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Natal/RN
2019
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de Mestre em Psicologia.
Natal/RN
2019
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Cuidados Paliativos na proximidade da Morte”, elaborada por Ingrid Raíssa dos Anjos Rocha,
foi considerada aprovada por todos os membros da Banca examinadora e aceita pelo Programa
EM PSICOLOGIA.
BANCA EXAMINADORA:
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“Não há lugar na Terra onde a morte não nos encontre – mesmo que voltemos a cabeça uma
“a história de cada homem é essencial, eterna e divina, e cada homem, ao viver em alguma
Dedico este trabalho ao Tempo, que tanto me ensina sobre ciclos, sobre
a vida e a morte.
E ao meu bisavô Pedro (in memoriam), que me fez sentir ainda criança
Agradecimentos
Agradeço aos meus pais, Derocy e Mônica, por toda a vida e cuidado, por serem solo
firme e amoroso em que posso fincar minhas raízes e crescer. Os seus modos de estar no mundo
dedicação que aprendi com meu pai à sensibilidade e criatividade que tanto admiro em minha
mãe, e tantas outras coisas. Para vocês minhas palavras sempre serão poucas.
Ao meu irmão Thiago, pela leveza que me traz com sua presença, e por me lembrar
através de seu bom humor quase que diariamente que a alegria e o riso também são “armas
À minha irmã de coração Laura por sua presença sempre incentivadora e amorosa.
À minha vovó Ceiça, que no seu abraço cuidou de tantos dos meus desesperos, e que na
sua escuta atenta me faz recordar que há lugar no mundo para as minhas sensibilidades.
No afeto destes cinco descubro que há sempre terra para onde voltar. E por isso e por
serem cada um aos seus modos os maiores incentivadores dos meus voos agradeço
imensamente.
Ao meu avô Canindé e ao meu avô Derocy (in memoriam) por todo cuidado,
À minha tia Cecília por me lembrar junto com minha avó, minha tia Tetê, minha mãe e
tantas outras a força – que tanto admiro e na qual me recarrego – das mulheres de minha família.
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À minha prima Ádila e à minha tia Nilma pela presença e trocas nestes últimos anos.
Às minhas amigas Gabi e Thaíza, por toda escuta, suporte e incentivo, fundamentais
nessa trajetória.
À Brisa, Letícia, Luana, Larisse, Jaris e Ana Flávia por toda torcida, conversas e afeto.
À Danielle por ser uma referência de cuidado, que há tanto me auxilia e acompanha
pelos seus olhares atentos e contribuições cuidadosas a mim e ao meu trabalho, desde a
qualificação, momento para mim muito importante, até a defesa, quando compuseram a banca
Às colaboradoras deste estudo por me permitirem ser escuta de suas práticas e de seus
mundos.
E à Geórgia Sibele, por acolher a mim e à minha pesquisa. E por me ensinar tanto, pelo
seu rigor, conhecimentos e exigências, mas principalmente pela sua sensibilidade, cuidado e
amorosidade, serei sempre grata pelas “trilhas de encantamento” a que você me inspira e a que
me permitiu percorrer.
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Sumário
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 17
2. OBJETIVOS ......................................................................................................................... 33
4.2 Cuidados Paliativos uma história que desde o início é um convite à espiritualidade .... 73
5.2.2 Da estruturação da religião à prática da religiosidade: crenças que confortam .... 105
6.2. Eu torço para que o paciente tenha algo: como incluir a espiritualidade? ................. 116
6.4.1 Para além do cuidado do outro: o lugar da espiritualidade para os psicólogos/as 143
Lista de figuras
Figura 2. Ônix
Figura 3. Ametrino
Figura 4. Olho-de-tigre
Figura 5. Tanzanita
Figura 6. Berilo
Figura 7. Cornalina
xiii
Lista de tabelas
Lista de Siglas
CP – Cuidados Paliativos
RESUMO
ABSTRACT
The illness and death experience’s reveal the human fragility in the face of life and impose on
those who experience illness and those who care and attend them considerable challenges,
especially in illnesses where there is no curative therapy. In the 1960s, Palliative Care emerged
as a field of care, which belongs to patients and families living an illness process that threaten
life itself. Thereby, since the beginning of this process, there was a concern about people’s
integral and multidimensional care, which was not only about their physical dimensions, but
also about emotional, social, and spiritual aspects, considering spirituality as an important
resource in care near death. In the last few decades, studies about spirituality has grown
exponentially, and had shown its relevance on both physical and mental health, quality of life,
well-being, diseases prevention, and coping, showing itself as relevant human dimension,
which is fundamental to develop care strategies, regarding to the processes of health, disease
and death, and thus also important to psychology. The aim of this study was to understand the
place of spirituality / religiosity in the work of psychologists in Natal-RN who work in palliative
care near death. There were seven psychologists participants in this study, with different
experience time in palliative care, different spiritual and religious experiences, and different
approaches to acting in psychology – who were selected by indication and convenience. It is a
qualitative research grounded on Gadamer’s Hermeneutics as a theoretical basis for its
construction, analysis and narratives comprehension. It was accomplished a narrative interview
using projective scenes. The interviews were recorded and transcribed. The research field diary
was used to record the researcher's personal impressions during the study. The dialogue with
the participants narratives originated the following chapters: (1) “Palliative Care and death:
building a history of caring for life until the end”, which brings different human attitudes
towards death and dying and a brief history of palliative care, which since the beginning it has
been marked by the inclusion spirituality in care, an aspect also illustrated by participants’
words; (2) “Spirituality / Religiosity: the concepts of health-illness-death and the psychologists’
conceptions” that exposes spirituality, religiosity and religion in health, illness and death
process and the reveal the psychologists’ concepts of religiosity and spirituality; (3)
“Spirituality and religiosity in the psychology spiritual care near death” which was focused on
the relationship between spirituality and psychology, mainly in a palliative care context near
death, highlighting the difficulties and challenges to include spirituality in care, although detach
the power that spirituality has above psychology care near death, both for patient and their
families care and for the health professional's own care. Thus, from the understanding of these
professionals practice and the place that spirituality occupies in it, it is defended the importance
of considering and including spirituality / religiosity in health care practices, especially when
dealing with care near death, in rescue to humanization and integrality of care.
1. INTRODUÇÃO
Rubem Alves
entanto, não está como ato que objetiva parar o choro, mas sim como metáfora para o
acolhimento, alusão ao cuidar e ao estar junto, tal qual a fala de Raquel, filha do poeta
supracitado, a qual me inspira. Desde o princípio de meu não muito longo trajeto de construir-
me psicóloga e pesquisadora, fiz escolhas que me aproximaram quase sempre das questões
referentes ao cuidado, aos que o recebem e aos que o oferecem. Muitas dessas escolhas foram
tinham e têm sobre mim, mas não somente, visto que a esse campo de interesse e de afetação
Assim sendo, fui buscando contato com os temas e campos que tanto ressoavam em
mim. No terceiro ano de meu curso, fui surpreendida com uma disciplina que estava disponível
temática da morte, que, para mim, já naquele momento, trazia um imenso atravessamento da
oncologia.
No final do mesmo ano em que isso aconteceu, fiz uma escolha: adotar como foco, na
minha formação, o contexto oncológico. Desse modo, logo no ano seguinte, iniciei um curso
oncológico, onde meu contato com o câncer, com o cuidado, com a espiritualidade e com a
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morte se adensaram. A vivência foi rica – em leituras, experiências e trocas – e o contato com
a morte “viva”, durante a minha atuação naquele momento vivenciado enquanto parte da equipe
de saúde, mesmo que na condição de estagiária, muito me inquietou e me pôs defronte com
questões que ainda hoje me são caras e que muito deslocaram meu olhar, a priori focado nos
questionamentos como: quem cuida de quem cuida? Como a equipe de saúde lida com a morte?
Diante disso, criou-se em mim uma dificuldade em reocupar o hospital, que, por um
tempo, tornou-se o retrato da dor, do sofrimento e da morte, que à partida não eram meus, mas
com os quais, ainda sem perceber, eu não conseguia lidar internamente. Com isso, aquilo com
que me deparava deixava de ser a dor, o sofrimento e a morte do outro e passava, em certa
medida, a ser também a minha dor, o meu sofrimento, a minha morte e a de todos a quem eu
amava. Era a minha dor, ao reconhecer os limites de minha atuação; o meu sofrimento, por me
dar conta de que, mesmo sendo possível “estar com”, não se pode blindar o outro ou evitar o
sofrimento das perdas; e a minha morte, a morte da crença ingênua, embora complexa, de que
possibilidades e potencialidades neste campo, que não se esgota na batalha contra a morte, a
qual muitas vezes acreditamos que precisamos travar incansavelmente, mas que se reinventa na
Assim, o interesse pelos temas que agora fortemente atravessam esta dissertação
permaneceu mesmo quando o “querer” pedia deles afastamento, de modo que o tempo foi um
grande aliado no processo de dar lugar às experiências que haviam sido difíceis e inquietantes,
no entanto que não precisavam ser estanques. Com isso, converteram-se em propulsoras do
RN que tem em sua atuação o contato direto com pacientes, famílias, cuidadoras e cuidadores
mas também o aumento da prevalência de câncer e de outras doenças crônicas (Monteiro, 1997).
seu suposto favorecimento – aparelhos cada vez mais modernos e sofisticados trouxeram
o que tem contribuído fortemente para a solução de problemas antes considerados insolúveis
(Paim, 2005).
Diante desse novo cenário, a luta contra doenças fatais e contra a própria morte tem se
prorrogado cada vez mais, todavia, isso, por vezes, também amplifica o sofrimento dos que já
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não apresentam possibilidade de cura (Ferreira, Lopes, & Melo, 2011). Em outras palavras, o
progresso no setor da saúde, fortemente marcado pelo paradigma da ciência positivista, que tem
sido bastante sensível à incorporação de tecnologia do tipo material, por vezes contrasta com a
adoção discreta das tecnologias não-materiais, que nos remetem justamente às questões
al. (2011), relaciona-se com o aumento dos quadros de doenças crônicas. Isso impõe um amplo
desafio aos profissionais e ao ramo da saúde, demandando busca de novas práticas de atuação
com intuito de melhorar o maneio do período final de vida das pessoas que estão vivenciando
processos de adoecimento, sendo importante que a equipe tenha uma prática que leve em
consideração essas especificidades e que seja permeável a ações que favoreçam o cuidado em
condição humana, os homens e mulheres, em geral, estão vivendo mais. Entretanto, os mesmos
expectativa de vida não conseguem ainda beneficiar integralmente a maioria das pessoas em
estando ainda disponíveis a esses os recursos mais modernos disponíveis à medicina, que inclui
não apenas aparatos concretos, mas também elementos imateriais contidos nos cuidados em
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a cada ano ocorrem 58 milhões
degenerativas incapacitantes e incuráveis, ou seja, mais de 58% das mortes registradas são
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no Brasil, transcorrem um milhão de mortes por ano, sendo também mais da metade delas, 650
modo que, os momentos finais da vida, que ocorriam predominantemente no seio do ambiente
médica e de seus profissionais (Pessini & Bertachini, 2006), já que, em seu cerne, além da
(Bifulco & Iochida, 2009). Não obstante, sobretudo nas duas últimas décadas, uma conjunção
morte para o contexto hospitalar, como já mencionado, de modo que cerca de 70% das mortes
ocorridas nos Brasil, segundo Gomes & Othero (2016), dão-se em hospitais, em sua maioria
Nesse sentido, a partir da segunda metade do século XIX, é possível identificar uma
espécie de revolução das ideias e dos sentimentos tradicionais, no que se refere à morte e ao
morrer, o que consiste em um fenômeno complexo, implicado pelo contexto social, histórico e
cultural (Combinato & Queiroz, 2006). Assim, a morte passa de fenômeno presente, familiar e
2017). É imprescindível destacar, ainda, que, assim como aspectos culturais e históricos
interferem na relação com a morte e com o morrer, também interferem na forma como se lida
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com o processo de saúde-doença e de cuidado, de modo que se estrutura, a partir também desses
bem como a relação do profissional com as questões associadas à saúde, ao adoecer e à morte,
causalidade linear, isto é, a ideia do todo como soma das partes e da realidade como algo dado,
que apenas necessita de uma agente cognitivo para ser aprendida. De modo a favorecer a
direcionado à doença, enquanto processo que precisa ser vencido pela equipe. Essa perspectiva,
no entanto, constitui um problema apenas quando em sua radicalidade, isto é, quando a cura
passa a ser a maior prioridade, inclusive em detrimento do cuidado, uma vez que, por vezes,
falha, ao abordar a complexidade do adoecimento humano, quando o trata a doença como uma
(Tesser & Luz, 2008), aprofundando, consequentemente, a dificuldade e a repulsa ao lidar com
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Por conseguinte, a morte, outrora marcada por sua familiaridade, reclusa-se na solidão
do hospital. Com isso, desloca-se o lugar simbólico e concreto do morrer – algo que marca a
imaginário para o qual é preciso se poupar da morte, poupar o moribundo, poupar a família e
os entes queridos. Esse olhar acerca da morte, tão marcado em nossos tempos, acentua a
necessidade de olhá-la, tendo em vista também os desdobramentos que essa postura traz ao
o cenário de nosso país. Em 2010, foi publicado o primeiro relatório da Economist Intelligence
Unit comissionado pela Lien Foundation, que elaborou um índice de qualidade de morte,
tanto qualitativos como quantitativos, a partir de quatro categorias: (1) ambiente da assistência
em saúde, (2) disponibilidade de cuidados, (3) qualidade e (4) custos. Um dos cuidados
consistiu em garantir que o exame não perdesse de vista aspectos éticos e culturais.
engajamento como algo necessário para melhorar nossa qualidade de morte. Não obstante, é
participantes, o que pode ter implicado no desempenho do país, cuja posição o coloca entre os
três piores. Já em 2015, o The Economist divulgou um novo relatório a respeito da qualidade
impotência, de fracasso e de vergonha diante da morte, tão característicos dos homens e das
saúde, por vezes centrada nos procedimentos padronizados em relação às doenças, quando toma
objetivismo excessivos, afetando diretamente o processo de cuidar (Tesser & Luz, 2008).
podendo, inclusive, questionar sua utilidade, o que pode levar a dor e sofrimento, bem como
As dificuldades para enfrentar a dor de não salvar, de não saber dar a notícia ruim, de
não saber confortar, nem ficar ao lado do paciente à morte, muitas vezes são etapas
solitariamente vivenciadas que, se não forem acolhidas, enfrentam um percurso de
grande vulnerabilidade ao desenvolvimento de mecanismos rígidos de defesa e de
distanciamento do outro e de si mesmos e precisam de um espaço de acolhimento e
cuidado para serem resignificados (Nogueira da Silva & Ayres, 2010, p. 84).
integral, focado na prevenção e no controle de sintomas, o qual não restringe sua atuação apenas
ao paciente, mas também à família que, junto ao paciente, compõe a unidade de cuidado. Nessa
perspectiva, o foco não está voltado exclusivamente à doença, nem tampouco à cura, tão
buscada por outras abordagens em saúde, dentro do paradigma hegemônico (Gomes & Othero,
2016).
25
cuidado de modo geral, tendo em vista as especificidades referentes ao trato com a morte na
acolhermos essa temática, isso pode nos conduzir a um novo ethos, bem como a práticas de
saúde mais cuidadosas e humanizadas. Assim sendo, é imprescindível um olhar sensível a essa
temática que seja dirigido às necessidades de cuidado, evitando, por um lado, reforçar o modelo
cartesiano e, por outro, considerar exclusivamente a racionalidade científica que tão fortemente
práticas religiosas é bastante marcante ao longo da história, tanto nas tradições orientais quanto
nas ocidentais, havendo centros destinados ao tratamento e à cura de pessoas enfermas que eram
também espaços religiosos (Pereira, 2018), algo que inclui também o cuidado diante da morte
(Custódio, 2013). Exceções multiplicaram-se no ínterim da modernidade, em que essa visão foi
rechaçada – apesar de não excluída de todo – pela lógica hegemônica da tecnociência, até que,
nos fins do século XX, passou a ser retomada, gradativamente, no campo das pesquisas em
Cuidados Paliativos (Matsumoto, 2012), teve, em algumas de suas iniciativas, vínculo religioso
estado substancialmente presente nesse contexto, de modo que olhar e considerar essas
dimensões de forma cuidadosa e acurada tem sido um desafio necessário à equipe de saúde que,
usualmente, não tem esses aspectos contemplados em sua formação (Arrieira et al., 2018).
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é adotada por vários autores e estudiosos, os quais, mais explicitamente, passam a valorizar as
final da primeira década do século XXI, em contrapartida a um longo período em que a temática
era vinculada majoritariamente ao campo da religião e considerada como parte deste. Sua
presença havia sido cindida do campo da ciência durante a modernidade, como já referenciado
(Santos, 1988), mas, atualmente, a teologia e as ciências da religião são apenas uma parcela dos
domínios nos quais o assunto tem sido estudado e discutido (Belzen, 2012).
discussões acerca de sua presença, ou não, na formação dos profissionais de saúde. Moreira-
ou não, embora o tema parece surgir com mais recorrência no primeiro caso (Koenig, 2012c).
veremos em detalhes mais adiante, não é unânime o conceito de espiritualidade, a qual, por
vezes, é confundida com religião e/ou religiosidade, o que se justifica também pelas possíveis
intersecções que podem haver entre os temas ou mesmo pelo não aprofundamento teórico
marcado pelo senso comum. É preciso, no entanto, ter discernimento acerca disso, pois tais
Não obstante, apesar das muitas definições evidenciadas na literatura, pode-se dizer que,
que é marcada por ser um sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos que
de um Outro, mas que não se identifica, necessariamente, com nenhuma tradição religiosa
alvo de interesse de diferentes segmentos da sociedade (Pessini, 2007), fato que potencializa os
desafios na construção de conhecimento sobre o tema, tendo em vista que as pessoas já têm,
aprofundada das evidências acerca do tópico, sendo fácil cometer deslizes, “por um lado, para
um ceticismo intolerante e uma negação dogmática ou, por outro, para uma aceitação ingênua
bem-estar psicológico e para a qualidade de vida (Melo, Sampaio, Souza, & Pinto, 2015). Além
disso, há o lugar dado pelas pessoas à dimensão espiritual em suas vidas, sendo algo importante
e mesmo central na vivência delas (Borges, Santos, & Pinheiro, 2015). Logo, dentro das áreas
valoroso que se considere a dimensão espiritual, pois esta pode trazer indicativos relevantes à
que estamos inseridos. O último Censo do IBGE (2010) revela que 89,1% da população
brasileira se identifica com alguma religião, índice que ainda não engloba quem não se
identifica especificamente com uma única religião. Esse dado aponta para o fato de que a grande
sincretismo entre diferentes matrizes religiosas, mesmo quando o catolicismo era obrigatório e
oficialmente a única religião (Negrão, 2008). Dessa forma, ainda hoje, mesmo dentro de
religiões específicas, reverbera certa fusão cultural entre diferentes crenças, forjando, em nosso
brasileiros (Camurça, 2009). Esses aspectos podem e devem ser levados em consideração no
cuidado, dentro de uma perspectiva de saúde integral, parece um caminho coerente, já que: (1)
muitos pacientes são religiosos ou trazem crenças que os auxiliam a lidar com muitos aspectos
da vida. Além desse fator, Koenig (2012) destaca outros quatro, os quais podem motivar o
abranjo dentro dessas dimensões os profissionais de saúde de forma geral, assim, é preciso
considerar que: (2) as crenças religiosas influenciam as decisões médicas, principalmente nas
situações em que os pacientes estão seriamente doentes; (3) atividades e crenças religiosas
relacionam-se à melhor saúde e à melhor qualidade de vida; (4) muitos pacientes gostariam que
médicos que falam e que levam em consideração as necessidades espirituais não são novidade,
posto que esse liame tem raízes na longa história da relação entre religião, medicina e
das dimensões não racionais presente na produção do conhecimento e nas ações humanas
(Gomes & Merhy, 2014), o que se conecta com a necessidade de que os trabalhadores da saúde
saúde-doença traz a atenção para aspectos que transcendem a dimensão biológica dos pacientes;
desse modo, passa-se a levar em consideração a espiritualidade, assim como outras experiências
e vivências do humano (Espinha, Camargo, Silva, Pavelqueires, & Lucchetti, 2013). No campo
a tendência atual de atenção à temática na formação em saúde (Aguiar, Cazella, & Costa, 2017;
Coscrato & Bueno, 2015; Espinha et al., 2013; Fonseca, Bueno, Schliemann, Kitanishi, &
Floriam Junior, 2014; Reginato, Benedetto, & Gallian, 2016). Isso sinaliza a necessidade de se
incluir essa tônica na formação profissional – tendo em vista a dificuldade que a lida com o
tema usualmente ocasiona nos profissionais em formação e mesmo nos já formados – como
já que, supostamente, não se tratava de uma questão relevante para o exercício profissional
que, em geral, a equipe de saúde tem em sua abordagem, apontando para a necessidade de
investigar e de compreender como essa temática tem sido tratada na formação profissional e
em sua atuação. Desse modo, é preciso considerar os estudos que indicam a complexidade de
abordagem do tema não tenha finalidade doutrinária, mas, sim, intuito de promover o cuidar do
modo mais integral possível, dentro das possibilidades de cada profissional (Espinha et al.,
momentos, de modo que, durante muito tempo, os estudos científicos sobre espiritualidade,
na psicologia (Cavalheiro & Falcke, 2014). É importante, ainda, não perder de vista que ciência
da saúde, ainda se observa que, quando voltada aos profissionais de saúde ou à formação deles,
os estudos sobre a psicologia são menos numerosos do que os realizados nas áreas da
exclusivamente para os profissionais de saúde, de uma forma geral, são também menos usuais
do que aqueles voltados ao paciente e/ou a seus familiares, apontando para a necessidade de se
aprofundar o conhecimento e as ações nesse campo (De La Longuiniere, Yarid, & Silva, 2018;
Oliveira, 2017).
