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CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
NOVEMBRO DE 2004
1
Novembro de 2004
BANCA EXAMINADORA
Para
Rozângela
Marcela
Soraia
1
Agradecimentos
Sumário
Introdução............................................................................................................................7
a tradição católica..................................................................................................................54
2.1.3 O Catimbozeiro.............................................................................................................64
Inconclusões..........................................................................................................................92
Bibliografia...........................................................................................................................94
7
Introdução1
A minha relação com os índios do Nordeste tem início quando me interessei pelo
pelo professor Rodrigo de Azeredo Grunewald, que tem contribuído bastante na produção de
como aculturados, que subsistiriam no contexto regional sob a condição de índios genéricos,
Fui selecionado para fazer parte desse projeto, e a leitura do mesmo trouxe uma
Infelizmente o projeto não vingou. De toda forma, segui realizando leituras e produzindo
trabalhos que me proporcionaram experiência e suporte teórico para pensar uma série de
indígenas no Nordeste.
instaurados nos rituais indígenas nos quais seus ancestrais os orientam acerca da construção
nos momentos de etnogênese2 dos grupos, nas relações comunitárias para levantar aldeias3.
Assim, a idéia inicial que gostaria de levar a efeito como objeto de estudo seria perceber de
que maneira esses processos de contato com forças ancestrais têm contribuído, ou até mesmo
têm sido fundamentais, para a etnogênese dos Pankará (PE), coletividade indígena em luta
1
Neste trabalho uso itálico para termos nativos e para destacar outros termos. Emprego “aspas” quando procuro
provocar o leitor com relação a certos termos: “misturados”, por exemplo.
2
Refiro-me "ao processo de emergência histórica de uma fronteira socialmente efetiva entre coletividades,
distinguindo-as e organizando a interação entre os sujeitos sociais que se reconhecem - e são reconhecidos -
como a elas pertencentes" (BARRETO, 1999, p. 93).
3
Termo nativo (Pankararé) usado em referência ao processo histórico de emergência e organização social do
grupo.
8
pelo reconhecimento étnico e territorial. Porém, esse tipo de estudo demanda um espaço de
me no espaço sagrado do grupo, além de não possuir nenhuma forma de financiamento nem
quiosque da Sayonara no intervalo entre uma aula e outra, que o dileto docente lança uma
evangélicos à pratica do Toré4, dança ritual que constitui marca de indianidade de grande
Então, tratei de entrar em contato com um colega da antropologia 5 que nos últimos
área Potiguara a partir de um contato inicial mediado por esse pesquisador. Assim, das
observações e conversas mantidas no meu primeiro contato com os Potiguara surgiu a própria
E, de fato, o título desta pesquisa tem origem na frase “Tupi or not tupi, that is the
de 1928. Creio que a marca da reviravolta estética proposta por esse autor é o elogio da
da identidade brasileira.
ciências sociais, também figurava em meu juízo tais imagens. Posto assim, é corriqueiro
escutarmos enunciações que afirmam que “tem muita terra pra pouco índio”, que os índios são
uns “bêbados preguiçosos”, além de não terem mais a vivacidade de uma cultura "própria" e
Com efeito, até meados da década de 1980, o ponto de vista teórico predominante
sobre os índios do Nordeste pressupunha destacar “os efeitos da aculturação e seu diagnóstico”
(OLIVEIRA, 1999a, p. 12), desembocando em conclusões que fixavam uma série de dúvidas
como unidades sociais passíveis de estudo, já que não apresentam a densidade “tradicional” e
que definem o grupo. Desse modo, estarei trabalhando com a noção de etnografia multilocal
10
valorativas orientadas pelas práticas de religiosidade – que atuam sobre a população Potiguara.
Neste estudo tomo por mote teórico de investigação a seguinte formulação de Weber:
Uma definição daquilo que "é" religião é impossível no início de uma consideração
como a que segue, e, quando muito, poderia ser dada no seu final. Mas não é da
"essência" da religião que nos ocuparemos, e sim das condições e efeitos de
determinado tipo de ação comunitária cuja compreensão também aqui só pode ser
alcançada a partir das vivências, representações e fins subjetivos dos indivíduos - a
partir do "sentido" -, uma vez que o decurso externo é extremamente multiforme. A
ação religiosa ou magicamente motivada, em sua existência primordial, está
orientada para este mundo. As ações religiosa ou magicamente exigidas devem ser
realizadas "para que vás muito bem e vivas muitos e muitos anos sobre a face da
Terra". (...). A ação religiosa ou magicamente motivada é, ademais, precisamente
em sua forma primordial, uma ação racional, pelo menos relativamente: ainda que
não seja necessariamente uma ação orientada por meios e fins, orienta-se, pelo
menos, pelas regras da experiência (1991, p. 279).
Nesse sentido, ao invés de trazer para a discussão uma referência à religião como
dos objetos da tradição religiosa como formas de conhecimento diante das atividades práticas
do cotidiano.
8
Como nos diz Marcus (1991, p. 204), “a identidade de alguém, ou de algum grupo, se produz simultaneamente
em muitos locais de atividades diferentes, por muitos agentes diferentes que têm em vista muitas finalidades
diferentes”.
11
condutor da análise de modo a realçar as maneiras de viver e declarar sentido diante dos
processos concretos de interação que envolvem os atores sociais no mundo da vida, uma vez
que intento recuperar a tentativa weberiana "de demonstrar que os ideais religiosos e as
atividades praticas avançam juntos aos tropeços à medida que se deslocam pela história"
(WEBER, apud. GEERTZ, 2000, p. 153). Então, a diferença está no tipo de olhar imprimido
religião.
Dessa maneira, podemos inferir que nos mais variados contextos, diferenças religiosas
são acionadas a todo o momento para enfatizar fronteiras simbólicas e cursos de ação que
comunicam a trajetória social dos indivíduos. Logo, não concentrarei esforços para mostrar a
social9.
9
Ver Durkheim, 1989; e Geertz, 1989.
12
brasileira, constata-se uma frieza de ânimo para efetivação de pesquisas sobre os índios do
Nordeste. Em verdade, o teor das formulações suscita até mesmo uma indagação: existem
índios no Nordeste?
colombianas, "misturados" e “integrados” ao modo de vida “civilizada”. Ora, são grupos que
compartilham elementos de cultura com seus vizinhos regionais, ou seja, não diferem suas
1999a).
Portanto, a etnologia indígena no Brasil, até fins da década e 1980, não acreditava
indígenas eram tratadas pelos teóricos da aculturação "como bolas de bilhar, homogêneas e
autocontidas, e distintas apenas por sua coloração e ordem de entrada no jogo" (WOLF, apud.
grupos tribais.
de inventários de traços culturais para o de uma arena de relações entre atores sociais diversos
1988).
interna dos grupos, para, dessa forma, romper com o modelo naturalizado de sociedade "e
contexto de interação social. Ou seja, a sociedade deixa de ser vista como uma entidade
processos sociais vividos por pessoas de carne e osso em "atividade contínua de produção de
assume o estudo dos conflitos de modo a identificar os cursos de ação e mapear as fronteiras
Assim, a confluência entre antropologia e história nos coloca numa posição mais
favorável para captar a potencialidade etnográfica dos fenômenos étnicos organizados (e que
interesse pela temática dos índios do Nordeste, propiciada por “uma abordagem dinâmica das
relações interetnicas em que o contato não se reduz a uma percepção dualista da realidade
(índios versus não-índios)” (MARTINS, 1999, p. 201), emerge conjuntamente aos processos
de mobilização política da identidade que nos últimos vinte anos acenam por entre
grande nação Tupi que, segundo os cronistas, senhoravam, a costa do Brasil por 400 léguas
entre a Paraíba e o Maranhão. Admite-se que, provavelmente, mais de cem mil potiguaras
povoavam essa região. Atualmente os Potiguara estão firmados no litoral norte do estado da
Paraíba, mais precisamente nos municípios de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto.
até o presente uma carência de trabalhos antropológicos que focalizem a experiência histórica
Paulo Marcos Amorim (1970), que procurou estabelecer a tese dos “índios camponeses”.
evidencia o limiar da ordem tribal à ordem nacional. Esta pesquisa se apresenta como ponto
Roberto Cardoso de Oliveira (1964) que orientou, desde a década de 1960, sobremaneira o
campo dos estudos das relações interétnicas entre índios e brancos no Brasil, que, no início da
década de 1980, foi superada por abordagens centradas nos processos históricos de construção
de etnicidades. Esse autor chamou fricção interétnica "o contato entre grupos tribais e
das vezes, conflituosos, assumindo esse contato muitas vezes proporções 'totais', i. e.,
envolvendo toda a conduta tribal e não-tribal que passa a se moldada pela situação de fricção
em mostrar os fios estruturais que traçam a "totalidade sincrética" de trânsito do grupo tribal à
população nacional.
É justamente essa postura teórica, típica de uma etnologia das perdas de traços culturais
arquivísticos e bibliográficos sobre os Potiguara desde o século XVI, e, ao tratar das relações
desses índios com as agências coloniais e órgãos tutelares (primeiro o Serviço de Proteção ao
Índio [SPI] e depois a Fundação Nacional do Índio [FUNAI]), acabou delineando um perfil
totalmente negativo do grupo no esteio do ideário da mudança cultural que imprime estados
desfigurativos das peculiaridades do grupo étnico. De toda forma, vale dizer que o trabalho de
Moonen ainda é referencia para consulta de dados históricos importantes sobre os Potiguara.
Outro trabalho acerca dos Potiguara foi desenvolvido por Ana Lúcia Lobato de
Azevedo (1986), que teve como foco de análise situar a atuação do Estado no estabelecimento
de terras indígenas (e, assim, tomando os Potiguara como estudo de caso), tanto por meio do
parâmetros ditados pelo Estado-nação. Ou seja, a autora não perde de vista as "relações de
(Campina Grande) e a dissertação de mestrado (UFPR), ambas produzidas por José Glebson
Vieira (1999; 2001). Na monografia, Vieira busca analisar como o grupo indígena Potiguara
17
constrói e manipula mecanismos na (re)construção da sua identidade étnica. Esse autor acaba
que é ser índio, que o fazem perder de vista uma discussão do que é ser Potiguara. A
território indígena e mobilização política, deixando de lado questões relevantes que convergem
para o foco de minha pesquisa quanto à interconexão entre a experiência coletiva da etnicidade
Tomando por objeto a mesma sociedade indígena, Vieira almeja em sua dissertação
apresentar uma etnografia dos Potiguara evidenciando “de que modo os Potiguara concebem a
classificado” (2001, p. 2). Esta pesquisa, ao promover uma discussão etnográfica por meio da
os estudos sobre a etnicidade Potiguara, uma vez que ignorou os processos sociais que
p. 19).
concorrem para uma visão legítima de mundo num dado contexto de interação social. Dessa
forma, passo agora a descrever sucintamente meu percurso como pesquisador na área
indígena Potiguara, registrando a trama de relações articuladas que envolveram minha prática
etnográfica.
respectivos finais de semana, perfazendo um total de dez dias. Realizei um survey na área
antropologia da UFPB que integra o SEAMPO. Este grupo de trabalho social apresenta-se na
Sendo assim, minha presença foi inicialmente identificada como “o menino da universidade”.
professor Maurino em viabilizar a minha estadia na cada de seu irmão - que se encontrava
desocupada - num final de semana na Baía da Traição, não recebi qualquer tipo de apoio
financeiro para a realização de meu trabalho de campo, como ainda para materiais necessários
Na comunidade Potiguara, fui sempre muito bem recebido, fato revelado na extrema
hospitalidade das famílias que me acolheram em suas residências durante a maior parte da
diferentes pessoas, fiando meu percurso como etnógrafo, andarilho “familiar”, aliado e
como lócus para a minha atividade etnográfica esta intimamente relacionada à localização das
residências onde fiquei hospedado. Recebi hospedagem na Vila e no Galego, aldeia contígua
a aldeia do Forte. Aponto que todas as pessoas com as quais conversei demonstravam
apresento trata-se de uma construção minha, “uma abstração com finalidades analíticas,
composta dos padrões de interdependência entre os atores sociais, e das fontes de canais
institucionais de conflito” (OLIVEIRA, 1988, p. 57). Assim, importa dizer que esta pesquisa
produzido pela historiadora Thereza de Barcellos Baumann (1981, apud. MOONEM, 1992, p.
apóio-me amiúde nesse relatório para apresentar a constituição histórica dos Potiguara na
Paraíba.
então, enfatizar a maneira pela qual as formas culturais enredam "uma gama de modalidades
situações concretas e das normas em conflito traduzidas em prática pelos indivíduos como
método elaborado por Van Velsen (1987), baseado na análise seqüencial de situações sociais
que focalizam gente, lugar e tempo. O plano do relato etnográfico é apresentar a participação
de vários atores sociais nos universos de discursos múltiplos evocados no âmbito das formas
No curso do trabalho de campo, a coleta de dados e dos relatos individuais foi efetivada
significativas no que se refere aos sentidos possíveis no campo Potiguara. Como procedimento
O período das minhas idas a campo não coincidiu com qualquer data do calendário
católico anual permeado de festejos dedicados aos diferentes santos padroeiros das aldeias.
