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NATAL
2018
Renata Monteiro Garcia
Natal
2018
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
- CCHLA
DOUTORA EM PSICOLOGIA.
BANCA EXAMINADORA
Esta foi a última parte da tese a ser escrita e, apesar de não se tratar de um conteúdo
teórico, sua importância no corpo deste trabalho me parece muitíssimo relevante. Caindo em
lugar comum, mas exatamente por se tratar da verdade, uma tese não se concretiza na solidão.
Ela é atravessada pela alteridade, por uma série de encontros com tantos outros que me
carregando com pegadas na areia e agradeço por sua tão visível força em minha vida.
Ao Junior, que sendo eu intensidade, se faz porto que me acolhe, acalma e fermenta
um amor sagrado. O companheiro que escolhi para toda a vida, com quem aprendo sobre
generosidade, amizade, sorrisos, resistência e força. Às vezes eu desejo a certeza pacata e ele
que apareceram pelo caminho para que eu chegasse sã e salva até aqui. Estamos lado a lado,
na mesma trincheira há 20 anos, escutando Belchior todas as manhãs, fazendo piada da vida,
planos para a revolução e tomando cafés demorados cercados do amor que construímos para
Às minhas filhas Carol e Fefê, que desde tão cedo conhecem os caminhos da
sabem que resumo não tem parágrafo e que todo trabalho tem referência. Vocês são presença,
amor e ternura, sempre nos indagando, se indignando e subvertendo. Minhas mulheres mais
amigas, lindas companheiras “leoas” que me fazem mover e ser intensa nesta vida. “Quantas
páginas ainda faltam?”. Por hoje estas bastam. Gratidão por sua compreensão quando precisei
meu trabalho e a confiança que depositou em mim foram grandes, como ela própria é.
Aprendi muito nesses anos e espero que nossa parceria siga firme para a vida.
acolhida no Nupedia, às orientações tão cuidadosas e essenciais para os caminhos desta tese,
aos vinhos e cafés, artigos e trabalhos e a amizade para uma vida inteira. Sou toda gratidão.
À minha eterna professora Lilia Lobo, que é referência fundamental deste trabalho e
da minha vida. Sempre de portas abertas e telefone pronto, nossas longas conversas foram
Aos professores que gentilmente aceitaram o convite para colaborar com este trabalho
em diferentes momentos de sua feitura. À Cândida Dantas e Ana Vládia pela leitura cuidadosa
considerações na orientação coletiva da Base, pelo cuidado comigo e por sua esperança no
meu trabalho. Finalmente, à Biancha Angelucci, Jáder Leite, Ana Vládia(!) e Herculano
Campos que aceitaram o desafio de compor a banca final. Cada um de vocês tem uma
Aos meus pais Tânia e Helio, minha inspiração e liberdade. Este trabalho foi possível
graças a sua fé em mim e todo apoio e amor incondicional que me proporcionaram. Nas
vindas até aqui ou em nossas idas até aí, dois mil quilômetros não foram páreo para todo o
amor e suporte que me deram. Nos momentos mais difíceis vocês estavam comigo.
Aos meus irmãos Simone, Rodrigo, André e Alessandra, gratidão pelo amor, pelas
acolhidas, pela ajuda imprescindível no cuidado com as crianças durante todos esses anos e
por torcerem tanto por mim. Vocês foram fundamentais, temos tanto a comemorar!
Neste abraço apalavrado de agradecimento enlaço João e sua preocupação comigo e
com as páginas de um trabalho que lhe pareciam uma imensidão. Seus olhos de atenção me
inspiraram. A você e Júlia cantadores de uma rima tão única, “tia”, todo meu carinho.
acolhe e cuida em manter a criticidade em nossos corações e trabalhos com tanta competência
e lucidez. Foi um privilégio, certamente. Assim, agradeço também nos nomes de Ludmila,
Keyla, Pablo, Fellipe, Bel, Luana, Joyce, Dani, Fernandinha e Carmen. Fui abraçada, recebida
com todo carinho, incluída nos trabalhos e nas comemorações, compartilhei da vida e da
Gabriela e Noêmia, pela acolhida sempre pronta, as risadas, as leituras, as manhãs de estudo e
de afeto, as viagens para Natal e por terem sido meu grupo de doutorado em João Pessoa
durante estes anos. Cada uma das mulheres deste grupo foi um pedaço de mim neste
caminhar.
Ao Lapsus e cada um de seus membros que faz nosso trabalho acontecer de forma tão
coletiva e brava! Sou grata pelos encontros acadêmicos que me proporcionaram continuar
estudando e produzindo para além da tese. Com vocês aprendo a cada dia mais sobre estar
atenta e forte. Nós somos máquina de guerra e especialistas em Karaokê. Obrigada por serem
casa e abrigo!
projetos de que me orgulho tanto e multiplicam nossas redes de amizade e parceria. Neste
período de afastamento me levaram junto em tantas atividades que agregaram muito em meu
caminhar.
À Taty que me inspira e ensina tanto. Nessa trajetória de doutorado compartilhamos
angústias e aflições, mas também rimos, brindamos e superamos. Ela me viu com olhos de
admiração e eu colhi forças para continuar. Sororidade em ato, afeto e política. Obrigada,
querida!
À Mariana, minha amiga antes que eu mesma pudesse imaginar. Todo carinho,
que estão crescendo juntas. Nosso calendário de festas ampliando e um amor em espiral
infinito trançando nossas famílias. Grata desde as visitas que descansavam meu coração até a
tempo depois e, agora, em meio a uma dívida imensa de cafés que nos prometemos sempre,
À Ludmila que foi amiga solidária nesse trilhar da escrita. Sua força e perseverança
nas horas a fio debruçadas sobre sua tese no apartamento ao lado serviram de exemplo e
amizade.
À Nara, por sua fortaleza e sensibilidade, que tem o sorriso mais lindo que eu conheço
e por nos faz crer que outro mundo é possível. Obrigada por compartilharmos as dúvidas, as
angústias, as certezas e as esperanças. A melhor sócia que eu poderia ter nessa vida.
em nossas vidas. Certamente a astrologia não está preparada para uma sinastria como a nossa,
de uma amizade cheia de afeto e sincronias, energias combinantes e reconfortantes. Grata por
sua torcida, suas acolhidas, nossas comemorações infinitas e por dividir e multiplicar tanto
amor.
Aos queridos Isadora, Igor e Gustavo por sua doce presença, momentos de partilha,
risadas, música, poesia e suavidade. Nossos encontros sempre permeados pelas melhores
Aos ex-alunos e sempre amigos Adriana, Aline e Joanderson que não mediram
cuidadosos com as demandas na Secretaria. Tenho muito orgulho de ser aluna deste
Programa.
Lista de Siglas
Lista de Figuras
Figura 5. Distribuição do BPC para pessoa com deficiência por faixa etária .......................120
Lista de Tabelas
Tabela 1. Benefícios concedidos por espécie segundo as grandes regiões ........................... 121
Tabela 6. Relação entre ano e total de matrículas regulares nas escolas da rede pública ..... 146
Tabela 7. Relação entre ano e total de matrículas especiais nas escolas da rede pública .... 147
Tabela 8. Quadro Descritivo sobre a Inclusão Escolar dos participantes da pesquisa ........ 150
RESUMO
ABSTRACT
Medicalization is a social issue impacting different aspects of daily life. One of its most
noticeable dimensions is the prevalence among children, especially regarding behavior control
and its pathologization. Preliminary data collection conducted by the author, which motivated
the present study, identified an increase of 100% in the number of children enrolled at public
schools in a municipality in the interior of Paraíba who were diagnosed as mentally ill
between 2010 and 2014. Moreover, an increase of 400% in the access to the Continued Cash
Benefit Program for people between the ages of 4 and 17 was verified. This thesis aimed at
analyzing the relationship between the phenomenon of rapid increase in the number of
children diagnosed as mentally ill, the pathologization of children and the access to social
policies in this context. The study is based on dialectical materialism so as to analyze the
historical and political processes which fostered the emergence and development of these
issues. The methodology included document and field research. In the first stage, current
legislation and official reports on the local reality and the structure of social policies in the
fields of health, education and social welfare were analyzed. In the second stage, five semi-
structured interviews were conducted with the parents or guardians of the children diagnosed
with mental disability living in the municipality focused on in this study. A total of nine visits
to institutions which assist the population regarding the policies considered in this study were
carried out and the observations recorded in a field diary. The collected material was
categorized and analyzed considering the theoretical framework in order tounder pin the
discussions and conclusions of this doctoral thesis. Conclusions indicate that the complex
relationships between the diagnoses of mental disability, the pathologization of children and
social policies are shaped within a network of financial and political values which we named
as Difference Economy. The importance of the Continued Cash Benefit Program to the
survival of many families was also verified, as well as the need for critical reflections on the
policies and their implications in keeping a socially unequal model and the current social
order.
RÉSUMÉ
La médicalisation est une problématique sociale qui touche différentes sphères de la vie
quotidienne. L’une de ses facettes les plus visibles est son incidence sur la population
infantile, en particulier en ce qui concerne le contrôle des comportements et leur
pathologisation. À l’origine de ce travail figure une étude préliminaire de l’auteure constatant,
pendant la période 2010-2014, une majoration de 100% du taux d’enfants diagnostiqués
comme présentant des déficiences mentales parmi les enfants inscrits dans les écoles
publiques d’une ville de l’intérieur de l’État de Paraíba. Une augmentation de 400% de
l’accès au Bénéfice de Prestation Continue pour les personnes de 4 à 17 ans est enregistrée
pour la même ville et dans le même temps. C’est pourquoi cette thèse a eu pour objectif
d’analyser les relations existantes entre le phénomène de la multiplication des diagnostiques
de déficience mentale chez les enfants, la pathologisation de l’enfance et l’accès aux
politiques sociales dans cette réalité. Pour ce faire, nous nous sommes appuyée sur le
matérialisme dialectique comme fondement théorique pour l’analyse des processus
historiques et politiques qui ont permis l’émergence et le développement de la problématique
de la recherche. Sur le plan méthodologique, nous avons eu recours à la recherche
documentaire et au travail de terrain. Dans un premier temps, nous avons analysé la
législation et les rapports officiels sur la réalité locale et la structure des politiques sociales
dans les domaines de la santé, de l’éducation et de l’assistance sociale. Dans un second temps,
nous avons réalisé cinq entretiens semi-structurés avec les responsables des enfants résidant
dans la ville étudiée et diagnostiqués comme présentant des déficiences mentales. Par ailleurs,
nous avons effectué un total de neuf visites dans les institutions qui reçoivent la population
dans le domaine des politiques étudiées ; leurs observations ont été inscrites dans un carnet de
terrain. L’ensemble des données recueillies ont été catégorisées et mises en perspective avec
la théorie, de façon à alimenter les discussions et conclusions de cette thèse. Les conclusions
montrent comment les complexes relations entre les diagnostiques de déficience mentale, la
pathologisation de l’enfance et les politiques sociales orientent un réseau de valeurs
financières et politiques que nous désignons comme « Économie de la Différence ». Sont
constatées également l’importance du Bénéfice de Prestation Continue pour la survie de
nombreuses familles, ainsi que l’importance de mener en parallèle une réflexion critique sur
les politiques et leurs conséquences sur le maintien d’un modèle d’inégalité sociale et de
l’ordre social en vigueur.
Introdução
O problema de pesquisa que será apresentado neste trabalho surgiu de minha prática
O trabalho levado adiante com os alunos de graduação deu destaque às falas daquelas
documentos oficiais apregoam como necessário para uma educação de qualidade, enquanto a
Entretanto, um dado que não seria tão relevante naquele projeto, mas que nos chegou
de matrículas nas escolas públicas de crianças cujos laudos apontavam como resultado
Assim, tomada por minha trajetória acadêmica, reconhecer naqueles números algo que
não pode ser naturalizado, remontou aos estudos que me dedico desde a graduação a respeito
da história social da infância. Localizo o momento em que ao ser aceita pela professora Lilia
Lobo em seu grupo “Devir criança”, me tornei pesquisadora, ainda no terceiro período da
Brasil no início do século XX, somou ferramentas teóricas para esta trajetória, que ao longo
dos anos foi incrementada com minha prática profissional e exercício docente.
mereceria investigação mais cuidadosa, teve direta relação com o entendimento de que a
escola é uma instituição histórica, inserida em contextos sociais, culturais e políticos, cujas
produções não podem ser entendidas fora da relação com estes contextos. As práticas
_ na escola e fora dela_ ocupam lugar de destaque nos debates daqueles que trabalham com
uma Psicologia crítica. Afinal, o que estes números poderiam revelar sobre aquela realidade?
números de acordo com o diagnóstico de cada criança matriculada. Tais dados não foram o
apresentava muito distinto de outras deficiências descritas naquele levantamento. Ainda que
“deficiência mental” mostrou alterações que se mostravam gritantes. Tal explicação pode ser
2
Termo utilizado nos documentos acessados junto à Secretaria de Educação do município e que por não se tratar
da forma adequada e em conformidade com as políticas atuais será usado sempre com aspas em nosso texto.
22
160
140
120
100
80
60
40
20
0
Sind. Def. Def. Autism Trans.D
Def. Baixa Cegueir
Def.Me Asperge Surdez Auditiv múltipl o esintegr
Física visão a
ntal r a a infantil ativo
2010 73 1 8 0 3 3 4 0 1 0
2011 100 2 7 0 4 4 5 2 3 0
2012 126 5 12 3 3 8 14 3 7 2
2013 140 4 5 2 2 5 11 5 4 0
nosológico com tamanho crescimento. Foi possível que este estranhamento viesse permeado
e certamente este foi um lugar privilegiado e que facilitou a inserção em lugares e com as
município, até o desenvolvimento desta pesquisa, era de estrangeira, que ia e vinha nos
horários de trabalho e que pouco circulava no cotidiano da cidade. O trajeto que leva à
universidade faz circular no centro e nos principais comércios, às vezes trajetos diferentes nos
levam a ruas com casas, janelas grudadas à calçada e gente circulando. Mas suas vias nem
sempre bem calçadas e poucos atrativos para o olhar forasteiro, não eram tão convidativos
Portanto, foi nos números que busquei mais familiaridade com aquela realidade: a
(2010): com cerca de 42 mil habitantes sua economia gira em torno do cultivo e
Entretanto, o indicador mais chamativo é de que 39,4% de seus habitantes estão abaixo da
em nosso país é histórica e, ainda que não seja o único fator determinante para a desigualdade
social, é fator constituinte de uma realidade com tanta disparidade, como veremos com mais
origem destes laudos e que caminhos a partir de sua obtenção seriam possíveis para estas
estágio de elaboração do projeto a ser apresentado no doutorado, foi possível uma reunião
24
documentos eram elaborados pela Fundação Estadual Centro Integrado de Apoio ao Portador
com a Saúde (CID 10). Todos os laudos acessados, naquela ocasião, apontavam Deficiência
3
Sua função e cargo não serão descritos para preservar sua identidade.
4
No ano de 2014, em função da Nota Técnica Nº 04 / 2014 / MEC / SECADI / DPEE deixou de ser obrigatória
a entrega de laudo médico para a garantia do direito ao atendimento educacional especializado ou para
declaração no Censo Escolar. (https://goo.gl/y6BWJX)
25
BPC/Escola
250
200
150
100 BPC/Escola
50
0
2010 2011 2012
comprovação se estabelece a partir da renda familiar, que deve ser menor que 1/4 do salário
por este benefício tornou-se grande, e não só direcionada a crianças, mas a pessoas de todas as
idades. Tal fato era conhecido porque o Ministério Público solicitou um levantamento de
levantamento estaria sendo realizado com a ajuda dos agentes de saúde do município e foi
disparado por dois elementos importantes: a) a grande quantidade de processos que chegam
FUNAD/PB. Tratava-se de três ônibus da prefeitura que saem quase diariamente para atender
26
esta população. Cabe esclarecer que as pessoas que se dirigem à fundação, são aquelas que já
Durante este encontro, o contexto além de números, ganhou rostos e histórias que
delinearam melhor o contexto a ser investigado, mas uma das falas marcou profundamente a
importância e o desejo pela pesquisa ora proposta: “A gente trabalha com crianças muito
comprometidas e carentes. Elas não têm o mínimo de dignidade para viver, mas mantêm com
pensar que quase 40% dos habitantes vivem abaixo da linha da pobreza, número maior que a
nacional, representada por 7,4% (ONUBR, 2017). Em números absolutos representa cerca de
12 mil pessoas no município e que este também é o numero estimado de habitantes que
Educacional, de maneira informal e não proposital (seja na universidade, nos relatos de alunos
sobre o cotidiano, seja nos locais da cidade em que moradores falam sobre a rotina) sabe-se
que é comum a prática de recomendar para a vizinha ou amiga o medicamento que o filho está
tomando e até emprestar alguns comprimidos para que outra criança se “comporte melhor” ou
fique “mais calma”. As mesmas recomendações sobre a obtenção do benefício social circulam
entre as mães5, bem como onde buscar ajuda, seja na Funad, no CAPSi da cidade vizinha, ou
5
Utilizamos “mães” apenas para nos referirmos às cuidadoras de crianças com deficiência que em sua grande
maioria são as mulheres, mães ou avós, e por isso mesmo, as figuras que mais aparecem nos discursos do senso
comum, mas recusamos a lógica de culpabilização e estigmatização da mulher, como bem pode ser visto ao
longo do trabalho.
27
imprescindíveis na realidade brasileira ao se levar em conta o alto consumo desta droga e suas
consequências para a saúde das crianças, o lucro e as engrenagens movidas pela indústria
banalização do diagnóstico por profissionais da saúde, entre outras problemáticas (Moyses &
medicações são direcionados às famílias pobres, que buscam por sua vez no BPC/LOAS uma
estratégia de sobrevivência.
trata-se de eficiente estratégia de controle de grupos sociais que nega direitos fundamentais e
garante por outro lado intervenções que mantém submissos e docilizados os sujeitos.
estão em jogo. Nesta rede, em que os especialistas e o Estado apontam para a tutela e
submissão dos sujeitos, para a classificação e regulação dos grupos, as famílias criam
estratégias de sobrevivência.
Seria possível afirmar que existe uma relação entre o aumento de crianças
multifacetadas da “questão social”6, que de modo geral, já poderiam ser enumeradas aqui
políticas sociais fragmentadas no atendimento das demandas sociais e a busca por parte destas
também possíveis processos de resistência presentes nesta realidade, esse fenômeno precisa
demandou a apreensão de sua aparência, da forma como se apresenta na realidade, para que,
nem sempre visíveis na aparência. O objeto de análise compõe uma totalidade histórica que o
materialidade concreta dos processos envolvidos e estabelecer suas relações com uma
Tomando como referência uma cidade do interior da Paraíba, quais as conexões entre, a
6
O fundamento das expressões da “questão social”, de acordo com Behring e Boschetti (2011): “se encontra nas
relações de exploração do capital sobre o trabalho. A questão social se expressa em suas refrações e, por outro
lado, os sujeitos históricos engendram formas de seu enfrentamento” (p.51).
29
infância?
Assim, o objetivo geral do presente estudo foi analisar as relações existentes entre o
infantil em idade escolar com diagnóstico de deficiência mental nos aspectos sócio-
mental, que acessou o BPC/LOAS, percorre junto aos setores, equipamentos e serviços
sociais em âmbito nacional e local, funcionamento dos equipamentos disponíveis e foco desta
pesquisa e números relativos à realidade a ser caracterizada. Com esta etapa, obtivemos uma
do contexto em que se inserem nossas análises e que dialogaram com os dados obtidos em
outras etapas.
