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Criança que

brinca mais
aprende mais
A importância da atividade lúdica
para o desenvolvimento
cognitivo infantil
Denise Pozas

Editora Senac Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – 2012


Criança que brinca mais aprende mais: a importância da atividade lúdica para o
desenvolvimento cognitivo infantil © Denise Pozas, 2011.

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____________________________________________________________
P897c
Pozas, Denise
Criança que brinca mais aprende mais [recurso eletrônico] : a importância da atividade lúdica
para o desenvolvimento cognitivo infantil / Denise Pozas. – Rio de Janeiro : Ed. Senac Rio de
Janeiro, 2012.
recurso digital : il.

Formato: ePub
Requisitos no sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7756-212-1 (recurso eletrônico)

1. Educação de crianças. 2. Jogos. 3. Brincadeiras. 4. Lazer. 5. Crianças – Desenvolvimento. 6.


Livros eletrônicos. I. Título.

12-8777. CDD: 372.2 CDU: 373.2/.3


A Lilian Gama, amiga e companheira de todas as
horas, que, com dedicação e carinho, sempre
me mostra que vale a pena sonhar.
“Ficamos a brincar brincadeiras e brincadeiras. Porque a gente
não queria informar acontecimentos. Nem contar episódios. Nem
fazer histórias. A gente só gostasse de fazer de conta. De inventar
as coisas que aumentassem o nada. A gente não gostasse de fazer
nada que não fosse brinquedo.”
Manoel de Barros
Memórias inventadas: a terceira infância
Prefácio

Conhecer as armas para poder lutar. Parece-me que esse preceito muito se
aplica a este livro. Como comprovar, demonstrar ou validar questões em
um campo que lida com as singularidades e subjetividades de sujeitos
diversos? Apropriar-se das testagens – instrumentos reconhecidos e
legitimados cientificamente – foi a estratégia fundamental. Denise Pozas
poderia ter escolhido vários outros caminhos em sua investigação, mas fez a
opção mais desafiadora: transitar pelos diferentes paradigmas de pesquisa e,
com isso, fornecer um material ímpar para todos os que defendem a
importância da brincadeira livre para o desenvolvimento infantil. Em suas
próprias palavras: “essa pesquisa se refere à diversidade e à contradição
inerentes às ciências humanas”. Mais adiante, reafirma que “respeitando a
ideia positivista de ciência, a pesquisa utilizou instrumentos precisos e
tratamentos estatísticos que atribuem validade aos resultados”.
Assim o fez esta autora, Denise Pozas, que tive o prazer de conhecer na
década de 1990. Na época, ela era minha aluna na pós-graduação em
Educação Infantil da PUC-Rio, e, desde então, nossos caminhos continuam
em permanente fluxo de trocas e interseções – uma delas foi minha
participação como avaliadora externa em sua banca de defesa do mestrado
que originou este livro. Desse modo, nem Denise Pozas nem essa
investigação aqui trazida me são desconhecidas. Ao contrário, admiro as
duas, o que tornou o convite para escrever este prefácio uma tarefa
prazerosa e de rememoração.
Rememorar que o brincar e as brincadeiras fazem parte de minha vida
desde sempre: não apenas nas lembranças da criança-que-fui, mas também
por ter trabalhado diretamente com os pequeninos durante 15 anos, pelas
experiências vividas na maternidade de quatro filhas, por ser avó do Caio, e,
também, por lecionar diferentes conteúdos relacionados ao brincar nas
universidades, atuar seis anos como coordenadora de um museu que tem a
criança como protagonista e ainda prestar consultorias diversas na área.
Enfim, é desse lugar que leio e comento este livro, e é com base na crença
na importância do brincar e das brincadeiras para o desenvolvimento geral
da criança que vejo Denise Pozas bordar em sua obra um diálogo
privilegiado com três teóricos – Piaget, Vygotsky e Wallon – e contar com a
colaboração de outros tantos renomados pesquisadores da área lúdica.
Denise mostrou-se uma leitora atenta e perspicaz, capaz de perceber
nuances de aproximação e distanciamento entre seus interlocutores. Não
caiu nas armadilhas da pressa e da simplificação, tampouco desistiu da
missão de nos favorecer a compreensão desse campo teórico. Arrisco dizer
que, entre tantos conceitos, citações, testes e mensurações, o cerne deste
livro se encontra em uma frase de Vygotsky : “(...) o brinquedo contém
todas as tendências do desenvolvimento sob forma condensada, sendo, ele
mesmo, uma grande fonte de desenvolvimento” – e é como se isso a tivesse
impulsionado a buscar a resposta para a questão: Será que brincando
livremente se aprende mais?
A autora, ao eleger, então, o aspecto cognitivo como foco, debruça-se
sobre as diferentes concepções teóricas de seus interlocutores e adentra esse
denso universo com a segurança dos já experientes. Sim, porque também
ela não é novata nem iniciante na área – seus percursos acadêmico e
profissional lhe dão o lastro necessário a essa empreitada.
Uma vez tecida a trama sobre o desenvolvimento cognitivo, a autora
borda sobre esta as questões relativas ao brincar e à brincadeira, inserindo o
leitor no contexto lúdico de maneira igualmente segura. A fluidez do tema
não a engana, nem Denise cai na tentação de afrouxar seu rigor científico
pela sedução que o assunto traz. Assim, ao fim deste bordado de pontos
firmes, surge o que será a sobreposição dessas duas abordagens: a discussão
em torno das relações entre brincar/brincadeira e desenvolvimento
cognitivo. E, mais uma vez, a autora toma o leitor pela mão e o conduz por
percursos que desembocarão em uma criteriosa pesquisa de campo –
certamente o que este livro tem de mais autoral e singular. Digo isso
porque, embora Denise Pozas tenha se mostrado competente no
enfrentamento do desafio teórico, todos sabemos que não foi a única a nos
brindar com esse enfoque, tampouco a inaugurar a aproximação entre seus
três interlocutores privilegiados. Diferentemente, o que este livro traz de
único é a trajetória empírica, uma investigação minuciosa e cuidadosa da
autora com as crianças de uma escola da rede privada de ensino do Rio de
Janeiro.
É exatamente aqui que brota aos olhos do leitor o que fora anunciado nas
linhas iniciais deste prefácio: o desafio de empreender uma pesquisa de
cunho quantitativo, com todo seu requerido instrumental, sob uma análise
qualiquantitativa. Depois de inúmeros pré-testes, testes e pós-testes com
três diferentes grupos de crianças – de controle, A e B –, a autora Denise
Pozas faz um imenso favor às meninas e aos meninos. Ela afirma,
cientificamente: brincar faz bem! Brincando, as crianças aprendem... e,
melhor ainda: brincando livremente, as crianças aprendem mais!
Assim, utilizando como âncora a obra de Fernando Sabino, cujo trecho
Denise Pozas escolhe para abrir o capítulo Conclusões e sugestões deste
livro, fecho este prefácio dizendo que, com certeza, ela traçou um caminho
novo e transformou o medo de enfrentar o desafio paradigmático em escada
para novos patamares da ciência, e, dessa procura pelo novo, deu-se o
grande encontro: o da validação científica que defende a importância do
livre brincar nas instituições educativas!
Obrigada!
Maria Isabel Leite
Pós-doutora em Arte-Educação, pesquisadora
da infância e da educação e editora do blog
Repensando Museus
Agradecimentos

A meus pais, que, com sabedoria e cumplicidade, ensinaram-me o valor


da conquista.
A minha babá, por seu colo, suas rezas, suas certezas e seus ensinamentos.
A Bebel, amiga e mestra, por me orientar e me acolher em todos os
momentos.
Ao Senac Rio de Janeiro, por mais esta aposta.
Às crianças de 2002/adolescentes de 2011, que, com energia e desafio à
flor da pele, participaram da pesquisa, por terem me dado a oportunidade de
aprender, de me alegrar, de me preocupar, de compartilhar, de questionar, de
solucionar, de perceber, de estranhar, de ousar, enfim, de viver plenamente
todos aqueles encontros.
Introdução

Brincar é uma das principais atividades da criança. É por meio da


brincadeira que ela revive a realidade, constrói significados e os ressignifica
momentos depois. Dessa forma, aprende, cria e se desenvolve em todos os
aspectos.
Para entrar nesse universo tão complexo, algumas definições são
necessárias. A concepção de infância é algo determinado histórica, social e
culturalmente. Philippe Ariès1 relata as diversas transformações ocorridas,
com o passar dos séculos, no olhar e na compreensão que se tem acerca da
infância. Sua pesquisa com base em pinturas, antigos diários de família,
igrejas, túmulos etc. mostra que, na sociedade medieval, o alto índice de
mortalidade infantil era considerado “normal”, e a criança que conseguia
sobreviver era imediatamente inserida no mundo adulto. Com isso, não
havia uma consciência da particularidade infantil, a qual diferencia a
criança do adulto, assim como não se fazia presente uma distinção das
brincadeiras e dos jogos reservados às crianças e aos adultos.
Com as descobertas científicas e a redução da mortalidade infantil,
surgem dois sentimentos de infância antagônicos até hoje imbricados no
comportamento do adulto em relação à criança. O primeiro, surgido no
meio familiar, considerava a criança ingênua, inocente e graciosa –
brinquedos encantadores que os adultos tinham prazer em oferecer como
um mimo (paparicação). O segundo, proveniente dos eclesiásticos ou dos
homens da lei, preocupados com a disciplina e a racionalidade dos
costumes, via as crianças como frágeis criaturas de Deus, com a
necessidade de serem preservadas e disciplinadas (moralização). Tanto na
ingenuidade como na fragilidade, a criança era vista como um ser sem
história, sem voz nem vez. Sob essa ótica, tudo que dela provinha era
desvalorizado. As brincadeiras e os jogos, além de serem atividades tanto
indiscriminadas para adultos como para crianças, eram considerados
passatempos prazerosos sem grandes consequências.
Os primeiros estudos sobre desenvolvimento infantil, no século XVIII,
vêm lançar novos olhares para essa criança, que ainda não é contextualizada
e única, mas, pelo menos, já é diferenciada do adulto e suas especificidades
são reconhecidas. Começa, então, a existir a valorização de seus interesses e
suas necessidades. Daí em diante, a concepção de criança e o papel da
brincadeira no desenvolvimento infantil são estudados sob vários pontos de
vista.
Com Kramer,2 na tendência romântica que concebe a pré-escola como um
jardim de infância e a criança como sementinha – tendo Froebel (1782-
1852) como um de seus precursores –, o caráter lúdico das atividades
infantis já era valorizado, além de ser fator determinante da aprendizagem.
Em Piaget,3 surge a ideia interacionista de desenvolvimento como resultado
da combinação entre o organismo e o meio, e sua interação tem como
consequência o processo da assimilação e o da acomodação.
Ainda nessa perspectiva, mas ampliando um olhar sobre a criança nos
âmbitos social, histórico e cultural, Vygotsky4 também dedica especial
atenção ao ato de brincar:
No brinquedo, a criança sempre se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além
de seu comportamento diário; no brinquedo, é como se ela fosse maior do que é na realidade.
Como foco de uma lente de aumento, o brinquedo contém todas as tendências do desenvolvimento
sob forma condensada, sendo, ele mesmo, uma grande fonte de desenvolvimento.

Para Vygotsky, os fatores sociais e culturais interferem no


desenvolvimento do sujeito, transformando sua relação com a realidade e
sua consciência sobre ela.
Nos dias atuais, define-se criança como alguém que tem, além de
especificidades infantis, uma história, uma família, vive em determinado
tempo e em um espaço físico e social, produz e é produzida pela cultura, e é
cidadã. Ela se constrói nas relações com os outros e com o mundo. Dessa
maneira, o jogo e a brincadeira assumem papel relevante em seu
crescimento.
Com esse entendimento, o desenvolvimento da criança não pode ser
linear, mas dinâmico, com idas e vindas, em um movimento dialético que
confere ao processo uma “cor” muito mais forte que ao produto. A criança
não é padrão; seu progresso, então, também não o pode ser.
Dentro de uma perspectiva histórica, as funções da Educação Infantil
passaram por diferentes momentos e, hoje, alguns deles ainda subsistem em
uma espécie de inconsciente coletivo em algumas instituições. Com um
rápido olhar, algumas podem ser identificadas na postura dos professores,
nas atividades das crianças, nos objetivos e nas propostas. Segundo
Abramovay e Kramer,5 são elas: guardiã, puramente assistencialista;
preparatória, ainda com a ideia de educação compensatória; objetivo em si
mesma, sem compromisso com a qualidade; e pedagógica, que toma os
conhecimentos da criança como ponto de partida, ampliando-os.
No Brasil, a Lei nº 9.394 – Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação
Nacional –, promulgada em 20 de dezembro de 1996, ao situar a Educação
Infantil como primeira etapa da Educação Básica, confere cunho legal ao
brincar quando determina como um dos princípios que norteiam o
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil o “direito das
crianças a brincar, como forma particular de expressão, pensamento,
interação e comunicação infantil”.6 Um pouco antes disso, em 1990, o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já declarava, no Capítulo II,
art. 16, brincar, praticar esportes e divertir-se como aspectos que
compreendem o direito à liberdade.
Essas alternativas legais, certamente, iluminam algumas questões na
medida em que delegam à Educação Infantil e ao brincar um status que, até
então, não existia. Como os professores estão, efetivamente, trabalhando
com essas crianças? Quais são as diferenças de aprendizagem verificadas
nas brincadeiras livres e dirigidas?
A preocupação com a qualidade do atendimento às crianças de 0 a 6 anos
justifica um estudo atento e sério sobre as brincadeiras livres e dirigidas na
Educação Infantil, bem como suas implicações no desenvolvimento
cognitivo.
Este livro trata, portanto, de pesquisa realizada com crianças na faixa
etária entre 4 e 6 anos, de uma escola da rede privada de ensino do Rio de
Janeiro, cujo objetivo era entender a influência das brincadeiras livres e
dirigidas no desenvolvimento infantil. Como respaldo teórico, as ideias de
Piaget, Vygotsky e Wallon, bem como os diferentes conceitos do brincar,
contribuíram para elucidar e fortalecer os resultados e as conclusões desta.
A intenção é ampliar o olhar do professor de Educação Infantil sobre a
atividade do brincar e sobre o papel do adulto, pois a brincadeira requer do
adulto educador conhecimento teórico sobre o brinquedo e o brincar, e
muita paciência e disciplina para observar, sem interferir em determinadas
atividades infantis, além de disponibilidade para (re)aprender a brincar. 7

1 ARIÈS, P. História social da criança. Rio de Janeiro: LTC, 1981.


2 KRAMER, S. (coord.). Com a pré-escola nas mãos: uma alternativa curricular para a educação
infantil. São Paulo: Ática, 1997.
3 PIAGET, J. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Guanabara, 196
4 VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. (p.117)
5 ABRAMOVAY, M.; KRAMER, S. “Educação pré-escolar: desafios e alternativas”. In: Caderno
Cedes. São Paulo: Cortez, 1987, nº 9.
6 REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL. Brasil. Ministério da Educação e do Desporto.
Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a educação
infantil/Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental — Brasília:
MEC/ SEF, 1998. (Volume 1: Introdução, p. 13)
7 FARIA, Ana Lúcia G. de. “Direito à infância: Mário de Andrade e os Parques Infantis para as
crianças de família operária da cidade de São Paulo (1935-1938)”, Tese de Doutorado. USP,
Faculdade de Educação, 1993.
Capítulo 1

Desenvolvimento cognitivo

Três interlocutores, Piaget, Vygotsky e Wallon, estiveram presentes na


pesquisa, contribuindo com suas ideias para um melhor entendimento da
dinâmica. Esses autores elaboraram teorias sobre o desenvolvimento
cognitivo das crianças que ora convergem, ora se distanciam, mas que
permitem, nessa dialética, a construção de um olhar mais abrangente sobre
o papel das brincadeiras no processo.
Segundo Piaget,8 o desenvolvimento psíquico é comparável ao orgânico.
Assim como o corpo, que vai crescendo e amadurecendo até atingir um
nível estável, a vida mental evolui na direção de um equilíbrio final. É,
portanto, uma construção contínua em direção a um equilíbrio progressivo.
Para ele, inteligência é adaptação, e seu progresso se dá em estágios que
têm estruturas próprias e vão se modificando mediante o ajuste a novas
situações, por meio de dois movimentos: assimilação e acomodação. A
assimilação corresponde à integração, pelas ações, dos elementos externos
ao ser vivo e à acomodação às modificações internas que tornam isso
possível. Sendo assim, tudo começa pela ação, e a organização é adquirida
pelas atividades. Nas palavras do autor:
A inteligência é uma adaptação. Para apreendermos as suas relações com a vida, em geral, é
preciso, pois, definir que relações existem entre organismo e o meio ambiente. Com efeito, a vida é
uma criação contínua de formas cada vez mais complexas e o estabelecimento de um equilíbrio
progressivo entre essas formas e o meio ambiente.9