31
Diante de tudo o que foi exposto até aqui, este trabalho se propõe a dirigir um olhar
justificativa das escolhas que envolveram o presente estudo. Em seguida, apresenta-se a seção
consiste numa breve discussão teórica acerca da tanatologia e dos diferentes retratos da morte
dominantes, sem negar ou rejeitar seus avanços, mas em busca de uma re-humanização do
cuidado e do olhar para a integralidade das pessoas; e, para tanto, dialoga-se com as
aproximação que parece haver, desde o prelúdio dos CP, com o que se associa ao campo do
espiritual.
literatura na área dialoga com as nossas colaboradoras, apresentando aos leitores e leitoras
32
a discussão das diferentes compreensões e concepções que têm as psicólogas participantes deste
com a espiritualidade e seus desdobramentos no cuidar diante da morte, bem como suas
Ao fim dos capítulos que discutem e dialogam as narrativas com os achados presentes
“Referências” e os “Apêndices”.
33
2. OBJETIVOS
2.1 Geral
2.1 Específicos
(d) identificar qual a compreensão ética que os psicólogos possuem sobre a relação deles
pacientes;
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3. PERCURSO METODOLÓGICO
métodos e técnicas que orientam e que o balizam, bem como a criatividade do pesquisador
com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças e das atitudes, ou
seja, com o universo das produções humanas (Minayo, Assis, & Sousa, 2010), sendo a
realidade das pessoas em contato com o fim da vida e/ou vivendo com sua proximidade
(Kovács, 2003a).
tomada como referência teórica e também analítica, por consistir numa disciplina que se
permeado e também construído a partir da linguagem. Diante disso, faz parte da hermenêutica
dentre outras atribuições, era considerado emissário dos deuses: responsável por traduzir e
sociais (Araújo, Paz, & Moreira, 2012), que se ocupa da arte de compreender textos, que podem
ser biografias, narrativas, entrevistas, documentos, artigos, livros e tantas outras expressões, já
que é bastante abrangente o que é considerado texto pela hermenêutica (Minayo, 2002). Há
(Schmidt, 2014), todavia, sua principal tarefa e esforço consistem em compreender, ou seja, é
esclarecer as condições sob as quais surge a fala, de modo que não se inicie o processo
interpretativo já com opiniões prévias e/ou arbitrárias (Minayo, 2002). Desse modo, o
escrita, falada ou simbólica demonstra aspectos da realidade humana (Araújo et al., 2012).
conceitos diferentes, cujas diferenças devem ser compreendidas (Lawn, 2011). Na antiguidade
clássica, com Platão (427 a. C.), está a matriz filosófica da hermenêutica, enquanto doutrina da
relacionados sobretudo à filosofia e à teologia, adotada nesta última como instrumento de defesa
literatura clássica com o intento de desvelar o sentido original dos textos. Na modernidade,
a dualidade hermenêutica, emergindo, assim, uma nova hermeneuta, como arte da interpretação
preponente de uma nova hermenêutica geral, com intuito de unificar e de apoiar as disciplinas
particulares da hermenêutica legal, bíblica e filológica. Porém, apesar do grande impacto que
provocou nesse campo de saber, não foi o primeiro a se propor desenvolver uma teoria universal
(Schmidt, 2014), embora seja a partir dessa figura que a compreensão, junto com a
e que aquilo que deve ser compreendido não estão apenas na literalidade das palavras ou em
seu sentido objetivo, mas também na singularidade de quem comunica (Brito et al., 2007).
nível, também com passado, já que o processo de compreensão carrega necessariamente uma
dimensão histórica. Essa virada, que ressalta a íntima relação entre passado e presente, no que
se refere à compreensão, foi de substancial importância para Heidegger, com suas contribuições
na história das hermenêuticas, tendo em vista que, ao invés de enfatizar uma concepção
com uma descrição fenomenológica da experiência real e ressalta que a experiência não possui
apenas um prisma por meio do qual pode ser vista. Com isso, propõe uma hermenêutica que
comunica não exclusivamente o aspecto teórico, mas também outros aspectos do ser humano,
tratando da verdade, daquilo que é, sendo a verdade, ou o não encoberto como verdade,
da facticidade, que não indica o sentido moderno de “uma doutrina sobre a interpretação”, mas
sim de uma “autointerpretação da facticidade”, em que esta vai sendo encontrada, vista, contida
e expressa em conceitos, sendo a hermenêutica utilizada para trazer à tona diversos aspectos da
de certo modo, a lógica sujeito-objeto: a interpretação não envolve uma lógica sujeito/objeto,
já que o suposto “objeto” é também capaz de se auto-interpretar. Desse modo, o método pelo
pressuposições.
em seu pensamento. Porém, sua práxis interpretativa segue a hermenêutica tradicional, mas
como meio, como casa do Ser e como acesso a ele (Schmidt, 2014).
Gadamer, que fora aluno de Heidegger, por marcada influência deste, assim como
que esta vai muito além dos limites da interpretação textual, sendo atravessada por aspectos
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Distancia-se de seu mestre, ainda, na reflexão sobre os fundamentos das ciências do espírito,
mediado pela linguagem, sendo assim, o esforço para conhecer e compreender é mediado
também por ela, a qual está sempre atravessada por espaço e tempo, de modo que cada situação
tem sua historicidade e seu horizonte próprio (Gadamer, 2002). Assim, o exercício
Silva, 2006), o que ocorre por meio de uma espécie de encontro dialógico em que o pesquisador
se abre para o risco e para o teste de suas ideias prévias em relação ao colaborador. Assim,
2013).
significado das partes separadas é determinado pela acepção global, o que, por sua vez, pode
essa circularidade não é tomada como um ciclo vicioso, mas, sim, enquanto uma espécie de
Desse modo, o acesso ao outro não consiste em um resgate de seu horizonte, nem numa
aprofunda e se expande à medida que percorre a espiral hermenêutica, processo que vai
suscitando também questões ao intérprete, fazendo com que o texto fale novamente no
fusão com um outro horizonte (Schmidt, 2014). Nesse sentido, a perspectiva narrativa é
projeção arremessada, ou seja, para Gadamer, isso significa que sempre já compreendemos de
alguma forma, de modo que qualquer ato de compreensão inicia-se a partir de estruturas prévias
das quais se interpreta como alguma coisa, que há uma tradição herdada que é ponto de partida
para todos os atos de compreensão, chamados “preconceitos”, os quais, nesse caso, devem ter
apontando que nela há também preconceitos legítimos, cabendo a ressalva de que, certamente,
nem tudo o que se ancora em uma tradição é verdadeiro. Nesse sentido, a tarefa da compreensão
um significado projetado do todo para as partes e logo volta-se para o todo (Schmidt, 2014).
gadameriana parte dos preconceitos do intérprete – representados pelo horizonte deste, o que
círculo que transita do texto ao intérprete e ao texto regressa, enriquecendo sua interpretação e
40
horizontes, na qual o intérprete assimila o conteúdo do texto, tomando-o, em certo modo, como
parte de si mesmo, porém sem fazer com que o texto perca sua própria autonomia (Wermuth,
2015). Isso demonstra ser vital que os preconceitos e opiniões do intérprete interajam com o
texto, mas que a ele não se misturem, para que não se perca a expressão de seu sentido literal,
isto é, o texto, em sua leitura, mesmo que leve em consideração a linguagem e as tradições,
estabelecidos para este estudo: psicólogas e/ou psicólogos que trabalhem em instituições
terminalidade.
(Minayo, 2010). Não havia pretensão de se formar um grande grupo, haja vista a natureza
qualitativa desta investigação, que privilegia o aprofundamento das informações mais pelas
estratégias de obtenção das narrativas do que pela quantidade de participantes (Barbalho, 2015).
Dito isso, foram entrevistadas sete psicólogas, sendo necessária a interrupção do processo com
41
uma delas, o que trouxe como consequência a obtenção apenas de parte da entrevista narrativa
deste esforço e da diversidade que foi possível garantir, houve características que se
expressaram mais de que outras, como os tempos de formatura superiores a quinze anos e a
abordagem em Gestalt-terapia.
O acesso às colaboradoras foi ensejado pela rede de contatos da sua orientadora, que
e extensão em que há, dentro de suas articulações, contato com profissionais de cuidados
paliativos de Natal-RN e do qual este projeto – bem como esta pesquisadora e sua orientadora
– fazem parte. Houve a indicação de profissionais umas pelas outras, à semelhança do método
bola de neve (Vinuto, 2014), todavia sem tomá-lo como forma exclusiva de formar o grupo de
colaboradoras. Foi, desse modo, formado um grupo exclusivamente composto por mulheres,
mesmo não havendo restrição alguma na pesquisa no que se referia ao gênero dos participantes.
narrativa e a participação em oficina com as cenas, além da média de duração de cada uma das
atividades. Após isso ser feito, o convite para participar da pesquisa foi realizado. A data e o
dados específicos de cada colaboradora, como idade, religião, escolaridade, tempo de formatura
e de atuação em cuidados paliativos. Houve, para cada uma delas, a adoção de nomes fictícios
42
com base na qualidade a que cada pedra a remete, tendo em vista os aspectos simbólicos que
com as profissionais para construção de cenas (Apêndice B). Após a entrevista, houve um
momento coletivo com as cenas projetivas entre as colaboradoras. No entanto, não foi viável
43
que todas as profissionais entrevistadas participassem deste encontro coletivo, de modo que
Esclarecido (TCLE) (Apêndice C1) e o Termo para Gravação de Voz (Apêndice C2). As
perspectivas em análise, bem como em estudos que combinam histórias de vida e contextos
sócio-históricos (Jovchelovitch & Bauer por Martins & Ferreira, 2016). Esse é um instrumento
que conduz o entrevistado a recorrer à sua memória para que, assim, narre e rememore
acontecimentos, experiência e histórias, de modo que haja se estabeleçam conexões, bem como
interação social em que os atores sociais constroem e procuram dar sentido a sua realidade a
partir do uso de palavras, símbolos e signos. Além disso, na condição de técnica, a entrevista
isso se dá com base em trocas verbais e não verbais, as quais se estabelecem no contexto da
interação, favorecendo uma melhor compreensão dos significados, dos valores e das opiniões
44
de entrevistados acerca de suas vivências pessoais e das situações vivenciadas (Fraser &
Gondim, 2004).
Além disso, esse tipo de entrevista permite o aprofundamento nas questões trazidas
pelos sujeitos em suas narrativas, permitindo acessar suas histórias de vida e seus contextos
sócio-históricos, favorecendo a compreensão dos sentidos das crenças, dos valores, das ações e
de outros aspectos dos informantes, produzindo conteúdo e narrativas a partir das experiências
subjetivas dos colaboradores que podem ser transmitidas (Muylaert, Sarubbi Jr, Gallo, & Rolim
adaptações, favorecendo seu uso com vistas a maior eficácia no alcance das informações
colaboradores entrevistados a narrarem suas histórias, a seu próprio modo, a partir de suas
linguagens e de seus recursos (Martins & Ferreira, 2016). Sendo assim, a partir dos objetivos
específicos, a fim de explorá-los, foram pensadas as balizas para a entrevista – as quais possuem
A.2.1), construída a partir do objetivo geral da pesquisa – “Como você percebe as questões
aprofundamento da fala (Lira, Catrib, & Nations, 2003) e cujo intuito é também permitir que
45
sejam tiradas dúvidas ou que sejam tornadas mais clara algumas outras informações
devendo haver ampla compreensão do fenômeno que se busca olhar, além da construção de um
ambiente de confiança para que as pessoas possam narrar suas histórias, bem como o uso de
linguagem acessível para uma melhor comunicação (Martins & Ferreira, 2016).
com as profissionais participantes da pesquisa, com intento de, a partir do uso de cenas,
favorecer não só a compreensão dos conteúdos vinculados à entrevista, mas também beneficiar
insights e novos repertórios acerca da temática de pesquisa (Nogueira da Silva, 2006). Trata-
discurso.
oficina coletiva em razão de sua disponibilidade. Em razão disso, foi dada a elas a alternativa
ético e político, já que, ao mesmo tempo em que se gera material para análise, cria-se um espaço,
a partir da discussão em grupo, para que haja trocas simbólicas potentes, gerando conflitos
modo, reforça-se, então, a ideia de que não há separação de fato entre o que se convenciona
confrontar percepções e valores e como uma alterativa para favorecer discursos menos
Tanto na oficina quanto nos momentos individuais, houve duas cenas, partindo-se de
uma situação hipotética enunciada, a partir da qual se indicou que cada entrevistada criasse uma
“cena” fictícia e a escrevesse (ver Apêndice B.1). No momento seguinte da oficina, cada
participante expõe e comunica oralmente para o grupo sua “cena”, criada a partir das instruções
dadas pela pesquisadora (ver Apêndice B.2), sendo assegurado um tempo para que pudessem
ser feitos comentários por todas. Esse momento coletivo durou pouco mais de duas horas.
dito e isso engloba “os gestos, o olhar, o balanço, o maneio do corpo, o vaivém das mãos, a cara
de quem fala ou deixa de falar, porque tudo pode estar imbuído de sentido” (Demo, 2012, p.
33), tendo em vista que a comunicação humana é feita de sutilezas e expressa mais do que a
própria fala. Desse modo, o recurso do diário de campo possibilitou registrar essas sutilezas,
bem como outras percepções e afetações da pesquisadora que se deram no processo (Oliveira,
2014).
47
acontecimentos, conferindo maior riqueza à pesquisa, que vai tomando forma e adensando-se à
medida em que é realizada (Araújo et al., 2013), favorecendo ainda a reflexividade de quem
pesquisa. Trata-se, ainda, de um instrumento pessoal e intransferível, que pode trazer registros
desde a primeira ida ao campo até sua fase final. Ademais, Minayo (2012) ressalta que quanto
mais ricas forem as anotações do diário, maior será o auxílio por ele oferecido no processo
sendo imprescindível à compreensão que o intérprete pressuponha que o conteúdo textual a ser
interpretado é coerente (Schmidt, 2014). Isso implica considerar que o discurso dos sujeitos é
autônomo, sendo fundamental a esse processo o cuidado para que a interpretação não seja um
do tema estudado possam ser identificados, diferenciando-se aqueles que são legítimos dos
ilegítimos (Schmidt, 2014), tendo em vista, ainda, que a compreensão só alcança sua verdadeira
do que se chama círculo hermenêutico. Desse modo, é preciso que o intérprete se mova entre o
todo e as partes, que se movimente de um significado projetado do todo para as partes e, então,
volte para o todo, sendo essa circularidade um elemento potente para a compreensão, uma
Com isso, pôde-se realizar uma leitura compreensiva e exaustiva do material, organizando os
(c) identificação e problematização das ideias implícitas e explícitas presentes nos depoimentos;
(d) procura de sentidos mais amplos latentes nas falas dos sujeitos de pesquisa, como elementos
(a) Identificar o - Como você compreende Algo maior Espiritualida 5.2 Espiritualidade,
conceito de os conceitos de de como algo religiosidade e
Busca de sentido
espiritualidade e espiritualidade? E maior psicologia: quando
Encontro com o
religiosidade religiosidade? algo maior
sagrado
conforta!
49
(b) investigar se e - Como você trabalha A partir do outro Abertura ao 6.2. Eu torço para
como a com esses aspectos na que o outro que o paciente tenha
Demanda
espiritualidade/reli prática (exemplifique)? traz algo: Como incluir a
espontânea
giosidade é espiritualidade ?
- Qual a motivação para
Compreender
abordada na
abordar?
atuação dos Entrevistas iniciais
psicólogos em
contexto de
cuidados paliativos
na proximidade da Psicologia
Favorecer rituais
morte; favorece o
Integrar crenças
que é
4.2.1 Os Cuidados
Paciente e família importante
Paliativos e a
motivação para
incluir o cuidado
espiritual
Recurso de Recurso
enfrentamento importante
nos CP
Cuidados paliativos
Proximidade da
morte
Hospitalização
experiência do e ade na sua vida interfere Cuidar da dor Morte como na proximidade da
com o cuidado na ssua prática? Ajuda no convite à morte
cuidado diante da morte? espiritualidad
6.4.1 Para além do
Se sim, como? e
cuidado do outro: o
- Sua prática lugar da
religiosa/espiritual te espiritualidade para
ajuda no cuidado pessoal os psicólogos/as
para lidar com a
proximidade da morte de
seus pacientes? Se sim,
como?