Logo, este importante contexto de interação demanda a efetivação de uma descrição densa
questões e dúvidas acerca das interfaces semânticas desse fenômeno social que precisam de
Desse modo, tratando-se de uma pesquisa inovadora em meio de uma sociedade com
referentes e movimentos de tipo étnico, acredito que esta monografia inscreve-se numa
no que diz respeito à produção etnológica que trabalha no sentido de resgatar a plena
como também, às questões básicas postas pela religiosidade nas ações práticas da vida.
Portanto, este estudo configura-se enquanto esforços de pesquisa iniciais que pretendem
dos Potiguara, chegando, enfim ao exame da configuração atual dessa população indígena.
10
“É importante entender que a concepção de campo é antes metodológica e instrumental do que uma construção
lógico-abstrata e teórica” (OLIVEIRA, 1988, p. 42). A idéia de campo é valiosa para romper com imagens
arquitetônicas e fechadas de sociedade, em favor da descrição de uma arena social composta “de atores
diretamente envolvidos nos processos estudados” (SWARTZ, apud. OLIVEIRA, 1988, p. 41).
22
surgimento das distinções religiosas no âmbito de uma etnicidade comum. Nesse sentido,
procedo a uma breve avaliação critica dos conceitos de Cultura e Sociedade para fornecer um
fornecidos pelos atores sociais da pesquisa. Nesses termos, com Moermam (1965) e Barth
(1969) aparecem novas perspectivas para o estudo dos grupos étnicos. Moermam esclarece
que a pertença a um grupo étnico é dada pela auto-identificação do sujeito e pela atribuição
étnica manifestada pelos membros da comunidade. Para esse autor o que está em jogo é uma
anos 1960, vai conceber um grupo étnico como tipo de organização. Esta visão conceitual
expressa uma postura critica à concepção de grupo étnico como “unidade de cultura”. Barth
destaca que “é muito mais vantajoso considerar essa importante característica como uma
organização dos grupos étnicos” (BARTH, 2000a, p. 29). Nesse sentido, a ênfase da análise
1999b, p. 105) obstinado em tratar as populações indígenas como lápide cultural daqueles
povos que sempre existiram. Saliento que este trabalho histórico não visa marcar a
definir comunidade indígena como aquela que apresenta um contínuo histórico com os
índios no quadro da sociedade nacional. Assim, se é inevitável que o patrimônio cultural das
modo algum inevitável que desapareçam em sua unicidade e abdiquem de seu posicionamento
histórico.
GRUNEWALD, 2001, p. 62) ao longo destes 504 anos de Brasil. Sendo assim, como aponta
Oliveira (1999a, p. 31), estabelecendo um elo entre substancialistas e pragmatistas 11, “o que
11
Importa constatar que desde o início dos debates teóricos sobre a etnicidade uma encruzilhada que separa
posturas se apresenta: em uma margem, os substancialistas, que percebem a etnicidade centrada nos laços
primordiais (parentesco, língua, etc.); na outra, os pragmatistas, que pensam a etnicidade na direção de
posicionamentos políticos que se dispõe na interação em situações sociais construídas em contextos históricos
específicos.
25
seria próprio das identidades étnicas é que nelas a atualização histórica não anula o
dos Potiguara, grupo originalmente da família lingüística tupi. No inicio do século XVI, os
Varias incursões portuguesas que tentaram conquistar a Paraíba foram repelidas pelo
mor (maior) e mais guerreiro e prático gentio do Brasil. Inclusive o nome Baía da Traição,
segundo o cronista Soares de Sousa, surgiu por conta de um combate que resultou na morte de
alguns portugueses e castelhanos que se perderam nas terras dos Potiguara. Os índios da
território ocupado pelos Potiguara. Esta população foi realmente rechaçada para “além do rio
Paraíba, em direção ao Rio Grande do Norte, exatamente para a região que ainda hoje
12
Segundo Seyferth, “é possível pensar a etnicidade como uma qualidade da qual se participa, e que expressa a
ênfase na atribuição de membro de um grupo étnico” (Grünewald, 1999, p. 157).
26
ocupam, entre o Mamanguape e o Camaratuba, que se situa fronteiro aos limites daquele
É a partir desse período que podemos falar da “história da catequese das missões na
Paraíba” (BAUMANN, apud. MOONEM, 1992, p. 155). Com efeito, os relatos da vitória da
armada portuguesa sobre o gentio potiguar estão no documento intitulado Summário das
armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do Rio Paraíba 13,
acompanharam a expedição bélica liderada por Martin Leitão naquela famigerada ofensiva.
leis promulgadas (1537, 1548, 1570 e 1587) que concediam aos índios o direito a “bons
tratos”. Em 1537, através de uma bula expedida pelo papa Paulo III, foram declarados capazes
de receberem a salvação cristã, uma vez que tiveram atestada sua pertença ao gênero humano.
mesmo, é de um rigoroso banho de lixívia em suas almas sujas de tanta abominação, como a
antropofagia de comer seus inimigos em banquetes selvagens; a ruindade com que eram
manipulados pelos demônios através de seus feiticeiros; a luxuria com que se amavam com a
naturalidade de bichos; a preguiça de sua vida farta e inútil, descuidada de qualquer produção
mercantil” (RIBEIRO, 1997, p. 57). Competia, então, à Igreja tutelar os índios à frente das
missões religiosas.
13
Escrito aproximadamente na década de 1570.
14
De acordo com o “Sumário”, geralmente dois padres assistiam as missões na Paraíba.
27
uma notícia certa dos aldeamentos pelos franciscanos com os Potiguara da Baia da
Traição e Montemór no inicio do século XVII, podemos ter a certeza de que eles
habitavam essa região, como nos provam, indubitavelmente, os documentos que os
holandeses nos deixaram à respeito da Paraíba, por ocasião da ocupação holandesa
do Nordeste (BAUMANN, 1981, apud. MOONEM, 1992, p. 159).
Nos séculos XVIII e XIX, a ordem religiosa dos carmelitas dirigia missões nas aldeias
de São Miguel da Baia da Traição e de Monte-Mor (ou Preguiça). É possível certificar a partir
de um enunciado do Frei Carmelita André Pratt, que o grupo da Reforma do Carmo já estava
na região desde o final do primeiro decênio do século XVII. De fato, “em 1702, uma Carta
Régia de 27 de março estabelece o poder espiritual dos missionários nas aldeias indígenas da
Paraíba. Em 9 de maio de 1703, outra Carta Régia determinava que se construísse uma igreja
declara ‘mandar cuidar da conversão dos índios, enviando missionários para as suas aldeias”
(idem 163).
católica – visto que os mesmos, “em muitos casos, comiam ainda carne humana ou
15
Para Oliveira (1999a, p. 20) trata-se de “um processo de reorganização social que implica: i) a criação de uma
nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; ii) a
constituição de mecanismos políticos especializados; iii) a redefinição do controle social sobre os recursos
ambientais; iv) a reelaboração da cultura e da relação com o passado”.
16
De acordo com os censos demográficos coloniais, em 1777 havia 39.405 índios aldeados nas capitanias de
Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Na Paraíba a população indígena era de 5.182 indivíduos,
representando 10,7% da população dessa capitania (PORTO ALEGRE, 1998, p. 9-10).
28
contingente de “índios mansos” no intuito de usá-los como mão-de-obra “aliada” nas áreas de
23), com “uma intenção inicial explícita de promover uma acomodação entre diferentes
(ibid).
por pesca e caça e invasão de roças nas áreas ocupadas por segmentos da sociedade nacional.
Logo, havia um pretexto perene para a “guerra justa”, que estabelecia o “direito” de aprisionar
dissimulações da “guerra justa”, justificada pela suposta noticia contida numa carta enviada
ao Rei, em 12 de fevereiro de 1732, por Francisco Pedro Mendonça Gorjão, Capitão Mor da
Paraíba, de que os índios daquela capitania (assim como os do Ceará) estariam planejando
matar os brancos na noite da missa de Natal, vários indígenas insurretos foram presos. As
Catherina – opondo-se ao cativeiro dos índios foram objeto de uma Consulta do Conselho
determinou uma sindicância para averiguar as “mortes havidas nas prisões de uns feiticeiros e
A despeito das Cartas Régias, Alvarás e Regimentos de 1710, 1728, 1755, 1758, 1785
e 1804, que resguardavam a posse de terras aos índios, especialmente àqueles que se
inúmeras medidas – baseado no discurso da liberdade dos índios – a expulsão dos jesuítas, a
reforma dos aldeamentos, que passariam a vilas (perdendo, assim, a tutela eclesiástica) em
favor do controle direto por governantes e administradores coloniais, com incentivo aos
légua quadrada outorgada às missões religiosas. Ficaram, assim, fixadas a Vila de São Miguel
da Baia da Traição e a Vila de Nossa Senhora dos Prazeres de Monte-Mor. Conforme indica
designar os aldeamentos de Monte-Mor e Baia da Traição, “o que nos leva a supor que,
talvez, tivesse realmente havido uma concessão especial de sesmaria para estes índios,
reconhecimento público dos índios Potiguara na Paraíba, que progressivamente tinham suas
terras invadidas sob as mais variadas alegações: “de compra aos mesmos índios ou àqueles
Governo Imperial procurou levantar informações acerca das situações fundiárias das
províncias. Dessa maneira, “os governos provinciais vão, sucessivamente, declarando extintos
legisladores, a justiça, a policia, e outras categorias de atores sociais – vão consolidando seus
quinhões de terra, seja por arrendamento, seja por compra de terra aforadas, seja no mais das
para áreas ainda pouco habitadas, onde se refugiam até serem novamente alcançadas pelas
frentes econômicas, (...) abandonando as aldeias e vagando entre as fronteiras das capitanias,
Paraíba, o “Publicador”, divulgou notícias que atestavam a posse de terras dos índios de
Monte-Mor e Baia da Traição e a expropriação destas áreas. Lutando contra uma miríade de
garantia de direitos às terras dos aldeamentos, que por decreto já haviam sido concedidas pela
Coroa Portuguesa. Segundo a tradição oral da comunidade Potiguara, o Imperador Dom Pedro
II doou aos índios as sesmarias de São Miguel da Baia da Traição e de Nossa Senhora dos
indios em contato com a população nacional perdiam o direito às terras que habitavam”
(PORTO ALEGRE, 1998, p. 3). Dessa maneira, no ano de 1862, uma decisão imperial
resolve lotear as terras dos aldeamentos. Demarcadas as terras e divididos os lotes, cada
família indígena receberia um quinhão e as áreas restantes seriam repartidas entre os não-
índios.
Justa Araújo, que entre 1866 e 1867 realizou a medição e demarcação dos perímetros das duas
sesmarias. Contudo, Justa Araújo faleceu em 1868, deixando divididas somente as terras de
Monte-Mor, em que “foram delimitados os lotes de 165 índios e dos arrendatários, que foram
“apresentou também o quadro da aldeia de Monte-Mor com 75 posses para índios, não
distribuídas” (PERES, 2004). Logo, como não fora nomeado outro profissional para efetivar a
serviu como mote para invasão compulsória das terras indígenas. Ora, os terrenos doados em
lotes aos índios de Monte-Mor não podiam ser negociados, já que eram intransferíveis em
razão do Decreto de 27 de outubro de 1831, que estabeleceu a condição de órfãos dos índios –
tutelado do Estado – o que impedia que suas terras fossem alienadas sem assistência judicial 17,
e, de qualquer forma, negava que fossem despojadas suas terras. Cabe ressaltar que as terras
17
“O arrendamento de terras indígenas era legal, conforme a Lei de 1845 dizia, exigindo-se apenas, que se
observasse o prazo de três anos e que o Diretor ou regente dos índios, efetuasse uma sindicância a respeito da
honestidade dos possíveis rendeiros” ( BAUMANN, apud MOONEN, 1992, p.175).
