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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

NATHÁLIA DIÓRGENES FERREIRA LIMA

ENTRE SILÊNCIOS, INTERDIÇÕES E PESSOALIDADES:


Uma análise racial das histórias sobre aborto no sertão.

Recife
2020
NATHÁLIA DIÓRGENES FERREIRA LIMA

ENTRE SILÊNCIOS, INTERDIÇÕES E PESSOALIDADES:


Uma análise racial das histórias sobre aborto no sertão.

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Pernambuco, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Doutora em
Psicologia.

Área de concentração: Psicologia

Orientadora: Profa. Rosineide de Lourdes Meira Cordeiro, Dra.

Recife
2020
Catalogação na fonte
Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291

L732e Lima, Nathália Diórgenes Ferreira.


Entre silêncios, interdições e pessoalidades : uma análise racial das histórias
sobre aborto no Sertão de Pernambuco / Nathália Diórgenes Ferreira Lima. – 2020.
232 f. : il. ; 30 cm.

Orientadora: Profª. Drª. Rosineide de Lourdes Meira Cordeiro.


Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa
de Pós-Graduação em Psicologia, Recife, 2020.
Inclui referências.

1. Psicologia. 2. Aborto. 3. Racismo. 4. Mulheres negras. I. Cordeiro,


Rosineide de Lourdes Meira (Orientadora). II. Título.

150 CDD (22. ed.) UFPE (BCFCH2020-263)


NATHÁLIA DIÓRGENES FERREIRA LIMA

ENTRE SILÊNCIOS, INTERDIÇÕES E PESSOALIDADES:


Uma análise racial das histórias sobre aborto no sertão.

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Pernambuco, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Doutora em
Psicologia.

Aprovada em: 27/08/2020

BANCA EXAMINADORA:

Profa. Dra. Rosineide de Lourdes Meira Cordeiro (Orientador)


Universidade Federal de Pernambuco

Profa. Dra.

Profa. Dra.

Prof. Dr.

Prof. Dr.
Dedico este trabalho à Celie.
Que sua história aqui contada sirva
para alimentarmos nossos corações
de vontade por justiça racial.
AGRADECIMENTOS

Chegar para agradecer e louvar. Louvar a água de minha terra. O chão que me sustenta, o
palco, o massapê. A beira do abismo. O punhal do susto de cada dia. Agradecer as nuvens
que logo são chuva. Sereniza os sentidos e ensina a vida a reviver. (...) Agradecer as marés
altas. E aquelas que levam para outros costados todos os males. Agradecer a tudo que canta
no ar. Ter o que agradecer.
À Celie, Valesca, Camila, Inês e Patricia e as demais mulheres do sertão que conversei
durante a pesquisa, por tornarem possível essa tese. Obrigada por compartilharem seus
segredos, pela confiança, disponibilidade e oportunidade de aprendizado. Depois de ouvir suas
histórias não pude permanecer a mesma. Que um dia todas sejamos livres!

À minha orientadora Rosineide Cordeiro, por ser uma das pessoas mais inspiradoras na
minha vida. Por tudo que me ensinou, pela confiança, afeto e tranquilidade. A travessia desses
quatro anos de marés altas só foi possível pela sua presença. Desde a escrita da monografia eu
tenho alguém que aposta em mim, que me motiva, me encoraja e confia no meu trabalho. E isso
é inestimável. Obrigada!

Aos meus irmãos Charles e Atajana, por serem a minha vida, a razão para eu me tornar
uma pessoa melhor todos os dias.

À minha mãe e meu pai, por compreenderem minha ausência nesses anos de doutorado,
por todo o investimento que fizeram na minha formação acadêmica e por apoiarem as minhas
escolhas acima de tudo.
Ao meu padrasto, Mário, por ser este segundo pai tão querido, que chegou como um presente
na minha vida e na vida dos meus irmãos.

Às minhas companheiras de vida Priscilla Cordeiro e Shirley Samico pelo amor. Toda
vez que eu penso nelas, eu sou invadida por uma sensação de amor, de família, de lar. Eu não
teria chegado a lugar nenhum sem vocês. É incrível o quanto construímos juntas, o quanto
crescemos e os laços que alimentamos. São 13 anos de risos e lágrimas compartilhadas.
Obrigada por tanta beleza.

À Lis Lemos, por tanto. Lis participou de todos os processos dessa jornada. Quando eu
ainda escrevia o projeto no trabalho para tentar a seleção até a revisão dessa tese. Não posso
pensar em uma pessoa mais amiga, mais sincera e mais participativa. Você nunca deixou eu me
sentir sozinha. Amor e felicidade é o que eu sinto pela nossa amizade. Obrigada por ter escutado
as angústias do trabalho de campo, por ajudar na escolha do nome fictício para a cidade e no
título da tese, pela revisão deste trabalho e por todos os momentos que você me incentivou.
Obrigada por tornar os meus dias mais leves nesses quatros anos tão difíceis.

À Sheila Samico, por ser uma amiga tão fantástica e uma dirigenta valorosa. Obrigada
pelo amor que compartilhamos dentro e fora da política.

À Laerte de Paula, por ser esse amigo carinhoso, cuidados, presente. Obrigada por ter
me escutado, me acalmado e acreditado em mim nesses anos. Você é uma inspiração de garra,
de força, de luta. Te admiro imensamente.

À Ítalo Lopes e Ygor Sousa, pela parceria, amizade e pelas risadas que damos todos os
dias. É uma delícia compartilhar a rotina com vocês, dividir a mesma visão de mundo e construir
sonhos coletivos. Amo vocês.

Às minhas companheiras e amigas do Serviço Social, Nathália Teixeira, Marcia


Roberta, Adiliane Batista e Manu Chaves, pela amizade e pelo amor compartilhado durante
tantos anos.

À Kecya Freire, por ter sido casa enquanto eu estive no sertão. A sua amizade e
hospitalidade tornou os 14 meses de campo longe de casa aconchegantes e felizes. Obrigada
por tudo!

Ao Coletivo Fuah, em especial a Manu Silva e Dani Cardoso, por me ensinarem tanto
sobre o sertão, sobre racismo, gênero e luta coletiva.

À Cybelle e Moana, por serem amores e que compreenderam minha ausência nesses
quatro anos.

Às minhas amigas e companheiras de orientação: Rebeca Ramany, Fernanda Sardelich,


Diogivania Maria e todas as demais orientandas de Rose pela partilha, pelo cuidado e pelo afeto
de todos esses anos.

À Alexya Cristal, pela amizade feita em pleno sertão, por tudo que me ensinou, pela
doçura e gentileza.

À Túlio e Michael, meus companheiros de casa por tantos anos durante o doutorado.
Obrigada pela parceira, pelos momentos maravilhosos, pelo ombro amigo e pelos churrascos
ao som de Shakira.

À Luiz Braúna, pelo companheirismo neste fim de escrita. Obrigada por ser esse chefe
tão afetuoso, paciente e compreensível!
À todos os amigos que fiz no sertão, em especial a: Martina, Flavinho, Camila, Aline,
Luisa, Paula, Nicole, Lorena, Adathiane, Magna, Liane, Monica. Muito obrigada por tudo!

À Silvia e Andrezza, por terem sido fundamentais para esta pesquisa. Muito obrigada
pela confiança e apoio incondicional!

À Rodrigo, por ter sido tão prestativo e amigo. Por me apoiar e me ajudar
incondicionalmente enquanto estive no sertão.

Às colegas do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, pela parceria durante os anos


de doutorado, dividindo as angústias, inseguranças e os sabores desse processo, em especial a
Professora Jaileila, Professor Benedito e o Professor Jorge Lyra.

Às professoras e professores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, por todas


as lições e contribuições para minha formação acadêmica.

À Marcha Mundial de Mulheres, por ter sido o início de tudo.

Ao Coletivo Acadêmicas Negras, por me ensinarem sobre ancestralidade e serem


mulheres tão inspiradoras.

Às companheiras e companheiros do CRESS Pernambuco, pelo prazer de construirmos


juntos uma categoria profissional crítica, que tem na liberdade seu princípio ético central.

Às amigas e amigos que tanto me apoiaram e confiaram no meu trabalho durante esses
quatros anos: Nataly, Thamyres, Wladimir, Denilson, Niedja, Maria, Tassi, Thaissa, Rayssa,
Andressa, Wagner, Maria Cecília, Karol Fontes, Rafoso, Anitta, Alyne.

À João Cavalcanti, secretário do Programa de Pós-graduação em Psicologia, pelas


inúmeras vezes que me socorreu, me avisando dos prazos, das pendências e das documentações
necessárias.

Ao Hospital do Sertão de São Elesbão de Assum, em especial ao diretor, pela acolhida,


pela confiança, por abrir as portas do seu cotidiano para que uma forasteira pudesse entrar. Essa
pesquisa não seria possível sem essa acolhida e todas as conversas que foram possíveis ali.
Muito obrigada!

À Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE),


pelo fomento da bolsa, que possibilitou a realização da pesquisa em questão.
A proposta de uma convenção interamericana de Direitos Sexuais e de
Direitos Reprodutivos nasce de uma aliança de organizações, redes e
campanhas feministas da América Latina e do Caribe. Como tal está
marcada pela trama de nossas histórias pessoais e coletivas com relação
à sexualidade e à reprodução. Uma história que começa com uma ampla
variedade de civilizações em que o lugar da mulher, o número e a forma
dos gêneros, as práticas sexuais aceitas e as condenadas eram tão
diversas como as línguas, os sistemas sociais e os cultos. E continua
com a violência da conquista que, a sangue, fogo e bíblia, instaurou a
ordem judaico-cristã. Nossa história é também a do genocídio dos
escravos e das escravas; a dos idiomas, das identidades de gênero, das
formas de desejar e de parir (ou não) que ficaram para sempre nos
porões dos navios. É a violência que fundou nossos Estados à ponta de
espada, e nossa mestiçagem à ponta da violação. A tutela exercida sobre
as raças e os sexos, as idades, os desejos e os corpos “inferiores”, com
a lei, com o bastão e com a cruz. Nossa história é de violência e tutela,
mas também resistência. (Manifesto por uma Convenção
Interamericana dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos,
outubro de 2006).
RESUMO

A tese tem como objetivo analisar, em uma perspectiva racial, as narrativas sobre aborto
que circulam em uma cidade de médio porto do sertão pernambucano. Trata-se de uma pesquisa
narrativa, circunscrita no campo epistemológico do feminismo negro e decolonial e norteada
teoricamente pela discussão racial acerca da produção de conhecimento sobre aborto. A
pesquisa foi realizada em um hospital geral localizado no sertão central de Pernambuco. Como
estratégia metodológica principal foi utilizada a observação participante e como procedimentos
secundários foram utilizadas entrevistas narrativas com mulheres que recorreram ao aborto e
conversas informais com pessoas que tinham histórias para contar sobre o tema. O aborto no
sertão é uma prática social ambivalente, marcada por silenciamentos, humilhações e apoios,
sendo ainda ordenada pelo racismo patriarcal. As questões relativas ao anonimato e à
pessoalidade das comunidades rurais, junto aos marcadores de raça, classe e gênero operam de
tal forma que a prática do aborto revela as contradições de valores sociais, pois ao mesmo tempo
em que é frequente e tolerada é também uma prática condenada moralmente. Longe de resultar
em práticas lineares, esse processo se manifesta em três cenários principais: o cenário do aborto
ilegal; o cenário do aborto legal; e a esterilização, ou seja, o encerramento da vida reprodutiva,
como falsa alternativa ao aborto entre as mulheres do sertão.

Palavras-chave: Aborto. Racismo. Opressões intersecionais. Mulheres negras.


ABSTRACT

The thesis aims to analyze, in a racial perspective, the narratives about abortion that
circulate in a middle port city in Pernambuco backlands. It is a narrative research, circumscribed
in the epistemological field of black and decolonial feminism and theoretically guided by racial
discussion about the production of knowledge about abortion. The research was carried out in
a general hospital located in the central hinterland of Pernambuco. Participatory observation
was used as the main methodological strategy, and narrative interviews with women who
resorted to abortion and informal conversations with people who had stories to tell about the
topic were used as secondary procedures. Abortion in the hinterland is an ambivalent social
practice, marked by silences, humiliations and support, and is still ordered by patriarchal
racism. Issues related to anonymity and the personality of rural communities, along with race,
class and gender markers, operate in such a way that the practice of abortion reveals the
contradictions of social values, because at the same time it is frequent and tolerated it is also a
morally condemned practice. Far from resulting in linear practices, this process manifests itself
in three main scenarios: the illegal abortion scenario; the legal abortion scenario; and
sterilization, that is, the termination of reproductive life, as a false alternative to abortion among
women in the hinterland.
Keywords: Abortion. Racism. Intersectional oppressions. Black women.
LISTA DE SIGLAS

ADPF Ação Direta de Inconstitucionalidade


ANADEP Associação Nacional de Defensores Públicos
ANIS Instituto de Bioética, direitos humanos e gênero
BEMFAM Sociedade de Bem-Estar da Família
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior.
CEPARH Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana
CPMI Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IML Instituto de Medicina Legal
IPPF Internacional Planed Parenthood Federation
MST Movimento Sem Terra
PEC Proposta de Emenda à Constituição
PL Projeto de Lei
PM Polícia Militar
PNA Pesquisa Nacional do Aborto
SEPPIR Secretaria da Igualdade Racial
STF Supremo Tribunal Federal
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.............................................................................. 15
1.1 O caminho....................................................................................... 16
1.2 O debate público............................................................................. 21
1.3 A tese................................................................................................ 27
2 A PESQUISA FORA DOS GRANDES CENTROS:
O ENCONTRO COM AS HISTÓRIAS SOBRE ABORTO NO
SERTÃO.......................................................................................... 29
2.1 “Ofélia, conhece alguma história de aborto?”: a pesquisa
narrativa como caminho................................................................ 31
2.2 “Que pesquisadora é essa que nem caderno tem?”:
observação participante, bloco de notas,
diário de campo e entrevistas........................................................ 35
2.3 “Aqui quem quiser passar precisa apresentar licença
de Lampião” pesquisadora que se desloca no sertão.................. 42
2.4 “Você é enfermeira daqui?”: o hospital no Sertão...................... 53
2.4.1 A pesquisa a partir de fragmentos................................................ 60
2.4.2 A pesquisa na espera obstétrica.................................................... 62
2.4.3 A pesquisa na sala da equipe psicossocial.................................... 64
2.5 “Muito difícil, elas não vão te dizer que fizeram um aborto”:
as dificuldades do trabalho de campo........................................... 67
2.6 “Essa aqui é Nathália, a nossa pesquisadora”: as questões
éticas em uma pesquisa sobre aborto............................................ 70
2.7 A análise de narrativas................................................................... 73
3 ABORTO E RACISMO: O QUE DIZEM OS ESTUDOS......... 75
3.1 Aborto e racismo............................................................................. 76
3.2 O direito ao aborto enquanto justiça reprodutiva
para as mulheres............................................................................. 84
3.2.1 A questão do Aborto e as reflexões decoloniais........................... 93
4 “QUEM ME PARIU FOI O VENTRE DE
UM NAVIO”: O PENSAMENTO FEMINISTA NEGRO
A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DIASPÓRICA.............. 99
4.1 De lugar nenhum à consciência negra: a construção
do conhecimento através do ponto de vista parcial.................... 100
4.2 O Pensamento Feminista Negro em diáspora.............................. 112
4.2.1 Da crítica à formulação.................................................................... 115
4.2.2 Quem é o sujeito do feminismo negro?. ......................................... 122
4.2.3 Opressões interseccionais................................................................. 124
4.3 O Racismo Patriarcal Brasileiro................................................... 132
5 AS TRAMAS SOBRE ABORTO NO SERTÃO:
O CENÁRIO DA ILEGALIDADE............................................... 143
5.1 O cenário ilegal:“Ela foi muito humilhada, muito mesmo”...... 143
5.1.1 Concepto morto, peregrinação e denúncias: as mulheres condenadas
no sertão.......................................................................................... 145
5.1.2 “Mulher, ela nem chorava, elas são frias”: performando a ‘vítima
perfeita’............................................................................................ 151
5.2 “Você viu que saiu no Portal do Sertão?”: a falta que faz
o anonimato..................................................................................... 156
5.3 “Ele não me retornava, ele sumiu”: as mulheres negras
e a solidão........................................................................................ 161
5.4 “Nem o meu marido sabe”: o silêncio das mulheres rurais........ 165
5.5 “Eu não acho certo, mas temos que acolher, né?”: as
ambivalências do acolhimento...................................................... 173
6 ABORTO LEGAL, ESTERILIZAÇÃO E RACISMO
NO SERTÃO PERNAMBUCANO.............................................. 177
6.1 O cenário legal............................................................................... 177
6.1.1 “Como você deixou isso acontecer com o seu tesourinho, mãe?”:
o racismo costura o cuidado........................................................... 182
6.1.2 “O anestesista contou para a médica que ela estava
mentindo”: a fofoca como regulador do direito.............................. 189
6.1.3 “Eles só fazem o procedimento depois dos quatro, cinco meses”:
as novas narrativas que negam o direito......................................... 194
6.2 “A rua inteira quer a laqueadura de Eliane”: a vigilância dos
corpos no Sertão........................................................................... 197
6.2.1 Quem pode ter filhos? .................................................................... 198
6.2.2 O encerramento da vida reprodutiva como alternativa
ao aborto? ...................................................................................... 206
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................... 209
REFERÊNCIAS............................................................................ 215
15

1 INTRODUÇÃO

Há uma palavra em português muito utilizada para designar o processo de cuidados com
os cabelos crespos: lida. É preciso aprender a ‘lidar com o cabelo crespo’. Gomes (2012) nos
relembra que o termo ‘lida’ está relacionado as relações de trabalho, que em um contexto
capitalista traduz as explorações próprias das contradições de classe. Para a população negra, a
lida significa o trabalho compulsório nas plantations da escravidão. Lidar é um verbo
relacionado a situações difíceis, portanto, a lida é o “trabalho como fardo e exploração e não
como realização pessoal” (GOMES, 2012, p. 7). Não à toa essa é a expressão relacionada ao
cabelo crespo. Difícil de lidar, duro, áspero, ruim. Esses são alguns dos termos usados no Brasil
para designar o cabelo negro.
Entretanto, as mulheres negras não lidam apenas com o racismo impregnando nos
cabelos crespos. Antes de tudo, precisam lidar com a pobreza, com a violência, com o
extermínio dos seus filhos, com o trabalho mal remunerado, informal com o desemprego. Elas
ainda lidam com o acesso desigual à saúde, com a mortalidade materna, esterilização dos seus
corpos e com as situações de abortamento. Parece-me que lida é um termo adequado para
falarmos sobre aborto e racismo.
Muitas mulheres abortam. São casadas, jovens, religiosas, com filhas(os), trabalhadoras,
mães. Os números apontam para o aborto como prática frequente à qual as mulheres recorrem
porque as alternativas esgotaram-se, por desespero, por medo, por abandono, por não poder ter
outra(o) filha(o), por não poder perder o emprego. Os motivos são inúmeros, mas a decisão do
que era possível naquele momento atravessa todos eles.
Apesar da prática do aborto ser frequente entre diversas mulheres, o peso da
criminalização afeta-as de maneira diferenciada. Mulheres jovens, negras, periféricas, bem
como as mulheres de comunidade rurais nos contam sobre os dramas sociais que o aborto ilegal
impõe em suas vidas.
Assim, o objetivo desta tese é analisar, em uma perspectiva racial, as narrativas sobre
aborto que circulam em uma cidade de médio porte do sertão pernambucano. Os objetivos
específicos são identificar como o racismo estrutura as práticas de aborto no sertão, investigar
como as opressões interseccionais articulam-se em torno das narrativas sobre aborto e examinar
os elementos que marcam a prática de aborto nas comunidades rurais.
O argumento que sustenta a tese é de que o aborto no sertão é uma prática social
ambivalente, marcada por silenciamentos, humilhações e apoios, sendo ainda ordenada pelo
16

racismo patriarcal. As questões relativas ao anonimato e à pessoalidade das comunidades rurais,


juntamente as opressões de raça, classe e gênero operam de tal forma que a prática do aborto
revela as contradições de valores sociais, pois ao mesmo tempo em que é frequente e tolerada,
é também uma prática condenada moralmente. Longe de resultar em práticas lineares, esse
processo manifesta-se em três cenários principais: o cenário do aborto ilegal, o cenário do
aborto legal e a esterilização. Ou seja, o encerramento da vida reprodutiva, como falsa
alternativa ao aborto entre as mulheres do sertão.

1.1 O caminho

A pesquisa é fruto não de uma autoridade invisível, mas de uma trajetória biográfica
(HARDING, 1998), ou seja, do percurso histórico e social da pesquisadora. Assim como
diversas autoras (COLLINS, 2019; CURIEL, 2007; MAMA, 2008; KILOMBA, 2019;
HARDING, 1998; HARAWAY, 1995), acredito que os marcadores sociais da pesquisadora
precisam ser situado, pois dão sentido às escolhas teórico-metodológicas realizadas na prática
de pesquisa. Imbuída desse ensinamento, explicito brevemente situações que marcaram minha
trajetória acadêmica e me trouxeram até o momento de realizar uma pesquisa sobre aborto no
sertão.
Aprendi a lidar com as questões raciais a partir da construção da minha identidade. Meu
cabelo foi alisado pela primeira vez quando eu tinha cinco anos de idade e, em 2012, aos 23
anos, iniciei a minha transição capilar e realmente tive de aprender a lidar. Mas não com o meu
cabelo, que supreendentemente não apresentou as dificuldades que tanto me amedrontavam
desde a infância, e sim com as injustiças raciais em um país profundamente racista que mina as
subjetividades das pessoas negras. Assim, a minha identidade racial foi transformada desde o
cabelo, que segundo Gomes (2012), desempenha um papel importante na construção da
identidade negra. Essa identidade é construída a partir do olhar de dentro, da pessoa negra sobre
si mesma, mas também através do olhar de fora, do olhar do outro. Uma construção tensa,
conflituosa e complexa. “Como qualquer processo identitário, ela (a identidade negra) se
constrói no contato com o outro, no contraste com o outro, na negociação, na troca, no conflito
e no diálogo” (GOMES, 2012, p.3).
Desde a raiz do cabelo, a transformação da minha identidade racial enegreceu um tema
que já estudava: o aborto. A compreensão de ser uma mulher negra redirecionou a minha
militância, comecei a atuar em grupos de jovens negras e tensionei o debate racial dentro do
movimento feminista que faço parte. O encontro com o feminismo negro, juntamente com o
17

debate decolonial, transformaram a minha perspectiva analítica sobre o aborto. Diversas


inquietações sobre o silenciamento racial nos estudos sobre aborto no país me conduziram à
produção acadêmica das mulheres negras. Essa tese é produto da racialização do meu olhar
pelas mulheres negras.
O aborto e o racismo não chegaram na minha vida no mesmo momento. O aborto é um
tema mais antigo, ressignificado e complexificado no meu encontro com o feminismo negro. O
aborto tem a ver com a construção da minha identidade como jovem feminista. Na graduação
de Serviço Social (Universidade Federal de Pernambuco), em 2008, conheci a Marcha Mundial
de Mulheres, movimento feminista do qual faço parte, e as questões de gênero passaram a ser
o eixo que organizava a minha vida na militância e na academia. Minha militância feminista
estava pautada por todos os temas caros para o movimento: paz e desmilitarização; fim da
violência contra a mulher; autonomia econômica das mulheres; o enfretamento ao capitalismo
neoliberal; a luta antirracista e a legalização do aborto. Entretanto, a questão do aborto se
apropriou da minha vida. A minha trajetória feminista é semelhante a das demais jovens que
ascenderam socialmente por meio da expansão do ensino superior no Brasil: encontramos o
feminismo na universidade. Minha militância feminista entrelaçou-se com minha atuação como
pesquisadora no tema do aborto.
Iniciei os estudos sobre aborto na graduação e continuei no mestrado em Psicologia,
também na UFPE, resultando na dissertação intitulada “‘Era meu corpo, era meu momento, era
minha vida’: itinerários abortivos de mulheres negras na Região Metropolitana do Recife-PE”,
orientada pela professora Drª Rosineide de Lourdes Meira Cordeiro. A pesquisa analisou o
percurso abortivo de mulheres jovens negras e brancas, de classes populares e médias,
diferenciando racial e socialmente tais percursos.
Em 2011, comecei a participar da Frente contra a Criminalização das Mulheres e pela
Legalização do Aborto em Pernambuco. A Frente Nacional é uma iniciativa de diversas
organizações, movimentos, grupos e pessoas que reconhecem a autodeterminação dos corpos
das mulheres como fundamental para a democratização da vida social (ÁVILA, 2003). A Frente
foi criada após a descoberta de uma clínica clandestina em Mato Grosso do Sul que resultou na
quebra de sigilo dos prontuários e no indiciamento de mais de nove mil mulheres1.

