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Universidade Federal Fluminense

Programa de Pós-Graduação em Psicologia


Estudos da Subjetividade
Subjetividade, Política e Exclusão Social

Nathália de Souza Nascimento

“Jeitos de kinsa”:
o cuidado a partir de uma perspectiva negra

Niterói
2021
Nathália de Souza Nascimento

“Jeitos de kinsa”:
o cuidado a partir de uma perspectiva negra

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal Fluminense, como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Abrahão de Oliveira


Santos

Niterói
2021
Nathália de Souza Nascimento

“Jeitos de kinsa”:
o cuidado a partir de uma perspectiva negra

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal Fluminense, como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Área de concentração: Subjetividade, política e


exclusão social.

________________________________________________________
Prof. Dr. Abrahão de Oliveira Santos - UFF
(Orientador)

________________________________________________________
Profª. Drª. Luiza Rodrigues de Oliveira - UFF
(Examinadora Titular)

________________________________________________________
Profª. Drª. Maria de Fátima Lima Santos - CEFET/RJ
(Examinadora Titular)

________________________________________________________
Profª. Drª. Ana Claudia Lima Monteiro - UFF
(Examinadora Suplente)

________________________________________________________
Profª. Drª. Vanessa Menezes de Andrade - KANDA ÌMÁRALE
(Examinadora Suplente)

Niterói, 19 de novembro de 2021.


Para a professora Valdina de Oliveira Pinto, Makota
Zimewanga (viva em espírito e em nossas
memórias); um presente de Kavungo para quem
busca pela cura de si e de sua comunidade.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos Jinkisi, especialmente à Ndandalunda, Tauamin, Unsumbu e


Lemba, por me guiarem e me fortalecerem em meu propósito de cuidar.

Aos meus pais, Aparecida Maria de Souza Nascimento e José Ricardo do


Nascimento, pelo amor, pelo investimento em minha educação e pelo apoio em
todos os passos que dou.

As minhas avós, Ivonete Fernandes de Souza e Maria Aparecida Pereira, por


serem as minhas principais referências de vida.

Aos meus irmãos, Jennifer Thais e Conrado Nascimento, por me ensinarem o


sentido de ser família.

Aos meus sobrinhos, Bernardo e Valentina, e a todas as crianças, que me


fazem insistir na alegria, no eterno aprendizado e na esperança.

Ao Gabriel Henrique, meu companheiro, que não me deixa esquecer que o


amor preto cura e que para tudo há um propósito.

A Mam’etu Mabeji, pelo colo, pelos ensinamentos, pela sabedoria e por me


ensinar o sentido de ser de candomblé.

A família Kupapa Unsaba, por ter me acolhido e por confiar que posso ser
uma boa filha para a nossa casa de santo.

A Vanessa Andrade, por ser uma referência de ekede, mãe, mulher, psicóloga
e pesquisadora. Sobretudo, por fazer o amor transbordar em forma de palavras e
por ter sido uma das maiores incentivadoras para que eu fizesse mestrado.

A Kanda Ìmárale, por ter sido o lugar onde pude vislumbrar outras formas de
fazer psicologia e de cuidar. Por ser uma família, onde fortaleço e sou fortalecida, na
qual tenho orgulho de pertencer.
Ao professor Abrahão de Oliveira Santos, por ter acolhido o meu projeto e ter
me orientado ao longo deste percurso. Sou grata também pelos seus esforços, que
somados ao coletivo, possibilitaram a implementação das ações afirmativas no
PPGP da UFF. Sua dedicação à pesquisa e sua luta por uma universidade onde
pessoas negras tenham voz reverberam mais do que as palavras podem descrever.

Ao Laboratório Kitembo, por ser um espaço onde aprendi a pesquisar e por


possibilitar que a dissertação se desenvolvesse de maneira menos solitária.

As professoras Luiza Oliveira e Fátima Lima, pela leitura cuidadosa e pelas


riquíssimas observações feitas na banca de qualificação, que transformaram
profundamente esta pesquisa.

A Josiane Gonçalves, Tamirys Viana, Dandara Aziza, Thaiane Teixeira e


Tulane Paixão, pela amizade, por acreditarem em mim e por não permitirem que eu
me sinta sozinha no campo da psicologia.

A CAPES, pelo apoio financeiro e científico.


“Saber ser pequeno para ser verdadeiramente grande.”
(Makota Valdina)
RESUMO

A questão que movimenta o desenvolvimento deste trabalho nasce a partir da


interpelação que a professora Valdina de Oliveira Pinto, Makota Zimewanga (viva em
espírito), faz ao campo da psicologia. No I Encontro de Subjetividade e Cultura
Afro-brasileira, organizado pelo Laboratório Kitembo, em 2014, Makota Valdina,
como é amplamente conhecida, trouxe um alerta a respeito da doença que o
racismo colocou na sociedade brasileira e disse que essa investigação pode ter a
ver com o campo da psicologia. Assim, a construção dos jeitos de pesquisar se deu
a partir dos impactos de nosso encontro com Makota, ou seja, através de
ensinamentos semeados por ela e que ficaram registrados em publicações escritas
e audiovisuais. Neste caminho, nos deparamos com a perspectiva Bantu-Kongo, que
desdobrou na percepção de 3 ferramentas, essenciais para o desenvolvimento deste
trabalho: o uso da língua; a restituição da humanidade e a matrigestão. Aquilo que
chamamos aqui de cuidar se trata, de uma maneira geral, de uma forma de resgate
da humanidade negra, tendo como pressupostos a vida como valor central e a
humanidade compartilhada. Deste modo, concluímos que a comunidade se
apresenta como um espaço de cuidado. Sobretudo, os terreiros de candomblé,
fundamentais: na preservação de valores africanos; no resgate de elos ancestrais e
na realização da necessidade humana de pertencimento.

Palavras-chave: Jeitos de cuidar. Makota Valdina. Psicologia. Bantu-Kongo.


Candomblé de Nação Angola.
ABSTRACT

The question that drives the development of this work arises from the question that
professor Valdina de Oliveira Pinto, Makota Zimewanga (live in spirit), makes to the
field of psychology. At the 1st Meeting of Afro-Brazilian Subjectivity and Culture,
organized by the Kitembo Laboratory, in 2014, Makota Valdina, as she is widely
known, brought an alert about the disease that racism has placed in Brazilian society
and said that this investigation may be related to with the field of psychology. Thus,
the construction of ways of researching took place from the impacts of our meeting
with Makota, that is, through teachings sown by her and which were recorded in
written and audiovisual publications. On this path, we came across the Bantu-Kongo
perspective, which unfolded in the perception of three essential tools for the
development of this work: the use of language; the restitution of humanity and
matrigestion. What we call here care is, in general, a way of rescuing black humanity,
assuming life as a central value and shared humanity. Thus, we conclude that the
community presents itself as a space of care. Above all, the Candomblé terreiros,
which are fundamental: in the preservation of African values; in the rescue of
ancestral links and in fulfilling the human need for belonging.

Keywords: Ways of care. Makota Valdina. Psychology. Bantu-Kong. Candomble of


Nation Angola.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................................................... 12
O legado de Makota Valdina e sua interpelação à psicologia…………...... 12

1 CONSTRUINDO JEITOS NEGROS DE PESQUISAR……………………..


13
1.1 Perspectiva Bantu-Kongo……………..………………....…………………….
13
1.1.1 Uso da língua...…………………………………………………………….…...
16
1.1.2 Restituição da humanidade...………………………………………….………
19
1.1.3 Matrigestão...…………………………………………………………………….
22

2 O (DES)ENCONTRO COM A PSICOLOGIA: NOTAS SOBRE UM


CAMINHO DE PESQUISA…………………………………………………….. 25
2.1 Nasci para cuidar……………………………………………………………….. 25
2.2 Do Grupo Preto de Psicologia a Kanda Ìmárale……………...................... 37
2.3 Negra, pesquisadora e cotista….…………………………………………….. 45
2.3.1 O ingresso no mestrado……………………………………………………….. 45
2.3.2 Laboratório Kitembo: afirmando uma perspectiva aterrada em
psicologia.................................................................................................... 48
2.3.3 A escrita e o feitiço da academia……………………………………………... 53

3 “JEITOS DE CURAR, DE SE CUIDAR E DE TOMAR CONTA”................. 57


3.1 O cuidar como forma de resgate da humanidade...................................... 57
3.1.1 A vida como valor central…………………………………………………….... 61
3.1.2 Humanidade compartilhada………………………………………………….... 66

4 A COMUNIDADE COMO LUGAR DE CUIDADO…………………………... 68


4.1 Candomblé e resgate de elos ancestrais…………….................................. 70
4.2 Kupapa Unsaba: o terreiro do Bate Folha…………………………………… 72
4.3 (Renas)SER Kota: o cuidado gestado através de olhos d’água……....….. 74

CONCLUSÃO…………………………………………………………………… 78

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS……………..………………………… 80
12

APRESENTAÇÃO

O legado de Makota Valdina e sua interpelação à psicologia

Valdina de Oliveira Pinto, nascida no Engenho Velho da Federação (Bahia),


em 15 de outubro de 1943, é o sol vivo que aquece e nutre a escrita deste trabalho.
A ancestral que faço reverência se trata de uma negra mulher1, educadora e grande
referência na luta contra o racismo religioso. Em sua confirmação para o cargo de
Kota, no terreiro de Candomblé Angola Tanuri Junsara (Salvador - BA), recebeu o
nome ancestral Zimewanga, mas é amplamente conhecida como Makota Valdina.
Em 19 de março de 2019, fez o seu retorno ao mundo espiritual, entretanto, a
influência de seus ensinamentos para o fortalecimento da vida, sobretudo do povo
negro, torna necessário manter vivo o seu legado.
Em sua participação no I Encontro de Subjetividade e Cultura Afro-brasileira,
organizado pelo Laboratório Kitembo, em 20142, ela palestrou sobre ancestralidade
e cuidado no terreiro. Nesta ocasião, Makota Valdina disse que a discussão sobre “a
doença que o racismo colocou entre nós” pode ter a ver com a área da psicologia.
Além disso, sinalizou que um dos caminhos para trazer possibilidades de vida,
diante das sequelas das violências raciais, é resgatar jeitos de kinsa: “jeitos de se
curar, de cuidar e de tomar conta”.
Neste sentido, esta pesquisa busca trazer à tona saberes e fazeres negros,
com a intenção que eles nos dêem chão para construir práticas, no âmbito da
psicologia, que verdadeiramente cuidem de pessoas negras.

1
A partir de uma das discussões que tivemos no Grupo Preto de Psicologia Ìmárale/Kanda Ìmárale,
adotamos a prática de usar o termo negra mulher, ao invés de mulher negra, assim como negro
homem ou pretas(os) psicólogas(os), para afirmar que a questão racial é um fator central na vivência
de pessoas negras.
2
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jI148SvCC7s>.
13

1 CONSTRUINDO JEITOS NEGROS DE PESQUISAR

No Candomblé Congo-Angola, Pambunjila é o primeiro Nkisi a ser


reverenciado, pois ele é quem tem a capacidade de dar o equilíbrio necessário para
os rituais. Esta divindade é responsável por facilitar a nossa comunicação com o
mundo e por abrir os caminhos necessários para a realização de uma tarefa.
“(...) Quem não tem caminho não pode andar, ou quem escolhe andar por um
caminho que não é o seu, não pode avançar” (PINTO, 2015, p. 165). Desta maneira,
peço licença ao Guardião do Caminho, para construir um trabalho que cumpra o
propósito de cuidar: da honra e memória de nossos ancestrais; do resgate da
humanidade daqueles que vivem; e de possibilidades de uma vida mais digna para
as próximas gerações.
Durante o caminho de uma pesquisa podem apresentar-se pontos de
bifurcação ou ramificação: as encruzilhadas metodológicas. Este lugar representa
um “ponto de tomada de decisão e isso vale para tudo. A todo momento estamos em
situação de decidir o que temos que fazer, o que queremos fazer, que rumo tomar”
(PINTO, 2015, p. 165).
Com a intenção de escolher um rumo para o desenvolvimento desta
pesquisa, nos atentamos aos impactos do encontro com Makota Valdina. A partir
dele, apontamos a perspectiva Bantu-Kongo como uma direção que nos possibilita
pensar o cuidado a partir de uma perspectiva negra.

1.1 Perspectiva Bantu-Kongo

Quando criança, ouvia minha avó materna falar sobre sua fé em


Zambiapongo. Não entendia o significado literal e a origem da expressão, mas
sentia que tinha a ver com a afirmação de esperança e de vida. Algumas décadas
depois, tomei conhecimento de que ela se referia a Nzambi Mpungu, o Deus criador
e supremo do Candomblé de linhagem Congo-Angola.
Ter sido criada próxima de minha avó possibilitou que eu tivesse contato,
ainda que de maneira fragmentada, com saberes e fazeres bantu3-kongo.

3
A palavra bantu [pessoas], plural de muntu [pessoa], é usada para se referir a um grupo
etnolinguístico da África que utiliza uma língua-mãe uma das 400 sublínguas da família banta. Este
14

Entretanto, foi através de minha entrada no Laboratório Kitembo (2018), que


possibilitou minha aproximação com os escritos de Makota Valdina, e no terreiro
Kupapa Unsaba (2019) que essa tradição deu contorno para a minha maneira de
enxergar o mundo, sobretudo de pensar o cuidar.
Uma das heranças do legado de Makota Valdina foi plantar a semente de um
olhar mais atento para as contribuições dos povos Bantu-Kongo para a formação
social brasileira. Ela conta que começou a ver mais necessidade de pensar nisso a
partir de sua iniciação no terreiro de Candomblé Angola Tanuri Junsara (Engenho
Velho da Federação - Bahia) e do curso de kikongo, ofertado pelo Centro de Estudos
Afro-Orientais (CEAO) (PINTO, 2015).
No Brasil, os orixás, divindades cultuadas em terreiros de Nação Ketu, como
Exu, Ogum, Oxóssi, Ossaim, Xangô, Omolu, Nanã, Oxumaré, Iansã, Oxum, Iemanjá
e Oxalá, são amplamente conhecidos. Não só pelas pessoas que os cultuam, mas
também por pesquisadores acadêmicos. Entretanto, quando se faz reverência aos
nkisi, divindades do candomblé angola, como Pambunjila, Nkosi, Katendê, Kabila,
Nzazi, Unsumbu, Kitembu, Zumbá, Hongolo, Kaiangu, Vunji, Ndandalunda, Samba
Kalunga e Lemba, nota-se um estranhamento.
Para Makota Valdina, isso se deve a uma visão universalizada da
espiritualidade africana, onde a perspectiva angoleira é invisibilizada. Como forma
de ilustrar isso, ela diz:

Até mesmo dentro do Terreiro, nós cantávamos, rezávamos nas línguas


vindas do Congo, de Angola, mas utilizávamos os termos em yorubá para
nos referirmos aos nkisi. Por outro lado, por parte da academia, era
disseminada uma visão “yorubacentrista baiana”, como se toda a influência
negra da Bahia fosse dos Yorubá, grupo que historicamente foi trazido, por
último, da África para o Brasil (PINTO, 2015, p. 66).

Na luta pela visibilidade da herança material e imaterial deixada por africanos


vindos do Congo e de Angola, Makota Valdina tomou conhecimento da obra de
Kimbwandende Kia Bunseki Fu-Kiau, que passou a ser para ela uma referência.
Fu-Kiau nasceu em 1934, em Minianga (Baixo Congo - República Democrática do
Congo) e fez o retorno ancestral em 2013. Foi um sacerdote, iniciado em tradições

termo também acaba sendo utilizado para indicar povos que habitam países como: República
Centro-Africana, Camarões, Guiné Equatorial, Gabão, Angola, Namíbia, República Popular do Congo,
Reública democrática do Congo, Zâmbia, Burundi, Ruada, Uganda, Quênia, Malaui, Zimbábue,
Botsuana, Lezoto, Moçambique e África do Sul. Esse grupo, foi um dos mais numerosos trazidos para
o Brasil, durante a escravização, especificamente de Angola, do Congo e de Moçambique.
15

dos povos Bantu-Kongo, tendo passado por 3 escolas iniciáticas. Ao longo de seus
79 anos de vida foi um grande pesquisador das áreas da antropologia cultural,
educação, biblioteconomia e desenvolvimento comunitário, criou um instituto de
estudos e escreveu livros sobre filosofia africana bantu-kongo.
Makota Valdina e Bunseki Fu-Kiau se conheceram pessoalmente em 1997,
em um simpósio realizado em Iowa. Em 1999, Fu-Kiau participou de um ciclo de
palestras no CEAO, organizado por Makota. Entretanto, alguns anos antes, ela já
havia tomado conhecimento dos escritos dele. Ela conta que conheceu Fu-Kiau
através de Daniel Dawson, quando conversavam sobre a cultura afro-brasileira.

Ele disse: “eu tenho material dum africano do Congo, que mora nos Estados
Unidos, que eu vou mandar para você.” E assim ele fez. Mandou a primeira
monografia que Fu-kiau tinha feito nos anos 60. Foi o primeiro material que
me deu uma referência do povo bantu, porque aqui não tinha nada, nunca
vi. Então Fu-kiau começou a ser meu guru, e eu comecei a traduzi-lo com
um pouco de francês que eu tinha estudado no ginásio e um dicionário
(PINTO, 2018).

O trecho acima foi extraído de uma entrevista que Makota Valdina (2018)
concedeu ao professor, músico e poeta Tiganá Santana Santos. Além de Makota,
ele é umas das pessoas que tem contribuído para difundir o pensamento de Fu-Kiau
no Brasil, principalmente através de sua tese de doutorado, defendida em 2019, que
traz a tradução da obra Cosmologia dos bantu-kongo: princípios de vida e vivência,
de Fu-Kiau, originalmente escrita em inglês.
No campo da psicologia, pelo que tenho pesquisado, quem também tem feito
tradução e facilitado o estudo da obra de Fu-Kiau é Roberta Maria Federico4. Em
2020, participei, junto com integrantes da Kanda Ìmárale, do Mini-curso
Fundamentos da Psicologia Africana, ministrado por ela. Nesta ocasião, tivemos
contato com a tradução de alguns capítulos do livro Self-healing power and Therapy
- Old teaching from Afric5 (Poder de autocura e terapia: ensinamentos antigos da
África), originalmente publicado em inglês.

4
Psicóloga preta, que tem atuação nas áreas clínica e escolar. Graduada e Mestre em Psicologia
pela UFRJ, Roberta também é especialista em Terapia de Família. Em 2014 defendeu a dissertação:
“Psicologia, raça e racismo: uma reflexão sobre a produção acadêmica brasileira”. Fundadora do
projeto Sankofa Instituto de Psicologia e pesquisadora autônoma em Psicologia Africana, é
professora do Curso Ubuntu – Educação em Base Africana, da Faculdade de Educação da
Universidade Federal da Bahia, e também é membro da ABPsi – The Association of Black
Psychologists desde 2010, tendo participado do Comitê de Relações Internacionais em 2011.
5
Tradução feita com fins didáticos por Roberta Federico. Para ver mais acessar o site do Instituto
Sankofa Psicologia: <https://sankofapsicologia.com/ebooks/>
16

Em suma, o legado de Makota Valdina, a obra de Fu-Kiau e o resgate


ancestral possibilitado pela vivência em um terreiro de linhagem Congo-Angola, me
conectaram com 3 pressupostos metodológicos que tem me auxiliado a refletir sobre
a tarefa de cuidar: o uso da língua, a restituição da humanidade e a matrigestão.

1.1.1 Uso da língua

Makota Valdina (2015) traz a dimensão de uma série de violências que se


expressam pela linguagem, uma delas se relaciona com os processos de nomeação.

A palavra é algo muito importante, seja ela dita, rezada ou cantada. Por
isso, a maior atrocidade que fizeram conosco, com aqueles que foram
tirados de suas terras, de seus lugares, falando a sua língua, tendo o seu
próprio nome, a maior violência que fizeram com essas pessoas foi tirar o
direito de ser chamado pelo seu próprio nome, de sentir as irradiações do
seu nome e impedir que eles se comunicassem nas suas Línguas (PINTO,
2015, p. 160).

Para Wanderson Flor do Nascimento (2018, p. 590) “Nomear é situar a


criança em seu trajeto histórico é inseri-la na marcha que fará com que ela se
conecte com a história de quem lhe antecedeu”. Quando nasci, fui nomeada como
Nathália, nome que tem origem no latim e que significa nascida no dia de Natal.
Entretanto, durante grande parte de minha vida, não consegui me conectar com este
significado, pois não achava que esta definição refletia o meu modo de ser ou que
tivesse a ver com a história de quem me antecedeu. No processo de me reconhecer
como uma pessoa africana em diáspora, uma negra mulher, senti a necessidade de
adotar um nome que tivesse ligação com a minha história: um nome africano. Com
isso, escolhi Ayana Sisi. Ayana, em KiSwahili6, significa aquela que tem a poesia,
entretanto, na Etiópia, pode ser traduzido como flor bonita. Sisi quer dizer, em
Nigeriano, nascida no domingo.
Em sua autobiografia, Malcolm X (1992) diz que não se deve condenar uma
pessoa sedenta que tem um copo de água suja, mas sim lhe mostrar onde conseguir
água limpa. Quando me dei conta da violência que era não ter recebido um nome
africano, me percebi sedenta e a auto-nomeação foi uma forma de tentar suprir isso.
Entretanto, esse ainda não era o copo de água limpa.