30
estavam solicitando através de processo formal, o BPC/LOAS. Além disso, visitas aos
A etapa das entrevistas será descrita a seguir e destaque-se que houve muita dificuldade
em conseguir acessar estas pessoas. A primeira possibilidade seria conseguir contatar as mães
em 2017 quando o trabalho de campo deveria ser aprofundado, o CRAS estava com as
Em função das eleições municipais no ano de 2016, houve troca de gestão da cidade no
início do ano de 2017, o que ocasionou a rotatividade de muitos cargos, tanto nas Secretarias,
quanto em órgãos e serviços ligados ao poder público municipal. O novo grupo político que
assumiu o governo era oposição à antiga gestão, o que significou para esta pesquisa, que as
pessoas que ocupavam as coordenações atuais não eram tão receptivas e impunham algumas
dificuldades para minha aproximação, pois entendiam que, se havia algum contato
alunos que compuseram meu grupo de iniciação científica, para que me apresentassem a
31
pessoas na cidade que teriam o perfil necessário para a pesquisa. Uma de minhas ex-alunas
me acompanhou em todas as entrevistas. A primeira entrevista foi com uma vizinha de sua
rua e, ao final, pedi que esta me indicasse outra pessoa, o que se repetiu em todas as
vontade não só para abrir o portão e me receber em suas casas, mas para estabelecer um
parâmetros éticos em pesquisa e ambos seguem como apêndice desta tese. Neste estágio,
estruturado, fosse capaz de elencar em seus itens a coleta de informações como: o perfil
com deficiência mental, que acessou o BPC/LOAS, percorreu junto aos setores, equipamentos
dados necessários para dialogar com os demais e subsidiar o debate que contemplasse os
durante reuniões, registro dos encontros com pessoas, detalhes do cotidiano e outros aspectos
relevantes que poderiam não ser contemplados com as outras estratégias utilizadas. Diversas
inserções em instituições e reuniões com responsáveis pelas mesmas_ tais como a FUNAD,
32
reunião com responsáveis por setores públicos e visitas ao CRAS do município, tiveram no
caderno próprio; em segundo lugar, assim que encerrava alguma atividade, sejam entrevistas,
visitas a instituições, reunião com pessoas, participação em grupo, etc, buscava-se um local
reservado e iniciava-se uma gravação de voz com dados sobre a atividade realizada (tempo de
impressões tanto sobre pequenos detalhes percebidos, quanto aos momentos mais nítidos e
pesquisa, ou seja, não ficou acumulada para um momento final. Isso colaborou sobremaneira
com o substrato teórico. A estratégia utilizada para este empreendimento foi a criação de
eixos temáticos que contemplassem o debate proposto pelos objetivos deste trabalho. Isto
pode ser claramente conferido pela divisão proposta no terceiro capítulo, cujos subitens
da assistência social e da saúde, o acesso ao BPC e finalmente, a articulação desses eixos com
Neste sentido, a construção dos capítulos teóricos foi proposta em torno dos debates
No segundo capítulo, buscou-se delinear o campo das políticas sociais no que tange ao
principalmente caracterizando os serviços que deveriam ser ofertados, servem como subsídio
para o debate empreendido nas análises do capítulo seguinte. Deu-se ênfase principal no
O trabalho de tese, a partir das análises empreendidas sobre a complexa relação entre
engrenagens que movimentam aquela relação. Tal conceito foi pensado ao longo da
investigação proposta, é inédito, transversal aos aspectos estudados e será melhor definido
após a descrição das categorias elencadas no ultimo capítulo, como forma de elucidar as
descrições feitas até ali e concretizar uma linha de raciocínio que se estabeleceu ao longo do
trabalho.
34
No tocante aos resultados, esperamos que as reflexões desse trabalho possam contribuir
com uma análise crítica a respeito da lógica da patologização da infância localizando-a como
uma estratégia de controle dos comportamentos desviantes, bem como colaborar para o debate
sobre a importância das políticas sociais. Outras contribuições foram sugeridas nas
CAPÍTULO 1
_________________________________________________
medicalização uma polissemia, já que seu estudo perpassa diferentes disciplinas como a
geral: significa transformar um problema que antes não seria médico em uma desordem,
A definição nestes termos colabora para a apreensão de uma dimensão mais geral do
compreender o conceito não trata apenas de conhecer uma história da medicina, já que, à
primeira vista, poder-se-ia supor que transformar questões não-médicas em médicas, teria
36
relação direta apenas com este campo de saber. Trata-se de compor a complexidade deste
processo com a própria produção do normal e do patológico, implicada com outros campos do
conhecimento.
crítica se dirigia à suposta neutralidade e objetividade nos estudos acerca das relações sociais.
comportamentos não poderia ser compreendida como parte de uma natureza humana, mas
determinada por uma realidade histórica implicada na fabricação de certo controle social.
Na esteira deste debate, o comportamento desviante pôde ser entendido como forjado
discursos da instituição médica. Algumas das principais referências que poderíamos aludir:
psquiátrico” (1973) e “Os Anormais” (1974) todos de Michel Foucault, além de “O Mito da
seu cerne, negando todas as formas de tratamento tradicional da loucura, e seus seguidores
acreditavam que a loucura é construída, fabricada pelas relações de poder e também a partir
teóricos biomédicos.
conceito teórico que dará corpo a uma análise problematizadora das definições médicas de
desvio e seus efeitos na sociedade, surge pela primeira vez em 1968, em um texto de Jesse
como problemas médicos que são, como resultado, cada vez mais passados aos
No campo da Filosofia, o termo medicalização foi utilizado pela primeira vez por Ivan
Illich (1926 – 2002) em seu livro “Nemesis Medica” (1975). Na parte II deste livro, há,
estabelecendo a medicalização como ponto nodal para a compreensão dos interesses e forças
livro:
todas lãs relaciones sociales. Em los países ricos, la colonización médica ha alcanzado
Hay que reconocer sin embargo el carácter político de este proceso, al que
principalmente por sua referência temporal. Artigos que elaboram um panorama histórico, o
utilizam como indicação de que inaugurou o uso do termo medicalização, sem que
um texto de grande relevância, que apresenta debates contundentes e importantes ainda hoje,
contendo dados a respeito do sistema de saúde da Europa, dos Estados Unidos e da América
Latina, que podem se configurar como dados históricos e comparativos com o cenário atual.
Sua análise teórica expõe a complexidade do tema diante de uma sociedade industrializada
daí em diversos âmbitos sociais. Da mesma forma, aponta a alienação dos indivíduos sobre os
processos de saúde como artifício necessário para a ascensão do poder médico no cotidiano da
Outros trabalhos do autor são considerados essenciais nos estudos a respeito do tema da
medicalização e ainda hoje, é uma referência internacional para a discussão desta temática.
(Murgia et al, 2016; Faraone, Barcala, Torricelli, Bianchi & Tamburrino, 2010; Barbiani,
Quase trinta anos mais tarde, o mesmo autor publicou o artigo “The shifting engines
trabalho pelas mudanças ocorridas da década de 1980 aos anos 2000. O autor aponta que nos
anos 1980 é possível elencar três aspectos principais que definirão a medicalização naquele
momento: a predominância do saber médico como lugar de poder e controle das populações
através da manutenção do conhecimento médico como lugar da verdade, que ele denomina de
‘medical colonization’. Além disso, o interesse de alguns grupos e movimentos sociais que
torno de especialidades que legitimavam para si a intervenção sobre certos aspectos da vida,
como, por exemplo, a obstetrícia e a supressão das parteiras, bem como a pediatria ligada não
possível uma virada conceitual que ampliou a compreensão do conceito. De acordo com os
ou seja, da prescrição e uso de fármacos. Devemos incluir o controle médico sobre a vida
como a faceta preponderante, e, também, o papel dinâmico dos múltiplos atores sociais que
para que o fenômeno possa se transformar, bem como as análises sobre ele. Os trabalhos de
Illich e Conrad, desenvolvidos na década de 1970, serão revistos pelos autores em décadas
De acordo com Nogueira (2003), na década de 1990, Illich fez uma autocrítica das
uma vertente que não teria sido pensada inicialmente: a busca do corpo sadio como um
empreendimento que é construído não só pela Medicina, mas pela mídia, indústria e comércio
processo foca no indivíduo a função de buscar incessantemente este ideal. Influenciado pelos
trabalhos de Foucault, afirma que todo o investimento sobre o corpo gera uma necessidade
e a abordagem neoliberal nas políticas de saúde (principalmente no caso dos Estados Unidos),
atualidade.
41
saúde. Nesse sentido, usam o termo biomedicalização para abranger um novo modo de
medicina, saúde e doença, por mudanças nas formas de viver e de morrer, pela
tecnologias são cada vez mais intrincados, e por um novo e cada vez mais acirrado
De acordo com Conrad (2005), as mudanças apontadas nesta perspectiva não se tratam
transformação de questões não médicas em questões médicas. Aquilo que se apresenta para
além deste núcleo principal deve ser compreendido como incrementos sociais.
42
(1975 e 2007). Além disso, apostam na importância de que os temas trazidos pela
do debate.
diretamente ligado ao sucesso que a intervenção médica obteve e continua tendo nos
também parte do giro conceitual. Ou seja, o entendimento de que as pessoas não estão apenas
estão ativos nesta relação (Conrad, 2007; Calrke, 2010; Zorzanelli, Ortega & Bezerra Junior,
participação dos sujeitos sociais neste processo, e só a partir daí reconhecer a hegemonia do
modelo médico e ampliar nossas reflexões sobre ele. (Murgia et al., 2016).
processos de medicalização por escolha, para além dos impostos pela autoridade
médica, bem como dos diferentes usos das categorias diagnósticas, em prol de
2014, p. 1864).
Segundo a análise de Conrad (2005), três aspectos serão relevantes para compreender
cuidado.
biológico sobre o corpo humano produz novas drogas, intervenções e procedimentos. Suas
reflexões apontam que a relação entre uma doença e o uso da medicação está diretamente
legalmente.
que o indivíduo poderia desenvolver em função de sua genética. Decorre daí, a criação de um
intervenções ligados aos cuidados e transformações com o corpo, à disposição física e sexual,
cerebrales. Las pruebas genéticas pueden “etiquetar” a las personas con riesgo de
cada vez mais disposto a investir em não sofrer, estar dentro dos padrões estéticos, manter-se
produtivo e sociável. Exemplos deste mercado e consumo em larga escala são: o consumo de
no tecido social; a saúde como um mercado que envolve atores diversos como médicos,
así como las clases y cantidad de problemas que incorpora. Por lo tanto, la
saberes por las que se lleva a cabo, sino también en sus consecuencias respecto de la
salud, bienestar y supervivencia para los sujetos y las comunidades. (Epele, 2008, p.
84)
campos da vida humana são determinados pelas construções sociais de cada contexto. Um dos
exemplos a que o autor recorre é o fato de não serem constatados, na época de elaboração do
45
artigo, na Indonésia, nem na China, casos de anorexia. Aponta ainda que o modo como o
nascimento é submetido ou não aos cuidados médicos dependem de como cada cultura
De acordo com Natella (2008), quadros que não eram conhecidos há quarenta anos,
tais como: anorexia, transtorno do pânico, síndrome pré-menstrual, por exemplo, demonstram
sociais e históricas geram novas formas subjetivas que podem ser de sofrimento, reação e
O compromisso com uma tese que utilize o conceito de medicalização como uma
este conceito. Tomar as diferentes vozes que ampliaram esta discussão colabora para
quando apontam que o conceito de medicalização deve estar localizado teórica, histórica,
cultural e politicamente.
científica e mais especificamente, médicas. Compreensíveis apenas pelo olhar da ciência, tida
produtividade, da estética que escapa aos padrões, do envelhecimento e de questões que não
disponível no fazer de certos profissionais. Em nossa sociedade, esta dinâmica está marcada
pela hegemonia médica, mas não se pode perder de vista que outros saberes sobre o ser
humano, tais como a Psicologia, estiveram (e estão) presentes no mover das engrenagens que
milagrosas, entre outros. Ainda faz circular pelos meios midiáticos, ideias, discursos e
propagandas. Compondo este tecido, subjetividades que se inclinam a este modo de produção
mercado, mas de modelos de ser e estar que dizem respeito a comportamentos, bem-estar,
saúde. Entretanto, o acesso a estes bens de consumo não se dará da mesma maneira para todas
estratégias principais para tratar as condições e as condutas que julgam indesejáveis, ofensivas
tange a esta discussão, o termo medicalização usado pelo autor aponta na mesma direção que
47
propomos neste debate, ou seja, processo em que um problema social é tratado como uma
desordem química, um problema individual, em que não se leva em conta as questões sociais
em que se inserem os sujeitos. A medicalização dirigida aos pobres encontra-se neste limiar
apontado por Wacquant, cujos efeitos precisam ser discutidos e problematizados, nas palavras
do autor:
São políticos, em primeiro lugar, na medida em que resultam das lutas pelo poder
resultam de escolhas que têm a ver com a concepção que temos de vida em comum.
visam deslocar a atenção dos contextos socioeconômicos que produzem as desigualdades. São
formas de controle que atribuem aos indivíduos classificações sobre seus comportamentos,
tidos como desviantes. Wacquant (2013) exemplifica este estado de coisas citando o trabalho
de Arline Mathieu7, sobre como a medicalização colaborou com a remoção física dos sem-
teto em Nova York na década de 1980. Categorizar pessoas pobres, que vivem nas ruas, que
são usuárias de drogas, como doentes e incapazes de decidir sobre sua vida figura como
sistema escolar e à docilização dos corpos são encaminhadas para tratamento médico. Assim,
tido como padrão e questionamentos à norma produzida; nas ocasiões em que algo falha ou
escapa ao discurso científico; quando se esbarra nas questões éticas da produção científica, ou
medicalização.
1.2.Normatização da Infância
definição sobre esta categoria seria um grande erro conceitual. Afinal, compreendê-la
Estudos clássicos de autores como Ariès (1981), Costa (1999), Lobo (2008), Rizzini
(2011), Rizzini e Gondra (2014), Rizzini e Pilotti (2009), apontaram a infância como uma
categoria histórica, que deve ser compreendida de acordo com os sentidos produzidos para ela
em uma sociedade, em um dado momento da história. O modo como cada grupo social
culturais, políticos e econômicos. Neste sentido, delimita-se o que é ser criança nestes
Philippe Ariès (1981) nos confronta com cenários da Idade Média em que a infância
não era tida como uma fase diferenciada da vida adulta, a criança não possuía papel destacado
49
na vida familiar, não havia cuidados específicos para com ela. Se os índices de mortalidade
infantil eram muito grandes, a morte das crianças era encarada com naturalidade. Enfim, em
sua detalhada narração a partir de documentos, quadros, livros, tapeçarias, entre outras fontes
históricas, Ariès expõe diferentes práticas relacionadas ao cuidado com as crianças, bem
merece atenção especial, teve sua emergência em meados do século XVIII, na Europa, em
função da mudança de paradigma que marcará a transição da Idade Média para a Sociedade
positivista de que a vida social poderia ser regida por uma ‘verdade absoluta’, a que somente
o conhecimento científico teria acesso, foram pilares fundamentais da nova era que se
tornar-se eficiente e lucrativo, o que possibilitou que o campo da medicina social ganhasse
força e pudesse legitimar sua inserção no meio familiar e ditar padrões sobre a criação, a
século XX. Naquele momento, a criança passou a ser foco de preocupações por parte dos
especialistas e do poder público por conta de três aspectos principais: a elevada taxa de
médico para a manutenção da higiene física, mental e moral do núcleo familiar. (Rizzini,
infância constituiu-se a partir de um discurso nacionalista que delegou à criança uma posição
de bem econômico do país: a criança pobre seria o futuro da nação na medida em que se
demanda por políticas voltadas para a infância pobre. Afinal, a criança vista como futuro da
nação gerava preocupações de cunho econômico: por um lado representava investimento para
que se transformasse em dócil trabalhador, por outro lado, um gasto, na medida em que
poderia se tornar em um fardo para a sociedade como sujeito infrator das leis ou um
‘vagabundo’ que geraria custos aos cofres públicos. Tais discursos vão se valer de estratégias
de prevenção, educação, recuperação e repressão para concretizar seus fins. Como esclarece
Rizzini (2011): "Para se ter como moldar a criança com propósito de civilizar o país, era
A apropriação da infância como alvo de discussão que deve ser assistido e protegido
como futuro da nação evidenciava a tentativa de um roteiro de construção de um país que não
se basearia em políticas voltadas para a base dos problemas sociais, tais como os salários
baixos, pouco ou nenhum acesso à terra, mecanismos opressivos de controle social, saúde
familiar, ditando normas e modelos a serem seguidos, docilizando as classes ditas perigosas,
com o objetivo final de preservar a ordem social, protegendo o futuro dos filhos da elite.
ideia da criança como futuro da nação e como ser moldável, para o bem ou para o mal.
Traçou-se, desta maneira, uma percepção a respeito da infância que a colocava em lugar
privilegiado com relação à construção da nação. Salvar a infância pobre de todos os perigos
que punham em risco uma boa formação física e moral tornou-se o lema daqueles que viam
significava formar uma população que construiria uma pátria condizente com os padrões de
civilização moderna ditados pela Europa. Salvar a criança era salvar o país.
O movimento que se constituiu com o objetivo de salvar a criança tem sua origem
consequências funestas para a sociedade como um todo. Salvar essa criança era uma
O lugar privilegiado do discurso médico sobre a infância e a família tem uma história
Devemos lembrar que o capitalismo produz um olhar sobre o corpo, objetivando-o como
força de trabalho, força de produção. Assim, também a disciplina médica investe sobre este
corpo útil, afinada com os ideais modernos de controle dos indivíduos (Foucault, 1992).
Moderna.
movimento sanitarista eram compostos pelos mesmos membros: médicos eminentes que
dos corpos e do ambiente em que eles viviam, sendo os principais focos de discussão as
cidadãos do conhecimento sobre si e seu cotidiano. Era necessário afirmar o saber médico
Deste modo, a figura do expert no cotidiano das pessoas e das cidades, constituiu-se na
intercessão de interesses voltados para a transformação de uma sociedade pautada nos moldes
terapêutico. Este espaço não esteve sempre sob o controle destes profissionais, ao contrário,
solicitado por sua direção (que geralmente era coordenado por irmandades religiosas, cuja
sistemática e comparada nos e dos hospitais, a classe médica voltou para si a responsabilidade
(...) se faz possível a individuação dos doentes, pois, ao se dividir o espaço, pode ser
desigualdade entre pobres e ricos. Aos primeiros restava buscar auxílio na instituição e se
privilegiada, portanto reservada aos mais abastados, bem como a clínica como prática de
2000).
O poder médico toma como eixo de atuação dois extremos: o indivíduo e a população,
organizar tais detalhes, ou seja, apreender e compreender as relações do corpo com o tempo, o
espaço e outros corpos, constituiu uma base fundamental para a Medicina e outras disciplinas
minuciosa dos pequenos movimentos, das mínimas partes tornou-se ferramenta indispensável
para o cientista, implicando todo um conjunto de técnicas e processos de saber que visam uma
verdade sobre o corpo em vários níveis: análise, controle e inteligibilidade. Assim, passamos
55
de uma medicina ocupada unicamente com a cura, para uma que se torna disciplina da
médicos brasileiros como objeto de seu interesse e cuidado. De acordo com Engel (1992), a
especializados, teve início no começo do século XIX com os estudos de Philippe Pinel (1745
que possibilitou uma perspectiva organicista para a noção de doença mental. Entretanto,
naquele momento, a infância não constituía alvo destas preocupações da Psiquiatria. A figura
médicos, surgiu na Europa no final do século XIX e chegou ao Brasil, no início do século XX.
(Muller, 2005)
Durante quase todo o século XIX, vigorou a certeza de que quem enlouquecia era o
considerar sua origem moral (sofrimentos, perdas, paixões), não remontavam aos
muito menos no tempo da infância _ a loucura não era um desvio da norma da idade
elencar diversos textos de sua autoria (1992, 2000, 2007, 2008, 2016), apontam que a ideia de
uma infância que será categorizada e submetida a normas regidas pelo saber científico,
podem dar contornos à compreensão da emergência dos saberes e práticas que incidirão sobre
brasileiro. São eles o caso de “Victor Aveyron” (Lobo, 2016) e os estudos sobre
vivendo nos bosques de Aveyron, como um garoto selvagem, no final do século XVIII. O
menino foi entregue aos cuidados de Jean-Marc GaspardItard (1774 – 1838), médico
diagnóstico de Victor e de seu tratamento, ao qual cada um se colocou com versões diferentes,
histórico.