1
O caso trata-se da invasão de uma clínica que realizava abortos clandestinos em Campo Grande, Mato Grosso do
Sul, em 2007. A operação policial foi transmitida ao vivo pela TV Morena, afiliada da Rede Globo no estado.
Quase 10 mil prontuários foram violados e anexados ao processo policial. Os princípios constitucionais de
privacidade das mulheres foram violados, pois os prontuários ficaram expostos para toda a população, criando
um verdadeiro espetáculo sobre o caso e devassando a vida de milhares de mulheres. Ver mais em:
<http://blogueirasfeministas.com/2013/09/isoladas-oito-mulheres-criminalizadas-por-aborto>. Acesso em: 20
jan. 2010.
18

Ainda em 2011, trabalhei como pesquisadora de campo da etapa etnográfica da pesquisa


GRAV-SUS, que se tratava de um estudo multicêntrico desenvolvido em três capitais do
nordeste: São Luiz, Salvador e Recife. A equipe de pesquisadoras era formada por profissionais
da saúde e coordenada por uma antropóloga. Durante o mês de abril, observamos três serviços
de saúde por 24 horas, divididas por turno. Essa experiência foi fundamental para o meu
desenvolvimento como pesquisadora e desestabilizou as certezas que eu tinha sobre o tema.
Neste momento, eu já havia produzido a monografia sobre aborto, porém o contato direto com
as mulheres dentro de um equipamento social que lida diretamente com essa questão me rendeu
lições que carrego até hoje.
O debate do aborto me toca profundamente porque acompanhei de perto o drama gerado
pela criminalização da prática. Acredito que o aborto clandestino é um mecanismo eficiente de
opressão que retira a dignidade das mulheres. Se nós mulheres não temos o direito ao nosso
corpo, não temos o direito a mais nada. O nosso corpo é o espaço por onde manifestamos as
nossas vontades e o nosso direito de ser no mundo. A partir do momento em que uma sanção
legal e moral nos impede de decidirmos levar adiante ou não uma gestação isso significa o não
reconhecimento das mulheres como sujeitas éticas capazes de realizar escolhas responsáveis
em suas próprias vidas. A criminalização do aborto condena e tutela, ao mesmo tempo. Conduz
as mulheres a uma situação de precariedade que se materializa no aborto realizado na casa das
‘curiosas’, descrita como “uma cama em um quarto cheio de barata”2, que expõe a saúde física
das mulheres. Leva ao sofrimento emocional por não saber o que fazer e não poder contar para
ninguém, além de exposição ao tráfico de drogas para obter empréstimos e pagar pelo aborto
(FERRARI, PERES, NASCIMENTO, 2018), reforçando a cultura de violência contra as
mulheres, haja vista que a violência doméstica é um dos motivos na decisão pelo aborto
(PEREIRA et al., 2012). Assim, a criminalização do aborto viola sistematicamente os direitos
humanos das mulheres.
Como mencionado anteriormente, a transição capilar transformou o meu olhar na
questão do aborto. Esse processo foi potencializado pelo trabalho de campo da pesquisa de
mestrado. A transição capilar teve início em outubro de 2012 e a pesquisa de campo do mestrado
ocorreu em julho de 2013. Quando comecei as entrevistas com as mulheres não tinha interesse

2
Esse relato é de um casal de jovens que precisaram recorrer ao aborto. Após gastarem 720 reais em medicamentos
que não fizeram efeito, procuraram uma “aborteira” (nas palavras deles) em um subúrbio do Recife. O jovem me
relatou que o ambiente era muito sujo e que ele não poderia entrar acompanhando a namorada. Sozinha com a
mulher que conduzia o procedimento, ela relatou que o quarto que ela tinha que deitar na cama estava cheio de
baratas. A mulher introduziu o bico de pato na vagina dela e fez um “corte lá dentro e depois começou o
sangramento”. Apesar de rico, o relato não compõe as análises dessa pesquisa, pois o aborto foi realizado em
contexto urbano.
19

de analisar as diferenças raciais, apenas a de classe e geração. Entretanto o racismo irrompeu


no trabalho de campo e, felizmente, não foi possível desconsiderá-lo. Nesse momento me
aproximei do feminismo negro, iniciando uma relação que não termina com a tese, mas que
com certeza esta pesquisa representa o amadurecimento deste encontro.
Entre o mestrado e o doutorado este processo de ‘aprendizagem racial’ se aprofunda e
se desenvolve. Em 2014, atuei como gestora na Secretaria da Mulher da Cidade do Recife, onde
percebi como o racismo alinha-se com a pobreza para diferenciar as mulheres racialmente.
Aprendi que a pobreza é racializada e pude sofisticar a minha compreensão acerca do racismo
brasileiro. Ainda, como uma das poucas gestoras negras da Secretaria e sendo a mais jovem,
naquela gestão específica, lidei também com as posturas discriminatórias que me foram
dirigidas. O debate racial proporciona um insight que torna impossível manter uma visão de
mundo sem levar em consideração o racismo como estrutural. Muitas vezes propus atividades,
ações ou programas específicos para as mulheres negras e recebi como proposta: “aqui é
secretária da mulher, se você quiser continuar por esse caminho, vá para a Secretaria de
Igualdade Racial”. Mesmo assim, nós (a equipe que eu integrava na secretaria) conseguimos, a
duras penas, relacionar gênero e raça no trabalho que fazíamos, ou seja, lidamos com o racismo
que estruturava aquelas relações.
Em 2016, ingressei no doutorado e voltei a atuar na Frente contra a Criminalização das
Mulheres e pela Legalização do Aborto. Neste ano enfrentamos o surto de Zika e a microcefalia.
A Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP) propôs ao Supremo Tribunal
Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADPF) n° 5.581 que pleiteava o
reconhecimento do Estado brasileiro acerca do direito das mulheres com Zika interromperam a
gravidez. Isso gerou um conflito racial entre os grupos que atuam pela legalização do aborto.
Instituições de mulheres negras como o grupo Criola do Rio de Janeiro apoiou a ANIS –
Instituto de Bioética, direitos humanos e gênero na ADPF sobre a zika e foram bastante
criticadas. Em uma das reuniões sobre o assunto, uma feminista branca referiu-se a essa aliança
a partir da subordinação, alegando que as mulheres negras apoiaram a ação porque não sabiam
o que estavam fazendo. Relegar as mulheres negras à tutela e à infantilização é uma estratégia
racista de retirá-las do campo da racionalidade. O debate acerca do aborto e Zika era realmente
delicado, haja vista que poderia ser vinculado a posturas higienistas. Porém, os argumentos das
mulheres negras em defesa da ADPF eram consistentes e tal postura política não pode ser
tratada como ingênua ou tutelada, mas sim como autônoma, fruto do debate de mulheres que
acumularam sobre o tema. Afinal, sobre quem recai os cuidados requeridos por uma criança
com microcefalia? Nesta ocasião, lembrei-me de Carneiro (2003), sobre a urgência de
20

enegrecermos o feminismo e tensionar as relações raciais, pois a década de 1980 não estava
superada e as mulheres negras ainda eram vistas como subordinadas às mulheres brancas ou
como ‘criadoras de caso’.
Em 2017, ingressei no Coletivo Acadêmicas Negras, um grupo de professoras e
pesquisadoras negras que tinha como objetivo potencializar a produção de mulheres negras no
Recife. Este grupo me proporcionou estar perto de estudiosas do feminismo negro, racismo,
relações raciais e de gênero que eu tanto admirava. Este momento marca o amadurecimento do
meu lugar de mestiça e o significado dessa categoria dentro do racismo brasileiro. A intensa
mestiçagem à qual a população brasileira foi submetida em busca do embranquecimento
resultou em uma pluralidade de manifestações da negritude, não correspondendo às
expectativas das elites (SCHWARCZ, 1993). Nesse sentido, o racismo brasileiro obedece a
uma hierarquia baseada na cor da pele, traduzida no debate do colorismo. Mestiços, ou seja,
negras(os) de pele mais clara, apresentam maiores probabilidades de ascensão social e são mais
tolerados socialmente. Aprofundaremos esta discussão em item específico.
Por hora, importante marcar que o meu lugar social é racialmente diferenciado em
relação ao contexto de opressão ocupados pelas mulheres de pele escura, que por vezes pode
significar simplesmente um lugar mais confortável. Entretanto, traduz uma estratégia eficiente
do racismo brasileiro, na medida em que posiciona os negros em diferentes lugares nas
estruturas sociais, cria a ilusão de que a desigualdade e a pobreza não seguem uma lógica racial,
uma vez que negras/os conseguem mover-se nas estruturas de classe (GUIMARÃES, 2004).
Assim, homens negros de pele escura são alvo da violência policial e do extermínio. Mulheres
negras são situadas no trabalho doméstico mal remunerado e desvalorizado. Mulheres mestiças,
compreendidas racialmente como mulatas, são alvo prioritário do tráfico de mulheres. Essa
estrutura racialmente estratificada se alinha a questões de gênero e classe formando um sistema
de opressão poderoso e eficaz.
Sintonizada com esses ensinamentos, encontrei o Sertão. A princípio, o trabalho de
campo seria desenvolvido na região metropolitana e em uma cidade do sertão. A escolha pelo
sertão se deu pela escassez de pesquisas sobre aborto nas regiões interioranas do Brasil e em
contextos rurais (MENEZES, AQUINO, 2009). Ainda, a Pesquisa Nacional do Aborto (2017)
apresentou uma estimativa de 503 mil abortos por ano no chamado Brasil rural, taxa
ligeiramente maior na encontrada no Brasil urbano. Nesse sentido, a lacuna de estudos sobre
aborto no sertão me moveu a realizar a pesquisa nesse território. Após a qualificação do projeto
de tese, ocorrido em setembro de 2018, decidimos realizar a pesquisa apenas em uma cidade
21

do sertão, haja vista as dificuldades que circunscrevem as pesquisas sobre aborto e já


conhecidas no trabalho de campo da dissertação e na experiência com a pesquisa GRAV-SUS.
A escolha por São Elesbão se deu devido a três fatores. O primeiro diz respeito ao alto
índice de abortamento da região (MELLO, SOUSA, FIGUEROA, 2011). O segundo se refere
a estrutura da cidade. São Elesbão é um município de médio porte, funcionando como cidade
polo em educação, saúde e comércio para cerca de dez municípios. Além do mais, a cidade
apresenta extenso perímetro rural, o que facilitaria a aproximação com as mulheres dos sítios.
O terceiro está relacionado a minha relação, mediada pela minha orientadora, com as mulheres
trabalhadoras organizadas desse município. Essa relação pregressa poderia facilitar a entrada
em campo.
A partir desse caminho, cheguei a São Elesbão de Assum, cidade do sertão
pernambucano, para pesquisar aborto e racismo.

1.2 O debate público

A discussão sobre aborto na cena pública traduz uma controvérsia política, pois enseja
uma disputa de poder. Na verdade, todo o campo dos direitos reprodutivos é permeado por
disputas discursivas que pleiteiam a conquista das mentalidades coletivas. Esses jogos de poder
se materializam nos corpos das mulheres e são marcados por fundamentalismos,
subdesenvolvimentos e colonialidade.
Em uma sociedade forjada a partir do processo brutal de colonização, o cristianismo e
os valores religiosos são pujantes nas discussões e decisões políticas. Nos últimos quinze anos
assistimos o crescimento vertiginoso de grupos religiosos fundamentalistas que radicalizam a
saída da religião da vida privada e conquistam espaço na sociedade civil e no Estado. Machado
(2017) argumenta que os anos 2000 são palco da retomada dos movimentos feministas pela
legalização do aborto, bem como das respostas das forças neoconservadoras à secularização da
sociedade brasileira.
A disputa em torno dos sentidos da vida, ou seja, sobre o nascer e o morrer, tem alguns
autores principais: movimento feminista, Igreja Católica, categoria médica e grupos
neopentecostais autodenominados de “grupos em defesa da vida”. A disputa travada entre os
que defendem a vida do feto e as que defendem a vida das mulheres está em torno das
concepções de ‘vida vivida’ e ‘vida abstrata’, nos termos de Machado (2017). Enquanto os
grupos religiosos concentram suas forças em dotar proteínas de vida, a partir do DNA da alma,
exaltando o embrião como autônomo, bem como os valores da família tradicional que sujeitam
22

às mulheres aos homens, os grupos pró-escolha e pró-direito das mulheres denunciam as


condições inseguras e insalubres em que as mulheres fazem um aborto no Brasil. Entre os
movimentos feministas e os movimentos de mulheres, a concepção de vida está imersa nas
relações sociais. Não há direito absoluto das proteínas do zigoto quando confrontamos a ‘vida
vivida’ (MACHADO, 2010) das mulheres. Apenas uma sociedade colonizada e fundada a partir
do cristianismo explica a anulação dos direitos humanos, reprodutivos e sexuais das mulheres,
em face a uma expectativa de vida.
Até 2010, o debate público sobre aborto concentrava-se no âmbito do Congresso
Nacional. Depois da proposta de minuta da Comissão Tripartite3 em 2005, grupos religiosos
movimentaram-se politicamente, aliaram-se, comporam forças e condensaram a figura política
e religiosa em uma só, sendo o Congresso Nacional o palco desse embate por excelência.
Porém, a partir de 2010, o debate ultrapassa os muros do Congresso, alcançando toda a
sociedade de forma um tanto atropelada. Os quatro momentos que ilustram essa reconfiguração
do debate do aborto para a sociedade como um todo são: 1) o 3° Plano Nacional de Direitos
Humanos decretado em 21 de dezembro de 2009; 2) as eleições presidenciais de 2010; 3) o
julgamento da ADPF 54 em 2012, resultando na permissibilidade do aborto nos casos de
anencefalia fetal; e 4) a morte de Jandira Madagdalena e Elizangela Barbosa, junto à operação
Herodes em 2014.
De acordo com Machado (2012), nas eleições de 2010 assistimos a um ativismo
religioso inédito, pelo menos após a redemocratização, culminando no recuo da então candidata
Dilma Rousseff (PT) em seu posicionamento sobre aborto. O tema foi nitidamente manuseado
como moeda de troca. José Serra (PSDB), principal adversário da candidata do PT, se
posicionou contrário ao aborto. Praticamente toda a eleição de 2010 girou em torno do tema
aborto a partir de um viés moral. A imprensa construiu um espetáculo, especulando os
posicionamentos dos candidatos sobre a questão. As vozes religiosas obtiveram um amplo
espaço na mídia, os grupos feministas intencionalmente excluídos. A eleição de 2010 foi tecida
por líderes religiosos norteando explicitamente os votos antipetistas, consolidando orientações
religiosas eleitorais (LUNA, 2014b).
Em 2014, também ano eleitoral, ocorreram duas tragédias fortemente midiatizadas no
país, mais precisamente no Rio de Janeiro. Jandira Magdalena e Elizangela Barbosa morrem

3
A Comissão Tripartite foi composta por membros do Governo Federal, da Sociedade Civil e do Congresso
Nacional e coordenada pela Secretaria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres da Presidência da
República (SEPM) e tinha como objetivo revisar a legislação punitiva acerca da interrupção voluntária da
gravidez.
23

após recorrerem a clínicas de aborto clandestinas e subsequente a isso, a operação Herodes da


Polícia Federal, responsável por investigar clínicas clandestinas de aborto neste estado, torna-
se de conhecimento público. Jandira Magdalena tinha 27 anos e pagou mais de 4 mil reais no
aborto. Morreu durante o procedimento e teve seu corpo esquartejado e queimado pelos
criminosos. Elizangela Barbosa, de 32 anos, pagou quase 3 mil reais no aborto. Apresentou
complicações durante o procedimento, sendo abandonada agonizando na margem de uma
estrada. Ambas eram mães, engravidaram de um parceiro estável e alegaram o trabalho e a
vontade de ter independência econômica para criar os filhos como motivo de decisão pelo
aborto. Nos dois casos, familiares e pessoas próximas sabiam das motivações e sabiam que elas
iriam recorrer ao aborto. Jandira foi assassinada em agosto e Elizangela em setembro.
A nome da operação da Polícia Federal é emblemático, pois traduz o caráter policialesco
por meio do qual o Estado lidou com a questão do aborto (LUNA, 2017). Inquéritos e prisões
foram acelerados e a mídia se empenhou na cobertura da operação. Assim o país fracassou em
construir um debate sério e racional sobre aborto.
Nesse mesmo ano, houve eleições majoritárias novamente no país. A estratégia da
campanha de 2010 que logrou êxito foi editada e ‘Em defesa da família e em defesa da vida’
foi o bordão mais utilizado por candidatos. Na disputa pela presidência, o aborto não esteve
como central, mas as candidatas e candidatos não se posicionaram sobre o assunto. A agenda
moral estava posta no país com força para chantagear e manipular os debates sobre gênero e
sexualidade, principalmente. Mais uma vez, candidatos progressistas, incluindo a candidata
reeleição Dilma Rousseff, comprometeram-se com as forças conservadoras e religiosas. É uma
vitória política exponencial para tais grupos.
Em 2015, o Projeto de Lei (PL) 5069/2013 de autoria de Eduardo Cunha foi aprovado
na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos deputados. O PL objetiva dificultar ainda
mais o acesso ao aborto legal, criminalizar os profissionais de saúde que prestem informações
de qualquer natureza sobre aborto, bem como movimentos sociais que atuam na defesa dos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Caso aprovado, o conteúdo do PL transportaria o
Brasil para o início do século XX novamente. Ainda em 2015, o senador Magno Malta (PR-
ES) apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que garante ‘a inviolabilidade
da vida desde a concepção’, o que na prática se traduz na retirada dos dois permissivos do aborto
no Brasil. Esses dois acontecimentos não foram bem-vindos entre as mulheres. E nós, mulheres
jovens, fomos às ruas contra as duas propostas, dando corpo ao que foi chamado de ‘Primavera
Feminista’. Assim, as propostas foram engavetadas, mas a PEC de Magno Malta voltou à
dicussão em 2019, apoiada na tomada do poder pela ultradireita.
24

A Primavera Feminista marca uma virada em relação ao aborto no país, possibilitando


um equilíbrio maior da correlação de forças, haja vista as vitórias e o fortalecimento dos grupos
anti-aborto a partir de 2005. Em 2016, a 1° Turma do Supremo Tribunal Federal entendeu que
a criminalização do aborto até o 3° mês de gestação fere os direitos fundamentais das mulheres.
Nesse mesmo ano, a ANADEP propôs ao STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 5.581
que pleiteava o reconhecimento do Estado Brasileiro acerca do direito das mulheres que
contraíram Zika interromperem a gravidez.
Ainda é importante ressaltar o processo da ADPF. O Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL) ajuizou no STF a ADPF n° 442 alegando que os artigos do Código Penal que
criminalizam o aborto ferem os direitos fundamentais das mulheres garantidos na Constituição
Federal de 1988. O julgamento ocorreu dois anos depois, em 2018, com abertura para a
participação da sociedade civil. Porém, em um momento de descredibilidade do judiciário
brasileiro envolvido em inúmeros escândalos de nepotismo, favoritismo e de justiça seletiva,
não houve intensa participação da sociedade civil e a repercussão da ADPF foi ínfima,
contribuindo para o abatimento na luta pelo aborto.
Em 2016, sentimos o aprofundamento das forças conservadoras do país. Esse foi um
ano marcado pelo impeachment da presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff, acusada de
crime de responsabilidade. Os movimentos sociais organizaram a caravana popular pela
democracia por todo o país, denunciando que o impeachment era um golpe contra a democracia.
Em 17 de março de 2016, o Congresso Nacional votou pelo impeachment. Os deputados, um
por um, dirigiram-se ao microfone para proferir seu voto. “Em defesa da minha família”; “pela
minha família, pelos meus filhos”; “pelos meus netos”; “pelos maçons do Brasil”; “pelo Estado
de Israel”; “pelos meus amigos”; “pela minha mulher”; “pelos militares”; “e feliz é a nação cujo
Deus é o Senhor”; “pelos progressistas da minha família”; “pelo amor à Deus”; “pela minha
mãe”; “Por Taiane e Mateus”; “pelos garotos da Lava Jato”; “Pelos evangélicos da nação”;
“pelo futuro dos meus filhos”; “quero agradecer a minha tia que cuidou de mim”. Esses foram
os argumentos de um congresso formado majoritariamente por homens para depor a única
presidente mulher eleita no Brasil.
Esse dia marca um ataque violento contra a democracia. Em resposta, os movimentos
sociais organizaram o Acampamento Popular Permanente em Defesa da Democracia por todo
o país. Aqui em Pernambuco, o acampamento aconteceu na praça do Derby, no Recife, reunindo
mais de 500 pessoas entre os meses de abril e maio. Entretanto, após um longo processo, em
agosto de 2016, Dilma Rousseff teve o mandado cassado.
25

A destituição da presidenta eleita Dilma Rousseff representa o retorno das elites


antipopulares, a emergência de uma classe média tola (SOUZA, 2015) e um golpe na frágil e
recente democracia brasileira. Os discursos dos deputados no dia do impeachment sinalizaram
que a família, tradição e propriedade estariam novamente na governança do país. O pretexto
das irregularidades contabilísticas, as chamadas pedaladas fiscais, para tornar possível o golpe
não se sustenta. Uma prática corriqueira na gestão pública não tem cacife para destituir a
primeira mulher eleita presidenta do Brasil. Antes, representa a divergência dos setores
conservadores com os investimentos sociais que abordamos acima.
As primeiras ações do governo ilegítimo de Michel Temer foram emblemáticas em
relação ao retorno das elites ao poder. Temer, no mesmo dia em que assumiu como presidente
interino, extinguiu o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, da Juventude e Direitos
Humanos, vontade antiga do PMDB. Tais pastas foram rebaixadas e transformadas em
secretarias sob a aba do Ministério da Justiça. Temer também paralisou todos os convênios e
contratos em andamento, nomeou para a secretaria das mulheres Fátima Paleas, evangélica e
defensora dos valores bíblicos dentro da política, paralisou o principal programa da então
Secretaria da Igualdade Racial (Seppir), o Juventude Sempre Viva, que tinha como objetivo
enfrentar o extermínio da juventude negra brasileira. Obviamente, o desmonte orquestrado por
Temer não se restringe as políticas afirmativas, haja vista a contra-reforma da previdência e
trabalhista.
A partir desse processo uma figura começa a se destacar na cena política brasileira. Jair
Bolsonaro desponta como um salvador da moral, um herói que resgatará o Brasil do mal da
corrupção. Deputado por 28 anos, Bolsonaro apresenta-se como um político de ultradireita.
Ficou conhecido por proferir frases polêmicas: “O erro da ditadura foi torturar e não matar”;
“Ele merecia isso: pau-de-arara. Funciona. Eu sou favorável à tortura. Tu sabe disso. E o povo
é favorável a isso também”; “Morreram poucos. A PM tinha que ter matado mil”; “Eu jamais
ia estuprar você porque você não merece”; “Por isso o cara paga menos para a mulher (porque
ela engravida)”, entre outras. Com uma proposta política fascista, Bolsonaro ascende na política
brasileira como uma alternativa à corrupção. Estava posto o jogo antidemocrático e antipopular
das elites dominantes.
O discurso raso da corrupção, vazio de intenções de bem-estar coletivo e repleto de
interesses políticos em perpetuar privilégios, foi o principal elemento no jogo da direita
brasileira. O arrefecimento das forças de esquerda, o monopólio midiático pela elite e os
razoáveis escândalos de corrupção que envolveram líderes do PT constituíram-se como fatores
cruciais para a tomada do poder pelas facções mais conservadoras da elite brasileira. Em abril
26

de 2018, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva foi preso, acusado pela operação Lava Jato,
por crime de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A prisão de Lula abriu espaço para a
vitória de Bolsonaro nas eleições de outubro do mesmo ano, representando o desfecho do golpe
iniciado em 2016.
A ascensão de Bolsonaro ao poder causou inúmeras dúvidas sobre o rumo das políticas
de ciência e tecnologia no Brasil. As universidades e os institutos federais foram afetados com
diversos cortes que seguiam por uma linha ideológica. Para as pesquisadoras sobre aborto, a
censura e a perseguição eram receios latentes, visto que o projeto de sociedade que iria
direcionar o Estado apoiava-se no moralismo religioso defensor da família tradicional e os seus
valores. Assim, o projeto político posto era claramente anti-direitos das mulheres e anti-
legalização do aborto.
Nesses 18 meses de governo Bolsonaro, vimos as promessas de campanha serem
cumpridas: criminalização dos movimentos sociais; aumento do desemprego; ataques à
educação pública; aprovação da nefasta Reforma da Previdência; desmoralização do STF;
indisposição com países compradores dos produtos brasileiros; difusão do anti-comunismo;
promoção da violência através das discussões sobre o desarmamento e do pacote anticrime de
Sergio Moro; escândalos de corrupção envolvendo os seus filhos; relações com a milícia;
desprezo por negros e indígenas; estremecimento das relações internacionais; subordinação ao
Estados Unidos.
A política brasileira dos últimos anos funcionou como uma verdadeira montanha russa.
A base aliada do governo Bolsonaro rachou, escândalos envolvendo a própria operação Lava
Jato, em janeiro de 2020, vieram à tona em uma série de reportagens do jornal The Intercept
que demostravam que essa era uma trama política para condenar o ex-presidente Lula e facilitar
as eleições para Bolsonaro. Ainda, a família Bolsonaro foi ligada a morte da vereadora Marielle
Franco.
Há anos o Brasil atravessa uma crise política, social e econômica sem precedentes. Crise
esta que foi aprofundada pela pandemia do novo Coronavirús. Iniciada em dezembro de 2019
na China, a pandemia é causada por um vírus de alto contágio responsável pela morte de
milhares de pessoas. Atravessamos essa crise sanitária sem condução política. Bolsonaro desde
o início da pandemia, considerada pela OMS como a mais grave do século XXI, minimizou os
impactos do vírus no Brasil. O resultado desta postura equivocada são subnotificação dos dados,
alto número de mortos, agravamento da pobreza, falência econômica e desemprego. Ao não
apresentar um plano nacional de emergência para enfrentar a situação, o governo Bolsonaro
27

mergulhou o país em uma situação de desespero. Somos um país afundado em cadáveres,


desemprego e escândalos de corrupção.
Esse foi um breve resumo do contexto político que marcou a escrita dessa tese.

1.3 A tese

A tese está estruturada em cinco capítulos, além da introdução e considerações finais.


