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UMA ANÁLISE DA TEORIA CRIMINOLÓGICA DA SUBCULTURA

DELINQUENTE NO CONTEXTO DE ADOLESCENTES AUTORES DE ATOS


INFRACIONAIS

Joselma Gomes Pereira1


joselmagomes@hotmail.com
Lucas Gomes da Silva2
lucasuemsdireito@hotmail.com

RESUMO: Este trabalho trata da teoria criminológica da subcultura delinquente tendo como
objeto de estudo os adolescentes autores de atos infracionais. Considerando que um dos
problemas que mais afetam os centros urbanos é a violência, profissionais de diferentes áreas
buscam analisar a sua origem, suas causas, seu desenvolvimento, de forma que essa análise
contribua na elaboração de estratégias eficientes na reversão da criminalidade. Nesses casos
de violência, muito se fala da participação de adolescentes em atos delituosos. A adolescência
é marcada por uma fase de conflitos e de formação da identidade. Nela, as convicções da
infância começam a se diluir e o indivíduo passa a desacreditar de seus valores e dos valores
pregados por uma cultura dominante. Tais mudanças e descrença contribuem para a
construção de sua identidade, e de certa forma, justificam atitudes subculturais. A subcultura
diverge de uma cultura dominante, e o adolescente ao não se ver identificado, incluído nos
valores desta, encontra na ação delituosa a sua inclusão, a possibilidade de criar os seus
valores e de se ver pertencente a um grupo. Tendo como base, a Psicologia para o
entendimento do que vem a ser a adolescência, este artigo se propõe a uma análise teórica da
subcultura delinquente, consagrada na literatura criminológica de Albert Cohen, Delinquent
Boys, e ainda, considerando as contribuições feitas por David Matza e Gresham M. Sykes a
essa teoria, serão abordadas as técnicas de neutralização que racionalizam ou justificam o
comportamento desviante.

PALAVRAS-CHAVE: Criminologia; subcultura delinquente; adolescência.

1. INTRODUÇÃO

Com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a doutrina


da Situação Irregular, prevista no Código de Menores de 1979, foi substituída integralmente
pela doutrina da Proteção Integral. Sendo assim, o ECA reconheceu a existência de um novo
sujeito de direitos, um cidadão portador de direitos e garantias, independente de sua raça,

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD).
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD).
situação social ou econômica, religião ou qualquer diferença cultural, e que deveria ter para si
a atenção prioritária de todos.
O ECA considera que crianças e adolescentes são pessoas em situação peculiar de
desenvolvimento, e ao tê-las nessa condição, considera que a transgressão cometida pelos
mesmos não pode ser caracterizada como crime, e utiliza-se da expressão “ato infracional”.,
observa que o adolescente como pessoa em processo de desenvolvimento “precisa ser
cuidado, protegido, ainda que responsabilizado”. Cabe-lhe, em tais casos, medida
socioeducativa, cujo objetivo é menos a punição e mais a tentativa de reinserção social, o
fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Diariamente, a imprensa veicula notícias relatando o envolvimento de adolescentes
com o mundo do crime. Ao procurar demonstrar que esses adolescentes em conflito com a lei,
são portadores de direitos que devem ser protegidos e efetivados na sua integralidade, a
reprovação e a indisposição encontram lugar comum na sociedade, e todos os possíveis
adjetivos estigmatizantes sobre o jovem infrator são apresentados: desregrado, violento,
revoltado, problemático, perigoso, entre outros. Esses jovens, vistos como potenciais
agressores e criminosos, quase sempre aparecem como possível ameaça à ordem pública, caso
não sejam contidos por medidas moralizadoras e punitivas, e produzem medo na sociedade,
que se vê vítima nessa relação.
A adolescência, uma fase do desenvolvimento humano difícil de ser compreendida
pelos adultos, especialmente quando envolve o descumprimento das normas convencionadas
na cultura dominante, é o objeto deste estudo. Sendo considerada uma fase intermediária entre
a infância e a vida adulta, é vista como um período marcado por conflitos, incertezas, medos,
tensões, comportamentos inconstantes, dificuldades com a autoaceitação e com a aceitação do
outro.
Nessa fase, quando a personalidade e a identidade do indivíduo encontram-se em
formação, o conhecimento dos diversos aspectos que circundam o desenvolvimento humano
do adolescente é importante para a análise dos fenômenos psicossociais relacionados à prática
do ato infracional. Este artigo, portanto, propõe-se a um estudo sobre a subcultura delinquente
juvenil, fazendo um diálogo com a Psicologia, para um melhor entendimento de quem é esse
adolescente, e quais os enfrentamentos vividos por ele quando praticante de uma subcultura
da delinquência.
2. ADOLESCÊNCIA