Para Pinel, o menino se equiparava aos loucos de Bicêtre. Em sua concepção baseada
no inatismo, o ser humano já nasceria com suas limitações e, portanto, não haveria cura e
trabalhos que denominava de “medicina moral”, escrevendo relatórios que descreviam tanto
os pontos que considerava avanços, quanto os que indicavam o insucesso de seu trabalho. As
possibilidade de intervir sobre aspectos ligados à deficiência e atrasos. Seria possível atuar
naquilo que aparece como anormal, a partir do investimento sobre o que seria mais primitivo:
57
as sensações e os movimentos. Este pulo conceitual é descrito nas palavras de Lobo (2016) da
seguinte maneira:
Séguin (...) apresenta a noção de desenvolvimento não mais como uma propriedade
normalização desta etapa da vida. A partir daí, estabeleceu-se a infância como etapa passível
de intervenções e cuidados com relação à alienação. Ela própria como suscetível às doenças
A construção de um pavilhão direcionado apenas para crianças fez parte de uma série
Hospício. Com relação às crianças, tornou-se preocupante o fato de estarem misturadas com
como também da própria classe médica. As novas estratégias utilizadas nos Hospícios
dos hospitais parisienses, responsável pela separação entre adultos e crianças no Hospital de
visava à aprendizagem dos hábitos mais simples aos mais complexos, ajustando as crianças
famílias nos cuidados com as crianças, tornou-se dominante naquele contexto social. Em 1904
anormalidade para esta categoria, derivaram não apenas o hospício, como outras instituições
econômicos preponderantes para a detecção de crianças anormais: por um lado, o uso da mão-
de-obra de seus pais e cuidadores que dispensavam tempo atendendo às crianças e impediam
aqueles sujeitos de trabalhar e produzir para o capital; por outro, atentar para a anormalidade
era evitar, no futuro, o fardo social de perigos e degenerescências (Donzelot, 1980, Lobo,
Portanto, o hospício não foi o único a servir a estes fins. Também a noção de
periculosidade associada à criança pobre e abandonada produziu instituições com vistas à sua
recuperação e regeneração. Para este objetivo, serviu muito bem a associação entre os
discursos médico e jurista, que produziram a categoria menor, atribuída à infância pobre, que
Esta elaboração foi possível na medida em que o crime foi tomado como
comportamento desviante. Na esteira desta lógica, o discernimento do sujeito sobre seu ato
estava em jogo. Portanto, a compreensão do desvio seria passível de verificação pelo médico,
não apenas para determinar o tratamento e as suas condições, mas o seu a priori, ou
seja, prevenir o perigo pela detecção antecipada de fatos possíveis de ocorrer, para agir
da infância pobre no Brasil está marcada pela construção de categorias ligadas à anormalidade
liberais, entrava em curso. Colaborou para estas mudanças a ascensão dos especialistas
ditando, a partir de preceitos científicos, os padrões sobre os modos de ser, estar e viver que
desapropriação do saber popular e introdução do saber médico no cotidiano dos grupos sociais
e dos indivíduos. O controle sobre o corpo e a saúde se estabeleceu através de estratégias que
apontavam para a necessidade de regulação das famílias pobres e, portanto, dos trabalhadores
distintas ordens e diferentes intervenções, que, afinal, apontarão para o mesmo objetivo que
seria controle e regulação dos indivíduos dentro da dinâmica social estabelecida (Bianchi,
2015).
À infância pobre, como elemento econômico, (para o bem ou para mal, como vimos
instituições filantrópicas em que eram vistas como passíveis de cuidados que garantissem um
emergência da criança anormal. Conceito que não é natural, possui uma história e uma
configurações outras e que fabricam a lógica da medicalização da infância nos dias atuais.
a mesma, apontamos que sua emergência naquele contexto histórico marca duas posições
importantes: a primeira de que ao se tratar de algo que não é natural, pode, portanto, ser
especialista sobre a infância, tal fenômeno pôde ser observado nos contextos de países
figuras de infancia subsidiarias de estas explicaciones. Entre fines del siglo XIX y la
segunda década del siglo XX, en Europa, EEUU y América Latina, y desde espacios
como ferramenta estratégica, especialmente no interior das escolas, uma de suas principais
atuações.
A expansão das redes escolares e o surgimento das primeiras classes especiais nas
alvo dos olhares de especialistas que os viam como modelos de ambiente em que deveriam
crescer as crianças: cercadas das condições propícias para a infância e educadas segundo
escola deveria ter como objetivo o corpo forte, sexual e moralmente regrado, através da
adequados à nova ordem social. Por isso, tornar a educação mais “científica” significou inserir
diferentes e inadequados ao sistema. Nas palavras de Lobo (2007) “a passagem pela escola
passou a ser, então, momento áureo da detecção dos anormais mediante toda a sorte de
escolar, consolidaram seu espaço no ambiente escolar amparados pelos discursos e métodos
científicos desenvolvidos nas décadas anteriores. Ao mesmo tempo, deram suporte a uma
prática clínica “psi” voltada para a adaptação das diferenças e desvios entre os alunos. Além
Mas a exclusão dessas crianças não se deveu apenas às práticas dos testes psicológicos
da grande maioria das escolas no país e a degradação ainda maior que se observa
atualmente no ensino público têm, até hoje, sua contrapartida num subproduto: as
crianças e as consequências de não seguir as regras ditadas pelos experts, exerceram, e ainda
exercem, grande influência entre pais, educadores e a população em geral. O modelo médico e
as terapêuticas associadas a ele têm ampliado cada vez mais sua jurisdição, campos de
exemplo, ganham cada vez mais legitimidade nos processos de produção de diagnósticos,
cobrando-se das famílias “uma postura ativa na preservação da saúde e do ambiente como se
vai mal no processo de ensino-aprendizagem (Patto, 2005; Souza, 2002). Afinal, considera-se
que o sujeito-aprendiz deve ser passivo e submisso, calmo e resignado, atento e obediente. O
que se apresenta a mais ou a menos pode ser a diferença que deve ser diagnosticada, tratada e
Diversos são os trabalhos que debatem a dificuldade da Escola para lidar com a
a regras, enfim, enquadrados em um padrão de aluno: modelo e fôrma que não comportam as
Reverbera, portanto, nos campos da saúde e da educação o critério intimista que baseia
existência.
uma consulta minuciosa aos manuais psiquiátricos em vigor, pois revelam uma enorme gama
expressões subjetivas que parece que todo e qualquer comportamento está passível de ser
categorizado.
A ampla gama de sintomas presentes nos manuais bem como a forma diagnóstica
permite que clínicos de outras especialidades, que não a psiquiátrica, possam medicar
única causa a desordem orgânica, e que a prescrição medicamentosa seria a solução ideal para
conter o sofrimento humano. Esta lógica biopolítica transforma questões de ordem social,
política, econômica, cultural e histórica, em uma suposta relação causal orgânica, ou seja, de
complexas, multifatoriais e marcadas pela cultura e pelo tempo histórico, são reduzidas
à lógica médica, vinculando aquilo que não está adequado às normas sociais a uma
contexto social de forma ampla e complexa. Tais mecanismos se tornam ainda mais graves
quando direcionados a crianças e famílias pobres. (Moyses & Collares, 2002, 2006, 2013;
Ribeiro, 2014).
67
estabelecidas, bem como daquilo que escapa desses limites, formam um só movimento.
(Canguilhem, 2009; Ribeiro 2014). Segundo Moysés e Collares (2013, p. 44) “Vivemos a Era
dos Transtornos. Uma época em que as pessoas são despossuídas de si mesmas e capturadas-
rejuvenescidos ou reinventados”.
da lógica medicalizante, que deverão ser sanados individualmente. (CFP, 2012, p.17)
repressoras sobre as drogas ilegais, legitima o crescente consumo das drogas lícitas
Brasil, por exemplo, o metilfenidato, substância dada para crianças e adolescentes com
caixas vendidas em 2000 para dois milhões de caixas em 2010, inserindo o Brasil no
68
segundo maior consumidor dessa droga no mundo, perdendo somente para os Estados
críticos a respeito da medicalização. Por isso, trazê-lo neste momento, apesar de não ser
atividades que exigem um envolvimento cognitivo, e uma tendência a passar de uma atividade
a outra sem acabar nenhuma, associadas a uma atividade global desorganizada, incoordenada
que os instrumentos de diagnóstico destes Transtornos são questionáveis, que o Brasil ocupe o
segundo lugar mundial no consumo de metilfenidato e, mais ainda, que a Escola sustente
relação direta com esta produção (Moyses & Collares, 2002 e 2006).
este é recebido pela Escola constitui-se importante analisador da relação entre Escola, Saúde e
berlinda de um debate sobre políticas públicas de saúde, educação e atenção à infância. Para
pela ANVISA, sobre a prescrição e o consumo deste medicamento no Brasil, nos anos de
férias escolares. Cabe destacar, ainda, que na seção de conclusões, o estudo ressalta a
de TDAH:
A partir da estimativa de gasto direto total das famílias brasileiras com a aquisição
direta. O padrão estabelecido para o sucesso escolar quando não alcançado pelas
Kamers, 2013).
Nervoso Central que teria como objetivo melhorar a concentração, reduzir o cansaço e
que este medicamento pode trazer dependência química, pois tem o mesmo mecanismo
publicações sobre o TDAH, no período de 1980 a 2010, avaliou que grande quantidade
De acordo com revisão sistemática publicada pela Cochrane8 (2015), não há certeza de
diminuição do apetite.
8
Instituição não-governamental que reúne diversos pesquisadores no mundo para realizar revisões sistemáticas,
objetivando disponibilizar a melhor evidência possível sobre determinado assunto. Os profissionais de saúde
utilizam essa base de dados como apoio a tomadas de decisões.
(http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/14651858.CD009885.pub2/epdf/abstract)
71
conhece bem essas reações: boca seca, falta de apetite, dor no estômago. A droga
crianças ficam mais baixas e também essa droga age no peso. (2014, p.1)
Importante ressaltar que, em 2014, a cidade de São Paulo instituiu o Protocolo do uso
Infância”. Lançado no ano de 2015, seu texto faz uma importante contextualização histórica e
assim como apontado no Brasil. Além disso, no que diz respeito ao consumo do
naquele país, em diálogo com os trabalhos desenvolvidos por aqui, podem nos ajudar a
ser enfrentada por nossa sociedade. É muito preocupante a evidência de que o uso de
que, mesmo diante da frágil sustentação científica, tanto da existência dos transtornos para o
qual a droga legal se dirige, quanto para a eficácia do uso do medicamento, mesmo assim, se
da sociedade, não deve ser resumida à eficácia ou não da droga, ainda que seja parte
O importante alerta a respeito dos objetivos e interesses desta instituição foi elaborado por
coleta de material genético de crianças e seus pais, com o intuito de investigar a relação gene-
qualquer detecção de desvio do normal pode ser verificada, controlada, contornada. Ainda
prevalece uma perspectiva biologizante de que organismo apenas reage às interações com o
74
ambiente, garantindo neste discurso médico que o controle das reações poderia ser feito
Além disso, também está presente nesta problemática a ação da indústria farmacêutica
profissionais que prescrevem em boas quantidades seus produtos. Estão em jogo não apenas
as questões financeiras ligadas aos ganhos da indústria farmacêutica, por exemplo, mas
também o fato de que o uso das drogas lícitas torna os sujeitos mais alienados em relação ao
Nascimento, Coimbra e Lobo (2012) apontam a estrita ligação dos projetos veiculados
por este Instituto às práticas eugênicas e o modo como elas se atualizam: “O levantamento de
da vida, que recaem, sobretudo, nos filhos da pobreza.” (p. 94). Assim, repetem nos projetos a
lógica de que as escolas são aliadas na investigação junto a crianças e famílias que precisam
se submeter à pesquisa em saúde e educação para dispor do saber especialista sobre suas
vidas.
especialismos (o olhar negativo da falta), entre eles a Psicologia. Exibem um traço perverso
que é apontar uma falta na criança, que deve ser controlada e em nome do cuidado
Saúde10 para problematizar a lógica que transforma questões de ordem social, cultural e
Vale ressaltar que a produção científica sistematizada sobre o tema também tem
ocupado espaço nos periódicos cadastrados em bases de dados renomadas. Tanto em âmbito
internacional, quanto nacional, o que se percebe com uma busca preliminar é o crescente
Objetivando consubstanciar estes apontamentos, realizou-se, para fins desta tese, uma
medicalization no espaço de busca, utilizando-se o filtro keyword, com base no critério de que
trabalhos publicados em revistas científicas apresentam sempre uma versão do resumo como
9
medicalização.org.br
10
O Fórum foi lançado no ano de 2010, durante o I Seminário Internacional “A Educação Medicalizada:
Dislexia, TDAH e outros supostos transtornos”, em São Paulo. De acordo com a descrição do site oficial do
Fórum:“Durante o lançamento do Fórum foi aprovado o Manifesto que, nesta ocasião, obteve a adesão de 450
participantes e de 27 entidades. Este documento destaca os objetivos do Fórum, suas diretrizes e propostas de
atuação.” (Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade , 2010) Entre as entidades encontram-se o
Conselho Federal de Psicologia, o Conselho Federal de Farmácia, Sindicatos, Associações, Faculdades,
Organizações da Sociedade Civil, entre outros.
11
De acordo com a Elsevier, editora da base de dados: “trata-se da maior base de dados de resumos e citações de
literatura revisada por pares, com ferramentas bibliométricas para acompanhar, analisar e visualizar a pesquisa.
Scopus contém mais de 22.000 títulos de mais de 5.000 editores em todo o mundo, abrangendo as áreas de
ciência, tecnologia, medicina, ciências sociais e Artes e Humanidades. Além disso, contém mais de 55 milhões
de registros que remontam a 1823, dois quais 84% possuem referências que datam de 1996.”
(https://www.elsevier.com/__data/assets/pdf_file/0010/245818/Scopus-Quick-Reference-Guide-PT.pdf)
76
continentes.
Os resultados obtidos foram significativos, ainda que seja necessário atentar para o
fato de que se trata apenas de uma busca preliminar e que os referidos trabalhos precisariam
de leitura criteriosa para que pudéssemos ter mais precisão nas análises. Além disso, muitos
plataforma Scopus.
160 1978
1980
140 1985
1990
120
1995
100 2000
2005
80 2006
2007
60 2008
2009
40 2010
2011
20
2012
0 2013
2014
Ano de Publicação
2015
12
Dados obtidos em 28/05/2017, retirados de: https://www.scopus.com
77
Outro filtro foi adicionado nesta busca: área de conhecimento. Neste item, as primeiras
a serem enumeradas são as seguintes, com seus respectivos números de trabalhos associados:
(142).
mesmos para as duas palavras: 290 trabalhos listados, no período de 2007 a 2013. No caso
desta plataforma, como os trabalhos podem aparecer mais de uma vez na listagem,
consideramos relevante destacar que o período de tempo das publicações a respeito do tema,
acompanha a tendência de que tal temática ganhou mais visibilidade recentemente nas
discussões científicas.
que diz respeito apenas à produção brasileira no nível de pós-graduação. O termo utilizado foi
1996 a 2016. O gráfico abaixo detalha a relação entre o ano e a quantidade de publicações:
78
100
1996
90
1997
1998
80
1999
2000
70
2001
60 2002
2003
50 2004
2005
40 2006
2007
30
2008
2009
20
2010
10 2011
2012
0 2013
Ano de Publicação 2014
2015
13
Dados obtidos em 28/05/2017, retirados de: bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/
79
Sudeste, 3 no Norte e 7 no Nordeste. As áreas de conhecimento são diversas, tais como Saúde
Entre algumas representantes poderíamos chamar a atenção para Lygia Souza Viegas,
indiretamente_ estavam divididos no eixo Salvador - São Paulo nos últimos anos.
importantes profissionais com o Fórum, no ano de 2013, o que apontou uma cisão entre o
das mais importantes na área e historicamente reconhecidas por sua militância na temática,
14
https://www.despatologiza.com.br/
80
contornos mais estáveis na medida em que ligados a grupos de pesquisa nas universidades. A
ruptura dos grupos não significou a criação de uma oposição, ambas divulgam as atividades e
conhecido por sua atuação na Luta Antimanicomial, desenvolvendo com seu grupo de
pesquisa trabalhos e eventos acerca do tema. Ainda no ano de 2017, a realização do Seminário
Internacional “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas”, contou com convidados como Robert
Whitaker e outros destaques internacionais e nacionais. Tal atividade não teve relação direta
com o Fórum, ainda que o mesmo tenha divulgado em suas redes sociais o evento15, mas
conta com o apoio do Despatologiza e a presença das pesquisadoras Maria Aparecida Moysés,
O breve panorama abordado até aqui colabora para ratificar a compreensão de que os
debates a respeito da medicalização tornaram-se mais volumosos no início deste século. Neste
sentido, atenta-se para a representação que as discussões promovidas neste campo ganham,
15
O que não quer dizer que não haja relação entre o grupo do professor e o Fórum, já que Paulo Amarante foi
convidado do Seminário Regional do Fórum, realizado na Universidade Federal Fluminense no mês de setembro
do mesmo ano.
81
diagnóstico de deficiência mental como mais uma das facetas do processo de medicalização
“deficiência mental” como uma categoria que possui uma história e, portanto, deve ser
comportamental” (p. 149). Tais noções eram atribuídas a desordens no funcionamento das
estruturas orgânicas dos sujeitos que geravam déficit intelectual, social e afetivo.
termo que constitui a emergência da categoria “Deficiência Mental”, foi categorizado como
A trajetória histórica desta classificação remonta não a uma categoria estável que
passou por um longo processo de transformação, mas ao contrário, aos usos que se fizeram
designar valor e intervenções sobre grupos de pessoas a quem eram atribuídas certas
coletivos. Na esteira desta dinâmica, as existências individuais deveriam ser concebidas como
compartimentada da vida: uma ciência para cada objeto, entre estes objetos o homem. O
83
desenvolvimento das ciências humanas e sociais, neste cenário histórico, esteve atrelado à
perspectiva intimista e investigando causas biológicas e individuais para o adoecer e não das
relações com o coletivo e das condições sociais, políticas e históricas de existência. O que
inaugura formas de controle e previsão asseguradas pelo papel do especialista a serviço dos
interesses hegemônicos: A pergunta passa a ser “o que eu tenho?”, ao invés de “o que fizeram
por uma nova sensibilidade emergente na Sociedade Moderna. O controle social sobre os que
não se submetem à razão capitalista deve imperar para garantir a ordem das cidades. Os
sujeitos incapazes de trabalhar, produzir, inserir-se nas dinâmicas sociais previstas pela lógica
divisão que lhe permite rejeitar, como num outro mundo, delimitado pelos poderes
sagrados do labor, que a loucura vai adquirir este estatuto que lhe reconhecemos. Se
existe na loucura clássica alguma coisa que fala de outro lugar e de outra coisa, não é
porque o louco vem de outro céu, o do insano, ostentando seus signos. É porque ele
atravessa por conta própria as fronteiras da ordem burguesa, alienando-se fora dos
medicina mental como uma racionalidade que atendia a diversos interesses da lógica
Ao enveredar por esta temática, Castel (1978) discorre sobre os modos como a
emergência da Psiquiatria serviu a uma série de interesses sociais de controle e tutela, dentre
eles a segregação como lócus de neutralização da loucura, representado pelo aparato asilar,
apenas uma etapa aparente de uma evolução nosológica em curso, anterior, portanto,
A medicina mental articulou-se aos interesses dominantes que, por sua vez,
encontraram na competência médica solução para suas próprias dificuldades. Castel (1978)
demonstrou como no século XIX a experiência de novas práticas gerenciadas pelo Estado - e
científico e jurídico sob o amparo da medicina mental. Os asilos são tomados como
instituições terapêuticas de tratamento moral cujo fim é a educação de caráter especial, o que
social e familiar.
perpassavam a administração pública através das exigências de gestão e controle dos asilos.
86
a tutela da Psiquiatria.
Tal modelo de ciência médica teve grande influência sobre a realidade brasileira. Lobo
(2008) alerta sobre as especificidades dos contextos históricos do Brasil e da França e que,
guardadas estas diferenças, é possível afirmar que os trabalhos desenvolvidos nos asilos
franceses com as crianças ditas idiotas serviram de inspiração para os médicos brasileiros, no
uma racionalidade que apontava mais para a preocupação com características morais do
nosológico. De acordo com a autora: “será possível concluir que não foi a criança louca, mas
ampliada por Séguin, que foi seu aluno e precursor de uma escola de reeducação para crianças
apoiada na ideia de humanizar os que, apresentando uma condição selvagem, podem ser
propunham uma reversibilidade dos quadros sintomatológicos, já que se acreditava que isso
não era possível, mas a tentativa de alcançar algum controle das funções sensoriais para
(Cabral, 2011).
A detecção das crianças anormais não se justificava inicialmente apenas por motivos
profiláticos (evitar que se tornassem parasitas ou perigosas), mas também por motivos
infantil, foram visíveis ao longo do século XX. Além dos subsídios criados pela psicometria,
Psiquiatria.
consolidação de diagnósticos.
impulsionar e consolidar a psiquiatria infantil que no início dos anos 1900 estava às
objeto, patinava no empirismo, sem uma elaboração teórica que lhe emprestasse rigor
determinando o resultado esperado para cada faixa etária. Ao obter certos resultados, seria
possível, então, estipular o tempo de atraso mental em que se encontrava cada sujeito. O
déficit intelectual a partir dessa medição era atribuído a uma deficiência mental que por sua
Belo, Caridade, Cabral e Sousa (2008) afirmam que a noção de inteligência foi o
infância que escapa da norma. Estudiosos como Jacques Lacan (1901-1981), Maud Manoni
espectro teórico que concorriam com as explicações organicistas sobre a “deficiência mental”.
