciado
essa mudança de progresso nas operações de seriação, classificação e
relacionamento de perspectivas, já que também os níveis do grupo de
controle se modificaram. Com isso, seria possível concluir que as
brincadeiras desenvolvidas fora do ambiente escolar e, principalmente, a
maturação orgânica tivessem influenciado igualmente os três grupos.
Observa-se, porém, que essas alterações de nível dos resultados
obedeceram a uma escala crescente do grupo de controle, para o grupo A e
deste para o grupo B. Com isso, confirma-se a hipótese principal da
pesquisa, que acreditava que a brincadeira livre desenvolveria mais
cognitivamente as crianças que as brincadeiras dirigidas.
Considerando somente as modificações para “mais” nas provas, pode-se
constatar que o grupo B obteve melhores resultados:
Grupo A (brincadeiras Grupo B (brincadeiras
Grupo de controle
dirigidas) livres)
Prova da Seriação
3 3 3
de Bastonetes
Interpretação de resultados
Fernando Sabino
O encontro marcado
Inicio este capítulo com um trecho do poema de Fernando Sabino. A
poesia nos revela o caráter transitório e inconstante da vida, assim como o
da pesquisa; ainda mais quando esta se refere à diversidade e à contradição
inerente às ciências humanas. Por isso, este capítulo não tem (nem poderia
ter) um título fechado.
“A certeza de que estamos sempre começando...”
Prova da Seriação
57
de Bastonetes
Material
Uma série de dez bastonetes graduados de 16cm a 10cm com diferença de
0,6cm entre eles – um anteparo de papelão.
Objetivo
Avaliar a capacidade de seriação.
Desenvolvimento
O examinador oferece à criança os dez bastonetes fora de ordem para que
ela tome conhecimento do material.
Seriação a descoberto: “Você vai fazer uma escadinha com todos esses
bastonetes, ordenando-os do menor para o maior.” Se a criança não
conseguir, o examinador pode, eventualmente, demonstrar uma série inicial
com três bastonetes.
Registro
Anotar todo o processo de realização: as respostas, a ordem e a forma
como cada criança faz cada escolha, bem como a configuração final.
Procedimentos avaliativos
Ausência de seriação – Nível 1
A criança fracassa em suas tentativas de ordenar:
Ausência de séries – a criança não entende a proposta e coloca os
bastonetes em qualquer ordem.
Esboço de série – a criança faz diversas tentativas (pares, séries de três ou
quatro bastonetes), mas não coordena as séries entre si ou não consegue
intercalar os outros bastonetes.
A criança faz uma escada sem considerar o tamanho dos bastonetes, mas
só a arrumação da parte superior imitando uma escadinha.
Conduta intermediária – Nível 2
A criança vai compondo a série por ensaio e erro; compara cada bastonete
a todos os demais. É uma seriação intuitiva por regulações sucessivas.
Êxito obtido por método operatório – Nível 3
A criança antecipa a escada, fazendo metodicamente sua construção.
Nesse nível, realiza com êxito a verificação de exclusão e a seriação oculta.
Material
Figuras geométricas recortadas em papelão colorido ou fichas de plástico
do tipo utilizado em jogos:
três círculos pequenos (com 12,5cm de diâmetro) vermelhos e três
azuis;
três círculos grandes (com 25cm de diâmetro) vermelhos e três azuis;
três quadrados pequenos (com 12,5cm) vermelhos e três azuis;
três quadrados grandes (com 25cm) vermelhos e três azuis.
Objetivo
Avaliar a capacidade de classificar objetos.
Desenvolvimento
O examinador dispõe as fichas fora de ordem sobre a mesa e solicita que a
criança as descreva: “Você pode me dizer o que está vendo?”
1. Classificação espontânea: “Você pode pôr juntas todas as fichas que
combinam?” “Ponha juntas todas que são iguais...” “Ponha juntas as que
têm algo igual... as que se parecem muito.” Após a criança terminar, diga:
“Você pode me explicar por que as colocou assim?”
2. Dicotomia: “Agora gostaria que você fizesse apenas dois grupos (ou
dois montinhos ou duas famílias) e os colocasse nestas duas caixas (ou
nesta tampa dividida).” Após o término, pergunte: “Por que você colocou
todas estas fichas juntas? E aquelas? Como a gente poderia chamar este
monte aqui? E aquele outro?”
3. Primeira mudança de critério: “Será que você poderia arrumar em
dois grupos (montes) diferentes?” Se a criança repetir o primeiro critério:
“Você já separou desse modo. Você pode descobrir outro modo (critério) de
separar em dois grupos?” Se for preciso, o próprio examinador inicia uma
nova classificação e pede para a criança continuar. Procede-se em seguida,
como no item 2 anterior.
4. Segunda mudança de critério: “Será que você ainda poderia separar
de um modo diferente, fazendo dois grupos novos?” Procede-se em seguida
como nos itens 2 e 3 anteriores.
Procedimentos avaliativos
Coleções figurais – Nível 1
As crianças arrumam as fichas, estruturando figuras de trem, casa, boneca
etc. Podem também arrumar as fichas que tenham alguma semelhança,
mudando sempre o critério e não utilizando todas.
Início de classificação – Nível 2
As crianças conseguem fazer pequenos grupos não figurais, segundo
diferentes critérios, mas que são coleções justapostas, sem ligação entre si:
é o “monte” das bolas vermelhas grandes, das bolas pequenas vermelhas,
dos quadrados vermelhos etc. Em um grau maior de progresso, as crianças
podem conseguir um começo de reagrupamento dos subgrupos em classes
gerais, sem alcançar uma antecipação de critérios.
Dicotomia segundo os dois critérios – Nível 3
As crianças iniciam a tarefa já antecipando as possibilidades. Elas
conseguem fazer e recapitular corretamente duas dicotomias sucessivas,
segundo dois critérios. O terceiro critério só é descoberto com a incitação
do examinador.
Dicotomia segundo os três critérios – Nível 4
Em um grau maior de progresso, os três critérios são antecipados e
utilizados espontaneamente.
Zeca Tá na Hora na
floresta dos diferentes
Zeca estava maravilhado. Era assim que ele pensava também. Afinal, não
era à toa que ele era o Zeca Tá na Hora, aspirador e fotógrafo de novidades.
E onde tem mais novidades do que nas coisas diferentes?
Zeca agradeceu muito à Dona Coruja, ao Seu Jequitibá e aos outros
moradores da floresta e disse que precisava ir andando, pois já estava
ficando tarde. Mas prometeu que iria contar para toda gente essa história,
para que todo mundo pudesse entender como é superlegal conhecer,
respeitar e aprender com pessoas, animais e coisas que não são iguaizinhas
a nós. Mas, antes de sair, pediu para fotografar aquela floresta tão linda.
Dona Coruja e Seu Jequitibá consentiram, e Zeca começou a andar ao redor
da floresta, registrando as coisas diferentes que se davam tão bem.
Denise Pozas
Bibliografia