32
caso dos índios da Paraíba, podemos afirmar que os Potiguara continuamente enfrentaram um
arbitragem de conflitos cruéis. Para tanto, “os governos provinciais afirmam reiteradamente
que não há mais “tribos selvagens”, que as aldeias estão vazias ou foram extintas e os índios
endossado pelos governos provinciais, figuras políticas locais e colonos poderosos. Tal
mais geral, implementado com virulência pela política indigenista do Governo central para
Mas, a verdade é que, indubitavelmente, apesar das extremas pressões para desistirem
de seu território tradicional, os índios Potiguara jamais deixaram de marcar sua ocupação
ao Índio (SPI), que ideologicamente primava pelos meios para integrar os índios à nação
registros no SPI acerca dos índios Potiguara principiam no inicio dos anos 20, embora uma
primeira visita já acontecera em 1913, que teve como questão essencial criticar a atuação
da família Lundgren, ou seja, justamente as pessoas que se apoderavam dos títulos de lotes
confundidos com a população regional. Somente em 1932 é fundado P.I. São Francisco,
localizado na aldeia São Francisco, que, em 1942, é transferido para o Forte (uma fortificação
de defesa colonizadora daquela faixa litorânea), passando, então, a denominar-se P.I. “Nísia
lotes de terras indígenas, onde a própria existência da área indígena estava condicionada a
relações entre índios e brancos, evitando o conflito e prevenindo seus malefícios para os
índios (extermínio, correrias, escravização, etc). Para a organização política das populações
cargo absoluto de poder político na gerencia dos benefícios e recursos, dos assuntos
fundiários e agrários.
A Comunidade Potiguara
É importante frisar que nesta investigação procuro evocar o caráter gerativo dos dados
culturais entre as aldeias, como forma de proporcionar “uma conjuntura cultural congruente”
com o intuito de relevar o sentido da etnicidade Potiguara. Todavia, não posso deixar de
Os Potiguara são falantes do português, sendo que a língua Tupi começou a ser
ensinada nas escolas das aldeias a partir de 2002, a fim de incentivar a afirmação da
identidade étnica dos mais jovens no seio da promoção mais abrangente do resgate de sua
cultura indígena.
pequenos posseiros, por terras agricultáveis. E, apresentando um caso de extrema pressão para
concentração fundiária. Esta população está distribuída em três aldeias: Jaraguá, Lagoa
Grande e Nova Brasília; e em dois pequenos núcleos urbanos: Vila Monte-Mor e Marcação.
Vivem, então, numa área territorial onde ficava a antiga Sesmaria de Monte-Mor (ou
Preguiça), que fora repartida em lotes, contribuindo, assim, para a posterior expropriação das
Clemente Peres (2004) definiu a Terra Indígena Potiguara de Monte-Mor com a superfície de
7.487ha e com o perímetro de 62km, residindo dentro desta área identificada 3.002 indivíduos
e 874 famílias.
agricultura estão ocupados pelas plantações de cana, confinando o cultivo da terra pelos
frutos da região e de espécies vegetais que geram produtos para o consumo doméstico. O
transformada em farinha compõe a renda familiar, sendo vendida em casa e nos municípios de
A família Lundgren, grupo empresarial da Companhia de Tecidos Rio Tinto (CTRT) 18,
instalou em 1924 sua fábrica na região que mais tarde daria origem a atual cidade de Rio
Tinto. Na memória coletiva da população indígena que habita toda aquela área, estão
pela aura de terror imposta pelos Lundgren, com a utilização das práticas desrespeitosas, de
tortura, e execuções sumárias, cometidas pelos vigias da Companhia. Através de prisões por
liberdade.
Lundgren. Mas também pelo direito de posse concedido pela doação da Sesmaria dividida em
lotes pelo engenheiro Justa Araújo. É possível ainda encontrar títulos de terra entre uns
poucos índios já bastante idosos ou nas mãos de parentes dos “índio velho”. As historias
terríveis do “Tempo da Amorosa” são contadas por pessoas da mais variadas faixas etárias.
18
Nacionalmente representada pela extinta Casas Pernambucanas.
36
As coisas daqui eu vou falar pra você, aqui em 40 foi um ‘quebra’ muito grande, foi
um ribuliço muito rim. Era a família dos Lundgren atrás de tomar as terras dos índios,
morreu índio, se acabou-se índio, muita gente sumi-se por aqui, porque a minha vó ta
enterrada ali, mas o meu avô...Eu não digo isso escondido não, to dizendo mesmo.
Essas terra aqui de monte-mor toda vida foi dos índio, nunca que não foi de ninguém.
Os usineiro e a companhia tomou, expulsou os índio daqui debaixo de cacete, tem
muito índio ainda pelo mundo perdido que ainda não veio aqui. Aquela igreja foram
os holandeses que construíram, mas foram os índios que carregaram as pedra pra
levantar aquela igreja. Os meus avô moravam numa casinha de palha ali junto daquela
igreja, acabaram com tudo, tocaram fogo em tudo. Em 40, nos fugimo daqui de dez
horas da noite com as nossa trochinha na cabeça, só com as roupinha da gente. Era
uma carreira de casas dos índio veio, eu seio que meus avô foram acabado. Aqui era
só cana meu filho, mas agora os índio tão ficando sabido, voltando sem medo mesmo,
mas tinha medo de dizer que era, e quem era doido aqui de dizer que era índio, se eles
soubessem que era índio mandava buscar pra matar pra mode de tomar as terra. Nos
tamo liberto graças a Deus em vista do que era. De primeiro aqui era muito sacrifício,
só Deus e Nossa Senhora é que sabe.
desajustados” (Ribeiro, 1970). Assim, raciocinando nos termos de Darcy Ribeiro esta auto-
transfiguração étnica que preserva a noção de terem uma origem indígena, ou seja, tal
camponeses sob o impacto da civilização. Ora, já que são “mais ou menos” índios, que
identidade étnica por parte de alguns grupos considerados extintos" (PORTO ALEGRE, 1998,
A relação de povos indígenas do Nordeste incluía cerca dez etnias, por volta da década
Oliveira, acabou por fornecer importantes subsídios, uma vez que proporcionou a gênese de
verdade, estas comunidades estão envolvidas, cada uma enfrentando situações de interação
Dessa maneira, a discussão travada acerca dos processos de afirmação étnica das
brasileira, alem de levantar um questionamento sobre “a nossa postura diante dos desafios da
emergirma como grupo étnico por entre descontinuidades históricas – por “entre-lugares” que
etnográfico com a pesquisa histórica e o acoplamento da memória social do grupo como parte
“não significa de modo algum que nas outras unidades sociais, portadoras de etnônimos mais
suposta condição ‘natural’, ou que remontassem à ‘origem dos tempos’, ou ainda que
107).
Potiguara de Monte-Mor é mister ter em mente os fluxos e refluxos pelos quais atravessaram
território. Nesse sentido, a fuga para as grotas da mata e a socialização castrada de uma
A construção do grupo indígena de Monte-Mor deve ser vista como uma forma de
organização política, onde se invoca uma origem e trajetória histórica comuns no movimento
interação social em permanente reelaboração cultural entre índios e não-índios, pois, como
afirma Barth, “as categorias étnicas são veículos para a organização social das diferenças, e
que isto só ocorre em um contexto de interação” (BARTH, apud. OLIVEIRA, 1999b, p. 107).
39
território que “toda vida foi dos índio, nunca que não foi de ninguém”. A estratégia política
de sua etnicidade está "gravada" no umbigo 19 de seus membros, que trazem consigo um
sentimento de conexão intima com a região que fora expropriada dos índio véio de Monte-
Mor.
Enfatizo, então, que a emergência dos índios de Monte-Mor está vinculada a uma
situação histórica particular que engendra: uma relação com o espaço jurídico-político do
entidades públicas.
auto-atribuem como “da parte” dos índios. Em um núcleo urbano marcado pela presença de
(BOURDIEU, 1989), constituindo a fronteira étnica que canaliza a vida social dos atores em
19
Alegoria retirada dos versos de Torquato Neto ("desde que saí de casa, trouxe a viagem da volta gravada na
minha mão enterrada no umbigo, dentro e fora assim comigo, minha própria condução".) utilizada por João
Pacheco de Oliveira para explicitar a "poderosa conexão entre o sentimento de pertencimento étnico e um lugar
de origem específico, onde o indivíduo e seus componentes mágicos se unem e identificam com a própria terra,
passando a integrar um destino comum" (OLIVEIRA, 1999a, p. 31).
40
interação. Contudo, é preciso ter em mente que a metáfora da fronteira não deve ser
confundida com algum sistema arquitetônico que encarcera a soma de bens culturais ou
polariza dimensões territoriais exclusivas. Indica, com efeito, “o ponto a partir do qual algo
começa a se fazer presente” (HEIDEGGER, apud. BHABHA, 2001, p. 19), relevando uma
Para conhecer os índios que habitam a Vila de Monte-Mor era preciso inteirar-se da
promovendo, nesse sentido, uma integração social na “tentativa de fazer sua própria historia
buscando mover-se além das condições impostas sobre eles” (GRUNEWALD, 1999, p. 153).
sentimento de vergonha ou descrédito categórico da mistura acionada pelos atores sociais que
não se identificam como indígenas; sendo que muitos sujeitos são apontados como da
descendência, mas que “não acreditam na luta, são igual a São Tomé”20.
Num descampado que antes era assolado pela invasão das plantações de cana-de-
açúcar da Usina Miriri, e que liga a fileira de casas da vila operária a mata da Encantada, área
que faz parte do universo diaspórico de muitas famílias que ali fincaram suas casinhas e
20
Tomé, um dos apóstolos de Jesus Cristo, recusa-se a acreditar na ressurreição do Mestre informada pelos
outros apóstolos. Disse ele que “teria de ver para crer”. Cristo aparece diante do incrédulo e diz: feliz daqueles
que crêem sem precisarem ver.
41
idealizado pelo cacique Vado e posteriormente construída, uma oca para a dança do Toré e
quatro pequenas ocas para servirem como oficinas de artesanato para jovens e crianças.
O Toré é dançado aos sábados geralmente a cada quinze dias, no qual participam
também índios de outras aldeias, que vêm comungar dessa brincadeira, que se configura como
pelas tensões que envolvem constantes disputas por terra, demonstrando sentimentos
compartilhados pelos potiguaras que os unificam como grupo ao expressar uma mente
estadual, que, seguindo este sentido, nos leva à Baía da Traição. As aldeias situadas no
acesso à Baía da Traição, pois do outro lado da rodovia o território está amplamente tomado
tijolos para as famílias efetivarem sua reprodução sociocultural mais digna, em vez de
delimitação que se encontram indefinidos por força de mandatos de reintegração de posse aos
publicação no Diário Oficial da União e Diário Oficial da Paraíba dos resultados dos estudos
Pessoa, capital da Paraíba, para pressionarem a efetivação de seus direitos, visto que
sustento agrícola e suas habitações erguidas com tanto esforço. Este movimento político
do grupo através da dança do Toré, de suas vestimentas, pinturas corporais, arcos e flechas e
bordunas. A ocupação da sede durou uns três dias, até ser confirmada a publicação do estudo
A T.I. Potiguara tem como ponto referencial o município de Baia da Traição. As terras
embora esse território esteja devidamente homologado, existem problemas fundiários com
municipais contribuiu para construções de casas de veraneio por particulares de cidades como
João Pessoa, Campina Grande e Guarabira em áreas territoriais das aldeias de Coqueirinho e
Camurupim. Caso exemplar é o núcleo urbano de Baia da Traição, posto que originalmente
desintegrou a posse coletiva da área pelos índios. O verão e o carnaval passaram a atrair uma
enormidade afluência de turistas, fixando a festa carnavalesca da cidade como uma das mais
Mamanguape, ao sul, e o Camaratuba, ao norte. Estes dois rios perenes formam um conjugado
43
hidrográfico com outros riachos e córregos e lagoas, que corroboram para manter o solo fértil,
vegetal de mangues e Mata Atlântica que, mesmo restando muito pouca desta vegetação que
cobria toda extensão do litoral nordestino, representa um reduto ambiental essencial para a
batata, pequenas criações de animais, com destaque para os viveiros de camarão. A despeito
de terem um vasto litoral diante de sua área territorial, a atividade pesqueira é de pequeno
porte. Até o momento a população Potiguara está carente de projetos que viabilizem o
domicílios de vários índios, que “se viram” com o assalariamento precário nas usinas, biscates
estabelece uma categorização indígena no quadro regional. Cada índio incrementa sua
étnico. No dia-a-dia o uso de colares identifica aqueles índios que buscam exprimir o seu
status imperativo.
importante alternativa econômica para os mais variados grupos étnicos. Ao lado do Posto
Indígena Potiguara, com uma bela visão do golfo que delineia as praias que atraem os turistas
44
para as cercanias do município de Baía da Traição, Iremar (irmão de Mané) construiu uma
oca para venda das peças de artesanato produzidas por ele. Disse-me que está inconformado
com as atitudes do cacique Djalma do São Francisco, pois, este “pega os ônibus com os turista
e leva tudinho pra aldeia dele, sem parar aqui”. Na aldeia do Galego, que fica logo após do
Forte, existem três lugares de venda de artesanato indígena. Dois deles estão situados um
defronte ao outro. Interessante foi observar que um dos estabelecimentos é uma barraca
comum feita de tijolos construída pelo artesão índio, e a outra, imediatamente do outro lado
da rua de areia fina, é uma oca muito adornada, com réplicas de índios do tamanho de
me disse Adônis – índio evangélico que reside naquela aldeia. O terceiro local de venda de
peças artesanais fica numa casa, onde na varanda o artesão índio fica ali produzindo.