A adolescência pode ser definida a partir de diferentes critérios, cronológico,


sociológico, psicológico. Essa diversidade de aspectos sobre a adolescência, logo demonstra o
desafio do pesquisador ao escolher adolescentes como o seu objeto de pesquisa. De acordo
com Pfromm Netto (1974, p. 1), adolescere é uma palavra latina que vem de crescer,
desenvolver-se, tornar-se jovem. O autor observa que apesar de não ser possível estabelecer
exatamente a sua duração, em geral, considera-se os 12 anos como idade inicial e os 20 como
idade final, aproximadamente, e isso muda conforme as diferentes culturas. De outra forma,
considerando que as modificações fisiológicas ocorrem em ritmos diferentes para os
diferentes adolescentes, o critério da idade cronológica gera discussão e pode ser invalidado.
No entanto, no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente adota o critério
cronológico e define como adolescência o período entre os 12 e 18 anos de idade.
Entre as características principais da adolescência estão as mudanças físicas,
entretanto, os adolescentes não são afetados apenas por elas, já que o processo de puberdade
afeta também o desenvolvimento dos seus interesses, o seu comportamento social e a
qualidade de sua vida afetiva (BLOSS, 1994, p. 9).
Segundo Winnicott (2005, p. 116), a adolescência faz parte do desenvolvimento
humano e deve ser tratada não como um problema, mas como um processo no qual o
adolescente, ao final, se tornará um adulto. Essa transformação do comportamento social do
adolescente no comportamento social do adulto ocorre de forma gradual e envolve diversos
aspectos do desenvolvimento humano, como o físico, intelectual, emocional e social.
Considerando que a finalidade deste trabalho é observar a subcultura delinquente
dentro de uma abordagem de privação ambiental e emocional, este artigo tratará de forma
mais específica o desenvolvimento social e emocional do adolescente. Porém antes, será feita
abordagem sintética sobre o seu desenvolvimento físico e intelectual.

2.1. DESENVOLVIMENTO FÍSICO

De acordo com Pfromm Netto (1974, p. 47), o desaparecimento no indivíduo de


características corporais da criança e o surgimento dos traços do adulto, indicam o surgimento
da adolescência. As mudanças de peso, altura, proporção do corpo, crescimento ósseo, as
alterações fisiológicas nos órgãos internos, o crescimento em força, o aperfeiçoamento da
coordenação motora e destreza física, não apenas alteram as atitudes do adolescente em
relação a si mesmo, mas também a reação dos outros em relação a esse adolescente.
Dessa forma, o autor considera que essas mudanças físicas e fisiológicas podem
exercer efeito sobre todos os aspectos do comportamento do adolescente, inclusive na sua
maturidade emocional, social, mental e no seu rendimento escolar.

2.2. DESENVOLVIMENTO INTELECTUAL

Pfromm Netto (1974, p. 143), considera que o desenvolvimento intelectual não deve
ser considerado apenas como um desenvolvimento cognitivo. Ele está relacionado com todos
os demais aspectos do desenvolvimento (físico, social, emocional etc.), porém, considerando
o papel da escola no estímulo a esse desenvolvimento na criança e no adolescente, deve ela
contribuir para que o jovem tenha informações, aprenda princípios, leis, teorias, desenvolva o
seu raciocínio lógico, sua capacidade criadora, sempre o respeitando na sua totalidade.

2.3. DESENVOLVIMENTO SOCIAL

No que se refere ao desenvolvimento social, de acordo com Pfromm Netto (1974, p.