A ideia de síntese está presente na teoria de Vygotsky10 na medida em que


esta não é, simplesmente, a soma ou a justaposição de dois elementos, mas
a emergência de algo novo, anteriormente inexistente. Esse componente
surgiu da interação entre os elementos, em um processo de transformação
que gera novos fenômenos. Sua abordagem não é considerada ciência
natural, na qual se tenta explicar todos os processos, tomando-se por base
somente o corpo. Também não é vista como ciência que descreve os
processos psicológicos superiores e toma o homem como mente,
consciência e espírito. Na verdade, a ideia de síntese busca, para a
Psicologia, uma integração do homem corpo e pensamento, biológico e
social, membro da espécie humana e participante de um processo histórico.
Três são as ideias centrais da teoria de Vygotsky. A primeira afirma que as
funções psicológicas têm um suporte biológico e o cérebro é um sistema
aberto, com grande plasticidade, cujas estruturas vão se modificando ao
longo do tempo. A segunda diz respeito ao homem, que passa de ser
biológico para ser sócio-histórico, cujo funcionamento psicológico se dá em
suas relações com o mundo exterior, dentro de um processo histórico.
Assim, é na cultura que são desenvolvidas suas funções psicológicas
superiores. Por fim, a terceira declara que a relação homem-mundo não é
direta, mas, sim, mediada por sistemas simbólicos – elementos
intermediários nessa relação, os quais podem ser instrumentos ou signos.
Wallon11 também se opõe às concepções reducionistas que limitam a
compreensão do psiquismo humano a um ou a outro termo da dualidade
espírito-matéria. O autor admite o organismo como condição primeira do
pensamento, pois toda função psíquica supõe um equipamento orgânico;
por outro lado, afirma que o objeto da ação mental vem do exterior, do
grupo ou do ambiente em que o sujeito está inserido. Existe, pois, uma
determinação recíproca entre os fatores de natureza orgânica e de natureza
social. Wallon propõe um estudo integrado que contemple vários campos
funcionais – afetividade, motricidade e inteligência. Segundo ele, o homem
é geneticamente social, e a criança deve ser estudada em suas relações com
o meio, dentro do contexto em que vive.
Ao ter a criança como ponto de partida para seus estudos, Wallon busca
compreender cada uma das manifestações no conjunto de suas
possibilidades, desconstruindo, assim, a concepção de que a criança é um
ser com faltas e insuficiências. Para ele, é a ação motriz que regula o
aparecimento e o amadurecimento das funções mentais. O movimento
espontâneo se transforma, aos poucos, em gesto que, ao ser realizado com
base em uma intenção, reveste-se de significado associado à ação, voltado
para a realização da cena. O desenvolvimento das funções psicológicas
superiores se dá, portanto, no progresso das dimensões motora e afetiva. É a
comunicação emocional que dá acesso ao mundo adulto, ao universo das
representações coletivas. A inteligência surge depois da afetividade e das
condições da motricidade.
Para esses teóricos, a relação entre pensamento e linguagem baseia-se
diretamente em suas concepções de sujeito. Enquanto, para Piaget, o sujeito
constrói seu conhecimento em contato com o objeto e a ação internalizada
dará origem ao pensamento para, depois, se socializar, em um movimento
que parte do individual para o social, Vygotsky e Wallon buscam a
compreensão dos aspectos sociais e culturais que interferem no
desenvolvimento da criança partindo de um movimento social para
individual.
Para Vygotsky, os processos de mediação vão se modificando ao longo da
vida. Os signos, como marcas externas, vão sendo internalizados, e o
homem começa a fazer uso de representações mentais em substituição aos
objetos do mundo real. Os sistemas de representação da realidade, cuja
linguagem é o sistema simbólico básico do ser humano, são oferecidos
socialmente. É com base no grupo cultural que o indivíduo perceberá e
organizará o real. Dentro desse contexto, é por meio da linguagem que
haverá a interiorização dos conteúdos históricos e culturais, possibilitando,
assim, o desenvolvimento das estruturas psicológicas superiores (a
consciência), fazendo com que a natureza social se torne também
psicológica.
A linguagem tem, portanto, para Vygotsky, duas funções básicas:
intercâmbio social e pensamento generalizante, e sua utilização favorece os
processos de abstração e generalização. As palavras, como signos
mediadores na relação do ser humano com o mundo, são generalizações, e o
pensamento verbal é um processo determinado histórica e culturalmente.
Como os conceitos são construções culturais, é o grupo no qual o indivíduo
se desenvolve que dará a ele o “universo de significados que ordena o real
em categorias (conceitos), nomeado por palavras da língua desse grupo”,
como afirma La Taille.12
Enquanto Piaget busca compreender as estruturas do pensamento com
base nos mecanismos internos que as determinam, Vygotsky procura
entender de que maneira se dá o reflexo do mundo externo no interno.
Wallon, concordando com Vygotsky, diz que a linguagem é o instrumento
indispensável aos progressos do pensamento. Para eles, há uma relação de
reciprocidade entre pensamento e linguagem, já que esta exprime o
pensamento e, ao mesmo tempo, estrutura-o.
Apesar de os três serem unânimes em admitir que durante a aquisição da
linguagem há mudança radical na maneira de a criança se relacionar com o
mundo, Piaget entende que o pensamento, o raciocínio e as estruturas
lógicas é que fazem com que o sujeito seja capaz de entender a linguagem
que vem do exterior, ao passo que Vygotsky e Wallon acreditam que
linguagem e pensamento caminhem juntos. Essa divergência,
principalmente entre Piaget e Vygotsky, evidencia-se na maneira como os
dois entendem o egocentrismo infantil.
No início da evolução mental, não há diferenciação entre o “eu” e o
mundo exterior. Tudo faz parte de um bloco dissociado, que não é interno
nem externo. Com isso, há uma centração sobre a própria atividade, já que
o “eu” está no centro da realidade por ser inconsciente de si mesmo.
Em “Comentários de Piaget sobre as observações de Vygotsky”,
publicado no apêndice da edição italiana de Vygotsky,13 Piaget define o
termo egocentrismo da seguinte maneira:
Servi-me do termo egocentrismo para indicar a incapacidade inicial de descentrar, de deslocar uma
dada perspectiva cognitiva (falta de descentração). Teria sido melhor dizer simplesmente
“centrismo”, mas já que a centração inicial da perspectiva é sempre relativa à própria ação e
posição, disse “egocentrismo” e fiz notar que o egocentrismo inconsciente do pensamento ao qual
me referia nada tinha a ver com o significado comum do termo, isto é, aquele de hipertrofia da
consciência do Eu. O egocentrismo cognitivo, como procurei explicar, é resultante da falta de
diferenciação entre o próprio ponto de vista e aquele dos outros, e não individualismo que precede
as relações com os outros.

Piaget classifica o egocentrismo em cognitivo e social. O egocentrismo


cognitivo é o que se reduz com base nas construções do objeto e do espaço
e de causalidade e tempo. O egocentrismo social está relacionado ao
aparecimento da linguagem. Piaget acredita que não há razão alguma para
se crer que o egocentrismo cognitivo, caracterizado por uma focalização
inconsciente seletiva ou por falta de diferenciação de pontos de vista, não
possa ser aplicado ao campo das relações interpessoais, em particular às que
encontram expressão por meio da linguagem. Ao estudar as relações entre
linguagem e pensamento com base nos deslocamentos da centração, o autor
procurou ver se haveria ou não uma linguagem egocêntrica especial que
pudesse ser distinta da linguagem cooperativa.
Em relação a essa linguagem egocêntrica mencionada por Piaget,
Vygotsky tece uma série de críticas. Para este, a fala egocêntrica precede a
fala interior, a que a criança faz para si mesma, diferentemente da fala
exterior, que é para os outros. As duas têm estruturas semelhantes e função
social. A fala egocêntrica desaparece na idade escolar, quando a fala interior
começa a se desenvolver.
Segundo Piaget, a fala egocêntrica da criança é a expressão do
egocentrismo de seu pensamento; é o meio-termo entre o autismo primitivo
de seu pensamento e sua socialização gradual. Ela não tem um papel no
pensamento ou na atividade social. À medida que a criança cresce, há um
declínio do egocentrismo e uma evolução da socialização.
Para Vygotsky, a fala egocêntrica é um fenômeno de transição das funções
interpsíquicas para as intrapsíquicas, ou seja, da atividade social e coletiva
para outra mais individualizada. Ao contrário de Piaget, a fala egocêntrica
de Vygotsky desenvolve-se em uma curva ascendente, evoluindo. Parte de
uma fala social e caminha em direção a uma fala para si mesmo, o que, para
ele, define a existência da linguagem como muito mais que expressão oral;
a troca e a compreensão dos significados – gestos, olhares, palavras – são
sempre impregnadas de afetividade. Assim, essa linguagem socializada vai
se tornando linguagem interior e assume um papel próprio, organizando a
consciência do sujeito.
A concepção de Wallon se aproxima da de Vygotsky no que se refere à
afetividade e à socialização. No desenvolvimento da pessoa completa, faz-
se presente um caminhar do sincretismo em direção à diferenciação.
Movimentos, sentimentos e ideias são, em princípio, vividos de maneira
global, até mesmo confusa, quando a pessoa não tem clareza da situação.
Aos poucos, tornam-se mais claros e adequados às necessidades que a
situação apresenta. A Teoria das Emoções é de grande importância na obra
de Wallon. Segundo ele, a emoção é a exteriorização da afetividade, um
fato fisiológico em seus componentes humorais e motores, e, ao mesmo
tempo, um comportamento social em sua função de adaptação do ser
humano a seu meio.
A emoção, antes da linguagem, é o meio utilizado pelo recém-nascido
para estabelecer uma relação com o mundo. Gradativamente, os
movimentos de expressão, primeiramente fisiológica, evoluem até se
tornarem comportamentos afetivos mais complexos, nos quais a emoção,
aos poucos, cede terreno aos sentimentos e depois às atividades intelectuais.
A afetividade evolui de acordo com as condições maturacionais de cada
pessoa e com as formas de expressão diferenciadas, que se configuram um
conjunto de significados que o ser humano adquire nas relações com o meio
e com a cultura ao longo da vida. Os significados representam, para cada
pessoa, as diferentes situações e experiências vivenciadas em determinado
momento e ambiente social. Por esse motivo, a afetividade não permanece
imutável ao longo da trajetória da pessoa. Nesse processo, o papel do outro
é, portanto, fundamental.
De volta à influência da brincadeira no desenvolvimento cognitivo,
algumas hipóteses podem ser levantadas. A construção de significados pela
criança se dá pela intervenção do adulto que, ao interpretar seus gestos e
expressões, lhes atribui uma compreensão cultural, a qual será, então,
incorporada, pela criança, a seu rol de possibilidades de se relacionar com o
mundo. Concordando com Vygotsky e Wallon, esse movimento se processa
do social para o individual, e a intensidade e a diversidade dessas relações
possibilitarão maior crescimento.
As brincadeiras fazem parte dessas relações. Na atividade lúdica, a
criança ousa experimentar o mundo real – aquele que ela vem
compreendendo com a ajuda do adulto e que está imerso no cultural, no
social e no histórico. Ao acreditar ser a brincadeira uma aprendizagem
social que pressupõe relações e encontros, esta seria, certamente, a forma
mais interessante de se viabilizar o desenvolvimento cognitivo da criança.

8 PIAGET, J. Seis estudos de Psicologia. São Paulo: Forense, 1973.


9 _______. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Guanabara, 1966. (p.15)
10 VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
11 WALLON, H. Origens do pensamento da criança. São Paulo: Manole, 1989.
12 LA TAILLE, Yves de et al. Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São
Paulo: Summus, 1992.
13 VYGOTSKY, Lev. Pensiero e linguaggio. Florença: Giunti, 1966. (p.28)
Capítulo 2

Brincadeiras e jogos

No capítulo anterior, pôde-se ver que os aspectos cognitivos, afetivos e


sociais caminham juntos no desenvolvimento infantil. Algumas
controvérsias nos pensamentos de Piaget, Vygotsky e Wallon abrem brechas
para questionamentos.
“A criança de 4 a 6 anos não é capaz de se colocar no lugar do outro.”
Essa afirmação de Piaget determina uma contundente conclusão sobre a
capacidade de socialização das crianças. Hoje, estudiosos da infância como
Jobim e Souza, e Kramer,14 e Bondioli e Mantovani15 têm olhares mais
flexíveis sobre o desenvolvimento infantil. Primeiro, pela concepção de
criança com base na cultura, na história e no social, e segundo,
intrinsecamente ligado ao primeiro, pelos “fatores desencadeantes”
presentes nas relações sociais das crianças. Tais fatores seriam as
motivações, as trocas, os interesses e as descobertas que se apresentam
quando duas ou mais crianças se reúnem.
A esses fatores podem-se incorporar as brincadeiras e os jogos. Neles,
estão inseridos o prazer (ou desprazer), o interesse e a comunicação. Todos
os teóricos são unânimes em afirmar que, por meio da brincadeira e do
jogo, a criança se desenvolve, relaciona-se e constrói seu conhecimento.
Entretanto, a definição e a operacionalização dessas brincadeiras e jogos
divergirão em estruturas, objetivos e contextos históricos e culturais.
Os estudos realizados nessa área fazem com que os termos jogo,
brinquedo e brincadeira muitas vezes sejam usados como sinônimos. No
Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, por exemplo, a definição de
brinquedo é “objeto que serve para as crianças brincarem ou jogo de criança
e brincadeiras”. Alguns estudos no Brasil – como o de Rosamilha16 e
Oliveira17 – também empregam esses termos indiferenciadamente.
A fim de delimitar as diferenças entre eles, neste livro, adota-se as
definições de Kishimoto:18
... brinquedo será entendido sempre como objeto, suporte de brincadeira, brincadeira como a
descrição de uma conduta estruturada, com regras e jogo infantil para designar o objeto e as regras
do jogo da criança (brinquedo e brincadeiras). Dar-se-á preferência ao emprego do termo jogo
quando se referir a uma descrição de uma ação lúdica envolvendo situações estruturadas pelo
próprio tipo de material como xadrez, trilha e dominó. Os brinquedos podem ser utilizados de
diferentes maneiras pela própria criança, mas jogos como xadrez (tabuleiro, peças) trazem regras
estruturadas externas que definem a atividade lúdica.

