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“Jeitos de kinsa”:
o cuidado a partir de uma perspectiva negra
Niterói
2021
Nathália de Souza Nascimento
“Jeitos de kinsa”:
o cuidado a partir de uma perspectiva negra
Niterói
2021
Nathália de Souza Nascimento
“Jeitos de kinsa”:
o cuidado a partir de uma perspectiva negra
________________________________________________________
Prof. Dr. Abrahão de Oliveira Santos - UFF
(Orientador)
________________________________________________________
Profª. Drª. Luiza Rodrigues de Oliveira - UFF
(Examinadora Titular)
________________________________________________________
Profª. Drª. Maria de Fátima Lima Santos - CEFET/RJ
(Examinadora Titular)
________________________________________________________
Profª. Drª. Ana Claudia Lima Monteiro - UFF
(Examinadora Suplente)
________________________________________________________
Profª. Drª. Vanessa Menezes de Andrade - KANDA ÌMÁRALE
(Examinadora Suplente)
A família Kupapa Unsaba, por ter me acolhido e por confiar que posso ser
uma boa filha para a nossa casa de santo.
A Vanessa Andrade, por ser uma referência de ekede, mãe, mulher, psicóloga
e pesquisadora. Sobretudo, por fazer o amor transbordar em forma de palavras e
por ter sido uma das maiores incentivadoras para que eu fizesse mestrado.
A Kanda Ìmárale, por ter sido o lugar onde pude vislumbrar outras formas de
fazer psicologia e de cuidar. Por ser uma família, onde fortaleço e sou fortalecida, na
qual tenho orgulho de pertencer.
Ao professor Abrahão de Oliveira Santos, por ter acolhido o meu projeto e ter
me orientado ao longo deste percurso. Sou grata também pelos seus esforços, que
somados ao coletivo, possibilitaram a implementação das ações afirmativas no
PPGP da UFF. Sua dedicação à pesquisa e sua luta por uma universidade onde
pessoas negras tenham voz reverberam mais do que as palavras podem descrever.
The question that drives the development of this work arises from the question that
professor Valdina de Oliveira Pinto, Makota Zimewanga (live in spirit), makes to the
field of psychology. At the 1st Meeting of Afro-Brazilian Subjectivity and Culture,
organized by the Kitembo Laboratory, in 2014, Makota Valdina, as she is widely
known, brought an alert about the disease that racism has placed in Brazilian society
and said that this investigation may be related to with the field of psychology. Thus,
the construction of ways of researching took place from the impacts of our meeting
with Makota, that is, through teachings sown by her and which were recorded in
written and audiovisual publications. On this path, we came across the Bantu-Kongo
perspective, which unfolded in the perception of three essential tools for the
development of this work: the use of language; the restitution of humanity and
matrigestion. What we call here care is, in general, a way of rescuing black humanity,
assuming life as a central value and shared humanity. Thus, we conclude that the
community presents itself as a space of care. Above all, the Candomblé terreiros,
which are fundamental: in the preservation of African values; in the rescue of
ancestral links and in fulfilling the human need for belonging.
APRESENTAÇÃO................................................................................... 12
O legado de Makota Valdina e sua interpelação à psicologia…………...... 12
CONCLUSÃO…………………………………………………………………… 78
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS……………..………………………… 80
12
APRESENTAÇÃO
1
A partir de uma das discussões que tivemos no Grupo Preto de Psicologia Ìmárale/Kanda Ìmárale,
adotamos a prática de usar o termo negra mulher, ao invés de mulher negra, assim como negro
homem ou pretas(os) psicólogas(os), para afirmar que a questão racial é um fator central na vivência
de pessoas negras.
2
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jI148SvCC7s>.
13
3
A palavra bantu [pessoas], plural de muntu [pessoa], é usada para se referir a um grupo
etnolinguístico da África que utiliza uma língua-mãe uma das 400 sublínguas da família banta. Este
14
termo também acaba sendo utilizado para indicar povos que habitam países como: República
Centro-Africana, Camarões, Guiné Equatorial, Gabão, Angola, Namíbia, República Popular do Congo,
Reública democrática do Congo, Zâmbia, Burundi, Ruada, Uganda, Quênia, Malaui, Zimbábue,
Botsuana, Lezoto, Moçambique e África do Sul. Esse grupo, foi um dos mais numerosos trazidos para
o Brasil, durante a escravização, especificamente de Angola, do Congo e de Moçambique.
15
dos povos Bantu-Kongo, tendo passado por 3 escolas iniciáticas. Ao longo de seus
79 anos de vida foi um grande pesquisador das áreas da antropologia cultural,
educação, biblioteconomia e desenvolvimento comunitário, criou um instituto de
estudos e escreveu livros sobre filosofia africana bantu-kongo.
Makota Valdina e Bunseki Fu-Kiau se conheceram pessoalmente em 1997,
em um simpósio realizado em Iowa. Em 1999, Fu-Kiau participou de um ciclo de
palestras no CEAO, organizado por Makota. Entretanto, alguns anos antes, ela já
havia tomado conhecimento dos escritos dele. Ela conta que conheceu Fu-Kiau
através de Daniel Dawson, quando conversavam sobre a cultura afro-brasileira.
Ele disse: “eu tenho material dum africano do Congo, que mora nos Estados
Unidos, que eu vou mandar para você.” E assim ele fez. Mandou a primeira
monografia que Fu-kiau tinha feito nos anos 60. Foi o primeiro material que
me deu uma referência do povo bantu, porque aqui não tinha nada, nunca
vi. Então Fu-kiau começou a ser meu guru, e eu comecei a traduzi-lo com
um pouco de francês que eu tinha estudado no ginásio e um dicionário
(PINTO, 2018).
O trecho acima foi extraído de uma entrevista que Makota Valdina (2018)
concedeu ao professor, músico e poeta Tiganá Santana Santos. Além de Makota,
ele é umas das pessoas que tem contribuído para difundir o pensamento de Fu-Kiau
no Brasil, principalmente através de sua tese de doutorado, defendida em 2019, que
traz a tradução da obra Cosmologia dos bantu-kongo: princípios de vida e vivência,
de Fu-Kiau, originalmente escrita em inglês.
No campo da psicologia, pelo que tenho pesquisado, quem também tem feito
tradução e facilitado o estudo da obra de Fu-Kiau é Roberta Maria Federico4. Em
2020, participei, junto com integrantes da Kanda Ìmárale, do Mini-curso
Fundamentos da Psicologia Africana, ministrado por ela. Nesta ocasião, tivemos
contato com a tradução de alguns capítulos do livro Self-healing power and Therapy
- Old teaching from Afric5 (Poder de autocura e terapia: ensinamentos antigos da
África), originalmente publicado em inglês.
4
Psicóloga preta, que tem atuação nas áreas clínica e escolar. Graduada e Mestre em Psicologia
pela UFRJ, Roberta também é especialista em Terapia de Família. Em 2014 defendeu a dissertação:
“Psicologia, raça e racismo: uma reflexão sobre a produção acadêmica brasileira”. Fundadora do
projeto Sankofa Instituto de Psicologia e pesquisadora autônoma em Psicologia Africana, é
professora do Curso Ubuntu – Educação em Base Africana, da Faculdade de Educação da
Universidade Federal da Bahia, e também é membro da ABPsi – The Association of Black
Psychologists desde 2010, tendo participado do Comitê de Relações Internacionais em 2011.
5
Tradução feita com fins didáticos por Roberta Federico. Para ver mais acessar o site do Instituto
Sankofa Psicologia: <https://sankofapsicologia.com/ebooks/>
16
A palavra é algo muito importante, seja ela dita, rezada ou cantada. Por
isso, a maior atrocidade que fizeram conosco, com aqueles que foram
tirados de suas terras, de seus lugares, falando a sua língua, tendo o seu
próprio nome, a maior violência que fizeram com essas pessoas foi tirar o
direito de ser chamado pelo seu próprio nome, de sentir as irradiações do
seu nome e impedir que eles se comunicassem nas suas Línguas (PINTO,
2015, p. 160).
6
Também conhecida como Swahili, é a língua banta com o maior número de falantes.