213), ele ocorre de forma contínua desde os primeiros anos de vida e prossegue ao longo da
vida adulta, ocorre envolto ao ambiente onde a pessoa está inserida, sendo a família o
principal agente de socialização do indivíduo. Conforme o autor, quando grupos
socializadores mantêm valores, crenças, atitudes e objetivos comuns, o grau de conflito é
menor porque eles se apoiam mutuamente e se influenciam, porém, quando não são comuns,
os conflitos aumentam fazendo com que o indivíduo opte por diferentes valores e modos de
vida, e nesse caso, as consequências podem ser sérias para a sociedade.
Pfromm Netto (1974, p. 214-224) observa o quanto o sistema de estratificação social
interfere no desenvolvimento do adolescente e considera que não há forma de estudar este
assunto sem levar em conta o contexto social no qual ele está inserido, a forma como foi
criado, o nível de acesso à educação, já que crianças e adolescentes aprendem a cultura e
subcultura a que pertencem as suas famílias. O autor considera que a maioria dos recursos
culturais preparatórios para a escola, como livros, obras de arte, jogos educativos, são
desconhecidos de crianças pobres, enquanto são comuns em famílias com melhores condições
financeiras.
Numa observação sobre as casas de crianças e jovens pobres e suas dificuldades com
a aprendizagem, Pfromm Neto (1974, p. 222), apresenta o trecho de um artigo publicado em
abril de 1960, pelo jornal “O Estado de São Paulo”, sobre as favelas do Rio de Janeiro. O
estudo realizado pelos pesquisadores Louis Joseph Lebret, José Arthur Rios, Carlos Alberto
de Medida e Helio Modesto, e outros colaboradores, teve como título “Aspectos humanos da
favela carioca”. Apesar do longo tempo transcorrido de lá para cá, e considerando as diversas
mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais ocorridas no Brasil, é interessante
observar que as questões de desigualdade social e privação ambiental permanecem vivas até
os dias de hoje.
O barraco reflete e, por sua vez motiva as condições primitivas de vida familiar...
Nesse limiar de miséria e desintegração, ocupa um espaço mínimo, às vezes mais ou
menos 10m², possui um só cômodo e conforme o número de pessoas que aí se
acumulam, divide-se o interior com um pano, para separar o espaço que desempenha
funções de sala e quarto da cozinha-banheiro. O chão é de terra batida... As paredes
são de tábuas mal conservadas sem nenhum revestimento, sem pintura e sem janelas.
O telhado de uma só água, com pequena inclinação, é feito de telhas, brasilite,
pedaços de tábuas, panos, pedaços de papelão. Quando chove, entra muita água. Não
há dependências externas de qualquer espécie, nem banheiro, nem w. c. externo,
nem cercado. O banho é tomado na cozinha mesmo, com latas e bacias. A água é
trazida de longe, das torneiras públicas. Para as necessidades, usa-me um recipiente
qualquer, lata ou urinol, cujo conteúdo é lançado fora. A iluminação é de lamparina.
Os móveis são feitos de caixotes, os objetos incluem o mínimo indispensável,
despertador, fogareiro a querosene, chaleira, pratos esbeiçados, panelas velhas,
lamparina – e bugigangas. Nas paredes, colam-se, à guisa de ornamentação, recortes
de revistas, retratos de artistas do rádio... As crianças não tem espaço dentro do
barraco para brincar. Urinam dentro da casa, pelos cantos” (PFROMM NETO, 1974,
p. 222-223)

Silverman (1965 apud PFROMM NETTO, 1974, p. 177), ao fazer uma revisão da
literatura norte-americana sobre inteligência e pobreza cultural, concluiu que não há
diferenças inatas na capacidade de aprendizagem entre crianças pobres e crianças de classe
média, mas sim consequências de privação ambiental ou social, isto é, a sua capacidade de
aprender somente se realizará de forma plena se a criança puder contar com condições
ambientais adequadas, tanto no lar quanto na escola.
2.4. DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL

Quanto ao desenvolvimento emocional, Pfromm Netto (1974, p. 95) considera que a


adolescência é o período da vida em que o comportamento do indivíduo está frequentemente
relacionado às suas experiências de frustração, às situações novas, aos seus conflitos etc. A
passagem da infância para a vida adulta não tem que obrigatoriamente ocorrer num contexto
de tensões e conflitos, no entanto, as pressões sofridas pelo adolescente advindas dos seus
pais, amigos, escola, e das suas próprias necessidades, em virtude das mudanças ocorridas em
si mesmo e no mundo a sua volta, levam à intensificação das experiências afetivas e ao
aumento de situações de ordem emocional que dependerão de sua condução para serem
resolvidas. Apesar das diferenças culturais entre as sociedades, geralmente o processo de
desenvolvimento da dependência infantil para a independência adulta, a passagem de um
indivíduo não responsável para o responsável, não acontece de forma gradual e suave, mas de
forma súbita, sendo marcada por restrições, interferências, proibições, conflitos morais que
resultam muitas tensões emocionais.
De acordo com Winnicott (2005, p. 115-118), subsistem no adolescente,
características pessoais herdadas da infância, ou seja, meninos e meninas chegam à puberdade
com padrões de personalidade predeterminados pelas experiências que tiveram anteriormente,
inclusive nesse momento, alguns padrões indicarão falhas de amadurecimento. Caberá ao
adolescente a organização dos padrões preexistentes, decidindo-se por sua manutenção, por
sua mudança ou eliminação, bem como a acomodação de novos padrões que chegarão com a
puberdade. Nesse estágio o ambiente desempenha um papel de grande importância na
passagem da infância para a adolescência, e é vital a importância da família, apesar do natural
isolamento do adolescente. Inclusive, o autor aponta que os grupos de adolescentes são
ajuntamentos de indivíduos isolados que se aproximam tendo em vista uma identidade de
gostos.
Winnicott (2005, p. 125-126) observa que diante de uma tendência antissocial na
adolescência, há sempre um histórico de privação ou carência, que pode ser resultado de um
estado de ausência, de depressão da mãe em um momento complexo, ou de dissolução da
família, mas mesmo a privação menos violenta pode acarretar tendências antissociais. O autor
aponta que anterior a uma tendência antissocial, há uma fase de saúde seguida de uma ruptura,
e com isso, a criança antissocial, fazendo o uso da violência ou não, tenta fazer com que o
mundo reconstrua a estrutura rompida. Winnicott observa ainda que, numa adolescência
normal, a carência é mais branda enquanto a privação se dá num campo mais complexo.
Nesse sentido, Winnicott (1999, p. 121-125) observa que adolescentes, outrora
crianças com histórico de privação emocional, cujos lares não lhe ofereceram um sentimento
de segurança, buscam no ambiente externo relações que lhe proporcionem estabilidade, e
nesse momento, a delinquência pode ser a busca por uma estabilidade externa. O autor então
aponta que para a maioria dos delinquentes, o sentimento de segurança não chegou à vida da
criança a tempo de ser incorporado às suas crenças. Segundo ele, crianças necessitam do
background de suas famílias, de estabilidade do ambiente físico, de segurança afetiva, uma
vez que crianças privadas de vida familiar correm o risco de receberem a estabilidade por
meio de um reformatório, ou na vida adulta, por meio da prisão.

