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Universidade de Brasília

Instituto de Psicologia
Departamento de Psicologia Clínica
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura

ATENÇÃO ÀS PRIMEIRAS CRISES DO TIPO PSICÓTICAS: UMA EXPERIÊNCIA


EM UM CAPS III DE CURITIBA

Mariana Cardoso Puchivailo

Brasília
2018
ii

Universidade de Brasília
Instituto de Psicologia
Departamento de Psicologia Clínica
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura

ATENÇÃO ÀS PRIMEIRAS CRISES DO TIPO PSICÓTICAS: UMA EXPERIÊNCIA


EM UM CAPS III DE CURITIBA

Mariana Cardoso Puchivailo

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Psicologia Clínica e Cultura no Instituto de
Psicologia como parte dos requisitos exigidos
para obtenção do grau de Doutora em Psicologia
Clínica.

Orientador Prof. Dr. Ileno Izídio da Costa

Co-orientador Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda

Brasília
2018
iii

ATENÇÃO ÀS PRIMEIRAS CRISES DO TIPO PSICÓTICAS: UMA EXPERIÊNCIA


EM UM CAPS III DE CURITIBA

Banca Examinadora

____________________________________________________________________
Prof. Dr. Ileno Izídio da Costa (Presidente – PsiCC/PCL/IP/UnB)

____________________________________________________________________
Prof. Dr. Nilton Júlio de Faria (Membro Titular – PUC Campinas)

____________________________________________________________________
Profª. Drª. Tânia Inessa Martins de Resende (Membro Titular – UniCEUB)

____________________________________________________________________
Profª. Drª. Edeilce Aparecida Silva Buzar (Membro Titular – FE/UnB)

____________________________________________________________________
Profª. Drª. Maria Inês Gandolfo Conceição (Membro Suplente– PsiCC/PCL/IP/UnB)
iv

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Ileno, pelo apoio e parceria em busca de um sonho em comum, o de buscar
uma atenção às pessoas sem crise do tipo psicótica e seus familiares mais qualificada e
respeitosa. Muito obrigada.

Ao meu co-orientador Adriano, por todo carinho, calma, dedicação e generosidade. Obrigada
pelas provocações, indagações, problematizações, por me fazer pensar e melhorar sempre. Esse
projeto também começou com nosso grupo de estudo em saúde mental, com o Labfeno, com o
compartilhamento desse interesse por um pensar fenomenológico dentro da Saúde Mental.

Aos professores membros da minha banca, Prof. Dr. Nilton Júlio de Faria, Profª. Drª. Tânia
Inessa Martins de Resende, Profª. Drª. Edeilce Aparecida Silva Buzar e Profª. Drª. Maria Inês
Gandolfo, pelo acolhimento e contribuições para meu desenvolvimento profissional.

À equipe do CAPS pela acolhida e disponibilidade para contribuir com meu estudo. Especial
agradecimento aos psicólogos que acompanharam a pesquisa desde o começo. Obrigada pelo
esforço, por acreditarem no projeto e dedicarem seu precioso tempo a esta pesquisa.

Às famílias e pessoas em primeiras crises que participaram da pesquisa. Obrigada pela


confiança, por abrirem suas vidas em um momento tão difícil. Agradeço por me permitirem
compartilhar suas histórias, suas lutas e conquistas. Tenho profunda admiração e carinho por
todos vocês e desejo a vocês o melhor que a vida pode oferecer.

Ao meu marido Anibal, pelo companheirismo e parceria em minha vida. Você sempre apoiou
meus sonhos sem pestanejar, obrigada.

Aos meus pais Wilson e Júlia pelo amor, dedicação e carinho incondicional. Foi me amando
que vocês me ensinaram a amar, sem amor o trabalho na saúde mental é impossível.

A meu irmão Ricardo, pela torcida, pelas risadas, pelas dicas ortográficas, acima de tudo pela
amizade e a certeza que ela nunca vai acabar.
v

Aos meus amigos e família pela compreensão pelas ausências nos últimos tempos. O processo
de construção de uma tese não é um sacrifício para apenas aquele que a escreve...

Às amigas, especialmente, Amanda, Cintia, Maristela, Carol, Lilian, Carina e Paula pelo apoio,
cumplicidade e ajuda em momentos felizes ou difíceis, de preocupação ou comemoração.
Amigas de todos os momentos.

À Cris e a Hay pelo apoio, amizade e ensinamentos; tenho profunda admiração pelo trabalho
de vocês, as duas são eternas inspirações para meu trabalho com primeiras crises.

Ao Labfeno pelas ricas contribuições, amizade e apoio. Tenho muito orgulho do ambiente que
conseguimos construir, de parceria, em que é possível errar sem receio, pensar e crescer juntos.

Aos pequizeiros, alunos e colegas, que compartilham comigo essa construção de uma atenção
às primeiras crises em Curitiba. Obrigada pela dedicação.

À Nicole pelas conversas a caminho do CAPS, pelo apoio na pesquisa, pela escuta atenciosa
nos momentos difíceis, e pelas trocas de ideias. A primeira e mais dedicada pequizeira.

Às amigas professoras da FAE, pelo acolhimento de sempre nos desafios da vida acadêmica,
pelo apoio e torcida. Obrigada por possibilitarem um ambiente e uma equipe tão agradável de
se trabalhar.

A todos que me marcaram nesse caminhar dentro da saúde mental, desde professores,
profissionais, amigos, colegas e grupos inspiradores, mas acima de todos, a meus “pacientes”,
que me ensinam todos os dias sobre o que é viver.
vi

SUMÁRIO

Lista de Tabelas………………………………………………………………..……………….i
Lista de Abreviações..………………………………………………………….……………...ii
Resumo………………………………………………………………………….……………12
Abstract………………………………………………………………………………………13
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................14
1. ATENÇÃO ÀS PRIMEIRAS CRISES DO TIPO PSICÓTICAS........................................22
1.1 Atenção à crise no Brasil....................................................................................................27
1.2 Atenção às primeiras crises psicóticas...............................................................................30
1.2.1 GIPSI – Grupo de Intervenção Precoce às Primeiras Crises do Tipo Psicóticas............35
1.3 Problematizações a respeito da atenção às primeiras crises psicóticas..............................39
1.4 Delimitação do objeto da pesquisa: Atenção às primeiras crises do tipo psicóticas...........41
2. DESCRIÇÃO DA EXPERIÊNCIA EM CAMPO: DESENVOLVENDO UMA PROPOSTA
DE ATENÇÃO ÀS PRIMEIRAS CRISES DO TIPO PSICÓTICAS EM UM CAPS III DE
CURITIBA...............................................................................................................................44
2.1 De onde partimos: fenomenologia como epistemologia....................................................44
2.1.1 Contribuições da fenomenologia para a atenção à saúde mental....................................52
2.2 Metodologia da Pesquisa....................................................................................................58
2.3 Descrição da proposta de atenção às primeiras crises do tipo psicóticas..............................62
2.3.1. Os participantes da pesquisa em primeiras crises do tipo psicóticas..............................67
2.3.2. Que tipo e atenção às primeiras crises foi realizada nesses casos?..................................77
2.3.2.1. Acolhimento e compreensão do sujeito, da família e da crise.......................................77
2.3.2.2. Encontro familiar.........................................................................................................79
2.3.2.3. Encontros individuais..................................................................................................86
2.3.2.4. Outros acompanhamentos............................................................................................88
2.3.2.5. Conversas com a equipe..............................................................................................91
2.3.3. A experiência de participação na pesquisa dos familiares e do sujeito em crise ..............92
2.3.3.1 Impactos nas relações familiares..................................................................................92
2.3.3.2 Impactos na pessoa em primeira crise do tipo psicótica.................................................95
2.3.3.3 Mudanças na compreensão sobre a crise......................................................................98
2.3.3.4 Questionamentos a respeito da proposta de atenção e do CAPS..................................100
2.3.4. Como estão os casos atualmente...................................................................................103
3. PROBLEMATIZAÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE CAMPO.........................105
vii

3.1 Existe atenção às primeiras crises no CAPS? ..................................................................105


3.1.1 Qual a porta de entrada das primeiras crises?................................................................108
3.1.2 Manejo de situações de crise no CAPS..........................................................................109
3.1.3 Quem trabalhava no CAPS tinha experiência ou interesse no campo da saúde mental?
Isso interfere no manejo das primeiras crises?........................................................................111
3.2 Demonstração de interesse pelos encontros familiares.....................................................112
3.3 Há muita demanda de trabalho para os profissionais........................................................114
3.3.1 Quais casos “ganham mais atenção”?............................................................................115
3.4 Dificuldade em trazer a família para a participação nos encontros familiares...................116
3.5 Reflexões sobre a cultura da centralidade no indivíduo, tutelagem e o modelo
biomédico...............................................................................................................................118
3.6 Experiência de crise considerada apenas como sintoma: o que perdemos com isso?......122
3.7 Os profissionais discorrem sobre a pesquisa ...................................................................123
3.8 É possível uma atenção às primeiras crises no CAPS III?...............................................128
4. POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES PARA A ATENÇÃO ÀS PRIMEIRAS CRISES DO TIPO
PSICÓTICAS.........................................................................................................................134
4.1 Foco a partir do sujeito e não na doença..........................................................................135
4.2 Colocar os preconceitos e pressupostos anteriores em suspensão....................................136
4.3 Reflexão crítica.................................................................................................................137
4.4 Postura compreensiva.......................................................................................................140
4.5 Acompanhar e não tutelar.................................................................................................141
4.6 A crise não é só do sujeito................................................................................................141
4.7 Falar de crise, é falar de vida............................................................................................145
4.8 O sintoma tem sentidos....................................................................................................147
4.9 Não filiação a nenhuma abordagem psicológica ou ideológica.......................................148
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................152
Referências.............................................................................................................................161
Anexos....................................................................................................................................170
viii

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Componentes centrais da intervenção precoce.........................................................30


ix

LISTA DE SIGLAS

ASAS - Avaliação e Acompanhamento de Adolescentes e Jovens Adultos


CAEP – Centro de Atendimento Estudos Psicológicos da UnB
CAPS – Centro de Atenção Psicossocial
FEAES - Fundação Estatal de Atenção Especializada em Saúde de Curitiba
GIPSI – Grupo de Intervenção Precoce nas Primeiras Crises do Tipo Psicóticas
PTS – Projeto Terapêutico Singular
RAPS - Rede de Atenção Psicossocial
RUE - Rede de Urgência e Emergência
SAMU - Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
SUS – Sistema Único de Saúde
TR – Terapeuta de Referência
UPA – Unidade de Pronto Atendimento
UBS – Unidade Básica de Saúde
x

LISTA DE ANEXOS

ANEXO 1 – Parecer consubstanciado do CEP-FS/UnB ........................................................170


ANEXO 2 – Parecer consubstanciado do CEP-SMS ..............................................................178
ANEXO 3 - Termo de Consentimento Livre Esclarecido da pessoa em primeira crise do tipo
psicótica..................................................................................................................................181
ANEXO 4 - Termo de Consentimento Livre Esclarecido do profissional ............................183
ANEXO 5 - Termo de Consentimento Livre Esclarecido dos familiares ...............................185
ANEXO 6 – Transcrição das Entrevistas ...............................................................................187
12

RESUMO

A atenção ao momento de crise é um dos temas mais polêmicos, difíceis e desafiadores do processo
de Desinstitucionalização, por isso deve ser constante e cuidadosamente abordada, discutida e
refletida. O tema das primeiras crises ainda é pouco abordado - com poucas pesquisas na área ou
grupos de intervenção especializados nesse tipo de atendimento. Porém, as primeiras crises têm
especificidades que devem ser levadas em conta, e quando há uma preocupação em adequar a
atenção frente a estas diferenças temos melhores resultados. O recorte desta pesquisa está em um
tipo de primeira crise, as do tipo psicóticas, que são caracterizadas como os primeiros momentos
de crises intensas, que muitas vezes são diagnosticadas como psicoses pela forma de suas
expressões, mas não são denominadas de psicoses a priori nesta pesquisa, pois entendemos serem
antes tentativas de organização de vivências que dizem da relação entre sujeito e mundo, e como
tal, parte da vida. Nossa pesquisa tem como objetivo problematizar a atenção às primeiras crises
do tipo psicóticas, a partir de uma experiência em um CAPS III de Curitiba. Para isso realizamos
uma pesquisa de campo de abordagem qualitativa, que utilizou como ferramenta de coleta de dados
o diário de campo e entrevistas realizadas com o sujeito em crise, seus familiares e os profissionais
envolvidos na pesquisa. O processamento e análise desses dados foi feita através do método
empírico-fenomenológico de Amedeo Giorgi A fenomenologia é utilizada enquanto recurso
epistêmico que fundamentou a construção da proposta de atenção às primeiras crises e permeou
toda a concepção e realização desta pesquisa. Foram acompanhados cinco casos, que serão
utilizados como suporte às reflexões sobre a atenção às primeiras crises realizadas. A partir da
análise dessa experiência levantamos algumas problematizações e reflexões a respeito da saúde
mental e da atenção às primeiras crises buscando trazer possíveis contribuições para este campo.

Palavras-chave: Primeiras crises, Saúde Mental, CAPS, Fenomenologia.


13

ABSTRACT

The care of the moment of crisis is one of the most controversial, difficult and challenging issues
of the Deinstitutionalization process, so it must be constantly and carefully addressed, discussed
and reflected. The theme of the first crises is still little addressed - with few research in the area or
intervention groups specialized in this type of care. However, the first crises have specificities that
must be taken into account, and when there is a concern to adjust attention to these differences we
have better results. The delimitation of this research is a type of first crisis, psychotic type, which
are characterized as the first moments of intense crises, which are often diagnosed as psychoses
by the form of their expressions, but are not considered psychoses in this research, since we
understand that they are rather attempts to organize experiences of the relation between subject
and world, and as such, part of life. Our research aims to problematize attention to the first crises
of the psychotic type, from an experience in a CAPS III of Curitiba. In order to do this, we
conducted a field research with a qualitative approach, which used as a data collection tool the
field diary and interviews with the subject in crisis, their families and the professionals involved
in the research. The processing and analysis of these data was done through the empirical-
phenomenological method of Amedeo Giorgi. Phenomenology is used as an epistemic resource
that founded the construction of the proposal of attention to the first crises and permeated the whole
conception and accomplishment of this research. Five cases were followed, which will be used to
support the reflections on the attention to the first crises. From the analysis of this experience we
raise some problematizations and reflections regarding mental health and attention to the first
crises in order to bring possible contributions to this field.

Key words: First crises, Mental Health, CAPS, Phenomenology.


14

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa começou a ser gestada a partir do interesse pelo campo da saúde mental.
Penso que esta trajetória tenha começado em meu estágio de último ano do curso de graduação em
Musicoterapia, em 2008. Este estágio foi realizado em um hospital psiquiátrico de Curitiba. Nesse
local eu era literalmente trancada junto com as pessoas lá internadas em um pátio com cerca de 70
homens, a ala masculina. Inicialmente senti medo, que aos poucos foi se transformando em um
sentimento de desafio e empolgação. Foi um mergulho no mundo das crises, mas especialmente
um mergulho no mundo das pessoas. Conheci lá pessoas maravilhosas que tenho muito carinho
até hoje, mesmo não sabendo qual foi o destino de muitas delas.
Iniciei um trabalho com os “asilares” (pessoas que viviam no hospital psiquiátrico há
décadas). Um trabalho que exigia criatividade, paciência, atenção ao que cada olhar ou gesto
poderiam estar indicando. “Ele quer minha aproximação? Ou será que me aproximei demais? Esta
música que eu toco faz sentido para ele?” Isso porque a maioria desses senhores não falava mais,
e tinham pouquíssimo contato humano, apesar de estarem cercados por 70 homens, além dos
profissionais, todos os dias. A contradição da convivência humana, podemos estar cercados de
pessoas, mas não ter contato com nenhuma, era o caso deles. Minha aproximação teve que ser
esculpida à maneira e às necessidades de cada um, e aos poucos fui ganhando sua confiança e um
espaço em suas vidas.
Eu me apaixonei por cada um deles. Muitos dos profissionais que trabalhavam lá não
encaravam isso de uma forma positiva. Senti muita raiva pelos maus-tratos e pelas condições “de
vida” que eram ofertadas, mesmo que parecesse “normal” a quase todos. Eles viviam deitados na
grama, ou andando pelo pátio, muitas vezes descalços e com pouca roupa (mesmo no inverno de
Curitiba) dentes malcuidados, doenças de pele, corpo malcuidado. Chorei de emoção com eles,
mesmo que fosse malvisto chorar na frente “dos pacientes”. Compus músicas pela primeira vez na
vida. Músicas feitas para eles ou sobre eles. Músicas que me ajudavam a lidar com a dor e alegria
de estar ao lado deles. Foi um estágio que amei e odiei, pela instituição. Jurei nunca mais trabalhar
em um hospital psiquiátrico. Ao final do estágio um desses senhores faleceu, por maus-tratos. No
dia que recebi a notícia, escrevi uma música. Talvez nesse momento é que decidi que pegaria meu
amor, minha dor, e criaria, construiria, escreveria. A partir de então todas minhas produções
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acadêmicas e minhas práticas profissionais estão no contexto da saúde mental; são dedicadas a
eles.
Quando conheci o grupo GIPSI, Grupo de Intervenção Precoce nas Primeiras Crises do
Tipo Psicóticas, da Universidade de Brasília, vi ali a possibilidade de uma atenção à saúde mental
diferenciada, de qualidade. Durante o mestrado (por 2 meses) e o doutorado (por 5 meses)
acompanhei o grupo em Brasília, conhecendo-o, aprendendo sobre atenção às primeiras crises.
Esse contato possibilitou uma abertura no olhar para os potenciais de atendimento à saúde mental;
influenciou diretamente a pesquisa aqui apresentada. A partir daí entendi que seria importante
ampliar essa possibilidade de atendimento das primeiras crises para além de Brasília.
Segundo Jardim e Dimenstein (2007), a atenção ao momento de crise é um dos temas mais
polêmicos, difíceis e desafiadores do processo de Desinstitucionalização, por isso deve ser
constante e cuidadosamente abordada, discutida e refletida. Para as autoras, os serviços de urgência
são os observatórios do sistema de saúde, já que ajudam a compreender como se atende a crise e a
analisar os processos de Reforma Psiquiátrica. Caso se necessite, nas crises, de internações
prolongadas em hospitais psiquiátricos ou que se tenha a contensão física ou química, como
estratégia principal dessa atenção, estes são sinais de que a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial)
não está dando conta da atenção integral à Saúde Mental.
Para as autoras essa rigidez dos procedimentos de atendimento à crise não apenas dificulta,
bem como determina a emergência das crises. O movimento de ciranda, de crise-supressão-crise
(porta giratória), que vemos muitas vezes na rede de saúde mental, é encadeado pelas formas de
cuidado que estão sendo oferecidos aos indivíduos em sofrimento, e principalmente a uma
dificuldade na atenção à crise. Costa (2013) defende a necessidade de se caminhar em direção a
modelos operativos de atenção à crise mais complexos e mais aperfeiçoados.
A pesquisa de Kondo, Vilella, Borba, Paes e Maftum (2011) realizada em um centro
Municipal de Urgências Médicas de Curitiba demonstrou, através do relato de enfermeiros, a
dificuldade e despreparo desses profissionais na abordagem ao paciente. No contato com os
serviços e com as pesquisas sobre atenção à crise, podemos verificar que a dificuldade e o
despreparo não pertencem a uma só classe de profissionais, mas a todas, nos alertando para a
necessidade de educação permanente sobre novos serviços e adaptações dos existentes.
O tema central desta pesquisa é a atenção às primeiras crises do tipo psicóticas. O que
acontece com as pessoas que entram em crise pela primeira vez, para onde elas vão? Como elas
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são atendidas? Após a primeira crise a pessoa sempre terá crises, utilizará medicamentos por toda
a vida? Isso depende do tipo de crise que o sujeito passa? As crises psicóticas são mais graves?
Tem piores prognósticos?
O tema das primeiras crises ainda é pouco abordado. Temos poucas pesquisas na área,
poucos grupos de intervenção e de pesquisa especializados nesse tipo de atendimento ou grupos
de pesquisas focados nessa temática. Mas será que precisamos abordar essa temática? É importante
diferenciar a atenção às primeiras crises da atenção prestada a sujeito com o histórico de muitas
crises ao longo de sua vida? Ao longo desta tese mostraremos que sim, as primeiras crises têm
especificidades que devem ser levadas em conta, e quando há uma preocupação em adequar a
atenção frente a estas diferenças temos melhores resultados.
Escolhemos então nesta pesquisa nos voltarmos ao atendimento à crise, com o recorte na
atenção às primeiras crises do tipo psicóticas. Estas são caracterizadas como os primeiros
momentos de crises intensas que muitas vezes são diagnosticadas como psicoses pela forma de
suas expressões. Costa (2017) define as primeiras crises do tipo psicóticas como:

[...] substratos fenomênicos da manifestação da experiência chamada psicose,


porém pensando-as como um dos paradigmas da constituição humana [...] primeiras
manifestações de sofrimento psíquico intenso [que] não serão denominadas de
psicoses a priori, posto que as manifestações prodrômicas de tais
crises/experiências são antes uma tentativa de organização de sofrimentos sentidos,
experimentados, vividos, intensificados no indivíduo e nas suas relações, portanto
em sua condição existencial. (p.65)

A partir de Costa, pontuamos a importância de compreender o momento de crise como uma


situação que faz parte do próprio viver humano. Todos temos crises, todos teremos crises ao longo
da vida. Porém algumas vezes precisamos de auxílio no enfrentamento desses momentos. Há
também casos em que as características da crise acionam, no sistema de atenção à saúde mental e
no entorno da pessoa em crise, uma maior preocupação. Este é o caso das crises do tipo psicóticas
que geralmente recebem diagnósticos e prognósticos bastante negativos que impactam a vida
social do sujeito de forma abrupta através de estigmatizações. O que demonstra a importância de
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um acompanhamento precoce nesses casos, já que sua vulnerabilidade social se apresenta de forma
mais preocupante.
Nossa pesquisa tem como objetivo problematizar a atenção às primeiras crises do tipo
psicóticas, a partir de uma experiência em um CAPS III de Curitiba. Para isso nossos objetivos
específicos são:
- Descrever, a partir dos documentos oficiais disponíveis, as atuais formas de atenção à
crise no Brasil e a atenção à crise em Curitiba.
- Delimitar o que são primeiras crises do tipo psicóticas em suas especificidades e descrever
grupos que pesquisam e oferecem atendimento a esse público no Brasil.
- Descrever a construção da proposta de atenção às primeiras crises do tipo psicóticas
realizada em um CAPS III de Curitiba.
- Problematizar questões referentes à saúde mental e atenção às primeiras crises a partir da
experiência de campo realizada.
- Apresentar contribuições para a atenção às primeiras crises do tipo psicóticas.
Esta pesquisa está vinculada ao Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade da UFPR,
ao Grupo de Intervenção Precoce nas primeiras crises do tipo psicóticas (GIPSI) da UnB, ao
Grupo de Pesquisa - Estudos Fenomenológicos em Primeiras Crises do Tipo Psicóticos e ao Grupo
de extensão e acolhimento de primeiras crises do tipo psicóticas (PEQUI), os dois últimos da FAE
Centro Universitário, ambos coordenados por mim.
Esta tese é dividida em quatro capítulos. O primeiro propõe descrever, a partir dos
documentos oficiais disponíveis, as atuais formas de atenção à crise no Brasil e a especificidade
da atenção à crise em Curitiba. Caracterizamos as primeiras crises do tipo psicóticas e a
especificidade de seu atendimento. Apresentamos alguns principais grupos de pesquisa e de
atenção às primeiras crises no Brasil.
O segundo capítulo realiza uma descrição da forma como a proposta de atenção às
primeiras crises do tipo psicóticas foi construída em um CAPS III de Curitiba. Incia com a
apresentação da fenomenologia enquanto recurso epistêmico que fundamentou a construção da
proposta de atenção às primeiras crises e permeou toda a concepção e realização desta pesquisa.
Partimos da concepção de Husserl da fenomenologia. Trazemos como exemplo algumas
repercussões do uso da fenomenologia no campo da saúde mental e da psicopatologia através de
Jaspers, Laing e Basaglia.
18

Neste capítulo também é descrita a metodologia desta pesquisa que consiste num estudo
qualitativo realizado a partir de uma experiência de campo. Os instrumentos de coleta de dados
foram: observação, anotações em um diário de campo, entrevistas com profissionais, familiares e
pessoas em situação de crise do tipo psicótica. (Minayo, 1993). O registro das observações foi
realizado em um diário de campo e as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas. O
processamento e análise desses dados foi feita através do método empírico-fenomenológico de
Amedeo Giorgi (2000).
Apresentamos também os participantes da pesquisa em uma breve descrição dos cinco
casos acompanhados para que, ao longo das descrições e reflexões realizadas a respeito da atenção
às primeiras crises o leitor possa se situar contextualmente. Descrevemos o tipo de atenção
ofertado nesses casos: acolhimento e compreensão do sujeito, da família e da crise; encontros
familiares; encontros individuais; outros acompanhamentos (grupos terapêuticos, trabalho, estudo,
entre outros); conversas com a equipe. Finalizamos o capítulo com relatos dos sujeitos em crise e
de suas famílias a respeito da experiência de participação no processo de atenção às primeiras
crises.
O terceiro capítulo desenvolve algumas problematizações e reflexões a respeito da saúde
mental e da atenção às primeiras crises a partir da análise da experiência de campo. Iniciamos
comentando sobre o tipo de atenção à crise e às primeiras crises que observamos no CAPS.
Percebemos que não existia uma especificidade na atenção às primeiras crises, apesar delas
estarem presentes no CAPS. Também notamos uma cultura de individualização e tutela da atenção,
cujo enfoque estava no cuidado centralizado apenas no indivíduo, e a terapêutica principal era a
medicação. A experiência de crise era reduzida a expressões sintomáticas de uma doença, que era
só do indivíduo, e portanto, era somente ele que deveria ser “tratado”. Lógica baseada em um
modelo biomédico, com pouca presença da família e da comunidade no tratamento.
Havia uma dificuldade tanto de chamar as famílias que não estavam acostumadas a
participarem dos processos terapêuticos, quanto dos próprios profissionais que sentiam que o
cuidado não deveria ser compartilhado, que era esperado deles a responsabilidade total sobre os
casos. Nessa tomada de toda a responsabilidade sobre os casos, muitas vezes se realizava um
cuidado tutelado, retirando a autonomia do sujeito sobre sua própria vida, o que resultava na
subutilização de recursos em potencial do sujeito, da sua família e sua comunidade, além de
sobrecarregar o profissional, que já se sentia assoberbado por demandas demais. Os profissionais
19

reclamavam muito em relação a uma sobrecarga de trabalho. Devido a isso nem todos os casos
ganhavam a atenção necessária, muitas vezes os casos de primeiras crises se encontravam nesse
grupo de casos que são menos acompanhados e discutidos. A experiência de crise considerada
apenas como sintoma, como consequência de comportamentos, de falas, dentre outras expressões
do sujeito, acabava não sendo compreendida em profundidade. Ao final do capítulo apontamos
alguns temas trazidos pelos profissionais a respeito da atenção às primeiras crises.
O quarto capítulo traz possíveis contribuições para a atenção às primeiras crises do tipo
psicóticas a partir da experiência no CAPS e da análise realizada na pesquisa. São pontos básicos
que não estão vinculados a nenhuma abordagem psicológica específica, nem mesmo a somente
uma área de atuação no campo da saúde mental. Estes pontos foram elencados para que pudessem
ser realizados por qualquer profissional que trabalhe no contexto da saúde mental. São
fundamentos que estavam presentes em nossa proposta de atenção como partes essenciais. Eles
estão intimamente articulados com a fundamentação da fenomenologia presente neste trabalho,
mas que ao serem trazidos para uma articulação com a prática dentro do contexto da saúde mental
se tornam acessíveis a qualquer profissional, mesmo que não tenham tido nenhum contato com a
fenomenologia. Os fundamentos elencados são: a crise não é só do sujeito; colocar o conhecimento
e pressupostos anteriores em suspensão; postura reflexiva e crítica; postura compreensiva; foco a
partir do sujeito e não da doença; acompanhar e não tutelar; falar de crise é falar de vida; o sintoma
tem sentidos; não filiação a nenhuma abordagem psicológica ou ideologia.
Primeiramente é importante que o foco esteja na compreensão da pessoa que se encontra a
nossa frente, em suas vivências e sentidos, em sua vida e suas relações, não permitir que nosso
foco esteja apenas na doença, na investigação de possíveis sintomas. Para isso é necessário que
coloquemos nossas teorias e experiências prévias em suspensão, temporariamente “entre
parênteses”, para que possamos encontrar com aquele sujeito e sua família de forma aberta, sem
pressupostos atravessando e atravessado nosso olhar e compreensão. Essa reflexão crítica sobre
nossos saberes e fazeres deve ser uma ação permanente, sempre nos perguntando o que nos leva a
propor uma ação, a fazer uma pergunta, a agir de tal forma a sentir o que sentimos pelo sujeito e
sua família. O que conduz nossas ações? Serão essas as melhores possibilidades para este sujeito
e sua família?
A postura nesses casos é compreensiva acima de tudo, e não explicativa. Não estamos lá
para explicar o porquê o sujeito está vivenciando aquela crise, mas para compreender aquela crise
20

junto com o sujeito contextualizada de forma ampla em sua vida, e não descolada desta. “O sintoma
tem sentido”, as expressões do sujeito em crise, que muito comumente intitulamos impulsivamente
e sem muita reflexão de sintomas, estão entrelaçadas a uma vida plena de sentidos. As expressões
do momento de crise dizem dessa vida, das relações do sujeito, de suas preocupações e desejos.
Essa busca pela compreensão dos sentidos da crise e da vida do sujeito deve ser sustentada pelo
profissional muitas vezes; é comum que a família entenda aquelas expressões apenas como
sintomas esvaziados de sentido. Ajudar também o sujeito a compreender sua vivência, muitas
vezes ele também se encontra perdido em suas ideias e sentimentos.
Essa postura propicia o cuidado e acompanhamento, em detrimento da tutelagem, não sou
eu que sou o detentor do conhecimento sobre a vida do sujeito e o que é o melhor para ele, este é
um processo construído em conjunto, através da escuta de muitas vozes. Não só do sujeito, nem
só da família, nem só do profissional. A crise não é só do sujeito, assim, a atenção proposta não
deve englobar apenas este, ou deixar a família em último plano, apenas como um acessório ao
tratamento. A crise diz de relações, então é preciso estar atento as pessoas mais próximas,
especialmente a família, para compreender a crise. É importante cuidar e auxiliar essa família a
compreender que também está implicada nesse momento de crise, e que talvez também precise
compreender suas formas de relações, suas atitudes um com o outro, e pensar nas melhores formas
de lidar com o momento de crise. Aqui entendemos que um cuidado compartilhado, pode ser mais
trabalhoso inicialmente, como aponta a fala de alguns profissionais, mas essencial para uma
atenção às primeiras crises, e um desafogamento das demandas do CAPS a longo prazo, quando o
sujeito tem mais de um lugar e uma pessoa a quem recorrer a demanda se torna mais escassa para
o serviço. A crise é da vida, deve ser cuidada na vida, no contexto do sujeito, em sua comunidade,
com o recurso de suas relações. Isso não quer dizer prescindir de qualquer auxilio profissional, já
vimos que a atenção precoce às primeiras crises é importante, mas que cada vez mais esse cuidado
possa ser dado pela própria comunidade e o CAPS ou qualquer outro serviço do SUS ou SUAS se
torne o local secundário desse cuidado.
É importante em prol da possibilidade de diálogo e troca com diferentes profissionais que
a atenção às primeiras crises não esteja filiada a uma só abordagem psicológica ou a qualquer
teoria de forma dogmática, irreflexiva, de forma a se entender que aquela teoria dará conta de todo
o fenômeno das primeiras crises. Nenhuma teoria consegue explicar a totalidade do que é viver,
21

do que é morrer, do que é amar, do que é sofrer. Certamente não dará conta de explicar a complexa
vivência das primeiras crises do tipo psicóticas.
Esperamos que ao longo desta tese o leitor possa conhecer um pouco mais sobre a atenção
às primeiras crises do tipo psicóticas e refletir sobre questões referentes a saúde mental como um
todo. Almejamos trazer contribuições a este campo de estudo, que a nosso ver precisa ser mais
divulgado e discutido.
22

1. ATENÇÃO ÀS PRIMEIRAS CRISES DO TIPO PSICÓTICAS

Quando falamos em crises, podemos nos reportar a múltiplas situações: crise econômica,
crise da meia idade, país em crise, família em crise. A palavra crise possui diversos significados e
é utilizada para nomear um espectro amplo de fenômenos; não há um consenso do que se chame
de crise. Abordamos neste trabalho crises em saúde mental, para isso delimitamos alguns pontos
sobre a crise para que possamos nos direcionar ao principal tema de interesse desta pesquisa, que
é a atenção às primeiras crises do tipo psicóticas.
A partir de Foucault (1961/1978) podemos conceber que certas representações do que seria
a crise foram sendo delimitadas ao longo da história. No século XIX surge a ligação entre crise e
a “doença mental”. Neste caso, a representação da crise toma um viés negativo, é considerado
apenas enquanto uma doença que prejudica a vida do indivíduo (Campos, 2001). A crise, a partir
do surgimento da psiquiatria, é considerada um momento de “agudização” da sintomatologia
psiquiátrica, indicando a “ruptura” de uma doença mental ou o agravo de uma doença já
cronificada. A crise é considerada sob esse viés como uma ruptura aguda na homeostase ou
integridade física do organismo. O objetivo da ação psiquiátrica é então, diante desta compreensão,
o de retomar a homeostase o mais rápido possível (Barreto, 2004).
Mas essa compreensão que inicia na psiquiatria durante o século XIX, tem suas raízes no
século XVIII. Foucault afirma que com a Medicina Moderna, a partir do final do século XVIII, há
uma substituição da lógica botânica1, observacional e classificatória das doenças, para um modelo
“gramatical” da análise dos signos. Neste há uma busca pelo sentido trazido pelo sinal (sintoma)
a partir de uma lógica pré-estabelecida pelo médico, o que requer um controle da observação
(através do ambiente do hospital, por exemplo). É o médico que possui o poder de desvendar os
signos, e sua atuação não mais é realizada em seu ambiente natural; o doente precisa ir até o
hospital para ser avaliado e tratado, e não se tem mais acesso direto ao ambiente do sujeito.
Laplantine (1986/1991) identifica diversos modelos etiológicos das doenças, presentes em
diferentes momentos históricos, no campo científico e fora dele. Inicialmente delimitam-se dois

1 Laplantine (1986/1991) refere-se ao modelo botânico de classificação de doenças como aquele que

cataloga as propriedades “essenciais” de cada doença, divididas em famílias, gênero e espécies.


23

modelos representacionais principais: um ontológico e um relacional (ou funcional). O modelo


ontológico está centrado na doença (seu objeto de estudo), geralmente com um enfoque no corpo
ou numa parte deste, e como exemplos, temos a medicina clássica e a medicina moderna.
Este modelo é fundamentado pelo padrão de construção da ciência natural. A ciência
natural empírica aos poucos se modificou ao longo do século XVIII, ganhando uma caracterização
mais experimental e se afastou cada vez mais de teorias abstratas, o que culminou na clínica médica
anátomo-patológica2 do século XIX, típica da Medicina Moderna. As autópsias e dissecação de
corpos se tornam instrumentos fundamentais da medicina, que encontra no corpo seu ponto de
garantia de cientificidade. Expressão dessa transformação, temos a substituição da pergunta do
médico: “‘O que é que você tem?’, por onde começava, no século XVIII, o diálogo entre o médico
e o doente, com sua gramática e seu estilo próprios, por esta outra em que reconhecemos o jogo
da clínica e o princípio de todo seu discurso: ‘onde lhe dói?’” (Foucault, 1963/1973, p. XVIII).
Essa modificação exprime a transformação do diálogo médico-paciente pautado na modificação
do olhar, que agora compartimentaliza e localiza no corpo (por meio de signos e sintomas),
desvelando as relações entre tecidos e órgãos, cuja consequência de formas patológicas ou não de
funcionamento são observáveis.

O espaço da experiência parece identificar-se com o domínio do olhar atento, da


vigilância empírica aberta apenas a evidência dos conteúdos visíveis. O olho torna-se
o depositário e a fonte da clareza; tem o poder de trazer à luz uma verdade que ele só
recebe à medida que lhe deu à luz abrindo-se, abre a verdade de uma primeira abertura:
flexão que marca, a partir do mundo da clareza clássica, a passagem do ‘Iluminismo’
para o século XIX (Foucault, 1963/1973, p.XI-XII).

O que se destaca desta fala de Foucault é o impacto do modelo de construção de


conhecimento das Ciências Naturais na forma do médico compreender e observar o fenômeno
estudado. A forma de construção de conhecimento e representação da doença impacta o fazer
prático. Há uma vigilância apenas para aspectos aceitos como evidência visível. Através dos

2O método anátomo-patológico consiste em reconhecer patologias através não somente através das alterações
morfológicas ou estruturais, mas também através das alterações funcionais. (Laplantine, 1986/1991)
24

estudos anátomo-patológicos, a construção da ideia do patológico foi desenvolvida na comparação


entre os órgãos de funcionamento “normal” e os órgãos de funcionamento “alterado”. Assim
também se deu com as psicopatologias, que utilizavam da mesma comparação mecânica,
construída em torno de agentes externos, lesões ou disfunções orgânicas. O cérebro, então, se torna
o local das disfunções orgânicas (Foucault, 1954/1968). Quanto mais se voltava ao corpo a ideia
de causalidade da doença, mais individualizados os estudos, as observações e as ações.
O segundo modelo descrito por Laplantine (1986/1991), o modelo relacional ou funcional,
é centrado na pessoa doente. Entende-se a doença não como uma “entidade estranha”, mas como
um desequilíbrio causado por um excesso ou uma falta. Um desequilíbrio do sujeito com ele
mesmo (psicológico) ou com o corpo (fisiológico). “Desta vez, a opção etiológica é tanto em um
caso quanto no outro, decididamente funcional e não mais lesional, monista e não mais dualista,
quantitativa e não mais qualitativa. A doença como alteridade é substituída pela doença como
alteração” (Laplantine, 1986/1991, p. 59); a concepção funcional ainda permanece tão
substancialista3 e naturalista quanto a concepção lesional, carregando a mesma lógica naturalista.
Este modelo persiste desde a medicina humoral de Hipócrates, desembocando na fisiopatologia do
século XVII e na psicanálise no século XIX. Neste modelo, passa-se a entender a doença não como
um agente patogênico que deve ser destruído ou extirpado, mas enquanto um processo de reação.
Há também nesse modelo um olhar não “geográfico” à etiologia, e sim “histórico”, voltado para a
compreensão da história do sujeito doente e a função da doença (Laplantine, 1986/1991).
Podemos notar que tanto o modelo ontológico quanto o funcional enfatizam um indivíduo,
considerando-o um objeto a ser estudado e explicado pelo terapeuta, médico ou pesquisador.
Podemos relacionar o modelo etiológico funcionalista com as concepções psicodinâmicas do final
do século XIX. Neste período, a concepção organicista materialista é complementada pela
concepção psicodinâmica mentalista (Laplantine, 1986/1991). A partir de Charcot, Breuer, Freud,
dentre outros, busca-se uma causa secundária aos eventos psicopatológicos, forjando-se, assim,
um conceito de “doença mental”. A centralidade do cuidado está no sujeito, a “doença está nele”.
Quando mencionamos a atenção à crise na saúde mental, elas estão atravessadas por essas
representações da “doença mental”, hegemônicas até hoje. O que justifica as ações de atenção à

3 Substancialista, pois nessa lógica o desequilíbrio é causado por uma falta ou excesso de alguma substância.
(Laplantine, 1986/1991)
25

crise majoritariamente voltadas às contenções físicas e químicas, explicitando a presença dessa


perspectiva sobre a crise enquanto uma agudização da “doença mental”. (Jardim e Dimenstein,
2007; Costa 2003, 2010, 2013; Kondo, et al, 2011; Dell’Acqua & Mezzina, 1991)
A atenção à crise é um tema polêmico na saúde mental. Uma dessas razões é porque a crise
é o momento de maior expressividade das possíveis “estranhezas da loucura”. Holanda (2014)
afirma que lidamos de diferentes formas com a diversidade humana, com “o diferente”, “o
divergente”, “o exótico”, “o estranho”, “o estrangeiro”, “o esquisito”.Porém, algumas
representações e formas de lidar, tem como consequência a estigmatização (Goffman, 1961/1996).
Enquanto seres humanos temos dificuldade em lidar com nossa própria diversidade e diferenças,
e o momento de crise, no contexto da saúde mental, não se livra das consequências disto, como o
autor pontua.
Gilberto Velho (1974/2003) traz uma importante discussão a respeito das relações sociais
que constituem o que é considerado desvio e divergência. O autor coloca que há um papel central
da estrutura social e cultural no desenvolvimento de um comportamento desviante. “A ideia de
desvio, de um modo ou de outro, implica a existência de um comportamento ‘médio’ ou ‘ideal’,
que expressaria uma harmonia com as exigências do funcionamento do sistema social” (p. 17). Ou
seja, a ideia de desvio necessita de uma ideia de ideal, e essas delimitações são construídas também
socialmente. O momento de crise seria então um fenômeno microssocial em que algumas
expressões e comportamentos do sujeito são validados como divergentes por outros de sua
comunidade, em razão de um contexto cultural ou microcultural (tal como a família ou relações
mais íntimas do sujeito). Velho coloca que o sujeito considerado pelo seu meio social como
“inadaptado” não enxerga o mundo “sem significado” (p. 21), ou seja, apesar de ser considerado
“à parte”, não o está totalmente. Apenas vê no mundo um significado diferente, faz uma leitura
divergente. “Ele não será sempre desviante. Existem áreas de comportamento em que agirá como
qualquer cidadão “normal”. Mas em outras áreas divergirá, com seu comportamento, dos valores
dominantes” (p. 21-22).
Assim, é importante de antemão pontuar o caráter histórico e cultural atrelados ao que
consideramos enquanto crise. Foucault (1973/1963) explicita que a representação do que
consideramos crise não é algo natural, universal, a-histórico. Porém, falar da historicidade dos
sentidos de loucura ou de crise não deve reduzir fenômenos tão complexos a uma causalidade
26

social. Velho (1974/2003) aponta a importância de uma não dicotomização das experiências do
“desvio”, para não cair na ruptura indivíduo versus social ou cultural.
Velho (1974/2003), assim como Canguilhem (1994/1966) e Foucault (1954/1968,
1973/1963), discorre sobre como o desvio, ou a loucura enquanto desvio, é atravessado pela
relação com o outro, como a loucura é representada através do julgamento do outro. Jardim e
Dimenstein (2007) relembram que os “definidores” das crises, aqueles que notam “a diferença”,
que acionam os serviços de urgência, são aqueles que rodeiam as pessoas em crise, seja sua família,
seus amigos, os vizinhos, ou quaisquer outros que sentem uma “estranheza” diante do
comportamento do outro e que consideram que aquela pessoa requer atenção imediata. Há um peso
cultural e moral no que consideramos como urgência ou emergência psiquiátrica (Costa, 2013).
Seguindo esta lógica, não é surpreendente que em diversos momentos da história, e até hoje, na
atenção à crise sejam observadas estigmatizações que expressam essas dificuldades de relação com
o diverso, o estranho, o divergente.
Costa (2010) aponta que a palavra crise, em diversos países e culturas, traz diferentes
compreensões, que focam não só nos riscos da crise, mas também a consideram como um momento
de oportunidade de transformação. Temos uma grande diversidade de experiências de crise e nem
todas são valoradas como ruins, ou como patológicas. Por exemplo, um nascimento é um momento
que faz alusão a alterações radicais, de temperatura, de luminosidade, de sensação de pressão para
que o bebê possa ser posto para fora do útero, entre outras experiências transformadoras, novas e
impactantes (Ferigato, Campos e Ballarin, 2007); implica ainda na crise de uma mulher, que pela
primeira vez é mãe, nos primeiros dias de cuidado do seu bebê. Há outros exemplos, como a
primeira grande desilusão amorosa. Buscamos ressaltar, de pronto, o caráter existencial da crise,
como parte integrante da vida (Costa, 2013)
Segundo Bertol, Ferreira e Rosa, a crise pode ser também um momento decisivo, de
transformação, no qual mudanças profundas podem acontecer. Talvez o que possamos trazer como
um ponto em comum quando falamos de crise é uma perda de sentido, uma “experiência de
rompimento de uma dinâmica de funcionamento regular” (Bertol, Ferreira & Rosa, 2018, p.31),
uma situação que foge do controle, em que muitas vezes não se compreende como a crise se deu,
se ela irá terminar, ou o que virá após. Mas quando falamos de crises dentro do contexto da saúde
mental, como mensurar o que é regular? Regulamos a partir dos parâmetros do sujeito, de quem
diz que o sujeito está em crise, das convenções sociais? Para compreender o contexto da atenção
27

à crise no Brasil e em Curitiba, elencamos os principais documentos oficiais que regulamentam


essa forma de atendimento.

1.1 Atenção à crise no Brasil

Em termos de legislações a respeito da atenção à crise é preciso apontar algumas principais.


Iremos apresentar três portarias do Ministério da Saúde, a portaria 2048/02 que regulamenta
tecnicamente as urgências e emergências, a portaria 1600/2011, que reformula a Política Nacional
de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção às Urgências no SUS e a portaria 3088/2011
que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Também utilizaremos a resolução 1451/95
do Conselho Federal de Medicina (CFM) regula estabelecimentos de Prontos Socorros Públicos e
Privados e define os conceitos de urgência e emergência. Também encontramos um manual e
quatro apostilas referentes ao tema: o Manual Instrutivo da Rede de Atenção às Urgências e
Emergências no Sistema Único de Saúde (SUS) de 2013; e quatro apostilas organizadas para o
curso de capacitação em crise e urgência em saúde mental para trabalhadores da Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) e da Rede de Urgência e Emergência (RUE) - realizado em parceria do
Ministério da Saúde, a Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UNASUS) e
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Os documentos oficiais articulam o conceito de crise com os de urgência e emergência. O
Conselho Federal de Medicina (CFM), através da Resolução 1451/95, relaciona a urgência a um
agravo à saúde em que pode haver risco à vida em que há necessidade de assistência médica
imediata, enquanto que na emergência o risco iminente de vida, ou sofrimento intenso está
presente, o que exige um atendimento imediato. (Brasil, 1995) Quando pensamos em uma urgência
ou emergência na saúde como um todo, essa classificação parece bastante adequada; porém, ao
nos reportarmos às urgências e emergências em saúde mental quais as implicações da consideração
desse momento enquanto um agravo à saúde em que há risco de vida ou sofrimento intenso?
A portaria 2048/02 do Ministério da Saúde regulamenta tecnicamente as urgências e
emergências. Neste documento é mencionada as urgências psiquiátricas e urgências em saúde
mental. As urgências em saúde mental são representadas por pacientes agitados ou violentos,
psicoses, depressões, risco de suicídio, abstinência alcoólica, abordagem do paciente terminal e de
sua família. Na pediatria, inclui-se crianças vitimizadas e alterações de nível de consciência. Cabe
28

ao profissional da saúde reconhecer a necessidade de acionar outros atores no atendimento às


urgências psiquiátricas, quando houver risco para o paciente e/ou para a equipe. Adotar medidas
terapêuticas no manejo das patologias apontadas, além de responsabilizar-se pelo encaminhamento
adequado do paciente, quando o quadro apresentado exigir recursos terapêuticos e/ou diagnósticos
inexistentes na unidade, mediante protocolos previamente pactuados e reconhecidos.
A portaria 1600/2011, que reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui
a Rede de Atenção às Urgências no SUS, define em seu Art. 4º, que a Rede de Atenção às
Urgências é constituída pela promoção, prevenção e vigilância à saúde; atenção básica em saúde;
serviço de atendimento móvel de urgência (SAMU 192) e suas centrais de regulação médica das
urgências; sala de estabilização; força nacional de saúde do SUS; unidades de pronto atendimento
(UPA 24h) e o conjunto de serviços de urgência 24 horas; hospitalar; e atenção domiciliar (Brasil,
2011).
Em relação à urgência e emergência em saúde mental, temos a Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) descrita na Portaria nº 3.088/2011, que aponta, no seu Art. 5º quais os
componentes da atenção de urgência e emergência: SAMU, sala de Estabilização, UPA 24 horas,
portas hospitalares de atenção à urgência/pronto socorro, unidades básicas de saúde, entre outros.
De acordo com o a Art. 8º, esses locais são responsáveis pelo acolhimento, classificação de risco
e cuidado. Estes pontos de atenção devem se articular com os Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) que irão realizar o acolhimento e o cuidado das pessoas em fase aguda do transtorno
mental, buscando coordenar todo o cuidado voltado ao caso (Brasil, 2011).
O Manual Instrutivo da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Sistema Único
de Saúde (SUS), não aprofunda aspectos voltados à atenção em saúde mental (Brasil, 2013) Em
2014 e 2015, foi ofertado um curso de capacitação em crise e urgência em saúde mental para
trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e Rede de Urgência e Emergência (RUE).
Esse curso foi realizado através de uma parceria entre o Ministério da Saúde (MS), Universidade
Aberta do Sistema Único de Saúde (UNASUS) e Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
visando qualificar o trabalho na atenção à saúde mental. Desse projeto foi construído um material
com quatro apostilas relacionadas ao tema. (Zeferino, 2015a, 2015b, 2015c, 2015d)
Apesar de termos regulamentações federais a respeito da atenção à crise, temos
especificidades de cada estado e município, vejamos as características da atenção à crise no Paraná,
com enfoque em Curitiba. No site oficial da Secretaria Municipal da Saúde
29

(http://www.saude.curitiba.pr.gov.br/), descreve-se que as Unidades de Pronto Atendimento


(UPAS) possuem serviços abertos de atendimento a urgência e emergência psiquiátrica, sendo
estes os locais para acolhimento de situações em “fase aguda”, que ela delimita como sendo:
alucinações, delírios, agressividade, agitação, intoxicação e tentativa de suicídio ou intercorrências
clínicas, como o delirium tremens. Caso o usuário não consiga se deslocar até a UPA, ele poderá
acionar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Nos protocolos, programas e
procedimentos operacionais padrão da SMS do departamento de urgências e emergências não há
referência à saúde mental. O site da SMS pontua que o CAPS não é uma unidade de emergências,
mas relembra que eles devem acolher as situações de crise dos usuários, sem necessidade prévia
de encaminhamento.
A Rede Municipal de Serviços de Urgência e Emergência (RUE) conta com os seguintes
equipamentos em Curitiba: nove Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) municipais, Serviço de
Atendimento Pré-Hospitalar Móvel (SAMU e SIATE), Helicóptero, Pronto-Socorros em hospitais
próprios e contratados, e a Central Municipal de Regulação de Leitos Hospitalares. Não há
materiais de instrução em relação a atenção à crise no contexto da saúde mental do SMS
disponíveis no site.
No Plano Municipal de Saúde da SMS consta que temos atualmente 12 CAPS na rede
municipal: dois CAPS – Álcool e Drogas (CAPS-AD) tipo II, um CAPS Transtornos Mentais
(CAPS-TM) tipo II, dois CAPS infantil (CAPSi) tipo II, um CAPSi tipo III, três CAPS-TM tipo
III, três CAPS-AD tipo III. Temos o total de 60 leitos em CAPS: quatro leitos infantis, 28 leitos
AD adulto, 28 leitos TM adulto. Em hospitais psiquiátricos temos 239 leitos em hospitais
psiquiátricos credenciados e 235 leitos em hospital dia.
Curitiba possui uma especificidade no gerenciamento da RAPS, a partir da Fundação
Estatal de Atenção Especializada em Saúde de Curitiba (FEAES), uma entidade jurídica de direito
privado, com autonomia gerencial, patrimonial, orçamentária e financeira, sujeita ao regime
jurídico próprio, criada e autorizada pela Lei Municipal 13.663, de 21 de dezembro de 2010, com
o intuito de executar e desenvolver ações e serviços de saúde ambulatorial especializada,
hospitalar, apoio diagnóstico e de ensino e pesquisa, todos no âmbito do SUS. A Lei 12.550 de
2011 do governo federal autorizou a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, que
entendeu necessária a criação de fundações estatais para, ao lado do estado ou município, executar
30

suas atividades (Brasil, 2011). É importante apontar essa especificidade pois a FEAES é
mencionada durante as entrevistas realizadas para a pesquisa.
O CAPS não é considerado um componente da RUE; na RAPS é considerado um ponto da
atenção psicossocial especializada, e não provê atenção de urgência e emergência. Apesar disso, o
CAPS é um serviço de portas abertas, portanto, também realiza a atenção a crise quando
necessário, seja em caráter de urgência ou não.

1.2 Atenção às primeiras crises psicóticas

Nos documentos oficiais federais, estaduais e municipais não há qualquer referência a


atenção às primeiras crises. Em termos de diretrizes oficiais não há o apontamento da necessidade
de um manejo específico às situações de primeiras crises. Mas será importante essa diferenciação?
Diversas pesquisas (McGorry, 2015, 2002; Costa 2003, 2010, 2013; Lower et al, 2014;
Tsiachristas, Thomas, Leal & Lenox, 2016; Seikkula, 2013) apontam para a importância de
considerar as especificidades da atenção às primeiras crises em intervenções precoces. Parece-nos
então relevante que haja uma discussão a respeito da especificidade desse manejo.
A IEPA (Early Intervention in Mental Health) é uma rede internacional de pesquisadores
interessados no estudo e tratamento precoce na saúde mental, especialmente às primeiras crises
psicóticas. Na última década do século XX, pesquisadores ao redor do mundo começaram a
demonstrar, através de pesquisas, que a intervenção precoce na psicose gera diversos benefícios a
longo prazo. Em 1996, foi realizada a primeira conferência a respeito do tema e a partir de então
foi formada esta rede chamada IEPA. Mais de 60 países estão representados nas conferências da
IEPA e 20 países cadastrados como membros do IEPA. É um consenso dentre as centenas de
pesquisas que são realizadas por esses grupos ao redor do mundo de que a intervenção precoce,
que leva em conta as especificidades das primeiras crises, resultam em melhores prognósticos.
McGorry (2015) aponta que apesar das décadas de pesquisas que demonstram que a
intervenção precoce melhora os prognósticos dos casos das primeiras crises, ao redor do mundo
apenas uma pequena minoria de pessoas com transtornos mentais tem acesso a tratamento, e
geralmente as que têm demoram para obterem auxilio. Segundo o autor, as consequências da
intervenção precoce para o sujeito ou mesmo a própria economia do país são significativas,
especialmente porque as primeiras crises psicóticas geralmente acometem jovens em sua fase mais
31

produtiva. O autor relata que no início de suas pesquisas sobre o tema, ele e seus colegas
perceberam que as necessidades dos sujeitos em primeiras crises eram diferentes das dos pacientes
já com um histórico de muitos episódios. Também perceberam que ao proporcionar o mesmo
tratamento para ambos os grupos, as mesmas terapias psicossociais e medicamentos, muitas vezes
prejudicavam os sujeitos em primeiras crises. Era observado que após um período de sucessivas
crises e diante da inadequação do tratamento, era comum que esses jovens optassem pelo suicídio
ou se envolvessem em problemas com a lei.
Essa inadequação do tratamento também era observada em referência ao ambiente de
tratamento. No hospital, as pessoas em primeiras crises relatavam medo de seu entorno, diante das
limitações de sua liberdade e da convivência com sujeitos com um histórico de muitos episódios e
já bastante “prejudicados”. Esse contexto gerava um grande pessimismo das pessoas em primeiras
crises sobre seu futuro; muitas vezes o próprio discurso da equipe era de que só restava como
futuro de uma primeira crise psicótica, a inevitável cronificação. McGorry (2015) aponta para os
perigos dos sujeitos em primeiras crises serem exageradamente medicados. O autor aponta que
muitas vezes eles eram 30 vezes mais medicados do que o necessário. A experiência do
internamento e o próprio diagnóstico muitas vezes eram experiências devastadoras também para a
família.
Uma das primeiras ações do grupo de McGorry (2002, 2015) foi tentar prevenir o
afastamento do sujeito de sua família por longos períodos, como era de costume. Também buscou
separar esses sujeitos dos casos de pacientes cronificados, assim como evitar mensagens e
tratamentos que trouxessem desesperança a esses sujeitos. O uso de medicamentos se reduziu a
uma dose mínima, buscando evitar ou minimizar os efeitos colaterais. As intervenções
psicossociais se voltaram também aos familiares. Buscava-se providenciar o tratamento o mais
precoce possível e dentro da própria comunidade do sujeito.
Ao longo do tempo, os grupos de pesquisa em intervenção precoce buscaram diminuir o
tempo de duração de não-tratamento da psicose – ou DUP (duration of untreated psychosis) – e
construir uma forma de tratamento segura e positiva para buscar manter o engajamento do sujeito.
Eles perceberam que o aumento do DUP estava ligado a diversos prejuízos para o indivíduo em
um primeiro episódio. Assim, o grupo foi ampliando suas ações buscando alcançar os casos
prodrômicos, ou seja, que ainda não haviam tido um primeiro episódio psicótico, nem
apresentavam sintomas, mas apenas sinais que indicariam, na compreensão do grupo, posterior
32

desenvolvimento de sintomas e do episódio em si. McGorry (2015) delimita os componentes


centrais presentes em serviços especializados em intervenções precoces às psicoses:

Tabela 1 – Componentes centrais da intervenção precoce

Os componentes apresentados pelo autor estão divididos em três aspectos principais: a


detecção precoce, o cuidado em situação de crises agudas e a continuidade do cuidado. Ele afirma
ser importante para a detecção precoce que haja uma conscientização do jovem e das pessoas que
trabalham com essa população, a respeito de temas da saúde mental. Também é necessária uma
facilitação do acesso e acolhimento independentemente do local que chegue o sujeito. Busca-se
oferecer cuidado e acompanhamento na casa do sujeito por uma equipe multidisciplinar, com a
possibilidade de acompanhamento em casa 24 horas. Em relação ao cuidado em situações de crise
aguda, oferecer acolhimento quando necessário na comunidade e garantir espaço de cuidado para
o acompanhamento após essa fase. Na continuidade do tratamento é importante ter um profissional
acompanhando de perto o caso, um “case management”, doses baixas de medicação, intervenção
psicológica, um programa de reabilitação funcional (buscando o retorno a um funcionamento
social, educacional e vocacional total), programas em grupo, participação de pessoas jovens nos
33

serviços, programas para a família e amigos, deslocamento e aproximação dos sujeitos que tem
dificuldade em engajar com os serviços. Além de parcerias com outras instituições,
desenvolvimento dos profissionais em sua capacitação em trabalhar com os casos, e oferecer
tratamento especializado para pessoas em “ultra-alto-risco” de desenvolvimento de psicose (UHR
– Ultra-high-risk).
McGorry (2015, 2002) e Costa (2003, 2010, 2013) apontam que nas primeiras crises, o
acesso às redes de apoio social e há uma maior preservação dos apoios familiares. Várias pesquisas
(McGorry, 2015, 2002; Costa 2003, 2010, 2013; Lower et al, 2014; Tsiachristas, Thomas, Leal &
Lenox, 2016; Seikkula, 2013) apontam que a intervenção precoce nas primeiras crises psicóticas
resultam em uma menor morbidade, uma recuperação mais rápida, um melhor prognóstico, uma
preservação de capacidades psicossociais, uma preservação de apoios familiares e menor
necessidade de hospitalização.
Seikkula et al (2013) e sua equipe realizaram uma pesquisa na Finlândia, comparando
intervenção precoces nas psicoses com o tratamento hospitalar usual. Esta pesquisa demonstrou
que as pessoas que participavam dos programas de intervenção precoce tinham menos dias de
hospitalização, os encontros familiares eram mais frequentes, medicação neuroléptica era utilizada
em menos casos, havia menos sintomas psicóticos residuais e estavam melhores empregados.
Lower et al (2014) apontam que as intervenções precoces nas psicoses resultam em reduções dos
sintomas psicóticas, as co-morbidades como ansiedade e depressão e melhoras na “reabilitação
social”.
Acrescentamos que é um primeiro momento em que o sujeito ainda não carrega o estigma
da “loucura”, que a família – na maior parte dos casos – ainda está mais presente e preocupada
com o cuidado à saúde mental daquele sujeito, muitas vezes até estando mais disponível a também
participar do processo de cuidado. Além disso, a pessoa também não rompeu necessariamente com
seus laços sociais, como estudo, trabalho, amigos, namoradas(os), etc. Essas perdas vão se
agravando nos casos em que os momentos de crise vão sendo mais recorrentes ou recidivantes.
Assim, tem-se nesse momento, maiores possibilidades e oportunidades do que em momentos
posteriores da vida do indivíduo, quando há um histórico maior de momentos de crise que
impactam suas relações consigo e com o mundo.
Temos atualmente no Brasil os seguintes grupos de pesquisa ou intervenção nas primeiras
crises do tipo psicóticas: Avaliação e Acompanhamento de Adolescentes e Jovens Adultos (ASAS),
34

o Laboratório de Neurociências (LIM-27), o Grupo de Intervenção Precoce nas Primeiras Crises


do Tipo Psicótica (GIPSI), o Grupo de Pesquisa e Acolhimento de Primeiras Crises do Tipo
Psicóticas (PEQUI) – vinculado ao Grupo de Pesquisa registrado no CNPq Estudos
fenomenológicos em primeiras crises do tipo psicóticas. (Maeji, Oliveira & Puchivailo, 2018)
O grupo de Avaliação e Acompanhamento de Adolescentes e Jovens Adultos (ASAS) está
vinculado ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. O grupo oferece
acompanhamento para “pessoas com risco de desenvolver psicose”, e seu trabalho principia com
uma triagem telefônica, seguida de uma entrevista realizada pessoalmente por um psiquiatra e um
psicólogo. A partir dessa primeira entrevista é avaliado se o sujeito será inserido no projeto ou se
será realizado um encaminhamento. Não há nesse projeto atendimento para pais ou cuidadores,
apenas uma conversa para tirar dúvidas e explicar o objetivo do tratamento (Brietzke, Neto, Dias,
Mansur, Bressan, 2011; http://www.ipqhc.org.br). O grupo ASAS traduziu o Questionário
Prodromal - ferramenta de self-report screening 4 para indivíduos com ultra risco (UHR 5 ) de
psicose, composto por 92 questões - proposto por Loewy et al. (2005 apud GONÇALVES et al.,
2012).
O LIM-27 ou Laboratório de Neurociências foi criado entre os anos de 1997 e 1999, pelo
professor Walter Gattaz e seus colaboradores. É um grupo do Instituto de Psiquiatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo e tem como objetivo o estudo e compreensão das
doenças neuropsiquiátricas. O grupo possui pesquisa em autismo, dependência química,
depressão, doença de Alzheimer e Huntington, suicídio, déficit de atenção e esquizofrenia
(incluindo primeiras crises psicóticas). A equipe de atendimento do LIM-27 é composta por
médicos, psicólogos e assistentes sociais que visam a revisão diagnóstica e psicoeducação para os
pacientes e familiares. (Brietzke, Neto, Dias, Mansur, Bressan, 2011; http://neurociencias.org.br/)
O PEQUI (Grupo de Pesquisa e Acolhimento de Primeiras Crises do Tipo Psicóticas) é um
grupo criado a partir da inspiração no grupo GIPSI. O PEQUI foi o único grupo vinculado a um
grupo de pesquisa atualizado encontrado no CNPq: “Estudos Fenomenológicos em Primeiras
Crises do Tipo Psicóticas”. Este grupo de pesquisa foi criado em 2016 durante o processo de
doutorado e realização desta tese. Em 2017 se ampliou se tornando também um grupo de extensão

4
Triagem autoavaliativa (tradução nossa)
5
Ultra-High Risk
35

do curso de psicologia da FAE Centro Universitário. (http://dgp.cnpq.br/) O PEQUI enquanto


grupo de extensão visa a pesquisa e o acolhimento das primeiras crises do tipo psicóticas. Tem
como principal objetivo o acolhimento do sujeito em primeiras crises com cautela, cuidado e
atenção, para assim, proporcionar o suporte necessário para ele e a família (ou outras relações
significativas). (http://pequi-primeirascrises.com.br/)
Iremos dar ênfase no grupo GIPSI, já que este é um dos grupos mais antigos dentre os
voltados exclusivamente para o estudo e atendimento das primeiras crises do tipo psicóticas, e com
mais materiais sobre o tema no Brasil, o que faz com que esse grupo seja de suma importância no
debate e pesquisa sobre essa temática. Também é o grupo que inspirou a construção da proposta
de atenção realizada nesta pesquisa, enquanto uma proposta crítica dentro das opções de uma
atenção à saúde mental, que considera o sujeito dentro de uma existência singular e de um contexto,
não apenas como um objeto depositário de teorias, conceituações e diagnósticos.
O GIPSI representa um dos poucos grupos brasileiros que realizam intervenções clínicas e
pesquisas específicas nessa temática. Tornando-se uma importante referência sobre a atenção às
primeiras crises psicóticas ou do tipo psicóticas. O GIPSI completou 17 anos de surgimento e 14
anos atuando na clínica das primeiras crises do tipo psicóticas. O grupo produziu ao longo desse
período quatro livros coletivos e dois livros de autoria do próprio coordenador, um manual de
orientação para os integrantes do grupo, além de outros dois livros organizados pelo coordenador,
sobre temas relacionados. Mencionamos no item a seguir alguns dos aspectos que impactaram a
construção da atenção às primeiras crises proposta nesta pesquisa.

1.2.1 GIPSI – Grupo de Intervenção Precoce nas Primeiras Crises do Tipo Psicóticas

O GIPSI é um grupo de pesquisa e atendimento das primeiras crises do tipo psicóticas do


Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília, (UnB) criado e coordenado pelo
professor Ileno Izídio da Costa desde 2001. O grupo é formado por estagiários alunos de iniciação
científica de psicologia em sua maioria (porém possui em alguns momentos estagiários de outros
cursos), profissionais voluntários (majoritariamente psicólogos, mas também há outros
profissionais evolvidos), mestrandos e doutorandos da pós-graduação em Psicologia Clínica e
Cultura da UnB. O grupo é multidisciplinar e entende a necessidade do diálogo de diferentes áreas
do conhecimento para a compreensão e cuidado das primeiras crises do tipo psicóticas.
36

O GIPSI problematiza o conceito de esquizofrenia e psicose, considerando-os imprecisos


e inadequados, e discorre sobre a importância de se priorizar o sujeito para além de uma abordagem
sindrômica e individualista. O uso do termo “do tipo psicótico” reflete a crítica que o grupo
estabelece em relação a delimitação de um diagnóstico grave e impreciso em um momento tão
precoce quanto o de uma primeira crise (Costa, 2010).
Em sua tese de doutorado Costa (2002) introduz o constructo de sofrimento psíquico grave
quando se reportando a estas primeiras crises do tipo psicóticas, com o intuito de ressaltar o aspecto
humano do sofrer, comum a todos. São antes angústias intensas e fundamentais humanas que
exigem uma compreensão (Costa, 2017).
Costa (2017) irá compreender esse sofrimento como característico da existência,
construído e expresso nas relações humanas. Também é um sofrimento singular, simbolizado de
formas diferentes pelas pessoas. No sofrimento do “tipo psicótico” há particularidades que devem
ser compreendidas para que possa se ofertar o cuidado de forma adequada quando necessário. O
sofrimento psíquico grave é aquele ligado a ideia de crise, um momento de ruptura, de mudança
no equilíbrio prévio do sujeito.
A compreensão do grupo, de acordo com Costa (2010), é que todo o momento de crise,
envolve um risco e uma oportunidade. Um risco de cronificação ou sua oportunidade de
transformação e crescimento a partir de um momento de crise. Pela intensidade do sofrimento faz-
se necessário um acompanhamento que possa promover ajuda e acolhimento, minimizar as
morbidades secundárias e prevenir recaídas.
Costa (2017) compreende as primeiras crises psíquicas graves como “substratos
fenomênicos da manifestação da experiência chamada psicose” (p.65). O autor pontua que essa
experiência constitui o humano, faz parte do ser. Essas primeiras manifestações não podem ser
consideradas psicoses a priori, são antes tentativas de organização do sofrimento experienciados
pelo indivíduo em suas relações, possibilidades de ser, e como tal enquanto parte de sua condição
existencial. O grupo GIPSI pretende então:

[...] apontar para o cuidado, o respeito e o apoio humano, nas relações, na vida, no
dia a dia de tais manifestações (entendidas como ‘fenômenos per si’), sem o império
de medicações, internações ou tratamentos invasivos vez que estas vivências são
37

plenas de dimensões e dinâmicas individuais, relacionais e existenciais (Costa,


2017, p.66).

Segundo Costa (2013), se compreende que a crise não é só do sujeito, assim, é essencial o
atendimento familiar. O aceite da família em participar do processo terapêutico é uma exigência
do grupo. Caso a família não aceite, o caso é encaminhado.
O grupo realiza duas reuniões de supervisão por semana, com duração de 4 horas, nas quais
todos os integrantes do GIPSI devem participar para a discussão dos casos, sob a supervisão do
professor Ileno. Além disso, segundo Silva e Costa (2013), o grupo também possui oficinas, a de
boas-vindas aos novos membros do grupo, e a vivencial em que o grupo se reúne para dividir
experiências e reestruturar o próprio funcionamento do grupo, ambas acontecem semestralmente.
E as oficinas metodológicas que acontecem a partir de necessidades do grupo de aprofundamento
e discussão de temas relevantes. Além disso o grupo conta com grupos de estudo que variam de
acordo com as demandas do grupo.
Os atendimentos do grupo são realizados majoritariamente no CAEP – Centro de
Atendimento Estudos Psicológicos da UnB. Com exceções de alguns atendimentos á crise que
precisam ser atendidos no local ou eventuais visitas domiciliares, entre outras demandas de cada
caso. O GIPSI possui um telefone de crise que funciona 24 horas por dia, há uma rotatividade dos
integrantes do grupo em assumir a responsabilidade em receber as chamadas pelo telefone, cada
dupla fica responsável pelo telefone de uma a duas semanas. (Silva e Costa, 2013)
O GIPSI em seu atendimento às primeiras crises do tipo psicóticas descreve as seguintes
propostas no capítulo escrito por Costa e Mano (2013). Durante o acolhimento, aceitar o sujeito
da forma como se encontra, como se percebe, voltando a escuta para a crise. Também é importante
realizar esse acolhimento com “maternagem” para o sujeito se sentir a vontade, oferecendo
aceitação à sua condição de crise, oferecer suporte a família (sem escolher “lados”, sem apontar
“culpados”), buscando pensar em estratégias em conjunto. A crise pode ser acolhida em qualquer
realidade territorial, a prioridade é iniciar o vínculo com o sujeito e sua família no momento do
acolhimento. Também se investiga a rede de apoio do sujeito (espaços territoriais, redes
significativas, membros da comunidade). Inclusive um dos muitos instrumentos e ferramentas
utilizados pelo grupo é o Mapa de Rede e Ecomapa. Esta rede de apoio e de serviços é dinâmica,
38

de acordo com as vivências e percepções do sujeito ao longo do processo. Através da psicoterapia


individual e familiar se busca estimular a auto-percepção dos processos relacionais do sofrimento.
Após a ligação ou encaminhamento para o GIPSI é marcado um acolhimento com o sujeito
e sua família. Esse acolhimento é realizado por uma dupla, todos os sujeitos são escutados com o
intuito de acolher a crise não só do sujeito, mas muitas vezes, também da família diante a vivência
de crise de um de seus membros, e também para compreender melhor a situação e contexto
daqueles sujeitos. “A dupla é chamada para ocupar um lugar para além de investigadores ou
entrevistadores. Frequentemente, o que a família mais necessita é de um espaço de escuta
empática, de ventilação e descarga emocional do sofrimento decorrente e causador da crise, enfim,
de apoio.” (Silva e Costa, 2013, p.173)
Segundo Silva e Costa (2013) é ofertada no acolhimento uma escuta crítica e compreensiva
buscando conhecer o sujeito, a história familiar, seu contexto social e político. Muitas vezes essa
primeira crise é permeada de situações e expressões que a família ou o próprio sujeito não
compreende. No acolhimento diferentes sentidos a essa vivência podem ser descobertos e
integrados. Busca-se oferecer continência e pertencimento às falas, especialmente às do sujeito em
crise, que muitas vezes são tidas como sintomas, “[...] dar crédito e merecimento ao seu sintoma,
com sensibilidade o suficiente para perceber naquele momento, do que a família necessita [...] o
sintoma faz sentido dentro de um conjunto complexo de interações entre os membros da família”
(p.178). Há também muitas vezes a necessidade de esclarecimentos psicoeducativos. Após o
acolhimento que pode durar em média de 1 a 3 encontros, na supervisão são escolhidos um
terapeuta individual e uma dupla para atender a família.
Durante o acompanhamento do GIPSI no primeiro semestre do doutorado (2014) e em dois
meses no mestrado (2012), pudemos perceber o comprometimento e aprofundamento do
atendimento e discussão dos casos. O grupo que atendia em média 10 pessoas em primeira crise e
seus familiares, possuía cerca de 30 pessoas acompanhando os casos (dentre eles alunos de
graduação, de mestrado, de doutorado e profissionais voluntários). Eram realizadas duas
supervisões semanais, de quatro horas cada, nas quais todo o grupo se encontrava presente para
que todos pudessem participar da reflexão sobre o caso. Muitas vezes um único caso era discutido
durante as quatro horas de supervisão, o que nos dá uma ideia do nível de aprofundamento nas
discussões de cada caso. Também nos chamou muito a atenção a dedicação ao atendimento
familiar e os impactos dessas intervenções nos sujeitos em crise. Após essa experiência foi decisiva
39

a necessidade da participação da família (e outras pessoas próxima e relevantes na rede social do


sujeito em crise) nesse processo de atenção.
O acolhimento realizado no GIPSI dos sujeitos em crise e seus familiares, não só durante
os primeiros atendimentos, mas ao longo de todo o processo também é de suma importância, em
nossa compreensão, a qualquer proposta de atenção à saúde mental; respeitoso, compreensivo ao
contexto e sentidos dos sujeitos acima de quaisquer possíveis determinações.
Através da nossa experiência com o grupo GIPSI em Brasília encontramos uma proposta
de atenção à saúde mental diferente das experiências anteriores que tínhamos tido, assim o grupo
serviu como principal inspiração para a construção da proposta desta pesquisa.