(d) Identificar qual - Quais as dificuldades Confusão entre Importância 6.3.3 Os desafios
a compreensão ética éticas que podem surgir religião e do éticos uma questão
que os psicólogos quando se lida com as espiritualidade conheciment de delicadezas
possuem sobre a questões da o e abertura
Imposição de
relação deles com a espiritualidade/religiosid para
crenças
questão religiosa ou ade diante da morte. Você fundamentar
Despreparo
espiritual de seus poderia exemplificar práticas
clientes/paciente alguma situação (pessoal éticas
ou de outro profissional)
(e) identificar as - Quais seriam, então, as Crença como Os modos de 6.3 Religiosidade e
potencialidades e dificuldades para abordar negação enfrentament Espiritualidade no
dificuldades em espiritual/religiosidade o cuidado na prática
Conspiração do
abordar a nos cuidados no fim da psi: um campo de
silêncio
espiritualidade/reli vida? Exemplifique. delicadezas,
Fechamento para a
giosidade diante desafios e
psicologia
dos processos de dificuldades
terminalidade da
6.3.2 Os diferentes
vida de seus
modos de estar
pacientes.
diante da morte
Graduação não
Restrição
preparou 6.3.1 A restrição
formativa
formativa
Professores/Orienta
dores
Disciplinas de
Sibele
51
Atuação
profissional
Extraclasse como
processo formativo
Cuidado diante da
Espiritualida
morte
de como
6.4 A
Recurso de
potência no
espiritualidade e a
enfrentamento
cuidado
religiosidade como
um lugar de
potência para o
cuidado espiritual
da psicologia na
proximidade da
morte
mobilizações de ordem emocional, de modo que, no curso deste estudo, foi garantido o
também poderia oferecer acolhimento e escuta inicial a possíveis demandas que pudessem
diferentes etapas da pesquisa, bem como em razão dos conteúdos abordados. Levando isso em
consideração, era possível interromper/pausar o processo caso a participante sentisse que era
necessário, estando a pesquisadora comprometida com a atenção a esse aspecto com vistas a
Tendo em vista a importância dos cuidados éticos no que tange ao processo de pesquisa,
foram tomadas as precauções necessárias para garantir e respeitar os direitos e a liberdade das
anonimato das participantes com relação a suas identidades e aos depoimentos e informações
fornecidos.
de pesquisa envolvendo seres humanos, do Conselho Nacional de Saúde (2012), em todos seus
aspectos e, sobretudo, o compromisso com as pessoas colaboradoras, o qual deve ser anterior a
qualquer diretriz. Garante-se, ainda, a publicação dos resultados e o uso exclusivo dos dados
Outrossim, o presente estudo foi submetido à Plataforma Brasil e apreciado pelo Comitê
de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), tendo sido aprovado sob
objetivos do estudo em questão, foi realizado um projeto piloto, de modo que o roteiro da
maneira mais coerente possível, processo que se manteve, de certo modo, durante toda a
caso se identificasse necessidade. Além disso, o piloto também serviu para que a pesquisadora
já sinalizado, o que possibilitou o contato com diversos profissionais da área de saúde que se
interessam pelas temáticas abordadas no LETHS. Foi por meio dessa rede que se deu o contato
nosso convite. A pesquisadora informou que poderia ir ao encontro da convidada, a qual teria
respeitada sua disponibilidade de horário e de local. Desse modo, o encontro foi agendado para
local de trabalho da entrevistada, localidade possível naquele momento e que trouxe algumas
especificidades, como a recorrente interrupção durante a entrevista, apesar de ser algo que não
tiveram seu áudio gravado e foram transcritas. A participante assinou tanto o Termo de
Voz. Ademais, cabe mencionar que o estudo piloto se mostrou indispensável para revelar a
algumas questões, gerando pequenas modificações nos instrumentos – entrevista e cenas –, mas
anos, é solteira e sem filhos. Considera-se católica praticante, frequenta missas e participa de
54
outros projetos vinculados a sua comunidade religiosa. Atua há 9 anos em uma instituição
hospitalar e também é psicóloga clínica, atuando com o aporte da Gestalt-terapia; além disso, é
medida em que a colaboradora realizava importante momento de reflexão sobre sua prática e
sobre as questões relacionadas à espiritualidade, o que a fez se lembrar de situações das quais
não mais se recordava ou mesmo resgatar situações marcantes em sua trajetória. Além disso,
durante o processo pôde tomar consciência de alguns aspectos referentes a sua atuação, como
sua eficácia, nessa circunstância, dependeria de ajustes ou não para que houvesse a futura
aplicação desse instrumento na oficina coletiva. Apesar da potencial perda por não realizar a
cena em coletivo – situação que suscitaria a possibilidade de troca com outros profissionais, de
da cena, projetando sua realidade e trazendo aspectos interessantes desta ao enredo já elucidado
na entrevista.
e exercitar como utilizá-la, além de aprimorar possíveis perguntas para o aprofundamento (pré-
roteiro). Ademais, a história contada no exercício das cenas também se mostrou adequada, posto
necessários aos instrumentos, foi feito contato com os demais profissionais indicados à
pesquisadora. Desse modo, formou-se um grupo constituído exclusivamente por mulheres que
das colaboradoras.
substituição do nome de cada uma das colaboradoras. Como o campo dos CP na cidade de
Natal-RN é bastante restrito, é comum que os profissionais conheçam uns aos outros, sendo
preferível, pelas colaboradoras, a não identificação. Assim optou-se por chamá-las por nomes
de Pedras e de Cristais.
naturais despertam o interesse humano, seja por sua estética – formatos, cores, brilho – seja por
seus mistérios, sendo valorizadas e até mesmo cultuadas em variadas tradições: tidas como
cura; logo, é também comum que pedras e cristais sejam vinculados a concepções específicas
afetações produzidos neste processo de pesquisar, de ouvir, e que está presente nas narrações
das colaboradoras, foram escolhidas pedras para representá-las, mas sem a pretensão de
oferecer profundo conhecimento teórico sobre esse campo de saber. A isso junta-se o fato de
que suas distintas qualidades e aspectos tornam-nas únicas e belas em sua diversidade, vide
exemplo a seguir.
Essa é uma pedra usualmente relacionada ao amor e à paz, vinculada ao coração, tanto
em aspectos simbólicos quanto em concretos. Diz-se que sua energia propicia a vivência dos
estresse e de tensões do coração, podendo aliviar a raiva, a inveja, o ressentimento, bem como
contato com Quartzo Rosa e com as sensações que o encontro com ela me despertaram. Ao
encontrá-la, logo pensei: se essa experiência fosse uma pedra, seria um Quartzo Rosa.
Era como se estivesse um coração pulsando naquela sala, vibrante e visceral, que podia
ser sentido e visto a cada história contada, a cada lembrança rememorada diante da
57
simples e complexa questão disparadora proposta, que não demorou para se tornar um
compartir de experiências belas, emocionantes, difíceis, por vezes inquietantes, mas
sobretudo amorosas. Talvez não houvesse melhor ponto por onde começar, Quartzo
Rosa com sua preocupação e cuidado, acolheu profundamente a pesquisa, talvez mesmo
sem intenção ofereceu-lhe um lugar seguro por onde começar, um lugar onde a gestação
amorosa desse estudo pôde se dar, fazendo-me, depois de tanto tempo lembrar da paixão
que esse tema de pesquisa produz em mim, ecoando assim sob sua voz, com cuidado,
encantamento, afeto, conhecimento e ética, lembrando-me que a amorosidade não
precisa estar cindida do rigor das boas práticas e junto com ela fez meu coração também
pulsar e desejar mais de que nunca escutar as outras coisas mais que cada uma das
colaboradoras poderiam me dizer e comigo compartilhar. Eu fique grata e saí mais viva
e com o coração mais forte de que entrei (fragmento de Diário de Campo da
pesquisadora).
Quartzo Rosa formou-se há mais de quinze anos, atua em cuidados paliativos no hospital
que fez durante um período. Há aproximadamente 9 anos, atua em cuidados paliativos, mas nos
últimos 4 anos essa prática se tornou mais clara e evidente, o que se deu a partir da constituição
de uma equipe específica para a paliação no seu local de trabalho. Quartzo Rosa adota a
a sua própria e os conhecimentos sobre a religião como facilitadores de seu trânsito pelo tema,
marcada a ideia de que há coisas importantes que precisam ser protegidas para uma boa atuação.
legítima preocupação: a colaboradora, por vezes, apresentava insegurança diante dos desafios
espiritualidade, havendo cuidado legítimo para que isso não se convertesse em proselitismo.
Ônix, nas tradições, é considerada uma poderosa pedra de proteção, do corpo e da mente, tida
Ônix formou-se há três anos, tendo sua trajetória à semelhança da maior parte das
paliativos.
Figura 3. Ametrino
O encontro com Ametrino foi transformador. Logo após a entrevista, antes mesmo de
transcrevê-la, uma das frases colocadas ante um dos relatos que ela gentilmente compartilhou
ficou ecoando na lembrança: dizia sobre a dor de um dos pacientes, que marcou muito a equipe,
a qual não só era decorrente estrita da biologia da doença, mas que incluía também a de estar
doente, que era também uma dor da existência, relacionada ao existir e, como tal, não podia ser
[...] após a sensibilidade com que narrou essa situação e que relacionava a uma dor
também espiritual eu coloquei “a mofina não abarca todas as dores, né?” ela respondeu:
‘e então’. Depois disso ficamos um tempo em silêncio, pra mim como que digerindo a
densidade e complexidade do que havia acabado de ser comunicado, e conectando-nos
de uma maneira diferente, era como se esse recorte de diálogo promovesse em nós um
giro: a partir dali algo naquele espaço mudou, e a conversa parecia agora ter menos véus,
mais autêntica e com uma potência que me permitiu aproximar das dores e porque não
delícias, de ser profissional de psicologia na proximidade da morte, lembrando-me a
letra de Caetano ‘cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é’ em um contexto
totalmente distinto (fragmento de Diário de Campo da pesquisadora).
60
importante, embora sentisse falta de exercitá-la mais ativamente, considerando, de certo modo,
que pouco a exercia. Todavia, em sua forma de se colocar, fez com que a pesquisadora se
conectasse com uma espiritualidade imanente, numa espécie de radicalidade que se ancora no
sentido da vida para cada sujeito. Por essa razão, além das afetações todas que foram produzidas
e de outros aspectos contidos nas suas narrativas, foi denominada Ametrino, uma combinação
das pedras Ametista e Citrino, a qual, de certo modo, compartilha propriedades dessas duas
poderosa, que promove inspiração, transformação; é tida como a pedra para os que buscam dar
Ametrino data cinco anos desde o início de sua atuação em Cuidados Paliativos, prática,
conforme narra, mais clara, coesa e em equipe nos últimos dois. Formou-se há mais de 15 anos
e, atualmente, faz uso do referencial da Terapia Cognitivo Comportamental nas suas práticas,
que, em cuidados paliativos, têm se dado exclusivamente no hospital, apesar de sua atuação
também na clínica.
Figura 4. Olho-de-tigre
61
associada à terra e à coragem, dentre outras simbologias. Diz-se que incentiva a resolução de
conflitos, que favorece a autoestima e que gera discernimento, auxiliando, assim, a tomada de
instinto de atuar no momento certo, vinculando-se também à sabedoria. Consiste em uma pedra
entrevista
Olho-de-tigre estava formada há mais de quinze anos e considera que esse é também o
tempo que faz em que trabalha com cuidados paliativos. Ela se utiliza da Gestalt-terapia como
Figura 5. Tanzanita
espiritual. Em algumas tradições, é vista como facilitadora do contato com fraternidades de luz
62
meditação profunda e reconexão consigo. Esses aspectos relacionados à Tanzanita fizeram com
[...] em suas narrações e inquietações trouxe a vista a seara da metafísica, não como algo
que excetua outros campos, mas como modo também particular de ver o mundo e as
experiências de seu campo de trabalho e de sua espiritualidade, Tanzanita me remeteu
ao misticismo e olhar para dimensões não-materiais, de um modo que pouco consigo
dizer (Fragmento de Diário de Campo da pesquisadora).
Tanzanita está formada há mais de quinze anos, atualmente atua em hospital e na clínica,
fazendo, ainda, atendimento domiciliar. Em seu percurso, atuou em diferentes momentos com
cuidados paliativos, retomando sua prática nesse campo no último ano. Utiliza-se da Gestalt-
Figura 6. Berilo
ameniza a ansiedade e fortalece os bons sentimentos. Referenciada por favorecer o foco nas
ações importantes, é uma pedra recomendada para amenizar a ansiedade e atua aumentando a
Berilo atua a partir da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), formou-se há quase dez
anos e trabalha a cerca de um ano com cuidados paliativos no hospital, sendo essa uma demanda
Figura 7. Cornalina
A energia da cornalina inspira ação, movimento, eloquência e coragem. Ela é uma pedra
um ar de pressa, daqueles que por vezes se instaura nos espaços do hospital diante de
todas as atividades e demandas que aquele lugar presentificava naquele dia, mas ainda
assim havia uma presença e engajamento em responder cada questão, e nessas horas
podia haver ligeireza, mas não havia pressa. Deixei, então, nosso encontro pensando
neste paradoxo (Fragmento de Diário de Campo da pesquisadora).
Em virtude desses aspectos, remeti essa colaboradora a uma pedra ligada à ação, à
coragem, à segurança e ao poder pessoal. Coralina, assim como quatro das outras
dez anos.
65
Sogyal Rinpoche
morrer no Ocidente, bem como sua relação com a racionalidade médica hegemônica e seus
dos Cuidados Paliativos (CP) como modelo capaz de se opor ao modelo hegemônico em saúde,
A relação humana com a morte se altera a partir dos tempos e contextos. De modo que,
não há uma forma exclusiva de olhar e tratar a morte e o morrer que se perdure através das
distintas épocas, mas sim modelos de morte dissemelhantes que dizem respeito a um dado
cenário e período. Desta maneira, há múltiplas posturas diante da morte através dos séculos,
que se sucedem ou coexistem. Dentre as áreas e ciências que estudam a morte e o processo de
morrer está a Tanatologia, cujo étimo é proveniente do grego Thánatos, alusivo à figura
mitológica grega que é personificação da morte e Logia, que tem seu significado derivado de
conceitos de morte, luto e consequências da perda (Silva & Melo, 2018). Trata-se de uma área
de conhecimento e de aplicação que pode envolver cuidados a pessoas que vivem diferentes
violência e outros (Kovács, 2008). Logo, consiste em um campo de investigação científica, nas
Ciências Humanas e Sociais, que contempla a morte e o morrer, assim como o ser humano
quanto a esses aspectos, na sua relação consigo, com os outros e com o meio (Färber, 2013).
67
razão dos estudos que desenvolveu, que foram retomados por outras figuras importantes para o
campo como Golden (1897-1998), como A study of death, publicado em 1904. Osler tinha como
meta de seu trabalho amenizar o sofrimento de pessoas no fim da vida, argumentando que
nenhuma morte deveria ser dolorosa. Para tanto, defendia a utilização de drogas para facilitar o
processo, não apenas para alívio da dor física, alegava que as pessoas deveriam morrer
movimento de cuidados paliativos que veio a se desenvolver mais tarde (Kovács, 2003a),
Gustav Theodor Fechner (1801-1887) que publicou em 1836 Little Book of Life, e mesmo
William James (1842-1910) que escreveu Human Imortality em 1898 e Stanley Hall (1846-
1924) que também conduziu pesquisas na área sobre o medo da morte em 1915. Houve ainda
as contribuições de Sigmund Freud (1856-1939) que escreveu clássicos no campo como Luto
Além do Princípio do Prazer (1920) em que traz pela primeira vez a hipótese da existência de
uma pulsão de morte; e Émile Durkheim (1858-1917) que publicou O Suicídio (1897),
desenvolvendo esta temática e sendo ponto de fundamentação para muitos autores que
guerras mundiais, que com o grande número de pessoas mortas trouxe implicações para a
Aisenber escrevem Psychology of Death, uma das primeiras obras traduzidas e direcionadas ao
68
Journal of Death and Dying, bem como a Association for Death Education (ADEC), outro
humanidade diante da morte e do morrer, que deve levar em consideração o recorte de tempo e
espaço, assim como aspectos coletivos e referentes a cada sujeito. De modo que os sentidos e
relações com a morte se alteram através da história. A este respeito são considerados expoentes,
os estudos de Philippe Ariès (1914-1984), Nobert Elias (1897-1900) e mais recentemente Allan
Kellehear (2016).
Ariès (2017) busca acompanhar a lida com a morte através dos séculos, postulando assim,
diferentes posturas humanas diante desta e do morrer. Na antiguidade destaca a morte como
mística, a esta chama-se Morte domada, caracterizada principalmente pela familiaridade com
que era vivenciada, costumando ser esperada no leito e ocorrendo majoritariamente na casa do
moribundo, em uma cerimônia pública e organizada e usualmente por ele planejada e marcada
pela simplicidade com que os ritos de passagem pareciam ser aceitos e cumpridos, não se
Não havia na Morte Domada empenho em retardá-la, de modo que, a preparação para
tal parecia dar-se antecipadamente, de maneira que o morrer parecia se dar com uma espécie de
alívio e naturalidade. Postura que não nos parece muito familiar na atualidade, haja vista não
só o movimento iniciado no final XVIII em defesa das primeiras regras de higiene que se
queixava do excesso de pessoas no quarto dos que estavam na iminência de morrer, como o
69
o hospital, não mais ocorrendo entre os seus, mas muitas vezes solitário, assinalando ainda a
No século XII inicia-se, de acordo com Ariès (2017), o processo que gradativamente
parece adicionar o sentido dramático e pessoal à familiaridade tradicional adotada pelas pessoas
com a morte: chamada a Morte de si mesmo. Inaugura-se ainda no século XVIII um novo
sentido: a Morte do outro. De modo que a morte, com a qual as pessoas estavam tão
vergonhosa e objeto de interdição, a que o autor denomina Morte Interdita, em que se passa a
torna-se, ainda, objeto de comércio e lucro; o luto um estado mórbido que deve ser tratado,
abreviado e apagado, suprimindo quase radicalmente tudo o que lembra a morte. É, sobretudo,
a este modelo de morte e morrer que vão surgindo antagonistas, em busca de uma morte mais
humana e cuidadosa.
No século XXI, no entanto, mesmo esta interdição permanecendo, a morte parece estar
cada vez mais próxima das pessoas, especialmente, com advento do desenvolvimento das
acidentes e doenças, por exemplo, sem que haja, todavia, possibilidade de elaboração,
sobressaindo-se assim uma aceleração nesse veículo de comunicação. Sendo assim, ao mesmo
tempo que a morte é interdita, torna-se também escancarada, companheira cotidiana, invasiva
e sem limites, tão próxima – real ou simbolicamente – mas ainda assim silenciada, interditada.
(Kovács, 2005). Esse tipo de representação em torno da morte, foi cunhada por Kovács (2008)
violência, dos acidentes de trânsito e do abuso de drogas nos centros urbanos que leva ao
70
aumento das mortes violentas e traumáticas. É o retrato da chamada morte indigna no século
XXI, dentre as quais estão o assassinato, o suicídio e os acidentes - mortes coletivas, anônimas
e de corpos mutilados (Kovács, 2014), fenômeno que decorre também da relação instaurada
com o morrer após as grandes guerras do século passado, a morte é ostensiva, no entanto
dessensibiliza, já que ao não referir a morte age-se como se ela não existisse concretamente. No
entanto, apesar da presença e usual familiaridade da morte interdita e escancarada, esses não
são os únicos retratos dos últimos dois séculos, em que também desponta, apesar de ainda
distante de ser um modelo dominante, temos também um modelo que busca a humanização do
morrer.
Elias (2001), figura importante e também crítica de Ariès, sobretudo pelo conceito de
Morte Domada, por considera-la favorável à romantização da relação com a morte no passado,
destaca na atualidade uma forte tendência em afastar a ideia da morte, quando comparada a
outros momentos históricos, que passa, de certo modo, a ocupar os bastidores da vida social,
(Menezes, 2004).
Aspecto que em certo nível também dialoga com o argumento de Allan Kellerhear
(2016) de que o morrer no período moderno atual, a que chama Idade Cosmopolita, produz cada
vez mais mortes “que não são boas nem bem administradas para ninguém” (p. 25). Tendo em
vista que, com frequência, mesmo com as tentativas das pessoas em se preparar para a morte –
nas cidades– estas tentativas terminam não raro frustradas, distorcidas ou simplesmente
que ante a morte e sua aproximação, bem como diante dos processos de adoecimento não
restabelecer a saúde que está atrelada principalmente à biologia (Tesser & Luz, 2008).
Substituindo, no ocidente, a arte de curar doentes pela ciência das patologias. De modo que se
assiste a uma medicina mecanicista, especializada e tecnológica, porém que pouco admite o
erro, o medo e sobretudo a morte, e isto termina por gerar desdobramentos no cuidado aos
especializado acerca dela, sendo a separação dos mortos dos vivos um empreendimento
mortos cada vez mais distantes do meio urbano e do convívio social (Combinato & Queiroz,
2006).
da morte e na interação com o paciente, a partir da revolução higienista a relação entre os vivos
e os mortos, passou a ser vista como importante fonte de perigo, contaminação e doença. Além
disso, neste período também houve uma relevante alteração no modo como as pessoas passaram
Habermas (1984) por Combinato & Queiroz (2006), não esteve presente em qualquer outro
contexto pré-capitalista. Havendo inclusive um sentido social e político na maneira com o que
a sociedade industrial encara e lida com a morte, que neste período evidencia-se como tabu
(Oigman, 2007).