Neste sentido, a terminologia debilidade mental foi amplamente usada na clínica psicanalítica
(Cirilo, 2008).
das políticas, práticas e direitos das pessoas com deficiência. Ao longo de mais de cem anos
chamado retardo mental foi designado para atribuir esta condição e, em 2007, estabeleceram-
A doença mental entra em crise dando lugar aos distúrbios mentais: a doença
refere-se ao corpo e não à mente. À mente seria mais propício considerar como
desenvolvimentais trouxeram em seu bojo a necessidade de, entre outras coisas, distanciar-se
justificativa paira sobre a perspectiva de que: “a avaliação realizada é de facto, sobre factores
analítico que o da mente ou mental, que é mais global” (Belo, Caridade, Cabral, & Sousa,
2008, p. 8).
diferença, entendida como falta, doença, anormalidade. Além disso, importa reconhecer na
história os embates sobre a narrativa e a luta por direitos das pessoas com deficiência como
contradições sociais implicam na constituição de um fenômeno que não pode ser considerado
apenas pela sua expressão individual, mas na sua implicação coletiva e política. A produção
de um diagnóstico não se faz de forma asséptica e neutra. Passa, sobretudo, pelas fronteiras
desenvolvimento, são constituídas por pessoas com deficiência, sendo que metade destes são
No caso do Brasil, o IBGE realizou, nos censos de 2000 e 2010, levantamento acerca
deficiência, 8,3% possuíam “deficiência mental”19. Já no ano de 2010, este índice foi de 1,4%.
período. Em 2000, seguindo a orientação da OMS, foi utilizada uma escala de gradação de
17
Estudo realizado em 147 países, com representatividade de 95% da população mundial.
18
O termo utilizado pelo IBGE foi deficiência mental, por isso repetimos seu uso.
19
A maior proporção se encontrava na região nordeste, especialmente os estados do Rio Grande do Norte,
Paraíba e Piauí.
91
Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM) é um dos materiais
mais utilizados para orientar os diagnósticos entre médicos da área da saúde mental, após a
contemporânea. Sua publicação mais recente data de 2013 e, apesar de ter influência relevante
na área da saúde e de ser considerada a “bíblia da psiquiatria”, sua existência sempre esteve
(expressão usada na época e que perdurou até 1980); o DSM-II, publicado em 1968, contava
com 182 categorias; o DSM-III divulgado em 1980 possuía 265, quando revisado em 1987 e
denominado DSM-III-R este número aumentou para 292 diagnósticos (nova expressão
utilizada); o DSM-IV lançado em 1994 tinha 297 transtornos (nova denominação) e sua
A quinta versão do DSM foi lançada em 2013 e é apontada como fruto de mais de
doze anos de estudo e seu resultado estaria apoiado numa perspectiva de colaborar de forma
mais segura para aplicação em pesquisa e na prática clínica. Novos capítulos e agrupamentos
2014)
92
mas um déficit funcional que envolve tanto elementos intelectuais quanto adaptativos. Nesse
sentido, o teste de inteligência não poderá ser o único abalizador do diagnóstico, senão
acrescido por uma avaliação que leve em conta a adaptação do sujeito às demandas cotidianas
e sociais.
A análise negativa do DSM-V vinda de Allen Frances, psiquiatra que dirigiu a equipe
acordo com entrevista para o jornal El Pais, o autor do livro “SavingNormal”(2013) afirma
e por isso muito amplas, além do jogo de interesse do mercado das indústrias farmacêuticas
mais diversas queixas que a família, a escola, ou o próprio médico podem entender como
necessárias de sofrerem intervenção através da medicação. Sendo assim, não há uma droga
específica para o transtorno, mas podem ser associados diversos medicamentos de acordo com
Mamanguape. Depreende desta breve análise que os diagnósticos de “deficiência mental” não
93
podem ser problematizados sem que se leve em conta as condições materiais de vida daquela
elencar o acesso às políticas disponíveis para aquele grupo social, os interesses que envolvem
podem ser incluídas em serviços e programas disponíveis nas políticas de educação, saúde e
CAPÍTULO 2
_________________________________________________
Como visto em sessão anterior, a infância é uma categoria histórica que emerge em
determinado contexto e as crianças passam a ser reconhecidas como sujeitos sociais, para as
(...) entendemos que as práticas sociais desenvolvidas no campo das políticas sociais
práticas sociais que a orientam, define também o lugar dos sujeitos que vão, ao longo
A reflexão sobre as políticas dirigidas à infância no Brasil pode ser pontuada a partir
do final do século XIX, quando se inicia em nosso país uma preocupação com os cuidados
acerca daqueles sujeitos e sua relação com a organização social. Não existia, até aquele
momento, uma legislação ou práticas de Estado voltadas exclusivamente para a infância, mas
as que se organizaram no início do século XX, tiveram origem nas primeiras discussões e
liberais e positivistas de ordem social, a infância_ especialmente a pobre_ passou a ser o alvo
central nos debates políticos, acadêmicos e científicos, figurando como elemento econômico:
95
vista como investimento para o futuro, seja como mão-de-obra, para compor uma massa de
trabalhadores submetidos ao mercado e à ordem social, seja como dispêndio para o Estado, no
como futuro do país e que precisaria ser cuidada e afastada das influências que poderiam
corromper seu desenvolvimento. Para tanto, as práticas desenvolvidas estavam pautadas, por
preocupada com a infância pobre abandonada, tida como vítima da família e da sociedade.
Por outro lado e compondo com a primeira, medidas de controle jurídico, de responsabilidade
do Estado, voltadas para os chamados delinquentes, considerados ameaças para a vida social.
Menores. A Legislação figura como um dos elementos produzidos na época e que na prática
A impressão que se tem é que através da lei em questão procurou-se cobrir um amplo
assistenciais, enveredou por uma área social que ultrapassava em muito as fronteiras
Ao longo do século XX, a categoria “menor”, tida como uma referência no trato com a
políticas voltadas para esta população, tendo a periculosidade e a prevenção como eixos
centrais de atuação. Não se trata de produzir transformações nas condições de vida ou acesso
Capital.
Durante quase um século esta distinção marcará as políticas para a infância, atingindo maior
Serviço de Assistência a Menores - SAM (1941). O primeiro voltado para proteção materno-
infantil, com programas que focavam a criança pequena, pobre e que possuía família e cujas
tinha como foco central “os abandonados e delinquentes já inseridos no circuito da exclusão
social” (Nunes, 2013, p. 110). As práticas definidoras desta tendência serão a reclusão, o
educacional, cujas ações são coordenadas pelo Ministério da Educação e Saúde.” (p. 282)
a questão do “menor” passou a ser tratada como uma questão de segurança nacional. Tal
97
lógica era sustentada pelo argumento do combate ao inimigo interno, ou seja, qualquer pessoa
ou situação que não se ajustasse à ordem vigente era considerada um perigo ao ideal de vida
amplamente influenciada pela Doutrina de Segurança Nacional. Além disso, as fortes críticas
histórico.
Em 1979, foi formulado um novo Código de Menores, que também influenciado pela
forma de enfrentar os efeitos da exclusão social, que eram refletidos no aumento de crianças e
jovens abandonados e infratores. Não se tratava, portanto, de cuidar de sujeitos cujos direitos
básicos eram negados, mas de intervir, através do controle social da pena, no conflito
instalado. “O novo Código via as crianças como doentes sociais que, por estarem fora dos
Foi também na década de 1970 que a pesquisa e a análise científica na área da infância
defesa da transformação das políticas voltadas para este grupo. Além disso, a mobilização de
98
resistência e embate que disputarão as novas produções no campo legal e das políticas sociais.
participação da população na gestão, tais quais os Conselhos20 (Behring & Boschetti, 2011;
Scheinvar, 2009).
legislação anterior, pautada na situação irregular, assentará seus alicerces na ampla política de
práticas que devem ser dirigidas a esta população. A exclusão da expressão “menor” desta
nova concepção imprime um caráter universal às políticas e seu formato integral, prevendo a
3º a legislação afirma:
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-
se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes
liberdade e de dignidade.
20
De acordo com Gomes (2003): “Os conselhos constituem-se normalmente em órgãos públicos de composição
paritária entre a sociedade e o governo, criados por lei, regidos por regulamento aprovado por seu plenário, tendo
caráter obrigatório uma vez que os repasses de recursos ficam condicionados à sua existência, e que assumem
atribuições consultivas, deliberativas e/ou de controle” (p. 10).
99
(ECA, 1990)
os que cometem atos infracionais. Tais ações, articuladas no campo da garantia de direitos,
pela realidade econômica e política, criam barreiras para a efetivação concreta de uma nova
esta cria _ o ECA_ são a encarnação de um “dever ser” que se propõe universal, mas
expressa uma forma de soberania que pode ser transformada de acordo com os
interesses em disputa, por ser o espaço da legalidade um espaço de guerra. (p. 71)
especialmente as dirigidas à infância, devem apoiar-se nas concepções derivadas daquela para
desenvolver suas ações. Entretanto, concordamos com Bering e Boschetti (2011) que afirmam
que:
100
A distância entre a definição dos direitos em lei e sua implementação real persiste até
os dias de hoje. Tem-se também uma forte instabilidade dos direitos sociais,
um campo de possibilidade que se abre frente aos embates históricos entre trabalhadores e
capital. Afinal, tais embates têm sua origem na própria estrutura do sistema capitalista, na
medida em que a vida social, regida pelos interesses da exploração do capital, será também
contexto das desigualdades e problemas gerados por ele. (Yamamoto & Oliveira, 2010).
A luta cotidiana por melhores condições de vida e mais dignidade segue a contramão
dos interesses do capital, sempre focado na maior exploração possível, visando o lucro e não o
enfrentamento das desigualdades, que como visto, são estruturais. As políticas adotadas pelo
Estado são compreendidas como estratégias de enfrentamento a esta questão social, que é
tratada de forma fragmentada e setorializada, de modo que, como nos chama atenção Behring
Com relação ao campo das políticas destinadas à infância, ainda que o ECA se
histórico e político de nosso país está permeado pelas contradições impostas por uma
sociedade que ainda reproduz a perspectiva da menoridade em seu cotidiano e cujas práticas
para o atendimento universal, mas por vezes são instituídas com foco específico na infância,
centralizando seus interesses neste grupo. O que queremos dizer é que nossa tentativa de
traçar um desenho sobre estas políticas não tem a ousadia de descrevê-las ou debatê-las cada
uma em profundidade. O que se pretende é chamar a atenção para o fato de que: em primeiro
lugar, o ECA institui uma nova legalidade sobre o reconhecimento destes sujeitos, o que
demanda novas políticas voltadas para este grupo e, em segundo lugar, que a fragmentação
das políticas vistas sobre setores compartimentados como educação, saúde e assistência nos
possibilitariam visualizar de que maneira estas ações se encontram voltadas para a infância
controle)
saúde de assistência social pautadas na nova legislação brasileira são marcadas pelos
democratização das ações, mas também pela fragmentação das políticas, descontinuidade e
insuficiência de Programas que, afinal, não são capazes de se configurar como reais
estratégias de enfrentamento à pobreza. (Yamammoto & Oliveira, 2010, Silva e Silva, 2010)
Educação Nacional [LDB] (1996), que prevê a regulamentação da educação escolar. Redigido
102
em 92 artigos e dividido em nove títulos, o documento passou por alterações ao longo dos
Frigotto (1997) aponta o movimento histórico de elaboração desta Lei como permeado
das contradições e lutas sociais pela educação pública, em que parlamentares de tradição
Assembleia Legislativa, o projeto de Lei original pautou-se nas teses de longos anos de
derivaram deste conflito, acabaram por tornar a Lei mutilada de suas principais concepções
originais.
passou por modificações através de decretos e Leis que a compõem como vemos hoje. Trata-
se de um complexo jogo de relações de poder que transformam a lei de acordo com as tensões
próprio Frigotto, que em trabalho publicado em 2003 com Ciavatta, analisando as políticas
feitos pelos parlamentares da base de governo, em verdade, eram uma estratégia para
pensamento dos educadores a sua proposta de LDB não era compatível com a
21
Sua última alteração ocorreu em 16 de fevereiro de 2017 através da Lei nº 13.415, da qual não faremos
menção no corpo do texto por se tratar de modificação que ocorreu durante a elaboração final deste trabalho.
Assim, optamos por manter a escrita entendendo que contemplou a realidade investigada.
103
rejeitados. Foi por isso, também, que o projeto de LDB oriundo das organizações dos
fundamentais foram sendo tomadas pelo alto, pelo Poder Executivo, por meio de
A partir da década de 1990, o cenário social e político de nosso país exibiu o processo
da escola, de jovens e crianças sem acesso à educação formal, deveriam ser transformados.
realidade cotidiana. As políticas públicas para Educação elaboradas sob esta ótica
estabelecem parâmetros que estão longe de provocar uma mudança efetiva na qualidade da
escola pública.
Análises mais detidas dessa política, para além da superfície das estatísticas oficiais,
têm revelado o abismo que separa o discurso democratizante e a realidade das práticas
investimentos em educação popular, torná-la mais barata aos cofres públicos, tendo
em vista ajustar a economia à lógica econômica perversa que preside na nova ordem
cada vez maior, o contingente dos que vêm tendo seu trabalho descartado pela lógica
do capital. Em terceiro lugar, dar aos excluídos a ilusão de que estão sendo incluídos
entendimento de que o projeto de educação para o início do século XXI está pautado no
por sua vez, estejam em sintonia com a reestruturação produtiva do capital em curso na
atualidade. A descrição elaborada pelo autor colabora para compreendermos que, apesar de
verificarmos uma legislação em vigor que prima pelo reconhecimento das desigualdades, na
para a manutenção das desigualdades, e nas palavras de Antunes: “Não é difícil perceber que
a “educação” instrumental do século XXI, desenhada pelos capitais em sua fase mais
destrutiva, não poderá desenvolver nenhum sentido humanista e crítico”. (p. 12)
sexualidade, drogas, gravidez precoce; os impasses em efetivar a inclusão; entre tantos outros
temas que, atualmente, se apresentam como desafios cotidianos, ao mesmo tempo em que são
A escola, instituição da educação formal, não foi feita para lidar com a diferença: em
suas práticas estão presentes as tentativas de tornar os alunos silenciosos, competentes para a
social. (Patto, 2005 e 2000) Diante desta perspectiva, cabe ressaltar que a denominada
educação inclusiva, que visa debater e implantar medidas que incluam as pessoas com
Constituição Federal em seu Artigo 6º de que Educação é um direito social, e definido no Art.
205 como “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com
especiais deve não só frequentar a escola, mas também ser assistido em suas necessidades e
ser respeitado por todos. Os significados desta afirmação podem ser encontrados em diversos
6.949/2009 (que promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Tais garantias representam uma conquista histórica e o avanço nos debates nacionais e
das Pessoas com Deficiência, 2006 ). Na prática, o cotidiano escolar não reflete esta realidade:
a inclusão não tem sido um caminho tranquilo de se trilhar neste espaço educacional
4/2010), os estudantes com deficiência devem ser matriculados no ensino regular e frequentar
necessidades específicas” (p. 15). Isto significa pensar estratégias não somente na sala de
garantia de que as crianças com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional sob a
instituições que oferecem este serviço são de caráter público, ou de instituições comunitárias,
neste ambiente.
Há neste Programa Federal uma série de critérios a serem atendidos pela instância
municipal, através da Secretaria de Educação e dos gestores de escolas, para que esta parceria
seja estabelecida, tais como: elaboração do Plano de Ações Articuladas, adequação do Projeto
“conjuga igualdade e diferença como valores indissociáveis, e que avança em relação à idéia
devendo ser oferecido na rede regular de ensino público, e podendo ser complementado em
especializado. A Educação de Jovens e Adultos está incluída como modalidade de ensino que
deve primar por estes preceitos, principalmente, porque recebe sujeitos que historicamente
circuito dos direitos civis pela restauração de um direito negado: o direito a uma escola
qualquer ser humano. Desta negação, evidente na história brasileira, resulta uma
108
perda: o acesso a um bem real, social e simbolicamente importante. Logo, não se deve
A letra da Lei expressa a dimensão de uma escola inclusiva que possa inserir a
diversidade e promover a educação a partir das singularidades. Prevendo que tal tarefa exige
se colocam para a efetivação do que está no papel. Como nos alerta Demo (2003): “(...) a
sobre o pobre porque é, como regra, “coisa pobre para pobre”. Com isto evita-se o que a elite
teme, ou seja, que o pobre, um dia, venha a ter a mesma oportunidade escolar que ele tem no
encaminhamento de alunos para profissionais da saúde. Aqueles que escapam da norma, seja
porque não se comportam como deveriam, não aprendem no ritmo esperado ou não atendem
psicólogos, que possam diagnosticar e conferir legitimidade à queixa produzida pela escola e,
Naturaliza-se, então, o rito de creditar ao aluno e sua família a busca por soluções no campo
Sistema Único de Saúde (SUS). Reconhecido como um sistema diferencial por seus
dever do Estado, o SUS é resultado de uma intensa mobilização social iniciada na década de
O Sistema Único de Saúde foi instituído pela Constituição Federal (1988), em que se
pode reconhecer nos artigos 196 a 200 as premissas que organizam seu caráter e atuação e,
único e a participação social, destaques que rompem com os sistemas nacionais adotados no
da saúde, como direito, numa ideia de cidadania, que naquele momento se expandia, e
que considera não apenas o ponto de vista de direitos formais, de direitos políticos,
que envolviam certa igualdade de bem-estar. Nesse campo, cabe lembrar, a saúde teve
saúde estão dispostos entre a atenção básica, média e de alta complexidades, os serviços de
No caso das pessoas com deficiência, o Ministério da Saúde instituiu em 2012 a Rede
de Cuidados à Pessoa com Deficiência, no âmbito do SUS. De acordo com a legislação que
Art. 1º Esta Portaria institui a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, por meio
(CER), que podem ser classificados em diferentes níveis de acordo com o tipo e quantidade
Unidades Básicas de Saúde, que são consideradas as “portas de entrada” do Sistema de Saúde.
Através deste serviço de atenção básica, as demandas são direcionadas para outros serviços,
tais como exames mais complexos ou redes de atendimento que incluam especialidades, tais
como os CER. Geralmente, como se trata de buscar diagnósticos ligados aos processos de
buscar consultas com profissionais que atendam a estas necessidades. Os CER que cuidam da
possui estrutura para efetivar devolutivas à escola que possibilitem um trabalho conjunto. A
demanda encaminhada pela escola faz com que os responsáveis pelo aluno procurem o
atendimento na saúde, desde a busca por diagnóstico ao tratamento indicado, retornando com
informações na escola, como o laudo ou a receita dos remédios prescritos, sem que os campos
encontro aos auspícios do neoliberalismo. O desmonte das políticas sociais passa pela
privados e a mercantilização dos serviços sociais se amplia cada vez mais. (Oliveira
&Yamamoto, 2014)
A história de nosso país é marcada por uma colonização com fins de exploração, cuja
Este cenário produziu relações sociais de grande desigualdade em que a pobreza se apresenta
afirmar que, ao longo da história de nosso país, não tiveram caráter de enfrentamento real _ já
112
histórico presente em nossa formação social, que marca o caráter das políticas sociais
coisa pública como favorecimento de pessoas ou grupos, são modos de expressão de tais
processos. As políticas sociais, tomadas neste plano, emergem como ações pontuais e
de poder do Estado em todos os níveis. Essas práticas, à medida que são mantidas e
do embate político-ideológico que marca a agenda pública dos anos de 1980, mescla avanços
O principal avanço pode ser visto na ampliação e universalização dos direitos sociais a
garantidos em lei princípios que regulavam a proteção social a partir da previsão de que é um
113
direito de todos e todas, e não só do trabalhador inserido no mercado formal de trabalho, por
Apesar da intensa disputa de diferentes projetos políticos para o país: por um lado, a
conquista de direitos sociais, por outro, o avanço das forças neoliberais e retração do Estado, a
de Conselhos, são aportes essenciais para dimensionar as novas perspectivas que se constroem
a partir da Constituição, ainda que sua materialidade seja composta por rupturas e muitos
o que foi assegurado na Constituição. Entretanto, nos anos seguintes, sob o governo de
(...) o Brasil havia estruturado uma rede de proteção social ampla, fragmentada e com
2010, p. 17)
Assistência Social (SUAS), em 2004. O Sistema se constitui como uma importante estratégia
para execução da política de assistência social, organizando suas ações em dois níveis de
Social (CRAS), cuja definição está prevista na LOAS, em seu artigo 6º, parágrafo 1º:
(...) a unidade pública municipal, de base territorial, localizada em áreas com maiores
que se trata de uma unidade municipal, em articulação com os poderes estadual e federal; cuja
mas composto por pessoas e suas relações e usos com este lugar; gestora de programas e
ações que componham os fins da política; voltados para a família como unidade de atenção,
compreendida não apenas como núcleo composto por pessoas que possuem laços
serviços como Abordagem Social, Serviço para pessoas com Deficiência, Idosas e suas
articuladas, seja no âmbito da própria assistência, seja com outras políticas, como por
exemplo, a saúde.