1.3 Problematizações a respeito da atenção às primeiras crises psicóticas

Como podemos observar, temos ainda poucos grupos abordando o tema da atenção às
primeiras crises psicóticas no Brasil. Nos documentos, manuais ou sites oficiais não é realizada
diferenciação ou menção às primeiras crises. São poucos os espaços que vem discutindo esse tema
no Brasil atualmente. O que parece apontar para a não diferenciação das primeiras crises de outras
crises no acompanhamento realizado pelos equipamentos de saúde. Porém, observamos através
das pesquisas realizadas pelos grupos filiados à IEPA, além dos próprios grupos brasileiros
mencionados, a importância da intervenção precoce e de uma atenção moldada às necessidades
das primeiras crises. Desta forma justificamos a importância dessa pesquisa e ressaltamos a
necessidades de desenvolvimento de mais pesquisas a respeito da atenção às primeiras crises.
A maioria do grupo da IEPA, assim como dois dos grupos brasileiros mencionados (ASAS
e LIM-27) são grupos centralizados na psiquiatria, que compreendem os pródromos como sinais
que indicam o desenvolvimento de uma doença e as primeiras crises como primeiros episódios de
uma doença dentro do espectro dos transtornos psicóticos. Apesar de na maioria dos casos haver
uma preocupação em programas voltados à família e amigos do sujeito em crise, observa-se uma
centralidade da atenção ao indivíduo considerado “doente”.
Parece-nos que ao considerar o momento de crise como um agravo à saúde, pressupõe-se
já de antemão que esta vivência está prejudicando o sujeito, que é negativa à sua vida e daqueles
que o rodeiam, inclusive podendo gerar risco à vida. Mas será que o momento de crise é sempre
40

um agravo à saúde do sujeito? Será que a ideia de risco nessa concepção está ligada apenas ao
risco à vida do sujeito?
Pesquisas indicam (Martins, 2017; Oliveira, Ferreira, Vasconcelos, Dutra, 2017; Willrich,
Kantorski, Chiavagatti, Cortes & Pinheiro, 2011; Castiel, Guilam, Ferreira, 2010; Kondo, et al,
2011, Dell’Acqua & Mezzina, 1991) que há uma preocupação significativa do profissional com o
risco de heteroagressividade ligada à ideia de crise, ou a de uma situação de emergência e urgência.
Queremos com isso pontuar que a ligação da ideia de crise à de risco introduz representações
ligadas a uma suposta periculosidade ligada a esse fenômeno; ademais, a concepção hegemônica
de crise já é carregada de preconceitos: “O medo, raiva e revolta podem acarretar afastamento da
pessoa em sofrimento psíquico, funciona como fator de desmotivação ou desinteresse em atendê-
los, assumindo uma atitude defensiva e até de negligência de cuidados, principalmente aos
agressivos” (Kondo, et al, 2011, p.506).
Muitas vezes, pelos profissionais terem dificuldade, receio, insegurança ou mesmo medo
de atender a crise, optam pelo internamento ou a contenção (física ou química). Surge daí que,
exatamente num momento de maior fragilidade, o sujeito passa a ser internado, indo para um local
em que não reconhece nem os profissionais, nem o espaço onde está, passando a ser tratado por
uma equipe que muitas vezes não conhece sua história. Isso pode não apenas causar um maior
prejuízo para sua recuperação, como diminuir a possibilidade de se fazer da crise uma
oportunidade de transformação em sua vida (Campos, 2001; Willrich, Kantorski, Chiavagatti,
Cortes & Pinheiro, 2011; Costa 2003, 2010, 2013).
Não estamos aqui excluindo a possibilidade do internamento ou mesmo da contenção, mas
apenas problematizando seu uso recorrente e prioritário (ou dominante), visto que estes são apenas
algumas das possibilidades de manejo de crises. Será que em boa parte dos casos de crise estamos
escolhendo a melhor abordagem à situação ou agindo guiados pelo conjunto de representações
negativas a seu respeito?
Os grupos que desviam dessa lógica biomédica são o GIPSI e o PEQUI. Nesses grupos
observamos uma problematização do diagnóstico da psicose nas primeiras crises e a consideração
do momento de crise enquanto um episódio característico de uma doença. Esses grupos
consideram o sofrimento humano e as crises como parte da existência, buscando não os
patologizar, em um movimento de compreensão daquela vivência, ao invés de tentar a explicar e
enquadrar aquela experiência em um constructo teórico. Além disso, são os únicos grupos
41

vinculados a outras áreas para além da psiquiatria e medicina que, mesmo localizados em cursos
de graduação de psicologia, trabalham com equipes multidisciplinares. Ambos os grupos também
têm como diferencial o acompanhamento das famílias, não apenas em atividades
psicoeducacionais, mas em acompanhamento psicoterapêutico ou encontros dialogados.

1.4 Delimitação do objeto da pesquisa: Atenção às primeiras crises do tipo psicóticas

O GIPSI foi o grupo que inspirou a atenção às primeiras crises proposta por esta pesquisa.
Por isso utilizamos o termo “do tipo psicótico”, a partir do desenvolvimento da problematização
de Costa (2002), em relação à delimitação de um diagnóstico grave e impreciso em um momento
tão inicial quanto o de uma primeira crise.
O objeto de nossa pesquisa é a atenção às primeiras crises do tipo psicóticas. Nosso
enfoque, nesta pesquisa, são as primeiras crises, ou seja, não nos referimos a sujeitos com o
histórico de vários internamentos ou mesmo muitos anos de crise (delimitamos para fins
metodológicos que os primeiros sinais de que algo não estava bem, a partir da percepção do sujeito
e da família, não ultrapassem mais de 5 anos) com ou sem acompanhamento. Também há a
especificidade do “tipo psicótico” que diz de uma expressão existencial próxima aos sintomas da
psicose.
Quando se mencionam as primeiras crises do tipo psicóticas, nesta pesquisa, não há o
pressuposto de um agrupamento de indivíduo com “psicopatologias” em comum, pois como
pontuamos esse é um momento demasiado inicial para a delimitação de um diagnóstico dentro do
espectro da esquizofrenia ou outros transtornos psicóticos (DSM-V). Mas diz do agrupamento de
indivíduos que estão vivenciando uma crise intensa pela primeira vez na vida, e que, pela
perspectiva do sujeito ou da família, demandam auxílio no SUS. Suas crises são consideradas
dentro do campo da saúde mental, entram neste circuito por possuírem “características
sintomáticas” próximas às “psicoses”.
Entendemos que esses sujeitos podem estar em maior risco, não necessariamente de
desenvolverem um quadro crônico de esquizofrenia, mas sim de estigmatização, perda de rede
social, excesso de medicalização (Oliveira, 2012; Seikkula et al, 2013), desconsideração de sua
fala (por ser “delirante”, “psicótica”, “confusa”). Em risco de entrar no “circuito psiquiátrico” e
não mais sair dele. Dell’Acqua & Mezzina (1991) alertam para a importância de considerar que
42

quando falamos de crise, estamos falando da via de entrada no “circuito psiquiátrico”, e a partir
dessa entrada, da possível associação dessa vivência à rótulos de periculosidade e processos de
exclusão, dependendo das formas como a crise será considerada e abordada. Segundo os autores,
essa entrada é definida a partir de sistemas de delimitações pré-estabelecidas: limites do sofrimento
e formas aceitáveis ou “patológicas” de como demonstrá-lo, comportamentos aceitáveis ou não,
controláveis ou não.
Assim, o risco que consideramos não é um risco orgânico, posto que este não pode ser
comprovado, mas sim um risco psicossocial. Por isso a importância de problematizar algumas
questões a respeito da atenção a crise, pois é nesse momento em que muitas vezes se inicia uma
gama de estigmatizações em relação aquela experiência de vida do sujeito. Goffman (1961/1996)
discorre sobre os prejuízos dos processos de estigmatização. Para o autor nossos papéis sociais,
como nos enxergamos, se dá também a partir da forma como somos considerados pelo outro, nossa
identidade pode ser manipulada, modificada.

O normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em
situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas
que provavelmente atuam sobre o encontro. Os atributos duradouros de um
indivíduo em particular podem convertê-lo em alguém que é escalado para
representar um determinado tipo de papel; ele pode ter de desempenhar o papel de
estigmatizado em quase todas as suas situações sociais, tornando natural a
referência a ele (Goffman, 1981/2004, 117).

Desta forma a pessoa em primeira crise considerada “a louca”, “a esquizofrênica”, “a


doente”, não só sofre as consequências sociais desse estigma - a exclusão, o medo - mas também
pode passar a acreditar que sua identidade agora é essa.
A ideia de primeiros sinais, desenvolvimento e consequências são utilizados nos modelos
internacionais de intervenção precoce, mas Costa (2003) afirma que essa concepção é resumida
demais para expressar o conjunto de processos complexos e contínuos das primeiras crises do tipo
psicóticas. Assim, o autor aborda o fenômeno enquanto um “sofrimento particular, que em quase
nada diferente dos demais, tidos como normais” (p. 271).
43

Compreende-se as primeiras crises do tipo psicóticas como os primeiros momentos de


crises intensas que muitas vezes são diagnosticadas como psicoses pela forma de suas expressões.
Consideramos uma situação como um momento de crise, pois assim ela é nomeada por alguém, o
próprio sujeito ou as pessoas de sua rede social. Também entendemos a crise no sentido de uma
modificação nas formas de relação do sujeito no mundo, típica da própria existência humana, e
por isso não diz de uma anormalidade ou de uma patologização. Mas que muitas vezes por sua
intensidade ou sofrimento é demandada uma compreensão, um cuidado e apoio para o sujeito e as
pessoas envolvidas em suas relações. É necessário um olhar atento, já que muitas vezes a partir de
momentos de crise como este seguem outras crises em um ciclo que muitas vezes acaba por
dominar todo o contexto de vida do sujeito.
44

2. DESCRIÇÃO DA EXPERIÊNCIA EM CAMPO: DESENVOLVENDO UMA


PROPOSTA DE ATENÇÃO ÀS PRIMEIRAS CRISES DO TIPO PSICÓTICAS EM UM
CAPS III DE CURITIBA

O objetivo deste capítulo é apresentar como se deu a construção da proposta de atenção às


primeiras crises do tipo psicóticas no CAPS III de Curitiba. Iniciamos explanando a base
epistemológica na fenomenologia, que fundamentou a construção da pesquisa como um todo;
evidenciando os motivos que no nos levou a esta escolha a partir da relação entre fenomenologia
e saúde mental.
Também iremos explanar a metodologia utilizada nesta pesquisa, descrever um pouco do
contexto da crise e das famílias atendidas, a forma da atenção realizada, os relatos da experiência
do sujeito e seus familiares em relação à atenção proposta durante a pesquisa, e como eles estão
atualmente.

2.1 De onde partimos: fenomenologia como epistemologia

Importa destacar, aqui, como se dá a apropriação da fenomenologia, como recurso


epistemológico para a fundamentação da nossa pesquisa, dado que a proposta original de Husserl
transcende em muito – e não pode ser confundida com – uma prática. A fenomenologia de Edmund
Husserl (1859-1938) nasce enquanto uma crítica aos rumos que a ciência e a filosofia modernas
tomavam. Husserl (1929/1994) buscava um fundamento para a ciência e para a filosofia, que
assegurasse uma base sólida para toda a construção de conhecimento, uma autêntica filosofia
universal. Para isso o autor inicia o projeto da fenomenologia a partir de ato epistemológico –
começa a se perguntar como se dá o ato de conhecer, de construção do conhecimento.
Segundo Japiassu (1934/1977) a epistemologia tem como função estudar as produções de
conhecimento, verificar sua possibilidade, indagar sobre as fontes e formas de construção do
conhecimento, “cabe à epistemologia perguntar-se pelas relações existentes entre a ciência e a
sociedade, entre a ciência e as instituições científicas, entre as diversas ciências” (p.39). Desta
forma, a fenomenologia pode ser compreendida como uma epistemologia, já que se pergunta
“como se constitui um objeto de conhecimento para a consciência? [...] quais as condições de
possibilidade da experiência?” (Manganaro, 2016, p.30). Holanda (2014) traz que a fenomenologia
pode ser utilizada de quatro formas, enquanto método, filosofia, ciência e epistemologia.
45

A fenomenologia busca superar a dicotomia sujeito e objeto, e as construções de


conhecimento realizadas a partir disso, como o subjetivismo e o objetivismo, tão caraterísticos da
epistemologia do século XVIII e XIX, como podemos ver nos exemplos da história da medicina,
da psiquiatria e da psicopatologia (Van Den Berg, 1994; Schneider, 2009; Manganaro, 2006;
Laing, 1973; Holanda, 2011; Jaspers, 2013).
A fenomenologia surge como epistemologia, como possibilidade de construção de
conhecimento que busca superar a dualidade sujeito e objeto, idealismo e realismo, racionalismo
e materialismo, mas sim falar de uma relação entre essas dicotomias, da relação sujeito-mundo.
Husserl, para escapar dessa dicotomia, partiu das ideias de Franz Brentano (1838-1917) a respeito
da intencionalidade6, para pensar a propriedade dos atos da consciência (atos de pensar, perceber,
etc.), a partir do seu conteúdo de sentido (o pensado, o percebido, etc.). Nas Conferências de Paris
(1991/1973), Husserl afirma que o mundo nos aparece enquanto vivências, enquanto aquilo que
percebo, valorizo, julgo, penso. Husserl parte da existência da cogitatio, da vivência, enquanto
ponto indubitável. O conhecimento da cogitatio é imanente, enquanto o conhecimento das ciências
é transcendente.

Os trabalhos de Husserl serviram à psicologia do século XX como reflexão


cuidadosa sobre os modos de investigação da subjetividade. Em especial, frisou a
necessidade de reformas na condução da investigação científica, através da revisão
do conceito de consciência e fato psicológico. (Castro e Gomes, 2001, p.239)

Segundo Castro e Gomes (2011), Husserl analisa o fluxo dos vividos da consciência, ele
rompe com a lógica dos fatos, decorrente da filosofia empirista de David Hume, que propõe como
princípio da construção do conhecimento a existência da realidade factual, que independe do
observador, do sujeito que percebe o fato. Compreensão que fundamenta a proposição de

6
Brentano optou por não estudar os estados psíquicos, como seus colegas da época, mas os atos e processos psíquicos.
Para o autor o fenômeno psíquico se diferenciava dos fenômenos físicos por se referirem sempre a um objeto e a um
conteúdo da consciência simultaneamente. (Boris, 2011). Uma crítica a ideia da época de que os fenômenos psíquicos
não têm correspondência a algo que existe na realidade. Os fenômenos da consciência interna estão fundidos em seu
objeto. (Brentano 1935/1874).
46

neutralidade da ciência positivista. Não é uma investigação dos fatos, não se supõe uma realidade
objetiva, mas sim dos fenômenos, uma descrição das vivências.
O projeto de uma fenomenologia busca garantir a objetividade do conhecimento atrelada à
subjetividade daquele que conhece e constrói o conhecimento (Husserl, 1929/1994). A proposta
husserliana conta com a tentativa de fazer este estudo sem se amparar em sistemas teóricos pré-
definidos sobre uma natureza (Castro e Gomes, 2001). Para Husserl, a atitude natural faz com que
o homem observe e interaja com o mundo de forma ingênua, como se os objetos do mundo
estivessem descolados e independentes do observador.
No livro A ideia da Fenomenologia7 de 1907, Husserl diferencia o pensamento natural do
pensamento filosófico. O primeiro é despreocupado em relação à possibilidade do conhecimento,
e encara o mundo enquanto o mundo dos objetos, como coisas existentes em si, descolados de
minha subjetividade. O segundo pode ser realizado através da redução fenomenológica, proposta
por Husserl, é possível suspender a atitude natural, colocando o mundo e as construções de
conhecimento entre parênteses para voltar o foco para o próprio fenômeno, as coisas mesmas, as
vivências que permanecem após a redução. Isso não significa que se nega a existência das
construções do conhecimento, mas apenas renunciando seu uso momentaneamente.
Este é um importante ponto da proposta epistemológica da fenomenologia, a de
questionamento – de indagação – sobre as naturalizações que realizamos em nosso cotidiano; aqui,
no caso, acerca dos fenômenos da crise, das formas de cuidado e, porque não dizer, sobre os modos
de compreensão e manejo das psicopatologias ou do “patológico”. A fenomenologia nos auxilia
na problematização de estigmas, na desconstrução de representações rigidificadas; assumindo
assim nossa fragilidade e limitação frente à compreensão de tais vivências, nos convidando a
conhecer o fenômeno tal qual ele se apresenta.
Ao utilizar a fenomenologia enquanto fundamento, questiona-se o objetivismo decorrente
da naturalização do que é do “espírito”, do humano, da consciência. “Dito com mais precisão: o
título generalíssimo para esta ingenuidade é objectivismo, enformado nos diversos tipos do
naturalismo, da naturalização do espírito” (Husserl, 1935/2006, p.41). Há também no Naturalismo,
outra preocupante característica; segundo Husserl (1910/1965), o naturalista é um idealista,

7
Livro constituído de cinco lições pronunciadas em 1907 em Gotinga, cidade universitária da Alemanha.
47

doutrinador, pregador, já que considera os valores e normas que estabelece como os melhores, e
aspira até mesmo dar conta em sua “exatidão naturalista” das questões do Ser. Assim, quando
realiza sua teorização sobre o objeto de estudo, sua verdade está posta de forma inquestionável. O
que acaba criando um dogmatismo. Na atitude natural (seja na ciência ou no cotidiano):

Fazemos enunciados, em parte singulares, em parte universais, sobre as coisas, as


suas relações, as suas mudanças, as suas dependências funcionais ao modificar-se
e as leis destas modificações. Exprimimos o que a experiência directa nos oferece.
Seguimos os motivos da experiência, inferimos o não experimentado a partir do
diretamente experimentado (do percepcionado e do recordado); generalizamos, e
logo de novo transferimos o conhecimento universal para os casos singulares ou
deduzimos, no pensamento analítico, novas generalidades a partir de
conhecimentos universais. Os conhecimentos não se seguem simplesmente em
relações lógicas uns com os outros, seguem-se uns aos outros, “concordam”
reciprocamente, confirmam-se, intensificando, por assim dizer, a sua forma lógica.
(Husserl, 1907/1986, p.39-40)

Assim, se formos pensar no fenômeno das primeiras crises do tipo psicóticas, ao naturalizá-
lo, corremos o risco de objetificar a própria vivência do sujeito. Ao naturalizarmos os fenômenos,
os objetificamos, falamos sobre eles, a respeito de seus funcionamentos, “pré-supomos”. Passamos
a acreditar que eles já estão previamente dados; acreditamos que os fenômenos do mundo da vida
irão se comportar da forma como esperamos, da maneira como já os experimentamos previamente
e, assim, nos tornamos cegos a suas transformações e singularidades. Husserl (1929/1992) critica
essa ingenuidade das ciências positivas, tanto quanto nossas pressuposições cotidianas que nos
fazer agir, pensar e valorar o mundo como previamente dado.

Os conceitos originários que, ao longo de toda a ciência, determinam o sentido da


sua esfera objectal e da sua teoria, brotaram de modo ingénuo: têm horizontes
intencionais indefinidos, são produtos de realizações intencionais incógnitas,
exercidas apenas em grosseira ingenuidade. (Husserl, Conferências de Paris, p.37)
48

A partir dessa premissa, esforçamo-nos para dirigir nosso olhar ao fenômeno de estudo de
forma não ingênua, não embasando nossas ações em construções teóricas dogmáticas ou pouco
definidas. Buscamos evitar cair na armadilha das das grandes categorias – biologizantes,
psicologizantes, sociologizantes (e como tal naturalizantes) –que reduzem a um aspecto
determinante um fenômeno tão complexo quanto o das primeiras crises psicóticas. Nestas posições
naturalizantes, há a certeza quanto à veracidade das afirmações que realizamos sobre os sujeitos
em primeiras crises, não se considera a possibilidade dessa complexa vivência significar, na vida
do sujeito, mais do que uma doença, mais do que um sintoma a ser retirado.
Foucault (1954/1968), enfatiza por seu turno, que “as dimensões psicológicas da loucura
não podem então ser reprimidas a partir de um princípio de explicação ou de redução que lhes seria
exterior” (p. 97). Este esforço na busca pela compreensão do sujeito em primeira crise, através da
desnaturalização das concepções acerca da “doença mental”, pretende ser, além de uma postura
metodológica e epistemológica, uma atitude ética, um reconhecimento do sujeito, de seu saber
acerca de si mesmo e da consideração desse sujeito no contexto de sua própria experiência.
Husserl (1907/1986) coloca que na posição da atitude natural, não há dúvida sobre a
possibilidade de construir um conhecimento objetificante capaz de explicar os fenômenos.
Diferente do pensamento filosófico, que para o autor se define pela “posição perante os problemas
da possibilidade do conhecimento” (p.21),

Husserl afirma que a atitude natural, não-fenomenológica, faz o homem olhar o


mundo de maneira ingênua como mundo dos objetos. A fenomenologia, ao
contrário, busca uma fundamentação totalmente nova, não só da filosofia, mas
também das ciências singulares. Enquanto as ciências positivas consideram os
objetos como independentes do observador, a fenomenologia tematiza o sujeito, o
eu transcendental, que “coloca” os objetos. (Zilles, 2007, p.218)

Houve nesta pesquisa, através da fenomenologia, o esforço em colocar entre parênteses,


não o mundo como um todo, como na epoché, mas os pressupostos a respeito do que seriam
“crise”, “doença mental”, “sofrimento”, dentre outras percepções e discursos que delimitam e
enquadram os fenômenos que apareceram durante a pesquisa. Não há aqui uma epoché, não é
realizada a suspensão da tese do mundo, tal qual faz Husserl, mas é realizada uma redução das
49

doutrinas, de teorias e do senso comum a respeito dos fenômenos das primeiras crises do tipo
psicóticas. A suspensão necessária para Husserl (1913/2006), era uma suspensão total, já que seu
projeto era o de encontrar um fundamento para todo o conhecimento, mas este não é o nosso
projeto. Ainda assim, as teses sobre o fenômeno das primeiras crises são postas em suspensão: “A
tese é posta ‘fora de ação’, é colocada entre parênteses, ela se transforma na modificação ‘tese
entre parênteses’, e o juízo puro e simples, no ‘juízo entre parênteses’” (Husserl, 1913/2006, p.80).
Buscou-se através disso acolher a riqueza qualitativa do ato fenomenológico, através da
reconstrução e compreensão do mundo de significados do sujeito (Manganaro, 2006).
Enquanto disposição frente aos fenômenos estudados, a pesquisa que utiliza como
fundamento epistemológico a fenomenologia, coloca o pesquisador em uma posição de constante
questionamento, pois não há certezas prévias a respeito dos fenômenos estudados.

A consciência metodológica nos mantém frente à realidade que deve ser apreendida
sempre de novo. A dogmática do ser nos tranca num saber que, como um véu, se
antepõe a toda nova experiência. Assim, a atitude básica metodológica se impõe
contra a atitude de absolutização, a atitude básica de investigação contra a atitude
básica de fixação (Jaspers, 1913/1987, p. 58)

Jaspers (1913/1987) constrói uma psicopatologia geral de forma bastante rigorosa a partir
das próprias vivências psicopatológicas; utilizando a fenomenologia também como ponto base de
suas pesquisas. A fenomenologia, tal qual proposta por Husserl (1907/1986, 1913/2006,
1929/1992, 1935/2006, 1910/1965), permeou o caminhar de nossa pesquisa, servindo de solo
epistemológico, ou seja, de fundamento para a construção da pesquisa e dando suporte para a
construção de uma postura – de uma posição distinta da tradicional – na atenção às primeiras crises
do tipo psicóticas.
Nesta pesquisa as ações que foram construídas ao longo do processo também foram postas
à prova, questionadas, repensadas, buscando a maior fidedignidade possível em relação à
experiência vivenciada, seja pelos sujeitos, seja pela pesquisadora. A centralidade está no
fenômeno e não em teorias prévias sobre este (Husserl, 1910/1965). Assim se dá também em
relação à análise dos fenômenos, que é baseada em um esforço compreensivo para depois ser
realizada uma interpretação dos dados, e não uma análise baseada na interpretação como primeiro
50

passo. Não se trata aqui apenas de uma visão de homem ou uma teoria de mundo construída a
partir da fenomenologia, mas a postura do pesquisador frente aos fenômenos de pesquisa e na
construção de conhecimentos.

Uma vez que teorias significam, aqui toda e qualquer espécie de preconcebimento,
nestas investigações nós nos mantemos rigorosamente afastados delas. As teorias
entram em nossa esfera apenas como fatos de nosso mundo circundante, não como
unidade de validez, efetivas ou supostas (Husserl, 1913/2006, p.77).

Desta forma, não estamos recusando as teorias, mas nos afastando delas num primeiro
momento, para conhecer o fenômeno pesquisado sem pré-concepções dadas. Assim, a
fenomenologia não pode ser, para tal empreitada, uma nova teoria sobre o fenômeno estudado,
mas um recurso epistêmico, uma forma de conhecer, de construir conhecimento, de se encontrar
com o fenômeno estudado de forma rigorosa e não dogmática.
Um outro aspecto epistemológico a ser destacado a partir da fenomenologia é a ideia de
que todo processo de construção de conhecimento encontra-se irremediavelmente entrelaçado na
relação sujeito-objeto, buscando superar a dicotomia sujeito versus objeto, a oposição entre
objetivismo e subjetivismo, e como tal, partindo do conceito de consciência intencional: “O eu
também já não é mais, então, uma coisa isolada ao lado de outras coisas tais num mundo pré-dado
e, em geral, cessa a séria exterioridade e justaposição das pessoas egóicas em benefício de um
íntimo ser uns-nos-outros e ser uns-para-os-outros” (Husserl, 1935/2006, p.49).
Não há um solipsismo, um isolamento do sujeito; assim como não há apenas o mundo
concreto como aquilo que é acessível ao conhecimento. Entende-se que o fenômeno estudado não
é um “objeto isolado”, mas um fenômeno de correlação entre sujeito e mundo da vida
(Lebenswelt), que estão inevitavelmente imbricados em nosso horizonte de experiências
intersubjetivas.

Experimento em mim mesmo. No âmbito da minha vida consciente transcendental,


tudo e cada um, e experimento o mundo não como simplesmente o meu mundo
privado, mas como um mundo intersubjectivo, dado a cada um e acessível os seus
51

objetivos, e nele experimento os outros enquanto outros e, ao mesmo tempo,


enquanto uns para os outros, para cada um (Husserl, 1929/1992, p.35).

Através dessa posição se considera que o “objeto” de estudo não é independente de seu
observador, assim, abordamos aqui a experiência não só dos sujeitos da pesquisa, mas da própria
pesquisadora, participante ativa de todo o processo descrito neste trabalho. Além disso também
não há a pressuposição que nosso foco de estudo seja apenas um sujeito isolado, mas uma
subjetividade, sempre constituída em relações com o mundo e com os outros. Assim, a atenção à
crise não é uma atenção somente a um sujeito, mas a vários contextos. Costa (2013), ao discorrer
sobre as primeiras crises do tipo psicóticas aponta que a aproximação da fenomenologia se dá
também na busca pela compreensão da experiência vivida pelo sujeito, pelo abandono da atitude
natural diante desse fenômeno, e que a intersubjetividade atravessa toda essa compreensão.
A escolha por essa epistemologia foi feita pois se entende que a ciência positivista, em sua
postura natural e explicativa, não alcança a amplitude do fenômeno humano. (Husserl, 1935/2006;
Dilthey, 1894/2008). O interesse aqui está na comunicação, na compreensão e não na previsão. A
fenomenologia busca não ceder ao raciocínio das ciências positivas, que considera apenas os
aspectos objetivos do mundo, nem no discurso especulativo da metafísica, que acabava por
produzir teorias “descoladas” do mundo, que se encerram em si mesmas (Dartigues, 2008).
A fenomenologia nos permitiu, ao longo da pesquisa, problematizar nossas certezas, refletir
e muitas vezes questionar nossos posicionamentos, esforçando para não ir ao campo com nossa
tese “pronta”, mas descobrir ao longo do caminho quais fenômenos iam emergindo. Nos auxiliou
na desconstrução das naturalizações a respeito do fenômeno estudado. Nos permitiu abrir mão
(mesmo que momentaneamente) de nossas teorizações sobre aquele fenômeno para encontrar com
aquilo que aparecia, sem perder uma base sólida de fundamento para que a pesquisa pudesse ser
realizada.
A fenomenologia já impactou e contribuiu para diversos campos do conhecimento.
Castañon (2007), pontua algumas influências: Teoria do Conhecimento, Epistemologia, Ética,
Filosofia do Direito, Filosofia da Religião, diversas ciências humanas, especialmente a
Antropologia e a Psicologia. Inclusive no campo da saúde mental. Pretendemos com isso pontuar
a viabilidade do uso fenomenologia não apenas como método ou na concepção de homem, mas de
52

uma forma mais ampla, como epistemologia. Abordemos então algumas contribuições de sua
utilização como fundamento para pensar a saúde mental.

2.1.1 Contribuições da fenomenologia para a atenção à saúde mental

Através do diálogo com a fenomenologia, várias construções e compreensões da


Psicologia, da Psicopatologia, da Psiquiatria e da Saúde Mental puderam ser realizadas ao longo
da história. Schneider (2009), Spohr & Schneider (2009) e Holanda (2011) apontam que a
fenomenologia influenciou novos caminhos da saúde mental, oferecendo um alicerce filosófico,
especialmente aos movimentos da Antipsiquiatria e da Luta Antimanicomial.
Segundo Manganaro (2006), a fenomenologia de Husserl influenciou diversos nomes da
psiquiatria e da psicopatologia, dentre eles, Binswanger, Minkowski, Van den Berg, Jaspers,
podemos acrescentar Ronald Laing, David Cooper, Franco Basaglia. A fenomenologia permitiu
um salto qualitativo nesse campo quando possibilitou uma psicopatologia que prescindia de juízos
clínicos, funcionalidades operativas ou objetivos práticos, porém não os invalidava, colocava esses
conceitos “entre parênteses”, mas não os negava.

Ou se pensa já se ter, no que se sabe objetivamente, a própria realidade, o ser em si


e na sua totalidade ou se reconhece o caráter perspectivista, a natureza,
metodologicamente fundamentada e, ao mesmo tempo, limitada de todo
conhecimento. Ou se procura uma satisfação no saber do ser. Ou se aceita o
horizonte aberto de um movimento infinito. Ou se tem como centro de gravidade
numa teoria do ser, que se acredita conhecer, ou na sistematização de métodos
conscientes, com os quais se ilumina a escuridão infinita. Ou se abandonam todo
os métodos, como suportes temporariamente necessários, para possuir
pretensamente a própria realidade, que se conquistou, ou se destrói toda dogmática
de ser como erro temporariamente indispensável, em favor do movimento do
conhecimento, que nunca se apresenta diretamente nem se acaba, mas que sempre
permanece aberto a uma experiência e investigação ilimitada (Jaspers, 1913/1987,
p.58).
53

Gradualmente, a partir das reflexões de Husserl, psiquiatras e psicopatologistas


fenomenológos, como Jaspers, conduziram revisões de diferentes questões fundamentais da
ciência médica psiquiátrica e da psicopatologia, possibilitando uma reformulação da maneira como
as exercitar, no relacionamento com o sintoma e com a pessoa que o expressa. Jaspers (1913/1987)
inaugura uma forma de pensar psicopatologia do ponto de vista fenomenológico. Alerta sobre os
preconceitos, os conceitos anteriores que anuviam nosso olhar, sendo um deles o preconceito
teórico. Neste, ocorre o sério risco do pesquisador se voltar somente ao que confirma sua teoria
em questão:

Um preconceito teórico prejudicará sempre a compreensão dos fatos. Ver-se-ão


sempre os dados estabelecidos dentro do esquema da teoria. Só interessa o que tem
valor para ela e a confirma. Não se percebe o que não se relacionar com a teoria. O
que depões contra ela é transformado ou encoberto. Vê-se a realidade com os olhos
da teoria. Será, portanto, nossa tarefa constante aprender a abstrair sempre dos
preconceitos teóricos, que sempre atuam em nós, exercitar-nos em colher
puramente os dados (Jaspers, 1913/1987, p.20).

Jaspers também critica a naturalização da vida psíquica, e coloca como tarefa o esforço
constante de abstração das teorias e de outros preconceitos, em busca de um acolhimento do
fenômeno. Ele afirma os limites da ciência psicopatológica, considera que não podemos reduzir o
sujeito a conceitos psicopatológicos: “Sempre o homem é algo mais do que se pode conhecer”
(Jaspers, 1913/1987, p. 63).
Segundo Schneider (2009), as reflexões realizadas pela psicopatologia fenomenológica
também possibilitaram um rompimento com a noção individualizante do fenômeno patológico.
Houve uma ampliação dentro do entendimento, no contexto das psicopatologias, de indivíduo
enquanto um ser-no-mundo, como um ser em relação.
Binswanger (2001) propõe uma elucidação fenomenológica da articulação total da
existência como um ser-no-mundo, buscando uma compreensão da vida do sujeito, de sua história,
de sua constituição, de seu mundo comunitário, de seu ambiente, das decisões de sua vida íntima,
uma exploração metódica da história interior da vida. Um trabalho não explicativo, mas
54

compreensivo, paciente, sistemático, que busca uma reconstrução refletida da história da vida do
sujeito.
Laing e Cooper (1964/1976; Laing, 1979) também realizam uma crítica à psiquiatria
clássica utilizando a fenomenologia como base epistemológica em suas discussões. Segundo os
autores, a psiquiatria clássica se apoia em uma representação objetiva de “doença mental” – sendo
esta entendida enquanto entidade mórbida, de fundo orgânico ou “mental” – e enquadrando a
experiência psicopatológica em um modelo empiricista e dicotômico (organicismo versus
mentalismo), desqualificando a vivência do sujeito enquanto experiência. A fenomenologia surge
na tentativa de superar os discursos objetivos do mundo e os discursos especulativos da metafísica
(Dartigues, 2008), buscando um rompimento com ambas as lógicas determinísticas.
A revolução realizada pela fenomenologia possibilitou uma recolocação do sujeito da
ciência como ator: o homem é o centro, em um contexto histórico e mundano (Holanda, 2011).
Assim, dentro de um contexto da psicopatologia fenomenológica ou outras reflexões em saúde
mental fundamentadas na fenomenologia, é contraditório pensar em uma ciência centrada na
patologia ao invés de estar centrada no ser. O enfoque nesses casos não está na explicação das
causas da doença, mas sim na compreensão do significado que essas vivências têm para o sujeito
(Stockinger, 2007).
Para que haja uma compreensão do fenômeno é necessário ir às coisas-mesmas sem prévias
representações ou significações, de modo a se conseguir uma descrição fiel (Holanda, 2009). A
compreensão deve ser realizada como um processo integrativo, não dissociativo ou excludente.
Todas as perspectivas são válidas, pois nos auxilia a compreender diferentes aspectos do
fenômeno. É importante se esforçar para conhecer a vida psíquica por todos seus lados e por todas
as vias.
A partir de uma epistemologia fenomenológica, observamos um olhar dirigido ao sujeito e
ao seu sofrimento, não com o foco na doença, mas em sua expressividade, em seu contexto e em
sua forma de ser, não apenas enquanto o entrecruzamento de múltiplas causalidades singularidade
que se apresenta à compreensão. As discussões propostas pela fenomenologia apontam para um
novo questionamento sobre o que é saúde e doença – como encontramos nos clássicos pensadores
da psiquiatria fenomenológica –, que encontra eco nos contemporâneos questionamentos sobre a
noção de “saúde mental” (Amarante, 2007)
55

Goulart (2007) aponta que Basaglia inicia suas propostas de Gorizia, fundamentado em
concepções fenomenológicas e existenciais, baseadas na antropofenomenologia de Binswanger e
de Minkowski, e na filosofia de Sartre. Além disso Basaglia também de menciona Foucault,
Goffman, Husserl e Scheler (Basaglia, 2005).
Basaglia (2005) constrói uma crítica à busca por explicações para a “doença mental” em
posições metafísicas e dogmáticas que buscam confirmar suas hipóteses no corpo do próprio
doente, encaixá-lo em suas hipóteses construídas, tal qual uma cama de Procusto. O autor critica
a objetificação do doente mental, tal qual um corpo objeto no qual se aloca uma doença; pois ao
fazermos isso, perdemos o contato com a pessoa que nos aparece. Ao invés de um olhar atento,
temos um olhar direcionado por uma concepção teórica a respeito da doença mental. Basaglia
(2005) enfatiza a importância de que:

[...] a psiquiatria asilar reconheça, enfim, ter fracassado em seu encontro com o real,
esquivando-se da verificação que – através daquela realidade – poderia ter efetuado.
Uma vez que a realidade lhe escapou, ela limitou-se a continuar fazendo
“literatura”, elaborando suas teorias, enquanto o “doente” se via pagando as
consequências dessa fratura – encerrado na única dimensão considerada adequada
a ele: a segregação (p. 69).

A psiquiatria tradicional surge em meio a um contexto da medicina moderna que se


fundamenta no modelo das ciências da natureza e no positivismo. Em meio a esse contexto, a
psiquiatria tradicional buscou se adequar, criando posturas explicativas que funcionam através de
lógicas causais. Ao considerar o homem, assim como toda a natureza, matematizável, ou seja,
explicável através de sistemas formais, ela compreende o funcionamento psíquico assim como o
físico. A perspectiva explicativa atribui sentidos de fora para dentro, a partir de ideias apriorísticas
do que seja saúde ou doença, do que é melhor para o sujeito, de leituras sobre o sujeito a partir de
teorias. É considerar uma emoção ou uma expressão como sintoma ou as inserir em um arcabouço
teórico. A postura explicativa é a atitude hegemônica hoje. Uma postura para além da explicação
é um esforço.
Porém, nessas reduções e objetificações realizadas em prol do conhecimento científico
sobre a “doença mental” perdemos o contato com as vivências singulares dos sujeitos. O que os
56

autores mencionados nesse capítulo trazem como possibilidade, através da fenomenologia, é uma
outra perspectiva epistemológica, de construção de conhecimento e compreensão dos fenômenos
da psicopatologia, do humano como um todo. (Jaspers, 1913)
Uma das principais posturas preconizadas na compreensão é a de escutar o sujeito sem
pressuposições e representações a respeito de suas possíveis patologias, na expectativa de superar
os pré-julgamentos tradicionais e estigmas. Basaglia (2005) relata a necessidade de colocarmos a
doença, como categoria dada, entre parênteses, para que possamos nos aproximar e compreender
a pessoa que se encontra à nossa frente. O autor afirma:

Uma instituição que se pretende terapêutica deve tornar-se uma comunidade


baseada na interação pré-reflexiva de todos os seus membros; uma instituição na
qual a relação não seja a relação objetificante do senhor com o servo, ou de quem
dá e quem recebe; na qual o doente não seja o último degrau de uma hierarquia
baseada em valores estabelecidos de uma vez por todas pelo mais forte; na qual
todos os membros possam – mediante a contestação recíproca e a dialetização das
recíprocas posições – reconstruir o próprio corpo próprio e o próprio papel (2005,
p. 89).

Manganaro (2006), afirma a importância de se manter em suspensão as preocupações


etiopatogênicas e evitar a busca por uma organização nosológica. Pois, dessa forma, é que se torna
possível entrar em contato com o modo de ser, de seu fazer-se mundano, como o sujeito é para o
mundo e como ele “tem” o seu mundo, sem impedimentos pré-concebidos:

Revisitar a psicopatologia clínica em termo da experiência inter-humana permite


chegar não mais a “caso de esquizofrenia”, objetivado em sintomas ou em
mecanismo de defesa, descritos e tomados como fenômeno natural, mas à presença
psicótica como eventualidade ou modalidade pessoal, como ameaça imanente do
ser-humano, que paira sobre cada um. Evitar os reducionismos significa aproximar-
se do estudo da psicopatologia como um novo espírito que faz dela uma autêntica
ciência do homem (p. 88).
57

Ou seja, trata-se de ir de encontro ao próprio sujeito. A fenomenologia propõe um “retorno


as coisas mesmas”. Husserl (1910/1965) afirma que: “não é das Filosofias que devem partir o
impulso da investigação, mas, sim, das coisas e dos problemas” (p. 72). Ao dialogarmos com as
reflexões propostas na saúde mental pelos autores mencionados, pode-se pensar que o impulso
investigativo não deve partir das teorias, mas sim da vida, do mundo da vida (Lebenswelt). O
esforço de compreensão da pessoa que busca ajuda da rede de atenção à saúde mental não deve
ser aquele da compreensão do “caso de esquizofrenia”, mas de se aproximar para entender uma
pessoa, uma vida. “Uma possível leitura que podemos ter do legado de Husserl para nossa situação
específica de psicoterapeutas está exatamente no esforço em nos posicionarmos ‘sem misturas’,
sem amálgamas, diante das coisas, numa posição de observador que participa, mas não interfere”
(Holanda, 2014, p.95).
Holanda (2014) coloca que a postura compreensiva, fundamentada na fenomenologia,
requer uma escuta ativa, uma observação atenta e a espera pela emergência do fenômeno do outro,
uma abertura à percepção do fenômeno que se apresenta, no caso o sujeito e seu contexto, sua vida,
uma disponibilidade para estar-com. Discorrer sobre a atitude fenomenológica na prática clínica
não significa transpor a fenomenologia filosófica de Husserl à psicoterapia ou selecionar conceitos
fenomenológicos e os realocar em atitudes terapêuticas. Não pretendemos aqui realizar uma
análise simplista. Quando abordamos a prática clínica fundamentada na fenomenologia não nos
referimos à psicoterapia apenas, mas sim a “um conjunto de práticas que envolvem a tomada do
fenômeno humano nos seus processos de subjetivação” (Holanda, 2014, p. 93).
A partir dessas reflexões, pode-se pontuar a importância dessa postura inicial anterior a
qualquer projeto de intervenção. A fenomenologia, enquanto epistemologia, foi utilizada nesta
pesquisa como uma posição, uma disposição, frente ao fenômeno pesquisado. A fenomenologia
pode ser compreendida “como uma postura, uma atitude que nos abre todo um leque de
possibilidades, desde um modo de apreensão do humano até formas de plenificação da existência”
(Holanda, 2014, p. 95). O sujeito em primeiras crises do tipo psicóticos foi compreendido em sua
relação com o mundo, e não como sujeito isolado, sem assim cair na dicotomia sujeito e objeto
que Husserl (1913/2006) tenta escapar. Assim, nosso fenômeno não é apenas o sujeito em
primeiras crises do tipo psicóticas, mas se dirige também ao fenômeno família, às relações mais
próximas do sujeito em crise, ao seu contexto existencial mais geral, amplo, em seu mundo da vida
(Lebenswelt).
58

2.2 Metologia da Pesquisa

O local escolhido para a realização da pesquisa foi um CAPS III de Curitiba. Apesar do
CAPS não ser um dispositivo específico de atendimento a urgências e emergências (como consta
na portaria 3.088 de 2011), ele é um dispositivo que vai acompanhar as crises de uma forma mais
contínua. Além disso, escolhemos este equipamento pois temíamos que os casos de primeiras
crises não chegassem na atenção básica. Pelo que acompanhamos do grupo GIPSI de Brasília,
geralmente a busca por atendimento ocorria após, ou no momento da primeira crise (ou na segunda,
terceira, dependendo do caso), não enquanto casos prodrômicos. Assim, acreditamos que para
alcançar os casos de crise eles apareceriam em equipamentos como a UPA (Unidade de Pronto
Atendimento – local que acolhe emergências e urgências) e logo encaminhados para o CAPS. E
de fato era esse o fluxo usual dos casos que encontrávamos, seu primeiro contato com o serviço
de saúde era através da UPA.
O CAPS em questão se tornou CAPS III em 2013, iniciando o atendimento 24 horas em
12/07/2013. Ele está localizado em uma região nobre de Curitiba, inclusive a casa que subloca é
uma casa de alto padrão com chão de mármore e banheira de hidromassagem; porém, é pouco
adaptada às necessidades do CAPS, com poucas salas de atendimento. A localização da casa é
isolada, na frente há um córrego com bastante vegetação, fica em uma rua pouco movimentada,
sem muitos comércios, praças ou parques próximos.
Havia, no CAPS, dois momentos de reuniões oficiais entre a equipe: Uma reunião semanal
das mini-equipes que tinha a duração de uma hora e meia; sendo que cada mini-equipe
acompanhava cerca de 140 pessoas, e cada TR (terapeuta de referência) acompanhava cerca de 50
a 60 casos. E uma reunião semanal com todos os profissionais do CAPS com a duração de duas
horas. O objetivo dessa reunião era debater assuntos administrativos, da dinâmica de trabalho,
organizações e reorganizações dos processos de funcionamento do serviço e discussão de casos
clínicos mais graves.
O CAPS em questão foi escolhido por uma aproximação nossa com seu coordenador. Na
época, ele participava do grupo de pesquisas do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade da
UFPR, vinculado a esta pesquisa. Este fato foi considerado como uma boa oportunidade, pois
poderia possibilitar um local mais disponível à proposta de pesquisa. Posteriormente, a
59

coordenação foi modificada, mas a parceria e colaboração dos profissionais do CAPS permaneceu,
o que auxiliou muito no processo de continuidade da pesquisa.
Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Setor
de Ciências da Saúde da UnB, sob Protocolo CAAE 59367816.5.0000.0030 (ANEXO 1). A
viabilidade da pesquisa foi avaliada pelo Comitê de Ética da Secretaria Municipal de Saúde de
Curitiba (ANEXO 2). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre
Esclarecido (TCLE: ANEXO 3 - TCLE da pessoa em primeira crise do tipo psicótica, ANEXO 4
– TCLE do profissional, ANEXO 5 – TCLE dos familiares).
Participaram da pesquisa três psicólogos do CAPS, uma terapeuta ocupacional, uma
enfermeira, cinco pessoas em primeiras crises do tipo psicóticas, e quatorze familiares envolvidos,
totalizando 24 participantes. Participaram enquanto auxiliares de pesquisa uma mestranda e três
alunos de graduação participantes do Grupo de Pesquisa: Estudos Fenomenológicos em Primeiras
Crises do Tipo Psicóticos da FAE Centro Universitário – PR. Os auxiliares ajudaram na realização
de parte dos atendimentos individuais e familiares, propostos por esta pesquisa, sob meu
acompanhamento. Eu realizei os encontros familiares, sempre acompanhada por algum
profissional do CAPS ou auxiliares de pesquisa. Os encontros individuais foram realizados pelos
profissionais do CAPS, uma mestranda e dois alunos do último período de psicologia que
participavam do grupo de pesquisa.
A escolha da metodologia dessa pesquisa teve como base a epistemologia fenomenológica
e o objeto em questão: a atenção às primeiras crises do tipo psicóticas. Entende-se, assim como
Holanda (2006) coloca, que deva haver uma unidade “indissolúvel” entre os aspectos
metodológicos e epistemológicos de uma pesquisa, entre a produção e a elaboração do
conhecimento científico.
A escolha da metodologia da pesquisa também deve estar de acordo com o objeto e objetivo
escolhidos. Em nosso caso, temos um objeto de alta complexidade, já que no processo de atenção
às primeiras crises temos diversos atores envolvidos. Além do profissional que realiza os
atendimentos e o sujeito em crise, também temos outras pessoas relacionadas à sua vida que serão
relevantes no processo de atenção à crise. A partir de nosso fundamento epistemológico,
entendemos que, ao pensar na atenção às primeiras crises precisamos considerar o sujeito em sua
relação com o mundo e com os outros; ou seja, não temos como compreender o fenômeno da crise
do sujeito apenas a partir dele, dessa única pessoa; pois se ela é constituída em relação, sua crise
60

está associada a outras pessoas, e a atenção proporcionada deve levar em conta também as pessoas
mais próximas a esse sujeito. Desta forma, entendemos que nossos participantes deveriam ser os
profissionais, o sujeito em crise e sua família (levando em conta um construto mais amplo a
respeito da família, enquanto não somente os parentes consanguíneos, mas também as pessoas que
fizeram e fazem parte da vida desse sujeito).
Nosso objetivo é problematizar a atenção às primeiras crises do tipo psicóticas, a partir de
uma experiência em um CAPS III de Curitiba. Assim, utilizamos diversas ferramentas de coleta
de dados que abrangeriam essa experiência de forma ampla; para que pudéssemos perceber os
temas mais relevantes que apareciam na pesquisa de campo. Dentre essas ferramentas temos o
diário de campo (Minayo, 1993), no qual descrevemos as experiências observadas, a respeito dos
casos, das vivências dentro do CAPS, da proposta de atenção que estava sendo construída, das
intervisões 8 com os outros profissionais que acompanhavam o caso e das supervisões com o
orientador da pesquisa. Entendemos que o diário de campo seria mais fiel a essa proposta de
acompanhar de forma sistemática a experiência que estava sendo realizada. Para que pudéssemos
contribuir para uma melhor compreensão sobre o fenômeno das primeiras crises do tipo psicóticas
e especialmente nas formas de atenção a este grupo.
A observação realizada durante a pesquisa foi participante. (Minayo, 1993) Estas
observações e diálogos com os profissionais eram realizados entre os atendimentos. Nas conversas
com a equipe eram realizadas observações a respeito do CAPS, sobre as compreensões e ações em
saúde mental, especialmente relacionadas às primeiras crises do tipo psicóticas. Foram realizadas
muitas conversas informais e anotações variadas a respeito dessas e o que estava sendo observado
em um diário de campo, que descrevia o que era observado e vivido e eram pontuadas também
reflexões sobre o que estava sendo vivenciado.
Também utilizamos entrevistas realizadas com os profissionais do CAPS envolvidos na
pesquisa, os sujeitos em crise e seus familiares. As entrevistas com os profissionais foram
realizadas por uma das integrantes do grupo de pesquisa, para que eles ficassem bastante à vontade
para discorrem sobre qualquer tema e avaliarem o projeto de forma sincera. As entrevistas com os
familiares e sujeitos que estavam em crise foram realizadas entre 5 e 7 meses após a finalização

8
Conceito utilizado pelo GIPSI quando a supervisão se caracteriza por não ter uma liderança, um supervisor em
uma posição hierarquizada, mas sim vários profissionais pensando o caso.
61

da pesquisa no CAPS. Demos este intervalo para verificar como a situação e contexto do sujeito
se encontra atualmente, como a família e o sujeito estavam lidando com a crise ou mesmo se esta
já estivesse passado, com o próprio cotidiano, a partir do acompanhamento que foi realizado. As
entrevistas foram realizadas com a família e com o sujeito em crise. As perguntas norteadoras
foram: Como foi para você(s) a experiência de atendimento à primeira crise realizado? Como
você(s) entendem essa situação de crise hoje, e como entendiam quando chegaram ao CAPS? As
entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas.
Não temos pesquisas que tratam especificamente da atenção às primeiras crises em
qualquer equipamento da RAPS. Por isso optamos por uma pesquisa que se construiu a partir do
diálogo com o campo, buscando o desenvolvimento de ferramentas metodológicas apropriadas ao
contexto.
Esta pesquisa tem uma abordagem qualitativa aos dados, pois se compreende a importância
do caráter interativo do processo de produção de conhecimento, ainda mais quando o tema de
pesquisa diz diretamente daquilo que é do humano. Creswell (2007) define a pesquisa qualitativa
como uma atividade de estudo que busca compreender o fenômeno em termos de como as pessoas
o significam. Uma das características comuns a esse tipo de pesquisa é a tendência para a coleta
de dados no contexto natural em que os indivíduos se encontram onde os pesquisadores interagem
com os colaboradores da pesquisa. A pesquisa qualitativa se torna uma abordagem interessante de
pesquisa, especialmente quando há necessidade de compreender a complexidade de um fenômeno
em que se voltando aos sujeitos podem surgir questões inesperadas, novas, não previstas na
literatura.
Creswell também descreve algumas estratégias de validação da pesquisa qualitativa.
Mencionaremos alguns dos cuidados tomados em nossa pesquisa. Houve um constante cuidado
quanto ao engajamento e observação do campo, além de uma construção de confiança com os
sujeitos da pesquisa, buscou-se apreender a cultura dos profissionais e da instituição, além da
vivência dos sujeitos em crise e seus familiares. Tomamos o cuidado de nos posicionar
criticamente frente aos nossos pressupostos diante do cenário em questão, entendendo que a
subjetividade do pesquisador seguramente interfere no processo de pesquisa, e assim, buscamos
estar conscientes também do impacto de nossa subjetividade sobre este processo de pesquisa.
Buscamos utilizar diferentes fontes – conversávamos com profissionais, familiares e com as
pessoas em crise – para que a compreensão sobre o fenômeno da atenção às primeiras crises fosse
62

o mais completo possível. Também havia mais de um investigador, já que éramos um grupo,
pensando e vivenciando aqueles fenômenos.
Holanda (2006) considera como características da pesquisa qualitativa: a inclusão da
subjetividade do pesquisador no ato de investigar e uma visão abrangente do fenômeno que leve
em conta aspectos circunscritos a este. Através da abordagem qualitativa ao material da pesquisa,
assumiu-se um compromisso de esforço em busca de conhecer a realidade fenomênica de nosso
objeto de estudo que, por sua complexidade, plurideterminação, irregularidades, interatividade e
historicidade necessita dessa abordagem diferenciada.
Foram realizadas leituras exaustivas das anotações do campo, além disso também muitas
conversas com os pesquisadores e profissionais envolvidos no caso. Buscou-se a partir daí
organizar as informações coletadas em temas gerais, que pudessem auxiliar a compreensão sobre
os processos de atenção às primeiras crises do tipo psicóticas vivenciadas ao longo da pesquisa. O
processamento e análise desses dados foi feita através do método empírico-fenomenológico de
Amedeo Giorgi (2000), e que é composto de um procedimento de quatro passos: captar o sentido
do todo; discriminar as unidades de significado; transformar a linguagem diária do sujeito em
linguagem psicológica; sintetizar as unidades de significado.

2.3 Descrição da proposta de atenção às primeiras crises do tipo psicóticas e grupo de estudo

Iniciamos nossa aproximação do CAPS em uma reunião de equipe, na qual nos


apresentamos e fizemos uma explanação sobre os objetivos da pesquisa que pretendíamos realizar.
Um dos primeiros passos da pesquisa foi a realização de um grupo de estudos dos materiais sobre
intervenção precoce nas primeiras crises do tipo psicóticas. Nessa primeira conversa, todos os
profissionais que tiveram interesse em participar da pesquisa foram convidados a frequentar o
grupo de estudos. O grupo aconteceu de abril de 2015 a junho de 2017, sendo realizado
semanalmente e tinha a duração de uma hora e meia a duas horas. O objetivo desse grupo foi a
compreensão sobre o contexto do CAPS, uma reflexão sobre a viabilidade do projeto de atenção
às primeiras crises do tipo psicóticas, possíveis adaptações e recriações, a partir do contexto do
local. Diversos profissionais do CAPS passaram pelo grupo, alguns com participações mais breves,
outros com participações mais duradouras. Tivemos a presença de profissionais da enfermagem,
psicologia, terapia ocupacional e do coordenador do CAPS.
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Um dos motivos que atraiu esses profissionais ao grupo de estudos, segundo seus relatos,
foi o estudo em si, a reflexão e a capacitação, especialmente sobre os temas das primeiras crises
do tipo psicóticas (uma novidade para a maioria dos profissionais), o atendimento em família, e o
manejo de crises em geral. Podemos observar isso em algumas falas dos profissionais:

Profissional B: Como sempre gostei né, disso de aperfeiçoamento e atendimentos


familiares, eu achei interessante... Eu fiquei bastante empolgada no início, é...
Tinha bastante textos, a gente lia quase todos (risada)... Mas foi bem bom assim,
semanalmente, sempre fazendo as discussões dos textos... Acho que por um ano e
meio mais ou menos foi assim, até começar com os atendimentos. [...] Eu
particularmente sempre achei ótimo o CAPS oferecer um período pros
funcionários, pra gente poder se aperfeiçoar, porque a FEAES a fundação nunca
ofereceu nenhum, nenhum... curso né de, de preparação pra crise, nada. Então a
gente chegou aqui e chegou, chegamos chegando assim, sabe? Sem preparação
nenhuma, sem capacitação nenhuma. Então, quando a Mariana veio, eu entendi
que ela veio porque ela já tinha um contato com o nosso coordenador da época né
e eu me senti muito privilegiada por isso, que legal né?

Contextualizando essa fala, a maioria dos profissionais que trabalhavam no CAPS na época
da pesquisa foram contratados em um concurso para a saúde em 2014, e muitos desses
profissionais não tinham experiência no campo da saúde mental. Por isso essa profissional se refere
a “chegamos chegando” (sic), pois não houve uma preocupação em capacitar os profissionais,
segundo sua percepção. Outros profissionais inicialmente não entraram no grupo porque
entenderam que seria mais trabalho, dentro de um cotidiano já bastante atribulado.

Profissional E: Era mais trabalho, sabe quando você tá focado, mais uma coisa
para fazer...

Essa fala representa muitos dos profissionais do local, que sentem não terem tempo para
fazer qualquer outra atividade além daquelas que já realizam, pois se sentem já bastante
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assoberbados. Essa profissional começou a participar depois de alguns meses do grupo porque os
colegas que estavam participando falavam positivamente da experiência.

Profissional E: Aí eu comecei achar bem interessante eu até tava querendo começar


a fazer o atendimento juntos, daí o problema foi a carga horária

Mas ainda assim, essa profissional teve que sair do grupo devido a uma troca de cargo que
aumentou sua carga horária. O que podemos observar é que há o interesse de alguns profissionais
em refletir sobre sua prática, ampliar seu conhecimento dentro do campo da saúde mental, porém,
muitas vezes esse desejo é dificultado pelas demandas do trabalho. Muitas vezes o estudo e
momento de reflexão não é considerado parte do trabalho, ou é secundário ao trabalho realizado
no CAPS.
Ter a presença do coordenador do CAPS nos primeiros meses do grupo de estudo foi
importante, pois havia um apoio da gestão em relação ao projeto. Por exemplo, inicialmente houve
a demanda de leitura de diversos textos sobre o tema e os profissionais do CAPS relataram falta
de tempo para realizar tais leituras. O coordenador entendeu que o estudo de tais textos seria
importante para o trabalho no CAPS, entendendo também que a atualização de conhecimento fazia
parte da função do profissional, estes poderiam utilizar uma hora do expediente semanal para
efetuar as leituras, e o restante da equipe cobriria o profissional nesse período. Isso possibilitou
que os profissionais se dedicassem às leituras.

Profissional B: Então assim, a gente tinha uma hora, a gente tinha duas horas pro
grupo de estudos e, além disso, o nosso coordenador que era né, era bem favorável
assim a esse grupo, ele ainda liberava a gente uma hora por semana né, durante o
nosso horário de serviço pra ir ler os textos. Então a gente pegava lá um horário,
das nove ao meio-dia, ‘não, agora eu vou ler’ né... E a gente deixava o serviço,
saía daqui, eu ia no carro pra ler os textos. Então... Pra mim foi muito bom assim,
eu fiquei bem empolgada que era um tempinho que a gente podia sair do prático
pra ir pro teórico.
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Após a saída desse coordenador tivemos nas duas coordenadoras que o seguiram igual
apoio. Com a demora na aprovação da pesquisa nos dois comitês de ética (que durou nove meses),
os profissionais começaram a se desmotivar em relação ao projeto. A duração de dois anos de
grupo de estudo, foi um período muito longo. Eles estavam ansiosos para que a parte prática
iniciasse. Debatíamos alguns casos que eles atendiam, enquanto trabalhávamos os textos, porém,
sozinhos, eles se sentiam um pouco perdidos. Ainda havia o agravante de que eles encontraram
muita dificuldade em conseguir que a família participasse dos encontros familiares. Podemos
observar essas questões nos seguintes relatos:

Profissional B: Era bem piloto assim, porque a gente não tinha a intervenção, não
era muito certo, os pacientes faltavam, a gente não sabia muito como conduzir. Foi
uma experiência boa e foi ruim ao mesmo tempo, porque é... Como não deu certo
né, acho que a gente lia nos textos e a gente foi criando aquela fantasia, aquele
imaginário de que tudo seria... De que tudo daria certo né, mas daí as coisas
começaram a não dar certo... No começo as coisas começaram a dar uma
desanimada assim, porque as famílias não ‘vinham’ e foi difícil ver alguma,
alguma... evolução.

Profissional A: Acho que uma coisa desmotivadora foi o... a questão da baixa
adesão dos pacientes e, também, a gente estar fazendo, correndo atrás, mais a
Mariana por fora né… E eu acho que seria bom se ela já estivesse dentro, com a
gente correndo atrás né, indo atrás.

Entendemos essa demora como um aspecto que prejudicou a pesquisa, pois quando
passamos para os atendimentos, os profissionais já estavam um pouco desacreditados da
possibilidade da participação das famílias no cuidado, e a empolgação inicial havia diminuído.
Entendemos que teria sido mais interessante ter iniciado o grupo de estudo um pouco mais tarde
no processo da pesquisa. Para que não demorasse para iniciarmos a parte prática junto com os
profissionais.
Iniciamos o acompanhamento direto nos casos de primeiras crises do tipo psicóticas em
maio de 2017 e o término aconteceu em dezembro de 2017. Inicialmente, todos os atendimentos
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seriam realizados no CAPS, mas por conta das mudanças na coordenação do CAPS, as horas de
atendimento individual foram sendo reduzidas. Os profissionais eram cobrados a fazerem mais
horas de atendimentos em grupo e menos horas de atendimento individual; nesta época eles
poderiam realizar apenas sete atendimentos individuais por semana.
Como dentro da proposta já iniciada previa-se o atendimento individual, tivemos que
buscar alternativas, já que nem todos poderiam continuar a serem atendidos pelos profissionais do
CAPS. Assim, alguns casos passaram a ter atendimento individual na Clínica-Escola do Curso de
Psicologia da FAE (PsicoFAE). Isto porque, neste local, funciona nosso grupo de pesquisa, inscrito
no CNPq: Primeiras crises do tipo psicóticas: estudos fenomenológicos. Os atendimentos na
PsicoFAE foram realizados apenas no 2º semestre de 2017, por alunos selecionados pelo projeto
de pesquisa, acompanhados por observações minhas através da sala de espelho e supervisão
semanal. Os atendimentos em família e alguns individuais continuaram sendo realizados também
pelo CAPS.
Mesmo tendo o apoio da PsicoFAE e dos alunos de graduação participantes do projeto, o
local de referência aos atendimentos do caso permaneceu sendo o CAPS. Os profissionais de
referência continuaram sendo do CAPS, os encontros familiares, grupos de TR, atendimento com
o psiquiatra e outras atividades (para além dos encontros individuais) também. A pesquisa
auxiliava oferecendo algumas propostas de atendimento a mais e nas discussões e decisões sobre
o caso. Os atendimentos eram realizados semanalmente (alguns mais de uma vez na semana
dependendo da demanda), um encontro individual e um familiar, os terapeutas eram diferentes
(dois para o atendimento familiar e um para o individual). Além disso, alguns dos sujeitos da
pesquisa participavam de outras atividades no CAPS. A todos os casos era oferecido o atendimento
individual e familiar, por considerarmos a importância de um aprofundamento na compreensão do
sujeito em crise e de sua família.
Também eram realizadas intervisões semanais para a discussão dos casos, com os
profissionais e alunos que participavam diretamente na pesquisa, além das conversas informais
com os outros profissionais do CAPS envolvidos no caso. Entendíamos que essa troca da equipe
interdisciplinar era essencial para a compreensão de diferentes aspectos do fenômeno.
67

2.3.1. Os participantes da pesquisa em primeiras crises do tipo psicóticas

Quem nos alertava sobre os casos de possíveis primeiras crises do tipo psicóticas era a
equipe do CAPS. Todos os casos de primeiras crises com algum sintoma característico dos
transtornos psicóticos (tais como delírios, alucinações, discurso desorganizado, comportamento
motor desorganizado, incluindo catatonia, associados ou não a sintomas negativos - expressão
emocional diminuída, avolia, alogia, anedonia, ausência de interesse em interações sociais, dentre
outros) foram encaminhadas para o grupo. O critério de seleção dos participantes através dos
sintomas descritos no DSM-V se deu pela facilidade que esse instrumento permite na comunicação
entre profissionais de diferentes áreas. De maio à dezembro de 2017 tivemos contato com cinco
casos de primeiras crises do tipo psicóticas.
A proposta desta pesquisa não era realizar estudos de caso aprofundados de cada um desses
participantes, pois nosso objeto da pesquisa era o processo de atenção às primeiras crises ofertado.
Assim, os casos foram apresentados de forma sucinta para que o leitor possa se localizar
contextualmente em relação ao caso quando mencionado. Eles serão utilizados ao longo da tese
para possibilitar às discussões a respeito da de atenção, nossas dificuldades, desafios e percepções
realizadas ao longo do processo.

Valter
Valter (25 anos) vivia com sua mãe Lara (54 anos) e seu pai Celso (56 anos) e seu irmão
Álvaro (35 anos). Valter tinha um segundo irmão, Jorge (26 anos), que saiu em 2016 de casa para
morar com sua noiva. Lara era dona de casa, sempre foi a principal responsável no cuidado com
os filhos. Segundo Celso, ela “é quem manda na casa”, “quem cuida de todos”, “é só coração”
(sic-Celso). Ela dizia que seus filhos “vem em primeiro lugar” (sic-Lara). Celso era vendedor e
sempre trabalhou bastante fora de casa, fazendo muitas viagens a trabalho, é ele quem sustentava
a casa financeiramente. Celso gostava de sair com os amigos e era “galanteador” (sic-Lara), sempre
fazia elogios e brincadeiras com as mulheres.
Álvaro, primogênito, sempre foi muito adorado por toda a família, recebeu muita atenção
e carinho em sua primeira infância, especialmente por sua tia e seu avô (ambos da família materna).
Quando Álvaro tinha 9 anos nasceu Jorge, um ano depois Valter. Aos 14 anos, Álvaro começou a
fazer uso de drogas. Celso e Lara contaram esse acontecimento como algo muito marcante na
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família, pois consideram que foi aí que as maiores dificuldades da família começaram. Lara contou
que Celso nunca estava em casa, e ela sentia que não conseguia impor limites suficientes a Álvaro.
Para fazer uso de drogas, Álvaro começou a vender objetos da casa e a pegar dinheiro dos pais.
Para evitar os furtos, Lara começou a trancar tudo que tinha de valor em seu quarto; Jorge e Valter
também mantinham seus quartos trancados. A convivência em casa começou a ficar cada vez mais
conflituosa e Álvaro começou a agredir verbalmente, e algumas vezes fisicamente seus familiares,
especialmente quando estava sob o efeito de drogas.
A relação entre os membros da família nesta época se tornou cada vez mais distante e
conflituosa. Jorge relata que começou a trabalhar cedo pois queria ter sua “vida fora de casa” (sic-
Jorge), sua vida independente. Também entrava em vários conflitos com o irmão, pois o achava
“folgado” (sic-Jorge), e acreditava que sua mãe e sua tia “passam muito a mão em sua cabeça”
(sic-Jorge). Valter, que é um jovem tímido, acabava ficando boa parte do tempo que passava em
casa trancado em seu quarto, que ficava no porão, junto com os quartos dos outros irmãos.
Jorge relatou alguns episódios de agressões físicas de Álvaro com os outros membros da
família, como uma vez em que, para entrar no quarto de Valter, ele o golpeou com o cabo de uma
enxada. Ou outra vez em que Álvaro saiu atrás de Jorge com uma faca. A agressão física não vinha
somente de Álvaro, Jorge era bastante agressivo com Álvaro, especialmente depois que se tornou
adolescente e a diferença de idade não se traduzia mais em uma diferença de tamanho. Jorge era
bastante alto e encorpado, Valter era mais esguio, fisicamente eles são bastante diferentes.
Celso e Lara também tinham conflitos no casamento, Lara não gostava do comportamento
galanteador de Celso e descobriu que ele teve uma filha, que tem a mesma idade de Jorge, com
outra mulher. Aos poucos esse descontentamento de Lara foi se tornando mais “acomodado”,
segundo os relatos que ela fez; os outros conflitos da família acabaram se tornando mais centrais,
demandando mais dela. Ela disse que hoje esse comportamento dele já não a incomoda mais e não
se importa se ele ainda estiver se relacionando com outras mulheres. O casal não tem mais relações
sexuais entre eles. Celso justifica o comportamento de flertar e se interessar por outras mulheres
como algo “natural do homem”. Celso atribui à masculinidade algumas representações,
constantemente dizia que homens não demonstram seus afetos, não choram, se fecham quando não
estão bem, não dividem seus problemas e tem por “instinto” (sic-Celso) procurar mais de uma
mulher.
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Em 2007, Valter começou a namorar Stella. Em 2008 ela foi morar na casa dos pais de
Valter porque estava tendo problemas com sua própria família. Viveu lá por quase três anos, até
que em 2011 eles dois decidiram morar sozinhos. A família de Valter permaneceu bastante
presente na vida do casal, auxiliaram inclusive na compra de eletrodomésticos e na organização
do apartamento novo. Ficaram morando juntos por quase um ano, mas segundo Valter “a
convivência não deu certo” (sic) e ele acabou voltando para casa sem explicar a ninguém detalhes
do que havia ocorrido. Ele dizia que não gostava de falar desse assunto.
O ano de 2010 foi um ano que a família considera bastante difícil, pois a mãe de Lara
faleceu e isso a afetou muito. Quase sempre falar da morte de sua mãe trazia lágrimas a seus olhos.
Dois anos depois, Lara descobriu que tinha câncer de mama. Ela diz que acha que ficou com câncer
de tanta tristeza pela morte de sua mãe. Antes mesmo dela contar para a família sobre o câncer,
Valter relatou que já tinha percebido que algo não estava bem com sua mãe. Ele parece estar
sempre muito atento aos sentimentos da mãe, dizia que percebia quando ela estava triste. Em 2011,
assim que Valter volta para casa, ele começou a “se fechar” (sic-Lara) cada vez mais, fica cada
vez mais no quarto, começou a ler a Bíblia durante quase o dia todo, apenas tomando água, não
querendo se alimentar. Valter não voltou a trabalhar e permaneceu ora mais isolado, ora menos,
durante esses cinco anos. Lara relata que, em 2015, Valter começou “a falar e a rir sozinho no
quarto” (sic) e mesmo quando na presença da família soltava risos “sem sentido” (sic).
Em junho de 2017, Valter começou a falar para a mãe que estava com medo do pai e dos
irmãos e tentou esconder as facas da cozinha de sua casa. Em julho do mesmo ano teve uma briga
que com os irmãos. Álvaro estava agredindo a mãe verbalmente e Valter quis a defender,
começando a agredir fisicamente Álvaro. Jorge tentou apartar, mas segundo os pais, Valter achou
que ele o estava atacando, e começou a agredi-lo fisicamente também. Os três tiveram que ir ao
pronto atendimento. Valter dizia que não gostava de falar desse evento.
Após a briga, Valter foi encaminhado ao CAPS, pela UPA. Compareciam rotineiramente
aos encontros familiares Celso, Lara e Valter. O pai justificava que Jorge não poderia comparecer
por seu trabalho e Álvaro não queria ir ao CAPS. Em um encontro insistimos que os irmãos
viessem, e Jorge compareceu, reforçamos a importância de sua presença, mas ele não retornou.
Valter falava pouco nos encontros familiares e nos individuais. Geralmente permanecia olhando
para algum ponto da parede da sala e só respondia quando lhe perguntávamos algo. Lara
expressava muita tristeza nos encontros, chorava, principalmente pela preocupação que tem com
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Álvaro e Valter. Ela hesita em falar de seus sentimentos, desejos e críticas. Quando Celso
começava a falar ela geralmente se calava. Celso falava bastante em sessão, realizava longos
discursos e contava histórias detalhadamente. Também fazia muitas piadas, no primeiro encontro
familiar disse que se chamava “Gianecchini”. Também realizava muitos elogios às mulheres, fazia
isso também com as psicólogas que acompanhavam o caso. Lara disse que não se importava, que
antigamente não gostava, que já fazia muitos anos que havia se acostumado.
Durante os encontros individuais com Valter ele relatou que realizava meditação
diariamente. Ele se colocava deitado em sua cama, se cobria com o cobertor, deixando-o
perfeitamente alinhado, deixava seus braços colados ao corpo e dobrava os pulsos deixando as
mãos na vertical, retas, com os dedos lado a lado. Aí então fixava seu olhar em sua mão e
permanecia nessa posição por várias horas.
Quando indagados sobre cada filho, os pais relatavam: o pai considerava Álvaro um amigo,
a mãe dizia que ele a preocupava, Celso considera ele o “ícone da casa” (sic), o mais amado e que
ganhava mais atenção. Jorge era o irmão mais nervoso e revoltado segundo os pais, também era
aquele que é letrado, “do mundo” (sic-Celso), era o que “se vira” (sic-Celso). Valter era
considerado o mais caseiro, “é o bebê, é só amor, é o paparicado” (sic-Celso). Valter disse não
gostar de ser chamado de bebê ao ouvir o pai o chamar assim. Lara era considerada por Celso
como a apaziguadora, ela “camufla” (sic-Celso) quando as coisas não estão bem, era a “more da
casa” (sic-Celso), ou seja, a que mandava, era “o espelho, o norte, nada acontece sem ela, ela é
tudo” (sic-Celso). Lara negou essas representações dela. Essa representação de Lara enquanto a
que mandava na casa também apareceu na fala de Jorge, que disse que Álvaro só não foi expulso
de casa ainda porque a mãe não deixava. Celso, Jorge e Valter queriam Álvaro fora de casa, mas
Lara “protege ele” (sic-Jorge). Celso, segundo Lara, era quem cuidava financeiramente da família,
era brincalhão, mas também brigava, era o cabeça, o líder, o pensante, “o que faz funcionar” (sic-
Lara). Celso respondia que a falha estava nele (se referindo ao que considera os conflitos da
família).