No primeiro capítulo apresento a paisagem da pesquisa, as minhas escolhas metodológicas, as
dificuldades do trabalho de campo e os conflitos éticos que permearam esse processo. Para isto,
discuto a pesquisa narrativa como um caminho para analisar temas de difícil acesso como o
aborto. Abordo a observação participante como estratégia metodológica privilegiada para
“ouvir as histórias”, compreendidas a partir das lições etnográficas. Situo geograficamente a
pesquisa, caracterizando de forma breve a cidade de São Elesbão de Assum. A pesquisa no
sertão aconteceu no hospital geral da cidade e contou com três cenários principais: a pesquisa
a partir de fragmentos de narrativa; a pesquisa na espera obstétrica; a pesquisa na sala
psicossocial. Finalizo discutindo as dificuldades do trabalho de campo e questões éticas que
envolvem a pesquisa sobre aborto.
No segundo capítulo discuto criticamente a produção sobre aborto no Brasil nos últimos
cinco anos. A despeito da larga tradição em estudos sobre o tema, a relação entre racismo e
aborto é secundarizada, resultando em uma produção que não aprofunda a diversidade de
experiências das mulheres com o aborto em uma perspectiva racial. Organizamos esta discussão
em três eixos: aborto e racismo, o aborto como justiça reprodutiva para as mulheres e a questão
do aborto e apontamentos decoloniais.
No terceiro capítulo situamos o aporte epistemológico da pesquisa. O feminismo negro
em diáspora foi o campo teórico privilegiado para compreender o aborto de forma racializada.
Inicio o capítulo situando meu lugar social, questionando a ciência descorporificada que aparta
razão e emoção em uma tentativa de neutralidade. O feminismo negro desestabiliza os cânones
próprios de uma ciência que é androcêntrica e racista. Continuo apresentando as principais
autoras do feminismo negro, do chamado feminismo de cor e o decolonial, as principais críticas
e formulações empreendidas por elas e quem é o sujeito do feminismo negro. Por fim discuto a
categoria de opressões interseccionais a partir de Collins (2019) e situamos o racismo brasileiro
como matriz de dominação.
Os capítulos quatro e cinco correspondem aos resultados de pesquisa. As tramas sobre
aborto no sertão estão organizadas em três eixos de análise. O primeiro diz respeito ao cenário
28

ilegal. Nesse, a clandestinidade manifesta-se na ambivalência do acolhimento. O aborto


funciona com uma forma de humilhar, ou seja, rebaixar moralmente as mulheres que recorrem
à prática. A condenação moral se traduz em peregrinações e ameaças de denúncias como
castigo. As mulheres passam por esse momento sozinhas e performam um comportamento
socialmente aceito: o desespero e a tristeza. As dificuldades com relação ao anonimato em
cidades de médio e pequeno porte circunscrevem a prática de silêncio e silenciamentos,
aprofundados por questões de raça e território.
O segundo eixo refere-se ao cenário legal. O racismo apresentou-se como ordenador das
práticas de cuidado, diferenciando racialmente o acolhimento e as histórias das mulheres que
recorreram ao hospital para interromper a gravidez decorrente de estupro. Os obstáculos ao
direito por meio da fofoca figuraram como uma particularidade das cidades de pequeno e médio
porte devido à ausência do anonimato. Por fim, discutimos as novas narrativas que negam o
direito ao aborto legal.
O terceiro eixo compreende o debate entre esterilização e aborto. A cultura da
esterilização (BERQUÓ, 1996) materializa-se em práticas de vigilância dos corpos das
mulheres negras, jovens pobres e dos sítios. Essas são as mais afetadas com a justificativa de
que são muito pobres ou já têm muitos(as) filhos(as). A maternidade como um direito cede
lugar à maternidade vigiada, em que as relações de raça, classe e território impõe as mulheres
o número de filhos que elas podem ter. A vida reprodutiva das mulheres negras, jovens pobres
e das zonas rurais é marcada pelo controle. Ao negar-lhes políticas contraceptivas e o aborto
legal e seguro, o Estado apresenta para elas a esterilização com alternativa.
Por fim, nas considerações finais discutimos os aprendizados do processo e apontamos
a importância de estudos sobre aborto em uma perspectiva racial, bem como outros temas
correlatos, a saber: violência obstétrica, vida reprodutiva e saúde sexual.
29

2 A PESQUISA FORA DOS GRANDES CENTROS: O ENCONTRO COM AS


HISTÓRIAS SOBRE ABORTO NO SERTÃO

A pesquisa sobre aborto é pedregosa e árdua. As pesquisadoras sobre aborto no Brasil,


conscientes desses desafios, empreendem pesquisas a partir de uma multiplicidade de
procedimentos metodológicos: técnicas de urna, questionários, pesquisa de opinião, entrevistas
em leito hospitalares, entrevistas por telefone, construção de redes de contato informais, estudos
dos sistemas de dados públicos, etc. Essa diversidade de técnicas e procedimentos tem como
objetivo o aprofundamento do tema complexo, polissêmico e envolto em segredos que é o
aborto.
As pesquisas são quse todas realizadas nos grandes centros urbanos brasileiros.
(MENEZES; AQUINO, 2009). Há poucas pesquisas que se debruçam sobre a prática do aborto
em regiões interioranas e menos ainda pesquisas que acontecem no sertão nordestino, como
abordaremos no capítulo seguinte. Partindo dessa lacuna, propus a pesquisa no sertão de
Pernambuco com o objetivo de compreender práticas e modos de pensar o aborto. Considero
necessárias pesquisas com metodologias diversas para analisar um fenômeno tão complexo.
De acordo com Diniz e Medeiros (2010), os estudos sobre a magnitude do aborto no
Brasil são realizados por meio de três abordagens metodológicas: utilizando os registros de
internação hospitalares; pesquisas à beira do leito com mulheres internadas por abortamento; a
combinação de novas técnicas de metodológicas, bem como a preocupação de pesquisar aborto
fora do ambiente hospitalar. Diversas pesquisas vêm investindo esforços nesse sentido (TUSSI,
2011; SAMPAIO, 2013; DIORGENES, 2014; RIBEIRO, 2014; SILVEIRA; MCCALLUM;
MENEZES, 2016; FERRARI; PERES; NASCIMENTO, 2018; BERALDO; BIRCHAL;
MAYORGA, 2017; GUIMARÃES; ALMEIDA; CARNEIRO, 2018), bem como a utilização
da internet como estratégia metodológica (DUARTE; MORAES; ANDRADE, 2018) para
aprofundar as discussões sobre aborto no Brasil.
Entretanto, os estudos de Tussi (2011) e Sampaio (2013) inspiraram minhas escolhas
metodológicas na pesquisa. A observação participante, a partir das lições etnográficas, reveste
a pesquisa com nuances e delicadezas que eu julgava necessárias para alcançar meus objetivos.
Dessa forma, viajei para São Elesbão de Assum, permanecendo durante 14 meses, com o intuito
de aprender a pesquisa sobre aborto fora dos grandes centros. Realizei observação participante
no hospital geral da cidade, mas também em diversas situações outras que escaparam a esse
local, além disso, entrevistei algumas jovens que se disponibilizaram. Porém a observação
30

participante constituiu minha ferramenta metodológica privilegiada. Desloquei-me em diversas


regiões do sertão e me deparei com uma série de dificuldades e desafios.
Anterior à entrada em campo, elaborei tanto um roteiro de entrevista quanto um roteiro
de observação. Meu objetivo era instrumentalizar o olhar para não realizar uma etnografia
selvagem (TORNQUIST, 2007), sem parâmetros para observação e me envolvendo demasiado
nos processos. Infelizmente, pesquisar em uma cidade de médio porte do sertão pernambucano,
onde as relações interpessoais são regidas por reciprocidade e proximidade, exige da
pesquisadora novas estratégias e jogos de cintura. Fui requisitada todo o tempo para me
envolver com os processos do hospital do sertão, como organização de documentos e orientação
quanto aos procedimentos de aborto legal no hospital, promovi capacitação junto à equipe
psicossocial e participei de reuniões com o diretor do hospital com o objetivo de criar fluxo de
atendimento em relação ao aborto legal. Ainda presenciei inúmeras situações de violência, de
diferentes níveis, perpetradas pelos agentes profissionais, que me assaltavam cotidianamente
com reflexões éticas e com ponderações sobre o papel da pesquisadora de campo e os limites
da pesquisa nas práticas sociais e sua função para transformação social. As minhas práticas
enquanto pesquisadora precisaram ser sistematicamente questionadas.
Assim, por questões éticas, não caracterizamos a cidade e o hospital que serviram como
espaço geográfico para a pesquisa. O hospital do sertão é o único hospital geral do município e
de toda a região. Mesmo que garantíssemos o anonimato do serviço, este seria facilmente
identificado, caso o nome da cidade fosse utilizado. Nomearemos o município do sertão
pernambucano que realizamos a pesquisa de São Elesbão de Assum4 e traçaremos um perfil
mais geral de forma que não seja possível identificar a cidade. Além disso, todos os nomes das
participantes da pesquisa são fictícios e me reportarei ao hospital com o termo hospital do
sertão.
Dito isto, os itens a seguir expressam o esforço em tornar inteligível o encontro entre os
meus pressupostos teóricos e a imersão no trabalho de campo.

4
São Elesbão de Assum é um santo negro católico, muito cultuado entre a população negra brasileira católica
desde a escravidão. Elesbão foi um rei etíope do século VI e o seu reino se chamava Assum. As imagens retratam
Elesbão como um santo guerreiro, com uma lança na mão e pisando em uma pessoa branca. Ver mais em:
<https://revistaraca.com.br/o-rei-negro-que-virou-santo/>. Acesso em: 10 jan. 2020. O nome de São Elesbão de
Assum foi escolhido para retratar a fé católica compartilhada entre a maioria da população da cidade e frisar que
a maioria da população da cidade é negra.
31

2.1 “Ofélia, conhece alguma história de aborto?”: a pesquisa narrativa como caminho
“Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas
para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem ser usadas para
capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo. Mas
histórias também podem ser usadas para recuperar essa dignidade perdida. [...]
Quando nós rejeitamos uma história única, quando percebemos que nunca há
uma única história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de
paraíso”. (ADICHIE, 2010, documento eletrônico)

Essas palavras foram proferidas por Chimamanda na Conferência Anual TED-Global,


em 2009, em Oxford, e atentavam para os perigos de uma história única. Tive acesso a esse
discurso depois do trabalho de campo, porém essas palavras me levaram diretamente ao Sertão.
Antes, muitas dúvidas sobre o tipo de pesquisa que faria e se a pesquisa narrativa seria mais
adequada me invadiram. Afinal, eram histórias o que eu ouviria nos corredores do hospital?
Sobre aborto, as pessoas gostam de dar a sua opinião: sou contra, sou a favor, as mulheres são
assassinas, as mulheres são vítimas.
É verdade que muito disso aconteceu. Porém, as opiniões das pessoas estavam quase
sempre acompanhadas de alguma história sobre o lugar, sobre as pessoas, familiares, sobre o
próprio hospital. Logo no início do trabalho de campo compreendi que ouvir histórias seria uma
estratégia metodológica adequada para discutir um tema delicado, pois criminalizado e
socialmente reprovado, em uma região em que histórias se tornam fofocas que podem destruir
os laços das pessoas naquela comunidade. Mas por essas mesmas histórias é possível conhecer
modos de vida, de pensar e de refazer. ‘Ouvir histórias’ se tornou uma estratégia para se
aprofundar sobre aborto no sertão. As mulheres não precisariam contar as próprias histórias
para uma pesquisadora diante de um gravador. As entrevistas requereram energia e tempo e
foram materiais valiosíssimos para a pesquisa. Entretanto, as histórias que irrompiam pelos
corredores do hospital cotidianamente estruturaram o trabalho de campo.
No segundo mês de trabalho de campo me certifiquei que ouvir histórias era o que eu já
estava fazendo em campo e que essas histórias importavam. Exatamente no dia 03 de agosto de
2018, uma técnica de enfermagem, chamada Luciana, passa por mim pelo corredor e comenta
sobre as discussões da ADPF que viu no Facebook. Ela relata, mas expõe sua opinião de forma
agressiva e acusa as mulheres que abortam de assassinas: “Porque eu vejo aqui várias mulheres
chegando, é assim, mata uma, duas, três, quatro gestações. É quase um assassinato em série”
(Diário de campo, 03/08/2018). Eu quis contra-argumentar com Luciana. Como nos alerta
Clandinin e Connelly (2011) nós, pesquisadoras narrativas, nos encontramos no entremeio de
um conjunto de histórias: as nossas e a de outras pessoas. Confesso que argumentei um pouco,
senti que queria contar as minhas histórias, mas cedi rapidamente, balancei a cabeça e disse que
32

seu ponto de vista era completamente plausível. Nesse instante, uma janela se abriu e Luciana
disparou a me contar histórias. Histórias fragmentadas, apressadas, porém incisivas, histórias
de corredor. O mais impressionante é que ela me puxou e saiu pelo corredor do hospital do
sertão colhendo histórias.
Uma outra técnica que estava no posto de enfermagem, uma técnica não muito
simpática, pergunta para Luciana: “E você está falando isso de abortar por
quê?”. E Luciana olha para mim e fala: “Ela está fazendo uma pesquisa sobre
abortamento”. “Ah”, responde a técnica. “Ai ela está pesquisando como as
mulheres fazem aborto”, responde Luciana. Nesse momento ela usa a palavra
aborto. “Ofélia, conhece alguma história sobre aborto? ”, pergunta Luciana.
“Ah tem muito. Cabacinha, chá de sena”, explicou a técnica não muito
simpática. Falou o nome de outras ervas também que agora não me recordo.
Luciana também fala de uma erva chamada cantinga branca. “Na zona rural
tem muita história, vou conversar com a minha sogra para te contar as
histórias”, me disse Luciana. “Me conte mesmo”, respondi (Diário de Campo,
03/08/2018).

A partir desse evento comecei a me debruçar sobre o que é uma pesquisa sobre histórias,
o que são narrativas e o que significa fazer uma pesquisa sobre aborto a partir de narrativas, o
que diferenciava uma pesquisa sobre aborto a partir de narrativas e porquê esse seria o caminho.
Estava movida pela curiosidade de conhecer as histórias sobre aborto das mulheres do Sertão,
mas também queria conhecer a experiência do sertão, de homens e mulheres, com a prática de
aborto, em uma perspectiva racializada. Assim, inspirada por Jovchelovitch e Bauer (2007, p.
91), parto do pressuposto que “não há experiência humana que não possa ser expressa na forma
de uma narrativa”.
Para Patai (2010), narrar é contar uma história, mas não se trata de um processo natural
que irá refletir de modo didático e sistemático e fiel a realidade. Antes, se refere a uma interação
construída em um momento específico mutuamente entre duas ou mais pessoas. As narrativas
são contingentes, parciais e inacabadas; são processos atravessados pelas estruturas de poder e
sistemas de opressão (PATAI, 2010).
Corroborando com essa concepção, Grubin e Holstein (2009) explanam que as
“narrativas são socialmente construídas e individualmente compostas”. De acordo com os
autores, os processos narrativos configuram intertextualidades nas quais os textos se
intercruzam, influenciam uns aos outros, formando uma rede de histórias que implicam um
significado prático. A intertextualidade na perspectiva das confluências narrativas permite uma
retrospectiva e prospectiva das histórias contadas, complexificando as experiências da vida
social cotidiana. Pensar em narrativas significa olhar para as práticas de aborto no sertão de
forma maleável, pois não se trata de discursos institucionalizados, mas das resistências,
fracassos, presenças e omissões que compõe os percursos abortivos das mulheres, e das
33

mulheres negras em especial. As narrativas indicaram reflexões sobre como as relações sociais
racializadas no sertão constituem um cenário onde práticas de aborto ocorrem e histórias sobre
aborto circulam.
Ainda compreendemos narrativas nos termos de Brockmeier e Harré (2003), como
realidade discursiva, ou seja, como uma forma legitima de conhecermos o mundo. Desde que
nascemos somos inseridos em processos sociais, no qual o conhecimento é passado através de
histórias. Elas não dizem respeito a uma realidade paralela ou acontecimentos falsos, tampouco
a realidades isoladas. De acordo com os autores, é através das narrativas que compreendemos
os contextos mais variados e complexos da experiência humana, individual e coletiva. Assim,
narrativas são o conjunto de estruturas linguísticas e psicológicas transmitidas histórica e
culturalmente (BROCKEMEIER; HARRÉ, 2003). Ou seja, essas apresentam uma base
histórico-cultural de produção. Por mais que os repertórios das narrativas sejam locais, elas
estão inseridas nas lógicas culturais e nos padrões discursivo mais amplos e estruturais. A forma
como as histórias são contadas obedecem a esses padrões, mas também se desviam deles.
Lembro-me uma vez, quando estava inserida na pesquisa de campo do mestrado, que a história
sobre aborto contada por uma jovem em particular fugia ao padrão da ‘justificativa’ que era
recorrente entre as jovens: disse que a dor era suportável e narrou tudo de maneira linear e
tranquila. Em um contexto de criminalização as histórias geralmente não seguem essa linha.
Outro ponto salutar é o caráter coletivo das narrativas. Apesar das histórias serem
ouvidas como narrativas singulares e vozes particulares, elas dizem respeito ao modo coletivo
de experienciar o mundo. “Cada palavra enunciada ou narrativa carrega consigo o traço de todos
os sujeitos, possíveis e reais, que já empregaram tal palavra, enunciado ou narrativa”
(BROCKMEIER; HARRÉ, 2003, p. 529). Se admitimos que as narrativas são produções sociais
e históricas, que seguem padrões discursivos, além de nos distanciarmos da concepção da
existência de uma narrativa verdadeira ou a narrativa como manifestação natural dos padrões
mentais, nos filiamos a uma percepção do caráter coletivo dessas produções. Como não existe
uma estrutura pré-discursiva nas narrativas (BROCKMEIER; HARRÉ, 2003), estas são modos
específicos de construção da realidade, uma forma de organizar e sistematizar as nossas
experiências no mundo.
A dimensão da experiência coletiva das mulheres negras é elemento fundante no
feminismo negro. Os traços distintivos do pensamento feminista negro, em consonância com
Patricia Hill Collins (2012), dizem respeito ao conhecimento coletivo das mulheres a partir de
seus pontos de vistas. As experiências históricas com o colonialismo, escravidão, diásporas,
racismo, miscigenação, por exemplo, são corporificados nos sujeitos, mas não se limitam a
34

estes. Estão dentro de uma lógica ampla das relações sociais que norteiam o modo como os
sujeitos organizam e compreendem suas experiências no mundo. Assim, acredito que as
narrativas, na perspectiva apresentada, foram pontes que possibilitaram as conexões entre as
experiências das mulheres, e das mulheres negras em especial, e o conhecimento coletivo negro
e heterogêneo que este campo constitui.
Diante do exposto, pesquisa narrativa diz respeito à sistematização da experiência dos
sujeitos, a partir de um processo dialógico entre “pesquisadora” e “pesquisada”. Na pesquisa
narrativa que desenvolvi, inspirei-me na metáfora do espaço tridimensional elaborado por
Clandinin e Connelly (2011), em que a pesquisa narrativa é constituída pela interação, situação
e continuidade. É nesse espaço que encontram-se as pesquisadoras narrativas, interpretando as
experiências humanas enquanto costuram histórias. No espaço tridimensional da pesquisa
narrativa, a estrutura se desloca em termos introspectivo, extrospectivo, retrospectivo e
prospectivo, situadas em um lugar (CLANDININ; CONNELLY, 2011).
O deslocamento introspectivo e extrospectivo diz respeito, de acordo com os autores, a
relação entre o pessoal e o social que são consideradas no processo e precisam ser devidamente
balanceadas. O retrospectivo e prospectivo referem-se ao passado, presente e futuro, pois as
investigações abordam assuntos temporais. Essas dimensões se movem em um lugar ou em um
encadeamento de lugares (CLANDININ; CONNELLY, 2011).
Em campo, essa forma de pensar a pesquisa ampliou o meu olhar para as histórias que
encontrei. Era uma situação social de ilegalidade e condenação social que, ao mesmo tempo em
que freava e dificultava que eu tivesse acesso a histórias pessoais, permitia que eu ouvisse
diversas histórias de outras pessoas. Histórias que as pessoas contam de outras pessoas. Além
disso, as histórias, as posturas e as opiniões das pessoas sobre aborto aconteceram dentro de um
lugar muito específico, um hospital com setor de obstetrícia que deve prestar um serviço
humanizado, acolhedor, livre de julgamentos e discriminações. Isso não acontecia no cotidiano
e estava presente na forma como as pessoas, especialmente os profissionais de saúde, narravam
para mim os casos de mulheres em abortamento que procuravam o serviço. Ademais, as minhas
próprias condições pessoais, as histórias sobre aborto que já escutei e conformam o modo que
eu penso o tema, reconstruíram aquela paisagem narrativa durante os oito meses de trabalho de
campo no hospital.
Ainda inspirada pelos autores, pude me deslocar no tempo de como as coisas
funcionavam antes, no passado, naquele mesmo hospital e como funcionam agora. Algumas
mulheres estavam em sua segunda ou terceira experiência com o serviço, algumas profissionais
já estavam ali há mais de dez anos, algumas acompanhantes tiveram seus filhos no hospital na
35

década de 1990. Compreendi o hospital a partir de uma temporalidade. Um passado que se


narrava no presente, sendo ressignificado no curso da conversa. A partir desse campo teórico-
metodológico refleti sobre o que seria realizar uma pesquisa narrativa sobre aborto em uma
perspectiva racial e decolonial. Os autores do campo da pesquisa narrativa expõem
preocupações éticas com a pesquisa (PATAI, 2010), consideram a pesquisa a partir de questões
multiculturais e com compromisso social (CLANDININ; CONNELLY, 2011). Porém, é um
conhecimento produzido em uma região conhecida como países de primeiro mundo. Esse fato
me tomou e reflito sobre o que seria pensar uma pesquisa decolonial. Alinhada com Boaventura
de Souza Santos (2009) distancio-me do pensamento abissal e considero que as linhas políticas
globais pertencem a um emaranhado de complexidades; as linhas que separam os do lado de cá
e os do lado de lá se expandem e se encolhem em movimentos político-sociais. Entretanto,
realizar uma pesquisa narrativa sobre aborto em um país do sul global, com legislação
reprodutiva restrita e com largo controle sobre os corpos das mulheres, impõe especificidades.
Acredito que pensar a pesquisa narrativa a partir de um lugar desvalorizado socialmente
como é o sertão pernambucano necessita do que Santos (2018) denomina de desobediência
epistêmica. Uma desobediência epistêmica que permite questionar o que seria uma boa história,
descrita por Jader F. Gubrium (2003) como aquela que soa como verdadeira, é cativante e
entretém, apresenta riqueza de detalhes, ao mesmo tempo em que sabe que detalhes demais
fazem o ouvinte perder o interesse. A partir da epistemologia decolonial uma boa história é
aquela que consegue demonstrar a fratura decolonial que tornou possível aquela narrativa de
uma certa maneira.

2.2 “Que pesquisadora é essa que nem caderno tem?”: observação participante, bloco de
notas, diário de campo e entrevistas

Na composição das análises que dão corpo a este texto de pesquisa, somos conduzidas
pelo pensando de Adichie (2010) ao rejeitar uma história única. Desestabilizamos as noções
que criam os critérios sobre as histórias que importam. Diversas histórias importam e a
multiplicidade de histórias reconquista paraísos. Digo isso, pois a despeito do passado colonial
e imperialista da etnografia, essa tradição teórica e metodológica ensina lições sobre uma certa
experiência de campo que se mostraram imprescindíveis no cotidiano do campo no hospital do
sertão. O método etnográfico permite que vejamos os detalhes, acontecimentos, acasos, pessoas
que por vezes escapam dos critérios daquilo que importa para as pesquisas sociais. Elencamos
36

o ‘público-alvo’ e tudo aquilo que o circunda é critério de exclusão, ou na melhor das hipóteses,
‘fundo’ da figura.
Esse modo de fazer pesquisa é importante e pertinente em inúmeras situações
respondendo a objetivos outros de pesquisa. Porém, ao encontrar os velhos conselhos
(TORNQUIST, 2007) das discussões etnográficas, pude perceber que a pesquisa que
responderia minhas perguntas, objetivos e anseios seria uma pesquisa como um processo de
convivência entre pessoas (SATO; SOUZA, 2001). Essa convivência ensinou-me sobre um
tema que já estudo há oito anos, redirecionou meu olhar, demoliu certezas e abriu um cenário
de novas perguntas. A todo tempo eu era confrontada em meu papel de pesquisadora. Não
houve um dia, durante os 14 meses de pesquisa que não refleti intensamente sobre a minha
presença naquela paisagem, que tipo de pesquisa estava empreendendo e quais as implicações
éticas desse processo. Assim, posiciono essa pesquisa nos termos de Denzin e Lincoln (2006),
como pesquisa qualitativa, pois apresenta significados diferentes em cada momento histórico
específico. Todavia, é possível definir que “a pesquisa qualitativa é uma atividade situada que
localiza o observador. Consiste em um conjunto de práticas materiais e interpretativas que dão
visibilidade ao mundo” (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 17). A pesquisa qualitativa é,
sobretudo, uma interpretação de uma dada dinâmica social e o(a) pesquisador(a) é um bricoleur
interpretativo.
O bricoleur interpretativo entende que a pesquisa é um processo interativo
influenciado pela história pessoal, pela biografia, pelo gênero, pela classe
social, pela raça e pela etnicidade dele e daquelas pessoas que fazem parte do
cenário. O bricoleur político sabe que a ciência significa poder, pois todas as
descobertas da pesquisa têm implicações políticas (DENZIN; LINCOLN,
2006, p. 20).

