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UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE

CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

ELOI DOS SANTOS MAGALHÃES

TUPI OR NOT TUPI: RELIGIOSIDADE E PROCESSOS


DE ATRIBUIÇÃO ÉTNICA NA COMUNIDADE
INDÍGENA POTIGUARA

NOVEMBRO DE 2004
1

ELOI DOS SANTOS MAGALHAES

TUPI OR NOT TUPI: RELIGIOSIDADE E PROCESSOS


DE ATRIBUIÇÃO ÉTNICA NA COMUNIDADE
INDÍGENA POTIGUARA

Monografia apresentada como


requisito exigido na disciplina
“Estágio Supervisionado em
Pesquisa Antropológica II” e para a
obtenção do grau de Bacharel em
Ciências Sociais, com área de
concentração em Antropologia, pela
Universidade Federal de Campina
Grande, sob a orientação do
Professor Rodrigo de Azeredo
Grunewald.

Novembro de 2004
BANCA EXAMINADORA

Prof. Rodrigo de Azeredo Grunewald (DSA-UFCG)


(Orientador)

Prof. Maria da Conceição Cardoso Van Oostenhaut (DSA-UFCG)


(Examinadora)

Prof. Maria de Assunção Lima de Paulo (DSA-UFCG)


(Examinadora)
0

Para
Rozângela
Marcela
Soraia
1

Agradecimentos

Obrigado Jesus por ter me guiado no bom caminho.


Minha mãe e minha irmã, amo vocês.
Soraia, a mulher que tanto me ensina a viver e que me torna amor.
Martinho e Tiago, grandes amigos.
Rodrigo Grunewald, professor, incentivador e amigo.
Toda a família Wellen.
Todos os potiguaras, “o índio é a raiz do Brasil inteiro”.
Agradeço às famílias que me acolheram em seus lares.
Cacique Vado (in memoriam).
Henrique e Hérika, muito obrigado.
Lola e Assunção, agradeço pelo apoio na caminhada.
6

Sumário

Introdução............................................................................................................................7

Religião ou Religiosidade: dos Recônditos da Alma para o Mundo da Vida........................10

Por uma Visão Processualista em Antropologia....................................................................12

Os Potiguara na Percepção Antropológica............................................................................14

As Conversações do Etnógrafo no Campo............................................................................17

Capítulo 1 - Os Índios da Paraíba.........................................................................................23

1.1 Uma Sociedade Indígena do Nordeste.............................................................................25

1.2 A Comunidade Potiguara.................................................................................................34

Capítulo 2 - Religiosidade e Perfil Étnico............................................................................50

2.1 O Campo da Religiosidade Potiguara..............................................................................53

2.1.1 “A terra é santa, a terra é mãe/ a terra é do índio, a terra é de Deus”:

a tradição católica..................................................................................................................54

2.1.2 A “Comunidade de Irmãos”..........................................................................................59

2.1.3 O Catimbozeiro.............................................................................................................64

2.2 Tupã ou não Tupã?...........................................................................................................66

Inconclusões..........................................................................................................................92

Bibliografia...........................................................................................................................94
7

Introdução1

A minha relação com os índios do Nordeste tem início quando me interessei pelo

projeto Estratégias de Mobilização Cultural Indígena no Nordeste (abril de 2001), produzido

pelo professor Rodrigo de Azeredo Grunewald, que tem contribuído bastante na produção de

pesquisas em favor da desmistificação do arquétipo dos grupos indígenas nordestinos tidos

como aculturados, que subsistiriam no contexto regional sob a condição de índios genéricos,

resultantes de sucessivas "perdas" de traços culturais “silvícolas”.

Fui selecionado para fazer parte desse projeto, e a leitura do mesmo trouxe uma

miríade de inquietações que me atentaram para a polifonia real do fenômeno étnico.

Infelizmente o projeto não vingou. De toda forma, segui realizando leituras e produzindo

trabalhos que me proporcionaram experiência e suporte teórico para pensar uma série de

questões referentes aos processos de diferenciação cultural mobilizados pelas populações

indígenas no Nordeste.

O assunto que mais tem me chamado à atenção são os contatos mediúnicos

instaurados nos rituais indígenas nos quais seus ancestrais os orientam acerca da construção

de um lugar para viver, ou seja, dispõem mensagens e códigos xamânicos instrumentalizados

nos momentos de etnogênese2 dos grupos, nas relações comunitárias para levantar aldeias3.

Assim, a idéia inicial que gostaria de levar a efeito como objeto de estudo seria perceber de

que maneira esses processos de contato com forças ancestrais têm contribuído, ou até mesmo

têm sido fundamentais, para a etnogênese dos Pankará (PE), coletividade indígena em luta

1
Neste trabalho uso itálico para termos nativos e para destacar outros termos. Emprego “aspas” quando procuro
provocar o leitor com relação a certos termos: “misturados”, por exemplo.
2
Refiro-me "ao processo de emergência histórica de uma fronteira socialmente efetiva entre coletividades,
distinguindo-as e organizando a interação entre os sujeitos sociais que se reconhecem - e são reconhecidos -
como a elas pertencentes" (BARRETO, 1999, p. 93).
3
Termo nativo (Pankararé) usado em referência ao processo histórico de emergência e organização social do
grupo.
8

pelo reconhecimento étnico e territorial. Porém, esse tipo de estudo demanda um espaço de

tempo considerável para os procedimentos etnográficos e relações de confiança para imbuir-

me no espaço sagrado do grupo, além de não possuir nenhuma forma de financiamento nem

recursos próprios para efetuar as viagens para a área de pesquisa.

Foi num bate-papo com o professor Rodrigo Grunewald, no tempo do cafezinho no

quiosque da Sayonara no intervalo entre uma aula e outra, que o dileto docente lança uma

informação comunicada por um de seus orientandos sobre o desaconselhamento de líderes

evangélicos à pratica do Toré4, dança ritual que constitui marca de indianidade de grande

parte dos índios do Nordeste.

Então, tratei de entrar em contato com um colega da antropologia 5 que nos últimos

anos vem transitando na comunidade indígena Potiguara como membro do SEAMPO/UFPB

(Setor de Estudos e Acessoria a Movimentos Populares)6, no intuito de realizar um survey na

área Potiguara a partir de um contato inicial mediado por esse pesquisador. Assim, das

observações e conversas mantidas no meu primeiro contato com os Potiguara surgiu a própria

formulação do problema de pesquisa.

Este trabalho monográfico procura enfocar os processos de atribuição étnica no âmbito

das formas de religiosidades encontradas na comunidade indígena Potiguara 7 do litoral


4
Trata-se de uma dança coletiva de um número relativamente indefinido de participantes, que se apresentam
pintados, segundo motivos gráficos singulares conforme o grupo indígena, e vestidos com saias tecidas com
fibras que se assemelham a uma espécie de palha e com cocares. Esta manifestação cultural – a performance do
Toré – constitui marca de indianidade apresentada por grande parte dos povos indígenas que habitam a região
etnográfica do Nordeste. Com efeito, este ritual não se esgota em seu valor essencialmente político enquanto
sinal diacrítico na luta por se mostrar como índio nos contextos regionais nordestinos, comportando em si a
complexidade de um fenômeno multidimensional, pois, é considerado como a brincadeira, a tradição, o espaço
sagrado e a união dos indivíduos de um dado grupo.
5
Falo de Estevão Palitot, aluno do mestrado de Sociologia da UFPB/UFCG, que desenvolve pesquisa sobre os
Potiguara e atua na comunidade promovendo debates.
6
Inclusive a ação desse grupo entre os Potiguara foi mediado por um membro da comunidade indígena que é
funcionário da UFPB.
7
Utilizo a grafia Potiguara com relação à coletividade do grupo étnico pelo seu aspecto convencional, e faço uso
da grafia potiguaras quando me referir a indivíduos do grupo.
9

paraibano. Essa é a questão. Ao investigar a relação entre rótulo étnico e identificação

religiosa, pretendo permanecer próximo do espírito etnográfico modernista como forma de

salientar as transformações da identidade individual e coletiva no campo social Potiguara.

E, de fato, o título desta pesquisa tem origem na frase “Tupi or not tupi, that is the

question” enunciada pelo escritor Oswald de Andrade no Manifesto Antropofágico, em maio

de 1928. Creio que a marca da reviravolta estética proposta por esse autor é o elogio da

diversidade: deglutir cultura, engolir o “estrangeiro” como movimento criativo na composição

da identidade brasileira.

A representação de índio expressada pelo senso comum é a do “selvagem”,

“autóctone”, primitivo exótico habitante da floresta amazônica. Como um neófito do curso de

ciências sociais, também figurava em meu juízo tais imagens. Posto assim, é corriqueiro

escutarmos enunciações que afirmam que “tem muita terra pra pouco índio”, que os índios são

uns “bêbados preguiçosos”, além de não terem mais a vivacidade de uma cultura "própria" e

"autêntica", e principalmente não conservarem as marcas fenotípicas dos “índios de verdade”.

Com efeito, até meados da década de 1980, o ponto de vista teórico predominante

sobre os índios do Nordeste pressupunha destacar “os efeitos da aculturação e seu diagnóstico”

(OLIVEIRA, 1999a, p. 12), desembocando em conclusões que fixavam uma série de dúvidas

no tocante a relevância de exame científico e possibilidade mesmo de enfocar tais populações

como unidades sociais passíveis de estudo, já que não apresentam a densidade “tradicional” e

“autêntica” dos sinais externos reclamados pela etnologia clássica brasileira.

O estudo que desenvolvo, dedicando-se a verificar as relações de interconexão entre

adscrição étnica e identificações religiosas, viabiliza a possibilidade de explorar processos

específicos que afluem no contexto da sociabilidade Potiguara, delineando o posicionamento

histórico e os fatores organizacionalmente relevantes no estabelecimento das fronteiras étnicas

que definem o grupo. Desse modo, estarei trabalhando com a noção de etnografia multilocal
10

(MARCUS, 1991) a fim de salientar as ambigüidades de conexão entre status étnico e

performance social engendradas por matizes diversas de distributividade cultural –

especialmente, no caso de meu plano de pesquisa, as que se relacionam às constelações

valorativas orientadas pelas práticas de religiosidade – que atuam sobre a população Potiguara.

Portanto, esta pesquisa concentra-se em mostrar a coerência dos processos de

dispersão da identidade8 (MARCUS, 1991) que perfazem o campo da religiosidade da

comunidade Potiguara, procurando descobrir em que situações emergem e persistem fronteiras

étnicas, no intuito de pensar de que maneira as diferentes práticas de religiosidade interferem

na performance étnica dos atores sociais.

Religião Ou Religiosidade: Dos Recônditos Da Alma Para O Mundo Da Vida

Neste estudo tomo por mote teórico de investigação a seguinte formulação de Weber:

Uma definição daquilo que "é" religião é impossível no início de uma consideração
como a que segue, e, quando muito, poderia ser dada no seu final. Mas não é da
"essência" da religião que nos ocuparemos, e sim das condições e efeitos de
determinado tipo de ação comunitária cuja compreensão também aqui só pode ser
alcançada a partir das vivências, representações e fins subjetivos dos indivíduos - a
partir do "sentido" -, uma vez que o decurso externo é extremamente multiforme. A
ação religiosa ou magicamente motivada, em sua existência primordial, está
orientada para este mundo. As ações religiosa ou magicamente exigidas devem ser
realizadas "para que vás muito bem e vivas muitos e muitos anos sobre a face da
Terra". (...). A ação religiosa ou magicamente motivada é, ademais, precisamente
em sua forma primordial, uma ação racional, pelo menos relativamente: ainda que
não seja necessariamente uma ação orientada por meios e fins, orienta-se, pelo
menos, pelas regras da experiência (1991, p. 279).

Nesse sentido, ao invés de trazer para a discussão uma referência à religião como

sistema simbólico integrado de crenças e práticas sagradas relativas a uma dimensão

extraordinária e sobrenatural, falo em religiosidade para enfatizar uma perspectiva dinâmica

dos objetos da tradição religiosa como formas de conhecimento diante das atividades práticas

do cotidiano.

8
Como nos diz Marcus (1991, p. 204), “a identidade de alguém, ou de algum grupo, se produz simultaneamente
em muitos locais de atividades diferentes, por muitos agentes diferentes que têm em vista muitas finalidades
diferentes”.
11

Portanto, é importante esclarecer que não demonstrarei aqui reviravoltas substanciais

para distinguir religião e religiosidade. Adoto o termo religiosidade como procedimento

condutor da análise de modo a realçar as maneiras de viver e declarar sentido diante dos

processos concretos de interação que envolvem os atores sociais no mundo da vida, uma vez

que intento recuperar a tentativa weberiana "de demonstrar que os ideais religiosos e as

atividades praticas avançam juntos aos tropeços à medida que se deslocam pela história"

(WEBER, apud. GEERTZ, 2000, p. 153). Então, a diferença está no tipo de olhar imprimido

na abordagem, sem, contudo, pretender um antagonismo definido entre religiosidade e

religião.

Dessa maneira, podemos inferir que nos mais variados contextos, diferenças religiosas

são acionadas a todo o momento para enfatizar fronteiras simbólicas e cursos de ação que

comunicam a trajetória social dos indivíduos. Logo, não concentrarei esforços para mostrar a

coerência entre a esfera simbólico–expressiva da transcendência religiosa e a estrutura

social9.

Destaco que, ao promover uma investigação aplicada em problematizar a maneira pela

qual os distintos compromissos religiosos interferem no grau e no tipo de ênfase étnica

acionada pelos potiguaras na interação social, estarei convocando reconsiderações acerca da

“experiência efetiva da atualidade da religião” (GARGANI, 2000, p. 128), num esforço

epistemológico de resgatá-la das interpretações que relegaram os objetos da tradição religiosa

a um eixo de referência metafísico, a um domínio de obscuras possibilidades. Posto assim,

revisito a idéia weberiana de compreensão como atribuição de significado (SAINT-PIERRE,

1999) ao reconhecer no discurso religioso “uma perspectiva de interpretação da vida”

(GARGANI, 2000, p. 129).

9
Ver Durkheim, 1989; e Geertz, 1989.
12

Por Uma Visão Processualista Em Antropologia

A partir de um exame no conjunto de trabalhos que constituem a etnologia clássica

brasileira, constata-se uma frieza de ânimo para efetivação de pesquisas sobre os índios do

Nordeste. Em verdade, o teor das formulações suscita até mesmo uma indagação: existem

índios no Nordeste?

Do ponto de vista da representação cotidiana de índio e dos antropólogos culturalistas

e estruturalistas são índios aculturados, remanescentes de populações indígenas pré-

colombianas, "misturados" e “integrados” ao modo de vida “civilizada”. Ora, são grupos que

compartilham elementos de cultura com seus vizinhos regionais, ou seja, não diferem suas

posses do padrão camponês e estão entremeadas as populações regionais (OLIVEIRA,

1999a).

Portanto, a etnologia indígena no Brasil, até fins da década e 1980, não acreditava

muito no potencial de reflexões dedicadas ao estudo dos índios do Nordeste. As culturas

indígenas eram tratadas pelos teóricos da aculturação "como bolas de bilhar, homogêneas e

autocontidas, e distintas apenas por sua coloração e ordem de entrada no jogo" (WOLF, apud.

OLIVEIRA, 1999b, p. 115). Assim, o enfoque etnológico de "perdas" culturais circunscreveu

o estudo do contato a um plano de pessimismo sentimental (SAHLINS, 1997), referente a um

passado de culturas descontínuas e discretas e a um presente de marcha aculturativa dos

grupos tribais.

A etnologia brasileira projeta-se com vigor epistemológico a partir da ruptura com os

pressupostos do holismo e da integração que algemavam o potencial do estudo do contato

para afigurar-se como fenômeno de vanguarda na renovação dos fundamentos teóricos da

antropologia. Somente o deslocamento do enfoque de unidades que se diferenciam em termos

de inventários de traços culturais para o de uma arena de relações entre atores sociais diversos

(GLUCKMAN, 1987) - índios e não-índios - ordenada em uma situação histórica especifica,


13

permitiu a viabilização de um enquadramento teórico capaz de relevar a polifonia de

estratégias de poder que presidem os rumos da interação do contato interétnico (OLIVEIRA,

1988).

Uma questão fundamental para transpor os obstáculos ao estudo do contato consiste

em descrever de que maneira os sujeitos históricos estão posicionados no campo de relações

de interdependências (GLUCKMAN, 1987) próprias do estabelecimento da organização

interna dos grupos, para, dessa forma, romper com o modelo naturalizado de sociedade "e

compreender contextualmente os dados obtidos" (OLIVEIRA, 1999a, p. 34).

Então, o ponto de vista fundamental à constituição de uma visão processualista em

antropologia consiste na percepção dos intercâmbios de significações movimentados em um

contexto de interação social. Ou seja, a sociedade deixa de ser vista como uma entidade

arquitetônica e limitada, e, o antropólogo, ou sociólogo, passa a perseguir a caracterização dos

processos sociais vividos por pessoas de carne e osso em "atividade contínua de produção de

mundo" (BARTH, 2000, p. 126).

Nesse sentido, ao invés de esquivar-se dos aspectos problemáticos da vida cotidiana na

tentativa de salvar a tônica de um universo social auto-explicável, a análise processualista

assume o estudo dos conflitos de modo a identificar os cursos de ação e mapear as fronteiras

relacionais orientadas pelos indivíduos posicionados em diferentes redes comunicativas. Uma

análise da cultura em termos processuais implica entender que ao descrever a história de um

grupo através do tempo, não se está descrevendo simultaneamente um enredo seqüencial e

análogo de uma cultura, pois

os elementos da cultura atual do grupo étnico em questão não surgiram do conjunto


específico que constituía a cultura do grupo em um momento anterior, ainda que
este grupo tenha existência contínua do ponto de vista organizacional, com
fronteiras (critérios de pertencimento) que apesar de modificarem-se, demarcam
efetivamente uma unidade que apresenta continuidade no tempo" (BARTH, 2000,
p. 67).
14

Assim, a confluência entre antropologia e história nos coloca numa posição mais

favorável para captar a potencialidade etnográfica dos fenômenos étnicos organizados (e que

se organizam) no controvertido contexto do Nordeste brasileiro. Com efeito, a renovação do

interesse pela temática dos índios do Nordeste, propiciada por “uma abordagem dinâmica das

relações interetnicas em que o contato não se reduz a uma percepção dualista da realidade

(índios versus não-índios)” (MARTINS, 1999, p. 201), emerge conjuntamente aos processos

de mobilização política da identidade que nos últimos vinte anos acenam por entre

descontinuidades históricas comunidades etnicamente diferenciadas.

Portanto, ao ressaltar processos de organização social da cultura, os antropólogos

comprometidos com a plena historicidade das sociedades indígenas do Nordeste,

representadas genericamente como “índios misturados”, atuam no rompimento de estereótipos

e na denúncia de preconceitos, estimulando, assim, a produção de pesquisas que contribuam

para repensar a história e as situações étnicas dos índios do Nordeste.

Os Potiguara Na Percepção Antropológica

Potiguara é um grupo indígena que guarda continuidade histórica com os nativos da

grande nação Tupi que, segundo os cronistas, senhoravam, a costa do Brasil por 400 léguas

entre a Paraíba e o Maranhão. Admite-se que, provavelmente, mais de cem mil potiguaras

povoavam essa região. Atualmente os Potiguara estão firmados no litoral norte do estado da

Paraíba, mais precisamente nos municípios de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto.

Não obstante os Potiguara atestem um contínuo histórico com os nativos que

ocuparam uma extensão territorial de grande dimensão no contexto da região nordestina, há

até o presente uma carência de trabalhos antropológicos que focalizem a experiência histórica

dessa população indígena.


15

O primeiro trabalho sistemático sobre os Potiguara foi a dissertação de mestrado de

Paulo Marcos Amorim (1970), que procurou estabelecer a tese dos “índios camponeses”.

Nesse estudo, o grupo é percebido a partir do par de conceitos de

acamponesamento/proletarização, com o objetivo de descrever o sistema interétnico que

evidencia o limiar da ordem tribal à ordem nacional. Esta pesquisa se apresenta como ponto

de partida para um estudo comparativo dos remanescentes indígenas ao emergir um modelo

singular de camponês no cenário nacional.

Tal perspectiva coaduna-se à problemática da fricção interétnica, noção elaborada por

Roberto Cardoso de Oliveira (1964) que orientou, desde a década de 1960, sobremaneira o

campo dos estudos das relações interétnicas entre índios e brancos no Brasil, que, no início da

década de 1980, foi superada por abordagens centradas nos processos históricos de construção

de etnicidades. Esse autor chamou fricção interétnica "o contato entre grupos tribais e

segmentos da sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos competitivos, e, no mais

das vezes, conflituosos, assumindo esse contato muitas vezes proporções 'totais', i. e.,

envolvendo toda a conduta tribal e não-tribal que passa a se moldada pela situação de fricção

interetnica" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1981, p. 118). Assim, o foco da análise concentra-se

em mostrar os fios estruturais que traçam a "totalidade sincrética" de trânsito do grupo tribal à

população nacional.

Nesses termos, a pesquisa de Amorim (Índios Camponeses: Os Potiguara da Baia da

Traição) tende a um enquadramento naturalizante da vida social dos Potiguara, percebida

como um subsistema tribal acamponesado. Daí, ao descrever o ciclo evolutivo de

descaracterização aborígine impulsionada pela expansão do capital e proletarização, suprime

as possibilidades de manipulação da identidade étnica articuladas no processo histórico de

organização social. A discussão sobre o destino das sociedades indígenas paulatinamente


16

integradas a economias regionais tem como conseqüência a recuperação do esquema dualista

característico dos estudos que sustentam o paradigma aculturativo.

É justamente essa postura teórica, típica de uma etnologia das perdas de traços culturais

autóctones, desenvolvida no estudo de Franz Moonen (1992). Aplicado em apresentar um

conhecimento etnohistórico desses índios, esse autor, ao coligir importantes dados

arquivísticos e bibliográficos sobre os Potiguara desde o século XVI, e, ao tratar das relações

desses índios com as agências coloniais e órgãos tutelares (primeiro o Serviço de Proteção ao

Índio [SPI] e depois a Fundação Nacional do Índio [FUNAI]), acabou delineando um perfil

totalmente negativo do grupo no esteio do ideário da mudança cultural que imprime estados

desfigurativos das peculiaridades do grupo étnico. De toda forma, vale dizer que o trabalho de

Moonen ainda é referencia para consulta de dados históricos importantes sobre os Potiguara.