17
Fu-Kiau (1991)7 explica que ao longo da vida, uma pessoa pode receber
diferentes tipos de nomes (formal, informal ou iniciático), mas que todos eles são
dados pela comunidade: seus pais, familiares, vizinhos ou sacerdotes de escola
iniciáticas da tradição Bakongo. O nome de uma pessoa se relaciona com o seu
propósito de vida, e, na medida em que aquilo que somos é construído a partir da
relação com nossa comunidade, é dela que deve vir a nomeação.
No contexto diaspórico, uma forma de resgatar o nome ancestral, a dijina,
acontece através dos rituais de iniciação do candomblé. Makota Valdina nos diz:
Quando foi entrevistada por Tiganá Santos, Makota Valdina disse que esse
resgate da língua africana foi uma das coisas que mais lhe marcou no contato com
Fu-Kiau: “(...) quando ele diz que a língua era a base de tudo. O começo das coisas”
(PINTO, 2018). Para Fu-Kiau (1991), enquanto houver vida deve haver educação,
seja de maneira individual ou coletiva, pois "se o ensinamento termina - sobre nós -
isso é a morte [Milongi kasuka, ku mpèmba]”. E é justamente a língua que dá
suporte a todos os processos [dingo-dingo] de aprendizagem que uma pessoa pode
ter ao longo da vida. Por isso,
7
A tradução dos 4 primeiros capítulos de Self-healing power and Therapy - Old teaching from Afric foi
realizada, para fins didáticos, por Roberta Maria Federico. Não tivemos acesso à numeração das
páginas da obra, originalmente publicada em inglês, por isso elas não foram especificadas neste
trabalho.
18
Nos terreiros de Candomblé Angola, o kikongo está presente “nas rezas, nas
cantigas dos n’kisi, nos cantos ritualísticos, no vocabulário e expressões usados”
(PINTO, 2015, p. 151). Além disso, um dos métodos de difundir esta língua, dentro e
fora das casas de santo, é através do uso de provérbios [ngana]. Para Fu-Kiau,
8
Embora não tenhamos nos debruçado sobre a obra da intelectual e revolucionária Lélia Gonzalez,
importa sinalizar que ela nos fornece ferramentas importantes para pensar sobre as contribuições da
cultura africana para a sociedade brasileira, sobretudo para a língua portuguesa - que ela conceitua
como Pretuguês.
19
Eu não sou pesquisadora, aliás, de certo modo sou, porque foi a partir da
minha iniciação no Candomblé que eu tenho buscado as origens do que nós
temos como legado, e aí começou a minha pesquisa, mas de dentro para
fora, partindo da minha vivência como sujeito, e não de fora para dentro; foi
como sujeito do candomblé, e não tendo o candomblé como objeto de
pesquisa (PINTO, 2015, p. 157).
E é justamente este movimento “de dentro para fora” que aposto para
pesquisar. Assim, percebo a Kanda Ìmárale, o Kitembo e o Kupapa Unsaba, por
exemplo, não como meus campos ou objetos de pesquisa, mas como espaços de
referência para a construção de uma psicologia que cuide e que ajude a resgatar
possibilidades de vida para o povo negro.
Ainda que africanas e africanos tenham dado voltas na árvore do
esquecimento, o sentido da ancestralidade e da comunidade não se perdeu
totalmente na experiência do povo preto nas diásporas. Pois, a memória do que
9
Texto elaborado a partir de palestra proferida no I Simpósio Baiano de Etnopsiquiatria em 2000,
Salvador - BA. Está anexado ao livro Meu caminhar, meu viver, autobiografia de Makota Valdina
(2015).
21
significava ser africano não havia ficado na África, mas estava presente em seus
próprios corpos. Esta pesquisa se dá através de um corpo que possui marcas e
cortes. Um corpo que não só escreve sobre a luta, mas que também a vivencia.
Desta maneira, ao ter como objetivo a restituição da humanidade do povo negro,
emerge o reconhecimento da força de vida que cada corpo preto trás.
Para Makota Valdina Pinto (2014), a preservação de jeitos de viver que levam
em consideração a ancestralidade e a vida em comunidade “Não é algo que livro
nenhum vai ensinar; que só uma conversa, uma palestra ou uma dissertação... Tem
que passar pela experiência do viver, do jeito de ser; de viver, de fazer, que é
diferente”.
Deste modo, nosso jeito de pesquisar se trata de um exercício que é feito a
partir de uma experiência intelectual, mas que não exclui o conhecimento que está
presente no corpo, rompendo com a cosmovisão europeia, de que ele estaria
separado da mente. No texto A busca de oralidade: o encontro com mulheres
negras, Luiza Rodrigues Oliveira (2020), escreve sobre isso: “Eu brinco com meus
alunos, nós somos filhos do Descartes, um cara que dizia que bastava exercer o
pensamento que a gente descobria o mundo. E a história não é essa. É com força,
com coragem, com emoção e razão” (p. 55).
Neste mesmo texto, Luiza Oliveira aponta a relação entre a pesquisa e os
saberes tradicionais:
aqueles que se deram, sobretudo, com negras mulheres. Desta maneira, o terceiro
sentido que costura nossos aspectos metodológicos é o de matrigestão.
1.1.3 Matrigestão
Para mim, minha mãe foi uma mulher excepcional. Se minha mãe tivesse o
estudo que eu tive…! Ela era uma mulher incrível. Ela tinha uma visão
aberta, ela tinha uma cabeça para além do seu tempo. Às vezes eu ficava
admirada. Ela tinha aquela força interior que era dela mesma. Às vezes eu
sentia que ela arrancava dela própria a força para realizar as muitas coisas
que fazia, sempre pensando positivamente e motivando as pessoas,
aconselhando, ajudando… Isso ela passou pra gente, isso ela deixou para
os filhos dela (PINTO, 2015, p. 132).
Quantas situações que nós vivíamos como negros, pobres, mas ela vinha,
impunha, passava para a gente um sentimento de ser sempre digno.
Quando veio nos anos 70, aquela onda do “negro é lindo”, de ter orgulho de
ser negro, eu me vi pensando: Mas eu sempre tive orgulho de ser o que eu
sou, pois minha mãe passava isso para gente: se você tem que estar em
algum lugar, você vai, mas você vai com o melhor que você pode, com o
que você tem. Ela dizia: “Eu arrasto a barriga no chão mas todos os meus
filhos vão estudar!” (PINTO, 2015, p. 132).
e tantas outras negras mulheres que vieram antes dela, como um agente político de
mudança, já que sua postura matriarcal não impactou somente a vida de Makota
Valdina, mas de todas as pessoas, mulheres e homens, que tomam conhecimento
deste legado e apreendem jeitos negros de ser e de fazer.
Uma referência de negra mulher, também nascida na Bahia, que deixou um
grande legado na Baixada Fluminense foi Beatriz Moreira Costa, a Mãe Beata de
Yemonjá. Mãe Beata nasceu em Cachoeira (Bahia), em 20 de janeiro de 1931 e fez
seu retorno ancestral em 27 de maio de 2017. Foi artesã, escritora, iyalorixá, uma
pessoa incansável na luta em favor dos direitos humanos, do meio ambiente, da
educação, da saúde e da restituição da humanidade de pessoas negras. Em 20 de
abril de 1985, fundou o terreiro de Candomblé Ketu Ile Omiojuarô, em Miguel Couto,
bairro de Nova Iguaçu. Após sua morte, a casa ficou sob responsabilidade de seu
filho carnal, Baba Adailton Moreira.
Em uma de suas preciosas falas, quando foi entrevistada por Jurema
Werneck e Maisa Mendonça, Mãe Beata de Yemonjá falou sobre a ancestralidade e
a força que ela carrega. Ela nos diz:
Recebo essa força de meus ancestrais, que viveram nos engenhos. Sou
descendente de escravos e entendo o sofrimento que passaram. Hoje eu
coloco meu corpo, minha alma e meu saber a serviço deles. Continuo
lutando para criar as oportunidades que eles não tiveram. Hoje sou Beata
de Yemonjá (YEMONJÁ, 2000, p. 17).