6
Também conhecida como Swahili, é a língua banta com o maior número de falantes.
17

Fu-Kiau (1991)7 explica que ao longo da vida, uma pessoa pode receber
diferentes tipos de nomes (formal, informal ou iniciático), mas que todos eles são
dados pela comunidade: seus pais, familiares, vizinhos ou sacerdotes de escola
iniciáticas da tradição Bakongo. O nome de uma pessoa se relaciona com o seu
propósito de vida, e, na medida em que aquilo que somos é construído a partir da
relação com nossa comunidade, é dela que deve vir a nomeação.
No contexto diaspórico, uma forma de resgatar o nome ancestral, a dijina,
acontece através dos rituais de iniciação do candomblé. Makota Valdina nos diz:

(...) considero receber um nome africano através da entrada de uma pessoa


no grupo dos iniciados como uma forma de resgatar uma identidade de
origem africana, uma vez que aos africanos para aqui trazidos e seus
descendentes foi usurpado o direito de conservar, de manter o seu
verdadeiro nome, algo tão importante nas tradições africanas,
particularmente nas tradições bantu, onde o nome de uma pessoa ao ser
falado emite vibrações e reforça invocando o papel que essa pessoa tem e
o que ela deve ser na sua comunidade mais próxima, no mundo. Assim, a
dijina, o nome, é algo muito mais que um simples nome. É o que alguém
deve ser no mundo; daí a grande responsabilidade no rito de dar nome a
alguém, do significado do nome (PINTO, 2015, p. 152).

Quando foi entrevistada por Tiganá Santos, Makota Valdina disse que esse
resgate da língua africana foi uma das coisas que mais lhe marcou no contato com
Fu-Kiau: “(...) quando ele diz que a língua era a base de tudo. O começo das coisas”
(PINTO, 2018). Para Fu-Kiau (1991), enquanto houver vida deve haver educação,
seja de maneira individual ou coletiva, pois "se o ensinamento termina - sobre nós -
isso é a morte [Milongi kasuka, ku mpèmba]”. E é justamente a língua que dá
suporte a todos os processos [dingo-dingo] de aprendizagem que uma pessoa pode
ter ao longo da vida. Por isso,

Os africanos, incluindo-se aqueles de descendência africana, devem amar o


estudo de suas línguas se desejarem falar honestamente a respeito de si e
a respeito do que são, pois todos os códigos dos sistemas de sua sociedade
são codificados (conectados) nestas línguas [makolo mano ma bimpa bia
kimvuka kiâu makângwa mu ndînga zôzo] (FU-KIAU, 2019, p. 15/16).

Assim, apostamos que ressignificar o léxico não se trata somente da criação


de novas palavras e conceitos, mas, sobretudo, do estudo de troncos linguísticos

7
A tradução dos 4 primeiros capítulos de Self-healing power and Therapy - Old teaching from Afric foi
realizada, para fins didáticos, por Roberta Maria Federico. Não tivemos acesso à numeração das
páginas da obra, originalmente publicada em inglês, por isso elas não foram especificadas neste
trabalho.
18

africanos e de suas influências no português8. Isso nos remete ao kikongo, o mais


adotado entre os linguistas, quando se trata de um idioma bantu e que é resgatado
através da vivência do Candomblé Angola.

A língua é um dos elementos fundamentais de identidade para cada grupo


etnocultural africano, por isso considero muito importante a manutenção da
linguagem, dos termos utilizados por cada terreiro, bem como a forma de
realizar seus rituais conforme o recebido do seu terreiro matriz (SANTOS,
2018, p. 150).

Nos terreiros de Candomblé Angola, o kikongo está presente “nas rezas, nas
cantigas dos n’kisi, nos cantos ritualísticos, no vocabulário e expressões usados”
(PINTO, 2015, p. 151). Além disso, um dos métodos de difundir esta língua, dentro e
fora das casas de santo, é através do uso de provérbios [ngana]. Para Fu-Kiau,

O provérbio é uma entre as fontes mais importantes que melhor explicam o


Mûntu africano e seu pensamento. Nos debates, nas cerimônias, nos
julgamentos, na alegria, assim como no sofrimento, os provérbios são
frequentemente usados para repreender, criticar, comparar, segregar,
encorajar, punir e curar. São usados para ensinar, explicar e,
meticulosamente, codificar e decodificar [kânga ye kutula] (FU-KIAU, 2019,
p. 71).

Desta maneira, ao longo deste trabalho, faremos o exercício de resgatar


ensinamentos bantu-kongo através do uso de provérbios e palavras em kikongo. A
primeira delas, kinsa, anunciada no título do trabalho, se relaciona com o fio que liga
todos os outros desta pesquisa: o cuidar.
Na língua portuguesa, cuidar envolve executar uma ação ou processo com
atenção, proteção e ponderação. Em kikongo, uma das línguas africanas mais
faladas em Angola, cuidar vem do verbo kinsa, que significa tomar conta, curar,
tratar, guiar. Neste idioma, nkisi aparece como um pacote de ferramentas que
proporciona o cuidado; é o próprio remédio, com a “intenção de dar vida e ser vida
para nós” (PINTO, 2014). Não por acaso, esta mesma palavra é usada para nomear
as divindades cultuadas no Candomblé Angola. A água, o vento, o ferro, o sol, as
folhas, a terra… são energias que nos curam, e o nkisi é a materialização de toda
essa força ancestral.

8
Embora não tenhamos nos debruçado sobre a obra da intelectual e revolucionária Lélia Gonzalez,
importa sinalizar que ela nos fornece ferramentas importantes para pensar sobre as contribuições da
cultura africana para a sociedade brasileira, sobretudo para a língua portuguesa - que ela conceitua
como Pretuguês.
19

1.1.2 Restituição da humanidade

Uma das maneiras de resgatar os jeitos de kinsa, como sinalizou Makota


Valdina (2014), é através da restituição da humanidade. Ela conta sobre como ter
nascido e vivido no Engenho Velho da Federação contribuiu para que ela tomasse a
vida, em todos os seus aspectos, como algo central e para que entendesse que o
processo de se tornar uma pessoa só foi possível por se desenvolver de maneira
compartilhada com sua comunidade.

Era mesmo uma comunidade, com outro jeito de nascer, de crescer, de


viver, de educar crianças e jovens, de realizar coisas coletivamente, de se
entreajudar do nascer ao morrer… Como tenho dito, em algumas das
minhas falas por aí afora nos dias de hoje, o ambiente do meu tempo de
criança, que guardo na memória com muito boas lembranças, teve uma
importância muito grande e contribuiu para embasar a formação da pessoa
que hoje sou (PINTO, 2015, p. 28).

Quando Makota Valdina traz à tona a influência da comunidade para a


formação de uma pessoa, me lembro da II Semana de Psicologia Paralela Preta e
Indígena, que aconteceu em 2018, na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Nesta ocasião, estive com Vanessa Andrade, Allan Miranda [Anlenvu] e Thais Valle,
representando o Grupo Preto de Psicologia Ìmárale/ Kanda Ìmárale, facilitando uma
oficina que teve como objetivo construir estratégias para alunas(os) negras(os)
sobreviverem ao contexto acadêmico.
Nesta oficina, os participantes foram convidados a falar sobre referências
negras que tiveram ao longo da vida. Durante a conversa, foram citados diferentes
intelectuais e artistas negros, mas, quando os alunos começaram a citar seus pais,
avós, vizinhos e pessoas mais velhas que lhe ensinaram, de uma maneira orgânica,
sobre bem-viver através de um corpo preto, a atividade ganhou outro tom. Ao
retomar esta memória, percebo que aquela oficina foi um dos momentos onde pude
resgatar, comunitariamente, jeitos para não ser enfeitiçada pela brancura da
universidade. O encontro com Makota Valdina deu ainda mais consistência para a
aposta em formas de fazer pesquisa que estejam conectadas com nossas
experiências.
20

No texto Interação entre o mundo físico e o sobrenatural no candomblé9,


Makota Valdina Pinto (2015) compartilhou sobre sua desconexão com as produções
acadêmicas que teve contato:

Às vezes eu leio páginas inteiras de textos saídos da academia, com um


monte de palavras e de conceitos que na realidade eu não leio porque não
consigo entender aquela linguagem, aquele pensamento, aqueles “códigos”
do cientista acadêmico. E isso não é senão o feitiço da academia (PINTO,
2015, p. 161).

A partir desta citação, conjecturamos que a falta de entendimento de Makota


Valdina, em relação a estes textos, se tratava de uma desconexão, na medida em
que os termos utilizados não faziam sentido para ela por não considerarem sua
experiência de vida e de seu povo. Historicamente, o método de pesquisa que tem
sido reconhecido como válido é aquele onde supostamente existe uma separação
entre o sujeito e o objeto. Entretanto, nosso jeito de pesquisar sobre formas de
cuidar do povo preto leva em consideração justamente a conexão entre pessoas que
cuidam e que são cuidadas.
Makota Valdina Pinto (2015) aponta que este compromisso se relaciona com
uma pesquisa que é feita “de dentro para fora”. Ela diz:

Eu não sou pesquisadora, aliás, de certo modo sou, porque foi a partir da
minha iniciação no Candomblé que eu tenho buscado as origens do que nós
temos como legado, e aí começou a minha pesquisa, mas de dentro para
fora, partindo da minha vivência como sujeito, e não de fora para dentro; foi
como sujeito do candomblé, e não tendo o candomblé como objeto de
pesquisa (PINTO, 2015, p. 157).

E é justamente este movimento “de dentro para fora” que aposto para
pesquisar. Assim, percebo a Kanda Ìmárale, o Kitembo e o Kupapa Unsaba, por
exemplo, não como meus campos ou objetos de pesquisa, mas como espaços de
referência para a construção de uma psicologia que cuide e que ajude a resgatar
possibilidades de vida para o povo negro.
Ainda que africanas e africanos tenham dado voltas na árvore do
esquecimento, o sentido da ancestralidade e da comunidade não se perdeu
totalmente na experiência do povo preto nas diásporas. Pois, a memória do que

9
Texto elaborado a partir de palestra proferida no I Simpósio Baiano de Etnopsiquiatria em 2000,
Salvador - BA. Está anexado ao livro Meu caminhar, meu viver, autobiografia de Makota Valdina
(2015).
21

significava ser africano não havia ficado na África, mas estava presente em seus
próprios corpos. Esta pesquisa se dá através de um corpo que possui marcas e
cortes. Um corpo que não só escreve sobre a luta, mas que também a vivencia.
Desta maneira, ao ter como objetivo a restituição da humanidade do povo negro,
emerge o reconhecimento da força de vida que cada corpo preto trás.
Para Makota Valdina Pinto (2014), a preservação de jeitos de viver que levam
em consideração a ancestralidade e a vida em comunidade “Não é algo que livro
nenhum vai ensinar; que só uma conversa, uma palestra ou uma dissertação... Tem
que passar pela experiência do viver, do jeito de ser; de viver, de fazer, que é
diferente”.
Deste modo, nosso jeito de pesquisar se trata de um exercício que é feito a
partir de uma experiência intelectual, mas que não exclui o conhecimento que está
presente no corpo, rompendo com a cosmovisão europeia, de que ele estaria
separado da mente. No texto A busca de oralidade: o encontro com mulheres
negras, Luiza Rodrigues Oliveira (2020), escreve sobre isso: “Eu brinco com meus
alunos, nós somos filhos do Descartes, um cara que dizia que bastava exercer o
pensamento que a gente descobria o mundo. E a história não é essa. É com força,
com coragem, com emoção e razão” (p. 55).
Neste mesmo texto, Luiza Oliveira aponta a relação entre a pesquisa e os
saberes tradicionais:

(...) conto memórias, que têm me ajudado a seguir adiante e a pensar a


pesquisa para além daquele modelo no qual nós fomos formados. O modelo
que anuncia a investigação, a pergunta, a dúvida, mas na verdade não há
espaço para dúvidas, questionamentos, incertezas. Essas cenas me ajudam
a ter força e coragem para admitir que eu tenho dúvidas e incertezas com
relação à pesquisa que eu venho fazendo (OLIVEIRA, 2020, p. 52).

Enquanto no modelo eurocêntrico há uma ideia de racionalidade, neutralidade


e certeza, em uma perspectiva que se inspira em saberes tradicionais há lugar para
a corporalidade, o afeto e até mesmo para as incertezas, pois quando se vive em
comunidade o aprendizado é constante, seja através de ensinamentos dos mais
velhos ou dos mais novos. Este aprendizado tem a ver com a escuta do outro, o que
Luiza Oliveira chama de oralidade.
Ao incorporar a noção de oralidade como a escuta do outro, concluo que os
encontros que possibilitaram a transformação desta pesquisa e de minha vida foram
22

aqueles que se deram, sobretudo, com negras mulheres. Desta maneira, o terceiro
sentido que costura nossos aspectos metodológicos é o de matrigestão.

1.1.3 Matrigestão

Kânda diasâla nsâng’a n’kèto ka ditûmbukanga ko.


Enquanto houver um “rebento” feminino dentro da comunidade,
ela não poderá ser aniquilada. A presença de uma mulher na comunidade é o símbolo da
continuidade da vida nessa comunidade, e, ao contrário, a ausência é o símbolo do seu término.
O feminino é a vida (Deus) em e ao redor de nós.
(Provérbio Kongo)

A luta de pessoas negras diz respeito à restituição da humanidade de todo


um povo: homens, mulheres, crianças, adultos e idosos. Entretanto, é imprescindível
considerar que na experiência da diáspora brasileira o papel de negras mulheres foi
essencial para a sobrevivência do povo preto e a preservação de valores africanos.
Durante a banca de qualificação desta pesquisa, em 2020, a professora
Fátima Lima sinalizou a importância da discussão do papel de negras mulheres na
gestão do cuidado e sugeriu que a narrativa negra feminina aparecesse mais. Foi
necessário vivenciar e ressignificar uma série de experiências no campo afetivo,
político e religioso para que eu passasse a perceber a força das mulheres no
cuidado que vinha oferecendo e recebendo. Somente após sentir essa força em meu
próprio corpo é que pude acolhê-la como verdade. Se trata de um conhecimento que
precisa ser absorvido pelos poros, passar pelo corpo para fazer sentido; de uma
dinâmica que coloca a experiência como orientadora da vida e o corpo como o
principal instrumento. Assim, o sentir é o que direciona a existência.
Minha escolha pela psicologia, profissão voltada para o cuidado, veio através
da observação da postura de mulheres da minha família, majoritariamente negras,
que atuavam como mães de santo, donas de casa, babás, empregadas domésticas
e técnicas de enfermagem. Ao conhecer a história de negras mulheres da Kanda
Ìmárale, do Kupapa Unsaba, do Kitembo e de diversos outros espaços negros, isso
foi reforçando minhas referências para pensar o cuidar. Além disso, ter sido
suspensa para o cargo de Kota, em minha casa de santo, foi um divisor de águas
para que eu me apropriasse do reconhecimento que essa comunidade me deu: ser
uma negra mulher que cuida.
23

Em sua autobiografia, Makota Valdina (2015) dedica uma sessão para


resgatar um pouco da história de mulheres que marcaram o seu viver. No que diz
respeito à sua mãe, Eneclides de Oliveira Pinto, também conhecida como Dona
Neca ou Dona Necride, ela conta:

Para mim, minha mãe foi uma mulher excepcional. Se minha mãe tivesse o
estudo que eu tive…! Ela era uma mulher incrível. Ela tinha uma visão
aberta, ela tinha uma cabeça para além do seu tempo. Às vezes eu ficava
admirada. Ela tinha aquela força interior que era dela mesma. Às vezes eu
sentia que ela arrancava dela própria a força para realizar as muitas coisas
que fazia, sempre pensando positivamente e motivando as pessoas,
aconselhando, ajudando… Isso ela passou pra gente, isso ela deixou para
os filhos dela (PINTO, 2015, p. 132).

Essa postura de retirar das “entranhas o sentido de viver e cuidar de todo um


povo” (CARNEIRO, 2000, p. 35) não inicia e nem se finda com Dona Neca. É sabido
que, em períodos anteriores à colonização, nas sociedades africanas, as negras
mulheres desempenhavam um papel de destaque, no que diz respeito às questões
religiosas, culturais e políticas. Historicamente são essas as pessoas responsáveis
por gestar não só filhos, mas também jeitos para fortalecer suas próprias
comunidades.

Quantas situações que nós vivíamos como negros, pobres, mas ela vinha,
impunha, passava para a gente um sentimento de ser sempre digno.
Quando veio nos anos 70, aquela onda do “negro é lindo”, de ter orgulho de
ser negro, eu me vi pensando: Mas eu sempre tive orgulho de ser o que eu
sou, pois minha mãe passava isso para gente: se você tem que estar em
algum lugar, você vai, mas você vai com o melhor que você pode, com o
que você tem. Ela dizia: “Eu arrasto a barriga no chão mas todos os meus
filhos vão estudar!” (PINTO, 2015, p. 132).

Makota Valdina (2015) relata que, ao revisitar fotografias de sua infância, se


deparou com uma foto em que estava com um livro nas mãos. Como profissão,
escolheu a educação, e, ao longo de seus 77 anos de vida se dedicou não só a
instrução do outro, mas também de si mesma. Hoje, estando viva em espírito, nos
ensina que enquanto houver vida deve haver aprendizado. No trecho citado acima,
ela conta que uma das principais responsáveis pelo seu desejo de estudar foi sua
mãe.
Além disso, em muitas de suas falas, ela afirma que não se descobriu negra
através da militância, pois sua mãe lhe ensinava sobre formas de manter sua
dignidade e de ter orgulho de quem era. Com isso, podemos considerar Dona Neca,
24

e tantas outras negras mulheres que vieram antes dela, como um agente político de
mudança, já que sua postura matriarcal não impactou somente a vida de Makota
Valdina, mas de todas as pessoas, mulheres e homens, que tomam conhecimento
deste legado e apreendem jeitos negros de ser e de fazer.
Uma referência de negra mulher, também nascida na Bahia, que deixou um
grande legado na Baixada Fluminense foi Beatriz Moreira Costa, a Mãe Beata de
Yemonjá. Mãe Beata nasceu em Cachoeira (Bahia), em 20 de janeiro de 1931 e fez
seu retorno ancestral em 27 de maio de 2017. Foi artesã, escritora, iyalorixá, uma
pessoa incansável na luta em favor dos direitos humanos, do meio ambiente, da
educação, da saúde e da restituição da humanidade de pessoas negras. Em 20 de
abril de 1985, fundou o terreiro de Candomblé Ketu Ile Omiojuarô, em Miguel Couto,
bairro de Nova Iguaçu. Após sua morte, a casa ficou sob responsabilidade de seu
filho carnal, Baba Adailton Moreira.
Em uma de suas preciosas falas, quando foi entrevistada por Jurema
Werneck e Maisa Mendonça, Mãe Beata de Yemonjá falou sobre a ancestralidade e
a força que ela carrega. Ela nos diz:

Recebo essa força de meus ancestrais, que viveram nos engenhos. Sou
descendente de escravos e entendo o sofrimento que passaram. Hoje eu
coloco meu corpo, minha alma e meu saber a serviço deles. Continuo
lutando para criar as oportunidades que eles não tiveram. Hoje sou Beata
de Yemonjá (YEMONJÁ, 2000, p. 17).

A partir deste trecho, ela nos ensina que tomar a matrigestão como sentido,
que orienta nossas pesquisas e nossas vidas, se relaciona com o desenvolvimento
de ações, protagonizadas por mulheres, mas que buscam afirmar um futuro para
todo o seu povo. A centralidade de negras mulheres, no que diz respeito ao cuidar,
não ficou no passado. Nas favelas, na baixada, no subúrbio, nos terreiros, na
psicologia, na saúde pública, e onde mais for preciso estar, a potência de gestar,
sejam crianças, projetos ou pesquisas, continua a serviço da continuidade da vida
do povo preto.
Assim, ao carregar as forças de negras mulheres em minha escrita e em cada
passo que dou, os jeitos de kinsa também vibram em mim!
25

2 O (DES)ENCONTRO COM A PSICOLOGIA: NOTAS SOBRE UM CAMINHO DE


VIDA E DE PESQUISA

2.1 Nasci para cuidar

“Os pássaros têm penas porque foram passadas a eles por outros pássaros”
(Provérbio Kongo)

Meu ponto de partida para perceber o mundo se dá através de uma


experiência negra. Neste horizonte, concebo o ser humano como sendo detentor
não só de aspectos físicos e psicológicos, mas também espirituais. Do mesmo modo
que nosso corpo e nosso intelecto passam por transformações ao longo da vida, o
nosso espírito forja e é forjado pelo jeito de viver. As palavras de Sobonfu Somé
(2003) respaldam a percepção de que a dimensão espiritual na vida de uma pessoa
pode ser potencializada através da religião, mas não está restrita a ela. Ter
intimidade com o que Somé (2003) chama de espírito - mas que em uma
perspectiva de terreiro é chamado de axé, força vital, nguzo - diz respeito a
consciência sobre o propósito da própria vida e sobre como ele pode beneficiar o
fortalecimento da comunidade.
Para nós, o propósito de vida se desenvolve a partir de dois movimentos: 1)
autoconhecimento: todo ser humano possui um desígnio e deve buscar tomar
consciência dele, entretanto, não é a pessoa quem diz quem ela é, mas sua
comunidade; 2) desenvolvimento: é através da relação com a comunidade que o ser
humano potencializa os dons que recebeu, o que possibilita que ele tenha um lugar
onde possa pertencer e ser útil.
Ao fazer o resgate destes sentidos em minha própria história, percebo que
crescer vendo pessoas, sobretudo mulheres, que eram referências para mim, se
doarem para suas famílias, pessoas queridas, vizinhos ou para quem precisasse ter
sua força de vida potencializada, me auxiliou a descobrir o meu propósito. A
comunidade que me cerca me reconheceu e eu fui me identificando com o meu
papel no mundo: ser uma pessoa que cuida.
26

“Às vezes, sinto que estou fragmentada. Mas quando as pessoas me procuram buscando ajuda,
também transmitem o seu carinho e isso me enche de energia. Então, procuro juntar meus
caquinhos, colar as rachaduras, e seguir vivendo”.
(Mãe Beata de Yemonjá,Tradição e religiosidade, 2000, p. 18).