72
humilhante para os seus alvos humanos. Sendo irônico que na experiência cosmopolita de
tecnologias, da expectativa de vida e de outros substanciais avanços, a lida com a morte parece
concomitantemente, melhorias e auxílio ao morrer - que se torna muito mais um ato solitário,
impessoal, “desumano”, contribuindo, desta maneira, para sua negação, como se não se tratasse
Portanto, junto aos avanços biomédicos, não raro a morte se torna um ato solitário,
mecânico, desumano e impessoal. “Quanto mais avançamos na ciência, mais parece que
reflete:
cuidar das dores não só físicas deste processo e defende que as pessoas possam ser sujeitos
ativos em seu processo de morrer, que possam ser sujeitos em sua morte, na medida em que
possam ter a autonomia possível nesta hora, decidindo-se por si, sempre que cabível – assim,
re-humaniza-se o morrer.
73
De acordo com Nogueira da Silva (2006), para reverter a lógica biomédica é preciso
reencontrar o ser esquecido, sendo urgente ouvir o outro em sua alteridade e voltar-se para o
contato com o humano que há em nós. “Humanizar diante da saúde e da morte relaciona-se a
“dar voz à palavra, à dor, ao riso, garantir à palavra a dignidade ética” (Nogueira da Silva, 2006,
p. 24), trata-se de possibilitar que a dor e o sofrimento possam ser reconhecidos e expressos
reinventar a vida, o adoecer e o morrer, com o outro”, e este é um relevante desafio pois os
profissionais de saúde não foram preparados para não salvar (Nogueira da Silva, 2014, p. 20).
É, então, nesta linha e em resposta a essas práticas limitadas ao tecnicismo, que surge a
médico, mas sim uma prática que busca uma maior humanização das práticas e do cuidado
(Schramm, 2002). Sendo o enfrentamento do tabu da morte condição para que se desenvolvam
A mesma medicina que se apoiou na morte biológica para fundamentar sua prática em
conhecimentos científicos, pode se apoiar no enfrentamento dos conteúdos simbólicos
e existenciais da morte para se re-humanizar e recuperar a dimensão do cuidado em sua
prática (Nogueira da Silva, 2006, p. 273).
4.2 Cuidados Paliativos uma história que desde o início é um convite à espiritualidade
associado com o movimento hospice anterior à Idade Média (Figueiredo, 2008). Há, porém,
também quem relacione seus princípios a culturas mais primitivas (Gonzalez & Ruiz, 2012).
Entretanto, é mais comum sua relação com a Idade Antiga e Média, estando vinculado no
passado às hospedarias e abrigos destinados a peregrinos e viajantes, muitos dos quais morriam
ante cuidados leigos e carinhosos, em contextos muitas vezes de recursos reduzidos, em que
nem sempre o sucesso e manutenção da vida era garantido, sendo o apoio espiritual enfatizado
nestes casos (Cremesp, 2008). Fato que sinaliza para a suposta relação dos CP e da lida com a
finitude com as questões relacionadas à religião, religiosidade e/ou espiritualidade, aspecto que
dialoga inclusive com o que parte das colaboradoras deste estudo compartilham no que se refere
a proposta dos CP e sua proximidade com cuidados e demandas de ordem espiritual e mesmo
religiosa.
evento importante para a história dos CP foi a fundação, no século XVII da Ordem das Irmãs
de Caridade em Paris, destinado a órfãos, pobres, doentes e moribundos, pelo padre francês São
Vicente de Paula. Além do St. Joseph’s Convent em Londres, cindo das Irmãs da Caridade
irlandesas, que a partir de sua fundação em 1900 visitavam doentes em suas casas, inaugurando
Além disso, o termo Paliativo está etimologicamente ligado à palavra pallium do latim
“manto”, “capa”, que além de trazer a ideia de cobertura, cuidado e atenção, também expressa
75
de uma perspectiva de cuidado holístico/integral (Ferreira, Lopes, & Melo, 2011). Outrossim,
o termo pallium faz alusão as vestimentas utilizadas pelo Papa, reafirmando a ligação, pelo
menos histórica do termo com a espiritualidade (Andrade, Costa, & Lopes, 2013).
medieval, sua base radica-se principalmente a partir do século XX, na década de 60. O
Movimento Hospice Moderno, tem seu nascimento relacionado a Cicely Saunders (1918-2005),
inglesa com formação humanista e médica, que fundou o St. Christopher’s Hospice em Londres,
desenvolvimento de pesquisa na área, que recebeu bolsistas de diversos países, muitos dos quais
a posteriori levaram suas experiências para suas localidades de origem ou outros países,
auxiliando na dispersão dos CP pelo mundo, mas principalmente nos Estados Unidos e no
A partir de suas experiências Cicely Saunders iniciou um movimento que mudaria para
sempre a forma como parte do mundo cuidaria das pessoas que estão em fim de vida, a partir
cuidados, fazendo uso de sua fé como importante subsídio às suas práticas, não em um sentido
“extraindo de ambas o melhor” (F. S. Santos, 2018, p. 7), criando um novo modelo de
diagnóstico que contemplava não apenas a dimensão física, mas também psicológica, social e
espiritual, valorizando todas as áreas e criando a partir disto o conceito de Dor Total, que é
justamente o reconhecimento da dor como um estado complexo, que incluiu todas estas
dimensões, que devem ser contempladas no cuidado, inclusive da dor (Carvalho, 2009), entre
as quais está o âmbito espiritual, que ocupa em sua perspectiva um lugar significativo, junto
enfrentam o fim da vida, desenvolveu uma abordagem sistemática no controle e alívio da dor
alegando, entre outras coisas, que os pacientes queriam “não apenas eficiência, mas também
com a morte e o morrer, seu cuidado, seus modos e posturas diante dela foi Elisabeth Kübler-
Ross (1926-2004). Esta psiquiatra suíça foi pioneira em escutar a voz de seus pacientes sobre
as suas experiências na proximidade da morte. Enquanto nos anos 1960 a maioria esmagadora
revolucionou o cuidado, lançando olhar para a morte (Luz & Bastos, 2019), trazendo luz ao
“não haver mais nada a fazer”, há ainda muito o que se pode fazer.
para o morrer, tanto quem morre quanto quem fica (Kovács, 2003b). Mas, ficou sobremaneira
famosa pelos cinco estágios sobre a morte: negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e
aceitação (Kübler-Ross, 2017). Estes, entretanto, apesar de serem os mais difundidos não são
os únicos estágios a que Kübler-Ross faz referência, havendo em seu esquema conceitual outras
reações como o choque, esperança, negação parcial, luto antecipatório e decatexia como
possíveis nuances dos cinco grandes estágios (Luz & Bastos, 2019).
de cada paciente, e seu olhar humanizado para cada sujeito, de que pelos estágios por ela
propostos. Talvez uma de suas substanciais contribuição tenha sido pioneiramente ter escutado
77
a voz dos pacientes que estavam vivenciando a proximidade da morte, possibilitando que, a
partir desta voz, se pudesse compreender que há sempre o que ser feito no campo do cuidado,
que mesmo quando a racionalidade médica instrumental categoriza “não há mais nada a se
fazer”, há sim ainda o que fazer, e para tanto é preciso escutar os moribundos, apreender a ouvir
presenteia a nós todos com a possibilidade de olhar a morte por outros prismas e principalmente
com a alternativa de não só ver, mas também estar com as pessoas que estão na proximidade
do fim da vida de outra forma, aliando ciência e tecnologia e a arte e a ciência do inter-
nesta era comum que a espiritualidade surgisse, o que acrescenta em seus trabalhos a
preocupação em acolher e cuidar desta dimensão (Kovács, 2003). De acordo com Luz & Bastos
(2019), sem seu trabalho vanguardista a difusão dos cuidados paliativos e da tanatologia teriam
No decênio de 1960 houve significativas mudanças no trato com o tema da morte e seu
cuidado, que reverberam até a atualidade. Como podemos evidenciar pelas contribuições de
Saunders e Kübler-Rosss, que, entre outras coisas, revolucionaram a lida com pessoas em
estágio terminal de doença “trazendo o tema da morte a público, desafiando uma mentalidade
que propunha a morte como interdito” (Kóvacs, 2003, p. 151) e empunhando a necessidade de
Saunders, 2018).
Elisabeth Kübler-Ross seja muito mais associada aos estágios da morte e a área da tanatologia,
78
seu trabalho à área dos CP e em uma carta à Kübler-Ross, intitulada “Uma saudação à nossa
A notável capacidade de Elisabeth para inspirar aceitação pública e sua habilidade para
fundamentar o desenvolvimento da filosofia hospice e, posteriormente, o
desenvolvimento dos cuidados paliativos, poderia ser comparada a duas lâminas de uma
tesoura, capazes de cortar simultaneamente, os laços do isolamento e a dor entre os
pacientes e suas famílias. Nosso trabalho foi complementar, pois construímos as nossas
ideias com base em poderosos insights de nossos antecessores (Saunders, n.d.).
foi possível que nas décadas de 1970 e 1980 a área dos CP se consolidou, seguida de uma certa
estagnação, haja vista o movimento extremo de exigência de rigor metodológico, que terminou
de tudo o quanto se dizia, com forte tendência à quantificação, de modo a restringir a área bem
como potencial distanciamento do tema em suas dimensões mais profundas. Ainda assim, no
início dos anos 1990, publicou-se a primeira definição dos CP, descritos como: “cuidado ativo
e total para pacientes cuja doença não é responsiva a tratamento de cura. O controle da dor, de
proporcionar melhor qualidade de vida possível para pacientes e familiares” (OMS, 2012),
abordagem que tem o intuito e aprimora a qualidade de vida dos pacientes e famílias que
precoce, avaliação correta e tratamento da dor e de outros problemas tanto de ordem física,
79
psicossocial, quanto espiritual (Hermes & Lamarca, 2013), mantendo, mesmo entre algumas
sua família, não sendo restrita apenas ao paciente. Além disso, o termo deixa de se referir a esta
enquanto cuidado que deve ser aplicado desde o diagnóstico da doença (Braga & Queiroz,
2013).
sujeitos integrais, as equipes de CP devem conter, de acordo com Nunes (2015) médicos,
toda a sua complexidade, visando proporcionar possibilidade para que se viva a vida que há
O CP, todavia, não baseia sua prática em protocolos estritos, mas sim em princípios, que
são: (1) promover o alívio da dor e de outros sintomas desagradáveis; (2) afirmar a vida e
considerar a morte um processo normal desta; (3) não acelerar nem adiar a morte; (4) integrar
suporte que possibilite ao paciente viver tão ativamente quanto possível até o momento de sua
morte; (6) oferecer sistema de suporte para auxiliar os familiares durante a doença do paciente
e o luto; (7) oferecer abordagem multiprofissional para focar as necessidades dos pacientes e
campo da bioética para os CP, tendo em vista que não há conduta pré-estabelecida que seja boa
será executada, e que reforça o CP, à semelhança do que firmam Saunders e Kübler-Ross, como
um cuidado que se constrói a partir da escuta do que é importante para cada sujeito, logo
humanizado. Afinal, como enuncia a clássica frase atribuída a Saunders: “o sofrimento humano
viva ativamente tanto quanto possível até a morte, além de oferecer sistema de apoio para
No final de 2018, a Internacional Association for Hospice and Palliative Care (IAHPC)
planejou, desenvolveu e implementou um projeto para revisar e adotar uma nova definição de
CP que melhor contemplasse o público e as demandas a quem deveria ser destinado, já que a
complexas, sendo a definição para crianças ainda mais antiga (1998) e com desafios
semelhantes (Knaul et al., 2018). Assim propôs: os Cuidados Paliativos são cuidados
sofrimento relacionados à sua saúde, proveniente de doença grave, especialmente aquelas que
estão no final da vida. O objetivo dos CP é, portanto, melhorar a qualidade de vida dos
2018 dispõe sobre as diretrizes para a organização dos CP à luz dos cuidados continuados
Portanto, a partir da publicação dessa resolução será possível definir diretrizes que
aprimorem o cuidado e sua oferta. A normativa aponta para o entendimento do SUS de que os
Cuidados Paliativos devem ser oferecidos o mais cedo possível, quando necessário, juntamente
com o tratamento da doença que devem englobar a promoção do alívio da dor, com o uso de
(Valadares, 2018).
A Resolução nº 41/2018 do Ministério da Saúde orienta ainda que essa assistência deve
que envolvam pacientes, familiares e profissionais. Outrossim, aponta que devem estar
Todavia, não devemos perder de vista que mesmo com as iniciativas necessárias há os
obstáculos que se interpõem no desenvolvimento deste campo e que precisam ser considerados.
Hermes & Lamarca (2013) destacam como consideráveis dificuldades a evolução e ampliação
deste: a inclusão dos Cuidados Paliativos na atenção básica; o atestado de óbito em domicílio;
que aliviam a dor. De modo que é importante identificar para tencionar e refletir as dificuldades
que se apresentam neste campo e então estruturar estratégias que propiciem a continuidade e
Ainda sobre a proposta de conceito de CP, feito pela IAHPC, que retira o cuidado
espiritual presente nas usuais definições anteriores em detrimento dos cuidados ativos
holísticos, Nogueira da Silva (2019) aborda o receio de que, retirando-se a ênfase ao conceito
de Dor Total, no qual se evidencia o cuidado à dor espiritual, permita-se uma minimização
quanto a importância do cuidar deste aspecto. Uma vez que, o termo holístico ao longo da
tradição do cuidado em saúde não explicitava o cuidado com a dor espiritual, tendo sido
possibilidade de cura de seus processos de adoecimento (Evangelista et al., 2016), não apenas
estar de pacientes com doenças graves e/ou terminais (Bertachini & Pessini, 2010; Higuera,
González, Durbán, & Vela, 2013; Redondo-Elvira, Ibañez-del-Prado, & Barbas-Abad, 2017),
tornando-se ainda mais urgente para pacientes com doenças potencialmente fatais, haja vista a
desconhecido, que abre espaço para questionamentos, dúvidas e mistérios no que diz respeito a
morte e o morrer. Sendo, inclusive, a atenção aos aspectos espirituais indicador de boa
humano, parece tornar-se essencial para o seguimento da vida das pessoas em CP, sendo este
exercício uma espécie de força motriz à busca de respostas aos ensejos dessas pessoas em
relação a sua própria existencial (Arrieira et al., 2018), favorecendo lhes melhores desfechos
E é, justamente, também nesta seara que se apresenta a importância das religiões, das
crenças e de aspectos espirituais, que desde tempos imemoriais tem sido utilizados como meios
graves, progressivos e incuráveis, e aqui acrescento também suas famílias, tendem a sentir
necessidade de apoio espiritual ou religioso (Cervelin & Kruse, 2015). Como bem constaram e
trouxeram desde o início Cicely Saunders (2018) e Elisabeth Kübler-Ross (2017) em suas
Com isso, faz-se cada vez mais relevante a reflexão acerca das práticas de saúde, como
atenta Nogueira da Silva (2014), compreender que para se aproximar da realidade é necessário
abrir também mão das claras, lineares e distintas ideias do pensar cartesiano e acatar também
para tanto é preciso dialogar e escutar, e no contexto do morrer não fechar os olhos a finitude
- rejeitá-la não a elimina, nem tampouco seus efeitos, mas desumaniza quem morre.
medicação ou por intenso sofrimento; busca cuidar da dor total (física, emocional e espiritual)
e destina-se a humanizar o morrer a morte quando ressitua o paciente enquanto sujeito de seu
Significa, como colocou Saunders “dar mais vida aos dias do que acrescentar dias à
vida”. Comumente as pessoas e famílias que estão em CP lidando com questões profundamente
modo que o cuidado humanizado nesta circunstância também se ancora no contemplar e buscar
Cecília Meireles
autonomia e bem-estar dos pacientes e das famílias que enfrentam problemas associados com
De acordo com Peres, Arantes, Lessa, & Caous (2007) a natureza humana
mais evidente à medida que a vida se aproxima do fim, de modo que nos contextos de cuidados
Elas sinalizam para o quanto os contextos de dor, sofrimento e contato com a finitude
Já Ametrino e Olho de Tigre, apontam para o fato de que na prática em CP, mais de que
Acho que 90% dos pacientes indicam a religiosidade, muito mais do que a
espiritualidade [...] então, muito da leitura que eles fazem dessa experiência de
adoecimento, do tratamento oncológico é pela via religiosas, e é assim que aparece nos
meus atendimentos
(Ametrino – recorte da entrevista).
Os pacientes I.[pesquisadora], de uma forma geral, eles estão lidando com muito
sofrimento, é muito comum eles se apegarem a questões religiosas espirituais, eu vejo
muito que vai fluindo [...] é muito comum, muito muito muito comum mesmo diante do
sofrimento as pessoas buscarem a religião e/ou a espiritualidade [...] isso é bem
evidente na fala deles
(Olho-de-tigre – recorte da entrevista).
Esses registros de nossas colaboradoras também revelam que para as pessoas que
cultivam uma fé religiosa, é possível que o reconforto para suas questões existenciais esteja
86
justamente orientado por essa fé (Bertachini & Pessini, 2010), todavia, isto não excetua o
cuidado aos que não possuem um sistema de crenças religiosas, pois há ouras vias provedoras
de conforto e assistência.
De acordo com Saporetti (2009) é somente a partir da morte que as pessoas se defrontam
com a irremediável realidade da vida: tudo termina, de modo que é a finitude humana que o/a
convida à transcender. Transcendência esta que não está necessariamente na matriz religiosa,
algum nível a intimidade que observam entre suas atuações em CP na proximidade da morte e
Nessa mesma direção Okon (2005) aponta que ao deparar-se com a fragilidade da vida
Foi possível percebemos movimento semelhante na prática das nossas pedras preciosas
dimensão espiritual no cuidado, vem sendo demandada a partir dos pacientes em CP,
transformando assim, mesmo que ainda discretamente a lógica biomédica hegemônica, que
Eu acho que ela [espiritualidade] tá chegando de uma forma muito muito... ela tá
chegando porque os paliativos tão chegando, objetivamente falando, ela tem chegado
porque os paliativos tem chegado e tem trazido junto com ele o a necessidade de olhar
87
para o paciente de uma forma integral, pra dor do paciente de uma forma integral, de
dar o conforto maior ao paciente, ela tá chegando assim.
Mas eu acho que a própria prática, assim, vai trazendo uma demanda, paciente que
tá em cuidados paliativos, que tá se aproximando das morte, é um tema que vai
surgindo, que vai chegando né. Por mais que ele não traga no primeiro atendimento
isso vai surgir, em algum momento vai surgir. Então acho que a própria prática com a
demanda espontânea.