A partir deste trecho, ela nos ensina que tomar a matrigestão como sentido,
que orienta nossas pesquisas e nossas vidas, se relaciona com o desenvolvimento
de ações, protagonizadas por mulheres, mas que buscam afirmar um futuro para
todo o seu povo. A centralidade de negras mulheres, no que diz respeito ao cuidar,
não ficou no passado. Nas favelas, na baixada, no subúrbio, nos terreiros, na
psicologia, na saúde pública, e onde mais for preciso estar, a potência de gestar,
sejam crianças, projetos ou pesquisas, continua a serviço da continuidade da vida
do povo preto.
Assim, ao carregar as forças de negras mulheres em minha escrita e em cada
passo que dou, os jeitos de kinsa também vibram em mim!
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“Os pássaros têm penas porque foram passadas a eles por outros pássaros”
(Provérbio Kongo)
“Às vezes, sinto que estou fragmentada. Mas quando as pessoas me procuram buscando ajuda,
também transmitem o seu carinho e isso me enche de energia. Então, procuro juntar meus
caquinhos, colar as rachaduras, e seguir vivendo”.
(Mãe Beata de Yemonjá,Tradição e religiosidade, 2000, p. 18).
Minha avó materna é uma mulher de 75 anos, que estudou para ser
costureira. Para algumas pessoas ela é Ivonete, para outras ela é Mãe Afugelenã,
sacerdotisa do Abassá de Omulu e Oya, no Parque Ambaí, Nova Iguaçu. Embora
ela possua ascendência portuguesa e traga em seu corpo traços de um fenótipo
branco, sua aproximação com o candomblé, religião de matriz africana, faz com que
sua forma de cuidar de sua família, seja a cosanguínea, seus 3 filhos, 5 netos e 4
bisnetos, ou a espiritual, imprima valores de uma perspectiva negra. Esta
perspectiva já estava presente na vida de minha família antes mesmo que eu
nascesse. Minha avó conta que na ocasião de sua iniciação minha mãe tinha
apenas 10 anos de idade.
Cresci sentindo o cheiro das ervas, quando um banho era preparado ou
quando uma criança era rezada; o barulho dos búzios; a pipoca estourando e as
comidas secas cozinhando. As lembranças das madrugadas dormindo na esteira,
durantes as festas de candomblé, da energia e dos nomes dos erês, do silêncio das
ruas de Belford Roxo de madrugada, quando voltávamos para casa, e de muitos
outros momentos da infância protagonizados pelo candomblé ainda são vivos em
minha memória.
Makota Valdina (2014) conta que existem coisas que acontecem na infância
que marcam a vida de uma pessoa. “Tem coisas que eu vivenciei em criança e
marcou, me marcou, e é a minha memória. Eu não me lembro que idade tinha, mas
tá aí (...) tenho outras memórias, que eu não lembro que idade tinha, mas, de ver o
fazer coisa de negro, ouvir coisa de negro.”
Desde criança, ouço minha família dizer que a casa (de santo) de minha avó
parece um hospital, pois é o primeiro lugar que as pessoas recorrem quando estão
doentes. Em muitos momentos, eu e meus familiares nos vimos incomodados por ter
que dividir a casa, os momentos de alegria e tristeza, o tempo e o colo de minha avó
com pessoas que ela estava cuidando. Hoje, por ser uma profissional do cuidado e
uma mulher de terreiro, entendo que dedicar a vida para cuidar de uma comunidade
requer doação.
Quem procura os serviços de saúde, está atrás de cuidado. E quando esta
demanda diz respeito ao povo preto, são estas as pessoas que majoritariamente
acessam o Sistema Único de Saúde (SUS). Em grande parte das vezes, elas não só
não recebem acolhimento como também são violentadas por ele. Penso que a
construção de jeitos de cuidar envolve primeiramente a necessidade de reconhecer
28
22 de julho Tem hora que revolto com a vida atribulada que levo. E
tem hora que me conformo. Conversei com uma senhora que cria uma
menina de cor. É tão boa para a menina... Lhe compra vestidos de alto
preço. Eu disse:
- Antigamente eram os pretos que criava os brancos. Hoje são os
brancos que criam os pretos (JESUS, 1960, p. 24).
30
que tenha espaço para gente negra, me lembro da fala de Alline Pereira:
“Sensibilizar os outros para o que acontece na baixada é fazer psicologia!”.
Comunitária, quando essa temática não deveria ser restrita a teorias ou abordagens,
muito menos ser tratada como um recorte; a formação ter como referências somente
teóricos europeus, o que faz com que os alunos se formem sem nunca terem lido ou
ouvido falar de autores negros, da diáspora ou do continente africano; a ideia de que
alunos negros são inferiores, preguiçosos e com uma inteligência abaixo da média,
quando comparados com alunos brancos.
Embora alguns profissionais deste campo pareçam estar mais sensíveis para
estudar sobre a questão racial, a psicologia ainda tem muito a aprender. Não basta
que ela se disponha a cuidar, mas que suas maneiras de cuidar do povo preto sejam
construídas no seio desta comunidade, a partir de seus próprios valores, pois, antes
de haver psicologia já existiam ensinamentos a respeito de formas de cuidado de si
e de cuidado com a comunidade. Deste modo, a demanda do povo negro não é ser
salvo, através de teorias e abordagens brancas - isso é a própria colonização -, mas
é, antes de qualquer coisa, ter sua humanidade reconhecida.
Embora, através da luta dos movimentos negros, tenham surgido espaços
para discutir sobre as sequelas do racismo no campo da psicologia, percebi que o
campo a que fui apresentada possui várias vertentes, mas que nenhuma delas
oferece práticas que contemplem às demandas de cuidado do povo preto
de 5 mulheres: eu, Tamirys Viana, Bruna Ignácio, Carla Brasil e Monica Beauclair.
Tendo como título, “Quem não tem sangue de preto na veia deve ter na mão”: o que
a psicologia tem a ver com o racismo?, nosso trabalho de conclusão buscou não
somente sensibilizar os profissionais desta área para a importância do combate ao
racismo, mas também tentou disparar uma discussão a respeito da própria
emergência da psicologia, que teve o racismo como pedra angular.
A respeito de nossas intenções mais minuciosas com a pesquisa, foram
elencados 5 objetivos específicos: 1) Investigar como o processo de autonomização
da psicologia no Brasil possui um caráter histórico; 2) Analisar o desdobramento
histórico do racismo no Brasil; 3) Problematizar o racismo como uma prática que
atravessa a subjetividade; 4) Analisar de que forma a psicologia enquanto ciência e
profissão está implicada com o racismo e; 5) Pesquisar de que forma se dá o debate
sobre racismo na formação em psicologia no Brasil.
Além da revisão de literatura a respeito da autonomização da psicologia
brasileira, bem como do processo histórico do racismo no Brasil, filmes,
documentários e idas a eventos que abordassem a temática em questão,
percebemos que a metodologia de pesquisa passava também pelas nossas próprias
experiências. Nossa presença no mundo, que se dava através de corpos negros e
de corpos brancos, trouxe analisadores de que a raça enquanto construção social
determina os lugares que são ocupados na sociedade, a produção de
conhecimentos que tem validade e quem merece viver, por exemplo.
Considerando nosso acúmulo de experiências, leituras e discussões,
concluímos que, desde seu surgimento, a psicologia não teve como finalidade o
cuidar, mas esteve à serviço de interesses coloniais, reproduzindo a violência e
buscando controlar os modos de vida, sobretudo de pessoas negras.
Mitsuko Antunes (2007) pesquisou sobre como a psicologia conquistou seu
espaço de conhecimento e de práticas no território brasileiro. Para esta autora:
elas, culminando em uma grade curricular que se volta para a atuação na clínica
tradicional.
Das janelas das salas de aula podíamos ver as favelas que cercavam o
Engenho Novo, bairro onde fica um dos campus da Celso Lisboa. As entradas da
Rua 24 de Maio e da Avenida Marechal Rondon ficavam abertas, assim, os
moradores e trabalhadores do bairro, majoritariamente negros, frequentavam o
mesmo ambiente que professores e alunos. Entre as estações de trem de Engenho
Novo e Sampaio, ali estávamos nós: inseridos em um contexto favelado, um
território negro. Mas isso não era falado nos textos que líamos, nas provas que
fazíamos, nas palestras que assistíamos. Não poderia ser falado: o pacto de silêncio
estava feito.