Roberto
Roberto nasceu em 1994 (23 anos), morava com sua mãe Rosa (52 anos) e seu pai Pedro
(56 anos), sua irmã Giorgia de 28 anos morava com o marido em outra casa. Pedro trabalhou a
vida toda como pedreiro e mestre de obras, e Rosa como cabeleireira. O casal sempre se orgulhou
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muito de suas conquistas, feitas através de seu trabalho. Hoje possuem uma casa própria e uma
casa que alugam nos fundos de seu terreno.
Rosa e Giorgia sempre tiveram uma relação muito conflituosa, Pedro e Roberto
começaram a ter mais conflitos quando Roberto entrou na adolescência e passou a questionar as
regras e vontades do pai. O pai exigia dele uma postura de “homem” (sic), que trabalhasse e não
usasse drogas (Roberto costuma cheirar gasolina).
Quando Roberto chegou ao CAPS estava com muito medo, dizia que estava sendo
perseguido por gangues, uma de brancos e outra de negros. Estava acontecendo uma guerra entre
as gangues de brancos e negros. E ele tinha “levado a pior porque ora ficava mais branco e ora
mais negro” (sic); quando ficava no sol, ficava mais negro e seu olho mudava de cor e durante o
inverno ficava mais branco. Assim, dependendo do momento, uma das duas gangues estava atrás
dele. Essa foi sua primeira fala quando fiz seu acolhimento individualmente no CAPS, logo depois
dele me contar sobre essa guerra, perguntei sobre sua família, ele disse “ah, a minha família é a
pior possível, porque meu pai é branco de olho azul e minha mãe é negra, e eu fico no meio dessa
guerra” (sic). E de fato essas eram as características físicas de seus pais.
Ele também mencionava bastante uma briga de gangues que teve na sua escola em que viu
um menino de olho azul ser violentamente agredido e que ficou parecendo “carne moída” (sic).
Disse que por um tempo conseguiu esquecer essa cena, mas viu um episódio de “Naruto” que
também era violento e não conseguiu mais esquecer a cena da escola. Começou a ficar com medo
e a falar que haviam pessoas o seguindo, e que as pessoas de olhos azuis ou verdes seriam punidas
(ele tem olhos verdes). Por isso começou a ficar trancado no quarto, a não sair mais de casa e a
aumentar a frequência que cheirava gasolina.
Roberto queria ser “o grande homem”, “o campeão”, aquele que tinha dinheiro para
“comprar carne”. Queria comer e engordar bastante para se tornar “o grande homem”, com uma
“capa de gordura” não sofreria mais ameaças (de outros grandes homens), e que isso traria sucesso
e felicidade para ele. Queria injetar sangue de cavalo em si mesmo para ficar musculoso e grande
como uma “porta”. Temia que se voltasse a frequentar baladas, iria acabar em brigas de gangues.
Segundo ele, se fosse gordo e grande ficaria com preguiça de sair para a balada e iria preferir ficar
em casa, com sua família.
Logo após ter saído do leito do CAPS, Roberto voltou a trabalhar cortando grama. O
trabalho é um aspecto central da vida dos pais, assim era importante para eles que Roberto voltasse
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a trabalhar, insistiam muito em relação a isso. A irmã também percebia essa pressão dos pais em
relação ao seu bom desempenho no trabalho.
Tanto o pai como a mãe tinham dificuldade em acolher o sentimento e dores dos filhos na
história de sua relação com eles. Ainda assim, ambos exprimiam o desejo de terem melhores
relações com os filhos. O pai gostaria de ter uma relação melhor com o filho, e a mãe gostaria de
ter uma relação melhor com a filha. Roberto dizia que não agredia o pai apenas porque temia
“tomar injeção” (sic) novamente (referindo ao dia em que foi levado à UPA pelo SAMU). Falava
sobre ser o grande homem, para não sofrer ameaças mais (de outros grandes homens). A mãe
tentava amenizar e controlar o conflito do pai com o filho. Os pais tinham dificuldade em
compreender a raiva de Roberto e não aceitavam as lembranças que descrevia sobre as violências
do pai, relatavam que não haviam acontecido.

Iva
Os pais de Iva são Caio, que tem 59 anos, e Sofia, que tem 45. Iva tem 24 anos e sua irmã,
Marcela, tem 23 anos. Iva e Marcela tem dois meio-irmãos Juliano de 7 anos (fruto do segundo
casamento de Sofia) e Savio de 11 anos (fruto do segundo casamento de Caio). Caio, depois de
casado com Sofia, começou a expressar ciúmes por ela e aos poucos o casal iniciou conflitos. Caio
bebia e muitas vezes se tornava violento, agredindo verbalmente e fisicamente Sofia. A primeira
filha do casal, Iva, nasceu em 1994, um ano e meio depois nasceu Marcela. Um pouco depois,
Sofia decidiu se separar e foi para a casa de sua mãe. Caio sofreu muito com o término e tentou
diversas vezes se aproximar novamente de Sofia. Sofia voltou a trabalhar e iniciou uma graduação,
“queria recomeçar a vida” (sic). Caio não gostou dessa retomada de Sofia e a criticou muito por
isso, argumentando que não queria essa vida para suas filhas, e que, portanto, queria a guarda das
filhas. Sofia relatava que diante de todo esse conflito e a falta de tempo para manejar o trabalho,
os estudos e cuidado com as filhas, resolveu as deixar morando com o pai.
Caio voltou a casar, e sua esposa tinha muitos conflitos com as meninas. As duas irmãs
passaram então a sofrer violências verbais por parte da madrasta e violência física e verbal por
parte do pai. Elas relatavam que o pai, quando bebia, ficava muito agressivo, e exemplificaram
relatando um dia que ele chutou Iva na barriga quando ela já estava caída no chão. Caio não negava,
mas dizia que as três (Sofia e as filhas) exageravam bastante as situações. Sofia voltou a rever as
meninas alguns anos depois e as levava para sua casa em alguns finais de semana. Quando as irmãs
73

entram na adolescência, a mãe descobriu as violências que elas sofriam, então as convidou para
morar com ela. Marcela aceitou, mas Iva permaneceu com o pai. Em 2014, Iva fez um intercâmbio
para fora do Brasil, relatou ter passado por um período de “depressão” (sic). Apaixonou-se nesse
período por um menino e uma menina, mas não conseguia escolher entre um ou outro. Em 2016,
Iva precisou trancar a faculdade porque o pai não conseguiu mais pagar a mensalidade. Marcela
permaneceu fazendo graduação e trabalhando.
Iva chegou ao CAPS encaminhada pela UPA. Foi até a UPA porque sofreu um acidente de
carro em que, ao dirigir, sentiu que precisava deixar suas emoções a guiar e fechou os olhos, nisso
bateu em outro carro. Iva chegou à UPA dizendo que era filha de Deus e que tinha conexões
mentais com os outros, falando diferentes línguas, algumas que não reconhecíamos. Estava
bastante falante, conversando com todos do CAPS. Na época, Iva morava com o namorado há dois
anos; depois do acidente o namorado revelou à família que ela estava com comportamentos
diferente do usual já há algum tempo, além disso também não estava tomando banho, tinha
dificuldade para dormir, fazia bastante uso de maconha e álcool. Desde março, a família percebeu
um afastamento maior do que o comum da parte de Iva.
Desde o primeiro encontro familiar, Iva relatou que era muito estranho ver sua família junta
no mesmo recinto, pois desde a separação de seus pais ela nunca tinha visto a mãe e o pai num
mesmo local. Iva falava que sua família não a compreendia, queria que ela fosse algo que ela não
era, pedia por aceitação e amor. A família negava seu discurso, dizendo que ela tinha amor e tinha
aceitação. Aos poucos, Marcela e Sofia começaram a expressar que, na verdade, o pai era o único
que não aceitava Iva, mas que ela não deveria se importar, era o jeito dele, elas o ignoravam e que
Iva deveria também.
Uma via encontrada para auxiliar a família a escutar o que estava sendo dito por Iva foi
investigar como Marcela se sentia em relação a sua família. Quando Marcela começou a contar
sobre a história da família, o sofrimento que ela e Iva passaram durante a infância e adolescência,
o discurso de falta de amor e de não aceitação foi sendo mais aceito pela família. Inicialmente o
pai e a mãe negavam igualmente o que estava sendo dito. Mas, aos poucos, foram se abrindo para
essa possibilidade de escuta, especialmente a mãe, mesmo não aceitando o que estava sendo dito;
o pai permanecia vindo nos encontros, mesmo escutando tudo o que as filhas e a esposa tinham
para falar sobre seus atos de violência.
74

Durante o período em que Iva ficou no leito do CAPS seu namorado terminou com ela,
então ao receber alta do leito Iva foi morar com o pai. Nos dois encontros familiares seguintes Iva
relatou muito sofrimento diante das agressões verbais do pai. Perguntamos a eles se haviam
alternativas de locais em que Iva poderia ficar. A família teve que fazer uma grande mobilização,
especialmente emocional, para que pudesse ir morar com a mãe e a irmã. Foi um processo difícil
para a família, porém muito transformador como pudemos observar pelos seus relatos. Sofia pôde
oferecer nesse momento para Iva, o que ofereceu a Marcela quando ela foi para sua casa, amor e
acolhimento, relações e interações que até então não tinha tido por parte dos pais.

Thaís
Thaís era uma jovem de 23 anos, vivia com a mãe, Vilma (54 anos) o pai, Jean (64 anos),
um irmão chamado Marcos (24 anos) e outro chamado Michael (16 anos). Thaís tinha mais dois
irmãos, Miguel (36 anos) que vivia em outra cidade e Mario (34 anos) que vivia em outro país.
Thaís estudava em uma universidade federal, a primeira de sua família a frequentar uma
universidade, gostava de música coreana e de passar tempo com o namorado (que tinha há 3 anos).
Thaís dizia não ter muitos amigos, então passava a maior parte do tempo em casa ou com o
namorado. Antes de entrar no curso que escolheu, iniciou outros dois cursos em outras
universidades federais, mas não se identificou com eles.
Vilma a acompanhou, desde o primeiro dia que veio ao CAPS. Vilma trabalhou por muitos
anos como diarista e estava trabalhando em uma panificadora, mas teve que sair para cuidar de
Thais quando as crises pioraram. Vilma falava de Thaís com muitos elogios. Jean trabalhava como
vigia. Ele não compareceu em nenhum dos encontros familiares, Vilma justificou que era por causa
de seu horário de trabalho. Vilma e Thaís o descreviam como alguém não muito presente em casa.
Certa vez quando Jean foi para outro país, a trabalho, por três meses, perguntei a elas se estavam
sentindo falta dele e elas responderam que não fazia muita falta, não viam muita diferença. Vilma
também relatou que ele brigava muito com Marcos e que isso a entristecia.
Quem pagava a maioria das contas da casa era Mario (aluguel, luz e internet). Mario
trabalhava em outro país com reciclagem de lixo, ele é considerado por Thaís como “muito
metódico” (sic) e Vilma relatava que ele mandava em Marcos e na família quando moravam na
mesma casa. Marcos era usuário de drogas há 10 anos, tinha um histórico de várias prisões por
roubo e por agressão contra a mãe. Ele era bastante violento com a família, verbalmente e
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fisicamente (especialmente com Vilma e com Thaís). Thaís o considerava “uma desgraça” (sic) e
Vilma relatava que “ele não é bom” (sic). Thaís dizia ter muita raiva do irmão, não falava mais
com ele, a presença dele na casa a deixava muito nervosa. Vilma elogiava muito Thaís, dizia que
as palavras que a definiam eram “amor” (sic) e “dedicada aos estudos” (sic). Michael compareceu
em alguns encontros familiares, ele era tímido, falou pouco, apenas quando a palavra era
direcionada a ele. Thaís o considerava folgado, mas dizia que se dava bem com ele. Vilma relatava
que ele era “quietinho” (sic), tinha alguns problemas na escola, mas ela dizia que ele era obediente.
A partir de 2007, Vilma voltou a trabalhar, nesta época Thaís ficava em casa com o irmão,
eles brigavam muito, ela era agredida por ele verbalmente e fisicamente. O episódio que ela relata
que mais a marcou foi em 2013 (ela estava com 19 anos) em que Marcos a agrediu com muita
violência. Foi nesse mesmo ano que ela realizou sua primeira tentativa de suicídio. Outro episódio
bastante marcante para a família é a tentativa de homicídio que Marcos realizou contra a mãe, em
2009. Em 2009 ele a ameaçou com uma faca, Vilma teve que fugir pela janela, por essa tentativa
ele foi preso novamente. Na época em que acompanhamos o caso Marcos não mais agredia
fisicamente Thaís, ela dizia que achou uma forma de lidar com suas agressões; quando ele
começava a se exaltar, ela ameaçava ligar para a polícia, aí ele então se acalmava.
O primeiro contato de Thais com um serviço de saúde mental foi através do psiquiatra da
universidade. Mas em pouco tempo abandonou o tratamento. Seus próximos contatos foram na
UPA, que a encaminhou para o CAPS. Em nosso primeiro encontro, Thaís e sua mãe relataram
estar muito aflitas e haviam ido ao CAPS, através de um encaminhamento do Pronto Atendimento,
em busca de tratamento. Vilma pedia pelo internamento, Thaís tinha medo do internamento, mas
gostaria de receber tratamento. Ela já havia iniciado alguns processos terapêuticos, já fazia
acompanhamento com psiquiatra, mas nunca deu continuidade aos tratamentos os interrompendo
dentro de poucos meses. Thaís chegou em agosto de 2017 no CAPS, mas já havia estado lá em
março do mesmo ano, mas também não havia dado continuidade no tratamento no início do ano.
Um dos temas que Thaís mais trazia era de sua relação com seu irmão Marcos. Sua fala
sempre era carregada de muita raiva, e este era o sentimento que mais ela expressava em relação
a ele. O que nos chamou a atenção é que nos momentos de crise, Thaís se auto-agredia, quebrava
objetos de sua casa ou agredia fisicamente sua mãe; porém não agredia seu irmão Marcos, pelo
qual relatava sentir muita raiva.
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Thaís trancou a faculdade um pouco antes de vir ao CAPS, disse que era porque precisava
de um tempo para se cuidar, e tinha medo de entrar em crise na sala de aula. Thaís e Vilma
descreviam o cotidiano de Thaís depois que ela saiu da faculdade como sendo ela no quarto o dia
todo, geralmente dormindo. A mãe levava a comida para ela no quarto. Em alguns momentos Thaís
começava a sentir muita raiva e quebrava objetos em sua casa, se auto agredia, saía correndo de
casa, agredia sua mãe ou tentava se matar, tomando medicamentos, por exemplo. Algumas vezes
ela dizia se lembrar desses momentos, em outros não. Vilma chegou a levar Thaís na UPA quatro
vezes em uma semana.

Lucas
Lucas tinha 21 anos, e na época em que realizamos o acolhimento morava com sua mãe
Ariane de 43 anos, seu pai Rubens de 51 anos e seu irmão Juca de 16 anos. Lucas tinha o ensino
médio completo e não trabalhava.
No primeiro contato que tivemos com Lucas, ele falou da preocupação que tinha com sua
família, que se sentia muito pressionado em casa e culpado por não conseguir trabalho. Dizia que
tentava ajudar os pais que estavam em uma crise financeira e emocional, mas que por isso ficou
muito angustiado, a ponto de desmaiar no banho. Temia que eu mexesse com as emoções dos pais
e que isso “pioraria a situação” (sic). Dizia apenas que queria ficar em paz com seu pai, com ele
trazendo dinheiro para ele e o visitando enquanto ficava no leito do CAPS.
A família percebeu mudanças em Lucas a partir de 2015, após ter ido a uma festa com o
primo. Após esse evento, ficou nove meses praticamente isolado em seu quarto. Ele começou o
acompanhamento através do ambulatório do NASF, período em que começou a tomar Risperidona
3 mg, mas parou de usar porque a família estava voltada ao problema de saúde de seu pai, que teve
uma série de ataques cardíacos.
O primeiro contato de Lucas com os serviços de saúde mental foi em julho de 2016 em um
CAPS AD, porém após o acolhimento foi encaminhado para o CAPS III. Nesta época Lucas estava
fumando cerca de 30 cigarros de maconha por dia, ingerindo um litro de álcool por dia e três
gramas de cocaína a cada três dias, segundo seu próprio relato. Tinha muito medo, exemplificava
dizendo que tinha medo da cadeira ou de se levantar. Sentia que um demônio havia invadido seu
corpo.
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Lucas chegou ao CAPS através da UPA; o SAMU foi chamado a sua casa porque em uma
briga com a mãe e bateu nela, como ele já tinha um histórico de um momento de crise anterior, ele
foi levado ao CAPS. Neste dia ele estava tomando banho, a mãe reclamou da demora no banho,
ele pediu sabonete para ela e ela não trouxe. Lucas disse que ficou muito nervoso e “apagou”, não
lembra de nada depois disso. A família relata que ele saiu do banho e agrediu a mãe, o pai separou
os dois. Ariane ficou bastante machucada e também teve que ir no pronto atendimento.
No primeiro encontro com a família Ariane discorreu sobre a dificuldade de dar limite para
Lucas, assim que ele entrou na adolescência, diziam que ele não ouvia a mãe e ela disse que foi
desistindo aos poucos. Lucas foi o primeiro filho do casal após um aborto e houve muita
expectativa em relação à maternidade por parte da mãe, segundo seu relato. A família desconfiava
muito de Lucas, diz que ele já mentiu muito para eles, já roubou dinheiro de casa. Lucas ficava
muito irritado ao ouvir o pai falar sobre o que esperava dele e suas reclamações, em um encontro
disse que teve vontade de jogar a cadeira. Ariane se sentia com medo do filho, e muitas vezes dizia
“coloquei o freio de mão” (sic), em relação as discussões com o filho, o que significava que ela
não o confrontava mais.
O casal entrava muito em conflito em relação à educação de Lucas, a mãe era quem
costumava dar os limites a ele e o pai tinha dificuldade em exercer essa tarefa, segundo relato de
ambos. Ariane ressentia muito o marido por não a defender, por não dar segurança a ela diante do
filho. Assim, no mês de julho Ariane foi ficar na casa dos pais, junto com Juca, pois em um
confronto com Lucas sentiu medo e disse que não iria mais apanhar.

2.3.2. Que tipo de atenção às primeiras crises foi realizada nesses casos?

A partir dos casos descritos, apresentamos nesse subitem as ações que foram realizadas
durante a pesquisa. A terapêutica proposta abarcava o acolhimento que era realizado com o sujeito
e sua família, os encontros familiares, os individuais e as conversas realizadas com a equipe.

2.3.2.1. Acolhimento e compreensão do sujeito, da família e da crise

Era comum que o primeiro contato com o sujeito fosse feito pela equipe do CAPS. Só
sabíamos que havia algum caso de primeira crise do tipo psicótico (ou pelo menos havia a suspeita
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de um caso como esse) após eles entrarem em contato conosco. Ao sermos informados sobre o
caso íamos até o CAPS, caso o sujeito estivesse no leito, o marcávamos um encontro junto com a
família na mesma semana. Em alguns casos conversamos primeiro com o sujeito em outros casos
com o sujeito e sua família. Isso ocorreu porque 3 dos 5 casos permaneceram no leito assim que
chegaram ao CAPS, e ficaram durante algumas semanas. Nestes casos, nosso primeiro contato foi
com o sujeito e depois foi marcado um acolhimento junto com a família. De qualquer forma, havia
sempre o acolhimento do sujeito com a sua família, mesmo que posteriormente a uma primeira
conversa individual com o sujeito. No momento do acolhimento do caso, nos apresentamos e
explicamos a pesquisa, apontando a compreensão de que o momento de crise não diz somente de
um sujeito, mas de todo um grupo de pessoas mais próximas, frequentemente familiares, que
também muitas vezes se encontram em crise naquele momento, e que por isso estávamos lá para
dar suporte a todos.
Nesse primeiro momento, tentávamos escutar todos os presentes, acolhendo suas
representações, sentidos e vivências. (Silva e Costa, 2013) Buscávamos possibilitar a fala dos
presentes, para que todos pudessem ser ouvidos; era comum que apenas um ou dois membros da
família falassem mais, e muitas vezes que falassem pelos outros, sobre vivências e sentimentos
dos outros, inclusive. Tentávamos, ao longo do encontro, direcionar perguntas aos outros membros
também, buscando compreender suas vivências e sentidos.
Isso era importante porque o foco do trabalho girava em torno das representações, sentidos
e vivências desse sujeito e de sua família, de suas histórias, de seus conflitos e crenças. O ponto
de partida era a compreensão do fenômeno em si, das relações sujeito-mundo estabelecidas, que
estão ali para serem compreendidas e não explicadas, de acordo com a fundamentação
fenomenológica que adotamos. (Husserl, 1907/1986, 1913/2006, 1929/1992, 1935/2006,
1910/1965)
Buscou-se considerar a pessoa em crise como um sujeito ativo e concreto, e não um objeto,
um doente a ser tratado. Necessitou-se para isso que todos os membros, sujeitos, familiares e
profissionais, pudessem dialogar sobre suas recíprocas posições e opiniões. Toda a atuação foi
pautada em um movimento de constante atenção ao contexto, sentidos, necessidades e potenciais
do sujeito. A cada passo que se deu, se verificou antes se aquilo fazia sentido ao sujeito que está
sendo atendido, ou se era uma ação pautada nos pressupostos ou preconcepções do terapeuta do
que seria melhor para o paciente. (Basaglia, 2005)
79

Utilizamos como base, o acolhimento implicado, utilizado pelo GIPSI. Silva e Costa
(2013), descrevem que esse acolhimento integra diversas dimensões: individual, familiar, rede
social, psiquiátrica, ocupacional e institucional. O enfoque está nos

(...) caracteres afetivos que envolvem a dimensão da angústia vivenciada, quais


laços emocionais ainda estão mantidos e quais foram rompidos, as crenças
envolvidas na manutenção ou rompimentos dos laços emocionais, quais são os
sentimentos relacionados à crise (p.170).

Buscamos compreender a crise e seu contexto, assim como a percepção do sujeito e da


família de quando começaram a notar mudanças ou diferenças. Além da influência do grupo
GIPSI, temos essencialmente a fundamentação da fenomenologia. Através dela nos aproximamos
dos fenômenos que são apresentados no acolhimento sem direcionar nosso olhar investigativo
apenas para a identificação de sintomas, visando a compreensão geral sobre o sujeito, seu contexto,
sua família e outras relações sociais. Não há uma pressuposição anterior de como será realizado o
acolhimento, já que ele é adequado e esculpido às necessidades do sujeito e sua família.

2.3.2.2. Encontro familiar

Entende-se a família a partir de uma definição de Costa (2013) que a considera como uma
configuração vincular íntima na qual há um sentimento de pertencimento; nesse relacionamento
estão envolvidas escolhas, limites, regras, papéis e demais fatores que propiciem ao indivíduo uma
forma própria de se relacionar diante das relações sociais. A escolha pelo atendimento familiar foi
determinada pelo entendimento da importância do papel da família na construção das relações que
o sujeito estabelece com o mundo.
Um dos objetivos dos encontros familiares era sustentar as falas e expressões do sujeito em
crise buscando compreender seus sentidos junto com o sujeito e sua família. Era comum que a
família desconsiderasse parte do (ou todo o) discurso e outras expressões do sujeito em primeiras
crises, representando-os apenas como sintomas que nada diziam a não ser da presença de uma
doença; o que é compreensível, já que representamos, enquanto sociedade, algumas expressões no
momento de crise enquanto sintomas de uma doença, e como tal, apenas algo negativo que deve
80

ser extirpado, evitado. Assim a fala do sujeito em crise, que muitas vezes para a família não tem
sentido, é confuso, “delirante”, logo, é um discurso que deve ser evitado, negado. Assim, havia
um esforço da dupla que auxiliava no encontro familiar em sustentar que o que o sujeito estava
dizendo (expressando de forma verbal ou de outras formas) era importante de ser escutado e
compreendido.
Enfatizamos que essas expressões não se dão apenas na fala, pois essa não é a única forma
de expressão e comunicação humana. Assim, mesmo o silêncio pode comunicar algo. Podemos
pensar isso nos casos de catatonia da mesma forma. O que a “não ação” ou o silenciar do sujeito
diz? Podemos exemplificar isso com o caso de Valter. Valter foi diagnosticado no CAPS como
um esquizofrênico catatônico. Os pais de Valter apresentaram, como os momentos de sua crise,
quando ele ficava no quarto o tempo todo, parava de se alimentar e, além disso também
estranhavam suas risadas “sem motivo aparente” e suas desconfianças a respeito das outras
pessoas. Inicialmente, os pais entendiam esses fenômenos como sintomas de uma doença, assim
procuraram tratamento no CAPS. Porém ao longo do processo de acompanhamento do caso, Valter
deu nome a esse momento de “meditação”, inclusive meditava também durante os encontros
familiares quando ficava olhando para a parede e só falava quando era perguntado algo a ele.
Buscamos então, compreender juntos, o sentido da meditação na vida de Valter, no contexto de
sua vida, de suas relações.
Buscamos assim compreender os sistemas envolvidos no processo de sofrimento, trazendo
o ambiente/contexto mais próximo à compreensão sobre o sujeito e a crise. A crise não é uma
vivência individualizada. Busca-se recolocar a crise em um contexto complexo a qual pertence: “a
complexidade das situações de crise não pode ser lida como um dado isolado e a própria
compreensão é redimensionada em processo, na continuidade da relação” (Nicácio e Campos,
2004, p.76). Dell’Acqua e Mezzina (1991) apontam a condição da crise como uma complexa
situação existencial. Assim, igualmente complexos devem ser os recursos e instrumentos para sua
atenção. A crise é compreendida como um evento histórico, do qual não é possível sua redução ou
simplificação.
Um exemplo disso foi o caso de Roberto, que dizia querer ser o grande homem, queria ficar
do tamanho de um poste e da largura da porta, por isso andava comendo muito e falando sobre
fazer uma transfusão de sangue de um cavalo para ele mesmo em busca de ficar mais forte e maior.
Inicialmente a resposta do pai a esse seu discurso era “Para de falar besteira” (sic). Nosso esforço
81

estava em apontar o quanto aquele projeto de “ser um grande homem” parecia importante para
Roberto, e que estávamos tentando entender a importância disso em sua vida. Roberto discorria
como observava que na rua haviam sujeitos muito grandes, “do tamanho de postes” (sic), como
seus primos que eram muito altos e largos, e que ele precisava ser assim também para poder se
defender na rua. Roberto se sentia em constante perigo, falava que haviam pessoas atrás dele para
o matar, assim como fizeram com um garoto de sua escola (se referindo a uma briga de gangues
que houve em sua escola).
Aos poucos, ao tentar compreender como se davam as relações naquela família, Roberto
começou a discorrer sobre as violências do pai para com ele, o excesso de trabalho desde pequeno
(que não era exigido de sua irmã), as agressões físicas; mas especialmente, o que mais o
incomodava atualmente era a exigência do pai de que ele trabalhasse. Inicialmente ele negava esse
pedido do pai. Mas depois de alguns meses começou a falar que ia então ser o grande homem,
arrumando um emprego para comprar coisas para a casa, carne (ele dizia que precisava comer
muita carne para ficar grande - o pai reclamava que ele comia muita carne pois era cara), para ter
uma esposa. Esse discurso começou a surgir também na mesma época que começou a namorar
uma garota que frequentava o CAPS.
Quando perguntamos que grandes homens ele conhecia, ele mencionou seus primos e com
relutância “ah, esse aí também” (sic) – apontando para seu pai. Ao perguntarmos o que faziam
deles “grandes homens” ele discorre sobre o tamanho (seu pai é alto), e sobre as responsabilidades
do pai, que já tinha comprado uma casa para a família, coisas para a casa, tal como um
liquidificador, e cuidava da sua esposa. Aos poucos, os temas trazidos por Roberto nos encontros
passaram de muito medo dos homens que o perseguiam para muita raiva de seu pai. Eles brigavam
bastante em casa, um dos maiores motivos é que seu pai não gostava que ele cheirasse gasolina.
Em uma dessas brigas Roberto agrediu seu pai, o que fez com que este o expulsasse de casa. Junto
com a família e Roberto, fomos percebendo que muitos dos conflitos que Roberto temia em relação
às gangues tinha relação também com os conflitos vividos em casa. Um exemplo disso era a ideia
de virar um “grande homem” que estava relacionada também às expectativas e exigências do pai
em relação a vida de Roberto. Não queremos, com esse exemplo, reduzir a complexidade do
projeto de Roberto de se tornar um grande homem com apenas um fato, uma fala, uma relação,
mas sim apontar para a necessidade de descobrir junto da família os sentidos das falas e expressões
do sujeito em crise.
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Outra questão que exemplifica o trabalho realizado com as famílias é em relação à


compreensão de que o sujeito em crise não é o único a ser olhado, por isso a necessidade dos
encontros familiares. Como mencionamos no breve relato de Roberto, ele chegou ao CAPS com
muito receio de ser morto em uma briga entre uma gangue de brancos versus uma gangue de
negros, ele estava em meio de uma guerra que estava acontecendo. Logo depois, ao indagarmos
sobre informações de sua família, ele menciona o fato de seu pai ser branco e sua mãe negra, e ele
estar no meio de uma guerra. Essa “guerra” era presenciada nos encontros familiares, que eram
sempre bastante conflituosos, e as desavenças eram entre Rosa e Giorgia, Pedro e Roberto. Assim,
o enfoque não estava apenas em Roberto nos encontros familiares, inclusive houve encontros que
a relação entre mãe e filha foi o mais discutido, outros apenas com o casal, para que pudessem ser
discutidas questões dessa relação com mais privacidade. Na relação do casal também havia muitos
conflitos, chegando a s cogitar o divórcio em um desses encontros. Assim, buscamos abordar todas
essas relações, não apenas Roberto.
Outro tema de grande relevância, ao mencionarmos a proposta de atenção realizada é a
questão do cuidado compartilhado. Realizamos nos encontros familiares conversas a respeito de
negociações na adequação do contexto familiar para dar conta de um momento de crise.
Compartilhar o cuidado também é olhar para o ambiente, para o contexto da família, auxiliá-los
na reflexão sobre como prover ao sujeito um ambiente adequado a este cuidado, dentro das
possibilidades dessa família. Um exemplo disso é o caso de Iva.
Como mencionamos na descrição do seu caso, ao sair do leito, inicialmente Iva foi morar
com o pai porque o namorado havia terminado com ela. Porém, o pai de Iva a criticava muito, não
gostava dos seus amigos, os chamava de “drogados” e “vagabundos” (sic), dizia o mesmo do ex-
namorado de Iva, porém ela ainda gostava muito dele e isso a fazia se sentir triste. Certa vez, Iva
comentou que adorava tomar sorvete em uma praça de Curitiba, o pai disse que era uma “praça de
vagabundos e drogados” (sic). O pai também não aceitava a orientação sexual da filha. Iva relatava
muito sofrimento diante das agressões verbais do pai.
Durante o encontro familiar perguntamos se haveriam alternativas de locais que Iva poderia
ficar. Inicialmente a mãe e a irmã colocaram vários impeditivos a Iva morar com elas, mas aos
poucos, juntos, conseguiram organizar essa possibilidade, que era a desejada por Iva. O pai teve
bastante dificuldade em aceitar essa possibilidade. A mãe e a irmã tiveram que se mobilizar para
arranjar espaço na casa e na vida dela para Iva. Esse processo de adaptação de todos durou várias
83

semanas. E nestas, um encontro em particular foi bastante emocionante. Iva tinha fumado maconha
e bebido, havia prometido a sua mãe que não o faria. O pai nunca mais foi no encontro após esse
acontecimento, não queria ver a filha, e a mãe de Iva estava muito chateada. Em dado momento
do encontro, Marcela começou a contar como foi para ela quando foi morar com a mãe pela
primeira vez, em sua adolescência. Ela relatou que “aprontou muito” (sic), mas percebeu que sua
mãe permanecia ali amando-a, e que Iva iria aprender também que ela e sua mãe estariam ali para
ela também. Todo esse processo, desde a mobilização de toda a família na crise de Iva, até a
adaptação do convívio dessa família foi um processo que nos pareceu essencial para a vida de Iva
e de sua família. Iva nunca tinha tido o convívio com a mãe, perdeu o convívio com a irmã na
adolescência, e nunca tinha confrontado o pai sobre suas agressões. Foi um processo de
transformação de todos. Com o passar desse processo, a crise de Iva foi se transformando e
amenizando.
Aqui observamos a importância do cuidado com o ambiente e das relações, como seria se
Iva permanecesse com o pai? Ou como Iva ficaria se nada do seu ambiente mudasse, se voltasse a
morar com o namorado, usando drogas todos os dias, isolada, sem contato com a família ou planos
para seu futuro? Para nós que acompanhamos o caso, ficou claro que naquele ambiente de
convivência apenas com o pai, Iva estava piorando; acreditamos que era provável que ela
retornasse ao leito do CAPS se o ambiente em que ela estava morando continuasse o mesmo. Neste
exemplo, podemos observar que o compartilhamento do cuidado exige também uma atenção a este
ambiente e contexto. Não se trata apenas de delegar a família esse cuidado sem dar a eles suporte.
Costa (2003) alerta: “a dinâmica inserida em certas situações familiares pode contribuir
para a perpetuação e manutenção de uma característica já definida de doença em um membro da
família e, desta forma, à produção de cronicidade” (p. 123). Segundo o autor, a compreensão
sistêmica auxilia nesse alargamento da compreensão de crise, entendendo, quaisquer fenômenos
enquanto cadeias conectadas. Não há indivíduos isolados, mas pessoas ligadas a vários sistemas,
pertencentes e criadoras de relações, sentidos, vivências múltiplas e compartilhadas.
O formato dos encontros familiares foi se modificando ao longo da pesquisa, a partir das
necessidades do campo, das reflexões que realizávamos e de novos materiais e grupos que
realizavam atenção às primeiras crises. A início da realização dos acompanhamentos familiares
foi baseada no GIPSI e, a partir de julho de 2017, também passamos a incluir a experiência do
grupo Diálogo Aberto. O grupo Diálogo Aberto (Open Dialogue) foi criado na Finlândia por
84

Jaakko Seikkula. O diálogo aberto funciona a partir de sete princípios: (1) resposta imediata; (2)
inclusão da rede social; (3) flexibilidade e adaptação a necessidades específicas e variáveis em
cada caso; (4) tomar responsabilidade, (5) garantir continuidade psicológica, (6) tolerância à
incerteza e (7) dialogicidade. (Seikkula & Arnkil, 2006).
Nossa postura era não-diretiva, compreensiva e não-hierárquica, buscando trabalhar a partir
dos sentidos e vivências trazidos pelas famílias e pelo sujeito. Trabalhamos com os familiares que
estavam dispostos a participarem e buscar encorajar e nos aproximarmos daqueles que ainda não
tinham se engajado no processo de cuidado. Na abordagem do diálogo aberto o foco não está
necessariamente em modificar a lógica do “sistema familiar”, mas sim em criar um espaço de
possibilidade de ampliação de sentidos. Os terapeutas não estão preocupados em descobrir formas
de comportamento e comunicação de cada família. Busca-se compreender a construção da família
em relação a realidade. A família é compreendida como um agente ativo no processo, mas não
como a “causa da psicose”, mas como potenciais parceiros no processo terapêutico. (Seikkula,
Aaltonen, Birgittu, Haarakangas, Nen, & Lehtinen, 2006)
Alguns projetos de intervenção precoce, como de McGorry (1999), compreendem a psicose
como um transtorno mental e propõe abordagens psicoeducacionais à família, nas quais explicam
o diagnóstico e o plano de tratamento previsto a partir deste. O diálogo aberto se foca na situação
de crise e o processo de construção de planos de tratamento juntamente com o sujeito e sua família.
(Seikkula et al, 2006). Segundo Seikkula (2011), não há planejamento dos encontros propostos
pelo Diálogo Aberto, o planejamento do tratamento é constantemente revisitado dependendo das
necessidades do sujeito e da família. O terapeuta não é o responsável por iniciar ou incitar a
mudança na família, busca especialmente facilitar o diálogo para que todas as vozes possam ser
escutadas.
Também questionamos, ao longo da pesquisa, nosso enfoque apenas na família.
Compreendemos que seria interessante ampliar essa rede de cuidado para pessoas próximas, não
necessariamente apenas familiares. O formato desse cuidado familiar foi se modificando ao longo
da pesquisa, sendo influenciada pela lógica de atendimento do Diálogo Aberto.
A proposta de cuidado do grupo deve ser flexibilizada aos sujeitos envolvidos. Não há uma
aplicação genérica do grupo. Há uma parceria criada entre a família e os profissionais no
compartilhamento das decisões e do cuidado. Colocando a centralidade das decisões no sujeito e
sua família. Percepções dos profissionais frente à situação observada durante os encontros e
85

possíveis contribuições são apresentadas não como prescrições que devem ser acatadas pela
família, mas como recursos e informações que podem ser significadas pela família e pelo sujeito
dentro de suas possibilidades.
Ao se trabalhar com crise é importante que o profissional possa garantir o maior nível de
segurança possível diante a situação, utilizando recursos da própria rede social e do indivíduo ao
máximo. Esse tipo de acompanhamento não está centrado na doença, mas em auxiliar os sujeitos
envolvidos a lidarem com seu momento de crise. As abordagens de cuidado centradas na doença
geralmente se preocupam em diminuir ou retirar sintomas o mais rapidamente, assim a medicação
é utilizada o mais breve possível. O que o grupo Diálogo Aberto coloca é que muitas vezes, ao
remover os sintomas, são removidos também os recursos psicológicos. Como vimos
anteriormente, é no momento mais intenso da crise que os discursos aparecem, e que muitas vezes
ao cessar os sintomas, cessam também importantes informações sobre o caso.
O principal objetivo não é a promoção de mudanças no sujeito ou na família, mas sim
promover o diálogo, a mudança é um processo secundário. Busca-se facilitar o processo de
compreensão e agenciamento da situação pelos próprios membros envolvidos. O grupo do diálogo
aberto utiliza o conceito de dialogismo de Bakhtin; entende o diálogo como um aspecto central da
vida humana, como um espaço de embates que refletem as interações sociais, a intersubjetividade.
Durante o espaço de diálogo, os embates intersubjetivos podem ser acolhidos, repensados,
ressignificados, através da compreensão dos fenômenos em questão. O diálogo como tal não se dá
apenas na forma da verbalização, mas está em todas expressões dos sujeitos, incluindo então suas
ações e interações não-verbais também.
Há muitas “vozes” em um diálogo, não apenas aquela do sujeito que fala, mas daquela
família, de seu contexto cultural e histórico, de suas diversas interações com o mundo. Até mesmo
no sujeito que cala há uma voz que ressoa. Todos esses aspectos mencionados influenciaram na
construção do processo de atenção às primeiras crises do tipo psicóticas propostos nesta pesquisa.
Buscamos possibilitar o diálogo entre os encontros, garantindo voz a todos. Buscávamos sustentar
a importância de cada fala ou ação, incluindo que mesmo o que a família considerava como
“sintoma” contia sentidos que deveriam ser escutados, mesmo no silencio ou na catatonia haviam
coisas sendo ditas. Um pouco diferente do Diálogo Aberto, buscávamos tentar nos aproximar dos
familiares que não queriam comparecer nos encontros ou mesmo que a própria família não queria
que comparecesse, tentávamos reafirmar a importância de todas as vozes serem ouvidas e todas as
86

perspectivas acolhidas, quando mais perspectivas tínhamos sobre a família e a situação de crise
mais ricas eram as compreensões sobre cada caso. Também entendíamos que nosso objetivo
primeiro não era o de retirada de sintoma, mas de compreensão sobre a crise. O desaparecimento
ou diminuição do sintoma poderia ser uma consequência do movimento de compreensão da crise,
ou mesmo o sintoma permanecia já que não se entendia o que muitas vezes era considerado como
“sintoma”, enquanto tal, muitas vezes aquela expressão era necessária ou importante à vida do
sujeito.
Ao final do processo de pesquisa também percebemos a necessidade de estar mais
presentes no acompanhamento dos casos e de haver mais profissionais envolvidos. Percebemos
que o acompanhamento uma vez por semana do encontro familiar e outra vez para o encontro
individual foram insuficientes em alguns casos. Entendemos que a proposta do Diálogo Aberto de
um acompanhamento mais presente, especialmente nos momentos iniciais é de suma importância.
Além disso, poderíamos ter utilizado mais a RAPS, termos mais atores acompanhando cada caso,
muitas vezes permanecíamos apenas com os profissionais do CAPS que estavam envolvidos no
caso.

2.3.2.3. Encontros individuais

O acompanhamento individual se dá pelo entendimento da importância de uma escuta


atenta aos sentidos e vivências do sujeito, em um formato em que este se sinta confortável, um
ambiente confiável, para que possa se sentir à vontade para tanto. Muitas vezes isso não é possível
em um grupo terapêutico ou em uma reunião familiar. No encontro individual podemos
compreender a dimensão individual da crise. O que não retira o mérito do atendimento grupal, que
também possui potenciais que não se encontram no atendimento individual. Muitas vezes é no
próprio encontro em grupo que o sujeito se sente mais à vontade, isso irá variar de pessoa a pessoa.
Assim, um não substitui o outro.
É um momento criado para auxiliar a compreensão do profissional sobre o caso, mas
especialmente como um momento oportuno para um conhecimento e cuidado de si, um se ocupar
de si mesmo, dedicar-se ao cuidado consigo mesmo. Buscamos auxiliar o sujeito se colocar nas
melhores condições possíveis, para que ele – enquanto sujeito vivente – atue, aja (Holanda, 2011)
87

Uma atitude considerada importante nesse processo era a da curiosidade, a de buscar


conhecer. Assim, através da postura compreensiva, procurou-se conhecer e compreender o sujeito,
sua vida, sua família e as vidas de cada um, seu contexto social, seu contexto de crise e/ou
sofrimento. No modelo explicativo, a atuação e conhecimento são dirigidas à clarificação do
princípio causal. Nessa postura, a patologia ou o sintoma são apenas efeitos, resultados dessas
etiologias. Porém, Manganaro nos alerta que “entre causa e efeito não há qualquer relação de
significado” (Manganaro, 2006, p.89). Segundo Laing (1973):

Que se pede de nós? Que o compreendamos? O cerne da experiência esquizofrênica


de si mesmo permanecerá incompreensível para nós. Mas a compreensão na forma
de esforço para alcançá-lo e agarrá-lo, permanecendo embora dentro de nosso
mundo, julgando-o segundo nossas próprias categorias, diante das quais ele
inevitavelmente fracassa, não é o que o esquizofrênico deseja ou exige. Precisamos
reconhecer todo o tempo sua singularidade e diferenciação (p. 20).

Podemos exemplificar com o caso de Thaís. Ela relatava que sentia muita raiva e tristeza.
Mas não conseguia descrever com mais detalhes esses dois sentimentos. Não sabia de que sentia
raiva ou porquê se sentia triste. Era como se esses sentimentos não estivessem conectados às
pessoas ou às situações. Um dos nossos objetivos durante os encontros foi compreender um pouco
melhor a ligação desses sentimentos a sua vida. Thaís em vários momentos dizia que não aguentava
mais se sentir dessa forma e que só conseguia pensar em se matar para acabar com esses
sentimentos ruins. Aos poucos, Thaís foi conseguindo trazer mais conteúdos e sentidos atrelados
a essas vivências. Podemos notar isso em seu relato sobre os encontros individuais. Quando
questionamos Thaís sobre o que fez mais sentido de todo o processo de cuidado que foi oferecido,
o que foi mais importante para ela do processo, ela mencionou que foram os encontros individuais.

Thaís: Quando comecei a vir com Alice [nome fictício, psicóloga que realiza dos
encontros individuais com Thaís] comecei a desabafar mais, para mim foi muito
importante porque eu sou uma pessoa muito reservada e tenho dificuldade de
expressar sentimentos, até com meu namorado eu não consigo, sou muito trancada
falar sobre minha vida e com Alice eu tô tendo mais de liberdade desabafar.
88

Não havia filiação a alguma abordagem psicológica no encontro individual, cada


psicólogo que acompanhava o caso individualmente seguia seus próprios aportes teóricos; porém,
nas conversas e supervisões refletíamos juntos sobre as premissas do projeto, de acompanhar ao
invés de tutelar os casos, não deixar as teorias à frente do sujeito e seus sentidos, sobre uma postura
compreensiva e não explicativa, e sobre compreender o caso num contexto da vida como um todo
do indivíduo e seu contexto social-familiar.

2.3.2.4. Outros acompanhamentos

Além dos encontros individuais e familiares haviam diferentes grupos disponíveis para a
participação no CAPS, porém, apenas Roberto e Iva participaram de algumas oficinas e grupos
que o CAPS oferecia. Thaís não queria participar de nenhuma atividade no CAPS pois não gostava
de lá estar, achava as pessoas “muito estranhas” (sic), dizia que elas a assustavam. Assim,
acabamos auxiliando e facilitando atividades e acompanhamentos também fora do CAPS. Thaís,
por exemplo, atualmente está fazendo orientação vocacional, pois irá voltar a faculdade e não tem
certeza de que este é o curso que ela quer fazer. Além disso, investigamos com ela atividades que
ela gostaria de voltar a fazer ou que teria desejo de iniciar; por um tempo ela conseguiu voltar a
estudar japonês, algo que a agradava bastante.
Iva começou o cursinho para tentar o vestibular no final do ano de 2017. Valter e Roberto
começaram a trabalhar. Como mencionado no primeiro capítulo, nas primeiras crises é comum
que muitos aspectos da rede social do sujeito ainda estejam preservados, assim é possível investir
em atividades para além das oferecidas pelo CAPS, enredadas no cotidiano e no território do
sujeito. Entendemos que a experiência de crise não está descolada da vida. Ela faz parte dela,
dentro de uma infinidade de aspectos que completam o “quadro” da existência de uma pessoa.
Assim, também a proposta de atenção deve estar conectada com a vida e as necessidades de cada
sujeito.
Dell’Acqua e Mezzina (1991) relatam que o acolhimento às crises, nos Centros de Crise da
Itália, se dá de forma particular a cada caso, sem intervenções pré-constituídas ou mesmo “equipes
especiais” de intervenção, já que esta pode ser feita por qualquer pessoa que trabalhe no centro.
Quando possível, eles preferem que esse acolhimento seja feito em lugares da vida do paciente,
89

como sua casa, por exemplo, utilizando também intermediários, que seriam as pessoas
significativas para ela. Os autores salientam que a simples disponibilidade de “ir ao encontro” da
pessoa é extremamente benéfico. Outros recursos de acompanhamento da crise mencionados são
atitudes simples como telefonemas, envolvimento de outros sujeitos (amigos, líderes religiosos)
ou mesmo de um encanador, por exemplo, que pode auxiliar em aspectos mais práticos que
igualmente irão auxiliar no cuidado à saúde mental do sujeito e de sua família ou conviventes. Os
autores apontam que, para compreender a realidade de vida do sujeito atendido é importante
verificar: “onde vive, onde dorme, o que come, com quanto dinheiro vive, com quem se encontra,
quem está a sua volta, onde trabalha” (Dell’Acqua e Mezzina, 1991, p.70). Questões da
materialidade da vida são igualmente importantes na atenção à crise. Dell’Acqua e Mezzina
(1991):

Na nossa experiência, a reconstrução da história através dos múltiplos momentos


de contato e de conhecimento entre o serviço e a pessoa, nos seus locais de vida,
com a rede das suas relações, com os seus problemas materiais e concretos, tende a
colocar a crise no interior de uma série de eixos que são capazes de torná-la
compreensível (não de explicá-la), de dar um senso à crise e, enfim, de recuperar a
relação entre as valências de saúde, os valores de vida e a própria crise (p. 56).

Antes de aspirar a uma resolução de conflitos no cenário privado (familiar ou microssocial),


tentando chegar a uma rápida normalização do sujeito, como é comum nas estratégias de “crisis
intervention”, a resposta à crise no serviço territorial é preferencialmente voltada a conectar, a
colocar em contato o paciente com um sistema de relações e de recursos humanos e materiais
(Dell’Acqua e Mezzina, 1991). Costa (2007) afirma que não há como pensar em mudanças internas
e individuais sem uma perspectiva de atravessamento e relação interioridade-exterioridade. A
mudança depende de relações, encontros, recursos, condições favoráveis, não há como pensar
nessas condições sem contar com os outros. Em trabalho anterior (Puchivailo e Holanda, 2016),
verificou-se que o profissional que trabalha no CAPS, muitas vezes se volta a um discurso que
olha apenas a doença, e não a vida como um todo. O que pode gerar ações que se voltam apenas
ao sofrimento humano, e nada mais.
90

A fala de nossos colaboradores de pesquisa nos provocou a pensar sobre a


necessidade de se tratar 9 da vida como um todo e não apenas da doença ou do
sofrimento. E demonstraram em suas falas que isso não apenas era importante, mas
essencial ao seu processo de encontro de sua saúde. Será que não somos nós que
ansiamos pela “fala do sofrimento”. Será que somos nós que temos “fome” de
apenas água e comida? São os usuários que criam grupos terapêuticos que falam
apenas de sofrimento e doença, ou somos nós mesmos? (Puchivailo e Holanda,
2016, p. 78)

Busca-se ampliar a compreensão do fenômeno das primeiras crises do tipo psicóticas, dessa
vivência do sujeito e daqueles que o rodeiam. Não como uma urgência médica, que exige uma
ação do profissional especializado, único conhecedor das causas do momento de urgência e cuja
agilidade visa remediar, curar, parar o momento da crise/urgência em busca de um retorno à
normalidade. Esse tipo de ação é assertiva em situações referentes ao corpo humano, mas quando
abordamos a dor e o sofrimento que não são apenas do corpo, esse tipo de intervenção pode deixar
escapar os sentidos singulares do sofrimento dessa pessoa e de seu contexto, apresentados por esse
momento de crise. A crise se torna então mais do que uma dor ou uma situação patológica a ser
rapidamente sanada, mas especialmente um momento de oportunidade de compreensão de uma
situação de vida, de um contexto. Há uma urgência na escuta de um sofrimento, de uma situação,
que pode não estar sendo escutada, entendida, observada. Mas não é só o profissional da saúde que
deve ter essa escuta, mas justamente aqueles envolvidos na situação de crise. Cabe então ao
profissional ser aquele que não só escuta, mas que ajuda o outro a escutar. Uma ação que exige
uma desconstrução das formas de conhecer e de interagir com a situação de crise, da loucura, do
sofrimento humano.

9
Tratar aqui não como cuidar de uma doença, mas com o significado de conversar, discutir, trocar ideias.
91

2.3.2.5. Conversas com a equipe

As conversas e discussões a respeito dos casos também foram essenciais durante o


processo. Buscávamos compartilhar o cuidado, entendendo que diferentes pontos de vista
complementariam o trabalho um do outro. Nossas conversas com a equipe aconteciam de duas
formas: uma na reunião semanal com os profissionais que estavam envolvidos na pesquisa, e outra
de informalmente em conversas que aconteciam na sala de equipe ou na cozinha. Nesses
momentos, debatíamos os casos com terapeutas ocupacionais, psicólogos, assistentes sociais,
enfermeiros, psiquiatras, com as pessoas envolvidas no caso ou que haviam tido contato com o
sujeito ou sua família aquela semana. Lidou-se com múltiplos profissionais, com diversas formas
de pensar e isso é interessante na atenção à saúde mental com sua especial complexidade de casos.
Assim, a fenomenologia proporcionou essa postura integrativa, na qual foi possível dialogar sobre
os casos negociando possibilidade de ação. Essas conversas eram extremamente produtivas tanto
para o acompanhamento do caso, como para a pesquisa, já que nesses momentos os profissionais
discorriam sobre o funcionamento do CAPS, do SUS ou SUAS, das representações a respeito das
primeiras crises do tipo psicóticas, dentre outros temas.
Porém, nem sempre essa diversidade era fácil de se lidar. Tínhamos no CAPS, a
coexistência de diferentes compreensões do fenômeno das primeiras crises do tipo psicóticas. A
maioria dos profissionais considerava que o diagnóstico de esquizofrenia, muitas vezes fechado
no momento das primeiras crises, ou mesmo na primeira crise, representava uma condição
permanente na vida do sujeito. Assim, o discurso com os familiares era o de que seu filho ou filha
iria sempre ter que utilizar medicamentos, e como resposta a isso, era comum que alguns familiares
negassem tal afirmação e não continuassem o atendimento, outros aceitassem tal “sentença” e logo
entrassem com o pedido para a aposentadoria. Muitas vezes os profissionais do CAPS discordavam
de tal pedido, entendendo desnecessário, considerando esse sujeito como ainda “producente”.
Porém, parece coerente esse movimento dos familiares diante da “sentença” recebida.
Percebemos assim, que a apresentação de um diagnóstico é algo que impacta na vida do
sujeito, e muitas vezes, de uma forma negativa. Especialmente no caso das primeiras crises,
entendemos que apresentar o diagnóstico de esquizofrenia é algo a ser considerado com cautela,
já que, usualmente está atrelado a um mal prognóstico. Assim, torna-se não apenas uma forma de
compreensão daquele fenômeno, mas principalmente uma “sentença”, dada a alguém, na maioria
92

das vezes ainda jovem (as primeiras crises do tipo psicótica costumam se apresentar durante a
juventude).

2.3.3. A experiência de participação na pesquisa dos familiares e do sujeito em crise

Ao final da pesquisa realizamos entrevistas com as pessoas em primeiras crises do tipo


psicóticas e seus familiares. Nessas entrevistas, eles discorreram sobre como foi a experiência de
acompanhamento realizado em nossa pesquisa. Avaliamos os resultados de nossas intervenções a
partir das falas dos sujeitos e familiares, e de nossas percepções ao longo dos encontros familiares,
especialmente porque estes eram realizados pela própria pesquisadora; assim, os resultados
poderiam ser melhor observados.
Gostaríamos de pontuar que todos os casos continuam em atendimento, mas iremos pontuar
algumas repercussões observadas. Após a análise das entrevistas, alguns pontos principais foram
levantados: mudanças nas relações familiares, mudanças na pessoa em primeira crise do tipo
psicótica, mudanças na compreensão sobre a crise, críticas ao CAPS e ao projeto.

2.3.3.1 Impactos nas relações familiares

Ao final do processo, percebemos, através das falas da família de Roberto que o impacto
dos encontros familiares não se deu apenas para o indivíduo, mas para todos os membros da
família.

Giorgia (irmã de Roberto): Então pra mim na época foi bem difícil né, porque eu e
a mãe a gente tinha um relacionamento toda vida bem difícil mesmo de muita briga
de uma não aceitar as ideias da outra, daí de tão difícil que era pra mim daí eu
quis parar né, depois assim de tudo que aconteceu esse ano, aí pelo jeito ela voltou
lá conversou com alguém, e daí começou a mudar né aí ela falou ela começou a
mudar e começou a entender coisas que era difícil pra ela e acredito sei lá eu acho
que ela mudou o jeito de repente de me ver que eu perguntei coisas para ela depois
que ela me surpreendeu com as respostas.
93

Giorgia relatou na entrevista final da pesquisa que sua relação com sua mãe mudou muito.
A relação entre Roberto e o pai também se modificou bastante. Roberto relatou que não sente mais
raiva do pai. Giorgia, ao final da entrevista, aponta para o fato de que ela sentou ao lado da mãe
no sofá, e o pai ao lado do filho, ela lembrou que nos encontros familiares isso nunca acontecia,
sempre esses pares sentavam separados.

Rosa (mãe de Roberto): Eu classifico assim, até as palestras, e depois das


palestras, porque a nossa cabeça era muito, esse mundo isolado é meu, pronto e
acabou. Hoje não, ele deu uma, ampliou um pouco, o diálogo corre mais tranquilo
sobre quase todas as coisas, porque dá a impressão que cada um queria ter o seu
mundo isolado, eu vou ser assim, você fica de lá. Sendo que família não cabe isso,
porque até uma dor de barriga que um tem o outro tem que acudir, e eu criei eles
com esse pensamento, se um tiver um ai ai o outro vai socorrer, pode tar brabo de
cara virada, vai socorrer [...] Para mim isso é família, precisou, você tá ali.

Rosa aponta para a mudança que percebeu em relação ao diálogo, discorre que antes era
como se cada um estivesse em seu mundo isolado, com suas verdades, e o exercício dos encontros
familiares permitiu compreender o lado do outro, facilitou esse diálogo. Rosa ainda traz uma
definição de família bastante interessante: família são aqueles que quando precisamos de ajuda
estão presentes. Neste caso, durante o acompanhamento do caso de Roberto, a família esteve
disposta, teve dificuldades ao longo do caminho (no final do ano de 2017 inclusive pararam de ir
aos encontros familiares), mas não deixaram de estar presentes nos momentos de maior crise, e a
partir desses momentos conseguiram se transformar.

Rosa (mãe de Roberto): Foi um amadurecimento da família posso dizer, essas


crises para chegar até lá, aquela picuinha, aquela coisa toda, tudo isso tem um
porquê [...] Ajuda profissional foi de muita valia, abriu a cabeça de todo mundo,
clareou a mente.
94

Celso e Lara – pais de Valter – comentaram que inicialmente estranhavam ter que ir ao
CAPS falar e não ouvir um direcionamento sobre o que deveriam fazer. Mas com o tempo foram
percebendo que falar, ouvir e presenciar também eram importantes para o processo.

Celso (pai de Valter): Às vezes só da gente falar, é tão importante, e a gente não
percebe isso. Porque o ser humano ele é tão imediato né, eu te falo, Ah, mas eu
quero uma resposta para minha doença já, agora, mas não é assim que funciona,
muitas vezes a cura está na alma. Às vezes a cura não é química, a cura está na
alma, é quando a gente vem e vai falando, falando, falando, ou ouvindo, ouvindo,
ouvindo ou mesmo presenciando.

Iva e sua família também relataram que consideravam importantes os encontros familiares,
principalmente em relação ao auxílio com os conflitos, ao possibilitar um espaço em que a família
conversasse, conseguisse se abrir. Isso acontecia mesmo havendo conflitos durante os encontros,
como pontua a família.

Marcela (irmã de Iva): Eu achei que estava segurando mais a barra, sabe? Porque
eu acho que a gente falava tudo lá e não chegava em casa...
Caio (pai de Iva): São coisas que tinha que se abrir e não falava, no dia-a-dia não
falava.
Marcela: Quando estava na terapia a convivência era melhor. Quando largou,
começou mais a...
Sofia (mãe de Iva): ... degringolar.
Marcela: Eu achei mesmo que quando a gente fazia, tinha mais tempo, ajudava a
segurar a barra, assim.
Sofia: Por mais que se cutucasse, mas envolvia, né? Por mais que tivesse os
conflitos, eu acho que mesmo assim, eu acho que a gente se abraçava mais. [...]
Iva: Eu via que tinha muito conflito, porque um falava uma coisa, o outro fingia
que era... sei lá, estava jogando pedra um no outro. Até eu mesma. Mas eu acho
que isso ia sendo quebrado, então, tinha uma sessão aqui, rolou um conflito, mas
na próxima a gente já tentava resolver aquilo. E eu via que ia melhorando de uma
95

pra outra, que as pessoas iam se entendendo melhor. Conseguiam falar,


conseguiam mostrar o seu lado e o que sentiam. Eu acho que as pessoas
começaram a se compadecer mais também. Eu senti isso.

Nosso objetivo principal não é o de modificar as relações familiares, já que não temos o
pressuposto prévio do que sejam as relações familiares que estejam “adoecidas”. Mas percebemos
que com os encontros familiares essas relações iam sendo melhores compreendidas por nós
mesmos e pelos membros daquela família. Além disso, como consequência, também havia
transformações naquelas relações. Muitas vezes, diante do contexto, a própria família entendia
essas transformações como uma necessidade que se apresentava.

2.3.3.2 Impactos na pessoa em primeira crise do tipo psicótica

Nas entrevistas finais foram relatadas algumas mudanças na pessoa que tinha tido a crise.
Para a família de Roberto essa mudança veio apenas após seu internamento em um hospital
psiquiátrico de Curitiba.

Pedro (pai de Roberto): ele saiu de lá com um pensamento totalmente diferente,


porque antes aquela vez que ele foi internado no CAPS, ele não me chamava mais
de pai, a mãe de vez em quando ele chamava a mãe de mãe, ele chamava de Rosa
e de Pedro, ou qualquer coisa, a sua mulher. Agora depois desse internamento, lá
no hospital já começou a me chamar de pai de volta, ele me surpreendeu daí, depois
que ele veio para casa no dia 4 de abril, que eu jamais vou esquecer essa data, ele
me chamou de pai. [...] Ele não tinha raiva só do pai, ele tinha do pai, da mãe, a
irmã ele falava que não era irmã dele, hoje a cabeça dele mudou.

Roberto: Passou, agora tô mais tranquilo eu vi que não precisa ter medo, agora to
mais tranquilo, já tenho saído passear.

Iva relata que percebe mudanças em sua vida, em relação ao período em que entrou em
crise.
96

Iva: Eu me sinto bem melhor na verdade desde dezembro, sinto que não tenho mais
depressão, consigo fazer as coisas tô trabalhando agora que me ajudando muito
ter uma rotina tudo isso me ajuda de mais, comecei faculdade [...] eu vi que eu
melhorei muito, o CAPS me ajudou muito, que ter um acompanhamento lá foi muito
importante pra eu melhorar, pra eu conseguir ir me reerguendo, tudo isso foi muito
válido pra mim, então me ajudou. Eu consigo ver a Iva quando estava lá, falando
nada com nada. Eu não lembro exatamente, assim, de tudo, mas minha mãe contou
coisas, a Marcela, o pai. E eu vi como eu melhorei, tipo, eu saí... depois que eu vim
pra cá, eu não consegui escrever, eu tremia, de ir no médico e tudo. E hoje eu
consigo fazer tudo, assim. Então foi muito importante mesmo, pra mim. Foi bem
legal.

A mãe de Thaís também percebe mudanças nas crises da filha. Antes ela se agredia,
quebrava objetos em casa, agredia a mãe, saía correndo ou escondida de casa e não se recordava
onde estava. Hoje a mãe relata que essas crises acabaram, porém ficou a vontade da filha de morrer,
a tristeza e o desanimo. Além de uma ampliação na compreensão da Thaís sobre si mesma e sobre
sua família, também percebemos que ela também se tornou mais consciente em relação às suas
crises.

Thais: Hoje eu tenho mais percepção, eu até percebo quando eu vou ter crise. Eu
comecei a tremer dentro do cinema, mas eu consegui assistir o filme todo, eu
comecei a passar mal no final do filme, eu saí do cinema, tive que tomar meu
remédio, meu namorado teve que me ajudar, eu não parava de tremer, ficava
ansiosa, passei muito mal, só que antes eu passar mal, eu percebi que eu tava tendo
alguma coisa, muito ansiosa, afobada.

Podemos perceber nesses casos que as mudanças não são fruto apenas das intervenções
realizadas por esta pesquisa, mas um conjunto do tratamento que foi ofertado também pelos
profissionais do CAPS, e nos casos de Thaís e Roberto, do hospital psiquiátrico. A experiência de
internamento foi positiva para ambos, Thaís relata que preferiu o internamento no hospital
psiquiátrico do que no leito do CAPS.
97

Thais: Quando eu fiquei internada [leito do CAPS] no caso foi mais difícil, porque
eu ficava o dia inteiro à toa, sem fazer nada, era tedioso, angustiante, ficar sem
nada para fazer, só o lado ruim foi assim mesmo, de resto foi bom, fui bem atendida
até lá no hospital, fui bem atendida, não posso reclamar.

Thaís relatava que no hospital ela tinha mais atividades para fazer, em oposição ao CAPS,
quando ela estava no leito. Apesar de haverem oficinas acontecendo no CAPS, Thaís não queria
participar de nenhuma delas, as atividades ofertadas pelo CAPS não pareciam fazer sentido para
ela. Thaís não gostava de participar das atividades do CAPS, faltava bastante, e em contrapartida
nos atendimentos individuais e familiares que eram ofertados na PsicoFAE (clínica escola da
FAE), ela raramente faltava.
Em nosso caso, num primeiro momento, Thaís e sua mãe requisitavam o internamento, e
nós tentamos manejar seu atendimento no próprio CAPS, entendendo que talvez pra Thaís que
nunca tinha tido um internamento em um hospital psiquiátrico, essa poderia ser uma experiência
aversiva e prejudicial a ela. Porém percebemos que estávamos erradas, o internamento no hospital
psiquiátrico foi importante para ela. Hoje ela não requisita mais o internamento como fazia
anteriormente, mas fala muito bem dessa experiência. Entendemos que esse período de
internamento foi importante para ela e para sua família.
Mas isso não é similar a todos; Valter, por exemplo, prefere as atividades em grupo no
CAPS do que os encontros familiares e individuais.

Valter: Fez sentido em algum momento. Os acompanhamentos com o grupo ali


embaixo [grupo de TR]. [...] a descontração, não só desconstração, mas
entendimento, foi bom para mim.
Pesquisadora: Como foi participar dos encontros de família?
Valter: Se tivesse a opção de não vir no lugar desse, eu optaria por não vir. [...]
Ah, todo esse lugar esse lugar aí, esse lugar para pessoa louca né. Eu não sou
louco, não cheguei a esse nível sabe, no máximo que eu tenho uns tiques nervosos,
por causa de uns idiotas que eu tive que arrebentar a cara [...] meus irmãos, uns e
98

outros no colégio, prefiro não lembrar assim, desses duas situações, fora o treino,
treino na academia de Muay-Thai.
Pesquisadora: Por isso que a gente tenta trabalhar com as primeiras crises
diferente [...] Porque de fato você é diferente das pessoas que estão aqui há muitos
anos tendo crise, é uma situação diferente, e daí às vezes fica esquisito de estar no
mesmo lugar de pessoas muito diferentes de você.

Isso nos leva a refletir sobre o fato de que não é um terapeuta, um local, uma forma de
atendimento que é “melhor”, cada sujeito vai ter uma necessidade diferente, e vai vincular melhor
com uma forma de atendimento. Assim, entendemos que talvez a postura mais proveitosa seja
aquela que escuta e busca compreender juntamente com o sujeito quais essas melhores formas de
ofertar atendimento.

2.3.3.3 Mudanças na compreensão sobre a crise

Para Thaís também houve mudanças na percepção que ela tem a respeito de seus
sentimentos e o entendimento sobre eles.

Thais: Antes eu não compreendia muito bem que estava acontecendo comigo, eu
tenho pensamento suicida desde os 17 anos, eu só queria acabar com angústia que
eu estava sentindo, a tristeza, queria acabar com isso mas eu não tinha percepção
que eu tinha depressão e eu precisava de tratamento, tanto que eu procurei
tratamento só há dois anos atrás.

Apesar do grupo não ter falado com Thaís sobre nenhum diagnóstico, no CAPS e no
hospital psiquiátrico que Thaís ficou internada esses diagnósticos devem ter sido mencionados.
Para nós o mais importante é que Thaís tem começado a se interessar em entender o que está
acontecendo com ela, os sentidos relacionados às suas crises, a primeira representação que
possibilitou essa aproximação da busca por sentidos foi o termo depressão, mas temos buscado
aprofundar mais a compreensão de sua experiência para além de um diagnóstico.
99

Para alguns de nossos participantes, os sentidos atribuídos pelos familiares ao que estava
ocorrendo e pelo sujeito em crise eram bastante diferentes. Como no caso de Valter.

Pesquisadora: Por que você veio ao CAPS?