Na proximidade da morte é comum que despontem aspectos como medo, apego e dor,
que precisam ser abordados e olhados em seus aspectos psicológicos e emocionais, junto a
acerca da vida, do sentido, da morte, do que a sucede ou não etc, sendo importante que o
(Gimenes, 2017).
trazendo a temática da espiritualidade em CP, e o quanto pode ser uma fonte de conforto para
as dores do paciente
Como já sinalizado, nos CP desde sua gênese é proposta a inclusão a dimensão espiritual
no cuidado (Evangelista, Lopes, Costa, Batista, et al., 2016; Saporetti, 2009). E esta não se trata
apenas de uma aproximação teórica, mas é sobretudo prática, como sinalizou Cornalina.
toda sua potencialidade” (Pessini, 2018, p. 58), que pode se dar através da conexão com
moribundos com finalidade de preservar sua dignidade e integridade, mesmo no final da vida,
de modo que a espiritualidade não poderia ficar de fora deste processo, sendo importante a
e tantas outras que se circunscrevem no cuidado espiritual (Evangelista, Lopes, Costa, Abrão,
et al., 2016), o qual favorece a maximização das potencialidades das pessoas, valorizando suas
capacidades, renovando suas esperanças e lhes permitindo lidar com suas problemáticas de
relacionamento com pessoas queridas, focando nas questões existenciais que precisam ser
finalizadas e cuidando do legado deixado pela pessoa, no intuito de preservar e cuidar da vida
Assim, ao profissional de psicologia, como aos demais, cabe o cuidado espiritual, o que
não implica em atendimento religioso, que pode e deve ser incentivado pela equipe se assim
fizer sentido para o paciente, mas que deve ser realizado em seus ritos e sacramentos por um
sacerdote habilitado (Saporetti, 2009). Assim, também para que sejam feitas essas distinções:
do que cabe ou não a cada profissional, é importante compreender o que estes entendem por
espiritualidade e religiosidade, e como orientam suas práticas a partir disto. Deste modo, o
Leonardo Boff
diferença entre cada um dos conceitos, mas também elucidando algumas de suas proximidades,
decorrente do processo de que por muito tempo foram tidas como sinônimos.
vista que o que se considera saúde e doença reflete diferentes aspectos, de modo que a saúde
não representa a mesma coisa para todas as pessoas, estando condicionada pela época, pelo
lugar, pela classe social e dependendo de valores individuais, concepções científicas, religiosas,
pelo máximo tempo possível. Para tanto, criam-se modelos que auxiliem na explicação desses
90
fenômenos, que buscam dilucidar a que diz respeito a doença e mesmo a morte (Ceballos,
2015). Compreensão esta que parte de um conceito ou modelo de saúde, pois é a partir dele que
estruturam-se paradigmas, que são modelos que objetivam explicar esses fenômenos (Barros,
2002). Para tanto, cada modelo agrega na sua concepção saberes referentes a diferentes fases
da história, no entanto, aos modelos não há limites temporais precisos, posto que por vezes
Almeida Filho & Rouquayrol, (2006) destacam cinco principais modelos explicativos,
vez que em nosso entendimento ele se aplica aos princípios filosóficos e práticos dos CP até a
podemos dizer que se partia, e parte, do princípio de que a saúde resulta da ação de forças
essas forças se introduzem nos corpos (Scliar, 2007). Nesta, o adoecimento resulta de
divino, sendo requeridos rituais para que se reatasse o enlace com as divindades (Barros, 2002)
Outro aspecto desta perspectiva é que as relações com o mundo natural se operam a
partir de uma cosmologia que inclui deuses caprichosos e espíritos tanto bons quanto maus
(Barros, 2002).
ação de demônios ou de maus espíritos, mas representava um sinal de cólera divina frente aos
pecado. Com isso, Deus era o Grande Médico: “Eu sou o Senhor e é saúde que te trago” (Êxodo
15,26), “De Deus vem toda a cura” (Eclesiastes, 38, 1-9) (Scliar, 2007).
Em outras culturas, quem se encarregava da expulsão dos maus espíritos e da cura das
doenças eram os xamãs ou feiticeiros tribais, que mediante rituais buscavam restaurar e
reintegrar o doente ao universo total, do qual ele é parte, universo este não considerado inerte,
mas sim que “vive” e “fala” – uma espécie de macrocorpo do qual o Sol e a Lua são olhos, os
antropocósmica.
Entre os índios Sarrumá, que vivem na fronteira entre Brasil e Venezuela, o conceito de
morte natural ou mesmo por acidente praticamente inexiste, sendo o morrer resultado da
animal tabu. De modo que é incumbência do xamã convocar espíritos capazes de erradicar o
mal, fazendo uso de canções xamanísticas e utilizando plantas com substâncias alucinógenas
que são atrativos para os espíritos capazes de combater a doença, e que para ocupar este
em algumas localidades vão mais tarde perdendo lugar para uma outra concepção,
processos de saúde, doença e cura, portanto, também do enfrentamento da morte. Este modelo,
92
parece nascer nas grandes civilizações do Oriente Médio, como a tradição egípcia, sendo esta
concepção pré-científica encontrada também nas medicinas empíricas da Índia e da China (3000
da Grécia clássica, a qual tinha como referencial de saúde e doença o equilíbrio dinâmico ou o
contribuições de Hipócrates (460-370 a.C.) (Balestrin & Barros, 2009), substituindo a crença
na superstição pela crença racional sobre as causas das doenças (Branco, 2003).
nível em alguns modelos de saúde que presentes na atualidade, embora estes não se enquadrem
culturas que mantêm práticas de proteção ou de cura de doenças (Bobsin, 2003; Cerqueira-
“pagamento” de promessas e outros ritos relacionados à saúde (Ceballos, 2015). Práticas que
se perduram através do tempo sendo redescobertas de época em época pelo olhar civilizador do
cartesiana, desbanca, então, o modelo mágico-religioso, diminuído sua força, porém sem nunca
93
concepção e deste olhar mágico-religioso nos processos de saúde, doença e morte no ocidente.
De modo que este passa a ser vigorosamente questionado, haja vista a tendência à separação do
deveria ser exclusivamente baseada na biologia, na física e na química orgânica (Santos, 2009).
moderna, em que a princípio não parecia ter espaço para o tema, que parecia fadado a
Tendo em vista que estas estavam associadas, como pode-se identificar nos estudos de
Sigmund Freud (1856-1936) à neurose e, portanto, atuava como aspecto limitante dos sujeitos
(Freud, 2010; Pereira & Chaves, 2016). Tínhamos nesse raciocínio mais elementos para a
adoecimento. Stanley Hall (1846-1924), por sua vez, coloca o campo da psicologia e das teorias
psicológicas, enquanto ciência como espécie de substituto das religiões. De modo que, o que
modelo dualista cartesiano, foi marginalizado e tido como ruído para a ciência (Pereira, 2018).
novas formas de se manter vivo (Costa Catré, Ferreira, Pessoa, Catré, & Catré, 2016).
94
para a doença (Nogueira da Silva, 2014), favorecendo práticas de saúde que se afastavam das
Fato passível de duras críticas no contexto contemporâneo, mas que também nos permitiu
estratégias e meios de cuidado, trazendo sem dúvidas não só retrocessos para o campo da saúde
(Santos & Incontri, 2010), assim, não negamos a importância fundamental e os avanços que o
Todavia, não negligenciamos as limitações deste modelo, por ser ele insuficiente quando
cuidado que podem ser produzidos, para além de uma perspectiva biologicista e sem restrição
apenas aos mecanismos biológicos. E sim, enquanto forma de andar a vida, e possibilidade de
Com o aumento das doenças crônico-degenerativas fica-se cada vez mais claras as
educação em saúde tradicional, já que este novo cenário exige transformações nas formas de
cuidado, bem como, por vezes, nos modos de vida dos pacientes e grupos. Sendo assim, diante
trabalhando justamente com as dimensões pouco palpáveis do ser, como suas motivações
humano à dimensão biológica (Pessini & Bertachini, 2010), têm ganhado cada vez mais força
nos cuidados em saúde, trazendo ao campo a compreensão de que o cuidado, bem como o alívio
95
do sofrimento não se restringe apenas à dimensão física, mas que se amplia para incluir aspectos
et al., 2013).
um prisma hermenêutico de saúde, que nos chama atenção para a necessidade de uma ruptura
paradigmática, que não propõe negar ou “satanizar” o modelo anterior e suas contribuições,
mas superá-lo em função da busca do que representa saúde para cada sujeito, não a trazendo
como usual oposição à doença, mas sim como um experiência de caráter contrafático,
caracterizada como conceito dinâmico, a ser “(re)conhecida a cada vez, enquanto e porquanto
um de bem-viver (Ayres, 2007, p. 48). Neste modelo, a saúde é tomada não como ausência de
doença ou polaridade desta, mas sim como uma experiência de busca contínua e socialmente
projetos de felicidade que são de certo modo a referência do que é importante para os sujeitos
cuidados – enquanto totalidade compreensiva na qual se adquire sentido concreto para suas
demandas (Ayres, 2007), que diz de uma expansão do horizonte normativo (Ayres, 2005)a.
Almeida, 2007, 2012), sendo o Brasil um dos países que mais significativamente tem
contribuído para esta expansão (Damiano et al., 2016; Giancarlo; Lucchetti & Lucchetti, 2014).
Neste ínterim o envolvimento religioso e espiritual surge como uma variável que vem ganhando
96
cada vez mais relevância e reconhecimento como indicador de saúde, na busca de promoção e
A medicina atual vive, pois, uma transição à procura de novas fronteiras e caminhos
para seu aperfeiçoamento e evolução do conhecimento (Peres et al., 2007), havendo para tanto
necessidade de se aprender a estabelecer pontes e conexões entre o saber teórico, que é da ordem
das generalidades e o saber prático, que diz da situação sempre única de cada paciente, não
devendo haver menosprezo pelos recursos tecnológicos existentes, porém de um modo que
estes não sejam utilizados como finalidades em si mesmos, mas sim enquanto recursos ao
cuidado, sendo importante abertura e atenção nas práticas, inclusive às falhas, em direção a uma
atuação aberta a se tornar cada vez mais humana (Remião, 2010). Logo, senão opõe, sugere
também no encontro, na fusão de horizontes que se pode conhecer os projetos de felicidade que
Para tal, é preciso entender o “cuidado como designação de uma atenção à saúde
mental, e por conseguinte, também das práticas de promoção ou recuperação da saúde” (Ayres,
2004, p. 22), bem como, esse cuidar implica na atenção existencial às práticas relacionadas ao
Deste modo, o lugar das crenças religiosas e espirituais, enquanto aspecto individual e
pertencente a subjetividade e história de cada sujeito, têm recebido cada vez mais atenção na
pode também atuar de forma preventiva nos desfechos em saúde, estabelecendo um claro e
novo paradigma a ser efetivado na prática diária dos profissionais que se estrutura nessas
justamente na relação entre essas duas dimensões – espiritualidade e saúde (Peres et al., 2007).
Ancorando-se na Hermenêutica Gadameriana, entendemos que para tal inclusão é preciso que
não se crie um outro horizonte normativo restritivo, que vise regulação da vida social (Ayres,
2005), ou mesmo restrição das práticas de saúde. Ou seja, trata-se de defender que não se inclua
uma dada abordagem da espiritualidade como regra estrita, entretanto, é preciso estarmos
atentos a fim de não se fixar em um abstracionismo excessivo, que nos subtrairia a possibilidade
Por conseguinte, a preocupação dos profissionais de saúde deve ser de que as pessoas
significados e formas com que cada sujeito lida com a doença (Oliveira et al., 2013),
recuperação da saúde e morte. Sendo assim, faz-se também importante compreender os lugares
mundo contemporâneo foi marcada por diferentes momentos, desde um lugar indistinto da
de suas distinções e possíveis proximidades conceituais, foram sinalizadas como elementos que
Paliativos (CP).
espiritualidade como algo abrangente, amplo e que toma a religião ou mesmo a religiosidade
como referência, embora dissemelhantes entre si. Dialogando, assim, com o fato de que
durante muito tempo, o que favorece a usual confusão e até indistinção entre ambos,
o uso dos dois termos como independentes ou destacados um do outro, de acordo com Koenig
construção (Calvani, 2014). Fato que acentua ainda mais a necessidade e importância de
compreender o que se quer dizer quando se fala sobre espiritualidade, religiosidade e religião,
problemas a este campo de pesquisas, quanto a validade e coerência de suas produções (Borges
et al., 2015).
Porém, mesmo ante a proximidade com que por muito tempo foram entendidas religião
espiritualidade como algo mais amplo de que a religião – maior, mais abrangente. Neste sentido
Compreendo a espiritualidade como algo muito maior do que uma crença, do que
algo que é... específico... [...] não sei como colocar em palavras, como é que eu poderia
tá... mas eu acho que é isso mesmo, é algo que é muito maior de que uma crença, do
que algo que uma religião diz..
... Eu acho que é sentido, é algo maior que não diz de uma prática em si, de uma
oração que está escrita... [...] eu acho que a espiritualidade é o sentir, é algo muito
maior do que o rito em si
Foi comum, entretanto, a menção à religião, à sua prática, aos ritos e às crenças, ao se
ocidente a princípio estar não só associada a religião e a religiosidade, mas se trata mais de que
Todavia, apesar dos desacordos acerca do conceito de espiritualidade, que parece ter
religião e a religiosidade (Castro Filho, 2017), que pode ou não incluir em seu escopo a religião.
Compreendo como a crença que a gente tem numa força maior, de que tem algo além
da gente [...] eu acho que tem forças maiores que algumas pessoas chamam de Deus,
outras chamam de força da natureza ou sistema solar... sei lá como que cada um dá um
nome, mas eu acredito que espiritualidade ela tem a ver como eu vivencio essa minha
conexão com esse todo maior. Eu entendo que algumas pessoas vivenciam isso através
de uma religião e outras não tem religião e vivenciam da mesma forma.
Têm pacientes que tem uma religião, mas ele não é praticante, mas a espiritualidade
dele é bem desenvolvida, ele tem um contato com aquilo que dá sentido a vida dele, que
transcende a vida dele, de uma forma bem autêntica
Já a fala de Berilo, anuncia ainda uma certa dificuldade em colocar em palavras o que
entende por espiritualidade, a qual de certo modo se associa à de Cornalina quando fala de
Seria algo que vai além do material, seria algo que vai além do que a gente poderia
objetivar, seria é... é algo que os pacientes possam tá trazendo diante do que eles
acreditam independente de religiosidade, de religião, mas que envolve fé deles em algo,
que é deles e isso é muito particular, singular de cada um, então, é... eu diria algo
mais... algo mais subjetivo de que uma religião em si.
2015), aspecto que também surge na fala de algumas colaboradoras, como por exemplo quando
Berilo traz “não sei colocar em palavras” ou quando Cornalina coloca “seria algo que vai
101
além do material, seria algo que vai além do que a gente poderia objetivar”. Aspectos estes
que podemos encontrar presente ainda em alguns dos apontamentos de Ken Wilber (2009) sobre
objetiva.
da fé, como destacado na fala de Cornalina, e que de fato muito se aproxima até de diferentes
uma força transcendente superior, que não é identificada diretamente com Deus, nem se
podendo a fé ser identificada como uma força tanto interna quanto externa à psique humana,
tratando-se do relacionamento e da ligação com essa força, ou esse espírito, que é o componente
envolve a ideia de propósito, de uma vida que traz consigo a responsabilidade de realizar o
pleno potencial que cada ser humano têm, e que ao fazê-lo, é capaz de alcançar algum sentido
de paz, alegria ou mesmo transcendência, a partir do vínculo com alguma coisa maior do que o
A espiritualidade como essa dimensão maior que contempla a busca do sentido e esse
sentido pode estar sim vinculado a uma religião, a uma figura divina, mas também
pode tá ligada a um outras questões, a própria história de vida, a a própria, as relações
que foram estabelecidas ao longo da vida, a doença e os novos sentidos que advém da
experiência de adoecer, entre outras, então eu acredito que a espiritualidade, pelo
menos pelo que eu tenho lido né ela é uma dimensão maior, que também contempla a
religiosidade, mas que de modo geral, em linhas gerais fala sobre a busca do sentido
e e a gente tá o tempo todo nessa busca, e talvez para os nossos pacientes com
adoecimento grave essa busca ela fique mais... pulsante né, na experiência deles.
102
E sinaliza assim para um outro ponto que muito tem se relacionado com as questões
sentido da vida e que também está para o quê faz sentido para cada pessoa, na direção de uma
dimensão espiritual que dialoga com o que propõe a Logoterapia proposta por Viktor Frankl
(2010), que se vincula não apenas à busca e sentido, mas também à capacidade humana de
ultrapassar a si mesmo na procura e em direção ao sentido que dê a sua vida (Carrara, 2016), a
aspiram descobrir o que concebem como sacro em suas vidas, o que remete o conceito a um
campo de singularidade.
teológico, sendo neste o divino inacessível às coisas terrenas, pois se trataria de esferas
totalmente distintas, manifestando uma relação dialética permanente. Nas tradições religiosas,
a transcendência costuma surgir como algo a parte da realidade concreta, como a noção de Céu,
acima, em oposição a ideia de imanência, embaixo, que se destina ao humano que só acessa o
transcendente através de orações, meditações e outros recursos (Boff, 2000), mas que não o é
& Silva (2016), quando sustentam a tese de uma espiritualidade que se relaciona radicalmente
e essencialista, abrindo espaço para infinitas construções de si e do outro, ideia que possibilita
olhar a espiritualidade também como movimento de transformação, que está para um processo
de tornar-se cada vez mais humano, o qual pode se vincular diretamente com a forma como as
pessoas se relacionam com a vida e o mundo. Tanzanita traz em sua fala a associação que faz
relação como o mundo, que pode ser expressa a partir de atitudes diante da vida:
104
Princípios que norteiam o que eu acredito que seja espiritualidade: de você estar nesse
mundo, de você ser generoso, de você ser bom com as pessoas que estão ao seu redor,
de você ser grato por tá com saúde, de você poder fazer por outras pessoas o que já
puderam fazer por você, ou o que você puder colaborar de alguma maneira... você
poder colaborar... eu acho que isso é um meio da gente vivenciar a espiritualidade.
Eu acho que a espiritualidade ela fala da forma como eu estou no mundo
(Tanzanita – recorte da entrevista).
A espiritualidade pode ser tomada como uma busca do ser humano por um sentido e
significado transcendente da vida, que se relaciona ao que pode ser concebido como qualidades
harmonia, que estariam voltadas para si, mas também para o outro (Pessini, 2010), visão que se
aproxima de Wilber (2009) quando ele exprime que a espiritualidade pode ser como que uma
atitude humana, com a sinceridade, o amor, a compaixão (Ferreira, Silva, & Silva, 2016b).
Murakami & Campos (2012), em consonância com o já pontuado, refere que a diferença
entre religião e espiritualidade está justamente no significado mais amplo desta última, ademais,
acentua-a como um sentimento pessoal, que estimula um interesse pelos outros e por si, além
conceitos utilizados no campo da saúde para espiritualidade, proposto por Harold Koenig, que
a enfatiza como uma busca pessoal relacionada às questões últimas acerca da vida, de seu
pode ou não conduzir ou originar rituais religiosos (Koenig & McCullough, 2001) bem como
aponta, a partir das diferentes falas, concepções e visões para a polissemia do termo e sua
ausência de consenso, haja vista a complexidade do mesmo (Costa Catré et al., 2016).
Desta forma, a partir do trazido por nossas colaboradoras em diálogo com a literatura,
nos encontramos no trânsito deste estudo com um conceito de espiritualidade que independe da
105
religião, podendo ou não se relacionar a ela, mas que é fundamentalmente mais amplo de que
existência, como algo que tem em seu âmago vínculo com o campo da espiritualidade, que se
contextualiza e ancora na relação com as pessoas e com o mundo, mas que é também
que historicamente têm uma importante aproximação no ocidente, de modo que também no
entrevistadas, de modo que para conceber religiosidade muitas delas fizeram referência à
religião, assinalando a religiosidade principalmente como uma prática da religião, mas ainda
assim mais ampla. As colaboradoras conceituam religiosidade com íntimo vínculo com a
religião, neste sentido traz-se aqui algumas falas nesta direção, no que se refere a religião dizem:
estruturadas a que podemos dar nome, pode ser católica, espírita ou quaisquer outras, sendo a
A religião em algumas das falas e na literatura surge como um sistema que fornece o
conteúdo simbólico, moral e ritual das crenças (Franco, 2013). O clássico conceito de Harold
Koenig também aponta nesta direção, quando a refere como sistema de crenças práticas, rituais
McCullough, 2001). No entanto, as falas das entrevistadas não fizeram menção expressa ao
aspecto sagrado e transcendente que pode haver nesta relação com a religião.
Ainda sobre esta, e seu aspecto estruturado e delineado, Vasconcelos (2005) pontua
(Vasconcelos, 2005, p. 29). A religião é, então, apontada como conjunto de crenças, práticas
rituais e linguagem litúrgica que qualifica uma comunidade que está em busca de dar
trazendo a ideia de comunidade que também surge nas falas, porém, principalmente no que se
Moreira-Almeida & Stroppa (2008) traz ainda que a religião pode ser uma espécie de
uma crença. Não que a religião ela se restrinja, mas eu acho que as pessoas vivenciam
dessa forma”
concepção de sagrado:
A prática religiosa eu vejo ligada eu vejo ligada a uma crença específica [...] a ritos
específicos [...]. Eu acho a religião um elemento/um aspecto muito sagrado, acho, e
acho que nesse contexto aí se torna mais sagrado
A religiosidade acho que ainda é mais amplo de que a religião, a religiosidade é... Seria
algo mais amplo de que a religião, que talvez envolvesse o comportamento da pessoa
em relação a religião que ela segue... não sei se seria algo diferente disso.
o faz estar inserido num grupo específico, então, por exemplo, o grupo, eu sou católica,
ou então espírita, sou evangélica... eu faço para de um grupo que tem aquela crença
sobre aquela religião.