Embora eu pudesse ter a oportunidade de participar de grupos de pesquisa,
fazer estágios extra-curriculares e ter tido professores que me inspiravam a ter um
posicionamento crítico, como José Rodrigues, Mariana Alves Gonçalves e Carlos
Eduardo Nórte, percebo que vivi exceções.
Ao longo da graduação, fui percebendo que as ferramentas fornecidas pela
psicologia eram insuficientes para pensar sobre cuidado, principalmente o cuidado
para pessoas negras. Nas aulas lecionadas pelo professor José Rodrigues, as
discussões reforçavam a ideia do quanto este campo contribui para os processos de
marginalização, patologização, criminalização etc. Entretanto, ao pensar sobre
possibilidades de vida e de outra perspectiva de cuidar, citou Vanessa Andrade, que
fazia discussões sobre racismo no campo da psicologia. Isso fez com que em 2017
eu me aproximasse de Vanessa Andrade e do Grupo Preto de Psicologia
Ìmárale/Kanda Ìmárale.
10
Yaya Massemba, canção de Roberto Mendes e Capinam, gravada por Maria Bethânia, no álbum
Brasileirinho. Rio de Janeiro: Biscoito fino, 2003. 1 CD. Faixa 2.
11
Nas palavras de Vanessa Andrade, o Afrobetizar é “Uma comunidade, com inspiração no quilombo e
no terreiro de candomblé, que busca praticar o cuidado, em uma perspectiva africana, das crianças e
adolescentes negros moradores da favela do Cantagalo- RJ” (ANDRADE, 2019, p. 7). Para saber
mais sobre o projeto, consultar sua tese de doutorado.
39
até então, muito pouco tem se apresentado comprometida com tais questões” (p.
32).
Em sua tese de doutorado, O Muleke e o Afrobetizar: Sankofa nos dias de
destruição, Vanessa Andrade (2019) nos sensibiliza a respeito de um olhar mais
humanizado para o menino negro. Ao longo de seu texto, ela aponta a psicologia
como co-responsável pela manutenção das violências contra o negro. E em um dos
trechos ela questiona:
Assim como a verdadeira história do Brasil não pode ser contada sem que
haja uma discussão sobre a dizimação dos povos tradicionais e a escravização dos
povos africanos, a história da psicologia, que não é escrita nos livros e discutida nas
salas de aula, só pôde se desenvolver através da objetificação de negras e negros.
Como Vanessa Andrade escreveu: “a psicologia não parou de pensar sobre o
negro”.
Neste sentido, a proposta do Ìmárale era pensar com o negro. A metodologia
não consistia em usá-lo como objeto, mas percebê-lo como humano, como agente
de sua própria história e com um potencial de vida que poderia ser fortalecido,
através de práticas de cuidado construídas em comunidade.
Inicialmente, o grupo foi sendo composto por negras e negros que eram
estudantes ou profissionais de psicologia. Os encontros aconteciam semanalmente
na casa de Vanessa Andrade, no Morro Santa Marta, em Botafogo. A proposta era
possibilitar o contato com autores negros e construir um espaço em que pessoas
negras pudessem discutir abertamente sobre as questões raciais, o que não
acontecia na universidade e nem no local de estágio ou trabalho dos integrantes.
Makota Valdina (2014) conta que o processo de cuidar no terreiro vai muito
além dos banhos, dos chás, das rezas… Ela não desqualifica o conteúdo, mas
enfatiza a relevância do método. É sobre um gerar, que é negro, um “jeito de ser, de
40
fazer, de viver que é diferente.” E certamente foi esta forma de “vânga (fazer,
produzir, agir, realizar)” (FU-KIAU, 1991) que tornou o Ímárale um espaço de
fortalecimento. A diferença não está só no estudo de autores negros, mas na forma
como o resgate de nossas próprias histórias acontecia.
No Ìmárale, fomos nos formando não só através das leituras, mas, sobretudo,
nos reaproximando dos mais velhos de nossas famílias e comunidades; dos valores
e da convivência dos terreiros de candomblé, de Nação Angola e Ketu; dos grupos
de capoeira; da dança afro; das escolas de samba e de caminhos que
possibilitassem potencializar o viver a partir de um corpo negro.
Fomos entendendo que para construir um quilombo, espaço que nutrisse os
integrantes do grupo e que futuramente pudesse desaguar em nossa comunidade,
era preciso ir em busca de referências que não estavam somente na psicologia e
nos livros. Além da percepção de que era preciso revisitar a história, a filosofia, a
antropologia e a sociologia, por exemplo, era urgente que o contato com esses
conhecimentos passassem por nossos corpos, para que fizessem sentido.
No texto introdutório do livro Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual:
possibilidade nos dias de destruição, Raquel Barreto (2018, p. 37) compartilha
algumas reflexões sobre o quilombo, baseadas em um diálogo com o sociólogo
afro-cubano Carlos Alberto Moore. Ela escreve que “O Quilombo hoje é uma
metáfora, um verbo, um imperativo, uma tradição. Uma forma de estar no mundo
pautada na junção de saberes do corpo, do intelecto e da alma. O quilombo hoje
habita em nós”.
Na tentativa de integrar esta junção de saberes, em um dos encontros,
ouvimos juntos a canção Yaya Massemba, de autoria de Roberto Mendes e
Capinam,, interpretada por Virginia Rodrigues12. Entrar em contato com o ritmo da
música, o som dos instrumentos, com a voz e a performance de Virginia Rodrigues,
enquanto ela cantava “vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas”, reavivou no
grupo um sentido de comunidade. Antes da entrada no Ìmárale, cada um(a) de nós
já havia lido e ouvido falar sobre ancestralidade, entretanto, foi somente na
“experiência do viver”, como aponta Makota Valdina (2014) que fomos entendendo
os impactos de sermos paridos no “ventre de um navio” e aprendendo sobre
fortalecimento entre nós. Ao resgatar a história do Ìmárale, em uma pesquisa que
versa sobre cuidado, penso que este “aprender a ler” não diz respeito a ensinar
12
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=r-70cBxqHYE>
41
conhecimentos científicos aos nossos camaradas sobre a própria vida deles. Mas,
se trata de resgatar saberes ancestrais, compartilhá-los e, a partir dos encontros
com nossos mais velhos e mais novos, seguir aprendendo sobre jeitos de cuidar.
Em 2017, como forma de reconhecer a importância do Coletivo Denegrir13,
que era uma referência para os integrantes do Ìmárale, e possibilitar o fortalecimento
de nossa comunidade, estabelecemos uma parceria e, como um dos
desdobramentos desse estreitamentos de laços, os nossos encontros passaram a
ser na sala gerenciada pelo coletivo, Sala Abdias do Nascimento, na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Além disso, algumas das referências para
pensar esta pesquisa surgiram a partir de eventos organizados mensalmente pelo
Denegrir, como o grupo de estudo Tornar Ser Negro e Negra e o sarau Griotagem
Encontros.
Um dos (re)encontros ancestrais, que trouxe um grande impacto para o
Ìmárale, foi com Danielli Saucedo, negra mulher, gaúcha, vivenciadora das tradições
de matriz africana (onde renasceu como Folashewa), assistente social e idealizadora
do Ciclo Sinergia. A conheci em março de 2018, através de Vanessa Andrade. Nesta
ocasião, ela estava prestes a concluir sua dissertação de mestrado, que teve como
título Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: um “equilíbrio”
coletivo?, trabalho que tive a oportunidade de ler, acompanhar a conclusão e ver
sendo defendido. Inclusive, um dos professores que estava na banca foi Abrahão
Santos, que, alguns meses depois, se tornou meu orientador no mestrado.
Em sua pesquisa, Danielli Saucedo (2018) buscou analisar como a Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra estava sendo implantada em um
dispositivo do Sistema Único de Saúde (SUS), no território de Manguinhos.
Entretanto, o impacto que seu texto reverberou em mim se deu na medida em que o
ponto de vista de Saucedo (2018) para pensar a saúde do povo preto parte de uma
perspectiva ancestral.