Brincadeira, então, segundo Kishimoto,19 “é a ação que a criança


desempenha ao concretizar as regras do jogo, ao mergulhar na ação lúdica...
é o lúdico em ação”.
Historicamente, desde a educação greco-romana, com base nas ideias de
Platão e Aristóteles, a brincadeira era utilizada na educação. Platão sugere
que o estudo é uma forma de brincadeira, já que é associado ao prazer.
Segundo Wajskop,20 dados, doces e guloseimas em forma de letras e
números eram ferramentas usadas para o ensino das crianças.
Segundo Brougère,21 ainda pouco se sabe sobre o papel da brincadeira. O
fato de sempre atribuirmos a ela um valor positivo tem duas origens: uma
ideológica e outra científica.
Podemos situar a origem ideológica no início do século XIX, com a
mudança de concepção da criança e, por conseguinte, da brincadeira. Antes
disso, tudo que vinha da criança era desvalorizado. A ausência de um
sentimento de infância que considerasse as especificidades infantis fazia
com que as brincadeiras, comportamentos espontâneos que têm origem na
criança, fossem consideradas atividades fúteis e sem maior utilidade.
Somente a partir de Rousseau e do Romantismo é que uma nova concepção
de criança surge, na qual os comportamentos naturais são valorizados, a
criança é rica em potencialidades interiores e portadora da verdade, e a
brincadeira é boa porque é da natureza da criança.
Froebel cria o seu Kindergarden com base na brincadeira como suporte
pedagógico, considerando-a expressão direta da verdade na criança. Para
ele, brincar é uma atividade inata, e brincadeira é uma ação metafórica,
livre e espontânea da criança. Esta, então, consagra-se como testemunha da
valorização romântica da natureza e o principal meio de educação da
criança pequena, mascarando, assim, toda a dimensão cultural e social.
A origem científica está associada aos estudos do comportamento animal.
K. Groos, em seu livro Le jeu des animaux,22 justifica o papel biológico da
brincadeira como necessidade para qualquer animal pequeno superior, como
um instinto que guia a aprendizagem do jovem. Hoje, além de a brincadeira
animal já ter sido questionada em muitos pontos, principalmente nos que
oferecem ganhos para a aprendizagem, acredita-se, também, que um dos
elementos essenciais da brincadeira infantil – a dimensão simbólica – não
esteja presente na brincadeira animal.
No entanto, o que importa nesses dois modelos de concepção de
brincadeira é que ambos valorizavam, ou valorizam, a dimensão lúdica
como espontânea e natural na criança, e como fonte de aprendizagem.
Desse modo, aprendizagem e brincadeira como atividade natural se
confundem quando, em prol da primeira, os “conteúdos a serem ensinados”
são revestidos de alguma forma lúdica para seduzir a criança. Contudo, a
iniciativa é do adulto, que detém o domínio da situação; portanto, só é
brincadeira por uma tênue semelhança com a atividade lúdica. Essa visão
romântica de brincadeira como atividade espontânea e natural ou como
artifício pedagógico não dá conta de suas reais possibilidades.
Para G. Brougère, “a brincadeira é uma mutação do sentido, da realidade:
as coisas tornam-se outras. É um espaço à margem da vida comum que
obedece a regras criadas pela circunstância”. Por isso, a brincadeira não
pode estar limitada ao agir. Ela tem uma função social que consiste em
propor um conteúdo do desejo para, depois, socializá-lo, dando-lhe uma
forma. Toda socialização pressupõe apropriação da cultura., e cada cultura
tem um “banco de imagens” expressivas com as quais a criança poderá se
expressar e produzir. Esse mecanismo chama-se impregnação cultural. A
criança, como o adulto, não se contenta em se relacionar com o mundo real,
por isso, lança mão das representações, das imagens e dos símbolos. A
cultura é composta de representações.
Cultura lúdica, segundo Brougère, é uma estrutura complexa e
hierarquizada, composta de brincadeiras conhecidas e disponíveis, costumes
lúdicos, brincadeiras individuais, tradicionais, ou universais, e geracionais
(próprias de uma geração específica). A cultura lúdica não é fechada em
torno de si mesma, pois integra elementos externos que influenciam a
brincadeira – atitudes e capacidades, cultura e meio social. Ela não é só
composta de estruturas de brincadeiras; é também simbólica, suporte de
representações, pois a brincadeira é também imaginação, relato e história.
Tem um ritmo próprio, mas só pode ser entendida dentro da cultura global
de uma sociedade específica por receber estruturas dessa sociedade. A
brincadeira não acontece de maneira igual em ambientes diferentes (por
exemplo, casa e escola); ela constituirá a bagagem cultural da criança, que
vai se incorporar de modo dinâmico à cultura. Enfim, a cultura lúdica está
imersa na geral, da qual a criança retira os elementos do repertório de
imagens que representam a sociedade.
A criança se apodera do mundo a seu redor para harmonizá-lo com sua
própria dinâmica. A brincadeira projeta a criança em um universo
alternativo excitante, no qual ela não só pode viver as situações sem
limitações, mas também com menos riscos. A forma e a intensidade de
apropriar-se da brincadeira estarão diretamente associadas ao meio e às
relações vivenciadas pela criança. A comunicação que ocorre no ato de
brincar torna-se uma metacomunicação, na medida em que as trocas verbais
ou não verbais, implícitas ou explícitas, conferem à brincadeira o lugar da
iniciativa e da vontade de cada um, cujas combinações e acordos fazem
emergir as ressignificações do cotidiano e da cultura em que está inserida.
A brincadeira implica tomada de decisão. Nessa troca de sinais, ela tem de
ter origem dentro do sujeito que brinca, e, para tanto, necessita,
primeiramente, da decisão – “quero brincar” –, para, depois, deixar-se
mergulhar no universo lúdico do como, com quem, onde... Para brincar, é
preciso haver um acordo sobre as regras. No entanto, estas não existem
antes da brincadeira; elas vão sendo construídas durante o ato de brincar, da
mesma forma como a flexibilidade dessas regras, diretamente associada à
decisão dos participantes, permite que a brincadeira vá além dos limites do
real. Com isso, ela se torna um espaço de criação, de experimentação e de
inovação, em que a cada momento a criança descobre suas competências e
suas possibilidades.
Não há uma brincadeira natural, pois ela se constrói nas relações
interpessoais e supõe uma aprendizagem social. A brincadeira não é inata.
As duas fontes da brincadeira na criança são o adulto que cuida dela e vai
introduzindo comportamentos lúdicos nessa relação e as descobertas das
próprias crianças. Segundo Brougère, “a criança entra progressivamente na
brincadeira do adulto, de quem ela é, inicialmente, o brinquedo, o
espectador ativo, e, depois, o real parceiro”.
Nas ressignificações do real, a criança se debruça sobre novas descobertas
e novas situações, encara novas emoções e frustrações, propõe novas
soluções para antigos problemas ou reorganiza soluções antigas em novas
escalas. Entretanto, tudo isso tem uma característica básica que a torna mais
fascinante: a imprevisibilidade. Podemos até prever como, ou quando, uma
brincadeira vai começar, mas nunca como, ou quando, ela vai terminar. Essa
essência fugaz do ato de brincar, que o torna mais verdadeiro, está
relacionada ao desejo e ao prazer, ou desprazer, das crianças que brincam.
É, indiscutivelmente, um movimento interno, de cada um.
Em seu livro Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação, Tizuko
Kishimoto cita algumas características do jogo/brincadeira. Para Huizinga,
tais características são o prazer, o caráter “não sério”, a liberdade, a
separação dos fenômenos do cotidiano, as regras, o caráter fictício ou
representativo, e sua limitação no tempo e no espaço. Para ele, em qualquer
tipo de jogo existem regras, que podem ser explícitas ou implícitas, mas que
sempre ordenarão e conduzirão a brincadeira.
A questão do prazer é questionada por Vygotsky23 e pela Psicanálise. O
primeiro afirma que, em certos casos, há esforço e desprazer na busca do
objetivo da brincadeira. Para a Psicanálise, a criança também pode
representar, na brincadeira, situações dolorosas.
Kishimoto também cita Caillois, que trata a natureza improdutiva da
brincadeira – tendo um fim em si mesmo, o que realmente importa é o
processo de brincar, não a aquisição de algum conhecimento ou
desenvolvimento de alguma habilidade.
Como há comportamentos semelhantes na brincadeira e na “não
brincadeira”, uma forma de diferenciá-los é a motivação interna da criança,
ou seja, para ser brincadeira, tem de existir a intenção da criança de brincar.
Um estudo de Christie, citado por Kishimoto, aponta critérios para a
identificação do jogo infantil. São eles:
Não literalidade. Nos jogos, a realidade interna predomina sobre a
externa; a criança dá novo sentido a objetos e situações.
Efeito positivo. O jogo infantil é caracterizado, normalmente, pelos
signos do prazer ou da alegria.
Flexibilidade. Nas situações de brincadeira, as crianças tendem a ser
mais flexíveis, buscando mais alternativas de ação do que em outras
atividades. A brincadeira propicia a exploração.
Prioridade do processo de brincar. A criança se concentra na
atividade em si, e seu único objetivo é brincar. Nesse caso, alguns jogos e
brincadeiras realizados em sala de aula com o objetivo de desenvolver
noções e habilidades, que priorizam o produto, não estariam nessa
classificação.
Livre escolha. Só é jogo ou brincadeira se for escolhido livremente
pela criança.
Controle interno. São os próprios jogadores que determinam seu
desenvolvimento. Mais uma vez, os jogos e as brincadeiras dirigidas, com o
controle do professor, não estariam nessa classificação.
De acordo com este estudo, toda atividade que não seja de livre escolha e
cujo progresso não dependa da própria criança não será jogo, e sim
trabalho.
Brougère afirma que a brincadeira é uma atividade de segundo grau, pois
sua natureza simbólica, suas regras, sua incerteza de resultados, futilidade
(sem consequência) e motivação interna a tornam diferente das atividades
reais da vida cotidiana.
A concepção do brincar que norteia este livro é cultural e dinâmica. O
brincar é uma atividade cotidiana da criança, na qual ela expressa a forma
como pensa, ordena e constrói a realidade. Brincar é experimentar o novo.
É criar com a experiência adquirida na relação com o mundo e ampliar essa
experiência, interiorizando novas ordens e novas interrelações entre objetos
e entre sujeitos. Assim, não resta dúvida sobre sua influência no
desenvolvimento cognitivo da criança.

14 JOBIM E SOUZA, S.; KRAMER, Sonia. “O debate Piaget/Vygotsky e as políticas educacionais”.


In Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1991, nº 77, maio.
15 BONDIOLI, A.; MANTOVANI, S. (orgs.). Manual de educação infantil: de 0 a 3 anos: uma
abordagem reflexiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.
16 ROSAMILHA, N. Psicologia do jogo e aprendizado infantil. São Paulo: Pioneira, 1979.
17 OLIVEIRA, P. O que é brinquedo. São Paulo: Brasiliense, 1984.
18 KISHIMOTO, T. M. O jogo e a educação infantil. São Paulo: Pioneira, 2002. (p.7)
19 _______. (org.) Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 2000. (p.21)
20 WAJSKOP, G. Brincar na pré-escola. São Paulo: Cortez, 1999.
21 BROUGÈRE, G. Brinquedo e cultura. São Paulo: Cortez, 2000. (pp. 98-99)
22 GROOS, K. Les jeus des animaux. Paris: F. Alcan, 1902.
23 VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
Capítulo 3

Influência das
brincadeiras
e dos jogos no
desenvolvimento
cognitivo

Na teoria piagetiana, a brincadeira não recebe uma conceituação


específica. Ela é entendida como ação assimiladora e participa do conteúdo
da inteligência, como a aprendizagem. Ao manifestar uma conduta lúdica, a
criança demonstra o nível de seus estágios cognitivos e constrói
conhecimentos. Para Piaget,24 os jogos são basicamente estruturados de
acordo com exercício, símbolo ou regra, e caracterizam-se por sua forma
típica de assimilação.
Nos jogos de exercício, tem-se uma assimilação funcional, ou seja,
quando algo se estrutura como forma, apresenta a tendência de se repetir
funcionalmente. Essa repetição com caráter lúdico resulta na formação de
hábitos, os quais, para Piaget, são a principal forma de aprendizagem no
primeiro ano de vida e constituem a base para as futuras operações mentais.
Os jogos simbólicos são, segundo Piaget, caracterizados pela assimilação
deformante. A realidade é assimilada por analogia: como a criança pode ou
deseja compreender as coisas, afetiva ou cognitivamente, segundo os
limites de seu sistema cognitivo. Isso favorece a integração da criança a um
mundo social cada vez mais complexo. Esses modos deformantes de pensar
e inventar a realidade são o prelúdio de futuras teorizações das crianças.
Os jogos de regra contêm as propriedades dos dois tipos anteriores. Dos
jogos de exercício, herdam a repetição, e dos simbólicos, a convenção, ou
seja, as regras são combinações arbitrárias que os participantes do jogo
fazem. O caráter coletivo está na origem desse tipo de jogo, com os
participantes dependendo uns dos outros para jogar – daí a assimilação
recíproca. O valor lúdico continua presente, pois para a pergunta “quer
jogar?” existe uma resposta “sim” ou “não”, na qual sempre estará presente
o prazer funcional, prolongado para os que disseram sim, mas também
fundamental para os que livremente disseram não.
Pode-se dizer que os jogos de exercício são a base para o como; os
simbólicos, para o porquê das coisas; e os de regra, uma coordenação entre
ambos, tendo sua importância estrutural em seu valor operatório. Nos jogos
de regra, segundo Piaget, fazer (no sentido de conseguir) e compreender
caminham lado a lado, daí a importância da assimilação recíproca dos
esquemas, pois, para ganhar o jogo, é necessária a coordenação do fim
(ganhar) com os meios (regras do jogo, competência etc.).
Já para Vygotsky,25 os processos psicológicos são construídos com base
nas relações sociais e culturais. Toda conduta do ser humano, inclusive a
brincadeira, é construída no processo social. A imaginação surge na ação.
Por meio das brincadeiras, a criança se projeta no mundo do adulto,
aprendendo novos espaços e novas significações. A ação, em uma situação
imaginária, por exemplo, ensina a criança a dirigir seu comportamento não
somente pela percepção imediata do objeto ou da situação em si, mas pelo
significado da situação. Por isso, segundo Vygotsky, é por meio da
brincadeira que a criança começa a separar o objeto real de seu significado,
atingindo, assim, a definição funcional de conceitos ou objetos.
Nesse mundo ilusório, a criança pode realizar seus desejos e desenvolver
formas de comportamento socialmente constituídas, pois, tem,
constantemente, de controlar seus impulsos pelo bem da brincadeira.
Assim, desenvolve motivações de segunda ordem necessárias para a escola
e o trabalho. Para Vygotsky:
... o brincar e o brinquedo criam na criança uma nova forma de desejos. Ensinam-na a desejar,
relacionando seus desejos a um fictício, ao seu papel no jogo e suas regras. Dessa maneira, as
maiores aquisições de uma criança são conseguidas no brinquedo; aquisições que, no futuro,
tornar-se-ão seu nível básico de ação e moralidade.

Para Wallon,26 a concepção de desenvolvimento cognitivo e de formação


do “eu” caminham paralelamente. Ambos são processos sócio-históricos em
constante reformulação, formados na interação com os outros. No começo,
há uma realidade sincrética e indiferenciada, na qual criança e mundo se
confundem. Desde cedo, esta se envolve com jogos que são exercícios de
maturação funcional. No caminho da indiferenciação para a diferenciação,
segundo Oliveira,27 as brincadeiras propiciam gradativas oportunidades para
a criança desintegrar sua atividade perante o global, desprendendo-se da
realidade bruta e dando origem à ficção, o que constitui um passo
indispensável do pensamento.
De acordo com Wallon, o jogo provoca bem-estar porque está direcionado
à satisfação das necessidades psíquicas em contraposição às necessidades
impostas pela existência. Na brincadeira, a criança pode subverter as
disciplinas e as regras sem a preocupação de punições. Dessa forma,
manifesta as diversas disponibilidades funcionais em todas as suas
possibilidades. Para Wallon, as brincadeiras constituem “máscaras,
simulacros que ajudam a criança a fazer a transição entre o indício, ainda
ligado às coisas, e o símbolo, suporte das puras combinações intelectuais”.
No que concerne à ação compartilhada, nos processos de desenvolvimento
mental e na formação da consciência, o autor valoriza a interação para a
compreensão da conduta humana pela emoção e pelo gesto.
Wallon28 classifica os jogos em quatro tipos. Os funcionais, que são os
movimentos simples dos bebês, como encolher os braços e as pernas e
balançar objetos; os de ficção, que são as brincadeiras de faz de conta; os de
aquisição, nos quais a criança aprende vendo e ouvindo; e os de construção,
em que ela reúne, combina e modifica objetos entre si. Para ele, portanto, a
atividade lúdica é uma forma de exploração, de infração da situação
presente.
Piaget29 acredita que a brincadeira, na noção de equilibração, pressupõe a
presença de comportamentos de assimilação sobre os de acomodação;
Vygotsky entende a brincadeira como situação imaginária criada pelo
contato da criança com a realidade social; e Wallon a concebe como forma
de infração do cotidiano e de suas normas.
Piaget, Wallon e Vygotsky atribuem à imitação a origem da representação
e a base do jogo infantil. Há algumas divergências entre as teorias de Piaget
e Vygotsky acerca do jogo infantil, mas estas são de ordem conceitual.
Vygotsky atribuiu relação entre o gesto e o nascimento da atividade
simbólica. Os jogos são condutas que imitam ações reais, não apenas sobre
objetos, e o ato lúdico começaria quando a criança cria uma situação
imaginária, incorporando elementos do contexto cultural. Já Piaget fala de
jogos de exercício já no nível sensório-motor.
Para finalizar este capítulo, vale citar um aspecto relevante da teoria de
Vygotsky. O autor propõe que a brincadeira, nos primeiros anos de vida da
criança, é uma atividade predominante, a qual constitui fonte de
desenvolvimento ao criar zonas de desenvolvimento proximal.
Para Vygotsky, a criança possui um nível de desenvolvimento real, que
corresponde ao que ela consegue realizar sozinha, isto é, o conhecimento já
adquirido, ou os produtos finais do desenvolvimento e o nível de
desenvolvimento potencial. A criança soluciona problemas com a
colaboração e/ou orientação de um adulto ou de parceiros. Assim, o
primeiro seria retrospectivo, e o segundo, prospectivo. A zona de
desenvolvimento proximal seria a distância entre os dois níveis.
A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda
não amadureceram, mas que estão em processo de maturação – funções que
amadurecerão, mas que atualmente estão em estado embrionário. Essas
funções poderiam ser chamadas de brotos ou flores do desenvolvimento, em
vez de frutos do desenvolvimento.
Dessa maneira, o que é hoje nível de desenvolvimento potencial será
amanhã nível de desenvolvimento real, ou seja, o que uma criança pode
realizar hoje com ajuda, amanhã será capaz de realizar sozinha. Vygotsky
afirma que aprendizado e desenvolvimento estão interligados e que
“aprendizado é um aspecto necessário e universal do processo de
desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e
especificamente humanas”.
A brincadeira, portanto, ao criar zonas de desenvolvimento proximal, é
um terreno fértil para o crescimento infantil. A questão é: Qual tipo de
brincadeira mais facilitaria esse desenvolvimento?