Aspecto que dialoga com Murakami & Campos (2012) que fazem alusão ao referir a
religiosidade como algo que é mais abrangente que a religião. Ademais, a religiosidade vincula-
A religiosidade ela tem a ver com a maneira como a pessoa vai vivenciando essa
religião... os dogmas que ela tem a respeito, os rituais, a sua maneira de funcionar para
além daquilo que é instituído.
Isto é, diz também respeito ao nível de envolvimento religioso e o seu reflexo na vida
da pessoa para além do espaço circunscrito pela religião, influenciando no cotidiano da pessoa,
nos seus hábitos e na sua relação com o mundo (Moreira-Almeida & Stroppa, 2008). Com
relação a estes aspectos, que dizem respeito a religiosidade de acordo com os autores
anteriormente mencionados, Tanzanita argumenta que nem sempre no processo de exercer uma
Tem muita gente que vive religião, segue aqueles rituais ali mas é como se aquilo dali
fosse um recorte, é como se não falasse de como aquela pessoa é no mundo [...] mas eu
percebo que tem muita gente que frequenta templos religiosos, se diz é... de uma
determinada religião, mas que não consegue praticar isso no dia-a-dia, tá entendendo?!
De modo que, no que diz respeito apenas à reprodução dos rituais, fala-se de religião e
Há ainda muitos modos de se relacionar com a religião, de maneira que Allport & Ross
como o próprio fim pelo praticante; já a extrínseca dá-se quando a religião não um fim em si,
mas um meio para outros fins e interesses, como incluir-se em uma comunidade.
vivência de suas crenças (Koenig & McCullough, 2001), como pontua Ametrino ao diferenciá-
la de espiritualidade:
Eu faço essa diferenciação, que é uma diferenciação que parece ser a mais recorrente,
a religiosidade como essa que se aproxima das práticas religiosas, a prática cristã, a
prática protestante, budista...
Assim, registra-se a partir das falas das colaboradoras deste estudo não só a proximidade
que há entre os conceitos de religião e religiosidade, de modo que para definir um é usual fazer
referência ao outro, mas principalmente a distinção que existe entre esses dois, estando a
religião muito mais vinculada a um sistema de crenças, ritos e modos de funcionar específicos,
tendo uma estruturação e muitas vezes até normas que a marcam e a religiosidade enquanto o
exercício, expressão ou mesmo prática da religião, sendo mais ampla que ela e estando
vinculada com a forma como nos colocamos no mundo e que pode ter também relação, tanto
compreender como estas concepções se expressam na prática das psicólogas colaboradoras, isto
é, como se dá sua abordagem, quais seus desafios, limites e potências – aspectos pelos quais
Vinícius de Moraes
Os capítulos anteriores, desde o passeio pela temática da morte aos Cuidados Paliativos
(CP) e seu convite à espiritualidade ou mesmo às diferentes concepções tanto de saúde, doença
e morte, quanto de espiritualidade, religião e religiosidade nos trazem até este último capítulo.
na inclusão da espiritualidade e suas facetas tanto religiosas quanto não religiosas no cuidado,
desvelando o modo como estas profissionais incluem a espiritualidade em suas práticas, o seu
“como fazer”. Compartilham-se ainda as dificuldades que envolvem esta inclusão, marcadas
pelos diferentes modos de lidar com a morte, pela restrição no processo de formação dos
presentes neste campo, que apesar de desafiador e de tantas limitações é marcado pela potência
tempo. Havendo, de acordo com Franco (2013) várias maneiras de abordar as convergências
entre as duas temáticas, sendo a espiritualidade que surge na prática clínica de psicoterapia e as
vivências diante da morte, dois dos possíveis pontos que as aproximam. Outrossim, pontua que
a confluência entre esses temas se dar ainda em razão de tanto a psicologia como a ideia corrente
Entretanto, na busca em se firmar como ciência aos moldes da Ciência Moderna, boa
parte da psicologia cindiu seu olhar das questões relacionadas ao que é da religião ou religioso,
bem como ao que diz respeito à espiritualidade. Tendo em vista que mesmo com as
dissemelhanças existentes, não parece haver como separar totalmente espiritualidade, religião
Até pouco mais da metade do século XX, a psicologia que se relacionava à ordem do
(Ferreira, 2012; Moreira-Almeida & Stroppa, 2008). Todavia, ainda nesse ínterim houve
trabalhos no campo científico com alguma relação entre psicologia e espiritualidade, mesmo
112
que não se tenham proposto em fazer esta relação a princípio, como os estudos de William
James (1890, 1902), Stanley Hall, Lawrence Kohlberg (1992) e James W. Fowler (1992),
caracterizavam seu confronto com a religião e a teologia (Valle, 2005). Construindo-se ainda
religiosidade (Franco, 2013). Havendo ainda nas últimas décadas aumento significativo da
todos seus aspectos caros sejam contemplados (Gomes et al., 2014). Fato que reafirma a
relevância de que a psicologia que se propõe olhar para o que é da ordem da humanidade em
espiritualidade. De modo que há perspectivas que a contemplam mais fortemente e outras que
Psicanálise, a partir das colocações de seu precursor, Sigmund Freud, terminou assumindo uma
(Cavalheiro & Falcke, 2014), tratando o tema como não importante à ciência, nem tampouco à
prática, exceto a ser visto como elemento limitante, atribuído à ignorância e visto como fator
Estados Unidos a partir do início do século XX, de forma geral, também não focou fortemente
nas questões referentes à espiritualidade, bem como em sua perspectiva metodológica, fundada
aspectos humanos decorrentes de uma “vida interior”, colocando o comportamento como seu
Psyque que corresponde a alma e logos que se refere a estudo, logo diz respeito ao estudo da
alma, a qual tem sua origem na filosofia, que originalmente se propõe a estudar e compreender
o espírito, do latim spiritus. Valle (2005), entretanto, pontua que o cenário predominantemente
Carl Gustav Jung (1897-1961) trouxe ricas contribuições a uma psicologia do sagrado,
incluindo a dimensão espiritual das pessoas, a partir de seus estudos sobre arquétipos e mitos,
inconsciente coletivo, sonhos e outros (Ferreira, 2012), destacando ainda a proximidade entre
dizem respeito ao que é próprio da psique humana (Jung, 1991), sendo a espiritualidade um
decisivo da vida humana e tratando-a como uma necessidade psíquica de “religio”, de se religar
Viktor Frankl (1905-1997), criador da Logoterapia, que se insere na corrente das Psicologias
Existenciais, que em síntese é orientada pelo sentido das situações e da vida para cada sujeito
(Frankl, 2010). Salienta a dimensão espiritual, a que chama noética, como importante, estando
114
capacidade humana de responder e se posicionar diante das situações de sua vida, dando-lhes
sentido (Coelho Júnior & Mahfoud, 2001; Lima Neto, 2013), inscrevendo-se ainda na aptidão
do ser humano em ultrapassar a si mesmo para realizar uma tarefa que dê sentido à sua vida
(Carrara, 2016), capacidade a que Frankl (2010) chama autotranscedência, sendo o atributo de
não estar fechado ou fadado aos condicionamentos, sendo capaz de ser para além de si mesmo
nas buscas dos sujeitos de aperfeiçoamento próprio (Franco, 2013). De modo que ao criar a
importância da espiritualidade à psicologia. Jorge Ponciano Ribeiro (2015) afirma que não há
nada mais humano de que a vivência religiosa, de modo que à psicologia, enquanto campo de
investigação da alma e de suas complexas manifestações não pode deixar o aspecto espiritual
de fora do estudo do humano, que é de onde provém todo e qualquer sentido e significado,
estando em descompromisso com a totalidade da existência se assim fizesse. Exclusão esta que
tornaria a psicologia, segundo ele, pobre, parcial e incompetente. Giovanetti (2005), de base
existencialista, a semelhança de outros autores situa a espiritualidade como algo que pertence
a todo ser humano, sendo dele próprio, destacando, todavia, que não é necessariamente utilizado
por todos como norte à vida, mas quando utilizada seria o que nos torna capazes de descobrir
similar ao que expõe Valle (2005) que a coloca como necessidade constitutiva de todo ser
humano, que se relaciona à busca pessoal de sentido à própria existência e ação no mundo, que
ultrapassa o nível biológico e emocional das vivências de cada sujeito e que não se trata de algo
expoente em que coloca a dimensão espiritual da vida humana, relacionada à natureza de sua
subjetividade (Ferreira, Silva, & Silva, 2016; Silva, Ferreira, & Silva, 2016) incluindo as
elevados e espirituais para uma expressão mais saudável do humano (Maslow, 2014).
com o fato do fenômeno religioso e/ou a espiritualidade fazer parte da vida do sujeito, que pode
Logo, não só no consultório, mas também nos distintos espaços e contextos em que a psicologia
se propõe estar pode-se ouvir experiências ligadas à espiritualidade de modo que não se deve
negar tais aspectos. Assim, Miranda, Lanna, & Felippe (2015) destacam a fé, além de um
A partir deste passeio por diferentes autores e perspectivas psicológicas nota-se que o
olhar para a espiritualidade do humano não é empreitada exclusiva de uma abordagem. Mas,
atravessa o olhar e fazer da psicologia de um modo geral, e mesmo quando não vista como uma
deve ser olhada e pensada nos processos de cuidado, quando trazida e referenciada pelo sujeito
De modo que, nos processos terapêuticos, em geral, é importante que se haja acolhida,
escuta e respeito por parte do profissional, e isto inclui a dimensão espiritual, sendo importante
que os profissionais psicólogos saibam lidar com esses aspectos na prática (Oliveira & Junges,
Granero, Bassi, Latorraca, & Aparecida, 2010), tanto na clínica regular como especificamente
na clínica em cuidados paliativos, que se propõe a não ser apenas uma clínica individual, e sim
interdisciplinar. Nesta direção traz-se na sequência os relatos das vivências das psicólogas
colaboradoras neste estudo acerca do como incluem em sua prática este elemento tão
6.2. Eu torço para que o paciente tenha algo: como incluir a espiritualidade?
trouxeram que em algum momento do acompanhamento este ponto será tocado, seja a partir de
uma demanda espontânea dos pacientes, seja porque no processo de conhecê-los está incluído
desenvolveram-se diferentes instrumentos a fim de auxiliar “no como fazer” (Santos, 2009).
117
pelo médico Harold Koenig (2007), em que se investiga a história espiritual do paciente e o
FICA, também voltado para a história espiritual, trata-se de uma escala idealizada e validada
por Christina M. Puchalski, que leva em consideração quatro relevantes pontos acerca da
uma série de questões em cada uma dessas esferas, a fim de conhece-las dentro da história de
cada pessoa (Puchalski, 2006); em síntese, destaca-se as seguintes questões: você se considera
uma pessoa religiosa ou espiritualizada? Tem alguma fé? Se não, o que dá sentido à sua vida?
Além destes, alguns outros livros relatam o instrumento SPIRIT, que aborda: a afiliação
Qual é sua religião? Descreva as crenças e práticas de sua religião ou sistema espiritual
que você aceita ou não. Você pertence a alguma igreja, templo ou outra forma de
comunidade espiritual? Qual é a importância que você dá a isso? Quais são as práticas
específicas de sua religião ou comunidade espiritual (exemplo: meditação ou reza)? Quais
os significados e restrições dessas práticas? Qual desses aspectos espiritual-religiosos
você gostaria que eu estivesse atento? No planejamento do final da sua vida, como sua fé
interfere nas suas decisões? (Cervelin & Kruse, 2014, p. 140).
abordagem da espiritualidade dos pacientes, nenhuma colaboradora fez referência ao uso estrito
de algum deles, apesar da atual difusão deste no campo dos CP, quando se trata dos cuidados
118
espirituais. Todavia, ao analisar a natureza das questões e aspectos trazidos nestes instrumentos,
E algo que parece substancial na prática é que muitas das vezes a dimensão espiritual
As narrativas refletem o fato usual de que os pacientes em fase final da vida querem e
desejam conversar com o seu médico, ou outros profissionais que o assistem, sobre temas
119
ligados a dimensão espiritual (Breitbart, 2003), que pode estar vinculada às questões religiosas
ou não.
Apesar da maior parcela dos pacientes serem religiosos ou terem uma religião, foi
comum que para além das perguntas direcionadas à religião ou anteriormente a elas, as
importantes que podem se relacionar à espiritualidade, abrem espaço para compreender outras
particularidades que auxiliam no processo dos pacientes e suas famílias. Bem como, pode
favorecer o acompanhamento a pessoas ateias, ou que não são religiosas ou que não veem
sentido em incluir em seus processos questões do campo espiritual. Sendo perguntas como “o
que promove um significado e propósito à sua vida e quais crenças culturais podem ter impacto
diante dos dados que apontam que as pessoas é... que aderem ou a uma religião ou a
um recurso de enfrentamento – a fé, é elas tem um, tendem a ter um melhor
enfrentamento no adoecimento, ou até mesmo nessa fase né, de morte [...] então, diante
disso, sempre nos meus atendimentos logo nos momentos iniciais, na entrevista inicial
eu já pergunto ao paciente se tem alguma religião, se tem alguma questão de fé, quais
são os recursos e enfrentamento deles, e eu já vou identificando e diante disso,
independente de qual for a crença dele se é criado um espaço de fala e diante disso
também a gente vê o que pode ser trazido dessa crença, dessa religiosidade, do que ele
acredita para a realidade dele, então, é muito do que ele traz, não do que eu coloco”
Assim como outras profissionais Cornalina enfatiza a abertura e espaço para que o outro
fale de si, que coloque suas crenças e o que para si é importante, cabendo à psicologia
acompanha-lo e favorecer o que é importante para ele, e não para si, e orientar sua atuação a
partir do sistema de crenças, ou mesmo não crenças, do outro, mas nunca a partir do seu (Peres,
eu acho que isso é consensual entre os psicólogos: a gente não direciona à alguma
crença específica, então partimos do que o paciente traz e do quanto aquilo é
importante para sustenta-lo, para conseguir fortalece-lo ao longo do percurso. Então
normalmente eu deixo vir, qual a religião que ele adota, quais as crenças que ele tem
em relação... qual é a leitura que ele faz pela via religiosa dele da relação dele com a
doença, com o tratamento e com os demais, com a família... Enfim, e como isso e qual
o papel que isso tem cumprido pra que ele consiga seguir adiante e atribuir
significados à experiência. E a gente vai seguindo nesta perspectiva
parecem compartilhar muitos pontos, estando entre os principais elementos uma escuta atenta
e cuidadosa.
pacientes em suas formas singulares de lidar com o adoecimento e com a vida, e entender a
influência das diferentes relações no processo de qualidade de vida de cada um. Sendo nesta
seara fundamental o respeito aos valores do paciente, inclusive para a formação de um bom
Lucchetti et al. (2010) argumenta, que não há uma única forma de abordar a
o meu fazer vai depender do que ele traz [...] eu não vou influenciar meu paciente nem
na religião nem sobre política... sobre nada, porque eu acho que tudo que ele traz é
muito sagrado, então eu acho que tenho que trabalhar com aquilo que ele me traz, eu
acho a religião um elemento, um aspecto muito sagrado, acho, e acho que nesse
contexto aí [cuidados paliativos na proximidade da morte] se torna mais sagrado
A gente tem um passo a passo de perguntas, é como um checklist, mas não formal, é...
no hospital, em que nós, na reunião com a família, um dos pontos a ser abordado é se
a família tem alguma crença, se o paciente tem alguma crença [...] nós perguntamos
ao paciente se ele estiver consciente e orientado, se ele deseja visita de algum líder
religioso, se ele tem algum preferência que a gente entre em contato ou se a gente pode
buscar [...] e isso é colocado tanto para o paciente como para a família e não tem
dificuldade alguma, 100% das vezes até o momento eles desejaram essa possibilidade,
esse recurso
Sendo por vezes a bagagem que cada profissional traz em heranças culturais um elemento que
Outro elemento significativo da fala das psicólogas foi buscar promover ou favorecer
que as demandas religiosas e/ou espirituais de seus pacientes fossem atendidas, desde o auxílio
Um paciente que pontua nos desejos de finais de vida [...] a gente vai facilitar pra que
isso seja cumprido, favorecido... ou alguém que ele queira ver, algum membro
importante da religião dele ou mesmo que não tenha uma religião mas que queira...
Se a crença em Deus, seja ele qual for é necessária, é suficiente, é importante para
aquela família, pra aquele paciente a gente vai fortalecendo isso, essas estratégias
122
para que eles consigam. É permitir que ele possa manter dentro do leito, junto a ele, a
bíblia... Normalmente você passa aí nas enfermarias e você vê eles com escapulário
penduradinho no leito, a bíblia... e outras coisas que eles costumam trazer para o
hospital.
Ou mesmo auxiliando o paciente a fazer uma oração, reza ou prece. Cornalina conta
‘eu tô me sentindo muito mal porque eu não estou conseguindo rezar, num tô
conseguindo fazer minhas orações, isso não me deixa bem, eu não tô conseguindo
concentração’.
‘você quer que eu lhe ajude? Como é que você gosta de rezar? Quais são as
dificuldades?’ e aí a pessoa favorecer aquele momento e até orar junto com a pessoa.
Mas jamais ser algo que eu vou tá trazendo: ‘vamo fazer uma oração?’, de forma
nenhuma.
No cenário das colaboradoras de nosso estudo observamos ser comum que a psicologia
trabalhe no fortalecimento de crenças dos pacientes que os auxiliem a enfrentar e lidar com a
Então, por enquanto eu digo a você que religião assim eu não chego a abordar tanto,
mas quando eles trazem... tem situações assim que... Pronto, tem uma paciente [...] ela
fala muito que é lá [na igreja] que ela encontra força e aí eu estimulo que ela vá
com relação a atuação dos profissionais de psicologia a incluam, sendo o cuidado espiritual
atribuído como papel do psicólogo na equipe, uma vez que a atenção à espiritualidade consiste
123
em um dos princípios dos CP (Ferreira, Lopes, & Melo, 2011; Nunes, 2012). As falas das
profissionais revelam que o fazer da psicologia junto a espiritualidade parte do que o paciente
em questão traz, sendo para tanto necessária abertura. No entanto, abertura, escuta ao outro,
abordagem espiritual, mas parece se reforçar neste contexto. Assim, finalizamos com a fala de
A ideia é que realmente isso seja levado em consideração, até porque vários estudos
tem mostrado quanto isso [espiritualidade/religião] é importante para o paciente em
cuidados paliativos, já têm estudos falando do paciente de uma forma geral, mas
quando a gente vai falando do paciente em cuidados paliativos diante da cronicidade
da doença e mais especificamente perto da finitude da vida, aí realmente isso é muito
presente, acho que é um caminho que a gente realmente tem que percorrer enquanto
profissional
desafios e dificuldades
Manoel de Barros
Apesar dos muitos indicativos de que a espiritualidade deve ser contemplada no fazer
da psicologia, haja vista seus potenciais benefícios a saúde, a qualidade de vida, bem-estar,
124
enfrentamento à adversidades e mesmo o importante lugar que ocupa nos cuidados de fim de
suas atuações com relação a espiritualidade foram divididas em dois eixos temáticos: um que
na graduação em psicologia; e outro que diz respeito aos diferentes modos de estar diante da
morte, que significa na prática o lidar com processos em que a religião do paciente atuava como
religiosidade.
espiritualidade, tendo em vista a ideia de que esta é uma dimensão constitutiva humana, aspecto
que dialoga com o preconizado em 1998 pela Organização Mundial de Saúde como saúde, um
conceito multidimensional, que passa a incluir a dimensão espiritual como elemento importante
(WHO, 1998), representando assim um marco, que ressalta a potencial importância dessa esfera
na vida das pessoas e por quê não em seus processos de saúde-doença e morte. Aspecto que
teoricamente contribui para que a espiritualidade seja cada vez mais olhada nos campos de
pesquisa, contemplada na prática e no ensino, ainda que com mais ênfase só nas últimas
décadas.