A concepção da pesquisadora como bricouler interpretativo guiou-me e se consolidava


nos momentos que era confrontada em campo. Ao contrário de algumas reflexões sobre a
autoridade da pesquisa ou, ainda, distanciando-me das experiências das próprias colegas de pós-
graduação5, não considero que eu tenha usufruído de uma autoridade de pesquisadora. Muitas

5
Participei do Encontro de Mulheres Negras Sertanejas em 31 de julho de 2018, em uma cidade localizada a
242km de São Elesbão de Assum.. Na ocasião, encontrei uma colega da pós-graduação que também realiza
pesquisa em cidades do sertão. Durante o dia conversamos sobre os desafios da pesquisa de campo, até que em
um momento ela ‘soltou’: “Mas as coisas ficam mais fáceis quando você fala que é de Recife, porque todo mundo
quer ajudar a ‘pesquisadora da capital’, a pesquisa tem prestigio”. Aquilo me incomodou por um tempo. Eu
estava em campo apenas há um mês, tal como ela, e não sentia isso. A autoridade da pesquisa aconteceu em um
tempo e espaço muito especifico ao longo do trabalho de campo. Depois das palavras dela, passei vários meses
esperando esse momento chegar e isso não aconteceu. Talvez, por não me encaixar no ‘estereótipo do pesquisador
em campo’, por ser jovem e negra, não era revestida por essa autoridade. Escrevo recordando-me das diversas
vezes que as pessoas referiam-se ao meu cabelo, ora exotificado, ora de forma pejorativa. Assim, aprendi também,
a partir das lições etnográficas, que a qualidade das nossas relações em campo depende, em parte, de quem nós
somos e aparentamos ser.
37

vezes os sujeitos com quem convivia não manifestaram interesse pela pesquisa e muitas vezes
diziam que eu não estava ‘fazendo nada’.
Algum tempo depois, a técnica de imobilização da ortopedia sai da sala, que
fica ao lado da espera obstétrica e pergunta para mim: “e aí? Muito trabalho?”.
Ela é jovem, banca, com cabelos lisos e muito simpática. Digo que está muito
parado e ela me corta de súbito: “mulher nem diga uma coisa dessa!”. E
começa a brincar comigo dizendo que se chegar gente eu vou atender. Ela me
conta que está gestante de nove semanas do seu primeiro filho ou filha. Pior é
que logo depois começa a chegar muito paciente para a ortopedia. Ela e o
rapaz da portaria da emergência adulta, Bentinho, continuam a brincadeira e
ele diz rindo: “bota ela para imobilizar [os pacientes da ortopedia], tá sentada
aí sem fazer nada”. A gente ri e a fala de Bentinho me faz pensar sobre a
imagem que posso ter no hospital. Assemelha-se bastante com as brincadeiras
de Seu Peixoto comigo, sempre questionando, em meio a risadas, sobre que
tipo de pesquisa eu estava fazendo. Um dia quando eu estava tomando notas,
discretamente, sentada nos bancos de convivência em frente a santa e a
televisão, ele passou e perguntou se eu estava estudando a santa. (Diário de
Campo, 14 de agosto de 2018).

Essas situações, falas, brincadeiras eram frequentes. Tanto entre as pessoas com quem
mantive relações mais próximas, quanto entre aquelas que visivelmente sentiam antipatia pela
minha presença, pela pesquisa ou pelos dois. Uma das enfermeiras, que deixou sempre claro
sua opinião contrária ao aborto, dirigiu-se a mim e disse sem cerimônias: “já chegou? Já tas ai
sem fazer nada?”. Todavia, Seu Peixoto6, era, sem sombra de dúvidas, a pessoa que mais me
afetou e me trouxe reflexões sobre o fazer-pesquisa. Ele se referiu à pesquisa de diversas
formas: como necessária, como coisa de gente com cultura, até como diamante e nunca deixava
de dar dicas: “pesquisa tem que ter caderno, cadê o caderno?”. Até que um dia irritado, passou
por mim apressado, parou, abriu os braços como quem faz uma pergunta e disparou com seu
jeito ao mesmo tempo bruto, típica postura dos cabra da peste, e gentil: “Que pesquisadora é
essa que nem caderno tem?”. Um outro dia, para acalmá-lo, mostrei o caderninho de notas que
levava preso na calça, embaixo da blusa. Pareceu-me que esse gesto o deixou mais satisfeito.
Toda essa digressão aponta que a observação participante escapa aos receituários e aos
mandamentos da ‘boa observação’. A inserção no campo aconteceu impregnada por esses
mandamentos, mas a experiência e a prática em campo trouxeram desafios que foram
contornados e/ou refletidos a partir das lições etnográficas.

6
Seu Peixoto é um senhor de cerca de 60 anos, baixinho e magrinho, pequeno, racialmente considerado pardo,
provavelmente. Seu Peixoto andava sempre apressado e falava de maneira caricata, engraçada, bruta e gentil ao
mesmo tempo. Trabalha no hospital há mais de 40 anos e me contava muito sobre a cidade e sobre as construções
de masculinidade na região de Lampião. Ele foi um interlocutor interessante durante a pesquisa. Figurou por todo
os 14 meses, nunca me contou uma única história sobre aborto, porém causou-me reflexões valiosas sobre o
fazer-pesquisa.
38

A psicologia social, como arranjo híbrido e interdisciplinar (ANDRADA, 2010) e o


método etnográfico apresentam pontos de contato (ANDRADA, 2010; SATO; SOUZA, 2001)
que permeiam a própria trajetória desses dois campos de saber. O encontro entre o método
etnográfico e a psicologia social permite uma reflexão aprofundada da relação entre pesquisador
e ‘pesquisados’. Ao nos propormos observar a construção dos sujeitos imersos nas teias de
construções sociais, nos impomos o desafio de repensar a prática da pesquisa cotidianamente.
Apesar do método etnográfico conceder à pesquisadora uma certa liberdade em campo, requer
mais disciplina, rigor e compromisso ético (ANDRADA, 2010).
Um dos rigores metodológicos que emergem do encontro entre psicologia e o método
etnográfico remonta aos velhos conselhos (TORNQUIST, 2007) de pesquisa: falhas,
dificuldades e angústias são elementos importantes construídos na relação entre pesquisadores
e interlocutores daquilo que estamos debruçados em conhecer, portanto dizem muito do ‘objeto
estudado’ (ANDRADA, 2010). Nas palavras de Clifford Geertz (2008):
Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de "construir uma leitura de")
um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais
do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado
(GEERTZ, 2008, p. 7).

Na pesquisa etnográfica não existe um script a ser seguido. O andamento do cotidiano


da pesquisa através da observação vai impondo à pesquisadora construções de estratégias para
produzir os dados em campo. Contudo, essa liberdade anárquica (SATO; SOUZA, 2001) não
pode ser confundida com ausência de rigor metodológico e ethos cientifico (PEIRANO, 1995).
As longas estadas em campo para cultivar a convivência é a estratégia privilegiada desse tipo
de pesquisa.
O que me atrai no método etnográfico, para aprender sobre observação participante a
partir dos ensinamentos desse método, é a busca pela totalidade dos processos sociais
(GEERTZ, 2008). Na pesquisa a partir desse método a realidade não emerge recortada. Ela está
ali em sua totalidade, revelando fatos, acontecimentos, personagens e histórias que a princípio
estão distantes dos objetivos de pesquisa, porém aprofundam e situam o nosso objeto de estudos
em outros sistemas de significados, conduzindo-nos a novas perguntas.
Geertz (2008) nos convida a olhar para a etnografia como uma prática interpretativa das
culturas, que repousa nas observações e diários de campo, mas vai além, pois diz respeito a um
esforço intelectual que busca um olhar de perto e de dentro das dinâmicas sociais que se
pretende compreender. A descrição etnográfica densa, no sentido do autor, não se restringe a
uma descrição detalhada da realidade observada, mas compreende o empreendimento
39

etnográfico como a própria construção das pesquisadoras acerca das construções de outras
pessoas.
Nossa dupla tarefa é descobrir as estruturas conceptuais que informam os atos
dos nossos sujeitos, o "dito" no discurso social, e construir um sistema de
análise em cujos termos o que é genérico a essas estruturas, o que pertence a
elas porque são o que são, se destacam contra outros determinantes do
comportamento humano. Em etnografia, o dever da teoria é fornecer um
vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer sobre
ele mesmo — isto é, sobre o papel da cultura na vida humana (GEERTZ, 2008,
p. 19).

Assim, o autor ainda situa a pesquisa etnográfica como processo interpretativo e também
como experiência pessoal. A etnografia como prática e como experiência é diferenciada por
José Guilherme Cantor Magnani (2009) ao apreender a prática etnográfica traduzida em
planejamento e sistematicidade e a experiência etnográfica localizada no campo do inesperado
e do descontínuo. A partir de Geertz (2008) e Magnani (2009), compreendo que os dados
produzidos ao longo do trabalho de campo são resultados do entrelaçamento dessas duas
dimensões.
Recorri ao planejamento e sistematicidade. Antes da inserção em campo realizei leituras
sobre etnografias em serviços de saúde, delineei um roteiro de observação, construí
pressupostos, mapeei o serviço de saúde e possíveis interlocutores-chaves. Atenta ao ethos
científico e ao necessário rigor metodológico (PEIRANO, 1995), a observação participante era
sucedida pela construção de diários de campo rotineiros e detalhistas, buscando descrever e
interpretar. A experiência vivida a partir de uma imersão no ambiente onde ocorre o estudo,
conduziu-me, como já mencionado, a um processo de intensa reflexão sobre a pesquisa e sobre
a convivência com as pessoas que davam corpo ao serviço de saúde observado. O inesperado
enriqueceu as análises de campo, reformulando meus objetivos e me trazendo o olhar da
totalidade7 da prática estudada. O encontro frutífero com esses acontecimentos inesperados, em
um plano descontínuo do trabalho de campo, só foi possível porque anteriormente houve
cuidado, planejamento e continuidade da observação participante.
Diante do exposto, não se tem a pretensão de afirmar a pesquisa em questão como uma
pesquisa etnográfica. Assim como Magnani (2009), distanciamo-nos de uma utilização

7
Totalidade aqui é compreendida nos termos de Magnani (2009, p. 138): “uma totalidade consistente em termos
da etnografia é aquela que, experimentada e reconhecida pelos atores sociais, é identificada pelo investigador,
podendo ser descrita em termos categoriais: se para aqueles constitui o contexto da experiência diária, para o
segundo pode também se transformar em chave e condição de inteligibilidade. Posto que não se pode contar com
uma totalidade dada, postula-se uma, nunca fixa, a ser construída a partir da experiência dos atores e com a ajuda
de hipóteses de trabalho e escolhas teóricas, como condição para que se possa dizer algo mais do que
generalidades e platitudes a respeito do objeto de estudo”
40

banalizada do método etnográfico. Entretanto, a observação participante, procedimento de


pesquisa privilegiado desta pesquisa, seguiu algumas lições etnográficas: a observação
participante como prática e experiência, enervando todo texto de pesquisa com a produção dos
dados em trabalho de campo, considerando que conhecer relações, práticas, acontecimentos,
fatos nos locais escolhidos para observar, requer tempo e busca realizar algumas reflexões sobre
a totalidade. Ou seja, na pesquisa através da observação participante no hospital do sertão,
busquei compreender práticas e modos de compreender o aborto em uma perspectiva
racializada, a fim de contribuir para as discussões sobre os impactos da criminalização do aborto
no Brasil.
Ainda sobre a observação participante, de acordo com Rios (2012, p. 191), “essa técnica
de investigação exige do pesquisador o aguçar dos sentidos de ver e ouvir, e pede sua
disponibilidade para a realização de conversas informais, de modo a fazer emergir reflexões
sobre os assuntos que interessam direta ou indiretamente à pesquisa”. As conversas informais
irromperam durante toda a pesquisa de campo e significaram um alento em uma pesquisa sobre
segredos construídos no seio de uma sociedade com traços de interconhecimento. A observação
participante no hospital do sertão possibilitou o encontro com histórias sobre aborto, narradas
através dessas conversas nos corredores do hospital, na pracinha de convivência, nas salas de
atendimento, nas recepções. Possibilitou, ainda, ‘ver’ histórias que se desenrolavam diante dos
olhos, descortinando as estruturas das práticas e compreensões sobre aborto daquele grupo.
Realizei algumas entrevistas do tipo narrativas para conhecer experiências de aborto
vividas fora do hospital. Segundo Muylaert et al. (2014), “as entrevistas narrativas se
caracterizam como ferramentas não estruturadas, visando a profundidade de aspectos
específicos, a partir das quais emergem histórias de vida, tanto do entrevistado como as
entrecruzadas no contexto situacional”.
Propomo-nos a construir uma pesquisa narrativa que se debruça sobre histórias e a
conversa com as mulheres que entrevistei seguiram um curso maleável, desprendidas de
roteiros rígidos, em que as histórias sobre aborto se entrecruzaram com histórias de violência,
negligências, omissões sobre a vida reprodutiva e sexual das mulheres. A empreitada para obter
essas entrevistas será discutida mais à frente, em item específico. Aqui compreendo que as
entrevistas não compõem uma outra etapa do trabalho de campo. Elas integram esse mote maior
da observação participante como estratégia metodológica privilegiada da pesquisa.
As entrevistas foram necessárias porque o trabalho de campo como experiência situou-
me em dois campos de observação: o hospital do sertão e a cidade como um todo. As histórias
sobre aborto que emergiam pelos corredores do hospital eram histórias sobre a cidade. O
41

esforço intelectual do trabalho de campo foi exaustivo, pois a observação participante ocorreu
de forma interpretativa, microscópica e detalhista (PEIRANO, 1995) no hospital, mas
transbordou por toda a cidade. Adiante explicarei como esse processo funcionou.
Por fim, os 14 meses de trabalho de campo foram cotidianamente registrados em diário
de campo. A princípio utilizei apenas um diário: o diário de campo do hospital. Porém, tomava
notas em bloquinhos desorganizados sobre as situações que ocorriam na cidade sobre aborto.
Assim, no segundo mês de trabalho de campo, uma história que ocorreu no serviço, mas que
circulou por toda a cidade, obrigou-me a escrever outro diário de campo: o diário de campo
sobre São Elesbão de Assum. Neste último diário, escrevi sobre as tentativas frustradas de
negociação com as entrevistas, as conversas nos bares e na faculdade, bem como a experiência
no Encontro de Mulheres Negras Sertanejas ocorrido em julho de 2018 em uma outra cidade
do sertão, a visita ao Quilombo localizado em São Elesbão de Assum, no dia 8 de setembro de
2018 e o Encontro de Parteiras da Chapada do Araripe, realizado na cidade de Exu em janeiro
de 2019.
Escrever sobre vastos acontecimentos entrelaçados empreendeu uma tarefa árdua. Para
realizá-la, seguindo rigor metodológico, inspirei-me, além das lições etnográficas, em Oliveira
(2014), ao apreender a construção do diário de campo enquanto dispositivo de informação e de
formação da pesquisadora, construída no cotidiano da prática da pesquisa. Embora, ainda de
acordo com a autora, os diários de campo não sejam rígidos e inflexíveis, considero pertinente
pensar a elaboração do diário de campo a partir de algumas composições, tais como: descrição
dos sujeitos com quem interagi da maneira mais completa possível, atentando para aparência
física, raça/cor, sugerindo idades (quando não foi possível perguntar), modos de agir, vestir e
falar; reconstruir os diálogos permitidos pela memória; descrevi os espaços onde ocorreram
fatos que julguei centrais; prestei atenção a acontecimentos particulares sobre aborto, mas
também sobre acontecimentos correlatos; descrevi imagens, atividades gerais e processos de
trabalho.
Atenta à pesquisa como processo de convivência entre pessoas, descrevi meu
comportamento e as minhas impressões nas diversas situações em campo. Toda descrição era
realizada a partir do meu ponto de vista e como me sentia posicionada naquele lugar de
pesquisadora. Refleti, ainda, sobre os constrangimentos e problemas éticos que enfrentei
durante todo o trabalho de campo. Os itens que compõem o diário de campo consideraram
também o espaço tridimensional da pesquisa narrativa (CLANDININ; CONNELLY, 2011),
deslocando-se temporalmente, referindo-se ao pessoal e ao social, e situando a descrição dos
acontecimentos em um lugar ou em sequências de lugares.
42

O diário de campo era o dispositivo utilizado para interpretar a dinâmica do hospital do


sertão e da cidade enquanto descrevia os acontecimentos do dia. Segundo Geertz (2008, p. 13),
“uma boa interpretação de qualquer coisa – um poema, uma pessoa, uma estória, um ritual, uma
instituição, uma sociedade – leva-nos ao cerne do que nos propomos interpretar”. Nessa
perspectiva o diário de campo era o meu caderno de interpretação, construído cotidianamente e
alerta aos detalhes, aos afetos, acontecimentos e pessoas. A minha estratégia para não perder as
nuances e detalhes das horas observadas era tomar notas de campo afastada das pessoas que
compunham a paisagem do meu campo de pesquisa. No hospital do sertão, quando o
movimento se tornava lento, dirigia-me para uma pracinha perto da ala pediátrica, onde era
menos conhecida. Nessa pracinha, havia uma pequena televisão analógica, suspensa ao lado de
uma santa padroeira da cidade. Nesse lugar sentava-me da maneira mais discreta possível,
anotando os diálogos que julgava mais relevantes, entre outros elementos.

2.3 “Aqui quem quiser passar precisa apresentar licença de lampião”: a pesquisadora
que se desloca no sertão.

Na psicologia social, Spink (2003, p. 22) oferece uma compreensão de campo como
“a situação atual de um assunto, a justaposição de sua materialidade e sociabilidade”. Segundo
o autor, o campo se inicia quando nos veiculamos à temática e se desenvolve em toda a trajetória
da pesquisa. Esse caminho é flexível, podendo tomar desvios diversos durante o processo. A
reflexão precisa ser uma constante para que os desvios e os objetivos da pesquisa dialoguem no
transcurso do trabalho de campo, no qual ocorre um trânsito de pessoas e eventos que constroem
tal processo e por ele são construídas. Todos os diálogos fazem parte do campo-tema, inclusive
os mais distanciados e vagarosos. O campo, portanto, é um campo-tema. “O campo é o
argumento no qual estamos inseridos: argumento este que tem múltiplas faces e materialidades,
que acontecem em múltiplos lugares diferentes” (SPINK, 2003, p. 28).
Partindo dessa compreensão de campo-tema, refletimos sobre a necessidade do
deslocamento geográfico para aprender sobre aborto e racismo. A princípio nossa proposta seria
realizar uma parte do trabalho de campo em Recife, capital do estado de Pernambuco e outra
parte do campo em Petrolina, cidade pertencente a região do Sertão do Vale do São Francisco.
A mudança de Petrolina para São Elesbão de Assum se deu por uma razão principal: o tamanho
da cidade. Petrolina é uma cidade grande, bastante urbanizada com quase 1 milhão de
habitantes. Concluímos que não era o que estávamos procurando. Era preciso ser uma cidade
polo com uma unidade de saúde de referência naquele entorno, mas também um lugar que
43

possibilitasse aproximações com comunidades rurais. Assim, São Elesbão de Assum despontou
como uma alternativa. São Elesbão de Assum é uma cidade de médio porte com diversos
serviços, incluindo um hospital geral que atende os municípios do entorno, mas com uma
população quase nove vezes menor que Petrolina e uma dinâmica de urbanização mais lenta e
uma paisagem mais associada a cidades pequenas8 do que aos grandes centros.
Depois que São Elesbão de Assum apresentou-se como alternativa, fui completamente
capturada pela curiosidade de estar lá, de me deslocar para fazer a pesquisa em das regiões por
onde passaram Lampião e Maria Bonita. Como grande parte do povo nordestino, cresci
escutando histórias do cangaço. A animação e a curiosidade motivaram-me na decisão de me
mudar para a cidade. Confesso que essa decisão foi tomada muito inspirada nas pesquisas
clássicas em antropologia em que a pesquisadora vai até o campo para estudar pessoas e/ou
cenários que não fazem parte do seu cotidiano, mas também consciente das dificuldades de
pesquisar aborto, acredito que o ‘ir e vir’ atrapalharia a imersão no trabalho de campo.
Um dos poucos pressupostos que não foram radicalmente modificados durante o
trabalho de campo se referiu a histórias sobre aborto como histórias de segredo. O cultivo do
segredo (PORTO, 2009) constituiu o solo por onde eu plantava relações para colher histórias e
esse solo não foi fértil, muitas vezes acompanhou as secas do sertão e se tornou seco, pedregoso
e pouco profundo. Demorei um pouco para compreender os frutos de uma pesquisa sobre aborto
naquele tipo de região. Entretanto, mesmo que as omissões, segredos e silêncios façam parte
dos dados produzidos, não teriam sido possíveis se eu não tivesse morado naquela cidade
durante um ano e dois meses.
Retomo a decisão de ir viver no sertão. Decisão tomada, comecei a partilhar com as
pessoas próximas que eu me mudaria para o sertão e viveria lá por cerca de um ano. O tempo
que duraria o trabalho de campo foi inspirado na pesquisa de Kelly Cristiane da Silva (2007)
realizada no Timor Leste. A autora reflete que trabalhos de campo longos significam um ritual
de passagem na vida de antropólogos. Inspirei-me nessa premissa e refleti que para ter uma
experiência de campo densa enquanto pesquisadora que se desloca, eu precisava de tempo.
No momento que comuniquei que viveria um ano no sertão, percebi o imaginário social
sobre as cidades do inteiror. Fui bombardeada de conselhos: que eu não precisaria viver no
sertão, que poderia ir e voltar, que “lá não tem nada para fazer”, que “eu iria ficar entediada”,

8
Quando eu cheguei na cidade só havia uma rede de supermercado, não havia supermercados de varejo, por
exemplo. Um Assaí e um Atacadão foram inaugurados dois meses depois que encerrei o trabalho de campo e
voltei para Recife. Havia algumas fábricas, destaco montadoras de automóveis. Mas um cenário modesto em
comparação aos grandes centros.
44

que “me sentiria sozinha”, e que “era desnecessário eu fazer isso”, que “uma coisa é ir ficar
dois dias, ir para uma festa, outra coisa é morar, você não vai aguentar”. O imaginário que
povoa o sertão é da seca, escassez, pobreza e tédio. Antes de ir morar definitivamente lá no
final de maio de 2018, eu ia e voltava para encontros do movimento de mulheres, ou para
conseguir a carta de anuência permitindo a pesquisa no hospital, ou para procurar apartamento.
Entre março e maio de 2018, idas e vindas rápidas à cidade começaram a compor o trabalho de
campo e nesses meses eu experienciei o cansaço de viajar sete horas de ônibus e ter que voltar
logo em seguida. Em uma dessas idas para a rodoviária para viajar durante a madrugada, o
motorista do Uber que estava perguntou para onde eu iria. Respondi que iria para São Elesbão
de Assum e expliquei toda a minha saga com a pesquisa e a preparação da mudança, que estava
animada, pois as intermináveis idas e vindas iriam finalizar e poderia realizar a pesquisa
tranquilamente. O rapaz disparou a me perguntar como estavam os bois da região, se havia
muita carcaça pela estrada, se as pessoas ainda estavam morrendo de fome e se tinha algo “de
decente para fazer na cidade”. A essa altura eu ainda não tinha vivido realmente na cidade, mas
esse nunca foi o cenário que povoou o meu imaginário sobre o sertão e me surpreendi com
aquelas palavras tão duras. Achei que ele já tivesse morado em alguma região com aquelas
características. Para minha surpresa ele respondeu que não, “nunca sai daqui não, o mais longe
que fui foi Garanhuns”.
A partir desse manancial de opiniões sobre o sertão, tomei consciência de que o
imaginário social sobre a região ainda é o da falta e o da pobreza. A despeito de todas as
políticas de desenvolvimento social empreendidas pelos Governos do PT, as pessoas com quem
conversei sobre a ida no sertão me mostraram que este ainda carrega uma imagem estereotipada.
Estranhei bastante as falas que escutei. Minha família materna é proveniente de Jacobina, uma
cidade localizada no centro-norte da Bahia, com cerca de 80 mil habitantes e, hoje,
relativamente urbanizada. Mas na minha memória de infância era rural, com bois, sítios,
banheiros improvisados embaixo de “pés de umbu”, terreiros de candomblé e muita comida.
Na verdade, quando minha mãe esteve com dificuldades financeiras e a alimentação ficou
escassa, ela me enviou junto com uma tia para Jacobina, onde vivi com meu avô e a sua esposa
durante alguns meses e não lembro da pobreza. Lembro de todo dia comer suspiro, fazer três
refeições e brincar na rua com as outras crianças. Éramos pobres; a casinha não tinha azulejo,
era de cimento queimado, o banheiro era do lado de fora, mas a alimentação era algo partilhado.
Encontrei isso também em São Elesbão.
O tédio e o medo de me sentir só não eram uma preocupação. A minha preocupação
central era se eu iria encontrar as histórias sobre aborto. Outra característica que constrói o
45

imaginário do Sertão é o conservadorismo. Uma região “conservadora”, que não fala sobre
temas como aborto, muito religiosa e provinciana. Confesso que esse segundo aspecto me
tomou e desenvolvi um medo profundo de não conseguir escutar as narrativas e práticas sobre
aborto no sertão. Cordovil (2007) argumenta que a pesquisa feita em várias viagens permite o
amadurecimento teórico da pesquisadora. Cogitei seguir esses passos e não viver realmente no
sertão. Mas, inspirada na mesma autora, acredito que o trabalho de campo é um manancial de
fatos, problemas, descobertas e angústias que necessitam de inteligibilidade e optei por não
trilhar esse caminho em trânsito. Agora, compondo os textos da pesquisa e passadas as
angústias, percebo que a estratégia de morar no sertão para produzir dados sobre racismo e
aborto foi a mais acertada.
Assim, tomada pela ansiedade e medo, me mudei para São Elesbão de Assum em maio
de 2018. Aluguei um apartamento na rua da prefeitura da cidade e a quatro quarteirões do
hospital regional onde desenvolveria a observação participante. Infelizmente, o meu
apartamento era em frente ao primeiro bar da cidade, que abria às oito da manhã e fechava
apenas às oito da noite. Frequentado majoritariamente por homens, as poucas mulheres que
apareciam esporadicamente estavam acompanhadas. As disputas de masculinidade duravam as
12 horas em que o bar estava aberto. Nas eleições, a situação piorou e o barulho era
insuportável. Entendi o que significava a premissa “terra de cabra macho”. Minha sorte eram
os dias passados no hospital.
O que vivi na cidade se diferenciou da maior parte das expectativas que escutei.
Encontrei uma cidade com movimento noturno e vida cultural relativamente intensa 9 com
museu, centro cultural, lugares para dançar, diversos bares, feiras literárias, festivais de música,
uma cena LGBT frenética, duas universidades públicas e inúmeras particulares, grupos de
estudos de gênero, além de movimentos sociais, em particular de mulheres que se organizam
no campo e na cidade.
Entrosei-me na cidade facilmente. Além das mulheres rurais organizadas, conheci uma
jovem por intermédio de uma colega da Marcha Mundial de Mulheres de Caruaru. Essa jovem
me apresentou para os grupos feministas da cidade e para as pessoas que construíam núcleos
de estudos e pesquisas da universidade. Junto a esses grupos, realizamos atividades sobre aborto
e fui me tornando conhecida na cidade. Nos bares, nas faculdades, nas atividades políticas o
tema sobre aborto aparecia. As pessoas me procuravam para dar opinião ou dizer que alguém