13
Em uma carta, direcionada as alunas e alunos de UERJ, O Denegrir fala sobre o seu surgimento. “O
Coletivo de Alunos Negr@s da UERJ surgiu da necessidade de discutir a questão racial ignorada no
âmbito acadêmico. Foi batizado com o nome DENEGRIR, com o propósito de denunciar a
discriminação e o racismo contidos na nossa sociedade, inclusive na utilização de palavras.
DENEGRIR significa tornar negro e ganhou sentido de infamar, macular, manchar ou ofender.Na
contramão da atual utilização do verbo, propomos a reconstrução da sua utilização com significação
positiva: DENEGRIR - tornando a universidade mais negra”. Disponível em:
<http://www.geocities.ws/denegrir_uerj/Carta_do_denegrir.pdf>. Para saber mais sobre o coletivo,
consultar <https://www.facebook.com/denegrir.coletivo/about>.
42
Para ela, a saúde diz respeito a uma busca constante por equilíbrio entre uma
pessoa, sua comunidade e os elementos da natureza. Em suas palavras:
14
As obras lidas destes autores fazem parte do livro Afrocentricidade: uma abordagem
epistemológica inovadora - Coleção Sankofa - Vol. 4.
15
Plataforma que visa possibilitar a reflexão e ação, para a emancipação negra através de
ferramentas audiovisuais. Possui o maior acervo online de filmes, séries e documentários pretos em
português. Para saber mais, consultar Equipe BlackFlix <contato@blackflix.com.br>.
16
Canal do YouTube, criado em 2015, onde alguns documentários do acervo BlackFlix podem ser
acessados de maneira gratuita. Disponível em:
<https://www.youtube.com/c/OSH1Autoimagem/featured>.
44
Tata e sobrinho carnal de Makota Valdina, são alguns de nossos parceiros nesta
jornada.
A inquietação sobre que tipo de práticas em psicologia estávamos
construindo, trazida através do estudo de Amos Wilson; os momentos de
autocuidado, promovidos pelo Ciclo Sinergia, que nos alertaram para irmos além dos
estudos, traduções e atividades acadêmicas; e a confirmação para o cargo de Tata,
de Allan Miranda, que se tornou Anlevu, no terreiro Kupapa Unsaba17, foram marcos
importantes para o Ìmárale.
Embora a maioria dos integrantes do grupo tenha formação em psicologia e
tenha algum tipo de relação com a universidade, em 2020, entendemos que os
caminhos que estávamos trilhando não mais se restringiam a psicologia e a
academia. A partir de então, passamos a nos nomear como Kanda (palavra de
origem bantu, que designa uma família) Ìmárale (palavra de origem iorubá, que
reflete o aumento da força vida de cada pertencente a uma comunidade)..
Aquilo que Sobonfu Somé (2003) conceitua como intimidade opera na Kanda
Ìmárale a partir de 3 pilares: confiança, comprometimento e cuidado. Viver sob a luz
destes valores diz respeito a: nos vermos como um povo, cujo processo de
libertação intelectual, espiritual, cultural, social e econômica depende de confiarmos
uns nos outros; doação de tempo, energia e recursos, em prol do fortalecimento da
kanda e da comunidade que nos cerca; e responsabilidade coletiva do resgate de
saberes e de jeitos ancestrais, já que o (des)equilibrio de um deságua em todos.
Ser parte da Kanda tem trazido questionamentos a respeito do que tenho
chamado, em minha vida e nesta pesquisa, de cuidado. É um jeito de cuidar que se
sistematiza e vai ganhando corpo através do contato com a psicologia, mas que não
se restringe a ela. Isso traz um desassossego sobre o meu lugar como pesquisadora
e como profissional, cuja prática ainda possui resquícios de uma ciência ocidental.
Ao mesmo tempo, me lembro das palavras do professor Abrahão Santos, quando
questionado sobre o nkisi Kitembo: “É bandeira que aponta para o caminho que se
deve seguir”. Neste sentido, a sabedoria e a energia do Tempo permitem que eu não
paralise, por temer o futuro incerto, mas fortalece o meu caminho. De maneira que o
17
Casa de candomblé de Nação Angola, situada em Anchieta (RJ). Tem como raiz o Terreiro Bate
Folha, Salvador (BA) e foi fundada em 1947 por João Correia de Mello, Tat’etu Lessengue. Com o seu
falecimento (1970) e após 2 anos de luto, a direção da casa foi assumida por Mam’etu Mabeji,
sobrinha carnal e filha de santo de Tat’etu Lessengue.
45
Segundo dados noticiados pelo Portal Vermelho (2018) “negros são menos de
30% dos estudantes que cursam pós-graduação”. As cotas têm possibilitado o
47
Para Makota Valdina Pinto (2014) o viver no presente não deve estar
descolado do que aconteceu no passado e nem descompromissado com o futuro. É
justamente através deste movimento-elástico, desta relação de circularidade com o
tempo, que se dá a relação desta pesquisa com Kitembo - tanto com o nkisi quanto
com o Laboratório.
O nkisi Kitembo
Todos os dias, quando entrava e saia da casa onde fui criada, me deparava
com uma bandeira branca. Embora, em minha infância, eu não entendesse o seu
significado, este símbolo se tornou um marco. Independente do que acontecesse no
terreiro de minha avó, a bandeira branca sempre estava erguida e apontando para
algum lugar. Era a presença do tempo em nosso viver.
Compreendo a bandeira de Kitembo como uma ferramenta que possibilita a
indicação do caminho a ser seguido e da lembrança de que ele não deve ser trilhado
sozinho. Assim como Kitembo se manifestava na vida dos povos bantu, soprando
seu vento na bandeira branca, a energia deste nkisi, o próprio tempo, tem
direcionado a jornada desta pesquisa. É através do tempo dedicado ao estudo, ao
encontro, ao cuidado e, sobretudo, à percepção da existência de um tempo que não
se finda, mas que se renova, que venho desenhando a construção deste trabalho.
Para os povos Bantu-Kongo, Kitembo também é representado pela árvore,
que só cresce por suas raízes estarem fincadas ao chão. Estas raízes são
essenciais para a fixação da árvore ao solo e para a absorção dos nutrientes
necessários para a sua sobrevivência. Nesta proposta, sustentar um laboratório de
estudos e jeitos de cuidar a partir da sabedoria de Kitembo significa considerar
nossas raízes: os saberes daqueles que vieram antes, que tiveram tempo para
conhecer melhor a terra e que, mesmo já tendo retornado para ela, continuam nos
dando possibilidades de vida. Como disse a Egbomi Vanda Machado18, durante a
live Sagrada Epistemologia19: “O tempo não gosta de nada que se faz sem ele”20.
A sabedoria do nkisi Kitembo aponta para a construção de práticas de
cuidado alinhadas com os saberes indígenas, de terreiro, periféricos, favelados,
dentre outros, que nascem dentro da própria comunidade, onde o aprendizado não
se dá somente pelos textos, mas pelos encontros, olhares, conversas, gestos etc.
Isso possibilita que a nossa formação não seja engessada pelo funcionamento
ocidental da universidade.
No artigo A Pesquisa no Kitembo - pistas para a construção de uma
psicologia aterrada, Abrahão Santos e Viviane Pereira (2018) resgatam a história do
18
Sacerdotisa e idealizadora do Projeto Político Pedagógico Irê Ayó da Escola Eugênia Anna dos
Santos, localizada na casa do candomblé Ilê Axé Opô Afonjá. Esta casa, de nação Ketu, foi fundada
em 1910 por Eugênia Ana dos Santos e Tio Joaquim, Obá Sanyá. Após o falecimento de Mãe Stella
de Oxóssi, que foi a quinta Iyalorixá da casa, em 2018, a direção foi assumida por Mãe Ana de
Xangô.
19
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JrO9B98uV64
20
Frase de Mãe Detinha de Xangô (1928-2014), que foi sacerdotisa no Ilê Axé Opô Afonjá e um dos
braços direitos de Mãe Stella de Oxóssi.
50
laboratório. O Kitembo nasce em 2013, com o objetivo de criar “um corpo sensível”
para narrativas que vinham e vem sendo ignoradas pela psicologia e também ser um
espaço para os negros na universidade.