24 PIAGET, J. A formação do símbolo na criança. Imitação, jogo e sonho, imagem e representação.


Rio de Janeiro: Zahar, 1971.
25 VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. (pp. 97, 101,
114)
26 WALLON, H. Origens do pensamento da criança. São Paulo: Manole, 1989.
27 OLIVEIRA, Z. de M. Ramos de. “Jogo de papéis: uma perspectiva para análise do
desenvolvimento humano”. Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo,
1988.
28 WALLON, H. Do acto ao pensamento. Lisboa: Portugalia Editora, 1966.
29 PIAGET, J. A formação do símbolo na criança. Imitação, jogo e sonho, imagem e representação.
Rio de Janeiro: Zahar, 1971.
Capítulo 4

Pesquisa

“A finalidade da ciência não é somente explicar ecompreender


a realidade, ainda que isso seja necessário, mas contribuir para a
transformação da mesma.”
Cólas Bravo
Investigación educativa

Premissas metodológicas
Todos esses referenciais teóricos que já faziam parte de meus estudos
sobre a criança, bem como minha atuação como psicóloga escolar,
coordenadora pedagógica e professora universitária sempre direcionada à
educação infantil, ajudaram a decidir o objeto de minha pesquisa. Tendo o
desenvolvimento cognitivo e as definições do brincar como pano de fundo,
o questionamento a ser respondido era: Que tipo de brincadeira, na escola,
mais promove o desenvolvimento cognitivo da criança – a livre ou a
dirigida?
A primeira questão a ser levantada para responder a essa pergunta era a
opção metodológica. Não havia a intenção de que minha pesquisa
apresentasse uma visão unidimensional. Estavam em foco crianças com
suas múltiplas linguagens, portanto era importante ter diferentes olhares
sobre o problema.
Como não é objeto deste livro versar sobre crises paradigmáticas ou
discorrer sobre o que é ou não científico, decidi que, para transformar a
realidade, seria necessário trazer opções metodológicas mais positivistas
para que os céticos pudessem se aproximar da questão do brincar com a
seriedade que esta merece.
O Positivismo admite como fonte única de conhecimento e critério de
verdade a experiência, os fatos positivos e os dados sensíveis, rejeitando
qualquer metafísica como interpretação ou justificação transcendente ou
imanente da experiência. Sendo assim, a preferência recaiu em utilizar
tabelas, variáveis, pré e pós-testes, grupo de controle, mas sem deixar de
fora de minhas observações a alegria, a poesia e o prazer.
Minha hipótese, empiricamente construída, era a de que a brincadeira
livre possibilitava maior desenvolvimento cognitivo exatamente por causa
de sua relação com o prazer e a autonomia. No entanto, isso precisava ser
comprovado com procedimentos científicos. Escolhi, então, uma escola de
classe média da rede privada de ensino do Rio de Janeiro para realizar a
pesquisa. Após conversa com o diretor e a coordenadora da Educação
Infantil, ficou definido que meu público-alvo seria composto de 27 crianças
na faixa etária entre 4 e 6 anos de três turmas da mesma série (manhã e
tarde).
A turma da manhã, com nove alunos (Matheus P., Marcos Paulo, Julyana,
Vitor, Leonardo, Paula Cristina, Luiza, Matheus e Mateus R.), seria o grupo
de controle, que só realizaria o pré e o pós-teste. A turma da tarde,
composta de 18 alunos, foi dividida em dois grupos de nove crianças cada
um. Esses grupos, além de realizarem o pré e o pós-teste, também seriam
submetidos a sessões de brincadeiras dirigidas (grupo A – Thalita, Gabriel,
Thamires, Rodrigo, Queyla, Fernanda, Phelipe, João Lucas e Ana Carolina)
e de brincadeiras livres (grupo B – Fernando, Amanda, João Marcus,
Adriano, Taís Cristina, Gabriela S., Gabriela G., João Marcos e Lúcia
Helena).
Para definir os instrumentos que seriam utilizados, optei por medir o
desenvolvimento cognitivo das crianças com base em três operações:
seriação, classificação e relacionamento de perspectivas. Foram
aplicados testes que avaliam o nível dessas operações nos três grupos de
crianças (de controle, A e B) antes e após a realização das sessões de
brincadeiras, configurando-se como o pré e o pós-teste. Essas três
operações apareceram em forma de atividades para as crianças nas sessões
de brincadeiras dirigidas.

As definições conceituais
Antes de iniciar o relato dessa experiência, é necessário estabelecer alguns
parâmetros relativos às concepções que embasaram a pesquisa.
As brincadeiras livres foram definidas como aquelas que apresentam as
seguintes características:
1. Liberdade de ação do jogador ou caráter voluntário, de motivação
interna e episódica da ação lúdica; prazer (ou desprazer), futilidade, o “não
sério” ou efeito positivo;
2. Regras (implícitas ou explícitas);
3. Relevância do processo de brincar (o caráter improdutivo), incerteza de
resultados;
4. Não literalidade, reflexão de segundo grau, representação da realidade,
imaginação;
5. Contextualização no tempo e no espaço.
A concepção de desenvolvimento cognitivo está diretamente relacionada
às teorias de meus interlocutores – Piaget, Vygotsky e Wallon. Segundo
Piaget,30 o progresso psíquico é comparável ao orgânico. Assim como o
corpo, que vai crescendo e amadurecendo até atingir um nível estável, a
vida mental evolui na direção de um equilíbrio final. O desenvolvimento é,
portanto, uma construção contínua em direção a uma equilibração
progressiva. Para Vygotsky,31 o homem passa de ser biológico para ser
sócio-histórico, pois seu funcionamento psicológico se dá nas relações da
pessoa com o mundo exterior, dentro de um processo histórico. Sendo
assim, é na cultura que o ser humano desenvolve suas funções psicológicas
superiores, e essa relação homem-mundo é mediada por sistemas
simbólicos, que podem ser instrumentos ou signos. Para Wallon,32 a
concepção de desenvolvimento cognitivo e a formação do “eu” caminham
paralelamente. Ambos são processos sócio-históricos, em constante
reformulação, formados na interação com as pessoas. O desenvolvimento
cognitivo, portanto, situa-se em um amplo contexto de construção social da
realidade.
O mundo social é, inicialmente, concebido pelas crianças dentro de um
universo simbólico, no qual as ações sociais se desenvolvem em um nível
de representatividade e as experiências são reconstruídas na brincadeira e
no jogo simbólico. Nesse processo de interação e de troca da pessoa com o
meio social, intervém o grau já atingido pela criança de organização interna.
Faz-se presente uma reciprocidade dialética entre o nível de
desenvolvimento cognitivo da criança e suas relações sociais. Assim como
o grau já atingido pela criança de organização interna influenciará as
relações sociais, estas, em outros momentos, propiciarão, por meio das
trocas com os parceiros, um crescimento cognitivo. Essas trocas têm no
contexto lúdico um campo fértil para seu aparecimento.
As brincadeiras dirigidas foram definidas como as que não são de livre
escolha da criança. Partindo do desejo do adulto, têm um planejamento
preestabelecido e com o objetivo pedagógico de desenvolver determinadas
habilidades; no caso da pesquisa, capacidade de seriação, classificação e
relacionamento de perspectivas. Os instrumentos utilizados consideram,
além do nível de conhecimento e da qualidade de pensamento de cada
criança, a forma como os testes são apresentados.
Entende-se como seriação ou ordenação uma operação lógica que
consiste em ordenar, dispor os elementos segundo sua grandeza crescente
ou decrescente. As conclusões piagetianas dizem que essa operação só
surge por volta dos 7 anos, mas tem suas raízes na fase sensório-motora,
quando a criança é capaz de construir uma torre de cubos com diferenças
dimensionais claras e imediatamente perceptíveis.
Para ordenar regrinhas com diferenças dimensionais pequenas, a criança
passa por etapas. Primeiro, compara pares ou pequenos conjuntos, mas não
os coordena entre si; em seguida, executa tateios empíricos, que constituem
regulações semirreversíveis, mas ainda não operatórias; finalmente, torna-se
capaz de procurar, comparando dois a dois, o elemento menor, depois o
menor dos que ficaram, e, assim, sucessivamente.33
Para verificar a capacidade de seriação, foi aplicada a Prova da Seriação
de Bastonetes (Anexo I),34 que tem como material uma série de dez
bastonetes graduados de 10cm a 16cm com uma diferença de 0,6cm entre
eles – um anteparo de papelão. Com o objetivo de avaliar a capacidade de
seriação, o examinador oferece à criança os dez bastonetes fora de ordem
para que ela tome conhecimento do material. Em seguida, solicita que ela
faça uma escadinha com todos esses pauzinhos, ordenando-os do menor
para o maior. Os resultados podem se apresentar em três níveis.
Nível 1: Ausência de seriação. As crianças dispõem os bastonetes em
qualquer ordem ou fazem diversas tentativas, mas não coordenam as séries,
ou fazem uma escada sem considerar o tamanho dos bastonetes.
Nível 2: Conduta intermediária. As crianças fazem uma série por ensaio
e erro, e comparam cada bastonete a todos os demais (seriação intuitiva).
Nível 3: Êxito.
A classificação é outra operação lógica que consiste na capacidade de
separar objetos, pessoas, fatos ou ideias em classes ou grupos, tendo por
critério uma ou várias características comuns. Suas origens podem ser
encontradas nas assimilações próprias dos esquemas sensório-motores, e
seu processo de construção também passa por etapas. Primeiro a criança
reúne objetos semelhantes, justapondo-os espacialmente em fileiras,
círculos, quadrados, de tal modo que a coleção forme uma figura no espaço
que sirva de expressão perceptiva, ou seja, acompanhada da imagem de
“extensão” da classe – as coleções figurais. Depois, os objetos são reunidos
em pequenos conjuntos, sem forma espacial, e podem se diferenciar em
subconjuntos – o que, segundo Goulart, são as coleções não figurais.
Para essa operação, foi utilizada a Prova das Classes – Mudança de
Critério (Anexo II), com fichas de figuras geométricas vermelhas e azuis –
três círculos e três quadrados pequenos de cada cor e três círculos e três
quadrados grandes de cada cor. Com o objetivo de avaliar a capacidade de
classificar objetos, o examinador dispõe as fichas fora de ordem sobre a
mesa e pede que a criança “arrume” de alguma forma. Os resultados podem
se apresentar em quatro níveis:
Nível 1: Coleções figurais. As crianças arrumam as fichas, estruturando
figuras de trem, casa, boneca etc. Podem também arrumar as fichas que
tenham alguma semelhança, mudando sempre o critério e não utilizando
todas.
Nível 2: Início de classificação. As crianças conseguem fazer pequenos
grupos não figurais, segundo diferentes critérios, coleções justapostas, sem
ligação entre si: é o “monte” das bolas vermelhas grandes, das bolas
pequenas vermelhas, dos quadrados vermelhos etc. Em um grau maior de
progresso, as crianças podem conseguir um começo de reagrupamento dos
subgrupos em classes gerais, sem alcançar uma antecipação de critérios.
Elas conseguem classificar por um critério somente.
Nível 3: Dicotomia segundo os dois critérios. As crianças iniciam a
tarefa já antecipando as possibilidades. Elas conseguem fazer e recapitular
corretamente duas dicotomias sucessivas, segundo dois critérios; o terceiro
critério só é descoberto com incitação do examinador. As crianças
conseguem classificar por dois critérios.
Nível 4: Dicotomia segundo os três critérios. Em um grau maior de
progresso, os três critérios são antecipados e utilizados espontaneamente.
As crianças conseguem classificar por três critérios.
Por definição, o relacionamento de perspectivas consiste na percepção
que a criança tem dela e do outro em relação ao espaço. Para Piaget,35 a
perspectiva intervém relativamente tarde no comportamento geométrico da
criança e depende de uma construção operatória, posterior ao processo de
descentralização. Supõe um relacionamento entre o objeto e o ponto de
vista próprio, tornado consciente de si mesmo, isto é, diferenciado dos
outros e coordenado com eles. Para isso, é necessária uma construção de
conjunto, como relacionar objetos entre si segundo um sistema de
coordenadas e os pontos de vista entre si segundo uma coordenação de
relações projetivas que correspondem aos diversos observadores possíveis.
As estruturas espaciais, bem como as temporais, são denominadas
infralógicas, não por serem inferiores às lógicas, mas porque expressam
uma circunstância cognitiva distinta. As estruturas infralógicas são
estruturas do mundo físico que dizem respeito à própria noção de objeto, às
relações entre o todo e as partes, às relações de posição e distância, e se
desenvolvem ao mesmo tempo em que as lógicas.
Para verificar o relacionamento das perspectivas, criei a Prova das
Fotografias, que consiste em uma adaptação da Prova das Montanhas de
Piaget, a qual procura chegar mais perto do contexto das crianças, por meio
de situações e objetos que fazem sentido para elas.
Piaget se vale da Prova das Montanhas para comprovar sua afirmativa de
que a criança pré-operatória, por não ter a capacidade de se descentralizar,
não consegue perceber pontos de vista diferentes. Nessa prova, há três
montanhas que se distinguem umas das outras pela cor e por determinadas
características (a neve em uma delas, uma cruz vermelha em outra etc.). A
criança senta-se em um dos lados da mesa com o modelo das três
montanhas a sua frente. O experimentador, então, mostra um bonequinho e
o coloca do outro lado da mesa, e pergunta à criança o que o boneco vê. São
apresentados cartões com fotografias das montanhas obtidas de vários
ângulos, e a criança deve escolher um.
Donaldson36 afirma que essa incapacidade de a criança perceber o que o
bonequinho vê não está somente relacionada à incapacidade de se
descentralizar e olhar o mundo de outra perspectiva, mas, também, a um
distanciamento dessas montanhas do contexto da criança.
Segundo ele, nesse exercício, não há nenhum jogo de motivos
interpessoais de um tipo que se fizesse instantaneamente inteligível. Desse
modo, o exercício das “montanhas” é abstrato em um aspecto muito
importante do ponto de vista psicológico: no sentido de ser abstraído de
todos os propósitos, sentimentos e esforços humanos básicos – ter um
sangue completamente frio. Nas veias das crianças de 3 anos ainda corre
um sangue quente.
Essa afirmativa, porém, não exclui a de Bergamin e Prudente,37 que diz
que o comportamento socialmente relevante é sempre produzido em uma
situação penetrada de compreensão, e esta depende não só da clareza com
que o cenário se apresenta à pessoa, mas também de seu nível de
conhecimento e de sua qualidade de pensamento.
Por concordar com a afirmação de Donaldson, desenvolvi a Prova das
Fotografias com o objetivo de construir um contexto mais significativo para
a criança. O material consiste na maquete de uma floresta com árvores,
flores e lago com patinhos, um boneco representando um menino com uma
máquina fotográfica pendurada no pescoço, uma coruja com cara de sabida
e um jequitibá de óculos. Além disso, havia oito cartões com fotografias da
maquete com a coruja e o jequitibá na floresta, de diferentes ângulos,
correspondentes às posições A, B, C, D, E, F, G e H.
Com o objetivo de avaliar a capacidade de a criança se pôr no lugar do
outro e relacionar diferentes pontos de vista, a prova é iniciada com o
examinador contando a história “Zeca Tá na Hora na floresta dos
diferentes” (Anexo III) para as crianças dos dois grupos (A e B) juntos,
mostrando os bonecos e a maquete da floresta. Depois, as crianças são
chamadas individualmente, é relembrado a elas o fato de Zeca ter tirado
fotografias da floresta de diferentes lugares, e são aplicadas as técnicas 1 e
2.
Técnica 1: Com a criança e o boneco Zeca sentados na posição A,
apresentar a fotografia correspondente àquele ângulo. Depois, passar o Zeca
para a posição E, apresentar as oito fotografias das diferentes posições e
pedir que a criança escolha, sem sair do lugar, a correspondente à posição
que o Zeca está agora. Repetir o procedimento nas posições: C, D, F e G.
Os resultados possíveis são:
Nível 1: Indiferenciação completa ou parcial entre o ponto de vista da
criança e do boneco. A criança não compreende o que lhe é solicitado.
Nível 2: Representação centrada no próprio ponto de vista. A criança
escolhe quadros que demonstram a centração em seu próprio ponto de vista.
A criança diz que alterar a posição do boneco não mudará a foto ou
escolhe as fotografias aleatoriamente, sem saber justificar o porquê.
Nível 3: Reações intermediárias com tentativas de diferenciação dos
pontos de vista. A criança permanece tão persuadida de que as relações
entre os elementos figurados da maquete são rígidas e invariáveis que se
limita a escolher um aspecto de destaque em relação à posição do boneco.
A criança começa a perceber que há diferença nos pontos de vista, mas
ainda não consegue justificar suas escolhas, acertando algumas e
errando outras.
Nível 4: Diferenciação e coordenação crescente das perspectivas e
relatividade verdadeira, mas incompleta. A criança descobre as relações de
posicionamento (à esquerda e à direita, na frente e atrás, em cima e
embaixo) entre os elementos vistos, mas só determina com exatidão uma
relação, negligenciando as demais. A criança já consegue perceber as
diferenças das posições mais fáceis (A, C, E e G), ainda confunde as
demais, mas sempre justifica sua escolha.
Nível 5: Relatividade completa das perspectivas. A criança é capaz de
fazer a correspondência mental entre os elementos figurados da maquete e
um quadro feito entre muitos. A criança percebe os diferentes pontos de
vista e justifica suas respostas.
Técnica 2: É o inverso da primeira. Em vez de encontrar a fotografia
correspondente, a criança tem de, com base na fotografia, descobrir onde
Zeca estava quando tirou a foto. Os resultados possíveis são:
Nível 1: Indiferenciação completa ou parcial entre o ponto de vista da
criança e o do boneco. A criança não compreende o que lhe é solicitado.
Nível 2: Representação centrada no próprio ponto de vista. A criança
coloca o boneco em uma posição próxima à sua, no meio de elementos
figurados (perto da coruja ou do lago) ou em qualquer lugar. A criança
pergunta onde o boneco está na foto ou aponta, na foto, a posição
solicitada.
Nível 3: Reações intermediárias com tentativas de diferenciação dos
pontos de vista. A criança parte da antecipação de que a cada ponto de vista
distinto corresponde uma posição determinada, mas ainda não tem a
compreensão das perspectivas nem de sua relatividade. A criança começa
a perceber que há diferença nos pontos de vista, mas ainda não
consegue justificar suas escolhas, acertando algumas e errando outras.
Nível 4: Diferenciação e coordenação crescente das perspectivas e
relatividade verdadeira, mas incompleta: a criança descobre as relações de
posicionamento (à esquerda e à direita, na frente e atrás, em cima e
embaixo) entre os elementos vistos, parte de uma relação qualquer, mas que
implica, ao mesmo tempo, uma relação entre os elementos figurados e a
posição do boneco. A criança já consegue perceber as diferenças das
posições mais fáceis (A, C, E e G), ainda confunde as demais, mas
sempre justifica sua escolha.
Nível 5: Relatividade completa das perspectivas. A criança descobre que
só existe para o boneco uma única posição que corresponda a um quadro
específico e vice-versa. A criança percebe os diferentes pontos de vista e
justifica suas respostas.