Os índios que habitam a Baia da Traição vivem dispersos entre diversos segmentos
domésticos reunidos por laços de parentesco, afinidade e compadrio. Como na maioria dos
povoados litorâneos, existem as casas que ficam à beira-mar e uma rua principal que corta em
paralelo o sentido da orla, que nos leva, distando cerca de 2km, à Aldeia do Forte. O nome da
aldeia está relacionado à elevação onde se localizava uma fortificação de defesa colonizadora
daquela faixa litorânea, onde hoje está situado o Posto Indígena Potiguara (administrado pelo
órgão tutelar do Governo Federal, a FUNAI), marcando o inicio da área indígena, uma ladeira
Na Aldeia do Forte se tornou patente para mim a identificação categórica caboclo, que
fornece a via de fronteira étnica que designa o índio em oposição aos particulares, os
grau com o sangue do branco. É precioso salientar que, “cada grupo repensa a ‘mistura’ e
afirma-se como uma coletividade precisamente quando dela se apropria segundo os interesses
Grunewald (2001) examinou também que os Pataxó do extremo sul da Bahia afirmam-
se como “os primeiros índios a ter contato com os brancos” (2001, p. 22). Mas, é necessário
etnicidade Potiguara. A idéia de terem sido o “escudo” para os “parentes” que habitam os
branco de aniquilá-los como coletividade étnica distinta. Na rica entrevista concedida a mim
pelo índio Manoel (Mane do Forte), ele se valeu desse discurso para afirmar-se como índio
“desnaturalizando a mistura”, posto que é membro de uma população aguerrida que serviu de
“escudo” para os outros índios. Mané me explicou que a única coisa que resta pra “fazer a
cultura funcionar” é o Toré. Apontou que no Sítio ainda têm “aqueles caboclo dos olhinho
Como bem indica Grunewald (1999, p. 156) a partir de sua leitura de Bourdieu (1989),
“está em jogo aqui, portanto, ‘a revolução simbólica contra a dominação simbólica’ – e uma
estratégia possível aí é a de uma reapropriação da visão dominante sobre o grupo, por parte do
próprio grupo, ou seja, um grupo pose se apropriar de características impostas a eles pelos
Neste ponto, considero essencial para reconhecer as formas de identificação que atuam
no cerne de uma etnicidade comum, relevar que recai sobre os Potiguara de Monte-Mor o
Vila Monte-Mor, uma das “puxadoras” do Toré Potiguara apontou me dizendo: “Ó pra aí!
Isso é um índio?”.
razão das cidades que cresceram dentro da área indígena, que marcou um intenso
Potiguara, comentou que já teve que explicar para aquela índia que índio não é aquele que
“tem cara de índio”. Zito, índio da Vila Monte-Mor conta que muitas vezes sua comunidade é
chamada como “um bando de sem-terra por outros índios”. Por conseguinte, observei que não
forma, esta comunidade está empenhada em sua mobilização política e cultural. Dançam o
toré desde o inicio da década de 1990, sendo um dos torés mais “arroxados” das comunidades
Potiguara.
liderança indígena durante vários anos), “antigamente só tinha toré no São Francisco, hoje
tem toré em tudo que é aldeia”, querendo, dessa forma, me dizer que o toré de verdade era lá,
no Sítio. De fato, a Aldeia do São Francisco aparece nos discursos dos potiguaras como o
lugar original do índio velho, referencia espacial para muitos índios afirmarem o status
com as irmãs Caranguejeiras, elas justificaram o domínio que tem da tradição do toré
enfatizando que “os nosso avô eram tocador de Toré do São Francisco, viu!”.
É importante também atentar para o fato de que a idéia da “mistura” pode ser acionada
para reforçar clivagens faccionais (OLIVEIRA, 1999a). Existe na área um intenso conflito
ligadas ao Cacique das Aldeias – Djalma. Um evento que ilustra a situação tencional foi
47
do Sul, e, aproximando-se do stand destinado aos índios Potiguara, reconheci uma índia que
avistei certa vez no Encontro da Nova Consciência (Campina Grande), então, perguntei para
um dos índios que ali estavam quem era aquela senhora, e ele me respondeu que era a pajé
Potiguara, irmã do cacique dos Potiguara. Tentei puxar assunto relatando meu intuito de
estudo entre a sua comunidade, revelei que havia conhecido Caboquinho numa visita ao
grupo. O interlocutor respondeu-me num tom lacônico: “o cacique dos Potiguara é do São
Francisco”. Nas minhas idas a campo confirmei que há uma disputa constante de poder entre
as facções que citei. Djalma, morador do Sítio, procura ignorar a posição política de
acionadas pelo líder geral dos Potiguara. O arrendamento de terras a regionais apoiadas pelo
cacique Djalma se destaca como fonte de conflitos. Outra questão conflituosa é o lugar de
pajé ocupado por Fátima, irmã de Djalma. Procurarei tratar de maneira pormenorizada as
situações que envolvem os choques de legitimadade para ocupar o cargo de pajé entre os
os Potiguara, são conhecidas como as Caranguejeiras por serem “brabas”, isto é, não admitem
desrespeito contra o índio, “É você que tira seus direito quando deixa que os branco fiquem te
massacrando. A gente tá pronta pra nossas batalha, a gente tem flecha, tem borduna, tem foice
também”. Mencionei que elas tinham fama de “braba”, me responderam que “que nois não
somo braba nunca Meu Senhor Jesus, mas em cima dos nossos direito nos briga, sabe que é...
é que nos luta”: “Somos índios Potiguara somos forte somos valente/ Pra pisar em nossa terra
Índio, “é o Toré mais forte”. Segundo Estevão Palitot, nesta data festejada no ano de 2002 os
Potiguara foram procurados por pessoas da localidade Catu de Cima, situada no município de
Canguaretama, que vieram no intuito de mobilizar o reconhecimento deles como índios. Vila
missionário, se apresenta como uma comunidade que possui laços de sangue indígena com os
Potiguara. Por ventura, um dos sobrenomes mais reconhecidos entre os Potiguara é originário
de Vila Flor, a família Santana, cujo representante desta se destaca como o grande líder dos
inclusive, como liderança da aldeia Brejinho, como foi o caso do senhor Edmilson. Nesse
sentido, vale lembrar um trecho da conversa que tive com D. Antônia da Vila Monte-Mor:
“tem muito índio ainda pelo mundo perdido que ainda não veio aqui”.
49
Como já indiquei no capítulo anterior, a ênfase em meu estudo é dada naquilo que os
étnica que define o grupo. Dessa forma, procurarei também operar com a devida clareza a
detalhada dos fatos empíricos possibilita a elaboração de modelos mais adequados par dar
Acredito ser pertinente instigar neste momento uma sucinta desmontagem dos
no Brasil, Darcy Ribeiro, nos diz que as populações indígenas que sobreviveram ilhadas na
massa da população brasileira são indígenas “que transitam da condição de índios específicos,
com sua raça e cultura peculiares, à de índios genéricos. Esses, ainda que crescentemente
21
Sobre uma perspectiva critica das concepções etnográficas de cultura ver Clifford, 2002.
50
‘brasileiros, porque se vêem e se sofrem como índios e assim também são vistos e tratados
conglomerado de bens culturais nativos. Nesse sentido, Ribeiro (1970, p. 153) descreve com
em suas danças, “acreditando serem tipicamente tribais”. Dando continuidade a sua postura
que este povo mestiçado já perdeu a autenticidade do “idioma e todas as praticas tribais,
exceto o culto do Juazeiro Sagrado, se é que este cerimonial fora originalmente deles”.
comum com a antropologia caudatária das tipologias da aculturação, ambas consideram que o
compartilhamento de cultura entre os povos indígenas e seus vizinhos regionais encerra o fato
entre índios e não-índios são tão antigos quanto a própria historia do país e tão intensos que
ALEGRE, 1998, p. 5), está inevitavelmente assinalada por diferentes fluxos de cultura. Logo,
amplos. Utilizo a noção de fluxos culturais “para enfatizar que o caráter não estrutural e
ancestrais.
de que “as estruturas mais significativas da cultura – ou seja, aquelas que mais conseqüências
sistemáticas têm para os atos e relações das pessoas – talvez não estejam em suas formas, mas
tarefa de analise da vida social atenta aos "momentos de descontinuidade" (VELHO, 1997, p.
compreender como a pluralidade cultural é vivida pelos atores sociais, procurando mostrar de
que maneira co-tradições se dipõem na interação social repleta de códigos duplos e variados,
207). Ora, à medida que diversificadas correntes mágico-religiosas fluem por entre as
religiosos entre pessoas pelas relações (HANNERZ, 1997) elevam “sinais de incoerência e de
campo social Potiguara em meio a outros “vários padrões altamente significativos” para as
22
Entendo identidade como “sentido de la acción que ofrecen los actores sobre la base de la priorización de
ciertos rasgos por sobre otros, que define um princípio fuerte de articulación de las acciones,que generalmente
se estructura semánticamente em modelos identitários, y que tiende a cobrar preeminência por sobre otros
sentidos de la acción” (Gumucio, 1999, p. 124).
52
vidas dos potiguaras. Sendo assim, minha tarefa de problematizar a interconexão entre
coerência entre a esfera simbólico-expressiva de uma religião com a estrutura social. Ora, "os
fatos culturais e sociais não se apresentam em unidades em que o espaço social e o espaço
geográfico coincidem e nas quais os grupos constituintes são ordenados e estratificados nas
de questionar e traçar uma certa cartografia das maneiras de assinalar o pertencimento étnico
(Gluckman, 1987) entre uma gama variada de protagonistas – indígenas e outros -, dispostos
numa situação histórica definida no processo concreto de interação, que permanece longe de
Com efeito, chamo atenção para a “luta das classificações” (BOURDIEU, 1989)
moldada, da identidade dos grupos sociais. Assim, entoar uma visão legitima do mundo
implica rivalizar por entre antagonismos representados “por agentes muito diferentes”
“A terra é santa, a terra é mãe/ a terra é do índio, a terra é de Deus”: a tradição católica
A maior parte das aldeias Potiguara realizam festejos dedicados ao santo católico
especificas correspondentes aos diferentes santos católicos que “abençoam suas aldeias”,
comunidade com referentes indígenas. Dentre os vários festejos vinculados a diferentes santos
A edificação da Igreja de São Miguel emerge na tradição oral do grupo tendo como
suporte duas vias interpretativas. Uma descreve o achado da imagem do santo que segurava
em suas mãos uma espada e uma balança – São Miguel – quando alguns índios pescavam na
beira de um rio. A imagem foi levada pelos indígenas para a Igreja de Nossa Senhora da
Penha da Baia da Traição. Para surpresa de todos, no dia seguinte, a representação imagética
do santo havia sumido da igreja. São Miguel dessa vez seria encontrado num morro. Tal
acontecimento revelava o desejo do santo para que fosse construída uma igreja para
discursividade local afirma que a Igreja de São Miguel foi erguida pelos holandeses na época
aldeia São Francisco, onde estaria protegida. Muitos potiguaras me disseram que “não era pra
eles terem feito isso não, não foi certo”, uma vez que o lugar “tradicional” da imagem é na
“sua” igreja.