3. A SUBCULTURA DELINQUENTE

A teoria criminológica da subcultura delinquente é uma dentre as várias teorias


pertencentes à escola sociológica de Chicago. Para Shecaira (2011, p. 154-165), a escola de
Chicago tem uma perspectiva transdisciplinar que discute vários aspectos da vida humana
relacionados com a vida da cidade. O processo de expansão urbana e o crescimento
demográfico da cidade norte-americana de Chicago, no final do século XIX e início do século
XX, resultado do acelerado desenvolvimento industrial das metrópoles do Meio-Oeste nos
Estados Unidos, contribuíram para o surgimento da escola. Em decorrência desse processo,
fenômenos sociais como, o crescimento da criminalidade, da delinquência juvenil, do
aparecimento de gangues, desemprego, imigração, formação dos guetos, tornaram-se objeto
de pesquisa da escola de Chicago.
Diante disso, a teoria da subcultura delinquente foi consagrada na literatura
criminológica pela obra de Albert Cohen, Delinquent Boys. De acordo com Matza (1964, p.
34), Cohen, ao estudar a formação das gangues norte-americanas, compreendeu que a razão
para a delinquência juvenil estava na identificação de jovens pobres com os valores e regras
da conduta subcultural delinquente.
Shecaira (2011, p. 149-151), aponta que a perspectiva da teoria da subcultura
delinquente se dá no interior da teoria do consenso, onde a finalidade da sociedade é fazer
com que os indivíduos compartilhem objetivos comuns e aceitem as regras sociais
dominantes. Nela, a sociedade é formada por elementos estáveis, integrados, coordenados,
que mantém a estrutura social em funcionamento através do consenso dos membros em torno
de valores.
Para Shecaira (2011, p. 259-262) Cohen, concebe a ideia de cultura como
conhecimento, crenças, valores, códigos, gostos e preconceitos que fazem parte de um grupo
social e são adquiridos pela participação nesses grupos. O autor estabelece ainda a diferença
entre subcultura e contracultura: os grupos subculturais são aqueles que se retiram da
sociedade convencional tendo em vista possuírem os seus próprios valores, enquanto os
grupos contraculturais são contestadores e desafiam a cultura dominante através de uma
negação articulada da sociedade, como ocorre entre os movimentos hippies.
Dentro de uma sociedade existem grupos menores diferenciados, com um modo de
pensar e de agir, com interesses comuns, e ao participar destes grupos, o indivíduo adquire
culturas dentro da cultura, no dizer de Shecaira, isto é uma subcultura.
A subcultura delinquente, por sua vez, pode ser resumida como um comportamento
de transgressão que é determinado por um subsistema de conhecimento, crenças e
atitudes que possibilitam, permitem ou determinam formas particulares de
comportamento transgressor em situações específicas. Esse conhecimento, essas
crenças e atitudes precisam existir, primeiramente, no ambiente cultural dos agentes
dos delitos e são incorporados à personalidade, mais ou menos como quaisquer
outros elementos da cultura ambiente. (SHECAIRA, 2011, p. 266).

Segundo Shecaira (2011, p. 269- 271), Cohen caracteriza a subcultura delinquencial


através de três fatores: o não utilitarismo da ação, a malícia da conduta e o seu negativismo.
Alguns teóricos da criminalidade afirmam que as pessoas cometem crimes por um motivo
racional que se justifica. No entanto, muitas ações de grupos juvenis nem sempre tem essa
justificativa racional, ou utilitária. Ao contrário, não têm qualquer motivação. A segunda
característica atribuída à teoria é a malícia ligada ao ato, que seria o prazer em ver o outro
numa situação de desconforto, de constranger o outro, de se desafiar a atingir algumas metas
proibidas e inatingíveis às pessoas comuns. O terceiro elemento característico da subcultura
delinquente é o negativismo dos atos praticados pelo grupo. É o polo oposto ao conjunto de
valores da sociedade obediente às normas sociais, são valores contidos na sociedade
tradicional, porém, de uma forma invertida. As condutas dos delinquentes são corretas,
conforme os padrões da subcultura dominante, exatamente por serem contrárias às normas da
cultura dominante.
Para a teoria da subcultura delinquente o crime é resultado da interiorização e da
obediência a um código moral ou cultural que torna a delinquência imperativa. À semelhança
do que acontece com o comportamento de acordo com a lei, também a delinquência significa
a conversão de um sistema de crenças e valores em ações. Conforme observa Matza (1964, p.
33), “their behavior is determined by subculture as ours is by conventional culture”.
Contudo, são as contribuições de Gresham M. Sykes e David Matza que dão à teoria
da subcultura delinquente um caráter peculiar. Os pesquisadores observam a existência de
técnicas de neutralização que racionalizam ou justificam o comportamento desviante, as quais
são aprendidas e utilizadas pelo delinquente de modo a neutralizar a eficácia dos valores e das
normas sociais da cultura dominante. (BARATTA, 2002, p. 77).
Destarte, a teoria da subcultura delinquente não se apresenta tão somente como uma
contraposição à cultura dominante, mas ela se compõe da aprendizagem de técnicas que
neutralizam os aspectos punitivos do controle social, os valores sociais da cultura dominante,
de modo a justificar o comportamento infracional.
Normalmente, os delinquentes não conhecem a lei, embora eles muitas vezes
pretendam conhecer. Assim, não há intenção de sugerir que os delinquentes
aproveitam as lacunas oferecidas e as explora. Eles podem tentar, mas essa não é a
ideia de neutralização. Em vez disso, a ideia de neutralização sugere que os sistemas
jurídicos modernos reconheçam as condições sob as quais as infrações não podem
ser penalizadas, e essas condições podem ser involuntariamente duplicadas,
distorcidas e estendidas em padrões costumeiros. (...) A extensão do delinquente e,
portanto, a neutralização prosseguem nas linhas da negação da responsabilidade, do
sentimento de injustiça, da afirmação do crime e do primado do costume. Essa
coincidência de preocupação, a semelhança obscurecida entre pontos de vista
convencionais e desviantes, é a segunda ideia geral subjacente à minha tese da
delinquência de subcultura (MATZA, 1964, p. 61, tradução nossa).