Parâmetros operacionais – Pré e pós-teste


Todas as provas e as sessões de brincadeiras foram feitas em uma sala
anexa à escola, onde eram ministradas as aulas de Literatura, na qual havia
vários jogos e fantasias. As provas individuais obedeceram à seguinte
ordem: fotografias, seriação e classificação.
A Prova das Fotografias foi iniciada em grupo. A maquete e o boneco
foram mostrados antes do início da história, para todos juntos. As crianças
ficaram muito motivadas, e queriam tocar na maquete. Antes do início da
história, o boneco Zeca passou de mão em mão, para que as crianças
pudessem “conhecê-lo melhor”.
A história não foi lida, e sim contada, pois observei que ao ler houve um
desinteresse das crianças. Notei, também, que a história ficaria um pouco
extensa para eles, então, sem perda do sentido, ela foi resumida. O término
ficou em clima de suspense, pois, quando Zeca pediu para tirar as fotos da
floresta, movimentei o boneco em torno da maquete, com o barulhinho da
foto em cada posição, e disse a eles que a continuação da brincadeira seria
individual. Pedi que voltassem para a sala e comecei a chamar um a um.
A história foi contada aos grupos A e B juntos, e ao grupo de controle,
separadamente, por causa do problema de turno (os grupos A e B são do
turno da tarde, e o grupo de controle, do turno da manhã).
Na etapa individual da prova, a maquete ficou no chão, com o boneco
Zeca sentado em frente ao portão da floresta, e era solicitado que a criança
se sentasse onde ele estava e o colocasse no colo. Em seguida, a história era
relembrada, e as fotos que Zeca havia tirado, mostradas.
Era solicitado que a criança olhasse para a maquete, percebendo que
estava na mesma posição de Zeca, e apontasse quais fotos haviam sido
tiradas daquela posição. Depois da resposta, era solicitada uma justificativa.
Com o boneco Zeca na posição E, era perguntado à criança se ela achava
que a foto tirada daquela posição seria a mesma da anterior. Se a resposta
fosse negativa, pedia-se que ela apontasse qual foto havia sido tirada dessa
outra posição. A seguir, Zeca ficava nas posições G e C, seguindo sempre
as mesmas orientações. À medida que a criança ia respondendo
corretamente, o boneco Zeca passava para as demais posições.
Em alguns casos, as posições em diagonal (B, D, F, H) foram descartadas
em virtude da dificuldade da criança. Algumas, ao verem as fotos,
perguntavam onde estava o Zeca. Eu explicava que ele estava tirando a foto.
Como eu tinha uma máquina fotográfica para registrar as provas, dizia para
a criança que iria tirar uma foto dela, e perguntava se eu poderia sair na
fotografia. Outras crianças ficaram mais interessadas em brincar com o
boneco e a maquete do que em reconhecer as fotos. Nesses casos, foi
permitido um tempo para a exploração do material.
A técnica 2 consistia em apresentar a foto e pedir que a criança colocasse
o boneco Zeca na posição de onde esta havia sido tirada. Algumas crianças,
após a pergunta “onde estava Zeca quando tirou esta foto?”, apontavam
para a própria fotografia, mostrando o lugar. Nesse caso, a pergunta era
reforçada: “Qual é a posição aqui, em volta da floresta?”
Na prova da seriação, os bastonetes foram espalhados em cima de uma
mesa e foi pedido à criança que fizesse uma escadinha com esses pauzinhos
(do menor para o maior ou vice-versa). Algumas crianças começavam
colocando os bastonetes uns sobre os outros. Novamente era explicado que
a escadinha era para ser feita encostada à mesa. Se ainda assim a criança
não entendesse, começava-se a escadinha e pedia-se para ela continuar.
Como as três provas de seriação se tornaram cansativas para as crianças,
optei pela retirada da verificação de exclusão e de seriação oculta, já que o
objetivo das provas poderia ser medido somente na seriação a descoberto.
Na Prova das Classes, a quantidade de peças, por vezes, dificultava a
realização das solicitações. Todas as peças ficavam misturadas em cima de
uma mesa, e era pedido para a criança que arrumasse “aquela bagunça” em
dois grupos de objetos parecidos, colocando cada grupo em uma mesa.
Depois era perguntado se havia outra maneira de arrumá-los e, em seguida,
mais uma forma diferente.
Em todas as provas foram feitos os registros de avaliação do nível em que
cada criança se encontrava de acordo com os critérios mencionados.

A experiência propriamente dita – Sessões de brincadeiras


Primeira sessão
Comecei pelo grupo B, o das brincadeiras livres. Arrumei a sala com os
brinquedos e fui chamar o grupo. A divisão foi feita, aleatoriamente, pela
professora da turma. Antes de entrarmos na sala, fizemos algumas
combinações que deveriam valer durante todas as sessões, como: quando eu
dissesse que estava acabando o tempo, todas as crianças me ajudariam a
guardar os brinquedos.
Na sala, já havia, além de alguns jogos, dois baús de fantasias e muitos
livros. Os brinquedos que levei foram quebra-cabeça, dominó, maquiagem,
futebol de botão, Lego®, bingo, cavalinho de pau, bonecas, bonecos,
animais, dinossauros, corda etc. Em uma das mesas, deixei papel e canetas
hidrográficas para desenho.
Quando as crianças entraram, ficaram um pouco “atordoadas” com
tamanha quantidade de opções de brincadeira. Aos poucos, elas foram se
organizando em pequenos grupos, de acordo com os interesses. Algumas
perguntaram como era o quebra-cabeça; outras, se podiam mexer nas
fantasias. Nesse primeiro dia, elas se interessaram mais por fantasias,
maquiagem, Lego® e desenho.
Ao final do tempo, cumpriram o combinado. Os brinquedos foram
guardados, e chamei o grupo das brincadeiras dirigidas.
Quando entraram na sala, apesar de não haver brinquedos diferentes, as
crianças se encaminharam para os livros, ficando mais dispersas que o
grupo anterior. Informei que a brincadeira seria outra e comecei a explicar o
que faríamos. O objetivo era trabalhar a habilidade para classificar e
substituir um sistema de classificação por outro, com a tradução do
movimento para o símbolo visual ou sonoro (usou-se somente o símbolo
sonoro, pois na sala não havia quadro-negro). Para as crianças entenderem,
fiz uma associação com a brincadeira “Morto-vivo”, que já conheciam, e
nos divertimos um pouco. Depois, comecei a associar movimentos a palmas
e ao som do apito. Fomos aumentando os movimentos, que foram
realizados com certa facilidade; entretanto, passados alguns minutos, as
crianças já não queriam mais participar. Diversifiquei, pedindo para uma
criança de cada vez comandar. Começaram a pedir para eu contar uma
história e a perguntar onde estava a maquiagem (o outro grupo já havia
chegado maquiado à sala de aula). Percebi que a disposição para a
brincadeira havia cessado. Disse que a maquiagem seria em outro momento
e contei uma história para encerrar a sessão.
Houve um interesse muito grande do grupo A, o das brincadeiras
dirigidas, por livros e histórias, fato que não ocorreu com o grupo B, o das
brincadeiras livres. Acredito que seja em virtude da diversidade de opções
oferecidas ao grupo B, o que não ocorreu com o A.
Segunda sessão
Resolvi começar pelo grupo A, o das brincadeiras dirigidas, na tentativa
de minimizar os pedidos de brinquedos e maquiagem.
Todos entraram na sala, e, de imediato, comecei a explicar a brincadeira,
que tinha como objetivo trabalhar a habilidade de observar, de se comunicar
verbalmente, de comunicar com precisão, e memória visual e auditiva de
curto prazo. Coloquei no chão os dois cavalinhos de pau, dois livros e uma
almofada grande em forma de lápis. As crianças se sentaram em grupos de
dois, uma de frente para os objetos no chão e outra de costas para esses
objetos. Chamei uma criança para mexer como quisesse nos objetos. As de
frente para esses objetos deveriam contar para seus parceiros o que a
demonstradora fez. Fui alternando a criança demonstradora e as duplas.
Novamente, as crianças não aguentaram brincar durante toda a sessão. No
final, nos entretemos com a mímica de animais, e todas voltaram para a sala
imitando um animal. “Voltar imitando animais” se repetiu durante todas as
sessões, inclusive com o grupo B.
Arrumei a sala com os brinquedos. Antes de o grupo B entrar, lembrei-lhe
o combinado, e o grupo disse que já sabia. Estava muito animado para
começar.
As crianças inventaram algumas brincadeiras. Uma de esconde-esconde e
outra de achar o chapéu correspondente a cada fantasia. Os cavalos de pau
fizeram o maior sucesso. Foi criado também um teatro de fantoche com um
palco que havia na sala. Algumas vezes, elas ainda ficavam sem saber o que
fazer, passando de um brinquedo a outro.
Como viram o outro grupo chegando à sala imitando animais, quiseram
também voltar para a sala de aula assim.
Terceira sessão
Comecei explicando a brincadeira para o grupo A, que tinha o objetivo de
trabalhar o comportamento analítico, a resolução de problemas e a
construção de regras. Perguntei o que é um jogo, e as crianças do grupo
responderam com exemplos – memória, dama, amarelinha. Perguntei se
seriam capazes de inventar um, mas elas pareceram não entender o que
seria “inventar”. Expliquei novamente, mas as crianças continuavam a dar
os exemplos dos jogos conhecidos. Dividi três grupos e entreguei uma folha
para cada grupo de crianças desenhar um jogo. Um desses grupos discutiu e
decidiu, em equipe, o jogo que desenharia. No outro, as crianças fizeram
desenhos individuais, e só disseram que era um jogo da mula sem cabeça
(estavam trabalhando o folclore...). No terceiro grupo, além de fazerem
desenhos individuais, não representaram nenhum jogo.
No grupo B, arrumei a sala com alguns jogos diferentes, deixando o
centro mais vazio, pois achei que a última sessão havia sido tumultuada.
Logo que o grupo saiu da sala de aula para a sala de atividades, João me
perguntou se havia um joguinho diferente. Por sorte, pude dizer que sim.
As crianças chegaram e foram logo para as fantasias (que, com certeza, é
do que elas mais gostam de brincar). Resolveram fazer uma peça de teatro.
João disse que não queria se fantasiar e, então, falou que podia ser o diretor.
Entrei na brincadeira e foi muito bom. As crianças cantaram, dançaram e,
no final, resolveram representar a cantiga de roda “A linda rosa juvenil”.
Eles mesmos dividiram os personagens e os representaram.
Quarta sessão
Com o grupo A, a brincadeira tinha como objetivo trabalhar a habilidade
de compreender enredos, representar pessoas, desenvolver a linguagem oral
e a capacidade de trocar de papéis. Contei uma história com muitos
personagens, e, depois, cada um escolheu dois. Expliquei que
começaríamos pelo primeiro personagem escolhido e, em seguida,
passaríamos para o segundo. Houve certa disputa pelos personagens
principais, e algumas crianças não quiseram trocá-los depois. Apesar de
nem todos participarem por completo, foi bem animado.
As atividades com o grupo B transcorreram com tranquilidade, com as
crianças brincando, alternadamente, em grupos e sozinhas, ainda tendo
como maior interesse as fantasias e o teatro.
Quinta sessão
A brincadeira dessa sessão foi “telefone sem fio”, a fim de desenvolver a
atenção, a concentração e a linguagem oral. Como as crianças já a
conheciam, participaram bastante.
No grupo B, voltaram a brincar de teatro e me pediram para brincar junto.
Resolveram que seria um casamento, e eu era o “texto”. Falava no ouvido
de cada um e eles repetiam as falas.
Sexta sessão
Quando fui buscar o grupo A, a professora me avisou que Queyla havia se
acidentado e não compareceria à escola. Como a brincadeira seria para
desenvolver a capacidade de raciocínio e o conhecimento do ponto de vista
do outro por meio da resolução de situações-problema, aproveitei o
incidente. Dividi dois grupos, que se situaram em círculos separados. Disse
que lhes contaria um problema, e eles deveriam conversar em grupo para
achar a solução.
Comecei com a situação de Queyla, que não poderia comparecer à escola.
Como ela faria para entregar os trabalhinhos? As crianças conversaram um
pouco e surgiram as soluções: “vir em uma cadeira de rodas”; “colocar um
gesso”; “levar os trabalhinhos para a casa dela”. Nem sempre a solução
dada pelo porta-voz do grupo era aceita, e outros integrantes também
apresentavam suas soluções.
Outro problema abordado foi: eu estava dirigindo em uma estrada e meu
carro enguiçou. O que fazer? Soluções apresentadas: “chamar um táxi”;
“chamar o mecânico”; “comprar outro carro”; “consertar e ir embora”.
Quando iam começar a se dispersar, pedi a cada um que citasse um
problema para que os outros buscassem a solução. Ana Carolina, que é
muito tímida e praticamente não fala, nesse dia se soltou, e todos vieram
comentar exultantes: “Denise, a Ana falou!”
Para o grupo B, ofereci menos brinquedos. Eles perguntaram onde
estavam, e eu disse que havia outros (os jogos da sala). Eles brincaram com
os bastonetes, fazendo seriações e classificações. Amanda começou a
brincar sozinha com o teatro de fantoches, e, logo, alguns se chegaram.
Gabriela e Lúcia vieram me pedir para organizar a brincadeira de teatro, e
eu disse que elas é que deviam perguntar se os amigos queriam. Alguns
meninos começaram a “brincar de brigar”. Sinalizei que eles poderiam se
machucar.
Sétima sessão
O grupo A chegou mais agitado. Comecei a explicar a brincadeira “Até
onde eu alcanço?”. O objetivo era trabalhar o conhecimento da habilidade
física em atividades selecionadas; a habilidade para modificar a
autoavaliação na presença de uma evidência concreta; a habilidade de
seriação.
Pedi a cada criança que fizesse uma estimativa e marcasse no chão a
distância que poderia alcançar com um salto. Depois, as crianças
executaram o salto e o compararam com o que haviam calculado. Pedi que
fizessem uma nova estimativa e saltassem mais uma vez. Cada criança
mediu seus saltos com pedaços de barbante.
No meio da brincadeira, Fernanda e Thalita me perguntaram novamente
sobre a maquiagem. Disse que, depois, elas poderiam brincar com ela, e as
meninas questionaram se poderiam trocar de grupo. Respondi que não.
Após todos saltarem, segurei a ponta de cada barbante e pedi que eles se
afastassem com a outra ponta. Todos notaram que os barbantes não eram do
mesmo tamanho, e eu perguntei como poderíamos arrumá-los. As crianças,
então, começaram a se organizar, do pedaço menor para o maior. Nem todas
perceberam como poderia ser arrumado, mas, com a ajuda dos colegas,
realizaram a proposta. Como sempre acontecia, voltaram para a sala de aula
imitando animais.
Surgiu na sala de atividades um tapete de encaixar com letras e desenhos.
Como estava desarrumado, a primeira brincadeira do grupo B foi a
arrumação do tapete. Adriano, que já conhecia o alfabeto, começou a
arrumar na ordem, outros se juntaram e começaram a experimentar outras
maneiras de classificação.
Esse grupo (B) mostrava-se mais calmo que o outro. As crianças
conseguiram trabalhar em grupos e ouvir sugestões dos colegas. Brincaram
também com os bastonetes, realizando a seriação.
Como eu estava fotografando com uma máquina digital, eles começaram
a pedir para ver as fotos, e isso virou uma grande brincadeira.
Oitava sessão
O grupo A chegou mais calmo e logo atendeu ao meu pedido de
permanecer em círculo. Essa sessão foi de dramatização livre, com
alternância de personagens, com o objetivo de estimular a criatividade, a
linguagem oral e a compreensão de diferentes pontos de vista. Eles
inventariam uma história, iriam dramatizá-la e, depois, trocar de papéis.
Como Gabriel levou para o grupo um tubarão de borracha, a história
começou a girar em torno dele. Mais uma vez, na inversão de personagens,
houve dificuldade, pois todos queriam ser o tubarão. Dessa maneira, fui
alternando os tubarões, até que todos o tivessem representado. Para
contemplar o objetivo de troca de papéis, comecei a comandar um jogo de
expressão corporal. Eu falava a “coisa”, e eles tinham de representá-la. Foi
interessante, e eles gostaram: viraram mesa, leão, copo, casa, floresta,
passarinho, caderno, bola etc.
Adriano, no grupo B, levou um baralho de verdade. As fantasias foram
pouco procuradas. As brincadeiras foram bem diversificadas. Uns no
baralho, outros com quebra-cabeça, alguns desenhando e outros jogando
bingo.
Nona sessão
Para a brincadeira “Agora eu sou pintor”, com o objetivo de desenvolver
as habilidades gráficas e trabalhar a noção de perspectiva, levei o livro
Histórias em quadrões,38 de Maurício de Souza, no qual ele faz uma
releitura das obras de arte com a Turma da Mônica. Contei a história do
trabalho, mostrei as fotos dos quadros e pedi que as crianças se sentassem
em três mesas e fizessem o desenho dos objetos. Coloquei em cada mesa
dois sólidos. Quando alguns me diziam que não sabiam desenhar, eu
lembrava que não precisava ficar igualzinho; do modo como eles fizessem
ficaria bom. Alguns tentaram representar os sólidos, outros desenhavam os
sólidos e outras formas em volta, e uns poucos nem atentaram à minha
proposta, fazendo outros desenhos.
O grupo B continuou brincando tranquilamente, ora com as fantasias ora
com jogos ou desenhos, demonstrando boa organização e criatividade nas
brincadeiras.
Décima sessão
A última sessão era uma avaliação do trabalho, feita por meio de relato
oral e de desenhos. Os dois grupos apresentaram uma avaliação positiva das
sessões, lembrando-se de algumas situações e da história “Zeca Tá na Hora
na floresta dos diferentes”. O grupo A ainda questionou as maquiagens e as
diferenças de brincadeiras. Como eu havia prometido, depois do pós-teste,
fiz uma sessão com os dois grupos juntos e com todos os brinquedos e as
maquiagens.