54
chamado noiteiro. É aquele que organiza os preparativos para determinada aldeia "botar a
Em geral, defronte às igrejas católicas das aldeias visualizei um cruzeiro – uma grande
limita a realização de missas nas aldeias, chegando normalmente a serem apenas uma vez por
mês ou a cada quinze dias24. Algumas vezes o culto é oferecido aos índios. Na aldeia do
Durante minha pesquisa de campo pude acompanhar os cultos do terço de Maria, no mês de
Maio, o mês das mães. A cada dia, desde o inicio do mês, uma criança arrumada com muito
zelo vestida com uma roupinha azul e branca – um anjinho – debulhava o terço de Maria
formando um canto coral em seu louvor. As missas eram conduzidas por um jovem padre no
estilo do conhecido padre Marcelo Rossi, entoando cânticos religiosos musicados com ritmos
animados.
como aquele que amiúde marca sua participação nos cultos católicos, mais especificamente
freqüentam a igreja, fato que não impede que elas tenham sua “fé em Deus”. Todavia, tal
catolicismo, pois, como indica STEIL (2001, p. 33), "enquanto as religiões afro-brasileiras e o
interação partilhados que dão sentido às fronteiras simbólicas manipuladas pelas pessoas nos
acontecimentos presentes na comunidade indígena Potiguara. Com efeito, ainda que se possa
antever “estruturas históricas de longa duração que se fazem presentes na atual conjuntura
social e religiosa” (SAHLINS, apud STEIL, 2001, p. 10) da comunidade, nesta pesquisa
orientação religiosa católica. Há católicos que buscam nos dias de missa a prática de sua ação
religiosa. Outros raramente se dirigem à igreja, atestam sua identificação religiosa a partir de
Eu não tenho religião certa... Não sou ateu, faço as minhas orações em casa. Às
vezes participo do coral da igreja. Tenho devoção a Nossa Senhora da Conceição,
ao Divino Espírito Santo e com a minha Grande Mãe, a Mãe Terra, a Natureza
Sagrada, que pra mim é como se fosse um ser vivo. Não é preciso ir pra igreja,
tenho as minhas devoções, a minha religião indígena (Iolanda, professora de escola
diferenciada indígena, irmã do cacique geral dos Potiguara – Caboquinho).
catolicismo popular tradicional reconhecido pela comunidade como conhecedor dos mistérios
de Deus e mediador do poder divino para a cura de doenças e morbidades psíquicas. Seu
56
prestígio social não advém de uma delegação institucional, emerge na vida do grupo a partir
infortúnios de nossa existência: “Ou seja, enquanto os padres e pastores contam com uma
instituição ou uma comunidade de fieis como instancia legitimadora de sua missão, os agentes
simbólica produzida e reconhecida pelo grupo social a que pertencem” (STEIL, 2001, p. 26).
Importa salientar uma ressalva feita pela antropóloga Clarice Novaes da Mota acerca
contou-me que aprendeu a “rezar” sozinha e só “trabalha com os bom irmão de luz”: “é
aqueles que morre e não é perdido, tão no claro, não tão no escuro”. Pedi para que essa
senhora de quase 80 anos me rezasse. “Pera aí meu filho, que eu vou ali fora pegá o matinho”.
Perguntei a ela se a reza poderia ser realizada com qualquer mato, respondeu que sim, mas
convém assinalar a preferência pelo “pião roxo”, “mato” conservado amiúde nos quintais e
arredores das casas. Fui “rezado” três vezes em dias diferentes para cumprir o percurso da
eficácia de proteção, em todas Dona Antonia utilizou uma folhinha de pião roxo para
plantas medicinais e daquelas que livram a alma de forças espirituais maléficas. Ao longo da
25
Ver “A Eficácia Simbólica” (LEVI-STRAUSS, 1985).
57
conversa perguntei se havia a figura do pajé entre os Potiguara 26, responderam todas em
uníssono: “Teeemmm”. Ieda “brincou” com Zuleide: “é essa aí ó”. Zuleide ficou um pouco
“encabulecida” enquanto suas irmãs davam boas risadas fraternas: “É não, eles querem, mas
eu não quero não. Tem muito índio, e a gente tem que dá de conta daquele negócio, daquele
remédio. Eu seio tudo isso, mas eu tenho minhas obrigação, fazer meus colar, minhas bolsa,
meus sutiã”. Frisaram bastante que nunca ficaram doentes elencando uma lista de plantas e
“saber rezar”, elabora também vários “lambedores”, que consiste numa preparação de ervas e
plantas medicinais específicas para determinada função curativa que tem o aspecto de um
mel. Forças espirituais maléficas como o “mau olhado” é um dos alvos primordiais onde a
figura da rezadeira desvela-se como perita nesta área: “A gente não qué o mal pra ninguém
Meu Senhor Jesus, mas nós índio tem um negócio que sabe logo se alguém qué fazer mal.
Mas que deseja o mal, a coisa volta pra essa pessoa, viu!”. Fui surpreendido quando Dona
Edleusa começou a proferir uma linda reza, entoada com emoção na descrição do
[...] Se atirarem contra mim, água pelo cano da arma há de correr, assim como
correu o leite do peito da Virgem Maria para a boca de seu divino Filho. Se
quiserem me furar, faca da mão cairá, cacete, foice. [...] Salvo eu fui, salvo eu sou,
salvo eu serei. Com as chaves do Santíssimo Sacrário eu fecharei. “Essa é a força
da oração, você reza com fé, do fundo do seu coração” (Edleusa, potiguara, Baía da
Traição).
tradição popular e uma tradição oficial -, que, ao invés de “estabelecerem entre si uma relação
outra” (STEIL, 2001, p. 34). Assim, os agentes do catolicismo popular buscam símbolos e
crenças na escatologia oficial do catolicismo para tecer suas sínteses religiosas pessoais.
Entretanto, “não é na solidão que se constrói a fé” (Geertz, 2000, p. 164), ou seja, um
26
Tratarei mais adiante sobre os conflitos que envolvem esta posição dentro da comunidade
58
potiguara que se afirma católico independente de ter ou não uma ligação com a Igreja, tendo
catolicismo popular difundi uma gama de símbolos e códigos que passam a ser comunicados
A “Comunidade de Irmãos”
90% da população Potiguar se considera católica, “então, mais ou menos 1.200 índios são
evangélicos, não somos protestantes, não estamos protestando contra nada, pregamos o
lograsse êxito definitivo na ocupação do Nordeste. Nesse sentido, lembrou que a Igreja de São
Embora tal número pareça ser de proporção diminuta, a verdade é que nos últimos
anos constata-se um intenso ritmo de conversões que deram visibilidade social à religiosidade
dos evangélicos num país “que se constituiu incorporando a unidade religiosa como um
elemento central de sua identidade” (STEIL, 2001, p. 9). Assim, os processos de conversões
27
Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro
de 1948. Artigo XVIII - Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito
inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino,
pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
59
“74% dos brasileiros ainda são católicos”, essa porcentagem já apresentou números de
evangélicas, encontrei na área indígena Potiguara três denominações: Igreja Batista, Igreja do
Betel Brasileiro e Assembléia de Deus. Por conta de uma parcela considerável de meu
percurso ter sido corroborada pela rede de relações mantida por estudiosos amigos meus com
o grupo evangélico Batista, os dados e as informações desta pesquisa ligadas de alguma forma
religioso. Não obstante, apresento importantes questões colhidas em conversas com “outros”
evangélicos.
Creuza, “uma das primeiras a aceitar Jesus” nessa comunidade, a igreja teve início com a
vinda da missionária Maria Flor, que aportara na aldeia amparada por dois pastores
americanos.
Essa igreja daí já tem uns 34 anos. Antes fazia o trabalho do Senhor numa casa
[residência da missionária]. Depois começamo a carregar as pedra pra fazer a
igreja. Mas o chefe do Posto empatô, porque era os americano né que tava
trabalhando junto com ela [a missionária]. Nesse tempo eu era católica, só ia nas
igreja pra batizar os menino. Era católica só assim... né. Batizei ainda quatro filho.
Eu tomei o chefe do Posto como padrinho dum menino meu, aí ele era meu
cumpadre, a gente chamava assim. Aí a gente se conhecia, foi nesse tempo o
empato, mas ele não sabia que a gente já era crente. Aí o Antônio [seu marido] e
outro rapaz foi lá, conversaram com ele. “Mas cumpadre a gente somo crente”. “Ah
cumpadre, mas é o senhor”. Então ele deixou continuar. Mas ele disse que pra fazer
era obrigado o pastor ir pra Brasília, pra falar com a FUNAI de lá. Assim mesmo
ele foi, e trouxe toda a documentação. Foi quando foi construído o trabalho. Mas aí
houve uma confusão, não sabe, a igreja caiu. A missionária não se dava muito bem
com as pessoas. Foi o tempo que ela noivou com um rapaz... ele...era homossexual.
Começou aquela confusão, confusão, confusão. Depois dessa confusão saiu vinte
cinco crente. Aí ficou bem fraco o trabalho de Deus. Ela abandonou o trabalho, os
pastor foram embora também...Depois ficou meu menino, o pastor João , ele não
era pastor ainda não. Hoje ele é pastor nas aldeia de Marcação. Aqui tem dois
pastor, Pastor João (seu filho) e Pastor Samuel, Samuel é no São Francisco. Aí foi
60
assim o trabalho. Eu fui a primeira depois deu seguiu [toda a sua família tornou-se
evangélica] (Dona Creuza, Galego, casada com o senhor Antonio Santana, filho de
Daniel Santana – cacique renomado entre os Potiguara).
Todos os membros da família de Dona Creuza – mais de vinte pessoas - são crentes,
vez que ser crente sugere essa atitude de pertencimento à comunidade de irmãos. Assim, é
comum que quando algum irmão ou irmã deixa de comparecer em certo dia ao culto, o pastor
que afirmam o pertencimento de cada membro da igreja Batista. Com efeito, uma postura na
vida cotidiana de temperança no vestir e de rejeição “aos prazeres da carne” parece ser uma
No seguinte trecho do discurso de Dona Creuza: “Aqui tem dois pastor, Pastor João
(seu filho) e Pastor Samuel, Samuel é no São Francisco”, podemos também visualizar as
comum da evangelização dos crentes. Ainda que cada denominação prescreva normas de
Emídio, dentre alguns informes, relatou aos fiéis sua presença num acontecimento de outra
denominação evangélica, atendendo ao convite do pastor dessa igreja. Antes do culto o pastor
sendo que os membros da Igreja Assembléia de Deus são um tanto quanto arredios a estas
agregações evangélicas.
catolicismo dominante referendado no calendário das festas de padroeiro das aldeias, como
61
ainda, nas músicas do Toré, desconsiderando devoções a santos e imagens, ao tomar como
A igreja católica fala de um Deus morto, deixa os índio colocar a mente numa
estatua de gesso. É uma coisa que não é transparente. No fundo eles não querem
dizer realmente que é o nosso criador, e nas suas necessidades ficam só ali naquilo,
num estátua, numa imagem, e não conseguem ver que existe um criador capaz de
resolver aquele problema que os índio tão passando. Eu não posso adorar um ser
que o próprio homem formou. Eu tenho que adorar o ser que o próprio Deus
formou. “E quem foi? Jesus Cristo” (Mané, Forte, evangélico da Igreja do Betel
Brasileira).
Sobre a “proteção” de São Miguel, Dona Creuza e seu neto, Adônis, disseram que: “A
gente respeita, é padroeiro deles, porque diz que essa terra é dele, mas a gente não tem nada a
ver com isso não”. Dona Creuza complementou contando a transferência da imagem de São
Miguel da “Vila” para o “São Francisco”, além de enfatizar: “Olha, E lá (no Sítio São
O que é que vai haver aí? O que se houve foi briga devido às festas da religião
católica que tem muita cachaça, onde os índio vão ficar embriagado e não ficar
sabendo, consciente do que estão fazendo. Devido às festas que a Igreja católica
promove os índios ficam desunidos. Quando termina a festa, no outro dia os índios
tão de mal ou do outro. Então aí é falha da igreja católica dentro da nossa
comunidade, nossa cultura. Isso traz uma grande desunião a nossa Igreja católica
(Mané).
ajuda mútua, uma alternativa de recomposição individual e familiar no contexto da vida social
Certa vez, quando acabava de chegar na área indígena, observei que na escola da
Aldeia do Forte havia uma aglomeração de pessoas. Na verdade, acabei chegando até a escola
acontecendo ali: “São os evangélico fazendo trabalho social, cortando o cabelo do povo”. A
28
“3 Não terás outros deuses diante de mim. 4 Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do
que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. 5 Não adorarás, nem lhes darás
culto; (...)”.
62
partir daí minha visão dirigiu-se para um ônibus estacionado a alguns metros do colégio, o
realiza eventos onde se aprende a ler, as mulheres levam suas crianças para cortarem o cabelo
e recebem lições de saúde, etc. Na última seção do evento os lideres religiosos fazem uma
Caranguejeiras na casa de Caboquinho, Edleusa tinha levado o neto para cortar o cabelo e
ultimamente alguns cultos estão sendo realizados nas casas de grupos familiares católicos
primeira vez que fui à Vila Monte-Mor, em que pousei na casa do Falecido cacique Vado,
ecoava durante a noite nesta residência o programa da Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD). Lembro que fiquei curioso de saber quem naquele grupo familiar católico escutava o
programa. Dona Antônia contou-me durante a conversa que tivemos alguns meses após o
falecimento do cacique que Vado “gostava muito, ele inda foi pra igreja, foi inda umas três
vezes, a vontade que ele tinha de ficar bom, era aquela vontade, não sabe”. O cacique tinha
vinda de Cristo e acreditam ter acesso, no dia-a-dia, aos dons e carismas do Espírito Santo. À
ação do Espírito Santo atribuem curas dos males do corpo e da alma” (NOVAES, 2001, p.