Ao resgatar minha história, uma negra mulher, fruto de um relacionamento


interracial, criada na Baixada Fluminense e que desde que nasceu foi violentada por
um mundo branco, percebo que em muitos momentos precisei ser fortalecida e
recebi esse fortalecimento das pessoas que me cercavam. Mas, sentia como se
tivesse uma ferida que nunca fechava. Parafraseando Mãe Beata de Yemonjá, eu
sentia estar “fragmentada”. Entretanto, o encontro com as feridas e com o processo
de cura do outro me interpelava e também possibilitava curar algo em mim.
Para Sobonfu Somé (2003) todas as pessoas nascem com um propósito de
vida. Eu nasci para cuidar. Isso direcionou e vem direcionando minhas escolhas
políticas, religiosas, afetivas e profissionais. Não sei localizar temporalmente em que
momento aconteceu, mas, me recordo de ser uma criança decidida sobre a
profissão que gostaria de seguir. Queria ser psicóloga! Quando aprendi que existiam
técnicas, ferramentas e estudos para desenvolver o dom de cuidar, fui em busca de
jeitos, um deles foi a formação em psicologia.
Cursei a graduação no Centro Universitário Celso Lisboa, entre 2012 e 2017,
através do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES). Neste período, presenciei
discussões a respeito do lugar da(o) psicóloga(o). Enquanto alguns profissionais
diziam serem da área das ciências humanas, outros se afirmavam como
profissionais da saúde. Se nos afirmamos pertencentes ao campo das ciências
humanas, o que nos difere de sociólogas(os), antropólogas(os) e filósofas(os)? E se
somos profissionais de saúde, o que nos diferencia de enfermeiras(os),
fisioterapeutas e médicas(os), por exemplo? Afinal de contas, qual é o papel dos
profissionais de psicologia?
As ferramentas que busco construir através desta pesquisa não pretendem
esgotar tais questionamentos, mas pensar a psicologia a partir da concepção do
cuidado. Esta noção de cuidar tem a ver com a busca por possibilidades de vida em
meio a um contexto de morte. Nesta perspectiva, minhas primeiras referências para
sentir, pensar e viver o cuidado foram pessoas de minha família, especificamente as
mulheres. Dentre elas, destaco minhas avós.
27

Minha avó materna é uma mulher de 75 anos, que estudou para ser
costureira. Para algumas pessoas ela é Ivonete, para outras ela é Mãe Afugelenã,
sacerdotisa do Abassá de Omulu e Oya, no Parque Ambaí, Nova Iguaçu. Embora
ela possua ascendência portuguesa e traga em seu corpo traços de um fenótipo
branco, sua aproximação com o candomblé, religião de matriz africana, faz com que
sua forma de cuidar de sua família, seja a cosanguínea, seus 3 filhos, 5 netos e 4
bisnetos, ou a espiritual, imprima valores de uma perspectiva negra. Esta
perspectiva já estava presente na vida de minha família antes mesmo que eu
nascesse. Minha avó conta que na ocasião de sua iniciação minha mãe tinha
apenas 10 anos de idade.
Cresci sentindo o cheiro das ervas, quando um banho era preparado ou
quando uma criança era rezada; o barulho dos búzios; a pipoca estourando e as
comidas secas cozinhando. As lembranças das madrugadas dormindo na esteira,
durantes as festas de candomblé, da energia e dos nomes dos erês, do silêncio das
ruas de Belford Roxo de madrugada, quando voltávamos para casa, e de muitos
outros momentos da infância protagonizados pelo candomblé ainda são vivos em
minha memória.
Makota Valdina (2014) conta que existem coisas que acontecem na infância
que marcam a vida de uma pessoa. “Tem coisas que eu vivenciei em criança e
marcou, me marcou, e é a minha memória. Eu não me lembro que idade tinha, mas
tá aí (...) tenho outras memórias, que eu não lembro que idade tinha, mas, de ver o
fazer coisa de negro, ouvir coisa de negro.”
Desde criança, ouço minha família dizer que a casa (de santo) de minha avó
parece um hospital, pois é o primeiro lugar que as pessoas recorrem quando estão
doentes. Em muitos momentos, eu e meus familiares nos vimos incomodados por ter
que dividir a casa, os momentos de alegria e tristeza, o tempo e o colo de minha avó
com pessoas que ela estava cuidando. Hoje, por ser uma profissional do cuidado e
uma mulher de terreiro, entendo que dedicar a vida para cuidar de uma comunidade
requer doação.
Quem procura os serviços de saúde, está atrás de cuidado. E quando esta
demanda diz respeito ao povo preto, são estas as pessoas que majoritariamente
acessam o Sistema Único de Saúde (SUS). Em grande parte das vezes, elas não só
não recebem acolhimento como também são violentadas por ele. Penso que a
construção de jeitos de cuidar envolve primeiramente a necessidade de reconhecer
28

a humanidade da pessoa que precisa de cuidado. Neste sentido, a psicologia e


qualquer outra profissão que se proponha a cuidar tem muito a aprender sobre
acolhimento com o povo de terreiro.
É preciso olhar além das técnicas e abordagens para perceber que a pessoa
que apresenta “perturbações mentais” é mais do que um diagnóstico. É através da
abertura para acolher uma pessoa que tem história, que se entende que o
desequilíbrio do viver não se limita a neuroses e psicoses. Como não estar à beira
da loucura quando se apanha do marido, se tem o filho assassinado, não se tem o
que comer ou se o emprego foi perdido, por exemplo?
A história de vida das mulheres de minha família paterna também me
influenciou e influencia a pensar sobre o cuidado, sobretudo, a figura de nossa
matriarca. Maria Aparecida é minha avó paterna, uma negra mulher de 72 anos, que
saiu de Água Viva, Minas Gerais, aos 18 anos a caminho do Rio de Janeiro. No
trabalho, exerce a função de empregada doméstica e, em casa, é a principal figura
da família: a Mãe, como é chamada por seus 9 filhos, 18 netos e 5 bisnetos. Com
ela aprendi a valorizar o cuidado com a casa; a importância de não ser sozinha na
vida; de ter tempo para um café e para contar/ouvir histórias; a reconhecer o papel
do estudo e do trabalho; e fazer boa comida (o jeito de temperar o feijão, de cortar a
couve e de dourar a farofa são algumas das heranças mais ricas que ela deixará).
É importante citar que no Brasil, enquanto pessoas brancas, como minha avó
materna sabem sobre sua origem familiar, pessoas negras, como minha avó
paterna, encontram uma lacuna em sua história. Minha ascendência é africana, mas,
de que lugar da África vieram meus ancestrais?
Abdias Nascimento explica:

É quase impossível estimar o número de escravos entrados no país, isto não


só por causa da ausência de estatísticas merecedoras de crédito, mas,
principalmente, consequência da lamentável Circular n. 29, de 13 de maio de
1891, assinada pelo ministro das Finanças, Rui Barbosa, a qual ordenou a
destruição pelo fogo de todos os documentos históricos e arquivos
relacionados com o comércio de escravos e a escravidão em geral. As
estimativas são, por isso, de credibilidade duvidosa. Há uma estimativa cujos
números me parecem abaixo do que seria razoável, dando 4 milhões de
africanos importados e distribuídos conforme as seguintes proporções,
aproximadamente: 38% para o porto do Rio de Janeiro, de onde eles foram
redistribuídos para os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás; 25%
para o estado da Bahia; 13% para o estado de Pernambuco; 12% para o
estado de São Paulo; 7% para o estado do Maranhão, e 5% para o estado
do Pará (NASCIMENTO, 2017, p. 58/59).
29

Ter mulheres como referências não é um reconhecimento que se limita a


minha trajetória, mas fala sobre o papel político destas personagens, principalmente
negras mulheres, que foram fundamentais para a sobrevivência e o cuidado do povo
negro, bem como para a formação da sociedade brasileira.
Segundo Juliana Farias, Carlos Soares e Flávio Gomes (2003), entre 1860 e
1900, a maior parte das africanas libertas tinha como principal ocupação o trabalho
doméstico (cozinheira, lavadeira, engomadeira, dentre outros serviços de casa) e em
segundo lugar o trabalho de rua (venda de produtos e serviços nas praças).
Enquanto isso, os africanos trabalhavam sendo artesãos (carpinteiro, marceneiro,
pedreiro, dentre outros serviços manuais), bem como nas funções de cozinheiro,
jardineiro e lavador de garrafas.
A respeito disso, escrevi que

A maioria das mulheres de minha família paterna já trabalhou ou trabalha


em atividades domésticas. Enquanto atua como cuidadora, minha irmã
sonha em ser enfermeira. Minha avó, que trabalhou a vida toda como
doméstica, se aposentou, mas decidiu continuar na mesma função. Eu,
depois de ter terminado o ensino médio, trabalhei como babá. O que isso
quer dizer? Esta não é somente uma questão minha e de minha família,
mas de muitas mulheres negras, já que o Brasil tem a maior população de
domésticas do mundo (NASCIMENTO, 2019, p. 99).

Para Vânia Maria da Silva Bonfim (2009),

É esse o lugar que a mulher negra brasileira pôde se enunciar, sob


dominação, resistência e negociação, nos espaços que lhe foram
vagamente abertos e naqueles que, contra as forças de dominação, elas
próprias tentaram abrir para si e para seu povo (BONFIM, 2009, p. 241).

Em um trecho de Quarto de despejo: diário de uma favelada, escrito por


Carolina Maria de Jesus, é possível perceber a naturalização do papel da negra
mulher como promotora de cuidado e o estranhamento quando um corpo negro é
visto recebendo cuidado, principalmente por pessoas brancas.

22 de julho Tem hora que revolto com a vida atribulada que levo. E
tem hora que me conformo. Conversei com uma senhora que cria uma
menina de cor. É tão boa para a menina... Lhe compra vestidos de alto
preço. Eu disse:
- Antigamente eram os pretos que criava os brancos. Hoje são os
brancos que criam os pretos (JESUS, 1960, p. 24).
30

Na infância, grande parte das brincadeiras feitas por meninas envolvem o


cuidar: da casa, dos filhos, da educação ou de alguém que está doente. Entretanto,
quando a maioria, ou todas, as bonecas que negras meninas brincam durante a
infância são brancas pode ser produzida nelas a crença de que somente o corpo
branco é digno de receber cuidado. A constatação de que historicamente pessoas
negras investiram sua força vital para servir e cuidar de pessoas brancas, enquanto
eram inferiorizadas por elas, torna necessário construir práticas que versem sobre o
cuidado do povo preto.
Desde a graduação, minha relação com a psicologia foi paradoxal: se por um
lado eu estava certa de que era esse o caminho que eu desejava me aproximar, por
outro lado, eu percebia a existência de um distanciamento entre mim e este campo
de estudo. Ao sair diariamente de Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense,
para chegar ao Engenho Novo, bairro da Zona Norte, esbarrava com o
distanciamento geográfico. Era preciso enfrentar a segregação espacial para ter
acesso à psicologia; eu ia ao encontro dela, mas percebia que ela não chegava até
o meu bairro, por exemplo. Afinal de contas, para que(m) serve a psicologia? Esta
pergunta também é feita por Alline Pereira (2019), em sua dissertação de mestrado.
Neste texto, entitulado Memória, ancestralidade e comunidade como ferramentas
para uma psicologia do aquilombamento, ela escreve:

(...) traremos aqui nossos modos de produzir essa Psicologia do cuidado


que nossos aquilombamentos nos fornecem. Não colocando, nosso povo,
mais uma vez como objetos de estudos, mas sim a própria Psicologia em
análise, quando podemos responder: Pra que e pra quem servem nossas
pesquisas na psicologia? Pra que e pra quem serve a nossa prática? Ainda
mantemos práticas colonizadoras em nome de uma Psicologia
progressista? Não focaremos nossos aquilombamentos (...) como objetos
de estudos. Mas sim o que nossos encontros impactam e nos fazem
construir a nossa Psicologia do Aquilombamento enquanto cuidado de nós
mesmos (PEREIRA, 2019, p. 10).

Historicamente, este campo teve o negro como tema, objeto de suas


pesquisas, e o branco como detentor deste saber. Assim, é compreensível que ainda
exista o imaginário social de que psicologia é para “doido”, já que o manicômio foi
uma das formas pelas quais pessoas pretas acessaram a psicologia, ou para “gente
que tem dinheiro”, na medida em que quem mais acessa o serviço prestado por
profissionais de psicologia em consultórios particulares são pessoas brancas e de
classe média. Pensando em construir uma psicologia que verdadeiramente cuide e
31

que tenha espaço para gente negra, me lembro da fala de Alline Pereira:
“Sensibilizar os outros para o que acontece na baixada é fazer psicologia!”.

28 de maio… A vida é igual um livro.


Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra.
E nós quando estamos no fim da vida
é que sabemos como a nossa vida decorreu.
A minha, até aqui, tem sido preta.
Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro
(CAROLINA MARIA DE JESUS, 1960, p. 167)

No que diz respeito a uma política de (in)segurança pública, Nova Iguaçu,


onde 63,77% da população se autodeclara negra (IBGE, 2010), tem os piores
indicadores da Baixada Fluminense. O Mapa da Desigualdade (2020) revela o
percentual de homicídios de pessoas negras, em um total de 100 mil habitantes, no
estado do Rio de Janeiro. O percentual de mortes registradas em 2018, em Nova
Iguaçu, decorrentes de intervenção policial, é de 74,3%. Neste sentido, este
município aparece como o 7º mais violento da Baixada Fluminense, ficando abaixo
de Guapimirim, Seropédica, Mesquita, Magé, Belford Roxo e São João de Meriti. A
nível nacional, quando o assunto é genocídio negro, este território está entre as 123
cidades mais violentas do Brasil (MAPA DA DESIGUALDADE, 2016). Como viver
neste contexto e se identificar com uma psicologia que não se preocupa com estas
mortes?
Celso de Moraes Vergne (2018) denuncia a segregação racial e espacial no
território do Rio de Janeiro. Ele narra que:

Enquanto alguns, em lugares fechados e em ar refrigerado, pedem mais


sangue de negros e favelados como resposta ao crime, a grande parcela
negra da população segue em cotoveladas para sentar nos apertados
assentos dos trens que seguem para a Baixada Fluminense. O amontoado
de pessoas disputando lugares nas plataformas aguarda com ansiedade a
parada do trem do ramal Japeri. Antes de o trem parar alguns homens já se
agarram ás portas, na tentativa de estar em uma melhor posição para
quando estas se abrirem. Homens, mulheres, senhoras e senhores
disputam agressivamente as melhores posições. O sinal do abrir de portas é
seguido de um turbilhão de sons que mistura risos, gritos, pisadas,
empurrões e corridas para se ocupar os assentos disponíveis (2018, p. 17).

Este trecho do texto de Vergne (2018) diz respeito à realidade cotidiana de


pessoas que moram na Baixada Fluminense e que se deslocam para a região
32

central e a zona sul do Rio de Janeiro em busca de trabalho, estudo e de outras


oportunidades que possam apontar melhorias de vida. Entretanto, o preço que se
paga é sentido na própria pele.
Depois do ensino médio, por conta da graduação, estágios e atividades
extracurriculares, passei a circular pela zona norte e zona sul. Assim, “pegar trem”
passou a fazer parte do meu cotidiano. Cotidiano de cotoveladas, de assédio sexual
e em algumas vezes de calor extremo. Estávamos todos no mesmo barco: ao ver os
corpos negros sendo espremidos, sentia a desumanização nos assolar. As “longas
serpentes de ferro e aço” (VERGNE, 2018) são uma atualização do navio negreiro.
Na tentativa de estudar e construir práticas de cuidado que estivessem
alinhadas com a realidade vivida pela população brasileira, busquei experiências
que fossem além do estágio clínico no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) e dos
próprios muros da universidade. Atuei em dispositivos da saúde e da assistência
social, tendo contato com: adolescentes mães em situação de abrigamento
(Programa de Mães Adolescentes, que funcionava na Unidade de Reinserção Social
Ayrton Senna / Mangueira - RJ), pessoas com sofrimento psíquico grave (Centro de
Atenção Psicossocial Clarice Lispector / Engenho de Dentro - RJ) e pessoas em
situação de rua (Consultório na Rua / Jacarezinho - RJ). Neste contato, percebi a
diversidade de gênero, de orientação sexual, de faixa etária, de escolaridade e de
localização geográfica, por exemplo, mas a respeito da cor da pele havia uma
unicidade: as pessoas que estavam em situação de vulnerabilidade eram
majoritariamente negras.
Ao longo da história, além de representar a maior parte da população que
(sobre)vive em situação de rua no Brasil, são as pessoas negras que
majoritariamente têm seu corpo encarcerado em prisões, abrigos e manicômios. Os
corpos negros nestas instituições não representam uma coincidência, mas a
constatação de que o racismo coloca todo um povo em situação de periculosidade,
vulnerabilidade e loucura. Deste modo, como escrevi em outro trabalho, “(...) é
possível mensurar que a produção de fenômenos como o crime, a delinquência, a
doença mental e a marginalização possuem uma necessidade política alinhada com
o racismo” (NASCIMENTO, 2019, p. 91).
Abrahão Santos (2018) alerta que:
33

O uso abusivo de drogas, a criminalidade que assola a população negra, o


alcoolismo, o imaginário social de que somos sujos, preguiçosos e
indesejáveis, o desemprego, a falta de uma escola capaz de desenvolver
nossos sonhos, a intolerância religiosa, o silêncio sobre nossos corpos e as
modulações de nossa subjetividade, a invisibilidade e o contínuo processo
de genocídio e extermínio dos jovens negros, o genocídio que marca fundo
a história dos povos indígenas e afrodescendentes, a falta de lazer e de
uma política de moradia, são alguns dos condicionantes de saúde que, na
atualidade, são destruidores de nossa subjetividade (SANTOS, 2018, p.
256/257).

Em um contexto onde grande parte da grade curricular apresentava uma série


de teorias, conceitos e abordagens como ferramentas para a atuação na clínica,
tornando deficiente o estudo sobre outros campos de trabalho, estar em dispositivos
públicos, como os que eu estagiei, se apresentava para mim como uma
possibilidade de construir uma formação mais conectada com a realidade. Ao
mesmo tempo, eu me perguntava que tipo de psicologia eu poderia oferecer para
estas pessoas com diferentes histórias, mas que tinham uma coisa em comum: o
fato de serem negras.
Além de perceber que a graduação em psicologia era baseada nas produções
acadêmicas de autores brancos, que em sua maioria são europeus ou
norte-americanos, minha formação foi permeada também por outros incômodos
resultados pelo racismo, como, por exemplo: um corpo docente com 15 professores
ter somente duas pessoas negras; a cor da pele dos pacientes do Serviço de
Psicologia Aplicada (SPA) não ser considerada como um fator que atravessaria o
trabalho terapêutico; as violências que ocorriam nas favelas, no entorno da
universidade, não serem temas das aulas; os trabalhos e questões de provas não
versarem sobre as demandas da população brasileira, que é negra em sua maioria.

A formação da(do) psicóloga(o) é um momento privilegiado para a


construção de conhecimento, de saberes e de práticas sobre diversos
assuntos vividos no cotidiano dos sujeitos. Portanto, é nesse momento que
se faz necessário apresentar aos estudantes temas relevantes, para
despertar o interesse na busca do conhecimento e possibilitar o
reconhecimento dos aspectos que envolvem as relações raciais e seus
efeitos psíquicos presentes no cotidiano em nossa sociedade. Ao mesmo
tempo, a distribuição e frequência dos temas tratados na graduação ilustram
o que, provavelmente, será considerado relevante pelas(os) psicólogas(os)
formadas(os) (CFP, 2017, p. 105).

Outros fatores que me inquietaram foram: a individualização de questões


culturais, econômicas, sociais e políticas; o debate sobre racismo ficar a cargo de
disciplinas específicas, como a Psicologia Social e Institucional e a Psicologia
34

Comunitária, quando essa temática não deveria ser restrita a teorias ou abordagens,
muito menos ser tratada como um recorte; a formação ter como referências somente
teóricos europeus, o que faz com que os alunos se formem sem nunca terem lido ou
ouvido falar de autores negros, da diáspora ou do continente africano; a ideia de que
alunos negros são inferiores, preguiçosos e com uma inteligência abaixo da média,
quando comparados com alunos brancos.
Embora alguns profissionais deste campo pareçam estar mais sensíveis para
estudar sobre a questão racial, a psicologia ainda tem muito a aprender. Não basta
que ela se disponha a cuidar, mas que suas maneiras de cuidar do povo preto sejam
construídas no seio desta comunidade, a partir de seus próprios valores, pois, antes
de haver psicologia já existiam ensinamentos a respeito de formas de cuidado de si
e de cuidado com a comunidade. Deste modo, a demanda do povo negro não é ser
salvo, através de teorias e abordagens brancas - isso é a própria colonização -, mas
é, antes de qualquer coisa, ter sua humanidade reconhecida.
Embora, através da luta dos movimentos negros, tenham surgido espaços
para discutir sobre as sequelas do racismo no campo da psicologia, percebi que o
campo a que fui apresentada possui várias vertentes, mas que nenhuma delas
oferece práticas que contemplem às demandas de cuidado do povo preto

Historicamente, a Psicologia brasileira posicionou-se como cúmplice do


racismo, tendo produzido conhecimento que o legitimasse, validando
cientificamente estereótipos infundados por meio de teorias eurocêntricas
discriminatórias, inclusive por tomar por padrão uma realidade que não
contempla a diversidade brasileira (CPF, 2017, p. 75).