115
Brasil. Entretanto, diversos autores questionam as formas como a execução desta política tem
sido feita, apontando, principalmente, a precariedade das condições para realização das ações
ao seu gerenciamento, destacamos que o CRAS é responsável pelo Programa Bolsa Família
primeiro, trata-se de um programa de distribuição de renda que visa atender as famílias que
vivem em situação de pobreza ou extrema pobreza. Tal constatação se faz a partir dos
seguintes critérios: famílias com renda per capta de até R$85,00 mensais, ou famílias com
renda por pessoa entre R$ 85,01 e R$ 170,00 mensais, desde que tenham crianças ou
Cadastro Único para programas sociais do Governo Federal, realizado pelo CRAS de seu
de renda implementado no Brasil, até então. Os resultados obtidos através dele são muito
condicionalidades e os resultados a longo prazo desta estratégia que, apesar de não serem
22
http://mds.gov.br/assuntos/bolsa-familia/o-que-e/como-funciona/como-funciona
116
controle da população. As críticas principais tratam da direta relação destas ações com a
das condicionalidades é questionada na medida em que um direito não pode estar vinculado a
condições para ser garantido e, mais ainda, de que a oferta das políticas sociais feita de forma
tão precária, não garante o real acesso à condições de cidadania propostos no Programa.
riqueza socialmente produzida. Como produto, não tem sido possível (nem almejado)
No que concerne ao BPC, cabe destacar que se trata de benefício ligado à atenção
ao benefício, bem como acompanhamento aos beneficiários e suas famílias, pois tornam-se
2016)
da seguinte definição:
pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que
comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida
2015) De acordo com Medeiros, Diniz e Squinca (2006), trata-se do segundo maior programa
não contributivo de transferência de renda no Brasil, sendo menor apenas que o Bolsa-
Família.
Além de ser direcionada para um público específico: idosos e pessoas com deficiência,
é necessário comprovar renda mensal familiar menor que um quarto (1/4) de salário mínimo
por pessoa. Portanto, a condição de pobreza surge mais uma vez como elemento norteador
prévia à Seguridade Social. Além disso, a previsão da Lei é de que haja uma reavaliação das
suspensão.
contabilizavam 346 mil beneficiários, já em 2005, este número cresceu para 2,7 milhões de
pessoas atendidas. (Medeiros, Diniz, & Squinca, 2006). No ano de 2015, alcançou cerca de 4
Entretanto, é preciso atender a alguns critérios: estar inscrito no Cadastro de Pessoa Física
23
A obrigatoriedade de inscrição no CadÚnico foi determinada recentemente pelo Decreto Nº 8.805, de 7 de
julho de 2016 que pode ser acessado no sítio: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2016/decreto/D8805.htm . A responsabilidade pelo cadastramento de famílias no CadÚnico é das
Secretarias Municipais de Assistência Social ou dos CRAS.
118
sessão destinada a informar sobre procedimentos para a obtenção do benefício, que é possível
atendimento nas agências do INSS é feito por técnicos que avaliam a documentação para
perícia médica. Caso contrário, o requerente terá 30 dias para retornar com as exigências
entre o INSS e o CRAS, no que diz respeito ao BPC. Vaitsman e Lobato (2017) destacam em
seu estudo as barreiras para o acesso a este benefício por pessoas com deficiência, indicando
os principais aspectos levantados: a dimensão partidária que define as relações entre a esfera
municipal e a federal, constituindo barreira para cooperação interfederativa, que poderia ser
autonomia para aderir a mecanismos de gestão conjunta, de acordo com a os grupos políticos
que ocupam cada instância (municipal, estadual e federal), o diálogo e a cooperação podem
Outro aspecto seria a necessidade de maior interface entre o INSS e o CRAS que
estaria ligada a demanda de que o trabalho de habilitação do primeiro poderia ser melhor
24
https://portal.inss.gov.br/informacoes/beneficio-assistencial-ao-idoso-e-a-pessoa-com-deficiencia-bpc/
25
“A palavra pública, que sucede a palavra política, não tem identificação exclusiva com o Estado. Sua maior
identificação é com o que em latim se denomina de res publica , isto é, res (coisa), publica (de todos), e, por
isso, constitui algo que compromete tanto o Estado quanto a sociedade. (...) Quando se fala de res publica, está
se falando também de uma forma de organização política que se pauta pelo interesse comum, da comunidade, da
soberania popular e não da soberania dos que governam.” (Pereira, 2009, p. 94)
119
por Vaitsman e Lobato (2017) é o fato de que apesar da porta de entrada do BPC ser o INSS,
a população geralmente busca o CRAS atrás de informações sobre como solicitar o benefício.
Sobre esta falta de informação sobre o BPC, Medeiros, Diniz e Squinca (2006) esclarecem:
esse fato pode ser que, por ter sido criado pela Constituição de 1988, o BPC não
política nem gera os créditos políticos que o Bolsa-Família e iniciativas similares. (p.
20)
Como prestar esta informação é uma atribuição do CRAS, mas este não possui um
papel formal sobre o processo de solicitação do Benefício, muitas vezes as assistentes sociais,
sobrecarregadas com outras funções, não procedem este atendimento como uma iniciativa
regular e, por isso, nem sempre é possível obter a ajuda necessária. Além disso, a rotatividade
nos cargos ligados ao CRAS, a formação precária, e a falta de preparo e conhecimento amplo
sobre as políticas são questões que determinam as práticas dos profissionais (assistentes
bastante importantes do ponto de vista dos direitos sociais, e com um forte apelo
O usuário pode seguir, então, um caminho espinhoso na busca pelo benefício: perdido
pela falta de alguma, refazendo o deslocamento até a agência do INSS, que nem sempre está
situação de vulnerabilidade social e econômica, esta situação gera grande desgaste. Por isso, é
no processo de solicitação do BPC, mesmo tendo que abrir mão de algumas parcelas do
benefício para pagar o “trabalho” deste agente. Os técnicos do INSS não podem impedir que
os requerentes estejam acompanhados de outras pessoas, que geralmente são apontados como
quem os requerentes devem pagar se o benefício é deferido” (Vaitsman & Lobato, 2017, p.
353)
O terceiro aspecto diz respeito à avaliação social feita pelo INSS: a) porque poderia
ser melhor amparada por informações do CRAS; b) porque no caso de não deferimento de sua
solicitação, o CRAS poderia encaminhar o usuário para outra política e não deixá-lo
vulnerável.
A resolução destes entraves apontados pelas autoras não serão solucionados através do
Decreto 8.805/2016. Por certo, a exigência do CadÚnico visa subsidiar com mais e melhores
informações o Sistema de Avaliação do INSS, entretanto isto não garante que os mecanismos
Squinca (2006) destacam importante dado a este respeito para nossa pesquisa:
beneficiários processado pelo Dataprev indicam que grande parte das concessões por
deficiência ocorre entre crianças e jovens. Cerca de 42% dos benefícios foram
concedidos a pessoas em idades entre 0 e 24 anos, sendo boa parte deles concentrados
nas idades mais jovens. A população de 25 a 45 anos representa cerca de 29% das
novas concessões e a população de 46 a 64, a uma fração igual, 29%. (p. 26)
Boletim BPC 2015, elaborado pelo MDS (2016). No que tange a este trabalho, traremos em
destaque aqueles referentes à pessoa com deficiência para compreender alguns percentuais
total.
Figura 5. Distribuição do BPC para pessoa com deficiência por faixa etária
Nota: Gráfico retirado do Relatório BPC 2015, (MDS, 2016, p. 19)
122
Tabela 1
Tabela 2:
Nota: Elaborada a partir dos dados disponíveis no Boletim BPC 2015 (MDS, 2016 pp. 20-21)
Outra relevante informação para fins deste trabalho refere-se à evolução de benefícios
concedidos por decisão judicial a pessoas com deficiência. Quando o processo de solicitação
do benefício é indeferido no INSS, muitos usuários buscam o Sistema Judiciário para acessar
também neste campo quando cessam as possibilidades pela via comum. Neste sentido, os
números comprovam que tem sido cada vez mais utilizado este recurso. Vejamos a evolução
destes números no Brasil: em 2004, 9.497 benefícios foram concedidos via processo judicial
para pessoas com deficiência, o que representava 6,71% do total de benefícios concedidos
naquele ano. Em 2015, este número passou para 40.498, o que significa cerca de 30% de
concessões via judiciário do total de concessões daquele ano. Na Paraíba, estes números
pela Justiça para pessoas com deficiência; no ano de 2015 este número subiu para 2.307.
(MDS, 2016)
judicialização do benefício. Neste documento, importantes análises são suscitadas e vão desde
entendimento de que o Sistema de Justiça não está alheio, nem mesmo neutro, aos processos
proferirem suas sentenças passam, cada vez mais, a se posicionar influenciando a agenda
contexto internacional, como no âmbito nacional. Primeiro, cabe observar que há uma
pelo Poder Judiciário; não estando mais restritas às esferas políticas tradicionais de
palavras do autor: “o texto constitucional ficou ambíguo e sem espírito definido, sendo
impossível saber ao certo em várias matérias o que de fato é direito adquirido, o que pode ser
objeto de emenda e o que foi convertido em cláusula pétrea.” (p. 110) Desta maneira, o papel
do sistema de justiça passa a ser ampliado e suas decisões decorrem diretamente no sistema de
política e de economia.
antagônicos, cujos cidadãos não gozam das prerrogativas do direito da mesma forma. A
incidindo no sistema econômico, político e mais diretamente, na vida das pessoas, não pode
alterações na Lei que regulamenta tal assunto. Os ministros julgaram improcedente que a
determinação de miserabilidade fosse instituída apenas pelo cálculo da renda per capta, sob a
alegação de que outros fatores são necessários para condicionar o nível de pobreza em que
Ainda sobre este tema, a Nota Técnica caracteriza o trânsito das ações da seguinte
maneira:
É importante ressaltar que essas ações, nos juizados especiais federais, tramitam em
média por um ano e nove meses, o que acaba por gerar importantes custos ao sistema
pelos quais os JEFs concedem o BPC variam, mas as questões “de fato” costumam ser
mais relevantes do que as “de direito”, ou seja, é mais comum que a Justiça Federal
O Boletim BPC 2015 (MDS, 2016) e a Nota Técnica 03/2016 (DBA, SNAS, MDS,
nos países da América Latina entre as décadas de 1980 e 1990, incentivados pelo Banco
sobrevivência e, de acordo com Stein (2009), tais programas são “destituídas do caráter de
sobrevivência aos que são acolhidos por tal política. Os dados apresentados pelo Boletim BPC
distribuição no país. Isto nos defronta com a importância de uma reflexão mais aprofundada
sobre as especificidades, das pessoas e das políticas, que os números isoladamente não podem
referência para a necessidade de repensar as políticas disponíveis para este público, a falta de
esclarecer que os programas de transferência de renda assumem dupla função: por um lado,
127
aqueles que acessam o benefício passam a ter meios para consumir e suprir as necessidades
mais urgentes, por outro, isto significa movimentar um mercado, situando estes sujeitos como
Este complexo cenário necessita ser problematizado nos seus diversos aspectos: há
CAPÍTULO 3
____________________________________________________
Figura 6. Foto da praça principal e Igreja Matriz de São Paulo e São Pedro
Nota: Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2015).
e o presente de uma cidade que, localizada no litoral, faz as vezes de um lugarejo do interior.
Nas épocas de festa, as bandeirolas penduradas em meio aos fios, colorem o caminho
A cidade que está na rota da grande rodovia duplicada, fica entre a capital paraibana e
a potiguar. O acesso à pista lateral fica em seguida da usina de açúcar, com sua chamativa
época do ano, é preciso ter cuidado com as grandes queimadas que tomam os campos, a
fumaça espessa, meio cinza, meio preta, avança na estrada impedindo a visibilidade e
sufocando a respiração.
pistas simples cortadas por um canteiro, é só seguir a mão e depois de algumas curvas chegar
universidade. No caminho de volta: cemitério, escola, hospital, outra igreja, mais comércio e a
daquela que já foi a segunda maior economia do estado, durante o período da Colonização.
Pelas ruas transversais que abrigam casas e pequenos comércios, os moradores circulam e
varrer suas varandas e quintais das fuligens jogadas cotidianamente pelas usinas.
Maman: de beber, para beber; Gua: água; Pe: nas. Significando então, Mamanguape, “Nas
principal rio da região nomeou o vilarejo cheio de histórias desde o século XVI.
exploração da terra: além de oferecer o pau-brasil, possuía boa qualidade do solo para o
Tinha de tudo. A cristalina água de suas fontes, solo fértil, a melhor e mais procurada
em 1859. A casa onde se hospedou à época, funciona hoje como Prefeitura da cidade e se
constitui como um dos poucos patrimônios históricos restantes na cidade. A igreja matriz, a
131
cadeia pública, a igreja de Nossa Senhora do Rosário e alguns poucos prédios que guardam,
italianas se fizeram presentes no desenvolvimento da região, apenas uma guarda sua forma
original. A história da cidade e das pessoas foi tomada pela decadência, pela falta de
Do ápice à decadência, atribui-se que a construção de uma ferrovia que ligava cidades
dos portos ligados à Mamanguape, provocaram o declínio da região. No final do século XIX,
a cidade que não tinha nem estrada de ferro, nem porto, viu as famílias abandonarem seus
comércios e suas casas. Nas palavras de Costa (1986): “Cada comerciante que via sair outro
da cidade, no dia seguinte, também fugia dela. Desta forma, em pouco tempo estavam
fechadas as casas comerciais e as residências. Parecia ter havido uma peste na Cidade, onde
A região, de uma maneira geral, estruturada no espaço agrário manteve até meados do
Apenas com a Abolição, o trabalho escravo foi substituído pelo trabalho dos
a mão de obra escrava não teve alternativa senão permanecer como moradores de seus
Companhia de Tecidos Rio Tinto. Seus tijolos vermelhos característicos, feitos do barro local,
(Vale, 2008).
e toda estrutura de suporte como farmácia, escola e até clube foram erguidas para a
manutenção da vida social que deveria girar em torno do trabalho fabril. Rago (1997)
dia-a-dia do operário, a forma burguesa de habitação designada para o pobre instaura um novo
Preguiça para Rio Tinto. E não foi apenas o nome que sofreu mudanças: a paisagem e os
índios e trabalhadores rurais viraram operários da fábrica. Terras indígenas foram invadidas e
exploradas para benefício dos negócios. As reivindicações da população indígena pelas terras
geraram contendas e ainda hoje há conflitos de demarcação. Portanto, diferente do que prega
133
o discurso oficial, a industrialização do litoral norte não foi uma história sem embates,
profundamente a dinâmica da região na primeira metade do século XX. Por um lado a família
Mamanguape.
Na década de 1940, a inauguração da usina Monte Alegre, aquela que fica às margens
época da safra muitos trabalhadores vindos do agreste e do sertão convergiam para a zona das
usinas para o trabalho ligado à cana-de-açúcar. Entretanto, como nos afirma Mendonça
(2013):
(...) bem mais intenso fora o influxo da Cia. de Tecidos Rio Tinto, que atraia famílias
inteiras das mais diversas regiões, principalmente nos períodos de seca. No ano de
A migração pela promessa de trabalho gerou grande fluxo de famílias para aquele
contexto, muitas delas vindas do sertão, da realidade rural, para tornarem-se operários fabris.
A demanda empresarial era de contratar famílias de pelo menos três pessoas: pai, mãe e filhos
que eram empregados segundo a lógica de atividades específicas para cada gênero e idade. A
docilização passava pela necessidade de, contratando a família, classificando suas funções e
134
dando-lhe moradia, controlar de forma mais efetiva o grupo de trabalhadores. Tais estratégias
produziram o que Vale, citando Rosilene Alvim, destaca: “Elas se transformam em famílias
Rio Tinto (CTRT), quanto dos trabalhadores rurais submetidos à lógica do latifúndio, eram
exploração da sua força de trabalho, bem como de todos os familiares. Tal relação
relação. Além de receberem muito pouco pelas suas horas de trabalho (que geralmente iam do
latifundiário, eram proibidos de cultivar qualquer gênero ou criar animais que poderiam servir
para consumo próprio e deveriam cumprir certa jornada de trabalho extra como forma de
pagamento pela moradia. A desobediência custava não somente a expulsão de toda a família
surgimento das Ligas Camponesas26 nos idos de 1950. Antes disso, como nos esclarece
presente entre os camponeses, que, até então, não havia tido a oportunidade de se
demarcam a luta da população rural contra esse contexto de exploração advinda do modelo
O cenário de lutas e embates foi acirrado, pois a militância das Ligas surtiu muitos
efeitos e possibilitou tanto mudanças na dinâmica das relações sociais e de trabalho, quanto
visibilidade às lutas dos trabalhadores rurais. Tais forças competiam com os interesses dos
senhores de terra que secularmente viam seu poder intocado e agora, precisavam reprimir o
movimento que ameaçava seu poderio. A repressão tinha diversos contornos, desde ameaças e
famílias. O poder político dos latifundiários se expressava pelas alianças com representantes
26
Não caberia neste trabalho aprofundar a importante e complexa história da Liga Camponesa no contexto
brasileiro, ou mesmo paraibano, mas precisamos destacar a imprescindível luta conduzida no embate social
travado entre trabalhadores e proprietários no cenário social em curso, onde os discursos oficiais insistem em
invisibilizar a participação da classe trabalhadora e suas lutas de resistência na construção da Sociedade.
136
O momento de maior repressão foi após o Golpe civil-militar de 1964 em que a prisão,
além do clima de terror imposto às bases do movimento camponês, acabaram por impor o
silêncio e o medo.
crise ligada ao setor algodoeiro afetou grandemente a fábrica que só trabalhava com este
material. Além disso, o maquinário obsoleto não possibilitava uma produção mais rápida e de
novas exigia menos trabalhadores. A CTRT que chegou a contabilizar cerca de 15 mil
funcionários em seus quadros, demitiu por volta de 3 mil trabalhadores naquela década.
A Fábrica de tecidos foi desativada no ano de 1983 e nesta mesma década a família
Lundgren vendeu parte de suas terras para serem destinadas ao cultivo da cana. Ainda assim,
continua detentora de grande parte do que existe em Rio Tinto (Silva, 2011).
UFPB. Em seu lastro histórico, a indústria e a influência política de seus donos possibilitaram
27
http://www.mamanguape.pb.gov.br/historia/
137
Isto favoreceu a expansão dos canaviais e a dinâmica econômica que envolve a cultura e
Ainda que estes elementos demonstrem certo desenvolvimento, visto sob um olhar
estavam voltados para as classes mais privilegiadas, especificamente do grande produtor rural.
originárias daquela terra são invisibilizadas na narrativa linear e oficial contada sobre
Mamanguape.
intrincado jogo de forças, interesses e exploração sobre a terra, sobre sua identidade e sua
força de trabalho. Sobre isso, Palitot (2011), desenvolvendo estudo sobre os Potiguara na
região, esclarece que tanto a CTRT, quanto o Serviço de Proteção aos Índios, no início do
atuação. O SPI vai estabelecer um regime tutelar de controle dos recursos territoriais e
posteriormente, a Fundação Nacional do Índio, criada na década de 1960, tinham como intuito
realidade, as ações destes órgãos se efetivaram como ações de tutela e exercício de poder e
controle dos recursos existentes na área indígena, o que não ocorreu sem conflitos e
imposta às relações sociais e econômicas da região, o imperativo está sob à égide da produção
canavieira.