9
Digo relativamente intensa quando comparada aos grandes centros em que vivi toda a minha vida. Em Recife há
inúmeros equipamentos de cultura e lazer, públicos e privados, obviamente em maior quantidade que São
Elesbão de Assum por se tratar de uma capital.
46

já fez aborto e que poderia me ajudar. Nem sempre a empolgação inicial levava realmente ao
contato com “a pessoa que fez aborto”, mas acabaram por ser fragmentos de histórias que
compõe essa análise. Isso será aprofundado mais adiante.
Uma terceira estratégia de entrada em campo, por suposto não planejada, foi o
relacionamento que mantive durante quase todo o trabalho de campo com um jovem da cidade.
Relutei muito em trazer esse fato para o texto de pesquisa, mas essa relação me fez circular pelo
sertão e encontrar histórias sobre aborto e violência. Francisco articulou duas entrevistas que
acabaram não dando certo, mas conversei com as mulheres de alguma forma. Ele me contou
também uma história de uma mulher mais velha que fez aborto, o que me tirou do cotidiano da
prática do aborto na juventude. A maior parte das histórias sobre aborto que escutei foram de
mulheres jovens. Quase um ano depois compreendi que essa relação em campo teve pontos
negativos e positivos. Positivos porque me abriu portas e me fez ser uma pessoa de confiança
naquela comunidade 10 . Negativos porque a minha integração com aquela cidade estava
impregnada pela relação com ele.
O ponto importante é que a partir dessas três estratégias, a observação participante direta
no hospital do sertão, a militância junto aos grupos de jovens feministas e a relação com
Francisco me levaram a descobrir e reconhecer aquele território de forma complexa e
entranhada. Além de conhecer São Elesbão de Assum, viajava com frequência para as cidades
do entorno, visitava a casas das pessoas, era de confiança o suficiente para ouvir os rumores e
fofocas e caminhei aprendendo os modos de vida, me emocionando com as dificuldades
enfrentadas pelas (os) jovens que decidiram não migrar e permanecer naquela região, que
ofertava um polo educacional, mas que os obstáculos para a inclusão no mercado de trabalho
eram fatigantes. Muitas jovens fizeram graduação e não encontraram um lugar no mundo do
trabalho naquela comunidade, permanecendo em situações de informalidade.
Além do mais, conheci os sítios, vilas e quilombos. O encontro com o quilombo,
localizado a 48km da sede do município, significou um ponto de amadurecimento da pesquisa
de campo. A ida ao quilombo ocorreu no dia 08 de setembro de 2018 quando acompanhei uma
colega que também realizava pesquisa na cidade. Ela iria entrevistar as mulheres chefes de

10
Um dia que estávamos confraternizando em um bar LGBT da cidade, um colega veio me dizer que queria muito
me ajudar porque sabia que era difícil. Já era tarde e ele já tinha bebido bastante e estava muito empolgado.
Disse que sabia diversas histórias sobre aborto. De repente grita e chama outro jovem que eu também conhecia.
Passam algum tempo pensando em mulheres que fizeram aborto. Chegam a conclusão que “a irmã da Cleide já
fez”. “Será que ela fala?”, perguntou um deles. “Claro!, é pra namorada de Francisco”, responde o outro. Entendi
nesse momento que eu gozava de certa credibilidade e confiança. Esses dois jovens participaram de palestras
minhas sobre aborto, conheciam o meu debate e ainda por cima eu namorava um deles. Eu era alguém em quem
se poderia confiar.
47

família e eu tentaria conversar sobre aborto e a vida reprodutiva das mulheres enquanto as
entrevistas eram realizadas. Conseguimos chegar no quilombo porque Francisco nos
acompanhou, demonstrando a importância dos informante-chaves na pesquisa. O quilombo era
um lugar isolado, com poucas árvores, casas simples de telha de amianto, árvores pequenas
com troncos retorcidos, o sol parecia mais forte, mas como era alto havia uma brisa gostosa de
sentir. Era o “sertão bravo”.
As mulheres, quase todas negras retintas, poucas com a pele clara. Os cabelos alisados
me fizeram pensar nos processos de colonização. No entorno não se vendia nada. Não havia
escola rural, equipamento de saúde ou de assistência no entorno. Mas aquela tarde conversando
com as mulheres na parte de trás de uma casa sem alvenaria foi um dos momentos mais
marcantes da pesquisa. Elas me contaram histórias sobre partos e de trabalhos na casa de
farinha, trabalhos herdados do racismo pós-abolição. Praticamente nenhuma história sobre
aborto. Quando provoquei o debate entre as mulheres, com muita naturalidade me responderam
que uma delas “perdeu o bebê” há um tempo. Pesquisar sobre aborto no sertão diz respeito à
compreensão da vida das mulheres em sua complexidade, deslocando-se pelas histórias das
parteiras, das casas de farinha, das festas e aprendendo com os fragmentos. Depois daquela
viagem, me esforcei para ampliar o meu olhar sobre a vida das mulheres no Sertão.
São Elesbão de Assum tem uma população de 90 mil habitantes, sendo 45.637
autodeclarados pardos, 3.693 pretos, 28.900 brancos, 247 indígenas e 754 amarelos11. É cidade
referência em comércio, saúde e educação, funcionando como polo para dez outros municípios.
No tocante à saúde, a cidade abriga equipamentos como uma Unidade Pernambucana de
Atenção Especializada (UPAE), um Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen), um
Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) e um hospital geral.
A cidade se desenvolveu a partir de intensas brigas de famílias, um fenômeno comum
no sertão nordestino. As famílias enveredavam verdadeiras guerras pela honra que quase
sempre terminavam em morte. A formação social e histórica da cidade se embaraça na história
de disputas por poder e territórios. A rivalidade entre as famílias no sertão nordestino resultava,
inclusive, na criação de sistemas de grupos armados.
O importante dessa história é que ela deu vazão a um movimento importante do
Nordeste brasileiro: o cangaço12. De acordo com Soares (2015), as mortes de pessoas resultante

11
Dados provenientes do IBGE Cidades.
12
Compreendo o cangaço, nos termos de Maria da Gloria Gohn (1997), como um movimento social. Apesar de
inspirado no banditismo social, o Cangaço teve como característica o questionamento da concentração de renda
e da pobreza que se alastrava no sertão nordestino.
48

das brigas entre família, a perda de poder e empobrecimento e perda de território gerou
sentimento de vingança e de justiça “feita com as próprias mãos”, lançando as bases daquilo
que foi conhecido como cangaço. Ou seja, os cangaceiros tinham entre outras motivações a
defesa da família (SOARES, 2015). São Elesbão de Assum foi uma das cidades por onde passou
Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, designado como o rei do cangaço. Lampião é uma
figura controversa, ninguém sabe ao certo se é bandido ou herói, mas a cidade tem orgulho da
sua história. São nítidos os aspectos do cangaço presentes nas relações interpessoais da cidade,
em especial no que tange as relações de gênero.
Considerada por muito tempo como uma cidade perigosa, São Elesbão de Assum ainda
ostenta a rivalidade entre famílias. Até 20 anos atrás não se poderia andar livremente pela
cidade, em especial no horário da noite, pois as execuções por “justiceiros” eram recorrentes.
Havia um grupo de policiais que atuavam de forma paramilitar a mando das famílias para
executar pessoas que tinham-nas ameaçado de alguma maneira. Geralmente começava com
uma briga e terminava em uma morte sangrenta.
Porém a história da cidade transcende a influência do cangaço. Diversas lendas e outras
informações sobre a escravidão traduzem a importância da cultura negra invisibilizada na
história, bem como a crueldade das injustiças raciais. Igrejas com passagens secretas com rota
de fuga para escravos, registro de vendas de escrava, descoberta de senzalas e pelourinho em
uma cidade próxima fazem parte desse cenário que evidencia uma formação social marcada
também pelas questões raciais além do cangaço.
Dessa forma, compreendo o Sertão, em especial a cidade de São Elesbão de Assum,
como um território complexo conformado por uma teia de histórias que se hierarquizam.
Algumas se sobressaltam e outras são invisibilizadas respondendo aos sistemas de poder que
estruturam a sociedade. O sertão ainda revela a diversidade das formas de viver das
comunidades rurais. É uma paisagem complexa em intensa transformação, onde os sentidos
sobre o rural e urbano produzem características singulares13.
Os contextos rural e urbano são complexos e qualquer análise atual precisa compreender

13
Esse entrave se deu no primeiro turno das eleições de 2018. Eu estava apoiando o candidato a deputado federal
Carlos Veras (PT), um homem proveniente do sertão, mais precisamente da cidade de Tabira, e que defendia as
pautas dos movimentos do campo. Certa que com essas pautas de reivindicação conseguiria angariar votos para
o meu candidato entre as minhas colegas do sertão, chamei-as para uma conversa e apresentei as pautas. Falei
muito do campo e do sertão e como seria importante ter as “nossas pautas visibilizadas no Congresso Nacional”.
O que recebi de volta foi um verdadeiro choque. Uma das minhas colegas disse: “Nathália desculpe, mas prefiro
votar em uma mulher, como mulher negra urbana não tenho identidade com as pautas do campo”. Essa
jovem é uma jovem nascida e criada em São Elesbão de Assum, nunca morou em outro lugar, decidiu não migrar
e viver na sua cidade. Mas se considerava urbana. Eu fiquei tão constrangida nessa situação que não soube o
que responder. Tentei compreender o que era o urbano naquele local, naquele território.
49

esses dois campos como relacionais. São realidades que não existem separadamente, como nos
lembra Reis (2006) e a construção de definições precisas sobre tais espaços podem cair em
equívocos. Entretanto, pode-se compreender que não se trata apenas de uma divisão geográfica
ou baseada em elementos unilaterais. A população rural brasileira não se ocupa mais de
atividades exclusivamente agrícolas, já que as atividades ligadas aos setores secundários e
terciários é significativa (REIS, 2006).
Wanderley (2000, p. 98) aborda a emergência da nova ruralidade como um espaço
marcado pelas multiplicidades de modos de vida, “em que cuja paisagem convivem indústrias,
serviços, vias de comunicação e distintos tipos de residências ao lado de estabelecimentos
agropecuários”. A construção de uma definição acerca dos contextos rurais diz respeito também
a uma densidade populacional fraca, ao predomínio de pequenas empresas, ao menor
quantitativo de força de trabalho, à relação diferenciada das pessoas com a terra e uma relação
singular entre campo, natureza e ser humano (SCOTT et al, 2016; WANDERLEY, 2000).
De acordo com Carmo (2009), apesar das transformações ocorridas nos espaços rurais,
devido a penetração do urbano e apropriação desse processo por parte das comunidades rurais,
a vida nesses locais ainda segue marcada pela proximidade entre o local de trabalho e de
residência, a baixa densidade populacional e com isso menor mobilidade espacial,
proporcionando uma proximidade física e afetiva entre os sujeitos que compõem aquele
território. As intensas alterações proporcionadas pela maior interação entre campo e cidade não
retirou a centralidade da agricultura do rol de atividades econômicas e sociais que caracterizam
a comunidade e não desmantelou o aspecto de reciprocidade dos laços sociais.
Tais elementos marcam as sociedades designadas como de interconhecimento.
Wanderley (2009) define sociedades de interconhecimento como sociedades baseadas na
agricultura familiar tradicional que constrói um território que é ao mesmo tempo lugar de vida
e de trabalho, “onde o camponês convive com outras categorias sociais e onde se desenvolve
uma forma de sociabilidade específica, que ultrapassa os laços familiares e de parentesco”
(WANDERLEY, 2009, p. 161). A cidade de São Elesbão de Assum pode ser considerada como
uma sociedade de interconhecimento porque, a despeito das intensas transformações da
paisagem, é caracterizada pelas relações interpessoais de intensa reciprocidade que manifesta
um determinado modo de vida coletivo, que tem referência na agricultura e nas relações de
ajuda mútua.
A pluriatividade é o termo “que caracteriza a diversidade de atividades exercidas, em
diferentes setores, pelo conjunto de elementos pertencentes a uma mesma família de origem
camponesa” (CARMO, 2009, p. 268). Embora os membros da família possam se ocupar de
50

outras atividades, o valor da terra e da agricultura ainda é compartilhado entre eles. Os valores
da vida camponesa não deixam de existir no processo de diversificação das atividades. Assim,
um jovem proveniente de uma família camponesa pode ingressar no ensino superior e mesmo
assim continua sendo um camponês. Essa premissa é defendida, inclusive, entre os membros
do Movimento Sem Terra (MST).
As cidades de pequeno e médio porte do sertão pernambucano são caracterizadas pela
baixa densidade demográfica e parca mobilidade espacial. Essa disposição proporciona
proximidade física e afetiva das pessoas, dificultando as relações de anonimato (CARMO,
2009). Segundo o autor, a impessoalidade é característica marcante das sociedades modernas
urbanas, que não encontram continuum nos contextos rurais. Assim, a sociedade de
interconhecimento é marcada pelas relações de entreajuda, mas também de controle social dos
indivíduos, haja vista que é permitida que as relações de vizinhança interfiram na vida dos
sujeitos. A sociedade de interconhecimento é marcada por uma solidariedade vigilante. Essa
ambiguidade fundamental desse tipo de sociedade será desenvolvida no capítulo analítico.
Destaco também a construção diferenciada da rede serviços socioassistenciais de
contextos urbanos e rurais. A fragilidade do acesso a bens e serviços é apontada por Wanderley
(2002), Reis (2006) e Scott et al. (2016). Não se trata de pensar no rural como o lugar do atraso
e da pobreza, mas sim de considerar que, fruto do próprio processo histórico e social da
sociedade brasileira, é um lugar marcado pela desigualdade regional do país. As cidades são
caracterizadas por apresentarem uma rede socioassistencial sólida, com maior cobertura, bem
como maior diversidade de serviços oferecidos, mas também são caracterizadas por apresentar
tráfegos intensos e prédios altos, um ritmo de vida frenético, anonimato e relações sociais
distanciadas.
O fato é que uma diversidade de cenários coexiste em São Elesbão de Assum. A
expansão do capitalismo flexível no campo, sob o modelo do agronegócio, não resultou em
uniformização, como nos fala Brandão (2007). A economia de consumo coexiste com a
produção do excedente. A racionalidade capitalista se impôs expropriando e modificando os
contextos rurais, mas não apagou as diferentes formas culturais de vida e modos de trabalho
nesses territórios. Seguindo o autor, entre as comunidades mais isoladas organizadas a partir da
produção de consumo e as regiões modernizadas pelo agronegócio, cujas relações comunitárias
foram completamente modificadas pelos latifúndios e pela monocultura há inúmeras formas de
pensar esses contextos, pois já não existem tipos puros de espaços rurais.
No início do trabalho de campo, tive inúmeras dificuldades em compreender a relação
entre o urbano e rural. As designações de sítio e rua, amplamente utilizadas na cidade, me
51

auxiliaram a compreender como esses dois aspectos interagem para produzir aquela
comunidade. Sítio e rua são designações que emergiram do cotidiano da pesquisa de campo.
Em um primeiro olhar, esses termos parecem marcar as diferenciações sociais com base na
origem territorial da população. Todavia um olhar mais apurado para as dinâmicas que
envolvem as nomeações de quem é do sítio e quem é da rua demonstra que tais designações
extrapolam o lugar onde se vive significando, assim como apontado por Paulo (2010), modos
de vida. Para a autora não há critérios claros de definição sobre os termos, mas a construção do
que é sítio e rua acorre em confronto com um urbano abstrato. A estrutura da localidade como
dispor de equipamentos sociais (serviços de saúde, cultura, lazer, delegacia) e infraestrutura
(calçamento das ruas, iluminação), o trabalho na agricultura, o valor da família, bem como
comportamentos, linguagem e costumes são elementos que diferenciam os dois termos como
um lugar de vida (PAULO, 2010). Assim a rua, entendida como a sede do município, não pode
ser considerada como urbano das grandes cidades (WANDERLEY, 2000; CARMO, 2009).
Apesar de concentrar os serviços e equipamentos sociais, ter uma infraestrutura
pavimentada, a rua também é regida pelas relações de interconhecimento, sendo caracterizada
pelas relações de ajuda mútua, a família com valor central e o controle das ações dos sujeitos.
O sítio é caracterizado pela vida no campo, ou parte da socialização da vida do sujeito no campo,
mas ser do sítio significa ainda apresentar um certo comportamento, modo de vestir e
linguagem. Em São Elesbão de Assum as pessoas do sítio são consideradas matutas e atrasadas,
fato também apontada na pesquisa desenvolvida por Paulo (2010). Em uma manhã, na espera
obstétrica, uma das mulheres me disse que quem é do sítio não pode procurar o hospital do
sertão sozinha, sem alguém da rua porque fica sem atendimento, “deixa esperando mesmo”.
Pergunto como o/a profissional de saúde sabe que a pessoa é do sítio ou da rua sem a pessoa
dizer, a mulher me responde “pelo jeito que fala, se comporta, dá pra ver que a pessoa é do
sítio, eles são mais tímidos e falam errado”. O estereótipo marca a forma como as mulheres do
sítio são vistas na cidade. No planejamento familiar isso ficou mais evidente, pois as mulheres
eram consideradas mais desinformadas sobre a contracepção, tinham maior número de filhos,
eram consideradas pobres e ignorantes.
Interessante é que as pessoas que residem na sede do município consideram-se urbanas,
uma vez que o urbano é uma categoria abstrata relacionada ao desenvolvimento, no que
concerne à infraestrutura. As representações entre sítio e rua constroem São Elesbão de Assum
como um território de ‘entremeio’. Território, aqui, é compreendido nos termos de Wanderley
(2000), como um espaço delimitado geograficamente, com similitudes físicas, econômicas e
culturais compartilhadas pela população local.
52

O território é também percebido como um espaço de vida de uma sociedade


local, que tem uma história, uma dinâmica social interna e redes de integração
com o conjunto da sociedade na qual está inserida. Trata-se, neste caso, de
perceber o território como a inscrição espacial da memória coletiva e como
uma referência identitária forte (WANDERLEY, 2000, p. 117).

Mais ainda, a cidade pode ser vista a partir da proposta de Carlos Rodrigues Brandão
(2007), como um espaço rural onde o tempo é o relógio e é o sol. São Elesbão de Assum é um
território onde coexistem diversos modos de relacionar-se com a produção, com a terra, a
natureza e com o tempo. “Planta-se, coleta-se e cria-se para viver e para vender. Troca-se,
vende-se e compra-se trabalho por bens, bens por bens, trabalho e bens por dinheiro. E disso se
vive a ‘vida na roça’ (BRANDÃO, 2007, p. 54). As comunidades mais isoladas localizam-se
nos limites do município, onde habita uma natureza pouco socializada; a paisagem mais
urbanizada está no centro, concentrando os serviços, as oportunidades de emprego e o comércio.
Pequenos mercados vêm dando lugar às grandes redes de supermercados e o empobrecimento
acompanha esse processo de urbanização. É nesse ponto que situamos as contra racionalidades
(BRANDÃO, 2007). Uma paisagem rural em processo de modernização, mas com traços de
interconhecimento. A pessoalidade e os obstáculos ao anonimato dizem sobre um modo de vida
que persiste.
Nesse sentido, um aspecto relevante desse território são as redes de interconhecimento
(SCOTT et al. 2016; WANDERLEY, 2000). A relações sociais tecidas nos contextos rurais são
caracterizadas pela aproximação, diferentemente das relações impessoais que marcam as
grandes cidades. As relações de interconhecimento ultrapassam a relações entre a família e a
vizinhança, mas dizem respeito a uma pessoalidade que se estende a comunidade local como
um todo. Estas relações geram sentimento de pertencimentos mútuos, desenvolvem relações
significativas de ajuda, mas limitam a ação individual. De acordo com Scott et al (2016), a rede
de interconhecimento e a rede institucional interagem, criando configurações singulares ao
acesso de bens e serviços.
Para fins deste trabalho, designaremos tais redes como redes de apoio com traços de
interconhecimento. São caracterizadas pela proximidade das relações interpessoais, valores de
solidariedade e entreajuda, pessoalidade, mas também vigilância. Ainda, são marcadas pelos
valores de um modo de vida camponês, nos quais a família e a comunidade têm centralidade
frente aos indivíduos.
No que tange ao aborto, considero, que como os novos territórios rurais se configuram
como comunidades com traços de interconhecimento e, portanto, compartilham mutuamente
um conjunto de valores simbólicos (também), essa discussão seja marcada pelo silêncio. A
53

escassez de pesquisa sobre aborto em contextos rurais (MENEZES; AQUINO, 2009;


BERALDO, 2015) impede reflexões densas sobre as práticas de aborto nessas comunidades. O
dado mais próximo que nos permite pensar aborto em tais contextos pertence a Pesquisa
Nacional do Aborto (2017), já mencionada anteriormente, e aponta que as taxas de aborto são
maiores nos municípios com mais de 100 mil habitantes quando comparadas às taxas de aborto
dos municípios com menos de 20 mil habitantes, 13% e 11% respectivamente.
Em Pernambuco, estudo de Mello, Sousa e Figueroa (2011) objetivou estimar a
magnitude e a razão de abortos inseguros segundo os nascidos vivos ocorridos no estado e nas
suas microrregionais de saúde, no período de 1996 a 2006, a partir da análise de dados
disponíveis do DATASUS e sistemas de informações de saúde estaduais. Estimou-se, para toda
a série analisada, um total de 621.022 abortos inseguros, chegando a uma média de 56.457 por
ano, 4.705 por mês e 157 por dia. Considerando-se que, nesse mesmo período, houve uma
média de 156.202,5 nascidos vivos no estado por ano, a estimativa da média anual de abortos
inseguros representaria 36,1% dos nascidos vivos de Pernambuco. O maior número de aborto
se concentrou na região metropolitana e no agreste central, as duas regiões juntas representaram
63,8% dos casos. O Sertão Central, o Sertão do Pajeú e o Sertão de Itaparica apresentaram baixa
incidência de casos, juntos representaram 5,7% dos casos.
Ao analisar os extremos da série, 1996 e 2006, os autores constataram uma redução de
abortos provocados estimada de 7,7%. A maior redução encontra-se na região metropolitana:
uma redução de 26,6%. As demais regiões do estado apresentam estimativas heterogêneas,
destacando a região do sertão. Apesar de baixa incidência, nos últimos dez anos observa-se um
crescimento vertical nos casos de aborto, sendo o Sertão do Pajeú a região de maior
crescimento, chegando a um aumento de 138,8%. A razão de aborto inseguro por 100 nascidos
vivos saltou de 12,99 em 1996 para 38,89 em 2006, na Região do sertão do Pajeú.
Diante do exposto, São Elesbão de Assum irrompe como território importante para
pesquisar aborto. Além de compor a região com maior crescimento de abortos do estado de
Pernambuco, configura-se como território de entremeio construído através de características do
rurual em processo de urbanização, uma comunidade com traços de interconhecimento, por
onde circulam histórias sobre aborto no sertão.