Outro trabalho acerca dos Potiguara foi desenvolvido por Ana Lúcia Lobato de

Azevedo (1986), que teve como foco de análise situar a atuação do Estado no estabelecimento

de terras indígenas (e, assim, tomando os Potiguara como estudo de caso), tanto por meio do

poder judiciário como da esfera administrativa. O ponto de partida desse enquadramento

antropológico está na inserção do grupo indígena no quadro jurídico-político formatado por

parâmetros ditados pelo Estado-nação. Ou seja, a autora não perde de vista as "relações de

interdependência que se atualizam em um dado contexto histórico" (OLIVEIRA, 1988, p. 56),

onde as populações indígenas se apresentam como entidades organizadas aplicadas em

investimentos políticos de captação de recursos, sobretudo, um território para o usufruto

sociocultural da comunidade. Importante destacar a perspectiva da autora quando reconhece

ser fundamental relevar no fazer antropológico as noções construídas no interior do grupo.

Por fim, há também a monografia de conclusão de curso de graduação na UFPB

(Campina Grande) e a dissertação de mestrado (UFPR), ambas produzidas por José Glebson

Vieira (1999; 2001). Na monografia, Vieira busca analisar como o grupo indígena Potiguara
17

constrói e manipula mecanismos na (re)construção da sua identidade étnica. Esse autor acaba

enfatizando informações de caráter racial expressas pelos potiguaras para a determinação do

que é ser índio, que o fazem perder de vista uma discussão do que é ser Potiguara. A

construção da etnicidade Potiguara emerge em seu trabalho a partir das problematizações do

território indígena e mobilização política, deixando de lado questões relevantes que convergem

para o foco de minha pesquisa quanto à interconexão entre a experiência coletiva da etnicidade

e a administração da diversidade cultural.

Tomando por objeto a mesma sociedade indígena, Vieira almeja em sua dissertação

apresentar uma etnografia dos Potiguara evidenciando “de que modo os Potiguara concebem a

diferença entre os grupos, como entendem o evento do contato e como o ‘outro’ é

classificado” (2001, p. 2). Esta pesquisa, ao promover uma discussão etnográfica por meio da

construção de isomorfismos e inversões (estruturalistas), não aproveitou a chance de avançar

os estudos sobre a etnicidade Potiguara, uma vez que ignorou os processos sociais que

influenciam na produção de mundo dos Potiguara.

As Conversações Do Etnógrafo No Campo

Os modos de representação etnográfica expressam um desempenho metodológico

central na tradição disciplinar da antropologia social e cultural. De modo a reavaliar o

empreendimento analítico articulado no trabalho de campo, James Clifford (2002) elegeu a

noção de autoridade etnográfica para pensar sobre os efeitos do discurso etnográfico na

afirmação e reprodução de “relações históricas de dominação e diálogo” (CLIFFORD, 2002,

p. 19).

O processo de representação intercultural é tortuoso e cheio de dobras que

desestabilizam o controle dicotômico entre linguagem e experiência. As concepções culturais

e políticas de quem escreve o texto etnográfico integram a própria imagem representada do


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contexto da sociabilidade apresentada ao leitor. Então, a questão crucial da prática da

etnografia torna-se o desvelamento dos ângulos e posicionamentos interpretativos que

concorrem para uma visão legítima de mundo num dado contexto de interação social. Dessa

forma, passo agora a descrever sucintamente meu percurso como pesquisador na área

indígena Potiguara, registrando a trama de relações articuladas que envolveram minha prática

etnográfica.

A pesquisa de campo foi desenvolvida em três períodos, que compreenderam a

respectivos finais de semana, perfazendo um total de dez dias. Realizei um survey na área

Potiguara em setembro de 2003, intermediado, como mencionei, por um estudante de

antropologia da UFPB que integra o SEAMPO. Este grupo de trabalho social apresenta-se na

comunidade Potiguara através de alguns estudantes de cursos diversos daquela universidade.

Sendo assim, minha presença foi inicialmente identificada como “o menino da universidade”.

Vale indicar que, exceto a atitude cordial e de extrema gentileza e confiança do

professor Maurino em viabilizar a minha estadia na cada de seu irmão - que se encontrava

desocupada - num final de semana na Baía da Traição, não recebi qualquer tipo de apoio

financeiro para a realização de meu trabalho de campo, como ainda para materiais necessários

à produção e confecção deste estudo monográfico.

Na comunidade Potiguara, fui sempre muito bem recebido, fato revelado na extrema

hospitalidade das famílias que me acolheram em suas residências durante a maior parte da

pesquisa. Daí, conforme eu transitava por entre as comunidades e me relacionava com

diferentes pessoas, fiando meu percurso como etnógrafo, andarilho “familiar”, aliado e

interlocutor de questões relacionadas à mobilização política de diferença étnica, passei a ser

conhecido como “o menino de Natal”.

O trabalho de campo concentrou-se na investigação empírica do cenário social de três

comunidades Potiguara: Vila de Monte-Mor, Forte e Galego. A delimitação desses contextos


19

como lócus para a minha atividade etnográfica esta intimamente relacionada à localização das

residências onde fiquei hospedado. Recebi hospedagem na Vila e no Galego, aldeia contígua

a aldeia do Forte. Aponto que todas as pessoas com as quais conversei demonstravam

interesse em saber em que lugar eu estava pousando. O fato de pousar em residências de

famílias indígenas permitiu-me um contato de considerada confiança, além de uma

convivência constante com os membros do grupo.

Acredito ser fundamental afirmar que a monografia de orientação etnográfica que

apresento trata-se de uma construção minha, “uma abstração com finalidades analíticas,

composta dos padrões de interdependência entre os atores sociais, e das fontes de canais

institucionais de conflito” (OLIVEIRA, 1988, p. 57). Assim, importa dizer que esta pesquisa

apresenta limitações e lacunas etnográficas quanto à amplitude do modelo de análise

desenvolvido, em virtude da curta permanência na comunidade Potiguara que se conjuga a

complexidade de exame teórico de maior envergadura.

Os dados históricos sobre os Potiguara foram principalmente informados pelo relatório

produzido pela historiadora Thereza de Barcellos Baumann (1981, apud. MOONEM, 1992, p.

153-181), importante sistematização da trajetória histórica desse grupo indígena. Portanto,

apóio-me amiúde nesse relatório para apresentar a constituição histórica dos Potiguara na

Paraíba.

Sobre os métodos de pesquisa antropológica, sigo uma perspectiva processual e

histórica da sociedade em movimento e em constante fluxo, que me parece um ponto de vista

fundamental para a investigação sobre os processos de mudança social que conformam a

organização do grupo indígena Potiguara. Trata-se de trabalhar substantivamente em busca de

respostas para a pergunta: como a sociedade se transforma? Esta visão, ao compreender a

cultura enquanto processo, privilegia a observação de conflitos e interstícios sociais. Sugere,


20

então, enfatizar a maneira pela qual as formas culturais enredam "uma gama de modalidades

preceptivas e comunicativas" (HANNERZ, 1997, p. 12) entre populações particulares.

A pesquisa foi realizada a partir de trabalhos de campo, utilizando o registro de

situações concretas e das normas em conflito traduzidas em prática pelos indivíduos como

parte constitutiva da análise, incluindo-se também as considerações de Goffman (1985) quanto

à interação simbólica entre os agentes sociais. Interessa para a investigação etnográfica o

método elaborado por Van Velsen (1987), baseado na análise seqüencial de situações sociais

que focalizam gente, lugar e tempo. O plano do relato etnográfico é apresentar a participação

de vários atores sociais nos universos de discursos múltiplos evocados no âmbito das formas

de religiosidade encontradas na comunidade Potiguara, ao lado do reconhecimento do caráter

dialógico do compartilhamento sociocultural do etnógrafo no campo (CLIFFORD, 2002).

No curso do trabalho de campo, a coleta de dados e dos relatos individuais foi efetivada

mediante a disponibilidade e a escolha intencional de contextos e pessoas especialmente

significativas no que se refere aos sentidos possíveis no campo Potiguara. Como procedimento

metodológico em minha investigação, a exploração dos diferentes processos que configuram

experiências religiosas de indivíduos específicos no contexto desses casos proporcionou a

identificação de padrões de significados esclarecedores do modo de operar a manutenção das

fronteiras sociais do grupo.

O período das minhas idas a campo não coincidiu com qualquer data do calendário

católico anual permeado de festejos dedicados aos diferentes santos padroeiros das aldeias.

Logo, este importante contexto de interação demanda a efetivação de uma descrição densa

(GEERTZ, 1989), principalmente as festas de São Miguel e Nossa Senhora da Conceição,

comemoradas, respectivamente, no mês de setembro e em dezembro, pois estas figuras do

catolicismo são vistas como os protetores dos Potiguara.


21

Cabem ainda investigações detalhadas acerca da posição do cargo de pajé no contexto

da sociabilidade Potiguara, como também - mediante relações de confiança incrementadas no

percurso do trabalho de campo que afiançam o posicionamento do etnógrafo como um aliado

na luta das classificações desbravadas no espaço social – investigar praticas particulares de

religiosidade mantidas em segredo pelos membros que as executam. E, ainda, ao explorar a

existência de expectativas e anseios sagrados na performance do Toré Potiguara, levanto

questões e dúvidas acerca das interfaces semânticas desse fenômeno social que precisam de

maiores esforços de investigação.

Desse modo, tratando-se de uma pesquisa inovadora em meio de uma sociedade com

referentes e movimentos de tipo étnico, acredito que esta monografia inscreve-se numa

discussão ampla imprimida nos trabalhos sociológicos e antropológicos contemporâneos tanto

no que diz respeito à produção etnológica que trabalha no sentido de resgatar a plena

historicidade das populações indígenas, quanto à formação de identidades na modernidade,

como também, às questões básicas postas pela religiosidade nas ações práticas da vida.

Portanto, este estudo configura-se enquanto esforços de pesquisa iniciais que pretendem

alargar horizontes numa futura pós-graduação.

A monografia está dividida em dois capítulos. O primeiro mostra a formação histórica

dos Potiguara, chegando, enfim ao exame da configuração atual dessa população indígena.

Para desenvolver tal investigação, exponho considerações preliminares acerca da noção de

grupo étnico e identidade indígena.

O segundo enfoca a maneira pela qual as formas de religiosidade interferem nos

investimentos de perfil étnico orientados pelos potiguaras, mostrando, necessariamente, a

configuração de um campo10 da religiosidade. Assim, procuro explorar a pletora processual de

10
“É importante entender que a concepção de campo é antes metodológica e instrumental do que uma construção
lógico-abstrata e teórica” (OLIVEIRA, 1988, p. 42). A idéia de campo é valiosa para romper com imagens
arquitetônicas e fechadas de sociedade, em favor da descrição de uma arena social composta “de atores
diretamente envolvidos nos processos estudados” (SWARTZ, apud. OLIVEIRA, 1988, p. 41).
22

geração dos significados compartilhados na comunidade Potiguara, de modo a visualizar o

surgimento das distinções religiosas no âmbito de uma etnicidade comum. Nesse sentido,

procedo a uma breve avaliação critica dos conceitos de Cultura e Sociedade para fornecer um

certo background para a exposição do curso teórico da investigação.

Enfim, este estudo monográfico convoca atualizações de pontos de vista sobre a

população Potiguara, buscando implodir o postulado do índio aculturado à medida que

desconstruo pressupostos teóricos incipientes para captar a formação histórica dessa

comunidade indígena ao caracterizar o pluralismo religioso vivido pelos membros do grupo.

Capítulo 1 – Os Índios da Paraíba


23

Entendo a formação étnica da comunidade Potiguara a partir da clássica posição de

Weber, que assim reconhece

aqueles grupos humanos que, em virtude de semelhanças no habitus externo ou nos


costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranças de colonização e migração,
nutrem uma crença subjetiva na procedência comum, de tal modo que esta se torna
importante para a propagação de relações comunitárias, sendo indiferente se existe
ou não uma comunidade de sangue efetiva” (Weber, 1994, p. 271).

Nesse sentido, o que importa para a conjugação de relações comunitárias étnicas

categorizadas sob a adscrição Potiguara é a crença na “comunhão étnica” fundada numa

“honra específica”, a qual participam os membros que compartilham desse sentimento de

afinidade, prescindindo, então, de uma origem racial objetiva.

O primordial da investigação sobre quem é índio está nos canais de identificação

fornecidos pelos atores sociais da pesquisa. Nesses termos, com Moermam (1965) e Barth

(1969) aparecem novas perspectivas para o estudo dos grupos étnicos. Moermam esclarece

que a pertença a um grupo étnico é dada pela auto-identificação do sujeito e pela atribuição

étnica manifestada pelos membros da comunidade. Para esse autor o que está em jogo é uma

classificação nós-eles, que envolve processos de identificação situacionais.

Recuperando a definição weberiana de “comunidades étnicas”, ao admiti-la como

uma comunidade política constituída de processos identitários que se estruturam em contextos

precisos para a reivindicação de um espaço no conjunto da sociedade, Barth, em finais dos

anos 1960, vai conceber um grupo étnico como tipo de organização. Esta visão conceitual

expressa uma postura critica à concepção de grupo étnico como “unidade de cultura”. Barth

destaca que “é muito mais vantajoso considerar essa importante característica como uma

conseqüência ou resultado ao invés de tomá-la como um aspecto primário ou definidor da

organização dos grupos étnicos” (BARTH, 2000a, p. 29). Nesse sentido, a ênfase da análise

recai sobre os problemas da manutenção de fronteiras étnicas, que “são evidentemente

fronteiras sociais” (BARTH, 2000a, p. 34). Na interação com diversos personagens, a


24

atribuição étnica depende de critérios de pertencimento socialmente relevantes que canalizam

os padrões de julgamento para tal identidade.

A questão central aqui é resgatar a plena historicidade da sociedade indígena

Potiguara. Ou seja, criticar o “vício do presentismo” (STOCKING JR., apud. OLIVEIRA,

1999b, p. 105) obstinado em tratar as populações indígenas como lápide cultural daqueles

povos que sempre existiram. Saliento que este trabalho histórico não visa marcar a

autenticidade indígena do grupo. Em verdade, qualquer pesquisa etnológica que pretenda

definir comunidade indígena como aquela que apresenta um contínuo histórico com os

autóctones contemporâneos do encontro colonial, estará predestinada a um modelo

naturalizado de sociedade incapaz de lidar com a demanda processual do fenômeno étnico.

Seguindo as proposições analíticas de Grünewald (1999), não interessa uma apreensão

de comunidades indígenas a partir de registros de “resíduos” do que foram um dado grupo. O

que é relevante é considerar os múltiplos veículos, meios, procedimentos e arranjos que

concorrem para o processo fragmentado de atualização da representação de sua entrada como

índios no quadro da sociedade nacional. Assim, se é inevitável que o patrimônio cultural das

sociedades indígenas mude a fim de atender a novas expectativas e necessidades, não é de

modo algum inevitável que desapareçam em sua unicidade e abdiquem de seu posicionamento

histórico.

Situada no Nordeste, área de colonização mais antiga e crucial na formação da nação

brasileira, a população indígena Potiguara “refabricou constantemente sua unidade e diferença

diante de outros grupos com os quais esteve em interação” (OLIVEIRA, apud.

GRUNEWALD, 2001, p. 62) ao longo destes 504 anos de Brasil. Sendo assim, como aponta

Oliveira (1999a, p. 31), estabelecendo um elo entre substancialistas e pragmatistas 11, “o que
11
Importa constatar que desde o início dos debates teóricos sobre a etnicidade uma encruzilhada que separa
posturas se apresenta: em uma margem, os substancialistas, que percebem a etnicidade centrada nos laços
primordiais (parentesco, língua, etc.); na outra, os pragmatistas, que pensam a etnicidade na direção de
posicionamentos políticos que se dispõe na interação em situações sociais construídas em contextos históricos
específicos.
25

seria próprio das identidades étnicas é que nelas a atualização histórica não anula o

sentimento de referência à origem, mas até mesmo o reforça. É da resolução simbólica e

coletiva dessa contradição que decorre a força política e emocional da etnicidade”

(OLIVEIRA, 1999a, p. 30).

Cabe, então, insuflar que no estabelecimento processual de fronteiras sociais, lugar de

construção de identidades étnicas, a invocação de uma origem e de valores culturais

compartilhados e as estratégias de mobilização política estão primordialmente ligados para a

manutenção de uma etnicidade12 indígena.

Uma sociedade indígena do Nordeste

Baía da Traição é o local litorâneo associado à presença e ao reconhecimento histórico

dos Potiguara, grupo originalmente da família lingüística tupi. No inicio do século XVI, os

franceses já haviam fundado um entreposto comercial para a exploração do pau-brasil.

Evidentemente, tal ocupação ia de encontro aos interesses da colonização portuguesa.

Varias incursões portuguesas que tentaram conquistar a Paraíba foram repelidas pelo

mor (maior) e mais guerreiro e prático gentio do Brasil. Inclusive o nome Baía da Traição,

segundo o cronista Soares de Sousa, surgiu por conta de um combate que resultou na morte de

alguns portugueses e castelhanos que se perderam nas terras dos Potiguara. Os índios da

época denominavam essa região de Acajutibiró – terra do caju azedo.

Somente na ultima década do século XVI os portugueses lograram a conquista do

território ocupado pelos Potiguara. Esta população foi realmente rechaçada para “além do rio

Paraíba, em direção ao Rio Grande do Norte, exatamente para a região que ainda hoje

12
Segundo Seyferth, “é possível pensar a etnicidade como uma qualidade da qual se participa, e que expressa a
ênfase na atribuição de membro de um grupo étnico” (Grünewald, 1999, p. 157).
26

ocupam, entre o Mamanguape e o Camaratuba, que se situa fronteiro aos limites daquele

estado” (BAUMANN, apud. MOONEM, 1992, p. 158).

É a partir desse período que podemos falar da “história da catequese das missões na

Paraíba” (BAUMANN, apud. MOONEM, 1992, p. 155). Com efeito, os relatos da vitória da

armada portuguesa sobre o gentio potiguar estão no documento intitulado Summário das

armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do Rio Paraíba 13,

provavelmente de autoria do padre Simão Travassos, um dos dois religiosos 14 que

acompanharam a expedição bélica liderada por Martin Leitão naquela famigerada ofensiva.

As expedições armadas contra os Potiguara foram executadas apesar de já existirem

leis promulgadas (1537, 1548, 1570 e 1587) que concediam aos índios o direito a “bons

tratos”. Em 1537, através de uma bula expedida pelo papa Paulo III, foram declarados capazes

de receberem a salvação cristã, uma vez que tiveram atestada sua pertença ao gênero humano.

Dessa forma, as ordens de catequização determinavam que os grupos indígenas “careciam,

mesmo, é de um rigoroso banho de lixívia em suas almas sujas de tanta abominação, como a

antropofagia de comer seus inimigos em banquetes selvagens; a ruindade com que eram

manipulados pelos demônios através de seus feiticeiros; a luxuria com que se amavam com a

naturalidade de bichos; a preguiça de sua vida farta e inútil, descuidada de qualquer produção

mercantil” (RIBEIRO, 1997, p. 57). Competia, então, à Igreja tutelar os índios à frente das

missões religiosas.

Dentre os missionários cristãos, os franciscanos foram pioneiros nas campanhas de

ocupação do litoral nordestino. Como indica Del Priore, estes religiosos

ali se uniam aos senhores de engenho, rezando missas em suas fazendas ou


abençoando as moendas de açúcar. Acompanhavam as bandeiras e outras
expedições para apresamento de índios e várias vezes ajudaram os colonos em
guerras contra os nativos, que eram apoiados pelos jesuítas. Foi o que aconteceu,
por exemplo, na guerra paraibana de 1585 contra os potiguares.

13
Escrito aproximadamente na década de 1570.
14
De acordo com o “Sumário”, geralmente dois padres assistiam as missões na Paraíba.
27

Esta batalha marcou o processo de efetivação da conquista da Paraíba e o conseqüente

domínio dos índios Potiguara.

Em 1601, os franciscanos missionavam cerca de 14.000 potiguaras, distribuídos entre

dezesseis e dezoito aldeias. Em verdade, não há

uma notícia certa dos aldeamentos pelos franciscanos com os Potiguara da Baia da
Traição e Montemór no inicio do século XVII, podemos ter a certeza de que eles
habitavam essa região, como nos provam, indubitavelmente, os documentos que os
holandeses nos deixaram à respeito da Paraíba, por ocasião da ocupação holandesa
do Nordeste (BAUMANN, 1981, apud. MOONEM, 1992, p. 159).

Nos séculos XVIII e XIX, a ordem religiosa dos carmelitas dirigia missões nas aldeias

de São Miguel da Baia da Traição e de Monte-Mor (ou Preguiça). É possível certificar a partir

de um enunciado do Frei Carmelita André Pratt, que o grupo da Reforma do Carmo já estava

na região desde o final do primeiro decênio do século XVII. De fato, “em 1702, uma Carta

Régia de 27 de março estabelece o poder espiritual dos missionários nas aldeias indígenas da

Paraíba. Em 9 de maio de 1703, outra Carta Régia determinava que se construísse uma igreja

na Baia da Traição, mencionando os índios daí e os de Camaratuba. Em 6 de junho de 1705

declara ‘mandar cuidar da conversão dos índios, enviando missionários para as suas aldeias”

(idem 163).

As missões religiosas estão associadas ao primeiro processo de territorialização 15 que

envolveu as populações indígenas da região do Nordeste brasileiro. A fundação de

aldeamentos16 integrou crucialmente a política de colonização da Coroa Portuguesa, com os

objetivos de reunir os índios remanescentes do genocídio da conquista, convertê-los à fé

católica – visto que os mesmos, “em muitos casos, comiam ainda carne humana ou

auxiliavam os luteranos” (BAUMANN, apud. MOONEN, 1992, p. 160) -, e agremiar um

15
Para Oliveira (1999a, p. 20) trata-se de “um processo de reorganização social que implica: i) a criação de uma
nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; ii) a
constituição de mecanismos políticos especializados; iii) a redefinição do controle social sobre os recursos
ambientais; iv) a reelaboração da cultura e da relação com o passado”.
16
De acordo com os censos demográficos coloniais, em 1777 havia 39.405 índios aldeados nas capitanias de
Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Na Paraíba a população indígena era de 5.182 indivíduos,
representando 10,7% da população dessa capitania (PORTO ALEGRE, 1998, p. 9-10).
28

contingente de “índios mansos” no intuito de usá-los como mão-de-obra “aliada” nas áreas de

atividade agrária, principalmente. Dessa maneira, as missões religiosas funcionavam como

“empreendimentos de expansão territorial e das finanças da Coroa” (OLIVEIRA, 1999a, p.