De acordo com Moreira, Targino, Siva, Borges e Madeiros (2003), na década de 1960
emergiu um novo foco da industrialização no Brasil que se caracterizou pela produção voltada
medicamentos veterinários estão entre os itens que passaram a fazer parte de um mercado em
vias de expansão. Uma nova rede de consumo e produção voltada para a agricultura e com
incentivos do Estado instaurou novas dinâmicas do capital, mas não modificou a característica
Após longo período de crise, o setor canavieiro ganhou novo fôlego com este processo
incentivos fiscais e créditos aos diferentes propreitários dos diversos setores do processo de
agroindústria.
Proalcool: seja porque o motivo de sua criação perdia o sentido, seja porque juntamente com a
revisão de políticas de subsídio do governo brasileiro, que na época vivia uma grave crise, os
gastos públicos foram suprimidos, atendendo acordos com o Fundo Monetário Internacional
(FMI).
cobrança das dívidas do setor para os cofres tanto da União como dos estados, o que
emprego gerado pelo setor e a precarização das relações de trabalho. (Moreira et all,
2003, p. 48)
histórico, ainda se mantém como negócio predominante na Zona da Mata, onde se encontra a
cidade de Mamanguape.
insistam em flexibilizar afirmações que apontam para a modernização como melhoria dos
processos ligados a esta produção, a realidade se mostra bastante difícil. A Comissão Pastoral
p. 01)
utilizada pelo agronegócio era de 4.273 mil hectares, enquanto em 2007, passou para 6.692
mil hectares. Dados do IBGE28 indicam que este número em 2014 saltou para 9.200 hectares.
plantação. Se estiver de passagem pela BR 101, ao avistar grandes braços mecânicos a rodar e
produtos utilizados. De acordo com a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos (2014) “A
com campos lineares e a cana “de pé”, resta ao trabalhador a parte mais árdua do trabalho:
28
Paraíba – Mamanguape - Produção Agrícola Municipal – Lavoura Temporária. Visitado em 05/07/2017. Em:
<http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=250890&idtema=149&search=paraiba|mamanguap
e|producao-agricola-municipal-lavoura-temporaria-2014
141
corte em áreas irregulares e da cana deitada, muito mais perigoso em termos de segurança do
trabalho, muito menos rentável para o trabalhador que ganha por produtividade. (Araújo,
colheita da cana, os trabalhadores são contratados por períodos que, geralmente, não
ultrapassam os seis meses. No período seguinte, ficam desempregados e sem salários. Quando
contratados, não possuem assegurados seus direitos, a carga horária e o tipo de serviço que
terceirizado, muitos trabalhadores doentes ou mutilados não conseguem garantir seus direitos
Mamanguape entrevistados por ela afirmam, em sua maioria, que para sobreviver precisam
das Políticas Sociais como o Bolsa-Família ou buscar pequenos serviços que chamam de
gerado no mês de novembro de 2017, 6.798 famílias eram beneficiárias do Programa Bolsa
Família. Isto representa 39,68% da população do município. Este dado está acima do
pobreza estão 39,4% da população (IBGE, 2010). Em 2011, do número total de 9.740 crianças
pesadas pelo Programa Saúde Familiar, 1,9% encontravam-se desnutridas. Agravando ainda
29
http://mds.gov.br/bolsafamilia
142
mais este quadro, a Pesquisa de Orçamento Familiar publicada em 2008, apontou que 31,8%
às vezes não era suficiente, enquanto que 7,9% afirmaram que normalmente a quantidade de
É neste cenário que encontramos com cinco famílias, cujo perfil atendeu aos critérios
desta pesquisa e que gentilmente colaboraram com informações que, somadas a outras fontes,
As entrevistas ocorreram nas casas das próprias participantes, pois, como já descrito
eram vizinhas de bairro, o que nos fez percorrer as ruas e solicitar a entrevista através de
visitas. Como as colaboradoras nos recebiam em suas casas, aceitando prontamente nossa
informações pessoais como nomes e detalhes de relato que possam identificar as participantes,
tempo. Além disso, assinaram o termo de consentimento30 e receberam uma cópia em que
Em todas as famílias as pessoas que nos receberam eram mulheres, quatro mães e uma
avó, que sendo responsáveis pelos cuidados com as crianças, nos receberam e prestaram as
30
Anexado ao final deste trabalho.
143
criança. Esta por sua vez será chamada de participante, já que se trata de sua trajetória de vida
e articulações com a política que estarão em análise e, com exceção de uma delas, todas
A primeira entrevista foi concedida pela mãe do menino que chamaremos de Bento.
Seu núcleo familiar é composto por ele, sua mãe, pai e irmã. Os dois primeiros frequentam a
EJA, seu pai tem o Ensino Fundamental incompleto e sua irmã ainda está na escola regular,
cursando o Ensino Fundamental. Moram todos na mesma residência, declarada como casa
própria, com energia elétrica, em um bairro periférico, rua sem calçamento e sem saneamento
Benefício recebido por Bento. Aos quatro anos de idade um agente de saúde sugeriu que a
mãe procurasse a Funad porque ele não falava e era muito agitado. Atendendo a
recomendação, foram até a Fundação, a criança passou pela triagem e recebeu um laudo aos
seis anos e para acessar o Benefício precisou da via judicial, o que levou cerca de cinco anos.
A segunda entrevista foi concedida pela mãe da menina que denominaremos Ruth. A
família é composta por ela, sua mãe e seu pai, todos analfabetos. Residem em uma casa de
alvenaria com tijolo aparente, declarada como casa própria, localizada em rua sem calçamento
aposentadoria da mãe e do Benefício recebido por Ruth. Seu pai trabalha com função ligada
ao ciclo da cana e consegue serviços esporádicos. A colaboradora não tinha dados precisos
sobre o laudo, mas afirmou que conseguiu o Benefício quando Ruth tinha sete anos de idade e
garantiu que passou 15 anos sendo atendida na Funad e deixou de frequentar porque o médico
disse que não ia aprender mais nada. Ela toma duas medicações, mas a caixa de remédios que
144
a colaboradora mostrou para comprovar o nome está ilegível. Em seu relato afirma que pega a
A terceira entrevista aconteceu com a avó de Ana Maria, nome fictício da criança de
nove anos que reside com avô, avó, tio e irmão por parte de mãe. Moram todos em casa
própria, localizada em um bairro periférico, rua sem calçamento, nem saneamento básico. Os
adultos possuem Ensino Fundamental incompleto e as crianças estão na escola cursando este
mesmo nível. A renda da família é de um salário mínimo proveniente do emprego do avô que
trabalha na construção civil e o tio, apesar de trabalhar, não colabora naquele núcleo porque
atende filhos e esposa de quem se separou recentemente. Ana Maria recebeu o laudo com sete
anos e a avó, para acessar o BPC, preferiu a ajuda de um advogado para mediar a relação com
a mãe, que ainda é a responsável legal pela criança, e para acessar a Justiça, caso o INSS
residência própria com o pai e a mãe, em bairro construído como conjunto habitacional que
fica situado do lado oposto da BR 101, em relação às outras entrevistas. Neste bairro, há
saneamento básico e as ruas são calçadas. Sua mãe tem o Ensino Fundamental completo e seu
pai incompleto. A renda atual da família vem do Benefício recebido por Jorge, já que seu pai
está desempregado. O menino foi diagnosticado na Funad com dois anos e uma nova
avaliação foi realizada recentemente, quando completou sete anos. Faz uso de Neuleptil e
Risperidona.
casas do conjunto habitacional, em bairro com saneamento básico, junto ao seu pai, sua mãe e
seus dois irmãos. Seus pais não concluíram o Ensino Fundamental e tanto ele quanto os
irmãos estão cursando a escola regular neste nível. A casa da família é própria e a renda
diferente das outras crianças não foi elaborado pela Funad, mas por um psiquiatra durante
uma consulta em um Hospital público de João Pessoa. Então, com quatro anos o menino tinha
seu diagnóstico. O acesso ao BPC se deu via processo judicial. Joaquim faz uso de Neuleptil.
a) Renda Familiar:
No que diz respeito à renda, três famílias vivem com um salário mínimo, além de
Uma família tem como renda um salário mínimo e outra vive apenas com o Benefício
Tabela 3
Família Bento Família Ruth Família Ana Maria Família Jorge Família Joaquim
Nota: Quadro elaborado a partir das informações coletadas durante entrevista para esta pesquisa.
b) Organização familiar
No que diz respeito a este item, todos os núcleos familiares são compostos por um
compõem o núcleo:
Tabela 4
Família Bento Família Ruth Família Ana Família Jorge Família Joaquim
Maria
Pai Pai Avô Pai Pai
146
Nota: Quadro elaborado a partir das informações coletadas durante entrevista para esta pesquisa.
c) Nível de Escolaridade
O nível de escolaridade dos adultos responsáveis pelo núcleo familiar variou entre o
Fundamental completo.
Tabela 5
Família Bento Família Ruth Família Ana Família Jorge Família Joaquim
Maria
Pai Pai - Analfabeto Avô Ens. Fund. Pai Ens. Fund. Pai Ens. Fund.
Ens. Fund. Incompleto Incompleto Incompleto
Incompleto Mãe - Analfabeta
Avó Ens. Fund. Mãe Ens. Fund. Mãe Ens. Fund.
Mãe Incompleto Completo Incompleto
Ens. Fund.
Incompleto Filho Ens. Fund.
Incompleto
Nota: Quadro elaborado a partir das informações coletadas durante entrevista para esta pesquisa.
sua grande maioria possui apenas o Ensino Fundamental incompleto, em que o trabalho
remunerado está ligado à figura masculina, enquanto às mulheres cabe o cuidado com a casa e
a família. Moram em casa própria, em bairros periféricos, a maioria sem saneamento básico.
Entre as cinco crianças com diagnóstico, todas recebem medicação controlada, quatro
acessaram o BPC e uma está em processo de submissão. Além disso, todas já foram ou
Economia da Diferença.
trazem horizontes mais favoráveis. De acordo com o Censo do IBGE (2010) em 2010, 13,7%
das crianças de 7 a 14 anos não estavam cursando o ensino fundamental. A taxa de conclusão,
Dados obtidos através do Censo Escolar31 demonstram que, entre 2010 e 2014, houve
defasagem nas matrículas regulares das escolas públicas do município. Em 2010, contabiliza-
se 11.240 matrículas regulares e este número sofre queda gradativa durante o período, até
Tabela 6
Relação entre ano e total de matrículas regulares nas escolas da rede pública do município
31
Os dados foram sistematizados e organizados em tabelas que se encontram em anexo neste trabalho. Fonte:
http://portal.inep.gov.br/resultados-e-resumos
148
2010 registrou-se 94 matrículas, no ano de 2014 este número chegou a 183. Numericamente
isto significou aproximadamente 95% de crescimento, indo na direção oposta do que foi
Tabela 7
Relação entre ano e total de matrículas especiais nas escolas da rede pública do município
2010 94
2011 108
2012 144
2013 163
2014 183
Apesar deste crescimento significativo, o município, até o ano de 2016, possuía apenas
convênio com o Governo Federal para implantação das Salas de Atendimento Educacional
Especial se deu a partir de 2008, na escola Iracema Soares, localizada no centro da cidade. As
crianças com deficiência devem frequentar escolas próximas a seus bairros e no turno
Uma visão deste estado de coisas significa pensar que, em 2010, por exemplo, havia
uma sala para o atendimento de 183 crianças com deficiência, das quais 140 diagnosticadas
Sobre esta realidade, ao relatar o cotidiano escolar de sua neta Ana Maria, a
[Mas ela frequenta a escola regular?] Sim, aqui... porque foi solicitado uma cuidadora
pra ela [Aqui?] Sim, aqui na escola pública do bairro, foi solicitado através da
coordenadora das crianças especiais, acho que de toda região daqui de Mamanguape...
Então, eu contei a dificuldade que ela não ficava na escola de forma alguma, já tinha
tentado colocar, mas ela não ficava sem mim, que ela não fica. Então, ela veio estudar
há um mês atrás, porque esse tempo todo eles estavam batalhando... E eu agradeço
primeiro a Deus e depois a ela por ter conseguido uma cuidadora só pra ela, essa
professora de... o nome dela eu não sei como é, eu sei que o apelido dela é N. e ela já é
outro dia ela tem dificuldade pra acordar, eu posso entrar com ela até 8h. e pegar de
10:30h. da manhã.[Então durante a semana ela vai para a escola, nesse horário que a
senhora falou, tem essa cuidadora, e em outros dois dias da semana ela vai para a sala
de recursos] Sim, que é uma hora. Na quarta ela vai de 14h as 15h e na quinta ela vai
de 15:15 as 16:15h. [No horário contrário da escola] É. Um dia que ela vai pra Funad,
anos que há apenas um mês consegue frequentar a escola, mesmo assim, com horário
reduzido e faltando uma vez por semana para realizar seu atendimento de saúde. Ao mesmo
tempo, é preciso questionar: a sala de atendimento educacional especial, que deveria atentar
para as especificidades e demandas de cada sujeito, pode desenvolver estas atividades com
qualidade com um grupo de 180 crianças? Se não estão atendendo as 180 crianças, para quem
No caso do menino que chamaremos de Bento, a escola não se apresentou como lugar
possível. De acordo com sua mãe, a trajetória foi interrompida na medida em que ele não
150
conseguiu desempenho suficiente e foi repetindo de ano, até estar grande demais para
compartilhar a sala com crianças menores. Segundo ela: “Porque ele ficou na 4ª série, aí não
passou de ano e ficou difícil para colocar ele com as crianças, né?! (Colaboradora 1 - Mãe de
Bento)
A escola regular não era mais lugar para acolher Bento que já tinha completado 18
anos. Sua mãe, em um esforço de garantir a educação, entendeu que o melhor seria procurar a
Educação de Jovens e Adultos (EJA). No turno da noite, seguem mãe e filho para a escola,
que de acordo com ela: “Ele frequenta sem coragem”, para se referir ao modo como ele
precisa ir “obrigado” para lá. A EJA não oferece recursos diferenciados para Bento. A mãe o
matriculando também, de acordo com ela para aprender mais, já que precisa estar presente na
sala de aula com o filho. Sobre esta modalidade de educação ela diz: “É uma sala de aula
utilizada como escola regular ou como serviço auxiliar no tratamento das crianças, o que não
foi o caso de nenhum dos entrevistados na ocasião, senão pela menção da mãe de Joaquim de
Tabela 8
Participantes Série que frequenta Frequenta Escola Publica AEE Funad APAE
ou Particular
Nota: Relação entre as crianças participantes da pesquisa, as séries que frequentam, se matriculadas em escola pública ou
privada, se utilizam a sala AEE e se frequentam os serviços oferecidos pela FUNAD ou pela APAE. (Dados fornecidos pelas
entrevistadas na pesquisa)
Através das entrevistas das mães de Ana Maria e Joaquim esta realidade se
exemplifica nas poucas horas que passam na escola regular, na necessidade de uma assistente
em sala de aula, na pouca expectativa de que a escola possa ser um lugar de aprendizagem e
Na perspectiva da mãe de Joaquim: “ele está fazendo o 2º ano, mas não sabe de nada, é
porque tem q estar na escola, né?” A escola é vista como uma obrigação e há motivos para
isso: as crianças que recebem o BPC precisam apresentar frequência escolar, além disso, para
vezes se traveste de precariedade. No relato da avó de Ana Maria, percebemos que a menina
frequenta apenas parcialmente a escola já que entra às oito horas e sai às dez e meia da
manhã. Em que pese este pequeno período, ainda falta uma vez por semana para frequentar as
atividades da Funad. Quando está na escola é auxiliada por uma assistente, provavelmente
porque não há preparo da equipe para receber a menina em sua singularidade, afinal, apenas
152
no mês de realização da entrevista foi que a menina, aos 9 anos, começou a frequentar a
Pra ela estudar eu lutei 2015 e botei, 2016 ela não ficou, só foi os dois anos, ela foi três
dias. Não fiz porque a professora não quis aceitar, porque a professora disse a mim
que ela não era cobrada pelo aprendizado dela, e sim dos outros. Então fiquei
decepcionada, fiquei magoada, fiquei triste. Até a diretora, foi até a sala da diretora,
porque ela disse que Ana Maria tinha rasgado o caderno, realmente porque ela não tem
noção. (...) a diretora perguntou se eu não poderia ficar com ela na sala pelo menos
uma hora para que a menina frequentasse a aula, mas a professora não quis. Eu ia fazer
É preciso ir à escola, mesmo sem coragem. Em cada uma das histórias contadas pelas
demandas pela patologização e medicalização surgem como saídas para justificar a exclusão
Educacional Especializado ou a APAE. Ainda que a política seja desenhada sob os preceitos
da inclusão nos espaços regulares de escolarização, o que se vê, como no caso emblemático
de Ana Maria, é a utilização de estratégias que servem como muletas para a lida com sua
presença na sala de aula: a ajudante para auxiliá-la (somente para ela), os horários reduzidos,
a ausência para estar na Funad. A cuidadora de Joaquim prefere que ele frequente a escola
particular porque não atribui à escola pública serviço de qualidade para seu filho. A escola
precisa de coragem para receber as pessoas com deficiência, pois as barreiras impostas para
A dinâmica da inclusão na escola precisa ser questionada em seu aspecto mais amplo e
complexo que é a sua relação com a domesticação dos sujeitos. Na medida em que se
153
características que se adéquem aos princípios estabelecidos nos tratados internacionais dos
quais o Brasil é signatário, a inclusão de pessoas com deficiência na escola esbarra com a
Não basta garantir reformas na estrutura física, ou adquirir equipamentos, se não se pode
considera anormal para o campo da saúde, se seus professores não encontram espaço para
subjetividade só podem ser aceitas e “suportadas” mediante um laudo, então sim, as políticas
de inclusão continuam falhando e sendo apenas remediadoras de uma superfície cujas raízes
são bem mais profundas. Nesse caso, os processos ligados à inclusão da diversidade ganham o
status de legitimidade proferida pelo campo da saúde, como é caso das crianças com
“deficiência mental”, ou outros diagnósticos: elas podem acessar serviços, mas que são
limitados (como no caso do tempo que podem frequentar), precarizados (como frequentar a
escola regular, mas apenas com uma cuidadora) ou mesmo sucateados (não só no que diz
com a comunidade, por exemplo). Na maioria das vezes, a escola reproduz as opressões do
sistema social em que está inserida e naturaliza tantas outras formas de violência e exclusão
tratáveis ou remediáveis.
(...) criamos a incrível abstração pessoa deficiente, a fim de designar todo o conjunto
de pessoas que aprendemos a perceber como massa amorfa, porque a todos(as) lhes
normais quanto for possível. Que se virem do avesso, mas que busquem ser mais como
A criança, adornada de um laudo, é recebida pela escola como um sujeito com poucas
perspectivas de desenvolvimento, ou como quem demandará esforços extras para que alcance
algum avanço. O trabalho direcionado para a falta parece já iniciar fadado ao fracasso, que
por sua vez é atribuído ao aluno, ao indivíduo. Aconteceu e acontece com Bento, com Ana
Maria, com Jorge, com as crianças de quem a escola desiste antes mesmo de tentar, porque
espera dos “tratamentos” e das famílias que executem as devidas providências em busca da
No trâmite inverso, a mãe de Jorge foi aconselhada pela diretora da escola a procurar
um diagnóstico, porque aos dois anos de idade alegavam que ele não era “normal”. Após
cinco meses em processo de diagnóstico, Jorge tinha deficiência de grau não especificado,
dificuldade de linguagem e traços de autismo. Dois anos de idade. Aos sete anos, após nova
de que as crianças não se adaptam à rotina e deveres da instituição, pois acreditam no discurso
oficial, da educação e da saúde, de que quem vai mal são os alunos, por conta de suas
promessa. A partir desse eficiente processo as crianças e suas famílias percorrem os diferentes
espaços das políticas sociais, que possam intervir e atuar em suas demandas.
3.3 Mas se Deus resolve os problemas, para que serve a Assistência Social?
A aproximação inicial com esta política se deu através da Secretaria de Ação Social,
com o objetivo inicial de obter dados que esclarecessem a organização dos ônibus que
que a partir da abordagem deste tema, poderíamos obter dados iniciais e dar continuidade à
de uma casa adaptada que ganhou divisórias e mobiliário para funcionar como prédio público.