2.4 “Você é enfermeira daqui?”: o hospital no Sertão

Silva (2015) aborda que o trabalho de campo etnográfico exige paciência. O


estabelecimento das “redes de campo” impõe uma série de etapas para que o pesquisador possa
54

construir relações de confiança. É necessário tempo para ter acesso ao grupo, rotina,
aprendizado cotidiano das regras de sociabilidade daquele grupo, construir habilidades para
manejo dos conflitos e ambientes de familiaridade. Imbuída desses ensinamentos, avaliei que
serviços de saúde seriam espaços interessantes para encontrar as histórias sobre aborto no
sertão. Não apenas porque cerca de metade das mulheres que realizam aborto ilegal recorrem
aos serviços de saúde para finalizar o abortamento, mas também pelas encruzilhadas produzidas
pelo fluxo de acompanhantes, visitantes e profissionais de saúde daquele serviço. Essas pessoas
experienciam juntas aquele ambiente em torno das situações especificas das mulheres que ali
estão em situação de abortamento. Já era do meu conhecimento que maternidades e hospitais
gerais com obstetrícia eram serviços que funcionavam como produtores de histórias14, que se
formavam a partir desse trânsito de pessoas.
De acordo com Ferreira e Fleischer (2014, p. 13), “os espaços de saúde são ‘bons para
etnograr’ não só porque permite vislumbrar noções de corpo, saúde e doença, como também
contextos mais amplos evidenciando, muitas vezes, fatos sociais totais”. Tomada por essa
certeza escolhi o hospital do sertão para ser o espaço em que realizaria a observação
participante. A priori imaginei que a pesquisa no cotidiano do hospital não apenas possibilitaria
conhecer sobre o cenário do aborto entre mulheres negras no sertão, bem como oportunizaria o
contato com as mulheres para possíveis entrevistas.
Solicitei a carta de anuência para a pesquisa no hospital aos setores competentes em
outubro de 2017 e a obtive apenas em março de 2018. As questões éticas na pesquisa e com os
comitês de ética, bem como as instituições públicas serão discutidas em item específico. Porém,
adianto que não consegui a autorização para a pesquisa seguindo o protocolo, através da
Secretaria Estadual de Saúde. Acessei uma rede de contato informal relativamente longa para
ter acesso ao diretor do hospital. Telefonei para ele em fevereiro de 2018, que prontamente
autorizou a pesquisa.
O primeiro contato com o hospital ocorreu em março de 2018, quando viajei para
município com o objetivo de pegar a carta de anuência para dar início a pesquisa. Fui um dia
antes, me instalei em uma pousada do centro e decidi que no outro dia, ao me dirigir ao hospital,
tentaria conversar com a assistente social de plantão e fazer algumas perguntas. À essa altura
estava cercada de medos, dúvidas e angústias em relação à ‘chegada em campo’, tinha pressa
em saber se naquele serviço existiam casos, fofocas, rumores e histórias que eu poderia ter

14
Como mencionei anteriormente, em 2011, participei como pesquisadora de campo do estudo multicêntrico Grav-
SUS.
55

acesso. O rápido encontro com a assistente social, descrito a seguir, não poderia ter sido mais
oportuno.
Nessa ocasião a carta estava pronta e apenas peguei com a secretária. Como
tinha um tempo considerável para pegar o ônibus de volta decidi conversar
com a assistente social. Uma mulher negra, aparentando cerca de 30 anos. Me
apresentei e falei sobe a pesquisa com a maior naturalidade possível. Disse
que era sobre planejamento familiar, maternidade e abortamento de maneira
bem geral. Ela foi bastante acolhedora. Começou a explicar sobre as
dificuldades com os recém-nascidos, pois o hospital não tem UTI neonatal.
Contou que o planejamento reprodutivo acontece nas quartas e que tem muita
entrada por abortamento. “Tem, tem muita cureta15 aqui”. Contou que uma
semana antes uma mulher deu entrada por abortamento e o médico fez uma
denúncia informal ao segurança do hospital. “Não sei se ele levou adiante”.
Mas a assistente social da sexta (cada assistente social dá um plantão de 24h)
conseguiu liberação do feto, pois o médico não queria liberar o feto para o
IML (Instituto de Medicina Legal) para criar provas contra a mulher. “Por
descuido ou não sei o quê, ela disse que o aborto foi provocado”, me relatou
a assistente social, “mas Cecília que é a da sexta e parece muito com você
(risos) conseguiu a liberação e ela saiu daqui bem. Ela continuou dando sua
opinião sobre aborto “eu não acho certo, mas temos que acolher né? Daqui,
da nossa mão ela saiu bem, não sei o que aconteceu depois”. (Diário de
campo, 13 de março de 2018).

A conversa com a assistente social me forneceu a coragem para decidir realmente que
iria me deslocar e viver na cidade. Mudei-me para São Elesbão de Assum dois meses depois,
na segunda quinzena de maio de 2018. Após a aprovação da pesquisa no comitê de ética, enviei
um e-mail para o diretor do hospital informando que já me encontrava na cidade e gostaria de
iniciar uma semana de reconhecimento do serviço. Poucos dias depois Fátima, uma servidora
do setor administrativo do hospital entrou em contato comigo, marcamos para ela me apresentar
o serviço. Uma semana antes do São João fui ao encontro dela.
O hospital é horizontal e comprido, não há andares. É cercado por uma grade azul e no
meio encontramos a portaria principal composta por uma guarita e uma entrada de veículos. Ao
passar essa guarita nos deparamos com um pátio largo com bancos e árvores formando uma
espécie de espaço de convivência. Esse espaço é circundado por um estacionamento que abriga
uma placa alta e larga, em que se lê o nome do hospital.
Desse pátio é possível ver as três entradas do hospital. São três portas grandes de vidro
que representam três setores diferentes. A entrada do meio era o caminho para os setores
administrativos, a sala de atendimento psicossocial, a entrada para a volta das cirurgias eletivas
e a entrada para acompanhantes e visitas. As outras duas entradas conduzem as pessoas à

15
Termo amplamente utilizado pelas/os profissionais de saúde para se referir às mulheres em situação de
abortamento.
56

emergência pediátrica ou a emergência adulta. A ‘entrada do meio’ como eu chamava nas


anotações do diário de campo, tornou-se a melhor forma de ingressar todos os dias pelo hospital,
mesmo que naquele dia as minhas observações fossem acontecer na emergência adulta. Ao
cruzar a fronteira da ‘entrada do meio’ encontramos uma recepção relativamente pequena com
cadeiras ligadas umas às outras. Em frente, ao lado esquerda há um balcão de recepção onde
encontra-se Dona Sônia, uma senhora negra e muito simpática.
Continuando em frente, há uma outra porta de vidro vigiado por um porteiro. Um
homem de pouco mais de 30 anos, branco, não muito simpático. Ele avalia quem pode ou não
entrar, censura o que as pessoas estão levando para dentro do hospital e dá as informações
necessárias. Passada esta porta estamos dentro do hospital. Um grande corredor nos recebe,
pelo qual as salas, enfermarias e setores se organizam, criando espécies de labirintos. Em um
polo há a emergência adulta composta pela triagem, sala vermelha (para os casos de maior
gravidade), posto de enfermagem e as salas das especialidades ali atendidas: obstetrícia,
ortopedia e clínica geral. No outro polo, disposto da mesma forma está a pediatria.
Retomando o encontro com Fátima, encontrei-a na recepção da ‘entrada do meio’.
Apresentamo-nos e ela me conduziu pelo hospital. Não fomos à pediatria. Ao passarmos pela
segunda porta de vidro, dobramos à esquerda em direção à emergência adulta. Antes, Fátima
me mostrou a sala da equipe psicossocial: uma sala que fica exatamente ao lado da segunda
entrada. Passamos por uma pracinha de convivência localizada na margem direita do corredor
e após essa pracinha está o sala de descanso das(os) profissionais de saúde de ensino superior.
Na margem esquerda do corredor estavam salas e enfermarias: a sala de atendimento
psicossocial, a sala da vigilância em saúde, as enfermarias em clínicas e em ortopedia. Em
seguida, ela me mostrou as enfermarias obstétricas. São três enfermarias cada uma composta
por quatro leitos. “É aqui que ficam as curetas”, me conta. Seguindo o protocolo da maior parte
dos serviços de saúde com emergência obstétrica ou até mesmo as maternidades, não há uma
enfermaria reservada para as mulheres em situação de abortamento. Fátima sabia que minha
pesquisa era sobre aborto, por isso me conduziu para os lugres onde essas mulheres circulam.
As enfermarias obstétricas estão localizadas em frente à sala de raio-x e ao lado do posto de
enfermagem, que por muito tempo achei que era só da obstetrícia. No entanto, cuidavam não
apendas dessa, como também da clínica, da ortopedia e das cirurgias. Logo após, ainda
caminhando pelo corredor, depois do posto de enfermagem, há mais uma enfermaria, as salas
de atendimento da clínica geral, da obstétrica e da ortopedia. Entre uma sala e outra, ali mesmo
no corredor, há as cadeiras azuis tipicamente de hospital enlaçadas umas às outras. São esses
bancos de corredor que compõem a paisagem da espera obstétrica. Essas salas e os bancos ficam
57

em frente ao bloco cirúrgico, onde ocorrem as cirurgias, de modo geral, e os partos e curetagem,
em específico.
Naquela segunda ida ao hospital, encontrei um espaço completamente organizado.
Fátima andava e me explicava que havia muitas curetagens, que o hospital realiza pré-natal de
alto risco e planejamento familiar quinzenalmente, às quartas, para “diminuir o índice de
gravidez indesejada”. Ela me conta também que nem sempre se faz curetagem: ‘às vezes se
administra o medicamento e a expulsão acontece e não fazemos curetagens desnecessárias”.
Prendi-me nessa informação. A Organização Mundial de Saúde (OMS) indica que a curetagem
é um procedimento invasivo e nem sempre necessário. Entretanto, é amplamente realizado nos
serviços de saúde no Brasil. Empolguei-me com o hospital, pensei naquele momento que estava
em um espaço de saúde que se contrapõe a essa lógica. No entanto, isso não se materializou no
trabalho de campo. Não identifiquei nenhuma mulher em situação de abortamento que não fosse
submetida a uma curetagem. Mas esse não foi o único choque entre os meses passados no
hospital e a minha primeira impressão. Ainda nessa primeira conversa com Fátima, deparei-se
com uma informação que só se revelou problemática mais tarde: os plantões são de 24 horas.
Ela relatou que como as pessoas muitas vezes não vivem em São Elesbão de Assum, organiza-
se plantões de um dia completo para que os profissionais passem um dia no hospital e o restante
da semana nas suas cidades ou nos outros vínculos16. Ela ainda, despretensiosamente, ‘solta’:
“isso quando não vendem o plantão 17 ”. Balancei a cabeça demonstrando compreensão e
seguimos. Não tinha ideia naquele momento como isso atrapalharia a pesquisa18.
O hospital atende dez municípios ao redor da cidade de São Elesbão de Assum; realiza
cerca de 70 partos por mês e 15 procedimentos de curetagem, além de inúmeros procedimentos.
No ambulatório conta com as seguintes especialidades: cardiologia, endocrinologia,

16
Na verdade, descobri, no tempo de pesquisa de campo, que é uma forma muito comum de organizar o tempo do
trabalho no sertão. Ademais, em 2017, o hospital realizou um concurso que trouxe várias pessoas de outras
cidades para trabalhar no hospital. Sem interesse de se estabelecerem na cidade, as profissionais, que muitas
vezes residiam até mesmo em Recife, trabalhavam em trânsito.
17
Por não morarem na cidade em que trabalham ou por terem inúmeros vínculos de trabalho devido a precarização
grave dos profissionais de saúde no Brasil de um modo geral e, em Pernambuco em particular, as profissionais
precisam ‘vender o plantão’, que consiste em pagar profissionais devidamente habilitados para trabalhar naquele
dia no lugar do profissional que não pode comparecer. É uma prática comum não apenas no Sertão, mas também
nos grandes centros.
18
Outro elemento importante da conversa com Fátima se referiu ao uso da bata. Ela me pediu para usar uma bata
branca e gravar as inscrições de serviço social nela. “Bota que você é assistente social e bota o brasão do curso,
porque assim você não vai ser impedida de entrar nas consultas”, me orienta. Eu não soube o que responder na
hora. Mas de pronto já sabia que não seria uma boa estratégia, pois iria me confundir com assistente social do
hospital, lugar que eu não ocupava ali, além de me conferir uma autoridade que não tinha e não queria ter. Refleti
que seria antiético e sem me preocupar em dar um retorno a Fátima, eu simplesmente não usei a bata. Não queria
observar as consultas por uma imposição autoritária, mas como uma possibilidade fruto de uma negociação
respeitável com as pessoas protagonistas daquela cena: as usuárias e as profissionais de saúde.
58

oftalmologia, pediatria (com atendimento em microcefalia), urologia, cirurgia de alta


frequência, gastroenterologia, otorrinolaringologia, pré-natal de alto risco, cirurgia geral,
neurologia e planejamento familiar. Na emergência atende: cirurgia geral, odontologia, clínica
médica, pediatria, obstetrícia e traumato-ortopedia. O hospital conta com 450 profissionais de
saúde e atualmente é dirigido por um enfermeiro, o que garantiu algumas facilidades no diálogo
com a administração ao longo da pesquisa de campo.
De fato, a pesquisa no hospital do sertão se revelou visceral e ao longo dos oito meses
de trabalho de campo as dificuldades traduziram aprendizados valiosos. Como as dificuldades
foram inúmeras, destacamos três que estruturam as análises da pesquisa: 1) os plantões de 24
horas; 2) o tempo de duração da internação das mulheres em situação de abortamento; e 3) as
ambivalências das relações com os profissionais de saúde. Esses três eixos desdobram-se em
três formas de fazer pesquisa sobre aborto e racismo no sertão: a pesquisa a partir de fragmentos,
a pesquisa na sala de espera e a pesquisa na sala da equipe psicossocial. Essas três formas não
abordam necessariamente os lugares onde ocorreu a observação participante. É resultado das
negociações possíveis, das curvas que precisei fazer enquanto pesquisadora que costura
histórias e situações, das saias justas vivenciadas em campo, das preocupações éticas e da
aceitabilidade da minha presença das pessoas que compõe aquela paisagem. A intersecção entre
essas três dificuldades estruturais construiu um modo específico de ‘fazer pesquisa’ naquele
ambiente. Os desdobramentos configuram formas de dar inteligibilidade à minha experiência
em campo, pois, partindo das reflexões de Cordovil (2007), o trabalho de campo é composto
por circunstâncias práticas que nos atormentam no fazer artesanal cotidiano da pesquisa e que
por vezes são silenciadas para tornar o texto de pesquisa coerente e inteligível.
Antes de iniciar os eixos de coerência e cientificidade, cabe um preâmbulo sobre os
infortúnios.
Infortúnio primeiro: as etnografias em espaços de saúde que estudei, as pesquisas
etnográficas de um modo geral dedicam-se a cultivar laços em um grupo. Traduz o cotidiano
de um grupo, no qual desenvolvemos uma rotina a fim de criar laços de confiança, conhecermos
melhor aquelas pessoas, suas vidas, formas de pensar e de agir, suas opiniões. O cotidiano e a
rotina são imprescindíveis em uma pesquisa etnográfica. Inspirada nessas lições, era
exatamente isso o que eu esperava. Planejei uma rotina de passar as manhãs no hospital, de
segunda à sexta, avaliando a necessidade de ir na parte da tarde. E observar o funcionamento
em alguns finais de semana e feriados, atentando ainda para os horários de troca de plantão.
Todas essas informações, inclusive qual “a melhor hora de estar em campo”, obtive com Fátima
no ‘tour’ pelo hospital. Eu segui essa rotina da maneira mais sistemática possível. Entretanto a
59

assiduidade em campo não me livrou do problema que me deparei: a não possibilidade de criar
laços com um grupo de pessoas, pois estava me relacionando com sete equipes de plantão 24
horas. Eram sete grupos, um para cada dia da semana, que além do mais “vendiam seus
plantões” sistematicamente. Houve profissionais que me ajudaram muito no começo do
trabalho de campo e que simplesmente desapareceram do serviço, outras profissionais que
foram (e seriam) centrais na observação eu apenas tive contato duas ou três vezes devido ao
fenômeno da ‘venda de plantões’. Durante muitos meses, era como se eu estivesse “chegando
ao campo19” toda a semana, lidando com as diferentes equipes de plantão. Esse fato nos fez
empreender uma reflexão sobre o que é a observação participante em serviços de saúde regidos
por plantão em cidades pequenas.
Infortúnio segundo: além das equipes de plantão eu precisava me relacionar com as
mulheres em situação de parto e abortamento que recorriam ao hospital. Essa relação tecida
com as mulheres em situação de abortamento era sempre mediada pela minha relação com as
profissionais de saúde, seja porque no começo do trabalho de campo as profissionais me
apresentavam a elas diretamente, seja porque ao estar ali sentada na espera obstétrica elas,
muitas vezes, me viam como alguém com quem elas poderiam reclamar do atendimento. Isso
me rendeu olhares de julgamento por parte dos profissionais. O fato é que a minha relação com
as mulheres era sempre rápida. As usuárias, e as mulheres em situação de abortamento,
principalmente, não permaneciam mais de 24 horas no hospital. Ou seja, eu dispunha de pouco
tempo para me relacionar com elas. Não obstante, as mulheres em situação de abortamento
recorriam ao hospital com dor, necessitando de curetagem e cuidado, era preciso esperar a
recuperação delas. A recuperação ocorria na enfermaria, espaço complexo em que a conversa
sempre ocorria vigiado por múltiplos olhares: das mulheres em situação de parto, as
acompanhantes e as profissionais de saúde. Além disso, soma-se o fato de que a recuperação
na enfermaria é mais rápida do que de costume, devido aos leitos escassos e alta demanda.
O infortúnio primeiro e o segundo, devidamente interseccionados e analisados,
renderam-me uma pesquisa que designo como pesquisa a partir de fragmentos, pois a relação
com aquelas pessoas não gozava do tempo necessário para o aprofundamento em suas histórias.
Os outros interlocutores ingressam na cena da pesquisa ‒ trabalhadores terceirizados, visitantes,

19
Em alguns momentos tal fato era emblemático. Conhecia as profissionais, me apresentava, apresentava a
pesquisa, perguntava sobre elas, sobre o hospital, sobre suas vidas a fim de conhecê-las e criar laços. A
profissional ausentava-se por duas semanas do hospital. Quando voltávamos a nos encontrar, me dirigia a elas
com um sorriso, perguntava sobre o serviço e recebia de volta: “eita, mulher, é sobre o quê mesmo a tua
pesquisa? ”
60

acompanhantes, às vezes me contando as mesmas histórias, às vezes me contando outras,


trazendo-me fragmentos que possibilitaram costuras de cenas, paisagens e acontecimentos.
Por fim, o infortúnio terceiro. A relação com os profissionais de saúde nem sempre foi
fácil. Na verdade, configura na pesquisa como uma fonte de reflexões permanentes e quase
sempre angustiantes. As profissionais de saúde com os quais tive contatos cotidianos foram
médicas(os), enfermeiras, técnicas de enfermagem, assistentes sociais e psicólogos(as).
Obviamente, a relação com as diferentes categorias não se deu da mesma forma. Como sou
assistente social realizando uma pesquisa em uma pós-graduação em psicologia, tornei-me
muito próxima de psicólogos(as) e assistentes sociais. Próxima demais. Próxima ao ponto deles
me passarem tarefas, que eu executava na vontade de fazer parte daquele grupo: o único grupo
que eu podia cultivar nos moldes dos ensinamentos clássicos da observação participante
praticada a partir da etnografia. E como eu já esperava, a categoria médica era a mais distante.
Distante ao ponto de, nos meses de trabalho de campo, assisti apenas a uma consulta com a
médica obstétrica20. Porém, eu não precisava entrar nas consultas para ter acesso as histórias de
abuso de autoridade por parte dos médicos. As enfermeiras e técnicas de enfermagem
expressam as ambivalências mais agudas e os atritos mais tensos. Muitas consideraram que
minha presença objetivava avaliar e vigiar o seu trabalho e fecharam ou dificultaram as
possibilidades de criação de laços, outras sabiam que eu estudava aborto e por isso me tratavam
com antipatia. As técnicas seguiam o mesmo padrão. Porém, havia enfermeiras que facilitavam
minha entrada nos espaços e me ajudaram de forma crucial.
Também desenvolvi antipatia por essas pessoas (que geralmente eram as mesmas
profissionais que tratavam as mulheres em situação de abortamento de modo distante e
tecnicista) e esses desafetos mútuos não foram férteis. Assim, respirei as reflexões de Clandinin
e Connelly (2011) sobre sermos, enquanto pesquisadoras (es), cúmplices do mundo que
estudamos, transformando o infortúnio das ambivalências em análise estruturada da pesquisa.

2.4.1 A pesquisa a partir de fragmentos

Histórias que nos importam não são narradas da forma como idealizamos. As narrativas
possuem contornos próprios delineando cenários enquanto circulam e se conectam. Muitas

20
O poder médico impregnava todo o hospital. A política médica exercia grande influência no ritmo dos
atendimentos, as prioridades, a forma como as pessoas olhavam para aquele serviço. Uma vez, na espera
obstétrica, uma usuária me disse que era uma pena os médicos trabalharem ali de graça. Os médicos do hospital
passam essa imagem. Além do mais, um dos ex-prefeitos da cidade é médico do hospital e há um acordo entre
vereadores e médicos do hospital para grupos de eleitores serem atendidos em dias específicos.
61

vezes, temos acesso às narrativas completas, inteiras. Outras vezes, precisamos exercer com
mais afinco a dimensão da pesquisadora como bricouler, produzindo costuras a partir de
fragmentos ou retalhos. Ao que denomino aqui de fragmento são narrativas que escapam do
script: faltam-lhes inícios, desfechos ou personagens importantes, mas ainda assim comunicam
histórias que falam sobre modos de vida daquele lugar, práticas, acontecimentos passados e
presentes que apontam futuros, falam sobre subjetividades e afetos, tudo isso situadas em lugar;
ou em sequência de lugares. Quando as histórias do hospital fugiam daquele ambiente,
alcançavam o Portal do Serão21 e batiam em minha porta.
Explico: há uma história emblemática22 que ocorreu na cidade e que me foi narrada por
diversas pessoas: duas assistentes sociais, uma técnica de enfermagem, duas estagiárias em
psicologia, o médico ortopedista, uma usuária e uma estudante de psicologia da autarquia
municipal. Esta última, bateu na porta da sala de aula em que estava ministrando uma oficina
como convidada e disse que era urgente. Peço licença à turma, saio da sala de aula e ela me
conta: “Nathália, você viu a história da menina que fez aborto e foi parar no Portal do Sertão?”.
E me conta a sua versão dos fatos rapidamente. Cada pessoa que me contou essa história
acrescentou fatos e personagens, mas quando eu perguntava nenhuma dessas pessoas conseguia
me narrar a história completa. A assistente social foi a que chegou mais perto. O interessante é
que as pessoas ao mesmo tempo que contavam os fragmentos da história, contavam também
sobre o que achavam sobre o aborto, contavam outras histórias para que essa soasse verdadeira,
articulando fatos e me passando experiências.
Apesar deste caso ter sido único, outras situações parecidas se sucederam a essa e
revelou a escuta de fragmentos de narrativas como uma forma possível de ter acesso a narrativas
sobre um tema tão polêmico e rejeitado socialmente como aborto. Assim, organizei a escuta de
fragmentos de narrativas como processo de pesquisa através de uma cadeia hirarquizada. O
hospital era meu lugar de pesquisa privilegiado, porém estava vivendo como pesquisadora no
sertão e histórias me eram contadas em todos os lugares. Histórias escapavam do hospital e
circulavam na cidade. Ou ainda, escapavam das entrevistas que realizei e alojavam-se no
hospital. Ressalto que nas histórias encontradas nos hosital os fragmentos foram as narrativas

21
Principal portal virtual de notícias da cidade. Bastante popular, que vez por outra noticiava casos ocorridos no
hospital.
22
A história era sobre uma jovem em situação de abortamento que chegou junto com a mãe no hospital do Sertão.
A menina estava sagrando e não recebeu atendimento imediato. Sangrou nas cadeiras do hospital. A mãe fez
um vídeo e acionou a polícia para conseguir atendimento para a filha. Depois que recebeu atendimento, o médico
disse que encontrou resquicio de medicamento abortivo na jovem e a mãe foi levada à delegacia para prestar
esclarecimentos. Os vídeos feitos pela mãe da jovem circularam pela cidade inteira, o caso foi noticiado no Farol
de Notícias. Essa história será explorada nos capítulos subsequentes.
62

possíveis devido aos infortúnios já discutidos. Os plantões distantes me desconectavam das


pessoas e das histórias, bem como as ambivalências das relações dos profissionais de saúde. Se
começava a acompanhar um caso devido a ajuda de uma enfermeira que mantinha uma relação
de confiança comigo, não conseguia continuar acompanhando essa mesma história, caso esse
plantão se encerrasse e a profissional fosse “rendida” por outra que alimentava antipatias sobre
mim ou sobre a pesquisa. Em tempo, articula-se a esse processo interrupções por causa dos
procedimentos, olhares vigiados, visitas que faziam com que as histórias que as mulheres
estavam me contando e iam aprofundando com o tempo fossem adiadas e as mulheres recebiam
alta antes de me contar o desfecho. Os fragmentos são narativas possíveis em espaços em que
os processos assumem outro ritmo.
Nas entrevistas que realizei encontrei fragmentos de narrativas que se conectavam com
o hospital ou por corresponder a mesma história ou por falar de situações similares capazes de
sustentar meus argumentos de pesquisa. Nesse caminho, os fragmentos de narrativas foram
produzidos no hospital, nas entrevistas que realizei, nos lugares que frequentava pela cidade,
especificamente bares e a faculdade municipal, e, por fim, produzidos a partir das tentativas de
entrevistas que não obtive. Esse último ponto será tratado em dificuldades de campo, porém
adianto que passei meses negociando entrevistas que não aconteceram. Nesse processo as
pessoas me contaram muito apesar de não me fornecerem uma entrevista nos moldes formais.
Diante dessa produção intensa e densa, mesmo que fragmentada, as histórias entrecortadas
compõem as análises estruturais dessa pesquisa.
Aprendi na empreitada do trabalho de campo que fragmentos de narrativas fazem com
que nem sempre saibamos os desfechos ou os inícios das histórias, ou a razão de ser de alguns
personagens, tornando o enredo pouco consistente. Entretanto, ao mesmo tempo, fragmentos
de histórias narradas de maneira casual iluminam nuances e delicadezas, resistências e
opressões que seriam invisíveis caso fossem contadas por inteiras ou através de um instrumento
mais clássico de pesquisa, como a entrevista. A partir desse emaranhado, costuramos análises
sobre práticas e modos de compreender o aborto no sertão pernambucano.