Valter: Ele falou que eu tava com problema psicológico.
Pesquisadora: E o que você acha que isso significa?
Valter: Ah não tenho nem ideia.
Pesquisadora: E por que você continua vindo ao CAPS?
Valter: É porque eu não realizei meu sonho né. Meu sonho é ser um lutador de
kung-fu, ser um mestre de exemplo, sabe.
Pesquisadora: Como seria ser um mestre de exemplo?
Valter: Não participar, não ir para o bar beber e depois entrar em confusão.
Pesquisadora: Como você conseguiria alcançar esse teu sonho?
Valter: No momento só Jesus voltando.
Pesquisadora: Tem algo que a gente possa fazer para tentar facilitar esse seu
sonho?
Valter: Que eu pense assim não.
Pesquisadora: Você começar a lutar kung-fu, fazer essa atividade, seria um passo
em direção alcançar esse sonho?
Valter: Sim.

Para a família, Valter tem uma “problemática” no cérebro, uma doença. Valter até
menciona que entende que está no CAPS porque seu pai disse que ele tem um “problema
psicológico”, apesar de não saber o que isso significa.

Celso (pai de Valter): Como disse a doutora pela manhã, pode desenvolver como
uma hipertensão, pode desenvolver isso como uma diabetes, é uma coisa que
aparece, não é uma coisa que a gente procura, do organismo, a problemática do
cerebelo, isso aí é um mistério; o transplante do coração, a gente faz o transplante
do rim, do fígado, e do cérebro? Não tem como.
100

Quais as repercussões da compreensão de que a experiência de Valter se trata de uma


doença no cérebro? Celso busca compreender o que está acontecendo com seu filho, quando o
profissional introduz o significado da experiência de Valter como uma “doença mental” que se dá
assim como qualquer outra doença do corpo. Presume-se que o tratamento é o mesmo, intervenção
médica, medicamentos. É isso o que a família precisa prover, dentro dessa lógica, nada mais.
Porém, no caso de Valter o medicamento não traz muitos efeitos, não modifica sua condição. Aí o
pai vem com a fala “isso aí é um mistério” e “não tem como” (sic), ou seja, se é uma doença e o
tratamento medicamentoso não está gerando resultados satisfatórios, o cenário não parece positivo.
Ele começa a demonstrar uma desesperança em sua fala. A ideia de que Valter ficará da forma
como está para o resto de sua vida começa a se tornar uma realidade na cabeça de sua família. Essa
lógica acaba dificultando a abertura da família para a compreensão dos sentidos da crise de Valter,
uma compreensão sobre sua vida e formas diferentes, para além do medicamento, de o ajudar.

2.3.3.4 Questionamentos a respeito da proposta de atenção e do CAPS

Pedro trouxe uma crítica em relação ao trabalho realizado em conjunto com o CAPS e a
pesquisa. O pai de Roberto entendeu que o período em que ele ficou no leito do CAPS foi muito
curto, e por isso não o ajudou. Apenas após o internamento no Hospital Psiquiátrico ele percebeu
uma melhora em Roberto.

Pedro (pai de Roberto): Ah foi incompleto né Mariana, não foi completo como eu
queria, incompleto é que o internamento dele foi muito curto, aí ele voltou
praticando as mesmas coisas que praticava antes, daí você sabe o que aconteceu
em setembro do ano passado, e eu então não tenho que dizer, aconteceu daí ele tá
meio fora da cabeça, a cabeça dele tava muito ruim, daí que ele chegou a me
agredir. Como eu já tinha falado quando ele recebeu alta do CAPS, a mãe até me
repreende por eu falar igual eu falei quando ela me ligou me dizendo que ela e ele
estavam vindo embora, quando ele recebeu alta, daí eu falava para ela, eu fiquei
triste dele estar vindo para casa com tão poucos dias de internamento, porque,
porque eu sabia que com 15 dias não ia solucionar o problema que estava se
101

passando. O doutor não conhecia o comportamento dele aqui dentro de casa, o


doutor conhecia dos poucos dias que ele ficou lá.

Aqui Pedro ainda aponta uma questão importante, a falta de diálogo entre ele e o psiquiatra
que deu alta do leito para Roberto. Através de sua fala podemos perceber que ele sentiu que sua
experiência provinda da convivência com Roberto em casa não foi levada em conta. Essa
incompletude que Pedro aponta também diz da desistência da família em continuar os encontros
familiares, especialmente da frustração com sua esposa em relação à saída desse atendimento. A
primeira a parar de ir aos encontros foi a irmã de Roberto, pois segundo seu relato, os momentos
de conflitos eram muito difíceis para ela. Argumentamos que poderíamos abordar isso nos
encontros, mas ela não voltou a participar. Em setembro Roberto agrediu o pai, por isso foi expulso
de casa, passando a morar então sozinho em uma casa que os pais costumavam alugar. Depois
disso Roberto parou de frequentar o CAPS, aos encontros individuais e familiares; a mãe que
também reclamava muito dos atendimentos familiares começou a faltar. O último encontro que
tivemos no CAPS foi com Pedro, que foi até o local alguns dias depois do filho ter agredido ele,
disse que não iriam continuar porque ninguém mais da família estava indo, só ele. Tentamos
contatar novamente os membros da família, mas até dezembro eles não aceitaram voltar. Após
esse período, a pesquisa se encerrou no CAPS e só tivemos contato com eles novamente na
entrevista final.
Podemos perceber também na fala de Rubens (pai de Lucas) essa necessidade de maior
comunicação dos familiares com os profissionais envolvidos no caso. Assim como, o isolamento
dos familiares de muitos processos de cuidado.

Rubens: Não, é, assim... não... eu não sei o que o médico conversa com o Leonardo,
porque ele não passa pra mim. [...] Você parece que está interessada, está se
interessando, eu não vejo muito interesse, assim, da parte do médico. É até chato
falar isso, mas eu acho que o médico devia conversar com a gente, conversar
comigo: "olha, teu filho tem tal coisa". Que nem a Ariane comentou, falta esse
feedback do médico conosco, parece que o médico só está escutando, o médico só
está escutando o que o Lucas fala, não passa... sabe? Então dá essa impressão,
assim, que eu só sou o motorista da casa. Agora, mais dentro das coisas que estão
102

acontecendo, estão acontecendo, né? Como eu não sei o que o médico conversa
com ele, eu não tenho como opinar o que ele... né? Tanto que eu estou falando mais
com você agora do que todos esses meses todos falando com o médico.

Essa falta de comunicação com os profissionais acaba retirando a possibilidade dos


familiares contribuírem nesse cuidado. Há uma perda em relação a um recurso em potencial de
cuidado, que acaba sendo desperdiçado, um pai disposto a contribuir acaba por se tornar apenas
“um motorista”.
Caio e Iva na entrevista final reltaram que não querem dar continuidade aos encontros
familiares, pois consideram que “não vale a pena” (sic-Caio). Porém, é interessante observar o
diálogo que Marcela faz com seu pai a respeito dos encontros familiares.

Iva: É, acho que não vai funcionar. E, sinceramente, se for pra ver a minha família
e ter encheção de saco... [...] se transforma nisso. Sempre é culpa da Iva que foi
pro CAPS. [...]
Caio: Eu vou falar, sinceridade? Eu acho que não vale a pena
Marcela: Porque você não quer se tratar
Caio: A Iva tem que ...
Marcela: A culpa não é só da Iva
Caio: É a Iva, o problema é ela, desde que deu o surto lá, o primeiro. Eu sei porque
foi o primeiro, o primeiro foi por causa de droga, depois o outro, com certeza
também tinha droga, né?
Marcela: Tudo bem, pai. Ela errou. A Iva errou, ela foi lá, deu o que deu, porque
ela tem uma doença, poderia não ter dado, mas deu. E agora já foi.
Caio: Já foi, não. Mas agora ela, então, que vá ao médico.
Marcela: Ela não pode usar agora. O problema agora é a nossa família. Você não
consegue... você se acha... você tem que pensar, tem que usar teu cérebro.
Caio: Tá, família. Se a Iva não parar de beber, não parar de usar droga, não parar
de ficar nessa de querer só... tem que ir na farra, "eu fui porque eu tinha que
trabalhar no dia seguinte". Se tinha que trabalhar no dia seguinte, não tinha que
ter ido pra balada.
103

Neste diálogo da família podemos perceber algumas perspectivas em relação aos encontros
familiares, para Iva, esses encontros podem ser muito dolorosos pois ela acaba se tornando o centro
das “culpabilizações”. Caio exemplifica isso na fala seguinte, e como compreende que a única
“errada” é a Iva, considera os encontros familiares uma perda de tempo. Nessa fala podemos
exemplificar também um dos motivos porque é difícil conseguir sustenar os encontros familiares,
muitas vezes esse encontros são dolorosos, ou se entende que apenas o sujeito em crise é quem
precisa de cuidados.

2.3.4 Como estão os casos atualmente

Após a finalização da pesquisa no CAPS em dezembro, Thaís parou de comparecer ao


CAPS; em janeiro ficou internada por 30 dias em um hospital psiquiátrico, saiu, mas logo teve que
retornar, teve alta novamente somente em março. Voltou ao CAPS somente em maio, por isso seu
cartão transporte foi cancelado, que teve como consequência faltas de Thaís aos seus encontros
individuais na PsicoFAE. Realizou outra tentativa de suicídio alguns dias depois desse
acontecimento e voltou ao leito do CAPS por seis dias. Thaís voltou a ser atendida por nós, agora
na clínica escola da FAE Centro Universitário, no início de maio. Realizamos reuniões com a mini-
equipe do CAPS que acompanha o caso para que nossas ações permaneçam dialogadas. Ela
continua o encontro individual e o familiar, está fazendo orientação vocacional e em agosto
pretende voltar a seu curso de graduação que havia trancado. Não escuta mais vozes, nem quebra
os objetos em casa, não tem apagões nos seus momentos de crise, mas ainda tem vontade de morrer
e muita tristeza.
Valter atualmente está realizando acompanhamento com o psiquiatra quinzenalmente no
CAPS e o grupo de TR semanalmente. O discurso religioso voltou e ele continua bastante
persecutório. Na última entrevista realizada, ele também trouxe a ideia de ser um mestre em Kung-
fu, algo que não havia mencionado antes. Seu irmão está internado em uma clínica para
dependentes químicos desde abril.
Após a família parar de ir aos encontros familiares, Roberto também parou de ir ao CAPS.
Roberto estava morando sozinho. No carnaval seu pai foi viajar, os vizinhos de Roberto ligaram
para sua mãe porque acharam que algo estava errado. Sua irmã e mãe foram até sua casa, ele não
104

abria a porta, mas sua irmã percebeu que ele estava deitado no chão. Descobriram que ele tinha
colocado fogo em um cachorro, pois, segundo ele, estava com raiva. Após ir até a UPA, ele foi
internado em um hospital psiquiátrico, onde ficou 45 dias. Em maio, voltou a participar no grupo
de sua TR (terapeuta de referência) no CAPS.
Após a família ter parado de comparecer ao CAPS, Lucas tentou retomar o trabalho, mas
teve dificuldades em achar emprego. Pelo relato da família, Lucas parou de tomar os
medicamentos, voltou a ouvir vozes, chorar, dar risadas sem que a família entendesse o motivo,
dizia que a casa era mal-assombrada e que só resolveria a situação se matasse alguém ou se
matasse. Tornou-se agressivo e voltou a ameaçar sua família, havendo um dia que ele ficou com
uma faca passando do lado de fora da janela do irmão. Após esse evento a mãe saiu de casa
novamente, e foi para a casa de seus pais, onde está até hoje. Atualmente Lucas voltou a participar
de suas reuniões do seu terapeuta de referência, sua mãe e irmão saíram de casa, o pai relata que
voltou a tomar seu medicamento, não ouve mais vozes, não está mais agressivo, mas ainda “fala
sozinho”, ainda não voltou a trabalhar.
Iva voltou a trabalhar e passou em um curso de graduação em uma universidade pública.
Relata que se sente muito bem. Porém a família está em conflito, todos os membros concordam.
Em julho saiu da casa da mãe e da irmã por conflitos com a mãe, em uma das discussões elas se
agrediram fisicamente. Está morando atualmente com duas meninas em uma casa próxima a de
sua mãe. Continua tendo contato com sua família. Atualmente ela só permanece com o
acompanhamento medicamentoso, pois não quer fazer outros tipos de acompanhamento. Sofia e
Marcela gostariam de retomar os encontros familiares, devido aos conflitos que vem ocorrendo,
porém, Caio e Iva não consideram que os encontros ajudariam.
Atualmente continuamos atendendo Thaís e a família de Lucas e de Iva demonstraram
desejo de retornar os encontros familiares. Continuamos em contato com a família de Valter e
Roberto, e nos colocamos a disposição para caso sintam necessidade de retomar os encontros ou
qualquer outro auxílio que possamos oferecer.
105

3. PROBLEMATIZAÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

A partir da experiência realizada no CAPS III pudemos refletir sobre algumas questões
referentes à saúde mental e a atenção às primeiras crises do tipo psicóticas. Levantamos algumas
observações realizadas através das conversas com os profissionais, relatos dos atendimentos,
entrevistas e intervisões. Os pontos centrais que surgiram através da experiência de campo e
análise do material coletado foram os seguintes:
- Existe atenção às primeiras crises no CAPS?
Qual a porta de entrada das primeiras crises?
Manejo de situações de crise no CAPS
Quem trabalhava no CAPS tinha experiência ou interesse no campo da saúde
mental? Isso interfere no manejo das primeiras crises?
- Demonstração de interesse pelos encontros familiares
- Há muita demanda de trabalho para os profissionais
Quais casos “ganham mais atenção”?
- Dificuldade em trazer a família para a participação nos encontros familiares
- Reflexões sobre a cultura da centralidade no indivíduo, tutelagem e o modelo biomédico
- Experiência de crise considerada apenas como sintoma: o que perdemos com isso?
- Os profissionais discorrem sobre a pesquisa
- É possível uma atenção às primeiras crises no CAPS III?

3.1 Existe atenção às primeiras crises no CAPS?

No CAPS que fizemos a pesquisa, as primeiras crises estão presentes no serviço; porém,
os profissionais as tratavam da mesma forma como as outras crises. Não havia diferenciação no
acolhimento, no manejo ou na construção de um PTS diferenciado. Isso se torna problemático, na
medida em que temos diversas pesquisas que apontam resultado positivos em relação a
intervenções precoces específicas para as primeiras crises (McGorry, 2015, 2002; Costa 2003,
2010, 2013; Lower et al, 2014; Tsiachristas, Thomas, Leal & Lenox, 2016; Seikkula, 2013).
Entendemos que não há a necessidade de especificar protocolarmente sobre todas as diferentes
particularidades dentro do contexto da saúde mental. Caso houvesse uma escuta atenta às
106

singularidades de cada caso, não seriam necessários “protocolos”, as especificidades já estariam


sendo endereçadas. Porém, como percebemos que não há diferenciação entre primeiras crises, e
pessoas com um longo histórico de crises, precisamos ainda apontar a necessidade de um
acompanhamento específico para esses casos.
Um dos exemplos dessas especificidades é que num primeiro contato com a rede de atenção
à saúde mental, especialmente no CAPS III, um local que atende transtornos mentais graves e
persistentes, a pessoa que está vivenciando uma primeira crise (em sua maioria, jovens e
adolescentes) raramente teve contato com pessoas com transtornos mentais mais graves. Parece
que não levamos em conta que para um jovem, entrar em contato com uma população com
transtornos mentais graves é algo difícil, já que em nossa cultura a loucura esta ligada a ideia de
periculosidade. (Foucault, 1961/1978; Costa, 2007) Temos diversas pesquisas (Martins, 2017;
Oliveira et al 2017; Willrich et al, 2011; Castiel et al 2010; Kondo et al, 2011, Dell’Acqua e
Mezzina, 1991) que apontam que o próprio profissional da saúde atrela a ideia de crise à
periculosidade. Assim, o jovem além de estar passando por um momento de crise, em que muitas
vezes se encontra com pensamentos persecutórios, com medo, confuso, ainda tem que lidar com o
enfrentamento de um ambiente que parece ser hostil (de acordo com as representações que possui
daquele local). Além disso, o sujeito e sua família ainda tem que lidar com a expectativa daquela
poder ser suas realidades em alguns anos, já que a própria compreensão, entre muitos profissionais,
sobre as primeiras crises do tipo psicóticas é que elas são o prenuncio de um quadro crônico de
esquizofrenia ou outros transtornos psicóticos. Representação que discordamos nesta tese assim
como já mencionado.

Valter: Se tivesse a opção de não vir no lugar desse, eu optaria por não vir. [...]
Ah, todo esse lugar esse lugar aí, esse lugar para pessoa louca né. Eu não sou
louco, não cheguei a esse nível sabe, no máximo que eu tenho uns tiques nervosos,
por causa de uns idiotas que eu tive que arrebentar a cara [...] meus irmãos, uns e
outros no colégio, prefiro não lembrar assim, dessas duas situações, fora o treino,
treino na academia de Muay-Thai.

Notamos na fala de Valter algo que também ouvimos informalmente de outros sujeitos da
pesquisa, que são a representação de que o CAPS é um local para “loucos”, e o medo por detrás
107

disso, tanto do sujeito, quanto dos familiares, de que aquele pode ser o futuro do sujeito em
primeira crise. Thaís também reclamava do ambiente do CAPS, expressando medo das pessoas
que frequentavam o CAPS. Quando ficou no leito nos contou que estava com uma senhora no
quarto que não dormia à noite, costumava ficar observando Thaís ao lado de sua cama. Assim,
entendemos que um PTS que consiga utilizar recursos fora do CAPS, dentro do contexto de vida
do próprio sujeito, abarcando seus interesses, seja mais interessante do que construir um PTS em
que o sujeito esteja no CAPS todos os dias ou muitos dias na semana.
Torna-se relevante trabalhar não apenas com o sujeito em primeira crise, mas com outras
pessoas em sua rede social, especialmente sua família. Estudos demonstram que essa ampliação
do cuidado traz resultados positivos (Seikulla et al 2006, 2013, Seikkula & Arnkil, 2006, Costa,
2003, 2010, 2013). Esse tipo de abordagem pode auxiliar na compreensão da crise e possíveis
recursos do sujeito e de seu entorno social em lidar com esse momento.
O diagnóstico em um momento de primeiras crises é algo que também deve ser considerado
com cautela. Na maioria dos casos que atendemos, a expressão da crise não se apresentou de forma
claramente delimitada em um diagnóstico. Ela se apresenta muitas vezes como sutis expressões
que podem ser enquadradas em vários diagnósticos. Notamos que há de fato uma dificuldade em
estabelecer um diagnóstico nestes primeiros momentos. Inclusive tínhamos a variação de
diagnósticos para os casos da pesquisa, dependendo do psiquiatra que atendia o caso.
A maioria dos casos dessa pesquisa deixava os profissionais do CAPS confusos em relação
a seu diagnóstico. Eram constantes as discussões dos casos na sala de equipe, pois eles se
apresentavam de formas muito “imprecisas” (sic), de acordo com a lógica de classificação por
sintomas, aparentemente se enquadravam em diferentes categorias diagnósticas. Isso não foi um
dificultou o manejo realizado na pesquisa. Muito pelo contrário, apenas reafirma a necessidade do
termo “do tipo psicótico”. Trabalhou-se com o sofrimento ou necessidades de cada sujeito, de sua
família, de seu contexto, independente do diagnóstico. A postura terapêutica não oscilava de
acordo com os diagnósticos, mas de acordo com as necessidades e singularidades de cada
sujeito/família.
O momento das primeiras crises ainda é um período de delimitação das formas daquele
sofrimento. As primeiras crises são de fato muito singulares e irredutíveis a delimitações
diagnósticas individuais. Entendemos que as formas de expressão do sujeito em momentos de crise
ou de sofrimento intenso, podem variar e estão em constante transformação, e não como algo
108

permanente ou estrutural. Essas formas de expressão podem se cristalizar ao longo do tempo, até
mesmo por falta de outras possibilidades diante da relação que aquele sujeito estabelece com seu
meio e as disponibilidades do meio em possibilitar outras maneiras do sujeito viver. Mas esta não
é uma premissa, não há uma pré-concepção ao nosso ver de que esta é a única possibilidade do
sujeito se relacionar com seu mundo. Não há, portanto, ao nosso ver um determinismo biológico,
psíquico, social ou familiar fatalista em relação as possibilidades do sujeito.

Profissional C: É importante porque sensibiliza, humaniza, até os psiquiatras, e


teria que ter os profissionais aderirem a isso ter mais cuidado, tirar muito do
médico centrado e começar mais a querer estudar melhor, mas pra isso tem que
ter bagagem teórica, se não fica no achismo ou na repetição, o diagnóstico. O
psiquiatra dá o diagnóstico da ali a pouco tá enfermeira falando que o paciente é
tal coisa. O que me incomoda demais que me atrapalha demais nos atendimentos
é o paciente que passou por tantos diagnósticos que já chega com aquele monte de
diagnóstico, calma, calma, e você aonde está você nisso, quem é você, e eu tenho
muita dificuldade com pacientes assim, porque a maioria já é assim, já vem com
um monte de diagnóstico.

De modo geral uma atenção mas intensificada, próxima e multifacetada nas primeiras
crises pode demandar um maior custo, especialmente de recursos humanos, mas o que demonstram
as pesquisas (McGorry, 2015, 2002; Costa 2003, 2010, 2013; Lower et al, 2014; Tsiachristas,
Thomas, Leal & Lenox, 2016; Seikkula, 2013) é que há um importante retorno a longo prazo, já
que muitas vezes são casos que acabam não cronificando.

3.1.1 Qual a porta de entrada das primeiras crises?

Em relação ao fluxo de atenção às primeiras crises em Curitiba, a maior parte dos casos
entra na rede pela UPA. A partir da perspectiva de um acompanhamento desses casos mais
precoces, o melhor local para perceber os primeiros sinais antes de uma primeira crise seria a
atenção básica. Porém, não é essa a realidade que observamos durante a pesquisa.
109

Casos que já estão em acompanhamento no CAPS são indicados a retornarem a esse mesmo
dispositivo em situações de crise, mas foi percebido que muitos vão diretamente para a UPA em
casos de crise, especialmente nas primeiras crises, em que o sujeito e sua família não estão tão
habituados ao funcionamento da rede de atenção à saúde mental e nem tão vinculados ao CAPS.
O SAMU era um recurso bastante utilizado.
Também presenciamos casos de crise que quando iam buscar auxílio diretamente no CAPS
muitas vezes eram encaminhados a outros serviços, ora pela vinculação em relação ao bairro ou
cidade, ora porque era compreendido que o manejo daquela situação de crise era da UPA. Um
exemplo disso foi um caso de ideação suicida em que a amiga da jovem a trouxe ao CAPS; alguns
profissionais entenderam que ela deveria ir primeiramente à UPA para depois, caso necessário, ser
encaminhada para o CAPS. Nesse dia, houve um debate sobre se haveria algum acolhimento dado
pelo CAPS antes dela ir à UPA (a pedido da amiga, que estava bastante preocupada) ou se ela iria
diretamente para o outro dispositivo. Um dos profissionais então se voluntariou a acolher a jovem
antes de a encaminhar. Segundo o artigo 4.3 da portaria 366/2002, o CAPS III é um serviço
ambulatorial de atenção contínua, mas podemos perceber que na prática, a ideia do CAPS ser um
serviço de “portas abertas” nem sempre é uma realidade.

3.1.2 Manejo de situações de crise no CAPS

Nas situações de crise em que a equipe entendia que havia o risco do sujeito sair do local,
e que neste caso sua vida ou de outros poderia estar em risco, o portão costumava ser trancado.
Também havia uma dinâmica criada pela equipe do CAPS em que em situações de risco de hetero
ou auto-agressão, a equipe tem um combinado de todos (ou pelo menos uma parte) dos
profissionais em serviço permanecer próximos do profissional que está realizando o manejo e
negociações com o sujeito, como uma forma de proteção do colega. Segundo os profissionais essa
foi uma dinâmica construída pela própria equipe a partir da prática vivenciada no serviço.
As contenções físicas ou químicas eram utilizadas quando a equipe não conseguia manejar
a crise de outra forma. Foi observado que havia a tentativa de manejo verbal inicialmente e
negociação de utilização de medicações antes de qualquer intervenção não consentida. Já nos casos
recebidos da UPA, era comum os pacientes chegarem bastante medicados e a informação era de
que as intervenções da UPA costumavam ser mais químicas, sem muita ênfase no manejo verbal.
110

Profissional C: Eu aqui com toda essa visão que eu acho que dá pra gente tentar
manejo crise tem que tentar criar um vínculo com o paciente para manejar crise
eu mesma já tentei, eu já tentei, mas esses dias mesmo, quase três anos aqui, eu
levei um chute do paciente na hora da crise. Mas daí tem a visão, a paciente é meio
psicótica, ela não aprende com a experiência, independente do vínculo que se fez
com ela, lá no momento da fúria, ela age mesmo. Tem essa parte da prática clínica
que você vê que não é instituição assim que tem as mais diversas que é muito no
improviso das coisas que é que você vê que nem tudo se encaixa ali vamos ter a
maior paciência do mundo vamos fazer isso mas tem vezes que você vê que [nem
sempre dá], aham, nem sempre.

A profissional C aponta em seu relato sobre o quanto o manejo de crise exige também o
improviso, e que mesmo com toda a experiência de manejo e informações teóricas, muitas vezes
o manejo não tem o resultado que esperamos.
Presenciamos também o manejo de alguns casos tidos pela equipe como não sendo do
“perfil” (sic) do CAPS. Thaís foi um desses casos que acompanhamos mais de perto. No dia em
que ela chegou ao CAPS, com o encaminhamento da UPA, realizamos o acolhimento junto com
uma das profissionais. Após o acolhimento, a profissional comentou que Thaís não seria um caso
de “perfil” do CAPS, que seria muito mais adequado o acompanhamento dela por uma clínica
escola ou na atenção básica. Percebemos que estes “perfis” estavam relacionados especialmente
aos transtornos de personalidade do grupo B (DSM-V), especialmente o transtorno de
personalidade borderline e o transtorno de personalidade antissocial. Para nós, essa delimitação
não oficial foi de difícil compreensão, como este não era especificamente o foco de nossa pesquisa
não nos aprofundamos no assunto ao longo da pesquisa, mas achamos interessante trazer esse dado
para futuras indagações sobre essa percepção. Talvez se dê por uma compreensão de que as formas
de relação estabelecidas por esses sujeitos, segundo a visão estabelecida no DSM-V, tenham uma
particularidade que aqueles profissionais, naquele contexto, não se sintam preparados para dar
conta, ou não sentem que o ambiente e a dinâmica do CAPS facilitem o manejo destes casos.
Porém, não há fundamentação em relação a essa compreensão a respeito dos “perfis
psicopatológicos” do CAPS. Inclusive, entendemos que isso pode ser prejudicial, já que esses
111

casos podem ser graves e acabam não tendo um acompanhamento adequado, ficar “perdidos dentro
do sistema”.

3.1.3 Quem trabalhava no CAPS tinha experiência ou interesse no campo da saúde mental?
Isso interfere no manejo das primeiras crises?

Muitos dos profissionais que trabalhavam no CAPS, na época da pesquisa, foram


contratados em um concurso para a saúde em 2014, assim, era comum profissionais que tinham
terminado a graduação há pouco tempo e passado nesse concurso. A fala do profissional E expressa
a falta de interesse de alguns profissionais justamente por terem participado de um concurso
generalista, ou seja, que abarcava toda a saúde, e não apenas a saúde mental. Muitos profissionais
não tinham o interesse em atuar na saúde mental quando fizeram o concurso, mas acabaram
alocados em um CAPS III.

Profissional E: As pessoas não tem um real interesse aqui na sua maioria, as


pessoas caíram no CAPS não gostam da Saúde Mental, não entendem a saúde
mental, não se preocupam em se especializar, ou conhecer ou entender melhor,
algumas pessoas tem uma demanda de simplesmente trabalhar menos, to aqui pra
ter o menos de trabalho possível, então eu não vejo interesse das pessoas em fazer
algo melhor assim sabe? [...] É bem ruim, é desgastante né, porque as pessoas que
se importam acabam trabalhando dobrado. [....] Por exemplo a pessoa, um
profissional que não tem paciência de fazer o manejo [...] Se todo mundo fizesse
uma seleção as pessoas que têm interesse na saúde mental todo mundo que tivesse
aqui interessado seria um outro CAPS mas não existe isso.

Esse parece ser um importante aspecto a ser pensado quando refletimos sobre a qualidade
da atenção à saúde mental como um todo. Temos profissionais que buscaram um concurso para
trabalhar na saúde, e não especificamente no campo da saúde mental. Encontram-se descontentes
quando alocados na saúde mental, portanto não têm tanto interesse em aprender ou se especializar
nesse contexto de atendimento. Somado a isso, segundo o relato dos profissionais, não há
capacitações de manejo de crise realizadas pela FEAES. Assim, temos um profissional pouco
112

habilitado e desinteressado em trabalhar no contexto da saúde mental. Ainda mais problemático é


que esse profissional esteja em um CAPS III, um dispositivo de referência em saúde mental.

3.2 Demonstração de interesse pelos encontros familiares

Um ponto de interesse e curiosidade que aproximou alguns profissionais do grupo de


estudo foi o trabalho com familiares. Observávamos a concordância de quase todos os
profissionais sobre a implicação da família no processo de adoecimento do sujeito, e o quanto uma
família suportiva facilitava o tratamento, enquanto outras famílias dificultavam esse processo.

Profissional B: A gente sempre soube que família faz parte disso tudo, mas sempre
tenho agora um olhar muito cuidadoso tão quanto, um olhar muito cuidadoso pra
família, tanto quanto a gente tem um olhar cuidadoso pro paciente.

Porém, antes do projeto de atenção às primeiras crises, o trabalho com as famílias era
considerado não tão importante, muito mais presente no contato breve antes de um atendimento.
O lugar do familiar era mais o de informante e muitas vezes como “controladores da medicação”,
do que de corresponsáveis pelo cuidado e sujeitos em necessidade de acolhimento também.
Campos (2001) afirma a importância de cuidar das famílias, porém muitas vezes as propostas de
trabalho com família são esvaziadas de sentido. Por vezes os grupos de família têm como objetivo
informar os familiares da evolução do sujeito, o que acaba colocando o usuário do serviço como
um objeto. Outras vezes se utiliza os grupos para pedir informações do usuário, a história do sujeito
passa a ser a história que a família conta, retirando novamente de circuito as percepções, sentidos
e vivências do sujeito.
Não havia uma movimentação em relação a um espaço de reflexão do familiar sobre os
sentidos daquela experiência, possibilidades de transformação das relações e contextos de
sofrimento para o sujeito em crise. Constatamos que foi unânime, nas cinco entrevistas realizadas,
que o maior impacto da pesquisa foi a reflexão sobre a importância da família na atenção à saúde
mental.
113

Profissional E: Mudou pra essa questão da família, sempre me atentar mais a


família, o aprendizado que eu levo é sempre me atentar mais a família, o que
acontece em casa, como são as relações em casa, como é a dinâmica da casa com
a família, da pessoa, estar com a família mais presente aqui. O que eu levo junto
comigo é essa questão da família. [...] Olha como é importante a gente não atender
só a pessoa, mas entender o que acontece em casa.

Inicialmente também havia o receio sobre a forma de realizar o atendimento em si, pois
nenhum dos profissionais participantes tinha experiência em atendimentos familiares. Os
profissionais estavam acostumados a falar com as famílias sobre os usuários ou a fazerem reuniões
com várias famílias, mas não a realizar um aprofundamento e cuidado direto com as famílias.
Durante o grupo de estudos foi enfocado então no atendimento familiar e suporte do grupo de
pesquisa nesses atendimentos. A partir dos encontros familiares uma das psicólogas expressou que
não mais conseguia conceber o atendimento de alguns casos do CAPS, como os das primeiras
crises do tipo psicóticas, dentre outros, sem o cuidado também à família. Essa compreensão da
importância da família no tratamento pareceu ser talvez um dos maiores impactos nos profissionais
a respeito da proposta de atendimento às primeiras crises.

Profissional C: Antes de GIPSI, assim, eu já tinha essa visão assim de entender o


sujeito que foi constituído por uma mãe por um pai, eu sempre tinha que entender
melhor o contexto familiar, aqui todos os pacientes que eu atendo eu converso
individualmente, alguns eu chamo a família para entender melhor o contexto,
alguns eu preciso trabalhar a família, mas tem alguns casos que não dá para fazer
isso, não é todos que dá para fazer

Ao mesmo tempo que há uma compreensão da necessidade de um trabalho mais


aprofundado e atento às famílias, há a reclamação sobre a sobrecarga de trabalho dos profissionais.
Dessa forma, a alta demanda de trabalho acaba influenciando na qualidade da atenção às primeiras
crises do tipo psicóticas.
114

3.3 Há muita demanda de trabalho para os profissionais

A agenda dos profissionais era sempre muito cheia. Para a realização dos atendimentos
familiares foi necessária uma reorganização. Muitos profissionais afirmaram não conseguir
realizar esse tipo de atendimento.

Profissional B: Eu sei o que eu deveria fazer! Eu sei que eu deveria ir atrás da


paciente de novo, eu sei que eu deveria fazer os atendimentos domiciliares
necessários por um tempo até vincular com ela de novo... Eu gostaria muito de
estar trabalhando com ela exatamente as angústias dela, as angústias que pra ela
veio pra cá em forma de delírio... Nossa, como eu gostaria de trabalhar esses, que
antes eram delírios muito explícitos, agora como angústias reais mesmo né, muito,
mas... Não, não acontece.

Os motivos que os profissionais relatam para não dar conta de realizar o trabalho como
gostariam de realizar são muitos. Alguns dos pontos levantados são: falta de profissional, alta
demanda do serviço, exigência de trabalhos mais em grupos.

Profissional E: Falta de profissionais, alta demanda do serviço, às vezes os nossos


processos de trabalho não dão conta, existe muita demanda de se fazer grupo, daí
se faz grupo e não consegue dar atenção para o paciente

Profissional C: [Tem] Muita gente, então os atendimentos é mais em grupo, a gente


tem que fazer assim. Como aqui todos tem que fazer o grupo de TR, assim acaba
tendo que atender em grupo, pra atender a demanda.

Profissional E: Demanda da gestão, tem que ter grupos, mas não é se pensado
muito... aí as pessoas começam a fazer grupos, daí a gente tem um monte de grupo,
que nem tem muita função terapêutica, não que uma roda de conversa não seja
algo terapêutico, mas não é nada planejado, com enfoque terapêutico, não tem esse
planejamento, e aí as pessoas fazem várias coisas, mas daí o sentar, olhar o
115

prontuário, pensar no cuidado daquele paciente a gente acaba não tendo tempo,
muito paciente, e muita demanda de trabalho, às vezes eu tô trabalhando aqui e as
pessoas me perguntam assim o que que você fez hoje, hoje não era o meu dia de
ambiência, não tinha acolhimento agendado e não tinha grupo, eu faço mais coisa
do que se eu tivesse uma atividade organizada por exemplo porque daí você fica
apagando fogo aqui, apagando fogo ali, não consegue sentar pensar, que nem
aquele negócio né, tudo curso que eu vou, o GIPSI o curso de PTS, todo mundo
fala do genograma, do ecomapa, tudo mais, lindo, não consigo sentar e pensar
nisso. Aí você pensa no psicólogo, tanta demanda de psicoterapia individua, eles
não têm tanto tempo para sentar e fazer atendimento individual para todo mundo.

Os profissionais estão apontando nessas falas que muitas vezes sabem o que é necessário
para cada caso, mas as demandas de outras atividades dentro do CAPS, acabam impedindo com
que façam o que acham que seria o melhor para o caso. Uma das consequências disso que é
mencionado nesta fala, é a sobrecarga que acaba ocorrendo nos profissionais mais interessados.
Este foi um dos motivos de dois dos profissionais participantes terem pedido demissão, após 3 à 4
anos no serviço. Em uma conversa no CAPS um dos profissionais falou que três anos e meio de
CAPS “já estava bom” (sic), indicando um desgaste e frustração trazido pelo trabalho que
mencionava ocasionalmente. Uma das profissionais que saiu recentemente do CAPS nos disse que
o motivo de sua saída é devido a dificuldade de crescimento profissional, falta de tempo para
aprimoramento e estudo, e baixo pagamento.

3.3.1 Quais casos “ganham mais atenção”?

Diante de algumas falas e observações que fizemos no CAPS percebemos que, pela falta
de tempo, a alguns casos é dada maior atenção.

Profissional A: Existe uma, uma demanda grande né, pra atender uma demanda
que é grande. E daí quando você vai pegar um caso, pegar bem esse caso e ficar
discutindo por horas um caso específico né, isso toma muito tempo de outros
grupos… É claro que seria ideal isso da gente se aprofundar em todos né, mas o
116

quanto se aprofundar né? Provavelmente não tanto quanto seria ideal. Por
exemplo, ficar uma hora falando de um caso né, é um bom aprofundamento, mas
se a gente ficar uma hora falando de cada caso… Tem casos né, os mais que ‘tão’
aí ‘bombando’ a gente acaba ficando mais tempo falando, mas os do GIPSI, como
eles são as primeiras crises, eles passam né como os outros né… Não são aqueles
que ‘tão’ aí ‘pá’! Nem…

Mas quais são os casos que “estão aí bombando”? Percebemos que não necessariamente
são casos mais “graves”, mas sim casos que rompem a “ordem do CAPS”, ou seja, usuários que
demandam muita atenção dos profissionais, que tem “risco de fuga do CAPS”, ou risco de
agressão.

3.4 Dificuldade em trazer a família para a participação nos encontros familiares

Inicialmente, durante o grupo de estudos, os profissionais tiveram dificuldade em trazer as


famílias para os encontros familiares. Porém, essa não foi uma dificuldade apenas deles; de fato
percebemos o quanto muitas vezes é difícil conseguir iniciar e manter os encontros familiares.

Profissional B: É, a não responsividade das famílias, isso me frustrava muito assim,


sabe, a gente ter que ficar ligando, pedindo pra vir, implorando pra vir e aí não
‘vinha’ e aí tinha que ligar de novo, depois tinha que ligar de novo, chegar a tentar
dar um jeito... Tinha que tentar fazer qualquer coisa pra trazer essas famílias, isso
me deixava bem desconfortável porque a gente tem muitos pacientes aqui né, pra
lidar, então assim... Além dos pacientes, é claro que o ideal seria trabalhar com
todas as famílias né, mas não dá. E... E aí a gente se dedicar tanto a uma família
só, o caso de um paciente só e não ter essa resposta era um pouco frustrante assim,
sabe? [...] Então os pacientes a gente já têm que manter o radar muito ligado em
cima deles, aí ter que fazer isso com as famílias e as famílias que a gente julga que
né, que deveriam querer e entender né, a estar aqui, aí não ‘vinham’. Isso era uma
coisa frustrante.
117

Uma das questões relacionadas à dificuldade de participação dos familiares era em relação
ao horário de trabalho; apesar do CAPS III funcionar 24 horas, os profissionais geralmente faziam
seus turnos até às 19 horas, assim muitas vezes era difícil conciliar os horários de todos os
familiares, mais o do profissional do CAPS. Além disso, muitos familiares reclamavam de ter que
ir até o CAPS após um longo dia de trabalho. Noutros casos tínhamos incompatibilidade de
horários entre os familiares, pois às vezes os pais trabalhavam de dia e os filhos estudavam à noite.
Para além da facticidade da falta de horários para os atendimentos, também tínhamos que
“criar” a cultura da participação dos familiares no processo de cuidado. Algo que não é comum no
CAPS, por exemplo. Culturalmente se entende que quem está “doente” é o sujeito, assim, quem
deve ir ao tratamento é o próprio sujeito, apenas. A família muitas vezes demorava a compreender
porque estavam sendo chamada para conversas e encontros, em que muitas vezes o tema central
não era apenas o sujeito em crise, mas a família como um todo.

Profissional B: [...] quando ‘era só nós’ é... A gente se sentia muito sobrecarregado
sabe assim, tudo em cima. ...E por isso que eu vejo que, depois da vinda dela,
algumas famílias começaram a funcionar né? Não acho que é só coincidência, que
agora apareceu família que, que está vindo né. Eu acho que não, eu acho que tem
muito do, do que ela, do esforço que ela tem colocado assim sabe? Da presença
dela aqui.

Quando iniciamos a parte prática da pesquisa juntamente com os profissionais, houve um


aumento na participação dos familiares em relação ao período do grupo de estudos. Entendemos
que talvez para o próprio profissional do CAPS, a chamada da família tão mais próxima do que de
costume, era algo muito diferente. Percebemos que quando há insegurança do profissional quanto
a importância da presença do familiar é mais fácil que este se esquive de participar. Era comum
que os profissionais se sentissem “invadindo” (sic) o espaço familiar ao realizarem telefonemas
para família, chamando-os para a participação no processo terapêutico oferecido pelo CAPS.
Como se não fosse da responsabilidade deles a participação na atenção às primeiras crises. Alguns
profissionais sentiam que a responsabilidade sobre o caso era deles, e não da família.
Foi percebida uma mudança gradual nos profissionais que integravam o grupo de
atendimento às primeiras crises do CAPS. Atualmente eles não sentem mais essa invasão ao
118

contatarem os familiares, muito pelo contrário, em várias discussões de casos na sala de equipe foi
percebido posicionamentos de compartilhamento e responsabilização da família sobre esse
cuidado.
Quando se compreende que a responsabilidade do caso é unicamente do profissional ou da
instituição, corre-se o risco da tutelagem dos casos, já que são os profissionais que se
responsabilizam e tomam a frente do cuidado. Muitas vezes, por medo dos riscos de compartilhar
esse cuidado e dar mais autonomia ao sujeito dentro desse processo. Isso fica ainda mais explícito
nos momentos de crises, pela sua imprevisibilidade em alguns momentos e mesmo pelos estigmas
relacionados a estas vivências (periculosidade, risco de auto ou hetero-agressão).
Podemos pensar, a partir daí, na sobrecarga também expressa pelos profissionais. Ao
sentirem-se os únicos responsáveis pelo cuidado na situação da crise, temos aí um excesso de
responsabilidade sobre o caso que poderia ser mais compartilhada com a própria comunidade,
incluindo a família.

3.5 Reflexões sobre a cultura da centralidade no indivíduo, tutelagem e o modelo biomédico

Pudemos perceber que no cotidiano do CAPS o centro das atenções era o sujeito em crise,
com ênfase na individualização da atenção ofertada. Ou seja, o foco estava no sujeito, pouco em
seu contexto, em sua rede social ou mesmo em sua família. A representação que encontramos
ainda presente é de que o sujeito está doente, apenas ele, logo, o cuidado é direcionado apenas a
ele. Observamos discursos voltados a um modelo biomédico que compreende o momento de crise
como uma disfunção neuroquímica, nestes casos, a centralidade do medicamento no tratamento
era evidente. Praticamente para todos os casos atendidos (relato dos profissionais) era prescrita
medicação. A medicação era o centro do tratamento (isso também era descrito dessa forma pelos
profissionais, inclusive na visão dos profissionais não-psiquiatras).
Diversas pesquisas demonstram o excessivo uso de medicamentos na atenção à saúde
mental, especialmente no acompanhamento do CAPS, tornando o medicamento foco central do
tratamento (Bezerra, Morais, Paula, Silva, Jorge, 2016; Campos et al, 2012, Carvalho, Silva,
Rodrigues, 2010): “Atualmente, o Brasil situa-se entre os dez maiores mercados consumidores de
insumos farmacêuticos do mundo” (Bezerra, Morais, Paula, Silva, Jorge, 2016, p.157). Em uma
pesquisa realizada por Pegoraro & Caldana (2008), os autores afirmam que essa compreensão da
119

centralidade da medicação no tratamento é trazida pelos familiares e cuidadores dos usuários do


CAPS: “A importância da medicação apareceu em todas as entrevistas, entrecortando todas as
formas de compreensão sobre maneiras de controlar ou curar a doença: o remédio é colocado como
imprescindível para todos os tipos de tratamento realizados” (p.303).
Mas por que a prática prescritiva de medicamentos toma uma centralidade na atenção à
saúde mental? Nos poucos casos em que o usuário não queria tomar medicação, percebia-se um
esforço da equipe na direção de um convencimento a este uso. Também observamos nesse
comportamento de “convencimento”, a ainda presente ênfase na autoridade do profissional
especialista.

Profissional C: A gente tenta entendeu... eu tento porque tá em mim a visão do


sujeito, independente de ser TR, eu sou psicóloga [...] só que aqui tem influência
de outras áreas que não tem como sair disso, passa por psiquiatra tem que tomar
remédio, por mais que você tente às vezes: não dá para diminuir um pouquinho,
porque tá tendo tal efeito colateral, fazer tentar circular o discurso a queixa do
paciente, do que eles falam, que a gente que escuta, a gente que está em contato
com o paciente, é com a gente que eles falam, esse remédio tal tal tal, e é um saber
da parte do médico, ele que tinha que dar conta. [...] Alguns eu tento pelo menos
falar, eu tento, alguns até diminui alguns continuam outros continuam com a linha
que eu sei que eu tô fazendo é por aí mesmo.

Também percebíamos uma relação de poder estabelecida entre psiquiatras e os demais


profissionais, em que muitas vezes alguns psiquiatras tomavam decisões divergentes da maioria
da equipe, e até mesmo sem os consultar. Também percebíamos o receio de alguns membros de
discordar da perspectiva do médico. Assim, diante de possíveis divergências nas compreensões e
discursos, muitos destes permaneciam não compartilhados, o que ao nosso ver dificulta a
compreensão multidisciplinar e mais amplas dos casos atendidos.

Profissional C: Porque acaba seguindo a mesma lógica do hospital aqui, porque


tem a figura do médico que é mais influente, tem a equipe de enfermeiro, tem
auxiliar de enfermagem que segue o saber do médico, poucos dispostos a aprender
120

[...] Não tem essa disponibilidade anterior de querer aprender. Isso [a pesquisa]
provoca, isso é um modo de vamos nos alimentar mais de conteúdos.

Mas por que, apesar de termos leis e portarias relacionadas a reforma psiquiátrica que
indicam a necessidade de um cuidado em rede, territoralizado, comunitário, não encontramos a
família mais presente nos processos de cuidado e na participação dos processos terapêuticos dos
CAPS? Por que encontramos um modelo de tratamento centrado no medicamento e seguindo uma
lógica apenas biomédica?
Entendemos que essas ações e compreensões não são frutos da incapacidade técnica do
profissional ou de seu desinteresse. Não era isso o que observávamos nesse CAPS em questão.
Também não consideramos que estas eram questões pontuais desse equipamento, mas sim
situações que vemos de forma recorrente não apenas em outros CAPS, mas como em diversos
dispositivos da rede. Isso não quer dizer que nada mudou após a reforma psiquiátrica ou que o
atendimento se encontra da mesma forma que há algumas décadas; pelo contrário, vemos muitas
modificações positivas. Porém, entendemos que esse é um processo ainda em construção e que por
detrás dessas ações ainda se desvelam compreensões e pensamentos frutos de contextos históricos
e epistemológicos.
Esses procedimentos apontam para algumas constatações: primeiro, que não foi ainda
superada a tradição organicista, biomédica, demasiado presente na medicina clássica e, por
conseguinte, na Psiquiatria tradicional; e, em segundo lugar, que a “humanização” dos serviços
demanda uma discussão mais intensa com respeito aos fundamentos que constroem o “saber” no
contexto da dita “Saúde Mental”.
Se temos diversas leis, portarias, movimentos e materiais escritos que discorrem sobre as
críticas realizadas aos modelos manicomiais de atenção à saúde mental, como ainda vemos práticas
manicomiais mesmo dentro de dispositivos pensados pela reforma? A questão é que, quem
constrói o cotidiano da atenção são sujeitos, não leis. Compreendemos que os sujeitos são
históricos e que os conceitos e noções empregadas nas práticas também (Foucault, 1963/1973,
1966/2000, 1976/1984, Canguilhem, 1943/1995).
Foucault (1966/2000) afirma que estamos imersos em estruturas epistêmicas que nos
constituem, tanto enquanto sujeitos atuando em nossas práticas sociais como enquanto sujeitos de
um saber. Ou seja, o conhecimento que utilizamos é devedor de um contexto estrutural epistêmico,
121

de lógicas e verdades pré-estabelecidas. Canguilhem (1943/1995), também da tradição historicista,


retoma a tradição positivista de compreensão do patológico como uma variação quantitativa do
“normal”, questionando-a. Muitas vezes percebemos uma crítica às formas de atuação na saúde
mental voltada para o formato e funcionamento do dispositivo, dirigida para as carências de verba,
de pessoal ou de recursos, à proposta da reforma psiquiátrica, à psiquiatria e aos medicamentos, à
capacitação técnica do profissional, etc. Achamos diversos “culpados”, mas não percebemos que
todos somos devedores de uma mesma lógica epistemológica. O modelo epistemológico das
ciências naturais, advindo da revolução científica da modernidade ainda impera em nossas
construções teóricas e em nossas ações.
Segundo Dell’Acqua & Mezzina (1991), apesar das transformações no atendimento à saúde
mental, o modelo cultural de referência ao atendimento à crise não mudou; ainda se utilizam
técnicas de forma acrítica, classificam-se comportamentos, homologa-se uma faixa de problemas
a serem resolvidos partindo de respostas pré-formadas de acordo com cada faixa de problema,
sempre buscando “interpretar a condição de crise dentro de parâmetros definidos e controláveis”;
assim, ainda se encontram serviços de atenção à crise seletivos, impermeáveis às singularidades
das situações, com intervenções fragmentadas e não coordenadas.
Nota-se ainda a consideração da crise como doença, que deve ser “extirpada ou
controlada”, ao invés de compreendida de uma forma mais ampla, dentro de um sentido existencial
do sujeito, no contexto da vida da pessoa. Essas formas de compreensão irão influenciar nas formas
de atenção a crise que observamos. Assim temos um contexto histórico e cultural que, como aponta
Costa (2007), ainda liga a crise à noção de periculosidade, reduz a experiência do sujeito a sintomas
ligados a uma patologia, que deve ser rapidamente identificada e medicalizada, considerando a
remissão dos sintomas como o sucesso da terapêutica, e uma consequente compreensão da crise
de forma negativa, ainda a presença de imposição também de hábitos morais, separação do
momento de crise de uma compreensão global da vida da pessoa, uso frequente de contenções
físicas e químicas, centralidade dos remédios no tratamento, ênfase do controle e tutela.
Jardim e Dimenstein (2007) relembram que o que está em jogo nas urgências também é o
caráter de imprevisibilidade; algo difícil para o profissional da saúde lidar, já que como Gadamer
(2006) aponta, a incerteza é algo o homem moderno tem muita dificuldade de lidar. Assim,
buscam-se referências e certezas em construtos teóricos. “Todos nós nos encontramos sob o
impulso da nossa própria autocerteza e autoconvicção metódica, que está ligada com a
122

cientificidade e a objetividade” (Gadamer, 2006, p. 111). Ou se busca o controle por meio do


“abafamento” do fenômeno, da diminuição e controle da crise.
Dessa forma, parece que diante a situação de crise se está acostumado a focar a atenção na
identificação de sintomas, classificação do diagnóstico, buscando controlar a crise da melhor
maneira possível, até “os medicamentos fazerem efeito”. Nisso se esquece, ou se deixa de lado, o
sujeito, os sentidos e seu contexto de vida. Não estamos afirmando que essa é a única forma de
atenção a crise, mas sim, que este é um manejo ainda presente, estruturado ao longo de muitos
anos, desde o século XIX.

3.6 Experiência de crise considerada apenas como sintoma: o que perdemos com isso?

Notamos que o sintoma é considerado, de modo geral, como o signo objetivo da doença,
pouco contextualizado em seus sentidos para o sujeito e em seu contexto de vida. Laing
(1960/1973) pontua que podemos entender essa vivência de duas formas:

Parece claro que o comportamento do paciente pode ser visto ao menos de duas
diferentes maneiras, análogas aos modos de se ver um vaso, ou dois perfis. Pode-
se considerar seu comportamento como “sintoma” de uma “doença”; pode-se ver
esse comportamento como uma expressão de sua existência (Laing, 1960/1973,
p.16).

Mas como isso influencia na prática de cuidado? No caso do CAPS, era comum que os
profissionais não levassem em conta discursos “muito desorganizados” como fonte de informações
e de compreensão do sujeito. Como se o discurso “desorganizado e delirante” não estivesse falando
exatamente do que o sujeito estaria vivenciando, de sua existência. Laing (1960/1973) discorre
sobre o impacto dessa compreensão na prática:

Se a pessoa adotar tal atitude em relação a um paciente, dificilmente compreenderá


ao mesmo tempo o que ele talvez esteja tentando comunicar-nos. Voltando a
considerar o caso de se ouvir alguém falar se eu estiver sentado à sua frente e
falando com você, é possível que você esteja (I) tentando calcular qualquer
123

anormalidade da minha fala, (II) explicando o que digo em termos de como você
imagina que minhas células cerebrais estejam metabolizando oxigênio, ou (III)
tentando descobrir porque, em termos do meu histórico sócio-econômico, eu estaria
dizendo tais coisas naquele momento. Nenhuma das respostas que você possa dar a
estas questões proporcionará por si mesma a simples compreensão daquilo que eu
pretendo dizer (p.17).

Como coloca Laing, ao considerar o sintoma apenas como um signo de uma doença, uma
anormalidade da fala, perde-se os sentidos daquela expressão em um contexto mais amplo, da vida
do sujeito e de seu entorno. Para Basaglia (1924/2005), as formas de tratamento manicomiais são
consequência de um tipo de compreensão que considera o sujeito como um objeto, que não possui
autoridade ou voz para falar de si.

3.7 Os profissionais discorrem sobre a pesquisa

Durante as entrevistas com os profissionais que estiveram mais próximos dos casos
atendidos, observações e anotações realizadas no diário de campo, pudemos coletar diversos
relatos a respeito do projeto de atenção às primeiras crises do tipo psicóticas. A partir desses
relatos, nosso intuito é refletir sobre nossas ações afim de aprimorar cada vez mais esse tipo de
atenção.
Nosso desafio foi tentar construir uma proposta de atenção às primeiras crises do tipo
psicóticas a partir de alguns princípios fundamentais, mas que pudessem acolher diferentes
abordagens da psicologia, diversas áreas da saúde. Mas, muitas vezes, permitir essa abertura,
ampliar e acolher diversidades, pode parecer não se posicionar tão claramente. Também acolhemos
a possibilidade de não termos deixado nossos fundamentos tão claros como gostaríamos.
Independente do que motivou essa percepção da profissional ela foi de muita valia para a reflexão
sobre nosso fazer.

Profissional C: Como se faz o diagnóstico ali, o que que, que estrutura se trata ali
para entender melhor o funcionamento a dinâmica psíquica daquele sujeito
entender um pouco melhor isso faltou um pouco, tem diferenças. [...] Eu achei que
ficou muito aberto, ficou mais na abordagem fenomenológica, muito aberto demais
124

e daí não me identifiquei mais a isso [...] como se vê o sujeito ali? [...] Vago demais
o fundamento teórico, não da proposta [da pesquisa], fundamento teórico do
sujeito, qual abordagem é essa, para mim faltou, porque eu escuto as pessoas a
partir que influências tem que essa pessoa leu, que discurso é esse que ela está
falando, da onde que vem esse questionamento [...] não fica no achismo porque
tinha os textos, eu queria saber o que fundamenta ali.

Apesar do profissional ter acompanhado o grupo de estudo e reconhecer que havia um


material teórico e pesquisas que fundamentavam nossa prática, a fundamentação fenomenológica,
que acolhia diferentes perspectivas sobre o fenômeno, e a não-filiação a uma abordagem em
psicologia, deu a impressão de uma falta de fundamentação teórica. Para esta profissional não
ficou explicito os fundamentos necessários para ela conseguir compreender nosso ponto de partida
teórico.

Profissional C: Tem casos que [...] sempre chamara a família ou incluir a família
nisso nem sempre acho que funciona também, às vezes separando também da
família é que pode vir a tratar daquele sujeito, o viés mais individual com o sujeito
[...] Nem tudo eu acho que dá certo queria envolver a família inteira, mudar a
dinâmica inteira da família.

Ela também levanta a questão de que nem sempre envolver a família pode auxiliar na
atenção prestada. Concordamos com essa afirmativa, mas essa avaliação só pode ser melhor
efetuada a partir do contato e compreensão dessa relação entre sujeito e sua família. A profissional
4 também pontuou algumas questões referentes ao manejo com as famílias.

Profissional D: Perspectivas sobre as famílias embora eu tenho uma abordagem


muito diferente [da proposta da pesquisa] porque [na proposta da pesquisa] precisa
confrontar mais coisas, eu como TR, como figura de acompanhamento, não
confronto uma família se eu perceber que vai escapar, eu prefiro manter por perto,
mesmo que de uma forma mais frouxa, mas inadequada, do que confrontar e deixar
escapar. Esse foi um grande aprendizado assim, que eu não vou dar conta de tudo
125

que pode ser levantado ali, então eu prefiro levar mais em banho-maria, as
mudanças de percepção e de conduta também [...] é um aprendizado da minha
prática com família na prática social [...] Não julgamento, não confronto,
aproximação, antes, construir abertura para falar isso de forma assertiva [...] eu
invisto muito no vínculo [...] como manejar, deixar falar, até compreender o que
de fato leva aquele comportamento, mas daí já não numa perspectiva
sintomatológica, muito mais em uma questão de construção pessoal [...] Elas
vinculam, e a construção do vínculo não é só comigo, mas com do CAP, como
espaço de cuidado, é um espaço que eu sei que eu posso levar meu filho em crise
que eles vão me ouvir, eu acho que essa construção acaba sendo o mais importante
[...] reconheço o espaço, independente de se aceitar o que se propõe ou não.

Concordamos com a fala dessa profissional, essa também foi uma reflexão que realizamos
ao longo dos encontros familiares. De fato, muitas vezes o confronto com algumas questões da
família, por exemplo, a tentativa de sustentar que a fala do sujeito tem sentido e o convite a
tentarmos compreender que sentido é esse, pode ser algo extremamente doloroso para os
familiares, que entendem aquela “fala delirante” apenas como “sintoma de uma doença”. Assim,
o essencial inicialmente é a construção do vínculo com todos os membros da família, para garantir
a parceria e abertura para que o processo de cuidado compartilhado possa ser estabelecido.
Uma das observações sobre o impacto da proposta de atenção foi em relação à resposta das
famílias. A profissional D, cujo relato podemos observar abaixo, observa que o acompanhamento
da família desde uma primeira crise há uma tendência a família ser mais suportiva com o sujeito
em crise e com a própria proposta de cuidado oferecida pelo CAPS. Além disso, nota que há uma
maior conscientização do sujeito sobre sua própria vivência, e da família também. Ambos são
impactos que na sua percepção melhoram o prognóstico a longo prazo.

Profissional D: É difícil ver alguma mudança no CAPS como um todo, eu acho que
com essa correria as pessoas não conseguem prestar muita atenção, eu acho que
para as famílias faz toda a diferença. Porque um primeiro momento de diagnóstico
quando existe um quadro psicótico é muito difícil, e a família abordada no início
tem uma tendência a ser mais suportiva a longo prazo. Acho que no CAPS a grande
126

diferença que a gente poderia pensar é pessoas mais consciente dos quadros, um
trabalho de psicoeducação mais profundo assim, e com um prognóstico melhor a
longo prazo, menos crises, espero, para aquelas famílias que de fato absorvem o
que é proposto, acho que esse é o maior impacto no CAPS assim, menos retornos.

Profissional A: Acho que o que facilita, o que facilitou foi o constante


comprometimento ... estudos prévios né, com aprofundamento.

A profissional E se sentia mais tranquila com os casos que estavam sendo atendidos pelo
grupo, com mais frequência de atendimentos, que realizava uma escuta mais atenciosa.

Profissional E: Esses são os pacientes que a gente consegue acompanhar mais de


pertinho, são os que vocês estão ajudando. Porque assim, tudo bem que tem o TR,
uma mini-equipe, a equipe toda, mas às vezes a gente não dá conta de fazer esses
atendimentos, tão regulares, com tanto tempo, tão focados. É difícil a gente
conseguir dar tanta atenção para um paciente, eu vejo que vocês aqui conseguem
dar um pouco mais de atenção, soma, soma, tem mais profissionais atendendo,
então soma, então eu vi que pelo menos esses pacientes a sensação que eu tenho é
que eles estão mais cuidados. [...] Tem mais gente olhando pra aquela pessoa e
porque eu vejo que vocês conseguem fazer atendimentos mais organizados, de
forma semanal, toda semana tem o atendimento, um atendimento mais longo, uma
escuta mais atenciosa, qualificada.

Outra questão que apareceu nas falas dos profissionais foi em relação a disponibilidade na
atenção à crise, sem julgamento, utilizando recursos da comunidade.

Profissional C: Eu fiquei encantada foi a disponibilidade do profissional em


atender aquele sujeito, porque quando a Mari deu alguns exemplos, e o Ileno deu
exemplo de ir até a casa convencer o pastor da igreja, se o paciente tem vínculo
com pastor da igreja, ou alguém tem vínculo. Então vamos tentar não julgar esse
vínculo, mas chamar para ajudar tentar ir até lá se aproximar dessa outra pessoa
127

para ver como que dá para ser paciente, enfim, sair da crise ou aceitar... essa
disponibilidade eu achei muito legal. [Isso acontece aqui no CAPS?] Raríssimo,
vai da generosidade do profissional em sair da sua carga horária que ele não tá
sendo pago para isso, ainda da carga muito grande de paciência, tem isso de não
ser pago em horários que é fora da sua carga horária.

Segundo a profissional C, o momento do grupo de estudo se tornou um espaço para refletir


sobre seu fazer, de se debruçar sobre o sofrimento do outro, um investimento nos casos que eram
atendidos. Um investimento de tempo e disponibilidade que acaba reverberando positivamente nos
casos.

Profissional C: Me fez lembrar do período que a gente precisa estudar os casos que
tem o momento de refletir sobre o que faz; dá muita importância para aquele
sujeito que sofre; quanto mais você investe no caso a propensão de ter mais sucesso
naquele caso [...] o ideal seria que todos tivessem esse tipo de investimento.

Para a ela um dos principais ganhos foi em relação a dar uma importância maior para o
cuidado com a família, e a compreensão da crise no contexto da própria família.

Profissional C: Mais sensibilidade, quanto a vamos tomar mais cuidado com a


família, vamos entender melhor que lugar que tem esse filho para essa mãe, para
ser pai, que lugar que tem manter o filho doente para essa família funcionar,
porque tem isso também, que lugar que a mãe tem para o marido.

A receptividade da equipe foi bastante positiva. Todos sempre estavam dispostos a auxiliar,
a discutir casos e trocar ideias. Os comentários que tínhamos no cotidiano da pesquisa era em
concordância com a importância do trabalho com a família, e a preocupação em dar um suporte
maior para os casos de primeiras crises para evitar o processo de crises recorrentes e cronificação.

Profissional B: Recebe muito bem, vem procurar a gente quando tem algum caso
né, porque querem que o paciente tenha esse tipo de atendimento, pra eles é muito
128

bom, porque acaba auxiliando eles né no tratamento, no projeto terapêutico do


paciente deles. Então hoje em dia eu vejo que a equipe, ela procura muito mais a
gente, do que a gente procura eles pra discutir. [...] Em relação aos atendimentos,
eles querem os atendimentos... Eles acham legal ter aqui uma equipe que atende
só família de primeiras crises, então eles querem atendimento.

Nos relatos, percebemos que também há uma boa recepção de auxilio e complemento do
trabalho que já é efetuado pelo CAPS. Especialmente quando esse trabalho é dialogado e
respeitoso com a própria dinâmica do CAPS.

Profissional E: Vocês sempre nos procuraram, eu vi que vocês envolviam o TR que


tava cuidando, não foi uma coisa a parte, o que preocupa é quando tem essa
separação, não houve isso, eu vi que foi algo que foi em conjunto, acho que isso é
bom.

Inclusive a profissional E foi uma das TRs mais participantes no diálogo com o grupo,
sempre bastante aberta à discussão e apoiando os casos. A receptividade e diálogo com o CAPS
continuam excelentes. Somos sempre muito bem acolhidos pelos profissionais. Também
observamos que se tornou uma expressão usual no CAPS, especialmente quando eles nos veem
que é “ah, eu tenho um caso de primeira crise”. Ou seja, antes não eram distinguidos os casos de
primeiras crises de outras crises, com a introdução da pesquisa percebemos que tanto a ideia da
especificidade das primeiras crises quanto da importância do acompanhamento familiar se tornou
um aspecto mais considerado do que anteriormente. Percebemos isso através das falas dos
profissionais, mesmo daqueles que não participaram diretamente da pesquisa, mas que dialogaram
conosco sobre os casos atendidos durante o processo.

3.8 É possível uma atenção às primeiras crises no CAPS III?

Ao final das entrevistas foi indagado aos profissionais se eles achavam possível dar
continuidade a proposta de atenção às primeiras crises no CAPS após a saída dos pesquisadores.
Os cinco profissionais concordaram com a importância da proposta no contexto do CAPS, porém
129

acreditam que diante o contexto institucional que vivem atualmente o formato da proposta se torna
inviável, especialmente pela falta de recursos humanos e tempo.

Profissional 2: Não, esse projeto é maravilhoso aqui pro CAPS, se encaixa


perfeitamente. Todas as famílias precisariam de atendimento, todas né... Umas
mais, outras menos, mas dentro do nosso, do nosso público né... De pacientes com
TM, a gente entende que: se não é a família que até causa né, que até causa todas
essas crises... A família também precisa de orientação e de estar participando do
tratamento... Muitas vezes a gente tem uma família né, próxima, uma família que
quer cuidar, uma família aquelas que são bem disfuncionais mesmo né, toda
desestruturada, tal, então... Nossa, esse projeto, o ideal seria que a gente sempre
‘tivesse’ aqui e até mais assim né, maior, mais ampliado, com mais horários…

A profissional 2 entende que o projeto seria muito importante para o contexto do CAPS,
sobretudo em relação à inclusão da família nos atendimentos. Porém, assim como o profissional
5, entende que o que inviabiliza a proposta seria a falta de recursos humanos, ela menciona que no
CAPS atualmente, os TRs são responsáveis por cerca de 40-60 usuários. O profissional 5 entende
que existem outras questões pendentes para serem resolvidas antes de se tornar possível a inserção
de um projeto dessa natureza coordenado somente pela equipe existente. Em sua opinião, muitas
vezes nem o básico de cada profissional é feito de forma adequada.

Profissional 5: Considerando a equipe que a gente tem no serviço hoje, não. Porque
eu acho que a gente tem tanta coisa básica para resolver ainda. [...] Ah de
questões, ah tão difícil isso, todo dia a gente vive isso, mas é difícil falar disso. O
que uma categoria profissional faz e a outra não, o que que é meu, o que que não
é, a ambiência tem que funcionar de um jeito não funciona, por exemplo, eu sou da
enfermagem, meus técnicos de enfermagem não checam medicação, coisa básica.
Como que eu vou querer implementar coisas mais avançadas se eu não consigo
que eles seguem medicação, que é básico? Dando o exemplo da enfermagem, sabe,
para chegar lá precisaria de muito. [...] Colocar na prática é muito difícil, então
não é que talvez não funcione, que não seja aplicável, pelo contrário, eu vi que era
130

um instrumento que podia ser muito útil, a dificuldade era implementar. [...] Para
implementar isso, surgiriam dificuldades, algumas que já expliquei, falta de
interesse da equipe, falta de tempo, falta de profissionais.

Para ela, a falta de interesse da equipe, de tempo e profissionais inviabilizaria o projeto da


forma como havia sido proposto. Apenas com o auxílio da nossa equipe, realizando um trabalho a
mais no CAPS, é que o projeto se tornou viável.

Profissional 2: Acho que não é viável por falta de pessoas mesmo, por falta de RH...
Por isso eu acho que não é viável, mas por exemplo, se eu ‘tivesse’ o ideal, o ideal
que a gente sempre sonha aqui no CAPS é que cada TR tenha uns 20 pacientes né...
Aí sim, daria, não pra fazer com todos, mas com a grande maioria daria pra fazer...
Muita coisa, mas se torna inviável por conta da falta de profissionais, porque se a
gente ‘tivesse’ o dobro de profissionais daria. [...] Acho que não... Os atendimentos
familiares não acontecem mais daí. Existe uma sobrecarga muito grande aqui
dentro do nosso serviço sabe? Isso não é só uma fala minha, é uma fala assim, de
todos há muito tempo, ... É como se a gente ‘tivesse’ assim sabe, só apagando
incêndio mesmo, só cuidando... A gente tá assim sobrecarregado de vários
pacientes e estamos atendendo só aquilo que ‘tá’ mais gritante. Então um projeto
como esse é um projeto muito bom né, que todas as famílias precisariam, um
projeto que ajuda na prevenção de novas crises né... É um cuidado que se faz com
a família, pra prevenir novas crises pra que esse paciente possa ter uma, um
prognóstico melhorado né.... Atender com a demanda, aí depois que acabou a
demanda atender outra demanda e aí acabou aquela ali, aquela crise aí a gente
tem outra crise, então... [...] É difícil... Não vou dizer que isso não acontece né,
acontece. Eu acho que vai ter uma ou outra família que eu, particularmente, como
fiz parte do projeto vou querer acompanhar, a gente vai acompanhando... Mas não
dessa forma como é hoje, com vocês aqui. A gente não tem perna pra isso.
131

Essa fala, de certa forma, resume um pouco as outras falas dos profissionais. Há um
consenso de que o serviço não funciona da forma como eles entendem que seria o adequado. A
proposta de atenção às primeiras crises do tipo psicóticas, para eles, é um projeto adequado e
importante ao CAPS, porém a falta de tempo, de profissional e de interesse por parte de alguns
profissionais (principalmente por não se interessarem pela saúde mental) acabam prejudicando a
viabilidade do projeto ser continuado pelo próprio CAPS. Como mencionou a profissional 5, a
alguns casos, após o projeto, será dada uma atenção mais próxima, será possível trabalhar com a
família, mas serão exceções dentro da possibilidade que o serviço tem para ofertar.
Em relação a comparação dos profissionais com o GIPSI (grupo que serviu como base
durante a construção do projeto) ele colocam que há uma diferença gritante de quantidade de
sujeitos atendidos em relação aos profissionais que atendem o caso. Geralmente há cerca de 30
integrantes acompanhando um conjunto de 10 casos, ou seja, uma proporção de três pessoas para
cada caso. Muito diferente da realidade do CAPS, no qual há cerca de 40-60 casos para cada
Terapeuta de Referência (TR). O tempo de discussão dos casos no GIPSI também é bem maior do
que no CAPS, devido a outras demandas que o CAPS atende.

Profissional 3: O Ileno consegue fazer na equipe dele que é uma equipe preparada
para isso com uma visão só de sujeito, eu conheci clínicas onde tinha vários
profissionais, como tem aqui, com a mesma visão de sujeito com a mesma
estruturação de corpo teórico, aí todos segue a mesma linha, não é o que acontece
aqui, cada um vem de um tipo de formação, com muito saber popular, tem muito
senso comum aqui. O pessoal às vezes não entende que a pessoa não trabalha, o
paciente não trabalha, ah mas por que que ele não, porque se for uma estrutura
psicótica o trabalho pode desencadear crise, não dá certo, sair desse ideal que
todos os precisamos seguir esse caminho, tem muito julgamento moral, muito da
pessoa ali que não está bem resolvida e projeta no paciente que a falta de análise
pessoal entra mais com profissionalismo, se distancia do caso, não leva nada para
o lado pessoal que às vezes os pacientes ofendem você e se eu levar para o lado
pessoal, onde está o meu profissionalismo?
132

Para essa profissional, para a realização de uma atenção às primeiras crises do tipo
psicóticas, seria necessário ter uma mesma visão de sujeito e uma mesma estruturação do corpo
teórico. Outra questão que ela pontua é em relação a medicação servir também para aplacar a
angústia do profissional, a expectativa da equipe. O profissional é demandado a dar uma resposta
à crise, e muitas vezes ele não uma “solução”, isso pode ser bastante angustiante para o profissional
e para todos os envolvidos. Porém, não dar uma “solução”, também faz parte também do processo
de manejo de crise; precisamos compreender o que está acontecendo com o sujeito, o que ele está
vivenciando, o contexto em que isso se dá. Muitas vezes precisamos suportar o “não saber, não
compreender, não saber o que fazer” (sic), para acompanhar o sujeito e sua família nesse processo
de descoberta; esse pode ser um processo desconfortável.