Logo na entrada uma varanda com cadeiras plásticas arrumadas em filas e em seguida uma
banheiro e dois cômodos organizados como escritórios. A reunião com a então secretária do
32
https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/mops/serv-mapa.php?s=1&codigo=250890
156
respeito dos ônibus não eram formalizadas: não havia um controle oficial de quantas e quais
pessoas utilizavam o serviço, nem quando e quantos ônibus faziam esta viagem. A secretária
achava que saiam nas terças e sextas, mas que as informações poderiam ser obtidas no CRAS
ou com a responsável pelas viagens (uma pessoa contratada pela Secretaria para cuidar deste
Obter dados a respeito das viagens destes ônibus não se constituiu tarefa fácil. A
concentração destas informações estava apenas com uma pessoa: nem a Secretaria, nem a
relação das pessoas que frequentam o ônibus e ela disse que não, pois está tentando
organizar isto, mas que as mulheres têm medo de qualquer cadastro, pois pensam que
podem perder o auxílio. Perguntei quem teria esta relação, e ela disse que não sabia,
mas que eu conversasse com a “nome da pessoa”, responsável pelo ônibus. (Diário de
Campo, Relato 5)
A pessoa responsável pela tarefa de organizar os ônibus era uma senhora, contratada
para a tarefa e que no período em que foram realizadas as visitas, sofreu um acidente durante
o trabalho que ocasionou em sua morte. O trágico fato fez com que algumas atividades do
CRAS, ligadas às famílias de pessoas com deficiência, fossem suspensas durante algum
tempo. O serviço passou a ser desempenhado por sua filha que já acompanhava as viagens e
deu prosseguimento durante algum tempo ao trabalho. Não foi possível encontrá-las para
acabaram vindo das entrevistas ou reuniões realizadas com outros atores sociais, tais como
coordenadoras do CRAS.
Os ônibus com destino à Funad, em João Pessoa, saíam nas terças e sextas-feiras. Para
acessar este serviço era necessário fazer contato com a responsável do ônibus que organizava
tanto os que já faziam tratamento, quanto àqueles que precisavam passar pelo processo de
triagem na Funad. Os ônibus deveriam seguir com os assentos preenchidos, mas durante
entrevistas, há relatos de que algumas vezes as pessoas vão em pé por conta da lotação
excessiva.
(...) é porque são muita gente dia de terça-feira, então, o certo é ir três ônibus, então
como só foram dois ônibus, a gente tivemos, mães, que ir em pé (...) porque eu nem
posso, já até adverti isso lá, porque eu tenho um problema sério nesse meu joelho,
nessa perna minha, que adquiri derrame e bursite nela, eu não posso viajar em pé.
caracteriza uma forma de clientelismo dentro da política de assistência social. A cidade não
Funad. Por isso, disponibiliza os ônibus para que os cidadãos possam acessar tais serviços. O
fato de que todo o processo que envolve os ônibus está concentrado em uma pessoa, em que
consequentemente não estão sob o controle da gestão pública, e sim, sob os cuidados de uma
uso da coisa pública, através da tutelação e com interesses eleitoreiros. Na prática, os serviços
que deveriam ser reconhecidos como direitos, passam a ser geridos como benevolência e,
portanto, tomados como favorecimento que deve ser creditado e cobrado em forma de
A assistência é a política que mais vem sofrendo para se materializar como política
p. 161-162)
Ainda que não formalizadas, existiam condicionalidades para usufruir dos serviços de
ônibus disponibilizados: o primeiro era ter vínculo com algum dos serviços da Funad (tiragem
primeira passagem em busca de dados sobre o ônibus foi na Secretaria de Ação Social, que
nos encaminhou para o CRAS e as relevantes informações que destacaremos para fins deste
trabalho.
uma casa adaptada, localizada em uma rua residencial, transversal à avenida principal e muito
município e por encaminhamento da mesma. Foi possível nos reunirmos com a coordenadora
pessoas oscila bastante, em ocasiões já teriam agrupado 46 pessoas e em outras apenas seis.
Atribuem esta diferença ao caráter dado a cada encontro: quando se trata de uma
modo geral, entendem que o grupo deve ter como função melhorar a autoestima das
cuidadoras de pessoas com deficiência, pois são pessoas muito atribuladas que não têm tempo
destas mães, ainda que a fala delas seja muito pautada na dor e na dificuldade de
cuidar de uma criança com deficiência como questão isolada de outros determinantes.
Mas reconhecem que a pobreza é um fator recorrente e que muitas vezes as mães vão
para o grupo para se queixar da dinâmica do ônibus: de quando tem ou não, de quando
são avisadas ou não, de quando não conseguem se comunicar com a responsável pelo
ônibus, etc. A psicóloga insistiu diversas vezes que o objetivo do grupo é a autoestima,
elevar a autoestima. Ou seja, as mães parecem demandar um grupo que trate de suas
compreendem esses encontros como necessários para falar do sofrimento não como
causa social que afeta o coletivo, mas como algo da ordem de um sofrimento psíquico
individual, onde fortalecer a autoestima deve ser o caminho necessário a ser trilhado.
dos direitos sociais, tendo em vista que a política está voltada para o enfrentamento de
160
unicamente o sujeito por sua vida e individualizam o sofrimento e as condições em que estão
inseridas as mulheres atendidas pelo programa. O que não contribui para o papel primeiro da
Oliveira, Dantas, Solon e Amorim (2011) apontam que o fazer profissional do psicólogo no
âmbito do CRAS ainda é permeado pela falta de clareza sobre as formas de atuação que
individualizante” (p. 148) não é exclusividade da Psicologia, mas herança histórica da própria
Assistência Social.
Mamanguape esbarra naquilo que Dantas, Oliveira e Yamamoto (2010) apontam sobre a
psicólogos(as) que atuam com populações pobres. De acordo com estudo desenvolvido pelos
Ainda que não estivesse previsto a priori, participar de um dos encontros deste grupo
tornou-se necessário para uma aproximação mais efetiva com a realidade investigada. Então,
a convite da coordenadora, estive presente no que elas denominam “Grupo de Mães”, no mês
de novembro. A chegada antecipada ao horário marcado, fez com que pudéssemos nos reunir
Ainda que o novo grupo só fosse tomar posse no início do ano, a transição de gestão estava
em processo e as funcionárias daquele equipamento relatavam que nenhuma delas ficaria para
o próximo ano. Da assistente social à servente, todas eram contratadas e seriam dispensadas,
apenas uma das psicólogas era concursada e seria transferida para outro serviço.
A atividade agendada para as 9 horas da manhã só teve início às 9:45h. Neste intervalo
de tempo, doze mulheres foram chegando esporadicamente e sentando numa sala próxima à
162
recepção, onde cadeiras brancas de plástico estavam arrumadas em forma de semicirculo. Elas
cochichavam de como estavam com calor, reclamando do atraso e de como aquela situação
parecia injusta, já que diziam para elas que aquela atividade era obrigatória e necessária para
manter a “vaga” no ônibus, mas que várias pessoas não compareciam e tudo continuava igual.
responsáveis pela função, estavam ausentes. A primeira atividade foi uma prece de
agradecimento, em seguida a proposta era um leve alongamento que foi recebido em meio a
resmungos, por outro lado, foram respondidos pela profissional com falas de ordem e a
justificativa de que tinham que cuidar de seus corpos já que são cuidadoras de outros. Em
meio a este enfrentamento nada sutil, uma demanda da recepção fez com que a profissional
saísse da sala por alguns minutos. Ao retornar, sugeriu uma dinâmica que envolvia ficar de pé
e fazer movimentos, que foi executada, mas ao final, solicitando que as pessoas se
posicionassem sobre o sentido da atividade, não teve retorno e desenvolveu um discurso sobre
a necessidade de diante dos problemas termos paciência e fé, conforme relato do Diário de
Campo:
A assistente social tentou fazer uma fala sobre o que poderia ser aprendido sobre
aquela dinâmica, mas como nenhum debate foi promovido, rapidamente aquela tarefa
perdeu o sentido. Além disso, seu discurso foi enfático sobre o fato de que todas as
pessoas têm problemas, de que aquele era um grupo de pessoas que cuidavam de
filhos com deficiência, que tinham um cotidiano muito difícil, mas que todas tinham
que ter paciência e fé. Então, lançou a pergunta: “quem vai resolver nossos
A pergunta que dá título a esta seção deriva da presença constante dos elementos de fé
impostos pelas profissionais no ambiente de trabalho, local de ofício público e que, portanto,
deveria ser laico. Espaço de acolhimento de pessoas que vivenciam a desigualdade social em
163
formas perversas e que encontram nas paredes, no corpo e nas palavras a moral religiosa que
aponta o sofrimento como remissão dos pecados. Se Deus resolve nossos problemas, qual o
sobre seus direitos, exige um tipo de abordagem que não é apenas coletiva, é política.
Essa postura não pode ser orientada por meio de manuais; faz parte de uma formação
que, de fato, passa distante dos bancos acadêmicos ou das capacitações. (p. 147)
nossa Sociedade.
privada, já que suas premissas escapam à compreensão da produção social e acabam por
estabelecidos com um plano espiritual, que não condizem com os princípios estabelecidos
para a atuação no SUAS, nem com as referências propostas pelos Conselhos de Profissão da
lugar hierárquico em espaço público, expõe símbolos de seu credo no espaço de trabalho, ou
declara que Deus resolve todos os problemas, nega princípios democráticos de afirmação das
situações de desigualdade.
deficiência, entre crianças e adultos, moram em bairros pobres e afastados do centro, mas
vinham caminhando durante alguns quilômetros embaixo do sol quente para chegar no
maioria das vezes que era um “problema mental”. O grupo foi encerrado e concluído com um
“Grupo de Mães”, Medeiros, Diniz e Squinca (2006) alertam que cuidar de crianças ou de
idosos é uma função exercida, principalmente, por mulheres, uma vez que na sociedade
brasileira a atribuição do cuidado é naturalizada para o gênero feminino. Isto implica em dizer
assistência às pessoas mais “frágeis” da família, além de serem responsáveis pela busca de
habilitação do benefício.
problemática: “Eu não posso trabalhar com ele. Eu não posso sair pra trabalhar e ele necessita,
né? “ (Colaboradora 1 – Mãe de Bento), ou “Se não fosse ele (o benefício) eu ia ter que
trabalhar, ia ter que deixar ele, acho que uso meu tempo mais pra ele, me dedicar a ele (...)”
(Colaboradora 4 – Mãe de Jorge), ou “Se por um acaso eu morrer, com quem ele vai ficar?”
somar a questão gênero. Cabe ressaltar que os autores ainda chamam a atenção para o fato de
que as atividades desempenhadas por estas mulheres restringem sua participação no mercado
formal de trabalho e os direitos sociais que poderiam advir deste. Em trabalho dedicado ao
saída das mulheres do mercado de trabalho formal. (Medeiros, Diniz & Squinca,
2006a, p. 91)
através das políticas. É necessário que os projetos e programas destinados a esta parcela da
população possibilitem que a caminhada quente e árdua, da vida e do caminho até o CRAS,
prédio reformado pela prefeitura localizado na avenida principal do Centro. Tal mudança não
se fez tranquilamente. O período de transição de sede durou mais de seis meses e o grupo de
para outra função, já que exercia a coordenação do CRAS, considerado cargo de confiança e,
166
portanto, de interesse político-partidário. Este quadro não é situação isolada e sobre isso
tais como a redução dos concursos públicos, demissão dos funcionários não estáveis,
A organização do serviço público com estas características não se resume apenas aos
assistentes sociais, mas a todo corpo técnico que, de acordo com um modelo de
Yamamoto, 2010). Tal modelo, garante a manutenção de postos que empregam trabalhadores
a serviço do grupo político que está no poder e a manutenção dos interesses hegemônicos.
serviços básicos. O “Grupo de Mães” estava suspenso e tinha previsão de retorno apenas para
Este recorte sobre o campo da assistência social, no que concerne ao nível municipal,
desenha um quadro de relações de forças presentes no cotidiano das pessoas que participam
deste contexto. O modo como as ações neste campo se organizam denunciam o que trabalhos
serviço diante da máquina burocrática que insiste em submetê-las à sua (des)ordem. Diante da
imposição da participação no “Grupo de Mães” elas faltam; se fazem presentes, mas se opõem
a seguir as regras; participam do grupo, mas buscam obter “favores” por sua tolerância; não
Instituída a partir da Lei 5.208 do ano de 1989, a Fundação Centro Integrado de Apoio
pedagogos, assistentes sociais, médicos, entre outros, que formam equipes multidisciplinares
Atualmente, a Funad está dividida em diferentes serviços que por sua vez, estão
segmentados de acordo com o campo de atuação: Educação, Saúde, Inclusão Social e Outros
Serviços. De acordo com o sítio oficial da Fundação, a classificação está agrupada da seguinte
Educação Especial Ana Paula Ribeiro Barbosa (EEEEAPRB); no campo da Saúde estão
por fim a sessão de Outros Serviços que inclui: Centro de Referência em Esclerose Múltipla
O acesso a qualquer dos serviços e programas oferecidos pela Funad acontece a partir
AEE
Educação NAAS
EEEEAPRBL
CODAFI
CODAPA
CORDI Saúde CODAVI
Coordenadoria de
Triagem e CODAM/SERI
Diagnóstico
Funad NVA NED
Inclusão Social CORPU CIL
CREM
NEP Outros Hidroterapia
Nucleo de Educação Serviços Bebê de alto risco
Permanente
Após
pós a criação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência pelo Ministério da
melhoramento dos serviços oferecidos à população. No ano de 2013, foi habilitada, então,
uma referência no atendimento a pessoas com deficiência e o único deste porte no estado.
A estrutura física é composta por um imenso prédio de dois andares que comporta os
diversos setores, auditórios, refeitório; um prédio anexo que se refere à Escola Estadual
Para fins desta pesquisa foram realizadas três visitas à instituição em diferentes
ocasiões. Sobre a dimensão física destacamos trechos do Diário de Campo que ilustrem nossa
percepção:
atendimento para triagem ficam daquele lado. Andei por todo o piso térreo. Apesar de
comportar auditórios e setores de diversos tipos, ainda resta um pátio central amplo,
torno dele outro grupo que conversava, mas não tinha lugar que eu pudesse sentar para
ficar próxima. Fui na direção das escada e percebi adultos e jovens que passavam ou
se sentavam por perto. Sentei também naquele espaço. Olhei para cima, as salas
linguagem dos sinais e naquela parte não via crianças. Demorei-me quase meia hora
tentando entender o movimento e para onde as pessoas iam. (Diário de Campo, Visita
2)
171
As salas de atendimento que pude ver têm bom tamanho e muitos brinquedos.
3)
condição para elegibilidade no serviço serem usuárias do SUS. Há uma fila de espera que
pode demorar entre um e dois meses, devido a grande procura. O referido setor é composto
média seis meses e, de acordo com as conclusões elaboradas, a pessoa (criança, jovem ou
adulto) recebe um laudo com o diagnóstico e é encaminhada para outros setores da instituição,
saúde e assistência social. Com relação ao interesse específico desta pesquisa, obtivemos a
informação, na segunda visita à Funad (Diário de Campo, visita 2), de que as crianças cujos
diagnósticos e perfil social se adéquam ao possível acesso ao BPC, são orientadas a esse
respeito.
sendo a porta de entrada para todos os outros serviços, recebe uma demanda muito alta para
profissional que compunha a equipe do setor. Ao longo de uma conversa informal sobre o
172
trabalho com as crianças, ele proferiu a seguinte frase: “Parece uma fábrica de diagnóstico”.
As crianças entram uma após a outra durante todo o turno do horário de trabalho. Se
contarmos que a Fundação contabiliza um media de cinco mil usuários por mês33, que há filas
de espera para o atendimento em vários setores e que é a única instituição deste porte no
condições de trabalho dos profissionais, sua postura política diante da “fabricação” dos laudos
e a naturalização da demanda que chega àquele lugar. Não é possível pensar um sem o outro e
ao mesmo tempo sem levar em conta estes elementos como parte de um contexto mais amplo
uma engrenagem da medicalização, tornando problemas que são de ordem social em sintomas
diversos quadros nosológicos impressos nos manuais médicos dão conta de classificar cada
velocidade com que o trabalho de profissionais deve ser realizado, em processo fabril de
produtividade e desempenho. Tanto mais fácil se a formação e postura política permitem que
Estado que, muitas vezes, são as suas próprias. Tanto mais fácil se a técnica imperar deixando
os papéis das entrevistas, os testes e instrumentos reinarem sobre o aval que marcará aquele
33
Este dado consta em material de apresentação da Funad, produzido e cedido pela coordenação do Núcleo de
Educação Permanente (NEP) da Fundação.
173
Não se quer dizer com isso que os profissionais do setor são culpados pelo processo de
patologização. Assim como as assistentes sociais do CRAS, a quem nos referimos na sessão
anterior, são atores sociais que movimentam esta contraditória realidade. Sua atuação
profissional precisa ser pensada não de modo personalístico, mas como situado num
saúde e educação, entre tantos outros fios que compõem esta intricada problemática.
profissionais, mas por eles também passam diversas crianças. Elas não aprendem, não se
Desenvolvimentais faz circular, seja no discurso dos especialistas, seja no discurso do senso
comum, uma obviedade sobre o que não é normal em uma criança. Tanto que a própria
Fundação tem um setor e serviços específicos para estes dois últimos diagnósticos: A
CODAM, que significa Coordenadoria de Deficiência Mental, mas que, oficialmente, fez a
mudança de nomenclatura sugerida pelo DSM para deficiência intelectual e que abrange a
oferta de terapias para autismo. Dispõem dos serviços de estimulação precoce, orientação e
Acessar as políticas públicas através de seus serviços e equipamentos não é uma tarefa
busca pelo acesso ao BPC no campo da Assistência Social. Afinal, tratando-se da garantia de
um salário mínimo mensal para pessoa idosa ou com deficiência, por não ter condições de se
manter financeiramente ou tê-las providas por seu grupo familiar, surge como possibilidade
de acréscimo à pouca ou nenhuma renda de muitas famílias. Para além disso, há outros
direitos que deveriam ser providos a estas crianças e suas famílias que acabam ganhando
No primeiro caso, o médico de Ana Maria solicitou uma tomografia em 2014 e, mesmo dando
entrada com a solicitação junto à Secretaria Municipal de Saúde, a menina ainda não teve o
exame marcado. A cuidadora narra que já fez o procedimento duas vezes, mas que não obteve
O neuro daqui que eu fui, por incrível que pareça, me pediu esse exame em 2014,
quando eu cheguei que eu levei ela lá e até hoje nunca saiu: a tomografia.(...)
E outra coisa pior: essa tomografia que ela tem que ser sedada... quatro anos
esperando, vai fazer agora (...) É municipal, é pela prefeitura, mas ainda não... e se eu
tivesse o benefício dela, claro que eu já teria feito esse exame, eu não estaria pedindo a
ninguém.(...) tá tudo aqui, desde 2014 e quando eu passei em 2016, a neuro me deu
novamente, de lá da Funad, no caso... é... são duas que foi solicitada e infelizmente o
município não solicitou pra mim ainda não... (Colaboradora 3 – Cuidadora de Ana
Maria)
175
Eu que já tenho problema de saúde, que eu tô com um glaucoma profundo, não tenho
nem condições de tá fazendo tratamento. Desde 2014 que já botei diversas vezes pra
Secretaria de Saúde papel desse problema meu e até agora não veio nada. Em janeiro
desse ano eu botei um encaminhamento prá lá, to esperando até agora e eu não posso
nem mesmo que eu tenha condições, eu não posso comprar o colírio sem a orientação
do médico. Então eu tenho que ir pra João Pessoa, pra isso eu tenho que vir na
Secretaria, pra me encaminharem, e isso aí até agora não aconteceu. Quer dizer, tá
uma coisa muito parada assim pra gente, pra perecer e sofrendo. (Colaboradora 1 –
Cuidadora de Bento)
mas sua narrativa relata a possibilidade do descumprimento das vias legais, o que pode ser
Já eu tive assim... eu tive um pouco de dificuldade, só não tive mais por causa de uma
menina que trabalhava na Secretaria e foi ela que me ajudou. (...) Demorou um
pouco... e eu ainda dou graças a Deus que a menina me ajudou, a menina do posto que
ela tinha conhecimento lá dentro e me ajudou, que ela falou com a menina lá dentro e
Aquela coisa... quando você tem um conhecimento, aí vai pra frente, se você não tem
menina que me ajudou, ela queria também fazer tipo um empréstimo, ela ia me ajudar
lá dentro também, só que ela queria fazer um empréstimo, assim, ela queria três mil
De acordo com o relato, a pessoa mencionada não trabalha mais no setor porque
mudou a gestão da prefeitura. O que nos leva a suposição de que não seria funcionária
pública.
alega que procurou atendimento público, mas descreve que estas consultas são realizadas na
Quando perguntada se o atendimento era particular ela respondeu:” Não, é não, é público
mesmo, sabe?!” A instituição em questão realiza atendimentos pelo SUS quando os usuários
preços populares, como no caso da Colaboradora (5), que afirma levar Jorge a consultas
mensalmente, pagando o preço de 30 reais. Em suas palavras: “Aí eles cobram uma taxazinha,
uma instituição pública, mas o desconhecimento por parte da cuidadora de Jorge, e de grande
parte da população, não é à toa: o setor privado acaba absorvendo boa parte do público do
SUS, tanto através dos convênios estabelecidos, em que verbas públicas são destinadas a estas
instituições para arcar com o serviço prestado, quanto pela oferta de atendimento que
cumpriria uma função social ofertada a preços mais acessíveis. A parcela da população que se
177
vê diante de situações como as narradas pelas Colaboradoras (1) e (3), que esperam longos
períodos pela realização de um exame, percebem nestes serviços uma alternativa satisfatória
lucrativos, de serviços que deveriam ser providos pelo Estado, sem que se desconfigure
Boschetti (2011), citando Soares, tal desmonte pode ser denominado de “descentralização
destrutiva” (p. 163) e se constitui como um retrocesso histórico. Segundo a análise das
autoras:
setor privado, vem sendo minado pela péssima qualidade dos serviços, pela falta de
recursos, pela ampliação dos esquemas privados que sugam os recursos públicos e
2011, p. 163-164)
que sua filha recebia visitas mensais da médica da Unidade Básica de Saúde que fazia a
consulta e receitava os remédios, mas desde que houve troca de profissional, ela mesma vai
até a Unidade e pega a receita, elaborada como cópia das anteriores, com o médico que sequer
conhece a paciente.