43).
O “Catimbozeiro”
nordestino como uma prática mágico-religiosa do culto à jurema 29. Em contato com o
catolicismo e com rituais de matrizes africanas, o catimbó incorporou mitos, culto a santos
preferiam não falar sobre a prática de catimbó na região, possivelmente como um reflexo
traumático das perseguições policiais aplaudidas pela Igreja e legitimadas pela ordem
republicana da época. Dessa forma, cheguei a Terra Potiguara com a idéia de encontrar o
29
A jurema é uma espécie de arbusto que floresce no agreste e na caatinga nordestina. Da casca de sua raiz faz-
se uma bebida que promove comunhão e estase, permitindo às pessoas entrarem em contato com o mundo
espiritual. Existe ainda um grupo de representações acerca da planta como ainda concepções variegadas em
torno do que vem a ser jurema. No catimbó Jurema significa um lugar do mundo espiritual onde residem os
mestres e os caboclos. No culto da jurema em terreiros de umbanda é freqüente a referencia à Cabocla Jurema.
64
nordestino para estigmatizar30 os agentes da religiosidade que “trabalham” com seres vistos
pela população em geral como “espíritos malignos”, identificados com poderes satânicos
Uma questão interessante quanto a atribuição de ser catimbozeiro pode ser vista à luz
das considerações de Geertz (1983) acerca da natureza do senso comum: sua manifestação
desdém, o assentimento e a graça. Nesse sentido, recordo que durante uma das conversas
descontraídas que tive com as Caranguejeiras, um moto-taxista passou pela rua e gritou de
incompreensão popular sobre o caráter de sua religiosidade enquanto eu, ele e outro índio
naquela semana uma mulher que o havia procurado para "saber as coisas e abrir seus
caminhos" fora espancada pelo marido "porque foi pra casa de um catimbozeiro".
O catolicismo tem sua presença garantida na vida social dos Potiguara desde as
30
Para Goffman, o estigma “é antes de mais nada, uma relação formal pela qual são atribuídos comportamentos e
expectativas ‘desacreditados’ ao individuo que tenha mostrado ser dono de um ‘defeito, falha ou desvantagem’”
(MISSE, 1979, p.23).
65
religiosas dos franciscanos e carmelitas. O trabalho da igreja, cada ordem religiosa com seus
nativos. A empreitada sacra incluía ainda a agremiação de índios Potiguara “na supressão dos
sob um ponto de vista distinto daquele que aborda a "história do nativo" alocada de modo
evidenciam apenas momentos de rebeliões, confrontos e conflitos bélicos, vistos com fins
da descaracterização cultural.
e não procede de uma criação primordial, ancorada num ethos autóctone pré-cabralino. De
fato, "no decorrer de intercâmbios históricos internos e externos, ao longo do tempo, e não em
algum reino platônico pressuposto a priori" (WOLF, 2003, p. 217) a entidade étnica Potiguara
31
Importante não perder de vista que o contato e a mudança cultural são experiências que faziam parte da
história dos grupos que aqui habitavam antes da chegada dos conquistadores europeus, mais precisamente os
portugueses. Privilegio a lógica mestiça estabelecida por Amselle, que enfatiza “a idéia de uma mistura ou um
cruzamento originário entre grupos diferentes que tem se formado por toda parte da história humana”
(AMSELLE, apud GRUNEWALD, 2001, p. 13).
66
história social do grupo. Ou seja, a irrupção dos aldeamentos missionários entre os Potiguara
nos séculos XVII e XVIII marcaram uma remodelação qualitativamente nova desse lócus de
relações interétinicas.
definidos "é observá-los em situações diferentes para retratá-los em seus cenários muito
diversos" (2003, p. 246). Nesse sentido, inseridas no processo de expansão das fronteiras
grupo indígena Potiguara, que se desdobra na consciência de uma origem comum associada a
uma herança católica socialmente adquirida. Portanto, muitas das formas simbólicas,
históricos da doação das sesmarias. Nesses termos, a saliência da etnicidade Potiguara funda-
etnicidade Potiguara.
67
A consciência histórica das terras das antigas missões da Baia da Traição e de Monte-
Paraíba evocada nas narrativas dos potiguaras32. Na tradição oral Potiguara, as terras dos
Traição, e a terra de Nossa Senhora dos Prazeres, referente à missão de Monte-Mor. Esse tipo
alusão é primordial no processo de construção social da identidade Potiguara, pois atua como
parentesco e território.
dado a São Miguel, relativo ao aldeamento de Baía da Traição, e outro conferido a Nossa
como aquele que "protege e guarda" os Potiguara. A festa de São Miguel é realizada no mês
de setembro no vilarejo “batizado” com o nome do santo – Aldeia Vila de São Miguel.
ele (São Miguel) é renomado como padroeiro dos Potiguara porque na época da
colonização pegaram a imagem pra amedrontar, reduziram as terras em aldeias e
daí essa terra era denominada terra de São Miguel porque era ele que comandava o
território e o que os índios faziam. Um modo de tortura mesmo. Os índios não
tinham religião e absorveram aquilo por conta da introdução forçada.
Na vila de Monte-Mor, Dona Antônia contou-me que a Igreja de Nossa Senhora dos
Prazeres foi construída pelos holandeses, "mas foram os índios velhos que carregaram as
pedra pra fazer a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, a igreja querida dos indios". Nesse
vilarejo, a narrativa sobre a terra do aldeamento é evocada com profusão mais acentuada em
32
É importante enfatizar que não pretendo fundamentar as reivindicações indígenas estabelecendo uma conexão
necessária com um espaço geográfico, uma vez esse tipo de analise estará fadada ao malogro já que a noção de
território indígena encontra-se historicamente datada, isto é, torna-se impossível falar do sentido atual
empregado nas reivindicações das populações indígenas remetendo-se a indícios de continuidade de ocupação de
uma região de aldeamentos. O exercício de investigação que procedo empenha-se em relevar os sentidos sociais
simbólicos da historicidade dos Potiguara, de suas narrativas, nos processos de construção da etnicidade do
grupo. Para maiores esclarecimentos acerca da problemática da noção de território indígena ver OLIVEIRA,
1999a.
68
relação as evocações da comunidade que habita a Terra Potiguara de Baia da Traição, posto
diferença étnica, na "tentativa de fazer sua própria historia buscando mover-se além das
condições impostas sobre eles" (SIDER, 1976, apud GRUNEWALD, 1999, p. 153). Ou seja,
condição étnica, que, nos últimos dez anos, aflorou-se publicamente no cenário da região, no
o direito à demarcação de seu território que correspondia aos limites do antigo aldeamento de
Monte-Mor.
algum membro do grupo deixava de relatar "a influência dos branco que apoiavam os índio
com sua religião, sua Igreja católica, que tinha como objetivo domar os índio" de modo a
viabilizar a expansão colonial sobre seu território. Afirmavam ainda que antes da chegada do
europeu "os índios não conheciam religião", o que existia era o culto à "Natureza Sagrada".
histórica acerca da “aculturação” e repressão sofrida por seus antepassados quando da tomada
e seu território pela agência colonizadora eclesiástica, pelos “padres que perseguiam os
índio”33.
âmbito de sua etnicidade, não anulando de maneira alguma a crença dos atores sociais no
33
De fato, "os franciscanos destacaram-se por acompanhar a ocupação do litoral nordestino, do Rio Grande do
Norte até Alagoas. (...). Acompanharam as bandeiras e outras expedições para apresamento de índios e várias
vezes ajudaram os colonos em guerras contra os nativos, que eram apoiados pelos jesuítas. Foi o que aconteceu,
por exemplo, na guerra paraibana de 1585 contra os potiguares" (DEL PRIORE, 1994, p. 13).
69
catolicismo, uma vez que a trajetória histórica dos Potiguara, assim como da sociedade
brasileira em geral, tem na religião católica uma matriz cultural de raízes altamente
Marcação, no decurso da 4ª assembléia geral Potiguara (2004), realizou uma apresentação que
encenando o contato sagrado com a natureza que caracterizava o modo de vida original de
colonial de aldeamento. Mas esta religião não emplacou tão somente um imaginário de
como sentido de sua etnicidade. E, dessa maneira, o grupo Fala Curumim cantou: "Me dê
construção de uma alteridade religiosa, posto que o "missionário procurava no 'outro' o 'pai
ter a crença em algo ou em alguém, para dessa maneira, cumprir o sistema prático de
catequese, o qual foi todo elaborado a partir da experiência com os Tupi. Logo, inventou-se
uma "cosmologia cristã tupinizada", sendo Tupã a denominação de Deus usada para traduzir o
singularizam uma retórica étnica no quadro regional, referem-se a Tupã como "o Deus que
botou a primeira gente sobre a Terra, os índio, junto com a natureza". As irmãs Zuleide, Ieda
e Edleuza, me disseram que esse Deus "é o mesmo Deus dos branco, é uma coisa só, Ele que
criou tudo". Esse tipo de afirmação é um ponto importante para se pensar uma relação
interreligiosa, em que Tupã instaura a assunção sagrada de proeminência étnica capaz de atuar
como via de múltiplas reflexividades em torno da própria "criação" do índio, que é "a raiz do
Brasil inteiro", como também da força espiritual que evoca uma especificidade indígena de
contato com a natureza. Portanto, Tupã designa a crença indígena no Ser que criou os
Potiguara, que os ajuda em sua resistência histórica no litoral nordestino, no lugar que assim é
uníssono que era católica, "mas os crente participam também" 34. De fato, os investimentos
étnicos levados a efeito são geralmente orientados por pessoas que se identificam como
interpolam seu discurso com palavras da língua Tupi, e, ademais, são aquelas que estão
engajadas nas mobilizações políticas de diferença cultural nas pelejas pela ocupação de terras,
34
A seguir retomarei este importante enunciado quando for discutir a tradição evangélica no processo de
construção da etnicidade do grupo.
71
(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que se responsabiliza pela Pastoral Indigenista.
A prática fundamental de atuação do Cimi foi assim definida pela 11 ª Assembléia Nacional de
1995:
Atualmente o Cimi atua junto aos Potiguara por intermédio da missionaria Irmã
Juvanete. No período das minhas idas a campo, essa Irmã estava acompanhando os Potiguara
ocupação foi deflagrada diante da ameaça da reintegração de posse aos usineiros de uma faixa
intuito de demonstrarem o usufruto dos recursos naturais ali existentes necessários para
"torezinho" com as crianças da comunidade, além de instalar em sua casa um ateliê para a
comunidade afirmou que "se não fosse a Irmã nem tinha havido Toré no Forte no Dia do
Índio". A aldeia do Forte é uma das únicas aldeias que não possui igreja católica, assim a Irmã
Juvanete esta "em obra" no processo de levantamento de verba para conclusão da edificação
do templo que já se encontra com sua estrutura de concreto erguida. Por enquanto, ao lado da
futura de igreja católica do Forte, uma cada de taipa serve como espaço para a realização de
Na seção anterior, destaquei que na Terra Potiguara são realizadas festas de padroeiros
das aldeias indígenas, compondo, assim, um calendário anual de tradição católica. Segundo
Peres (2004), as festas dedicadas aos santos padroeiros das aldeias (e dos Potiguara)
72
sentidos pelos atores sociais em suas trajetórias biográficas de pertencimento a uma etnia
diferenciada no contexto regional e nacional, referenciada a uma terra sob a regência de São
Miguel.