Profissional 3: Aqui não tem essa disponibilidade, não é uma equipe toda com essa
visão, então se eu recebo alguém em primeira crise, não tem aquilo que o Ileno deu
exemplo, vamos até o sujeito, vamos fazer o pronto atendimento [...]
disponibilidade de tocar o telefone e a gente até a pessoa imediatamente ou insistir
altas horas, ficar ali até conseguir o manejo, sem a medicação, que eu entendi que
ele deve se prontificar a isso, que é muito legal, maravilhoso, aqui não é assim, a
angústia entra muito também angústia do próprio profissional que atende, o
médico que atende também, de querer acalmar, acalmar a expectativa da equipe e
acaba entrando pelo viés da medicação [...] a gente não tem essa disponibilidade,
não existe, nesse sentido não dá para colocar aqui, esse tipo de disposição.

Também atendemos através de uma Universidade particular, pois o CAPS não tinha
profissionais suficientes para atender todos os participantes da pesquisa individualmente. Assim,
também tínhamos o contexto de alunos de graduação atendendo os participantes da pesquisa, com
nosso acompanhamento. O GIPSI é um grupo que funciona dentro de uma clínica escola da
Universidade de Brasília e, portanto, tem algumas especificidades de atuação e contexto, no
serviço escola há alguma flexibilidade maior para atuação. Além disso o GIPSI é um grupo que
está trabalhando com primeiras crises do tipo psicóticas desde 2001, com experiência de atuação
nessa área de 17 anos.
133

Mas será que porque os profissionais entendem que o formato da atenção às primeiras
crises proposta por essa pesquisa é inviável sem os recursos humanos investidos por ela, não há
nada a se fazer? Torna-se inviável também a possibilidade de se realizar uma atenção às primeiras
crises de forma diferenciada das demais crises?
Entendemos que é viável pensar em uma proposta de atenção às primeiras crises do tipo
psicóticas em um CAPS. Basta que adaptemos o projeto à realidade que possuímos, buscando mais
parcerias na RAPS, incluindo os recursos da própria comunidade do indivíduo em crise. Em nossa
avaliação, a proposta de atenção do GIPSI que inspirou essa pesquisa é inviável em um CAPS da
forma como ela funciona no UNB. Nossa proposta construída junto ao CAPS também se tornou
inviável após a nossa saída, especialmente por falta de recursos humanos. Mas como seria possível
uma proposta de atenção adequada às necessidades das pessoas em primeiras crises do tipo
psicóticas e seus familiares, dentro das possibilidades atuais do CAPS? A partir de nossa
experiência em campo e da análise do material coletado elencamos alguns pontos que entendemos
como essenciais nesse processo, e que poderiam ser adaptados a realidade de cada serviços dentro
da RAPS.
134

4. POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES PARA A ATENÇÃO ÀS PRIMEIRAS CRISES DO


TIPO PSICÓTICAS

A partir dessa experiência de atenção às primeiras crises do tipo psicóticas em um CAPS


III de Curitiba traçamos algumas possíveis contribuições para a reflexão sobre a atenção às
primeiras crises do tipo psicóticas. Ao elencarmos esses pontos a partir da experiência de campo,
notamos que estavam intimamente articulados com a fundamentação fenomenológica na atenção
às primeiras crises do tipo psicóticas.
Entendemos que para pensar em uma atenção às primeiras crises é interessante que haja
uma articulação com a fenomenologia, para evitar cairmos em naturalismos em relação a essa
complexa vivência. Assim como, para considerarmos o sujeito como constituição de sua relação
com o mundo, incluindo sua família e seus vínculos sociais mais próximos.
A tutelagem, a centralidade apenas no indivíduo e na terapêutica da medicação, o
entendimento de que a crise é apenas um sintoma de uma doença, não são frutos de incapacitações
técnicas, práticas mal executadas ou descumprimento de protocolos. Mas, principalmente,
resultado de um pensamento anterior ao fazer, que guia essa prática, que vem de uma construção
epistemológica da ciência do séculos XVIII e XIX que precede o positivismo.
Logo, os pontos que aqui elencamos como básicos, diante de nossa experiência não são
manejos técnicos, mas sim provocações do pensamento, apontamentos sobre a necessidade de uma
reflexão anterior ao fazer. Por isso a importância da fenomenologia enquanto uma provocação
epistemológica, uma problematização das formas de construção do conhecimento.
Esses pontos básicos não estão vinculados a nenhuma abordagem psicológica específica,
nem mesmo a somente uma área de atuação no campo da saúde mental. Eles foram elencados para
que pudessem ser realizados por qualquer profissional que trabalhe no contexto da saúde mental.
Esses são fundamentos que estavam presentes em nossa proposta de atenção como partes
essenciais. Apesar da articulação com a fenomneologia, ao serem trazidos para um diálogo com a
prática dentro do contexto da saúde mental se tornam acessíveis a qualquer profissional, mesmo
que não tenham tido nenhum contato com a fenomenologia. Seria inviável requisitar que para a
proposta ser funcional houvesse a necessidade de um prévio conhecimento de fenomenologia.
135

Tambem buscamos não enfocar os pontos básicos em quantidades ou formatos de


encontros (individuais, familiares, em grupo) ou a frequências destes. Apesar de percebemos que
são aspectos importantes da atenção às primeiras crises do tipo psicóticas, entendemos que há a
possibilidade de adequação a realidade de cada local. Os fundamentos elencados foram:
- Foco a partir do sujeito e não da doença
- Colocar o conhecimento e pressupostos anteriores em suspensão
- Reflexão crítica
- Postura compreensiva
- Acompanhar e não tutelar
- A crise não é só do sujeito
- Falar de crise, é falar de vida
- O sintoma tem sentidos
- Não filiação a nenhuma abordagem psicológica ou ideologia

4.1 Foco a partir do sujeito e não na doença

É necessário se ater a pessoa, o foco está nela e não em sua doença. Olha-la a partir apenas
desse viés seria reduzir sua vida a um mero conjunto de sintomas. Buscamos considerar a pessoa
em crise como um sujeito ativo e concreto, uma pessoa, e não um objeto, ou um “doente a ser
tratado”. Como o sujeito em primeira crise se sente no ambiente do CAPS? Bem, protegido,
acolhido? Assustado, receoso, inseguro? Essa é uma indagação feita ao sujeito? Essa é uma
preocupação prevista no PTS?
A pessoa em crise e sua família, tornam-se assim, os maiores detentores do conhecimento
a respeito daquela vivência de crise, protagonistas dessa empreitada cujo objetivo é a compreensão
do contexto e sentidos atrelados à crise. Os profissionais já não são aqueles com as respostas, mas
os com as perguntas. O sujeito em crise não é mais o que “pacientemente” aguarda sua “cura”,
aquele que obedece, mas sim aquele que busca ativamente uma compreensão sobre si mesmo e
seu entorno. A família não e mais aquela que exige dos profissionais a responsabilidade pela
melhora de seu famíliar e que por vezes é deixada de lado no processo de cuidado; e sim a que
participa também ativamente, a que se responsabiliza pelo cuidado, a que também propõe se
compreender e a se repensar.
136

Mas para isso é necessário, como Basaglia (2005) pontua, colocar entre parênteses a doença
para compreender o sujeito que se encontra à sua frente. Para estar disponível a conhecer o outro,
em seus sentidos e suas vivências é necessário que eu consiga abrir mão da minha visão de mundo,
das minhas verdades e sentidos. Assim, seguimos para o próximo item.

4.2 Colocar os preconceitos e pressupostos anteriores em suspensão

“Não é preciso postular-se que se veja com os próprios olhos,


mas antes que se deixe de eliminar o visto numa interpretação
que os preconceitos impõem” (Husserl, 1910/1965, p.73).

Husserl (1910/1965) coloca que o prejuízo de interpretar o mundo e os outros sujeitos do


mundo a partir dos meus pré-conceitos, das minhas experiências anteriores, pode significar
eliminar o que é visto. Assim como as teorias pode servir como lentes que nos auxiliam a enxergar
o mundo de forma mais aproximada ou menos turva, as lentes podem modificar como o mundo se
apresenta. Dependendo da lente que utilizamos ela pode “embaçar” minha visão, ou dependendo
da cor da lente, deixar o mundo mais escuro, mais amarelo, mas esverdeado. O erro está em
considerar que o mundo aparece para todos da mesma forma como aparece para mim através de
minhas lentes. É presumir que o mundo é esverdeado, porque o vejo como tal.
Colocar o que pensamos que conhecemos a respeito das primeiras crises do tipo psicóticas
em suspensão, não quer dizer eliminar todo o conhecimento que temos a respeito desse fenômeno.
Também não é se deixar levar por aquilo que conheço em detrimento daquilo que aparece como
vivência do sujeito que se encontra a minha frente. Não estamos aqui diminuindo a importância
das teorias, dos conhecimentos prévios, das experiências ccom a arte que nos permite conhecer
experiências humanas que nunca havíamos passado, dentre tantas outras formas de buscar
compreender o mundo. Todos esses conhecimentos são importantes, mas nenhum deles dá conta
da totalidade do fenômeno das primeiras crises do tipo psicóticas. Portanto para conhecer o sujeito,
sua vida, e compreender seu momento de crise, é necessário não pressupor que sua experiência se
resume ao meu modo de ver sua experiência. Para compreender sua vivência é necessário se
debruçar sobre ela mesma, o sujeito, seu contexto, suas relações, sua vida.
Husserl (1910/1965) aponta que a atitude natural é nos debruçar sobre o mundo a partir de
nossas experiências anteriores, é pressupor que elas irão se repetir. Essa atitude é importante e
137

necessária, porém, exige-se um esforço para que possa suspender temporariamente essas verdades
anteriores para conhecer o fenômeno como ele aparece para o sujeito.

4.3 Reflexão crítica

A postura reflexiva e crítica deveria ser uma constante no trabalho, justamente pelas outras
condições exigidas, uma constante vigilância de nossas próprias ideias, sentimentos e ações. Isso
também foi construído em conjunto. Nas intervisões, um auxiliava o outro a pensar sobre as
intenções que acarretavam as ações propostas, verificando sempre se elas estavam de acordo com
as posturas pretendidas no projeto.
Entende-se que mais importante do que as formas e técnicas de intervenção em saúde
mental são as concepções, pré-conceitos, pressupostos que carregamos de forma irrefletida em
nossas práticas. A forma como o profissional compreende o fenômeno está diretamente ligada à
forma como ele irá se posicionar clinicamente frente a ele. Caso olhe para o fenômeno do
sofrimento psíquico como uma “doença”, se posiciona como o sujeito de um suposto saber sobre
tal doença e que tem como um objetivo a cura, o retorno a um estado de saúde anterior perdido.
“Quando a doença é considerada como um mal, a terapêutica é tida como uma revalorização;
quando a doença é considerada como uma falta ou um excesso, a terapêutica consiste numa
compensação” (Canguilhem, 1994/1966 p.249).
Caso o profissional entenda a doença mental como um desequilíbrio da química cerebral,
a cura vem através dos medicamentos. Nessa compreensão, se há desequilíbrio, há doença. Se há
fuga da normalidade pré-estabelecida do funcionamento do corpo, há doença. Caso ele entenda
que a doença mental tem sua etiologia na história individual do sujeito, será apenas através da
compreensão da história pregressa, através das memórias do sujeito, que alcançará a cura. Caso
ele compreenda a doença mental como um problema social, uma “doença” da sociedade, nada tem
a fazer com o sujeito como intervenção, a intervenção é na própria sociedade.
Essas são as três principais perspectivas hegemônicas no campo da saúde mental. E, apesar
de parecerem contraditórias, carregam uma característica em comum: uma visão naturalizante do
ser humano. Ou seja, há por detrás de cada concepção do que é doença mental, uma concepção do
que é natural do humano, e consequentemente de uma suposta normalidade, um funcionamento
normal humano. Parte-se de concepções essencialistas, e como tais, imutáveis, universais,
atemporais.
138

Por isso, parece-nos mais interessante investir na reflexão crítica do que em técnicas
específicas. Possibilitar que o profissional se acostume com o exercício de pensar sobre o seu fazer,
se perguntar sobre os motivos que o levam a pensar e agir de tal forma, ou mesmo a assumir o não-
saber, pedir ajuda, buscar novas respostas. “Estamos aqui falando de uma ‘visão de mundo’ e de
uma ‘visão de homem’ subjacente a esses modos de ‘fazer’. Esta ‘visão de mundo’ nos remete
ainda a um modus operandi dos profissionais, e aos modos de comportar relativos aos modos de
ver ou perceber o mundo” (Holanda, 2011, p.72).
As explicações psicologizantes, sociologizantes, psicopatologizantes ou biologizantes, são
naturalizantes. São concepções que tomam o homem por uma única perspectiva, acreditando que
esta lhes dá a totalidade do existir humano. E por mais que se aglutine os “ismos” nas ações
multidisciplinares ainda se parte de naturalizações e se perde a singularidade do humano que se
encontra à minha frente. Ainda se explica o outro sob uma única perspectiva. Esta naturalização
do sujeito parte de uma herança filosófica platônica, “existe – ao menos no escopo do pensamento
ocidental – uma certa “tradição” pela busca por “causas” ou “condições de surgimento” de um
determinado evento ou ocorrência. Buscam-se determinantes.” (Holanda, 2017, p. 175). Ao
realizar a crítica a respeito desses reducionismos, não se trata apenas de uma disputa
epistemológica, mas também de uma forma de compreender o papel da atenção à saúde e da ética
envolvida nessa ação. Holanda (2017) coloca que:

Quando Foucault denuncia a exclusão, não apenas aponta para relações de época ou
para uma construção histórica; quando Goffman discute o estigma, não explicita
apenas relações sociais; quando Laing, Cooper ou Szasz questionam o poder da
psiquiatria, não dizem apenas de instituições formais ou condições políticas; todos
estes autores (e tantos outros) falam de um aspecto fenomenológico mais importante,
- mesmo que sutilmente escamoteado por detrás dos discursos - que cada experiência
desvela um sujeito que ali se mostra e se apresenta. (p. 156)

Ao não levar em conta o sujeito que ali se mostra, qual o reflexo em minha ação? Segundo
Basaglia (2005), as formas de tratamento manicomiais foram apenas uma consequência do olhar
para o sujeito em sofrimento como um objeto, que não possuía autoridade sob si mesmo. Assim,
por mais que se tenha, a partir da Reforma Psiquiátrica, mudado nomes, locais de tratamento,
139

técnicas de cuidado, não mudaram as lógicas. Permaneceram em compreensões naturalistas, que


como tal, colocam o sujeito como objeto de um saber anterior, retirando-o de sua própria
existência. Toma-se para o profissional a responsabilidade sobre as escolhas existenciais do sujeito
diante seu sofrimento, diante sua vida.

Aquele que é formado nas ciências naturais julga evidente que todos os fatores
puramente subjetivos devem ser excluídos e que o método científico-natural
determina, em termos objetivos, o que tem sua figuração nos modos subjetivos da
representação. Por isso busca o objetivamente verdadeiro também no plano
psíquico. Ao mesmo tempo admite-se, com isso, que os fatores subjetivos excluídos
pelo físico serão investigados pela psicologia precisamente como algo psíquico e
naturalmente uma psicologia psico-física. Mas o investigador da natureza não se dá
conta que o fundamento permanente de seu trabalho mental, subjetivo, é o mundo
circundante (Lebenswelt) vital, que constantemente é pressuposto como base, como
o terreno da atividade, sobre o qual suas perguntas e métodos de pensar adquirem
um sentido (Husserl 1935/2006, p. 90).

Talvez tenhamos esquecido que nossas construções científicas advêm do “mundo da vida”,
e dele não podemos nos separar. Foucault (1976/1984) alerta para a necessidade de uma visão
crítica aos conceitos que utilizamos em nossas práticas e por conseguinte, suas funções, objetivos,
fundamentos. A reflexão crítica da filosofia e da epistemologia deve estar presente em nossa
atuação. Se o profissional que atende dentro do contexto da saúde mental não considera que ele
está construindo conhecimento e que ele deve refletir sobre o conhecimento que utiliza, ele se
torna apenas um técnico.

Mas o que é filosofar hoje em dia — quero dizer, a atividade filosófica senão o
trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em
tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez
de legitimar o que já se sabe? Existe sempre algo de irrisório no discurso filosófico
quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua
verdade e de que maneira encontrá-la, ou quando pretende demonstrar-se por
140

positividade ingênua; mas é seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu
próprio pensamento, através do exercício de um saber que lhe é estranho. (Foucault,
1976/1984, p.13).

Foucault traz, aqui, a importância de um resgate da própria ciência a seu principal


fundamento, a filosofia. Mas não a filosofia dogmática, e sim a filosofia questionadora, que não
se contenta em reproduzir, mas em refletir. Não é por sermos profissionais da saúde ou cientistas
que devemos deixar a filosofia para os filósofos, pois assim nos tornamos meros reprodutores de
lógicas que nem mesmo nos damos conta. A forma como o profissional compreende um fenômeno
está diretamente ligada à forma como se posiciona frente a ele. (Canguilhem, 1994/1966).

4.4 Postura compreensiva


“A poesia não se entrega a quem a define.”
Cuidado – Mario Quintana

A vida não se explica, se compreende. No modelo explicativo a atuação e conhecimento é


dirigido à clarificação do princípio causal. Nessa postura a patologia ou o sintoma são apenas
efeitos, resultados dessas etiologias. Porém, Manganaro nos alerta que “entre causa e efeito não há
qualquer relação de significado” (Manganaro, 2006, p.89). Assim, uma atitude considerada
importante nesse processo era a da curiosidade, a de buscar conhecer. Assim, através da postura
compreensiva, procurou-se conhecer e compreender o sujeito, sua vida, sua família e as vidas de
cada um, seu contexto social, seu contexto de crise e/ou sofrimento. Segundo Laing (1973)

Que se pede de nós? Que o compreendamos? O cerne da experiência esquizofrênica


de si mesmo permanecerá incompreensível para nós. Mas a compreensão na forma
de esforço para alcançá-lo e agarrá-lo, permanecendo embora dentro de nosso
mundo, julgando-o segundo nossas próprias categorias, diante das quais ele
inevitavelmente fracassa, não é o que o esquizofrênico deseja ou exige. Precisamos
reconhecer todo o tempo sua singularidade e diferenciação (p. 20).
141

Muitas vezes achamos que entendemos a vivência de crise do outro, damos nomes: delírio,
alucinação, mania, depressão, ideação suicida. Mas o que é desejar morrer para ele? O que ele vê,
o que pensa, o que sente? Às vezes perdemos mais com a crença que “dominamos” a compreensão
sobre o fenômeno da crise do que se assumíssemos nossa limitação a essa compreensão, e
realizássemos o esforço para tentar entender aquele sujeito, seu mundo, sua crise.

4.5 Acompanhar e não tutelar

Na ânsia de acharmos que sabemos sobre a crise do sujeito, que podemos explicar seus
sintomas, diagnosticar sua “doença”, buscamos o controle sobre a situação de crise, tutelamos. A
tutela se torna a única opção quando há medo, há preocupação pela perda do controle. Lima, Jucá,
Nunes e Ottoni (2012) realizaram uma pesquisa a respeito dos significados atribuídos pelos
profissionais e familiares às situações de crise. Para os entrevistados, as pessoas em crise se tornam
“perigosas, violentas, agressivas, brabas, despertam medo, incomodam os outros, quebram e
destroem coisas, gritam (...), estão em sofrimento, angustiadas, ouvem vozes, necessitam de
vigilância continua, confusas, em risco de morte, desestruturam famílias” (p.428). A fala desses
entrevistados discorre sobre as concepções e sentidos de crise em nossa cultura: a crise está na
ordem do que é estranho, perturba e assusta.

O que aparece para nós como crise são aqueles aspectos que causam alguma ordem
de estranheza e uma perturbação social importante (...) a psicose é uma questão
fundamentalmente social e o que vai parar na porta da emergência psiquiátrica é,
fundamentalmente, aquilo que corresponde a uma perturbação psíquica que gera
algum tipo de ressonância social importante. É muito óbvio, não é? Sem ressonância
social, o fato psíquico deixa de ser relevante. (Silva, 2007, p.52)

Por essas pré-concepções e medos muitas vezes se tem dificuldade em lidar com as
incertezas e incompreensões que o fenômeno da crise apresenta e entende-se que a melhor forma
de evitar qualquer outro mal pior é a tutelagem. Pegando para si a responsabilidade sobre aquela
situação/vida/existência, pressupõe-se menor risco relacionado ao caso.
142

Porém Costa (2007, p.102) alerta que “é importante que a cautela não se configure como
tutela”. A ideia de tutela, e boa parte das condutas protecionistas, se baseiam na ideia de risco
associada à crise. Em nome da ética, da segurança de familiares, de outros membros da sociedade
ou de si mesmo, da saúde alheia, atua-se buscando proteção contra o desconhecido, o inesperado,
o imprevisível, o incontrolável. Segundo Dell’Acqua e Mezzina (1991)

[...] o apoio à autonomia ao poder do paciente não pode se exaurir em formas


estéreis de protecionismo e defesa passiva dos direitos do paciente com indivíduo,
mas pressupõe um itinerário de transformação para todos os sujeitos envolvidos,
iniciado no momento do contato (p. 58).

Compreende-se que na atenção às primeiras crises do tipo psicóticas seria necessário correr
alguns riscos. Pois se pautássemos as ações pelo medo ou pela possibilidade do risco, que sempre
é existente, não se daria conta de possibilitar o cuidado do sujeito em seu contexto, em uma co-
responsabilização dele e de seus laços sociais, como a família.
Mas com isso não se exime a cautela e a oferta de ajuda. França (2007) alerta que autonomia
não deve ser confundida com independência ou auto-suficiência. Por que os familiares e/ou amigos
não permanecem nos leitos como fazemos em situações de hospitalização? Por que se assume a
responsabilidade pelo cuidado total quando falamos de “doenças mentais”?
Nicácio e Campos (2004) relembram da necessidade de uma co-responsabilização na
hospitalidade integral em serviços abertos e territoriais como o CAPS, em busca de uma gestão
coletiva. A presença da família e dos amigos da pessoa em crise não deveria ser uma eventualidade,
a exceção, mas a regra.
Para que haja possibilidade da crise ser vivenciada não apenas como risco, mas também
como oportunidade, é necessário que haja condições para essa transformação de si e do meio.
Assim muitas vezes o papel na atenção à crise é criar condições e espaços para que o investimento
desse momento de crise possa se dar “(...) espaços nos quais uma pessoa possa se hospedar sem
que haja intenção de “resgatá-la” ou “direcioná-la” na vida, em face de um estado de fratura que
retorna ao seu presente” (Costa, 2007, p.104).
143

4.6 A crise não é só do sujeito

A crise não é uma vivência individualizada. Buscamos compreender a crise em um


contexto complexo a qual pertence. A crise é compreendida como um evento histórico, que diz de
uma relação entre sujeito e mundo (contexto, relações, corpo, cultura) do qual não é possível sua
redução ou simplificação. Na fala de Marcela, irmã de Iva, durante a entrevista final, podemos
verificar essa percepção que foi sendo desenvolvida ao longo dos encontros familiares, de que não
era apenas Iva que estava em crise, mas toda a família.

Marcela: Ninguém confia em ninguém todo mundo acha que um tá enganando o


outro. Todo mundo se defende um do outro; em vez de ouvir de coração aberto mas
é que é todo mundo, todo mundo! então... é difícil, eu acho que assim, pra melhorar
as coisas aqui em casa eu acho que, ninguém aqui tá, tá todo mundo mal, eu não
vejo ninguém bem.. você não tá bem, você não tá bem, você não tá bem, eu não to
bem. Eu estou destruída! Eu comecei um estágio, eu não consegui ficar. Porque eu
não tinha o que dar de mim! [...] Acho que todo mundo só quer apontar para o
outro, se defender, em vez de olhar ‘nossa eu também podia ter melhorado’, poxa
eu vi que eu errei nisso, me desculpa, mas se você também podia ter se olhado?
[...] Porque eu não estou bem. Nem em família, sozinha, eu não estou bem. Eu não
vejo a minha mãe bem, porque não dorme, vive... a mãe não dorme, ela acorda
várias vezes na noite, tem insônia, isso não é estar bem. Vive preocupada,
chorando. Você vive sozinho, naquele apartamento lá enfurnado, fumando. Está
bem a sua qualidade de vida? Desculpa aí, vou ter que ser bem sincera, por mais
que doa. Eu vejo aqui um monte de gente se defendendo da própria tristeza. A
gente, às vezes, não quer se abrir por medo, assim, de escancarar os nossos
próprios... porque dói, dói demais olhar pra trás e ver que fez um monte de merda,
né, pai? Né pra todo mundo aqui, até pra mim. Dói, né? Por isso que às vezes a
gente foge. Foge de querer mudar. Porque, você está feliz, pai? Com a sua vida
hoje. Você está bem?
Caio: Claro que eu não estou feliz.
144

Marcela: Não, você não está, realmente, não é só com a Iva, é com você. Você está
bem com você? Esqueça a Iva, me esqueça. Você está bem com você?
Caio: Não.
Marcela: Você está bem com você?
Sofia: Não to feliz.

Nicácio e Campos (2004) discorrem sobre como “a complexidade das situações de crise
não pode ser lida como um dado isolado e a própria compreensão é redimensionada em processo,
na continuidade da relação” (p.76). Dell’Acqua e Mezzina (1991) também apontam a condição da
crise como uma complexa situação existencial. Assim, igualmente complexos devem ser os
recursos e instrumento para sua atenção.
Campos (2001) afirma a importância de cuidar das famílias. Porém, notamos que muitas
vezes o acompanhamento das famílias é realizado de forma rasa, superficial. A autora relata que
muitas vezes as propostas de trabalho com família são esvaziadas de sentido. Por vezes os grupos
de família têm como objetivo informar os familiares da evolução do sujeito, o que acaba colocando
o usuário do serviço como um objeto. Outras vezes se utiliza os grupos para pedir informações do
usuário, a história do sujeito passa a ser a história que a família conta, retirando novamente de
circuito as percepções, sentidos e vivências do sujeito.
Para Campos e Carozzo (1991), assim como outros autores que estudam a relação psicose
e família (Costa, 2010, Palazolli, 1998, Minuchin, 1982), há vinculação entre a crise psicótica e
relações familiares. Assim, trabalhar com cada família na atenção de pessoas em crises psicóticas
se torna essencial para todos esses autores. Segundo Costa (2003, p. 123): “a dinâmica inserida em
certas situações familiares pode contribuir para a perpetuação e manutenção de uma característica
já definida de doença em um membro da família e, desta forma, à produção de cronicidade”. A
compreensão sistêmica auxilia nesse alargamento da compreensão de crise, entendendo quaisquer
fenômenos enquanto cadeias conectadas. Não há indivíduos isolados, mas pessoas ligadas a vários
sistemas, pertencentes e criadoras de relações, sentidos, vivências múltiplas e compartilhadas.
A rede social é de suma importância tanto em relação ao acolhimento e auxilio no manejo
da situação de crise, como também na compreensão da situação. Muitas vezes as pessoas mais
próximas são as primeiras que notam algumas possíveis diferenças no sujeito que vão se
apresentando ao longo do tempo.
145

4.7 Falar de crise, é falar da vida

Dell’Acqua e Mezzina (1991) relatam que o acolhimento às crises, nos Centros de Crise da
Itália, se dá de forma particular a cada caso, sem intervenções pré-constituídas ou mesmo “equipes
especiais” de intervenção, já que esta pode ser feita por qualquer pessoa que trabalhe no centro.
Quando possível eles preferem que esse acolhimento seja feito em lugares da vida do paciente,
como sua casa, por exemplo, utilizando também intermediários, que seriam as pessoas
significativas para ela. Os autores salientam que a simples disponibilidade de “ir ao encontro” da
pessoa é extremamente benéfico. Outros recursos de acompanhamento da crise mencionados são
atitudes simples como telefonemas, envolvimento de outros sujeitos (amigos, líderes religiosos)
ou mesmo de um encanador, por exemplo, que pode auxiliar em aspectos mais práticos que
igualmente irão auxiliar no cuidado à saúde mental do sujeito e de sua família ou conviventes. Os
autores apontam que para compreender a realidade de vida do sujeito atendido é importante
verificar: “onde vive, onde dorme, o que come, com quanto dinheiro vive, com quem se encontra,
quem está a sua volta, onde trabalha” (p.70). Questões da materialidade da vida são igualmente
importantes na atenção à crise. Dell’Acqua e Mezzina (1991):

Na nossa experiência, a reconstrução da história através dos múltiplos momentos


de contato e de conhecimento entre o serviço e a pessoa, nos seus locais de vida,
com a rede das suas relações, com os seus problemas materiais e concretos, tende a
colocar a crise no interior de uma série de eixos que são capazes de torná-la
compreensível (não de explicá-la), de dar um senso à crise e, enfim, de recuperar a
relação entre as valências de saúde, os valores de vida e a própria crise. (p. 56)

Antes de aspirar a uma resolução de conflitos no cenário provado (familiar ou


microssocial), tentando chegar a uma rápida normalização do sujeito, como é comum nas
estratégias de “crisis intervention”, a resposta à crise no serviço territorial é preferencialmente
voltada a conectar, a colocar em contato o paciente com um sistema de relações e de recursos
humanos e materiais. (Dell’Acqua e Mezzina, 1991, p.75)
Costa (2007) afirma que não há como pensar em mudanças internas e individuais sem uma
perspectiva de atravessamento e relação interioridade-exterioridade. A mudança depende de
146

relações, encontros, recursos, condições favoráveis, não há como pensar nessas condições sem
contar com os outros. Em trabalho anterior (Puchivailo e Holanda, 2016) verificou-se que o
profissional que trabalha no CAPS, muitas vezes se volta a um discurso que olha apenas a doença,
e não a vida como um todo. O que pode gerar ações que se voltam apenas ao sofrimento humano,
e nada mais. Puchivailo e Holanda (2016) afirmam:

A fala de nossos colaboradores de pesquisa nos provocou a pensar sobre a


necessidade de se tratar10 da vida como um todo e não apenas da doença ou do
sofrimento. E demonstraram em suas falas que isso não apenas era importante, mas
essencial ao seu processo de encontro de sua saúde. Será que não somos nós que
ansiamos pela “fala do sofrimento”. Será que somos nós que temos “fome” de
apenas água e comida? São os usuários que criam grupos terapêuticos que falam
apenas de sofrimento e doença, ou somos nós mesmos? (p. 78)

Busca-se ampliar a compreensão do fenômeno das primeiras crises do tipo psicóticas, dessa
vivência do sujeito e daqueles que o rodeiam. Não como uma urgência médica, que exige uma
ação do profissional especializado, único conhecedor das causas do momento de urgência e cuja
agilidade visa remediar, curar, parar o momento da crise/urgência em busca de um retorno à
normalidade. Esse tipo de ação é assertivo em situações referentes ao corpo humano, mas quando
abordamos a dor e o sofrimento que não são apenas do corpo, esse tipo de intervenção pode deixar
escapar os sentidos singulares do sofrimento dessa pessoa e de seu contexto, apresentados por esse
momento de crise.
A crise se torna então mais do que uma dor ou uma situação patológica a ser rapidamente
sanada, mas especialmente um momento de oportunidade de compreensão de uma situação de
vida, de um contexto. Isso quer dizer também que é importante pautar nossas ações no contexto
de vida do sujeito e aproveitar os potenciais e recursos que se apresentam nela. Não achar que
apenas o CAPS possui recursos de cuidado. Muitas vezes os recursos da vida do sujeito são sub-
utilizados, suas relações, seus hobbies, aquilo que dá sentido a sua vida.

10
Tratar aqui não como cuidar de uma doença, mas com o significado de conversar, discutir, trocar ideias.
147

Há uma urgência na escuta de um sofrimento, de uma situação, que pode não estar sendo
escutada, entendida, observada. Mas não é só o profissional da saúde que deve ter essa escuta, mas
justamente aqueles envolvidos na situação de crise. Cabe então ao profissional ser aquele que não
só escuta, mas que ajuda o outro a escutar. Uma ação que exige uma desconstrução das formas de
conhecer e de interagir com a situação de crise, da loucura, do sofrimento humano.

4.8 O sintoma tem sentidos

Devido ao modelo biomédico hegemônico na atualidade estigmatizamos a experiência de


uma primeira crise do tipo psicótica enquanto uma “psicose”, uma “doença mental”.
Transformamos vivências complexas em sintomas, signos de uma patologia. Porém, cada sujeito
irá experienciar vivências tidas como “psicóticas” de um modo singular, único.
Paul Baker (2015) discorre sobre a audição de vozes enquanto uma experiência
significativa e real, e algumas vezes dolorosa. Entendemos que muitas vezes as vozes falam com
o sujeito que as ouve de forma metafórica sobre suas vidas, e que por isso é interessante conseguir
compreender a que vem às vozes, seu sentidos, podendo mesmo auxiliar o sujeito a conversar com
suas vozes em prol dessa maior cumplicidade e compreensão entre o sujeito e as vozes que falam
com ele.
É comum que partindo de um modelo biomédico a audição de vozes seja considerada
apenas um sintoma, e como consequência não uma preocupação em compreender o sentido
daquela experiência para o sujeito. Nem sempre a audição de vozes é algo negativo na vida do
sujeito. No grupo de Ouvidores de Vozes, busca-se explorar a relação da voz com o ouvidor da
voz, auxiliando o sujeito a tentar compreender o que as vozes estão querendo tentando ajudar a
pessoa a retomar o controle sobre sua vida, que muitas vezes é prejudicado pela audição de vozes.
Assim, é relevante buscar junto ao sujeito, levando em conta seu contexto cultural, o
sentido das experiências que ele pode ter em um momento de crise. Minkowski (2000) procurou
desenvolver uma visão antropológica da psicopatologia que busca compreender as modalidades
existenciais do homem, levando em conta sua singularidade com o objetivo de elucidar os sentidos
dos sintomas. Nesta “visão antropológica” da psicopatologia se propõe tentar alcançar um quadro
mais amplo da estrutura existencial do homem (Holanda, 2001). Segundo Laing (1973):
148

Indubitavelmente, a maioria das pessoas considera “realmente” verdade o que se


relaciona com a gramática e a natureza. Uma pessoa pode dizer que está morta
embora esteja viva. Mas sua “verdade” diz que ele está morto. Manifesta-o talvez
da única maneira em que o senso comum (isto é, comunal) o permite. Ele quer dizer
que está “realmente” e “literalmente” morto, e não apenas de maneira simbólica, ou
“de certo modo”, “por assim dizer”, e seriamente decidido a comunicar a sua
verdade. O preço, porém, a pagar por transvalidar a verdade comunal, é “ser” louco,
pois a única morte real que reconhecemos é a biológica. (p. 20)

Muitas vezes precisamos sustentar a ideia de que “a fala delirante”, por exemplo, tem
sentido. Muitas vezes temos que auxiliar a família a aceitar essa ideia já que o modelo hegemônico
diz que aquilo é apenas um sintoma sem sentido algum além de apontar a presença de uma doença.
Um esforço para a escuta que deve ser realizada de forma aberta às diferentes expressões humanas
muitas vezes tão incomuns, exóticas, únicas. De acordo com Figueiredo (1995):

Compreender é, de alguma forma, elucidar a experiência vivida que se manifesta


pelos ou nos atos comunicativos. Ora, os atos comunicativos são sempre atos de um
indivíduo historicamente e culturalmente datados, articulados ao conjunto
estruturado da biografia individual que, por sua vez, integra-se ao sistema total das
formas culturais. É só nessa articulação com o conjunto da vida do indivíduo e da
sociedade que o ato adquire um sentido. (p. 151)

Os atos, expressões, percepções do sujeito apresentam sua história, sua vida, os sentidos
que atribui ao mundo, seu contexto. Debruçar-se sobre os sentidos dessas expressões, para além
de as enquadrar enquanto sintomas, é conhecer o sujeito, é uma fonte de informações, potenciais,
recursos e histórias.

Apesar dos comentários do paciente soarem incompreensíveis nos primeiros


encontros, depois de um tempo pode ser visto que na verdade o paciente estava
falando de eventos reais em sua vida. Frequentemente esses incidentes incluem
149

alguns elementos amedrontadores e ameaçadores que o paciente não conseguiu


expressar em linguagem verbal antes da crise. As experiências psicóticas
frequentemente incluem incidentes reais, e o paciente está trazendo temas que
ele/ela não tinha palavras anteriormente. Isso é também o caso de outras formas de
dificuldade de comportamento. Uma emoção extrema, como a raiva, depressão ou
ansiedade, o paciente está falando de temas que não foram previamente discutidos.
(Seikkula e Arnkil, 2006, p.53, nossa tradução)

O objetivo do tratamento proposto então é “gerar formas de construir palavras para essas
experiências que não possuíam palavras” (Seikkula e Arnkil, 2006, p.54). O grupo ainda pontua
um aspecto que entendemos como de suma importância, de que durante os primeiros dias da crise,
ou mesmo em nossa compreensão nos momentos mais intensos da crise, temas são expressados,
coisas são ditas, que muitas vezes não serão repetidas com a diminuição da intensidade da crise.
São temas que posteriormente se tornam mais difíceis de serem introduzidos. Em nossa
experiência de campo pudemos perceber que são muitas vezes até mesmo negados pelo próprio
sujeito que os havia expressado.

Nos primeiros dias, as alucinações podem ser manejadas e refletidas, mas depois
que elas facilmente dissipam, e a oportunidade de lidar com ela pode reaparecer
somente depois de dois ou três meses de terapia individual. É como se a janela para
essas experiências extremas estivesse aberta por apenas os primeiros dias. (Seikkula
e Arnkil, 2006, p.54, nossa tradução)

Este é uma visão que não observamos muito comumente nas compreensões do campo em
geral em relação à crise. Muito pelo contrário, parece que quanto mais “delirante” e
“desorganizado”11 o sujeito está menos atenção se dispõe ao que está sendo tido. Em uma conversa
com uma das psicólogas que participou da pesquisa ela trouxe um caso de primeiras crises em que
o rapaz estava no leito do CAPS e ela havia conversado um pouco com ele naquele dia. Ela trouxe

11
Colocamos estes termos entre aspas porque os próprios conceitos exprimem o entendimento de
uma não veracidade ou incompreensibilidade daquilo que está sendo dito.
150

que seu discurso estava muito desorganizado, que ele trazia temas relacionados com o tempo e a
morte. Conversamos sobre a importância de compreender aquilo que estava sendo dito, e ela nos
indagou sobre a viabilidade disso haja visto que o discurso estava muito desorganizado. Ela
continuou realizando essa escuta e pouco a pouco compreendendo os sentidos que se apresentavam
no discurso dele. Porém entendemos a partir dessa conversa e de outras vivências no CAPS que
em situações como esta, costuma-se esperar para que o sujeito “se torne mais compreensível”, que
os sintomas diminuam para que então se busque uma compreensão da situação.
O sujeito em primeira crise do tipo psicóticas se apresenta pleno de sentidos, mesmo
quando se expressando em uma fala delirante, em outra língua ou em catatonia. Todas essas falas
“dizem”, traduzem sentidos. E principalmente, trazem os sentidos mais importantes naquele
momento para o sujeito e para o seu contexto. Através dessa fala e da compreensão do contexto, a
partir de uma escuta de familiares, amigos, professores, colegas de trabalho, etc., podemos nos
aproximar dessa vida e suas dificuldades, que se apresentavam muito antes do momento da crise.
“Trata-se de reconhecer nos atos, aparentemente ‘sem significado’, ‘doentes’, ‘marginais’,
‘inadaptados’ etc., a marca do sociocultural” (Velho, 2003, p.28).
Então se torna necessário também cuidar desse ambiente, das relações com o mundo,
revisitando-as junto ao sujeito enquanto uma construção possível ao potencial daquele sujeito em
suas relações e daqueles atrelados a este sujeito, levado em conta suas potencialidades de mudança
também. A necessidade não é só da mudança do sujeito, mas também do mundo que o cerca.
Segundo Schneider (2009), as reflexões realizadas pela psicopatologia fenomenológica
possibilitaram um rompimento com a noção individualizante do fenômeno patológico. Neste
contexto sociocultural, incluímos a família enquanto instância microcultural, além de aspectos da
própria vida do sujeito, que sempre se encontra em relação com o mundo (Husserl, 1913/2006).

4.9 Não filiação a nenhuma abordagem psicológica ou ideologia

É possível realizar uma atenção às primeiras crises do tipo psicóticas sem a direcionalidade
e unicidade de uma única abordagem psicológica? Buscamos fundamentar nossa proposta na
fenomenologia e acolher as diferentes teorias e perspectivas dos profissionais sobre o fenômeno
das primeiras crises. Um dos maiores desafios dessa pesquisa foi pensar em uma prática de atenção
às primeiras crises do tipo psicóticas que não estivesse filiada a uma abordagem/teoria/linha da
151

Psicologia, ou mesmo que não estivesse filiada à própria Psicologia, pois deveria poder ser
compreendida e utilizada por qualquer área da saúde. Ao projetar esta pesquisa no contexto de um
CAPS, teve que se pensar em uma proposta que acolhesse diferentes profissionais e diferentes
abordagens e compreensões do fenômeno do sofrimento humano. Logo, nossa compreensão é de
que sim, é possível pensar em uma atenção às primeiras crises do tipo psicóticas sem necessitar de
uma filiação em uma só abordagem/teoria psicológica.
152

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atenção às primeiras crises ainda é bastante escassa no Brasil, e segundo McGorry


(2015), é desta forma no mundo todo. Porém, como aponta o autor, temos décadas de pesquisas
que demonstram os benefícios da intervenção precoce, de tal forma que se torna relevante
pensarmos nesse tipo de proposta. Apesar das propostas exigirem um investimento inicial de mais
recursos humanos e tempo, há uma economia desses mesmos investimentos. Isso porque com a
intervenção precoce temos uma menor recidivas de crises e menor chance de cronificação dos
casos. Tendo em vista que a maioria dos casos de primeiras crises iniciam na adolescência e
juventude, a cronificação significaria décadas de gastos em recursos humanos, tempo, e dinheiro
da saúde mental.
Para além das questões econômicas, o principal ganho certamente é para o sujeito e aqueles
mais próximos, seus familiares e amigos. Já que as primeiras crises podem trazer diversos
prejuízos a vida do sujeito e daqueles a sua volta. Seja na perda de emprego, saída da escola ou
faculdade, afastamento de namoradas(os) ou amigas(os), prejuízos financeiros, alto custo de
medicamentos e outros tipos de tratamento e o sofrimento que pode estar atrelado a tudo isso.
Os prejuízos sociais são ainda maiores em primeiras crises do tipo psicóticas. As
expressões do sujeito e seus comportamentos, remetem à representações como a psicose e a
esquizofrenia, o que gera um maior estranhamento na comunidade. Isso porque são expressões que
remetem as representações da “loucura” em nossa cultura. Assim como aos estigmas ligados a ela:
periculosidade, irracionalidade, perda de autonomia, necessidade de uso de medicações de forma
permanente, expectativa de prejuízos sociais e cognitivos. O que gera um contexto de total
desesperança para o sujeito e seus familiares. Também reflete nas atitudes dos profissionais que
muitas vezes por entenderem esses sinais como “pré-psicose”, o início de uma esquizofrenia por
exemplo, tendem a responder de forma muitas vezes exacerbada, com excesso de medicamentos e
internações.
Entendemos que precisamos compreender melhor as especificidades das primeiras crises e
o melhor tipo de atenção que podemos ofertar. A ideia desta pesquisa foi levantar o máximo de
informações sobre a experiência dessa proposta de atenção dentro do contexto do SUS,
especificamente do CAPS. Iniciamos o processo com um grupo de estudos que pudesse aprofundar
o tema e adequar o tipo de atenção à realidade do CAPS. Porém ao longo desse período observamos
153

algumas questões que necessitavam serem adereçadas. Notamos que muito das práticas que eram
relatadas e observadas tinham por detrás uma lógica biomédica, naturalista, com o foco apenas no
individuo, considerado “o doente”, cujo principal objetivo era a retirada de sintomas. Esse tipo de
lógica gerava uma centralidade no medicamento, profissionais bastante interessados em delimitar
o diagnóstico, classificando comportamentos, ênfase do controle e tutela. A crise era considerada
uma doença que deveria ser controlada, os comportamentos eram considerados como sintomas que
deveriam ser extirpados ou minimizados. Percebemos que ainda não superamos a tradição
biomédica. Demonstramos ao longo do primeiro capítulo a partir de documentos oficinais e da
experiência de campo que a crise é compreendida como uma exacerbação da doença, prontamente
considerada de forma negativa, relacionada a urgência e emergência e por consequência ao risco,
a imprevisibilidade, a periculosidade e ao medo. Como consequência um manejo da situação de
crise majoritariamente voltado a contenções químicas e físicas.
Também percebemos que a crise é considerada como algo do indivíduo apenas, que não
tem relação com seu contexto ou outras pessoas. Assim, a família fica alheia na maior parte do
tempo ao cuidado provido a seu parente. E os profissionais consideram o processo de cuidado sob
sua responsabilidade, unicamente, sobrecarregando cada terapeuta que já possui cerca de 40 à 60
sujeitos em crise para cuidar, considerando o contexto do CAPS em questão. Propiciando também
movimentos mais voltados à tutelagem do que à auto-gestão e compartilhamento do cuidado. A
autoridade do profissional frente ao tratamento prevalece.
A medicação também permanece na centralidade da atenção à crise, reforçando a tradição
organicista ainda presente e a representação do sintoma como expressão de doença, que como tal
deve ser rapidamente diminuído ou cessado. Pouco se leva em conta os sentidos individuais e
familiares atribuídos à crise. Notamos que a não consideração pelos sentidos dos sujeitos
atribuídos as suas vivências de crise, os afasta dos dispositivos de saúde. Além disso, demonstra-
se através dessas ações um desrespeito em relação ao próprio sujeito e sua família.
Pontuamos que o consideramos como crise está ligada a contextos históricos e culturais, é
delimitada pelo olhar do outro. E este olhar frente ao “estranho” ao “diferente” a expressões e
comportamentos que “desviam” que “divergem” do que é normativo torna as expressões típicas
da vida humana como algo a ser remediado, enquadrado, atendido. Demonstrando a dificuldade
humana em lidar com o diverso, com o diferente.
154

A experiência de uma atenção às primeiras crises do tipo psicóticas que propusemos em


um CAPS III de Curitiba nos possibilitou várias reflexões e problematizações referentes a saúde
mental como um todo. Neste processo pudemos chegar a conclusão que propor uma atenção as
primeiras crises não é o ato de descriminar estruturas, tipos de atividade e terapêuticas indicadas;
não se trata de técnicas ou de formatos (atendimento em grupo ou psicoterapia individual). Mas
acima de tudo, trata-se de um cuidado reflexivo, crítico, não-dogmático, não-determinista. Antes
de nos preocuparmos com ações, é preciso que nos preocupemos com pensamentos, premissas,
lógicas, que direcionam e influenciam nossas práticas. De nada adianta a forma ou a técnica, se o
ato ainda é manicomial, objetivante, tutelar.
Para pensar então em uma atenção às primeiras crises do tipo psicóticas que não recaia em
uma mesma lógica manicomial da qual quase sempre foi refém, é necessário que sejam repensadas
as compreensões anteriores a essas práticas. Para isso então, a proposta de atenção às primeiras
crises do tipo psicóticas partiu de esforço de realizar uma anterioridade reflexiva da pesquisadora
e dos profissionais a respeito do fenômeno das primeiras crises do tipo psicóticas. Percebemos que
o modelo epistemológico positivista, típico das ciências naturais, advindo da revolução científica
da modernidade ainda embasa nossas ações. Entendemos que a prática da saúde mental não se dá
apenas por decreto de leis e portaria, mas por sujeitos com pressupostos e formas de pensar que
não se desconstroem tão naturalmente. Tornou-se essencial uma reflexão anterior a respeito das
lógicas e fundamentos por detrás dos saberes e práticas inseridas no contexto da saúde mental.
Utilizamos para isso como fundamento básico a fenomenologia, partindo de Husserl. A
fenomenologia serviu aqui como epistemologia, como base para a construção de conhecimento e
da relação com o objeto estudado. A ideia não era ensinar aos profissionais a fenomenologia, mas
pensar em como nosso conhecimento sobre a fenomenologia poderia auxiliar nesse processo de
construção da atenção às primeiras crises do tipo psicóticas. Não significou a transposição da
fenomenologia filosófica de Husserl à atenção às primeiras crises, isso seria ingênuo e simplista.
A fenomenologia possibilitou um solo fundamental, um piso epistemológico de construção
de conhecimentos, e por consequência de práticas, que buscam não cair nas naturalizações tão
típicas do positivismo e das posições ideológicas que encontramos na saúde mental. Também
propicia um escapa às dicotomias e polaridades encontradas nos discursos da saúde mental, ora
focalizando apenas no sujeito e em seu corpo, ora buscando explicar a totalidade do ser em sua
história pregressa, ou culpabilizando o mundo social pela loucura humana. Exemplos do
155

reducionismo que encontramos também deste campo. Em prol de uma compreensão dos
fenômenos humanos de forma complexa, intersubjetiva, também escapando da posição idealista
ou materialista.
A fenomenologia já serviu como base para outros movimentos de transformação dentro do
campo da saúde mental e da psicopatologia, como pudemos observar no segundo capítulo. Através
dessa fundamentação foi possível acolher diferentes olhares, de diferentes áreas e compreensões
sobre o fenômeno possibilitando uma maior amplitude na compreensão. Ao invés de optarmos por
uma proposta que partisse de uma única abordagem psicológica, carregada de conceitos
incompreensíveis para os outros profissionais. Nosso objetivo não era criar uma proposta
excludente, mas integrativa.
Através da fenomenologia buscamos resgatar a riqueza qualitativa e subjetiva da
experiência humana, considerando sua interação ao mundo da vida. Em uma necessária e constante
reflexão crítica, colocando os fenômenos que apareciam a nós como centro da experiência de
pesquisa. Enquanto fundamento para uma prática de atenção às primeiras crises do tipo psicóticas
buscamos contato com o modo de ser de cada sujeito e de cada família, colocando a “doença”, o
“sintoma”, dentre outros pressupostos a respeito das crises e da psicopatologia, entre parênteses
para encontrar com a complexidade dos fenômenos humanos na singularidade dos sujeitos que
participaram da pesquisa. Não os reduzindo ao biologismo, psicologismo ou sociologismo.
Buscando compreender os sentidos e vivências atreladas a situação de crise.
A postura compreensiva fenomenológica pressupõe necessária uma multiplicidade de
olhares para maior entendimento de um fenômeno tão complexo. Evita-se a dualidade indivíduo
versus social ou corpo versus mente, entende-se esses como aspectos de um mesmo fenômeno.
Assim, através da postura epistemológica fenomenológica, compreendemos que o momento da
primeira crise do tipo psicótica não é apenas do indivíduo, nem apenas da sociedade, mas de
ambos, indivíduo, família, relações sociais, sociedade. Partindo dessa compreensão não há manejo
dedicado apenas ao indivíduo, nem apenas ao corpo, nem apenas à sociedade. As intervenções
devem ser múltiplas e dedicadas também a múltiplos sujeitos, não só ao sujeito em crise.
Entende-se que uma só teoria não dá conta da totalidade desse fenômeno, e que a
aproximação compreensiva frente ao fenômeno deve ser sem que se pressuponha certezas sobre o
mesmo. Que essa aproximação se dê com a bagagem de diversas teorias sobre este fenômeno, mas
156

que estas teorias possam ser colocadas entre parênteses, para que se possa permanecer com o
próprio fenômeno.
A principal ação dessa pesquisa não foi ensinar métodos interventivos, mas propor uma
constante reflexão anterior a quaisquer ações pragmáticas. Reflexões a respeito dos preconceitos,
das pré-suposições teóricas, das técnicas e ações clínicas, dos olhares e posturas frente aos
participantes da pesquisa. Buscou-se, através da fenomenologia, um fundamento dessa prática
reflexiva. Um constante questionamento e crítica sobre a ação, a postura, o olhar, a escuta, que se
fazia nessa atenção. A fenomenologia nos auxiliou também na leitura de um sujeito concreto,
empírico, corpóreo, histórico, mundano. E, enquanto tal, exigia uma compreensão mais complexa
sobre o fenômeno das primeiras crises do tipo psicóticas.
A forma como o profissional se posiciona e compreende o fenômeno estabelecerá a forma
como irá se portar e promover a atenção oferecida. Aa psiquiatria e a psicopatologia foram
construídas a partir do sujeito do suposto saber (médico, psiquiatra, psicólogo) que explica a
correlação entre os sintomas percebidos e psicopatologia que aflige a pessoa. Esta correlação se
dá a partir de causalidades mecanicistas e lineares, deterministas (orgânicos, psíquicos e
posteriormente se introduz também o social). O tratamento se dá, então, a partir dessa postura
inicial frente ao fenômeno em uma lógica de tratamento individualista (na qual o sujeito da
“doença mental” é o que deve receber o tratamento, ninguém mais). Na qual o sujeito é visto como
um objeto a ser explicado. Ou seja, o modelo manicomial. Ainda se presente a compreensão do
fenômeno psicopatológico de forma: individualizada, determinista, causalista, com o
protagonismo dos profissionais sobre o cuidado.
Há por detrás da escolha por uma aproximação do fenômeno não-determinista, não-
explicativa, uma questão ética. Se o outro é uma determinação de seu corpo, de seu meio social,
do que lhe aconteceu ou de instâncias psíquicas pré-determinadas, ele se torna objeto, assujeitado,
um sujeito que não escolhe e por isso nada tem a dizer sobre seu sofrimento. Não se trata de uma
escolha por afinidade, mas acima de tudo, por uma escolha a partir de uma reflexão ética.
Ao final do processo buscamos construir uma atenção às primeiras crises do tipo psicóticas
que problematiza o conceito de psicose e a utilização de diagnósticos de forma precoce e
displicente. Não compreendendo os fenômenos das primeiras crises do tipo psicóticas de antemão
como doenças, estes são acima de tudo vivências que devem ser compreendidas e não
157

categorizadas. Nenhuma vivência é negativa ou patológica em si, somente podemos a compreender


a partir de um contexto.
Priorizamos o sujeito e seu contexto. Entendemos o momento de crise não apenas como
algo negativo, mas como uma situação de risco ou oportunidade. Por conter o risco de prejuízos
graves a vida do sujeito ressaltamos a necessidade de uma atenção especial as primeiras crises.
Mas também entendemos que esse momento pode oportunizar ao sujeito diversas transformações
de sua realidade, ressignificações e modificações em suas relações. Entendemos que este cuidado
nos primeiros momentos da crise, muitas vezes intensos para o sujeito e seu entorno, é importante
um cuidado intensivo, com profissionais presentes, flexíveis e disponíveis. Importante ressaltar o
momento privilegiado de compreensão do fenômeno da crise em seus primeiros momentos,
enquanto os sintomas ainda estão exacerbados.
Há também devido a complexidade da situação de crise do tipo psicótica discussões
constantes e aprofundadas sobre os casos. É essencial o cuidado não só do sujeito mas de sua
família e de suas relações sociais, a crise não é somente do indivíduo, e realizar o cuidado somente
a partir deste é negligenciar o potencial intersubjetivo das relações humanas. O acolhimento e
acompanhamento do caso deve ser sempre respeitoso e compreensivo.
A transparência nos processos de pensar o caso frente a família trocando informações e
percepções de forma sincera e aberta. Buscando o contexto de parceria ao invés de objetificação,
uma gestão do cuidado compartilhada buscando incentivar a autonomia do sujeito e de sua família
e outros sujeitos importantes em sua vida. A proposta de atenção é singularizada, não há um
modelo a ser seguido, não há uma construção prévia, há o encontro e a flexibilidade frente as
necessidades de cada caso.
Tomamos como base uma estrutura geral para a realização da atenção às primeiras crises
do tipo psicóticas: acolhimento, encontros familiares e individuais, outros
acompanhamentos/atividades e conversas com a equipe. Esta é uma estrutura que os profissionais
nos sinalizaram que não é possível de ser mantida, da forma como estávamos realizando, após
nossa saída do CAPS, por falta de profissional e tempo. Entendemos como importante a dedicação
de tempo para cada caso, seja no manejo à crise, nos encontros familiares e individuais ou nas
discussões sobre o caso com outros profissionais. Consideramos esses aspectos como metas para
o futuro da atenção às primeiras crises, em que os serviços que não estejam tão sobrecarregados
para que os profissionais tenham mais tempo e disponibilidade em cada caso. Mas também
158

entendemos que é essa a realidade atual que temos: pouco tempo, muita demanda. Assim
entendemos que existem alguns pontos que consideramos essenciais para a atenção às primeiras
crises. Esses pontos básicos foram elencados a partir dos grupos que realizam esse tipo de
atendimento atualmente, a experiência de campo dessa pesquisa e análise que foi realizada a partir
dela.
Houveram limitações a esta pesquisa. Uma delas foi o tempo entre o início do grupo de
estudos e os atendimentos às primeiras crises, essa demora gerou uma frustração nos profissionais
e a sensação de estarem muito sozinhos no início da pesquisa. Entendemos também quer seria
necessário mais tempo de acompanhamento dos casos, mas por falta de tempo, devido a
necessidade de término da pesquisa, isso não foi possível. Não descrevemos com profundidade
cada caso no corpo da tese, pois esse não era o objetivo principal da pesquisa, mas o material
coletado se encontra a disposição para que possam ser realizadas pesquisas posteriores sobre cada
caso. Nosso grupo de pesquisa já iniciou o estudo de cada caso atendido. Pretendemos publicar
um artigo para cada estudo de caso realizado.
Algumas dificuldades que encontramos em meio ao processo da atenção às primeiras crises
do tipo psicóticas foi a participação de todos os membros da família. A participação da família na
atenção dentro do contexto da saúde mental é um desafio. É uma cultura ainda a ser construída,
nem a família, nem o serviço está acostumado a essa participação. Era comum vir apenas um
membro da família, ou o pai e a mãe e os irmãos não comparecerem. Também foi difícil manter o
acompanhamento das famílias quando o sujeito em crise começava a “melhorar” na percepção da
família, eles observavam a diminuição de algumas das expressões e comportamentos que os levou
a pedir ajuda. Muitas vezes isso fazia com que a família entendesse que o “problema estava
resolvido” e diminuíssem ou cessassem por completo a participação nos encontros.
Também entendemos que o ideal seria que a porta de entrada das primeiras crises fosse na
atenção básica. Isso facilitaria a atenção mais próxima da comunidade e a não patologização do
fenômeno das primeiras crises. Seria interessante também que pudéssemos estar mais presentes,
com encontros mais de uma vez na semana em alguns momentos, e que pudéssemos ter utilizado
melhor os recursos das comunidades de cada sujeito e sua família.
Finalmente trazemos talvez nossa maior dificuldade durante a pesquisa, a falta de tempo e
de profissionais no CAPS. A falta de tempo do profissional acaba precarizando todo o processo.
Desde os profissionais que não se dispõe a refletir sobre as primeiras crises e a pensar sua atuação
159

de forma diferenciada, até o tempo de manejo de crise, as conversas com a família, as visitas
domiciliares, conversas individuais com a pessoa em primeira crise. Estes pareciam ser desejos
dos profissionais e do entendimento deles que era o melhor a se fazer nesses casos, mas pela falta
de tempo muito disso não era possível.
De qualquer forma nenhuma dessas dificuldades impossibilita de pensarmos em formas de
atenção às primeiras crises do tipo psicóticas em nossos serviços do SUS. Como mencionamos
entendemos que a proposta de atenção às primeiras crises do tipo psicóticas propostas pela
pesquisa se torna inviável com a saída dos pesquisadores devido a falta de tempo e de profissionais,
especialmente pelos atendimentos familiares. Mas compreendemos ao longo da pesquisa que o
mais importante não está na quantidade de encontros, ou nos formatos destes, mas na qualidade da
atenção prestada, que esteja disponível a flexibilizar o serviço e as formas de atuação às
necessidades de cada caso. A partir das bases que elencamos talvez seja possível que mesmo sem
muita disponibilidade de tempo haja uma qualificação na atenção às primeiras crises do tipo
psicóticas que encontramos atualmente. É um desafio que temos pela frente e esperamos que esta
pesquisa possa auxiliar às próximas pesquisas e serviços que estejam preocupados com essa
temática.
Entendemos que as crises fazem parte da vida. Pode ser uma oportunidade de
transformação, de problematização de algum aspecto do mundo da vida, ou mesmo de descoberta
de outros sentidos dessa relação com o mundo. Assim como pode significar sofrimento, perda de
alternativas e escolhas diante as possibilidades da vida. Falar da necessidade de atenção às
primeiras crises não quer dizer que precisamos as patologizar a vivência das primeiras crises. Não
acreditamos que haja um modelo ideal de atenção às primeiras crises do tipo psicóticas, mas sim
algumas reflexões que são importantes para pensar na atenção nesse contexto.
Estas foram construções realizadas ao longo da pesquisa. Porém não são permanentes pois
a atenção às primeiras crises do tipo psicóticas deve ser um processo em constante construção,
sendo repensado de forma crítica a todo momento. No instante que se torne um modelo, se torna
dogmático e perde todo seu potencial enquanto ação prática. Hoje temos o grupo PEQUI – Grupo
de Pesquisa e Acolhimento das Primeiras Crises do Tipo Psicóticas na FAE Centro Universitário.
O grupo busca a partir dessa proposta de atenção acolher os casos de primeiras crises da
comunidade de Curitiba e entorno, sempre em diálogo com a comunidade, SUS, SUAS e outros
órgãos governamentais que possam auxiliar nos casos atendidos.
160

O grupo possui esse nome em homenagem ao GIPSI que é do cerrado assim como o pequi,
também por suas características, fruta que nasce do pequizeiro, árvore que sobrevive as mais dura
intemperes do clima, e mesmo nas queimadas pode sobreviver pois suas raízes são profundas e
encontram água mesmo nos locais mais áridos. Além disso o pequi é uma fruta que exige um
manejo ao ser ingerida pois possui muitos espinhos, seu gosto também não agrada a todos, é
singular, peculiar. Assim também são as crises do tipo psicóticas ao nosso ver, singulares,
peculiares, nem todos estão dispostos a atender crises, muito menos as do tipo psicóticas. O manejo
também não é simples, deve ser cuidadoso. Mas acima de tudo entendemos que as pessoas em
primeiras crises do tipo psicóticas são guerreiras, aguentam as mais duras intemperes da vida, são
sobreviventes dos desafios da vida.
161

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170

ANEXO 1
171
172
173
174
175
176
177
178

ANEXO 2
179
180
181

ANEXO 3

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE

Convidamos o(a) Senhor(a) a participar do projeto de pesquisa “Implementação de um projeto de


atenção às primeiras crises do tipo psicóticas em um CAPS III de Curitiba: um estudo fenomenológico”,
sob a responsabilidade da pesquisadora Mariana Cardoso Puchivailo, aluna de Programa de Pós-
Graduação/Doutorado em Psicologia da Universidade de Brasília. O projeto se trata de uma pesquisa sobre
a atenção às crises do tipo psicóticas.
O objetivo desta pesquisa é: avaliar processo de implementação de um projeto de atenção às
primeiras crises do tipo psicóticas em um CAPS III de Curitiba a partir de um modelo de atendimento do
Grupo de Intervenção Precoce em Primeiras Crises do Tipo Psicóticas (GIPSI), que utiliza além do
atendimento individual, a terapia familiar. A importância dessa pesquisa se dá pela possibilidade de
compreensão de novas formas de intervenções nas primeiras crises do tipo psicóticas. Assim, gostaria de
consultá-lo(a) sobre seu interesse e disponibilidade de cooperar com a pesquisa.
O(a) senhor(a) receberá todos os esclarecimentos necessários antes e no decorrer da pesquisa e lhe
asseguramos que seu nome não aparecerá sendo mantido o mais rigoroso sigilo pela omissão total de
quaisquer informações que permitam identificá-lo(a).
A sua participação se dará por meio de uma entrevista inicial, de psicoterapia individual, terapia
familiar e de uma entrevista final. As entrevistas terão a duração de cerca de 30 minutos. As sessões terão
duração de 1 hora à 1 hora e meia, e o processo como um todo terá a duração de 3 a 8 meses. É para estes
procedimentos que você está sendo convidado a participar. Esses procedimentos serão realizados em um
CAPS III de Curitiba frequentado pelo participante.
Os riscos decorrentes de sua participação na pesquisa são alterações emocionais, tais como euforia,
tristeza, raiva, etc. Em relação a tais alterações, entende-se que evidenciar sentimentos é previsível e
esperado diante de um tratamento oferecido pelos serviços de saúde. Tais alterações serão acolhidas e
trabalhadas nas sessões ou durante a entrevista. Espera-se com esta pesquisa você posso ter a oportunidade
de vivenciar o que sente e o aflige, podendo buscar alternativas para auxiliar o enfrentamento de seus
conflitos, atenuando seu sofrimento intenso. Se você aceitar participar, estará contribuindo para o avanço
científico na área de atenção à crises do tipo psicóticas.
O(a) Senhor(a) pode se recusar a responder (ou participar de qualquer procedimento) qualquer
questão que lhe traga constrangimento, podendo desistir de participar da pesquisa em qualquer momento
sem nenhum prejuízo para o(a) senhor(a). Sua participação é voluntária, isto é, não há pagamento por sua
colaboração.
Todas as despesas que você e seu acompanhante tiverem relacionadas diretamente ao projeto de
pesquisa (tais como, passagem para o local da pesquisa, alimentação no local da pesquisa ou exames para
realização da pesquisa) que já não forem cobertas pelo CAPS ou Prefeitura de Curitiba serão cobertas pelo
pesquisador responsável. Caso haja algum dano direto ou indireto decorrente de sua participação na
pesquisa, você poderá ser indenizado, obedecendo-se as disposições legais vigentes no Brasil.
Sua participação é voluntária e livre de qualquer remuneração ou benefício. Você é livre
para recusar-se a participar, retirar seu consentimento ou interromper sua participação a qualquer
momento e solicitar que lhe devolvam o termo de consentimento livre e esclarecido assinado. A
recusa em participar não irá acarretar qualquer penalidade ou perda de benefícios, não implicará
na interrupção de seu atendimento e/ou tratamento, que está assegurado.
182

Não haverá nenhum custo a você, relacionado aos procedimentos previstos no estudo. Você não
será pago por sua participação neste estudo. Caso haja algum dano direto ou indireto decorrente de sua
participação na pesquisa, você poderá ser indenizado, obedecendo-se as disposições legais vigentes no
Brasil.
Os resultados da pesquisa serão divulgados na Universidade de Brasília podendo ser publicados
posteriormente. Os dados e materiais serão utilizados somente para esta pesquisa e ficarão sob a guarda do
pesquisador por um período de cinco anos, após isso serão destruídos. Se o(a) Senhor(a) tiver qualquer
dúvida em relação à pesquisa, por favor telefone para: Mariana Cardoso Puchivailo, telefone 041 8834-
6844, disponível inclusive para ligação a cobrar, ou pelo e-mail marianapuchivailo@yahoo.com.br.
Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da Saúde
(CEP/FS) da Universidade de Brasília e sua viabilidade foi verificada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba (CEP/SMS). O CEP é composto por profissionais de diferentes
áreas cuja função é defender os interesses dos participantes da pesquisa em sua integridade e dignidade e
contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos. As dúvidas com relação à assinatura
do TCLE ou os direitos do participante da pesquisa podem ser esclarecidos pelo telefone (61) 3107-1947
ou do e-mail cepfs@unb.br ou cepfsunb@gmail.com, horário de atendimento de 10:00hs às 12:00hs e de
13:30hs às 15:30hs, de segunda a sexta-feira. O CEP/FS se localiza na Faculdade de Ciências da Saúde,
Campus Universitário Darcy Ribeiro, Universidade de Brasília, Asa Norte. O Comitê de Ética em Pesquisa
da Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba (CEP/SMS) se encontra no endereço: Rua Atilio Bório, n°
680, Bairro Cristo Rei, Curitiba, PR - CEP 80.050-250, o e-mail para contato é:
etica@sms.curitiba.pr.gov.br e telefone: (41) 3360-4961. Caso concorde em participar, pedimos que assine
este documento que foi elaborado em duas vias, uma ficará com o pesquisador responsável e a outra com o
Senhor(a).

__________________________________________
Nome / assinatura

___________________________________________
Pesquisador Responsável
Mariana Cardoso Puchivailo

Curitiba, ____ de ______________de _______.


183

ANEXO 4

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE

Convidamos o(a) Senhor(a) a participar do projeto de pesquisa “Implementação de um projeto de


atenção às primeiras crises do tipo psicóticas em um CAPS III de Curitiba: um estudo fenomenológico”,
sob a responsabilidade da pesquisadora Mariana Cardoso Puchivailo, aluna de Programa de Pós-
Graduação/Doutorado em Psicologia da Universidade de Brasília. O projeto se trata de uma pesquisa sobre
a atenção à crises do tipo psicóticas.
O objetivo desta pesquisa é: avaliar processo de implementação de um projeto de atenção às
primeiras crises do tipo psicóticas em um CAPS III de Curitiba a partir de um modelo de atendimento do
Grupo de Intervenção Precoce em Primeiras Crises do Tipo Psicóticas (GIPSI), que utiliza além do
atendimento individual, a terapia familiar. A importância dessa pesquisa se dá pela possibilidade de
compreensão de novas formas de intervenções nas primeiras crises do tipo psicóticas. Assim, gostaria de
consultá-lo(a) sobre seu interesse e disponibilidade de cooperar com a pesquisa.
O(a) senhor(a) receberá todos os esclarecimentos necessários antes e no decorrer da pesquisa e lhe
asseguramos que seu nome não aparecerá sendo mantido o mais rigoroso sigilo pela omissão total de
quaisquer informações que permitam identificá-lo(a).
A sua participação se dará por meio de uma entrevista que terá a duração de cerca de 30 minutos a
respeito de sua participação nos casos da pesquisa enquanto profissional do CAPS. É para estes
procedimentos que você está sendo convidado a participar.
Os riscos decorrentes de sua participação na pesquisa são o desconforto que poderá sentir ao
compartilhar informações pessoais, confidenciais ou em tópicos que possa sentir incômodo em falar. O(a)
senhor(a) não precisa responder a qualquer pergunta ou parte de informações obtidas em
debate/entrevista/pesquisa, se sentir que ela é muito pessoal ou sentir desconforto em falar. Se você aceitar
participar, estará contribuindo para o avanço científico na área de atenção à crises do tipo psicóticas.
O(a) Senhor(a) pode se recusar a responder (ou participar de qualquer procedimento) qualquer
questão que lhe traga constrangimento, podendo desistir de participar da pesquisa em qualquer momento
sem nenhum prejuízo para o(a) senhor(a). Sua participação é voluntária, isto é, não há pagamento por sua
colaboração.
Todas as despesas que você tiver relacionadas diretamente ao projeto de pesquisa (tais como,
passagem para o local da pesquisa, alimentação no local da pesquisa ou exames para realização da pesquisa)
que já não forem cobertas pelo CAPS ou Prefeitura de Curitiba serão cobertas pelo pesquisador responsável.
Caso haja algum dano direto ou indireto decorrente de sua participação na pesquisa, você poderá ser
indenizado, obedecendo-se as disposições legais vigentes no Brasil.
Sua participação é voluntária e livre de qualquer remuneração ou benefício. Você é livre
para recusar-se a participar, retirar seu consentimento ou interromper sua participação a qualquer
momento e solicitar que lhe devolvam o termo de consentimento livre e esclarecido assinado. A
recusa em participar não irá acarretar qualquer penalidade ou perda de benefícios, não implicará
na interrupção de seu atendimento e/ou tratamento, que está assegurado.
Não haverá nenhum custo a você, relacionado aos procedimentos previstos no estudo. Você não
será pago por sua participação neste estudo. Caso haja algum dano direto ou indireto decorrente de sua
participação na pesquisa, você poderá ser indenizado, obedecendo-se as disposições legais vigentes no
Brasil.
184

Os resultados da pesquisa serão divulgados na Universidade de Brasília podendo ser publicados


posteriormente. Os dados e materiais serão utilizados somente para esta pesquisa e ficarão sob a guarda do
pesquisador por um período de cinco anos, após isso serão destruídos.
Se o(a) Senhor(a) tiver qualquer dúvida em relação à pesquisa, por favor telefone para: Mariana
Cardoso Puchivailo, telefone 041 8834-6844, disponível inclusive para ligação a cobrar, ou pelo e-mail
marianapuchivailo@yahoo.com.br.
Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da Saúde (CEP/FS)
da Universidade de Brasília e sua viabilidade foi verificada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria
Municipal da Saúde de Curitiba (CEP/SMS). O CEP é composto por profissionais de diferentes áreas cuja
função é defender os interesses dos participantes da pesquisa em sua integridade e dignidade e contribuir
no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos. As dúvidas com relação à assinatura do TCLE
ou os direitos do participante da pesquisa podem ser esclarecidos pelo telefone (61) 3107-1947 ou do e-
mail cepfs@unb.br ou cepfsunb@gmail.com, horário de atendimento de 10:00hs às 12:00hs e de 13:30hs
às 15:30hs, de segunda a sexta-feira. O CEP/FS se localiza na Faculdade de Ciências da Saúde, Campus
Universitário Darcy Ribeiro, Universidade de Brasília, Asa Norte. O Comitê de Ética m Pesquisa da
Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba (CEP/SMS) se encontra no endereço: Rua Atilio Bório, n° 680,
Bairro Cristo Rei, Curitiba, PR - CEP 80.050-250, o e-mail para contato é: etica@sms.curitiba.pr.gov.br e
telefone: (41) 3360-4961.
Caso concorde em participar, pedimos que assine este documento que foi elaborado em duas vias,
uma ficará com o pesquisador responsável e a outra com o Senhor(a).