2.4.2 A pesquisa na espera obstétrica

Realizar observação participante em um hospital geral além de significar construir


relações com um número volumoso de profissionais organizados em sete equipes de plantões
diferentes e o tempo apressado dos processos, apresentava também um problema geográfico. O
hospital é grande e as mulheres em situação de abortamento circulam em diferentes espaços. O
63

fluxo de atendimentos obedece a seguinte ordem: as mulheres dão entrada na recepção, passam
pela triagem em que recebem uma cor referente ao grau das urgências, seguem depois para a
espera obstétrica, onde esperam. Em seguida são atendidas na sala da obstetrícia e depois há
dois desfechos possíveis: o internamento, quando existe a certeza que o embrião-feto morreu,
e o encaminhamento para fazer a ultrassonografia fora do hospital, pois o hospital não dispunha
de exames de imagens para este tipo de situação. Quando internadas, as mulheres eram
conduzidas ao bloco cirúrgico e depois se recuperavam na enfermaria obstétrica.
Circulei por todos esses espaços, exceto pelo bloco cirúrgico. Realizei observações na
espera obstétrica, na recepção da emergência adulta, na enfermaria obstétrica, na sala de
consulta da obstetrícia, na sala de atendimento psicossocial e no auditório quando se discutia
temas concernentes à pesquisa. Circulei ainda por outros espaços como a enfermaria ortopédica,
pediatria, setores da administração e sala da vigilância em saúde. Porém, a espera obstétrica e
a sala de atendimento psicossocial eram os espaços protagonistas na produção das narrativas.
A sala de consultas e a enfermaria figuraram como coadjuvantes na observação participante.
A priori, organizei a rotina da pesquisa de uma forma em que eu estivesse um dia em
cada espaço por semana. Com o tempo, as consultas tornaram-se repetitivas e as histórias da
espera obstétrica mais atraentes à minha intuição de pesquisadora. Acompanhava então apenas
as consultas das mulhers com que formava vínculo antes, enquanto elas esperavam o
atendimento. A enfermaria se tornou coadjuvante pelas dificuldades de entrar naquele espaço.
Nas primeiras vezes fui conduzida pela enfermeira interlocutora-chave, Larissa, que depois de
alguns meses se ausentou do hospital porque estava grávida e residia em outra cidade.
Considerava constrangedor entrar na enfermaria; não era um processo simples, pois requeria
estratégias que demorei para formular. Até que um dia aprendi que a entrada na enfermaria era
necessária apenas quando acompanhava o caso desde a espera obstétrica. Nessa situação,
acessar as enfermarias e passar uma tarde com as mulheres conversando era simples e
confortável. Esses momentos reforçaram a centralidade da espera obstétrica no trabalho de
campo.
A pesquisa na espera obstétrica mostrou-se frutífera. Às vezes muito movimentada, às
vezes eu ficava sozinha e era o momento de escutar outras histórias sobre a cidade contadas por
seu Peba, pelos seguranças do hospital ou pelas profissionais. Mas, quando havia usuárias
esperando atendimento, foram raras as vezes que as mulheres não puxaram assunto comigo e
contaram histórias diversas, sendo muitas sobre aborto. Espaços de espera não são o lócus
tradicional entre as etnografias nos espaços de saúde, porém salas de esperas e até mesmo
64

balcões de farmácia (PAIVA, BRANDÃO, 2014) têm sido compreendidos como espaços
relevantes para compreender as dinâmicas das relações sociais.

2.4.3 A pesquisa na sala da equipe psicossocial

A sala de atendimento psicossocial abriga os setores de psicologia e serviço social que


precisam se revezar para garantir o sigilo dos atendimentos. É uma sala pequena com duas
escrivaninhas dispostas uma ao lado da outra. Há na sala apenas um computador que também
requeria dos profissionais paciência e coleguismo para ser utilizado. Essa dinâmica de
revezamento parecia funcionar. Não presenciei nem tomei conhecimento de tensões advindas
da ausência de um espaço adequado de trabalho. Há ainda, na sala, um armário cinza de metal,
pequeno, onde estão guardados os documentos das usuárias e dos usuários. Em frente as duas
escrivaninhas, há duas cadeiras de escritório rotativas e atrás delas há as mesmas cadeiras presas
umas às outras. A sala, pequena e fria, com paredes brancas e sem banners, cartazes ou quadros,
retrata a imagem de uma sala de atendimento tipicamente institucional.
Entretanto, para a observação, a sala funcionou como uma espécie de confessionário. A
sala de atendimento psicossocial era um ambiente seguro para mim, para as profissionais de
serviço social e psicologia e para as usuárias. Em um ambiente seguro, histórias irrompem sem
medo ou constrangimento. As conversas nesta sala evidenciaram o racismo que escapava aos
meus olhos nos primeiros meses de trabalho de campo. Na sala de atendimento psicossocial
encontrei as chaves de interpretação racial que precisava para analisar o racismo que construía
aquele ambiente institucional.
Assim, a pesquisa na sala de atendimento psicossocial ocorria: 1) no aprofundamento
das histórias a partir das conversas com os profissionais de saúde; 2) na observação do
planejamento reprodutivo; 3) no acompanhamento dos casos de aborto legal. Na sala de
atendimento, a partir desses três momentos principais, sentia parte daquele grupo e algumas
vezes avalio que as(os) profissionais também consideraram que eu era parte deles, deixando-
me permanecer naquele ambiente e me contando histórias.
A primeira refere-se ao processo de esclarecimentos das histórias. Como histórias de
corredor são apressadas e os processos de trabalho em um ambiente hospitalar são intensos,
algumas vezes não conseguia acompanhar os desfechos, bem como não tive acesso aos
atendimentos médicos, nos quais emergiam as narrativas impregnadas de abuso de poder e
discriminações. Tive acesso sobre as narrativas médicas através das mulheres e dos
profissionais da equipe psicossocial. Então, recorria à sala de atendimento para perguntar sobre
65

essas histórias e sobre outras; para saber sobre histórias que ocorreram antes da minha chegada
ao hospital; saber sobre os bastidores dos setores administrativos; e colocar-me a par das fofocas
e rumores. Tenho a impressão de que, às vezes, os profissionais esqueciam que eu estava ali e
conversam uns com os outros sobre coisas íntimas de suas vidas, mas também do hospital.
A pesquisa na sala de atendimento ocorreu também na observação do planejamento
reprodutivo. O planejamento familiar acontecia sempre às quartas pela manhã, às 8h30,
quinzenalmente, conduzida pela assistente social, psicólogo e uma enfermeira. Começava com
uma explicação sobre os métodos contraceptivos de um modo geral: camisinha, pílulas,
diafragma, DIU23 e, por fim, as esterilizações. Esse era o cenário ideal 24. Porém, o DIU, a
laqueadura e vasectomia era o que o hospital ofertava25. A primeira etapa da reunião acontecia
em grupo com as explicações acima. Em seguida, o grupo saía e as pessoas eram atendidas
individualmente; a ficha com a demanda do DIU, laqueadura ou vasectomia era preenchida. As
pessoas deixavam a sala com o encaminhamento para realizar alguns exames. Depois dos
exames feitos, com os resultados em mãos, retornavam ao hospital para marcar o atendimento
com a médica ou o médico (no caso da vasectomia). Após este atendimento, eram agendadas a
cirurgia de esterilização ou implante do DIU. Esse processo demorava cerca de dois meses para
laqueadura e vasectomias e um pouco menos para o DIU.
Acompanhar o planejamento não estava no delineamento inicial da pesquisa de campo.
Soube da existência do planejamento na primeira visita ao serviço, ainda quando fui buscar a
carta de anuência, e fui tomada pela curiosidade, realizando uma espécie de etnografia selvagem
(TORNQUIST, 2007). Entretanto, a observação do planejamento reprodutivo foi riquíssima e
redirecionou os objetivos de pesquisa, fazendo-me repensar o estudo teórica e
metodologicamente. O campo significa um processo poderoso, o poder do campo, para utilizar
o termo e as reflexões de Silva (2007), cria condições para uma revisão existencial que nos

23
Dispositivo Intrauterino.
24
Compreendi que esse era o formato do planejamento familiar. Todavia, essa disposição organizada só ocorreu a
primeira vez. Não sei se por acaso ou por intencionalidade dos profissionais, já que anunciei que pedi permissão
dias antes à equipe para acompanhar o planejamento. O fato é que em oito meses de campo o planejamento não
ocorreu novamente daquela forma. Pelo contrário, tornou-se cada vez mais tecnicista e fragmentado, expondo
claramente que a grande questão do planejamento era a laqueadura, seguida da vasectomia.
25
Aqui cabe uma digressão sobre os níveis de complexidade da saúde pública no Brasil. À atenção básica cabe a
prevenção. Dentro desse mote encaixa-se os métodos contraceptivos hormonais e de barreira. A oferta de
camisinhas, pílulas e diafragmas é de responsabilidade da atenção básica; DIU e esterilizações são ofertados
pela média e alta complexidade. Essa é a disposição organizativa da saúde pública e o hospital cumpria.
Entretanto, a falha grave dos fluxos de atendimento da atenção básica em São Elesbão de Assum imputava ao
hospital responsabilidades que a alta complexidade não deveria ter. Esse foi uma grave questão percebida em
campo, pois empurrava mulheres para a laqueadura sem apresentar outras alternativas. O DIU atenuava um
pouco esse processo espinhoso, porém o racismo e as relações patriarcais que costuravam aquela cultura
institucional tornou a laqueadura a resposta para conter a pobreza.
66

fratura e nos faz (re)planejar. Além disso, foi no planejamento familiar que desloquei a
observação participante para a participação observante. É ilusório considerar que não
construímos o espaço que estamos observando; somos personagens da paisagem e das histórias
que ouvimos. Primeiro fui afetada pelas questões em relação a laqueadura: era a resposta para
tudo. Muitas vezes depois que as usuárias saíam da sala, as profissionais teciam comentários
maldosos sobre o número de filhas(as) ou sobre a imagem das pessoas. Circulava no
planejamento familiar uma visão malthusiana acerca da vida reprodutiva das mulheres negras
e brancas, do sítio ou da rua, sendo as mulheres negras do sítio o maior alvo. Além dessas
questões que me afetaram e redirecionaram meu olhar, ocorreu a entrada do meu campo de
poder (SILVA, 2007) naquela fratura do trabalho de campo. Os profissionais eram um tanto
despreparados para estar naquela função e comecei a tirar as dúvidas no momento que acontecia
a reunião de planejamento familiar.
Esse processo começou de modo bem tímido quando uma das profissionais que guiava
o planejamento esqueceu uma informação secundária e a ajudei. Depois disso, os profissionais
começaram a se reportar a mim para confirmar as informações. Até o ponto de pedir para eu
organizar as fichas, relembrar casos e dar a minha opinião. O meu conhecimento sobre os
direitos reprodutivos foi reconhecido e a minha autoridade como pesquisadora também. Isso
gerou questões éticas que serão discutidas a seguir. O fato é que a sala de atendimento
psicossocial revelou-se, no momento do planejamento familiar, como uma espécie de
confessionário e um ambiente de reconhecimento da autoridade da pesquisa que me levou para
a terceira questão da pesquisa na sala de atendimento: as situações de aborto legal.
Esse terceiro eixo que compõe a pesquisa realizada na sala de atendimento psicossocial
também não estava no meu planejamento inicial de campo. Meus objetivos de pesquisa desde
o início do doutorado versaram sobre o aborto fora dos casos previstos em lei, ou seja, o aborto
ilegal. Porém, o poder do campo (SILVA, 2007) modificou a minha compreensão dos fatos que
aconteceram dentro e fora do hospital26. Histórias sobre aborto legal irromperam nos primeiros
dias do trabalho de campo enquanto conversava com o psicólogo, na sala de atendimento
psicossocial. Como estávamos em um confessionário, ele narrou a história e se apressou em
dizer que a “história não batia”, termo que escutaria muito dali para frente. A partir desse
diálogo, o aborto legal passou a ser um aspecto relevante para a pesquisa. Descobri, nesta
mesma sala, que o hospital do sertão é um serviço de referência em aborto legal, informação

26
Entrevistei uma jovem que me contou duas histórias de aborto. Uma das histórias era sobre aborto por gravidez
decorrente de estupro, mas que ela precisou fazer de forma clandestina, pois o serviço negou atendimento.
67

desconhecida, tanto que não foi critério de escolha para esse serviço, mas se transformou em
um acaso produtivo (CORDOVIL, 2007) que influenciou decididamente o trabalho de campo.
A última vez que o hospital realizou um procedimento de aborto legal foi em 2015. De
lá para cá, só tive acesso a um caso narrado pelo psicólogo, sendo ele mesmo a pessoa que
despachou a usuária por desacreditar da sua palavra. Após a minha chegada, duas jovens
recorreram ao hospital em busca do procedimento e uma criança de 12 anos foi encaminhada
grávida para o atendimento psicossocial. Ela engravidou de um rapaz de 22 anos com quem
mantinha relações “consensuais”. Porém devido a legislação brasileira, relações sexuais com
adolescentes menores de 14 anos corresponde a estupro presumido. Ou seja, estupro de
vulnerável. Entretanto, apenas eu e uma assistente social compreendemos essa situação como
sendo violência sexual 27 . Só acompanhei ativamente a última das três histórias, quando já
gozava de completa confiança da equipe psicossocial, mas nas outras duas estava próxima o
suficiente. Conheci as duas jovens, acompanhei os casos, li as fichas e fui chamada a dar opinião
e auxiliar os processos. Mas não conversei com elas. Considero o acompanhamento desses dois
casos confortável e dentro dos meus parâmetros éticos. O último caso de aborto legal viria a
embaralhar minhas convicções e trazer responsabilidades que não podia e não queria ter. De
tão intenso, este último caso marcou o encerramento do trabalho de campo no hospital, em
março de 2019.
O fato é que a pesquisa na sala de atendimento psicossocial aprofundava a minha visão
sobre as dinâmicas em torno do aborto e racismo. Além do mais, o reconhecimento da
autoridade de pesquisadora, facilitou inúmeras entradas, cavou minhas relações de confiança,
redirecionou meu olhar e me causou problemas éticos proeminentes. A sala-confessionário
refletiu um lócus privilegiado de participação observante, ensinando-me sobre as vicissitudes e
delicadezas sobre aborto e racismo no sertão pernambucano.

2.5 “Muito difícil, elas não vão te dizer que fizeram um aborto”: as dificuldades do
trabalho de campo

As dificuldades acerca da pesquisa realizada no hospital e em suas sequências de lugares


foram discutidas em tópico anterior. Neste item, pretendo realizar uma breve discussão sobre
os problemas e dificuldades em torno das negociações para as entrevistas. Abro esse item
mergulhada dos velhos conselhos (TORNQUIST, 2007) sobre a necessária sinceridade

27
Essa criança e a mãe não optaram pela interrupção da gestação, mas a sua história compõe as análises estruturais
da pesquisa em capítulo específico sobre o aborto legal.
68

metodológica que outorga a exposição das incursões em campo a partir das suas dificuldades e
conflitos éticos. As negociações são espinhosas, mas provocam reflexões que tornam até aquilo
que não foi dito como dado produzido em campo.
Pesquisar sobre aborto no Brasil implica em se deparar com diversos obstáculos que vão
desde as recusas das mulheres em contar sobre suas experiências até as dificuldades de se obter
autorizações das instituições, passando pelas preocupações sempre latentes sobre a
criminalização. Esse é o roteiro das preocupações das pesquisas sobre aborto realizadas nos
grandes centros: dificuldade das mulheres em falar, subnotificação dos casos de aborto, o uso
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), criminalização dos profissionais de
saúde, baixo alcance das mulheres das classes populares. A criatividade das pesquisadoras e o
uso de procedimentos metodológicos diversos dialogam com essas dificuldades a fim de atenuar
os rebatimentos destas nos resultados das pesquisas, permitindo inclusive discutir questões
pouco analisadas no campo de produção do conhecimento sobre aborto no Brasil (MENEZES;
AQUINO, 2009).
Antes de iniciar o trabalho de campo, elenquei alguns desses problemas. A própria
decisão de morar em São Elesbão de Assum foi tomada a partir do meu conhecimento pregresso
sobre as dificuldades de acessar as mulheres com disposição para serem entrevistadas.
Considerei que em uma sociedade de interconhecimento, a construção das redes de confiança
obedecia a um tempo próprio e a um alto investimento de energia por parte da pesquisadora.
Cheguei em São Elesbão de Assum com consciência de que seria difícil e encontrei ainda mais
dificuldades. A proximidade das relações interpessoais permite que a fofoca funcione como um
importante regulador naquela sociedade. Como a rede de interconhecimento se estende para a
região, fazendo com que as histórias circulem entre os municípios vizinhos, a fofoca em cidades
pequenas circula em um território mais amplo.
O medo de que a pesquisadora recém-chegada na cidade ‘fofocasse’ as suas histórias
implicou um número preocupante de recusas. Ao todo obtive cerca de 33 recusas para
entrevistas. Muitas dessas histórias eram valiosas: uma jovem negra periférica irmã de uma
travesti famosa na cidade; uma jovem lésbica branca que manteve uma relação casual com um
rapaz para agradar a namorada; uma senhora que já havia feito ‘uns cinco abortos’; uma jovem
de uma cidade perto de São Elesbão de Assum que não apenas já realizou um aborto como
conseguia o medicamento para auxiliar outras mulheres da região; uma mulher trabalhadora
doméstica remunerada que trabalhava na casa de uma jovem estudante da pós-graduação que a
identificou como “esse povo que não tem cultura”; uma sindicalista rural também de uma cidade
69

próxima à cidade, etc. Toda essa empreitada foi registrada em diário de campo e seus
fragmentos compõe o texto de análise.
As negociações foram longas e demandaram disposição e criatividade. Uma das
entrevistas demorou nove meses de negociação. Quando viajei para a cidade da jovem e lá
fiquei por 10 dias, percebi que não aconteceria. Em uma outra situação passei quatro meses
marcando todas as sextas com a jovem e todas as sextas havia algum motivo para que ela não
comparecesse no local combinado. Em outras situações a recusa acontecia prontamente, mas
com alguma promessa: “eita, se eu a conhecer quem sabe [...] mas assim, de cara, não quero
falar não”.
Outra dificuldade referiu-se à qualidade das minhas intermediárias e intermediários, que
afetou diretamente o número volumoso de recusas em campo. Eu contatava as mulheres para
entrevistar a partir das histórias, rumores e “fofocas” que eu escutava na cidade. Essa rede de
contatos informais que eu costurei durante os 14 meses de trabalho de campo era composta por
ativistas de coletivos de jovens negras, em especial Camila que se tornou minha interlocutor-
chave 28 ; professoras das faculdades e universidades da região; usuárias, estagiárias e
profissionais de saúde do hospital29; estudantes da faculdade municipal, uma em particular que
se mostrou interessada em me ajudar; amigos que fiz a partir da amizade com Camila.
Com exceção das ativistas do coletivo de jovens negras e das professoras, grande parte
das pessoas era contra a legalização do aborto. Mesmo aquelas que conversavam comigo sobre
o tema e até mesmo tentavam colaborar de alguma forma apresentavam opiniões contrárias ao
aborto. Pamela elucida bem as ambivalências do caminho para alcançar as entrevistas. Ela era
estagiária do hospital e estudante de psicologia da autarquia municipal. No instante que soube
sobre minha pesquisa comentava e contava casos que ela sabia sobre aborto, inclusive fez a
articulação com uma professora de psicologia para uma palestra sobre aborto na faculdade. Ao
longo de dois meses construí com ela uma relação de confiança e reciprocidade até que
compreendi que Pamela não me ajudaria.
Eu já tinha tentado falar com Pamela desde que ela me contou sobre a amiga
que fez aborto, cheguei a falar por mensagem, mas ela tinha ficado doente e
adiamos a conversa. Pergunto se posso falar com ela depois, já que ela estava
melhor de saúde. Ela disse que poderia falar agora. Então, explico para Pamela
que estou procurando mulheres que provocaram aborto para minha pesquisa.
Pergunto se elas podem me indicar alguém. Falei com ela de forma direta, pois
Pamela fez a ponte para eu realizar uma palestra sobre aborto na faculdade de

28
Camila acionava pessoas que ela imaginava que já tinha realizado um aborto, bem como mobilizou um número
grandes de jovens para me ajudar. Nossa amizade foi crucial para essa tese acontecer. Talvez, minha pesquisa
de doutorado continuasse sem ela, mas não com o mergulho em campo que a relação com ela me proporcionou.
29
Uma estagiária de psicologia do hospital me contou várias histórias, além de tentar convencer uma amiga a me
dar entrevistas.
70

psicologia. Na minha cabeça seria uma pessoa sensível ao tema e, portanto,


uma aliada. Mas não. Ela me conta que conhece duas. Uma provocou o aborto
em São Elesbão e outra em Petrolina. Porém, afirma que nenhuma falaria
comigo. “Falo porque conheço o município e a população, elas são muito
fechadas”, diz. Essa informação foi um balde de água fria. Na verdade, Pamela
não parecia disposta nem a tentar fazer uma ponte. Ela continua dizendo que
as duas amigas tiveram complicações pós-aborto. A menina que fez em São
Elesbão finalizou no hospital do sertão e a de Petrolina no Dom Malan. A de
Petrolina perdeu muito sangue. “O que me dá mais raiva é que as duas
continuaram com o homem que elas não queriam ter o filho junto. Porque eu
sou contra, você pode ser a favor mas eu sou contra”, me relata. Confesso
que foi uma informação que me deixou bastante constrangida. Em todo
momento achei que Pamela poderia ser uma interlocutora-chave e que era
sensível ao tema. Em nenhum momento achei que ela fecharia essa porta de
forma tão abrupta. (Diário de campo, 28 de agosto de 2018).

Depois disso, comecei a prestar a atenção na opinião sobre aborto das minhas
intermediárias. A maioria era contrária ao aborto. O interesse em colaborar na pesquisa era
outro. Uma delas, em um dado momento, me perguntou se eu poderia corrigir um artigo para
ela. Essa e outras situações me levaram a pensar que as pessoas que elas conheciam poderiam
já ter sido julgadas por elas por ter recorrido à prática e não iriam confiar seus segredos a uma
pessoa apresentada através dessa articulação.
Essas dificuldades renderam ensinamentos sobre as pessoas intermediárias que figuram
no trabalho de campo. Contei com intermediárias fortuitas e ativas. As intermediárias fortuitas
eram aquelas que, regidas por um estado de empolgação inconstante, trouxeram as histórias
mais mirabolantes, as que me despertavam mais curiosidade e me empolgavam com os casos
que saiam do que me era familiar ou que correspondiam a perfis mais difíceis de se aproximar.
Entretanto, não conseguiam manter-se ativas no trabalho de campo por desinteresse, pela
posição social que ocupavam ou por serem contrárias ao aborto.
As intermediárias ativas eram aquelas que escavavam o campo junto comigo e
construíram a paisagem do cotidiano da pesquisa: estavam sempre presentes, seja nos encontros
pela cidade ou enviando mensagens, contavam-me histórias diversas sobre aborto, sugeriam
contra dádivas ou, simplesmente, abraçaram-me como uma amiga. Estas que se tornaram
amigas tinham uma opinião favorável ao aborto. Não por acaso, essas pessoas intermediaram
as três entrevistas possíveis na pesquisa.