Pós-teste
O pós-teste do grupo de controle foi pela manhã. As crianças se
lembravam da história e do Zeca.
As crianças dos grupos A e B ficaram muito animadas com a volta do
personagem Zeca. Muitas já entravam na sala dizendo: “Ah, eu sei o que
vamos fazer.” O prévio conhecimento das provas e um envolvimento maior
comigo fizeram com que o pós-teste transcorresse com muita tranquilidade.

Resultados
Os resultados foram sendo medidos ao longo da pesquisa. A cada fase,
registros, tabelas e estatísticas davam o tom científico positivista,
respaldando as observações e conclusões qualitativas.
Em primeiro lugar, era necessário testar a hipótese de que os três grupos
(de controle, A e B) estavam no mesmo nível de desenvolvimento
cognitivo, não apresentando, portanto, diferença nos resultados das três
amostras no pré-teste. Assim, foi aplicada a Prova da Extensão da
Mediana39 e foi verificado que os três grupos não apresentavam diferenças
no pré-teste.
Uma vez comprovado que os três grupos provinham da mesma população,
foi testada a hipótese de que haveria diferença significativa em cada grupo
entre os resultados do pré e do pós-teste, considerando-se que o
desenvolvimento cognitivo se processa em todos os três grupos. Nesse caso,
utilizou-se a Prova dos Sinais40 e ficou confirmado que houve diferença
significativa em cada grupo entre os resultados do pré e do pós-teste.
Em todas as provas e em todos os grupos, mais de uma criança apresentou
mudança de nível nos resultados. Essa mudança, na maioria dos casos, foi
para mais, com exceção do grupo de controle, na Prova das Fotografias –
técnica 1 –, na qual três crianças apresentaram mudança de nível, sendo que
uma para mais e duas para menos; e no grupo B, na Prova das Classes –
Mudança de Critério, na qual das três modificações de nível ocorridas, uma
foi para menos. Acredita-se que esses casos de mudança de nível para
menos tenham acontecido por falta de atenção ou de motivação das crianças
para realizar as tarefas no pós-teste. De qualquer modo, a porcentagem
dessa ocorrência em relação ao total da amostra não se apresentou como um
dado significativo.
Um aspecto relevante observado foi o número de crianças do grupo B que
apresentou aumento no nível dos resultados na Prova das Fotografias
técnica 1 (seis crianças) e técnica 2 (oito crianças), bem como na Prova das
Classes (seis crianças).
Pode-se dizer que as brincadeiras escolhidas pelo grupo durante as sessões
tiveram papel fundamental nesse quadro. Como já foi dito, o espaço da
brincadeira livre era rico em materiais, a fim de, exatamente, oportunizar o
desejo de exploração e de criação das crianças. Entre esses materiais
estavam dois baús com fantasias de espuma representando animais, que
tinham um corpo, tipo maiô, e um adereço para colocar na cabeça. Em
todas as sessões, as crianças se vestiam de animais para brincar ou
representar.
Como as fantasias eram guardadas sem a preocupação de uma arrumação
maior, cada vez que as crianças começavam a se vestir, tinham de,
invariavelmente, procurar a “cabeça” correspondente ao seu animal. Isso
também se tornava uma brincadeira com as trocas e as negociações: “Você
está com a cabeça do meu galo” , “Qual é a cabeça da borboleta?”, “Que
periquito é esse?”. Em todas as situações, era necessário classificar o animal
e separar os elementos necessários correspondentes à fantasia. Como
classificação é uma operação lógica que consiste na capacidade de separar
objetos, pessoas, fatos ou ideias em classes ou grupos, tendo por critério
uma ou várias características comuns durante as sessões de brincadeiras
livres, na busca e escolha das fantasias, as crianças do grupo B vivenciaram
bastante essa capacidade.
Outro dado importante foi o registro fotográfico feito por mim durante as
sessões. Esse registro foi adotado nos grupos A e B, porém no grupo A,
como a brincadeira era dirigida, a máquina fotográfica teve participação
secundária, pois o foco da sessão era a brincadeira coordenada pela
pesquisadora. Já no grupo B, muitas vezes, as crianças paravam de brincar
para ver a foto que havia sido tirada, faziam poses para que fossem
fotografadas ou pediam para tirar fotos das outras. Como a máquina era
digital, as crianças podiam ver no mesmo instante a foto que havia sido
tirada ou escolher na tela o que seria fotografado. Existia sempre um
movimento de fazer a pose, olhar a foto, olhar por cima da máquina para
ver o que estava sendo focalizado, voltar ao lugar da pose e assim por
diante. Esse movimento, que também virou uma grande brincadeira, fazia
com que as crianças tivessem a oportunidade de construir hipóteses a
respeito de como sairia a foto, por exemplo, e, ao mesmo tempo, pudessem
confrontá-las com a realidade.
Acredita-se que esses confrontos tenham desenvolvido nas crianças do
grupo B a capacidade de relacionar as perspectivas, que supõe um
relacionamento entre o objeto e o ponto de vista próprio, tornado consciente
de si mesmo, isto é, diferenciado dos outros e coordenado com eles,
capacidade essa que é medida na Prova das Fotografias.
Como todos os grupos apresentaram melhora, poder-se-ia supor que as
brincadeiras livres e dirigidas não teriam, necessariamente, influenciado
essa mudança de progresso nas operações de seriação, classificação e
relacionamento de perspectivas, já que também os níveis do grupo de
controle se modificaram. Com isso, seria possível concluir que as
brincadeiras desenvolvidas fora do ambiente escolar e, principalmente, a
maturação orgânica tivessem influenciado igualmente os três grupos.
Observa-se, porém, que essas alterações de nível dos resultados
obedeceram a uma escala crescente do grupo de controle, para o grupo A e
deste para o grupo B. Com isso, confirma-se a hipótese principal da
pesquisa, que acreditava que a brincadeira livre desenvolveria mais
cognitivamente as crianças que as brincadeiras dirigidas.
Considerando somente as modificações para “mais” nas provas, pode-se
constatar que o grupo B obteve melhores resultados:
Grupo A (brincadeiras Grupo B (brincadeiras
Grupo de controle
dirigidas) livres)

Prova das Fotografias


1 3 6
(técnica 1)

Prova das Fotografias


3 3 8
(técnica 2)

Prova da Seriação
3 3 3
de Bastonetes

Prova das Classes –


2 2 6
Mudança de Critério

30 PIAGET, J. Estudos sociológicos. Rio de Janeiro: Forense, 1973.


31 VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
32 WALLON, H. Origens do pensamento da criança. São Paulo: Manole, 1989.
33 GOULART, I. B. Piaget: experiências básicas para utilização pelo professor. Petrópolis: Vozes,
2001.
34 WEISS, M. L. Psicopedagogia Clínica: uma visão diagnóstica. Porto Alegre: Artes Médicas,
1992.
35 PIAGET, J.; INHELDER, B. Gênese das estruturas lógico-elementares. Petrópolis: Vozes, 1975.
36 DONALDSON, M. A mente da criança. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
37 BERGAMIN, M. D. B.; PRUDENTE, M. L. A. “Espaço físico e espaço social na psicogênese da
sociabilidade”. Arquivos brasileiros de psicologia. Rio de Janeiro, 1987, nº 39, abr./jun. (p.99)
38 SOUZA, Mauricio. Histórias em quadrões com a turma da Mônica. São Paulo: Editora Globo.
s/d.
39 Verificou-se se os k grupos independentes haviam sido extraídos da mesma população.
Determinou-se, então, a mediana comum a todos os escores dos k grupos nas diferentes provas do
pré-teste. Atribuiu-se o sinal positivo (+) aos escores acima da mediana e o sinal negativo (–) aos que
não a excederem. As frequências resultantes foram dispostas em uma tabela. Utilizando-se os dados
da tabela, calcularam-se o X2 e o gl (grau de liberdade), determinando a significância do valor
observado em X2, cuja probabilidade não poderia superar 0,05. Como o valor de pob em todas as
provas é superior ao nível de significância de 0,05, não é possível rejeitar H0. Portanto, os três grupos
não apresentam diferenças no pré-teste.
40 Levou-se em conta os resultados de cada grupo, em cada prova no pré e no pós-teste. Em uma
escala parcialmente ordenada, a informação contida é preservada, e a diferença entre os níveis de
cada criança no pré e no pós-teste é expressa pelo sinal positivo (+), se houve mudança para um nível
mais alto, ou pelo sinal negativo (–), se houve mudança para um nível mais baixo.
Capítulo 5

Interpretação de resultados

Por que, afinal, as brincadeiras livres apresentaram resultados superiores?


Se as brincadeiras dirigidas foram planejadas para desenvolver essas
habilidades que estavam sendo avaliadas nas provas, por que as crianças
submetidas a essas sessões não suplantaram as outras das brincadeiras
livres?
Para analisar esses resultados, recorro aos teóricos que norteiam este
trabalho: Piaget, Vygotsky e Wallon – cada um deles fornecendo subsídios
para orientar a reflexão.
Existem ideias centrais que permeiam as três teorias. A primeira é a visão
interacionista de desenvolvimento, pondo de lado os reducionismos do
inatismo e do ambientalismo. É, portanto, na relação do biológico com o
social que a criança se desenvolve. Um segundo ponto em comum é a ideia
de uma construção progressiva e original do conhecimento. Cada um terá
seu próprio processo de compreensão de mundo. Uma terceira convergência
é o entendimento de que essa construção se dá na relação social em que o
outro tem papel importante. A respeito dessa última convergência, existe
diferença de grau do social para os três teóricos. Segundo Vygotsky e
Wallon, o social assume o lugar central da construção do “eu”. Já para
Piaget, essa socialização dependerá do nível de desenvolvimento em que o
sujeito se encontra. No entanto, essas convergências ainda não esclarecem
totalmente os resultados da pesquisa, pois se aplicam tanto às brincadeiras
dirigidas quanto às livres. É importante, então, que se tenha um olhar em
determinadas especificidades de cada teoria.
Para Piaget,41 o ser humano, desde seu nascimento, encontra-se submerso
em um meio social que atua sobre ele e fornece um sistema de signos que
modifica seu pensamento, propõe valores novos e impõe obrigações. A vida
social, portanto, transforma a inteligência pelo conteúdo das trocas e pelas
regras impostas ao pensamento, mas o desenvolvimento cognitivo que se dá
na interação do sujeito com o objeto e está contido nesse meio social vai
acontecer de acordo com as possibilidades de socialização de cada um. Para
ele:
“O homem normal não é social da mesma maneira aos 6 meses ou aos 20 anos, e, por conseguinte,
sua individualidade não pode ser da mesma qualidade nesses dois diferentes níveis.”

O grau de socialização dependerá da qualidade das trocas intelectuais


existentes na relação. Esse grau será ótimo quando a troca atingir um
equilíbrio. As diversas etapas que definem qualidades do “ser social”
acompanham os estágios do desenvolvimento cognitivo. A lógica
representa, para Piaget, a forma final do equilíbrio das ações; ela é “um
sistema de operações, isto é, de ações que se tornaram reversíveis e
passíveis de serem compostas entre si”. Essa “marcha para o equilíbrio”
tem suas raízes com a construção de esquemas sensório-motores que são
preconceitos, estruturas de ação voltadas para o exterior, as quais só entram
em jogo no momento de sua utilização.
Quando a criança forma os conceitos, isto é, os objetos de pensamento, a
presença concreta dos objetos é dispensada, havendo, então, liberação do
indivíduo das situações próximas e atuais.
As operações mentais têm o papel de permitir um conhecimento objetivo
dos diversos elementos presentes na natureza e na cultura, fazendo com que
a inteligência chegue à coerência e à objetividade. Tanto a busca do
conhecimento como da coerência são necessidades que aparecem nas
relações sociais. Para Piaget, são dois os tipos de relações sociais: coação e
cooperação, e suas diferenças serão responsáveis por um maior ou menor
desenvolvimento cognitivo.
Segundo Piaget, “chamamos de coação social toda relação entre dois ou
‘n’ indivíduos, na qual intervém um elemento de autoridade ou prestígio”.
O sujeito tem pouca participação racional na produção, conservação e
divulgação das ideias. Como na coação não há diálogo, já que o indivíduo
se limita a aceitar as “verdades” impostas, não há necessidade de
descentrar-se. Portanto, o egocentrismo é reforçado, e as relações sociais
são empobrecidas, impossibilitando o desenvolvimento das operações
mentais. Já a cooperação possibilitará o progresso porque pressupõe a
coordenação das operações de dois ou mais sujeitos por meio de discussões
e trocas. Representa, então, o mais alto nível de socialização.
No desenvolvimento da criança, em virtude de assimetria da relação com
o adulto, a coação representa uma etapa obrigatória e necessária para a
socialização. Todavia, é necessário buscar a cooperação para que as
operações mentais possam ser construídas. Segundo Piaget, ela tem início
nas interações das crianças com seus pares, já que não há hierarquias
preestabelecidas. La Taille42 afirma: “Naturalmente, uma vez ‘iniciada’ a
cooperação por sua convivência com iguais, a criança tenderá a exigir cada
vez mais e de todos que se relacionam com ela dessa forma.”
Com base nas noções de coação e cooperação, e em suas implicações no
desenvolvimento cognitivo, pode-se traçar um paralelo entre a brincadeira
dirigida e a livre e os resultados da pesquisa. Acreditando-se que a
brincadeira livre proporciona às crianças a autonomia da escolha, nessas
situações, o diálogo será estimulado, e os pontos de vista serão
confrontados. Esses embates, sem a coação do adulto, passam a ser um
campo fértil para a construção do “eu” social e da descentração para as
descobertas de estratégias de ação perante o outro e, consequentemente,
para o desenvolvimento cognitivo.
Entre as ideias centrais da teoria de Vygotsky,43 existe a de que nosso
cérebro é um sistema aberto com grande plasticidade e que as funções
psicológicas têm suporte biológico e se desenvolvem na cultura.
Graças a essa plasticidade, pode-se dizer que há dois tipos fundamentais
de conduta humana: uma atividade reprodutora, em estreita relação com a
memória, e uma atividade criadora e combinatória, em estreita relação com
a imaginação. Ainda segundo Vygotsky,44 a relação entre a brincadeira e o
desenvolvimento cognitivo na criança é a mesma entre a brincadeira e a
atividade combinatória do cérebro. No brincar, a criança, por meio da
imaginação, opera em um nível que não é o da realidade imediata,
colocando em ação os processos de criação. De acordo com o autor:
Todos conhecemos o grande papel que, nos jogos da criança, desempenha a imitação. Com muita
frequência, esses jogos são apenas um eco do que as crianças viram e escutaram dos adultos, não
obstante esses elementos da sua experiência anterior nunca se reproduzirem no jogo de forma
absolutamente igual e como acontecem na realidade. O jogo da criança não é uma recordação
simples do vivido, mas, sim, a transformação criadora das impressões para a formação de uma
nova realidade que responda às exigências e inclinações da própria criança.