De acordo com Sykes e Matza (2008, p. 4-5), essas técnicas de neutralização podem
serem descritas da seguinte forma: a) exclusão da própria responsabilidade, quando o
delinquente se vê arrastado pelas circunstâncias, deixando de figurar no papel ativo e dessa
forma se desvia de um ataque direto ao sistema normativo dominante. As ações do
delinquente se dão por motivos externos e estão além do seu controle, tais como a falta de
afeto dos pais, as más companhias, o viver em favelas etc., no entanto, tais interpretações não
se tratam de idiossincrasia pelo delinquente, mas de construções culturais; b) negação do dano
ao interpretar que suas ações, apesar de proibidas, não são imorais ou danosas; c) negação de
uma vítima, tendo em vista que esta é interpretada pelo delinquente como alguém que merece
aquele tratamento, e portanto o ato representa uma punição justa; d) condenação dos que
condenam, nesse caso seria um ataque àqueles que tem a tarefa de fazer cumprir ou expressar
as normas da cultura dominante, dirigido à polícia, aos professores, aos pais, enfim, àqueles
que fazem parte das instâncias de controle social e que obedecem a lei geral e condenam o
comportamento delinquente hipocritamente; e) apelo a lealdade aos seus superiores, ou
companheiros, já que o infrator esteve imerso no dilema entre respeitar a norma da cultura
dominante ou trair as normas de sua subcultura, do seu grupo, e nesse caso, viu-se obrigado a
sacrificar as exigências da maioria da sociedade a fim de defender as demandas do seu grupo
de irmãos sociais.

3.1. O DESENVOLVIMENTO HUMANO DO ADOLESCENTE E A SUBCULTURA


DELINQUENTE

Ao tratar do desenvolvimento social e emocional na adolescência, verificou-se que o