__________________________________________
Nome / assinatura

___________________________________________
Pesquisador Responsável
Mariana Cardoso Puchivailo

Curitiba, ____ de ______________de _______.


185

ANEXO 5

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE

Convidamos o(a) Senhor(a) a participar do projeto de pesquisa “Implementação de um projeto de


atenção às primeiras crises do tipo psicóticas em um CAPS III de Curitiba: um estudo fenomenológico”,
sob a responsabilidade da pesquisadora Mariana Cardoso Puchivailo, aluna de Programa de Pós-
Graduação/Doutorado em Psicologia da Universidade de Brasília. O projeto se trata de uma pesquisa sobre
a atenção à crises do tipo psicóticas.
O objetivo desta pesquisa é: avaliar processo de implementação de um projeto de atenção às
primeiras crises do tipo psicóticas em um CAPS III de Curitiba a partir de um modelo de atendimento do
Grupo de Intervenção Precoce em Primeiras Crises do Tipo Psicóticas (GIPSI), que utiliza além do
atendimento individual, a terapia familiar. A importância dessa pesquisa se dá pela possibilidade de
compreensão de novas formas de intervenções nas primeiras crises do tipo psicóticas. Assim, gostaria de
consultá-lo(a) sobre seu interesse e disponibilidade de cooperar com a pesquisa.
O(a) senhor(a) receberá todos os esclarecimentos necessários antes e no decorrer da pesquisa e lhe
asseguramos que seu nome não aparecerá sendo mantido o mais rigoroso sigilo pela omissão total de
quaisquer informações que permitam identificá-lo(a).
A sua participação se dará por meio de uma entrevista inicial, terapia familiar e de uma entrevista
final. As entrevistas terão a duração de cerca de 30 minutos. As sessões terão duração de 1 hora à 1 hora e
meia, e o processo como um todo terá a duração de 3 à 8 meses. É para estes procedimentos que você está
sendo convidado a participar. Esses procedimentos serão realizados em um CAPS III de Curitiba
frequentado pelo participante.
Os riscos decorrentes de sua participação na pesquisa são alterações emocionais, tais como euforia,
tristeza, raiva, etc. Em relação a tais alterações, entende-se que evidenciar sentimentos é previsível e
esperado diante de um tratamento oferecido pelos serviços de saúde. Tais alterações serão acolhidas e
trabalhadas nas sessões ou durante a entrevista. Espera-se com esta pesquisa você posso ter a oportunidade
de vivenciar o que sente e o aflige, podendo buscar alternativas para auxiliar o enfrentamento de seus
conflitos, atenuando seu sofrimento intenso. Se você aceitar participar, estará contribuindo para o avanço
científico na área de atenção à crises do tipo psicóticas.
O(a) Senhor(a) pode se recusar a responder (ou participar de qualquer procedimento) qualquer
questão que lhe traga constrangimento, podendo desistir de participar da pesquisa em qualquer momento
sem nenhum prejuízo para o(a) senhor(a). Sua participação é voluntária, isto é, não há pagamento por sua
colaboração.
Todas as despesas que você tiver relacionadas diretamente ao projeto de pesquisa (tais como,
passagem para o local da pesquisa, alimentação no local da pesquisa ou exames para realização da pesquisa)
que já não forem cobertas pelo CAPS ou Prefeitura de Curitiba serão cobertas pelo pesquisador responsável.
Caso haja algum dano direto ou indireto decorrente de sua participação na pesquisa, você poderá ser
indenizado, obedecendo-se as disposições legais vigentes no Brasil.
Sua participação é voluntária e livre de qualquer remuneração ou benefício. Você é livre
para recusar-se a participar, retirar seu consentimento ou interromper sua participação a qualquer
momento e solicitar que lhe devolvam o termo de consentimento livre e esclarecido assinado. A
recusa em participar não irá acarretar qualquer penalidade ou perda de benefícios, não implicará
na interrupção de seu atendimento e/ou tratamento, que está assegurado.
186

Não haverá nenhum custo a você, relacionado aos procedimentos previstos no estudo. Você não
será pago por sua participação neste estudo. Caso haja algum dano direto ou indireto decorrente de sua
participação na pesquisa, você poderá ser indenizado, obedecendo-se as disposições legais vigentes no
Brasil. Os resultados da pesquisa serão divulgados na Universidade de Brasília podendo ser publicados
posteriormente. Os dados e materiais serão utilizados somente para esta pesquisa e ficarão sob a guarda do
pesquisador por um período de cinco anos, após isso serão destruídos.
Se o(a) Senhor(a) tiver qualquer dúvida em relação à pesquisa, por favor telefone para: Mariana
Cardoso Puchivailo, telefone 041 8834-6844, disponível inclusive para ligação a cobrar, ou pelo e-mail
marianapuchivailo@yahoo.com.br.
Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da Saúde
(CEP/FS) da Universidade de Brasília e sua viabilidade foi verificada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba (CEP/SMS). O CEP é composto por profissionais de diferentes
áreas cuja função é defender os interesses dos participantes da pesquisa em sua integridade e dignidade e
contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos. As dúvidas com relação à assinatura
do TCLE ou os direitos do participante da pesquisa podem ser esclarecidos pelo telefone (61) 3107-1947
ou do e-mail cepfs@unb.br ou cepfsunb@gmail.com, horário de atendimento de 10:00hs às 12:00hs e de
13:30hs às 15:30hs, de segunda a sexta-feira. O CEP/FS se localiza na Faculdade de Ciências da Saúde,
Campus Universitário Darcy Ribeiro, Universidade de Brasília, Asa Norte. O Comitê de Ética em Pesquisa
da Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba (CEP/SMS) se encontra no endereço: Rua Atilio Bório, n°
680, Bairro Cristo Rei, Curitiba, PR - CEP 80.050-250, o e-mail para contato é:
etica@sms.curitiba.pr.gov.br e telefone: (41) 3360-4961.
Caso concorde em participar, pedimos que assine este documento que foi elaborado em duas vias,
uma ficará com o pesquisador responsável e a outra com o Senhor(a).

__________________________________________
Nome / assinatura

___________________________________________
Pesquisador Responsável
Mariana Cardoso Puchivailo

Curitiba, ____ de ______________de _______.


187

ANEXO 6

TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS

Entrevista Família da Iva

Caio – Pai
Sofia – Mãe
Marcela – filha mais nova
Iva – filha mai velha

Pesquisadora: Só eu vou escutar essa gravação, não se preocupe, se eu for comentar alguma coisa
sobre essa gravação é eu vou né ter o sigilo do nome de vocês, eu vou colocar coisas especificas
para proteger também a identidade de vocês. Então basicamente, bom queria saber como vocês
estão, porque a gente não se vê desde dezembro do ano passado, como está a vida?
Sofia: Tudo isso?
Pesquisadora: Aham, dezembro;
Sofia: 6 meses já 7 né
Pesquisadora: é 7 né estamos no final do mês 7
Sofia Bastante né
Pesquisadora: Aham, queria saber como foi esses meses como vocês estão?
Sofia: Relativamente bem com alguns tropeços né, algumas dificuldades, até que resultou à saída
da Iva daqui de casa, mas não sei não to bem, sinceramente não, acho que na verdade M. tô é
cansada assim, não vi que teve muita evolução assim entendeu e isso me frustrou um pouco.
Pesquisadora: você diz desde o começo ou de Dezembro para cá?
Sofia: Acho que de Dezembro para cá, não do estado que a Iva tava até então claro que teve
evolução né, ela saiu do surto, mas eu não vi muita conscientização da parte da Iva e isso me
frustrou bastante achei que ela trabalharia melhor com a situação com tudo que ela passou, eu acho
que a resposta dela me frustrou um pouco, entendeu por falta de conscientização né e acho que ela
não se conscientizou também que para todos nós foi uma adaptação, foi difícil para ela foi largada
na casa do namorado e vim morar com a mãe de novo, eu já passei por tudo isso é muito difícil
entendeu, mas é difícil para gente também né, então todo mundo não tava na adaptação, mais
acostumado a morar com ela muitos e muitos anos né, a Iva foi para um lado a Marcela veio ficou
comigo eu tive mais o Juliano, então teve essa, então assim é eu acho que me frustrou e me
decepcionou um pouco foi a falta de colaboração assim sabe de dizer assim poxa né a gente passou
por tudo isso então eu acho que eu criei expectativa de um retorno maior e eu fiquei bem chateada
entendeu porque eu acho que eu mais dei apoio do que cobrei cooperação, e eu acho que eu cobrei
foi tão pouco entendeu para não ter esse retorno depois de tudo que a gente passou e então isso me
chateou bastante, bastante mesmo e eu tô muito cansada entendeu e decepcionada também.
Pesquisadora: Você quer falar Iva?
Iva: Eu me sinto bem melhor na verdade desde dezembro, sinto que não tenho mais depressão,
consigo fazer as coisas tô trabalhando agora que me ajudando muito ter uma rotina tudo isso me
ajuda de mais, comecei faculdade;
Pesquisadora: A é que faculdade você entrou?
Iva: To na federal to fazendo gestão da qualidade
188

Pesquisadora: Que legal...


Iva: To feliz de não te pagar faculdade também dá um alívio;
Pesquisadora: Aham
Iva: É tiveram estresses aqui sim, Não foi fácil, até pra mim pra eu me adaptar, mas eu senti que
estava sendo criada como uma criança e eu tenho 24 anos entende, então eu acho que isso pesou
um pouco até pra mim sair daqui, ter as minhas coisas de novo porque não tava legal para mim
também, eu sei que foi tudo meio adaptado em cima para mim receber eu tava dormindo no quarto
do J. isso também desde o começo falei que não era legal assim mas fazer o que não tinha o que
fazer eu entendo, então é tiveram essas coisas que foram chatas assim algumas cobranças que eu
não acha necessárias minha mãe acha diferente que tinham muita necessidade e foi isso mais eu
se sinto bem melhor eu to me sentindo bem comigo, to voltando a descobrir quem eu sou e
refletindo sobre mim e voltando a ver o que eu gosto e não gosto que tinha perdido totalmente
assim depois de ter terminado o namoro to começando a voltar assim to bem feliz com isso essa
evolução. Quer falar alguma coisa Marcela você esta com essa cara.
Marcela: Não tava te ouvindo,
Iva: Sim mas
Marcela: tava te ouvindo pode falar Iva
Iva: Mas é isso.
Marcela: Então ta bom;
Pesquisadora: Marcela, Caio, querem falar?
Caio: Eu não tenho nada para falar, se eu falar eu vou so bater então eu prefiro não falar nada
Pesquisadora: É?
Caio: É porque você tinha que ter ficado indignada ta,
Pesquisadora: Aham
Caio: É quando a Sofia fala que não teve uma resposta positiva, mas eu não consegui entender a
Iva, porque são besteirinhas, besteirinhas, besteirinhas,
Sofia: Muito pouco
Caio: Coisas simples banalidade que coisa mais simples do mundo
Sofia: Aham
Caio: Quer passar por cima, mas só que ela não sei a cabeça dela a onde é que anda, nesse aspecto
de querer;
Iva: Colaborar;
Caio: Não, de ela sabe que não pode beber, mas ela quer sair no final de semana e quer beber esses
foi um dos motivos que começou a dar problema aqui, sabe que não pode então não pode.
Sofia: Socialmente eu até liberei
Caio: O problema sabe o que é, o problema são sempre as companhias, A Iva parece que ela tem
um ima só atrai lixo só coisa que não presta, que eu já fiquei sabendo da faculdade que ela entro
na faculdade ta cheio de gente boa la com quem ela foi se relacionar com o lixo da faculdade.
Iva: Por que?
Caio: Porque eu sei já até veio aqui
Iva: An? Ah, porque o L. é gay .
Caio: É é exatamente isso ai é falta de vergonha na cara, sem vergonha Iva ai ó já é essas coisas
que eu não queria fala por causa disso porque é ridículo isso, ridículo isso.
Iva: Esse tipo de coisa não me ofende mais, aceito sua opinião mais eu não concordo com ela.
189

Caio: Iva, Iva pense bem em um aterro sanitário, no lixão o que que tem lá Iva tem urubu, barata,
rato, so tem coisa que não presta Iva então tem que procurar evitar o que não presta e se relacionar
com pessoas que presta
Iva: É que assim pai
Marcela: Ta pai, isso é fora de casa, o problema é aqui na família
Caio: Não mas
Marcela: O problema é dela
Sofia: Eu nunca tive objeção em relação há isso, opção sexual é desde que você respeite, desde
que você (?), desde tenha limite e saiba cuidar da saúde que é o mais importante, que sempre pedi
para ela, fiquei totalmente neutra, ela sabe disso e é verdade,entendeu? Ela foi muito bem acolhida,
é como eu falei para ela, ela uma vez me disse ah posso trazer uma namorada aqui, eu falei não,
não porque eu tenho um menino que ta com 7 anos em formação de né, a cabeça dele ta em
formação, depois
Iva: Mas eu falei brincando isso não falei serio, de verdade assim
Sofia: Não tudo bem, testou talvez né pra ver se podia
Iva: Não
Sofia: Mas enfim, eu acho assim Mariana chego um ponto que eu falei assim não precisa limpa a
casa, porque fazemos faxina todo sábado por exemplo, coisas pequenas entendeu porque perto de
tudo que aconteceu é mínimo, mas assim são três mulheres eu falei, ajuda todo mundo colabora,
olha esse apartamento é minúsculo, com 3 mulheres aqui eu lavo toda a roupa delas, eu cozinho
deixava a roupa toda dobrada na cama tanto pra uma quanto para outra tudo que eu faço para um
filho eu faço para os 3 entendeu, eu não faço diferenciação nenhuma, talvez mas mime ali J. porque
tem 7 anos pequenininho normal entendeu, mas eu não faço diferenciação, não tava bom, cheguei
ao um ponto, dai as duas começavam a brigar para limpas umas casa eu falei pelo amor de Deus
vocês tem 24 anos, vocês são duas mulheres é um absurdo isso que está acontecendo, chegaram a
se estapiar a voar uma na cara da outra. Essa provoca essa, essa não aguenta ia la e voava na cara
dela, essa odeie que tire foto essa ia lá e tec tec tec, e ficava mostrando a cara da outra, mas se
engalfinharam, cheguei aqui as duas tinham se matado, falei o que é isso vocês não são mais
meninas, eu falei eu to vendo a mesma a mesma situação de quando vocês tinham 12 anos e eu
saia para trabalhar as duas se quebrando, eu falei vão crescer e evoluir quando, então essas coisas
assim começaram a desgastar, mas tudo bem, ai chego um ponto eu falei Iva não precisa ajudar
né, ai chego no dia da briga tive que sair com o J. que a Marcela só tinha a louça para lavar do
almoço e essa já tinha lavado a metade então tinha ficado quase nada pra ela, se vai demorar muito,
não em meia hora to ai, cheguei ela não tinha lavado, ain que susto, ain, foi la lavo do jeito dela
né. E veio na minha bolsa tem cigarro, ai eu falei Iva você lavou a louça, não, dai eu falei então
lave lá, depois a gente vai ali fumar um cigarrinho, foi volto, Iva você limpou o fogão?, não, custa
você passar um pano no fogão? Né quem lava louça, não to pedindo nem para ariar a chapinha,
não to pedindo, então vai la limpar o fogão, mas se faz, faz direito né é a única coisa que faz, já
abri mão de ajudar em casa, não lava roupa, faço tudo, faço comida, meu Deus Mariana né, é o
mínimo de colaboração entendeu. Ela volto ali e começou a jogar as grades do fogão na pia e as
chapinhas na pia.
Iva: Não foi assim
Sofia: Foi
Iva: Não foi
190

Sofia: Foi, porque a tua irmã ta de prova e você começou a gritar, começou a gritar, ain que saco,
to de saco cheio, porque tinha saído volto de madrugada e dai tava com sono, cansada o que, que
eu tenho com isso
Iva: Não foi assim, mas cada um com a sua versão.
Sofia: Porque eu também fico cansada né, eu também né todo mundo tem as suas canseiras, mas
tem que colaborar, entendeu não há sacrificar pra todo mundo para uma pessoa dizer não faço, não
é minha hora eu não quero e não vou, as coisas não são só nas nossas horas não é verdade, cada
um tem que ceder, dai ela falou chega, nem mais um pio comigo, eu falei não Iva pera ai, quem
fala aqui chega sou eu não é você, você ta invertendo os papeis. Ai ela veio e saiu me xingando,
dai eu peguei e fui dar na boca dela, porque ela sabe, o meu filho pequeno sabe, eu não admito que
filho meu grite comigo e venha me manda cala a boca e me responder, eu não admito isso e nunca
vou admitir Mariana. A hora que eu fui ela pego veio e me deu um soco, muito forte, eu quase fui
para o hospital, e sabe o que ela falou pra mim: nossa fica se fazendo. Assim com a maior frieza,
sabe o maior distrato assim, ela falou eu não tenho que ficar aqui, tipo, foi ou não foi ela me fez
como um lixo, assim num canto, ela olho assim e falo: nossa, ela falo eu não fico mais nessa casa
nenhum minuto, e não foi a primeira vez entendeu, dentro de todos esses meses ela saiu, ai vai eu
e esse ai atrás, eu que nem louca, pelo amor de Deus, Iva volta pelo amor de Deus, Iva as coisas
não são assim, se for para sair da casa da mãe então vai sair em paz, porque quando a gente sair
tem que ter para onde volta, né, o filho voa, mas ele pode voltar, eu acho que quer sair sai, mas
não assim, com briga, entendeu com essa falta de respeito, agressão, entendeu eu não acho que as
coisas, eu falei então volte, a gente procura um lugar para você, eu te ajudo eu sempre fiz isso não
foi,
Iva: (?) pode continuar
Sofia: Por favor né Iva, eu falei volte que dai nós vamos achar um apartamento para você, quem
que fico o feriado inteiro procurando apartamento para você, quem que fico o feriado inteiro eu
sentada no sofá procurando apartamento para você, para te ajudar com peço, pra ver se você podia
pagar, se era isso que você queria, quem que foi Iva?
Iva: E no fim deu o que? Eu senti que você tava me enrolando na verdade, era esse meu sentimento
me enrolando pra eu criar uma esperança e no final ter que ficar aqui
Sofia: Mas a opção era tua. Que esperança Iva?
Iva: Eu nunca senti que foi entendeu
Sofia: [risada] Eu perdi sexta, sábado e domingo com ela sentada, esse é melhor, será que precisa,
dai eu falo com teu pai pra ver se ele pode te ajudar um pouco, tanto é que eu liguei pra ele, foi ou
não foi, se ela sair daqui você ajuda com um pouco eu com um pouco, ela vem almoçar todos dia
aqui, não tem gasto, não foi isso que eu falei para você Caio?
Caio: Sim
Sofia: Isso não é ajudar, tentar achar uma escolha melhor, se não ta se adaptando, ai sempre assim
sabe, desde criança ela é assim, sair no soco na briga bate nesse bate em mim, pra que não precisa
disso se rola com irmão, pra que não precisa disso, eu não tenho, eu tenho mais que fazer, inclusive
to em conclusão de curso que nem você, eu tenho minhas prioridades, eu erro meu que eu cometo
comigo, eu abro um erro meu que eu cometo, eu abro mão das minhas coisas, e dai eu fico cercando
os meus filhos, faço pra um faço pra outro, larguei minha monografia fui ver apartamento, eu podia
tar fazendo minha monografia, dexe que se vire entendeu, ai depois escuta isso me senti enrolada,
na verdade você não queria eu faço de coração Mariana, pois você não ta bem vamo achar uma
maneira melhor entendeu, ela é sempre na defensiva, é sempre tão me enrolando ou tão querendo
me tirar daqui entende, ela sempre pro lado negativo e isso cansa, so que quando é conveniente
191

pra ela, ela aceita, isso que senti, quando não é ela destrata, você não viu o jeito que ela me trato
quando saiu daqui, as mensagens, vai estuda vai trabalhar, sei la, você acha que ela saiu aqui da
minha casa agradeceu, eu fui la tudo bem é obrigação de mãe, fiz minha parte com maior amor
do mundo, fui la procurei emprego pra ela, eu que consegui emprego pra ela, você acha que ela
me agradeceu?
Iva: Eu te agradeci muito
Sofia: Quando você saiu daqui?
Iva: Você sempre me ajudo, eu sempre te agradeci
Sofia: Aqui quando você saiu daqui que você brigo comigo?
Iva: Naquele dia eu tava de cabeça quente, nem
Sofia: Dai no outro dia você veio aqui me agrado para pegar a cama, saiu daqui e não respondia
mais minha mensagem
Iva: Você não mandou nada depois disso, que eu sai daqui; então me mostra! que não mandou
Sofia: Ah Iva não vou entrar no mérito da coisa, entendeu filha
Iva: Estou sendo sincera
Sofia: Isso é muito desgastante, sabe... é muito desgastante, é muito desnecessário esses tipos de
coisa, entendeu? Porque eu acho muito pouco para a grandiosidade das coisas que foram, eu acho
muito pequena.
Iva: Inclusive isso de emprego, assim... bem chato, assim, ela fica me ameaçando que vai falar
com meu chefe
Sofia: Não...
Iva: Porque assim, ela conheceu meu chefe num relacionamento, num aplicativo de
relacionamento
Sofia: Da onde?
Iva: Ele achou ela num aplicativo de relacionamento
Sofia: Não foi em app de relacionamento nenhum!
Iva: Foi no happen!
Sofia: Foi no facebook Iva
Iva: Sim, ele te achou no happen, e adicionou ela no facebook
Sofia: Eu nem sabia disso porque eu nem tenho mais essa conta ai, mas tudo bem!
Iva: Enfim, to falando o que eu sei; E dai {tararan} ele queria sair com a minha mãe não sei o
que...
Sofia: Nunca que ele falou de sair comigo
Marcela: Na cabeça, ele tá falando na cabeça do cara porque ele deve ter falado pra ela
Iva: É mãe, ele fala comigo. Eu vejo ele todos os dias
Sofia: Tá mas eu não sabia disso, eu só tinha o cara adicionado no facebook! ai uma dessa me
adicionou porque de certo me achou bonitinha e tal e ‘pensou vou adicionar essa dai’; nunca falei
com o cara viu Iva, nunca falei com o cara... nunca nem preciso me justificar isso. Ai eu vi a vaga;
e um dia esse cara postou essa vaga e falei ‘iza olha aqui combina tudo com você’ não conheço
ele mas tem a vaga, eu vou falar! Dai ele falou nossa, ele falou ‘me mande ela aqui’! Eu falei:
‘minha filha é inteligente, ela precisa trabalhar’; ‘então me mande ela aqui’!. Ela foi lá e empregou
ela, foi só isso.
Iva: Sim, enfim, consegui um emprego. Daí, agora ela fica me ameaçando que vai falar com meu
chefe pra qualquer coisa. Assim, tipo... então você tem que ir pro CAPS ‘vou falar com o marco’
ou você tá com problema em casa, ‘vou falar com o marco’; que é o meu chefe
Sofia: Não, problema em casa não! Eu falei que se você não fosse marcar seu médico...
192

Iva: Qualquer coisa! Eu posso falar? Deixei você falar o tempo inteiro! Por favor? Estou te
pedindo! Então, e mais de uma vez que ela me ameaçou de falar com meu chefe sobre qualquer
problema de casa, e tipo, isso me incomoda muito! Assim... porque... meu, daqui a pouco eu perco
meu emprego porque minha mãe tá enchendo o saco do meu chefe sobre coisa que o cara não tem
nada a ver! Inclusive eu contei pra ele na semana passada, falei que eu passei pelo CAPS ...
Sofia: Que bom!
Iva: Que eu sou bipolar, que eu tomo remédio...
Sofia: Que bom!
Iva: Que pode ser que eu precise me ausentar as vezes, inclusive contei que eu vinha fazer a
entrevista aqui hoje...
Sofia: Certo!
Iva: Deixei ele a par de tudo pra não ter medo da minha mãe ir lá ameaçar ele; inclusive ele me
deu uma resposta bem boa, ‘ele falou que vai ficar bem feliz se você for falar com ele!’ eu fiquei
bem feliz por ele porque ele foi bem maduro assim tipo...
Sofia: Você não tem que me envolver nisso Iva.
Iva: Que bom
Sofia: Eu só falei pra você...
Iva: Não me ameace mais por favor!
Sofia: Só falei pra você Iva que se você não fosse ao médico eu ia ligar ou iria na empresa porque
você não pode deixar de faltar, e eu achei que você estava com vergonha de contar pro teu chefe a
tua situação
Iva: Não!
Sofia: Que você falou ‘eu não quero que eles saibam mãe’. Então eu estava achando que você
estava se ausentando das tuas consultas porque você não queria falar o motivo
Iva: Por que você nunca me falou isso?
Sofia: Eu falei pra você!
Iva: Não, você não falou isso!
Sofia: Eu tenho todas as mensagens no celular
Iva: Me mostre!
Sofia: Meu deus...
Iva: Porque é sério mãe, você tava falando uma coisa...
Sofia: É muito feio o que você faz, eu sou tua mãe sabia?
Iva: É que você tá falando...
Sofia: Você tem muita falta de respeito comigo assim, é muita fal... ela não me considera mãe esse
que é o problema
Iva: É que você fala uma coisa só que não é; e dai complica né ou se faz uma versão totalmente...
Sofia: Sabe Iva quem mente julga os outros, sabia? Quem usa da mentira filha... usa contra os
outros. Eu não sou mentirosa!
Iva: Tá
Sofia: Porque ela mentiu um monte depois que a gente soube, entendeu? eu não fico dando a minha
cara pra mentir porque eu não gosto de mentira! E tanto é que eu sempre pedi pra você ‘fale a
verdade que é melhor!’; e sempre te orientei nisso Iva.; então não faça esse joguinho porque é
muito feio e eu sou tua mãe. E você está me magoando mais uma vez!
Iva: Mas não fantasie as coisas, ...
Sofia: Agora eu não to mentindo, to fantasiando? Então saiba o que você fala e cuidado com que
você fala porque você magoa...
193

Iva: Pra mim, fantasiar é contar a verdade com alguns rodeios, ali pras coisas ficarem diferentes...
Sofia: Não! Não, Iva.;...Para... para Iva, todo mundo tá cansado disso Iva!
Iva: Eu também to, por isso me afastei!
Sofia: Não, chega!
Iva: Eu to bem cansada
Sofia: Sério?
Iva: É julgamento o tempo inteiro!
Sofia: Nunca ninguém te julgou aqui Iva, eu só não queria que você bebesse de cair aqui e ter um
surto de novo. Tanto é que eu falei ‘saia, tome uma cervejinha e intercale com agua’ porque o
médico falou que ela tomando uma cervejinha, entendeu, intercalando com agua...’fique
tranquila!’; Falei isso pra ela... Ai o dia que eu falei pra ela ‘Iva não beba muito’, porque ela chegou
aqui... eu abri o quarto, tava um cheiro de cachaça insuportável! ‘Ai caiu... o pia derrubou cachaça
na minha roupa...’; Estava no hálito entendeu? Eu falei Iva você não pode beber tanto assim! Sabe
o que ela falou pra mim? ‘Eu vou beber o quanto eu quiser’; Assim... entendeu Mariana? Isso não
é tipo de tratamento comigo! Primeiro porque eu sou mãe dela, primeiro ela tem que me respeitar!
Entendeu? Segundo ela não tá aqui sozinha, ela tem que respeitar as outras pessoas que convivem
com ela; então ela não consegue conviver com regra, o que é mais fácil? Espirra fora, e daí? Ai o
dia que eu falei ‘Iva você marcou teu médico?’, porque eu vi que faltou e faltou nesse medico
(sons com os dedos)... E daí um dia ela veio almoçar, eu falei você marcou o médico ou não?
‘Amanhã chegando a hora do almoço eu venho’; veio e falei ‘Iva você não vai marcar? Hoje eu
marquei de lavar meu carro mãe!.
Iva: Eu não fiz essa cara!
Sofia: Ah fez, porque ela tava junto!
Iva: Eu não fiz essa cara...
Marcela: Iva então talvez você não veja que você faz, mas você faz essa cara de deboche mesmo...
Sofia: ‘Desculpe eu estou atrasada porque marquei de lavar meu carro’. Eu falei ‘filha a prioridade
e teu medico, não é teu carro Iva’ da licença estou atrasada tchau. Quem que aguenta conviver
desse jeito Mariana? É difícil! Entendeu? Você preocupada, não querendo mais que isso
acontecesse, voltar lá pro CAPS, entendeu? eu ‘falei pelo amor de Deus!’. Aí eu vi que ela
começou a oscilar de humor... Aí ela ia fazer uma ligação no telefone, se alguém falasse do lado
ela saia esperneando assim sabe, tipo, muito agressiva, muito mal humorada. Falei não tá normal
isso! Até comentei com a R., ne R.?
Iva: Que? Na verdade isso me incomoda desde sempre, eu to querendo falar no telefone e todo
mundo berrando no meu ouvido...
Sofia: Pede licença filha, tem que saber falar com os outros...
Iva: Sim...
Marcela: Sai de perto ne Iva ó o tamanho do apartamento.
Iva: Sai de perto... se só tem telefone fixo aqui.
Marcela: Então fala ‘da licença que eu to falando
Sofia: É... isso!
Iva: Eu já tinha falado já!
Sofia: Olha Mariana, é sério... eu me temo muito, assim, eu não vou ficar estendendo falando sabe
... vai me dando já... eu fico muito nervosa! tanto é eu já tinha reunião hoje já tava ficando bem
nervosa e, entendeu... bem desgastada, porque não é desse jeito aí, se falou... pode ter certeza que
não é desse jeito aí entendeu? me decepciona muito mais entendeu? e eu assim eu não quero... não
quero que chegue ao ponto de dizer Iva ‘vai viver tua vida e não me procure mais!’ Eu não quero
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chegar a esse ponto porque eu amo a Iva e me preocupo todo santo dia... Eu fui viajar chorando!
Pergunte pra Marcela eu to de saco cheio, eu estou no meu limite!
Pesquisadora: Gente pelo que eu to escutando, depois que a gente não se viu mais vocês, enfim...
tiveram que viver uma vida que nunca foi vivida, ou seja, vocês tiveram que viver relações que
vocês não estavam acostumadas a ter né? E eu to vendo houve sim muito conflito. Eu não estranho
tanto que houve sabe, sei que foi dolorido para todos, né? Eu não estou falando que não houve
coisas graves, não to falando isso, mas assim... houveram conflitos! A minha pergunta para vocês
hoje é: vocês querem tentar sentar e voltar para a terapia familiar pra tentar resolver isso? Isso não
quer dizer voltar pra casa da mãe, sei lá... isso são consequências de que vá acontecer ou não, mas
assim, pra esse relacionamento melhorar, vocês tem vontade de fazer isso?
Iva: Não
Marcela: Olhe eu acho que seria o certo; eu já tinha até falado pra mãe. Falei ‘mãe, isso aqui
nunca vai melhorar se não tiver uma ajuda! Porque...
Caio: Eu não acho que vai melhorar, enquanto a Iva não tirar da cabeça essa fixação que ela tem
de querer sair de madrugada. Encher a cara...
Sofia: Não é a fixação em sair, sabe qual é a conscientização que ela tem que ter? Que o importante
é ter família...
Caio: Pois é...
Sofia: Que o importante é a gente ter respeito pelas as pessoas que amam a gente. Que importante
não é sair P, importante é ter uma base familiar, porque se a gente não tem uma base familiar, lá
fora a estrutura também vai ser fraca...
Caio: Com certeza...
Sofia: Entendeu, enquanto você não se estruturar aqui, não vai pra frente Mariana, e me desculpa,
mas é um dos mandamentos da bíblia, se você não honra teu pai e mãe me desculpa mas eu acho
que as coisas não dão muito certo. No mínimo ter respeito, no mínimo ter carinho, no mínimo ter
gratidão, dizer me desculpa mãe, entendeu? Me desculpa eu vou procurar melhorar, ela fez várias
vezes isso... daí ela vai lá e vai pra balada. Ela mentiu pro pai que precisava de dinheiro, entendeu,
ela foi lá... daí o tonto vai lá e deposita entendeu? Tá errado! E se ela mentiu... porque você mentiu
que pagou frete pro teu pai. Só que você falou pra mim que quem fez o frete do apartamento do T.
foi o cara da empresa, e por que você mentiu pro teu pai que você tinha?
Iva: Porque ele me cobrou 125 reais
Sofia: Porque você falou pra mim que ele não te cobrou nada.
Iva: Ele tá me cobrando, tem mensagem aqui.
Sofia: Por que você falou pra mim que ele não te cobrou nada?
Iva: Foi antes de eu sair daqui ou foi depois, não lembro.
Sofia: Você falou pra mim que ele não te cobrou nada.
Iva: Ele estava me cobrando, ele estava me falando cartão de credito.
Marcela: Tanto que você falou.... Ah mãe...
Iva: Me mandou o valor da conta e o quanto eu tinha que pagar pra ele. Tá aqui
Sofia: É tudo umas histórias, sabe, aí você pensa que a guria tá mentindo. Ela foi lá e pra mim ela
chegou aqui e falou...
Iva: Porque você pensa, começa a confabular, conversar e não vem falar comigo, porra
Sofia: Não... não. Eu perguntei pra você, tanto que você falou assim ‘mãe ele não me cobrou
nada... Até eu posso (palavra não soube entender) da tv de graça, porque ele não me cobrou nada’.
Eu falei ‘não, eu não quero misturar as coisas, imagine eu pago um cara pra vir por a tv aqui’, né...
o cara lá, filho do dono que você trabalha, eu não quero ele aqui! Foi ou não foi? Aí ela falou ‘Não
195

ele não me cobrou nada’... Daí foi lá pedir pro pai pagar o negócio; aí eu falei tá errado isso aí!
Falou uma coisa pra ele e falou outra, ai ele vai lá e ta errado...
Pesquisadora: Eu acho que além dos conflitos pelo que eu to percebendo também tem uma falha
na comunicação né?
Marcela: Total
Mariana: Parece que um tá falando, o outro está entendendo outra coisa, outro fala uma coisa outro
fala outra...
Marcela: É falta de confiança, eu acho que...
Pesquisadora: E isso é uma coisa que talvez demore pra se conseguir mesmo
Marcela: Falta de confiança. Ninguém confia em ninguém todo mundo acha que um tá enganando
o outro. Todo mundo se defende um do outro; em vez de ouvir de coração aberto mas é que é todo
mundo, todo mundo! então... é difícil, eu acho que assim, pra melhorar as coisas aqui em casa eu
acho que, ninguém aqui tá, tá todo mundo mal, eu não vejo ninguém bem.. você não tá bem, você
não tá bem, você não tá bem, eu não to bem. Eu estou destruída! Eu comecei um estágio, eu não
consegui ficar. Porque eu não tinha o que dar de mim! Não tinha, porque era pra cuidar de criança
com dificuldade, cuidar de um menino com paralisia cerebral, eu não aguentei eu fiquei doente,
doente, fiquei um mês doente.
Sofia: Ela ficou um mês doente, ela ficou de cama
Marcela: Eu não conseguia sair da cama, não conseguia (choro); sabe eu não aguento mais isso!
Eu queria que todo mundo tivesse bem, eu queria que todo mundo tivesse disposto realmente a
melhorar como pessoa, em primeiro lugar pra isso, eu acho certo pra gente tentar assumir nossas
falhas nossos erros ver que a gente não é perfeito, que a gente também, que as pessoas também
tem que aguentar coisas ruins da gente, é se olhar, ver nossos erros. Eu não vejo muito que as
pessoas aqui fazem isso. Não vejo! Acho que todo mundo só quer apontar para o outro, se defender,
em vez de olhar ‘nossa eu também podia ter melhorado’, poxa eu vi que eu errei nisso, me desculpa,
mas se você também podia ter se olhado? É umas brigas por coisas tão idiotas, por uma falta de
lavar uma louça...
Sofia: É verdade
Marcela: Você deu um soco na sua mãe, assim é um absurdo.
Sofia: Um absurdo.
Marcela: Por umas coisas idiotas assim sabe? Por falta de paciência e tolerância, de A e... surta.
Eu mesma faço isso e depois, nossa como eu sou idiota. Porque eu fui fazer isso entendeu? Mas
assim eu vejo, ninguém quer parar de verdade; eu vejo assim sabe... ‘quero viver minha vida’, um
egoísmo parece sabe? que se dane, quer me ajudar, ajude! não quer ó... sabe, perdeu assim um
vínculo, perdeu vontade, é triste porque eu queria que isso aqui fosse melhor, eu tento me melhorar,
por mais que eu esteja assim, eu me esgotei! Eu to assim, a minha vontade é que queria todo mundo
tivesse bem e melhorasse só que assim, as vezes dá vontade de largar tudo e deixar pra lá. Se você
não col... ela não colabora! Você não colabora Iva, colabora do seu jeito, mas talvez o seu jeito Iva
não seja bom pra todo mundo. Então as vezes a gente precisa tentar do jeito do outro, pra que todo
mundo fique bem. Conviver é isso, se você não souber isso com a tua família, pra você conviver
se um dia você casar, se um dia você também...um dia vai se ferrar Iva, então isso as vezes é bom
a gente aqui, pra depois no futuro a gente se dar bem, pra conviver com os outros, é pensar nisso
também, a mãe pediu pra lavar louça, ‘nossa eu vou lavar’, pronto. A mãe, é difícil é tão difícil
isso? Eu to te perguntando...É difícil?
Iva: Não, não é
Marcela: Então por que?
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Iva: Mas é que aquele dia especificamente estava difícil pra mim
Sofia: Por que você saiu na balada?
Iva: Eu sai um dia antes e acordei cedo pra ir trabalhar. E daí eu tava bem casada
Marcela: Iva é desculpa, em vez de falar assim realmente eu errei, eu podia ter feito, nossa me
desculpa eu vou melhorar, sabe. Ai ela fica aí porque ta ...
Iva: A mãe desde aquele dia ela tava me provocando desde da hora que eu cheguei
Marcela: Não, ela não provocou...E se ela provocasse
Iva: Dai eu já tava cansada
Marcela: Eu posso falar porque todo mundo aqui falou e eu não tive meu tempo de falar. Só que
é isso que eu to falando, ninguém quer, que é ‘porque ela me irritou, então ta bom, é minha vida e
tudo bem’. Quando não estiver bom eu vou jogar tudo meus erros, meus problemas, tudo nos
outros! Ah mas daí é fácil ne, é fácil viver assim ó. Que se dane... Não posso olhar pra minha mãe
e falar nossa ela tá irritada, deixar ela no tempo dela, é difícil? E vou lá fazer o que ela pediu e
ficar na minha? É tão difícil? Acho que o problema de todo mundo aqui é carência, isso aqui é
uma coisa tudo meio emaranhado, sabe assim de ... ai...
Iva: Meu Deus
Pesquisadora: É, o que você talvez esteja falando Marcela é que não é a louça, são outras coisas
que estão ali na relação né?
Marcela: São coisas pequenas que podia ser, nossa a Iva podia dizer ‘olha eu sei que minha mãe
se preocupa comigo’; você devia se preocupar com você em primeiro lugar... você sabe o que
aconteceu com você e é muito sério Iva!
Caio: Ela não sabe
Marcela: Deixa eu falar, é sabe... é tão simples. Vou me cuidar falar com meu médico. Em
primeiro lugar é a saúde, sabe? Todo mundo está ferrado. Gente, vocês não conseguem ver isso?
Tá todo mundo ferrado. Com depressão! A gente tem uma vida toda pra ser feliz, alegre, a gente
ta aqui... eu acredito que a gente ta na vida pra amar e ser amado. Não pra, sabe? E olha o que isso
aqui virou...da vontade de falar assim, você vá viver tua vida; eu já falei pra mãe, mãe não se
preocupe mais! Sabe, se ela não sabe colaborar, vá viver tua vida
Sofia: Mas eu não consigo...
Marcela: Só que... é... ah, tá mãe, só que chega uma hora que você também, vai. Sabe, assim,
chegou a um nível, eu não consigo nem olhar na cara dela direito, eu não consigo. Porque eu acho
que eu criei um bloqueio tão grande dentro de mim depois do que aconteceu, que eu tenho medo
que aconteça alguma coisa com ela, eu travei, eu não consigo ter, assim, muito afeto. Parece que
quanto mais afeto eu tiver, se alguma coisa acontecer com ela, porque ela não se cuida, surta de
novo, eu não sei o que vai ser de mim, o que vai ser da minha família, entendeu?
Sofia: Mas ela não entende isso.
Marcela: Então vai criando, assim, eu não sei o que ela espera de mim, espera da minha mãe. Eu
não sei, eu acho assim, que devia, sim, todo mundo aqui devia fazer uma terapia familiar pra
melhorar,
Sofia: Eu acho.
Marcela: Só que se a gente não olhar pra gente e a gente não quiser melhorar primeiro como pessoa,
não vai adiantar, porque vai ser sempre assim. A terapia familiar vai ser: eu vou me defender e aí?
Sofia: Sazonal.
Marcela: Só isso. Só pra dar mais briga e pra se desgastar mais. Enquanto ninguém aqui estiver
de coração aberto mesmo, assim: nossa, eu quero fazer isso aqui dar certo, não vai resolver.
197

Caio: Bom, só tem um jeito de fazer dar certo: É a Iva ir no médico, tomar o remédio e não sair
beber.
Marcela: E você está ouvindo o que eu estou dizendo? E você melhorar? Você já pensou em você
melhorar também? Em você parar com as tuas coisas e escutar mais a tua filha? E você parar de
julgar os outros? Você já parou pra pensar nisso?
Caio: Não, isso não.
Marcela: Então não vai melhorar...
Caio: ... falta de vergonha na cara.
Marcela: E a tua falta de vergonha na cara? De tratar assim. Você não tá ouvindo nada do que eu
estou falando?
Caio: Eu estou ouvindo.
Marcela: É por isso que não dá certo, porque ninguém escuta. A gente fala, você está vendo aqui
todo mundo sofrendo, você está me vendo sofrendo e você não olha. Você só está vendo, mas e
olhar pra dentro, você olha?
Caio: Eu não admito sem-vergonhice.
Marcela: Olha lá, viu?
Caio: Isso aí é coisa de vagabundo.
Marcela: Você está vendo...
Caio: Ralé
Marcela: Xi! Quieto! Não dá. Eu não aguento, vá a merda? Vá a merda. Sumam. É a minha
vontade. Sumam da minha vida. Não dá, não vai melhorar.
Pesquisadora: Eu acho que o que Marcela está querendo dizer não é agora, nesse momento, a
questão da Iva, ela está falando que ela, enquanto filha, também está sentindo a necessidade de
todo mundo estar se repensando, todo mundo estar se ouvindo, né? E propondo, pelo que eu estou
entendendo, que se dê continuidade da terapia familiar, se vocês estiverem abertos a isso.
Caio: Eu vou falar, sinceridade? Eu acho que não vale a pena
Marcela: Porque você não quer se trata
Caio: A Iva tem que tirar
Marcela: A culpa não é só da Iva
Caio: É a Iva, o problema é ela, desde que deu o surto lá, o primeiro. Eu sei porque foi o primeiro,
o primeiro foi por causa de droga, depois o outro, com certeza também tinha droga, né?
Marcela: Tudo bem, pai. Ela errou. A Iva errou, ela foi lá, deu o que deu, porque ela tem uma
doença, poderia não ter dado, mas deu. E agora já foi.
Caio: Já foi, não. Mas agora ela, então, que vá ao médico.
Marcela: Ela não pode usar agora. O problema agora é a nossa família. Você não consegue... você
se acha... você tem que pensar, tem que usar teu cérebro.
Caio: Tá, família. Se a Iva não parar de beber, não parar de usar droga, não parar de ficar nessa de
querer só... tem que ir na farra, eu fui porque eu tinha que trabalhar no dia seguinte. Se tinha que
trabalhar no dia seguinte, não tinha que ter ido pra balada.
Pesquisadora: Caio, mas acho que a gente não está querendo eximir a culpa de ninguém aqui.
Não está querendo falar que a Iva não fez nada, não é isso mesmo.
Caio: É que só me procura quando precisa de dinheiro.
Sofia: É verdade.
Pesquisadora: Mas eu acho que pelo que vocês me contaram, gente, eu lembro de uma coisa que
a Iva falou no primeiro dia que a gente fez a terapia familiar, a nossa família nunca esteve desse
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jeito, junta. Então, assim, não é que os problemas da família começaram com a Iva, eles são muito
anteriores, pelo que vocês me falam.
Marcela: Realmente
Sofia: Não, muito mais antigo.
Pesquisadora: Você concorda? Porque sempre houve uma relação conflituosa.
Caio: Não existe uma família.
Sofia: Nunca existiu.
Caio: Nunca existiu uma família.
Sofia: Existiu até elas terem quatro anos de idade.
Pesquisadora: Eu acho que talvez essa seja a questão, gente.
Sofia: Aham.
Pesquisadora: A gente, depois da crise da Iva, a gente juntou uma família que nunca houve. E,
obviamente, isso ia dar problema, faz sentido
Sofia: Eu sei. Mas eu vou colocar um ponto, assim, que é bem chave. Infelizmente vai ter que
escutar. Isso atrapalha e é difícil conviver. Ele não sanou as mágoas comigo, eu tenho certeza
disso.
Caio: Não, imagina.
Sofia: Eu não consigo ver isso, meu coração Caio, porque eu preciso de você, você tem que
entender isso.
Caio: Mas não tem...
Sofia: ... eu preciso de você, porque nós temos duas filhas. Meu elo e o teu jamais vai se cortar,
eu não tenho nada a ver com a tua vida particular, mas a gente tem elas. E isso, a gente precisa...
assim, quando eu falo com ele, às vezes ele não responde.
Caio: Ah, deixa eu falar uma coisa. Eu detesto esse troço de ficar no celular mandando mensagem.
Sofia: Tudo bem Caio. Mas daí não me comunica. Ela foi lá chorar, pedir dinheiro. Você acha que
ele me comunicou? Você acha que eu fiquei sabendo disso? Não. Você devia ter me ligado, falado
assim: Iva me ligou, aconteceu isso e isso. O que você acha? O que nós deveríamos fazer? Porque
daí quando dá tudo isso aqui, daí é toda essa reunião, sai fora daqui e não tem comunicação,
entendeu? E isso dificulta muito. Porque daí que acaba se perdendo a confiança. Por quê? Porque
daí ela fala uma coisa para o pai, fala uma coisa para mim, daí ele não fala... entendeu? Então ela
falou pro pai: olha, ela me ligou, a Iva não está bem, eu já falei pra ele várias vezes que converse
com as filhas, pra ver como estão, se estão bem, se estão precisando do pai para alguma coisa, se
querem dar uma volta. Falo pra elas toda vez. Enquanto ela estava aqui, e falo pra essa todo dia,
pra ela levar um bolinho para o pai, pra tomar um café com o pai. Final de semana elas vão, tinha
feito uma nega maluca, ela levou um bolinho pra ele. É a sua família, é o pai dela. Ela falou: mãe,
posso levar esse bolo que você fez? Eu falei: lógico, leva um bolinho pra o seu pai, vai tomar um
café com ele. Bom se a Iva fosse junto. Então eu tento, mas quebra, sabe? Cansa.
Pesquisadora: Eu tenho uma pergunta que eu gostaria de fazer pra vocês, então. Pra cada um de
vocês. Vocês querem ser uma família? Só, antes de vocês responderem, a família, ela vem com
ônus e bônus. Ela vem com coisas boas e coisas ruins, todas as famílias, não só a de vocês. Vocês
querem ter uma família? Vocês ainda querem apostar nessa família? Ou vocês já desistiram?
Marcela: Eu gostaria muito.
Sofia: Eu também.
Marcela: Mas com todo mundo.
Iva: Não.
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Pesquisadora: Iva, você está disposta a viver, então, sem uma família? Você acha que entre o
peso dos ônus e bônus, você acha que não vale a pena investir nessa família?
Iva: Não adianta conversar, não adianta tentar mostrar o seu ponto.
Pesquisadora: Mas veja, Iva, vocês passaram sete meses sem uma ajuda. Então, assim, uma coisa
difícil.
Sofia: Muito difícil.
Pesquisadora: A ideia da terapia familiar é ajudar vocês nessas coisas, tipo, o Caio fala não uso
Whats, ok, então a Sofia começa a ligar, sabe? Pequenas negociações. Não entendi tal coisa ou
entendi tal coisa, vamos tentar esclarecer?
Mãe: Aprender a conviver de novo
Pesquisadora: É como a gente falou, vocês não eram uma família e vocês acabaram sendo nesse
período.
Iva: Mas eu me sinto melhor sem. É foda isso, é triste.
Pesquisadora: Por isso que eu estou fazendo essa pergunta, se vocês acham que não precisam...
Caio, e você? Você quer essa família? Você quer estar junto dessa família?
Caio: Eu não sei. Não vai dar certo.
Pesquisadora: A terapia, você diz?
Caio: Enquanto a Iva continuar com essa cabeça dela, nada vai dar certo.
Pesquisadora: Mas eu não estou perguntando da terapia agora, eu estou perguntando da sua
família, você quer?
Caio: Mas eu acho que é interessante eu poder estar próximo da Marcela, próximo da Iva e nos
ajudar. O problema é a Iva, a Iva não quer ser ajudada.
Sofia: Tanto é que a R. falou assim: mãe, eu posso trazer meu irmãozinho? Que é o filho dele com
a outra mulher, mãe, você ficaria chateada se eu trouxesse o E. aqui? Eu vejo que o E. sente falta
de irmã, de tudo. Ele é muito sozinho. Eu falei: claro que pode, tem o J., entendeu? Eu falei isso é
família, filha, não importa se ele é meu filho ou se ele não é, eu falei traz ele, faz um lanche com
o J., não falei? Leva ele jogar golfe lá, ele adora. Eu falei: não é porque ele é filho do J., que não
deu certo com ele, que eu não posso receber o E. bem aqui, pode trazer. É esse senso, entendeu?
Tem que entender, mas é difícil.
Marcela: Sei lá, é muita coisa também, é muita loucura, né? Mas, sei lá, talvez tenha entendido
errado, não é uma família você voltar aqui, então não ia dar certo mesmo. Eu não ia querer nem
que você voltasse a morar aqui, desculpa, mas não significa que eu não gostaria de ter você comigo.
Pra ser esse estresse diário ninguém quer, ninguém gosta de estresse, todo mundo gosta de paz.
Tanto que você saiu porque não estava bom pra você também. Só que eu vou te dizer, ninguém
disse que estava bom aqui pra mim também. Porque daí ela vem e fala... ah, a mãe queria tirar o
quarto do J., fazer no meu, que é bem pequenininho, e aí deixar duas camas, né? Tipo, uma pra
mim e uma pra Iva no outro quarto. Ela veio falar, depois a minha mãe me contou, eu não vou
dividir o quarto com a Marcela, porque ela é muito chata. Então, tipo, todo mundo sabe que se
desdobrou, assim, pra... eu ia...
Sofia: ... o que você está rindo, filha? Você falou.
Iva: Eu acho engraçado.
Marcela: É engraçado? Porque me magoou. Porque eu também ia ter que ceder do meu quarto pra
dividir com você, que não ia ser fácil.
Sofia: Sim. Você fuma, ela não gosta de cheiro de cigarro, você não toma banho depois do cigarro
Irmã: Eu odeio cheiro de cigarro, eu sou uma pessoa muito, assim, com higiene, eu gosto... tudo
cheiroso.
200

Sofia: E ela aceitou.


Marcela: E eu aceitei.
Sofia: Ela aceitou sair do quarto dela, entendeu? E o J. também.
Marcela: Deixa eu falar, mãe, quando a gente, é assim, você também tinha... ela tinha que
colaborar, sabe? Nossa, ela não gosta, é essa noção que eu acho que muitas pessoas não têm nessa
família. Tipo, eu não gosto, mas eu vou me esforçar pra agradar o outro, eu acho que... aliás, isso
é amor. A gente se esforçar um pouquinho pra ceder e agradar o outro. Porque teria algum
problema, nossa, sabendo que eu não gosto de cigarro, ir ali tomar um banho, ficar cheirosa pra
irmã, sabe? Uma coisa tão pequena. E ela eu não vou, porque ela é uma chata. Você acha que isso
não me magoou? Você acha que você é tão magoada e as coisas que você faz não magoam os
outros, Iva? Eu acho que, assim, a gente tem que sair do papel de vítima também e se pôr um pouco
mais, sabe, assim, com consciência, de ver o lado do outro. Você se acha magoada, mas você acha
que você não magoa as pessoas? Você acha que isso que você falou não me magoou? Falar: ai, eu
prefiro morar sozinha porque eu não quero dividir o quarto com a minha irmã, sendo que eu ia
ceder o meu espaço.
Sofia: É verdade.
Marcela: Eu estava bem no meu quarto, podia pensar que se dane a Iva, eu estou no meu quarto,
eu não vou sair do meu quarto por causa dela. Eu podia ser bem filha da mãe, Iva, assim como eu
vejo que muitas atitudes aqui são muito egoístas. Eu podia, podia muito bem olha, está dando
estresse, não quero. Porque eu morava aqui antes, você lá e eu fui assim pra ainda ouvir eu não
vou dividir o quarto com ela, sabe? São essas coisas que a gente tem que colocar a cabeça pra
funcionar, raciocinar e pensar. A gente tem um cérebro pra quê? Entende?
Sofia: Todo mundo cede por um e um não cede pra todo mundo? Entendeu?
Marcela: Esse é um dos maiores problemas. Aí minha mãe cobra. Eu entendo, porque teve um
estresse, qual é o medo da minha mãe: de a Iva ir lá, beber, dar uma coisa e a menina voltar para
o CAPS e ter tudo... porque isso desgastou todo mundo, foi muito desgastante. Tanto que ninguém
aqui está bem, Iva Então, assim, é ver isso, poxa, ninguém está bem. Você podia muito bem tomar
só uma cervejinha e pronto, uma água, deu. Aí não, aí sabendo o que deu, a menina vai lá e faz o
que: eu vou beber o quanto eu quiser. Aí toda vez que você sair o que a mãe vai pensar: nossa, ela
vai encher a cara, essa menina vai surtar. Aí na cabeça começa a preocupação, por isso que daí
tem cobrança nossa, você tem que marcar teu médico. Você devia pensar na sua saúde nossa, a
primeira coisa, eu tenho que marcar meu médico, eu tenho que cuidar de mim. Até parece que é
falta de amor próprio, Iva
Sofia: É verdade.
Marcela: Quando a gente se ama...
Sofia: E você marcou seu médico?
Marcela: ... é se cuidar, sabe? É evitar conflito. Se você não gosta de ser cobrada, então faça pra
você não ser cobrada. São essas pequenas coisas que a gente tem que ver, sabe? Não é difícil,
gente. Não é difícil. É só, assim, a gente parar de ser um pouco egoísta. E pensar, na hora da gente,
quando a gente quiser... coisa mais feia, a gente tem que olhar... a gente tem que ter vergonha de
algumas atitudes, nossa, que vergonha, podia ser alguém melhor. Mas tudo bem, está aqui sendo
essa coisa, que eu estou sendo. Muito mais fácil.
Pesquisadora: Iva, você falou que não está... tente colocar nas suas palavras em relação à sua
família, que tipo de relação você quer com a sua família? Ou você não quer ter uma família?
Iva: Não, eu não quero ter uma família que vai unir meu pai, minha mãe e minha irmã pra ficar
conversando. Isso não funciona.
201

Pesquisadora: Um encontro familiar?


Iva: É, mas assim, ver minha mãe final de semana e almoçar, ou sei lá, ver meu pai no final de
semana, passar um final de semana com ele, isso é saudável, é legal. Agora, reunir os quatro pra
ficar conversando e tentando resolver problema, não adianta.
Caio: Você quer... você quer voar e daí...
Iva: ... agora eu vou falar. Eu trabalho o dia inteiro, eu estudo e eu não estou enchendo o saco de
ninguém. Eu faço todas as minhas coisas com muita responsabilidade.
Caio: Você está tomando seu remédio?
Iva: Estou tomando todo dia.
Caio: Mas como é que você está fazendo pra tirar o remédio lá?
Iva: Eu tenho o remédio.
Caio: Mas você tem pra tirar o remédio de lá?
Iva: Eu tenho pra mais de um mês.
Caio: Pra mais de um ano?
Iva: Não, eu tenho pra mais de um mês. Então eu tenho que marcar o CAPS pra conseguir ir na
psiquiatra e pegar uma nova receita.
Marcela: E por que não fez até agora, Iva? Por que não marcou?
Iva: Porque eu ligo lá naquela porra e só na quarta-feira a mulher está lá.
Sofia: Mas só tem que marcar com a mulher na quarta-feira?
Iva: Só a Nicole que pode me atender.
Pesquisadora: Tem que ver com eles, eu não sei desses detalhes. Gente, então o que a Iva está
falando é que ela quer continuar tendo uma relação, mas ela não quer ter o trabalho terapêutico
junto, é isso?
Iva: É, acho que não vai funcionar. E, sinceramente, se for pra ver a minha família e ter encheção
de saco...
Pesquisadora: ... eu sei que hoje está pendendo a isso, porque eu acho que vocês estão com uma
sobrecarga de tipo, vocês acabaram de brigar. Então acho que essa sessão está muita cobrança.
Sofia: Não, diariamente.
Pesquisadora: E hoje eu estou escutando vocês também. Eu acho que a ideia da terapia familiar
não é ficar tacando pedra em você, Iva. Aliás, não é ficar jogando pedra em ninguém. Eu não acho
que seria isso, sabe?
Iva: Mas se transforma nisso. Sempre é culpa da Iva que foi pro CAPS.
Pesquisadora: Veja, Iva, lembre das nossas sessões familiares, era todo mundo jogando pedra em
você o tempo todo?
Iva: Não, verdade, tinha outros tacando pedras em outros também.
Pesquisadora: É, mas estavam tentando resolver.
Iva: Mas resolveu alguma coisa?
Pesquisadora: Não sei, Iva, você reatou a sua relação com a sua mãe e com a sua irmã.
Iva: Mais ou menos.
Sofia: Mais ou menos pra você, porque você quer tudo do seu jeito e as coisas não são tudo do seu
jeito.
Marcela: Daí a gente reclama com você e daí você surta.
Sofia: É, que daí não quer encheção de saco, que não quer cobrança.
Pesquisadora: Iva, na terapia familiar eu sempre tento evitar jogarem pedras em uma pessoa só.
Eu tento deixar todo mundo ciente que todo mundo tem um papel nos conflitos, né? Então eu não
quero que você sinta que essa terapia familiar seria pra isso, não seria. Haveria conflito?
202

Provavelmente. Porque vocês estão tendo conflitos sempre. Então eu acho que a questão é: vocês
dão conta de viver do jeito que está? De vir de vez em quando e aí brigar, se afastar? Isso é uma
opção da família de vocês também. Agora, não é opção só sua, Iva, é uma opção da família toda.
Será que eles também... porque eles estão pedindo ajuda, será que eles vão aguentar, por exemplo,
ficar nessa dinâmica de brigar e se afastar?
Marcela: Eu não aguento mais
Iva: É que a minha tendência é me afastar cada vez mais, sinceramente.
Pesquisadora: E no que que deu isso da última vez?
Iva: Ah?
Pesquisadora: E no que deu esse afastamento da última vez?
Iva: É, realmente
Pesquisadora: ... sabe, Iva, foi exatamente isso que vocês me apresentaram a primeira vez. A Iva
foi se afastando, se afastando, se isolando em casa, usando drogas pra também se afastar do mundo.
Iva: Sim
Pesquisadora: Eu entendo que seja... quando você está sufocada, é isso que você faz. Mas eu
estou querendo te ajudar a tentar fazer outras coisas.
Iva: É que eu vi... era uma situação diferente, claro que pode vir a acontecer de novo, eu tinha
perdido meu emprego, tinha voltado do intercâmbio, estava em dúvida sobre o meu
relacionamento. Então foi uma sobrecarga, mas assim, sinceramente, até desculpa, talvez eu
ofenda vocês, quando eu estava com o T., eu esquecia que eu tinha família e não fazia falta pra
mim, porque eu via nele a família que eu precisava.
Sofia: Lembrava quando não tinha dinheiro. A fazia falta a família e procurava por causa do
dinheiro.
Iva: Eu estou sendo sincera com vocês.
Sofia: É isso que eu falei. Por que você lembrava do teu pai, da tua família?
Iva: Não dá pra conversar com eles Mariana. Eu estou tentando completar a porra de uma frase e
não consigo. A última vez que a gente parou aqui pra conversar foi a mesma coisa, eu tentava falar,
eu tentava fechar uma ideia e eu não consigo. Eu não consigo falar.
Sofia: Você fala. Você fala.
Iva: Ó, ó...
Marcela: Deixa ela falar, mãe.
Iva: Daí eu começo a me estressar, eu começo a me exceder, eu começo a falar mais alto pra ver
se eles me escutam. Eu percebi que eu começo a falar mais alto, quando a gente perde a razão a
gente começa a falar mais alto. Mas assim, em momentos da minha vida, não só com a minha
família, mas talvez porque a minha família não me ouviu, eu tendo a falar mais alto com as pessoas
pra tentar me impor, pra tentar impor a minha ideia. Eu sei que é errado isso. E eu percebo que as
pessoas não escutam.
Pesquisadora: A terapia familiar é te dar voz. É deixar você falar sem ser interrompida. É isso
que eu estou propondo pra vocês. Tipo assim, eu sei que você sobrevive sem a sua família, Iva,
você sobreviveu muito tempo sem a sua família. A questão é: você quer? Você quer continuar
assim? Porque você vai sobreviver, eu sei que você vai, aos trancos e barrancos ou talvez muito
bem.
Marcela: Ou no CAPS de novo.
Sofia: Não. Quando que você está falando que ela sobreviveu bem sem família?
Pesquisadora: Não bem, talvez ela sobreviva bem, eu não sei.
203

Mãe: Ela não sobreviveu bem. Ela não sobreviveu sem a ajuda financeira do pai. Ou seja, ela não
sobreviveu sem.
Pesquisadora: Eu entendo o que você está falando.
Caio: Ela foi para o buraco, só isso. E a gente não quer que ela vá de novo.
Pesquisadora: Esperem aí, gente, só um pouquinho. Isso é uma opção da Iva Se ela quiser sair
daqui e nunca mais falar com vocês, ela pode.
Mãe: Então que não peça ajuda de nada.
Pesquisadora: Tudo bem. Vocês vão falar: não vamos te dar dinheiro porque você não fala com
a gente.
Sofia: Exatamente.
Pesquisadora: É uma opção pra todo mundo.
Sofia: E mesmo falando.
Pesquisadora: Mas eu não quero acoar a Iva nessa escolha.
Sofia: Eu não concordo. A partir do momento que você toma uma decisão na sua vida e que você
diz assim: eu não escuto a minha família. Eu não aceito o que vocês me falam. Eu não vivo na
mesma regra de vocês. Eu não acato o que é dito de vocês pra mim. Eu só aceito o dinheiro que
vocês me dão, não.
Pesquisadora: É, mas daí eu acho que a questão é cortar o vínculo do dinheiro.
Sofia: Sim, por isso que eu falei, porque quando você convive, não é por interesse, não é por
conveniência. Ou pelo bem-estar de estar um ao lado do outro e apoiando nas horas que precisa e
que não precisa. Não é procurar ...
Pesquisadora: Eu não estou falando, assim, que vamos fazer do jeito que a Iva quer. Não é isso
que eu estou falando. A questão é: eu estou fazendo um convite importante para essa família.
Sofia: Muito importante.
Pesquisadora: Que é, tipo, vocês querem ser uma família ou não? Não é nem fazer terapia ou não.
Eu posso sair daqui e vocês nunca mais falarem comigo. Não tem problema nenhum pra mim. A
questão é: vocês querem ou não? Se vocês querem continuar com esse vínculo, o que vocês
precisam pra isso se manter. Talvez a Iva precise de tempo, de afastamento, mas talvez a Marcela
precise de terapia familiar, precisa sentar e conversar. Talvez a Sofia precise afinar com o Caio
pra eles poderem ser pais juntos.
Sofia: Isso precisa
Pesquisadora: Tem muitas demandas aqui. A questão é o que vocês vão fazer com essa demanda.
Irmã: É difícil né. Eu vejo assim, são gênios, a gente tem gênios muito fortes, assim, mas ideias
muito diferentes, sabe? A cabeça, assim, a maneira de enxergar a vida, valores. Eu acho que todo
mundo aqui tem a cabeça tudo assim muito diferente, por isso que dá muito conflito. Porque daí
um não concorda com isso, está errado e tenta impor para outro. E nunca chega em lugar nenhum,
entende? Só que, assim, aí tem o gênio de agressividade que é muito parecido. Até eu tenho, a
minha agressividade não é de ir lá e socar, mas eu sou uma pessoa grossa, eu sou às vezes muito
grossa. Eu admito, porque eu quero melhorar.
Sofia: A gente já teve altos arranca rabos, eu e ela aqui.
Marcela: Só que assim, o que eu vejo é que eu tento melhorar, eu não vejo que vocês tentam
melhorar. Porque eu tenho vergonha de mim, eu tento me tirar do meu próprio corpo e me enxergar,
eu vejo assim, que vergonha, que deprimente o ser humano estar... pra ficar gritando. É muito feio,
é deprimente. Eu tenho vergonha na minha cara e eu quero melhorar, eu não vejo que vocês
queiram. Desculpa. Eu não vejo, porque eu acho que querer melhorar é se abrir e se olhar, em vez
de ficar se defendendo. Primeira coisa pra gente mudar e crescer é a gente tirar todas as nossas
204

defesas. Tira, esquece. Quem quer mudar faz isso. Ficar se defendendo, apontando para o outro,
vai viver patinando a vida inteira. Aí é uma opção de cada um, né? Porque daí eu vou ter a minha
vida, eu sei que eu vou tentar melhorar sempre e crescer, mas você vai ter a tua Iva, você vai ter a
tua. Mas a gente tem que olhar e falar assim: está bom? Eu estou feliz? Eu não vejo ninguém feliz.
De verdade. Eu não vejo aqui ninguém feliz. Ah, eu estou bem, não está. Ninguém está bem. Se
todo mundo aqui estivesse bem, nada disso aqui estaria acontecendo. Quando a gente está bem, a
gente vive em paz, a gente é mais tolerante com as pessoas, a gente tem mais paciência. A gente é
um bando de intolerante, incluindo eu. Eu não estou me tirando disso. Impaciente. Grosso, rude,
sabe assim? Egoísta. É isso. Enquanto vocês não quiserem, se vocês não estiverem dispostos, a
terapia não vai funcionar, vai ser um estresse daí. Vai ser só essa briga e a gente vai sair: ah, está
bom. É difícil, porque eu não vejo. É bem difícil.
Pesquisadora: Pelo que vocês estão me falando eu acho que é um acordo pra todo mundo que as
coisas não estão bem. Estou certo? Iva, pra você está bem?
Iva: Com eles, não.
Pesquisadora: Então, e se a gente tentasse marcar uma outra reunião semana que vem, não aqui,
lá na FAE, e tentar ver o que dá essa terapia familiar neste novo momento que vocês estão.
Marcela: Não sei, porque pra ela, ela falou que está bem sozinha, né? Então se você, depois de
tudo que aconteceu, você está bem, então acho que realmente não tem que ter...
Sofia: ... ela se fechar.
Marcela: Se ela está bem, eu não estou bem, eu estou destruída. Eu estou, assim, à beira de... eu
vou em um psiquiatra, eu estou com depressão, eu acho, de verdade. Porque eu não estou bem.
Nem em família, sozinha, eu não estou bem. Eu não vejo a minha mãe bem, porque não dorme,
vive... a mãe não dorme, ela acorda várias vezes na noite, tem insônia, isso não é estar bem. Vive
preocupada, chorando. Você vive sozinho, naquele apartamento lá enfurnado, fumando. Está bem
a sua qualidade de vida? Desculpa aí, vou ter que ser bem sincera, por mais que doa. Eu vejo aqui
um monte de gente se defendendo da própria tristeza. A gente, às vezes, não quer se abrir por
medo, assim, de escancarar os nossos próprios... porque dói, dói demais olhar pra trás e ver que
fez um monte de merda, né, pai? Né pra todo mundo aqui, até pra mim. Dói, né? Por isso que às
vezes a gente foge. Foge de querer mudar. Porque, você está feliz, pai? Com a sua vida hoje. Você
está bem?
Caio: Claro que eu estou feliz.
Marcela: Não, você não está, realmente, não é só com a Iva, é com você. Você está bem com
você? Esqueça a Iva, me esqueça. Você está bem com você?
Caio: Não.
Marcela: Você está bem com você?
Sofia: Não to feliz.
Marcela: Eu não estou bem comigo. Agora, se você me disser, de verdade Iva, do fundo do meu
coração, que você está bem com você, com você mesma, assim, longe de nós, não precisa fazer
terapia familiar, não precisa. Porque o intuito aqui é todo mundo ficar bem. Você está bem com
você mesma, assim, longe da gente? Fazendo a tua vida, assim, a gente é realmente um fardo, é
difícil aceitar coisas? É muito difícil pra você? É melhor sem a gente? De coração? Eu estou
falando de coração. É difícil? Eu queria você na minha vida, muito, porque eu te amo muito, e
todo mundo aqui te ama. E se está tendo tanta briga é porque todo mundo se preocupa muito com
você e ninguém quer te ver de novo pelo que você passou. Agora, se você está bem, de verdade,
sem mim, sem a mãe, sem o pai, vai viver a tua vida feliz, em paz. Se você se garante tanto que
você não vai dar merda, com você continuando bebendo, não sei como você está bebendo, não sei
205

como você vive, mas acredito que você beba. Ninguém acha aqui que é certo. Vai viver a tua vida.
Eu vou falar pra mãe: esqueça a Iva Eu vou falar: esqueça, esqueça, aí você vai viver a tua vida.
Aí realmente vai ter que ser uma coisa drástica, porque ninguém aguenta mais. Vai viver sempre
esse inferno, todo mundo em função de se preocupar com você? E você não tem que tomar essa
preocupação como uma cobrança, uma coisa ruim, você devia tomar como uma coisa boa, porque
as pessoas te amam, são pessoas que te amam e querem te ver bem. Agora, realmente, eu acho
isso, se ela estiver bem sozinha, nossa, paz e amor, vai viver a sua vida, Iva.
Iva: Eu acho que é muito 8 ou 80.
Marcela: Não. Mas é. Você falou que desistiu. Quem falou...
Sofia: ... quem está sendo 80 é você, filha.
Marcela: Eu abri meu coração.
Pesquisadora: Mas, Iva, então me fala o que é?
Iva: Assim, é isso, ver de vez em quando, conversar, é isso.
Marcela: Quando é bom pra você, só a parte boa. Você só quer a parte boa.
Iva: Eu moro do lado aqui, eu posso vir almoçar.
Marcela: Você quer vir aqui almoçar, a parte boa, mas é, porque você está falando e você não
quer aceitar. Você só quer vir aqui almoçar, a parte boa. Você não quer cobrança, você não quer
ter que colaborar. Você, daí: quando eu quiser, meus pais vão me dar dinheiro e não me enchem o
saco.
Iva: Eu não posso falar.
Marcela: Mas é isso. Você vai falar o que eu acabei de falar.
Pesquisadora: Iva, então, o que você está falando é que você queria manter essa metade de 80,
uns 40 e pouco, uns 37. Só que eu acho que o que eles estão falando é que 37 não está bom. Porque
só se ver de vez em quando, as coisas vão continuar mais ou menos como estão: brigas,
preocupações. Eles estão falando que não está suficiente. E me veio uma coisa na cabeça. Eu estou
vendo que a Marcela e a sua mãe estão muito mal, estou vendo elas sofrendo. Quando você estava
sofrendo, elas foram lá e te ajudaram. Será que não é o momento de você estar pra elas e se esforçar
pra ir em uma terapia familiar se é o que elas estão precisando? Você faria isso por elas?
Iva: Eu não sei se essa é a solução para o problema delas.
Pesquisadora: Elas estão pedindo.
Sofia: Não foi isso que foi perguntado pra você, Iva
Iva: Eu posso, mas eu não tenho muito tempo disponível, tem que ser final de semana, mas eu
posso.
Marcela: Não, deixa. Eu só quero as coisas de coração aberto, não essa coisa de... olha o descaso
que você está fazendo, Iva Olha essa... eu acho que você não percebe como isso magoa.
Iva: Então eu não vou, pronto, pronto. Então, eu estava falando, eu posso ir nos finais de semana.
Marcela: Não, mas é a tua disposição ...
Iva: Não, eu respirei, porque a mãe fez um comentário que eu não gostei e eu estou tentando não
ser agressiva, estou tentando lidar com a respiração.
Marcela: É difícil.
Pesquisadora: Iva, eu só vou te lembrar, não querendo te cobrar de nada, mas assim, a Marcela
faltava aula pra estar na sua reunião, a sua mãe também...
Sofia: ... era trabalho que ela faltava. Uma vez por semana.
Pesquisadora: A Sofia também. O seu pai também fazia um esforço pra estar lá. Eu não estou
querendo que você falte o seu trabalho. Mas assim, eu acho que alguma perda, sim, vai ter. No
sentido de um sacrifício. Ir pra terapia é um sacrifício.
206