Ainda que a psicologia possua uma multiplicidade de abordagens e campos


de atuação, suas bases epistemológicas denunciam não só uma ciência que baseia
suas intervenções limitando-se a cosmovisão europeia, bem como deslegitima
conhecimentos, valores e modos de vida que não sejam europeus, patriarcais,
individualistas, xenofóbicos e judaico-cristões, por exemplo. Em suma,
historicamente, a psicologia brasileira esteve a serviço do racismo, patologizando,
criminalizando, judicializando e medicalizando pessoas negras, o que contribuiu e
ainda contribui para o genocídio deste povo.
Em 2016, iniciei o processo de escrita do Trabalho de Conclusão de Curso
(TCC). Este trabalho, que teve como objetivo geral investigar as relações existentes
entre a psicologia e o racismo, foi construído coletivamente por um grupo composto
35

de 5 mulheres: eu, Tamirys Viana, Bruna Ignácio, Carla Brasil e Monica Beauclair.
Tendo como título, “Quem não tem sangue de preto na veia deve ter na mão”: o que
a psicologia tem a ver com o racismo?, nosso trabalho de conclusão buscou não
somente sensibilizar os profissionais desta área para a importância do combate ao
racismo, mas também tentou disparar uma discussão a respeito da própria
emergência da psicologia, que teve o racismo como pedra angular.
A respeito de nossas intenções mais minuciosas com a pesquisa, foram
elencados 5 objetivos específicos: 1) Investigar como o processo de autonomização
da psicologia no Brasil possui um caráter histórico; 2) Analisar o desdobramento
histórico do racismo no Brasil; 3) Problematizar o racismo como uma prática que
atravessa a subjetividade; 4) Analisar de que forma a psicologia enquanto ciência e
profissão está implicada com o racismo e; 5) Pesquisar de que forma se dá o debate
sobre racismo na formação em psicologia no Brasil.
Além da revisão de literatura a respeito da autonomização da psicologia
brasileira, bem como do processo histórico do racismo no Brasil, filmes,
documentários e idas a eventos que abordassem a temática em questão,
percebemos que a metodologia de pesquisa passava também pelas nossas próprias
experiências. Nossa presença no mundo, que se dava através de corpos negros e
de corpos brancos, trouxe analisadores de que a raça enquanto construção social
determina os lugares que são ocupados na sociedade, a produção de
conhecimentos que tem validade e quem merece viver, por exemplo.
Considerando nosso acúmulo de experiências, leituras e discussões,
concluímos que, desde seu surgimento, a psicologia não teve como finalidade o
cuidar, mas esteve à serviço de interesses coloniais, reproduzindo a violência e
buscando controlar os modos de vida, sobretudo de pessoas negras.
Mitsuko Antunes (2007) pesquisou sobre como a psicologia conquistou seu
espaço de conhecimento e de práticas no território brasileiro. Para esta autora:

É preciso, pois, que tenhamos uma compreensão mais ampla da Psicologia


e de sua relação com a sociedade; nesse quadro, o conhecimento da
História da Psicologia torna-se particularmente importante. A compreensão
do processo de construção histórica de uma área de conhecimento é tão
imprescindível quanto o conteúdo de suas teorias e o domínio de suas
técnicas que, tomados atemporalmente, são meros fragmentos de uma
totalidade que não se consegue efetivamente apreender (ANTUNES, 2007,
p. 10).
36

Outra conclusão, registrada neste trabalho, foi a de que, o racismo não se


trata de um sofrimento psíquico que ocorre de maneira individual, mas diz respeito
ao sofrimento de um povo. Isto requer que psicólogas(os), que são profissionais que
se dedicam aos estudos dos jeitos de ser e de estar no mundo, repensem os seus
modos de acolher, escutar e cuidar do povo preto.
A psicologia brasileira, constituída no final do século XIX, inspirada em obras
escritas na Europa, jamais esteve a serviço do cuidado. Entretanto, a política de
ações afirmativas, a oferta de cursos de graduação em áreas periféricas e a
inserção de psicólogas(os) nas políticas públicas tem possibilitado que o acesso a
formação e aos serviços de psicologia estejam ao alcance de pessoas pretas.
A presença negra nos espaços de produção de conhecimento em psicologia tem
impulsionado estudos, ações, eventos e discussões que possibilitem uma atuação mais
sensível a experiência do negro. Neste sentido, desde 2002 o sistema conselhos têm
elaborado documentos que visam o enfrentamento da discriminação racial através: 1)
Da percepção do racismo como promotor de sofrimento psíquico; 2) Do
reconhecimento do (des)compromisso da própria psicologia com o cuidado do povo
preto; e 3) Da produção de referências que possam contribuir para uma atuação
profissional mais qualificada no enfretamento ao racismo. São eles: a Resolução CFP
018/2002, que estabelece normas de atuação para psicólogos em relação a
preconceito e discriminação racial; a Resolução CFP 010/2005, que aprova o código de
ética profissional do psicólogo; e o documento Relações Raciais: referências técnicas
para a atuação de psicólogas(os), elaborado em 2017.

A Psicologia está presente em muitos campos de atuação com profissionais


que realizam pesquisas e intervenções nas áreas de saúde, educação,
assistência, segurança, assim como no judiciário, no sistema prisional, em
políticas de trânsito, de cultura, de esporte, de trabalho, na clínica etc. Mas é
importante sempre nos questionarmos com que compromisso ético- político?
Quais princípios e teorias as(os) psicólogas(os) têm trabalhado? Estão
preparados para uma atuação inclusiva de fato? Como são abordados os mais
diversos sofrimentos psíquicos? Quais as ferramentas disponíveis para a
intervenção no campo das relações raciais nos mais diversos contextos? Para
então, desse modo, continuar avançando na construção da Psicologia como
ciência e profissão (CFP, 2017, p. 75).

A formação em psicologia no Brasil possui um caráter generalista, onde o


formando tem contato com uma vasta gama de correntes de pensamento,
entretanto, o aspecto individualizante parece ser uma tendência em comum entre
37

elas, culminando em uma grade curricular que se volta para a atuação na clínica
tradicional.
Das janelas das salas de aula podíamos ver as favelas que cercavam o
Engenho Novo, bairro onde fica um dos campus da Celso Lisboa. As entradas da
Rua 24 de Maio e da Avenida Marechal Rondon ficavam abertas, assim, os
moradores e trabalhadores do bairro, majoritariamente negros, frequentavam o
mesmo ambiente que professores e alunos. Entre as estações de trem de Engenho
Novo e Sampaio, ali estávamos nós: inseridos em um contexto favelado, um
território negro. Mas isso não era falado nos textos que líamos, nas provas que
fazíamos, nas palestras que assistíamos. Não poderia ser falado: o pacto de silêncio
estava feito.
Embora eu pudesse ter a oportunidade de participar de grupos de pesquisa,
fazer estágios extra-curriculares e ter tido professores que me inspiravam a ter um
posicionamento crítico, como José Rodrigues, Mariana Alves Gonçalves e Carlos
Eduardo Nórte, percebo que vivi exceções.
Ao longo da graduação, fui percebendo que as ferramentas fornecidas pela
psicologia eram insuficientes para pensar sobre cuidado, principalmente o cuidado
para pessoas negras. Nas aulas lecionadas pelo professor José Rodrigues, as
discussões reforçavam a ideia do quanto este campo contribui para os processos de
marginalização, patologização, criminalização etc. Entretanto, ao pensar sobre
possibilidades de vida e de outra perspectiva de cuidar, citou Vanessa Andrade, que
fazia discussões sobre racismo no campo da psicologia. Isso fez com que em 2017
eu me aproximasse de Vanessa Andrade e do Grupo Preto de Psicologia
Ìmárale/Kanda Ìmárale.

2.2 Do Grupo Preto de Psicologia a Kanda Ìmárale

Que noite mais funda calunga


No porão de um navio negreiro
Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas
Compasso de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro
É o semba do mundo calunga
Batendo samba em meu peito
Kawô kabiecile kawô
Okê arô okê!
Quem me pariu foi o ventre de um navio
38

Quem me ouviu foi o vento no vazio


Do ventre escuro de um porão
Vou baixar no seu terreiro
Epa raio, machado, trovão
Epa justiça de guerreiro
Ê semba ê, ê samba á
Foi o céu que cobriu nas noites de frio
Minha solidão
Ê semba ê, ê samba á
É oceano sem, fim sem amor, sem irmão
Ê kaô quero ser seu tambor
Ê semba ê, ê samba á
Eu faço a lua brilhar o esplendor e clarão
Luar de Luanda em meu coração
Umbigo da cor, abrigo da dor
Primeira umbigada Massemba yá yá
Yá yá Massemba é o samba que dá
Vou aprender a ler
Pra ensinar os meu camaradas
Vou aprender a ler
Pra ensinar os meu camaradas
Aprender a ler
Pra ensinar os meu camaradas
Vou aprender a ler
Pra ensinar os meu camaradas
Vou aprender a ler
(Yáyá Massemba - Maria Bethânia)10

O Grupo Preto de Psicologia Ìmárale foi gestado por Vanessa Menezes de


Andrade, negra, mãe, ekede, psicóloga, cria do Cantagalo e coordenadora do
projeto Afrobetizar11. Ele nasce em 2016, com o objetivo de construir práticas em
psicologia que atendessem às demandas da comunidade negra. Ao longo de seus 5
anos, o Ìmárale tem se apresentado como um potente espaço de formação para
negras(os) profissionais e estudantes deste campo. De acordo com que Alline
Pereira (2019) escreve sobre a Psicologia do Aquilombamento, a aposta do Ìmárale
é na construção de práticas que se dediquem ao cuidado. Assim “O nosso
compromisso como pessoas que se aquilombam está com as vidas negras,
periféricas, faveladas, quando possibilitamos pensarmos uma outra Psicologia, que,

10
Yaya Massemba, canção de Roberto Mendes e Capinam, gravada por Maria Bethânia, no álbum
Brasileirinho. Rio de Janeiro: Biscoito fino, 2003. 1 CD. Faixa 2.
11
Nas palavras de Vanessa Andrade, o Afrobetizar é “Uma comunidade, com inspiração no quilombo e
no terreiro de candomblé, que busca praticar o cuidado, em uma perspectiva africana, das crianças e
adolescentes negros moradores da favela do Cantagalo- RJ” (ANDRADE, 2019, p. 7). Para saber
mais sobre o projeto, consultar sua tese de doutorado.
39

até então, muito pouco tem se apresentado comprometida com tais questões” (p.
32).
Em sua tese de doutorado, O Muleke e o Afrobetizar: Sankofa nos dias de
destruição, Vanessa Andrade (2019) nos sensibiliza a respeito de um olhar mais
humanizado para o menino negro. Ao longo de seu texto, ela aponta a psicologia
como co-responsável pela manutenção das violências contra o negro. E em um dos
trechos ela questiona:

Afinal, quem foram os considerados retardados nos testes de inteligência,


os avaliados como perigosos, a maioria dos que foram internados nos
hospícios e colônias, os dotados de cérebros de homicida, os ditos pobres,
o menor, o pivete, o subalternizado, o preso, o traficante? Seja através de
produções que afirmaram estas categorias ou através daquelas que
buscaram problematizá-las e combatê-las, a psicologia não parou de pensar
sobre o negro. Isso significa dizer que ela atuou diretamente na produção do
que é compreendido como o negro na sociedade brasileira através dos seus
laudos, pareceres, avaliações, pesquisas, diagnósticos etc. Arriscaria dizer
que esta objetificação do negro é uma das principais condições de
existência da psicologia brasileira (ANDRADE, 2019, p. 40).

Assim como a verdadeira história do Brasil não pode ser contada sem que
haja uma discussão sobre a dizimação dos povos tradicionais e a escravização dos
povos africanos, a história da psicologia, que não é escrita nos livros e discutida nas
salas de aula, só pôde se desenvolver através da objetificação de negras e negros.
Como Vanessa Andrade escreveu: “a psicologia não parou de pensar sobre o
negro”.
Neste sentido, a proposta do Ìmárale era pensar com o negro. A metodologia
não consistia em usá-lo como objeto, mas percebê-lo como humano, como agente
de sua própria história e com um potencial de vida que poderia ser fortalecido,
através de práticas de cuidado construídas em comunidade.
Inicialmente, o grupo foi sendo composto por negras e negros que eram
estudantes ou profissionais de psicologia. Os encontros aconteciam semanalmente
na casa de Vanessa Andrade, no Morro Santa Marta, em Botafogo. A proposta era
possibilitar o contato com autores negros e construir um espaço em que pessoas
negras pudessem discutir abertamente sobre as questões raciais, o que não
acontecia na universidade e nem no local de estágio ou trabalho dos integrantes.
Makota Valdina (2014) conta que o processo de cuidar no terreiro vai muito
além dos banhos, dos chás, das rezas… Ela não desqualifica o conteúdo, mas
enfatiza a relevância do método. É sobre um gerar, que é negro, um “jeito de ser, de
40

fazer, de viver que é diferente.” E certamente foi esta forma de “vânga (fazer,
produzir, agir, realizar)” (FU-KIAU, 1991) que tornou o Ímárale um espaço de
fortalecimento. A diferença não está só no estudo de autores negros, mas na forma
como o resgate de nossas próprias histórias acontecia.
No Ìmárale, fomos nos formando não só através das leituras, mas, sobretudo,
nos reaproximando dos mais velhos de nossas famílias e comunidades; dos valores
e da convivência dos terreiros de candomblé, de Nação Angola e Ketu; dos grupos
de capoeira; da dança afro; das escolas de samba e de caminhos que
possibilitassem potencializar o viver a partir de um corpo negro.
Fomos entendendo que para construir um quilombo, espaço que nutrisse os
integrantes do grupo e que futuramente pudesse desaguar em nossa comunidade,
era preciso ir em busca de referências que não estavam somente na psicologia e
nos livros. Além da percepção de que era preciso revisitar a história, a filosofia, a
antropologia e a sociologia, por exemplo, era urgente que o contato com esses
conhecimentos passassem por nossos corpos, para que fizessem sentido.
No texto introdutório do livro Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual:
possibilidade nos dias de destruição, Raquel Barreto (2018, p. 37) compartilha
algumas reflexões sobre o quilombo, baseadas em um diálogo com o sociólogo
afro-cubano Carlos Alberto Moore. Ela escreve que “O Quilombo hoje é uma
metáfora, um verbo, um imperativo, uma tradição. Uma forma de estar no mundo
pautada na junção de saberes do corpo, do intelecto e da alma. O quilombo hoje
habita em nós”.
Na tentativa de integrar esta junção de saberes, em um dos encontros,
ouvimos juntos a canção Yaya Massemba, de autoria de Roberto Mendes e
Capinam,, interpretada por Virginia Rodrigues12. Entrar em contato com o ritmo da
música, o som dos instrumentos, com a voz e a performance de Virginia Rodrigues,
enquanto ela cantava “vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas”, reavivou no
grupo um sentido de comunidade. Antes da entrada no Ìmárale, cada um(a) de nós
já havia lido e ouvido falar sobre ancestralidade, entretanto, foi somente na
“experiência do viver”, como aponta Makota Valdina (2014) que fomos entendendo
os impactos de sermos paridos no “ventre de um navio” e aprendendo sobre
fortalecimento entre nós. Ao resgatar a história do Ìmárale, em uma pesquisa que
versa sobre cuidado, penso que este “aprender a ler” não diz respeito a ensinar
12
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=r-70cBxqHYE>
41

conhecimentos científicos aos nossos camaradas sobre a própria vida deles. Mas,
se trata de resgatar saberes ancestrais, compartilhá-los e, a partir dos encontros
com nossos mais velhos e mais novos, seguir aprendendo sobre jeitos de cuidar.
Em 2017, como forma de reconhecer a importância do Coletivo Denegrir13,
que era uma referência para os integrantes do Ìmárale, e possibilitar o fortalecimento
de nossa comunidade, estabelecemos uma parceria e, como um dos
desdobramentos desse estreitamentos de laços, os nossos encontros passaram a
ser na sala gerenciada pelo coletivo, Sala Abdias do Nascimento, na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Além disso, algumas das referências para
pensar esta pesquisa surgiram a partir de eventos organizados mensalmente pelo
Denegrir, como o grupo de estudo Tornar Ser Negro e Negra e o sarau Griotagem
Encontros.
Um dos (re)encontros ancestrais, que trouxe um grande impacto para o
Ìmárale, foi com Danielli Saucedo, negra mulher, gaúcha, vivenciadora das tradições
de matriz africana (onde renasceu como Folashewa), assistente social e idealizadora
do Ciclo Sinergia. A conheci em março de 2018, através de Vanessa Andrade. Nesta
ocasião, ela estava prestes a concluir sua dissertação de mestrado, que teve como
título Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: um “equilíbrio”
coletivo?, trabalho que tive a oportunidade de ler, acompanhar a conclusão e ver
sendo defendido. Inclusive, um dos professores que estava na banca foi Abrahão
Santos, que, alguns meses depois, se tornou meu orientador no mestrado.
Em sua pesquisa, Danielli Saucedo (2018) buscou analisar como a Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra estava sendo implantada em um
dispositivo do Sistema Único de Saúde (SUS), no território de Manguinhos.
Entretanto, o impacto que seu texto reverberou em mim se deu na medida em que o
ponto de vista de Saucedo (2018) para pensar a saúde do povo preto parte de uma
perspectiva ancestral.

13
Em uma carta, direcionada as alunas e alunos de UERJ, O Denegrir fala sobre o seu surgimento. “O
Coletivo de Alunos Negr@s da UERJ surgiu da necessidade de discutir a questão racial ignorada no
âmbito acadêmico. Foi batizado com o nome DENEGRIR, com o propósito de denunciar a
discriminação e o racismo contidos na nossa sociedade, inclusive na utilização de palavras.
DENEGRIR significa tornar negro e ganhou sentido de infamar, macular, manchar ou ofender.Na
contramão da atual utilização do verbo, propomos a reconstrução da sua utilização com significação
positiva: DENEGRIR - tornando a universidade mais negra”. Disponível em:
<http://www.geocities.ws/denegrir_uerj/Carta_do_denegrir.pdf>. Para saber mais sobre o coletivo,
consultar <https://www.facebook.com/denegrir.coletivo/about>.
42

Para ela, a saúde diz respeito a uma busca constante por equilíbrio entre uma
pessoa, sua comunidade e os elementos da natureza. Em suas palavras:

Para as religiões de matriz africana o axé é a força propulsora de vida que


se faz presente nos seres humanos e em todos os elementos da natureza.
O axé como força vital pode aumentar ou reduzir, causando equilíbrio ou
desequilíbrio em uma pessoa. Por “equilíbrio” entende-se a harmonia (de
axé) individual e sinergia coletiva (entre elementos da natureza) em todos
os ciclos de vida. Uma forma de atingi-lo é estabelecer modos saudáveis de
vida, que tem relação direta com os determinantes sociais de saúde doença,
onde se inclui o racismo (SAUCEDO, 2018, p. 11).

O conceito de (des)equilíbrio, trazido por Saucedo (2018) dialoga com a


percepção Bantu-Kongo do ser humano como um sol vivo, cujo brilho ou a ausência
dele reflete na vida de toda a sua comunidade, seja ao longo de seu viver ou após a
sua morte. A respeito disso, vale trazer o olhar de Fu-Kiau (1991):

O conceito Bântu da influência de um ser humano sobre o meio ambiente, a


sociedade e seus semelhantes é muito claro: nada é isolado no universo.
Visível ou invisível, o sol sempre brilha e todos sentimos seu calor. Da
mesma forma, seres humanos, vivos ou mortos, como sóis vivos nascendo
e se pondo ao redor do mundo, estão todos relacionados entre si. O calor
das radiações nunca morre ao pôr-do-sol, a morte física (FU-KIAU, 1991).