processo de construção da personalidade do adolescente e o seu enfrentamento diante da
passagem da infância para a vida adulta, estão intimamente relacionados ao grupo social no
qual está inserido o indivíduo, suas oportunidades, seus acessos, sua inclusão ou exclusão,
bem como no seu histórico de vínculo afetivo com a família. Na adolescência, enquanto os
padrões de personalidade vão se alterando ou se desfazendo, há uma busca por uma
identidade singular, conforme aponta Shecaira (2011, p. 263), que marque a diferença entre os
demais, bem como por uma identidade que aproxima semelhantes, que dê a ideia de
pertencimento.
Observou-se anteriormente que a privação social ou ambiental, proveniente de
desigualdades sociais, a falta de acesso a recursos culturais provocam um déficit de
aprendizagem em crianças pobres, e nesse mesmo sentido, Dias e Andrade (1992, p. 296)
apontam que é na escola onde ficam visíveis as diferenças entre as crianças que vêm de
famílias com melhores condições econômicas e aquelas que vêm de famílias hipossuficientes.
É no sistema escolar onde predomina a ideologia da meritocracia, onde todos são julgados
segundo os mesmos padrões, apesar de que não obtiveram os mesmos acessos. Enquanto as
crianças que vêm de famílias com melhores condições econômicas têm na escola a
continuidade da sua educação familiar, as crianças pobres têm a ruptura com a sua cultura
familiar e a aculturação na escola. Enquanto uns disputam em terreno conhecido, outros
desconhecem o terreno de disputa, e mediante isso saem em desvantagem.
Essa desvantagem provoca sentimentos de fracasso no jovem pobre, e diante disso,
Shecaira (2011, p. 264-265) observa que a subcultura se origina de uma situação coletiva de
frustração ou de conflito no interior de uma dada cultura com padrões normativos contrários a
ela. Mesmo interiorizando os valores da cultura dominante, jovens vindos de estratos sociais
inferiores não se adequam às suas regras, criam, portanto, as suas próprias.
A constituição das subculturas delinquentes representa, portanto, a reação de
algumas minorias desfavorecidas na tentativa de se orientar, de se ver dentro de uma estrutura
social. Jovens pobres não nascem com o perfil criminoso, não escolhem essa identidade, mas
num contexto de desigualdades sociais e desestrutura familiar, são levados a uma
identificação com a subcultura delinquente.
Ao tratar de identidade, Bauman (2005, p. 44-45) aponta que a identificação é um
fator poderoso na estratificação social, já que coloca em um polo da hierarquia global aqueles
que constroem e desarticulam suas identidades segundo a sua vontade, e no outro polo aqueles
que não tem o acesso à escolha da identidade, aqueles que se veem oprimidos por uma
identidade imposta por outros, sendo causa de estereótipos, humilhação, estigmas, rótulos etc.
Há porém ainda nessa hierarquia, um espaço abaixo daqueles que tem o direito de escolha da
identidade negado, aqueles que se encontram na “subclasse”: o indivíduo que abandonou a
escola, a mãe solteira que vive de programas sociais do governo, o viciado ou ex-viciado em
drogas, o sem-teto, o mendigo.
Zaluar (1998, p. 273), destaca algumas características na família brasileira,
observando que mesmo com a entrada das mulheres no mercado de trabalho, poucas
mudanças aconteceram a respeito dos papéis complementares dentro das famílias, os
casamentos passaram a se dissolver com mais facilidade, e com a separação dos pais, é
comum os filhos crescerem sem ajuda financeira e afetiva do pai, isso quando o conhecem.
Pode-se dizer que diante de tais fatos não é difícil imaginar a privação emocional por
relações insuficientes que será enfrentada pelos filhos. Dentro de um lar desestruturado, onde
a mãe ou a avó é a provedora econômica da casa, onde essa provisão não é suficiente para as
necessidades básicas, onde os valores de consumo das classes mais favorecidas estão
inacessíveis para a criança pobre, onde a criança se vê carente de cuidados, carente de
recursos materiais, carente de uma relação afetiva que lhe transmita segurança, a delinquência
pode sinalizar como o meio para resolver os traumas que essas privações lhe causaram. Nesse
sentido fazem-se oportunas as palavras de Alvino de Sá:
Privação emocional por relações insuficientes: quando a mãe, ainda que com esforço
e boa vontade, não dá ou não consegue dar, no tempo e intensidade necessários, a
presença, a atenção e o carinho de que a criança necessita. Sem falarmos de mães
realmente mais preocupadas consigo mesmas do que com a criança, poderíamos
citar o exemplo daquela que, ao chegar do trabalho ao final do dia em casa, com o
cansaço ou aborrecimentos de seu serviço, não consegue dar ao filho a atenção que
esse dela espera e necessita. Veja-se que, nesse caso, as carências econômica e
cultural em muito irão facilitar esse tipo de privação. A carência econômica irá
exigir que a mãe trabalhe fora de casa e em serviços muitas vezes pouco
compensadores, que pouco ou nada dignificam seu papel. A carência cultural, por
sua vez, priva a mãe de recursos internos necessários para compreender as demandas
do filho, os “sinais”, os “alertas” que o filho lhe faz sobre a privação emocional que
está sofrendo. (SÁ, 2001, p. 14-15)