Tabela 9
que sua indicação é para tratamento de “distúrbios do caráter e do comportamento” e que seria
e vão desde aumento de açúcar no sangue ou intolerância à glicose, até risco de ataque de
descrição indica que se trata de um antipsicótico com efeito sobre transtornos relacionados ao
medicamentos que devem ser cuidados por conta dos riscos colaterais, além disso, aumento de
açúcar no sangue. O uso prolongado pode causar contraturas involuntárias no rosto e estado
de confusão mental.
179
A medicação prescrita, além dos efeitos colaterais graves e que exigem atenção e
cuidado, são drogas desenvolvidas para psicoses e adaptadas para os quadros de “deficiência
mental”, que como vimos anteriormente, não têm uma medicação específica. Como se trata de
intervir sobre os ditos quadros sintomatológicos, a medicação é utilizada por sua intervenção
terapêutica que deixa os filhos mais calmos, ou fazem dormir e que sem a medicação eles não
“Ela tava dormindo, porque eu dei o medicamento a ela que ela tava bem estressada.”
“Ela está mais agitada, tem dia que dorme, dia que não dorme, se acorda às 3 horas da
madrugada e aí não quer dormir mais. Toma duas qualidade de remédio, mas não tem
“Ele às vezes, se eu passar da hora de dar o remédio a ele, aí ele se aborrecer, tiver
uma raiva, ele quer chutar eu, chuta a porta, dá murro na geladeira, grita com a gente,
só isso... (...) Ele é normal com o Neuleptil (...) já eu tenho um pouco de receio de dar
esse Risperidona que ele é mais forte, né?! Mas só que ele fica tranquilo, né?!”
“O Rivotril foi passado agora, o médico passou. Aí ele toma assim... às vezes a noite
ele não dopa direto assim... pra dormir, ele fica querendo ficar a noite acordado. Aí eu
A prescrição de remédios controlados e cujos riscos devem ser pesados por seus
efeitos e, sobretudo, por suas contra-indicações, são a terapêutica utilizada com pessoas em
menos adoecedoras.
que são ausentes no município. A falta de espaços públicos para convivência, praças com
brinquedos e atividades físicas foram levantadas por algumas delas como possibilidades que
O BPC ganha conotações diversas na fala das Colaboradoras, mas quatro foram
unânimes em afirmar que graças ao Benefício é possível comprar remédios e roupas para os
filhos com deficiência. A única entrevistada que não recebe o BPC, mas está em processo de
solicitação, aponta que o Benefício serviria para pagar por escola e serviços de saúde
privados, o que coaduna com a Colaboradora (5) que além dos remédios e roupas citados
anteriormente, afirma usar o benefício para pagar uma escola particular para o filho.
Quando perguntadas sobre o significado do BPC para si e para sua família, as quatro
(Colaboradora 5).
percebido como garantia de uma monetarização que compensaria o fato das cuidadoras não
181
a criança.
Situação mais grave é sinalizada pela Colaboradora (4) que afirma sobre o BPC: “A
gente tá vivendo desse salário.” Situação semelhante a da Colaboradora (2), cujo companheiro
Acessar o Benefício não constituiu tarefa simples para duas Colaboradoras, foi
profissional cuidará de todo o procedimento. Em suas palavras: “Não, eu não fui no INSS
ainda não... Eu botei logo um advogado, porque assim, caso vier negado eles já botam na
federal”.
relação entre a Política Social e o Sistema Judiciário. Ainda que não haja discordância sobre a
incapacidades e/ou à renda surgem como variáveis a serem debatidas no campo jurídico
A definição de deficiência esbarra, por um lado, nos preceitos do discurso médico, que
distributiva, que prevê que a deficiência está em relação direta com a sociedade e as
desigualdade.
precisaria problematizar o fato de que pessoas com deficiência precisam ser vistas sob
182
aspectos que levem em consideração não somente variáveis de caráter absoluto, mas a
complexa interação entre corpo, habilidades e sociedade. O modo como cada sujeito
corpo e sua subjetividade, o que definirá sua experiência de deficiência. Isto significa dizer,
por exemplo, que sujeitos que vivenciam a diferença subjetiva em formas definidas por nossa
sociedade como deficientes, estarão mais vulneráveis a esta experiência quando submetidos a
situações de pobreza, dificuldade de acesso a educação e à saúde, que dificultam sua inserção
no mercado de trabalho ou condições de vida digna. E isto não pode se amparar apenas na
equação de renda familiar per capta de ¼ do salário mínimo, pois a pobreza deve ser definida
para além destes parâmetros, nem pelo aval do perito médico, através da definição biológica
de deficiência, quando esta só existe na relação com aspectos sociais, que definem a limitação
patológico são tomados como um fazer científico, portanto neutro e objetivo, capaz de
catalogar as faltas e lesões que determinam o que está fora da norma. A definição construída
convencionou fora do padrão pode estar atrelada aos elementos de realidade em que cada
sujeito está inserido: vivências de sofrimento e/ou vulnerabilidade, ou, ao contrário, inserção e
O acesso ao benefício somente é possível por uma avaliação pericial biomédica que
define o corpo deficiente: o deficiente não é aquele que considera sua “lesão grave ou
incapacitante para a vida independente e o trabalho”, mas sim aquele que o discurso
médico reconhece como tal. É somente após a perícia biomédica que um corpo com
Mioto (2009) a este respeito vão de encontro a esta constatação, naquilo que a autora
denomina de “processo de familiarização” das políticas sociais. De acordo com a autora “(...)
conseguem obter no mercado e, portanto, é ela que vai determinar a qualidade de vida dos
indivíduos enquanto membros de uma família.” (p. 141) As consequências disto são políticas
que se voltam apenas para as famílias mais desassistidas, com foco emergencial na renda, o
segundo lugar, no reforço dos papeis de gênero tradicionais, já que estabelecida desta forma,
foca no deficiente que depende de cuidados da sua família pobre, o que faz as mulheres
certa economia, e das políticas que mantêm as condições de desigualdade através de ações
ainda move monetariamente o tal mercado. Isto vai de encontro ao que Montaño e Durigueto
cumprindo uma função política ligada ao clientelismo (massa de manobra para ampliar o
que, sendo pobres e com uma criança diagnosticada e possuidora de um documento que atesta
sua deficiência: o laudo, deveriam ter o direito de acessar o benefício. Fortalece esse
entendimento a oferta de profissionais que auxiliam nos processos burocráticos que as pessoas
“intermediários”, de que falavam Vaitsman e Lobato (2017), dos quais tratamos em capítulo
benefício.
crianças cujas demandas demarcam uma medicalização da vida, o que torna suas realidades
mais vulneráveis ainda. Sua importância na manutenção da vida destas pessoas é inegável,
alinhamentos de forças que precisaram ser detalhados e analisados ao longo deste trabalho.
185
Estrutura-se um mercado amplo para produção e consumo das drogas criadas por
debatido na relação com o TDAH e o metilfenidato, está posto que a “deficiência mental”
fizeram a vez entre as drogas prescritas para crianças. “deficiência mental” e doença mental,
que historicamente vêm ganhando tentativas de diferenciação, seja nos manuais psiquiátricos,
seja entre pesquisadores de outras áreas, são diagnósticos que compartilham da mesma
prescrição medicamentosa. Ainda que não concordemos com tais processos de patologização
patologização da infância é tomada na escola como processo natural: as crianças que não se
adaptam e não condizem com os padrões devem ser encaminhadas a profissionais de saúde
para avaliação e diagnóstico por suas faltas ou excessos. O caminho inverso, que é da chegada
de crianças com diagnósticos na escola, estipula estratégias e procedimentos que garantam sua
permanência, não necessariamente a inclusão: manter as cuidadoras (mães ou avós) nas salas
de aula, garantir auxiliares nos períodos em que a criança está na escola, estabelecer horários
186
reduzidos, entre outras. A sala de Recursos Multifuncionais, projetada para apoiar a oferta de
no que diz respeito ao processo de inclusão. Com isso queremos dizer que é preciso repensar,
obviamente é composto pela escola, mas não só por ela. A normatização da infância é tecida
em longos fios históricos e se atualiza nos contextos políticos e econômicos que possibilitam
estratégias de submissão dos corpos e subjetividades. Uma criança diagnosticada vale algo.
exames que comprovam (ou não) a marca orgânica da falta (mesmo que ela não esteja lá), os
tratamentos com especialistas tantos, a desculpa da escola de que quem falha é o sujeito, a
culpa da família que precisa se submeter a toda esta série de estratégias para cuidar de seu
filho.
beneficiamento daqueles que não têm condições de garantir uma renda mínima pela inserção
no mercado de trabalho, o benefício surge como garantia de dignidade básica para famílias
que se vêem diante da necessidade de suprir as demandas de uma criança com deficiência. Em
de lidar com os processos no INSS ou na Justiça são uma superfície visível desta rede.
Para além disto, uma cidade com 39,4% de pessoas vivendo abaixo da linha da
pobreza, que têm seus ganhos sustentados por empregos temporários, esporádicos e
mensalmente e precisam comprar remédios, fraldas, comida etc., fazendo circular a economia
local.
A elas são ofertados serviços públicos que, por garantia das políticas, deveriam
falta de formação crítica de profissionais para atuação no campo das políticas sociais,
aparecem como alguns dos fatores que dificultam o funcionamento dos serviços e
destes elementos.
da garantia da mobilidade (ônibus) para o tratamento das pessoas com deficiência com
autoestima.
se submeter a tudo, de faltar aos encontros do “Grupo de Mães”, de diante das negativas da
188
escola frequentar a sala de aula para que o filho seja incluído, de procurar saber sobre os
benefício e até de saber os caminhos da narrativa que precisam estar presentes no consultório
médico.
normativas do manual psiquiátrico, das leis e das políticas. A insubmissão que se materializa
Na prática, é necessário mais que isto para a efetivação de uma mudança deste estado
de coisas. Entretanto, nesta rede, onde os especialistas e o Estado apontam para a tutela e
submissão dos sujeitos, para a classificação e regulação dos grupos, as famílias tentam criar
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos no campo da medicalização vêm sendo realizados de forma cada vez mais
ampliada em nosso país, subsidiando os movimentos acadêmicos e sociais na busca por dar
infância, o parto humanizado, a sexualidade, a estética imposta aos corpos, entre tantos temas
da medicalização.
teórica, mas o posicionamento crítico diante das problemáticas impostas neste campo são
leitura histórica tanto sobre a patologização da infância, quanto pela própria origem do
adversas causadas pelas drogas controladas que lhe são impostas. Sua sensibilidade e
interações com a vida que a cercam são suplantadas por um agir que a condicionará ao lugar
da deficiência.
infância, entendemos que engrenagens são postas a funcionar para a manutenção dos
colaborar com este estado de coisas na medida em que os serviços no campo da educação,
beneficia seja através dos “intermediários” que atuam nos sistemas públicos de acesso ao
de valores em uma cidade pobre, cujos habitantes se utilizam deste benefício para sobreviver.
comportamento das crianças acaba fazendo circular uma compreensão no senso comum de
dinâmica social.
34
Aqui compreendida como instituição que representa o espaço formal do trabalho.
191
Todos estes elementos dispostos nas análises desta tese cumpriram a árdua tarefa de
contexto local, mas que pode ser reconhecido com o retrato de uma realidade mais ampla,
cujos aspectos estudados evidenciam aproximação com uma problemática que invade outros
campos e territórios.
estratégias de controle, submissão e contenção, que num paralelo aos usos da prisão, mantém
uma poderosa economia financeira e política de assujeitamento dos pobres. Modo de desviar a
atenção das raízes socioeconômicas dos problemas sociais, reduzindo-os a uma forma de
ao longo deste trabalho, tal lógica tem se disseminado nas políticas sociais no campo da
cotidiano tem sido permeado por tal processo, escamoteando as complexas relações sociais
que os constroem.
direitos, manter a criticidade acadêmica parece a postura acertada na legitimação da luta pela
transformação social. Não é papel da universidade, nem das políticas sociais a mudança
necessária nas condições de desigualdade impostas pelo modelo capitalista, mas qualificar o
debate e apontar possíveis estratégias de resistência são essenciais na colaboração para tal
embate.
Neste sentido, a atuação profissional nos equipamentos e serviços das políticas ocupa
por exemplo, e toda forma que envolva a possibilidade de reforçar o front das lutas que
da medicalização da infância e sua articulação com as políticas, acreditando que uma postura
crítica diante desta realidade proporciona ferramentas para reflexão e produção de novos
caminhos. Trilhá-los, no entanto, só é possível no diálogo com outras reflexões e práticas que
construção de novos horizontes. A tese fica, então, como convite e ingresso aos novos
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207
Zorzanelli, Rafaela Teixeira, Ortega, Francisco, & Bezerra Júnior, Benilton. (2014). Um
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81232014196.03612013
208
Após ter sido esclarecido sobre os objetivos, importância e o modo como os dados serão
coletados nessa pesquisa, concordo em participar da pesquisa “A economia da diferença nas
políticas de assistência à infância”, e autorizo a divulgação das informações por mim
fornecidas em congressos e/ou publicações científicas desde que nenhum dado possa me
identificar.
_______________________________________
_______________________________________
1. Perfil Sócio-Econômico
Nome do entrevistado: __________________________________________________
Idade: ___________________ Parentesco com a criança: ______________________
2. Trajetória de vida
1) Fale sobre o nascimento da criança: Quando ela nasceu, como estava a organização familiar?
Já havia outros filhos? Moravam na mesma casa que residem hoje?
2) Como foi o processo que levou a desconfiança de que a criança teria algum “problema”?
3) Com que idade foi diagnosticada? _________________
4) Durante o processo de diagnóstico: Quais especialistas? Quais instituições?
5) Teve dificuldade para acessar a rede de saúde ou de assistência social para conseguir o
diagnóstico?
6) Houve mudança na rotina da família durante esse processo?
7) Toma medicação? ( ) Sim ( ) Não
Qual? Com que frequência? ____________________________________________
___________________________________________________________________
8) Onde você obtém o medicamento? _______________________________________
9) Frequenta a escola? ( ) Sim ( ) Não
( ) Pública ( ) Particular
10) Faz algum tipo de acompanhamento com profissional de saúde?
( ) Sim ( ) Não
11) Qual? Onde? Com que frequência?
12) A criança frequenta alguma atividade extra-curricular? (reforço escolar, atividade física,
atividade cultural, etc) Onde?
13) Na sua família, existe alguém, ou a própria criança, que é beneficiário de algum programa
social? (Ex: benefício de prestação continuada, bolsa-família, aluguel-social)?
14) A criança ou alguém da família frequenta algum tipo de projeto, reunião, ou atividade junto
ao CRAS, CREAS, NASF, etc...? (Em caso positivo) Qual seria?
14.a) O que você acha desta atividade?
15) Sua família teve acesso ao BPC/LOAS?
16) Como ficou sabendo do BPC/LOAS?
17) Quais documentos foram necessários para acessar o benefício?
18) Quais lugares precisaram ir para conseguir o benefício?
214
* Há mais alguma coisa sobre sua realidade que você ache importante ou gostaria de falar
para completar as informações que me deu?
215
Tabela comparativa de dados das matrículas especiais e regulares no município de Mamanguape, no período de 2010 a 201435.
Relação entre as matrículas: 2010 0,83 mat. Especiais para cada mat. Regular
2014
1,90 mat. Especiais para cada mat. Regular
Aumento de 128% nesta relação
35
Dados obtidos na Secretaria de Educação de Mamanguape e no Censo Escolar disponível no site do Ministério da Educação
217
Total: 94
Def. Mental 84
Sind. Asperger 01
Def. Fisica 08
Surdez 00
Baixa Visão 03
Def. Auditiva 03
Def. Multipla 04
Autismo 00
Transt. Desinteg. 01
218
Total: 108
Estadual Urbana 0 0 0 0 4 0 5 0 1 0 0 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 3 0 2 0 0 0 0 0 0 0
Municipal 0 0 4 0 85 0 11 1 0 0 11 0 0 0
Urbana
Municipal Rural 0 0 0 0 17 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Estadual e 0 0 4 0 109 0 18 1 1 0 11 0 0 0
Municipal
Total:
144
Estadual Urbana 0 0 0 0 5 0 12 0 1 0 2 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Municipal 0 0 5 1 25 62 12 3 0 0 12 0 0 0
Urbana
Municipal Rural 0 0 0 0 20 0 0 0 0 0 1 0 0 0
Estadual e 0 0 5 1 52 62 24 3 1 0 15 0 0 0
Municipal
Matrícula inicial
Unidades da
Federação Educação Especial (Alunos de Escolas Especiais, Classes Especiais e Incluídos)
Municípios Educação Infantil Ensino Fundamental EJA Presencial
Dependência Médio
Administrativa Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral
MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 9 0 11 1 4 0 2 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 1 1 1 1 0 0 0 0 0 0
Municipal 0 0 4 0 12 67 8 11 0 0 19 0 0 0
Urbana
Municipal Rural 0 0 0 0 16 14 0 0 0 0 1 0 0 0
Estadual e 0 0 4 0 38 82 20 13 4 0 22 0 0 0
Municipal
Total: 183
222
Matrícula inicial
Unidades da
Federação Ensino Regular EJA
Municípios Educação Infantil Ensino Fundamental EJA Presencial
Dependência Médio
Administrativa Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral
MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 273 0 2.100 0 1.591 0 0 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 456 0 238 0 0 0 0 0 0 0
Municipal Urbana 0 55 526 0 2.517 0 875 0 0 0 865 0 0 0
Municipal Rural 0 19 377 46 934 0 280 0 0 0 88 0 0 0
Estadual e
Municipal 0 74 903 46 4.180 0 3.493 0 1.591 0 953 0 0 0
Total: 11240
223
Matrícula inicial
Unidades da
Federação Ensino Regular EJA
Municípios Educação Infantil Ensino Fundamental EJA Presencial
Dependência Médio
Administrativa Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral
MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 238 0 1.966 26 1.694 0 0 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 413 0 244 0 0 0 0 0 0 0
Municipal Urbana 0 28 497 34 2.269 0 736 0 0 0 1.001 0 0 0
Municipal Rural 0 32 352 43 974 0 262 0 0 0 81 0 0 0
Estadual e
Municipal 0 60 849 77 3.894 0 3.208 26 1.694 0 1.082 0 0 0
Total: 10890
224
Estadual e 0 48 772 111 2.405 1.268 2.390 161 1.632 0 1.327 0 154 0
Municipal
Total: 10268
226
Estadual e 0 39 835 109 1.706 1.737 1.391 1.069 1.642 0 1.089 16 159 0
Municipal
Total: 9792