23), com “uma intenção inicial explícita de promover uma acomodação entre diferentes

culturas, homogeneizadas pelo processo de catequese e pelo disciplinamento do trabalho”

(ibid).

Inúmeros conflitos envolvendo religiosos, índios e sesmeiros, marcaram a política de

aldeamentos. A promulgação de leis que coibiam a escravização indígena gerava constantes

discórdias entre colonos e missionários. E, necessariamente, o encarceramento territorial das

populações indígenas limitava seus modos de sobrevivência tradicionais, resultando em busca

por pesca e caça e invasão de roças nas áreas ocupadas por segmentos da sociedade nacional.

Logo, havia um pretexto perene para a “guerra justa”, que estabelecia o “direito” de aprisionar

índios para o trabalho escravo.

Na capitania da Paraíba, a situação de contato interétnico seguia de maneira similar os

processos de mudança social que caracterizam a história indígena no Nordeste. Sob as

dissimulações da “guerra justa”, justificada pela suposta noticia contida numa carta enviada

ao Rei, em 12 de fevereiro de 1732, por Francisco Pedro Mendonça Gorjão, Capitão Mor da

Paraíba, de que os índios daquela capitania (assim como os do Ceará) estariam planejando

matar os brancos na noite da missa de Natal, vários indígenas insurretos foram presos. As

intervenções conduzidas pelos missionários carmelitas – especialmente o Frei André de Santa

Catherina – opondo-se ao cativeiro dos índios foram objeto de uma Consulta do Conselho

Ultramarino. Diante desses acontecimentos, uma Carta Régia de 26 de novembro de 1740,

determinou uma sindicância para averiguar as “mortes havidas nas prisões de uns feiticeiros e

índios em Mamanguape” (BAUMANN, apud. MOONEN, 1992, p. 165).


29

A despeito das Cartas Régias, Alvarás e Regimentos de 1710, 1728, 1755, 1758, 1785

e 1804, que resguardavam a posse de terras aos índios, especialmente àqueles que se

encontravam em missões, estes nativos eram submetidos ao extermínio sumário, escravizados

e, paulatinamente, tinham seus territórios espoliados.

Entre 1757 e 1798 estiveram em vigor as leis do Diretório Pombalino: diretrizes

indigenistas implementados pela intervenção do Marquês de Pombal que determinou dentre

inúmeras medidas – baseado no discurso da liberdade dos índios – a expulsão dos jesuítas, a

reforma dos aldeamentos, que passariam a vilas (perdendo, assim, a tutela eclesiástica) em

favor do controle direto por governantes e administradores coloniais, com incentivo aos

casamentos interétnicos infundidos pela fixação de colonos.

Dessa feita, como os aldeamentos de Baia da Traição e de Monte-Mor “deveriam

possuir o ‘número competente’ de índios” (BAUMANN, apud. MOONEN, 1992, p. 167)

foram elevados a categoria de vilas, apresentando, então, dimensões territoriais superiores à

légua quadrada outorgada às missões religiosas. Ficaram, assim, fixadas a Vila de São Miguel

da Baia da Traição e a Vila de Nossa Senhora dos Prazeres de Monte-Mor. Conforme indica

Baumann, encontra-se em muitos documentos subseqüentes a palavra “sesmaria” para

designar os aldeamentos de Monte-Mor e Baia da Traição, “o que nos leva a supor que,

talvez, tivesse realmente havido uma concessão especial de sesmaria para estes índios,

independente das terras concedidas pelos Alvarás já citados” (ibid).

Portanto, diversas referencias documentais do século XIX confirmam o

reconhecimento público dos índios Potiguara na Paraíba, que progressivamente tinham suas

terras invadidas sob as mais variadas alegações: “de compra aos mesmos índios ou àqueles

que estavam na obrigação rigorosa de defender a respectiva propriedade; de aforamentos que

não tencionavam pagar; de doações, heranças e outros títulos de transferências, e, finalmente,

de prescrições de mais ou menos anos de posse” (MOONEN, 1992, p. 99).


30

Com efeito, ancorada em mudanças demográficas e econômicas, a política estatal

assimilacionista gradativamente foi se agravando. A partir da Lei de Terras de 1850, o

Governo Imperial procurou levantar informações acerca das situações fundiárias das

províncias. Dessa maneira, “os governos provinciais vão, sucessivamente, declarando extintos

os antigos aldeamentos indígenas e incorporando os seus terrenos a comarcas e municípios em

formação” (OLIVEIRA, 1999a, p.23). Daí, uma multiplicidade de segmentos populacionais

não-índios – pequenos agricultores, fazendeiros, os responsáveis pela administração local, os

legisladores, a justiça, a policia, e outras categorias de atores sociais – vão consolidando seus

quinhões de terra, seja por arrendamento, seja por compra de terra aforadas, seja no mais das

vezes tomando-as dos índios a ferro e fogo.

De fato, a dispersão dos grupos indígenas se aprofundava à medida que avançavam as

frentes de expansão da sociedade nacional, fugindo do trabalho forçado em “longas migrações

para áreas ainda pouco habitadas, onde se refugiam até serem novamente alcançadas pelas

frentes econômicas, (...) abandonando as aldeias e vagando entre as fronteiras das capitanias,

em “correrias” sem fim, (...)” (PORTO ALEGRE, 1998, p. 12-13).

Em várias edições (abril, agosto, outubro de 1864), o jornal oficial da Província da

Paraíba, o “Publicador”, divulgou notícias que atestavam a posse de terras dos índios de

Monte-Mor e Baia da Traição e a expropriação destas áreas. Lutando contra uma miríade de

fatores desagregadores da sua sociabilidade, a população Potiguara intensifica pedidos de

garantia de direitos às terras dos aldeamentos, que por decreto já haviam sido concedidas pela

Coroa Portuguesa. Segundo a tradição oral da comunidade Potiguara, o Imperador Dom Pedro

II doou aos índios as sesmarias de São Miguel da Baia da Traição e de Nossa Senhora dos

Prazeres de Monte-Mor, quando de sua visita oficial à Paraíba, em 27 de dezembro de 1859.

Nesse sentido, “a cobiça pelas terras indígenas encontrava um instrumento perfeito na

legislação que regulamentava a propriedade da terra no Brasil, a qual determinava que os


31

indios em contato com a população nacional perdiam o direito às terras que habitavam”

(PORTO ALEGRE, 1998, p. 3). Dessa maneira, no ano de 1862, uma decisão imperial

resolve lotear as terras dos aldeamentos. Demarcadas as terras e divididos os lotes, cada

família indígena receberia um quinhão e as áreas restantes seriam repartidas entre os não-

índios.

A incumbência desse trabalho ficou a cargo do engenheiro Antônio Gonçalves da

Justa Araújo, que entre 1866 e 1867 realizou a medição e demarcação dos perímetros das duas

sesmarias. Contudo, Justa Araújo faleceu em 1868, deixando divididas somente as terras de

Monte-Mor, em que “foram delimitados os lotes de 165 índios e dos arrendatários, que foram

nominalmente relacionados” (PERES, 2004). Consta ainda que o citado engenheiro

“apresentou também o quadro da aldeia de Monte-Mor com 75 posses para índios, não

distribuídas” (PERES, 2004). Logo, como não fora nomeado outro profissional para efetivar a

tarefa de demarcação de posses particulares às famílias indígenas, os potiguaras de São

Miguel da Baia da Traição mantiveram a detenção coletiva de seu território.

A permissão legal, em 1875, da venda de terras aforadas em aldeamentos extintos,

serviu como mote para invasão compulsória das terras indígenas. Ora, os terrenos doados em

lotes aos índios de Monte-Mor não podiam ser negociados, já que eram intransferíveis em

razão do Decreto de 27 de outubro de 1831, que estabeleceu a condição de órfãos dos índios –

tutelado do Estado – o que impedia que suas terras fossem alienadas sem assistência judicial 17,

e, de qualquer forma, negava que fossem despojadas suas terras. Cabe ressaltar que as terras

originadas da extinção de um aldeamento só poderiam ser consideradas devolutas mediante o

abandono da área pelos indígenas.

17
“O arrendamento de terras indígenas era legal, conforme a Lei de 1845 dizia, exigindo-se apenas, que se
observasse o prazo de três anos e que o Diretor ou regente dos índios, efetuasse uma sindicância a respeito da
honestidade dos possíveis rendeiros” ( BAUMANN, apud MOONEN, 1992, p.175).
32

Diante das considerações pautadas numa revisão da historia indígena enfatizando o

caso dos índios da Paraíba, podemos afirmar que os Potiguara continuamente enfrentaram um

processo violento de dominação, em que a legislação e a justiça foram invocadas na

arbitragem de conflitos cruéis. Para tanto, “os governos provinciais afirmam reiteradamente

que não há mais “tribos selvagens”, que as aldeias estão vazias ou foram extintas e os índios

acham-se confundidos na massa da população” (PORTO ALEGRE, 1998, p. 13).

O argumento do “desaparecimento” do índio predomina no final do século XIX,

endossado pelos governos provinciais, figuras políticas locais e colonos poderosos. Tal

retórica realiza-se enquanto desdobramento do processo de assimilação do índio à população

mais geral, implementado com virulência pela política indigenista do Governo central para

desintegrar a organização dos povos indígenas e expropriar suas terras.

Mas, a verdade é que, indubitavelmente, apesar das extremas pressões para desistirem

de seu território tradicional, os índios Potiguara jamais deixaram de marcar sua ocupação

étnica diferenciada no local.

No inicio do século XX, mais precisamente em 1910, é criado o Serviço de Proteção

ao Índio (SPI), que ideologicamente primava pelos meios para integrar os índios à nação

brasileira, mediante postos de atração e pacificação imbuídos de conjugar proteção e

assistência com o ajustamento à expansão e ao “progresso” da sociedade nacional. Os

registros no SPI acerca dos índios Potiguara principiam no inicio dos anos 20, embora uma

primeira visita já acontecera em 1913, que teve como questão essencial criticar a atuação

missionária e predispor a “urgência” da intervenção indigenista oficial.

É curioso, se não um descaramento, que as visitas dos emissários do órgão indigenista

tinham como anfitriões as figuras de grande prestigio político de Mamanguape os empresários

da família Lundgren, ou seja, justamente as pessoas que se apoderavam dos títulos de lotes

dos índios de Monte-Mor (PERES, 1992). Evidentemente, as deliberações decorrentes desses


33

encontros desaconselhavam a tutela e a revisão dos direitos de ocupantes civilizados

confundidos com a população regional. Somente em 1932 é fundado P.I. São Francisco,

localizado na aldeia São Francisco, que, em 1942, é transferido para o Forte (uma fortificação

de defesa colonizadora daquela faixa litorânea), passando, então, a denominar-se P.I. “Nísia

Brasileira”, próximo à Baia da Traição.

Na resolução dos conflitos fundiários o SPI instituiu o regime de arrendamento de

lotes de terras indígenas, onde a própria existência da área indígena estava condicionada a

distribuição de recursos fundiários na região.

As articulações tutelares – assistencialistas e não antropológicas – da agencia

indigenista oficial marcam o segundo movimento de territorialização que envolveu a

população indígena Potiguara: atribuindo terras a povos indígenas necessárias e suficientes

para o desenvolvimento de sua cultura e modo de vida, e estabelecendo o controle sobre as

relações entre índios e brancos, evitando o conflito e prevenindo seus malefícios para os

índios (extermínio, correrias, escravização, etc). Para a organização política das populações

indígenas foram recomendadas as figuras do cacique e do pajé. O chefe de posto ocupava o

cargo absoluto de poder político na gerencia dos benefícios e recursos, dos assuntos

fundiários e agrários.

A Comunidade Potiguara

É importante frisar que nesta investigação procuro evocar o caráter gerativo dos dados

culturais entre as aldeias, como forma de proporcionar “uma conjuntura cultural congruente”

com o intuito de relevar o sentido da etnicidade Potiguara. Todavia, não posso deixar de

considerar as variações de construção de etnicidade e de mobilização étnica entre os contextos

situacionais das comunidades Potiguara.


34

Os Potiguara são falantes do português, sendo que a língua Tupi começou a ser

ensinada nas escolas das aldeias a partir de 2002, a fim de incentivar a afirmação da

identidade étnica dos mais jovens no seio da promoção mais abrangente do resgate de sua

cultura indígena.

Da mesma forma que os 40 grupos indígenas existentes hoje no Nordeste, os Potiguara

estão envolvidos em conflitos fundiários, ligados à disputa com fazendeiros, grileiros ou

pequenos posseiros, por terras agricultáveis. E, apresentando um caso de extrema pressão para

abandonarem suas terras, Os índios de Monte-Mor se defrontam com grave processo de

concentração fundiária. Esta população está distribuída em três aldeias: Jaraguá, Lagoa

Grande e Nova Brasília; e em dois pequenos núcleos urbanos: Vila Monte-Mor e Marcação.

Vivem, então, numa área territorial onde ficava a antiga Sesmaria de Monte-Mor (ou

Preguiça), que fora repartida em lotes, contribuindo, assim, para a posterior expropriação das

terras das famílias indígenas.

Da época presente, o estudo de identificação coordenado pelo antropólogo Sidnei

Clemente Peres (2004) definiu a Terra Indígena Potiguara de Monte-Mor com a superfície de

7.487ha e com o perímetro de 62km, residindo dentro desta área identificada 3.002 indivíduos

e 874 famílias.

As atividades produtivas estão basicamente voltadas para a lavoura, criação de animais

de pequena escala, o extrativismo vegetal e o artesanato. O orçamento doméstico é sustentado

em grande medida por aposentadorias. Os terrenos mais propícios ao desenvolvimento da

agricultura estão ocupados pelas plantações de cana, confinando o cultivo da terra pelos

índios às grotas e aos barrancos. As pessoas desbravam se embrenham na mata em busca de

frutos da região e de espécies vegetais que geram produtos para o consumo doméstico. O

plantio da mandioca apresenta-se como principal produto para o usufruto familiar;


35

transformada em farinha compõe a renda familiar, sendo vendida em casa e nos municípios de

Rio Tinto e Marcação.

A família Lundgren, grupo empresarial da Companhia de Tecidos Rio Tinto (CTRT) 18,

instalou em 1924 sua fábrica na região que mais tarde daria origem a atual cidade de Rio

Tinto. Na memória coletiva da população indígena que habita toda aquela área, estão

marcados os arbítrios da violência genocida de Frederico Lundgren, renomado como Coronel

Frederico no cenário social local no Tempo da Amorosa, que compreendeu as décadas de

1930-40-50. Os desmandos do Coronel imperavam como lei. Os índios eram amedrontados

pela aura de terror imposta pelos Lundgren, com a utilização das práticas desrespeitosas, de

tortura, e execuções sumárias, cometidas pelos vigias da Companhia. Através de prisões por

razões insignificantes e descabidas, os terrenos dos índios eram apoderados em troca da

liberdade.

Com a decadência da CTRT, a década de 1980 representou o repasse de extensas

faixas de “terras da Companhia” para proprietários de usinas de cana-de-açúcar. Assim, se o

patrimônio territorial da Companhia era proveniente da apropriação de grande parte da área

indígena, nesse momento multiplicaram-se as frentes de luta pela retomada e reconhecimento

do território dos Potiguara de Monte-Mor.

Portanto, o momento atual da etnicidade indígena e das representações sociais dos

índios de Monte-Mor está intimamente conectado às desventuras do passado estirpado pelos

Lundgren. Mas também pelo direito de posse concedido pela doação da Sesmaria dividida em

lotes pelo engenheiro Justa Araújo. É possível ainda encontrar títulos de terra entre uns

poucos índios já bastante idosos ou nas mãos de parentes dos “índio velho”. As historias

terríveis do “Tempo da Amorosa” são contadas por pessoas da mais variadas faixas etárias.

Na memória da população indígena da Vila Monte-Mor a expulsão de suas terras constitui o

18
Nacionalmente representada pela extinta Casas Pernambucanas.
36

saber histórico convergente, operando como instância de conhecimento fundamental da

formação da identidade étnica desses índios. O Depoimento de D. Antonia reflete um saber

ativo em nome dos direitos de sua comunidade:

As coisas daqui eu vou falar pra você, aqui em 40 foi um ‘quebra’ muito grande, foi
um ribuliço muito rim. Era a família dos Lundgren atrás de tomar as terras dos índios,
morreu índio, se acabou-se índio, muita gente sumi-se por aqui, porque a minha vó ta
enterrada ali, mas o meu avô...Eu não digo isso escondido não, to dizendo mesmo.
Essas terra aqui de monte-mor toda vida foi dos índio, nunca que não foi de ninguém.
Os usineiro e a companhia tomou, expulsou os índio daqui debaixo de cacete, tem
muito índio ainda pelo mundo perdido que ainda não veio aqui. Aquela igreja foram
os holandeses que construíram, mas foram os índios que carregaram as pedra pra
levantar aquela igreja. Os meus avô moravam numa casinha de palha ali junto daquela
igreja, acabaram com tudo, tocaram fogo em tudo. Em 40, nos fugimo daqui de dez
horas da noite com as nossa trochinha na cabeça, só com as roupinha da gente. Era
uma carreira de casas dos índio veio, eu seio que meus avô foram acabado. Aqui era
só cana meu filho, mas agora os índio tão ficando sabido, voltando sem medo mesmo,
mas tinha medo de dizer que era, e quem era doido aqui de dizer que era índio, se eles
soubessem que era índio mandava buscar pra matar pra mode de tomar as terra. Nos
tamo liberto graças a Deus em vista do que era. De primeiro aqui era muito sacrifício,
só Deus e Nossa Senhora é que sabe.

A partir de então, se perdesse a consciência de meu compromisso com a plena

historicidade das sociedades indígenas, tombaria às tipologias da aculturação, confirmando o

delineamento imagético que insiste em abordá-las como simples “magotes de índios

desajustados” (Ribeiro, 1970). Assim, raciocinando nos termos de Darcy Ribeiro esta auto-

identificação indígena como povo distinto do brasileiro representa um determinado estado de

transfiguração étnica que preserva a noção de terem uma origem indígena, ou seja, tal

introspecção é um resíduo arqueológico, perdido de sentido em meio a realidade de que são

camponeses sob o impacto da civilização. Ora, já que são “mais ou menos” índios, que

interesse profícuo estas pessoas teriam para os estudos etnológicos?

Com efeito, o processo de formação de identidades indígenas e "a reativação da

identidade étnica por parte de alguns grupos considerados extintos" (PORTO ALEGRE, 1998,

p. 5) traz questões que fomentam a discussão sobre identidades e etnicidade, compelindo os

estudiosos da antropologia a buscarem perspectivas analíticas que dêem conta do fenômeno

nomeado de etnogênese (Sider, 1976).


37

A relação de povos indígenas do Nordeste incluía cerca dez etnias, por volta da década

de 1950. Atualmente, existem 40 grupos indigenas no Nordeste, dentre os quais 28 já

reconhecidos pelo órgão indigenista oficial e distribuídos por 45 áreas, totalizando

aproximadamente 48.105 pessoas, concentradas em apenas 247.889ha.

O projeto “Fronteiras Étnicas, Território e Tradição Cultural” (desenvolvido no

PPGAS/Museu Nacional de 1988 a 1996), sob a orientação do professor João Pacheco de

Oliveira, acabou por fornecer importantes subsídios, uma vez que proporcionou a gênese de

uma serie de pesquisas, dissertações e teses, no sentido de enfatizar processos socioculturais

de demarcações de identidades indígenas na contramão do ideário de integração dos índios a

sociedade nacional ativado pelas políticas assimilacionistas, e contradizendo a representação

genérica de índio que compõe o imaginário da população brasileira em geral.

Nesse sentido, estamos diante de uma conjuntura histórica de reavaliação da

problemática do “desaparecimento” dos povos indígenas, categorizados sob a fantasia de um

ethos tribal original que estampa no presente o estereotipo de remanescentes indígenas. Em

verdade, estas comunidades estão envolvidas, cada uma enfrentando situações de interação

especificas, num trabalho fronteiriço de cultura num movimento de reversão de um processo

de supressão de suas historicidades nos quadros regionais dos estados brasileiros.

Dessa maneira, a discussão travada acerca dos processos de afirmação étnica das

populações indígenas do Nordeste implica em repensar o lugar do índio na sociedade

brasileira, alem de levantar um questionamento sobre “a nossa postura diante dos desafios da

cidadania e da sociodiversidade, do direito à igualdade e do direito à diferença, da afirmação

da identidade e do dialogo entre as culturas” (PORTO ALEGRE, 1998, p. 4).

Ao apresentar como a comunidade de Atikum-Umã do sertão de Pernambuco

emergirma como grupo étnico por entre descontinuidades históricas – por “entre-lugares” que

marcam as articulações situacionais de diferenças culturais -, Grunewald (1993) abre


38

caminhos para a renovação do interesse pela temática indígena, combinando um estudo

etnográfico com a pesquisa histórica e o acoplamento da memória social do grupo como parte

integrante do estudo etnológico.

Vale acrescentar que, quando falamos em identidades emergentes e em etnogênese,

“não significa de modo algum que nas outras unidades sociais, portadoras de etnônimos mais

antigos, as categorias utilizadas para marcar a identidade étnica decorressem de alguma

suposta condição ‘natural’, ou que remontassem à ‘origem dos tempos’, ou ainda que

resultassem de processos dados como ‘endógenos ou ‘espontâneos’” (OLIVEIRA, 1999b, p.

107).

Logo, para compreender a construção social e simbólica da identidade dos índios

Potiguara de Monte-Mor é mister ter em mente os fluxos e refluxos pelos quais atravessaram

essa população no campo intersocietário de relações interétnicas caracterizado por um clima

de “morte ao índio”, como forma de afastar a possibilidade de terem a garantia de seu

território. Nesse sentido, a fuga para as grotas da mata e a socialização castrada de uma

afirmação étnica nos entremeios da população regional, não significaram necessariamente

uma amnésia de distintividade étnica subjetivamente compartilhada pela comunidade desse

grupo de potiguaras emergentes.