Na percepção de Makota Valdina (2014), este desequilíbrio se trata de uma


desarmonia do viver. Para ela, uma das sequelas do racismo é estarmos vivendo de
jeitos que contribuem para a distorção da vida e da ancestralidade. Assim as
doenças que tem não nome, mas que acometem o povo preto, e vão passando de
geração a geração, são o reflexo de uma desconexão com a natureza, a
comunidade e os ensinamentos deixados por nossos ancestrais. O adoecer é sinal
de perda do nguzo, do axé, da força vital. Deste modo, em um contexto onde o
racismo continua atuando, a busca pela cura, saúde, harmonia ou equilíbrio do viver
deve ser constante. E, retomando as palavras de Folashewa, Saucedo (2018), este
deve ser um trabalho individual e coletivo.
Na citação trazida anteriormente, Saucedo (2018) aponta que o equilíbrio, a
saúde do povo preto, pode ser alcançado através de “modos saudáveis de vida”. E
foi a partir de sua entrada no Ìmárale, em junho de 2018, e de sua parceria com
Tulane Paixão, que também integra o Ìmárale e atualmente é aluna do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, que passamos
a experienciar o Ciclo Sinergia: autocuidado como princípio de cura e a ampliar
43

nossos olhares: da psicologia para o cuidado, da teoria para a vivência e de um


grupo preto de psicologia para uma kanda (família).
Desde o surgimento do Ìmárale o foco das atividades estava no estudo de
autores negros. Nestes 5 anos, tivemos contato com intelectuais como: Molefi Kete
Asante, Abdias Nascimento, Vânia Bonfim, Katherine Bankole, Maulana Karenga14 e
com Web Dubois. Dentre os autores que se inserem no campo da psicologia,
denominada Psicologia Preta (Black Psychology), nos dedicamos aos estudos
realizados por Naim Akbar, Wade Nobles e Amos Wilson. Todos estes intelectuais
tiveram grande relevância para o percurso trilhado pelo Ìmárale, entretanto, o
contato com este último autor citado vem trazendo grandes inquietações.
Desde 2018, o Ìmárale tem se dedicado ao resgate da trajetória de vida e da
obra de Amos Wilson, especificamente do livro The Falsification of Afrikan
Consciousness: Eurocentric History, Psychiatry and the Politics of White Supremacy
(A falsificação da consciência afrikana). Nesta obra (originalmente publicada em
inglês, em 1993), ele faz uma cirúrgica análise sobre o papel da historiografia
europeia, incluindo a ciência psicológica, na forja do jeito de viver do povo preto.
Para fazer o estudo deste livro, que foi originalmente publicado em inglês, o grupo
se envolveu em um trabalho coletivo de tradução. Entendendo a relevância de seu
legado e a responsabilidade de compartilhar com nossa comunidade sobre estes
ensinamentos, decidimos fazer a publicação do livro, que foi lançado em agosto
deste ano. Este processo tem reafirmado: nossa parceria com o Coletivo Denegrir; o
reconhecimento da potência de matrigestão de Vanessa Andrade, que foi quem
idealizou o grupo, bem como nos apresentou a obra de Amos; e o estabelecimento
de novas parcerias com pessoas e organizações pretas, que tem interesse na
disseminação do pensamento deste autor.
Zaus Kush, um dos responsáveis pela plataforma BlackFlix15 e pelo canal
OSH116; a editora independente Poder Afrikano, sediada em São Paulo e gerida pelo
Grupo de Estudos Kwame Ture; e Junior Pakapym, negro homem, baiano, designer,

14
As obras lidas destes autores fazem parte do livro Afrocentricidade: uma abordagem
epistemológica inovadora - Coleção Sankofa - Vol. 4.
15
Plataforma que visa possibilitar a reflexão e ação, para a emancipação negra através de
ferramentas audiovisuais. Possui o maior acervo online de filmes, séries e documentários pretos em
português. Para saber mais, consultar Equipe BlackFlix <contato@blackflix.com.br>.
16
Canal do YouTube, criado em 2015, onde alguns documentários do acervo BlackFlix podem ser
acessados de maneira gratuita. Disponível em:
<https://www.youtube.com/c/OSH1Autoimagem/featured>.
44

Tata e sobrinho carnal de Makota Valdina, são alguns de nossos parceiros nesta
jornada.
A inquietação sobre que tipo de práticas em psicologia estávamos
construindo, trazida através do estudo de Amos Wilson; os momentos de
autocuidado, promovidos pelo Ciclo Sinergia, que nos alertaram para irmos além dos
estudos, traduções e atividades acadêmicas; e a confirmação para o cargo de Tata,
de Allan Miranda, que se tornou Anlevu, no terreiro Kupapa Unsaba17, foram marcos
importantes para o Ìmárale.
Embora a maioria dos integrantes do grupo tenha formação em psicologia e
tenha algum tipo de relação com a universidade, em 2020, entendemos que os
caminhos que estávamos trilhando não mais se restringiam a psicologia e a
academia. A partir de então, passamos a nos nomear como Kanda (palavra de
origem bantu, que designa uma família) Ìmárale (palavra de origem iorubá, que
reflete o aumento da força vida de cada pertencente a uma comunidade)..
Aquilo que Sobonfu Somé (2003) conceitua como intimidade opera na Kanda
Ìmárale a partir de 3 pilares: confiança, comprometimento e cuidado. Viver sob a luz
destes valores diz respeito a: nos vermos como um povo, cujo processo de
libertação intelectual, espiritual, cultural, social e econômica depende de confiarmos
uns nos outros; doação de tempo, energia e recursos, em prol do fortalecimento da
kanda e da comunidade que nos cerca; e responsabilidade coletiva do resgate de
saberes e de jeitos ancestrais, já que o (des)equilibrio de um deságua em todos.
Ser parte da Kanda tem trazido questionamentos a respeito do que tenho
chamado, em minha vida e nesta pesquisa, de cuidado. É um jeito de cuidar que se
sistematiza e vai ganhando corpo através do contato com a psicologia, mas que não
se restringe a ela. Isso traz um desassossego sobre o meu lugar como pesquisadora
e como profissional, cuja prática ainda possui resquícios de uma ciência ocidental.
Ao mesmo tempo, me lembro das palavras do professor Abrahão Santos, quando
questionado sobre o nkisi Kitembo: “É bandeira que aponta para o caminho que se
deve seguir”. Neste sentido, a sabedoria e a energia do Tempo permitem que eu não
paralise, por temer o futuro incerto, mas fortalece o meu caminho. De maneira que o

17
Casa de candomblé de Nação Angola, situada em Anchieta (RJ). Tem como raiz o Terreiro Bate
Folha, Salvador (BA) e foi fundada em 1947 por João Correia de Mello, Tat’etu Lessengue. Com o seu
falecimento (1970) e após 2 anos de luto, a direção da casa foi assumida por Mam’etu Mabeji,
sobrinha carnal e filha de santo de Tat’etu Lessengue.
45

lugar considerado como o de não-saber, mas que percebo como o de aprendizado, o


de mais nova, não mais me assusta.
Existe o tempo para o sol nascer e se pôr; para nascer e morrer; de
pesquisar, qualificar e defender uma pesquisa; de adoecer, ser curado, adoecer
novamente e de novo ser curado, bem como para todas as coisas no mundo dos
vivos e dos mortos. A partir deste saber ancestral, conjecturo que o cuidado é
resultado de um complexo processo, que deve considerar “O tempo do ontem, o
tempo do hoje e o tempo do amanhã” (PINTO, 2014).
Quando comecei a participar dos grupos de estudos da Kanda ainda estava
na graduação, em meu último ano. Ao ter contato com uma psicologia pensada a
partir de uma perspectiva preta, diferente das abordagens brancas que conheci na
graduação, percebi que estava construindo mais do que uma carreira profissional;
estava fazendo parte de uma comunidade, onde eu poderia ter espaço para
fortalecer e ser fortalecida. A Kanda é um lugar de formação, onde muito tenho
aprendido e compartilhado sobre jeitos de cuidar.
Foi neste espaço que minha potência foi reconhecida e que fui incentivada,
principalmente por Vanessa Andrade, a cursar o mestrado. Isso desaguou no meu
ingresso, em 2018, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade
Federal Fluminense (UFF), através da política de ações afirmativas. Meu projeto de
pesquisa tinha como objetivo investigar como um viés psicológico afrocentrado
poderia contribuir para a saúde mental de pretos e pretas, através da articulação das
ferramentas da afrocentricidade e da experiência no Grupo Preto de Psicologia
Ìmárale/Kanda Ìmárale. Entretanto, com as orientações, disciplinas e (re)encontros,
principalmente com os ensinamentos de Makota Valdina, o projeto foi se
modificando.

2.3 Negra, pesquisadora e cotista

2.3.1 O ingresso no mestrado

A experiência de pessoas negras na universidade é permeada pelo racismo,


deste modo, permanecer neste espaço, por si só já é um entrave para a harmonia
do viver, mas sendo negro e fazendo coisas de negro é um desafio maior ainda.
Estar no Ìmárale, um grupo de pessoas negras que, a princípio, estudava psicologia,
46

se configurou como um espaço protegido, no que diz respeito às violências sofridas


na universidade. Pois, embora os encontros presenciais tenham passado a
acontecer na UERJ e só tenham sido interrompidos pelo isolamento social, em
decorrência da pandemia causada pelo Covid-19, a Kanda não possui vínculo
administrativo com esta instituição. Assim, minha condição para dar continuidade a
minha formação, dentro deste espaço, era minimamente me sentir protegida.
Ao longo da graduação eu já vislumbrava a possibilidade de fazer mestrado,
mas foi em 2018 que este projeto começou a tomar forma, quando eu soube da
Ocupação Preta na UFF e da implementação das cotas no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia. Vanessa Andrade, que na época era doutoranda, me
falou sobre a luta dos únicos professores negros do PPGP/UFF naquele momento,
Luiza Rodrigues (que atuou como coordenadora do programa, de maneira muito
comprometida e cuidadosa com o corpo discente e docente, entre 2017 e o primeiro
semestre de 2021) e Abrahão Santos (meu orientador, coordenador do Laboratório
Kitembo e atual coordenador do programa de pós-graduação em psicologia da UFF),
o que me encorajou a escrever um projeto.
Com a implementação das ações afirmativas e dos programas de
financiamentos estudantis a presença negra tem aumentado nas universidades
públicas e privadas do Brasil. Se antes pessoas negras só adentravam este espaço
se estivessem trabalhando nas portarias, organizando as salas de aula e limpando
banheiros, por exemplo, atualmente elas acessam a partir do lugar de aluno e
também de professor. Esta entrada tem feito com que o direito, a antropologia, a
medicina, a história, a pedagogia, a psicologia e tantos outros campos do saber,
sejam questionados sobre o lugar do sujeito negro na ciência e na sociedade
brasileira. Sobre isso, Vanessa Andrade explica que

Após um longo e desgastante processo, o Colegiado do Programa de


Pós-Graduação em Psicologia não apenas aprovou as ações afirmativas,
como também foi o que apresentou, segundo avaliação dos estudantes de
diferentes cursos da UFF, a proposta mais inovadora de cotas ao incluir a
população trans. Assim, jovens negros, como eu, que historicamente só se
faziam presentes em número expressivo na universidade nos setores de
limpeza e segurança, teriam mais possibilidade de serem sujeitos de
pesquisa, futuros mestres e doutores (ANDRADE, 2019, p. 46/47).

Segundo dados noticiados pelo Portal Vermelho (2018) “negros são menos de
30% dos estudantes que cursam pós-graduação”. As cotas têm possibilitado o
47

aumento deste número, através das mudanças na forma de acesso. Entretanto, é


fundamental pensar na permanência destas pessoas nos cursos de mestrado e
doutorado, já que menos de 3% dos docentes da pós-graduação são negros
(GELEDÉS, 2019) e a ementa das disciplinas continua privilegiando autores brancos
e um referencial teórico europeu. Neste sentido, o grupo de orientação e o
Laboratório Kitembo, ambos coordenados pelo professor Abrahão Santos, foram
espaços que me fortaleceram para que eu permanecesse no mestrado.
Os encontros do grupo de orientação são conduzidos pelo professor Abrahão
Santos, entretanto, a orientação das pesquisas de mestrado e doutorado acontecem
de maneira coletiva. Neste sentido, o compromisso de ler os textos, estar presente
nos encontros, qualificações e defesas, bem como o de colaborar construtivamente
para o desenvolvimento das pesquisas não envolve somente o orientador, mas o
grupo.
Deste modo, posso dizer que esta pesquisa foi nutrida não somente nas
ocasiões em que ela foi o centro da discussão, mas também quando eu entrava em
contato com os textos de outras pessoas do grupo. É neste espaço que tenho
aprendido a pesquisar. Conhecer e fazer parte do desenvolvimento de pesquisas
sobre o legado de Neusa Santos, a Psicologia do Aquilombamento, a Psicologia de
Axé, uma Política de Cuidado Negro, o Morro do Jordão, as relações comunitárias
em Oswaldo Cruz e estratégias para a saúde mental de militantes negros têm sido
muito importante para pensar sobre uma psicologia que faça sentido para o povo
negro. As pesquisas de Camilla Queiroz, William Penna, Alline Pereira, Viviane
Pereira, Flavio Guilhon, Allan Miranda, Tulane Paixão e Natasha Iane têm fortalecido
o meu percurso na pós-graduação.
As disciplinas obrigatórias, como Metodologia de pesquisa, ministrada pelos
professores Marcelo Rezende e Danichi Mizoguchi, e Seminário de Pesquisa, pelo
professor Paulo Vidal, foram importantes por possibilitarem a discussão dos projetos.
Estas discussões não se limitaram aos assuntos das pesquisas, mas também
versavam sobre uma conjuntura onde vinha se acentuando o sucateamento das
políticas públicas de educação, de saúde e de assistência social. A respeito de
pensar sobre a situação do negro no Brasil, a disciplina Subjetividade e exclusão
social, ministrada pelo professor Abrahão Santos, foi essencial. Esta disciplina gerou
reflexões sobre como as violências raciais forjam a experiência de vida de pessoas
negras.
48

As disciplinas eletivas que fiz foram: Saúde mental da população negra


(Abrahão Santos), Estudos da obra de Frantz Fanon (Abrahão Santos e Luiza
Oliveira) e Inscrições raciais no pensamento social brasileiro (Abrahão Santos, Luiza
Oliveira e Julio Tavares). Elas foram importantes por facilitarem reflexões entre
alunos dos programas de pós-graduação em psicologia e antropologia. Também
havia pessoas que não faziam parte desses programas, mas que estavam ali por se
interessarem em aprender com professores negros sobre a história do povo preto.
Além de estar em espaços onde as pessoas eram, majoritariamente, negras,
o que fazia com que eu me sentisse a vontade, em um espaço embranquecido,
como é a universidade, estas disciplinas possibilitaram que eu conhecesse mais
sobre a produção de intelectuais negros, que são referências para este trabalho.
Além das orientações e disciplinas, o Laboratório Kitembo foi um espaço de
nutrição para esta pesquisa. Ele possibilitou, dentre outras coisas, meu contato com
uma das maiores referências para o desenvolvimento deste trabalho: Makota
Valdina. Os ensinamentos desta ancestral me inspiraram a perceber outras
possibilidades de caminhos, ou, como ela mesma gostava de usar, outros “jeitos”.

2.3.2 Laboratório Kitembo: afirmando uma perspectiva aterrada em psicologia

Para Makota Valdina Pinto (2014) o viver no presente não deve estar
descolado do que aconteceu no passado e nem descompromissado com o futuro. É
justamente através deste movimento-elástico, desta relação de circularidade com o
tempo, que se dá a relação desta pesquisa com Kitembo - tanto com o nkisi quanto
com o Laboratório.
O nkisi Kitembo

É representado por vários símbolos, sendo o mais destacado a bandeira


branca presente em todas as casas de Candomblé de Angola. Esta
bandeira está ligada ao tempo que os povos bantu eram nômades. Quando
decidiam mudar, cultuavam ao Mukisi/Nkisi Kitembo e esperavam o vento
soprar na bandeira branca para dar a direção da nova jornada. Também
está ligada aos ritos de caça (a maioria dos Mukisi/Nkisi bantu caça, mesmo
que por natureza não sejam caçadores).
Quando iam à caça, cada grupo se dispersava na floresta ou na savana.
Para se encontrarem e não ficarem perdidos, o caçador chefe
(Mutak’lamb’lunguzo/Mutak’lambô/Ngongombira), levantava a bandeira em
um bambu bem alto, assim todos se reuniam e voltavam juntos para a tribo
com fartura e muita alegria (AWÙRE, 2014).
49

Todos os dias, quando entrava e saia da casa onde fui criada, me deparava
com uma bandeira branca. Embora, em minha infância, eu não entendesse o seu
significado, este símbolo se tornou um marco. Independente do que acontecesse no
terreiro de minha avó, a bandeira branca sempre estava erguida e apontando para
algum lugar. Era a presença do tempo em nosso viver.
Compreendo a bandeira de Kitembo como uma ferramenta que possibilita a
indicação do caminho a ser seguido e da lembrança de que ele não deve ser trilhado
sozinho. Assim como Kitembo se manifestava na vida dos povos bantu, soprando
seu vento na bandeira branca, a energia deste nkisi, o próprio tempo, tem
direcionado a jornada desta pesquisa. É através do tempo dedicado ao estudo, ao
encontro, ao cuidado e, sobretudo, à percepção da existência de um tempo que não
se finda, mas que se renova, que venho desenhando a construção deste trabalho.
Para os povos Bantu-Kongo, Kitembo também é representado pela árvore,
que só cresce por suas raízes estarem fincadas ao chão. Estas raízes são
essenciais para a fixação da árvore ao solo e para a absorção dos nutrientes
necessários para a sua sobrevivência. Nesta proposta, sustentar um laboratório de
estudos e jeitos de cuidar a partir da sabedoria de Kitembo significa considerar
nossas raízes: os saberes daqueles que vieram antes, que tiveram tempo para
conhecer melhor a terra e que, mesmo já tendo retornado para ela, continuam nos
dando possibilidades de vida. Como disse a Egbomi Vanda Machado18, durante a
live Sagrada Epistemologia19: “O tempo não gosta de nada que se faz sem ele”20.
A sabedoria do nkisi Kitembo aponta para a construção de práticas de
cuidado alinhadas com os saberes indígenas, de terreiro, periféricos, favelados,
dentre outros, que nascem dentro da própria comunidade, onde o aprendizado não
se dá somente pelos textos, mas pelos encontros, olhares, conversas, gestos etc.
Isso possibilita que a nossa formação não seja engessada pelo funcionamento
ocidental da universidade.
No artigo A Pesquisa no Kitembo - pistas para a construção de uma
psicologia aterrada, Abrahão Santos e Viviane Pereira (2018) resgatam a história do
18
Sacerdotisa e idealizadora do Projeto Político Pedagógico Irê Ayó da Escola Eugênia Anna dos
Santos, localizada na casa do candomblé Ilê Axé Opô Afonjá. Esta casa, de nação Ketu, foi fundada
em 1910 por Eugênia Ana dos Santos e Tio Joaquim, Obá Sanyá. Após o falecimento de Mãe Stella
de Oxóssi, que foi a quinta Iyalorixá da casa, em 2018, a direção foi assumida por Mãe Ana de
Xangô.
19
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JrO9B98uV64
20
Frase de Mãe Detinha de Xangô (1928-2014), que foi sacerdotisa no Ilê Axé Opô Afonjá e um dos
braços direitos de Mãe Stella de Oxóssi.
50

laboratório. O Kitembo nasce em 2013, com o objetivo de criar “um corpo sensível”
para narrativas que vinham e vem sendo ignoradas pela psicologia e também ser um
espaço para os negros na universidade.
A perspectiva do laboratório aponta para a construção de uma psicologia
aterrada: conectada com a realidade e as dificuldades colocadas pelas comunidades
indígenas, povos de terreiro, quilombolas, moradores de favela, dentre outros.
Entretanto, a tomada dos saberes destas comunidades não os coloca como objetos,
mas como referências para a construção de jeitos de pesquisar, conhecer,
experenciar, cuidar, lidar com o sofrimento e os dramas da existência humana.
Entre 26 e 28 de julho de 2016 aconteceu na Universidade Veiga de Almeida
a 10ª Mostra Regional de Práticas em Psicologia, organizada pelo Conselho
Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, que teve como tema: Ressignificando
práticas, compartilhando experiências e construindo redes. Apresentei junto com
Dandara Aziza e Daniele Silva, um trabalho sobre nossa experiência de estágio no
Programa de Mães Adolescentes (PMA), que fazia parte da Unidade de Reinserção
Social (URS) Ayrton Senna, em Vila Isabel.21
Depois de apresentar, fui assistir a apresentação de outros trabalhos e
conheci Flavio Guilhon, integrante do Kitembo, que estava apresentando sua
pesquisa do mestrado, Caminhos de cuidado: processos de subjetividade e práticas
terapêuticas em terreiros de candomblé. Ao ouvi-lo, falando sobre os terreiros como
espaços de cuidado, fiquei bastante reflexiva e emotiva. Naquele momento, pensei
que isso havia acontecido por ter me lembrando de minha avó materna e do
acolhimento que ela promovia através do candomblé. Hoje, percebo que aquela
conversa com Flavio Guilhon foi uma das sementes para que eu concebesse a
psicologia a partir do cuidado e o terreiro como um lugar de referência para isso.