A isto, somam-se aspectos contextuais, que podem influenciar no modo ou enfoque com
que se lida com a espiritualidade, afinal a religião e religiosidade são também modos de
No Brasil, um país com marcada influência religiosa e espiritual, haja vista que 90% da
Humana (IBGE, 2010), tendo sua história marcada por diferentes matrizes religiosas (Oro,
2011) e que mesmo com a dominância da matriz cristã não excetua sua diversidade e
espiritualidade (Castro Filho, 2017). Sendo este mais um fator que pesa à inclusão da
espiritualidade no cuidado. Logo, por que ou como não a incluir nos processos de cuidado?
São crescentes as pesquisas sobre a relação entre espiritualidade e saúde, de modo que
mesmo que paulatinamente, este tema tem cada vez mais se inserido no campo de atuação dos
profissionais de saúde e isto inclui profissionais de psicologia, todavia, esta progressão tem se
dado muito mais discretamente no campo do ensino (Dal-Farra & Geremia, 2010). Aspecto
este, também identificado na fala de todas as colaboradoras, as quais de modo geral arguiram
que suas formações em psicologia, sobretudo, no que se referia a grade curricular obrigatória,
não as havia ajudado muito explicitamente na atuação junto à temática da espiritualidade, com
formações e especializações fora da graduação. De modo que, em geral, o contato com esse
conteúdo se deu também muito pelos campos e interesses individuais no decurso de suas
olhar também para a espiritualidade, na proposta de olhar integralmente para as pessoas as quais
fazem menção a restrição em sua formação, algumas delas incluem também a temática da morte
como questão deficitária na grade curricular de seus cursos, porém, não tanto quanto a
espiritualidade:
Assim, a formação foi bem falha nesse sentido. Os cursos que eu fiz por fora né,
que eu fiz o curso de hospitalar, é... e vários cursos outros, de luto, que abordavam
a disciplina da morte com Sibele, já trazia mais essa questão, do contato com a
morte em si, mas da espiritualidade, da religiosidade eu não vejo a formação
contribuindo nisso não...
Outra tendência que a literatura sinaliza e que também é trazida pelas colaboradoras é o
trazidos, de modo transversal (Dal-Farra & Geremia, 2010), em aulas e módulos específicos de
Morte, sendo ainda usual o contato com o tema nos estágios do campo da saúde que discutam
temas como os CP, a finitude, a morte e o morrer (Kovács, 2016), que foi a circunstância da
maior parte das participantes, que estagiaram em contextos hospitalares. A esse respeito,
Ametrino ilustra:
Olhe I., sendo bem sincera, eu não me recordo de qualquer disciplina que tenha
tratado sobre isso que tenha feito um adendo pelo menos, a não ser as disciplinas
complementares [...]. As primeiras questões e leituras sobre foi no estágio porque
no contexto hospitalar isso é muito pungente, ele vem e você precisa lidar com
essas questões, mas durante a graduação não, a graduação absolutamente não me
preparou, não tínhamos espaço para discutir... é como eu falei no início: é um
tabu, e tinha essas questões assim: como abordar? Não pode abordar – não
127
absolutamente não? Religião não pode ser falado sobre isso em terapia... Aí depois
de formada, em cursos complementares, nas especializações que eu fiz foi que eu
comecei a ver profissionais, professores falando abertamente sobre isso, mas na
graduação eu não me recordo, a não ser na disciplina complementar, como era
psicologia da morte, evidentemente que a gente conversaria, a gente conversou
sobre esses temas também, mas nada assim que pudesse subsidiar, por muito tempo
eu fui bastante insegura com relação a isso e evitava falar.
espiritualidade, chama-nos atenção pra um aspecto discutido por Cavalheiro & Falcke (2014)
reformulação dos paradigmas da ciência psicológica, que termina, por vezes, negligenciando
uma dimensão humana, de modo que o percurso vivenciado durante a formação acadêmica em
espiritualidade dos próprios psicólogos (Cavalheiro & Falcke, 2014). Uma outra colaboradora
compartilha:
discreta na formação em Psicologia, o que implica, como também trazido por Ametrino, em
não preparar os profissionais para lidar com o assunto, sendo frequente, assim, que muitos
principalmente por temor de incorrerem em problemas de cunho ético (Freitas & Moré, 2014).
espiritualidade como uma “grande sorte” pelo contato com professores específicos ou
Eu acho que eu tive assim a grande sorte de estar em uma das primeiras turmas
de Sibele de humanista-existencial, já na disciplina Sibele começa a trazer
questões existenciais, morte, vida, tédio, angústia, num sei que... e acho que dali
já se foi tendo uma sementinha [...] eu acho que eu tive a sorte de ter ela [Sibele]
como supervisora na faculdade e ter uma supervisora de campo [...] que foram
assim, dois presentes que eu ganhei, porque as duas tem uma questão da
espiritualidade muito forte [...] elas me traziam uma ampliação dessa percepção.
Apesar de grande parte de nossas colaboradoras estar formada a mais de 10 anos e isto
nos fazer questionar se em turmas mais recentes respostas como essas se produziriam. No
entanto, Ônix, que se formou há menos de 5 anos narra parecido com as demais:
De modo, a nos atentar e refletir, por que falas de psicólogas formadas com intervalos
consideráveis, mais de dez anos, continuam dizendo coisas parecidas sobre suas formações e
129
como elas as prepararam para lidar com a espiritualidade de seus clientes? Mesmo com os
substanciais avanços nos últimos anos de estudos na área (Dal-Farra & Geremia, 2010),
qual de acordo com algumas das colaboradoras às requereu olhar para esta dimensão.
Ademais, outro ponto que surge na fala das psicólogas como já supracitado,
docentes na inclusão da temática em sua trajetória, que termina condicionando o contato com
o tema ao encontro com essas figuras. Logo, isto revela a presença ainda discreta da
processo de formar profissionais de psicologia, haja vista a dimensão humana importante que
A tradição biomédica, termina atingindo a Psicologia, sendo esta também uma das
razões possíveis para que conteúdos como estes, que ainda compõem um núcleo do que é
compreendido como “tabu”, como de algo de difícil manejo e que gera dúvidas à atuação, sejam
rejeitados na formação (Cunha & Scorsolini-Comin, 2019). Assim, pode-se problematizar ainda
Em sua fala sobre a formação Ametrino compartilha a dificuldade que a princípio tinha
discussão com o tema em sua formação, de modo que não raro os estudantes de psicologia
relatam não serem preparados para lidarem com essa questão adequadamente, bem como suas
acadêmica em Psicologia, para que as psicólogas e psicólogos possam lidar com a dimensão
130
espiritual à semelhança com que se lida com outras dimensões na sua atuação (Cavalheiro,
2010).
Com isso, pode-se ganhar uma visão mais sensível aos fenômenos religiosos/espirituais,
reconhecendo-os não só como constituintes da expressão humana, mas também como material
mais atento às questões éticas e profissionais, havendo ainda ganhos que possam ser
generalizados a outras questões que causam polêmicas e são delicadas (Cunha & Scorsolini-
Comin, 2019).
ir em busca de caminhos padronizados e/ou fechados para a atuação junto às pessoas, mas sim,
que dentre outras coisas a experiência da religião e da espiritualidade difere de pessoa para
pessoa (Elkonin, Brown, & Naicker, 2014). De modo que à Psicologia cabe buscar compreender
a maneira que os sujeitos se valem de suas crenças e fé, ou não crenças, sem o intuito de buscar
espiritualidade, apesar dos avanços nos estudos que destacam sua contribuição nos processos
de saúde, bem-estar e qualidade de vida (Bonelli & Koenig, 2013; Moreira-Almeida &
Lucchetti, 2016; Panzini, Rocha, Bandeira, & Fleck, 2007). Todavia, no campo dos CP é
imperativo o olhar para o humano em sua integralidade e complexidade, de modo que a partir
compartilha como a espiritualidade tem sido principalmente incluída na sua prática e formação
enfrentamento diante do processo de adoecimento e morte como uma importante barreira a suas
vividas, a partir de um conjunto de estratégias de ordem religiosa e/ou espiritual para manejar
o estresse diário e/ou decorrente das diferentes situações da vida (Pargament, Koenig, & Perez,
2000),
Da mesma forma que ela ajuda a aproximar, a atravessar essa fase, pra aproximação
da morte, vejo aqui também como as vezes dificultando o olhar [...] a vivência de uma
prática religiosa em que assim ‘o meu deus é o deus que tudo salva, que tudo cura, que
tudo vai salvar e eu vou ficar... e o meu parente vai ficar bom’, então eu vejo como uma
limitação ao meu trabalho [...] às vezes a gente tem aqui pacientes que tão graves e a
gente precisa trabalhar esse processo
Apesar das concepções positivas que a religião pode ter é possível também que tenha o
efeito adverso, geralmente quando crenças ou práticas religiosas são utilizadas para justificar
dificuldade que surge na atuação Ametrino conta a história de uma paciente muito religioso,
pastor de sua igreja e que categoricamente dizia: “eu não preciso de psicólogo”.
Ele tinha uma série de reações disfuncionais, a relação com a equipe muito difícil, a
relação com a própria doença muito difícil, mas ele não aceitava ajuda e ele dizia que
o psicólogo era Deus, então foi beem assim, eu não consegui me aproximar
limitante aos cuidados do paciente, gerando consequências negativas ou prejudiciais a eles, que
chama negativa, ou Coping Religioso/Espiritual negativo, em que estão os atos de: “questionar
existência, amor ou atos de Deus, delegar a Deus a resolução dos problemas, sentir
religiosa, redefinir o estressor como punição divina ou forças do mal” (Panzini & Bandeira,
2007, p. 129). Alguns movimentos os quais são destacados por nossas colaboradoras.
Um outro ponto de dificuldade relacionado às crenças dos pacientes que surge, apesar
de bem menos comum nas falas, é a situação em que o paciente ou a família não tem religião:
quando eu tenho, por exemplo, um paciente ou uma família que diz ‘não tenho
religião’, não é comum mas acontece, vez por outra a gente tem; naquele momento ele
não tá dando nenhum, ele não tá me dando nenhum recurso que eu poderia utilizar
pra ele ou pra eles, isso as vezes me traz um desconforto porque é como se eu não
tivesse isso, como um apoio pra trabalhar com eles, então eu acabo achando isso como
uma dificuldade, porém como não é frequente, é raríssimo isso acontecer não me
incomoda muito, né?! [...] eu sinto como se fosse uma lacuna nesse processo de
cuidado.
Esta fala de Olho-de-tigre sinaliza de certo modo para algo trazido por outras
colaboradoras, da dificuldade em lidar com práticas muito distintas das suas, ou que vão de
encontro com convicções suas do que é importante. A este respeito Quartzo Rosa compartilha
uma situação com uma paciente de crenças, não só religiosas, distintas da sua, que abdicou do
quando é dentro da nossa prática é muito mais fácil a gente acolher o que é nosso,
quando é a prática do outro que não é a da gente... é difícil quando é da prática
contrária... Assim... eu eu acolhi... não eu num acho que dificulta, que me impediu...
A vivência de uma prática religiosa em que assim ‘o meu Deus é o Deus que tudo salva,
que tudo cura, que tudo vai salvar e eu vou ficar bom’ ou ‘meu paciente vai ficar bom
aqui’, então eu vejo como uma limitação do meu trabalho [...] as vezes a gente tem
aqui pacientes que estão graves e a gente precisa trabalhar esse processo [...] e eu acho
que isso é algo que dificulta, que dá um limite, mas eu entendo
psicólogas trataram ou tomaram essas dificuldades como impeditivas às suas atuações, e assim
morte,
Na hora eu tento trabalhar mesmo com o que eles trazem, é tanto que eu já fui olhar
crenças, coisas assim... pra quando o paciente me trazia eu poder entender e [...] eu já
saber do que ele está me falando [...] ou perguntar: ‘mas o que é isso? Eu não sei, você
pode me explicar?’, eu tenho essa tranquilidade pra questionar, [...] não é só do
questionar, mas também conversar [...]. O que é meu nunca chegou a atrapalhar não...
apareceu como importante dificuldade entre as colaboradoras, tanto nas entrevistas quanto nas
cenas,
134
Diante desta postura sinto a necessidade de retomar isto visto que neste momento
meu sentimento de frustração por não ter conseguido dar seguimento ao
desenvolvimento desta temática junto com ela, no sentido de conversar sobre a
morte. Sinto que seria mais fácil se a fala sobre espiritualidade voltasse para a
compreensão do fim de vida como algo natural, principalmente se ela tivesse
aproveitado meu questionamento frente a temática. Meu desejo era de que
tivéssemos utilizado isto como recurso terapêutico para auxiliar no enfrentamento
deste momento da vida dela com a preparação para a morte
adoecimento, sendo a negação uma de suas possibilidades, a qual dentro dos pressupostos de
mais comuns (Luz & Bastos, 2019), frente a dureza que pode ser vivenciar alguns processos de
adoecimento e mirar a possibilidade próxima da morte. Kastenbaum & Aisenberg (1983) por
Barbosa & Freitas (2009) argumentam que perante a morte uma das principais respostas
humanas é o medo, de modo que usualmente é encarada como um estímulo nocivo e aversivo.
Assim, parece que a própria natureza do trabalho com a morte que convida à inclusão
da espiritualidade, também traz dificuldades em sua abordagem, quando faz uso de elementos
para não entrar em contato com esta dimensão, em consonância com a busca de também não
entrar em contato com a morte, o qual não é, todavia, uma dificuldade exclusiva dos pacientes
processo de assistir os pacientes observássemos o que representamos para cada um deles, pois
não raro os profissionais também entram, mesmo que por vezes de modo mais sutil, na negação
dos processos da finitude daquele outro, como inclusive algumas falas das colaboradoras
trouxeram, e em situações como esta pode-se levar o paciente a calar o seu dizer e concluir
135
apressadamente que este está em negação (Luz & Bastos, 2019), mas neste caso seria a negação
nossa/do profissional ou dele? Kübler-Ross, segundo Luz & Bastos (2019) chama atenção ainda
para o aspecto de que é “comum que em nossa cultura reações como alegria ou felicidade em
pessoas que estejam morrendo sejam vistas como manifestações de negação, algo negativo, o
que nem sempre corresponde à realidade” (p. 64). Mas não houve referência a este aspecto nas
fim de tornar as intervenções mais integrais e potentes. Todavia, a inclusão dessa dimensão na
assistência não se dá sem desafios e dificuldades, sendo inclusive permeada por questões éticas
cuidado, mas que solicitam nossa atenção. E este é justamente um dos pontos também trazidos
por nossas colaboradoras. Optamos por separar do eixo das dificuldades e trazê-las enquanto
desafio, por ser algo que nos provoca, mobiliza, e impele a buscar solução, ainda que as
dificuldades também possam assim serem vistas dessa forma, por vezes elas podem ser
resolvidas mais praticamente do que os desafios de ordem éticas, que sempre estão sendo
falas das entrevistadas, consistindo para elas em dificuldades a serem trabalhadas em razão
O advento da secularização, de acordo com Costa Catré et al. (2016), nos faz englobar
indivíduo, fato que no campo da psicologia leva a uma espécie de “morte de Deus” (Angerami-
Camon, 2002), sendo este em algum nível evitado, incluindo o que se referiria a este campo no
religiosidade, desde que parta do sistema de crença do cliente (Oliveira & Junges, 2012; Peres
et al., 2007).
O código de ética me diz que as minhas crenças elas não podem ser soberanas em
relação ao meu olhar sobre o outro né, que eu tenho que suspender um pouco pra
cuidar da melhor maneira possível, porque aquele outro tá me chegando frágil,
vulnerável e eu não posso me aproveitar disso.
Psicólogo que entra pra fazer atendimento pra fazer oração, pra contar história de
vida dele de superação, de adoecimento que melhorou [...] adoeceu de câncer, ficou
curado e nossa senhora curou, e vai e leva imagem, quer que o paciente toque na
imagem, que faça orações, usando jaleco, assim, na posição de psicólogo... é... [...].
Ou tipo, do paciente ser ateu e a psicóloga convidar pra rezar... assim, super delicado,
eu acho [...] As dificuldades éticas que podem surgir é a mistura do que é do
profissional com o que é do paciente.
A oração ou o orar junto, entretanto, não é um problema em si, afinal há autores que que
inclusive incentivam que se reze junto com o paciente, obviamente se houver benefício nesta
ação e se o profissional de saúde estiver acordo (Koenig, 2013; Zangari & Machado, 2018). E
claro, desde que esteja radicada na crença e desejo do paciente. Logo, orar ou sugerir orações,
bem como trazer outros aspectos vinculados à religiosidade para o cuidado, só são inadmissíveis
quando não partem do paciente, quando partem do profissional e ignoram o sistema de crenças
É fato que o diálogo entre a Psicologia, que deve ser laica como orientam os
transcendente do humano, são incentivados. Porém, desde que não haja tentativa de impor
qualquer tipo de dogma religioso (Nota técnica Laicidade e Psicologia, 2013), marcando a
cena, mas sim como princípio que deve garantir a diversidade das diferentes expressões
espirituais e religiosas, e a psicologia e a atuação dos psicólogos deve se alinhar a este aspecto
138
técnica para fundamentar e favorecer práticas éticas, compartilhando o receio de que na falta
deste se estabeleçam práticas inadequadas, como induzir algum paciente a uma prática ou
O tabu de se tratar religião nas práticas... qual é o limite entre falar sobre isso e de
repente está evangelizando? Eu lembro que nas supervisões de estágio quando esse
conteúdo aparecia [...] eu até temia que eles descambassem para a evangelização
porque muitos alunos, eles tem práticas religiosas bem ativas... eu já tive alunos
pastores e o grande receio era esse, no setting terapêutico, esta pessoa que esteja
desavisada ou que em algum momento lhe falte a “tecné”, enquanto ética do cuidado
e, ou lhe falte mesmo a compreensão do que fazer e lance lá como carta a a religião
nesse sentido de induzir a pessoa
é um território que tá adoecendo porque o profissional não está qualificado para isso,
então é muito grave, muito grave [...] é, eu sou muito crítica em relação ao nosso
campo, eu acho que nós estamos vivendo uma fase na psicologia muito delicada. É...
a gente tem uma gama enorme de profissionais entrando no mercado com uma
incompetência muito grande [...] as universidades precisam acrescentar isso na
formação dos profissionais, na área da saúde principalmente [...] não dá mais pra
gente vê essa temática como um “up” um “plus” da nossa formação, não deve ser mais,
muitas coisas mudaram no campo da saúde, muitos conceitos foram se alterando, o
próprio conceito de cuidados paliativos né, que teve suas mudanças ao longo do
tempo,e ai? Os profissionais tão acompanhando isso? Não, não estão acompanhando.
É, então, eu acho que precisa se investir mais nisso sabe...
Em razão das demandas práticas e das dificuldades que podem haver na interface da
ensino que ofereça subsídios a atuação dos psicólogos e psicólogas no tocante à espiritualidade
que Psicologia, religião e espiritualidade não se misturam, bem como o de que ciência e religião
não possuem relação (Numbers, 2009). Neste sentido, a formação pode ser um importante
prática em que de fato se pode levantar importantes dilemas éticos. Sobretudo quando não se
respeita a crença ou não crença do paciente, ou ainda quando o impõe ou o induz a seus
referenciais religiosos e/ou espirituais, conduzindo o atendimento a partir deste viés próprio.
Sendo assim, é inadiável a inclusão do tema nas formações dos psicólogos e psicólogas, a fim
Wisława Szymborska
no discurso de cada uma das colaboradoras, todas concordaram neste ponto, que é o que chega
140
mais próximo de uma resposta à inquietação que dispara esta pesquisa: o lugar da
ilícitas, bem como menor prevalência de depressão e suicídio e melhor qualidade de vida e bem-
estar (Lucchetti & Lucchetti, 2014). No entanto, a discussão não se encerra apenas neste campo.