A perspectiva do laboratório aponta para a construção de uma psicologia
aterrada: conectada com a realidade e as dificuldades colocadas pelas comunidades
indígenas, povos de terreiro, quilombolas, moradores de favela, dentre outros.
Entretanto, a tomada dos saberes destas comunidades não os coloca como objetos,
mas como referências para a construção de jeitos de pesquisar, conhecer,
experenciar, cuidar, lidar com o sofrimento e os dramas da existência humana.
Entre 26 e 28 de julho de 2016 aconteceu na Universidade Veiga de Almeida
a 10ª Mostra Regional de Práticas em Psicologia, organizada pelo Conselho
Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, que teve como tema: Ressignificando
práticas, compartilhando experiências e construindo redes. Apresentei junto com
Dandara Aziza e Daniele Silva, um trabalho sobre nossa experiência de estágio no
Programa de Mães Adolescentes (PMA), que fazia parte da Unidade de Reinserção
Social (URS) Ayrton Senna, em Vila Isabel.21
Depois de apresentar, fui assistir a apresentação de outros trabalhos e
conheci Flavio Guilhon, integrante do Kitembo, que estava apresentando sua
pesquisa do mestrado, Caminhos de cuidado: processos de subjetividade e práticas
terapêuticas em terreiros de candomblé. Ao ouvi-lo, falando sobre os terreiros como
espaços de cuidado, fiquei bastante reflexiva e emotiva. Naquele momento, pensei
que isso havia acontecido por ter me lembrando de minha avó materna e do
acolhimento que ela promovia através do candomblé. Hoje, percebo que aquela
conversa com Flavio Guilhon foi uma das sementes para que eu concebesse a
psicologia a partir do cuidado e o terreiro como um lugar de referência para isso.
21
As Unidades de Recolhimento Social (URS) fazem parte da política de proteção social de alta
complexidade e acolhem a população que rompeu com seus vínculos familiares e comunitários e se
encontram em situação de grave vulnerabilidade social (situação de rua, negligência, violência
doméstica, orfandade, risco social, maus tratos, abuso sexual, etc.). O PMA, acolhe mulheres de até
dezoito anos grávidas em condição de risco social para elas ou para o bebê. Diante de uma demanda
da instituição ao Serviço de Psicologia Aplicada do Centro Universitário Celso Lisboa, sob a
supervisão da professora Mariana Gonçalves, construímos uma equipe de estágio para a realização
de grupos de acolhimento e reflexão semanais. Os encontros tinham como objetivo oferecer um
espaço de escuta e produzir discussões sobre temas que forjassem o viver das adolescentes que
estavam em situação de abrigamento. A unidade Ayrton Senna, em Vila Isabel, foi fechada em 2016,
por estar em condições insalubres, e o programa passou a funcionar na Unidade Frida Khalo, no
Méier, inaugurada em 2017. Para mais informações acessar:
http://www.tjrj.jus.br/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/5195713
51
lá com a certeza de que era preciso estar em movimento, rumo a uma psicologia
que fizesse sentido para pessoas negras, mas também entendendo que nós não
estávamos inventando a roda, mas dando continuidade a ela. Neste dia conheci
Abrahão Santos, mas não imaginava que um ano depois os nossos caminhos se
cruzariam novamente e que eu estaria sendo orientada por ele, no mestrado.
Durante uma das discussões da disciplina Tópicos especiais: estudos sobre a
obra de Frantz Fanon, uma aluna negra falava sobre a universidade e seu
distanciamento do contexto comunitário: “A universidade ilude a gente... O mundo
não é isso daqui”. Ao recuperar esta fala, não tenho como intenção incentivar o
rompimento com a educação formal, mas sustentar a afirmação de que o trabalho de
negras e negros na universidade deve manter a conexão com nossa comunidade,
seja a ela a Kanda Ìmárale, o Coletivo Denegrir, os povos quilombolas, os povos de
terreiro etc. Percebo que manter estes intelectuais lúcidos desta realidade é um dos
objetivos do Laboratório Kitembo.
A experiência no Laboratório Kitembo, que tem chão a partir da literatura,
possibilitou que eu tomasse conhecimento da vida e da obra de intelectuais como:
Carolina de Jesus, Conceição Evaristo, Lima Barreto e Machado de Assis, assim
como a premissa de oralitura contribuiu para que me aproximasse do candomblé.
A respeito da política de escrita do grupo, aprendi com Alline Pereira que
“fazer referência é também fazer reverência”. Deste modo, as escolhas dos autores
que conversamos em nossas pesquisas não se dão somente por uma afinidade
teórica, mas também por questões éticas e políticas. Estamos costurando nossos
trabalhos através de produções de intelectuais que foram invisibilizados ou vistos
como objetos pela ciência. Rompendo com a ideia de falar sobre, escolhemos falar
com as nossas respectivas comunidades. Assim, trago para esta conversa não só
referências acadêmicas, mas também referências vivas, como: minhas avós, Ivonete
Fernandes e Aparecida Pereira; minha mãe de santo, Mametu Mabeji; e a ancestral
Makota Zimewanga, Valdina Pinto.
53
2 de maio de 1958
Eu não sou indolente.
Há tempos que eu pretendia fazer o meu diário.
Mas eu pensava que não tinha valor e achei que era perder tempo.
(Carolina Maria de Jesus, 2014, p. 28)
Uma das ideologias (há um número, mas vamos olhar apenas uma hoje)
projetada para manter o domínio europeu é a ideologia do individualismo.
Hoje ouvimos muito sobre a situação do tipo "faça você mesmo" e "eu faço
o meu"; a chamada individualização do sucesso e do fracasso. Isto é,
quando o fracasso individual é visto como o resultado do que chamamos de
inépcia pessoal ou mau comportamento, como sinal de inferioridade moral.
Isto é, aqueles povos e indivíduos que fracassam na sociedade fracassam
como resultado de problemas internos, de alguma deficiência ou inaptidão
individual: enfim, fracassam como resultado de algum problema moral
dentro de suas personalidades (WILSON, 2021, p. 113).
“... Sentei ao sol para escrever. A filha de Silvia, uma menina de 6 anos, passava e dizia:
— Está escrevendo, nega fidida!
A mãe ouvia e não repreendia. São as mães que instigam” (Carolina, p. 26)
outro também preciso em meu autocuidado. Para me dedicar a esta pesquisa não é
suficiente que eu tenha tempo disponível, livros, acesso a internet, um espaço
silencioso etc. Tem sido essencial ser apoiada por minha família de sangue, minha
família de santo, pela Kanda Ìmárale, pelo Kitembo e por tantas outras pessoas e
espaços que fortalecem meu processo de cura.
Existe um saber que se expressa no falar, no ouvir, no fazer...no corpo, e que
muitas vezes não pode ser codificado pela escrita. Será que ela deveria dar conta de
tudo o que envolve o viver? As palavras de Tierno Bokar, griot maliense, dizem que:
“A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o
saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que
nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos
transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente” (apud
HAMPATE BA, 2010, p. 167).
Em um espaço como a academia, onde o sucesso é avaliado através escrita,
preservar o ensinamento da capoeira, de que não se pode dar tudo o que se tem, e
do terreiro, de que nem tudo deve ser falado (nesse caso, escrito), lidar com o
segredo pode ser um desafio, mas se trata de uma estratégia de auto-proteção; do
resgate de uma humanidade que não cabe nas linhas de uma dissertação.
57
A gente tem uma doença que ainda não tem nome, mas a gente tem que
começar a pensar nessa doença e nas sequelas que essa doença passa,
tem passado, geração a geração. Por conta, das condições em que nós
fomos trazidos, por conta das condições que nos foram impostas pela
escravidão (PINTO, 2014).
Maafa é (um termo) Kiswahili para “Grande Desastre” (“desgraça”). Este termo
refere-se à era Européia do comércio de escravos e seu efeito sobre os povos
Africanos: mais de 100 milhões de pessoas perderam suas vidas e seus
descendentes foram então assaltados de forma sistemática e contínua por
meio do anti-africanismo institucionalizado (ANI,1994, tradução livre).
ponto de vista do homem branco, de sua auto-imagem. Deste modo, quanto mais
um fenótipo se aproxima daquilo que ele vê no espelho, branco, mais ele o
considera humano. E quanto mais se afasta do seu próprio reflexo, negro, mais a
humanidade lhe é negada.