"coisa de índio", as respostas convergiram em dizer que se trata de uma tradição católica
advinda da colonização missionária, que "a tradição indígena das festa tá esquecida. E até em
muitas aldeia tá morrendo a tradição das festas. Outras são badaladas, como a de São Miguel,
por conta das bandas famosas de forró". Gostaria, então, de frisar que as minhas idas a campo
não coincidiram com datas do calendário anual das festas de padroeiro na comunidade
Potiguara, portanto, não procedo aqui uma investigação detalhada do lugar dos padroeiros na
tradição Potiguara. Mas, de toda forma, suspeito que atualmente tais festejos servem para
narrar a origem do grupo, e, aí sim, celebram a unidade do grupo, sem que tal manifestação
religiosa fundamente uma ênfase pública de diferenciação étnica. No entanto, parece que o
resgate e fomento da tradição do Toré nas comunidades explicitam o perfil da etnicidade dos
índios que pertencem àquele território, isto é, convoca uma audiência da representatividade
É preciso ressaltar que a religiosidade entre os Potiguara não tem sido elemento-chave
questão, uma vez que, segundo Martins (1999, p. 226), através de práticas de religiosidade
ligadas ao Toré e ao Ouricuri "os índios no Nordeste vêm afirmando uma etnicidade
sociabilidades das populações indígenas do Nordeste nos últimos vinte anos apontam, dentre
construção de uma identidade indígena que se energiza em contato extático com um regime
religioso do Toré, descrito de forma naturalizada por alguns pesquisadores (REESINK, 2000;
que venham a estudar esse fenômeno étnico. O exercício reflexivo levado a efeito por
Grunewald não visa negar a possível configuração religiosa do Toré, mas não tomar como
evidente a caracterização desse rito como religião. Ora, pois em muitas comunidades
indígenas as identificações religiosas reclamadas por seus membros não recaem sobre a forma
particular de expressão sagrada do grupo. Portanto, é importante que tenhamos em mente que
sacraliza o grupo e/ou divindades, sem, no entanto, conjugar uma prática que se vincule a um
compromisso religioso.
ritual de união e etnicidade dos Potiguara. Com efeito, além de sinal diacrítico evocado em
semânticas que incrementam a complexidade de um ritual que pode ser visto como a tradição
sagrada de unidade étnica, espaço mediúnico de diálogo com espíritos ancestrais, ou mesmo a
35
Ver nota 17.
74
Não assumo aqui como tarefa cartografar o itinerário histórico da presença do Toré no
Nordeste, bem como entre a população Potiguara. O Toré aparece nesta pesquisa por se
referentes à questão da religiosidade. De toda forma, aponto que "em 1913, o Serviço de
Proteção ao Índio não nomeia as danças dos Potiguara (PB) e a Missão de Pesquisas
Folclóricas, em 1938, reconhece, além do coco, Torés entre esses nativos" (GRUNEWALD,
que "índio precisa ter cultura indígena, precisa exibir símbolos de indianidade, em encontros
festas e outros eventos que contam com a presença de pessoas estranhas à comunidade
uma maneira geral, os participantes, dentre homens, mulheres, jovens, idosos e crianças,
formam uma fila que avança na direção de um espaço de terra plano e largo, comumente
designado nas áreas rurais como terreiro, onde será realizada a dança. Os músicos seguem na
Potiguara são as zabumbas, os maracás e uma flauta reta. A linha de pessoas adentra no
"aberto" com o Pai-Nosso sendo rezado em voz alta por um cacique ou liderança local 36. Os
índios ficam agachados durante a reza, um momento de silêncio que exprime e força de união
que sacraliza o grupo para alguns, e para outros, de concentração espiritual no empenho de
conjugar uma memória ancestral e pedir fortalecimento nos processos da vida que se dilatam
36
Na 4ª Assembléia Geral Potiguara, que presenciei durante meu percurso etnográfico, o Toré que marcou o
inicio do evento foi aberto com o Pai-Nosso sendo rezado em Tupi pelo cacique Néo da Vila São Miguel.
75
experts da tradição oral das musicas do Toré puxam os cantos imprimindo o movimento
brasileira". Nesses termos, como tenho salientado, o ritual do Toré revela intensos elos
cabe agora recuperar para análise a afirmativa de que "os crente participam também". Em
verdade, a motivação inicial de minha pesquisa antropológica foi a informação, declarada por
estudioso que atua nesta comunidade num espaço de tempo considerado, acerca do
desaconselhamento da prática do Toré dirigido por alguns pastores entre os índios de sua
comunidade de fé. O "pivô" desse conflito, ou melhor, um dos membros do grupo indígena
Potiguara que marcou seu posicionamento nessa discussão foi o índio Manuel, Mané como é
mais conhecido na área, além de ser também destacado como vitorioso maratonista que
A conversação com Mané37, na casa de sua mãe que fica defronte ao P. I. Potiguara,
começou com uma indagação sobre os esclarecimentos dos objetivos da pesquisa. Expliquei
para ele que estava interessado em estudar como que na prática de sua religiosidade as
37
Este índio, 34, é filho da relação marital entre uma índia e um não-índio que foi chefe do Posto da FUNAI
nessa comunidade.
76
com potiguaras, esse índio iniciou sua fala dizendo que "o catolicismo veio pra tirar a cultura
Há oito anos Mané aderiu à religião evangélica. Criticou bastante as festas promovidas
pela religião católica, referindo-se aos festejos dos padroeiros comemorados na comunidade,
onde vai haver muita cachaça, prostituição pra quem quiser. Os índio ficam
embriagados e não vão ficar consciente do que tão fazendo, até morte já houve.
Olha só meu amigo, é uma festa da Igreja Católica. Os índio então ficam desunido
por conta da embriaguez, quando termina as festas, no outro dia os índio tão de mal
um do outro. Então aí tá a falha da Igreja Católica dentro da nossa comunidade,
nossa cultura. Religião não é isso, religião é dá a você a chance de viver mais ainda,
ir mais além, saltar da morte para a vida.
adorar um ser que o próprio homem formou. Eu tenho que adorar o ser que o
próprio Deus formou. E quem foi? Jesus Cristo. São Pedro, São João, foram
homens iguais a nós, que pecaram, que ainda no futuro vão subir pra uma
eternidade. Eu não vou ter fé num ser que não criou nada. Aonde existe uma coisa
que tá voltada a outro ser, então eu to desviando minha fé pra lá e pra cá. E uma
coisa que não é transparente, ficam ali naquilo, numa estátua, numa imagem, e não
conseguem ver que existe um Criador capaz de resolver os problema que os índio
tão passando.
acionada por Mané. Há uns dois anos, ele protestou contra uma advertência do pastor da
igreja Assembléia de Deus, "naquela época eu (Mané) fazia parte da Igreja Assembléia de
Deus", que repreendeu "uma índia que foi dançar o Toré, tirando ela da Igreja". A partir daí,
"mobilizei Caboquinho (cacique geral dos Potiguara), Josafá (Potiguara que ocupa o cargo de
Juntamente com seu irmão, Iremar (artesão indígena), e outros jovens da aldeia do
Forte, aquele índio busca erigir uma performance regular do Toré na comunidade. A idéia é
construir uma grande oca para servir de lugar de convivência entre os potiguaras, de reunião,
e, principalmente, um espaço para a prática do Toré que funcione como um núcleo educativo
da cultura Potiguara.
77
Temos que fazer a nossa cultura funcionar. O Toré é minha cultura, e não vou
deixar de dançar porque sou evangélico. Eu digo pro povo: se não for através do
Toré, da oca, nós não vamos conseguir nada. Foi a única coisa que sobrou da nossa
religião nativa e já tá se acabando. Ali a gente vai se unir e o resgate vai acontecer,
com os jovens não ficando tímido pra dançar o nosso costume. Se não for através
da nossa religião nativa do Toré, da oca - a casa religiosa -, nossas aldeia vai se
acabar. O Toré é sagrado pra nos aqui. Dá união, é uma questão de amar o nosso
Criador. Deus Tupã é quem criou esse lugar aqui pra gente viver, a própria
natureza. Os índio tinha que se voltar uns para os outro e se perguntar sobre o nosso
Criador, aí ia ter o resgate da espiritualidade indígena. Muitos índio tão brigado
entre si, eles dança lá (no Toré) e quando sai tão se abraçando, apertando a mão e
começando outro (Toré). Dentro do Toré existe um ser que faz o povo se entranhar
um no outro, fazendo os objetivo ficar bem próximo. (...). Mas a gente tem que
pesquisar a cultura indígena original, porque a religião católica já deixou dentro do
Toré uma música que já traz Maria. Então os índio foram querendo adaptar essas
música católica dentro da musica que nos mesmos tínhamos, que hoje não existe
mais. Então quando começa essas musica que tem santo católico eu não danço
(Mane).
sua identidade religiosa e seu posicionamento étnico. Isto é, este potiguara produz
(BHABHA, 2001).
perder força política nessa comunidade. A questão conflituosa ficou complicada já que o
cacique é primo de Mané, e para evitar confusão sua mãe pediu que seu filho não criasse
Batista Potiguara, situada na aldeia do Galego. Todos esses com os quais mantive contato
integram a família Santana, núcleo de parentesco que muito se destacou como “celeiro” de
de ciências sociais de Vieira, que também transitou etnograficamente entre esse grupo
evangélico Batista38 (1999, p. 17): “ser crente é estar comprometida com as palavras do Pastor
e ser vigiada pelos membros do grupo e por outras que se preocupam com a vida das
declarações emitidas pelos fiéis. Dessa forma, procurei dialogar com o pastor Emídio Santana
Coura, formado nos quadros teológicos da Igreja Batista no Estado de São Paulo.
Falou-me que os índios dali “já estão muito aculturados” e que não precisou por em
prática a preparação “antropológica” dos missionários para lidarem com uma situação de
evangelização de uma “cultura tribal”. Fez questão de ressaltar que “aquela igreja de São
Miguel é uma construção holandesa, portanto, veja só, os protestantes poderiam ser maioria
aqui se a colonização holandesa tivesse logrado êxito no Brasil” 39. Quanto ao resgate da
língua tupi implementado nas escolas de ensino diferenciado indígena, replicou argumentando
que essa ressurgência é uma mentira, jamais conseguirão resgatar uma língua que não existe
mais, “esse tupi que estão ensinando não é o idioma original dos nativos daquela época, já é
uma outra coisa, pra que aprender isso?”. Perguntei se havia “problema” de algum membro da
igreja em dançar o Toré, e assim ele retorquiu: “Em toda cultura há presença do Demônio.
Cabe ver até onde é cultura e depois passa para o satanismo. Nas letras dessa musicas vemos
louvores a Maria e outras idolatrias, invocação aos mortos, culto a entidades de macumba.
38
Todavia a perspectiva empregada por esse autor distingue-se da utilizada em minha pesquisa, posto que aquele
aborda o segmento evangélico Batista na aldeia do Galego alocado de forma dualista em relação aos não-
evangélicos, ou melhor, Vieira toma os "crentes do Galego" como aporte instrumental para operar um esquema
bipartido de afirmação e negação da identidade étnica.
39
“Três vezes a igreja evangélica foi implantada no Brasil colônia, e expulsa pelos portugueses: a igreja
reformada dos franceses no Rio de Janeiro (1557-1558), a dos holandeses na Bahia (1624-1625) e a dos
holandeses, ingleses e franceses e índios no Nordeste, quase 30 anos depois” (SCHALKWILK, 1998, p. 1).
79
(...). Não proíbo as pessoas de dançarem o Toré, prego a palavra. Proponho que eles façam
uma coisa nova (um Toré novo) que cante os costumes dos índios, mas eles não fazem...”. Em
verdade, a explicitação pública de um impedimento para a prática do Toré pode custar algum
código de conduta que é monitorado pela comunidade de irmãos. Recordo-me que Mané
comentou que “as igreja evangélica não deixam os índio a vontade pra prática do nosso
costume (o Toré), a nossa cultura. Não é que eles não deixam, fica a critério do índio, mas
demônio”. Essa informação foi transmitida pelo pastor Emídio nas suas pregações,
continuamente reiterada ao longo dos cultos. Para ela, “as pessoas precisam ler o evangelho.
Aí esta o plano da Salvação, a Verdade. Isso daí (o toré) mistura cultura com religião. Cultura
é o que não envolve idolatria. E aí tem devoção a Maria. É só ver em êxodo 20. É a mesma
coisa que você adorar uma caixa, sendo que o que você tem que adorar é a pérola que tá
nasceram na aldeia”, então, "eu digo por aí que eu sou um índio”, afirmou Jerônimo
Santana41.
Quando confrontados com mobilizações de perfil étnico que incidem sobre a dança do
evidenciada na rejeição das letras que compõem as músicas rituais, além disso, esses
“crentes” enfatizaram que aquela dança vai de encontro com o “trabalho do Senhor” em
40
Ubiraciara entoa os cânticos nos cultos da Igreja.
41
Tio de Ubiraciara que toma conta de um “trabalho de Deus” na aldeia Silva do Belém.