Iva: Realmente eu trabalho, das 8 às 18 eu não posso faltar. Não tem como faltar. Eu não tenho
nem experiência lá pra estar faltando o trabalho. Pra isso eu não posso.
Pesquisadora: A gente pode dar uma declaração, que você está lá fazendo atendimento familiar.
Sofia: Como a Marcela pegava a declaração e entregava.
Marcela: É a vontade.
Iva: Não é pela vontade, é receio...
Marcela: Você não quer, Iva
Iva: A mãe me ameaçando que vai falar com o meu chefe.
Pesquisadora: Mas isso é uma coisa que pode ser negociado também Iva
Iva: Eu perdi a confiança.
Marcela: E a gente em você.
Iva: Então, então não vai ter.
Marcela: Mas isso é algo que se constrói, Iva. Nossa, eu acho que você está sendo injusta. Todo
mundo aqui está querendo construir as coisas, só que você também vai ter que mudar. Ou você
quer continuar a mesma coisa? Você acha que você está 100% certa em tudo que você faz?
Iva: Claro que não. Ninguém é 100% certo no que faz.
Marcela: Você acha que você é correta? Você acha que você não erra também?
Iva: O que eu acabei de falar?
Pesquisadora: Veja, Iva, inclusive esses seus receios são coisas que a gente pode trabalhar na
terapia familiar. Olha, sua mãe vai fazer um acordo com você diante de uma negociação de que
ela nunca vai falar para o seu chefe em hipótese alguma.
Iva: Eu não confio.
Pesquisadora: Mas se são acordos e a gente está fazendo na terapia familiar, são coisas que eu
também vou cobrar se ela me prometeu, entende?
Iva: Eu não confio, mesmo ela prometendo para o Papa, entende? Eu não confio.
Sofia: Ah, Iva, se fosse pra falar eu já tinha falado.
Iva: E por que ameaçou?
Sofia: Porque eu queria que você fosse ao médico, que você se cuidasse.
Iva: Mas você precisa me ameaçar?
Sofia: Não, eu tentei fazer um acordo com você. Eu falei: Iva, se você não for, eu vou ligar para o
seu chefe fazer uma liberação pra você ir ao médico... Você não falava, Iva, mas de dois meses
eu pedindo pra você marcar o CAPS e você não marcou. E o seu remédio está acabando.
Marcela: Meu Deus, é uma preocupação com a sua saúde.
Iva: Mas eu quero me preocupar.
Sofia: Você não se preocupa, Iva, você não vai. Chegava aqui, tomou o remédio? Ai, não. Esqueci.
Iva: Eu fiz isso uma vez, duas vezes. Eu tomo todo dia esse negócio.
Pesquisadora: Gente, desculpa interromper, é o seguinte, eu acho que vocês precisam pensar no
que vocês querem fazer. Eu espero que eu indo embora, vocês, de fato, pensem sobre isso e
conversem.
Sofia: A Iva vai sumir, ela não vai conversar. Não espere isso dela.
Pesquisadora: Ou se vocês quiserem a gente já entra em um acordo hoje.
Sofia: Não me responde nem mensagem. Quando ela está desse jeito, ela some, igualzinho ela
fazia quando morava com o Tadeu.
Caio: Não atende o telefone.
Sofia: Não atende o telefone. Ela faz com o pai a mesma coisa. Aí quando ela está desesperada: ai
pai, preciso... ela vai lá e...
207

Caio: ... não, liguei, ela estava nos botecos lá, com as vagabundas lá...
Iva: Hãn?
Caio: Aí atende uma outra voz, depois
Iva: Quando isso?
Caio: Ah...
Iva: Quando isso?
Caio: O bar, não sei, do ...
Iva: Quando isso?
Caio: Ah, uns meses atrás.
Marcela: Está bom, já passou, não vem ao caso
Pesquisadora: Então o que vocês querem decidir?
Sofia: Que você comece a me contar as coisas que acontece. Eu vou te pedir isso. Eu conto tudo
pra você, tudo que acontece aqui dentro, todas as vezes eu te liguei pedindo ajuda J.
Caio: Mas isso é justamente daquela saída da Iva
Sofia: Quando ela for te ligar pedindo ajuda de novo, eu peço que você me ligue e diga... divida
comigo, eu estou pedindo pra você. Fale o que você acha que a gente deve fazer. Duas cabeças
pensam melhor que uma, J. E a gente precisa.
Caio: A minha cabeça não tem pensado mais com relação à Iva
Sofia: Mas a gente podia. Eu sei que você está cansado, eu sei.
Caio: Enquanto ela continuar com essa cabecinha dela, ela não enxerga. Ela está conversando,
olhando pra você, mas ela está pensando no boteco, na droga, na...
Marcela: ... ai, pai, menos.
Caio: ... naqueles lixos.
Iva: Eu estou pensando que já deu duas da tarde e eu tenho que voltar para o trabalho.
Pesquisadora: O que vocês querem fazer? Vamos só encerrar nisso.
Marcela: O que a Iva quer fazer?
Iva: Nada. Quero voltar para o trabalho, voltar pra minha vida e refletir sobre isso. Não acho que...
Sofia: ... quanto tempo, Iva, refletindo?
Iva: Não sei. Um mês? Uma semana? Não sei mesmo. Mas é isso, eu quero um tempo pra pensar
sobre isso que foi hoje,
Sofia: E o médico, Iva? Quando é que você vai?
Iva: Eu vou resolver, pode ser? Eu.
Sofia: Se você não marcar, Iva, eu vou atrás de você. Eu não vou deixar. A sua vida...
Iva: ... e daí, olha, agora eu vou te falar...
Sofia: ... não. Agora eu vou falar, eu sou tua mãe e você vai me escutar.
Iva: Ai meu Deus, eu vou sair daqui.
Sofia: Não. Não vai. Você vai aprender a escutar.
Iva: Eu vou sumir. É isso que eu vou... eu vou sumir.
Sofia: Ela faz assim quando ela é cobrada.
Pesquisadora: Gente, o que eu estou propondo, eu estou tentando ajudar vocês nessa relação. Mas
vocês não estão querendo a minha ajuda, então vocês vão continuar assim até a Iva sumir. E sei lá
o que vai ser, Iva você vai perder a sua família, ok, é uma opção sua.
Sofia: Mas meu Deus do céu, ela tem que dar prioridade pra saúde. Ela tem que marcar.
Pesquisadora: Eu sei. E é isso, gente. O que eu posso oferecer pra vocês, eu ofereci. Se vocês
quiserem vir falar comigo, qualquer um de vocês, me procurem. Eu vou tentar ajudar vocês da
208

melhor forma possível. Eu acho que a melhor forma agora é uma terapia familiar. Vocês não
querem isso? Ainda estou aberta a escutar vocês.
Sofia: Eu quero, sim, e acho super necessário.
Pesquisadora: A gente pode marcar quem quer ir e se a Iva não quiser ir, ok.
Sofia: Nem que vá eu e a R. A gente vai, sim.
Pesquisadora: Vamos fazer isso, não tem problema.
Sofia: A gente vai sim, nem que seja aos sábados.,
Pesquisadora: Vocês têm meu celular, vocês entrem em contato comigo e vocês vão marcar. Pode
ser assim?
Sofia: Pode, pode sim.
Pesquisadora: Então está bom. Eu vou fazer uma última pergunta, que na verdade era a pergunta
da minha pesquisa, que é: como foi pra vocês esse período que a gente passou lá até dezembro?
Como foi essa experiência de atendimento pra vocês?
Marcela: Eu achei que o atendimento, assim, que era semanalmente que a gente ia, né? Eu achei
que estava segurando mais a barra, sabe? Porque eu acho que a gente falava tudo lá e não chegava
em casa.
Caio: São coisas que tinha que se abrir e não falava, no dia-a-dia não falava.
Marcela: Quando estava na terapia a convivência era melhor. Quando largou, começou mais a...
Sofia: ... degringolar.
Marcela: Eu achei mesmo que quando a gente fazia, tinha mais tempo, ajudava a segurar a barra,
assim.
Sofia: Por mais que se cutucasse, mas envolvia, né? Por mais que tivesse os conflitos, eu acho que
mesmo assim, eu acho que a gente se abraçava mais.
Marcela: É, depois que parou, acho que a paciência foi mais para o saco.
Sofia: Eu também acho.
Marcela: Eu achei que durante o tempo da terapia ajudou muito, mesmo.
Sofia: E, assim, o CAPS está de parabéns, o seu trabalho, o atendimento deles, assim, nossa, eu
fiquei muito grata. Muito mesmo. Se não fosse vocês, eu não sei o que teria acontecido.
Pesquisadora: Iva, Caio, como foi pra vocês?
Caio: Na verdade, depois que terminou, tudo bem. Só que as pessoas precisam querer mudar, as
pessoas têm que querer se ajudar. Se elas não querem se ajudar, ninguém vai ajudar.
Pesquisadora: E como foi pra você, Caio, essa parte, especialmente, da terapia familiar, de ter as
conversas que tiveram?
Caio: Desculpe, pra mim foi como se não tivesse acontecido nada, porque tem muita hipocrisia
no meio do caminho. Eu prefiro não discutir, entende? Porque aí é questão de ficar de mágoas, não
quero entrar nesse detalhe. Então é muita falsidade, muita hipocrisia. E o problema não é esse, o
problema é a Iva ter se conscientizado e ela não se conscientizou, então se for analisar por esse
aspecto, não deu certo. Porque ela, até agora, na cabeça dela, ela não sabe o que ela passou lá. Ela
pode até saber, mas ela não reconhece o sofrimento que foi aquilo lá.
Sofia: É verdade.
Iva: Eu tenho o meu lado da história.
Caio: Teu lado da história Iva? Então está bom, vai lá. Você ficou lá 15 dias, sei lá, 20 dias. Esse
teu lado da história qual que é?
Iva: Não, eu vi que eu melhorei muito, o CAPS me ajudou muito, que ter um acompanhamento lá
foi muito importante pra eu melhorar, pra eu conseguir ir me reerguendo, tudo isso foi muito válido
pra mim, então me ajudou. Eu consigo ver a Iva quando estava lá, falando nada com nada. Eu não
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lembro exatamente, assim, de tudo, mas minha mãe contou coisas, a Marcela, o pai. E eu vi como
eu melhorei, tipo, eu saí... depois que eu vim pra cá, eu não consegui escrever, eu tremia, de ir no
médico e tudo. E hoje eu consigo fazer tudo, assim. Então foi muito importante mesmo, pra mim.
Foi bem legal.
Pesquisadora: Como foi fazer o atendimento familiar naquela época, pra você?
Iva: Eu via que tinha muito conflito, porque um falava uma coisa, o outro fingia que era... sei lá,
estava jogando pedra um no outro. Até eu mesma. Mas eu acho que isso ia sendo quebrado, então,
tinha uma sessão aqui, rolou um conflito, mas na próxima a gente já tentava resolver aquilo. E eu
via que ia melhorando de uma pra outra, que as pessoas iam se entendendo melhor. Conseguiam
falar, conseguiam mostrar o seu lado e o que sentiam. Eu acho que as pessoas começaram a se
compadecer mais também. Eu senti isso.
Pesquisadora: Obrigada, Iva. Bom, gente, eu acho que era isso, não quero tomar mais o tempo de
vocês. Saibam que eu estou totalmente à disposição, gosto muito de vocês, de todos vocês. Eu
gosto da família de vocês.
Caio: Nós somos muito gratos a você.
Pesquisadora: Então fiquem à vontade. Eu estou com o Pequi, que é o grupo das primeiras crises
lá na FAE agora, então tem muitos casos que a gente atendeu no CAPS, que a gente continua
atendendo. Então sempre que vocês precisarem, podem me ligar, podem entrar em contato com a
FAE, que eu vou estar super à disposição. Seja pra família, seja individualmente. Eu estou aqui
pra poder ajudar no que precisar, no que vocês precisarem de mim, na verdade. Está bom?
Família toda: Está bom, obrigada.
Pesquisadora: E obrigada por terem se disponibilizado. Eu sei que não é fácil encontrar um
horário no meio da semana. Muito obrigada pela disponibilidade também, de hoje.
Iva: Obrigada você.

Entrevista Família do Lucas


Rubens - Pai
Ariana - Mãe
Juca - Irmão

Pesquisadora: Então, gente, basicamente essa entrevista é para vocês me falarem um pouquinho
da experiência de vocês desse atendimento que a gente fez ano passado. Como foi pra vocês, coisas
que vocês acharam interessantes, coisas que vocês não gostaram, coisas que vocês entenderam
sobre vocês mesmos, a família, a crise do Lucas. Como vocês viam a crise no começo e como
vocês veem hoje. Como anda o Lucas. Como andam vocês. Fazer esse feedback meio que geral de
como vocês estão. Me contem primeiro como vocês estão, como está o Lucas.
Rubens: O Lucas está melhor.
Pesquisadora: Como ele está?
Rubens: Está... parou de sair com as más companhias, né? (Que eu atendo) [00:00:50]. Está mais
caseiro. E ele está ansioso, ele quer conseguir um emprego e ele não consegue. Aí ele... ele fala:
pai, eu não consigo, eu não vou mais para o centro. Eu falo assim: filho, tudo bem, vai então (meio
dia) [00:01:07], vai uma vez por semana, mas eu não estou te cobrando nada. A hora que você
conseguir, beleza. Eu conversei com o médico e ele falou assim, que até que não era interessante
estar cobrando ele alguma coisa. Tudo bem. Mas ele quer trabalhar. Ele quer ter o dinheirinho
dele, mas as coisas não estão fáceis, né? Ele está batalhando, mas fica frustrado por não conseguir.
210

Aí a única queixa que eu tenho, assim, que eu até conversei com a (Ariana) [00:01:36] desde
antigamente, que ele não quer sair do quarto. Ele fica 80% do dia no quarto.
Pesquisadora: E o que ele faz no quarto?
Rubens: Fica dormindo. Deita e fica lá, fica quieto, às vezes fica estudando. Que ele voltou a
estudar, né? Então...
Pesquisadora: ... e ele está fazendo à noite?
Rubens: À noite, só que ele faz... não é todo dia, são dois dias só da semana, presencial.
Pesquisadora: É supletivo, né?
Rubens: Exatamente. Mas ele fica muito no quarto dele, isso me preocupa um pouco.
Pesquisadora: Final de semana também?
Rubens: Tudo. Aí quando ele sai um pouquinho, ele fala: pai, tem um dinheirinho pra mim e tal?
Daí eu... porque eu tenho um pé atrás, né, com ele, não dou um grande valor. Eu dou 5 reais, 2
reais, que ele vai ali e compra um cigarro ou ele mesmo toma uma cervejinha. Mas daí fica nisso,
né? Eu acho que ele está bem triste por causa desse negócio de não estar conseguindo emprego ou
alguma coisa desse tipo. Acho que está bem por aí.
Pesquisadora: Sim.
Rubens: E ele ia ver... que nem eu falei para o psicólogo, o doutor, que o que eu estou passando
por ele é por que isso de ficar no quarto, eu vejo que ele está triste, está bem magro, emagreceu
bastante.
Pesquisadora: Nossa, ele já era magrinho, né?
Rubens: Era magro, está mais magro ainda. Aí ele come quando dá vontade, tipo se está na hora
do almoço e ele não come, daí claro, quando dá três horas ele come alguma coisa. Ele diminuiu o
apetite. Então eu até tenho conversado com o médico, que vai ter acho que sexta-feira agora. Sexta-
feira tem uma consulta, outra consulta. E eu vou falar pra ele isso aí, que o que eu já tinha explicado
o outro mês, continua a mesma coisa nesse mês.
Pesquisadora: E ele está fazendo qual acompanhamento aqui no CAPS? Só com o psiquiatra?
Rubens: Só com psiquiatra.
Pesquisadora: Ou ele está vindo em grupo, individual, nada?
Rubens: Não, não está vindo.
Pesquisadora: E o que acontece, ele não quer vir?
Rubens: Nos outros?
Pesquisadora: É.
Rubens: Não quer vir mesmo, ou porque não dá. Não... muitas vezes ele fala que está bem. Eu
falo assim: você está bem, mas você só vai pegar alta do que você está fazendo quando o médico
falar que você não precisa ir mais. Eu até nem sei como é que vai ser depois, se ele conseguir um
emprego, como é que vai ser, né? Porque não tem consulta de noite, né?
Pesquisadora: É, mas daí provavelmente eles dão uma declaração, uma despensa, né? Como
quando a gente vai no médico, algo assim.
Rubens: Mas então é isso, está... só essa que é a preocupação minha no momento. O médico deu
um remédio pra ele, pra ele dormir, né? Dormir um pouco mais, alguma coisa assim. Aí ele
começou a tomar, mas ele falou que fica com enjôo.
Pesquisadora: Mas se ele está dormindo o dia todo é porque daí ele não consegue dormir à noite,
é isso?
Rubens: Trocou o dia pela noite de novo, de novo, que nem da outra vez. Ele tinha parado, ele
tinha conseguido... ele estava disperto durante o dia e dormia de noite. Agora começou de novo.
211

Pesquisadora: E desde que a gente parou aqui com os atendimentos familiares, até hoje, ele voltou
a ter alguma crise?
Rubens: Não, nunca mais.
Pesquisadora: Uhum.
Rubens: Depois que a Ariana saiu de casa.
Ariana: Mas a gente... a crise que deu, que foi em fevereiro, já tinha parado de vir aqui. Então,
sim, ele teve crise de...
Pesquisadora: ... é, porque a gente parou eu acho que em outubro, talvez, algo assim.
Ariana: Foi em outubro.
Pesquisadora: Foi no final do ano passado.
Ariana: E quando foi fevereiro ele teve crise, sim. Não forte como foi da outra vez... mas eu não
sei se continuasse a mesma situação, se não poderia estourar novamente. Então dessa vez eu não
quis arriscar, né? Até uma situação bem desagradável de eu estar fora de casa, já estar caminhando
pra cinco meses, vejo o Lucas muito pouco. Ontem ele foi lá falar comigo, foi pra pedir dinheiro,
né? Então, ora está bem carinhoso, ora fico bastante tempo sem vê-lo. Mas ele... eu acho que
quando ele não está tomando remédio, ele fica mais agressivo, sim. Não sei o diagnóstico do
médico, naquela época que a gente fazia o atendimento era uma incógnita, né? O que realmente
ele tinha. Pra mim continua na mesma, eu ainda não sei exatamente dele, assim, se é um conflito
ele, se é alguma coisa relacionada à gente, se é... o medicamento mesmo. Eu gostaria de saber o
que fazer, como ajudar mais o Lucas e eu não sei. Não sei como fazer. O Rubens está segurando
essa bomba, praticamente sozinho. Tem acontecido bastante coisas, assim, ruins, né? E é
complicado, a gente fica longe e, assim, longe está ruim, perto eu não sei se estaria tão ruim. É
difícil, é bem difícil.
Pesquisadora: Como que foi pra vocês a época que vocês estavam fazendo atendimento aqui?
Ariana: De verdade?
Pesquisadora: Uhum.
Ariana: Corrido. E a ideia parecia, assim, que enquanto a gente estava aqui, o Lucas agia de uma
forma. Saía do portão pra fora, era outra coisa. Teve uma situação bem ruim, que a gente saindo
daqui... bem ruim mesmo. Eu acho que foi a última vez que a gente veio. E ele pediu dinheiro para
o Rubens. Daí o Rubens: ah, vou parar no banco. Eu falei: como assim? Eu não tô sabendo. Não,
não. É um trato com ele. E o Rubens desceu e falou: desce você junto. Porque ele percebeu que o
Lucas tinha se alterado. Aí eu desci junto, quando eu entrei no carro o Lucas começou a falar...
grosso comigo, a me ameaçar, aí... então... a ideia era assim: poxa, a gente está procurando ajuda,
mas você não quer ser ajudado. Foi o que eu pensei na época, tipo, do que a gente conversa lá, sai
da porta pra fora e já começa a ameaçar de novo. Justo o que eu tinha medo. E até foi um dos
motivos que eu realmente... está corrido, está cansativo, não estou vendo resultado, porque pra
mim depende mais dele, né? De querer ajuda, de querer se abrir e querer... porque eu sempre vou
estar de braços abertos pra ele, do que precisar de mim. Só que, realmente, eu ainda... não digo
agora, mas eu me sinto segura hoje por não estar em casa. Fiquei bastante tempo sem dormir
direito, nervosa... E hoje eu tenho dormido, mas, tipo, não é a minha casa, estou longe da minha
família, está dividido, um tanto pra lá e um tanto pra cá. Mas eu (não) [00:09:22] senti isso, assim,
não sei do Rubens, mas a ideia naquela época era assim: a gente está procurando ajuda, a gente
tem pessoas para nos ajudar, mas depende dele querer essa ajuda. Então é isso que eu pensei na
época.
Pesquisadora: E pra você, Rubens?
212

Rubens: Não, é, assim... não... eu não sei o que o médico conversa com o Lucas, porque ele não
passa pra mim. Então eu tenho a impressão que o que está resolvendo a situação do Lucas é o
remédio. Parece. Parece que é o remédio. O médico achou o remédio: olha, isso aqui vai resolver,
vai deixar ele meio (inint) [00:10:10]. É o que está parecendo, porque até então, assim, eu não...
independente de você, porque você parece que está interessada, (inint) [00:10:19] está se
interessando, eu não vejo muito interesse, assim, da parte do médico. É até chato falar isso, mas
eu acho que o médico devia conversar com a gente, conversar comigo: olha, teu filho tem tal coisa.
Que nem a Ariana comentou, falta esse feedback do médico conosco, parece que o médico só está
escutando, o médico só está escutando o que o Lucas fala, não passa... sabe? Então dá essa
impressão, assim, que eu só sou o motorista da casa. Agora, mais dentro das coisas que estão
acontecendo, estão acontecendo, né? Como eu não sei o que o médico conversa com ele, eu não
tenho como opinar o que ele... né? Tanto que eu estou falando mais com você agora do que todos
esses meses todos falando com o médico. Mas o remédio está fazendo efeito, sim, tem melhoras,
ele não teve mais crise, né? Mas também, eu também faço aquela... como eu sei que há um
problema, eu não vou cutucar a onça com vara curta, né? Eu sei, assim, que eu não posso...
Pesquisadora: ... você não confronta o Lucas?
Rubens: Eu não confronto, mas tem horas que eu dou um pega nele como pai, né? Como louça,
às vezes tem louça lá, está cheio, eu chego pra ele: Lucas, essa louça fica... e daí? Daí ele: ah, pai,
vou lavar hoje. Mas você falou isso ontem. É o máximo de bronca que eu dou pra ele, sabe? A
casa, a (Edimárcia) [00:11:52] limpa, dá uma força aí. Então eu cobro alguma coisa dele, assim,
né? Ou às vezes eu faço uma troca com ele em relação à dinheiro, né? Tem que ser dinheiro, pra
comprar alguma coisinha dele. Daí ele: ah, pai, quer que eu (lave) [00:12:04] o carro? Eu falei
assim: hoje não. Puxa, eu estava precisando de dinheiro e tal. Não, mas... é filho, né? Mas da outra
vez você pediu dinheiro pra mim e não lavou o carro. Não, eu vou lavar sim, eu vou lavar. Então,
faça a sua parte que eu faço a minha. É uma coisa, assim, mais light, não é aquela pegada que a
gente dava pai e filho normalmente, né? Mas eu acho que ele está dando, sim. Ele está tendo
melhoras. Mas é lógico que eu sinto que falta alguma coisa pra ele... falta alguma coisa pra ele, ele
está atrás de alguma coisa e ele está frustrado. Eu não sei se é essa... esse precisar de um emprego,
não sei se é isso. Mas eu sinto que ele está meio frustrado, assim, sabe? Ele andou pra caramba,
bastante, em relação a emprego. Ele não conseguiu, não conseguiu, aí ele parou. Eu vi que ele deu
uma... uma segurada.
Pesquisadora: E agora não está muito sabendo pra onde ir, talvez?
Rubens: Exatamente, né? Daí eu falo: não, vamos lá, tem que ir cedo e tal. Não faço essa cobrança
dele. Por causa do... eu vou cobrar alguma coisa, você sabe como está o Brasil. Então... e também
não tenho aquela segurança de 100% ainda, tipo: você vai trabalhar porque você está apto
realmente a trabalhar. Então eu ainda estou com uma resguarda aí. Mas (inint) [00:13:29], né? Que
(vício) [00:13:29] é aquela coisa, né? Estou observando ele, né? Observando as coisas que ele faz.
Mas há melhoras, tá? Assim, grandes melhoras do que ele era antes. Uma das coisas que ele
conseguiu tirar, as más amizades, mesmo. Ele resolveu se desligar de lá, não sei se no susto, não
sei por que, por desavença, não sei. Mas está...
Pesquisadora: ... mas aí quando ele rompeu com esses amigos, ele também não fez novos, né?
Então ele acabou se isolando.
Rubens: É. Exatamente. É um ou outro ali perto de casa, que ele já conhecia, mas não é a turma
lá, a turma da quebrada. Mas está difícil ele achar novos amigos, porque ele é uma pessoa quieta,
ele é uma pessoa meio fechada. O Lucas pra conseguir uma amizade...
213

Pesquisadora: ... é. E assim, é difícil, na nossa cultura hoje a gente não mora em uma cidade
pequena em que um vizinho conhece o outro, né?
Rubens: É, exatamente.
Pesquisadora: A gente meio que precisa de pretexto pra conhecer pessoas, então ou é no trabalho,
ou é na escola, ou é em um lazer. E me parece que o Lucas não está tendo nada disso, praticamente,
né?
Rubens: Não. Não. Agora no colégio, que ele está lá de noite, tem adulto, mas eu vejo assim que...
ele fala: ah, pai, eu vou ficar lá depois do colégio, vou tomar uma cerveja com o pessoal do colégio.
Ah, que bom. Mas como são dois dias só, eu acho que...
Pesquisadora: ... é, talvez não...
Rubens: ... ainda não ficou aquela amizade, não teve amizade ainda. Mas faz parte, né? Ele ficou
muitos anos afastado de tudo, né?
Pesquisadora: E assim, ouvindo vocês falarem e lembrando de quando a gente fazia os
atendimentos, parece que voltou a um estado de... está todo meio assim com o Lucas até hoje, né?
Está todo mundo meio sem saber muito bem o quanto pode falar...
Rubens: ... exatamente.
Pesquisadora: O quanto (inint) [00:15:25], colocar limites, né? Ainda tem isso.
Rubens: Ainda tem.
Pesquisadora: E no fim das contas isso não surte tanto efeito positivo para o Lucas. Eu acho que
só impede grandes conflitos, né? Impede de vocês serem agredidos, mas o Lucas meio que
estagnou também, né?
Rubens: Sim.
Pesquisadora: Tipo, a vida dele não está boa, pelo que vocês estão me contando.
Rubens: Exatamente. Não...
Pesquisadora: ... ele só não está em crise, não está sendo agressivo, mas ele não está bem...
Rubens: ... não. Ele está... essa maneira que você colocou, é bem isso mesmo. Se ele estivesse
bem, ele não estava isolado no quarto.
Pesquisadora: Sim, e estava vendo... sei lá, sentido na vida, buscando coisas. Mas parece, pelo
que vocês estão falando, que...
Rubens: ... sim, exatamente. Eu já falei pra ele de cursos, eu falei: filho, faça um curso que é
melhor pra faculdade. Não, não, pai, eu vou fazer uma faculdade, que não sei o quê. Daí eu fico
só, assim, vendo ele... (Inint) [00:16:15] quero ser médico. Filho, ok, corra atrás, se esse é o seu
objetivo.
Pesquisadora: Ele fala muito e faz pouco, né? Tipo, eu vou fazer, e ele não faz. Eu vou lavar o
carro.
Rubens: É.
Ariana: É.
Rubens: Se dá vontade nele, é uma coisa na hora, assim, daqui a pouco ele recua. Então eu estou
deixando ele meio assim, ele está... não se achou ainda, né? Ele não se achou, está com 21 anos e
não se achou.
Pesquisadora: E assim, eu acho que da minha perspectiva, realmente, olhando pra trás e ouvindo
vocês falarem, o que faltou foi o Lucas topar especialmente atendimentos individuais. A gente
nunca pegou muito o que passava na cabeça do Lucas. Porque aqui a gente trabalhava questões da
família, que eu acho que eram relevantes, né? Veja, a gente parou e a família meio que se esfacelou
e se estagnou, né? Não houve... e naquela época eu percebia ainda uma tentativa de vocês pensarem
juntos como agir com o Lucas. Às vezes até (peitar) [00:17:14] o Lucas, que eu não achava ruim,
214

que dá medo, né? É uma situação que não é agradável, confortável, mas talvez o Lucas também
precise disso. Eu não estou falando pra você, Rubens, chegue em casa e faça isso, né? Mas eu acho
que era um investimento que a gente estava fazendo que eu via como positivo. Mas é isso, o Lucas
nunca (topou) [00:17:35] muito, e vocês também nunca tentaram trazer ele de verdade, né? Tipo,
você vai ter que ir porque é o seu tratamento. Assim como você falou para o João: João, você vai
ter que ficar uma hora e meia dentro da máquina, João, você vai ter que fazer uma pulsão.
Ariana: Nove dias dentro do hospital, tinha horas que ele queria fugir, eu falava: filho, você não
vai...
Rubens: E é isso, né?
Ariana: Com o Juca eu tenho essa liberdade de ser mãe, de me impor como mãe. Assim, eu sei
que é ruim, estou vendo que você está sofrendo, mas estou com você, o que você precisar de mim,
mas... o correto é isso. Se você, Deus me livre, fugir de um hospital, você fica marcado, você não
pode voltar, Deus me livre acontece alguma coisa. Então faz as coisas certas que no final vai dar
certo. Mas assim, com o Juca eu tenho esse diálogo, eu tenho essa imposição. Com o Lucas eu,
realmente, tenho um pé atrás. Eu tenho porque por muito menos as coisas foram crescendo de uma
forma muito ruim. Então hoje eu tenho pouco contato com o Lucas, pouco mesmo. Perguntei para
o Rubens até esse final de semana: quando que eu vou voltar pra casa? Porque eu quero ter certeza,
sabe, de alguma coisa. Porque eu realmente saí no impulso. Eu saí no... não, tem que ser agora,
porque o Juca já não estava aguentando mais, o Lucas estava ameaçando o Juca. Então foi aquela
coisa assim, meu Deus, vou esperar acontecer alguma coisa? Não quero. Não quero mais isso.
Então foi bem ruim. Até o Rubens, no começo, não aceitava... a gente... né... quase... quase teve
uma separação, sim. Quase, por muito pouco mesmo, não teve uma separação. E... eu realmente,
eu queria saber como ajudar o Lucas. O que fazer pra ele melhorar, o que fazer pra ele ter uma
vida normal, uma vida saudável, uma vida feliz, sabe? O que falta? O que eu posso fazer pra ajudar
ele? Eu fico perdida.
Pesquisadora: É, eu, Mariana, acho que só tratar o Lucas com medicamento é pouco. Eu acho
que ele vai ficar do jeito que ele está. E eu não sei se nem pra família de vocês e nem para o Lucas
isso é suficiente. Então eu acho que o Lucas e vocês precisam estar fazendo mais coisas, mais
terapia ou buscando outros recursos, né? Quanto mais complexa a situação, mais lados por onde
você tem que atacá-la são necessários, né? É que nem com o Juca, era um problema complexo,
foram vários medicamentos, foram vários médicos, vários exames, né? Eu vejo a situação do Lucas
da mesma forma, né? Grave também e que se a gente só atacar por um lado não vai ter grandes
efeitos. Vai controlar o Lucas? Vai. Mas obviamente pra vocês isso não está suficiente.
Rubens: Sim.
Pesquisadora: Porque nem mesmo juntos vocês estão e não é porque vocês não se gostam, né?
Não é porque vocês não querem retomar a sua família, parece que... e é isso, né? A crise do Lucas
não ficou só como a crise do Lucas, é uma crise de todos vocês no fim das contas.
Rubens: Sim.
Pesquisadora: Repercutiu em todo mundo.
Rubens: Sim.
Pesquisadora: Por isso que eu acho tão importante a gente também trabalhar com a família,
porque ouvindo você, Ariana, é bem isso, você precisa ser mãe do Lucas e também pra ajudá-lo a
estar aqui. O Rubens precisa ser pai, se sentir à vontade pra exigir algo do Lucas. E isso hoje vocês
não têm.
Ariana: Não. Até porque aquela situação, né, já é de maior, já é homem, já se manda. É bem
conflito: eu me mando, eu sou homem. Mas eu preciso de ajuda e não quero ajuda. É muito ruim.
215

Pesquisadora: É uma situação complicada, né? Eu entendo. Eu entendo ele, eu entendo vocês. E
eu até entendo completamente vocês estarem meio assim, vocês estão muito sozinhos, vocês
também não estão sabendo como lidar com a situação, né? E não que eu tenha uma resposta de
como lidar, mas eu acho que como é delicada, a gente precisa pensar junto, né? Porque é difícil.
Se você torce um pouco mais o parafuso já (se espana) [00:22:09], né?
Ariana: Ou conserta.
Pesquisadora: Ou conserta. É difícil. Eu entendo. Como foi a crise do Lucas em fevereiro, que
vocês falaram?
Ariana: O Lucas começou a... a me xingar, a falar meio debochado comigo, eh... erguer a voz.
Teve até uma situação que foi bem complicada, que eu estava deitada, o Rubens saiu, era um
sábado de manhã. E ele falou assim: não tem nada em casa. E aí eu falei: filho, então vamos sair,
vamos no mercado e você compra o que você está com vontade. Porque assim, comida tem, mas
se você está com vontade de alguma coisa, então vamos. E eu fui com ele até o mercado e ele
comprou tudo que ele quis. Assim, ele comprou tudo, ele comprou empadão, ele queria sorvete...
iogurte, chocolate, bolacha. Comprou, comprou, comprou. E quando chegou em casa se trancou
no quarto. Aí passou um tempo... eu fui falar com ele e ele foi grosseiro comigo, falou um palavrão,
alguma coisa. Eu falei assim: poxa, Lucas, você não podia fazer isso. Você... né... eu levei você ao
mercado, você pediu, eu acho que a gente podia ter uma convivência melhor. E ele: é, porque eu
tô passando fome. E começou a falar meio debochado. E começou a... a brigar, assim, comigo. E
eu peguei e falei para o Rubens, eu falei: o Lucas tá começando a me ameaçar de novo. Aí até a
gente foi na casa dos pais do Rubens e perguntaram como é que está o Lucas, está começando a
me ameaçar. Aí meu sogro: ah, chame a polícia, chame teu pai. Eu falei: não, não é assim que
funciona. Aí o Rubens chegou em casa, deu uma chamada de atenção no Lucas, mas não mudou
nada. Aí ele continuava a dormir durante o dia, à noite ele acordava, começava a bater, começava
a dar risada, começava... eu ia lá: Lucas, chega. A gente tem que trabalhar amanhã. Teu irmão tem
que estudar. Pare. Aí daqui a pouco começava de novo. Aí esse da crise mesmo foi que eu,
trabalhando o dia inteiro, o Rubens na época estava trabalhando também o dia inteiro e ficava o
Juca em casa no período da tarde. E o Lucas começava... eu não sei de onde que ele arranjou, ele
pegava um facão lá de... lá de trás, como se fosse um depósito, e ficava cortando árvore. Mas,
assim, ameaçando, falando: essa casa é mal assombrada, vou matar... eu vou me matar e
ameaçando. E o Juca falou: mãe, eu tô com medo de ficar com o Lucas em casa. Ele fica gritando,
ele põe o volume da TV no último, eu não consigo estudar. E daí nesse dia... eu cheguei em casa
e o Juca estava apavorado. Disse que o Lucas passava, assim, pra fora da janela com o facão,
ameaçando, falando não sei o quê. E de repente ele abriu a porta do quarto e ficou parado encarando
o Juca. Ficou um tempo ali e saiu. O Juca gelou, ele falou: mãe, não dá. Eu não aguento mais, eu
vou procurar um lugar pra ir. E eu falei: não, então vamos juntos. Avisei o Rubens, eu falei: eu
vou falar com os meus pais, eu vou ficar lá na casa deles porque tá difícil pra mim e para o Juca.
Aí o Rubens falou: ah, não é pra tanto. E eu falei: pra mim é. Eu tô com medo, o Juca tá com medo.
Não tá fácil. Pedi para os meus pais, eles aceitaram e no outro dia a gente marcou de pegar o que
eu pudesse, de roupa, alguma coisa que eu precisasse levar. O Juca ficou andando no centro até
dar o horário, ele ficou com medo de voltar pra casa. E ele foi até o meu trabalho, a gente voltou,
eu cheguei um pouquinho antes dos meus pais e fui pegando as coisas. E o Lucas: me dá teu
celular. Eu quero... eu sou daltônico. Eu falei: não, você não é daltônico. Não, me dá o celular que
eu quero ver e como é que faz. Eu falei: não, filho, você não é daltônico. Não, mas me dá o celular.
E ele é muito incisivo. E eu dei e continuei arrumando as coisas. E ele não se tocava. Daqui a
pouco ele: vocês vão viajar? Eu falei: não, a gente tá saindo. Aí nisso chegaram meus pais e o
216

Lucas foi lá pra fora, passando com o facão de novo. Minha mãe começou a passar mal, foi para
o carro esperar a gente. Aí o meu pai falou assim: Lucas, tua mãe e teu irmão estão indo embora
porque você tá ameaçando... daí ele: é, quem é do bem fica. Quem é do mal que vá embora. Eles
têm que ir mesmo, né? Então ficou assim, um desdém, vão embora mesmo, porque eu vou vender
essa casa, vai ficar tudo pra mim. Agora que eu vou ser feliz mesmo. Assim...
Pesquisadora: ... então vocês sentiram que ele estava falando coisas que não estavam fazendo
muito sentido...
Ariana: ... não.
Pesquisadora: ... naquela época.
Ariana: Exatamente.
Pesquisadora: Não era só uma coisa de adolescente, de tipo, desdenhar, tinha falado algumas
coisas que vocês não entendiam, é isso?
Ariana: É, e assim, o Lucas, ele tem uma situação, que até o Rubens comentou agora, ele não tem
fome. Mas daqui a pouco ele tem muita fome. E assim, a gente tem um ritmo, né? Café da manhã,
almoço, café da tarde, alguma coisa assim. E na hora que está pronta a comida, ou ele não quer
aquilo, porque: ai, eu não quero pão. Eu quero um outro tipo de comida, eu quero comida boa.
Então ele não come aquilo, mas... aí fica uma situação complicada de... essa carne é pra amanhã.
E ele comia. Então ficava uma coisa assim meio de controle. E um dia... eu sei que ele chegou e
falou para o Rubens: eu tenho fome e minha mãe não me dá comida. Eu comi porque eu tinha
fome, e falava de um jeito, assim, debochado. Eu falei: não, você não estava com fome, você estava
com vontade de comer uma coisa boa. Porque comida tem, mas tem o horário de comer e você
precisa aprender isso também. Então, eu não sei se são rompantes, do tipo, eu não estou com fome
nenhuma agora, de repente eu estou com muita fome e tem que me dar aquilo que eu quero agora,
porque senão eu fico nervoso. Parece que era assim.
Pesquisadora: Assim, ouvindo você falar parece que o Lucas tem, tipo, quatro anos. E é aquela
criança que está falando: eu quero isso agora e, tipo, não, eu quero só comer confete, sei lá, porque
eles gostam muito de chocolate, né? Ou seja, o que aconteceu que se tornou isso, né? Um jovem,
de 20 e poucos anos, está agindo como se fosse uma criança, né? Ele é o rei da casa. Mas um rei
extremamente infantilizado, né? E ao mesmo tempo ameaçador.
Ariana: Sim.
Pesquisadora: E o que vocês querem fazer agora? O que vocês gostariam? O que vocês precisam,
hoje, enquanto família?
Ariana: Eu preciso de um milagre.
Rubens: Ah, não sei, acho que falta... você falou (inint) [00:29:31] certa que não adianta só tratar
o Lucas, nós precisamos de orientação, nós quatro. O Lucas já está fazendo a parte dele, ele está
vindo nas consultas. Mas nós, como um todo, nós não sabemos como... que nem a Ariana falou, a
gente não está sabendo resolver essa situação. Então é um pastor que fala uma coisa, é um padre
que fala outra coisa, é um parente que fala alguma coisa. É (inint) [00:29:59] e aí você junta tudo
e tenta fazer alguma coisa dar certo. E vê que não está dando certo. Daí a gente fica... o Lucas em
um canto, com o problema dele, e nós no outro canto tentando achar um problema pra ajudá-lo.
Tentando resolver o problema dele. Só que por um outro lado também tem o que você falou agora
pouquinho aí, nós também adquirimos esse problema. E está difícil. Está difícil porque nós também
não sabemos, né? Tem essa parte agora aí que eu e a Ariana estamos quase... meio que separados
e meio que não. Então é uma situação também estranha, né? Que é um casal que é casado, mas
que não mora na mesma casa. Não pode voltar pra casa porque está com medo do Lucas. Então...
assim, é complicado, não é fácil, sabe? Então você fica assim, você fica em um fio, eu vejo assim
217

que a gente está em um fio, né? Eu estou em um fio. Eu também, ultimamente, eu ando meio... eu
não sei... meio estranho também, mas é porque a gente fica assim, meio... às vezes fica
decepcionado, né? Porque você não vê solução. Que nem a Ariana falou, você não vê solução. E
eu, assim, que nem eu falei em relação ao médico, fui meio... não sei se devia ter falado, mas...
Pesquisadora: ... ele não vai escutar isso, não se preocupe.
Rubens: Em relação ao remédio, eu acho que está tendo efeito, mas em relação...
Pesquisadora: ... talvez só não seja suficiente.
Rubens: É, eu acho que tem alguma coisa assim.
Pesquisadora: É algo que ajuda, mas não...
Rubens: ... eu acho que nós precisamos mesmo achar alguma coisa, assim, alguém, algum lugar,
alguma coisa, pra nós conversarmos, termos uma terapia familiar, sabe? Não sei. Nesse sentido
assim. Pra tentar pôr as coisas nos eixos, né? A gente tenta, mas... tenta, mas você sabe que não
chega. Está tentando, tentando e não chega. Agora, lá em casa está nisso, né? Que nem a Ariana
falou, que eu estou aguentando o rojão, não é questão de estar aguentando o rojão, alguém tem que
cuidar dele, né? Minha família toda está... a Ariana até me chateou... ficou assim... minha família
toda não... da minha parte, pelo menos, da minha família, está falando que a Ariana abandonou a
casa, abandonou o problema, que é o Lucas, pra eu cuidar. Aí eu tenho que estar do outro lado
defendendo ela: não, porque existia um problema, aconteceu isso...
Pesquisadora: ... agora o conflito já foi até para os avós, estão entrando os outros familiares.
Rubens: Exatamente. Não, porque ela é mãe, não deveria ter feito isso. Você teve um irmão... né,
do meu pai, eu tive um irmão que foi dependente, né? Eu nunca abandonei eles, não sei o quê. E
eu, tipo, o que eu vou falar também, né? Mas por outro lado eu entendo a situação da minha esposa,
porque cada pessoa aguenta um rojão, né? A minha mãe, ela era forte do jeito dela, né? A Ariana
não foi forte nesse sentido, pra aguentar esse problema, não quer dizer que ela não amava, que não
ama o meu filho. Mas você... é ruim que você tem que estar defendendo, né? Na parte da família
dela os pais dela não acreditam que o Lucas é doente.
Pesquisadora: É?
Rubens: Não acreditam. Eu tenho que... eu tenho que chegar... eu me seguro, eu me seguro pra
não falar pra eles, sabe, assim, tipo: vocês sabem mais do que médico, então? Vocês sabem mais
do que os médicos? O que eu tô passando em casa, vocês sabem mais do que eu. Mas eles não
acreditam. Eles não acreditam que o Lucas tem um problema. Simplesmente assim, não acreditam.
E aí, fazer o quê, né? Aí eu tenho que engolir a seco algumas conversinhas assim: não, é ele que
não quer. É ele que não quer. Veja bem... eu acho, assim, é lógico, existe uma porcentagem que é
dele, mas existe a doença. E é difícil você lutar com essa situação.
Pesquisadora: É, eu acho que um sinal disso a gente poderia dizer que o Lucas não está feliz. Se
isso fosse só uma decisão dele, ele estaria feliz e contente, fazendo o que ele bem quisesse, e ele
não está, né?
Rubens: Não.
Pesquisadora: Então eu acho que se fosse só vontade ele estaria feliz, penso eu, né? Estaria
fazendo o que ele quer fazer. E ele não está.
Rubens: Sim. Tinha voltado com os amigos, né?
Pesquisadora: Sei lá, ele estaria aí solto, só usurpando de vocês, usando...
Rubens: ... acabou o tempo.
Pesquisadora: Espero... (inint) [00:34:39] ... quiserem retornar os atendimentos familiares,
continua a mesma coisa no CAPS, a gente é só um complemento. Inclusive eu venho aqui no
CAPS, falo com a equipe, a gente trabalha em conjunto. Se vocês quiserem voltar, é dentro do
218

período letivo, vai começar agora em agosto, que vai voltar. E aí a ideia seria retomar as familiares
e investir em uma individual para o Lucas. Eu acho que isso seriam pontos essenciais.
Ariana: Aqui mesmo?
Pesquisadora: Não, eu acho que lá. Porque aqui, provavelmente, eles vão ter alguma restrição em
relação ao atendimento individual. Eles não podem atender todo mundo individualmente, né?
Rubens: Isso que o Lucas está fazendo não é individualmente?
Pesquisadora: Não é. Porque isso é o psiquiatra. E o psiquiatra vai falar mais de remédio. Ele até
conversa, provavelmente, com o Lucas, né? Pra saber como o Lucas está, se ele está dormindo
bem, o que ele está sentindo. Mas não é uma psicoterapia, não é um psicólogo que vai entender (o
Lucas) [00:35:49].
Rubens: Eu acho que precisava (inint) [00:35:50] esse é o principal.
Pesquisadora: Tipo, para o Lucas também entender o que está acontecendo. Eu acho que o Lucas,
pelo que vocês estão me falando, pelo que eu já conversei, ele sente, mas ele não sabe o que ele
está sentindo.
Rubens: Exatamente.
Pesquisadora: Então ele sente raiva e ele não sabe nem pra quem descontar essa raiva.
Rubens: Ou o que fazer.
Pesquisadora: O que fazer com essa raiva. Aquilo vem. Você falou da comida, Ariana, eu fiquei
pensando assim: não tem nada aqui. O que ele está dizendo quando ele fala não tem nada? O que
ele está tentando preencher com a comida, com chocolate? Porque quando ele fala: não tem nada
aqui, me parece que... assim, estou interpretando da minha cabeça agora, mas será que ele também
não está falando: eu não tenho nada aqui? Eu não tenho nada pra fazer. Eu não tenho sentido. Eu
não tenho propósito. Eu não tenho sonho. Sabe aquela ansiedade que dá na gente domingo à noite,
assim? Que a gente para pra olhar a nossa vida. E às vezes a gente come pra suprir esse vazio,
sabe? Então a minha impressão é que o Lucas sente e ele não sabe o que está acontecendo com ele
mesmo.
Rubens: É.
Pesquisadora: Então a individual é pra gente entender, porque nem pra mim está no ar. Eu só sei
dos comportamentos do Lucas, eu sei de alguns sentimentos que ele falava aqui, mas muito
superficialmente. Nem eu entendo a crise, de verdade, do Lucas. O que ele sente nesses momentos,
por que ele estava com um facão pra lá e pra cá.
Rubens: E esse particular que você falou lá no...
Pesquisadora: ... na FAE.
Rubens: Isso é um negócio mais pessoal, daí vai ser melhor, você acha?
Pesquisadora: Olha, não tem como eu te prometer nada, porque são processos que dependem
muito de muitos fatores, né? É meio que um investimento em pensar sobre, em tentar pensar junto,
né?
Rubens: Mas isso é individual, ele, daí lá?
Pesquisadora: Eu pensei em continuar o que era o básico, que a gente vazia aqui, que é o
atendimento individual com o Lucas e o familiar, que seriam vocês quatro. Como a gente fazia
aqui. Aí lá é uma clínica escola, então na verdade quem atende vocês são meus alunos. São alunos,
mas eu acompanho diretamente os casos. O familiar talvez eu fizesse junto com aluno, pelo menos
os casos que eu já estava atendendo, eu estou tentando continuar atendendo. O individual do Lucas
ficaria um aluno, mas eu sempre dou uma caprichada em primeiras crises, que são mais graves, eu
pego os melhores, os alunos que eu confio, que já estão no grupo, que já estão estudando primeiras
crises comigo há um tempo, sabe? E, assim, não é uma promessa, Rubens, eu acho que é mais uma
219

tentativa, é tentar atacar o problema por vários pontos de vista, assim. É uma tentativa. Agora, se
o Lucas vai querer, se de fato vai investir nisso...
Rubens: ... não, eu posso dar uma pegada...
Pesquisadora: ... mas acho que vale a pena vocês meio que insistirem, né? Pelo menos: olha, você
não tá bem. Eu tô vendo que você não tá bem. Você pode falar que ele não está bem, eu tô vendo
que você não tá. Vamos lá, tenta.
Rubens: Sim. Esses dias eu falei pra ele. Eu conversei com ele: cara... eu falei pra ele nesse sentido
que você está falando mesmo: você está aí no quarto direto. O que tá acontecendo? Ai, tô cansado.
Pesquisadora: Pois é, o que quer dizer esse cansado, né? É um cansaço físico? Não. Porque ele
está dormindo tanto, ele não está fazendo outra coisa. É um cansaço emocional talvez, alguma
coisa que não está legal.
Rubens: (Inint) [00:39:18] não é fácil, né?
Pesquisadora: Sim, tudo, né? E, gente, sei lá se o Lucas já elaborou todas essas crises que ele
passou. Provavelmente não. Provavelmente ele sentiu que viveu tudo isso e ele nem sabe muito
bem o que aconteceu. Porque ele nunca teve um processo psicoterapêutico longo, né? Aqui na
familiar a gente ficou pouco tempo, se a gente for pensar.
Rubens: Sim.
Pesquisadora: Então eu acho que seria uma tentativa, sabe? Eu estaria super disposta a ajudar
vocês. Eu gosto muito de vocês, eu sei que vocês não estão legais, eu sei que deve estar sendo
difícil pra todos, inclusive para o Lucas. Então eu acho que vale a pena, de repente, tentar mais
uma vez, sabe?
Rubens: É. Vamos tentar, sim.
Pesquisadora: Todo mundo compromissado com isso. Eu acho que talvez naquele momento
vocês não estavam tão compromissados quanto vocês estão agora. Na carinha de vocês eu estou
vendo. No final do processo já tinha um... não está rolando, está ruim, está difícil. E vai ser difícil.
Não achem que a gente vai se reunir e vão ser flores, não vai. Mas eu vou estar junto de vocês. A
gente vai tentar controlar a situação o máximo que der pra não acontecer nada. Então eu acho que
é...
Rubens: ... e lá é à noite também?
Pesquisadora: Lá a clínica fica até às nove. Então dá pra gente pensar um horário.
Rubens: Sim, sim. Pós, né?
Pesquisadora: Isso. Tipo sete, sei lá, alguma coisa que vocês...
Rubens: ... sim, umas 19 horas é bom. Porque daí pega... a Ariana saía do trabalho e ia direto
também.
Pesquisadora: Isso. Umas sete talvez, né? É ali perto da Rui Barbosa, é bem central. E aí, de
repente, o Lucas pode ir algum outro horário, né? Porque ele vai ter que participar da (inint)
[00:41:01]. Eu acho que é o meu jeito de tentar ajudar. Pra mim também, vocês perguntaram (inint)
[00:41:09], pra mim não está claro o que está acontecendo, realmente, com o Lucas, porque a gente
não teve acesso ao Lucas tanto. Ele faltava muito, ele não se abria nas individuais. Então eu acho
que a gente precisa dar mais uma investida pra entender o que está acontecendo. Eu acho que tem
várias coisas que na familiar a gente começou a entender.
Rubens: Eu até perguntava pra ele (inint) [00:41:31] que ele vinha, ah, pai, ninguém falou nada.
Eu só ficava escutando.
Pesquisadora: É, nas reuniões também é outra coisa, do (TR) [00:41:42], né? No (TR) [00:41:43]
é mais geral, todo mundo troca ideia, conversa.
Rubens: Mas se ele não falar, ele não (inint) [00:41:47].
220

Pesquisadora: Aí não aproveita.


Rubens: (Inint) [00:41:49] ele não falava nada, mesmo. O jeito dele, com certeza. (Inint)
[00:41:53].
Pesquisadora: É, talvez para o perfil dele uma terapia individual seja mais indicada. Alguém que
vai estar ali... tá, você não quer falar, vamos fazer um trabalho com argila? Vamos fazer outra
coisa? Sabe? Ir por outras vias. Eu acho que é isso, gente, meio que tentar, talvez, de novo, né?
Porque é isso. Eu tenho medo de o Lucas ficar nesse (inint) [00:42:19], nesse lugar. Não está
horrível, mas não está bom também, né? E nem vocês.
Ariana: Sim.
Pesquisadora: Vocês gostariam de falar mais alguma coisa?
Rubens: Não. O que foi falado era mais ou menos isso, né? Mais a preocupação minha, que eu já
tinha falado no mês passado com o doutor, sobre o que ele estava de diferente, o negócio do
isolamento dele no quarto, né? Daí ele falou que (inint) [00:42:50] e pediu pra tomar mais um
remédio. Está aí, aumentou mais um pouquinho o outro remedinho lá, pra ver o que acontece, né?
Mas agora vamos ver o que acontece. Vamos fazer esse individual, (inint) [00:43:04], em agosto,
né? Que você falou. Pra tentar ajudar o menino, né? Porque a gente está tentando fazer, a gente
faz, né? E vamos levantando.
Pesquisadora: E a gente vai precisar de vocês, mesmo. A gente vai precisar que vocês participem
da familiar, que vocês estejam dispostos a se transformar também, a tentar coisas novas. Mas acho
que vocês estão, pelo que vocês estão me falando hoje, eu acho que vocês dois estão querendo uma
coisa diferente.
Rubens: É, precisa, né? A gente precisa tanto porque a gente precisa reorganizar a família, mas
também dar um horizonte pra ele, né?
Pesquisadora: É, porque eu acho que sozinho é muito difícil de ele sair.
Rubens: Não, sozinho ele não vai.
Pesquisadora: Ele vai precisar de vocês.
Rubens: Eu já... e eu, particularmente, eu tenho um pouco de medo a mais, sabe? Que... eu vou
(inint) [00:43:56] pra você, a Andéia já sabe, mais ou menos, eu já tenho um suicídio na família.
E foi do dia para a noite.
Pesquisadora: Quem?
Rubens: Meu irmão.
Pesquisadora: Há muito tempo, Rubens?
Rubens: Faz um ano.
Ariana: Dois anos, vai fazer agora em setembro.
Rubens: Então, quando eu vejo o Lucas muito triste e ficando no canto, e não quer sair do quarto,
de noite ele fica lá sentado, vai lá fora fumar e fica lá sentado olhando o horizonte. Aí você... eu
não gosto de deixar ele muito tempo sozinho, quando vou na casa dos meus pais, eu fico lá um
pouco com eles, mas aí já tenho que ir pra casa e quero ver como é que está o Lucas. Tipo, eu não
fico o dia inteiro fora de não estar em casa. Eu tenho que ver como ele está. Então, a gente fica,
né? Infelizmente você fica com um pé atrás, você já viu tanta coisa que aconteceu de ruim, né?
Pesquisadora: Sim. E eu acho que é uma preocupação válida, Rubens. Eu também não posso
garantir que ele não vá fazer. Porque ele tem muita agressividade dentro dele, né? Por enquanto
está para os outros, mas e o dia que isso for pra ele? Eu acho que é bom a gente prevenir, mesmo.
Cuidar enquanto dá tempo.
Rubens: Exatamente. Tudo tem seu tempo, né?
221

Pesquisadora: Bom, gente, então, agradeço vocês terem vindo, terem me esperado. Desculpem o
atraso.
Rubens: Desculpe ter furado da outra vez, né?
Ariana: (Inint) [00:45:17]. Foi... como é complicado. E não é por falta de prioridade, é... são
muitas coisas.
Pesquisadora: E eu acho que vir aqui é também mexer em coisas que talvez... a gente não quer
mexer.
Ariana: Ai, eu não gosto (dessa sala) [00:45:36], não.
Pesquisadora: A gente (inint) [00:45:37].
Ariana: Não, eu começo a tremer.
Pesquisadora: Eu acho que tem muitas coisas em jogo, né? Quando a gente volta a falar da família
e de como estão as coisas. Então é difícil vir, eu entendo. Mas a gente vai pegar outra sala na
quarta, mais bonitinha, sem janelas quebradas, está bom? Então vou fazer o seguinte, na primeira
semana de agosto eu vou ver como estão as salas lá, os alunos, ligo pra vocês e a gente marca um
horário.
Rubens: Está joia. Ótimo.
Pesquisadora: E eu continuo em contato aqui. Eu vou falar com o psiquiatra, ver como está a
medicação dele. E a gente vai fazendo esse trabalho em conjunto, daí.
Rubens: Está joia. Ficamos assim, então.
Pesquisadora: Obrigada, gente, de novo.
Rubens: De nada.

Entrevista Família do Valter

Celso – Pai
Lara - Mãe
Álvaro – Irmão mais velho
Jorge – Irmão do meio

Pesquisadora: Então, gente, a minha primeira pergunta pra vocês é como é que vocês estão. Como
é que estão as coisas. Como está a vida em casa.
Celso: Bem.
Lara: Eu também, estou, graças a Deus, bem.
Pesquisadora: E você, está bem? Me contem como é que vocês estão desde o começo do ano
passado. A gente não se vê desde dezembro, né?
Lara: Isso.
Pesquisadora: O que aconteceu com vocês nesse meio tempo? Como é que estão as coisas hoje?
Celso: Doutora, pois é, veja bem, antes, quando chegamos aqui, chegamos muito mais
desesperados. Chegamos aqui sem um norte. Chegamos aqui mais lamentando do que descrevendo
o que estava acontecendo, emocional acelerado. E perdido ao mesmo tempo, né? Porque lidamos
com isso. Não existe a cartilha de como lidar com certas... (inint) [00:01:03] problemas de saúde,
né? Principalmente neurológico, que é o caso dele. Então, graças ao bom Deus, hoje a família, pelo
menos, tem esse apoio de todos vocês. Todos aqui, todo mundo com sorriso pra gente, não só pra
nós, especificamente, mas assim, a Lara estava elogiando uma mocinha, não sei o nome, uma
loura, magrinha, toda atenciosa, assim. Porque muitas vezes eles perguntam uma vez, ou duas, ou
três, a mesma coisa. E ela toda atenciosa, com aquela voz carinhosa respondendo. "Ai, deu calor,
222

né?" Acho que o menino falou. "Tem que tirar a blusa e tal", e ela toda generosa e atenciosa,
brincou saudavelmente, né? Que é o ambiente que a gente percebe aqui. Mas pra nós, assim, que
ficamos observando sempre, tudo é novo pra nós, e a gente vê o carinho, a expressão dos
funcionários, todos, assim, eles se expressam bem com os pacientes... não sei qual termo usar para
os meninos, para os doentes, pacientes... não sei qual o termo, porém só queria dizer assim que
aqui acolhem todo mundo muito bem, não tem diferença. A gente vê que preto, branco, alto, baixo,
gordo ou magro, todos nos tratam muito bem, têm sempre um sorriso pra gente. Nós, voltando ao
assunto, a gente é muito grato por ter esse norte, "vamos lá. Vamos para a psicóloga". A sua
orientação, mesmo você tendo seus afazeres, "vai lá, Murilo. Vai lá orientar". Então você está
preocupada com a continuidade da conversação, porque só deve fazer bem a ele: falar e falar. Em
casa é natural que ele não vá falar, pouco adianta pra nós, mas para os profissionais da área, é
lógico que é legal, se dói ou não dói, gosto disso ou gosto daquilo ou não gostei. É interessante
que vocês conseguem pegar a pureza, porque esses pacientes não enganam, eles não agravam, eles
falam o que sentem realmente, né? É o que sai ali. Então não tem muito... eles não ficam
remediando, escolhendo palavra. Então eles são o que são e com relação ao meu filho a gente só
tem a agradecer, não só a você, à doutora Larissa, doutora A.. Eu me expresso doutora no sentido
carinho, no sentido do respeito, porque realmente é uma coisa que a gente não sabe lidar, a gente
só tem desespero e reclamação. E a dificuldade do dia-a-dia, né? Então tendo vocês como apoio,
todos, enfim, desde o psiquiatra, desde a moça que faz a limpeza ali, ela dá um sorriso, dá um bom
dia. Então a gente se sente acolhido, esse é o resumo. Fomos muito bem acolhidos aqui. Eu até
nem comentei com a Lara, mas eu estava pensando, como existem muitas críticas às pessoas. É do
ser humano criticar. E também tem que ser do ser humano elogiar. Eu, particularmente, se
houvesse... - até falando pra você, francamente aqui - seria legal bater uma carta e enviar ao
secretário de saúde sobre o acolhimento, o atendimento de todos, valorizando, dando parabéns.
Porque é tão normal eu procurar para criticar, é tão normal eu procurar para colocar defeito. E por
que não normal também eu colocar uma carta direcionada ao profissional, ao secretário,
agradecendo? Porque significa muito para nós, entende?
Pesquisadora: Como foi pra vocês essa coisa de vocês também terem esse momento da terapia,
de conversar? Muitas vezes vocês chegam com uma expectativa de que só, de repente, o Valter ia
ser atendido e a gente convidou vocês a participarem, como foi pra vocês isso, de vocês também
participarem do tratamento?
Celso: Confesso a você que no início foi muito tímido, um: porque a gente nunca se viu; dois:
porque falamos de coisas particulares; falamos de sentimento, falamos de relacionamento, falamos
de coisas que nesses 35 anos de casado a gente nunca comentou. A gente não se expressa assim
no dia-a-dia, né? E tenho certeza que não somos os únicos a não falar "te amo". Às vezes a gente
é muito unido, mas eu no meu pensamento, ela no dela e ele no dele. Então quando você coloca
(esse choque) [00:05:10]: "fale isso, fale aquilo", sai muitas coisas que a gente desconhece. Por
exemplo, o Valter, aqui, algumas vezes, eu me expressando carinhosamente com ele e ele falou:
"eu não gostei", mas não gostou da colocação do termo que eu coloquei, porque pareceu pra ele
pejorativo, ou diminutivo. Então, "olha, eu não gostei quando você me chamou assim", de criança
ou de novinho. Mas daí ele quis colocar como ele entendeu e em casa ele não diria isso, ele ia
colher pra ele. Então é legal que trocamos muitas figurinhas, muita coisa que a gente não conversa
em casa. Foi muito... pra nós foi uma experiência muito boa, está sendo. E é aí que a gente vê o
quanto a gente necessita, né? Porque a princípio a gente vem e eu até falei pra ela: "a gente fala,
fala, mas não teve feedback". O Feedback já está sendo dado, é a gente pra gente mesmo. Ou seja,
223

quanto mais você falar, quanto mais você jogar fora, quanto mais você se renovar, é esse o
feedback. O Feedback está em você mesmo, muitas vezes. A resposta está na gente.
Pesquisadora: E pra você, Lara?
Lara: Eu concordo com o que ele falou.
Pesquisadora: Como foi fazer esses acompanhamentos familiares?
Lara: Foi bom, foi ótimo.
Pesquisadora: Você acha que ajudou em alguma coisa pra família de vocês?
Lara: Ajudou.
Pesquisadora: Em que sentido você diria que ajudou mais?
Lara: Com relação ao Valter, ao Bruno também.
Pesquisadora: Valter, e pra você, você gostou dos atendimentos aqui ou não? Fez sentido ou não
fez? Em algum momento fez?
Valter: Fez sentido em alguns momentos.
Pesquisadora: Teve algum que você lembra, que você gostou?
Valter: O acompanhamento com o grupo ali embaixo.
Pesquisadora: Com o grupo da A.?
Valter: É.
Pesquisadora: Como vocês entendiam esse momento inicial da crise do Valter, que trouxe ele pra
cá, e hoje a crise? Tem diferença, não tem?
Celso: Nós continuamos não entendendo, continuamos aprendendo, porém hoje temos um norte,
porém hoje dividimos as nossas... não o nosso sofrimento, o nosso... ela, que convive mais, né? Eu
saio trabalhar.... mas assim, é tão bom poder... "olha, fez isso, fez aquilo", e falar com alguém
profissional da área, com alguém que.... às vezes parece tão complicado pra gente, mas pra vocês,
assim, do dia-a-dia é bom essa orientação, é bom a gente poder pelo menos falar, não é? E ele
desabafou bastante. É importante isso. E concluindo, só com relação a nós, no início aqui,
estávamos com mais um problema, que é o mais velho, o Bruno, e hoje ele se encontra internado
na CRAV lá, em (inint) [00:07:57].
Pesquisadora: Como é que ele está?
Celso: Está bem melhor, está outra pessoa. Até parece que "desencarma", né?
Pesquisadora: Ele está diferente, vocês acharam?
Celso: Está mais responsável. Está tendo resultado. Inclusive ele fez uma acupuntura a laser, eu
desconhecia, enfim, mas ele comentou hoje ainda comigo. Então tudo isso vai melhorando eles.
Uma coisa que a gente não tinha nem instrução disso, né? Então a gente é muito grato.
Pesquisadora: A Lara comentou que seu irmão está internado, né, Valter? Como é que estão as
coisas em casa agora? Depois que ele está fazendo o tratamento? Mudou? Nada mudou? Como
está?
Valter: Tem sido tranquilo, sabe? Nos últimos dias não muito, mas nos anteriores estava melhor.
Pesquisadora: E o que aconteceu nos últimos dias?
Valter: Ai... não sei...
Pesquisadora: ... aconteceu alguma coisa?
Lara: Aconteceu que (inint) [00:09:05] meus irmãos, né? Aquele que tinha um câncer.
Pesquisadora: Ele acabou falecendo?
Lara: Faleceu em fevereiro, dia 2 de fevereiro um e dia 5 de fevereiro o outro.
Pesquisadora: Nossa, mas eu não lembro que tinha dois.
Lara: Não, o outro era depressivo.
Pesquisadora: Mas o que aconteceu?
224

Celso: Se suicidou. Tomou a morfina do irmão que tomava, ele foi lá e consumiu 30 cápsulas. Ele,
se achando incapaz, se sentiu culpado por não ter salvado o irmão dele, apesar de ele ter dado
banho no irmão, cuidado do irmão, limpava o aparelho, tudo, e cuidava bastante. Era muito
dedicado, carinhoso, porém se sentiu sozinho, isolado. E aí um, dois, três, foi consumindo. Foi
muito triste, foi um choque. Foi muito complicado, foi um baque. Está sendo ainda, né? Porque
perca é perca, né? Não volta mais.
Lara: É duro você não poder ajudar a pessoa a viver, né? É muito triste.
Celso: É que ela presenciou tudo. Estava lá a família toda reunida na casa. E nós lá em casa, que
dá umas cinco quadras da casa do meu cunhado, onde eles moram juntos, os irmãos. E aí a irmão
dela chamou: "o (Ni) [00:10:30] tomou uns comprimidos aqui e não está bem". E aí ela pegou,
com meu outro filho mais velho, o Bruno, e desceu. Foi lá atender, chegou lá, e ele tinha
consumido. E ela ainda conversando com ele (inint) [00:10:40] pra doutora. E daí ela chegou lá,
ele no quarto e ela na sala: "abre aí", "não, não abro". E ela brincando com ele, ele brincando com
ela. E aí ele deitou e começou a dar convulsão. E aí me chamaram, eu fui lá, fiz uma respiração,
bastante, mas era muita morfina e não teve como.
Pesquisadora: E é um remédio muito forte.
Celso: Sim, 30 cápsulas.
Lara: Bom que ele não sentia dor. Nós conversamos normal. Chamava sempre brincando com a
gente: "sua tonta". Eu falei: "vou chamar o Xamu", falei errado e ele brincou comigo "você vai
chamar o Xamu, não sabe nem falar" e eu falei "ah, você tá bem de memória". E aí ele morreu, na
(nossa frente) [00:11:28].
Pesquisadora: Nossa, gente, mas que horrível.
Celso: Muito desesperador. Na sala, se debatendo no chão, e eu fazendo massagem, fazendo (inint)
[00:11:35]. E outro vizinho lá em cima, começou a vir muita gente, muita gente, e nós
desesperados. Até vir o Siate. Foi, assim... pra todos, né? Até porque a gente já tinha perdido um
há dois dias, tinha feito o sepultamento.
Pesquisadora: Isso foi em fevereiro?
Lara: Dia 2 foi um e dia 5 foi outro. Três dias depois. Mas o que mais eu me culpo é de eu ter
ligado para o Samu e ter só perguntado, né? Porque como ele não queria que o Samu viesse, ele ia
se matar do mesmo jeito. Eu liguei só pra perguntar como eu ia fazer e ela falou: "tem que pegar
ele e levar para o hospital". E eu me culpo porque eu (inint) [00:12:22], por que eu liguei? (Inint)
[00:12:25]. Talvez assim desse tempo, né? De socorrer. E eu só liguei pra perguntar.
Pesquisadora: Mas você falou pra eles, Lara, o que estava acontecendo. Se eles sentissem que
fosse urgente eles também iam ter mandado.
Lara: É, mas eles não mandaram. Só que quando ele já (inint) [00:13:01], quando eu olhei pra ele,
ele já estava com espuma na boca, no nariz, o batimento cardíaco estava bem fraquinho e o Samu
demorou pra vir. (Inint) [00:13:17]. Mas se a hora que eu liguei, eu falasse: "não, venham,
venham", (inint) [00:13:22].
Pesquisadora: Mas não era só você que estava lá, Lara. Estava todo mundo. Não é sua
responsabilidade.
Lara: Eu sei que não. Mas eu me culpo.
Celso: Mas o pastor falou que nada que alguém tentasse fazer mudaria a situação, mudaria a
história. Era o destino.
Pesquisadora: E também eu não sei, porque morfina é bem forte, né?
225

Celso: Muito e 30 cápsulas, né? É irreversível. Então começa a cortar tudo. É uma situação... nada
mudaria, teria que ser desse jeito. Nada e nem ninguém. Então foi desse jeito. Nós tentamos,
porque é o emocional.
Lara: Mas eu ainda me culpo (inint) [00:14:03]. Eu não fico falando para os outros.
Celso: Mas é um pensamento dela, né? Estava a irmã antes, o irmão antes. Eles já estavam na casa
antes. Teriam que eles terem visto. Os outros três irmãos estavam lá e ela chegou depois. Então se
tivesse que se culpar, não seria ela, seriam os outros irmãos.
Pesquisadora: E você tem estado mal com isso, Lara? Como você tem estado desde fevereiro
carregando essa culpa?
Lara: Assim, à noite, quando eu vou deitar, eu fico pensando, é triste, sabe? E eu não gosto de
ficar chorando perto deles, é ruim isso. Principalmente quando o (inint) [00:14:46] não está, está
viajando, eu não consigo dormir, fico pensando só na situação, na noite lá, é ruim, não é bom, não.
Pesquisadora: E você já pensou em procurar ajuda, Lara? Alguém pra te acompanhar, pra estar
junto de você, pra estar pensando junto essas coisas, pra você não ficar tão sozinha nessa dor. Você
não tem vontade de conversar com um psicólogo, fazer alguma coisa assim?
Lara: Eu nunca pensei nisso.
Pesquisadora: Você gostaria?
Lara: Não sei. Não sei.
Pesquisadora: Eu imagino que deve estar sendo difícil passar por isso sozinha, né? Você falou
que você não divide muito, como você está se sentindo.
Lara: Não, porque (inint) [00:15:47], mas tinha que acontecer isso. Às vezes eu me culpo, por que
eu não chamei na hora, sabe? Por que eu só liguei pra perguntar? Por que eu não chamei? Talvez
se eu tivesse chamado quando eu liguei, ele já tinha desmaiado e eles já estariam lá socorrendo
ele. Ele era depressivo, mas a gente se dava bem, sabe? Muito bem. Até com o de câncer, a gente
sempre se deu bem. Nós, os irmãos, sempre nos demos bem.
Pesquisadora: Quanta perda junto, né?
Lara: Bastante. E meu irmão, antes de morrer, ficou duas semanas bem ruim em casa. Se chamava
o Samu, eles não levavam, falavam que não adianta, que só ia aumentar o sofrimento dele, que ele
ficaria longe de nós, e ali pelo menos ele estava junto para ir embora.
Celso: Muito drama, muita situação irreversível. Morte. Doenças. Neurologia. Não há muito o que
se fazer, na verdade, a não ser... é como eu disse, a única sorte nossa no presente é poder vir aqui
conversar com vocês, é isso.
Pesquisadora: Mas, assim, Lara, eu fico à disposição. Se você quiser, eu atendo você, não eu
especificamente, mas eu pego alguns alunos, um aluno bacana, uma aluna bacana, pra conversar
com você. E a gente vai acompanhando você individualmente. Lá é gratuito, uma taxa mínima. E
se vocês puderem pagar.
Lara: Eu vejo certinho com o (inint) [00:17:39] e depois eu ligo pra você.
Pesquisadora: Sim. E mesmo a terapia de família. Se vocês quiserem retomar a individual. Se o
Valter tiver vontade de voltar, contem comigo, eu estou à disposição de vocês.
Celso: A gente agradece muito. O nosso único problema mesmo, tanto pra ela, como pra mim e
pra eles é coincidir e se locomover, por causa da sobrevivência, por causa do trabalho. Por causa
de a minha vida ser fora, e aí a vida deles fica lá, esperando eu chegar
Pesquisadora: Mas a gente pode pensar nisso, quando você estiver na cidade você participa da
familiar, se não estiver a gente faz só a gente. E agora, com o Bruno voltando do internamento,
seria muito legal se ele pudesse participar. Agora que ele está em um momento bom.
Celso: É, está mais limpo, né?
226

Pesquisadora: Eu acho que a gente pode negociar, pensar em estratégias. Não precisa ser algo
rígido. O que der pra fazer a gente faz.
Celso: A problemática é que em muitas situações, como no caso da perca irreversível, é o tempo
para cicatrizar. É tempo.
Pesquisadora: Mas, às vezes assim, (Laércio) [00:18:57], só o tempo basta e às vezes, não. Às
vezes é uma dor tão forte que vai sugando toda a vida em volta.
Celso: O problema é um (bloqueio) [00:19:08] psicológico, é isso?
Pesquisadora: Isso acontece com muita gente. Não conseguir superar, mesmo, essa perda. Viver
com essa culpa e não conseguir largá-la, né? E isso vai consumindo a nossa vida. Então às vezes
a gente precisa de uma ajuda, como tudo na vida. Tem momentos que a gente precisa de ajuda,
que precisa de alguém pra trocar uma ideia, né?
Celso: Eu já acho que sempre a gente precisa de ajuda, a gente não é nada sem ninguém. Seja ela...
eu converso muito com meus amigos, minha faixa etária, e por incrível que pareça, em um futebol
meu, em Antonina, nós comentamos sobre a vida, o filho dele engenheiro, a outra bioquímica e
tal. "E você, (Laércio) [00:19:51]?" E eu, assim, porque eu não faço rodeios, né? Eu falo sobre a
realidade, até como troca, como experiência. E às vezes até você pode ter uma palavra ou uma
frase que se encaixe na minha vida e seja a solução pra mim ou uma (massagem) [00:20:05], como
você está comentando. "Lara, vai, extravasa, comenta, joga fora isso". Talvez uma frase, uma
palavra bem colocada, desbloqueou. O fato é irreversível, porém ela vai desintoxicar.
Pesquisadora: Como a gente lida com isso. A dor não some. A dor da perda nunca some. Mas
será que ela vai invadir toda a vida e deixar a gente muito triste ou a gente vai conseguir viver com
ela? Com essa dor da perda.
Celso: E, doutora, concluindo, por incrível que pareça, esse rapaz, troca vai, troca vem de
informação, e ele relatando sobre os (erros) [00:20:38] dele. Eu comecei a falar metade dos meus.
E ele falou: "seu (Laércio) [00:20:42], é isso mesmo?" Eu falei: "é". "Você me deixa eu te dar um
abraço? Eu não posso fazer nada por você, mas deixa eu te dar um abraço?" Inesquecível pra mim,
um abraço. O jeito dele, ele vermelhou, ele me olhou sério e falou: "posso te dar um abraço?" Eu
nunca vou esquecer da cena, da maneira, do local, da descontração, da minha amizade e sim como
ele colocou, como ele me abraçou, como quem diz: "deixa eu dividir essa dor. Deixa eu passar a
minha energia positiva pra você", que é o abraço. Então às vezes a gente não vê, mas sente. Então
pra mim é inesquecível a frase dele. Eu guardei comigo. O quanto Deus é bom, colocou uma pessoa
que me deu um abraço, um amigo meu, não é dinheiro, não é coisa material, não é a solução da
minha vida. Ele me deu um abraço. E aquele abraço significa: estou aqui com você, quer
conversar? Aquele abraço significa: você não está sozinho. Aquele abraço significa: continue
orando, que as coisas vão melhorar, porque se a dor é só minha, é fácil, controlável, mas a dor não
é minha, a dor é das pessoas que eu amo, das pessoas que eu tenho que proteger. Então o sofrimento
é maior, e o que eu posso fazer a não ser acompanhar e fazer as orações. E cá estou todos esses
anos. Sempre me achei muito dedicado a eles. É lógico que não perfeito. Porém sempre me achei
amigo deles, da Lara, dos meninos, sempre paparicando eles desde pequenos, em tudo. Mas achei
que não foi o suficiente.
Pesquisadora: Valter, e pra você, por que você acha que você veio para o CAPS? Como você vê
a sua vida hoje? Me conte a sua percepção disso tudo.
Valter: (Inint) [00:22:43]. Eu tive um bom proveito vindo aqui, porque teve um momento de
descontração ali embaixo, com o pessoal, sabe? Não só ali, não só de descontração, do
(atendimento) [00:23:02] assim, sabe? Foi bom pra mim.
Pesquisadora: Legal. E por que você acha que lá no comecinho você veio no CAPS?
227

Valter: Por quê?