A construção do grupo indígena de Monte-Mor deve ser vista como uma forma de

organização política, onde se invoca uma origem e trajetória histórica comuns no movimento

de afirmação étnica por parte dos membros da comunidade. O desafio da resistência ao

desaparecimento inscreve-se como força organizadora e construtiva de um campo de

interação social em permanente reelaboração cultural entre índios e não-índios, pois, como

afirma Barth, “as categorias étnicas são veículos para a organização social das diferenças, e

que isto só ocorre em um contexto de interação” (BARTH, apud. OLIVEIRA, 1999b, p. 107).
39

A visibilidade de perfil étnico ganha profusão no cenário local a partir do momento

que a comunidade indígena das terras de Monte-Mor se mobiliza politicamente para

reivindicar o reconhecimento como potiguaras, que por direito reivindicam a retomada de um

território que “toda vida foi dos índio, nunca que não foi de ninguém”. A estratégia política

de sua etnicidade está "gravada" no umbigo 19 de seus membros, que trazem consigo um

sentimento de conexão intima com a região que fora expropriada dos índio véio de Monte-

Mor.

Enfatizo, então, que a emergência dos índios de Monte-Mor está vinculada a uma

situação histórica particular que engendra: uma relação com o espaço jurídico-político do

índio conferido pelo Estado-nação, contextos de auto-atribuição de um status imperativo no

sentido de desnaturalizar a “mistura” no cenário regional, além de importantes alianças com

entidades públicas.

Os Potiguara da Vila de Monte-Mor são vizinhos de pessoas não-índias, ou que não se

auto-atribuem como “da parte” dos índios. Em um núcleo urbano marcado pela presença de

uma multiplicidade de segmentos não-índios, os processos de categorização étnica definem-se

segundo a fluidez de critérios para a determinação do pertencimento. O estabelecimento da

fronteira e da organização da diferença cultural entre potiguaras e "brancos" orienta-se pelo

reconhecimento dos termos de uma classificação nós/eles, em que os sujeitos em interação se

valem de julgamentos de valor negociados em lutas de classificação travadas em torno da

produção situacional de identidades multilocais, processadas ao mesmo tempo em lugares e

por agentes variados (MARCUS, 1991).

A elaboração de sinais diacríticos faz parte dessa luta de representações do real

(BOURDIEU, 1989), constituindo a fronteira étnica que canaliza a vida social dos atores em
19
Alegoria retirada dos versos de Torquato Neto ("desde que saí de casa, trouxe a viagem da volta gravada na
minha mão enterrada no umbigo, dentro e fora assim comigo, minha própria condução".) utilizada por João
Pacheco de Oliveira para explicitar a "poderosa conexão entre o sentimento de pertencimento étnico e um lugar
de origem específico, onde o indivíduo e seus componentes mágicos se unem e identificam com a própria terra,
passando a integrar um destino comum" (OLIVEIRA, 1999a, p. 31).
40

interação. Contudo, é preciso ter em mente que a metáfora da fronteira não deve ser

confundida com algum sistema arquitetônico que encarcera a soma de bens culturais ou

polariza dimensões territoriais exclusivas. Indica, com efeito, “o ponto a partir do qual algo

começa a se fazer presente” (HEIDEGGER, apud. BHABHA, 2001, p. 19), relevando uma

perspectiva intersticial de valorização do caráter fluido dos processos de categorização étnica.

Para conhecer os índios que habitam a Vila de Monte-Mor era preciso inteirar-se da

localização dos organizadores da dança do Toré, tradição que marca a indianidade

representada por diversas sociedades indígenas do Nordeste. Por conseguinte, a casa do

cacique Vado (in memoriam) apresentava-se como espaço de articulações políticas e de

mobilizações culturais que concorrem para o estabelecimento da etnicidade do grupo,

promovendo, nesse sentido, uma integração social na “tentativa de fazer sua própria historia

buscando mover-se além das condições impostas sobre eles” (GRUNEWALD, 1999, p. 153).

É importante reconhecer o trabalho de representação política de Vado no sentido de orquestrar

um movimento de construção da identidade étnica dos membros da comunidade da Vila,

abrindo caminho para as pessoas passarem a se afirmar como índios em contradistinção ao

sentimento de vergonha ou descrédito categórico da mistura acionada pelos atores sociais que

não se identificam como indígenas; sendo que muitos sujeitos são apontados como da

descendência, mas que “não acreditam na luta, são igual a São Tomé”20.

Num descampado que antes era assolado pela invasão das plantações de cana-de-

açúcar da Usina Miriri, e que liga a fileira de casas da vila operária a mata da Encantada, área

que faz parte do universo diaspórico de muitas famílias que ali fincaram suas casinhas e

roçados como alternativa de sobrevivência, constituindo um espaço fundamental de

identificação cognitiva e consciência histórica dos índios da Vila de Monte-Mor, foi

20
Tomé, um dos apóstolos de Jesus Cristo, recusa-se a acreditar na ressurreição do Mestre informada pelos
outros apóstolos. Disse ele que “teria de ver para crer”. Cristo aparece diante do incrédulo e diz: feliz daqueles
que crêem sem precisarem ver.
41

idealizado pelo cacique Vado e posteriormente construída, uma oca para a dança do Toré e

lugar de convivência e reuniões da comunidade. Ao redor da grande oca foram construídas

quatro pequenas ocas para servirem como oficinas de artesanato para jovens e crianças.

O Toré é dançado aos sábados geralmente a cada quinze dias, no qual participam

também índios de outras aldeias, que vêm comungar dessa brincadeira, que se configura como

espaço de descontração recreativa frente ao cotidiano difícil de agricultores pobres e calejados

pelas tensões que envolvem constantes disputas por terra, demonstrando sentimentos

compartilhados pelos potiguaras que os unificam como grupo ao expressar uma mente

ancestral prenha de sacralidade. Presenciei também a representação do Toré, numa atitude

essencialmente política, quando da visita de agentes do órgão tutelar e da procuradoria que se

destinava a constatar a situação étnica vivida pelos índios de Monte-Mor.

Os povoados da Vila de Monte-Mor e Marcação estão ligados por uma rodovia

estadual, que, seguindo este sentido, nos leva à Baía da Traição. As aldeias situadas no

município de Marcação estão circunscritas ao limite rodoviário demarcado pela BR que dá

acesso à Baía da Traição, pois do outro lado da rodovia o território está amplamente tomado

pelas plantações de cana-de-açúcar. Recentemente, os potiguaras de Marcação empreenderam

ocupações de alguns poucos hectares dessa terra, aí plantando coqueiros, estabelecendo

roçados para desenvolvimento de lavouras familiares, e também foram construídas casas de

tijolos para as famílias efetivarem sua reprodução sociocultural mais digna, em vez de

dependerem constantemente de auxílios incertos e paliativos.

Tais movimentações Potiguara visam promover processos de identificação e

delimitação que se encontram indefinidos por força de mandatos de reintegração de posse aos

usineiros expedidos pela Justiça, a despeito do Presidente da Funai ter determinado a

publicação no Diário Oficial da União e Diário Oficial da Paraíba dos resultados dos estudos

de identificação e delimitação de autoria do antropólogo Sidnei Clemente Peres, já citado


42

anteriormente. Inclusive no momento de minha terceira e última ida a campo, os potiguaras da

T.I. de Monte-Mor tomaram a sede da Administração Executiva Regional da FUNAI em João

Pessoa, capital da Paraíba, para pressionarem a efetivação de seus direitos, visto que

experimentam a ameaça de perderem todo o trabalho desenvolvido na área, ou seja, seu

sustento agrícola e suas habitações erguidas com tanto esforço. Este movimento político

recebeu destaque na mídia paraibana, pelo noticiário observei as demonstrações “tradicionais”

do grupo através da dança do Toré, de suas vestimentas, pinturas corporais, arcos e flechas e

bordunas. A ocupação da sede durou uns três dias, até ser confirmada a publicação do estudo

nos diários oficiais e um posicionamento da FUNAI quanto a situação do grupo. De toda

forma, ainda encontra-se irregular o território indígena da gleba de Monte-Mor.

A T.I. Potiguara tem como ponto referencial o município de Baia da Traição. As terras

indígenas Potiguara e Jacaré de São Domingos perfazem um total de 26.270ha. Todavia,

embora esse território esteja devidamente homologado, existem problemas fundiários com

posseiros e arrendamento de lotes de terras na área indígena.

O desenvolvimento turístico nos anos 1970 da faixa litorânea que compreende as

praias adjacentes à Baia Traição, estimulado desordenadamente pelas administrações

municipais contribuiu para construções de casas de veraneio por particulares de cidades como

João Pessoa, Campina Grande e Guarabira em áreas territoriais das aldeias de Coqueirinho e

Camurupim. Caso exemplar é o núcleo urbano de Baia da Traição, posto que originalmente

trata-se de terras indígenas invadidas por conta da deflagração da especulação imobiliária

desintegrou a posse coletiva da área pelos índios. O verão e o carnaval passaram a atrair uma

enormidade afluência de turistas, fixando a festa carnavalesca da cidade como uma das mais

animadas do litoral paraibano.

A zona litorânea habitada pelos Potiguara é delineada fluvialmente pelo rio

Mamanguape, ao sul, e o Camaratuba, ao norte. Estes dois rios perenes formam um conjugado
43

hidrográfico com outros riachos e córregos e lagoas, que corroboram para manter o solo fértil,

tornando propício o desenvolvimento das atividades agrícolas. Destacam-se uma cobertura

vegetal de mangues e Mata Atlântica que, mesmo restando muito pouca desta vegetação que

cobria toda extensão do litoral nordestino, representa um reduto ambiental essencial para a

reprodução da subsistência da maioria das famílias indígenas.

As atividades produtivas giram em torno da fruticultura – nas aldeias, ao redor das

casas, há uma quantidade considerada de coqueiros, cajueiros, mangueiras, jaqueiras,

bananeiras, como também mangabeiras e cajazeiras -, cultivo de mandioca, feijão, milho e

batata, pequenas criações de animais, com destaque para os viveiros de camarão. A despeito

de terem um vasto litoral diante de sua área territorial, a atividade pesqueira é de pequeno

porte. Até o momento a população Potiguara está carente de projetos que viabilizem o

desenvolvimento da agricultura e da pesca, para, dessa forma, promover condições

econômicas favoráveis ao sustento familiar, pois constatei em campo a pobreza nos

domicílios de vários índios, que “se viram” com o assalariamento precário nas usinas, biscates

em propriedades de veranistas, venda de cocos a atravessadores, e outras formas de sobreviver

em meio às mazelas econômicas do dia-a-dia.

Algumas mulheres fazem artesanato como forma de complementar o orçamento

doméstico. O artesanato é um qualificador étnico que serve de emblema diacrítico que

estabelece uma categorização indígena no quadro regional. Cada índio incrementa sua

indumentária de representação do Toré a seu modo, conforme a acentuação de deu perfil

étnico. No dia-a-dia o uso de colares identifica aqueles índios que buscam exprimir o seu

status imperativo.

O artesanato é uma tradição que emerge no contexto do mundo globalizado como

importante alternativa econômica para os mais variados grupos étnicos. Ao lado do Posto

Indígena Potiguara, com uma bela visão do golfo que delineia as praias que atraem os turistas
44

para as cercanias do município de Baía da Traição, Iremar (irmão de Mané) construiu uma

oca para venda das peças de artesanato produzidas por ele. Disse-me que está inconformado

com as atitudes do cacique Djalma do São Francisco, pois, este “pega os ônibus com os turista

e leva tudinho pra aldeia dele, sem parar aqui”. Na aldeia do Galego, que fica logo após do

Forte, existem três lugares de venda de artesanato indígena. Dois deles estão situados um

defronte ao outro. Interessante foi observar que um dos estabelecimentos é uma barraca

comum feita de tijolos construída pelo artesão índio, e a outra, imediatamente do outro lado

da rua de areia fina, é uma oca muito adornada, com réplicas de índios do tamanho de

crianças feitas com matéria-prima do coqueiro, é de propriedade de um não-índio, conforme

me disse Adônis – índio evangélico que reside naquela aldeia. O terceiro local de venda de

peças artesanais fica numa casa, onde na varanda o artesão índio fica ali produzindo.

Os índios que habitam a Baia da Traição vivem dispersos entre diversos segmentos

não-indios que se firmaram na localidade. Pude destacar a configuração de entornos de grupos

domésticos reunidos por laços de parentesco, afinidade e compadrio. Como na maioria dos

povoados litorâneos, existem as casas que ficam à beira-mar e uma rua principal que corta em

paralelo o sentido da orla, que nos leva, distando cerca de 2km, à Aldeia do Forte. O nome da

aldeia está relacionado à elevação onde se localizava uma fortificação de defesa colonizadora

daquela faixa litorânea, onde hoje está situado o Posto Indígena Potiguara (administrado pelo

órgão tutelar do Governo Federal, a FUNAI), marcando o inicio da área indígena, uma ladeira

de argila pedregosa repleta de sendas provocadas pelas águas pluviais.

Na Aldeia do Forte se tornou patente para mim a identificação categórica caboclo, que

fornece a via de fronteira étnica que designa o índio em oposição aos particulares, os

“brancos”, os não-índios. Os caboclos do Sítio é a categoria de adscrição étnica para

classificar os índios da Aldeia do São Francisco, conhecidos por apresentarem características

que externalizam a figura indígena fenotípica de “pureza”, ou que se “misturaram” em menor


45

grau com o sangue do branco. É precioso salientar que, “cada grupo repensa a ‘mistura’ e

afirma-se como uma coletividade precisamente quando dela se apropria segundo os interesses

e crenças priorizados” (OLIVEIRA, 1999a, p.26).

Grunewald (2001) examinou também que os Pataxó do extremo sul da Bahia afirmam-

se como “os primeiros índios a ter contato com os brancos” (2001, p. 22). Mas, é necessário

verificar qual o teor da interpretação histórica conferida na construção desse elemento na

etnicidade Potiguara. A idéia de terem sido o “escudo” para os “parentes” que habitam os

recônditos do território nacional é acionada no discurso dos Potiguara para marcar um

posicionamento identitário de resistência de seu povo diante das inúmeras tentativas do

branco de aniquilá-los como coletividade étnica distinta. Na rica entrevista concedida a mim

pelo índio Manoel (Mane do Forte), ele se valeu desse discurso para afirmar-se como índio

“desnaturalizando a mistura”, posto que é membro de uma população aguerrida que serviu de

“escudo” para os outros índios. Mané me explicou que a única coisa que resta pra “fazer a

cultura funcionar” é o Toré. Apontou que no Sítio ainda têm “aqueles caboclo dos olhinho

puxado e dos cabelo bem pretinho estirado”.

Desde o descobrimento do Brasil que existe os Potiguara, como também os índio de


Porto Seguro. Nós somos testa, um povos de testa, fomos escudo. Os Potiguara são
um povo mais resistente de tosos os índio, porque de testa fomos nós, então isso
daqui já era pra ta tudo acabado.

Como bem indica Grunewald (1999, p. 156) a partir de sua leitura de Bourdieu (1989),

“está em jogo aqui, portanto, ‘a revolução simbólica contra a dominação simbólica’ – e uma

estratégia possível aí é a de uma reapropriação da visão dominante sobre o grupo, por parte do

próprio grupo, ou seja, um grupo pose se apropriar de características impostas a eles pelos

dominantes a fim de marcar, através disso, sua distintividade”.

Neste ponto, considero essencial para reconhecer as formas de identificação que atuam

no cerne de uma etnicidade comum, relevar que recai sobre os Potiguara de Monte-Mor o

“estigma da perda da autenticidade” acionado pelos potiguaras das aldeias mais


46

“tradicionais”. Durante a Assembléia Geral Potiguara, no momento que passava um índio da

Vila Monte-Mor, uma das “puxadoras” do Toré Potiguara apontou me dizendo: “Ó pra aí!

Isso é um índio?”.

A terra de Monte-Mor está desmembrada das demais comunidades Potiguaras em

razão das cidades que cresceram dentro da área indígena, que marcou um intenso

“intercasamento com brancos ou outros mestiçados”. Caboquinho, cacique geral dos

Potiguara, comentou que já teve que explicar para aquela índia que índio não é aquele que

“tem cara de índio”. Zito, índio da Vila Monte-Mor conta que muitas vezes sua comunidade é

chamada como “um bando de sem-terra por outros índios”. Por conseguinte, observei que não

há um apoio generalizado as lutas reivindicatórias da comunidade de Monte-Mor. De toda

forma, esta comunidade está empenhada em sua mobilização política e cultural. Dançam o

toré desde o inicio da década de 1990, sendo um dos torés mais “arroxados” das comunidades

Potiguara.

Segundo o índio Raké, da Aldeia do Galego (que ocupou funções políticas de

liderança indígena durante vários anos), “antigamente só tinha toré no São Francisco, hoje

tem toré em tudo que é aldeia”, querendo, dessa forma, me dizer que o toré de verdade era lá,

no Sítio. De fato, a Aldeia do São Francisco aparece nos discursos dos potiguaras como o

lugar original do índio velho, referencia espacial para muitos índios afirmarem o status

imperativo de parentesco com os antepassados dos Potiguara. Numa descontraída conversa

com as irmãs Caranguejeiras, elas justificaram o domínio que tem da tradição do toré

enfatizando que “os nosso avô eram tocador de Toré do São Francisco, viu!”.

É importante também atentar para o fato de que a idéia da “mistura” pode ser acionada

para reforçar clivagens faccionais (OLIVEIRA, 1999a). Existe na área um intenso conflito

político entre as facções ligadas ao Cacique dos Potiguara – Caboquinho – e as facções

ligadas ao Cacique das Aldeias – Djalma. Um evento que ilustra a situação tencional foi
47

quando eu estava numa feira internacional de artesanato, onde estavam presentes

representantes de diversas sociedades indígenas do Brasil, como de outros paises da América

do Sul, e, aproximando-se do stand destinado aos índios Potiguara, reconheci uma índia que

avistei certa vez no Encontro da Nova Consciência (Campina Grande), então, perguntei para

um dos índios que ali estavam quem era aquela senhora, e ele me respondeu que era a pajé

Potiguara, irmã do cacique dos Potiguara. Tentei puxar assunto relatando meu intuito de

estudo entre a sua comunidade, revelei que havia conhecido Caboquinho numa visita ao

grupo. O interlocutor respondeu-me num tom lacônico: “o cacique dos Potiguara é do São

Francisco”. Nas minhas idas a campo confirmei que há uma disputa constante de poder entre

as facções que citei. Djalma, morador do Sítio, procura ignorar a posição política de

Caboquinho, natural da Aldeia do Forte, tentando minar a legitimidade das mobilizações

acionadas pelo líder geral dos Potiguara. O arrendamento de terras a regionais apoiadas pelo

cacique Djalma se destaca como fonte de conflitos. Outra questão conflituosa é o lugar de

pajé ocupado por Fátima, irmã de Djalma. Procurarei tratar de maneira pormenorizada as

situações que envolvem os choques de legitimadade para ocupar o cargo de pajé entre os

Potiguara no capítulo seguinte.

As irmãs Zuleide, Ieda e Edleusa são as “puxadoras” da representação do Toré entre

os Potiguara, são conhecidas como as Caranguejeiras por serem “brabas”, isto é, não admitem

desrespeito contra o índio, “É você que tira seus direito quando deixa que os branco fiquem te

massacrando. A gente tá pronta pra nossas batalha, a gente tem flecha, tem borduna, tem foice

também”. Mencionei que elas tinham fama de “braba”, me responderam que “que nois não

somo braba nunca Meu Senhor Jesus, mas em cima dos nossos direito nos briga, sabe que é...

é que nos luta”: “Somos índios Potiguara somos forte somos valente/ Pra pisar em nossa terra

tem que pedir licença à gente”.


48

Cabe, então, destacar que o Toré Potiguara é realizado primordialmente no Dia do

Índio, “é o Toré mais forte”. Segundo Estevão Palitot, nesta data festejada no ano de 2002 os

Potiguara foram procurados por pessoas da localidade Catu de Cima, situada no município de

Canguaretama, que vieram no intuito de mobilizar o reconhecimento deles como índios. Vila

Flor, um povoado do litoral norte-riograndense onde se fixava um antigo aldeamento

missionário, se apresenta como uma comunidade que possui laços de sangue indígena com os

Potiguara. Por ventura, um dos sobrenomes mais reconhecidos entre os Potiguara é originário

de Vila Flor, a família Santana, cujo representante desta se destaca como o grande líder dos

Potiguara, “o verdadeiro tuxaua” – Manoel Santana. Outras famílias, em épocas mais

recentes, migraram da mesma localidade para o seio da comunidade Potiguara, firmando-se,

inclusive, como liderança da aldeia Brejinho, como foi o caso do senhor Edmilson. Nesse

sentido, vale lembrar um trecho da conversa que tive com D. Antônia da Vila Monte-Mor:

“tem muito índio ainda pelo mundo perdido que ainda não veio aqui”.
49

Capítulo 2 – Religiosidades e Perfil Étnico

Como já indiquei no capítulo anterior, a ênfase em meu estudo é dada naquilo que os

atores sociais consideram organizacionalmente relevante para a manutenção da fronteira

étnica que define o grupo. Dessa forma, procurarei também operar com a devida clareza a

construção da etnicidade Potiguara como pano de fundo reluzente no decurso da investigação

dos relatos circunstanciados de atribuição étnica no universo de discursos múltiplos

encontrados nas experiências religiosas dos potiguaras.

O plasma do holismo e da integração celebraram as conexões lógicas abstraídas das

estruturas elementares de funcionamento da vida social. Tenho em mente que investigação

detalhada dos fatos empíricos possibilita a elaboração de modelos mais adequados par dar

conta do que efetivamente encontramos. Por conseguinte, repelir colocações centradas em

paradigmas estruturalistas e culturalistas oferece a relevância das nuances interpretativas

orientadas pelos atores nos processos sociais em situações históricas especificas.

Acredito ser pertinente instigar neste momento uma sucinta desmontagem dos

conceitos de Sociedade e Cultura, que durante o desenvolvimento da disciplina Antropologia

guiou as suas matizes de conhecimento sem a competência etnográfica 21 de serem expostos à

apreciação de um crivo crítico.