A preocupação do Estado brasileiro com os fenômenos psicológicos se fez
presente desde a instauração da Colônia, mas se oficializou em 27 de agosto de
1962, através da Lei nº 41.11923, com a regulamentação dos cursos de formação em
psicologia e da profissão do psicólogo. Neste cenário, as demandas de saúde,
trabalho e educação eram direcionadas à psicologia, não com a finalidade de
atender a um compromisso social, mas de um interesse na ordem e no progresso de
uma nação, projeto do qual o povo preto não fazia parte, já que pessoas pretas eram
rotuladas como loucas, preguiçosas, degeneradas e apontadas como principais
responsáveis pelo atraso do país.
A política de desumanização faz parte da tentativa de esvaziar o significado de
ser africano24. Ainda que a maior parte da população brasileira seja negra, existem
pessoas que não se reconhecem como tal. Na medida em que foi construída,
propositalmente, uma imagem do negro como aquele que não se encaixa nos padrões
de beleza, intelectualidade, conduta, normalidade, em suma de humanidade, é
compreensível que o efeito desta produção seja que pessoas negras não queiram ser
reconhecidas desta maneira.
Embora tenha sido pavoroso o ataque contra o senso de ser dos africanos, ele
não conseguiu destruir o africano dentro de nós. Entretanto alterou a
percepção ou a crença em nosso senso de africanidade intrínseco; e esse
senso alterado de consciência é o problema fundamental dos africanos e
afro-americanos e diaspóricos (NOBLES, 2009, p. 277).
23
Dispõe sobre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo.
Publicada em: 27 ago. 1962. Acesso em: 5 mai. 2020. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4119.htm>.
24
Concordamos com a visão de Bunseki Fu-Kiau - exposta no livro Cosmologia africana dos
bantu-kongo: princípios de vida e vivência - de que o termo “africano” não se refere somente às
pessoas que nasceram em África, mas também se destina àqueles e àquelas que possuem
ascendência africana e trazem em seu corpo um fenótipo negro. (SANTANA, 2019).
60
Desta maneira, compreende-se que a forma como uma pessoa negra constrói
sua visão de mundo se desenvolve não só através das lembranças de valores,
tradições e hábitos dos grupos aos quais ela pertence, mas também a partir das
lacunas, ou seja, daquilo que foi lhe foi negado sobre sua história. É justamente este
apagamento que falsifica a consciência africana, que forja a vivência de pessoas
negras, resultando em uma percepção alterada sobre elas mesmas e sobre sua
comunidade. Se tratando de pessoas que afirmam sua negritude, não é possível
afirmar que elas estão imunes ao mecanismo da desumanização, pois, viver em
“ambientes decididamente hostis e antiafricanos” (NOBLES, 2009, p. 278) requer o
61
exercício contínuo de tirar as cascas criadas pelo racismo e (re)conhecer sua própria
humanidade, resgatando o que há de africano dentro de si. Em última instância, esta
busca objetiva a consciência de que o genocídio forja a experiência de vida do povo
negro, mas não a determina, pois o sentido de ser para os povos africanos é anterior
ao processo de colonização.
Nós, negras(os) psicólogas(os), estamos sendo cada vez mais
convocadas(os) para cuidar das feridas que o racismo deixou em nossa
comunidade. Entretanto, de que práticas de cuidado dispomos para cuidar de
pessoas negras?
Desde que comecei a pesquisar sobre relações étnico-raciais, tenho ouvido,
falado e escrito sobre o processo histórico do racismo e sobre seus efeitos. E,
embora eu acredite que estudar sobre estas feridas seja importante, tenho me
interessado pelas tecnologias de cura, pois é isso que tem nos mantido vivos. Deste
modo, os jeitos de cuidar se tratam de um conjunto de saberes e fazeres, que
ofereçam possibilidades de vida, em meio ao genocídio.
Visto que historicamente o povo negro tem sido violado do direito ao lazer,
moradia, educação, saúde, trabalho, bem como da possibilidade de sonhar, sentir,
amar, planejar… sobretudo, de viver, restando-lhe sobreviver, o cuidar se apresenta
como uma possibilidade para a restituição da humanidade negra. Se trata de um
jeito para deixarmos de nos percebermos como mercadoria e para nos entendermos
como pessoas. Neste sentido, o primeiro pressuposto desta perspectiva é de que ela
assume um jeito de cuidar que tem a vida como valor central.
25
(Poder de autocura e terapia: ensinamentos antigos da Africa)
63
eugenistas de que pessoas negras são selvagens. A respeito disso, Fu-Kiau (2019,
p. 56) explica que para os bantu-kongo “o ser humano não é um animal nem é
comparável a um; “mûntu”, o ser humano, possui o duo mwèla-ngîndu, alma-mente,
que o distingue do resto das coisas na natureza [ma-bia-nsemono].
Ele nos diz ainda que,
Nas palavras de Wade Nobles (2009, p. 282), ser humano “é ser uma
"pessoa" que é um sol vivo, possuindo um espírito (essência) cognoscente e
cognoscível por meio do qual se tem uma relação duradoura com o universo total,
perceptível e ponderável”. Nesta relação, o percurso da vida não se encerra com a
morte. “Para um Muntu africano, os mortos não estão mortos: eles são apenas seres
vivendo além da muralha esperando pelo seu provável retorno à comunidade, ao
mundo físico [ku nseke] (SANTOS, 2019, p. 20). Assim, conjecturamos que nossos
antepassados, mesmo depois de mortos, são como um sol vivo irradiante, pois
atuam como fonte de energia para a nossa sobrevivência, o que faz com que
permaneçam vivos em espírito.
26
Trecho retirado de sua carta ao 20° Fórum Social Mundial, lida durante a mesa Revolução e
Democracia Nas Cidades. Disponível em:
<https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/brasil/68298/nego-bispo-questiona-em-carta-ao-forum-s
ocial-mundial-valores-da-civilizacao>.
65
A minha história de vida talvez a/o reporte, em algum momento, à sua história,
ou talvez a sua história seja parecida com a minha, como a de tantas outras
histórias, de tantas outras pessoas… (...) a história de vida de cada negra, de
cada negro, a meu ver, é parte de uma história coletiva que ainda está por ser
verdadeiramente conhecida por muitos e escrita por seus sujeitos (PINTO,
2015, p. 16).
Imagino que muitos afro-brasileiros tenham negado sua africanidade por tanto
tempo (várias gerações), aceitando a falsa identidade de serem apenas
brasileiros, que não percebem mais o ataque contra seu valor humano e seu
bem-estar. Quase como se estivessem em um estado de choque extremo, em
que o corpo não sente mais a dor, muitos afro-brasileiros não sentem mais o
valor ou a importância de serem africanos. São simplesmente brasileiros.
Nesse estado de choque cultural, buscam refúgio em declarar e defender a
posição do Estado de que “Somos todos brasileiros”, mesmo quando todos os
brasileiros não são igualmente tratados ou respeitados (NOBLES, 2009, p.
290).
ara salvar-lhe a vida. O conceito de lei deles diz: “Não se envolva nos
assuntos do outro; é problema dele”” (FU-KIAU, 2019, p. 74).
“Somos um povo ferido”. Penso que estudar sobre suturas para as feridas de
meus pares, enquanto as minhas também estão abertas, é um ato de amor. “O amor é
o segredo de tudo!”27 Este trabalho objetiva fornecer um chão para a construção de
ferramentas que ajudem a curar as feridas causadas pelo racismo, neste sentido,
apostamos na comunidade como um espaço que possibilita que pessoas negras
possam amar, confiar e se comprometerem umas com as outras, resgatando aquilo que
Fu-Kiau (2019, p. 44) aponta como “as nossas positivas formas antigas de pensar e
cuidar dos nossos companheiros humanos”.
27
Trecho de Principia, música de Emicida, do álbum Amarelo. São Paulo: Laboratório Fantasma,
2019. 1 CD. Faixa 1.