O progresso das funções psicológicas na cultura depende


fundamentalmente da palavra e da interação verbal. A palavra tem o poder
de regular e de conferir um caráter mediador à relação entre as pessoas. As
interações verbais internalizam-se, isto é, são reconstruídas no plano
individual, transformando-se nas funções psicológicas e criando a base para
a estrutura social da personalidade. Nesse sentido, Vygotsky afirma que
“nos tornamos nós mesmos por meio dos outros” e que “eu sou uma relação
social de mim comigo mesmo”.
No processo criativo da brincadeira, a relação com o outro aparece como
mediadora entre a libertação e as regras da realidade. Por meio das
interações, as crianças vão reelaborar experiências, combinando e criando
novas realidades, de acordo com necessidades e preferências.
Experimentando os lugares dos outros da cultura, “eus” e “outros” se
misturam e se distinguem na brincadeira. Para Góes,45 os modelos sociais
aparecem e são ressignificados:
... o brincar de ser e recriar os outros da cultura consiste num intenso trabalho de diferenciação e
identificação entre o eu e o outro; um trabalho em que, naturalmente, a criança não está agindo
com esse intuito, de forma deliberada ou reflexiva...

A imaginação e a criação estarão mais presentes nas brincadeiras na


medida em que estas ocuparem o lugar da iniciativa e da vontade de cada
criança. Para Kishimoto,46 “toda criação é a ordenação de uma ideia, de um
sentimento, expressão do diálogo entre o homem e o mundo que o rodeia”.
Como a cooperação na teoria de Piaget, a imaginação e a criação na teoria
de Vygotsky privilegiam o diálogo como propulsor do crescimento. Nas
brincadeiras livres, esse espaço de diálogo é mais abrangente, uma vez que
a tomada de decisão da escolha da brincadeira requer aceitações e negações
estrategicamente negociadas. Essas situações já não ocorrem nas
brincadeiras dirigidas, pois, sob o comando do adulto, a única escolha das
crianças é fazer o proposto. Mais uma vez, aqui, a brincadeira livre
permitirá à criança viver uma nova dimensão do real, abrindo espaço para
que o universo simbólico enriqueça as relações entre fantasia e realidade,
possibilitando, assim, a interiorização do mundo.
Wallon47 considera o desenvolvimento tendo a motricidade como o grande
eixo associado à afetividade e à inteligência. O ato motor faz com que a
criança comece a atuar sobre o mundo social. A motricidade expressiva da
mímica do bebê é ineficaz para modificar o ambiente físico, mas atua, de
maneira decisiva, sobre o ambiente social. Pode-se dizer que são as
primeiras expressões da criança atuando sobre o outro, e esse “outro” estará
presente em todas as suas descobertas. Não é à toa que Wallon afirma que o
ser humano é organicamente social, já que sua estrutura orgânica supõe a
intervenção da cultura para se atualizar.
A primeira “função” da criança em seu caminho de crescimento é,
exatamente, saber-se indivíduo, construir seu “eu”, separar-se desse “outro”
que se mistura a ela no início da vida.
O conceito de diferenciação é central na obra de Wallon. O progresso da
pessoa completa se dá no caminhar do sincretismo em direção à
diferenciação. Sobre essa questão, Mahoney48 nos diz que “desenvolver-se é
ser capaz de responder com reações cada vez mais específicas a situações
cada vez mais variadas”.
É esse ponto da teoria de Wallon que iluminará o entendimento dos
resultados deste livro. Brincadeira livre e processo de diferenciação: Em
que um pode influenciar o outro? Para responder a essa pergunta, é
necessário “começar do início”.
A simbiose respiratória do feto se transforma em simbiose alimentar no
recém-nascido e, por volta dos 3 meses, em simbiose afetiva, característica
específica da espécie humana. A afetividade é, portanto, a fase mais arcaica
do desenvolvimento. Dela diferenciou-se, lentamente, a vida racional.
Desse modo, no início, afetividade e inteligência estão sincreticamente
misturadas. Com isso, as conquistas de cada um desses planos influenciam
diretamente o outro, existindo um grau de dependência entre eles.
No início, a afetividade reduz-se às suas manifestações somáticas; é pura
emoção. Nesse período, as trocas afetivas dependem da presença concreta
dos parceiros. Depois que a inteligência constrói o papel simbólico, a
comunicação se torna mais abrangente, instalando-se uma forma cognitiva
de vinculação afetiva. Com isso, pode-se falar de uma comunicação afetiva
que possibilitaria a construção de competências cognitivas.
As funções afetivas e cognitivas se alternam ao longo de todo o
desenvolvimento. Na predominância afetiva, está em primeiro plano a
construção do “eu”, que se dá na interação com os outros. Na
predominância cognitiva, a ênfase está no conhecimento do objeto, do
mundo exterior, por meio das técnicas elaboradas pela cultura – é a lei da
sucessão da preponderância funcional.
Dessa forma, nesse caminho da diferenciação e da individuação, a
socialização está sempre presente. A história do progresso do indivíduo está
vinculada ao outro ou a seu produto pela cultura, seja pelo afetivo, seja pelo
cognitivo.
Ao longo desse crescimento, há uma série de necessidades a serem
atendidas. A satisfação das necessidades orgânicas e afetivas, a
oportunidade para manipular a realidade, a estimulação da função simbólica
e a construção de si mesmo são algumas delas. Sabe-se que, quando a
criança supera o sincretismo da pessoa, ela está pronta para a superação
gradual do sincretismo do pensamento. Pode-se concluir, então, que o
desenvolvimento da inteligência está condicionado à evolução da pessoa.
Esse é, portanto, o ponto em que a brincadeira livre demonstra seu papel.
Sendo um espaço que permite que todos os tipos de manifestações
expressivas aconteçam, possibilita, simultaneamente, a construção do “eu”
e o conhecimento do mundo. É um espaço privilegiado de crescimento das
dimensões motora, afetiva e cognitiva, suscetível à ideia de inacabamento,
na medida em que disponibiliza para a criança a oportunidade de constantes
reconstruções. A liberdade de ação e de escolha da atividade possibilita o
confronto e a interação.
O ponto mais importante do papel da brincadeira livre no
desenvolvimento cognitivo da criança é seu aspecto não linear, em que
começo e fim se alternam dialeticamente. Esse processo faz com que sejam
possíveis eventuais voltas ao sincretismo, permitindo, assim, o
aparecimento de ideias novas e originais, ou seja, deflagrando o processo
criador.
Como afirma La Taille:
... o desenvolvimento representa também perda ou atrofia de possibilidades, que precisam ser
recuperadas e resgatadas. Essa noção, compatível com concepções paradoxais, não lineares, de
desenvolvimento, está implícita no alerta feito por Wallon em relação ao sincretismo: é preciso ser
capaz de preservá-lo, tanto quanto discipliná-lo, uma vez que dele depende a possibilidade de
combinações inteiramente novas e originais de ideias. Nele está a raiz do pensamento criador.

41 PIAGET, J. Estudos sociológicos. Rio de Janeiro: Forense, 1973. (p. 242)


42 LA TAILLE, Yves de et al. Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São
Paulo: Summus, 1992. (p. 44)
43 VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. (p. 12)
44 . _______. Imaginación y el arte en la infancia. México: Hispanicas, 1999. (p. 67)
45 GÓES, M. C. R. de. “A formação do indivíduo nas relações sociais: contribuições teóricas de Lev
Vygotsky e Pierre Janet”. In: Educação e Sociedade. Campinas: 2000, julho, v. 21 nº 71. (p. 127)
46 KISHIMOTO, T. M. (org). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 2000.
(p. 53)
47 WALLON, H. Origens do pensamento da criança. São Paulo: Manole, 1989.
48 MAHONEY, A. A. Henri Wallon: Psicologia e educação. São Paulo: Loyola, 2000. (p. 14)
Conclusões e sugestões

“De tudo ficaram três coisas:


A certeza de que estamos sempre começando... A certeza de que precisamos continuar...
A certeza de que seremos interrompidos antes de continuar... Portanto, devemos...
Fazer da interrupção, um caminho novo...”

Fernando Sabino
O encontro marcado
Inicio este capítulo com um trecho do poema de Fernando Sabino. A
poesia nos revela o caráter transitório e inconstante da vida, assim como o
da pesquisa; ainda mais quando esta se refere à diversidade e à contradição
inerente às ciências humanas. Por isso, este capítulo não tem (nem poderia
ter) um título fechado.
“A certeza de que estamos sempre começando...”

Automaticamente, toda hipótese verificada e confirmada passa a ser não


uma verdade absoluta, mas um espaço rico em questionamentos e buscas,
dando origem a futuras investigações. E é com esse espírito de
inacabamento e o desejo de trazer para o diálogo outros interlocutores que
esse trabalho se inicia agora...
“A certeza de que precisamos continuar...”

A preocupação com a criança na faixa etária entre 0 e 6 anos é recente.


Até muito pouco tempo (e ainda hoje), a criança era (é) vista como um ser
em falta. A desvalorização de tudo que vinha ou ia para ela fez com que
pesquisadores e educadores concentrassem seus estudos em crianças de
idade mais avançada, capazes de compreensões e respostas mais adequadas
às expectativas adultocêntricas. Hoje em dia, as pesquisas que tratam as
crianças como cidadãs de pouca idade e buscam práticas educativas que
respeitem suas especificidades começam a aparecer e a se multiplicar. A
desconstrução de uma ideia de miniadulto é um caminho longo, mas o
movimento já começou. Esta obra se pautou em uma concepção de criança
contextualizada histórica, social e culturalmente, que tem seu crescimento
marcado pela não linearidade, apostando sempre na construção de uma
educação infantil mais criativa.
O objetivo aqui foi verificar a influência das brincadeiras no
desenvolvimento cognitivo, tomando-se como referência as que acontecem
dentro do universo escolar. De acordo com as práticas educacionais,
observam-se duas maneiras de se promover tais atividades lúdicas: a
brincadeira dirigida pela professora, com o intuito de desenvolver
determinadas habilidades, e a brincadeira livre, que possibilita a criança
exercer seu desejo e sua decisão.
Partindo do mesmo pressuposto teórico que conclama a importância do espaço de brincar, diversas
instituições, especialmente, de educação infantil, têm trazido a brincadeira para o seu interior, mas
dando a ela um caráter pedagógico, isto é, o brincar a serviço do desenvolvimento motor, da
linguagem, da matemática etc.49

Dentro dessa perspectiva, construções e desconstruções se fizeram


presentes. Foi necessário buscar ideias de alguns teóricos acerca da
brincadeira que, por meio dos diferentes aspectos considerados,
iluminassem as definições atuais. Froebel, por exemplo, considerava o
aspecto educacional da brincadeira, sendo esta uma atividade inata. Piaget
abordava o aspecto biológico, destacando a influência dos jogos na
articulação dos mecanismos mentais e considerando o brincar um aspecto
de todo o comportamento, estando implícito na assimilação que o indivíduo
realiza em relação à realidade. Vygotsky e Wallon apontavam para o
aspecto social da brincadeira, acreditando que esta traz vantagens sociais,
cognitivas e afetivas. Brougère, concordando com os dois anteriores, amplia
essa visão, depositando no cultural toda a ênfase do brincar, pois, para ele, a
cultura preexiste e define o jogo.
Mesmo sabendo que qualquer tipo de brincadeira, para Guimarães e
Leite,50 “se apresenta como terreno fértil para desenvolver os processos
cognitivos e, sobretudo estéticos, éticos e sociais do sujeito-criança”, os
resultados da pesquisa apontaram que a brincadeira livre desenvolve mais o
cognitivo do que a dirigida. Independentemente das interpretações dos
resultados apresentados no Capítulo 5, essa constatação vai de encontro a
várias crenças existentes nas práticas da Educação Infantil, que foram
incorporadas com base em modelos tecnicistas, nos quais o controle é
imprescindível.
Respeitando a ideia positivista da ciência, a pesquisa utilizou instrumentos
precisos e tratamentos estatísticos que atribuem validade aos resultados.
Entretanto, esses mesmos resultados confirmam a relevância da liberdade
criadora em oposição à funcionalidade na construção cognitiva.
... (na escola) parte-se do que o aluno traz, esperando-se que isso tenha uma aplicabilidade, uma
funcionalidade. Como se o conhecimento só fizesse sentido, só fosse relevante, se tivesse uma
utilidade pública. E essa é uma concepção que precisa ser problematizada. Não se vai à escola só
para se lidar com o que é funcional. Isso é redutor. Vai-se à escola também para aprender a pensar,
a lidar com coisas que não vão ter uso imediato. É o caso das Artes, por exemplo, que têm a ver
com a beleza, com estética, com desfrutar de algo que não serviria, concretamente, para nada...51

Na perspectiva sócio-histórica e antropológica, a brincadeira é um tipo de


atividade cuja base genética é comum à da arte. É uma atividade social e
humana que supõe contextos socioculturais, “a partir dos quais a criança
recria a realidade por meio da utilização de sistemas simbólicos próprios”,
como afirma Wajskop.52 E é nesse contexto que a brincadeira livre é
entendida.
“A certeza de que seremos interrompidos antes de continuar...”

Brincadeira livre e arte: dois produtos da atividade humana, duas práticas


sociais que têm a emoção e a imaginação como propulsoras da criação.
Dois terrenos desconhecidos que fogem da lógica premonitória do adulto.
Kramer,53 tendo Vygotsky como interlocutor, fala sobre arte e vida.
E que relações existem entre a reação estética e as demais reações do homem? Como se relacionam
arte e vida? Numa complexidade de inter-relações, diz Vygotsky, pois a arte pode criar uma imensa
necessidade de atuar. Dependendo daquilo que libere ou reprima, ela pode nos impulsionar a
aspirar além da nossa vida. Surgindo da vida e para ela se dirigindo, o papel da arte é, pois,
fundamental como atitude dialética de edificação da vida.
A brincadeira livre pode ser entendida por esse mesmo prisma. A criação
impulsiona o inusitado, desenvolvendo-o, fazendo com que surja, também
da vida, a aprendizagem social. A brincadeira livre se dirige e se refere a
essa aprendizagem, na medida em que a criança aproveita situações do
cotidiano para relê-las segundo suas próprias lentes.
Para os que acreditam que essa visão poética e arrebatadora da arte e da
brincadeira livre carece de cientificação, acrescentam-se os estudos de
Lima54 sobre o desenvolvimento do cérebro de crianças na faixa etária entre
0 e 6 anos:
A partir do nascimento vão se ativando determinadas áreas do cérebro, de forma que já no terceiro
ano de vida a configuração do cérebro da criança está muito próxima à do cérebro adulto quanto às
várias partes ativas... Ao final do terceiro ano de vida, com o domínio do corpo, autônoma na
locomoção e com as bases da fala formadas, a criança inicia um período em que a “preocupação
principal” será mesmo “absorver” o mundo. Há um componente biológico muito importante aí: no
cérebro de uma criança neste período circula o dobro de glicose, se comparado ao cérebro de um
adulto. Ou seja, biologicamente, ela está “pronta e disponível” para aprender muito e se expressar
de várias formas.

Complementando as informações sobre o desenvolvimento do cérebro da


criança, Lima chama a atenção para o papel das brincadeiras:
... várias atividades da vida cotidiana, como brincar, fazer experiências movidas pela curiosidade,
ouvir música, participar de práticas culturais várias têm um profundo sentido educativo, pois elas
levam ao desenvolvimento das “redes neuronais” de grande resiliência que poderão ser acionadas
em aprendizagens posteriores, incluindo as escolares.
“Fazer da interrupção, um caminho novo...”