Um dos mais conhecidos antropólogos adepto da teoria da aculturação desenvolvida

no Brasil, Darcy Ribeiro, nos diz que as populações indígenas que sobreviveram ilhadas na

massa da população brasileira são indígenas “que transitam da condição de índios específicos,

com sua raça e cultura peculiares, à de índios genéricos. Esses, ainda que crescentemente

mestiçados e aculturados, permanecem sempre ‘indígenas’ na qualidade alternos dos

21
Sobre uma perspectiva critica das concepções etnográficas de cultura ver Clifford, 2002.
50

‘brasileiros, porque se vêem e se sofrem como índios e assim também são vistos e tratados

pela gente com que estão em contato” (1997, p. 145).

No esteio desta perspectiva enquadra-se uma concepção de sociedade como um

conglomerado de bens culturais nativos. Nesse sentido, Ribeiro (1970, p. 153) descreve com

desgosto o patrimônio cultural dos Potiguara ao apontar utilização de instrumentos africanos

em suas danças, “acreditando serem tipicamente tribais”. Dando continuidade a sua postura

etnológica, esse teórico da aculturação aborda os “remanescentes indígenas” Xucuru dizendo

que este povo mestiçado já perdeu a autenticidade do “idioma e todas as praticas tribais,

exceto o culto do Juazeiro Sagrado, se é que este cerimonial fora originalmente deles”.

Interessante é observar a harmonia e confluência das conclusões arraigadas no senso

comum com a antropologia caudatária das tipologias da aculturação, ambas consideram que o

compartilhamento de cultura entre os povos indígenas e seus vizinhos regionais encerra o fato

inexorável da desfiguração cultural do “primitivo”. Logo, “a concepção naturalizada de

cultura adequa-se perfeitamente à representação do senso comum sobre os índios, formando

um complexo ideológico de difícil desmontagem” (OLIVEIRA, 1999b, p. 115).

A matéria cultural das populações indígenas do Nordeste, “região onde os contatos

entre índios e não-índios são tão antigos quanto a própria historia do país e tão intensos que

formam supor uma completa desorganização e perda da identidade étnica” (PORTO

ALEGRE, 1998, p. 5), está inevitavelmente assinalada por diferentes fluxos de cultura. Logo,

os potiguaras experimentam, refletem e inventam valores vinculados a códigos culturais mais

amplos. Utilizo a noção de fluxos culturais “para enfatizar que o caráter não estrutural e

virtual é constitutivo da cultura” (HANNERZ, apud. OLIVEIRA, 1999b, p. 113). Descarto,

então, qualquer possibilidade de se pensar a incorporação de elementos de cultura como

indicadores de perda de legitimidade como grupo étnico. A inscrição da identidade Potiguara

é efetivamente contemporânea à do etnógrafo enquanto povos distinto e original, não


51

significando, pois, na enumeração de estados que confirmem a continuidades de tradições

ancestrais.

Portanto, procuro os insights para conduzir meu trabalho monográfico no pensamento

de que “as estruturas mais significativas da cultura – ou seja, aquelas que mais conseqüências

sistemáticas têm para os atos e relações das pessoas – talvez não estejam em suas formas, mas

sim em sua distribuição e padrões de não compartilhamento” (BARTH, 2000, p. 128). A

tarefa de analise da vida social atenta aos "momentos de descontinuidade" (VELHO, 1997, p.

45) toca a problemática da distributividade cultural. Logo, o desafio antropológico está em

compreender como a pluralidade cultural é vivida pelos atores sociais, procurando mostrar de

que maneira co-tradições se dipõem na interação social repleta de códigos duplos e variados,

constituindo a tradição de uma sociedade.

Congregar os atores sociais, originalmente, sob a adscrição Potiguara resulta em

desconsiderar os múltiplos veículos, meios, procedimentos e arranjos que concorrem para o

“processo fragmentado de construção da identidade em qualquer lugar” (MARCUS, 1991, p.

207). Ora, à medida que diversificadas correntes mágico-religiosas fluem por entre as

fronteiras da comunidade Potiguara (BARTH, 2000), cresce o repertório de alternativas

religiosas no contexto dessa sociabilidade. Creio que a distribuição descontínua de itens

religiosos entre pessoas pelas relações (HANNERZ, 1997) elevam “sinais de incoerência e de

multiculturalismo” (Barth, 2000, p. 109), caracterizando uma situação social complexa de

interação – visto que pluralizam performances – e, conseqüentemente , de interconexão entre

status étnico e identidade social22.

Lembro nos termos de Barth (1989), que a religiosidade é um artefato da vida no

campo social Potiguara em meio a outros “vários padrões altamente significativos” para as

22
Entendo identidade como “sentido de la acción que ofrecen los actores sobre la base de la priorización de
ciertos rasgos por sobre otros, que define um princípio fuerte de articulación de las acciones,que generalmente
se estructura semánticamente em modelos identitários, y que tiende a cobrar preeminência por sobre otros
sentidos de la acción” (Gumucio, 1999, p. 124).
52

vidas dos potiguaras. Sendo assim, minha tarefa de problematizar a interconexão entre

adscrição religiosa e status étnico não se concilia às tentativas de Geertz de mostrar a

coerência entre a esfera simbólico-expressiva de uma religião com a estrutura social. Ora, "os

fatos culturais e sociais não se apresentam em unidades em que o espaço social e o espaço

geográfico coincidem e nas quais os grupos constituintes são ordenados e estratificados nas

camadas de uma arquitetura universal" (WOLF, 2003, p. 316).

Dessa forma, através de uma "psicanálise do erro", contesto as pretensões lógicas e

estéreis do kit de ferramentas conceituais totalizantes acerca da unidade social Potiguara, e

passo a trabalhar com "processos de circulação de significações" (BARTH, 2000) no sentido

de questionar e traçar uma certa cartografia das maneiras de assinalar o pertencimento étnico

postas pela religiosidade.

O Campo da Religiosidade do Grupo Indígena Potiguara

Para o entendimento dos processos de mudança cultural que conformam os critérios de

atribuição étnica acionados pela comunidade Potiguara é mister aportar-me na história de um

“campo social”. Destaco, então, uma arena única de interdependências ou relações

(Gluckman, 1987) entre uma gama variada de protagonistas – indígenas e outros -, dispostos

numa situação histórica definida no processo concreto de interação, que permanece longe de

pretender a explicitação de eventos isolados, mas “modelos ou esquemas de distribuição de

poder entre diversos atores sociais (OLIVEIRA, 1988, p. 57).

Com efeito, chamo atenção para a “luta das classificações” (BOURDIEU, 1989)

desbravadas no calor das relações de poder movimentadas na formação, situacionalmente

moldada, da identidade dos grupos sociais. Assim, entoar uma visão legitima do mundo

implica rivalizar por entre antagonismos representados “por agentes muito diferentes”

posicionados “simultaneamente em muitos lugares diferentes” no “espaço social”.


53

“A terra é santa, a terra é mãe/ a terra é do índio, a terra é de Deus”: a tradição católica

A maior parte das aldeias Potiguara realizam festejos dedicados ao santo católico

padroeiro da respectiva comunidade local. Desse modo, essas comemorações em datas

especificas correspondentes aos diferentes santos católicos que “abençoam suas aldeias”,

integram um calendário que deixa entrever a construção social do catolicismo numa

comunidade com referentes indígenas. Dentre os vários festejos vinculados a diferentes santos

católicos, destacam-se as comemorações de São Miguel, Nossa Senhora da Conceição, e

Nossa Senhora dos Prazeres.

A edificação da Igreja de São Miguel emerge na tradição oral do grupo tendo como

suporte duas vias interpretativas. Uma descreve o achado da imagem do santo que segurava

em suas mãos uma espada e uma balança – São Miguel – quando alguns índios pescavam na

beira de um rio. A imagem foi levada pelos indígenas para a Igreja de Nossa Senhora da

Penha da Baia da Traição. Para surpresa de todos, no dia seguinte, a representação imagética

do santo havia sumido da igreja. São Miguel dessa vez seria encontrado num morro. Tal

acontecimento revelava o desejo do santo para que fosse construída uma igreja para

celebração dos serviços de sua proteção. A outra representação que encontrei na

discursividade local afirma que a Igreja de São Miguel foi erguida pelos holandeses na época

de seu domínio do litoral paraibano.

No final da década de 1970, a circulação de boatos acerca da ameaça de extravio da

imagem por ladrões, devido ao abandono e conseqüente precarização das estruturas do

edifício da igreja, levaram as lideranças do Sítio a carregarem a imagem para a igreja da

aldeia São Francisco, onde estaria protegida. Muitos potiguaras me disseram que “não era pra

eles terem feito isso não, não foi certo”, uma vez que o lugar “tradicional” da imagem é na

“sua” igreja.
54

Um período de nove noites marca os eventos de homenagens aos santos. O cacique ou

liderança, ou ainda, um “broker”23 (MAYER, 1987) católico local, encarregado de visitar

residências para convidar os membros da comunidade para os dias de festejo e angariar

contribuições para as ornamentações, fogos de artifício e demais despesas da festa católica, é

chamado noiteiro. É aquele que organiza os preparativos para determinada aldeia "botar a

noite”, ou seja, oferecer os préstimos festivos da comunidade anfitriã.

Em geral, defronte às igrejas católicas das aldeias visualizei um cruzeiro – uma grande

cruz erguida no adro da edificação. O número reduzido de padres na comunidade Potiguara

limita a realização de missas nas aldeias, chegando normalmente a serem apenas uma vez por

mês ou a cada quinze dias24. Algumas vezes o culto é oferecido aos índios. Na aldeia do

Galego, D. Joana toma a incumbência de organizar os eventos católicos nessa comunidade.

Durante minha pesquisa de campo pude acompanhar os cultos do terço de Maria, no mês de

Maio, o mês das mães. A cada dia, desde o inicio do mês, uma criança arrumada com muito

zelo vestida com uma roupinha azul e branca – um anjinho – debulhava o terço de Maria

formando um canto coral em seu louvor. As missas eram conduzidas por um jovem padre no

estilo do conhecido padre Marcelo Rossi, entoando cânticos religiosos musicados com ritmos

animados.

É comum no dia-a-dia escutarmos em todas as regiões do Brasil acerca das

classificações do católico praticante e o não-praticante. Genericamente fala-se do praticante

como aquele que amiúde marca sua participação nos cultos católicos, mais especificamente

nas missas. Na outra margem do catolicismo encontram-se as pessoas que esporadicamente

freqüentam a igreja, fato que não impede que elas tenham sua “fé em Deus”. Todavia, tal

senso de classificação não dá conta do pluralismo interno que preside a dinâmica do


23
Termo de uso corrente nas análises processualistas britânicas (como também: “middleman”, “mediator” e
“patron”) para fazer alusão ao papel de agente/intermediário que perpassa surpreendentes redes de relações
organizadas no fluxo da construção social da realidade.
24
Inclusive, não mantive qualquer diálogo com algum padre devido aos inúmeros compromissos nas várias
comunidades indígenas.
55

catolicismo, pois, como indica STEIL (2001, p. 33), "enquanto as religiões afro-brasileiras e o

protestantismo crescem dividindo-se, o catolicismo cresce incorporando as diferenças".

Com efeito, os modos para expressar o “ser católico” variam

das formas mais tradicionais às mais político libertárias ou emocional-carismáticas.


Alguns podem ser católicos centrando sua prática no culto aos santos, outros
participando de associações religiosas, outros ainda assumindo compromissos
éticos e políticos de caráter libertário. E há também aqueles que se consideram
católicos, sem que isto os vinculem a quaisquer compromissos explícitos de ordem
religioso-institucional (STEIL, 2001, p. 117).

Destaco que “contextos e eventos rituais do catolicismo” constituem padrões de

interação partilhados que dão sentido às fronteiras simbólicas manipuladas pelas pessoas nos

acontecimentos presentes na comunidade indígena Potiguara. Com efeito, ainda que se possa

antever “estruturas históricas de longa duração que se fazem presentes na atual conjuntura

social e religiosa” (SAHLINS, apud STEIL, 2001, p. 10) da comunidade, nesta pesquisa

procuro ressaltar as afirmações de identidade católica construídas a partir de um complexo

diálogo entre as múltiplas experiências autobiográficas geradas na interação.

Na comunidade indígena Potiguara coexistem diferentes formas de enunciar uma

orientação religiosa católica. Há católicos que buscam nos dias de missa a prática de sua ação

religiosa. Outros raramente se dirigem à igreja, atestam sua identificação religiosa a partir de

reinvenções individuais moldadas no âmbito da tradição católica num fluxo de interlocuções

com as peculiaridades de sua biografia e especificidades pessoais.

Eu não tenho religião certa... Não sou ateu, faço as minhas orações em casa. Às
vezes participo do coral da igreja. Tenho devoção a Nossa Senhora da Conceição,
ao Divino Espírito Santo e com a minha Grande Mãe, a Mãe Terra, a Natureza
Sagrada, que pra mim é como se fosse um ser vivo. Não é preciso ir pra igreja,
tenho as minhas devoções, a minha religião indígena (Iolanda, professora de escola
diferenciada indígena, irmã do cacique geral dos Potiguara – Caboquinho).

Tenho fé no meu protetor São Miguel (Capitão, vereador indígena do município de


Baia da Traição, beijando uma medalhinha presa a um cordão em seu pescoço).

Uma prática católica radicada entre os Potiguara é a da rezadeira: agente do

catolicismo popular tradicional reconhecido pela comunidade como conhecedor dos mistérios

de Deus e mediador do poder divino para a cura de doenças e morbidades psíquicas. Seu
56

prestígio social não advém de uma delegação institucional, emerge na vida do grupo a partir

da consideração legítima de ter a faculdade de abrandar ou afastar as enfermidades e os

infortúnios de nossa existência: “Ou seja, enquanto os padres e pastores contam com uma

instituição ou uma comunidade de fieis como instancia legitimadora de sua missão, os agentes

do catolicismo popular fundamentam a legitimidade de sua ação religiosa na eficácia

simbólica produzida e reconhecida pelo grupo social a que pertencem” (STEIL, 2001, p. 26).

Importa salientar uma ressalva feita pela antropóloga Clarice Novaes da Mota acerca

da famosa análise levi-straussiana25 da eficácia da ação de um curandeiro dentro do sistema de

crenças local. Isto é, na interpretação de muitos potiguaras a eficácia do rezador/rezadeira é

real e não simbólica (Mota, 1996).

Na Vila de Monte-Mor Dona Antônia é renomada como rezadeira nessa comunidade,

contou-me que aprendeu a “rezar” sozinha e só “trabalha com os bom irmão de luz”: “é

aqueles que morre e não é perdido, tão no claro, não tão no escuro”. Pedi para que essa

senhora de quase 80 anos me rezasse. “Pera aí meu filho, que eu vou ali fora pegá o matinho”.

Perguntei a ela se a reza poderia ser realizada com qualquer mato, respondeu que sim, mas

convém assinalar a preferência pelo “pião roxo”, “mato” conservado amiúde nos quintais e

arredores das casas. Fui “rezado” três vezes em dias diferentes para cumprir o percurso da

eficácia de proteção, em todas Dona Antonia utilizou uma folhinha de pião roxo para

“expulsar os mau-olhado e os mau-pensamento”, proferindo uma seqüência eficaz de rezas

que guarda na memória, tem “todas elas de cabeça”.

As ricas e agradáveis conversas mantidas com as três mulheres “fortes” do Toré

Potiguara – as irmãs Caranguejeiras – tornaram visíveis importantes questões para o

desenvolvimento de meu trabalho antropológico. Elas possuem um profundo conhecimento de

plantas medicinais e daquelas que livram a alma de forças espirituais maléficas. Ao longo da

25
Ver “A Eficácia Simbólica” (LEVI-STRAUSS, 1985).
57

conversa perguntei se havia a figura do pajé entre os Potiguara 26, responderam todas em

uníssono: “Teeemmm”. Ieda “brincou” com Zuleide: “é essa aí ó”. Zuleide ficou um pouco

“encabulecida” enquanto suas irmãs davam boas risadas fraternas: “É não, eles querem, mas

eu não quero não. Tem muito índio, e a gente tem que dá de conta daquele negócio, daquele

remédio. Eu seio tudo isso, mas eu tenho minhas obrigação, fazer meus colar, minhas bolsa,

meus sutiã”. Frisaram bastante que nunca ficaram doentes elencando uma lista de plantas e

seus respectíveis benefícios contra as patologias do corpo. Edleusa é quem se destaca em

“saber rezar”, elabora também vários “lambedores”, que consiste numa preparação de ervas e

plantas medicinais específicas para determinada função curativa que tem o aspecto de um

mel. Forças espirituais maléficas como o “mau olhado” é um dos alvos primordiais onde a

figura da rezadeira desvela-se como perita nesta área: “A gente não qué o mal pra ninguém

Meu Senhor Jesus, mas nós índio tem um negócio que sabe logo se alguém qué fazer mal.

Mas que deseja o mal, a coisa volta pra essa pessoa, viu!”. Fui surpreendido quando Dona

Edleusa começou a proferir uma linda reza, entoada com emoção na descrição do

Nascimento, Paixão, Morte e Ressurreição “do Nosso Senhor Jesus Cristo”.

[...] Se atirarem contra mim, água pelo cano da arma há de correr, assim como
correu o leite do peito da Virgem Maria para a boca de seu divino Filho. Se
quiserem me furar, faca da mão cairá, cacete, foice. [...] Salvo eu fui, salvo eu sou,
salvo eu serei. Com as chaves do Santíssimo Sacrário eu fecharei. “Essa é a força
da oração, você reza com fé, do fundo do seu coração” (Edleusa, potiguara, Baía da
Traição).

De acordo com Steil, existem simultaneamente no catolicismo duas tradições – uma

tradição popular e uma tradição oficial -, que, ao invés de “estabelecerem entre si uma relação

de exclusão, elas se articulam num movimento de circularidade, onde uma se alimenta da

outra” (STEIL, 2001, p. 34). Assim, os agentes do catolicismo popular buscam símbolos e

crenças na escatologia oficial do catolicismo para tecer suas sínteses religiosas pessoais.

Entretanto, “não é na solidão que se constrói a fé” (Geertz, 2000, p. 164), ou seja, um

26
Tratarei mais adiante sobre os conflitos que envolvem esta posição dentro da comunidade
58

potiguara que se afirma católico independente de ter ou não uma ligação com a Igreja, tendo

em mente que “o catolicismo cresce incorporando as diferenças”, elabora sua identidade

religiosa dialogando com os “universos de discurso múltiplos” discursos semelhantes e

contingentes socialmente construídos na comunidade – locus da relação. E, por outro lado, o

catolicismo popular difundi uma gama de símbolos e códigos que passam a ser comunicados

pela tradição católica oficial.

A “Comunidade de Irmãos”

Segundo o pastor da 1ª Igreja Batista Potiguara, Emídio Santana Coura (não-índio),

90% da população Potiguar se considera católica, “então, mais ou menos 1.200 índios são

evangélicos, não somos protestantes, não estamos protestando contra nada, pregamos o

evangelho, a palavra de Cristo”. Interessante foi o pastor ter enfatizado a contingência

histórica da possível dominância da religião evangélica, caso a colonização holandesa

lograsse êxito definitivo na ocupação do Nordeste. Nesse sentido, lembrou que a Igreja de São

Miguel é uma edificação originalmente holandesa.

Embora tal número pareça ser de proporção diminuta, a verdade é que nos últimos

anos constata-se um intenso ritmo de conversões que deram visibilidade social à religiosidade

dos evangélicos num país “que se constituiu incorporando a unidade religiosa como um

elemento central de sua identidade” (STEIL, 2001, p. 9). Assim, os processos de conversões

que incrementam o campo evangélico indicam necessariamente o crescimento da população

de “crentes” na comunidade Potiguara, intensificado aproximadamente a partir da década de

1970. O Pastor Emídio argumentou em defesa das conversões de potiguaras às religiões

evangélicas servindo-se da Declaração dos Direitos Humanos27. Portanto, se atualmente

27
Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro
de 1948. Artigo XVIII - Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito
inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino,
pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
59

“74% dos brasileiros ainda são católicos”, essa porcentagem já apresentou números de

predominância mais elevada.

Essas transformações no campo da religiosidade expõem uma crescente pluralidade

religiosa. Há, nesse sentido, uma diversificação de compromissos religiosos no leque de

denominações independentes que se identificam como evangélicas. Entre as muitas igrejas

evangélicas, encontrei na área indígena Potiguara três denominações: Igreja Batista, Igreja do

Betel Brasileiro e Assembléia de Deus. Por conta de uma parcela considerável de meu

percurso ter sido corroborada pela rede de relações mantida por estudiosos amigos meus com

o grupo evangélico Batista, os dados e as informações desta pesquisa ligadas de alguma forma

com a religiosidade evangélica estarão estreitamente relacionados com esse segmento

religioso. Não obstante, apresento importantes questões colhidas em conversas com “outros”

evangélicos.

A 1ª Igreja Batista Potiguara está localizada na Aldeia do Galego. Segundo Dona

Creuza, “uma das primeiras a aceitar Jesus” nessa comunidade, a igreja teve início com a

vinda da missionária Maria Flor, que aportara na aldeia amparada por dois pastores

americanos.

Essa igreja daí já tem uns 34 anos. Antes fazia o trabalho do Senhor numa casa
[residência da missionária]. Depois começamo a carregar as pedra pra fazer a
igreja. Mas o chefe do Posto empatô, porque era os americano né que tava
trabalhando junto com ela [a missionária]. Nesse tempo eu era católica, só ia nas
igreja pra batizar os menino. Era católica só assim... né. Batizei ainda quatro filho.
Eu tomei o chefe do Posto como padrinho dum menino meu, aí ele era meu
cumpadre, a gente chamava assim. Aí a gente se conhecia, foi nesse tempo o
empato, mas ele não sabia que a gente já era crente. Aí o Antônio [seu marido] e
outro rapaz foi lá, conversaram com ele. “Mas cumpadre a gente somo crente”. “Ah
cumpadre, mas é o senhor”. Então ele deixou continuar. Mas ele disse que pra fazer
era obrigado o pastor ir pra Brasília, pra falar com a FUNAI de lá. Assim mesmo
ele foi, e trouxe toda a documentação. Foi quando foi construído o trabalho. Mas aí
houve uma confusão, não sabe, a igreja caiu. A missionária não se dava muito bem
com as pessoas. Foi o tempo que ela noivou com um rapaz... ele...era homossexual.
Começou aquela confusão, confusão, confusão. Depois dessa confusão saiu vinte
cinco crente. Aí ficou bem fraco o trabalho de Deus. Ela abandonou o trabalho, os
pastor foram embora também...Depois ficou meu menino, o pastor João , ele não
era pastor ainda não. Hoje ele é pastor nas aldeia de Marcação. Aqui tem dois
pastor, Pastor João (seu filho) e Pastor Samuel, Samuel é no São Francisco. Aí foi
60

assim o trabalho. Eu fui a primeira depois deu seguiu [toda a sua família tornou-se
evangélica] (Dona Creuza, Galego, casada com o senhor Antonio Santana, filho de
Daniel Santana – cacique renomado entre os Potiguara).