Sá (2001, p. 14.), ao tratar da privação emocional considera que ela se caracteriza por
um “déficit” de comprometimento nas relações primárias, nas relações estruturantes da
criança com a família, com as figuras parentais ou, mais especificamente, com a mãe,
resultando em “feridas psíquicas”. A capacidade do indivíduo de solucionar os momentos
difíceis ao longo de sua vida dependerá da gravidade dessas feridas.
De acordo com Calligaris (2000, p. 40-41), existe uma parceria entre adolescência e
delinquência uma vez que o adolescente, por não se ver integrado e reconhecido no pacto
social, buscará esse reconhecimento fora dele, ou seja, buscará um pacto alternativo. Nesse
caso, o autor considera que se a criança tem uma boa estrutura familiar, com pais
acompanhando o seu desenvolvimento físico, social, emocional, escolar, dificilmente ela
buscará valores subculturais na delinquência. Entretanto, se ela não encontra dentro da
família, da escola, do ambiente social onde vive os valores necessários para sentir-se segura,
ela sofrerá um forte apelo para o seu envolvimento como o mundo do crime.
4. CONCLUSÃO

A situação de vulnerabilidade ao mundo do crime em que vivem crianças e


adolescentes pobres brasileiras é uma realidade, problemas como a falta de uma educação de
qualidade que promova condições para uma vida profissional e inserção no mercado de
trabalho, falta de espaço para lazer e incentivo ao esporte, precariedade dos sistemas de saúde
pública e habitação, são alguns direitos humanos que apesar de previstos em lei, sobretudo na
Constituição Federal, são diariamente violados.
Muitos estudos são realizados sobre a adolescência e sobre os problemas do
adolescente atualmente. No caso do adolescente autor de ato infracional é interessante a
abordagem sob o ponto de vista da Criminologia, uma vez que o fenômeno da violência pode
ser observado em torno de diversas perspectivas, de forma multifacetada, integrando os
diversos conhecimentos à procura de uma teoria mais unificada possível. Nesse trabalho,
optou-se pela Psicologia como literatura de apoio na análise sobre o adolescente e sua
identificação com a subcultura da delinquência a partir dos fenômenos de privação ambiental
e emocional.
A delinquência juvenil, utilizando um termo de Alvino de Sá, pode ser uma “via de
solução” para uma história marcada por conflitos, frustrações e privações. Nesse caso, a
delinquência, enquanto uma subcultura que protesta contra uma cultura dominante, pode
contribuir para o equilíbrio, para a estabilidade do adolescente com histórico de privação
emocional, que talvez não vislumbre outros caminhos para resolver as suas “feridas
psíquicas”. Conforme se observou, a insegurança afetiva nas famílias pode contribuir para que
o adolescente busque em ambiente externo relações que lhe proporcionem estabilidade, e
nesse momento, a delinquência pode ser um remédio imprescindível para a cura da privação
afetiva sofrida.
Por outro lado, muitos problemas relacionados à privação emocional estão
imbricados à privação ambiental ou social. Diante de desigualdades sociais e frente às
desvantagens vivenciadas por crianças e adolescentes pobres em relação àquelas com
melhores condições financeiras, a privação social se dá a partir de um sistema econômico que
polariza as diferenças dentro de uma sociedade de consumo e provoca sentimentos de fracasso
no jovem pobre, que se percebe excluído desse grupo social e sem perspectivas de inclusão, e
diante disso, mesmo interiorizando os valores da cultura dominante, não se adequa às suas
regras, criando, portanto, as suas próprias com padrões normativos contrários a ela.
A constituição das subculturas delinquentes representa, portanto, a reação de
algumas minorias desfavorecidas na tentativa de se orientar, de se ver dentro de uma estrutura
social. Conforme observado aqui, jovens pobres não nascem com o perfil criminoso, não
escolhem essa identidade, mas num contexto de desigualdades sociais e desestrutura familiar,
são levados a uma identificação com a subcultura delinquente.

3. Bibliografia

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