21
As Unidades de Recolhimento Social (URS) fazem parte da política de proteção social de alta
complexidade e acolhem a população que rompeu com seus vínculos familiares e comunitários e se
encontram em situação de grave vulnerabilidade social (situação de rua, negligência, violência
doméstica, orfandade, risco social, maus tratos, abuso sexual, etc.). O PMA, acolhe mulheres de até
dezoito anos grávidas em condição de risco social para elas ou para o bebê. Diante de uma demanda
da instituição ao Serviço de Psicologia Aplicada do Centro Universitário Celso Lisboa, sob a
supervisão da professora Mariana Gonçalves, construímos uma equipe de estágio para a realização
de grupos de acolhimento e reflexão semanais. Os encontros tinham como objetivo oferecer um
espaço de escuta e produzir discussões sobre temas que forjassem o viver das adolescentes que
estavam em situação de abrigamento. A unidade Ayrton Senna, em Vila Isabel, foi fechada em 2016,
por estar em condições insalubres, e o programa passou a funcionar na Unidade Frida Khalo, no
Méier, inaugurada em 2017. Para mais informações acessar:
http://www.tjrj.jus.br/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/5195713
51

Em seu projeto de qualificação de doutorado, nomeado como Processos de


construção de territórios encruzilhados de vida: política de cuidado em terreiros de
candomblé a partir de uma perspectiva negra, Flavio Guilhon faz uma análise dos
terreiros de candomblé a partir da constituição de uma Política de Cuidado Negra,
que, segundo ele (GUILHON, 2019, p. 7), “se alicerça num tripé composto pela
ancestralidade, resistência e pertencimento. Esses três aspectos da política de
cuidado se desdobram e metamorfoseiam através de práticas cuidado pautadas no
acolhimento”.
Esta mostra também foi um marco pelo fato de haverem mais profissionais e
estudantes negros de psicologia apresentando trabalhos, sobretudo sobre a
temática racial, quando se faz uma comparação com as mostras e eventos de
psicologia dos anos anteriores. Nesta ocasião, havia integrantes do Ìmárale, do
África em Nós22, do Kitembo e de outras organizações e grupos de pesquisa pretos
que não tive a oportunidade de me aproximar naquele momento. O que fez com o
evento tivesse destaque foi a grande quantidade de pesquisadores, que eram
majoritariamente negros. Depois disso, tive notícias sobre o XXIX Encontro Nacional
de Estudantes de Psicologia (ENEP), que aconteceu em Cruz das Almas, na Bahia.
Esta edição, que teve como tema Psicologias para quem? A negritude
revolucionando as práticas psi: o recôncavo convida à ressignificação, foi composta
por pessoas que também estavam presentes na mostra, se configurando como um
espaço de luta e acolhimento para negros estudantes de psicologia. A respeito
disso, cabe citar a pesquisa de mestrado de Natasha Iane, que está em andamento
e que nos fornece pistas sobre a potência do aquilombamento como uma ferramenta
para os jeitos de cuidar.
Em setembro de 2017, participei do evento Do racismo científico à Psicologia
Preta: lutas e aprendizados, que aconteceu no Instituto de Psicologia da UFRJ e foi
organizado por Natasha Iane, William Penna e Cassio Gomes. Dividi a mesa com
Camila Crespo, que na época era aluna do instituto, e com Abrahão Santos. Saí de
22
“O projeto África em Nós iniciou em 2015 e é formado por jovens negros periféricos da cidade de
São Gonçalo (RJ). Multidisciplinar, possui em sua estrutura organizacional estudantes secundaristas,
universitários dos cursos de Arquitetura, Economia, Psicologia, Enfermagem e uma jornalista.
Atuamos em escolas públicas e privadas a fim de fazer valer a implementação da lei 10.639 do ano
de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, por meio de
rodas de conversa, debates e oficinas culturais que contribuam para a construção de um ensino
antirracista, plural e que dialogue com a diversidade do espaço escolar”. Descrição obtida a partir da
página do grupo no Facebook. Acesso em: 02 abr. 2020. Disponível em:
<https://www.facebook.com/pg/aafricaemnos/about/?ref=page_internal>.
52

lá com a certeza de que era preciso estar em movimento, rumo a uma psicologia
que fizesse sentido para pessoas negras, mas também entendendo que nós não
estávamos inventando a roda, mas dando continuidade a ela. Neste dia conheci
Abrahão Santos, mas não imaginava que um ano depois os nossos caminhos se
cruzariam novamente e que eu estaria sendo orientada por ele, no mestrado.
Durante uma das discussões da disciplina Tópicos especiais: estudos sobre a
obra de Frantz Fanon, uma aluna negra falava sobre a universidade e seu
distanciamento do contexto comunitário: “A universidade ilude a gente... O mundo
não é isso daqui”. Ao recuperar esta fala, não tenho como intenção incentivar o
rompimento com a educação formal, mas sustentar a afirmação de que o trabalho de
negras e negros na universidade deve manter a conexão com nossa comunidade,
seja a ela a Kanda Ìmárale, o Coletivo Denegrir, os povos quilombolas, os povos de
terreiro etc. Percebo que manter estes intelectuais lúcidos desta realidade é um dos
objetivos do Laboratório Kitembo.
A experiência no Laboratório Kitembo, que tem chão a partir da literatura,
possibilitou que eu tomasse conhecimento da vida e da obra de intelectuais como:
Carolina de Jesus, Conceição Evaristo, Lima Barreto e Machado de Assis, assim
como a premissa de oralitura contribuiu para que me aproximasse do candomblé.
A respeito da política de escrita do grupo, aprendi com Alline Pereira que
“fazer referência é também fazer reverência”. Deste modo, as escolhas dos autores
que conversamos em nossas pesquisas não se dão somente por uma afinidade
teórica, mas também por questões éticas e políticas. Estamos costurando nossos
trabalhos através de produções de intelectuais que foram invisibilizados ou vistos
como objetos pela ciência. Rompendo com a ideia de falar sobre, escolhemos falar
com as nossas respectivas comunidades. Assim, trago para esta conversa não só
referências acadêmicas, mas também referências vivas, como: minhas avós, Ivonete
Fernandes e Aparecida Pereira; minha mãe de santo, Mametu Mabeji; e a ancestral
Makota Zimewanga, Valdina Pinto.
53

2.3.3 A escrita e o feitiço da a academia

2 de maio de 1958
Eu não sou indolente.
Há tempos que eu pretendia fazer o meu diário.
Mas eu pensava que não tinha valor e achei que era perder tempo.
(Carolina Maria de Jesus, 2014, p. 28)

Nem preguiça. Nem desleixo. Nem apatia. Nem indolência. Na experiência do


viver, seja através de meu próprio corpo ou da vida compartilhada em comunidade,
percebo o quanto a exposição do fracasso, o medo da desqualificação, pode ser
perturbadora para pessoas negras. E é justamente a partir deste lugar que escrevo.
A sensação de estar em débito e de não ser boa o suficiente acompanhou
todo o processo de escrita desse texto. A responsabilidade de construir uma
pesquisa que se proponha a cuidar do povo negro a partir de uma perspectiva que
afirme a sua humanidade foi uma das direções que orientou meus jeitos de
pesquisar. Entretanto, ao perceber que finalmente eu havia me encontrado com o
tema, mas, que, ao mesmo tempo, tinha a crença de que poderia não dar conta,
passei por processos de culpabilização e, consequentemente, de adoecimentos.
Parafraseando Amos Wilson (2021), “Nada dói como falhar”. Dor que consome as
vísceras, invade o peito, embrulha o estômago, faz latejar a cabeça e deságua em
lágrimas. O não conseguir escrever ou achar que aquilo que já havia escrito não era
científico se apresentava como uma atestado de falha, de que isso era um problema
só meu, que deveria ser resolvido com mais esforço e estudo.
Em um encontro da Kanda Ìmárale, eu e outros pesquisadores
compartilhamos sobre as dificuldades vividas em nossas trajetórias acadêmicas e
Vanessa Andrade, idealizadora do grupo, nos disse que “não conseguir escrever tem
que ser visto a partir de um ponto de vista político”. Após este encontro, os bloqueios
para escrever continuaram acontecendo. Entretanto, a fala de Vanessa me alertou a
respeito da individualização de problemáticas que são coletivas. Não é por acaso
que pessoas negras não se sentem capazes para estar na universidade e, quando
estão, acreditam que aquilo que produzem ainda não é suficiente.

“Acho que antes de tentar o mestrado preciso fazer uma pós-graduação”


“Ajudo pessoas a entrar, mas não sei se consigo”
54

“Faltei a prova porque achei que não fosse passar”


“Não sei escrever”
“Depois que entrei pro mestrado, parece que fiquei burra”
“Não sirvo para estar aqui”
“Estou com medo da qualificação”
“Já tive vontade de desistir”

Para alguns intelectuais, como Wade Nobles, o período de escravização foi


violento, mas o pós-abolição pode ter trazido ainda mais prejuízos para o povo
negro. Pois, enquanto seus corpos eram açoitados e as correntes visíveis, os negros
sabiam que não estavam livres. Mas, com o mito da democracia racial e a política de
embranquecimento, mesmo com um projeto de genocídio em curso, as correntes se
tornaram simbólicas e o negro acreditou estar livre. Corpos “livres” e mentes
aprisionadas.
Em uma entrevista ao TPSM Conexões, onde conversou sobre feitiço e cura,
Makota Zimewanga (2018) disse: “Você tem que ser dono de sua mente. Usar todos
os recursos, todas as tecnologias, mas sua mente é onde você tem o maior poder de
ser no mundo, de ser com o outro, de fazer um mundo melhor”. Conhecendo a
importância da cabeça, do orí, do mutuê, os colonizadores não somente infiltraram
falsas crenças a respeito do negro no imaginário da sociedade brasileira, como
também nas prórias mentes de pessoas negras. Uma das inúmeras foi a ideia de
que o negro não é dotado de raciocínio.
Majoritariamente, são os alunos negros que são rotulados com TDAH, como
burros, preguiçosos, incapazes etc. Isso não é por acaso, e muito menos se trata de
um problema individual. Em um de seus discursos, onde aborda o individualismo e a
auto-culpa como estratégias políticas da supremacia branca, Amos N. Wilson (2021)
diz:

Uma das ideologias (há um número, mas vamos olhar apenas uma hoje)
projetada para manter o domínio europeu é a ideologia do individualismo.
Hoje ouvimos muito sobre a situação do tipo "faça você mesmo" e "eu faço
o meu"; a chamada individualização do sucesso e do fracasso. Isto é,
quando o fracasso individual é visto como o resultado do que chamamos de
inépcia pessoal ou mau comportamento, como sinal de inferioridade moral.
Isto é, aqueles povos e indivíduos que fracassam na sociedade fracassam
como resultado de problemas internos, de alguma deficiência ou inaptidão
individual: enfim, fracassam como resultado de algum problema moral
dentro de suas personalidades (WILSON, 2021, p. 113).

A convicção de que as pessoas que possuem mais poder ou mérito em uma


sociedade são aquelas que mais se esforçam, se dedicam ou possuem mais
55

inteligência, fenômeno conhecido como meritocracia, se aproxima daquilo que Amos


chama de ideologia do individualismo. Na medida em que a marginalização ou
ascensão são vistas de maneira individualizante, o contexto político fica isento
diante do fracasso e do sucesso dos indivíduos que dele fazem parte. É preciso
questionar a cor da suposta burrice, preguiça e incapacidade humana.
O exame de qualificação desta pesquisa aconteceu em abril de 2020, onde
mais de 6 mil pessoas morreram em decorrência da Covid-19 e mais de 87 mil casos
foram confirmados. Naquele momento, lidar com as mortes em massa e com as
consequências geradas por um contexto de pandemia era o que estava na ordem
dos dias. Escrever esta dissertação nunca foi uma tarefa confortável, mas, percebi
que pensar sobre cuidado, em meio a um isolamento social, um cenário de
incertezas e de perdas, seria não só desafiador como também necessário.
Neste sentido, pensei junto com o professor Abrahão Santos,meu orientador,
e com os colegas do grupo de orientação, em compor uma banca de qualificação
que estivesse alinhada com as minhas questões de pesquisa, mas, principalmente,
que fizesse eu me sentir cuidada. O convite foi feito e aceito pelas professoras
Fátima Lima e Luiza Oliveira. Com isso, a qualificação se tornou um momento
esperado, pela expectativa de ouvir as considerações que duas negras mulheres,
que são referências para mim, tinham sobre o meu trabalho. Ao mesmo tempo, esta
espera também trazia temor, não pela composição da banca, mas pelo que ela
representava. Em encontros com pessoas negras, na universidade, no consultório e
até em momentos de lazer, ouço com frequência suas queixas de não se acharem
boas o suficiente. Seja no trabalho, na dedicação a família, aos amigos, nas
relações amorosas... Essa sensação de ser insuficiente, de estar devendo algo, de
ter sempre que se doar mais também é frequente em minha vida e tem refletido
nesta escrita. Parece que aquilo que escrevo e que tenho para compartilhar no
mundo nunca é suficiente.

“... Sentei ao sol para escrever. A filha de Silvia, uma menina de 6 anos, passava e dizia:
— Está escrevendo, nega fidida!
A mãe ouvia e não repreendia. São as mães que instigam” (Carolina, p. 26)

Ao longo dos três anos do curso de mestrado, através de encontros que se


deram dentro e fora da UFF, tenho me identificado e me apropriado com uma
perspectiva de cuidado que se dá em comunidade. Assim, para pensar o cuidado do
56

outro também preciso em meu autocuidado. Para me dedicar a esta pesquisa não é
suficiente que eu tenha tempo disponível, livros, acesso a internet, um espaço
silencioso etc. Tem sido essencial ser apoiada por minha família de sangue, minha
família de santo, pela Kanda Ìmárale, pelo Kitembo e por tantas outras pessoas e
espaços que fortalecem meu processo de cura.
Existe um saber que se expressa no falar, no ouvir, no fazer...no corpo, e que
muitas vezes não pode ser codificado pela escrita. Será que ela deveria dar conta de
tudo o que envolve o viver? As palavras de Tierno Bokar, griot maliense, dizem que:
“A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o
saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que
nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos
transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente” (apud
HAMPATE BA, 2010, p. 167).
Em um espaço como a academia, onde o sucesso é avaliado através escrita,
preservar o ensinamento da capoeira, de que não se pode dar tudo o que se tem, e
do terreiro, de que nem tudo deve ser falado (nesse caso, escrito), lidar com o
segredo pode ser um desafio, mas se trata de uma estratégia de auto-proteção; do
resgate de uma humanidade que não cabe nas linhas de uma dissertação.
57

3 “JEITOS DE CURAR, DE SE CUIDAR E DE TOMAR CONTA”

3.1 O cuidar como forma de resgate da humanidade

Já nas primeiras palavras desta dissertação, o cuidado aparece como fio


condutor. Entretanto, uma pergunta da professora Luiza Oliveira, durante o exame
de qualificação, me inquietou: “Que jeito é esse de cuidar?”
Nas palavras de Makota Valdina (2014):

A gente tem uma doença que ainda não tem nome, mas a gente tem que
começar a pensar nessa doença e nas sequelas que essa doença passa,
tem passado, geração a geração. Por conta, das condições em que nós
fomos trazidos, por conta das condições que nos foram impostas pela
escravidão (PINTO, 2014).

Neste trecho, ela nos convoca a deixar de negligenciar os resquícios do


racismo, já que eles se apresentam de modo intergeracional. Ao citar as condições
impostas pela escravização, sua fala não só aponta a continuidade histórica da
colonização, mas também o seu modo de operar. Essa doença, que não tem nome,
mas que é responsável pela desarmonia do viver de pessoas pretas, é o reflexo da
humanidade que nos foi negada. Deste modo, ainda que as sequelas raciais sejam
múltiplas e singulares, a principal aposta do que chamo de jeito de cuidar é o
resgate da humanidade do povo preto
Marimba Ani denonima maafa como “o Holocausto Africano, o grande sofrimento
do nosso povo nas mãos de Europeus no hemisfério Ocidental”. Ela explica que:

Maafa é (um termo) Kiswahili para “Grande Desastre” (“desgraça”). Este termo
refere-se à era Européia do comércio de escravos e seu efeito sobre os povos
Africanos: mais de 100 milhões de pessoas perderam suas vidas e seus
descendentes foram então assaltados de forma sistemática e contínua por
meio do anti-africanismo institucionalizado (ANI,1994, tradução livre).

A maneira de nascer, de viver e de morrer de pessoas negras denuncia a


c-o-n-t-i-n-u-i-d-a-d-e do maafa. Isto se justifica porque, em primeiro lugar, o Brasil foi o
último país da América Latina a abolir a escravização. Considerando que a maior parte
de sua história se desenvolveu em uma conjuntura escravocrata, 358 anos de
escravização e somente 133 de suposta liberdade, além de não ter havido tempo
suficiente para a superação dos resquícios deste desastre na vida da população negra,
58

solidificou-se, através do projeto de supremacia branca, a negação de uma dívida


histórica com este povo.
Em segundo lugar, a existência da maafa ocorre através da atualização das
formas de genocidar o povo negro. Estando presente em todas as camadas da
sociedade brasileira, afinal de contas, ele é a pedra angular da constituição desse
território como nação, o racismo possui diferentes mecanismos para assolar mulheres,
homens, crianças, adultos e idosos de descendência africana. Por exemplo, as
expressões do racismo religioso, racismo ambiental, epistemicídio, nutricídio, fratricídio
e suicídio, bem como de outras formas de violência de pessoas negras contra si
mesmas e contra a sua comunidade, denunciam a continuidade deste “Grande
Desastre” (ANI, 1994).
Abdias Nascimento (2017, p. 16) lança mão da definição de genocídio do
Dicionário Escolar do Professor, organizado por Francisco da Silveira Bueno (1963, p.
580). Para ele, este fenômeno se trata da “Recusa do direito de existência de grupos
humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas
instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e
religiosos”
A respeito disso, Wade Nobles escreveu que:

(...) a característica básica do maafa é a negação da humanidade dos


africanos, acompanhada do desprezo e do desrespeito, coletivos e
contínuos, ao seu direito de existir. O maafa autoriza a perpetuação de um
processo sistemático de destruição física e espiritual dos africanos,
individual e coletivamente (NOBLES, 2009, p. 281).

A partir da compreensão trazida por estes autores, os processos de violência


sofridos pelos africanos e por seus descendentes, desde o sequestro de seu
continente-mãe até os dias atuais, só foi possível pela destituição de sua humanidade.
A partir de uma ótica branca, tanto o fenótipo quanto os modos de viver europeus são
considerados modelos de humanidade. O diferente, selvagem, exótico, estrangeiro,
criminoso, doente mental, incapaz, enfim, o desumano é sempre o outro. O que a
supremacia branca não compreende, foge de sua razão, ela não reconhece como
humano. Deste modo, o genocídio representa a negação do direito de existir do povo
preto.
Historicamente, o encontro da psicologia com pessoas negras se deu através
de uma cosmovisão europeia, onde o modelo de humanidade é expresso a partir do
59

ponto de vista do homem branco, de sua auto-imagem. Deste modo, quanto mais
um fenótipo se aproxima daquilo que ele vê no espelho, branco, mais ele o
considera humano. E quanto mais se afasta do seu próprio reflexo, negro, mais a
humanidade lhe é negada.
A preocupação do Estado brasileiro com os fenômenos psicológicos se fez
presente desde a instauração da Colônia, mas se oficializou em 27 de agosto de
1962, através da Lei nº 41.11923, com a regulamentação dos cursos de formação em
psicologia e da profissão do psicólogo. Neste cenário, as demandas de saúde,
trabalho e educação eram direcionadas à psicologia, não com a finalidade de
atender a um compromisso social, mas de um interesse na ordem e no progresso de
uma nação, projeto do qual o povo preto não fazia parte, já que pessoas pretas eram
rotuladas como loucas, preguiçosas, degeneradas e apontadas como principais
responsáveis pelo atraso do país.
A política de desumanização faz parte da tentativa de esvaziar o significado de
ser africano24. Ainda que a maior parte da população brasileira seja negra, existem
pessoas que não se reconhecem como tal. Na medida em que foi construída,
propositalmente, uma imagem do negro como aquele que não se encaixa nos padrões
de beleza, intelectualidade, conduta, normalidade, em suma de humanidade, é
compreensível que o efeito desta produção seja que pessoas negras não queiram ser
reconhecidas desta maneira.

Embora tenha sido pavoroso o ataque contra o senso de ser dos africanos, ele
não conseguiu destruir o africano dentro de nós. Entretanto alterou a
percepção ou a crença em nosso senso de africanidade intrínseco; e esse
senso alterado de consciência é o problema fundamental dos africanos e
afro-americanos e diaspóricos (NOBLES, 2009, p. 277).

Sobre o efeito do racismo no desenvolvimento da experiência de vida africana, é


importante trazer à tona o que Wade Nobles conceitua como descarrilhamento. Para
este autor, o descarrilhamento diz respeito ao fato da vida africana se desenvolver em
territórios anti-africanos. Para ilustrar sua tese, ele usa a metáfora de um trem que sai

23
Dispõe sobre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo.
Publicada em: 27 ago. 1962. Acesso em: 5 mai. 2020. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4119.htm>.
24
Concordamos com a visão de Bunseki Fu-Kiau - exposta no livro Cosmologia africana dos
bantu-kongo: princípios de vida e vivência - de que o termo “africano” não se refere somente às
pessoas que nasceram em África, mas também se destina àqueles e àquelas que possuem
ascendência africana e trazem em seu corpo um fenótipo negro. (SANTANA, 2019).
60

dos trilhos, mas que continua em andamento.

A escravidão controlada por árabes e europeus resultou num grande


descarrilhamento na trajetória do desenvolvimento africano. As comunidades
humanas, da mesma forma que todos os organismos vivos, têm um
caminho/processo de crescimento ou desenvolvimento que pode ser mapeado.
O caminho do desenvolvimento africano em termos de socialização, vida
familiar, educação, formas de conhecer a Deus, padrões de governo,
pensamento filosófico profundo, invenções científicas e técnicas foi
descarrilhado pela invasão e dominação estrangeira. O efeito desse
descarrilhamento ainda está por ser compreendido ou registrado de forma
plena e precisa (NOBLES, 2009, p. 283/284).