Todos os membros da família de Dona Creuza – mais de vinte pessoas - são crentes,

praticam o “trabalho do Senhor” na Igreja Batista. Freqüentam assiduamente os cultos, uma

vez que ser crente sugere essa atitude de pertencimento à comunidade de irmãos. Assim, é

comum que quando algum irmão ou irmã deixa de comparecer em certo dia ao culto, o pastor

procure saber o motivo da ausência no “trabalho de Deus”. Visualiza-se uma rede de

sociabilidade entre os membros da comunidade de crença que estabelece padrões de conduta

que afirmam o pertencimento de cada membro da igreja Batista. Com efeito, uma postura na

vida cotidiana de temperança no vestir e de rejeição “aos prazeres da carne” parece ser uma

estirpe distintiva da comunidade evangélica.

No seguinte trecho do discurso de Dona Creuza: “Aqui tem dois pastor, Pastor João

(seu filho) e Pastor Samuel, Samuel é no São Francisco”, podemos também visualizar as

relações comunitárias religiosas (WEBER, 1991) no sentido de afirmar o denominador

comum da evangelização dos crentes. Ainda que cada denominação prescreva normas de

comportamento e ênfases doutrinárias de pesos relativos diversos, os “crentes” integram uma

“comunidade de irmãos na fé”. Durante um culto na 1 ª Igreja Batista Potiguara, o pastor

Emídio, dentre alguns informes, relatou aos fiéis sua presença num acontecimento de outra

denominação evangélica, atendendo ao convite do pastor dessa igreja. Antes do culto o pastor

havia me dito que os pastores evangélicos costumam convocar os sacerdotes evangélicos de

outras igrejas para participarem de eventos promovidos em suas respectivas congregações,

sendo que os membros da Igreja Assembléia de Deus são um tanto quanto arredios a estas

agregações evangélicas.

Ao demarcar sua identidade religiosa os potiguaras evangélicos opõem-se ao

catolicismo dominante referendado no calendário das festas de padroeiro das aldeias, como
61

ainda, nas músicas do Toré, desconsiderando devoções a santos e imagens, ao tomar como

fundamento evangelizador o segundo livro de Moisés, ÊXODO 20.3,4,528.

A igreja católica fala de um Deus morto, deixa os índio colocar a mente numa
estatua de gesso. É uma coisa que não é transparente. No fundo eles não querem
dizer realmente que é o nosso criador, e nas suas necessidades ficam só ali naquilo,
num estátua, numa imagem, e não conseguem ver que existe um criador capaz de
resolver aquele problema que os índio tão passando. Eu não posso adorar um ser
que o próprio homem formou. Eu tenho que adorar o ser que o próprio Deus
formou. “E quem foi? Jesus Cristo” (Mané, Forte, evangélico da Igreja do Betel
Brasileira).

Sobre a “proteção” de São Miguel, Dona Creuza e seu neto, Adônis, disseram que: “A

gente respeita, é padroeiro deles, porque diz que essa terra é dele, mas a gente não tem nada a

ver com isso não”. Dona Creuza complementou contando a transferência da imagem de São

Miguel da “Vila” para o “São Francisco”, além de enfatizar: “Olha, E lá (no Sítio São

Francisco) já tem outro (padroeiro)”. A oposição ao catolicismo foi evidenciada também

quanto às “festas promovidas dentro de sua religião”.

O que é que vai haver aí? O que se houve foi briga devido às festas da religião
católica que tem muita cachaça, onde os índio vão ficar embriagado e não ficar
sabendo, consciente do que estão fazendo. Devido às festas que a Igreja católica
promove os índios ficam desunidos. Quando termina a festa, no outro dia os índios
tão de mal ou do outro. Então aí é falha da igreja católica dentro da nossa
comunidade, nossa cultura. Isso traz uma grande desunião a nossa Igreja católica
(Mané).

A concorrência religiosa na comunidade atua em frentes diversas. A participação nas

igrejas evangélicas significa estabelecer uma relação comunitária religiosa de convivência e

ajuda mútua, uma alternativa de recomposição individual e familiar no contexto da vida social

dos potiguaras marcada por graves problemas: desemprego, alcoolismo, prostituição.

Certa vez, quando acabava de chegar na área indígena, observei que na escola da

Aldeia do Forte havia uma aglomeração de pessoas. Na verdade, acabei chegando até a escola

à procura das Caranguejeiras, e procurei certificar-me antecipadamente o que estava

acontecendo ali: “São os evangélico fazendo trabalho social, cortando o cabelo do povo”. A

28
“3 Não terás outros deuses diante de mim. 4 Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do
que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. 5 Não adorarás, nem lhes darás
culto; (...)”.
62

partir daí minha visão dirigiu-se para um ônibus estacionado a alguns metros do colégio, o

transporte de evangelização da igreja do Betel Brasileira. Esta denominação evangélica

realiza eventos onde se aprende a ler, as mulheres levam suas crianças para cortarem o cabelo

e recebem lições de saúde, etc. Na última seção do evento os lideres religiosos fazem uma

pregação do evangelho para revelarem a verdade às pessoas presentes. Assim, o “trabalho

social” constitui um meio de se propagar a fé. Após a evangelização encontrei as

Caranguejeiras na casa de Caboquinho, Edleusa tinha levado o neto para cortar o cabelo e

suas irmãs aproveitaram para sair de casa e encontrar os “conhecidos”.

Segundo Dona Vânia, missionária evangelizadora e tia do jovem Pastor Samuel,

ultimamente alguns cultos estão sendo realizados nas casas de grupos familiares católicos

geralmente aos sábados, que tomam a iniciativa de convidar os membros da Betel. Na

primeira vez que fui à Vila Monte-Mor, em que pousei na casa do Falecido cacique Vado,

ecoava durante a noite nesta residência o programa da Igreja Universal do Reino de Deus

(IURD). Lembro que fiquei curioso de saber quem naquele grupo familiar católico escutava o

programa. Dona Antônia contou-me durante a conversa que tivemos alguns meses após o

falecimento do cacique que Vado “gostava muito, ele inda foi pra igreja, foi inda umas três

vezes, a vontade que ele tinha de ficar bom, era aquela vontade, não sabe”. O cacique tinha

um sério problema de coluna que o impossibilitava de andar, causando-lhe muitas dores. Os

membros da IURD, organização religiosa pentecostal, “partilham da espera de uma segunda

vinda de Cristo e acreditam ter acesso, no dia-a-dia, aos dons e carismas do Espírito Santo. À

ação do Espírito Santo atribuem curas dos males do corpo e da alma” (NOVAES, 2001, p.

43). Em busca da cura, o cacique Vado estabeleceu um diálogo com a experiência da

religiosidade pentecostal proclamada nos testemunhos apresentados no programa de rádio que

transmitia publicamente, através dos fiéis, os problemas e as soluções encontradas para


63

questões pessoais e familiares, de ordem financeira, afetiva, de saúde” (NOVAES, 2001, p.

43).

O “Catimbozeiro”

O catimbó é uma prática religiosa de origem indígena caracterizado no ecúmeno

nordestino como uma prática mágico-religiosa do culto à jurema 29. Em contato com o

catolicismo e com rituais de matrizes africanas, o catimbó incorporou mitos, culto a santos

católicos, entidades e seres espirituais. Alhandra, povoado do litoral paraibano e antigo

aldeamento indígena de etnia(s) desconhecida(s), é reconhecida como

o berço de uma grande linhagem de catimbozeiros e mestres do além, como Manoel


Inácio e Maria do Acais que, como nos conta Vandezande (1975), lá formaram
escola quando em vida; árvores de jurema, cultivadas pelos catimbozeiros, são
consideradas as próprias cidades espirituais (BRANDÃO & NASCIMENTO, 2001,
p. 163).

Antes de ir a campo, li um texto de Moonen (1992) que me informou que os Potiguara

preferiam não falar sobre a prática de catimbó na região, possivelmente como um reflexo

traumático das perseguições policiais aplaudidas pela Igreja e legitimadas pela ordem

republicana da época. Dessa forma, cheguei a Terra Potiguara com a idéia de encontrar o

misterioso culto à jurema.

No entanto, à medida que interrogava as pessoas acerca da prática do catimbó na

comunidade, afigurava-se um feixe discursivo em torno da representação do catimbozeiro

mais em virtude de uma ideologia que do catimbó ritualisticamente explícito. Tanto os

potiguaras como os não-índios se valiam do termo catimbozeiro para designar indivíduos

dedicados a práticas religiosas de incorporação de entidades manifestadas no candomblé ou

na umbanda, ou mesmo para associá-las a feiticeiras.

29
A jurema é uma espécie de arbusto que floresce no agreste e na caatinga nordestina. Da casca de sua raiz faz-
se uma bebida que promove comunhão e estase, permitindo às pessoas entrarem em contato com o mundo
espiritual. Existe ainda um grupo de representações acerca da planta como ainda concepções variegadas em
torno do que vem a ser jurema. No catimbó Jurema significa um lugar do mundo espiritual onde residem os
mestres e os caboclos. No culto da jurema em terreiros de umbanda é freqüente a referencia à Cabocla Jurema.
64

De fato, catimbó e catimbozeiro são elementos semânticos difundidos no campo social

nordestino para estigmatizar30 os agentes da religiosidade que “trabalham” com seres vistos

pela população em geral como “espíritos malignos”, identificados com poderes satânicos

capazes de atrair infortúnios: "Quem faz catimbó, morre encantibozado".

Uma questão interessante quanto a atribuição de ser catimbozeiro pode ser vista à luz

das considerações de Geertz (1983) acerca da natureza do senso comum: sua manifestação

varia conforme os códigos culturais e as situações históricas, oscilando entre a aversão e o

desdém, o assentimento e a graça. Nesse sentido, recordo que durante uma das conversas

descontraídas que tive com as Caranguejeiras, um moto-taxista passou pela rua e gritou de

maneira cordial: catimbozeira! Zuleide prontamente respondeu, também com um tom

amigável: maconheiro! Em outro contexto, na Vila de Monte-Mor, um potiguara que

"trabalha" com a umbanda assumiu a identidade de catimbozeiro em tom irônico face a

incompreensão popular sobre o caráter de sua religiosidade enquanto eu, ele e outro índio

conversávamos sobre fatos do cotidiano da comunidade. O umbandista contou-me ainda que

naquela semana uma mulher que o havia procurado para "saber as coisas e abrir seus

caminhos" fora espancada pelo marido "porque foi pra casa de um catimbozeiro".

Assim, na verdade, o catimbó reconhecido como um ritual concernente ao “complexo

mágico-religioso do culto à jurema” (BRANDÃO & NASCIMENTO, 2001, p. 162) não é

propriamente caracterizado no interior da comunidade Potiguara.

Tupã ou não Tupã?

O catolicismo tem sua presença garantida na vida social dos Potiguara desde as

primícias do expansionismo colonial, mediante a “tutela da fé” organizada pelas ordens

30
Para Goffman, o estigma “é antes de mais nada, uma relação formal pela qual são atribuídos comportamentos e
expectativas ‘desacreditados’ ao individuo que tenha mostrado ser dono de um ‘defeito, falha ou desvantagem’”
(MISSE, 1979, p.23).
65

religiosas dos franciscanos e carmelitas. O trabalho da igreja, cada ordem religiosa com seus

métodos próprios, concentrava-se na catequização e no controle dos índios no sentido de

haver um disciplinamento do trabalho e abrandamento do conflito entre os colonos e os

nativos. A empreitada sacra incluía ainda a agremiação de índios Potiguara “na supressão dos

levantes tapuios” (BARRETO, 1999, p. 106).

Ao permanecer próximo de uma antropologia histórica, discuto a história Potiguara

sob um ponto de vista distinto daquele que aborda a "história do nativo" alocada de modo

dualista em relação à "história moderna", como forma de superar "interpretações que

simplesmente reafirmam a superioridade dos colonizadores sobre os nativos, ou que

evidenciam apenas momentos de rebeliões, confrontos e conflitos bélicos, vistos com fins

trágicos para os indígenas" (SILVA, 1998, p. 2) - predestinados ao desaparecimento no ritmo

da descaracterização cultural.

Pensando "a 'cultura' em termos menos essencialistas e mais relacionais" (WOLF,

2003, p. 243), enfatizo que a sociedade Potiguara é imediatamente simultânea a do etnógrafo

e não procede de uma criação primordial, ancorada num ethos autóctone pré-cabralino. De

fato, "no decorrer de intercâmbios históricos internos e externos, ao longo do tempo, e não em

algum reino platônico pressuposto a priori" (WOLF, 2003, p. 217) a entidade étnica Potiguara

assinalou incessantemente, valendo-se de maneiras diferentes, critérios de pertencimento

situacionalmente criados diante de circunstâncias de interação específicas.

Portanto, o processo de colonização e cristianização deflagrou uma série de

entrecruzamentos socioculturais que produziram vincos de interação (WOLF, 2003, p. 317)

no campo intersocietário de relações interétnicas 31, imprimindo um compasso específico à

31
Importante não perder de vista que o contato e a mudança cultural são experiências que faziam parte da
história dos grupos que aqui habitavam antes da chegada dos conquistadores europeus, mais precisamente os
portugueses. Privilegio a lógica mestiça estabelecida por Amselle, que enfatiza “a idéia de uma mistura ou um
cruzamento originário entre grupos diferentes que tem se formado por toda parte da história humana”
(AMSELLE, apud GRUNEWALD, 2001, p. 13).
66

história social do grupo. Ou seja, a irrupção dos aldeamentos missionários entre os Potiguara

nos séculos XVII e XVIII marcaram uma remodelação qualitativamente nova desse lócus de

relações interétinicas.

Para Wolf, um primeiro passo para compreender a formação de grupos etnicamente

definidos "é observá-los em situações diferentes para retratá-los em seus cenários muito

diversos" (2003, p. 246). Nesse sentido, inseridas no processo de expansão das fronteiras

portuguesas que aqui aportaram, as missões religiosas constituíram o cenário de formação do

grupo indígena Potiguara, que se desdobra na consciência de uma origem comum associada a

uma herança católica socialmente adquirida. Portanto, muitas das formas simbólicas,

construídas de maneira histórica, evocadas no repertório de diferenças organizacionais

acionadas no processo de construção da etnicidade Potiguara deixam transparecer o impacto

social e cultural da tradição católica.

As narrativas em torno do passado que situam o agrupamento Potiguara nos sistemas

de aldeamento de Baia da Traição e Monte-Mor conectam as gerações atuais aos ancestrais

"tutelados" no cenário interétnico das Missões, guardando coerência com os registros

históricos da doação das sesmarias. Nesses termos, a saliência da etnicidade Potiguara funda-

se em afirmações de um parentesco imputado, estipulado, sustentando o que Anderson (1983)

chamou de "comunidade imaginada", que, no decorrer do tempo, de geração em geração, foi

reafirmada a ideologia de uma substância comum em situações de interação especificas, "em

parte mediante transferencias biológicas, 'descendência e, em parte, por meio da transmissão

de uma 'tradição' valorizada e culturalmente aprendida" (WOLF, 2003, p 244). Essa

articulação entre território e parentesco é acionada pelos Potiguara na manutenção da

organização social do grupo, sob processos situacionais que subscrevem a geração da

etnicidade Potiguara.
67

A consciência histórica das terras das antigas missões da Baia da Traição e de Monte-

Mor legitima a mobilização política da identidade étnica diferenciada no litoral norte da

Paraíba evocada nas narrativas dos potiguaras32. Na tradição oral Potiguara, as terras dos

aldeamentos aparecem homônimas à terra de São Miguel, referente à missão da Baía da

Traição, e a terra de Nossa Senhora dos Prazeres, referente à missão de Monte-Mor. Esse tipo

alusão é primordial no processo de construção social da identidade Potiguara, pois atua como

teia de representações que conectam os descendentes aos "índios velhos" ao articular

parentesco e território.

Os potiguaras e os regionais fazem referência à expressão comum de um território

dado a São Miguel, relativo ao aldeamento de Baía da Traição, e outro conferido a Nossa

Senhora dos Prazeres, correspondente ao aldeamento de Monte-Mor. São Miguel é renomado

como aquele que "protege e guarda" os Potiguara. A festa de São Miguel é realizada no mês

de setembro no vilarejo “batizado” com o nome do santo – Aldeia Vila de São Miguel.

Segundo Iolanda Potiguara, professora de escolas indígenas diferenciadas na área e aluna do

curso de Pedagogia da UVA (Universidade do Vale do Acaraú),

ele (São Miguel) é renomado como padroeiro dos Potiguara porque na época da
colonização pegaram a imagem pra amedrontar, reduziram as terras em aldeias e
daí essa terra era denominada terra de São Miguel porque era ele que comandava o
território e o que os índios faziam. Um modo de tortura mesmo. Os índios não
tinham religião e absorveram aquilo por conta da introdução forçada.

Na vila de Monte-Mor, Dona Antônia contou-me que a Igreja de Nossa Senhora dos

Prazeres foi construída pelos holandeses, "mas foram os índios velhos que carregaram as

pedra pra fazer a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, a igreja querida dos indios". Nesse

vilarejo, a narrativa sobre a terra do aldeamento é evocada com profusão mais acentuada em
32
É importante enfatizar que não pretendo fundamentar as reivindicações indígenas estabelecendo uma conexão
necessária com um espaço geográfico, uma vez esse tipo de analise estará fadada ao malogro já que a noção de
território indígena encontra-se historicamente datada, isto é, torna-se impossível falar do sentido atual
empregado nas reivindicações das populações indígenas remetendo-se a indícios de continuidade de ocupação de
uma região de aldeamentos. O exercício de investigação que procedo empenha-se em relevar os sentidos sociais
simbólicos da historicidade dos Potiguara, de suas narrativas, nos processos de construção da etnicidade do
grupo. Para maiores esclarecimentos acerca da problemática da noção de território indígena ver OLIVEIRA,
1999a.
68

relação as evocações da comunidade que habita a Terra Potiguara de Baia da Traição, posto

que os índios de Monte-Mor enfrentam um momento de intensa mobilização política de

diferença étnica, na "tentativa de fazer sua própria historia buscando mover-se além das

condições impostas sobre eles" (SIDER, 1976, apud GRUNEWALD, 1999, p. 153). Ou seja,

a despeito da violência e do mandonismo dos Lundgren, da discriminação social, dos reveses

da estrutura hierárquica da vida rural, os Potiguara de Monte-Mor mantiveram viva sua

condição étnica, que, nos últimos dez anos, aflorou-se publicamente no cenário da região, no

sentido de se libertarem das amarras da miséria e da opressão discriminatória para garantirem

o direito à demarcação de seu território que correspondia aos limites do antigo aldeamento de

Monte-Mor.

Ao evidenciar meu interesse pelas religiões praticadas pelos Potiguara, raramente

algum membro do grupo deixava de relatar "a influência dos branco que apoiavam os índio

com sua religião, sua Igreja católica, que tinha como objetivo domar os índio" de modo a

viabilizar a expansão colonial sobre seu território. Afirmavam ainda que antes da chegada do

europeu "os índios não conheciam religião", o que existia era o culto à "Natureza Sagrada".

A partir das conversas, bate-papos e encontros casuais mantidos durante o meu

percurso etnográfico nas comunidades Potiguaras, pude perceber a difusão da consciência

histórica acerca da “aculturação” e repressão sofrida por seus antepassados quando da tomada

e seu território pela agência colonizadora eclesiástica, pelos “padres que perseguiam os

índio”33.

É importante salientar que as formulações da tradição oral Potiguara em torno da

imagem negativa das missões catequizadoras são elaboradas no presente, confrontadas no

âmbito de sua etnicidade, não anulando de maneira alguma a crença dos atores sociais no

33
De fato, "os franciscanos destacaram-se por acompanhar a ocupação do litoral nordestino, do Rio Grande do
Norte até Alagoas. (...). Acompanharam as bandeiras e outras expedições para apresamento de índios e várias
vezes ajudaram os colonos em guerras contra os nativos, que eram apoiados pelos jesuítas. Foi o que aconteceu,
por exemplo, na guerra paraibana de 1585 contra os potiguares" (DEL PRIORE, 1994, p. 13).
69

catolicismo, uma vez que a trajetória histórica dos Potiguara, assim como da sociedade

brasileira em geral, tem na religião católica uma matriz cultural de raízes altamente

significativas para o julgamento dos valores disputados nas relações sociais.

Desse modo, o grupo infanto-juvenil de "resgate de cultura", Fala Curumim, de

Marcação, no decurso da 4ª assembléia geral Potiguara (2004), realizou uma apresentação que

deixou emocionadas as pessoas presentes ao traçar a trajetória histórica dos Potiguara,

encenando o contato sagrado com a natureza que caracterizava o modo de vida original de

seus antepassados, e depois, a imposição forçada do catolicismo com a "tutela" missionária. A

montagem teatral contou com performances corporais acompanhadas de composições

musicais que dramatizavam a evangelização e o controle dos índios velhos na situação

colonial de aldeamento. Mas esta religião não emplacou tão somente um imaginário de

imposição e violência, os potiguaras recriaram um leitmotiv de tradução da religião cristã

como sentido de sua etnicidade. E, dessa maneira, o grupo Fala Curumim cantou: "Me dê

força Deus Tupã/ Com meu São Salomão".

Nesses termos, a etnicidade Potiguara emerge na interação social do entrelaçamento

histórico da religiosidade católica com elementos culturais indígenas. No caso como o da

religiosidade, que envolveu o processo de catequese dos índios controlados em aldeamentos

missionários, a exigência prática de estabelecer um diálogo com o outro desembocou na

construção de uma alteridade religiosa, posto que o "missionário procurava no 'outro' o 'pai

nosso que está no céu'" (POMPA, 2003, p. 352).