De modo que, mesmo sendo mais expressivos os estudos no campo da saúde mental,
também são relevantes os estudos que associam a religião e espiritualidade à saúde física,
algumas formas de envolvimento religioso (Lucchetti & Lucchetti, 2014), como quando se tem
parecem compartilhar tanto na literatura da área, quanto na fala das colaboradoras, um lugar
enfrentamento da morte e assim só sendo porque parece ser também um elemento para enfrentar
a própria vida.
141
elencados pelos pacientes de acordo com as falas das colaboradoras, no sentido de se tratar de
Geralmente eles trazem, acho que 80% dos pacientes eles trazem algum, algo, não
necessariamente religião né, mas a crença em algo superior, em algo que dá força, e aí
quando eles trazem aquilo eu pego para usar nos próximos atendimentos [...]. Eles
geralmente trazem como demanda, e aí como um recurso de enfrentamento vai surgindo
a espiritualidade
Além disso nos contextos de finitude por vezes acentuam-se as questões ligadas ao
sagrado, aos mistérios, ao intocável, ao transcendente (Kovács, 2007), assim repete-se aqui uma
momentos de grande sofrimento e dor que pode haver uma maior busca pela transcendência
(Genaro Jr, 2003), ou mesmo pela religião, espiritualidade e religiosidade, como trazido por
Olho-de-tigre acima. De acordo Breitbart (2003), 80% dos pacientes em fase terminal querem
e comportamentais utilizadas pelos indivíduos para manejar situações estressantes, que podem
ser estratégias focadas na emoção, isto é, dirigidas à regulação da resposta emocional ou focadas
no problema, através de ações práticas voltadas à solução do evento estressor, a que também se
Tendo em vista, o crescimento dos estudos que demonstram uma relação possível entre
religioso/espiritual (CRE), que diz respeito ao uso da fé, religião ou espiritualidade no manejo
1997), sendo, de acordo com (Panzini & Bandeira, 2007) – importantes pesquisadoras da
positivo de que negativo em situações estressante (Pargament, Smith, Koenig, & Perez, 1998),
e que as pessoas fazem uso do CRE especialmente em situações de crise, diante de problemas
guerras (Panzini & Bandeira, 2007). Há, no entanto, estudos em que o coping religiosos positivo
não apresentou nenhuma relação com o bem-estar físico e psicológico, ao passo que o coping
Sobre os pacientes religiosos e seu modo de enfrentar, que pode estar associado tanto
ao coping religioso negativo, quanto positivo, parece ser mais comum que a religiosidade e
adversidades ou mesmo como recurso potente diante da vida nos atentam para a importância de
cuidado espiritual, bem como as práticas que se dispõem a uma atenção holística ainda
profissional que haja pouca intelecção dos conceitos de espiritualidade, religiosidade e religião,
sendo fundamental um maior entendimento de suas distinções e relações, bem como ações a
fim de incluir cada vez mais esses aspectos na prática e minimizar a distância entre o saber e o
fazer.
para os cuidados direcionados aos pacientes, mas também pode se dirigir como aspecto
cura.
profissional, para enfrentar sua própria impotência, suas limitações, falhas e sua própria
consequentemente em confronto com a sua finitude têm implicações aos profissionais, por
vezes custosas, como o contato com sua própria finitude, além das perdas e lutos vividos.
Porém, neste ínterim são comumente geradas reflexões e aprendizados a partir do sofrimento
Um dos recursos de enfrentamento que eu utilizo pra cuidar da minha dor, do que é
meu, é a minha fé, a espiritualidade, são as minhas crenças...
Minha crença ajuda muito e me traz tranquilidade para trabalhar, hoje em dia eu
tenho prazer de acompanhar pacientes terminais [...] a minha fé faz com que hoje eu
tenha uma tranquilidade maior para conseguir trabalhar
A minha religião faz eu entender a morte de uma outra forma, então a morte é apenas
uma transição, então de acordo com a minha religião existe vida após a morte. Então
isso me traz um bem-estar muito grande, crer nisso é uma coisa que pra mim serve
como um apoio, como um referencial muito importante, entendeu?! Então eu lido de
uma forma muito positiva a questão de terminalidade, de morte, de vivenciar irsso,
sabe?! [...] minha religião realmente me dá uma sustentação muito positiva
A religião surge como uma produtora de sentidos, que subsidia a atuação e que a
sustenta, de modo que suas práticas ou exercício aparecem também como suporte às
profissionais:
Eu tenho orado muito por ela e isso me conforta [...] eu tenho feito muita prece por
ela, que Deus possa aliviar o sofrimento, que possa auxiliar ela de alguma maneira...
Eu acho que as minhas preces me confortam e me ajudam a me manter
emocionalmente organizada para organizar a desorganização dos outros.
Aqui no hospital a gente tem uma capelinha, então, às vezes, eu até gostaria de ir mais,
mas as vezes eu vou lá né, peço sabedoria, luz, dentro do que eu acredito até para a
Fato que se relaciona com o aspecto de que, além de todas as religiões trazerem
mensagens de suporte e salvação, buscam responder as questões básicas do ser humano, e dentre
elas estão as perguntas sobre os eternos problemas humanos do amor e sofrimento, da culpa,
do perdão, da vida e da morte, da origem do mundo e suas leis (Bertachini & Pessini, 2010).
É bem importante, eu vejo como sustentáculo assim de vida [...] quanto mais eu estou
próxima, tanto da minha religião – quando eu tô mais, eu participo de grupo, de Igreja,
146
de tudo – quando eu tô mais atuante, eu me sinto mais tranquila, inclusive assim, pra
trabalhar
Sem dúvida traz um sentido, traz uma tranquilidade, um conforto, porque inquieta
O fato é que lidar com o sofrimento e a dor do outro significa, em maior ou menor grau,
lidar com nossas próprias dores, é sofrer e crescer como ser humano. De modo que, os
na verdade é em grande parte uma estratégia que se adota, nem sempre conscientemente, para
importantes para se estar no contexto de CP diante da morte, reafirmando o desafio que é por
vezes estar neste contexto e não se desorganizar ou fragilizar. E apesar de não haver muitos
Deste modo, é importante que se abra e haja espaços de cuidados aos profissionais que
cuidam de pessoas no final de suas vidas, para que assim cada um possa sair da negação, do
silêncio, da ilusão de onipotência e principalmente para que se possa falar do que se vive e o
que o comove, para que não se percebam sós nesta empreitada, identificando que não é
147
Cabe destacarmos, ainda, outro aspecto significativo que elas revelam enquanto ganhos
conceito de autotrascendência que enuncia Viktor (Frankl, 2010), que diz da capacidade
humana de transcender a si mesma, de transformar-se, não sendo ser pronto ou fechado, tendo
A morte tá o tempo todo, remetendo, emitindo mensagens pra gente e essas mensagens
não nos ajudam apenas a conduzir ao cuidado com o paciente, mas a conduzir a nossa
vida, nossa existência, ao nosso sentido [...] as coisas se tornam mais claras, as
escolhas se tornam mais conscientes quando você tá em contato direto com a morte, e
e, então, ao mesmo tempo que ajuda na condução dos processos deles, nos ajuda, Me
ajuda a pensar sobre a minha vida e a redirecionar o sentido dela [...] é uma
Haja vista que, a morte está sem dúvida entre um dos maiores impulsos ao
espiritualidade isto não é diferente, é através dela que as pessoas se defrontam com a imutável
realidade de que tudo termina. Sendo a finitude e sua consciência a essência do espírito humano
148
(Saporetti, 2009). “O ser humano deseja transcender. Transcender os limites do seu corpo, os
limites da sua alma, conhecer Deus, Alá, Buda, Olorum, o Criador, seja quem ele for ou a si
transformações de si, desde que se esteja aberto para tal. A morte só nos transforma
também desponta como elemento de cuidados para as próprias psicólogas, inclusive em seus
processos de lidar com as demandas do trabalho com a morte, que por vezes são tão
desgastantes. Vasconcelos (2006) nos ensina que “para cuidar da pessoa inteira, é preciso estar
presente como pessoa inteira” (p. 68). E como, então, estar inteiros e inteiras diante do outro?
Lidar com o sofrimento alheio é algo muito desgastante, suscita questões que fazem o
próprio sofrimento vir à tona, aumenta o risco de aparecimento de transtornos de base
psicológica. Para cuidar do outro, é necessário que o trabalhador se cuide e se ache
cuidado (Gomes & Ruiz, 2006, p. 65).
chamam negativas de enfrentamento (Foch, da Silva, & Enumo, 2017), é, todavia, muito mais
geralmente desejável de ser incluído pelos pacientes, sobretudo em nosso contexto brasileiro,
haja vista a marcante presença de elementos religiosos e espirituais e nossa cultura fortemente
149
sincrética (Boff, 2014), elucidando a importância e urgência de que este aspecto possa ser
O percurso em toda esta dissertação nos traz recorrentemente a este ponto, que é: a
de fato se dirige ao outro, mas que é indissociável, ou assim deveria, de um cuidado que seja
de si (profissional da saúde).
Na escuta das psicólogas que têm suas práticas diante da morte foram evidenciadas uma
série de dificuldades, por vezes limites e até preocupações, que vinham junto com dores,
tristeza, com pesar e não raro impotência, mas era no compartir das potencialidades “no apesar
de” de um trabalho como os seus, era no falar da vida que pode mais e que não está restrita a
um processo de adoecimento que os olhos brilhavam, era no estar com o outro e acompanhar o
que há de sagrado, pois humano, em cada história que se reavia o ânimo, por vezes abatido ante
E a espiritualidade neste contexto veio como “linha”, que borda, enfeita, costura e enlaça
na dor, nem sempre só com beleza, mas bela como tudo que é busca há de ser.
150
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Manoel de Barros
Manoel de Barros
Eduardo Galeano
da morte para profissionais de psicologia em contexto de Cuidados Paliativos (CP). Esta busca,
entretanto, passou longe de ser uma linha reta e logo nos levou a muitos outros caminhos, como
talvez seja da natureza das pesquisas compreensivas. Os nossos objetivos foram então faróis a
Gadameriana, que nos forneceu um caminho árduo, mas também generoso. No encontro com
cada colaboradora um horizonte de compreensão novo, que nos permitiu pouco a pouco a
151
aproximação do lugar que a espiritualidade pode ter no cuidado na iminência da morte, cuidado
paliativos. Transitamos então, pelas diferentes concepções de saúde, doença e morte, e ousamos
De modo que se tornou impreterível perguntar mais uma vez: E onde fica a psicologia?
O que cabe à psicologia? Como faz a psicologia? Assim, aproximando-se dos horizontes das
colaboradoras foi se chegando no saber-fazer destas profissionais, e não demorou para que
também nos defrontássemos com os desafios, dilemas e dificuldades de uma prática que propõe
Porém, foi nas potencialidades que a espiritualidade se destacou neste estudo. Exibiu-
se em um lugar principalmente de potência no cuidado do outro e de si. O que pode nos dar a
impressão de que chegamos ao ponto final em resposta ao nosso objetivo geral de pesquisa, e
Todavia, encontramo-nos agora muito mais em um lugar de reticências, como diria minha
reafirmando, a partir dos aprendizados tecidos nesta dissertação, a inadiável necessidade de que
Como se pode então, pelas lentes da psicologia se olhar para a espiritualidade, para a
religiosidade, para o sagrado, para a transcendência sem reproduzir o lugar comum que é o
mesmo que não inclui a espiritualidade em nossas formações? Entendo, assim, ser urgente o
processos formativos, enfatize não apenas seu lugar de potência para o cuidado ao outro, mas
ainda que chame atenção para a potencial importância que pode assumir no cuidado de si.
atravessando. Atravessando-me porque de certo essas palavras todas, que agora a compõe e as
muitas outras que ficaram por dizer guardam e se fazem do desconcerto que a morte e a
espiritualidade produzem sobre mim. E nas trilhas dos caminhos que fui percorrendo até
concluí-la me encontro com o privilégio da assunção do meu pouco saber, do que fica por se
melhorar, ou simplesmente do que não pôde ser, e isto rapidamente me conecta com Galeano,
nesta lembrança, da utopia que pode ser o ato de pesquisar, da utopia que pode ser a busca e o
desejo por compreender. Chego então neste ponto com o horizonte se deslocando junto comigo,
mais uma vez, como algo que não posso de todo alcançar, mas que faz caminhar, mesmo que
ponto de partida.
153
8. REFERÊNCIAS
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166
APÊNDICES
Após ter explicado o contexto da investigação, em termos amplos, ao colaborador, ter pedido
permissão para gravar e ter explicado sobre o TCLE, obtendo a autorização, é realizada uma
breve explicação acerca do procedimento da entrevista. Em seguida, são realizadas questões
para os dados de identificação do participante, conforme se encontra a seguir.
Nome
Idade
Gênero
Estado Civil
Filhos/Quantos
Religião (praticante ou não) / Crenças
Nível de Escolaridade
Tempo de formada
Local de atuação em Cuidados Paliativos
Tempo que atua em Cuidados Paliativos
Abordagem clínica
Iniciada a narração, essa não deverá ser interrompida até que haja uma clara indicação
(coda), significando que o entrevistado se detém e dá sinais de que a história terminou.
Quando o informante indicar o coda, no final da história, poderá ser perguntado se há
mais alguma coisa que ele gostaria de dizer.
Quando a narração chegar a um fim “natural”, surge a fase de questionamento. As
perguntas formuladas com base no interesse da pesquisa (questões exmanentes) deverão
ser traduzidas em questões imanentes (temas, tópicos e relatos de acontecimentos que
surgiram durante a narração), com o emprego da linguagem do informante, buscando
completar as lacunas da história. Essas perguntas devem focalizar principalmente:
Observações:
- o entrevistador deverá fazer um diário de campo especificamente voltado para a
realização da narrativa. Nesse diário, poderão constar informações tais como: como se
deu o contato e o agendamento da entrevista; caracterização do local da entrevista;
169
As questões servem apenas de roteiro para o entrevistador(a). Sua forma pode ser adaptada para
cada entrevistado, sem que se perca a ideia de cada questão. Serão conduzidas como uma
conversa, sem caráter interrogativo.
(identificar qual a compreensão ética que os psicólogos possuem sobre a relação deles com a
questão religiosa ou espiritual de seus clientes/pacientes).
170
- Quais são as dificuldades éticas que podem surgir quando se lida com as questões da
espiritualidade/religiosidade diante da morte. Você poderia exemplificar alguma
situação (pessoal ou de outro profissional).
Anterior à instrução para construção das cenas, fez-se uma breve caminhada dentro da
sala, ao som de música instrumental, com intuito de favorecer a presença das pessoas
no espaço e de facilitar o momento da criação das cenas na sequência.
Cena 1
Solicita-se ao colaborador que feche os olhos e que se deixe envolver por cenas que
criem mentalmente a partir da instrução:
“Construa uma cena na qual uma psicóloga está realizando um atendimento com uma paciente
em cuidados paliativos (sem nenhuma chance de cura). Imagine o tema da espiritualidade
surgindo e a psicóloga com algumas dificuldades para lidar com ele. O que acontece? Em que
contexto do atendimento surge? Quem está trazendo o assunto é o paciente ou a psicóloga?
Que tipo de sentimentos surgem nesta situação? Quais suas dificuldades para realizar uma
boa abordagem? Imagine com riqueza de detalhes essa cena, cujo desfecho não será uma boa
abordagem por parte da psicóloga em função das dificuldades que surgiram com ela. Entre na
cena como se fosse real explorando essas dificuldades”.
Após alguns minutos, solicita-se que se abram os olhos e que se relate a cena com o maior
detalhamento possível. Na sequência desse momento, faz-se um rápido relaxamento, à
semelhança do inicial, e conduz-se à construção de uma outra cena, sob a seguinte orientação:
Cena 2
“Construa uma cena na qual uma psicóloga está realizando um atendimento com uma paciente
em cuidados paliativos (sem nenhuma chance de cura). Imagine o tema da espiritualidade
surgindo e a psicóloga lidando com ele com facilidade. Que situação é esta? O que acontece?
171
Em que contexto do atendimento surge? Quais são os recursos que ela utiliza? De que ordem
são esses recursos? Pessoais? Formativos? Como a psicóloga se sente, a partir deste
atendimento e conduta? Imagine com riqueza de detalhes essa cena, em que há uma boa
abordagem por parte da psicóloga. Entre na cena como se fosse real”.
Pede-se, após alguns minutos, que se abram os olhos e que se relate a cena com o maior
detalhamento possível.
A oficina com as Cenas fecha-se após a discussão do exercício acima, detalhado com
uma avaliação sobre como o participante se sentiu com a experiência, sendo pedido que
sintetize o vivido em uma palavra a ser compartilhada.
Esclarecimentos
Caso decida participar você passará por dois momentos, por uma entrevista, que será
gravada e transcrita e por um outro momento, a ser agendado, de oficina com outro(a)s
participantes da pesquisa.
A pesquisadora garante a realização da pesquisa em ambiente adequado e reservado a
fim de garantir sua privacidade.
Durante a realização da pesquisa poderão ocorrer eventuais desconfortos e possíveis
riscos, suscitados pelo contato com narrativas decorrentes de alguma pergunta da pesquisa que
pode trazer desconforto emocional ou mobilização emocional. Esses riscos poderão ser
minimizados a partir da escuta qualificada de um profissional de psicologia, através do
encaminhamento a um serviço de psicologia, indicado e sem custos pela pesquisadora Ingrid
Raissa dos Anjos Rocha ou pela própria pesquisadora que é também psicóloga.
Os participantes poderão ainda se sentir cansados física e psiquicamente em decorrência
do tempo desprendido e/ou dos conteúdos abordados na pesquisa. De modo que será possível
interromper/pausar o processo caso seja necessário para o participante, havendo o compromisso
da pesquisadora a estar atenta a esse aspecto buscando minimizá-los se possível.
Como benefícios da pesquisa você estará contribuindo para a produção de conhecimento
na sua área de atuação.
Em caso de algum problema que você possa ter relacionado com a pesquisa, você terá
direito à assistência gratuita que será prestada pela pesquisadora Ingrid Raissa dos Anjos Rocha.
Durante todo o período da pesquisa você poderá tirar suas dúvidas entrando em contato
com Ingrid Raissa dos Anjos Rocha, Av. Amintas Barros 3700, e-mail
ingridrdarocha@gmail.com, telefone (84) 99185-3292.
Você tem o direito de se recusar a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer
fase da pesquisa, sem nenhum prejuízo para você.
Os dados fornecidos serão confidenciais e divulgados apenas em congressos ou
publicações científicas, sempre de forma anônima, não havendo divulgação de nenhum dado
que possa lhe identificar. Esses dados serão guardados pelo pesquisador responsável por essa
pesquisa em local seguro e por um período de 5 anos.
Os gastos pela sua participação nessa pesquisa, podem ser assumidos pela pesquisadora
e reembolsado para você se necessário.
Se você sofrer qualquer dano decorrente desta pesquisa, sendo ele imediato ou tardio,
previsto ou não, você será indenizado.
173
Qualquer dúvida sobre a ética dessa pesquisa você deverá ligar para o Comitê de Ética
em Pesquisa – instituição que avalia a ética das pesquisas antes que elas comecem e fornece
proteção aos participantes das mesmas – da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, nos
telefones (84) 3215-3135 / (84) 9.9193.6266, através do e-mail cepufrn@reitoria.ufrn.br Você
ainda pode ir pessoalmente à sede do CEP, de segunda a sexta, das 08:00h às 12:00h e das
14:00h às 18:00h, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Av. Senador Salgado Filho,
s/n. Campus Central, Lagoa Nova. Natal/RN.
Este documento foi impresso em duas vias. Uma ficará com você e a outra com o
pesquisador responsável Ingrid Raissa dos Anjos Rocha.
Impressão
Assinatura do participante da pesquisa datiloscópica do
participante
Declaro ainda estar ciente que na inobservância do compromisso ora assumido estarei
infringindo as normas e diretrizes propostas pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de
Saúde – CNS, que regulamenta as pesquisas envolvendo o ser humano.