80
virtude da incitação aos prazeres da carne desencadeados pela performance do corpo no rito:
foram dançar um Toré num encontro evangélico em João Pessoa, integrando a caravana
do Toré no encontro não foi orientada como um investimento étnico da identidade Potiguara,
Brasil.
crítica cultural preocupada em destrinchar a mistura nas letras do Toré separando o que é a
cultura original do índio e o que foi inserido no ritual advindo do catolicismo “que quis deixar
essa religião como se fosse uma coisa nativa. Então essa música agora é uma música que os
católicos, os jesuítas deixaram da sua religião para os nossos índios de antigamente. Deixa a
desejar porque nós fomos perdendo as nossas coisas nativa mesmo devido a religião católica.
relacionadas ao caráter sagrado da natureza, envolvendo seres que habitam a mata, que se
encontram no "trabalho" com "Nossa Senhora da Conceição e o Nosso Senhor Jesus". Trata-
segundo Iolanda, por conta de "meio mundo de conflito que acontece, não haver um
só que escondido. Eu tenho meu grupo de umas três pessoas que se reúnem e
chamam pela Grande Mãe (a Natureza Sagrada) e pelo Divino Espírito Santo, mas
nos quatro canto da comunidade tem gente que faz seus trabalhos isolados. Tu não
vê Sandro! Prefere se isolar pra fazer seu 'trabalho' com medo da rejeição dele na
sociedade, quando tem que falar com as força que espírito e o corpo tá
necessitando. É certo que muitas vezes a gente se isola para ter força, mas que não
fique assim, se isola sozinho. Mas que se isola com os outros que também fazem
seus trabalho, que tão passando por aquilo, que tão reivindicando um
fortalecimento, um entendendo o trabalho do outro. Vai demorar esse
entendimento, mas eu acho que a religião indígena é realmente nosso
fortalecimento como índio (Iolanda Potiguara, Baía da Traição).
Temos, assim, que tais práticas de religiosidade são associadas a coisas negativas,
referidas por Iolanda, encontra-se rezadeiras, índios que conhecem os mistérios da mata e da
cura, e, o próprio Sandro, que "trabalha" com a umbanda kêtu. Vale salienta que, exceto para
Sandro, as outras pessoas que também “trabalham” percebem o catimbó como "o cão, o
Não posso deixar de salientar uma importante questão levantada por Iolanda quando
diz que "a religião indígena é realmente nosso fortalecimento como índio". Recentes
REESINK, 2000) afiançam a afirmação da índia Potiguara, uma vez que "o ritual constitui a
2000, p. 364). De fato, entre os índios do Nordeste, práticas de religiosidade ligadas ao Toré e
ao Ouricuri ressaltam uma memória construída ritualmente, uma amálgama "encantada" que
conecta os índios atuais aos seus ancestrais, reforçando uma mobilização de diferença cultural
através das consultas aos "encantados", sábios conselheiros nas resoluções sociais e políticas
Dessa maneira, acredito que o tipo de enunciação exteriorizada que apresentei acima
Sandro, um jovem (24) índio de Monte-Mor, é quem toca a zabumba no Toré dessa
comunidade. Digo que ele de apresenta como um dos brokers da mobilização política de
oca - idealizada pelo falecido cacique Vado - que abriga a prática do toré, está empenhado na
produção de artesanato indígena, bem como na construção de pequenas ocas (três ao todo) em
torno da oca principal para promoção de oficinas de artesanato para as crianças da vila.
Sua religiosidade é expressa na prática da umbanda com ketu42, que foi trabalhada num
terreiro na cidade de Mamanguape. Depois que “a dona do terreiro fechou a casa” passou a
“trabalhar em casa”, realizando trabalhos de cura com ervas e plantas na catulação do “dom
origem indígena estão associados à parte da jurema. Os cantos são distribuídos distintamente
Segundo Assunção,
Florzinha da mata43. Além desses, outros caboclos também baixam nesse contexto ritualístico:
Pena Branca, Pena Roxa, as índias tapuias, Tupinambá e Tupi-Guarani. Cabe indicar que "nos
42 ?
No candomblé a palavra nação designa a origem ancestral dos povos africanos que formaram esse rito
no Brasil. A tradição africana da Nação Ketu refere-se a linha de candomblé em que predominam os orixás e
ritos de origem ioruba (tabadeoxossi.tribod.com).
43
Entidade bastante difundida na cosmologia rural/sertaneja nordestina.
83
raizes, folhas, correspondendo para cada caboclo um tipo de erva" (ASSUNÇÃO, 2001, p.
193). Ressalto este apontamento para lançar ao leitor uma clarividência acerca do trabalho de
propulsor de força espiritual, nesse sentido, é curioso, senão uma inclinação pessoal
umbanda.
Quem traz o toque são os guia, eles já trabalham em outros terreiros, ele é outra
pessoa, ele é quem ensina a trabalhar. Na umbanda o Toré é diferente.... mas se
torna a mesma coisa. Na umbanda a gente bate o tore pra poder virar com eles. Tem
a parte indígena do Toré. Porque tem a parte dos exus, pomba-gira, tem a parte do
caboclo das cabocla, com a cantada mais potente, aí o Toré é mais forte. Depois
vem a linhada de mestre, os preto velho, as preta velha. O Toré daqui (dos índios de
Monte-Mor) é mais pedindo força, usando oração. E na umbanda e pra movimentar
com eles e eles dá ensinamento... alguma coisa que vai acontecer eles falam, serve
de ensinamento.
Pois bem... Quando Sandro começou a falar sobre esse toré na umbanda fiquei
demasiadamente confuso. Ops! "Que danado é isso?", me perguntei. Na hora, confesso, até
cheguei a pensar que o ponto de vista do nativo estivesse misturando tudo, ou, talvez (o mais
seguinte trecho:
uma corrente muito unida, que dá força para combater nossas batalha, dá influencia
para as crianças pra seguirem com nossa tradição muito antiga. (...). O Toré daqui é
nossa brincadeira. Mas vai de cada um. Tem uma espiritualidade. Uns sentem mais
que outros. O Toré é como se fosse uma Mente. Se você desejar o mal pra alguém
ali dentro é você quem vai passar mal.
Com efeito, percebo no enunciado acima que "os sentidos do Toré são múltiplos e
uma memória ancestral compartilhada pelos membros do grupo, e ainda, assume significados
Como aponta Brasileiro (1999, p. 186), esse laço de comunhão ritual é comumente
obedecendo a conformidade política instaurada pelo órgão tutor (SPI), assim como o cacique
e o conselheiro. De uma maneira geral, o pajé é aquele que detêm a ciência e a tradição
indígena, conhecedor dos segredos da cura e do encontro com as forças da “mata sagrada”,
erigindo-se muitas vezes como símbolo focal da identidade étnica ativa na manutenção da
do grupo Potiguara. Acredito ser fundamental suspender, então, qualquer discussão sobre
85
autenticidade das culturas indígenas nas quais o papel do pajé inexista, já que a infusão e
construção desse ator social na vida cotidiana estão sujeita à especificidade histórica de
uma pajé Potiguara. Ao menos em dois eventos (um encontro neo-esotérico e uma feira de
cultura popular) avistei a senhora com seu tamborzinho e seus trajes indígenas. No segundo
dia de trabalho de campo, dirigi-me à aldeia São Francisco. Adônis (índio evangélico da
Igreja Batista), sabendo de meu interesse em conversar com a pajé, muito gentilmente
Ao dizer “entrevista com Fátima, pajé Potiguara, aqui no São Francisco”, prontamente a
senhora me interrompeu para informar-me que: “Na tradição indígena meu nome é Cunhã”. A
conversa com a pajé foi marcada por uma postura lacônica de sua parte, creio que pela falta
de confiança em mim aliada também pela controvertida posição do papel do pajé entre os
Potiguara.
Fátima: Tem coisa que vai pro médico, mas tem coisa que não vai. Eu faço
pajelança ali na oca.
Eloi: Como é esse ritual?
F: Não posso dizer.
E: É segredo?
F: É. O índio não tem religião, conhece Deus com o Deus Tupã né... amar a
natureza, amar os parente, mas eu não sou contra nenhuma religião. É um dom que
Tupã passa pra gente. Passei vinte e quatro horas... quer dizer que eu não tava em
mim, tava fazendo as viagem.
E: Tinha algum pajé antes da senhora?
F: Meu filho cada ano recebe um pouquinho do segredo.
E: Foi a senhora quem dirigiu a cerimônia de posse do cacique Caboquinho, como
foi?
F: Queria se batizar... veio me procurar. A cerimônia foi feita com tatamirim, fogo
pequeno.
E: A senhora troca experiências com outros pajés nos encontros que participa?
F: Essa troca de experiência a gente chama aimoitará.
E: como as aldeias daqui vêem o trabalho da senhora?
F: Não sei. Eu não gosto de me declarar não. Tem que crescer o dom de Deus Tupã,
crescer calado.
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Este último enunciado revela uma tensão quanto à representação da tradição indígena
que “isso a gente ainda tem que conversar entre a gente, com a Fátima, muitas aldeia não
aceita. É ... Fátima é a pajé dos Potiguara”. Quando perguntei às irmãs Caranguejeiras se
Pajé?! Aqui ninguém sabe quem é pajé não. Tem uma que diz que é pajé, como que
ela é pajé se ela não é índia. “Mas cala boca, mulher. Se não eles qué briga”. Diz
até que tem outro nome. Ela tem mais um cachimbão, viu, Seu Eloi. Quer dizer que
é um catimbozeiro, né. Por isso que muita gente pergunta, vindo lá de Campina
Grande: “E esse negócio de índio cai algum Caboclinho. Cai? Não Senhor. A gente
não somo xangozeiro. Certas coisas é erraado que só. Diz que é uma coisa sem ser.
Bota um cachimbo na boca e fuc! fuc! fuc! Quem faz isso é catimbozeiro, e a gente
não é catimbozeiro não Senhor. A gente nossa tradição, pede força a Deus Tupã da
gente, na paz de Deus, com as forca Dele (Ieda, Baía da Traição).
ligado ao cacique geral, Caboquinho, e o grupo composto por lideranças que apóiam o
cacique das aldeias, Djalma, irmão da pajé Potiguara. Parece que as pessoas ligadas a
Caboquinho negam a legitimidade do papel de Fátima como pajé, enquanto os membros que
Fátima confirmando-a como pajé. E, assim, o fato da pajé ter dirigido a cerimônia que
situacional forjada para mediar o conflito num momento de sucessão que, necessariamente,
Potiguara são apenas tentativas de delinear visagens reflexivas que suscitem dúvidas e
indígena, uma vez que permaneci em campo pouco tempo para ter fundamento dos processos
Diante disso, creio que a figura do pajé ainda não se constitui como símbolo étnico
para a comunidade Potiguara. O poder de cura está organizado em torno da rezadeira e dos
indivíduos que dominam o conhecimento das propriedades das plantas. Nesse ponto, a pajé
apresenta-se como uma alternativa, não representando símbolo focal de um sistema de cura
indígena de legitimidade étnica entre os Potiguara. As técnicas xamânicas utilizadas pela pajé
Fátima, como o cachimbo e o tambor, dentre outros procedimentos rituais, servem de fomento
para acusações da prática do catimbó, como foi observado nas palavras de alguns potiguaras e
Enfim, parece que a imagem de Fátima como pajé converge maior audiência
posicionada para uma representação dirigida ao mundo dos “brancos” montado nas feiras de
distinto de coordenação de um espaço sagrado na vida dos Potiguara. Quero dizer que o cargo
pessoa que o exerce na comunidade. Assim sendo, cabe investigar de maneira pormenorizada
como se dá a construção da figura do pajé entre os Potiguara. Portanto, não pretendo aqui
Inconclusões
aos investimentos étnicos tecidos por Potiguaras ligados à praticas de religiosidade diversas.
encontradas na sociedade indígena Potiguar foi um caminho trilhado por mim para
Para tanto, tomei por base a preciosa assertiva de Barth que nos diz que “a existência
diferenciações culturais” (2000a, p. 38). Nesse sentido, procurei delinear a série criativa de
religiosidade.
modos de sentir e de agir dos atores sociais em suas experiências religiosas, procurando
descobrir o que significa para eles os objetos da tradição religiosa no decurso de suas
biografias, das variadas situações da vida cotidiana para a qual buscam respostas. E, no caso,
de meu objeto de estudo, tentei construir uma certa cartografia de como a etnicidade Potiguara
Portanto, a grande maioria dos índios Potiguara são católicos, o que importa destacar
que os processos de diferenciação cultural operados por essa população deixam transparecer a
insígnia da religião católica. Relatei que um ciclo de festejos católicos dedicados aos santos
músicas que animam a performance do Toré relevam associações híbridas de raízes históricas
como força motriz de elaboração de um norte para a etnicidade do grupo. Assim, bagagens
culturais e perspectivas de ação social distintas afluem sobre esta dança ritual, configurando
Noutra margem, o cargo de pajé, possível diretor ritual de manutenção do Toré, não
incita formulações de caráter étnico, sendo na maioria das vezes questionado acerca de sua
perfil étnico, acredito que sinalizei novos percursos de análise sobre a construção de
potencial etnográfico das mudanças culturais articuladas por esses grupos étnicos que
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