Outro psicólogo afro-americano que também se preocupou com os efeitos do


racismo nos modos de viver da população negra foi Amos Wilson. A partir de suas
postulações, publicadas em A falsificação da consciência africana: história eurocêntrica,
psiquiátrica e política da supremacia branca5, é possível aproximar o que ele conceitua
como falsificação da consciência africana do que Wade Nobles chama de senso de
percepção alterado.
Para Wilson (2021) fatores como a amnésia histórica, a necessidade político-
econômica da loucura, a rotulação através de diagnósticos e a individualização de
problemas sociais, por exemplo, são estratégias da supremacia europeia para a
dominação do povo africano e de seus descendentes. Assim,

A psicologia de indivíduos e grupos também pode, em parte, ser construída a


partir de "amnésia histórica e experiencial". Ou seja, quando um indivíduo ou
um grupo é compelido por várias circunstâncias para reprimir segmentos
importantes de sua história formativa, ele ou ela, ao mesmo tempo, perde
acesso a habilidades sociais, intelectuais e técnicas de importância crucial,
associadas a essa história, que poderiam ser usadas para resolver problemas
atuais (WILSON, 2021, p. 43).

Desta maneira, compreende-se que a forma como uma pessoa negra constrói
sua visão de mundo se desenvolve não só através das lembranças de valores,
tradições e hábitos dos grupos aos quais ela pertence, mas também a partir das
lacunas, ou seja, daquilo que foi lhe foi negado sobre sua história. É justamente este
apagamento que falsifica a consciência africana, que forja a vivência de pessoas
negras, resultando em uma percepção alterada sobre elas mesmas e sobre sua
comunidade. Se tratando de pessoas que afirmam sua negritude, não é possível
afirmar que elas estão imunes ao mecanismo da desumanização, pois, viver em
“ambientes decididamente hostis e antiafricanos” (NOBLES, 2009, p. 278) requer o
61

exercício contínuo de tirar as cascas criadas pelo racismo e (re)conhecer sua própria
humanidade, resgatando o que há de africano dentro de si. Em última instância, esta
busca objetiva a consciência de que o genocídio forja a experiência de vida do povo
negro, mas não a determina, pois o sentido de ser para os povos africanos é anterior
ao processo de colonização.
Nós, negras(os) psicólogas(os), estamos sendo cada vez mais
convocadas(os) para cuidar das feridas que o racismo deixou em nossa
comunidade. Entretanto, de que práticas de cuidado dispomos para cuidar de
pessoas negras?
Desde que comecei a pesquisar sobre relações étnico-raciais, tenho ouvido,
falado e escrito sobre o processo histórico do racismo e sobre seus efeitos. E,
embora eu acredite que estudar sobre estas feridas seja importante, tenho me
interessado pelas tecnologias de cura, pois é isso que tem nos mantido vivos. Deste
modo, os jeitos de cuidar se tratam de um conjunto de saberes e fazeres, que
ofereçam possibilidades de vida, em meio ao genocídio.

3.1.1 A vida como valor central

Os resquícios da escravização somados aos atuais mecanismos de genocídio


do povo negro configuram o território brasileiro como um lugar hostil para quem traz em
seu corpo traços africanos.
Makota Valdina (2014) alerta que uma pessoa pode estar aparentemente
saudável e não achar necessário procurar cuidado, mas, por viver em um ambiente
onde sua força de vida é atacada de diversas maneiras, é preciso ter atenção aos
sintomas que denunciam a desarmonia do viver. Ela nos lembra que “Todo ambiente
que tem injustiça, que tem discriminação, que tem exclusão, é um ambiente doente”
(PINTO, 2014).
Esse enfraquecimento da força de vida, onde “O africano era afetado por uma
patética paralisação da vontade de viver, uma perda definitiva de toda e qualquer
esperança”, foi nomeado por Abdias Nascimento (2017, p. 71) como banzo. Para ele,
este fenômeno era a consequência de uma incorformidade do negro com o sistema
escravocrata. Entretanto, na medida em que “Faltavam-lhe as energias, e assim ele,
silencioso no seu desespero crescente, ia morrendo aos poucos, se acabando
lentamente” (p. 71), esvaziava-se do direito à vida e do sentido dela.
62

Visto que historicamente o povo negro tem sido violado do direito ao lazer,
moradia, educação, saúde, trabalho, bem como da possibilidade de sonhar, sentir,
amar, planejar… sobretudo, de viver, restando-lhe sobreviver, o cuidar se apresenta
como uma possibilidade para a restituição da humanidade negra. Se trata de um
jeito para deixarmos de nos percebermos como mercadoria e para nos entendermos
como pessoas. Neste sentido, o primeiro pressuposto desta perspectiva é de que ela
assume um jeito de cuidar que tem a vida como valor central.

– A gente combinamos de não morrer.


– Deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida
menos cruel (...) Eu sei que não morrer, nem sempre, é viver. Deve haver
outros caminhos, saídas mais amenas (EVARISTO, 2016, p. 108/109).

O mestre [ngânga] Fu-Kiau (1991), pode contribuir para o entendimento desta


ética. Em Self-healing power and Therapy: old teaching from Africa25, ele escreveu
como o ser humano [muntu] é percebido em uma perspectiva bantu-kongo. Através de
seus estudos, fica marcada a concepção da vida como um valor extremo.

A sociedade africana em geral, e os Bântu em particular, percebem o ser


humano como um poder, um fenômeno de veneração perpétua desde a
concepção até a morte - uma realidade perpétua que não pode ser negada,
e mais ainda após a morte, porque essa realidade física se torna uma
realidade espiritualmente viva em palavras, ações, experiência, imagem, um
sol irradiante invisível.

No Brasil, contexto onde os brancos formulam “os conceitos, as armas e os


valores do país” (NASCIMENTO, 2019, p. 54), quando a discussão se remete ao
modelo de humanidade é a figura do homem branco que é acionada. E
historicamente esta tem sido a realidade que condiciona a produção de
conhecimento e a construção de práticas profissionais, na psicologia e em diversos
campos. Deste modo, perceber o negro como uma pessoa dotada da capacidade de
sentir, pensar e agir, como um ser humano, é o primeiro passo para cuidar das
injustiças e adversidades que atravessam a sua experiência de vida.
Makota Valdina nos lembra que pessoas negras não descendem de escravos,
e sim de seres humanos que foram escravizados. Do mesmo modo, o negro não é
um animal que foi introduzido na sociedade, mas um ser humano que foi
animalizado e expurgado de sua própria história. Esta percepção confronta teorias

25
(Poder de autocura e terapia: ensinamentos antigos da Africa)
63

eugenistas de que pessoas negras são selvagens. A respeito disso, Fu-Kiau (2019,
p. 56) explica que para os bantu-kongo “o ser humano não é um animal nem é
comparável a um; “mûntu”, o ser humano, possui o duo mwèla-ngîndu, alma-mente,
que o distingue do resto das coisas na natureza [ma-bia-nsemono].
Ele nos diz ainda que,

Enquanto a escola ocidental define o ser humano como “um animal


inteligente, um animal imperial“ ou como um “ferramenteiro”, conforme o
fazem estudiosos(as) africanos(as) não iniciados(as), os(as)
ocidentalizados(as), ou seja, os/as “kiyînga” no modo africano de pensar -,
o/a “Ngânga”, pessoa africana iniciada na forma africana de pensar, um(a)
especialista em perceber as coisas do mundo, preferirá dizer que o ser
humano é um sistema de sistemas [Mûntu i kimpa kia bimpa]. Ele é
também, variavelmente, chamado de “n’kîngu a n’kîngu” - um princípio de
princípios, ou seja, o padrão dos padrões (FU-KIAU, 2019, p. 56).

Nas palavras de Wade Nobles (2009, p. 282), ser humano “é ser uma
"pessoa" que é um sol vivo, possuindo um espírito (essência) cognoscente e
cognoscível por meio do qual se tem uma relação duradoura com o universo total,
perceptível e ponderável”. Nesta relação, o percurso da vida não se encerra com a
morte. “Para um Muntu africano, os mortos não estão mortos: eles são apenas seres
vivendo além da muralha esperando pelo seu provável retorno à comunidade, ao
mundo físico [ku nseke] (SANTOS, 2019, p. 20). Assim, conjecturamos que nossos
antepassados, mesmo depois de mortos, são como um sol vivo irradiante, pois
atuam como fonte de energia para a nossa sobrevivência, o que faz com que
permaneçam vivos em espírito.

Quando o corpo físico morre, diz-se um Mûntu, o duo [mwèla-ngîndu] desse


ser permanece dentro da comunidade ou fora dela. Mwèla-ngîndu continua
a agir e falar, e entre os membros da comunidade, assim como na
comunidade do mundo, através de sonhos e visões, ondas, radiações e
através de atos monumentais: os tesouros biológicos materiais, intelectuais
e espirituais acumulados em rolos [ku mpèmba], o passado, o eterno banco
das forças geradoras/motrizes da vida (FU-KIAU, 2019, p. 56).

Para o escritor, mestre quilombola, lavrador e morador do Quilombo do


Saco-Curtume (São João do Piauí), Nego Bispo, Antonio Bispo dos Santos (2021),
“(...) a vida é começo meio e começo ou seja... geração vó começo, geração mãe
64

meio e geração neta começo de novo… assim como a semente é o começo, a


árvore é o meio e a semente o começo novamente…”26
Na concepção trazida por ele, o viver se desenvolve de maneira circular, onde
um novo nascimento não inaugura a roda da vida, mas dá prosseguimento ao
movimento dela. “(...) Nenhuma geração em nenhuma sociedade pode alegar
superioridade em relação à geração anterior. Aprendizado e progresso (civilização)
são processos de blocos de montar; um não existe sem o outro” (FU-KIAU, 2019, p.
72). Os passos dos mais velhos vêm de longe e a tarefa dos mais novos é trilhar o
caminho, sem deixar que os passos ancestrais sejam apagados e ir deixando
pegadas para aqueles que vierem depois. Assim, cada nascimento tem como
propósito contribuir para o fortalecimento e a continuidade da vida humana.
Para Fu-Kiau (2019, p. 56) não existe fim no processo do viver. “A vida é um
contínuo por meio de muitos estágios (...) Para os Bântu, não existe morte nem
ressurreição: a vida é um permanente processo de mudança”. E é justamente a
partir deste ciclo, onde cada estágio pode provocar transformações, mas sempre há
o retorno para um estado inicial, que nos ancoramos para trazer o sentido de
ancestralidade.
Na formação em psicologia, os estudantes são ensinados a perguntarem aos
pacientes/clientes/usuários sobre suas demandas, queixas, problemas… “O que te
trouxe aqui hoje?”. Talvez, uma maneira de possibilitar que ela não só fale de suas
dores, mas que também se aproprie de sua narrativa, resgatando a esperança, seja
mudar esta pergunta para “Como você chegou até aqui?”. Para Abrahão Santos, “Na
formação profissional o elemento da memória, da rede comunitária e do
enraizamento dos grupos com os quais o psicólogo vai trabalhar talvez não estejam
bem desenvolvidos, como ferramentas de trabalho” (SANTOS, 2019, p. 167). Como
forma de lidar com esta lacuna, fica o ensinamento de Makota Valdina (2018), em
sua entrevista ao Canal TPSM Conexão, de que “Tudo o que vem até chegar
naquela pessoa é aquela pessoa”; tudo o que possibilita a continuidade de sua
história de vida é a sua ancestralidade.

26
Trecho retirado de sua carta ao 20° Fórum Social Mundial, lida durante a mesa Revolução e
Democracia Nas Cidades. Disponível em:
<https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/brasil/68298/nego-bispo-questiona-em-carta-ao-forum-s
ocial-mundial-valores-da-civilizacao>.
65

Uma semente bem constituída de uma árvore forte, saudável e bonita


germinará com energia. Ela crescerá forte, saudável e se tornará produtiva.
Os seres humanos também são sementes. Somos mu mènga
("biogeneticamente") os frutos semeados pelos nossos pais e tataravós. É o
que os Kôngo chamam de N´singa dikânda, "a linha biogenética da
comunidade dos mortos", com quem estamos relacionados pelo sangue.
Como sementes, podemos morrer ou ter sucesso em germinar com energia
ou com a falta dela (FU-KIAU, 1991).

Sobre o que significa ser um ancestral, trago também a conceituação dada


por Miriam Cristiane Alves, Nedio Seminotti e Jayro Pereira de Jesus. Eles
escreveram que:

O ancestral é o fundador de uma família, de um território, de uma nação,


que desempenhou papel de destaque junto ao seu grupo social e que, após
sua morte, ainda assegura suas bênçãos e interferência diante de quaisquer
ameaças; por tais motivos, ele deve continuar sendo lembrado e cultuado
ao longo das gerações posteriores (ALVES, SEMINOTTI E JESUS, 2017, p.
208/209).

Para Abrahão de Oliveira Santos (2019),

Ancestralidade é memória e sentido do pertencimento cósmico e


comunitário. Conta a lenda que antes dos negros atravessarem o Atlântico
passavam um número de vezes em volta da árvore do esquecimento. Os
povos europeus colonizadores que capturavam os africanos quiseram que
estes esquecessem sua cultura, seu país, seu jeito de ser, sua religião, sua
família, sua língua, sua comunidade e até sua humanidade (SANTOS, 2019,
p. 161).

Ao vislumbrar a construção de práticas no campo da psicologia, a partir de uma


perspectiva negra, se faz necessário não só romper com produções acadêmicas que
tem tomado o negro como objeto, mas também fazer reverência aos jeitos negros que
possibilitaram o nosso caminho até aqui, como o sentido do enegrecimento, trazido por
Abrahão Santos.

Digo enegrecimento, em vez de esclarecimento, em favor de um saber, ou


razão, que não se coloca como universal nem do extermínio de outros
saberes. Enegrecer é adotar o conhecimento da ancestralidade, a intuição
de Njila, a disposição para a troca, a comunicação, o acordo comunitário
que envolve as pessoas e os ancestrais (SANTOS, 2019, p. 165).

Quando reivindicamos um jeito negro em nossas pesquisas, nosso trabalho e


nossa vida, ouvimos com frequência sobre estarmos criando rachaduras, divisões,
ou até mesmo uma hegemonia negra. Entretanto, o enegrecimento diz respeito a
66

uma postura onde a experiência de habitar um corpo negro - repleto de marcas,


dores, cicatrizes, medos, sonhos, esperanças, sentido, memória… -, um corpo
ancestral, é responsável por guiar uma (re)orientação psíquica.
Para Makota Valdina (2014) esta postura de enegrecimento “Não é algo que
livro nenhum vai ensinar; que só uma conversa, uma palestra ou uma dissertação...
Tem que passar pela experiência do viver.” Sua fala chama atenção para um
processo de aprendizagem que acontece no mais rico laboratório que a raça
humana tem: o mundo natural, e que se dá através do corpo.
Devido a queima dos arquivos históricos sobre o comércio escravocrata, não
se sabe com exatidão quantos africanos chegaram ao Brasil, mas, estima-se que
foram cerca de 4 milhões (NASCIMENTO, 2017). O fato dos povos africanos terem
sido tratados como produto, objeto suscetível de ser comprado, vendido ou
descartado, denuncia uma das formas da política de desumanização operar.
Africanas e africanos escravizados chegaram na diáspora brasileira
desprovidos de suas riquezas materiais, mas com uma profunda bagagem imaterial.
O amplo repertório de valores e tradições, de jeitos de preservar e dar continuidade
à vida de um povo, estava ali: armazenado em seus próprios corpos.
Neste sentido, tomamos o corpo como o repositório da experiência, que se dá
de modo pessoal e comunitário. Na medida em percebemos que cada pessoa
vivencia e interpreta sua trajetória de forma singular, tomamos o cuidado de não
generalizá-la. Ao mesmo tempo, ao afirmar que o ciclo da vida é conduzido pelo
sentido de ancestralidade, buscamos também trazer à tona aspectos de um jeito de
viver que se conecta com fenômenos que são coletivos. Em suma, a humanidade,
em uma perspectiva negra só pode ser construída através de uma relação com a
comunidade e com os elementos da natureza.

3.1.2 Humanidade compartilhada

Umuntu ngumuntu ngabantu


A pessoa é uma pessoa através de outras pessoas
(Provérbio Zulu)
67

O segundo pressuposto desta perspectiva, onde o cuidar se apresenta como


forma de restituição da humanidade, se relaciona com a tese de que um ser humano só
se torna humano através da relação com outras pessoas.
Desta maneira, a vida se configura através de uma dinâmica onde “ninguém é
totalmente independente e ninguém é definitivamente inútil” (KASHINDI, 2017, p. 11).
Em uma perspectiva bantu-kongo, a vida de um bebê não depende apenas de seus
pais, mas: de várias gerações ancestrais que vieram antes; das pessoas que os
ajudarão a manter a gestação saudável e a contribuir para um parto seguro; e de toda a
comunidade, que irá auxiliar na educação da criança, ao longo de seu crescimento. Do
mesmo modo que um ser humano precisa de uma comunidade para nascer e para
construir sua percepção de mundo, a comunidade também precisa dele, para continuar
existindo. Assim, uma pessoa que vive isolada das relações comunitárias têm sua
humanidade escamoteada, bem como deixa de contribuir para o fortalecimento da
comunidade.
A respeito das contribuições da concepção de ubuntu como humanidade
compartilhada para pensar a psicologia, por exemplo, o cuidado deixa de ser
compreendido como uma tarefa individual e se transforma em ato coletivo. Para
melhor ilustrar essa noção de interdependência, podemos recorrer à metáfora da teia
de aranha, mencionada por Tempels (1959). Para ele, quando um fio da teia vibra
ele impacta todos os outros.

A minha história de vida talvez a/o reporte, em algum momento, à sua história,
ou talvez a sua história seja parecida com a minha, como a de tantas outras
histórias, de tantas outras pessoas… (...) a história de vida de cada negra, de
cada negro, a meu ver, é parte de uma história coletiva que ainda está por ser
verdadeiramente conhecida por muitos e escrita por seus sujeitos (PINTO,
2015, p. 16).

A interdependência é um dos mecanismos que media a relação entre membros


de uma comunidade. Neste contexto, um problema não atinge individualmente uma
pessoa, mas traz desequilíbrio para todos ao seu redor, deste modo, o cuidado não
será resolutivo se pensado individualmente. Se tratando das violências engendradas
pelo racismo, isto não é diferente, pois na medida em que este fenômeno atinge a um
povo, importa resgatar jeitos de cuidar a partir de experiências coletivas.
68

4 A COMUNIDADE COMO LUGAR DE CUIDADO

Para Sobonfu Somé (2009, p. 35) “A comunidade é o espírito, a luz-guia da tribo;


é onde as pessoas se reúnem para realizar um objetivo específico, para ajudar os
outros a realizarem seu propósito e para cuidar umas das outras”. Entretanto, um dos
efeitos do racismo na vida de pessoas negras que vivem na diáspora brasileira é ter
esse valor escamoteado. Quando nossos ancestrais chegaram ao Brasil na condição
de escravizados, ainda que seus corpos estivessem visivelmente acorrentados, eles
sabiam que eram africanos e que sentidos isso trazia para a sua existência. Com a
abolição da escravização, o processo de embranquecimento e o mito da democracia
racial, as correntes se tornaram menos visíveis, mas isso trouxe como consequência
um esvaziamento do sentido de ser africano.

Imagino que muitos afro-brasileiros tenham negado sua africanidade por tanto
tempo (várias gerações), aceitando a falsa identidade de serem apenas
brasileiros, que não percebem mais o ataque contra seu valor humano e seu
bem-estar. Quase como se estivessem em um estado de choque extremo, em
que o corpo não sente mais a dor, muitos afro-brasileiros não sentem mais o
valor ou a importância de serem africanos. São simplesmente brasileiros.
Nesse estado de choque cultural, buscam refúgio em declarar e defender a
posição do Estado de que “Somos todos brasileiros”, mesmo quando todos os
brasileiros não são igualmente tratados ou respeitados (NOBLES, 2009, p.
290).

Quando pessoas negras reivindicam uma identidade brasileira, acreditando


que um país que foi construído a partir do sangue de seus ancestrais irá ser um
território onde se possa pertencer, o que se percebe é um auto-ataque à
humanidade. A internalização de uma visão de mundo embranquecida, bem como a
idealização da ordem e do progresso da nação brasileira, em detrimento da
libertação psicológica, física e espiritual do povo negro, culmina na impossibilidade
de experenciar uma vida em comunidade. Se perceber através da negação de sua
própria história resulta na ruptura de um elo ancestral.
Como aponta Fu-Kiau,

“(...) o conceito de comunidade, tal como pode ser visto e compreendido no


mundo africano, não existe nos países desenvolvidos do Ocidente. Nesses
países, do ponto de vista africano, a palavra “comunidade” é inexpressiva,
vazia de seu significado: Você tem algum problema com inimigos, acredite
que, se a polícia não chegar o mais breve possível, poderá ser morto na rua
por esse grupo e ninguém da sua suposta comunidade ousará sair de casa
69

ara salvar-lhe a vida. O conceito de lei deles diz: “Não se envolva nos
assuntos do outro; é problema dele”” (FU-KIAU, 2019, p. 74).

Coletivos e organizações geridos e voltados para o povo negro são um


campo fértil para o cuidado e a restituição da humanidade. Entretanto, nestes
mesmos espaços, ouvimos, com frequência, que militância não é grupo terapêutico.
O que se percebe é um imaginário social, presente entre pessoas negras, de que os
efeitos causados pelo racismo serão extinguidos instantaneamente, a partir do
momento em que se inicia o processo de reconhecimento da negritude. Além disso,
outra análise que pode ser feita, a respeito dos desafios que cabem ao povo negro,
é que tais sequelas devem ser reparadas individualmente. A partir da percepção que
a humanidade se desenvolve de maneira compartilhada, a ideia de que os assuntos
do outro são um problema somente dele se torna uma falácia. Assim, se os espaços
negros tem a pretensão de beneficiar pessoas pretas, se faz necessária uma nova
discussão dos jeitos de funcionar dessa comunidade.
Outra sequela, que dificulta que pessoas negras possa viver em comunidade, se
percebe através da forma como o povo negro vivencia o amor. Para bell hooks2 (2006),

Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos


negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do
racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação
são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer e amar. Nós
negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, “feridos até o
coração, e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade
de sentir e consequentemente de amar. Somos um povo ferido (hooks,
2006, p. 188/189).