Tratava-se, então, do problema da personificação, ou seja, os índios deveriam também

ter a crença em algo ou em alguém, para dessa maneira, cumprir o sistema prático de

catequese, o qual foi todo elaborado a partir da experiência com os Tupi. Logo, inventou-se

uma "cosmologia cristã tupinizada", sendo Tupã a denominação de Deus usada para traduzir o

"Ser Supremo" das "religiões brasílicas".


70

Na comunidade Potiguara, as pessoas engajadas na relevância de sinais diacríticos que

singularizam uma retórica étnica no quadro regional, referem-se a Tupã como "o Deus que

botou a primeira gente sobre a Terra, os índio, junto com a natureza". As irmãs Zuleide, Ieda

e Edleuza, me disseram que esse Deus "é o mesmo Deus dos branco, é uma coisa só, Ele que

criou tudo". Esse tipo de afirmação é um ponto importante para se pensar uma relação

interreligiosa, em que Tupã instaura a assunção sagrada de proeminência étnica capaz de atuar

como via de múltiplas reflexividades em torno da própria "criação" do índio, que é "a raiz do

Brasil inteiro", como também da força espiritual que evoca uma especificidade indígena de

contato com a natureza. Portanto, Tupã designa a crença indígena no Ser que criou os

Potiguara, que os ajuda em sua resistência histórica no litoral nordestino, no lugar que assim é

cantado no Toré: "Sou Potiguara nessa terra de Tupã".

A gente não gosta muito de padre não, já massacraram muito os índio de


antigamente. Nós temos oração pra ficar forte com a força que Jesus dá e enfrentar
as batalha da gente. Deus Tupã dá força e coragem pra defender os nossos dreitos e
as nossas aldeias. Nós têm muita fé em Deus Tupã, nós trabalha com as força da
natureza, é sangue que Deus deu (Edleusa, uma das irmãs “Caranguejeiras”).

Perguntei às Caranguejeiras qual é a religião dos Potiguara, e responderam em

uníssono que era católica, "mas os crente participam também" 34. De fato, os investimentos

étnicos levados a efeito são geralmente orientados por pessoas que se identificam como

católicas. Buscam valorização da diferença cultural produzindo artesanato indígena,

interpolam seu discurso com palavras da língua Tupi, e, ademais, são aquelas que estão

engajadas nas mobilizações políticas de diferença cultural nas pelejas pela ocupação de terras,

as "retomadas" de territórios necessários à reprodução sociocultural digna de sua população,

sempre acionadas com performances de um Toré "arrochado".

Sobre o catolicismo entre as populações indígenas do Nordeste, cabe destacar a

atuação do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), organismo vinculado à CNBB

34
A seguir retomarei este importante enunciado quando for discutir a tradição evangélica no processo de
construção da etnicidade do grupo.
71

(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que se responsabiliza pela Pastoral Indigenista.

A prática fundamental de atuação do Cimi foi assim definida pela 11 ª Assembléia Nacional de

1995:

Impulsionados(as) por nossa fé no Evangelho da vida, justiça e solidariedade e


frente às agressões do modelo neoliberal, decidimos intensificar a presença e apoio
junto às comunidades, povos e organizações indígenas e intervir na sociedade
brasileira como aliados(as) dos povos indígenas, fortalecendo o processo de
autonomia desses povos na construção de um projeto alternativo, pluriétnico,
popular e democrático.

Atualmente o Cimi atua junto aos Potiguara por intermédio da missionaria Irmã

Juvanete. No período das minhas idas a campo, essa Irmã estava acompanhando os Potiguara

de Monte-Mor na mobilização política de ocupação da sede da FUNAI em João Pessoa. Tal

ocupação foi deflagrada diante da ameaça da reintegração de posse aos usineiros de uma faixa

de terra em Marcação onde já haviam sido construídas moradias e desenvolvidas rocas no

intuito de demonstrarem o usufruto dos recursos naturais ali existentes necessários para

sobrevivência daquelas pessoas.

Os moradores da aldeia do Forte me informaram que a missionária está ensaiando um

"torezinho" com as crianças da comunidade, além de instalar em sua casa um ateliê para a

produção de peças de artesanato confeccionadas por crianças e adolescentes. Um índio da

comunidade afirmou que "se não fosse a Irmã nem tinha havido Toré no Forte no Dia do

Índio". A aldeia do Forte é uma das únicas aldeias que não possui igreja católica, assim a Irmã

Juvanete esta "em obra" no processo de levantamento de verba para conclusão da edificação

do templo que já se encontra com sua estrutura de concreto erguida. Por enquanto, ao lado da

futura de igreja católica do Forte, uma cada de taipa serve como espaço para a realização de

terços, orações e reuniões dos católicos da comunidade.

Na seção anterior, destaquei que na Terra Potiguara são realizadas festas de padroeiros

das aldeias indígenas, compondo, assim, um calendário anual de tradição católica. Segundo

Peres (2004), as festas dedicadas aos santos padroeiros das aldeias (e dos Potiguara)
72

representam "um momento de celebração da etnicidade indígena". Concordo com o citado

autor na medida em que as festas católicas de fato constituem espaços de agradecimento da

graça recebida e da proteção concedida aos potiguaras, constituindo vínculos espirituais

sentidos pelos atores sociais em suas trajetórias biográficas de pertencimento a uma etnia

diferenciada no contexto regional e nacional, referenciada a uma terra sob a regência de São

Miguel.

Entretanto, ao questionar alguns potiguaras se os festejos aos santos são considerados

"coisa de índio", as respostas convergiram em dizer que se trata de uma tradição católica

advinda da colonização missionária, que "a tradição indígena das festa tá esquecida. E até em

muitas aldeia tá morrendo a tradição das festas. Outras são badaladas, como a de São Miguel,

por conta das bandas famosas de forró". Gostaria, então, de frisar que as minhas idas a campo

não coincidiram com datas do calendário anual das festas de padroeiro na comunidade

Potiguara, portanto, não procedo aqui uma investigação detalhada do lugar dos padroeiros na

tradição Potiguara. Mas, de toda forma, suspeito que atualmente tais festejos servem para

narrar a origem do grupo, e, aí sim, celebram a unidade do grupo, sem que tal manifestação

religiosa fundamente uma ênfase pública de diferenciação étnica. No entanto, parece que o

resgate e fomento da tradição do Toré nas comunidades explicitam o perfil da etnicidade dos

índios que pertencem àquele território, isto é, convoca uma audiência da representatividade

étnica dos Potiguara no contexto regional do norte do litoral paraibano.

É preciso ressaltar que a religiosidade entre os Potiguara não tem sido elemento-chave

de afirmação de uma etnicidade indígena. Isto é, não se destaca um movimento de

religiosidade formal e organizado no contexto da práxis social do grupo. Enfatizo esta

questão, uma vez que, segundo Martins (1999, p. 226), através de práticas de religiosidade

ligadas ao Toré e ao Ouricuri "os índios no Nordeste vêm afirmando uma etnicidade

diferenciada dos demais nativos não-índios que convivem no ambiente regional".


73

De fato, os trabalhos de orientação etnográfica efetivados em contextos diversos de

sociabilidades das populações indígenas do Nordeste nos últimos vinte anos apontam, dentre

inúmeras discussões, a emersão da religiosidade como domínio essencial e substantivo de

construção de uma identidade indígena que se energiza em contato extático com um regime

da ancestralidade movimentado na “viagem da volta”35.

Contudo, recentemente o antropólogo Rodrigo Grunewald (2004) lançou algumas

considerações que descortinam nuances ploblemáticas acerca do caráter proeminentemente

religioso do Toré, descrito de forma naturalizada por alguns pesquisadores (REESINK, 2000;

MARTINS, 1999) representando, assim, um importante tópico de análise para os estudiosos

que venham a estudar esse fenômeno étnico. O exercício reflexivo levado a efeito por

Grunewald não visa negar a possível configuração religiosa do Toré, mas não tomar como

evidente a caracterização desse rito como religião. Ora, pois em muitas comunidades

indígenas as identificações religiosas reclamadas por seus membros não recaem sobre a forma

particular de expressão sagrada do grupo. Portanto, é importante que tenhamos em mente que

determinadas tradições étnicas promovem uma experiência coletiva de etnicidade que

sacraliza o grupo e/ou divindades, sem, no entanto, conjugar uma prática que se vincule a um

compromisso religioso.

Sobre a práxis de mobilização de sentimentos étnicos, a representação do Toré, não

obstante a irregularidade de sua realização nas diversas comunidades, afigura-se como um

ritual de união e etnicidade dos Potiguara. Com efeito, além de sinal diacrítico evocado em

mobilizações políticas de identidade indígena, este fenômeno social comporta interfaces

semânticas que incrementam a complexidade de um ritual que pode ser visto como a tradição

sagrada de unidade étnica, espaço mediúnico de diálogo com espíritos ancestrais, ou mesmo a

"brincadeira" dos índios.

35
Ver nota 17.
74

Não assumo aqui como tarefa cartografar o itinerário histórico da presença do Toré no

Nordeste, bem como entre a população Potiguara. O Toré aparece nesta pesquisa por se

destacar como um fenômeno de etnicidade Potiguara que comporta vozes dissonantes

referentes à questão da religiosidade. De toda forma, aponto que "em 1913, o Serviço de

Proteção ao Índio não nomeia as danças dos Potiguara (PB) e a Missão de Pesquisas

Folclóricas, em 1938, reconhece, além do coco, Torés entre esses nativos" (GRUNEWALD,

2004, p. 4). Na década de 1970, a performance do Toré é incrementada na comunidade

Potiguara com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), no intuito de incentivar

que "índio precisa ter cultura indígena, precisa exibir símbolos de indianidade, em encontros

festas e outros eventos que contam com a presença de pessoas estranhas à comunidade

Potiguara" (MOONEM, 1992, p. 112).

No decurso de meu trabalho de campo acompanhei a realização de quatro Torés. De

uma maneira geral, os participantes, dentre homens, mulheres, jovens, idosos e crianças,

formam uma fila que avança na direção de um espaço de terra plano e largo, comumente

designado nas áreas rurais como terreiro, onde será realizada a dança. Os músicos seguem na

frente puxando o compasso de uma musica. Os instrumentos característicos do ritual

Potiguara são as zabumbas, os maracás e uma flauta reta. A linha de pessoas adentra no

terreiro circundando-o, com os músicos permanecendo no centro da roda de dança. O Toré é

"aberto" com o Pai-Nosso sendo rezado em voz alta por um cacique ou liderança local 36. Os

índios ficam agachados durante a reza, um momento de silêncio que exprime e força de união

que sacraliza o grupo para alguns, e para outros, de concentração espiritual no empenho de

conjugar uma memória ancestral e pedir fortalecimento nos processos da vida que se dilatam

diante da resistência Potiguara num cenário de concentração fundiária. Concluída a oração, os

36
Na 4ª Assembléia Geral Potiguara, que presenciei durante meu percurso etnográfico, o Toré que marcou o
inicio do evento foi aberto com o Pai-Nosso sendo rezado em Tupi pelo cacique Néo da Vila São Miguel.
75

experts da tradição oral das musicas do Toré puxam os cantos imprimindo o movimento

circular do ritual que ecoa o chacoalhar rítmico dos maracás.

Caboquinhos, São Salomão, a cabocla Jurema, Nossa Senhora e Jesus Cristo,

coexistem de forma dinâmica na "brincadeira" dos Potiguara, sublinhando o processo de

reelaboração híbrida da cultura que alimenta na atualidade as mobilizações políticas da

identidade do índio paraibano, que se reconhece descendente do "primeiro habitante da terra

brasileira". Nesses termos, como tenho salientado, o ritual do Toré revela intensos elos

interculturais infundidos na relação histórica da cultura indígena com o catolicismo, num

movimento de combinação de diversidade e inovação que atualmente se dispõe como

leitmotiv de postura étnica.

Assim, é proeminente a participação de católicos na performance do Toré. Entretanto,

cabe agora recuperar para análise a afirmativa de que "os crente participam também". Em

verdade, a motivação inicial de minha pesquisa antropológica foi a informação, declarada por

estudioso que atua nesta comunidade num espaço de tempo considerado, acerca do

desaconselhamento da prática do Toré dirigido por alguns pastores entre os índios de sua

comunidade de fé. O "pivô" desse conflito, ou melhor, um dos membros do grupo indígena

Potiguara que marcou seu posicionamento nessa discussão foi o índio Manuel, Mané como é

mais conhecido na área, além de ser também destacado como vitorioso maratonista que

participa de inúmeras competições pelo Nordeste afora.

A conversação com Mané37, na casa de sua mãe que fica defronte ao P. I. Potiguara,

começou com uma indagação sobre os esclarecimentos dos objetivos da pesquisa. Expliquei

para ele que estava interessado em estudar como que na prática de sua religiosidade as

pessoas se posicionavam como Potiguara. No esteio do discurso evocado em outras conversas

37
Este índio, 34, é filho da relação marital entre uma índia e um não-índio que foi chefe do Posto da FUNAI
nessa comunidade.
76

com potiguaras, esse índio iniciou sua fala dizendo que "o catolicismo veio pra tirar a cultura

do índio, deixar essa religião como se fosse uma coisa nativa".

Há oito anos Mané aderiu à religião evangélica. Criticou bastante as festas promovidas

pela religião católica, referindo-se aos festejos dos padroeiros comemorados na comunidade,

onde vai haver muita cachaça, prostituição pra quem quiser. Os índio ficam
embriagados e não vão ficar consciente do que tão fazendo, até morte já houve.
Olha só meu amigo, é uma festa da Igreja Católica. Os índio então ficam desunido
por conta da embriaguez, quando termina as festas, no outro dia os índio tão de mal
um do outro. Então aí tá a falha da Igreja Católica dentro da nossa comunidade,
nossa cultura. Religião não é isso, religião é dá a você a chance de viver mais ainda,
ir mais além, saltar da morte para a vida.

Sobre a prática religiosa do catolicismo, pregou que não pode

adorar um ser que o próprio homem formou. Eu tenho que adorar o ser que o
próprio Deus formou. E quem foi? Jesus Cristo. São Pedro, São João, foram
homens iguais a nós, que pecaram, que ainda no futuro vão subir pra uma
eternidade. Eu não vou ter fé num ser que não criou nada. Aonde existe uma coisa
que tá voltada a outro ser, então eu to desviando minha fé pra lá e pra cá. E uma
coisa que não é transparente, ficam ali naquilo, numa estátua, numa imagem, e não
conseguem ver que existe um Criador capaz de resolver os problema que os índio
tão passando.

A exposição dessas considerações do compromisso religioso com o protestantismo são

importantes para compreendermos o sentido da articulação identitária de perfil étnico

acionada por Mané. Há uns dois anos, ele protestou contra uma advertência do pastor da

igreja Assembléia de Deus, "naquela época eu (Mané) fazia parte da Igreja Assembléia de

Deus", que repreendeu "uma índia que foi dançar o Toré, tirando ela da Igreja". A partir daí,

"mobilizei Caboquinho (cacique geral dos Potiguara), Josafá (Potiguara que ocupa o cargo de

chefe do P. I.) e o presidente da Assembléia. Aí o pastor foi removido".

Juntamente com seu irmão, Iremar (artesão indígena), e outros jovens da aldeia do

Forte, aquele índio busca erigir uma performance regular do Toré na comunidade. A idéia é

construir uma grande oca para servir de lugar de convivência entre os potiguaras, de reunião,

e, principalmente, um espaço para a prática do Toré que funcione como um núcleo educativo

da cultura Potiguara.
77

Temos que fazer a nossa cultura funcionar. O Toré é minha cultura, e não vou
deixar de dançar porque sou evangélico. Eu digo pro povo: se não for através do
Toré, da oca, nós não vamos conseguir nada. Foi a única coisa que sobrou da nossa
religião nativa e já tá se acabando. Ali a gente vai se unir e o resgate vai acontecer,
com os jovens não ficando tímido pra dançar o nosso costume. Se não for através
da nossa religião nativa do Toré, da oca - a casa religiosa -, nossas aldeia vai se
acabar. O Toré é sagrado pra nos aqui. Dá união, é uma questão de amar o nosso
Criador. Deus Tupã é quem criou esse lugar aqui pra gente viver, a própria
natureza. Os índio tinha que se voltar uns para os outro e se perguntar sobre o nosso
Criador, aí ia ter o resgate da espiritualidade indígena. Muitos índio tão brigado
entre si, eles dança lá (no Toré) e quando sai tão se abraçando, apertando a mão e
começando outro (Toré). Dentro do Toré existe um ser que faz o povo se entranhar
um no outro, fazendo os objetivo ficar bem próximo. (...). Mas a gente tem que
pesquisar a cultura indígena original, porque a religião católica já deixou dentro do
Toré uma música que já traz Maria. Então os índio foram querendo adaptar essas
música católica dentro da musica que nos mesmos tínhamos, que hoje não existe
mais. Então quando começa essas musica que tem santo católico eu não danço
(Mane).

Podemos dizer que Mané se posiciona num entre-lugar, um espaço intersticial de

elaboração e reformulação de estratégia de subjetivação singular e coletiva no ato de definir

sua identidade religiosa e seu posicionamento étnico. Isto é, este potiguara produz

performativamente os termos do embate cultural a partir dos cursos de ação – escolhas e

recusas – orientados no processo de ir e vir por entre as fronteiras do compromisso religioso e

do investimento de um perfil étnico ao compor a construção de sua identidade social

(BHABHA, 2001).

Para Mané, a catequese simboliza o processo de aculturação da sociedade Potiguara,

ponto de vista que se inflama alimentado pelo antagonismo insurgente da identidade

evangélica. Ao mesmo tempo, o compromisso com o evangelho sede lugar a consciência

étnica relevada em sua perspectiva autobiográfica de diferença cultural.

O processo de criação do grupo de Toré esbarrou no receio do cacique do Forte em

perder força política nessa comunidade. A questão conflituosa ficou complicada já que o

cacique é primo de Mané, e para evitar confusão sua mãe pediu que seu filho não criasse

discórdia na família. Diante disso, o grupo se diluiu.

Meu percurso etnográfico nos entremeios da expressão evangélica no contexto da

sociabilidade Potiguara contou ainda com a colaboração de alguns membros da 1 ª Igreja


78

Batista Potiguara, situada na aldeia do Galego. Todos esses com os quais mantive contato

integram a família Santana, núcleo de parentesco que muito se destacou como “celeiro” de

lideranças políticas na comunidade.

Cabe salientar de inicio uma informação contida na monografia de conclusão do curso

de ciências sociais de Vieira, que também transitou etnograficamente entre esse grupo

evangélico Batista38 (1999, p. 17): “ser crente é estar comprometida com as palavras do Pastor

e ser vigiada pelos membros do grupo e por outras que se preocupam com a vida das

pessoas”. De fato, constatei em campo a consonância das palavras do Pastor com as

declarações emitidas pelos fiéis. Dessa forma, procurei dialogar com o pastor Emídio Santana

Coura, formado nos quadros teológicos da Igreja Batista no Estado de São Paulo.

Falou-me que os índios dali “já estão muito aculturados” e que não precisou por em

prática a preparação “antropológica” dos missionários para lidarem com uma situação de

evangelização de uma “cultura tribal”. Fez questão de ressaltar que “aquela igreja de São

Miguel é uma construção holandesa, portanto, veja só, os protestantes poderiam ser maioria

aqui se a colonização holandesa tivesse logrado êxito no Brasil” 39. Quanto ao resgate da

língua tupi implementado nas escolas de ensino diferenciado indígena, replicou argumentando

que essa ressurgência é uma mentira, jamais conseguirão resgatar uma língua que não existe

mais, “esse tupi que estão ensinando não é o idioma original dos nativos daquela época, já é

uma outra coisa, pra que aprender isso?”. Perguntei se havia “problema” de algum membro da

igreja em dançar o Toré, e assim ele retorquiu: “Em toda cultura há presença do Demônio.

Cabe ver até onde é cultura e depois passa para o satanismo. Nas letras dessa musicas vemos

louvores a Maria e outras idolatrias, invocação aos mortos, culto a entidades de macumba.
38
Todavia a perspectiva empregada por esse autor distingue-se da utilizada em minha pesquisa, posto que aquele
aborda o segmento evangélico Batista na aldeia do Galego alocado de forma dualista em relação aos não-
evangélicos, ou melhor, Vieira toma os "crentes do Galego" como aporte instrumental para operar um esquema
bipartido de afirmação e negação da identidade étnica.
39
“Três vezes a igreja evangélica foi implantada no Brasil colônia, e expulsa pelos portugueses: a igreja
reformada dos franceses no Rio de Janeiro (1557-1558), a dos holandeses na Bahia (1624-1625) e a dos
holandeses, ingleses e franceses e índios no Nordeste, quase 30 anos depois” (SCHALKWILK, 1998, p. 1).
79

(...). Não proíbo as pessoas de dançarem o Toré, prego a palavra. Proponho que eles façam

uma coisa nova (um Toré novo) que cante os costumes dos índios, mas eles não fazem...”. Em

verdade, a explicitação pública de um impedimento para a prática do Toré pode custar algum

tipo de conflito com as pessoas engajadas na performance do ritual. Entretanto, trata-se de um

código de conduta que é monitorado pela comunidade de irmãos. Recordo-me que Mané

comentou que “as igreja evangélica não deixam os índio a vontade pra prática do nosso

costume (o Toré), a nossa cultura. Não é que eles não deixam, fica a critério do índio, mas

dentro do que eles querem não é pra praticar a cultura do índio”.

Segundo Ubiraciara40 Santana, o significado etimológico da palavra toré é “culto ao

demônio”. Essa informação foi transmitida pelo pastor Emídio nas suas pregações,

continuamente reiterada ao longo dos cultos. Para ela, “as pessoas precisam ler o evangelho.

Aí esta o plano da Salvação, a Verdade. Isso daí (o toré) mistura cultura com religião. Cultura

é o que não envolve idolatria. E aí tem devoção a Maria. É só ver em êxodo 20. É a mesma

coisa que você adorar uma caixa, sendo que o que você tem que adorar é a pérola que tá

dentro, que é Jesus Cristo”.