70
Procurar as religiões de matriz africana com o objetivo de ser cuidada não foi
uma exclusividade minha. Grande parte das pessoas que tenho contato e que dizem
procurar o terreiro geralmente estão em busca de acolhimento, de uma palavra de
vida, da cura... do próprio cuidado. Em sua palestra no Encontro Kitembo, Makota
Valdina Pinto contou sobre ancestralidade e cuidado no terreiro. Ela diz:
As pistas dadas por Makota Valdina Pinto (2014) são valiosas por apontarem
uma forma de cuidar que se aprende e se pratica no terreiro, mas que diz respeito a
uma perspectiva negra. Ou seja, a ensinamentos de africanos que construíram
espaços para sobreviver à escravização e para preservar seus valores e modos de
viver. Neste sentido, o candomblé representa muito mais do que uma religião, pois,
também se configura como um espaço de resistência.
72
devem ser cumpridos na casa de santo) e uma madrinha ou padrinho (pessoas mais
velhas de santo que são escolhidas para conduzir o Nkisi na cerimônia pública onde
o recém-iniciado recebe a dijina, seu nome ancestral).
Assim, aqueles que são iniciados e possuem menos de 7 anos, ou que ainda
não realizaram esta obrigação, são os muzenza. Acima deles, estão as filhas ou
filhos mais velhos, os kota manganza. Tanto os muzenza quanto os kota manganza
recebem o Nkisi. Já as Makota (plural de Kota) e os Jintata (plural de Tata), são
filhos que foram suspensos/escolhidos por um Nkisi e posteriormente foram
confirmados, através da iniciação. A Kota e o Tata não incorporam o Nkisi, pois tem
a função de serem assessores da Mam’etu ria Nkisi (Mãe de Santo) ou do Tat’etu ria
Nkisi (Pai de Santo) nas atividades e rituais da casa, bem como cuidam dos Jinkisi
que estão em terra, através dos filhos que entram em transe.
Os atravessamentos de um mundo ocidentalizado forjam nossa relação com
o tempo, e como efeito disso, vivemos apressados, ansiosos com o futuro, em busca
de resultados instantâneos e de reconhecimentos superficiais. Nesta perspectiva, o
não saber, ser criança, mais novo, ndumbi pode ser visto de maneira inferiorizada.
Entretanto, o mais novo de hoje é o mais velho de amanhã, por isso, é fundamental
que uma pessoa tenha uma comunidade para guiá-la neste processo.
Ao entrar para o Kupapa Unsaba, ganhei uma mãe, um avô (em memória),
irmãos e sobrinhos: uma família de santo. A família é a primeira instituição que
pertencemos ao longo de nossas vidas. Para os povos africanos ela representa um
dos bens mais preciosos, não por acaso, a escravização e seus resquícios, que
permanecem até os dias atuais, culminou na quebra de laços afetivos, na
impossibilidade de usufruir do pertencimento familiar. Assim, o candomblé, se
apresenta como uma possibilidade de ter uma comunidade, onde se cuida e se é
cuidado; onde laços ancestrais são resgatados.
74
Olhos d’água
(...) E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os olhos
de minha mãe, naquele momento resolvi deixar tudo e, no dia seguinte, voltar à cidade em
que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para nunca
mais esquecer a cor de seus olhos.
Assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um ritual, em
que a oferenda aos Orixás deveria ser a descoberta da cor dos olhos de minha mãe.
E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar
extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?
Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas, que eu me
perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então
compreendi. Minha mãe trazia, serenamente, em si, águas correntezas. Por isso, prantos e
prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas
de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida
apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.
Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas dela se
misturarem às minhas.
Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de
minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma se tornam o espelho para os olhos
da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas
estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente no meu rosto, me contemplando
intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão
baixinho, como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como se estivesse buscando e
encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando,
sussurrando, minha filha falou:
- Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?
Esta amorosidade ancestral, citada por Abrahão Santos, não tem a ver com a
perspectiva de amor romântico, pautada por agendas ocidentais, mas se relaciona
com o sentido político do amor. Um provérbio nos ensina que “Rio calmo e silencioso
mata a sede, mas também afoga um homem”. Ao me remeter à sabedoria da água
para resgatar jeitos de kinsa, o cuidar se reflete em uma postura onde a humanidade
é inegociável. A natureza está sempre em favor da vida, e se preciso for, a água se
infiltra em lugares nunca antes imaginados fazendo ruir estruturas que atualizam o
genocídio.
Ndandalunda é o nome da energia que orienta a minha cabeça [mutue],
possibilitando a fluidez, a fertilidade e a versatilidade do meu jeito de viver. Fui
presentada por este Nkisi em dobro, pois em dezembro de 2020 fui suspensa por
Ndandalunda da kota manganza Lunda Muane, dijina de Valéria Meirelles, iniciada
em 2006 por Mam’etu Mabeji. Além de ser filha também fui escolhida para ser mãe;
o Nkisi cuida de mim e eu cuido dele, o que reverbera no cuidado de toda a nossa
comunidade.
A suspensão foi um divisor de águas, pelo momento em si e pelos efeitos que
isso vem tendo em minha vida. Se trata de uma cerimônia repleta de afetos e de
significados que as palavras não conseguem captar. Desejo que aquelas e aqueles
que me lêem já tenham tido ou ainda possam ter a oportunidade de vivenciá-la.
Neste mesmo dia, meu irmão de santo Lucas Reis foi suspenso pelo Nkisi
Bamburucema da kota manganza Ya Kiomene, dijina de Jupira Conceição. Tia
Kiomene, como carinhosamente é chamada por nossa família, foi iniciada por meu
avô de santo, Tat’etu Lessenge, em 1969, em seu último barco.
Uma percepção, que vem se assentando após a suspensão, foi me dar conta
do quanto o matrigestar está presente em minhas escolhas, em minha escrita, em
meu trabalho, em meu caminho de dedicação ao sagrado… ao meu jeito de cuidar!
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O que eu acho que é uma kota? Eu acho que é exatamente o termo: a mais
velha. Porque, o que a gente espera de um mais velho? A gente espera que
ele faça tudo correto, que ele dê lições na gente, que ele realmente nos
direcione à coisa correta (...) mas também tem algo extremamente
importante: que nós somos o ouvido do nkisi, eles falam diretamente com a
gente (...) a gente tá aí para zelar por eles, dançar com eles, cuidar das
coisas deles, sendo roupa, assentamento… Tudo referente ao nkisi. Isso
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sempre com muita agilidade, porém cautela, porque você tem que ter a
percepção de tudo. O nkisi é um vento e quando ele se materializa na
pessoa, a gente tem que tomar conta disso tudo.
Um axioma malinês nos diz que “Tudo o que somos e tudo o que temos,
devemos somente uma vez ao nosso pai, mas duas vezes a nossa mãe”. E, ao
entender que a maternidade “descreve a natureza das responsabilidades
comunitárias envolvidas na criação dos filhos e no cuidado com os outros” (DOVE,
2020, p.19), reconheço que devo à minha mãe [mam’etu] ancestral Ndandalunda e a
todas as mulheres que me acolheram em seus braços. Seus olhos, “Rios calmos,
mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície”
(EVARISTO, 2016, p.18), são o meu primeiro espelho; me ensinaram e ensinam,
cada dia um pouco mais, sobre jeitos de cuidar.
Esta pesquisa possibilitou o meu encontro e reencontro com histórias de
diferentes negras mulheres. Nessa interação, enquanto íamos nos curando (PINTO,
2018), rios caudalosos correram sobre os nossos rostos. E, acompanhada pelo
receio de não sustentar a neutralidade, como a professora Luiza Oliveira (2020) nos
lembra, “Somos filhos de Descartes”, temia que nossas lágrimas se misturassem,
como no conto de Conceição Evaristo. Quais os limites do cuidar quando as feridas
do outro se parecem com as nossas? Como bell hoks escreve, “somos um povo
ferido”, e pensar a cura a partir de nossos próprios termos, o cuidar em meio ao
genocídio, é o desafio que está na ordem do dia.
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CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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tem sangue de preto na veia deve ter na mão”: o que a Psicologia tem a ver
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- Centro Universitário Celso Lisboa, Rio de Janeiro. 2017. 40f.
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<https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/brasil/68298/nego-bispo-questiona-em
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