Pesquisadora: É.
Valter: (Ele) [00:23:18] falou que eu estava com problema psicológico.
Pesquisadora: E o que você acha que é? Você acha que isso é real? Você acha que nada a ver... o
que você entende disso que ele chama de problema psicológico?
Valter: Ah, eu não tenho nem ideia.
Pesquisadora: Então não tem nada do que você fez ou do que você estava vivendo que você
achava que poderia te trazer pra cá?
Valter: (Não) [00:23:47].
Pesquisadora: E hoje, você entende por que você continua vindo??
Valter: O porquê? Eu entendo.
Pesquisadora: E por quê? É por que te mandam vir? É por que pra você faz sentido? Como é que
é?
Valter: É porque eu não realizei meu sonho, né?
Pesquisadora: Qual é seu sonho?
Valter: Meu sonho é ser um lutador de Kung Fu, né? Como é que se diz, é ser um mestre de
exemplo, sabe?
Pesquisadora: Que legal, eu não sabia que esse era seu sonho. Como seria ser um mestre de
exemplo?
Valter: Ah, é... não participar de... como é que se fala... não ir para (o bar beber) [00:24:35] e
depois entrar em confusão, sabe?
Pesquisadora: Fazer o que você acha correto, nesse sentido?
Valter: É.
Pesquisadora: E como você acha que você conseguiria alcançar esse seu sonho?
Valter: No momento só (inint) [00:24:57].
Pesquisadora: E tem algo que a gente possa fazer pra tentar facilitar isso? Esse seu sonho.
Valter: Ah, que eu pense, assim, não.
Pesquisadora: Tipo, por exemplo, você começar a lutar Kung Fu, fazer essa atividade. Você acha
que seria um passo pra se aproximar desse sonho?
Valter: Ah, sim.
Pesquisadora: É? De repente essa é uma boa ideia, né? Vocês já pensaram em, de repente, colocar
o Valter pra fazer Kung-Fu?
Celso: Já. Já fomos na academia, eu e ele, só que infelizmente estava fechada. E daí, por
coincidência, é próximo de casa até, que tinha uma placa lá, na realidade. E a gente correu lá,
quando ele se manifestou, porque que bom que ele quer sair do quarto, que bom que ele quer
interagir, que bom que ele quer uma atividade e que bom que é uma disciplina, na realidade.
Pesquisadora: E faz parte do que me parece ser um propósito que o Valter tem, né? Então se pra
ele faz sentido, isso é legal.
Celso: Quando eles eram crianças, eles treinaram com o Anderson Silva, né? Porque o Anderson
Silva era nosso vizinho.
Pesquisadora: É? Que legal.
Celso: Era nosso vizinho, frequentava a casa, antes da fama. Então ele e o... do meio, né? Ele e o
Diego treinavam com o Anderson Silva na academia. Então, chegaram a ter um tempo lá com ele
e ele...
Pesquisadora: ... de repente seria legal tentar ir mais uma vez.
228

Celso: Pode ter sido um bloqueio na época, de ele ter... daí cresceu, foi trabalhar, foi estudar, foi
ter um relacionamento na vida dele, enfim, daí desvirtuou. Mas...
Pesquisadora: ... de repente voltar a essa academia, ver, aproveitar agora o começo de semestre e
tal.
Celso: Nossa, se (der certo) [00:26:36]. Só de... a gente reza todos os dias para que ele abra a
janela do quarto, para que ele saia do quarto, para que ele tome sol, para que ele diga: "quero ir ao
parque, quero ir ao futebol, quero ir..." entendeu? A gente está todos os dias (à disposição)
[00:26:55]. Eu, na realidade, me torno até chato, ela sabe disso: "Vamos ali com o pai!" "Não".
"Vamos lá comigo", "não". "Vamos ali comigo", "não". "Vamos no futebol", "não". "Vamos tomar
um suco", "não". O único lugar que a gente vem e ele se sente à vontade é aqui mesmo. Ele nunca
fala assim: "não, não quero ir lá". Ele sempre quer vir aqui. Com a A., com vocês, ele sempre
gostou de vir conversar.
Pesquisadora: E com o Murilo, era legal? Como era?
Valter: O Murilo?
Pesquisadora: Que você fazia o atendimento individual com ele. Lembra? Aquele menino loiro.
Valter: (Eu me lembro) [00:27:30].
Pesquisadora: Você gostava de fazer atendimento com ele?
Valter: Gostava.
Pesquisadora: Você gostaria de voltar?
Valter: Voltar?
Pesquisadora: A fazer atendimento com ele.
Valter: Não.
Pesquisadora: Foi legal naquela época, mas hoje você não quer mais, é isso?
Valter: É.
Pesquisadora: Mas eu acho que é legal tentar ver junto com o Valter o que pra ele faz sentido
hoje, né? Se é o Kung Fu legal, acho que é uma boa alternativa, né? Tem mais alguma coisa dessa
experiência, especialmente dos atendimentos familiares que a gente fez, que é o que eu estava mais
envolvida aqui com o projeto, que vocês acharam que foi importante, que vocês acharam que
poderia ser diferente, que não foi muito legal? Como vocês vivenciaram esse período de
atendimento familiar, individual? Como é que foi?
Celso: No início a gente só desabafou, a gente só falou, a gente não teve feedback. Achávamos
que teria que ter: "Vá por aqui, vá por ali. Façam isso". (Inint) [00:28:42] não sabe nem o nome
da doutora (inint) [00:28:44] "vamos falar entre nós aqui com a parede", né?
Pesquisadora: Mas eu não me apresentei pra vocês?
Celso: Vagamente. Não disse nem seu CPF. (Inint) [00:28:55]. Então, eu só queria concluir com
relação ao Murilo, queria agradecê-lo, muito atencioso. Ligou, porém, diversas vezes, mesmo
depois do Valter... "não, hoje eu não vou..." então ele sempre atencioso, ele foi bastante querido.
Eu não tive oportunidade de conhecê-lo, porque eu chegava lá, deixava o Valter entrar, porque a
situação era ele e o Valter. Então eu deixava o Valter lá na frente e ficava no carro esperando.
Quando o Valter me ligava: "pai, já terminou", aí eu passava, pegava o Valter e levava pra casa.
Pesquisadora: Lara, você gostaria de falar mais alguma coisa em relação ao atendimento?
Lara: Gostei também, eu nunca tinha participado, foi muito bom, (inint) [00:29:42]. Como disse
o (Laércio) [00:29:44], no começo só a gente falava, né?
Pesquisadora: Aham, é esquisito, né?
Lara: Eu falava pra ele: "nossa, mas só nós falamos?" (Inint) [00:29:53]. Mas depois foi bom.
Pesquisadora: Sim.
229

Celso: É bom e é necessário e a gente não sabe dosar. A gente só não sabe o quanto, o quanto é
importante jogar, né? Porque tudo aqui fica (inint) [00:30:08]. Ela se encolhe pra falar pra mim
devido aos problemas do (dia-a-dia) [00:30:10]. Eu me encolho em falar pra ela porque aí ela fica
sofrendo mais ainda. E o Valter sofre calado pra não passar problema pra nós, ele fica: "ah, se eu
falar para o meu pai", "ah, se eu falar para a minha mãe..." então ele fica também... por isso que
muitas vezes a gente pediu: "deixa ele ficar sozinho na sala, porque talvez tenha coisas que são
particulares dele", que é interessante que ele queira falar pra você, abrir o coração dele com você,
diferente de mim, diferente dela. Todos nós temos o nosso eu, não é? Tem coisas que você não vai
falar perto do seu marido, do seu pai, da sua mãe, é o teu eu. E assim, por essa razão que eu pedi
diversas vezes a sua atenção e da doutra Larissa, que sempre foi muito atenciosa também, de o
Valter ficar e conversar. Ele estando bem nós vamos estar ótimos. É esse o objetivo.
Pesquisadora: Valter, como foi pra você participar das terapias de família? De estar com a sua
família, de vir com a família, como foi isso pra você?
Valter: Ah, provavelmente se tivesse a opção de não vir em um lugar desse, eu optaria por não
vir.
Pesquisadora: Entendi. Tinha algo que te incomodava de estar aqui, pra você não querer vir?
Valter: Todo esse lugar aí.
Pesquisadora: Você não gosta daqui?
Valter: É, esse lugar é pra pessoa louca, né? Eu não tenho... eu não sou... cheguei nesse nível,
sabe? De distúrbio psicológico. O máximo que eu tenho são uns tiques nervosos aí, por causa de
uns idiotas que eu tive que arrebentar a cara.
Pesquisadora: E quem foram?
Valter: Meus irmãos. Fora meus irmãos, eu tive uns idiotas no colégio. Prefiro não me lembrar
dessas situações. E mais o treino, o treino na academia de Muay Thai, só.
Pesquisadora: Entendi. É, por isso que a gente tenta trabalhar diferente com as primeiras crises,
né? Porque, de fato, você é diferente das pessoas que estão aqui há muitos anos tendo crise, né? É
uma situação diferente, eu entendo mesmo. E aí fica esquisito às vezes você estar no mesmo lugar
de pessoas que estão muito diferentes de você, né?
Valter: É.
Pesquisadora: Faz sentido, eu entendo. Mas que bom que no grupo lá você disse que gosta de
participar, né? Lá parece que é mais legal, né? O da A., né? O grupo da A. que você falou.
Valter: É, uhum.
Pesquisadora: Legal.
Celso: Ele falou uma coisa bem verdadeira, assim. É impactante, né? A gente vê aquelas senhoras,
aqueles senhores, em crise, né? Crise. Que é claro que não é específico para o Valter, porque são
N casos, né?
Pesquisadora: Sim. E a gente (não) [00:32:57] está acostumado a ver sempre pessoas com
transtornos mentais mais graves, né? Então às vezes assusta até a gente, né? Dá uma surpresa, né?
Celso: A gente chega em casa muito “carregadão”, assim. Eu tenho essa sensibilidade. Chega,
nossa... a gente chega aqui, fica olhando para as pessoas, poderia ser meu pai, poderia ser minha
mãe, pode ser meu filho, pode ser... entendeu? Pode ser eu. O que mais dolorido que o teu eu? É
ou não é? E você vê que com aquelas pessoas não é droga, não é bebida, não é nada. Como disse
a doutora pela manhã: pode desenvolver como uma hipertensão, pode desenvolver isso como uma
diabetes. É uma coisa que aparece, não é uma coisa que a gente procura do organismo. A
problemática que... o cerebelo, né? Isso aí é um mistério. O transplante do coração a gente faz, o
transplante do rim, do fígado. E do cérebro? Não tem como.
230

Pesquisadora: Tem mais alguma coisa que vocês gostariam de falar, que vocês acham importante
falar? Sobre a pesquisa.
Lara: Não, só agradecer a você.
Celso: Eu diria que é importante acreditar. Eu diria que importante mesmo é você chegar no
desespero e é importante acreditar. Tem que acreditar. O que no início é tão complicado, então
com relação à pesquisa, com relação às orientações e com relação a muitas vezes só de a gente
falar. É tão importante e a gente não percebe isso. Porque o ser humano é tão imediato, né? Eu te
falo A mas eu quero a resposta para a minha doença já, agora, e não é assim que funciona, né?
Porque muitas vezes a cura está na alma. Às vezes a cura não é química. Às vezes a cura está na
alma, né? E quando a gente vem, vai falando, falando, falando. Ou ouvindo, ouvindo. Ou mesmo
presenciando, vendo. Então a gente vai, como disse a Lara hoje, pela manhã, a gente vai vendo as
pessoas reclamarem de tanta coisa boba, porém venham aqui e olhem aqui, "nossa, minha mãe",
"nossa, meu pai", "nossa, poderia ser eu". Nossa, daí a pessoa vê que reclama, o ser humano
reclama por coisa banal, por coisa boba, né? Quanto egoísmo, né? E aqui você cai em uma
realidade diferente. Aqui a gente vê que é importante a união, é importante o profissionalismo, é
importante ter um norte, tem um lugar pra gente: "vamos lá, que lá a gente conversa". Como você,
que Deus te abençoe, está se colocando à disposição da Lara. Um familiar vai se colocar, mas não
é da profissão, não vai saber orientar, ou vai criticar, ou vai colocar mais pimenta, ou... né? Então
é isso. A gente agradece esse teu carinho. Que Deus te abençoe. Que você seja sempre assim
querida, educada. Deus te ilumine, que você seja uma moça feliz sempre.
Pesquisadora: Obrigada. Valter, quer falar mais alguma coisa?
Valter: Não.
Pesquisadora: Tudo bem.
[00:36:08]

Entrevista Família do Roberto


Pedro – Pai
Rosa – Mãe
Giorgia - Irmã

Pesquisadora: Então, gente, o que eu queria perguntar pra vocês é como foi pra vocês esse
processo do atendimento que a gente fez no ano passado lá no CAPS, as nossas reuniões de família,
os atendimentos individuais, todo esse acompanhamento, como foi essa experiência pra vocês.
Roberto: Foi bom, a família conversou mais, a família tirou umas dúvidas que alguns tinham.
Rosa: Eu acho que toda a família quando se encontra numa séria dificuldade devia procurar ajuda
profissional. Porque vocês profissionais têm, assim, um traço certeiro de lidar com as coisas né,
muitas dúvidas que nós temos, as vezes umas coisas assim a gente, ai não vou falar para ninguém,
que isso é feio, que isso aquilo, ai que vergonha tá passando por isso. Sendo que, o mundo inteiro
é feito de gente, e gente é isso aí, dificuldades, problemas, alegrias, tristeza, dificuldade, trabalho,
choro, riso, tudo junto, tudo junto. Então, às vezes nós assim: ai, Deus me livre, Deus me livre
aquela coisa, mas gente do céu, o ser humano é feito de lágrimas e sorrisos, fazem parte da vida,
não tem, nenhum de nós estamos livre de qualquer um problema de saúde, qualquer um problema
emocional. Deus ajude que sempre venha mais alegria do que tristeza, mas... tipo assim, vocês que
trabalham nessa área, é valioso. É valioso o psicólogo, o palestrante... pessoas assim pra ampliar a
nossa mente. Porque a gente, com a educação antiga, tem umas coisas que ficam muito... sabe? Aí
231

quando a gente entra nesse mundo mais moderno às vezes a gente se bate um pouco pra educar,
pra ensinar, pra explicar. Porque se você for perguntar as explicações dela, como é que ela me
educou é um jeito, como é que eu eduquei eles é outro jeito. Como é que os filhos deles vão ser
educados é outro jeito, entendeu? É valiosa demais a ajuda profissional.
Pesquisadora: Então pra você valeu a pena?
Rosa: Pra mim valeu a pena. Eu posso dizer assim que até o CAPS é uma coisa, depois do CAPS
é outra coisa, em termos de que me clareou um pouco uns pontos que fazia falta, pra mim, pra ele.
Pesquisadora: Tem algum ponto desses que você está mencionando, que você lembra agora? Um
exemplo de alguma coisa que pra você esclareceu.
Rosa: Sim. É essa dificuldade de aceitar um problema na família por exemplo. Não sei porque,
tem coisa assim que a tua cabeça: não isso comigo não, Deus me livre, nunca... e quando você vê,
você tá ali, não tem como mudar isso. Hoje eu aceitei, hoje caiu a minha ficha. É mais pé no chão,
a coisa amadureceu, entendeu? Teve sofrimento, mas esse sofrimento também, por outro lado, ele
nos fortaleceu no geral, sabe? Demonstrou aqui... foi uma dificuldade séria que demonstrou aqui,
um laço de família muito, muito forte, que teve, assim, empenho dos quatro, não ficou ninguém.
Então foi uma coisa assim que a gente se uniu, se uniu em família, atenção, dedicação, todos
trabalhamos juntos com os profissionais, com vocês, o pessoal do hospital, doutor Divino, etc. e
tal do posto, né? Mas foi uma coisa assim que, graças a Deus, muita fé em Deus, né?
Primeiramente. Mas eu achei que saímos fortalecidos dessa situação, graças a Deus. Espero que
não precise de novo, mas a gente percebe, né? Pode falar também.

Giorgia: Então, pra mim na época foi bem difícil né, porque eu e a mãe, a gente tinha um
relacionamento assim... toda vida bem difícil mesmo de muita briga e uma não aceitar as ideias da
outra. Daí de tão difícil que era pra mim daí eu quis parar, né? Depois assim de tudo que aconteceu
esse ano, aí pelo jeito ela voltou lá, conversou com alguém, e daí começou a mudar, né? Que nem
ela falou, ela começou a mudar e começou a entender coisas que eram difíceis pra ela. E acredito,
sei lá, eu acho que ela mudou o jeito de repente de me ver que eu perguntei coisas para ela depois
que ela me surpreendeu com as respostas, sabe? Por exemplo, eu pensava assim... ah, o pai não
gosta que eu chore, mas eu sou muito emotiva, não consigo ficar sem chorar. Por exemplo, eu
pensava assim, quando eu tiver um filho, né, eu pensava assim: eu não vou ter o apoio dela. E daí
esse ano eu perguntei pra ela e ela me surpreendeu. Ela falou que como que ela não ia me dar um
apoio, sabe? Então... assim, ela sempre falava de gravidez, ela falava com muita dificuldade de
parte dessas coisas assim e pelo que ela falou depois dos atendimentos ela viu o lado bom porque
a impressão que eu tinha é que ela tinha na memória assim só as coisas ruins que aconteceram. E
daí ela percebeu o lado bom. Então isso foi muito importante o atendimento que a gente teve.
Rosa: Então, concluindo essa parte aí que ela puxou, né. Como eu mencionei para ela, pra vocês,
eu acho que você também não é mãe ainda, né? Então, quando vocês entrarem numa maternidade...
não é um conselho, é apenas, assim, um ponto de vista meu. Qualquer uma de vocês duas que
entrar em uma maternidade, todo o resto que aconteceu lá dentro não interessa, tratem de esquecer.
Dor, gemido, coisa e tal. A alegria de vocês é sair de lá com um bebezinho no colo, faceiro,
tranquilo, que nem eu entrei, graças a Deus, e saí com os dois no colo. Estamos aqui feliz, graças
a Deus, firme e forte. Isso é o que interessa. Hoje eu aprendi que a felicidade da mãe é ver seus
filhos grandes, saudáveis, alegres, felizes. Fechou, está completo. Agora vamos ver a palavra do
pai.
Pesquisadora: Como foi pra você, Pedro? Todo esse processo.
Pedro: Ah, foi incompleto, né? Não foi completo como eu queria.
232

Pesquisadora: O que você achou incompleto?


Pedro: Incompleto é que o internamento dele aquela vez foi muito curto, aí ele voltou praticando
as mesmas coisas que praticava antes. Daí você sabe o que aconteceu em setembro do ano passado,
né? Eu não tenho que dizer, aconteceu, daí, de ele estar meio fora da cabeça, a cabeça dele estava
muito ruim, daí que ele chegou a me agredir. Então como eu já tinha falado, quando ele recebeu
alta do CAPS, a mãe até me repreende por eu falar igual eu falei quando ela me ligou me dizendo
que ela e ele estavam vindo embora que ele recebeu alta.
Pesquisadora: Quando ele saiu do leito, né?
Rosa: Quando ele saiu do CAPS.
Pedro: Daí eu falava para ela que eu fiquei triste de ele estar vindo para casa, com tão poucos dias
de internamento, ela me repreende por eu falar assim.
Rosa: Não, é que eu queria que você esclarecesse mais. Triste por quê?
Pedro: Por quê? Porque eu sabia que com 15 dias não ia solucionar o problema que estava se
passando.
Rosa: É que esse foi o teu ponto de vista, mas teve o ponto de vista do doutor que cuida do caso.
Pedro: Só que o doutor não conhecia o comportamento dele aqui dentro de casa. O doutor
conhecia dos poucos dias que ele ficou lá.
Roberto Ah, dá para dizer que se eu ficasse mais tempo eu ia ficar mais triste lá dentro, mas talvez
eu saísse menos louco, arrependido de fazer as coisas erradas.
Pedro: Talvez ele sairia de lá e esquecesse do vício que ele estava praticando, né? Igual agora que
ele foi internado nesse outro lugar, no Hospital Bom Retiro, ele foi internado lá, ficou mais tempo
internado lá e daí saiu. Claro, os remédios estavam bem fortes dessa vez, mas dessa vez ele saiu
de lá com um pensamento totalmente diferente, porque antes, aquela vez que ele foi internado no
CAPS, ele não me chamava mais de pai, a mãe, de vez em quando ele chamava a mãe de mãe. Ele
chamava (inint) [00:10:54], ou qualquer coisa, a sua mulher, não sei o quê. Agora depois desse
internamento, lá no hospital ele já começou a me chamar de pai de volta, ele me surpreendeu daí,
me chamando de pai de novo. Porque... e depois que ele veio embora pra casa, desde o dia 4 de
abril, que eu jamais vou esquecer essa data, ele me chamou de pai.
Rosa: Ou seja, o seu pai, o que teu pai está aí querendo explicar pra você, eu entendo, não sei se
vocês também, que pra ele é muito importante que você chame de pai, sabe por quê? Porque o teu
pai... toda vida eu sempre conto isso pra (inint) [00:11:45], o teu pai toda vida foi um pai jacaré,
pai jacaré: aquele que ajuda a chocar os ovos e a cuidar dos filhotinhos. Então não é porque está
na frente dos dois...
Pedro: Apesar de a gente ser aqueles pais que não deram os melhores presentes no aniversário do
filho.
Rosa: É, presente ele nunca (foi)[00:12:06], mas...
Pedro: Mas a gente foi aqueles pais de cuidar direitinho dos filhos. E até talvez foi isso que faltou,
dar um tênis de 500 reais, comprar lá um brinquedo de mil reais. Isso nunca a gente fez.
Rosa: É, aqueles brinquedos caríssimos, aquela coisarada de extravagância, eles nunca tiveram.
Pedro: Talvez faltou isso, né? Não sei.
Rosa: Mas era um pai que levava para o parque, passava o domingo o dia inteiro, sabe?
Pedro: A mãe não tinha muito tempo, porque ela trabalhava de terça à sábado, até quase 10, 11
horas da noite. Daí domingo e segunda ela não ia trabalhar, ela estava arrumando a casa, lavando
roupa, limpando casa, fazendo isso, fazendo aquilo. Quem tinha mais tempo de sair com os dois
era eu.
Rosa: Então quase todo final de semana os dois estavam com ele por aí nos parques afora. Aí, né...
233

Pesquisadora: Eu lembro que o Roberto, nessa época, estava com muita raiva, né? Seu pai lembra
disso. Como que está essa raiva hoje?
Roberto Não, já passou.
Rosa: Graças a Deus.
Pedro: Graças a Deus isso passou.
Pesquisadora: Quando você acha que passou?
Roberto (Não sei) [00:13:27], mas passou.
Pedro: Ele não tinha raiva só do pai, ele tinha do pai, da mãe, a irmã ele falava que não era irmã
dele. Hoje não, hoje a cabeça dele mudou.
Rosa: Graças a Deus deu uma amadurecida. Como eu te digo, eu classifico assim, até as palestras,
e depois das palestras, porque a nossa cabeça era muito: esse mundo isolado é meu, pronto e
acabou. Hoje não, ele deu uma... ampliou um pouco, o diálogo corre mais tranquilo sobre quase
todas as coisas, porque dá a impressão que cada um queria ter o seu mundo isolado, eu vou ser
assim, você fica de lá. Sendo que família não cabe isso, porque até uma dor de barriga que um tem
o outro tem que acudir, e eu criei eles com esse pensamento, se um tiver um ai ai você vai socorrer,
pode estar bravo, de cara virada, vai socorrer. Assim eles foram educados. Alguém pediu um copo
d'água, não precisa perguntar nem nome e nem sobrenome, serve um copo d'água. Tem um cego
atravessando a rua, ajude. Não precisa, é meu parente, não, nunca te vi. Pra mim o mundo é desse
jeito, aquela coisa do ser humano, aquela coisa do próximo, né? Posso estar de mal, posso estar
com a cara virada, mas se falou um aiai eu estou lá. Está aí o Pedro que não me deixa mentir.
Porque, assim, com a família dele eu não sou assim de estar lambendo tanto, mas em um caso de
saúde, se precisar pousar em um hospital, cuidar, fui ou não fui?
Pedro: Se precisar passar uma noite no hospital com a minha mãe, ela vai. Mais de uma vez.
Rosa: Com a mãe, com o pai, com quem precisar. Assim eu passo pra eles. Pra mim isso é família,
precisou, você está ali. Agora se for lá fazer uma reunião de fuxico, por exemplo, pra complicar a
vida de alguém: você viu tal coisa? Não, mas você escutou, você estava ali, não me lembro. Eu
sou cega, surda e muda nas horas que não me interessa. Isso eu sou franca a dizer e eles sabem
disso.
Pesquisadora: Roberto, já no comecinho, quando a gente conversou, você falou que estava no
meio de uma guerra, que você tinha muito medo das gangues, lembra disso? Como que está isso
hoje? Você ainda tem medo? Você se sente no meio de uma guerra?
Roberto Não, passou. Agora estou mais tranquilo, eu vi que não preciso ter medo, daí agora estou
mais tranquilo, já tenho saído passear.

Rosa: A Pesquisadora até perguntou, bem no comecinho que ele foi internado: você ainda (cisma)
[00:16:38]? eu estava na frente. E ele falou tenho, mas do quê? Aqueles caras que estão atrás de
mim, ele falou pra ela. Ela falou pra ele: olhe pra trás e veja quantos tem aí, nenhum. Então você
está com medo de quê? De nada. E é o que eu digo pra ele, se olha pra trás e não vê ninguém, está
assombrado com o quê? Não tem nada aí, né?
Pesquisadora: Então vocês percebem o Roberto com menos medo hoje?
Rosa: É como eu te digo, amadureceu, tomou consciência que precisa do medicamento, porque
ele é o primeiro a lembrar todos os dias. Uma coisa assim que, né, antigamente a gente teve um
pouquinho de dificuldade. E no geral foi um amadurecimento da família, posso dizer, porque essas
crises... pra chegar até lá, aquela picuinha, aquela coisa toda, tudo isso tem um porquê passo a
passo. Por acaso eu tive que acompanhar desde o início esse passo a passo, querendo ou não. Então
eu vejo assim, como eu já frisei pra você, ajuda profissional foi de muita valia, porque abriu a
234

cabeça de todo mundo, clareou a mente. Porque você olhando pra ela, uma menina estudada,
moderna, do século XXI, não era pra ter certos tabus, né? Entre essa picuinha de coisa filho e mãe,
não sei o quê, e como você viu, tinha. Então vamos ver, pra criar filha dela ou filho, e ele também,
os filhos deles, espero que eles estejam, assim, mais atualizados, cabeça mais aberta.
Pesquisadora: Pedro, você comentou que você gostaria que tivesse dado continuidade naquela
época que a gente encerrou. E como você vê as coisas hoje? Você acha que apesar mesmo de a
gente não ter conseguido dar continuidade, porque um faltou e o outro não ia mais, tudo isso,
apesar disso tudo, como você vê sua família hoje?
Pedro: Não, eu vejo que apesar das dificuldades, de lá para cá as coisas... apesar que de lá pra cá
não, de fevereiro deste ano para cá, as coisas daí sim mudaram. Daí sim. Com esse segundo
internamento dele. Daí realmente as coisas mudaram. Porque antes... pra mim estava... do mesmo
jeito.
Rosa: Só uma pergunta, só pra eu tirar uma dúvida, as palestras que o hospital fez, entre família,
pra você foram valiosas?
Pedro: Foram.
Rosa: Porque lá eles aprofundaram umas conversas, assim, mandaram eu sair da sala, ficou ela e
eles. Então eles tiveram umas conversas, assim, mas afundo do problema, com os três até, né?
Tinha umas que eu podia participar, outras não, coisa e tal, mas... sabe? E depois disso também
ele faz com uma Pesquisadora na Tuiuti.
Pesquisadora: Quem?
Rosa: O Pedro, uma individual.
Pesquisadora: Está fazendo acompanhamento lá?
Rosa: É, ele tem tido umas conversas boas lá com eles. Eles têm tido umas conversas boas, que
eu achei que... como eu te falei da dificuldade, porque essa coisa de família, quando você se casa,
você vem... você se casa com uma pessoa que você nunca viu na sua vida, não sabe nem como era.
De repente, quando você vê, você sai de lá e o outro de cá, faz um casamento. Ali vai ser quase
uma só pessoa de dois estranhos. Aí nascem os filhos, é a união real de dois estranhos. Então tinha
uns costumes dele que eu não sabia lidar e tinha uns costumes meus que ele também não sabia
lidar. A família dele é uma família italiana tradicional, daquela, assim, que, não vou dizer sangue
azul, mas é perto disso, sabe? Tradição de casamento, tradição de moradia, tradição de comida,
tradição de muitos costumes. Eu não, eu já sou mais aquele popular, meio índio, meio mestiço,
meio tudo junto, entendeu? Coisa que vem da família dele, um exemplo é que a família dele nasceu,
se criou no interior de Minas, são aqueles italianos bem tradicionais, com a reunião de família fim
de semana, o jeito das festas, um passear na casa do outro, aquelas coisas, uns costumes que eu
não tinha. Eu não conhecia esse tipo de coisa, entende? E do meu lado não, já era assim mais, meio
popular, não tinha muita tradição, o que aparecer na panela nós comemos. Porque tem umas
dificuldades até hoje assim de umas coisas que ele não gosta, não quer nem saber pra comer.
Pedro: Mas isso é coisa minha, não é da família, não.
Rosa: É meio que costume, entende?
Pedro: Até a Giorgia esses dias me perguntou: pai, você gosta do quê? Aí eu respondi pra ela:
gosto de arroz, feijão, carne, salada. É por causa de eu não gostar de pinhão, pipoca, canjica, essas
coisas assim.
Rosa: Então, como eu falei pra você, as dificuldades que ele tem, que eu não tenho. Daí os dois,
como juntou ele comigo, uma coisa a mais, entendeu? Porque daí já não é obrigado a ter a maionese
de domingo, aquele bolo de fubá, aquela broa de milho. Chegou três horas, tem que fazer um café.
Pra mim não tem que fazer um café, eu como uma maçã, eu como uma banana, eu faço um leite
235

com fruta. A tradição do tradicional mesmo tem que ser o café, a merenda, como dizem, né?
Questão de costume.
[...]
Pesquisadora: Lá no Bom Retiro vocês tinham reuniões de família também?
Pedro: Também teve.
Giorgia: Toda terça-feira.
Rosa: E ai de quem não fosse.
[...]
Pedro: Porque ali no CAPS a mãe era durona, não queria ir nessa reunião. Ela foi a primeira a
falar mal do jeito do tratamento.
Rosa: Será que eu faltei naquelas? Não.
Pedro: Quem foi o último a ir lá? Eu fui.
Pesquisadora: Acho que foi você mesmo. Acho que aquela vez que o Roberto tinha batido em
você. Era um dia de chuva que você foi, né?
Pedro: Essa foi a última vez que eu fui. Daí eu falei: estou vindo pra vocês tomarem consciência
do que aconteceu. Daí eu não venho mais também. A mãe não quer vir mais, o filho também,
jamais quer vir. Então eu também não venho mais.
Giorgia: Eu não sei se você ficou sabendo como foi. Eu vou contar rapidamente. Estava um caos,
né? O Roberto já não morava mais aqui e daí os dois também ficaram... acho que com conflito,
assim. Aí veio o carnaval e o pai foi viajar com o tio. Aí...
Rosa: Você pulou uma partezinha importante. O início desse segundo estresse aconteceu o
seguinte: ele saiu de casa, daí ele já achou que precisava ganhar bem, aí ele arrumou... estava com
dois serviços.
Pedro: Mas isso foi daí bem no fim do ano, que ele arrumou dois serviços.
Rosa: Não foi. Quando ele foi para o restaurante, foi no início... porque daí ele começou o
restaurante das quatro da tarde até quase três da manhã, vinha pra casa, mal dormia e já queria
levantar pra ir cortar grama. Ele aguentou fazer isso por uns 15, quase umas três semanas. E ali eu
percebi, porque ele ia e vinha: mãe, não consegui dormir, eu estou cansado, estou estressado, não
sei o quê. Eu falei: mas por que não deixa o restaurante? Daí o restaurante tinha semana que era
três dias, tinha semana que era quatro dias, que pegou a época das formaturas, virou uma loucura
aquilo. Outubro, novembro e pegou um pouco de dezembro, entendeu? Ali foi o início do que ela
ia contar, que primeiro foi isso pra depois chegar onde ela...
Pedro: Mas é que ele estava no... internado na porcaria que ele estava usando, né? Você estava
internado naquilo. Ele passava a noite.
Rosa: Pergunta pra ele se ele conseguia descansar.
Pedro: Ele passava a noite cheirando aquilo.
Rosa: Se ele conseguia descansar quando estava com esses dois serviços. E o início da primeira
crise, bem o início, também foi a parte de trabalhar de dia e de noite fazendo (inint) [00:27:25] no
curso do avião. Porque pra mim ele falava: mãe, eu não consigo fazer essas contas, mãe, eu não
consigo dormir, eu não estou conseguindo descansar. Aí um dia, pra ter certeza, eu peguei a conta
dele e fui fazer, eu fiquei... eu não sou tão ruim de matemática assim, a Giorgia está aí de prova,
eu fiquei umas quatro horas em cima daquela conta doida e não consegui achar sentido, vou até te
explicar o que era. Pra você ir de Porto Alegre a São Paulo, quantos litros de querosene vou gastar,
se o vento estiver a favor? E quantos litros vou gastar se o vento estiver contra? Você consegue
achar sentido em um negócio desse? Quando eu fiz essa conta dele e não consegui achar saída foi
onde eu decidi: pode parar com essa porcaria, que isso aqui...
236

Pedro: Só que ele parou por conta dele.


Rosa: Mas eu dei apoio, porque por você ele não parava.
Pedro: Porque depois que ele parou, ele continuou com o vício dele, do mesmo jeito e cada vez
pior, cada vez pior. Ela fala assim, mas lá no fundo eu discordo com ela.
Rosa: Por você ele não tinha parado, né?
Pedro: Não, podia parar, mas parar com... se fosse por causa do estudo, que ele estava naquele
vício, ele parava o estudo e parava no vício também, só que não foi isso que aconteceu. Ele ficou
cada vez mais aprofundado no vício.
Pesquisadora: E aí esse ano como é que foi?
Giorgia: Aí o pai viajou no sábado e daí eu fiquei sabendo e pensei: vai acontecer alguma coisa
nesse fim de semana. Aí, domingo à noite ele fez um negócio errado lá, aí ligaram pra ela, ela
pegou, foi...
Pesquisadora: ... o que é o negócio errado?
Giorgia: Ele quase matou um cachorro. Ele botou fogo.
Rosa: Explique pra ela.
Pesquisadora: Você lembra?
Roberto: Eu lembro.
Pesquisadora: E você lembra por que você fez isso?
Roberto: Eu estava (revoltado) [00:29:41] ainda com as crises do pessoal me perseguindo e aí eu
queria descontar em alguém.
Pedro: A cabeça dele estava ruim por causa do vício.
Roberto: Não, é só isso aí.
Pesquisadora: Mas como você fez?
Roberto: (Inint) [00:29:53].
Rosa: Eu posso dizer o que eu acompanhei? Porque, na verdade, o Pedro foi pra Antonina e a
Giorgia ficou na casa dela. Aí a Giorgia passou aqui, aí um dia antes eu pedi pra ela passar lá. Aí
ela bateu na porta e ele falou que não ia abrir, aí ela falou: mãe, ele está lá deitado, assim, no chão,
desanimado, tal e coisa. Aí eu vi que tinha qualquer coisa por ali que eu precisava dar mais atenção.
Aí eu fui e conversei bastante com ele naquela tarde, coisa e tal, que ele estava lá na nossa outra
casa, que é oito quadras daqui. Aí, lá ele tinha o celular, isso foi no dia seguinte, o celular e um
vídeo. Esse vídeo, eu não sei se isso bate com o que eu vou lembrar aqui, que o vídeo mostrava
como o chinês se alimenta, cachorro, galinha, porco, pra eles é tudo igual. Foi ou não foi?
Roberto: Foi.
Rosa: Então, essa porcaria desse vídeo, que depois eu questionei (inint) [00:31:00]. Aí, nesse vídeo
mostrava que limpava o cachorro com fogo, queimava o pelo, pra depois limpar e pôr no forno.
Parece que a ideia meio maluca foi essa.
Pesquisadora: E aí você quis descontar no cachorro a sua raiva, é isso?
Roberto: Também.
Pesquisadora: Tinha mais coisa?
Roberto: Tinha e não, era raiva. É, porque daí eu estava estressado, porque... por causa de briga.
Pesquisadora: Briga do quê?
Roberto: Briga de briga, porrada.
Pesquisadora: Mas briga com quem?
Roberto: Com o pessoal que estava nas pracinhas, por causa de mulher. Daí como eu tinha levado
a pior, que tinha sido mais de um que tinham pegado eu, daí eu quis descontar na cachorra.
Pesquisadora: E daí você tacou fogo no cachorro?
237

Roberto: Foi.
Pesquisadora: Entendi.
Rosa: Mas logo que você matou o cachorro você apanhou na rua, então?
Roberto: (Inint) [00:31:50], porque eu não estava de olho roxo esses tempos lá? Um pouco antes.
Rosa: Faz bastante tempo aquilo.
Pedro: Foi bem antes, que agrediram ele na rua foi bem antes.
Rosa: Ou teve outra?
Roberto: (Inint) [00:32:00]
Rosa: Foi aquela, né?
Pesquisadora: Eu lembro que na época o Roberto falava muito que algumas lembranças que
tinham acontecido antes ficavam na cabeça, né? Às vezes pode ter sido isso.
Rosa: Então, teve. Porque ele morou em Floripa, lá aconteceu que uns piás quiseram tomar o tênis,
não sei o quê.
Pedro: Roubaram o celular dele lá.
Rosa: Bastante anos atrás, ela estava com o namorado no portão, chegou um louco ali e tomou a
moto do piá. Na cara dela e dele, que a Giorgia até quis se jogar em cima do bandido, não sei se
com uma pedra, sei lá o que foi.
Pedro: Não, a Giorgia correu pra dentro.
Giorgia: É, eu tenho fuga nessa situação.
Rosa: Você não lembra que ela quase agrediu o cara.
Roberto: Ela correu pra dentro. Foi eu que estava, ainda, (inint) [00:32:42].
Pesquisadora: Você que foi pra cima do cara?
Roberto: Eu tentei, daí ele me segurou.
Pedro: Não, ninguém foi pra cima do cara.
Rosa: Porque o cara chegou ali, eles estavam conversando no portão.
Pedro: O cara estava armado.
Rosa: Então, o cara estava armado. Aqui no nosso portão. Daí aquilo ficou na cabeça dele. E teve
outros casinhos também, assim, que ele viu alguma coisa em baladinha, chegou a presenciar
alguma coisa.
Pesquisadora: Teve na escola?
Rosa: Teve na escola também.
Pesquisadora: Daí ele matou o cachorro...
Giorgia: Isso, acho que foi de noite, de madrugada. Ligaram pra ela, ela pediu pro vizinho levar
ela de moto, ela foi sem blusa e estava frio, aí eles foram para o 24 horas e na segunda de manhã
ela me liga: você pode me trazer um café e uma blusa? Eu estou no 24 horas.
Rosa: É, eu estava lá com ele e minha mãe tinha ficado aqui sozinha.
Giorgia: É, nessa época ela estava aqui, ela foi embora e voltou.
Rosa: Ela sempre estava por aqui.
Giorgia: Daí eu não sei se ela voltou embora, eu sei que... sorte que era feriado, eu não estava
trabalhando, aí eu intercalei com ela. Aí veio o dia fixo, um dia útil, né?
Pedro: Foi bem no carnaval isso.
Giorgia: Aí eu falei: não, se ela for no hospital... porque, sei lá, eu, na minha ideia, eu tenho que
ela que conseguiu tirar ele do CAPS, daí eu falei: se ela for no hospital, ela não vai deixar esse piá
internado lá. E ela realmente não ia conseguir. E ela falava: eu vou internar ele num lugar
particular, que lá não é bom, não sei o quê: Aí no dia que ele foi internado estava o pai e a mãe no
hospital já, aí eu fui com ele na ambulância e eu fiquei responsável por ele. E daí na reunião tinha
238

que ir toda semana o responsável que tinha assinado e mais um. Só que como os dois tinham
bastante dificuldade em aceitar, eu pedi para a assistente social para ter vezes de ir nós três. Aí ela
deixou uma vez, depois de um tempo ela deixou de novo, mas (não) [00:34:59] deu certo.
Pesquisadora: O Roberto participava dessas reuniões??
Giorgia: Algumas vezes. Mas então daí eu intercalava, às vezes eu ia com ela, às vezes eu ia com
ele, mas todas as vezes eu fui. E daí eu, tipo, tive que tomar frente. Até ela falou que ela não tinha
forças pra isso e eu, talvez, por eu ser a irmã, eu consegui, sabe? Então eu fui firme aí que veio a
melhora.
Pesquisadora: E foi depois desse internamento que vocês perceberam que o Roberto.. vocês
sentiram ele melhor?
Giorgia: Então, daí eu conversei bastante com o pai, falei que... que o pai sempre culpa os negócios
que ele usou, mas eu acredito que pode ter outras influências, né? E daí o pai não aceitava, acho
que não aceita até hoje. Aí com muita insistência eu consegui que ele começasse terapia lá na
Tuiuti.
Pesquisadora: Você faz na Tuiuti o seu curso?
Roberto: Aham.
Pesquisadora: E você está gostando?
Roberto: Estou, aham.
Rosa: É, porque lá ele tem a chance de conversar sobre umas coisas, assim, de ele pra ele mesmo
ele prefere nem lembrar que existiu, mas é bom que ele tenha com quem ele chegue lá e converse
e tenha a certeza que ninguém escutou, ninguém sabe. Eu confessei isso aqui, desabafei, falei,
joguei pra fora, mas não está na boca do povo. É uma limpeza do coração que ele faz lá entre eles.
Pedro: Ela fala assim, ela acha que eu preciso, só que ela...
Rosa: ... não, eu também preciso, claro...
Pedro: ... só que ela não vê que ela precisa talvez até mais que eu. Porque eu sou um cara super
calmo.
Pesquisadora: Mas a Rosa não quer fazer?
Rosa: Querer...
Giorgia: ... vamos combinar o seguinte: o dia que ele for, você vai.
Rosa: Não, ele já disse que ele não me quer por perto.
Giorgia: Mas eu vou explicar como é lá, tem três corredores, aí você fica no corredor do canto
aqui, ele fica no corredor do canto aqui e vocês não vão nem ter a possibilidade... porque eu falei
pra ele levar você uma vez e ele: ah, mas eu não vou lá duas vezes. Então se for os dois no mesmo
horário...
Rosa: ... agora, tem uma coisa também, com os médicos que estão nos dando assistência, quando
eu entro na sala pra uma reunião com eles, eu converso muito, eu tiro dúvidas, eu puxo afundo
tudo que me vem, assim, que eu vejo que vai ser útil, eu puxo. E ele não conversa muito com os
doutores, nem com o doutor João, nem com o doutor Divino e nem com a doutora Franciele. Então,
tipo assim, eles, até agora, não mandaram eu fazer nada, né? Porque eu, (não tendo um tempo)
[00:37:50], que nem quando eu estava fazendo com vocês, eu participei, no hospital também
participei. E agora o que está tendo é isso, quando esses, o doutor Divino, doutor João, que é aqui
do posto, tem também o doutor Adilson, que dá uma assistência se precisar. Então quando eles
entram, a gente entra pra sala e fecha a porta. Eles falam sobre tudo que está acontecendo, o que
não está acontecendo, me expliquem, me contem, não sei o quê. Tanto é que o doutor João, há
umas três semanas, quando eu vi, ele estava entrando no portão: vim aqui tomar um cafezinho, ver
como está, eu falei: ah, então seja bem-vindo, tal e coisa. E veio, conversou, conversou comigo,
239

com ele. Olhou, já é a segunda vez que ele visita a casa. Com o doutor Divino também, a última
reunião que tivemos com ele foi uma conversa difícil, uma conversa bem profunda, assim, tipo,
cobrando responsabilidade, consciência, peso de palavra de mãe, atitudes, coisa e tal. Tudo que
ele... não deixei nenhuma pergunta sem resposta. Se eu respondi ao agrado ou à altura dele eu não
sei, né? Mas eu tentei não deixar nenhuma pergunta sem resposta. Que teve umas coisas assim,
umas questões que ele levantou, por exemplo, que eu... como é que se diz, que eu meio que
desmereci o que ele falou. E eu expliquei pra ele que por favor não entendesse assim, que era o
caso, por exemplo, de uma injeção que foi dada e não foi bem aceita pelo organismo, constatado
por outro doutor. Então, porque o doutor Divino um tempo, assim, ele deu uma dose de um remédio
meio forte, aí eu tive que protestar. Aí, quando foi dessa vez, na injeção, já foi a segunda dose, que
também, porque causou, assim, um mal estar respiratório, causou um mal estar... sabe? Uma coisa
estranha, babando.
Pesquisadora: Isso aconteceu no hospital uma vez, né?
Rosa: Como se fosse um início de convulsão, uma coisa bem estranha. Que ele autorizou a doutora
Franciele passar e eu tive que protestar.
Pesquisadora: Eu acho que foi na UPA, né? A primeira vez.
Rosa: Agora essa foi a Franciele que autorizou. E eu tive que protestar, porque não só eu, o pai,
todo mundo que viu a situação, né?
Pedro: A gente viu como ele ficou. Não tinha como continuar com aquele tratamento. Ele estava
aceitando tomar os comprimidos, não precisava ter dado a injeção.
Rosa: Agora está com dor de cabeça, é que por causa da gripe ele não está nem se alimentando
direito nos últimos dois, três dias.
Roberto: Eu perdi, até agora, oito quilos. Eu estava com 90.
Pesquisadora: Eu lembro que você também tinha esse projeto de grande homem, né? Como é que
você está? Você ainda tem isso?
Roberto: Eu tenho, mas agora eu falhei. Eu estava com 90, fui me pesar e estava com 82.
Rosa: Mas Mariana, me responda, ele pertence a um homem miúdo?
Pesquisadora: Já é um grande homem.
Rosa: Já é um grande homem, pois então. Para os homens da sua altura, na média mundial, você
está de acordo. Porque não está nem entre os gigantes e nem entre os anões. Pois é, e tudo isso,
assim, ainda completando a parte do Divino, que ele, tipo assim, achou que eu não podia, não
podia discordar de uma ordem dele, que ele ia ficar mal na fita por causa disso. Só que como eu
disse pra ele: doutor, entenda uma coisa, aqui trata-se da vida de um filho. Não me resta outra
saída.
Pesquisadora: Você queria falar da sua preocupação porque você presenciou, né?
Rosa: E ele queria falar que ele ficou mal na fita na frente de todos vocês no CAPS, porque ele
autorizou uma coisa que praticamente ficou... porque assim, ele estava fechado lá naquele quarto,
você escutava ele gemendo daqui, pra poder respirar. Aquilo era de doer, totalmente travado. Então
eu expliquei para o doutor Divino. Aí ele falou assim: mas por que você não trouxe pra eu ver?
Porque eu liguei pra ele já era meio tarde e a moça falou que naquele dia não dava mais pra atender
e era uma sexta-feira. O Divino não gosta que outro médico veja, ele quer que ele veja, só que eu
expliquei pra ele: eu liguei para o senhor, falei com as moças, eu ia trazer, mas não deu pelo
horário, porque já era quase uma hora dessas. Aí eu corri no posto com ele e o doutor estava lá,
estava saindo, a menina pegou ele no carro, abrindo a porta pra ir embora. Aí ele olhou e já falou:
tem que dar esse destravador pra poder melhorar, que era o (Adol) [00:43:19] e o outro quebrava
um pouco o efeito daquilo. Daí o Divino, assim, eu não sei... tipo hoje, assim, eu peço até desculpas
240

pelo tipo da conversa, mas eu vi que ele não ficou tão contente com a minha atitude. Só que eu
queria explicar pra ele e pra você, para o CAPS em geral, que não me restou outra alternativa, não
me restou, ordem de um outro doutor: pare já com isso. Aí o que eu vou fazer? Pois então. É aí
que está, foi aí que eu cheguei. Eu não sei, se o Divino entendeu ou não... porque daí ele veio aqui
no posto, que está há três quadras da nossa casa, ele veio aqui no posto, conversou com esse doutor
João e pediu: atendam direito que o rapaz precisa de assistência, mas a mãe dele também.
Giorgia: Se falou também, então é pra você ir na Pesquisadora lá na Tuiuti.
Rosa: Não, ele não me mandou ir na Pesquisadora, ele mandou... ele mandou eu... né? Porque,
tipo assim, com a Pesquisadora, com ele, com o outro doutor, quando eu tiver... porque é isso que
o doutor João me disse: mãe, tem uma dúvida, venha até nós. Ou como foi o caso de quando eu vi
ele com aquela injeção. O que a Franciele fez: ela aplicou a injeção e não me explicou um pequeno
detalhe: que essa injeção, não sei se você sabe disso, quando vocês aplicam essa injeção de (Adol)
[00:45:00], a pessoa não pode praticar exercício físico. Quanto mais ela praticar... porque o
depósito é no músculo, aí o músculo trabalha e ela começa a soltar mais. Diz ele que foi isso que
aconteceu, agora, eu não sei, porque eu não... nessa história vocês entendem mais do que eu, eu
sou leiga nessas coisas. Ele foi tentar trabalhar, foi tentar fazer uma caminhadinha, depois eu voltei
lá e perguntei para a doutora Franciele: podia fazer exercício ou não? Melhor não. Mas isso foi na
outra semana, né? Porque é um detalhe, que quando vocês aplicarem essa injeção, expliquem para
o paciente: é melhor você fazer repouso. Porque diz que se trabalhar a musculatura ela vai começar
a soltar. Que é o caso de quem toma também o anticoncepcional injeção. Tem umas coisas que
fazem soltar mais, tem umas coisas que seguram. Eu não sei, né?
Pesquisadora: Gente, eu acho que é isso. Vocês têm mais alguma coisa a acrescentar? Alguém
gostaria de acrescentar alguma coisa? Então beleza.
Rosa: Vou pegar um chocolate pra você, você aceita?
Pesquisadora: Aceito sim.

Entrevista Família da Thaís


Jean - Pai
Vilma – Mãe
Miguel - Irmão de 36 anos
Mario – Irmão de 34 anos
Marcos – Irmão de 24 anos
Michael – Irmão de 16 anos

Pesquisadora: O que eu queria perguntar pra vocês é como foi todo o atendimento que vocês
receberam, tanto pelo nosso grupo como pelo CAPS, no internamento, na UPA, vocês tiveram
todo esse acompanhamento dos momentos que a Thaís não estava bem, né? Eu gostaria de saber
o que vocês acharam desse processo.
Vilma: Toda vez que eu fui lá no hospital eu fui atendida, com vocês também eu fui atendida.
Graças a vocês que ela (está melhorando) [00:00:53] cada dia mais. Tive (inint) [00:00:55], do
CAPS, do hospital, não vou mentir que ela esteve lá também, foi bem atendida. Graças a vocês
que ela está conseguindo se recuperar, cada dia mais, que ela não tem mais aquela crise que ela
241

tinha, né? Que ela se (inint) [00:01:12] todo dia, a cabeça. A única coisa que até (inint)
[00:01:15]/[00:01:21] vamos chegar lá e vamos tirar, né? Mas fora isso foi tudo bem, graças a
Deus. A ajuda de vocês foi muito boa, muito maravilhoso com vocês, comigo também foi muito
bom, graças a Deus, em nome de Jesus, foi muito bom, foi maravilhoso. Eu agradeço muito vocês
por darem apoio pra mim e pra ela. (Inint) [00:01:40] Deus poderoso, né? Sem ele não é nada, né?
E que dá força para nós. E ela está indo bem, muito bem, graças a Deus. Cada dia que passa está
melhorando. Estou muito feliz por ela e por vocês também, que estão ajudando bastante. Em nome
de Jesus, amém.
Pesquisadora: Teve alguma coisa que você achou que não foi tão legal? O que você achou mais
legal? O que você achou menos legal desses acompanhamentos? O que fez mais sentido pra vocês?
Vilma: - Uma coisa que me deixou muito triste foi o atendimento que eu tive lá no... assistente
social...
Pesquisadora: No CRAS?
Vilma: No CRAS, que eu fui lá...
Pesquisadora: ... CREAS ou CRAS?
Vilma: CRAS. A única coisa que eu fiquei triste lá, que eles me negaram o vale, (eu falei)
[00:02:34] que precisava. Fui lá, falei o que eu estava passando, que você tinha marcado, (inint)
[00:02:39] tinha umas coisinhas, mas estava precisando das coisinhas, né? (Inint) [00:02:45]
coisinhas pra ela mais, né? Eles falaram que não ia dar e que só abrindo o mês. E que não é uma
ajuda, é onde precisa. (Inint) [00:02:59]/[00:03:05]. Mas o resto, graças a Deus, foi bem atendida,
por vocês, pelo hospital, as enfermeiras foram boas para ela, os doutores muito bons. O doutor
Marcelo, muito bom. Você, (a Nicole) [00:03:17]. Foi tudo bom, graças a Deus, fui bem atendida.
Graças a Deus. (Inint) [00:03:27].
Pesquisadora: Aqui é pra ser sincero, tá? Não precisa ficar jogando purpurinha.
Vilma: (Inint) [00:03:37].
Pesquisadora: A Alice?
Vilma: Também. Está cuidando bem dela.
F2: É sincero. É verdade.
Pesquisadora: Está bom, obrigada. Thaís, me conta, como que foi pra você? Eu acho que você é
a pessoa que melhor pode falar de todo esse atendimento. O que fez sentido? O que você não
gostou? Como foi pra você?
Thaís: Aii... quando eu fiquei internada no CAPS, pra mim foi mais difícil o internamento, porque
não tinha nada pra fazer lá. Daí eu ficava o dia inteiro à toa sem fazer nada. E pra mim era tedioso,
era angustiante não ter nada para fazer. Acho que pra mim só o lado ruim foi esse mesmo, mas de
resto foi tranquilo. Eu não posso reclamar, eu tive um atendimento bom, eu fui bem atendida, até
lá no hospital quando eu fiquei internada por causa de eu (tentar suicídio) [00:04:23], né? Eu fui
bem atendida, não posso reclamar.
Pesquisadora: E o que pra você, sei lá, um momento que você lembra que mais fez sentido, que
você percebeu que: nesse momento o atendimento pra mim foi importante?
Thaís: Quando comecei a vir com Alice. No ano passado quando eu comecei a conversar com a
Alice e aí comecei a desabafar mais, conversar mais com ela. E pra mim foi muito importante,
porque eu sou uma pessoa reservada. Eu não sou de falar muito. E eu tenho muita dificuldade em
expressar sentimentos, até com meu namorado eu fico meio assim, porque eu não tenho... eu não
consigo, eu sou muito trancada, sabe? Então pra eu falar alguma coisa de mim e falar sobre mim
é difícil pra mim. E com a Aline eu estou tendo mais liberdade de poder desabafar, me expressar.
Pesquisadora: Que bom. E qual a coisa que você acha que não foi legal pra você?
242

Thaís: Ah, é que (inint) [00:05:24] ficar lá no CAPS sem fazer nada.
Pesquisadora: Quando você estava no leito?
Thaís: Sim, pra mim era ruim.
Pesquisadora: Essa coisa de não ter nada pra fazer?
Thaís: Isso.
Pesquisadora: A minha outra pergunta pra vocês duas é: como vocês entendem a crise que vocês
passaram nesse período? Como vocês entendem ela? O que ela significa hoje pra vocês e como
vocês entendiam ela lá no começo?
Vilma: (Inint) [00:06:01] trabalhar, cuidar da vida sozinha, ser independente, sem eu estar junto
com ela, sair sozinha, não ter medo de nada, encarar, né? Ir e voltar, não fazer nada com ela. Voltar
a faculdade, que é meu sonho.
Pesquisadora: Quando a Thaís começou a ter as crises, o que você achava que estava
acontecendo?
Vilma: Eu achava, assim, quando começou, (inint) [00:06:36] começou a chorar, eu não entendia
o que era, eu falava assim: mas o que aconteceu, Thaísane? Você está estudando... ela é estudiosa,
nunca faltava no estudo, né? Mas o que aconteceu que você tá chorando, Thaís? E ela falava assim:
mãe, eu tô passando por um problema. Só que eu não sabia o que era, isso já era a doença dela,
né? E quando eu fui descobrir que ela estava bem (inint) [00:06:54] mesmo, foi um dia que lá em
casa ela começou a pular, e aí eu achei que a coisa era séria. Daí eu fui atrás do médico, e aí foi o
médico lá da (UPA de Pinhais) [00:07:07], que levou ela e encaminhou ela para o CAPS quando
ela estava (inint) [00:07:12]. E aí foi assim.
Pesquisadora: E hoje, depois de ter feito terapia familiar, você ter passado pelo CAPS, você
começou a sua terapia individual, como você entende, hoje, esse momento? Tudo que aconteceu.
Como você entende a crise da Thaís hoje depois de todas essas reflexões que a gente fez juntas?
Vilma: Que ela está melhorando cada dia mais, né? (Inint) [00:07:44] o que era antes, melhorou
bastante. De vez em quando dá uma crise nela (inint) [00:07:51], mas não, ela sofria demais, tinha
que amarrar ela na cama, pra ela não fugir, essas coisas. Mas com o tratamento e com todos vocês,
do hospital, ela deu uma boa melhorada.
Pesquisadora: Está bom. Obrigada. E você, Thaís, como que você entendia lá no começo o que
estava acontecendo com você e como você entende hoje?
Thaís: Antes eu não compreendia muito bem o que estava acontecendo comigo. Porque eu tenho
pensamento suicida desde os 17 anos. Eu também não tinha (autoconfiança) [00:08:29], com 17
anos eu tentei me matar, né? Eu só queria acabar com a angústia que eu estava sentindo, com a
tristeza. Eu queria acabar com isso, mas eu não tinha percepção que eu tinha depressão e eu
precisava de tratamento, essas coisas. Tanto que eu procurei tratamento há dois anos só, antes eu
não tinha tratamento nenhum.
Pesquisadora: E hoje, Thaís, como você entende tudo isso que está acontecendo com você?
Thaís: Hoje eu tenho mais percepção do que está acontecendo comigo. Até quando eu tenho
minhas crises, eu já percebo antes quando eu vou ter, sabe? Eu já tento me controlar. Domingo
passado eu tive uma crise dentro do cinema, eu comecei a tremer dentro do cinema, fiquei muito
nervosa, comecei a suar frio. Só que eu consegui assistir o filme inteiro, eu comecei a passar mal
no final do filme. Daí depois eu saí do cinema, tive que tomar um ar pra me acalmar, meu namorado
teve que me ajudar, porque eu não parava de tremer, eu ficava nervosa, ficava ansiosa, e eu não
conseguia prestar atenção no filme. Eu passei muito mal, sabe? Só que antes de passar mal eu
percebi que eu estava tendo alguma coisa assim, sabe? Estava percebendo que eu estava muito
ansiosa, muito afobada.
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Pesquisadora: Então você tem um pouco mais essa percepção de como você está sentindo, o que
está acontecendo, é isso?
Thaís: É.
Pesquisadora: Entendi. E por que você acha que tudo isso veio ali a partir dos 17 anos? Como
você entende o sentido dessa crise, pra você?
Thaís: Então, antes de eu ter essas crises eu bebia (bastante) [00:10:12]. Bebo desde os meus 13
anos. E eu bebia muito pra poder afogar minha tristeza. Quando eu ficava triste eu procurava ajuda
na bebida. Eu bebia bastante, até em coma alcoólico eu já entrei. E antes de tentar suicídio eu
tentava... buscava ajuda nas bebidas.
Pesquisadora: E você entende por que você buscava? O que estava te deixando triste, o que estava
te deixando angustiada nessa época?
Thaís: É por causa... (inint) [00:10:41] meu irmão não é de hoje, é desde que eu era pequena. E
eu sofria muito, porque eu sempre apanhei dele desde criança, sabe? Então, com 15 anos, (eu fui
morar) [00:10:53] com a minha tia também, por causa dele, porque ele brigava muito comigo e eu
não estava suportando mais. Daí eu fui morar com a minha tia e morar com parente não é fácil, é
difícil. E eu passei (inint) [00:11:05] por causa que eu passei muita dificuldade lá, tive bastante
problemas. E nessa época eu já saía pra beber, então eu afogava minhas mágoas na bebida.
Pesquisadora: Então você acha que tem a ver com essa tua relação com o teu irmão, tem a ver
com essas dificuldades que você teve morando com a sua tia, é isso?
Thaís: Sim.
Pesquisadora: Uma última coisa que eu queria perguntar pra vocês é: a terapia familiar, no que
ela ajudou ou não? Como foi a experiência de vocês na terapia familiar?
Vilma: Pra mim foi bom, ajudou muita coisa, como lidar com o problema, né? Lidar com cautela,
(inint) [00:11:54]. Ajudou bastante.
Pesquisadora: Ajudar a pensar em como lidar?
Vilma: Isso. Ajudou bastante.
Pesquisadora: E você, Thaís?
Thaís: Pra mim foi importante a terapia familiar, a gente discutiu todas as famílias, a origem,
história, tudo. Pra mim foi bem interessante.
Pesquisadora: O que você descobriu? Ouvindo as histórias, as origens, o que pra você chamou a
atenção mais?
Thaís: Ixi...
Pesquisadora: ... a gente falou tanta coisa.
Thaís: É. Eu não lembro.
Pesquisadora: Tudo bem. Então está bom. Tem mais alguma coisa que vocês gostariam de
comentar? A minha pesquisa, como eu já falei pra vocês, é sobre as primeiras crises, esses
primeiros momentos em que a pessoa está mal, mas que não faz tanto tempo, né, Thaís? Faz dois
anos, no máximo, né? Não faz tanto tempo. Então, eu acompanho lá no CAPS, nos atendimentos
com familiares, individuais, como algo a mais para o atendimento do CAPS, além do que era
realizado. Então agora eu estou tentando colher essas informações de como foi pra vocês os
atendimentos, se fez sentido, não fez, o que foi legal, o que não foi. Tem mais alguma coisa que
vocês gostariam de acrescentar a isso?
Vilma: Pra mim foi tudo bem. Foi bom pra mim e pra ela.
Pesquisadora: Thaís, quer acrescentar?
Thaís: Não.
Pesquisadora: Então está bom, gente. Obrigada por participarem da entrevista.

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