As pessoas do núcleo evangélico da família Santana não estão dispostas em

investimentos de diferença cultural, consideram-se Potiguara já que são “da descendência e

nasceram na aldeia”, então, "eu digo por aí que eu sou um índio”, afirmou Jerônimo

Santana41.

Quando confrontados com mobilizações de perfil étnico que incidem sobre a dança do

Toré, a coerência do comportamento desses indivíduos com seu compromisso evangélico é

evidenciada na rejeição das letras que compõem as músicas rituais, além disso, esses

“crentes” enfatizaram que aquela dança vai de encontro com o “trabalho do Senhor” em

40
Ubiraciara entoa os cânticos nos cultos da Igreja.

41
Tio de Ubiraciara que toma conta de um “trabalho de Deus” na aldeia Silva do Belém.
80

virtude da incitação aos prazeres da carne desencadeados pela performance do corpo no rito:

“esse negócio de dança não é pra gente que somo salvo”.

Dona Creuza lembrou que, aproximadamente, em 1998 os membros de sua família

foram dançar um Toré num encontro evangélico em João Pessoa, integrando a caravana

organizada pela missionária que coordenava os trabalhos da igreja na época. A apresentação

do Toré no encontro não foi orientada como um investimento étnico da identidade Potiguara,

mas consistiu numa representação de um artefato cultural indígena do primeiro habitante do

Brasil.

Enfim, é importante notar que parece haver entre os evangélicos um movimento de

crítica cultural preocupada em destrinchar a mistura nas letras do Toré separando o que é a

cultura original do índio e o que foi inserido no ritual advindo do catolicismo “que quis deixar

essa religião como se fosse uma coisa nativa. Então essa música agora é uma música que os

católicos, os jesuítas deixaram da sua religião para os nossos índios de antigamente. Deixa a

desejar porque nós fomos perdendo as nossas coisas nativa mesmo devido a religião católica.

No interior da área indígena Potiguara avista-se práticas domésticas de religiosidade

relacionadas ao caráter sagrado da natureza, envolvendo seres que habitam a mata, que se

encontram no "trabalho" com "Nossa Senhora da Conceição e o Nosso Senhor Jesus". Trata-

se de práticas particulares de religiosidade que são mantidas "embutidas e encobertas",

segundo Iolanda, por conta de "meio mundo de conflito que acontece, não haver um

entendimento e as pessoas trocarem as coisas".

Em verdade, as pessoas que "trabalham" com incorporação de entidades ou com forças

de espíritos são discriminadas, enfrentam zombarias,

os outros começam a mangar chamando de macaco, xangozeiro, catimbozeiro... E


por isso que tá meio escondido, primeiro precisa haver uma conscientização, um
entendimento pra não reverter a história. Pensa aí, é muito ruim você sentir as coisa
e ser oprimido, ter vergonha. As pessoas que sentem isso oprimem e na maioria das
vezes até desiste sabendo que isso prejudica. Você se acaba por inteiro pra
enfrentar esses conflitos. Pensar que existiu a quinhentos anos atrás... existe ainda...
81

só que escondido. Eu tenho meu grupo de umas três pessoas que se reúnem e
chamam pela Grande Mãe (a Natureza Sagrada) e pelo Divino Espírito Santo, mas
nos quatro canto da comunidade tem gente que faz seus trabalhos isolados. Tu não
vê Sandro! Prefere se isolar pra fazer seu 'trabalho' com medo da rejeição dele na
sociedade, quando tem que falar com as força que espírito e o corpo tá
necessitando. É certo que muitas vezes a gente se isola para ter força, mas que não
fique assim, se isola sozinho. Mas que se isola com os outros que também fazem
seus trabalho, que tão passando por aquilo, que tão reivindicando um
fortalecimento, um entendendo o trabalho do outro. Vai demorar esse
entendimento, mas eu acho que a religião indígena é realmente nosso
fortalecimento como índio (Iolanda Potiguara, Baía da Traição).

Temos, assim, que tais práticas de religiosidade são associadas a coisas negativas,

denominadas de macumba, candomblé e catimbó. Dentre as pessoas que "trabalham",

referidas por Iolanda, encontra-se rezadeiras, índios que conhecem os mistérios da mata e da

cura, e, o próprio Sandro, que "trabalha" com a umbanda kêtu. Vale salienta que, exceto para

Sandro, as outras pessoas que também “trabalham” percebem o catimbó como "o cão, o

diabo, coisa que descrê de Deus".

Não posso deixar de salientar uma importante questão levantada por Iolanda quando

diz que "a religião indígena é realmente nosso fortalecimento como índio". Recentes

pesquisas que se debruçaram sobre as construções de etnicidades indígenas no Nordeste

(GRUNEWALD, 1993; NASCIMENTO, 1994; BRASILEIRO, 1996; ARRUTI, 1996;

REESINK, 2000) afiançam a afirmação da índia Potiguara, uma vez que "o ritual constitui a

melhor instância de configuração de uma continuidade com a cultura 'original'" (REESINK,

2000, p. 364). De fato, entre os índios do Nordeste, práticas de religiosidade ligadas ao Toré e

ao Ouricuri ressaltam uma memória construída ritualmente, uma amálgama "encantada" que

conecta os índios atuais aos seus ancestrais, reforçando uma mobilização de diferença cultural

através das consultas aos "encantados", sábios conselheiros nas resoluções sociais e políticas

que interferem na vida do grupo.

Dessa maneira, acredito que o tipo de enunciação exteriorizada que apresentei acima

reflete um anseio por ver na comunidade Potiguara a emergência de uma forma de


82

religiosidade que promova uma conjugação de tradições indígenas para o fortalecimento da

coesão social da comunidade.

Sandro, um jovem (24) índio de Monte-Mor, é quem toca a zabumba no Toré dessa

comunidade. Digo que ele de apresenta como um dos brokers da mobilização política de

diferença cultural na comunidade indígena da Vila de Monte-Mor. É um dos construtores da

oca - idealizada pelo falecido cacique Vado - que abriga a prática do toré, está empenhado na

produção de artesanato indígena, bem como na construção de pequenas ocas (três ao todo) em

torno da oca principal para promoção de oficinas de artesanato para as crianças da vila.

Sua religiosidade é expressa na prática da umbanda com ketu42, que foi trabalhada num

terreiro na cidade de Mamanguape. Depois que “a dona do terreiro fechou a casa” passou a

“trabalhar em casa”, realizando trabalhos de cura com ervas e plantas na catulação do “dom

do pai-pequeno de um terreiro”. Ser catulado, receber a catulação consiste nas obrigações

advindas do compromisso espiritual com determinada parte de entidades. Os elementos de

origem indígena estão associados à parte da jurema. Os cantos são distribuídos distintamente

conforme a parte do trabalho que esta sendo evocada.

Segundo Assunção,

no culto da jurema, o índio representa o primeiro habitante da terra brasileira, um


morto ancestral. É uma imagem de um personagem distante e abstrato, identificado
pela idéia de ‘selvagem e forte’. O caboclo remete para a idéia do índio colonizado,
envolvido com a sociedade branca, dominante e como resultado do
entrecruzamento de diferente etnias (2001, p. 183).

Os caboclos que "acompanham" Sandro são o Sete-Flecha e o Sucuri, e a cabocla é a

Florzinha da mata43. Além desses, outros caboclos também baixam nesse contexto ritualístico:

Pena Branca, Pena Roxa, as índias tapuias, Tupinambá e Tupi-Guarani. Cabe indicar que "nos

42 ?
No candomblé a palavra nação designa a origem ancestral dos povos africanos que formaram esse rito
no Brasil. A tradição africana da Nação Ketu refere-se a linha de candomblé em que predominam os orixás e
ritos de origem ioruba (tabadeoxossi.tribod.com).
43
Entidade bastante difundida na cosmologia rural/sertaneja nordestina.
83

trabalhos de jurema, os caboclos são associados às representações da natureza, como ervas,

raizes, folhas, correspondendo para cada caboclo um tipo de erva" (ASSUNÇÃO, 2001, p.

193). Ressalto este apontamento para lançar ao leitor uma clarividência acerca do trabalho de

cura orientado por Sandro no manejo de ervas e plantas.

É precioso notar que na umbanda a música desempenha a função de um importante

propulsor de força espiritual, nesse sentido, é curioso, senão uma inclinação pessoal

decorrente de sua bagagem cultural, o potiguara-umbandista de Monte-Mor ser o tocador da

zabumba em sua comunidade, visto sua experiência musical trabalhada no terreiro de

umbanda.

Quem traz o toque são os guia, eles já trabalham em outros terreiros, ele é outra
pessoa, ele é quem ensina a trabalhar. Na umbanda o Toré é diferente.... mas se
torna a mesma coisa. Na umbanda a gente bate o tore pra poder virar com eles. Tem
a parte indígena do Toré. Porque tem a parte dos exus, pomba-gira, tem a parte do
caboclo das cabocla, com a cantada mais potente, aí o Toré é mais forte. Depois
vem a linhada de mestre, os preto velho, as preta velha. O Toré daqui (dos índios de
Monte-Mor) é mais pedindo força, usando oração. E na umbanda e pra movimentar
com eles e eles dá ensinamento... alguma coisa que vai acontecer eles falam, serve
de ensinamento.

Pois bem... Quando Sandro começou a falar sobre esse toré na umbanda fiquei

demasiadamente confuso. Ops! "Que danado é isso?", me perguntei. Na hora, confesso, até

cheguei a pensar que o ponto de vista do nativo estivesse misturando tudo, ou, talvez (o mais

provável) meu desconhecimento acerca da religiosidade afro-brasileira embaçava naquele

momento meu olhar etnográfico. As reticências das minhas conjeturações abrandaram,

cumpriram certa pontualidade a partir da leitura do texto As Múltiplas Incertezas do Toré, de

autoria do professor Rodrigo de Azeredo Grunewald (2004). O esclarecimento emergiu no

seguinte trecho:

De fato, a difusão do termo toré para designar rituais sincréticos afro-amerindios


populares com possessão se estende ainda ate ritos realizados com a designação de
'torés misturados' (NASCIMENTO, 1994) em Alagoas e Sergipe, além do terreiros
de umbanda/jurema que fazem seus torés como o do tatalorixá Pai Vicente Mariano
em Campina Grande (PB). Todos rituais mediúnicos em que o toré e recebido em
termos de sua codificacao indígena (GRUNEWALD, 2004, p. 8).
84

Assim, na batida do corpo e do espírito trazida pelos guias, as nuanças do hibridismo

cultural daquela forma de religiosidade transluzia no estabelecimento de um posicionamento

étnico. E, percorrendo as intermitências das reatualizações rituais, o Toré é metamorfoseado

no processo de interação simbólica inventiva de cultura no cenário social de construção de

uma identidade Potiguara.

Sandro vê o Toré Potiguara como

uma corrente muito unida, que dá força para combater nossas batalha, dá influencia
para as crianças pra seguirem com nossa tradição muito antiga. (...). O Toré daqui é
nossa brincadeira. Mas vai de cada um. Tem uma espiritualidade. Uns sentem mais
que outros. O Toré é como se fosse uma Mente. Se você desejar o mal pra alguém
ali dentro é você quem vai passar mal.

Com efeito, percebo no enunciado acima que "os sentidos do Toré são múltiplos e

constituídos a partir de muitos posicionamentos narrativos" (GRUNEWALD, 2004, p. 6), ou

seja, trata-se de um fenômeno que se apresenta sob roupagens subjetivas e pragmáticas

multidimensionais. É brincadeira de índio no contexto da vida difícil diante de intempéries

territoriais, constitui-se enquanto laço de comunhão étnica de natureza sagrada provida de

uma memória ancestral compartilhada pelos membros do grupo, e ainda, assume significados

distintos de espiritualidade face às discrepâncias de bagagens e perspectivas pessoais de vida.

Como aponta Brasileiro (1999, p. 186), esse laço de comunhão ritual é comumente

orquestrado sob a responsabilidade do pajé. O cargo de pajé emerge no cenário nordestino

obedecendo a conformidade política instaurada pelo órgão tutor (SPI), assim como o cacique

e o conselheiro. De uma maneira geral, o pajé é aquele que detêm a ciência e a tradição

indígena, conhecedor dos segredos da cura e do encontro com as forças da “mata sagrada”,

erigindo-se muitas vezes como símbolo focal da identidade étnica ativa na manutenção da

fronteira que define o grupo.

Dessa maneira, é precioso entender a entrada e a posição do cargo de pajé na tradição

do grupo Potiguara. Acredito ser fundamental suspender, então, qualquer discussão sobre
85

autenticidade das culturas indígenas nas quais o papel do pajé inexista, já que a infusão e

construção desse ator social na vida cotidiana estão sujeita à especificidade histórica de

organização social de um grupo.

Antes de minha entrada no campo etnográfico, eu tinha conhecimento da existência de

uma pajé Potiguara. Ao menos em dois eventos (um encontro neo-esotérico e uma feira de

cultura popular) avistei a senhora com seu tamborzinho e seus trajes indígenas. No segundo

dia de trabalho de campo, dirigi-me à aldeia São Francisco. Adônis (índio evangélico da

Igreja Batista), sabendo de meu interesse em conversar com a pajé, muito gentilmente

conduziu-me até à casa daquela “xamã” indígena.

Em todas as entrevistas iniciava a gravação dizendo o nome da pessoa e da localidade.

Ao dizer “entrevista com Fátima, pajé Potiguara, aqui no São Francisco”, prontamente a

senhora me interrompeu para informar-me que: “Na tradição indígena meu nome é Cunhã”. A

conversa com a pajé foi marcada por uma postura lacônica de sua parte, creio que pela falta

de confiança em mim aliada também pela controvertida posição do papel do pajé entre os

Potiguara.

Fátima: Tem coisa que vai pro médico, mas tem coisa que não vai. Eu faço
pajelança ali na oca.
Eloi: Como é esse ritual?
F: Não posso dizer.
E: É segredo?
F: É. O índio não tem religião, conhece Deus com o Deus Tupã né... amar a
natureza, amar os parente, mas eu não sou contra nenhuma religião. É um dom que
Tupã passa pra gente. Passei vinte e quatro horas... quer dizer que eu não tava em
mim, tava fazendo as viagem.
E: Tinha algum pajé antes da senhora?
F: Meu filho cada ano recebe um pouquinho do segredo.
E: Foi a senhora quem dirigiu a cerimônia de posse do cacique Caboquinho, como
foi?
F: Queria se batizar... veio me procurar. A cerimônia foi feita com tatamirim, fogo
pequeno.
E: A senhora troca experiências com outros pajés nos encontros que participa?
F: Essa troca de experiência a gente chama aimoitará.
E: como as aldeias daqui vêem o trabalho da senhora?
F: Não sei. Eu não gosto de me declarar não. Tem que crescer o dom de Deus Tupã,
crescer calado.
86

Este último enunciado revela uma tensão quanto à representação da tradição indígena

do grupo. Entre diversos índios existe um questionamento sobre a própria existência de um

pajé na comunidade Potiguara. Iolanda preferiu abster-se de qualquer comentário afirmando

que “isso a gente ainda tem que conversar entre a gente, com a Fátima, muitas aldeia não

aceita. É ... Fátima é a pajé dos Potiguara”. Quando perguntei às irmãs Caranguejeiras se

havia pajé entre os Potiguara, foi um rebuliço mesclado de desconfiança e ironia:

Pajé?! Aqui ninguém sabe quem é pajé não. Tem uma que diz que é pajé, como que
ela é pajé se ela não é índia. “Mas cala boca, mulher. Se não eles qué briga”. Diz
até que tem outro nome. Ela tem mais um cachimbão, viu, Seu Eloi. Quer dizer que
é um catimbozeiro, né. Por isso que muita gente pergunta, vindo lá de Campina
Grande: “E esse negócio de índio cai algum Caboclinho. Cai? Não Senhor. A gente
não somo xangozeiro. Certas coisas é erraado que só. Diz que é uma coisa sem ser.
Bota um cachimbo na boca e fuc! fuc! fuc! Quem faz isso é catimbozeiro, e a gente
não é catimbozeiro não Senhor. A gente nossa tradição, pede força a Deus Tupã da
gente, na paz de Deus, com as forca Dele (Ieda, Baía da Traição).

Em verdade, constatei na T. I. Potiguara a disputa faccional acirrada entre o grupo

ligado ao cacique geral, Caboquinho, e o grupo composto por lideranças que apóiam o

cacique das aldeias, Djalma, irmão da pajé Potiguara. Parece que as pessoas ligadas a

Caboquinho negam a legitimidade do papel de Fátima como pajé, enquanto os membros que

se posicionam na outra facção procuram reiterar a autenticidade do parentesco indígena de

Fátima confirmando-a como pajé. E, assim, o fato da pajé ter dirigido a cerimônia que

conduziu ao cargo de cacique o potiguara Caboquinho, explica-se por uma conciliação

situacional forjada para mediar o conflito num momento de sucessão que, necessariamente,

suscitaria graves desavenças.

As considerações que posso tecer acerca da posição da pajé Fátima na tradição

Potiguara são apenas tentativas de delinear visagens reflexivas que suscitem dúvidas e

questões sobre a inserção desse personagem na construção da etnicidade dessa população

indígena, uma vez que permaneci em campo pouco tempo para ter fundamento dos processos

sociais que engendram a manutenção do cargo de pajé.


87

Diante disso, creio que a figura do pajé ainda não se constitui como símbolo étnico

para a comunidade Potiguara. O poder de cura está organizado em torno da rezadeira e dos

indivíduos que dominam o conhecimento das propriedades das plantas. Nesse ponto, a pajé

apresenta-se como uma alternativa, não representando símbolo focal de um sistema de cura

indígena de legitimidade étnica entre os Potiguara. As técnicas xamânicas utilizadas pela pajé

Fátima, como o cachimbo e o tambor, dentre outros procedimentos rituais, servem de fomento

para acusações da prática do catimbó, como foi observado nas palavras de alguns potiguaras e

dos membros de uma determinada igreja evangélica.

Enfim, parece que a imagem de Fátima como pajé converge maior audiência

posicionada para uma representação dirigida ao mundo dos “brancos” montado nas feiras de

cultura popular e encontros esotéricos “recheado” de xamãs, em detrimento de um papel

distinto de coordenação de um espaço sagrado na vida dos Potiguara. Quero dizer que o cargo

de pajé entre os Potiguara estabelece seu papel de agente de cura e de aconselhamento

espiritual minimizado em decorrência do próprio questionamento quanto à legitimidade da

pessoa que o exerce na comunidade. Assim sendo, cabe investigar de maneira pormenorizada

como se dá a construção da figura do pajé entre os Potiguara. Portanto, não pretendo aqui

traçar quaisquer interpretações conclusivas acerca da consolidação do “trabalho” do pajé na

comunidade indígena Potiguara.


88
89

Inconclusões

Após todas essas descrições é interessante despertar algumas considerações referentes

aos investimentos étnicos tecidos por Potiguaras ligados à praticas de religiosidade diversas.

A tarefa de pesquisar os processos de atribuição étnica no âmbito das religiosidades

encontradas na sociedade indígena Potiguar foi um caminho trilhado por mim para

problematizar a conexão entre a adscrição étnica e a manutenção da diversidade cultural.

Procurei, então, chamar a atenção para a duplicidade de códigos culturais confrontados na

interação no processo de construção da etnicidade Potiguara.

Para tanto, tomei por base a preciosa assertiva de Barth que nos diz que “a existência

de categorias étnicas básicas parece constituir um fator que incentiva a proliferação de

diferenciações culturais” (2000a, p. 38). Nesse sentido, procurei delinear a série criativa de

arranjos culturais movimentados pelos atores sociais ligados a variadas formas de

religiosidade.

A perspectiva que desenvolvi em meu trabalho monográfico incidiu sobre “as

convergências e aos mal-entendidos” (VELHO, 1997) que movimentam “o exercício

individual de transformação do self” (MAFRA, 2000, p. 59). Ou seja, busquei realçar os

modos de sentir e de agir dos atores sociais em suas experiências religiosas, procurando

descobrir o que significa para eles os objetos da tradição religiosa no decurso de suas

biografias, das variadas situações da vida cotidiana para a qual buscam respostas. E, no caso,

de meu objeto de estudo, tentei construir uma certa cartografia de como a etnicidade Potiguara

se processa entre as diversas praticas de religiosidade na comunidade indígena Potiguara.

Vimos que a marcante presença da agência católica, desde o inicio do processo de

colonização do Nordeste brasileiro através dos aldeamentos missionários, estabeleceu uma

nova unidade sociocultural definida no processo de territorialização. O sistema de


90

aldeamentos promoveu, assim, uma reconfiguração da organização social que qualifica a

formação étnica do povo Potiguara.

Portanto, a grande maioria dos índios Potiguara são católicos, o que importa destacar

que os processos de diferenciação cultural operados por essa população deixam transparecer a

insígnia da religião católica. Relatei que um ciclo de festejos católicos dedicados aos santos

padroeiros das aldeias movimenta a tradição Potiguara. E, principalmente, observamos que as

músicas que animam a performance do Toré relevam associações híbridas de raízes históricas

que entrelaçam o católico e o étnico.

De fato, o Toré apresenta-se como ponto de convergência étnica evocado nos

discursos presentes nas variadas formas de religiosidade. A múltipla composição deste

fenômeno instiga atitudes surpreendentes na construção contextual de sua prática. Católicos,

umbandistas, “catimbozeiros”, e até mesmo evangélicos, executam e reconhecem o Toré

como força motriz de elaboração de um norte para a etnicidade do grupo. Assim, bagagens

culturais e perspectivas de ação social distintas afluem sobre esta dança ritual, configurando

um cenário plural de expectativas espirituais e de “brincadeiras”.

Noutra margem, o cargo de pajé, possível diretor ritual de manutenção do Toré, não

incita formulações de caráter étnico, sendo na maioria das vezes questionado acerca de sua

existência na comunidade. Fica lançado, então, o desafio de desvendar a irrupção da figura do

pajé no contexto da sociabilidade Potiguara e a produção de sua performance xamânica.

Ao procurar mostrar como distintas práticas de religiosidade assinalam um tipo de

perfil étnico, acredito que sinalizei novos percursos de análise sobre a construção de

etnicidades indígenas na região nordestina do Brasil, reagindo teoricamente, portanto, ao

potencial etnográfico das mudanças culturais articuladas por esses grupos étnicos que

reivindicam visibilidade no cenário nacional.

Tupi or not Tupi? Essa é a questão.


91

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