Na escola de hoje, algumas práticas ancestrais são repetidas por absoluta


falta de questionamento. Uma herança da educação bancária, como diria
Paulo Freire, imobilizou os sonhos e cristalizou os medos. Não se ousa
ousar! Com isso, a Educação Infantil, impregnada de práticas
compensatórias, repete, pacientemente, as receitas de preparação para o
futuro.
Mais uma vez, ouvindo o poeta, que se façam caminhos novos, passos de
dança e escadas que levem a novas construções, as quais possibilitem às
crianças cidadãs exercitarem sua liberdade criadora.
O convite para a mudança não tem um caráter avassalador, colocando por
terra todas as práticas antigas. Não é preciso “jogar fora o bebê junto com a
água do banho”, como bem alertou Kramer.55 Segundo Benjamim,56 na
concepção dialética de desenvolvimento, a previsibilidade dá lugar à
criação, e passado, presente e futuro estão interligados e presentes no aqui e
agora. O que se deve desconstruir é a ideia linear de história que impede
ousar. Como a criança é alguém hoje, todas as práticas relacionadas a ela
deverão privilegiar esse presente, valorizando a cultura e a linguagem
produzidas por ela. No entanto, como passado, presente e futuro estão nessa
dinâmica dialética, na construção da cultura e da linguagem hoje estarão
presentes todos os elementos da história (passado) e do sonho (futuro).
A mudança, então, está em duas dimensões: na postura do professor
diante do desenvolvimento cognitivo da criança de hoje e no papel do
adulto perante a brincadeira.
Na contemporaneidade, não cabe mais o aprisionamento do
desenvolvimento em escalas, ideias de prontidão ou pré-requisitos. Essa
ideia reducionista rouba da criança as oportunidades de novas descobertas
ou a congela em determinado momento de vida, do qual só sairá quando o
saber adultocêntrico assim o determinar.
O papel do adulto é muito mais rico e dinâmico do que o de mero
observador de um determinismo biológico e/ou social. A ele compete
ampliar o universo de conhecimentos e experiências da criança,
apresentando, mediante possibilidades de exploração, todo um acervo
cultural de conhecimentos produzidos pela humanidade, dando a ela a
possibilidade de brincar, criar e transformar o real.
Sujeitos treinados, repetidores e passivos terão mais dificuldade de lidar
com a imprevisibilidade do sonho. Sujeitos estáticos, simples observadores
entusiasmados do futuro e vazios de história não terão ponto de partida para
a transformação.
Para os que veem a liberdade da criança nas brincadeiras como algo
desordenado e fora de controle, Leite lembra que:
A brincadeira ajuda a organizar as ações e a realinhar o real. Defendo o direito a brincadeiras sem
amarras, sem pedagogização – o que não quer dizer sem regras. Pontuo que, se de um lado os
jogos já congregam sua regras preestabelecidas, inversamente, nas brincadeiras, as regras são
construídas à medida que se desenrolam, de forma flexível e passageira, por aqueles que brincam.

Fica, assim, o convite para novas pesquisas e para a construção de novas


práticas na Educação Infantil, e para que não se esqueça da necessidade de
transformação dessa pobre postura adultocêntrica que, muitas vezes, limita
e reduz a riqueza e a força da criança. Fecha este trabalho um trecho da
poesia escrita pelo secretário de Educação da cidade italiana de Reggio
Emilia, Loris Malaguzzi:
Ao contrário, as cem existem
A criança é feita de cem. A criança tem cem mãos Cem pensamentos
Cem modos de pensar, de jogar de falar.
Cem sempre cem modos de escutar, de maravilhar de amar.

49 LEITE, M. I. “Brincadeiras de menina na escola e na rua: reflexões da pesquisa no campo”. In:


Cadernos Cedes, São Paulo, 2002, nº 56, abril. (p. 75)
50 GUIMARÃES, D.; LEITE, M. I. “Pensando a educação (infantil) a partir de autores italianos:
uma resenha crítica da bibliografia traduzida para o português”. In: Caderno do Departamento de
Educação PUC-Rio, 1999, nº 43, maio. (p. 19)
51 COLINVAUX, Dominique. “Caderno de Empregos”, Jornal do Brasil, 29 de outubro de 2000.
52 WAJSKOP, G. Brincar na pré-escola. São Paulo: Cortez, 1999.
53 KRAMER, S. Por entre as pedras: arma e sonho na escola. São Paulo: Ática, 1998.
54 LIMA, E. S. Como a criança pequena se desenvolve. São Paulo: Sobradinho, 2001. (p. 9)
55 KRAMER, S. Alfabetização, leitura e escrita: formação de professores em curso. Rio de Janeiro:
Papéis e Cópias da Escola de Professores, 1995. (p. 90)
56 BENJAMIN, W. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1985.
Anexo 1

Prova da Seriação
57
de Bastonetes

Material
Uma série de dez bastonetes graduados de 16cm a 10cm com diferença de
0,6cm entre eles – um anteparo de papelão.

Objetivo
Avaliar a capacidade de seriação.

Desenvolvimento
O examinador oferece à criança os dez bastonetes fora de ordem para que
ela tome conhecimento do material.
Seriação a descoberto: “Você vai fazer uma escadinha com todos esses
bastonetes, ordenando-os do menor para o maior.” Se a criança não
conseguir, o examinador pode, eventualmente, demonstrar uma série inicial
com três bastonetes.

Registro
Anotar todo o processo de realização: as respostas, a ordem e a forma
como cada criança faz cada escolha, bem como a configuração final.

Procedimentos avaliativos
Ausência de seriação – Nível 1
A criança fracassa em suas tentativas de ordenar:
Ausência de séries – a criança não entende a proposta e coloca os
bastonetes em qualquer ordem.
Esboço de série – a criança faz diversas tentativas (pares, séries de três ou
quatro bastonetes), mas não coordena as séries entre si ou não consegue
intercalar os outros bastonetes.
A criança faz uma escada sem considerar o tamanho dos bastonetes, mas
só a arrumação da parte superior imitando uma escadinha.
Conduta intermediária – Nível 2
A criança vai compondo a série por ensaio e erro; compara cada bastonete
a todos os demais. É uma seriação intuitiva por regulações sucessivas.
Êxito obtido por método operatório – Nível 3
A criança antecipa a escada, fazendo metodicamente sua construção.
Nesse nível, realiza com êxito a verificação de exclusão e a seriação oculta.

57 WEISS, M. L. L. Psicopedagogia Clínica: uma visão diagnóstica dos problemas de


aprendizagem escolar. Rio de Janeiro: DP&A, 2000
Anexo II

Prova das Classes –


58
Mudança de Critério

Material
Figuras geométricas recortadas em papelão colorido ou fichas de plástico
do tipo utilizado em jogos:
três círculos pequenos (com 12,5cm de diâmetro) vermelhos e três
azuis;
três círculos grandes (com 25cm de diâmetro) vermelhos e três azuis;
três quadrados pequenos (com 12,5cm) vermelhos e três azuis;
três quadrados grandes (com 25cm) vermelhos e três azuis.

Objetivo
Avaliar a capacidade de classificar objetos.

Desenvolvimento
O examinador dispõe as fichas fora de ordem sobre a mesa e solicita que a
criança as descreva: “Você pode me dizer o que está vendo?”
1. Classificação espontânea: “Você pode pôr juntas todas as fichas que
combinam?” “Ponha juntas todas que são iguais...” “Ponha juntas as que
têm algo igual... as que se parecem muito.” Após a criança terminar, diga:
“Você pode me explicar por que as colocou assim?”
2. Dicotomia: “Agora gostaria que você fizesse apenas dois grupos (ou
dois montinhos ou duas famílias) e os colocasse nestas duas caixas (ou
nesta tampa dividida).” Após o término, pergunte: “Por que você colocou
todas estas fichas juntas? E aquelas? Como a gente poderia chamar este
monte aqui? E aquele outro?”
3. Primeira mudança de critério: “Será que você poderia arrumar em
dois grupos (montes) diferentes?” Se a criança repetir o primeiro critério:
“Você já separou desse modo. Você pode descobrir outro modo (critério) de
separar em dois grupos?” Se for preciso, o próprio examinador inicia uma
nova classificação e pede para a criança continuar. Procede-se em seguida,
como no item 2 anterior.
4. Segunda mudança de critério: “Será que você ainda poderia separar
de um modo diferente, fazendo dois grupos novos?” Procede-se em seguida
como nos itens 2 e 3 anteriores.

Procedimentos avaliativos
Coleções figurais – Nível 1
As crianças arrumam as fichas, estruturando figuras de trem, casa, boneca
etc. Podem também arrumar as fichas que tenham alguma semelhança,
mudando sempre o critério e não utilizando todas.
Início de classificação – Nível 2
As crianças conseguem fazer pequenos grupos não figurais, segundo
diferentes critérios, mas que são coleções justapostas, sem ligação entre si:
é o “monte” das bolas vermelhas grandes, das bolas pequenas vermelhas,
dos quadrados vermelhos etc. Em um grau maior de progresso, as crianças
podem conseguir um começo de reagrupamento dos subgrupos em classes
gerais, sem alcançar uma antecipação de critérios.
Dicotomia segundo os dois critérios – Nível 3
As crianças iniciam a tarefa já antecipando as possibilidades. Elas
conseguem fazer e recapitular corretamente duas dicotomias sucessivas,
segundo dois critérios. O terceiro critério só é descoberto com a incitação
do examinador.
Dicotomia segundo os três critérios – Nível 4
Em um grau maior de progresso, os três critérios são antecipados e
utilizados espontaneamente.

58 WEISS, M. L. L. Psicopedagogia Clínica: uma visão diagnóstica dos problemas de


aprendizagem escolar. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
Anexo III

Zeca Tá na Hora na
floresta dos diferentes

Gostaria de apresentar a vocês um menino. Ele não é só um menino; ele é


uma misturada de coisas que só vendo. Ele tem cara de menino, perna de
menino, braço de menino e até bumbum de menino, mas lá dentro, bem no
fundo do seu coração, ele é um relógio despertador, um baú de surpresas,
um aspirador de novidades. Como ele é muito curioso, quer sempre saber
mais e mais e não para nunca. De tudo que ele ouve, aprende alguma coisa,
e tudo que ele vê de interessante, tira uma fotografia para depois ficar
recordando aquele momento. Até quando está dormindo, ele sonha com
aventuras, passeia em terras desconhecidas, aprende lições com pessoas
diferentes, tira fotografias e sempre acorda com aquela vontade de quero
mais.
E é claro que ele sempre se mete em muitas confusões. Quando o seu
nariz fareja alguma novidade, o despertador dentro dele toca, ele pega a
máquina fotográfica e vai atrás para ver. Por isso, todos o chamam de Zeca
Tá na Hora. E foi numa dessas vezes que ele foi parar numa floresta muito
diferente.
Um dia, saiu para passear de bicicleta e, quando percebeu, já estava muito
longe de casa. Ele não estava perdido, mas, para aquelas bandas, nunca
tinha ido. De repente, ele vê um portão enorme com uma tabuleta escrito:
proibida a entrada de gente. Ele chegou perto do portão e olhou no buraco
da fechadura. Existia uma floresta cheia de plantas, flores, animais, árvores
enormes e muita luz. Era uma coisa linda!
Zeca ficou quase maluco pensando se entrava ou não. Claro que ele
deveria respeitar o que dizia a tabuleta, mas, ao mesmo tempo, ele estava
morrendo de curiosidade para saber por que gente não podia entrar.
E foi com a cabeça cheia de perguntas sem respostas que Zeca foi
entrando devagarzinho na floresta.
Logo de saída, ele avistou um jardim com muitas flores coloridas que
ficava ao lado de uma árvore enorme e de um lindo lago cheio de patinhos.
Zeca pegou alguns galhos do chão, se escondeu neles e foi se aproximando.
De repente, ele começou a ouvir vozes, que estavam conversando muito
animadamente, e todos pareciam muito felizes. Qual não foi a surpresa de
Zeca quando percebeu que quem estava falando eram as flores,
conversando com os patinhos e a enorme árvore.
Mais uma vez, o despertador de Zeca tocou! Isso era realmente uma coisa
superdiferente e, com certeza, ele teria mil coisas novas a conhecer e
fotografar.
A felicidade do Zeca foi tanta que gritou: OBA!!!
Com o barulho, as flores, os patinhos e a enorme árvore se viraram e
viram aquele menino segurando uns galhos com cara de pastel...
Um patinho perguntou:
Que espécie de animal é você?
Mas a enorme árvore, que era mais velha e conhecia mais coisas, logo
disse:
Isso é gente!!!!! Chamem logo Dona Coruja e Seu Jequitibá.
Dona Coruja chegou primeiro, porque veio voando, e Seu Jequitibá,
arrastando aquele tronco enorme com tantos anos de experiência, chegou
um pouco depois. Eles eram os moradores mais respeitados da floresta
porque eram mais velhos, logo, eram mais sábios e justos.
Depois de confabularem entre si, olharam bem nos olhos do Zeca e
perguntaram:
O que você veio fazer aqui? Por acaso não leu a tabuleta?
Claro que sim – respondeu Zeca (educadamente e um pouco
envergonhado por ter desobedecido à tabuleta) –, e peço desculpas por ter
entrado, mas eu precisava saber por que uma floresta tão bonita e com tanta
luz não quer saber de gente.
Dona Coruja, então, pacientemente, começou a contar uma história ao
Zeca.
Há muito tempo, essa floresta era habitada por muita gente. Todos eram felizes e muito amigos. Os
dias se passavam tranquilamente; uns ajudavam os outros.
Certo dia, no meio daquela felicidade toda, ouviu-se uma discussão:
– Sai para lá, seu bicho feio! Não quero você perto de mim. Só brinco com meus amigos, aqueles
que são iguaizinhos a mim.
– Sai você, Zé Mané, vê se larga do meu pé!
Todos ficaram muito assustados, primeiro, porque não sabiam quem estava falando, mas,
principalmente, porque nessa floresta não existiam brigas.
– Como isso estava acontecendo? –, perguntou Dona Coruja ao seu Jequitibá (que desde aquela
época já eram moradores respeitados).
Dona Coruja saiu voando na direção das vozes. Lá de cima, ela pôde ver como todos da floresta
estavam assustados com aquela gritaria.
As vozes foram ficando cada vez mais perto, mais perto, mais perto até que, de repente, Dona
Coruja avistou os dois brigões.
Eram dois meninos – o Tito e o Marcelo. Eles estavam na beira do lago berrando que não queriam
mais ser amigos.
Eles já estavam quase chegando aos socos quando Dona Coruja falou:
– Vamos já parar com essa briga! Todos da floresta estão assustados e sem entender o que está
acontecendo.
Os dois levaram um susto enorme e ficaram parados olhando para a Dona Coruja (que, como eu já
disse, era muito respeitada por todos, não só por ser mais velha, mas por ser muito inteligente e
sábia).
Dona Coruja aproveitou a atenção dos dois e continuou falando:
Quero uma explicação agora para isso que aconteceu.
Tito e Marcelo começaram a falar ao mesmo tempo.
– Não sou mais amigo dele, ele é diferente, ele faz tudo errado, eu faço muito melhor, eu sou... blá
blá blá...
Era tanta gritaria e tanta confusão que as outras pessoas da floresta foram chegando perto para ver
e, de repente, estava todo mundo brigando. Um porque era mais magro que o outro, outro porque
era mais baixo, mais branco, tinha os olhos azuis, tinha barba etc. Enfim, todos brigavam porque
cada um era diferente do outro.
Para encurtar a conversa, todos foram brigando, brigando, se embolando, se esbarrando, se
estranhando, se afastando, se cutucando, até saírem todos da floresta.

Dona Coruja olhou para Zeca, respirou fundo e finalizou:


– Desde então, nós, os animais e as plantas da floresta, resolvemos proibir a entrada de gente.
Aqui, todos se aceitam, se respeitam e se curtem. E olha que todos são diferentes. O que você me
diz da diferença do hipopótamo e da florzinha? Pois todos os dias o hipopótamo vai visitar sua
amiguinha, e eles batem longos papos. Isso também acontece com o sapo e a mangueira, a
montanha e o rio, a arara e a aranha e assim por diante.

Zeca estava maravilhado. Era assim que ele pensava também. Afinal, não
era à toa que ele era o Zeca Tá na Hora, aspirador e fotógrafo de novidades.
E onde tem mais novidades do que nas coisas diferentes?
Zeca agradeceu muito à Dona Coruja, ao Seu Jequitibá e aos outros
moradores da floresta e disse que precisava ir andando, pois já estava
ficando tarde. Mas prometeu que iria contar para toda gente essa história,
para que todo mundo pudesse entender como é superlegal conhecer,
respeitar e aprender com pessoas, animais e coisas que não são iguaizinhas
a nós. Mas, antes de sair, pediu para fotografar aquela floresta tão linda.
Dona Coruja e Seu Jequitibá consentiram, e Zeca começou a andar ao redor
da floresta, registrando as coisas diferentes que se davam tão bem.
Denise Pozas
Bibliografia

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Fundamental. Referencial curricular nacional para a educação infantil.
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WALLON, H. Psicologia e educação da criança. Lisboa: Veja, 1979.
Sobre a autora

Denise Pozas, psicóloga e mestre em Psicologia Social pela Universidade


Gama Filho, nasceu no Rio de Janeiro. Especialista em Educação Infantil
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), é
também pós-graduada em Psicopedagogia pela Universidade Estácio de Sá,
onde lecionou no curso de Pedagogia. Denise também ministrou aulas nos
cursos de Biologia, Matemática e Educação Física na Universidade Gama
Filho e ampliou seu campo de atuação para a Educação Corporativa e
Educação a Distância. Foi gerente de Educação Corporativa e
Sustentabilidade no Senac Rio de Janeiro e, atualmente, é coordenadora dos
cursos abertos da FGV Online.
A Editora Senac Rio de Janeiro publica livros nas áreas de
administração e negócios, beleza e estética, ciências humanas,
comunicação e artes, desenvolvimento social, design, educação,
turismo e hotelaria, gastronomia e enologia, informática,
meio ambiente, moda e saúde.

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