“Somos um povo ferido”. Penso que estudar sobre suturas para as feridas de
meus pares, enquanto as minhas também estão abertas, é um ato de amor. “O amor é
o segredo de tudo!”27 Este trabalho objetiva fornecer um chão para a construção de
ferramentas que ajudem a curar as feridas causadas pelo racismo, neste sentido,
apostamos na comunidade como um espaço que possibilita que pessoas negras
possam amar, confiar e se comprometerem umas com as outras, resgatando aquilo que
Fu-Kiau (2019, p. 44) aponta como “as nossas positivas formas antigas de pensar e
cuidar dos nossos companheiros humanos”.

27
Trecho de Principia, música de Emicida, do álbum Amarelo. São Paulo: Laboratório Fantasma,
2019. 1 CD. Faixa 1.
70

Deixar de reconhecer ou admitir nosso eu ampliado (devido ao


“branqueamento” ou à vergonha racial), creio eu, é o fato que impediu os
africanos diaspóricos como comunidade de maximizar o poder psíquico
encontrado no círculo intacto de ‘força espiritual” que define o ser africano.
Simplesmente não conhecer, não admitir ou negar ser africano limita nossa
capacidade de curar a nós mesmos e compreender nossa conexão humana,
assim como limita nossa capacidade de realmente cuidar uns dos outros e
curar uns aos outros (NOBLES, 2009, p. 291).

As condições de um território anti-negro moldam a forma de viver, fazendo


com pessoas negras não se reconheçam como um povo e, portanto, se sintam ou
estejam sozinhas. Entretanto, ao perceber a vida através de um sentido ancestral, o
nascer, o viver e morrer não acontecem isoladamente, são processos coletivos.
Assim, a noção de eu ampliado, trazida por Wade Nobles, nos ajuda a concluir que o
cuidado está associado a ressignificar a solidão e que a comunidade tem um papel
primordial neste processo.

4.1 Candomblé e resgate de elos ancestrais

O elo pode estar partido visivelmente, mas, invisível, o


elo é inquebrável. E, podem existir N meios, eu não sei
nem quantos nem quais, mas que faz com que muntu se
encontrem, reatem e formem novos elos nesse plano
que a gente vive e contrapondo a essas ameaças. Nós
somos ameaçados, mas, cada vez que dois se juntam,
começa um elo inquebrantável. Eu acredito! É uma
grande ameaça, sim. Mas, a gente não tem que temer
essas ameaças e deixar de criar os nossos jeitos, que só
nós podemos encontrar. Ainda que não tenha em livros,
ainda que não falem, ainda que nos neguem, a gente
descobre. E Nzambi e os Jinkise põe em nosso caminho.
Eu, hoje, vivencio e faço coisas que livro nenhum me
ensinou, mas livros humanos me ensinaram e o invisível
me apontou (MAKOTA VALDINA, 2018).

Pertencer ao Ìmárale me ajudou a perceber que o autocuidado também é um


jeito de cuidar da comunidade, pois a forma como cada pessoa se sente reverbera
no coletivo. Em nossos encontros, Vanessa Andrade alertava o grupo sobre a
importância de nossa formação não se limitar aos livros, mesmo que fossem de
autores negros. A noção de corporalidade, de que nosso aprendizado deveria
passar também pelo corpo, fez com que o samba, o jongo, a capoeira e a vivência
no terreiro, por exemplo, se configurassem como meios de resgate e preservação de
valores africanos, mas também como práticas de cuidado.
71

Em uma perspectiva Bantu-Kongo, uma pessoa é percebida tanto como


recipiente quanto como instrumento de ondas, radiações, forças e energias. Assim
como as folhas, a água, as rochas, o vento e tudo o que existe na natureza pode ser
utilizado em benefício da vida, o ser humano possui sua responsabilidade: ser o
remédio da comunidade “[kala/ ba n’kisi a kânda]” (FU-KIAU, 2019, p. 26). A partir da
relação com o outro, curamos e somos curados. Como afirma Makota Valdina
(2018), “Quando se joga capoeira, quando se dança o candomblé, quando se dança
o samba a gente tá interagindo e a gente tá se curando.”
Como nos lembra Fernanda Carneiro,

Quem dança seus males espanta, é certamente um dito popular de origem


negra. A dança nunca foi apenas divertimento nostálgico como julgavam as
senhoras e os senhores coloniais. Era um modo negro de resistir e se
fortalecer. Era um jeito de pedir ajuda e proteção aos seus próprios deuses.
No espaço sagrado também elaboravam-se estratégias de luta. Os
senhores e senhoras não desconfiavam que as preces, cantos, danças e
louvações eram formas de comunicação e aglutinação poderosas
(CARNEIRO, 2000, p. 39).

Procurar as religiões de matriz africana com o objetivo de ser cuidada não foi
uma exclusividade minha. Grande parte das pessoas que tenho contato e que dizem
procurar o terreiro geralmente estão em busca de acolhimento, de uma palavra de
vida, da cura... do próprio cuidado. Em sua palestra no Encontro Kitembo, Makota
Valdina Pinto contou sobre ancestralidade e cuidado no terreiro. Ela diz:

O cuidar no terreiro, o processo do cuidar da saúde no terreiro, envolve


muita coisa. Vai muito além de um chá, de um remédio, de um banho, de
um ebó, do trabalho... Mas, é o próprio jeito de ser, de fazer, de viver de
interagir que dá isso; que promove saúde, que ameniza a doença que a
gente tem que conviver a cada instante (PINTO, 2014).

As pistas dadas por Makota Valdina Pinto (2014) são valiosas por apontarem
uma forma de cuidar que se aprende e se pratica no terreiro, mas que diz respeito a
uma perspectiva negra. Ou seja, a ensinamentos de africanos que construíram
espaços para sobreviver à escravização e para preservar seus valores e modos de
viver. Neste sentido, o candomblé representa muito mais do que uma religião, pois,
também se configura como um espaço de resistência.
72

4.2 Kupapa Unsaba: o terreiro do Bate Folha

Vanessa Andrade nos dizia, nos encontros do Ìmárale: “Quando damos um


passo em direção ao orixá, ele dá dois em nossa direção”. Para Makota Valdina, a
espiritualidade nos escolhe antes de nosso nascimento, e dizer “sim” para a
reconexão ancestral é como estar em “mpambwanzila” (PINTO, 2015, p. 60). Tem a
ver com a tomada de decisão de seguir pelo caminho que nos foi destinado. Ao
buscar jeitos de me cuidar, dei um passo em direção ao caminho que a
ancestralidade havia para mim escolhido e conheci o Kupapa Unsaba - Bate Folha,
onde fui acolhida por toda a família, sobretudo, pelo colo da grande mãe, Mam’etu
Mabeji.
A família de candomblé da qual faço parte é de Nação Congo-Angola e
possui como raiz o terreiro Bate Folha da Bahia (Mata Escura - Salvador), fundado
no século XX por Manoel Bernardino da Paixão, Tat’etu Ampumandezu. João
Correia de Melo, Tat’etu Lessenge, foi iniciado em 1929 por Ampumandezu e fazia
parte do Bate Folha da Bahia. Em 1938 comprou o terreno em Anchieta, onde
fundou o Bate Folha do Rio de Janeiro e tirou 12 barcos, sendo o primeiro em 1944
e o último em 1969. Após o seu falecimento, 1970, e o período de luto, a casa
esteve fechada, sendo reaberta em 1972 sob a direção de Floripes Correia da Silva
Gomes - Mam’etu Mabeji, sobrinha carnal e filha de santo de Lessenge. Mam’etu
Mabeji, também conhecida como a Flor do Candomblé, possui hoje 85 anos de
idade, 74 de iniciada e permanece sendo a grande matriarca do Bate Folha do Rio
de Janeiro, o Kupapa Unsaba.
Cheguei ao Bate Folha em 2019, buscando cuidar de minha saúde. Após os
cuidados de Mam’etu Mabeji e uma sensação de fortalecimento psicológico, físico e
espiritual, senti que seria necessário voltar ao terreiro não somente para receber
cuidado, mas também para me doar àquela comunidade. Embora naquele momento
eu ainda não soubesse os planos do nkisi, acreditei estar sendo guiada por ele,
então, conversei com Mametu e entrei para a casa. Me tornei ndumbi!
No candomblé de Nação Angola, ndumbi são os filhos que pertencem a uma
casa de santo e que ainda não passaram pela iniciação. Ao passar pela iniciação,
essa pessoa recebe uma mãe e/ou pai pequeno (que o auxiliam não só neste
período, mas em toda a sua jornada religiosa e de vida); uma mãe criadeira ou pai
criadeiro (pessoas responsáveis por cuidar dos filhos durante os preceitos que
73

devem ser cumpridos na casa de santo) e uma madrinha ou padrinho (pessoas mais
velhas de santo que são escolhidas para conduzir o Nkisi na cerimônia pública onde
o recém-iniciado recebe a dijina, seu nome ancestral).
Assim, aqueles que são iniciados e possuem menos de 7 anos, ou que ainda
não realizaram esta obrigação, são os muzenza. Acima deles, estão as filhas ou
filhos mais velhos, os kota manganza. Tanto os muzenza quanto os kota manganza
recebem o Nkisi. Já as Makota (plural de Kota) e os Jintata (plural de Tata), são
filhos que foram suspensos/escolhidos por um Nkisi e posteriormente foram
confirmados, através da iniciação. A Kota e o Tata não incorporam o Nkisi, pois tem
a função de serem assessores da Mam’etu ria Nkisi (Mãe de Santo) ou do Tat’etu ria
Nkisi (Pai de Santo) nas atividades e rituais da casa, bem como cuidam dos Jinkisi
que estão em terra, através dos filhos que entram em transe.
Os atravessamentos de um mundo ocidentalizado forjam nossa relação com
o tempo, e como efeito disso, vivemos apressados, ansiosos com o futuro, em busca
de resultados instantâneos e de reconhecimentos superficiais. Nesta perspectiva, o
não saber, ser criança, mais novo, ndumbi pode ser visto de maneira inferiorizada.
Entretanto, o mais novo de hoje é o mais velho de amanhã, por isso, é fundamental
que uma pessoa tenha uma comunidade para guiá-la neste processo.
Ao entrar para o Kupapa Unsaba, ganhei uma mãe, um avô (em memória),
irmãos e sobrinhos: uma família de santo. A família é a primeira instituição que
pertencemos ao longo de nossas vidas. Para os povos africanos ela representa um
dos bens mais preciosos, não por acaso, a escravização e seus resquícios, que
permanecem até os dias atuais, culminou na quebra de laços afetivos, na
impossibilidade de usufruir do pertencimento familiar. Assim, o candomblé, se
apresenta como uma possibilidade de ter uma comunidade, onde se cuida e se é
cuidado; onde laços ancestrais são resgatados.
74

4.3 (Renas)SER kota: o cuidado gestado através de olhos d’água

Olhos d’água
(...) E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os olhos
de minha mãe, naquele momento resolvi deixar tudo e, no dia seguinte, voltar à cidade em
que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para nunca
mais esquecer a cor de seus olhos.
Assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um ritual, em
que a oferenda aos Orixás deveria ser a descoberta da cor dos olhos de minha mãe.
E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar
extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?
Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas, que eu me
perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então
compreendi. Minha mãe trazia, serenamente, em si, águas correntezas. Por isso, prantos e
prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas
de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida
apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.
Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas dela se
misturarem às minhas.
Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de
minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma se tornam o espelho para os olhos
da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas
estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente no meu rosto, me contemplando
intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão
baixinho, como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como se estivesse buscando e
encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando,
sussurrando, minha filha falou:
- Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?

(Conceição Evaristo, 2016, p. 18/19)


75

É através do Nkisi, especificamente da força de Mamet’u Ndandalunda, que


reconheço o meu lugar no mundo.
Para Abrahão Santos (2019)

Ndandalunda é o nome da energia da água doce, das cachoeiras, da


sedução feminina, da fertilidade. Ndandalunda é então a mulher guerreira
que cuida dos seus filhos com amorosidade ancestral que pulsa em todas
as mulheres e mães de todos os viventes, proveniente dos antepassados
bantos (SANTOS, 2019, p. 161).

Esta amorosidade ancestral, citada por Abrahão Santos, não tem a ver com a
perspectiva de amor romântico, pautada por agendas ocidentais, mas se relaciona
com o sentido político do amor. Um provérbio nos ensina que “Rio calmo e silencioso
mata a sede, mas também afoga um homem”. Ao me remeter à sabedoria da água
para resgatar jeitos de kinsa, o cuidar se reflete em uma postura onde a humanidade
é inegociável. A natureza está sempre em favor da vida, e se preciso for, a água se
infiltra em lugares nunca antes imaginados fazendo ruir estruturas que atualizam o
genocídio.
Ndandalunda é o nome da energia que orienta a minha cabeça [mutue],
possibilitando a fluidez, a fertilidade e a versatilidade do meu jeito de viver. Fui
presentada por este Nkisi em dobro, pois em dezembro de 2020 fui suspensa por
Ndandalunda da kota manganza Lunda Muane, dijina de Valéria Meirelles, iniciada
em 2006 por Mam’etu Mabeji. Além de ser filha também fui escolhida para ser mãe;
o Nkisi cuida de mim e eu cuido dele, o que reverbera no cuidado de toda a nossa
comunidade.
A suspensão foi um divisor de águas, pelo momento em si e pelos efeitos que
isso vem tendo em minha vida. Se trata de uma cerimônia repleta de afetos e de
significados que as palavras não conseguem captar. Desejo que aquelas e aqueles
que me lêem já tenham tido ou ainda possam ter a oportunidade de vivenciá-la.
Neste mesmo dia, meu irmão de santo Lucas Reis foi suspenso pelo Nkisi
Bamburucema da kota manganza Ya Kiomene, dijina de Jupira Conceição. Tia
Kiomene, como carinhosamente é chamada por nossa família, foi iniciada por meu
avô de santo, Tat’etu Lessenge, em 1969, em seu último barco.
Uma percepção, que vem se assentando após a suspensão, foi me dar conta
do quanto o matrigestar está presente em minhas escolhas, em minha escrita, em
meu trabalho, em meu caminho de dedicação ao sagrado… ao meu jeito de cuidar!
76

Inicialmente, estranhei ouvir irmãos de santo me chamarem de mãe, de Kota.


Entretanto, ouvir, aconselhar, dar colo, ensinar, fortalecer e encorajar pessoas,
aquilo que posso chamar de inclinação maternal, sempre esteve presente em
minhas relações.
(Renascer)SER Kota faz parte de um processo que acontece ao mesmo
tempo em que escrevo este texto. Enquanto participava dos grupos de orientação,
no que fazia sentido retirar e incluir no texto, pensava em datas possíveis para a
defesa, também pesquisava tecidos, tentava organizar as férias e me preparava
para a confirmação ao cargo de Kota. A obrigação está prevista para 2022,
momento em que cumprirei os preceitos religiosos e receberei minha dijina, meu
nome ancestral.
Neste percurso, é através do olhos de minhas mais velhas que aprendo sobre
o que significa ser uma Kota. Nas palavras de Makota Valdina:

Makota, etimologicamente, é um termo plural, um termo de uma das línguas


africanas que, inclusive, serviu para forjar o português brasileiro que nós
falamos. Makota é o plural de dikota ou kota, que é irmã ou irmão mais
velho ou mais velha (...) Só que aqui, na recriação, na reelaboração dessas
tradições que vieram do Congo, vieram de Angola, e nos terreiros de nação
Angola, terreiros de candomblé, o termo makota é utilizado mais para
mulheres. Mulheres que são como, que, assessoras dos líderes ou das
líderes de uma comunidade de terreiro. Então, é um termo que é
equivalente a ekedi (...) É um título para mulheres que são iniciadas, mas
que não incorporam o Nkisi (TVE BAHIA, 2013).

No terreiro Kupapa Unsaba, tenho diversas referências para refletir sobre o


papel de uma Kota. Gostaria de citar aqui especialmente duas. Foi através de
Raissa Teixeira Conceição, Kota Ntangu Maza, que cheguei ao Bate Folha. Desde
as minhas primeiras visitas, nas festas públicas, até a minha entrada na casa, como
ndumbi, ela se posicionou como uma mãe, que cuida, se preocupa, se alegra junto e
que orienta. A segunda é Ingrid Milagre (2017), Kota Mesu Eiando. Sua postura
como mãe reflete bons ventos, que me direcionam ao desejo de me dedicar mais ao
sagrado. Deixo aqui, um trecho onde ela conta sobre o que ser Kota:

O que eu acho que é uma kota? Eu acho que é exatamente o termo: a mais
velha. Porque, o que a gente espera de um mais velho? A gente espera que
ele faça tudo correto, que ele dê lições na gente, que ele realmente nos
direcione à coisa correta (...) mas também tem algo extremamente
importante: que nós somos o ouvido do nkisi, eles falam diretamente com a
gente (...) a gente tá aí para zelar por eles, dançar com eles, cuidar das
coisas deles, sendo roupa, assentamento… Tudo referente ao nkisi. Isso
77

sempre com muita agilidade, porém cautela, porque você tem que ter a
percepção de tudo. O nkisi é um vento e quando ele se materializa na
pessoa, a gente tem que tomar conta disso tudo.

Um axioma malinês nos diz que “Tudo o que somos e tudo o que temos,
devemos somente uma vez ao nosso pai, mas duas vezes a nossa mãe”. E, ao
entender que a maternidade “descreve a natureza das responsabilidades
comunitárias envolvidas na criação dos filhos e no cuidado com os outros” (DOVE,
2020, p.19), reconheço que devo à minha mãe [mam’etu] ancestral Ndandalunda e a
todas as mulheres que me acolheram em seus braços. Seus olhos, “Rios calmos,
mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície”
(EVARISTO, 2016, p.18), são o meu primeiro espelho; me ensinaram e ensinam,
cada dia um pouco mais, sobre jeitos de cuidar.
Esta pesquisa possibilitou o meu encontro e reencontro com histórias de
diferentes negras mulheres. Nessa interação, enquanto íamos nos curando (PINTO,
2018), rios caudalosos correram sobre os nossos rostos. E, acompanhada pelo
receio de não sustentar a neutralidade, como a professora Luiza Oliveira (2020) nos
lembra, “Somos filhos de Descartes”, temia que nossas lágrimas se misturassem,
como no conto de Conceição Evaristo. Quais os limites do cuidar quando as feridas
do outro se parecem com as nossas? Como bell hoks escreve, “somos um povo
ferido”, e pensar a cura a partir de nossos próprios termos, o cuidar em meio ao
genocídio, é o desafio que está na ordem do dia.
78

CONCLUSÃO

Inicialmente, ao pensar em um texto de conclusão, tive a sensação de que já


havia lido, pesquisado e escrito tudo o que foi possível, neste percurso de 3 anos do
curso de mestrado em psicologia. Entretanto, ao fazer um resgate dos aprendizados
que essa experiência me proporcionou, começam a fluir breves considerações.
A primeira delas se trata do desafio de desenvolver uma pesquisa em um
contexto pandêmico, que o mundo vem atravessando desde o início de 2020. Trazer
à tona a importância de pertencer a uma comunidade sem poder interagir
fisicamente com ela trouxe, em muitos momentos, dúvidas sobre o sentido de
continuar pesquisando. Além disso, ver pessoas morrendo, em massa, sobretudo
pessoas negras gerou uma sensação de impotência e uma série de
questionamentos sobre a relevância de nossas pesquisas para mudanças efetivas
na vida do povo preto.
O mundo se deparou com diferentes tipos de demandas, sobretudo daquelas
que chamamos de saúde mental, com isso, a procura por psicólogas(os) foi
crescendo. Neste momento, ainda que trabalhando remotamente, me vi
comprometida com atividades da Kanda Ìmarale, do Laboratório Kitembo, da escrita
da dissertação, convites para aulas e projetos e do cuidado com minha família.
Percebi que não daria conta (e nem deveria) de acolher todas as pessoas que me
procuravam precisando de cuidado. Então, concluo que um dos mais importantes
aprendizados que tive através desta pesquisa foi o resgate de minha própria
humanidade. Entendi que meu autocuidado iria reverberar em minha comunidade e
que seria necessário priorizar minha saúde psicológica, física e espiritual.
Outro aprendizado foi lidar com o vício em informações. Fu-Kiau (1991) alerta
que a comida é um combustível para o corpo, promovendo movimento e cura, mas
que se não for bem escolhida ou ingerida em excesso pode nos destruir. Isso me
orientou na tentativa de articular o desenvolvimento desta pesquisa de maneira
coerente com a proposta inicialmente apresentada, que foi trazer à tona saberes e
fazeres negros, que possibilitem a construção de jeitos de cuidar, sobretudo aqueles
apreendidos através do encontro com a professora Valdina de Oliveira Pinto, Makota
Zimewanga. Neste sentido, percebo essa dissertação como o reflexo de um
caminho, onde alguns passos foram dados e outros ainda estão no meu campo de
79

desejo e no tempo do ancestral. Assim, vislumbro oportunidades futuras, dentro e/ou


fora da academia,para continuar desenvolvendo os jeitos de kinsa.
80

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