2.6 “Essa aqui é Nathália, a nossa pesquisadora”: as questões éticas em uma pesquisa
sobre aborto
71

Nesse item, consideramos pertinentes discutir algumas questões éticas vividas durante
o trabalho de campo, sem a intenção de dar respostas. As preocupações éticas circunscrevem a
pesquisa narrativa e afeta todo processo, compondo, inclusive as análises (CLANDININ;
CONNELLY, 2011). Essas preocupações precisam estar em permanente transe reflexivo, um
estado de alerta (CLANDININ; CONNELLY, 2011) da pesquisadora ao longo do trabalho de
campo.
As inúmeras questões éticas transbordam esse breve item. Entretanto, algumas merecem
destaque. As velhas questões em torno da posição do pesquisador, do anonimato e das
autorizações éticas, aqui, se revestem de novos contornos; as discussões sobre o uso ou não do
TCLE, e ainda, nos termos de Patai (2010), quem fica com o último pedaço do bolo da pesquisa,
ressoaram e encontraram repouso em soluções transitórias. O fato é que velhas e novas questões
éticas me desafiaram nos 14 meses de pesquisa, funcionando como um carrossel de angústias,
constrangimentos e aprendizados que delinearam meu movimento em campo, fizeram
distanciar-me e aproximar-me de grupos, lugares e pessoas constantemente.
A despeito das encrencas nos processos de aprovação do comitê de ética, para usar termo
de Clandinin e Connelly (2011), a solução provisória foi a solicitação de dispensa do TCLE.
Apesar da ética que nos norteia não se traduzir nos processos burocráticos dos comitês de ética
(SPINK, 2000), mas no profundo processo de questionamentos ao longo da pesquisa, decidimos
solicitar a dispensa do TCLE para resguardar as mulheres em um contexto político conservador
e de intensa criminalização. Esse processo demandou prestar uma série de esclarecimentos ao
comitê de ética que resultou no adiamento do início do trabalho em campo, mas a dispensa do
TCLE foi aprovada, garantindo a segurança das mulheres que me contaram seus segredos. Não
obstante, refleti intensamente sobre os desdobramentos da pesquisa e os retornos para os lugares
e os sujeitos com quem interagi em campo e que tornaram possível esta pesquisa. “Quem fica
com o último pedaço do bolo?” não é uma questão banal. A multiplicidade de sujeitos que
compuseram o corpo deste estudo torna impossível retornos individuais. A solução provisória
encontrada referiu-se à minha disponibilidade, após o trabalho de campo ativo, para construir
fluxos, instrumentais de atendimento e capacitação para os profissionais. No andamento da
pesquisa, já na etapa de saída de campo, articulada com a equipe psicossocial, reunimo-nos com
o diretor do hospital para propor um fluxo de atendimento para mulheres em situação de
abortamento previsto em lei. Nesse processo, houve avanços significativos tanto na estrutura
do serviço, quanto na sensibilização dos profissionais.
Infelizmente as questões não cessaram nesses pontos com soluções provisórias. Destaco
as questões éticas que emergiam das relações próximas ou nos micro-lugares que a minha
72

presença como pesquisadora era entendida como parte do grupo, como a pesquisa realizada na
sala de atendimento psicossocial nas situações de aborto legal. As pessoas que aparentavam
apreço pela pesquisa, como uma das enfermeiras, proporcionaram situações de
constrangimento, nas quais as mulheres usuárias eram impelidas a responder as perguntas que
ela presumia que eu gostaria de fazer a elas. Lembro uma vez que perguntei a esta enfermeira
sobre uma mulher que estava na enfermaria que já tinha realizado a curetagem e estava perto
de receber alta. Comentei com ela que gostaria de acompanhar o momento da alta médica, se
possível. Ela, prontamente, me conduziu até a enfermaria, olhou para a usuária e disse: “Essa é
Nathália, ela tá pesquisando aborto e vai te fazer algumas perguntas”. Essa frase não foi dita de
modo ríspido ou imperativo, porém, sabemos das hierarquias de poder que constroem a cultura
institucional de serviços de saúde como maternidade, hospitais, unidades de pronto
atendimento, etc, relegando, muitas vezes, as mulheres a um comportamento de aceitabilidade
de certas dinâmicas (MADEIRO; RUFINO, 2017). A usuária se comportou comigo de forma
gentil, mas nitidamente não queria conversar. Diversas estratégias foram construídas para
abordar as mulheres durante o trabalho de campo de modo delicado, respeitoso e amigável.
Aquela situação me constrangeu completamente e, por infelicidade, repetiu-se em outras
ocasiões, por mais que eu deixasse claro para as profissionais que a pesquisa não se tratava de
entrevistar mulheres nos leitos hospitalares.
Por fim, na pesquisa realizada na sala de atendimento psicossocial aprendi sobre
responsabilidade ética. Ao longo da pesquisa era consultada sobre casos de aborto legal, as
profissionais contavam o caso e pediam dicas e sugestões. A priori, não avaliei esta situação
como um conflito ético. Porém, com o tempo, algumas profissionais (de serviço social e
psicologia) começaram a referir-se a mim como a pesquisadora do hospital. A personagem da
“nossa pesquisadora” de início pareceu inofensivo até os casos ficarem mais graves e ser
convidada a estar nos atendimentos sigilosos e a conversar com as mulheres para auxiliá-las na
decisão ou não pelo aborto.
Essa situação alcançou o limite em um caso muito grave de violência sexual atendido
no hospital, em que fui chamada a participar do atendimento a uma jovem. Precisei decidir em
exatos 30 segundos, enquanto me levantava para sair da sala: “Não, Nathália, você pode ficar,
você é a nossa pesquisadora”, disse a assistente social. E dessa forma fui apresentada à mãe e à
adolescente, Celie, que conheceria melhor mais adiante: “Essa é a Nathália, que está aqui
conosco fazendo uma pesquisa”. Na mesma hora pedi permissão às duas para estar ali: “Se
vocês não se sentirem à vontade posso sair, não tem problema algum”. As duas concordaram
com a minha presença, mas de forma alguma, a permissão concedida nas estruturas de poder
73

daquele serviço me tranquilizara. O caso de Celie, atendimento que durou semanas,


desestabilizou os meus parâmetros éticos. Acompanhei todo o caso: articulei o centro de
referência da mulher da cidade, participei dos atendimentos que deveriam ser sigilosos,
conversei com ela e com a mãe diversas vezes, conversei com o diretor, auxiliei as profissionais
e discuti a importância daquele aborto ser realizado. O caso foi longo e complexo marcado por
diversas posturas discriminatórias.
Aqui, a ética é compreendida como uma responsabilidade. Somos testados em campo
todos os dias sobre distanciamentos e aproximações; somos obrigadas a elaborar respostas
rápidas a questões éticas complexas. Não há respostas prontas para este processo, mas aprendi
no trabalho de campo que alguns cuidados éticos são fundamentais: o respeito incondicional às
pessoas que compõem aquela paisagem, respeito às suas opiniões e visões de mundo, às suas
trajetórias de vida; negociações de entrada e saída dos lugares, quando avaliava que precisava
entrar na sala de consulta pedia autorização não apenas para a profissional de saúde, mas
também para as usuárias; estado de alerta aos sofrimentos que as pessoas possam estar passando
para evitar inconvenientes e constrangimentos; auxiliar as pessoas com quem interagimos em
campo, pois ética também é cuidado; por fim, nos distanciarmos da ilusão da pesquisadora
neutra, alheia àquela paisagem narrativa. Esta última me levou a respeitar as opiniões das
pessoas, a não endossar situações de abuso de poder, negligências, construções de estereótipos
sobre as mulheres em situação de abortamento, bem como me auxiliou a presenciar situações
racistas sem encorajá-las. São desafios que impõem posturas precisas que advém da prática da
pesquisa em um processo reflexivo constante.

2.7 A análise de narrativas

Para finalizar esse capítulo discutiremos o processo de análise das narrativas ouvidas e
produzidas durante o trabalho de campo.
Analisamos os dados produzidos em campo à luz da análise temática de narrativa
(RIESSMAN, 2008). O foco dessa abordagem analítica é naquilo que é dito, em detrimento do
como é dito ou para que fins. A linguagem é um recurso importante e o contexto social
concentra a atenção do olhar analítico. Isso não significa que outros elementos não componham
a análise, mas que ocupam um lugar secundário no processo.
Como já exposto, as dificuldades durante a pesquisa foram inúmeras. Os silêncios e as
omissões nos disseram muito em diversas situações. Além do mais, trabalhar com fragmentos
de narrativas requer criatividade no processo de análise. Assim, buscamos identificar o que nos
74

foi dito em cada entrevista, conversa informal e nas observações. As narrativas são histórias
que constroem modos de vida. No sertão, as histórias que circulam funcionam com um processo
de integração da comunidade que nos comunica sobre um determinado modo de vida. Como o
nosso objetivo era identificar como o racismo costura as tramas do aborto no sertão,
construímos cenários analíticos a partir da identificação dos elementos do nosso objetivo de
pesquisa através das histórias que eram contadas na cidade de um modo geral. Assim,
conseguimos aprender sobre aborto nas narrativas sobre violência obstétrica, contraceptivos,
maternidade, família, esterilização, relações amorosas. O aborto e o racismo fazem parte da
vida em São Elesbão de Assum. Por isso, focar no que nos era dito foi uma importante estratégia
analítica.
Para isto foi necessário lançar mão de algumas ferramentas analíticas. Anselm Strauss
(2008, p. 91) argumenta que “ferramentas são usadas a critério do usuário e de acordo com a
tarefa que se tem em mãos. O mesmo vale para as ferramentas analíticas”. Não existe
necessariamente uma receita, mas o autor oferece algumas pistas importantes. Dentre elas está
o uso de questionamentos, ou seja, a construção de uma série de indagações simples em cima
daquilo que nos foi dito. Por quê? Quem? Quando? De que forma? Qual o sentido? São
perguntas que auxiliam o processo analítico. Outra ferramenta que considero útil é a técnica
flip-flop. Significa que “um conceito é virado ‘pelo avesso’ ou de ‘cabeça para baixo’ para obter
uma perspectiva diferente sobre o fato, objeto ou ação/interação. Em outras palavras olhamos
para opostos ou extremos para descobrir propriedade importantes” (STRAUSS, 2008, p. 97).
Essas duas ferramentas combinadas foram importantes, haja vista que não é lugar comum na
revisão de literatura analisar o aborto em uma perspectiva racial.
Nesse sentido, estudei o material produzido em campo exaustivamente, questionando,
construindo categorias temáticas e revirando do avesso para obter diversas perspectivas. Nesse
processo analisei que o racismo ordena as práticas de aborto no sertão a partir de três cenários:
na ilegalidade; quando tratamos do aborto não punido em lei (aborto legal); e nos contextos de
esterilização. Esses cenários foram produzidos a partir de categorias temáticas que eram
transversais nas diversas narrativas e fragmentos de narrativas.
Discutimos esses cenários com as categorias analíticas correspondentes nos capítulos
quatro e cinco.
75

3 ABORTO E RACISMO: O QUE DIZEM OS ESTUDOS?

O texto que aqui segue é uma tentativa de articular a produção de aborto no Brasil nos
últimos cinco anos, 2014 a 2019, com a produção sobre a vida reprodutiva no sertão do Brasil.
A empreitada é difícil devido aos escassos estudos sobre aborto no sertão, e por escasso leia-se
praticamente inexistentes, exceto por um documento sobre saúde da população do campo que
também trata sobre o aborto inseguro. A revisão foi feita no ano de 2019 no Portal de Períodicos
da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior, utilizando apenas
o descritor ‘aborto’. Em 2017, realizamos a revisão de literatura no mesmo portal, utilizando o
descritor ‘aborto e mulheres negras’, obtendo como resultado apenas cinco artigos. Utilizando
o descritor ‘abortion and black woman’ e os filtros de tempo, periódicos revisados por pares e
selecionando apenas os artigos, chegamos a um universo de 2.986 trabalhos. Devido ao
montante de materiais, decidimos por fazer um levantamento do Brasil, utilizando apenas o
descritor ‘aborto’ e depurar as temáticas relativas a classe, raça e território. Dessa forma,
utilizando o descritor e apenas o filtro do tempo encontramos 2.294. Acrescentando os filtros:
periódicos revisados por pares e artigos chegamos a 1.594. Como nossa intenção era mapear o
debate no Brasil escolhemos o idioma português como mais um filtro.
Assim, encontramos 561 resumos de artigos. Todos esses resumos foram lidos e
selecionados o que nos deu um número de 149 artigos. Nesta etapa foram excluídos os resumos
que diziam respeito a aborto vinculado a questões clínicas de seres humanos e pesquisas
envolvendo o reino vegetal e animal, bem como artigos que a palavra aborto significava
cancelar e os trabalhos que utilizam o debate do aborto de forma pontual ou como exemplo para
uma outra discussão.
Organizamos os 149 artigos separando os artigos que diziam respeito ao aborto no
Brasil. Ou seja, pesquisas em demais realidades da América Latina foram separadas. Assim, 76
artigos diziam respeito a questão do aborto no Brasil. Foram organizados em seis eixos: aborto
no espaço público; aborto legal; aborto e saúde pública; narrativas e experiências das mulheres;
aborto, racismo e violência; o direito ao aborto enquanto justiça social para as mulheres.
Elaboramos um texto sistematizador da revisão de literatura. Porém, optamos em trazer a
revisão ao longo de toda a tese.
A revisão de literatura teve como objetivo compreender como o racismo era retratado
nos diversos artigos que tratam sobre aborto. Percebemos que alguns artigos trazem a raça/cor
das mulheres, outros abordam de forma quantitativa a diferenciação entre mulheres negras e
76

brancas e poucos explicitam a questão racial em pesquisas qualitativas. De fato, há uma lacuna
sobre aborto e racismo na revisão realizada. Tivemos de recorrer a uma revisão complementar
para aprofundar a questão racial e aborto. Nesta segunda etapa da revisão recorremos a dossiês
e desconsideramos o critério de tempo, bem como buscamos materiais produzidos por ONGs,
instituições e grupos de mulheres negras que não estão indexados nas plataformas de artigos
científicos.
Assim, este capítulo está dividido em três tópicos. O primeiro diz respeito as lacunas
em relação a raça e aborto na produção de conhecimento sobre a questão no Brasil.
Incorporamos os textos da revisão complementar para fundamentar que a ausência do
componente racial na maior parte dos estudos sobre aborto, desconsidera que esta problemática
ocorre em um país de maioria negra, exterminada sistematicamente por políticas eugenistas e
relegadas aos piores índices sociais. No segundo tópico, abordamos o aborto como justiça
reprodutiva para as mulheres. O argumento central desse tópico consiste nos diferentes
significados do aborto para diferentes grupos de mulheres. O último tópico traz breves reflexões
sobre a questão do aborto nos países do Sul-Global.

3.1 Aborto e racismo

O aborto é um evento da vida reprodutiva das mulheres. Portanto, resultante das relações
de poder que conformam esse aspecto da vida das mulheres, em especial das mulheres negras
e jovens. As injustiças sociais que acometem as mulheres são tecidas pelas opressões
interseccionais de raça, classe, gênero, geração e território, construindo assim contextos de
opressões diferenciados. A vida reprodutiva das mulheres é de um modo geral ordenada pelas
relações patriarcais. Entretanto, o contexto social das mulheres inseridas em diferentes grupos
raciais e sociais junto às questões de geração e território vão garantir vivâncias diferenciadas
da vida reprodutiva.
Souzas e Alvarenga (2007), ao investigarem a concepção de liberdade entre mulheres
negras e brancas vinculadas aos direitos sexuais, demostram que os lugares sociais que
mulheres de diferentes grupos raciais ocupam dizem das suas escolhas reprodutivas. Para
mulheres brancas, liberdade é poder se equiparar aos homens na relação conjugal e ter liberdade
para ocupar o espaço público. As mulheres negras, por sua vez, relatam que liberdade é poder
vivenciar um diálogo democrático com o parceiro. “Enquanto mulheres brancas buscam superar
certa dicotomia na relação, mulheres negras buscam construir uma relação conjugal que, ao
longo do tempo, foi dificultada, em parte, pela condição histórica de escravidão” (SOUZA;
77

ALVARENGA, 2007, p. 131). As mulheres brancas visam superar essa desigualdade para ter
mais liberdade no espaço público, enquanto as mulheres negras que devido ao trabalho
compulsório na escravidão e depois o trabalho precarizado no pós-abolição objetivam investir
na construção do espaço privado, formando família e vivenciando uma conjugalidade
historicamente negada.
As concepções de liberdade investigadas pelas autoras nos permitem refletir sobre as
escolhas reprodutivas das mulheres em um contexto estruturado pelo racismo patriarcal
(WERNECK, 2009) e os diferentes graus de controle dos corpos das mulheres. Ainda, Roland
(1995) situa o racismo como estrutura determinante das desigualdades entre as mulheres na
esfera reprodutiva. A esterilização parece ter sido a estratégia pela qual a vida reprodutiva das
mulheres negras e pobres foi instrumentalizada pelos interesses racistas, premissa também
apontada por Berquó (1994). Ou seja, a vida reprodutiva das mulheres negras é historicamente
marcada pelo controle e pela restrição de autonomia. A cultura da esterilização (BERQUÓ,
1994) conduziu à construção de um imaginário coletivo de que as mulheres negras e pobres
precisam ter a sua autonomia reprodutiva castrada, pois o fato de terem muitas filhas/os é o
fator responsável pela condição de pobreza. Tal pensamento é compartilhado pelas próprias
mulheres, pois trata-se de uma concepção coletiva (SOUZA, 2004).
A relação entre esterilização das mulheres negras e pobres e os interesses racistas e
eugênicos da sociedade brasileira será aprofundada no próximo tópico. Porém, retratar o cenário
social no qual ocorrem as escolhas reprodutivas das mulheres é fundamental para não
analisarmos o aborto como um evento isolado das injustiças sociais que acometem as mulheres
negras e pobres. A esfera reprodutiva é uma esfera privilegiada para que as relações de poder
possam instrumentalizar práticas e narrativas nas quais as mulheres sejam revitimizadas por
suas escolhas reprodutivas.
A revisão de literatura nos permitiu analisar que a violência racial de gênero é parte
integrante da vida reprodutiva das mulheres negras, sendo o aborto resultado das diferentes
violências que se articulam em torno desta esfera. Assim, o aborto para as mulheres negras
representa uma escolha necessária frente às situações de violência doméstica e institucional,
abandono afetivo, ausência de apoio do parceiro, condições socioeconômicas e privação de
amparo dos serviços socioassistenciais, como por exemplo educação sexual e políticas
contraceptivas.
Apesar de inúmeros artigos levantados no processo da revisão da literatura não
segregarem os dados por raça/cor (KALE et al., 2018; MARTINS-MELO et al., 2014;
MADEIRO et al., 2015; MARANHÃO; GOMES; BARROS, 2016; SOUZA et al., 2014;
78

CORREA et al., 2018; MELLO; SOUZA; FIGUEROA, 2011; MILANEZ et al., 2018;
BORGES et al., 2014; BORGES, 2016; NEIVA-SILVA et al., 2018; ADESSE et al., 2016;
VILELA; MONTEIRO, 2015), desenhamos o cenário reprodutivo das mulheres em uma
perspectiva racial norteadas pelos poucos estudos identificados na primeira revisão de literatura
(ADESSE et al., 2015; MARTINS et al., 2017; DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017;
MADEIRO; RUFINO, 2017) e na revisão de literatura complementar (SOUZA, 2004; LEAL
et al., 2017; NASCIMENTO et al, 2018; GÓES, 2018). Dessa forma, para caracterizar o cenário
reprodutivo, é preciso destacar os índices que acometem as mulheres negras e que conformam
para estas mulheres desigualdades raciais e sociais diferenciadas.
As mulheres pretas recebem menos orientações durante o pré-natal sobre o início do
trabalho de parto e possíveis complicações; e, recebem menos anestesia local quando a
episiotomia é realizada (LEAL, et al., 2017). A mortalidade materna entre mulheres negras é
2,5% a maior que entre as brancas (LEAL et al., 2017), sendo o aborto a quinta causa deste tipo
de morte no Brasil (OPAS, 2018). Martins et al. (2017), em pesquisa realizada em Minas
Gerais, levantou que o perfil das mulheres que tiveram óbitos maternos relacionado ao aborto
eram jovens (20 a 34 anos), solteiras (68%), negras (70,5%) e com média de sete anos de estudo.
Segundo Leal et al (2017), as puérperas pretas apresentam maior risco de ter um pré-natal
inadequado, falta de vinculação à maternidade e ausência de acompanhante. As mulheres negras
e pardas sofrem menos intervenções obstétricas (LEAL et al., 2017), não se traduzindo
necessariamente em atendimento humanizado. O modelo de atenção à saúde materno-infantil é
intervencionista, assim, os profissionais compreendem as intervenções como bom cuidado em
saúde.
Os dados abordados por Martins et al. (2017) e Leal et al. (2017) apontam a gravidade
do racismo institucional e a lógica do corpo negro como descartável e preparado para dor. As
omissões no momento do parto podem resultar em morte materna. Em Pernambuco, as
mulheres negras representam 95% do total de óbitos maternos30. Em pesquisa realizada em
Pernambuco, as mulheres negras representaram 83,2% do total de óbitos de mulheres grávidas
ou puérperas por causas externas: homicídios, suicídios e acidentes (NASCIMENTO et al.,
2014). Tais dados denunciam a violação aguda de direitos reprodutivos vivenciada pelas
mulheres negras.
O cenário do aborto no Brasil segue esta lógica e reflete que as mulheres jovens, negras
e de classes populares são as mais atingidas pelo aborto clandestino (DINIZ et al., 2017; GÓES,

30
Esse dado foi apresentado no 2° Fórum de serviços de aborto legal de Pernambuco pelas gestoras, no dia 24 de
setembro de 2019.
79

2018). A Pesquisa Nacional do Aborto – PNA31, de 2016 (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO,


2017) reafirma que o aborto é um evento reprodutivo recorrente entre mulheres brasileiras. Das
mulheres entrevistadas, 13% já fizeram pelo menos um aborto. Entre mulheres de 35 a 39 anos
essa taxa é ligeiramente maior: 18%. A pesquisa aponta que aos 40 anos de idade uma em cada
cinco mulher já fez um aborto. A maior parte dos abortos é realizado no período mais intenso
de atividade reprodutiva. A PNA estima que o número de mulheres urbanas alfabetizadas de 18
a 39 anos que fez aborto em 2014 seja de 416 mil. Para mulheres de áreas rurais, o número de
abortos em 2015 é estimado em aproximadamente 503 mil. Esses dados são obtidos em meio a
ambivalências, mas permite uma aproximação com a magnitude do fenômeno.
A taxa de aborto em municípios de mais de 100 mil habitantes é de 13%, enquanto em
municípios abaixo de 20 mil habitantes é de 11%. A taxa de aborto é de 22% entre mulheres
com até a quarta série, em contraponto é de 11% entre mulher com ensino médio ou superior.
Cerca de metade das mulheres utilizou medicamento como método abortivo e cerca da metade
precisou finalizar em serviço de saúde. A PNA (2016) demonstra uma diminuição na taxa de
internação comparada a PNA de 2010: 48% na primeira e 55% na segunda. Assim, a PNA de
2016 estima que a taxa de abortos permaneceu estável, mas a necessidade de internação para
tratar de complicações do aborto diminuiu.
A PNA (2016) confirmou o perfil já conhecido das mulheres que abortam: de todas as
faixas etárias, ressaltando as mulheres jovens de 20 a 24 anos; são mulheres que estão ou já
estiveram em união estável; 29% se declararam preta ou parda e 9% branca; são mães; são de
todas as religiões, são de todos os níveis de escolaridade, sendo mais recorrente entre mulheres
com até a quarta série; possuem ocupação ou não. Apesar do aborto afetar mulheres de diversos
grupos sociais, raciais e regiões territoriais, a taxa de aborto é maior no Norte/Centro-Oeste e
Nordeste do que nas regiões Sudeste e Sul, 15%, 18%, 11% e 6% respectivamente. Ou seja, o
Nordeste apresenta a maior taxa e o Sul a menor. Nas capitais, os números de aborto são maiores
do que nas Regiões Metropolitanas. As taxas de aborto também foram maiores entre mulheres
hoje separadas e viúvas (23%) do que entre as mulheres casadas (14%). A pesquisa também
demonstra que a Região Nordeste apresenta a maior frequência de abortos, sendo as capitais
com maiores taxas do que áreas não metropolitanas.

31 A PNA 2016 é um inquérito domiciliar cuja amostra probabilística representa a população feminina de 18 a 39
anos alfabetizada do Brasil. Combina entrevistas face-a-face realizadas por entrevistadoras mulheres com a
técnica de urna e, portanto, tem vantagens sobre os levantamentos que dependem integralmente de entrevistas
diretas. Um dos diferenciais em relação a PNA de 2010 é a inclusão de municípios de pequeno porte (abaixo de
20 mil habitantes), mas ainda se limita ao perímetro urbano. Ao todo, foram entrevistadas 2.002 mulheres no
Brasil.
80

No que tange as questões raciais, a pesquisa apresentou que do total de mulheres que
realizaram aborto, 24% eram negras (pretas e pardas) e apenas 9% se declararam brancas. Os
números absolutos demonstram de forma mais contundente a maior frequência de aborto entre
mulheres negras. Do total de 676 mulheres brancas que participaram da pesquisa, 58 realizaram
aborto; 322 mulheres pretas participaram e 49 declararam que realizaram aborto. Esse número
aumenta no grupo das mulheres pardas: 912 mulheres participaram e 129 recorreram ao aborto.
A maior frequência de aborto entre mulheres negras também é apontada por Adesse et al.
(2015). A pesquisa ainda pontuou que em cerca de 10% dos prontuários que compuseram a
amostra de pesquisa não havia o quesito raça/cor preenchido, sinalizando racismo institucional.
Porém, as desigualdades raciais não se expressam apenas no quantitativo de abortos
provocados. De acordo com Góes (2018), as mulheres pretas em situação de abortamento
interromperam a gravidez mais tardiamente; declararam ter enfrentado mais barreiras
institucionais, especialmente, o tempo de espera por uma vaga ou leito (três vezes maior do que
o relatado pelas brancas); e, apresentaram proporções duas vezes maiores de condições
regulares, graves e muito graves comparativamente às brancas. Madeiro e Rufino (2017)
investigaram maus tratos e discriminações entre mulheres que recorreram a um determinado
serviço de saúde em Teresina, Piauí, para finalizar o aborto. Uma a cada três mulheres sofreram
algum tipo de violência no serviço de saúde, que incluía intimidação, humilhação e ameaça. As
mulheres submetidas a essa grave situação de desrespeito aos direitos humanos tinham
majoritariamente entre 20 a 24 anos, eram solteiras, com baixa escolaridade, negras (82%),
sendo 53,8% da amostra formada po pretas (MADEIRO; RUFINO, 2017).
O cenário do entrelaçamento entre aborto e racismo aponta para a
desresponsabilização do Estado frente a garantia dos direitos humanos das mulheres. De acordo
com Soares (2015) o Estado perpetra uma violência racial sistemática contra as mulheres negras
ao criminalizar o aborto, haja vista que tal estratégia funciona como um verdadeiro genocídio
que encobre o racismo institucional pela criminalização das mulheres que decidem sobre os
corpos.
No que tange as pesquisas qualitativas, poucos artigos abordaram nitidamente a relação
entre raça e aborto. Destaco as pesquisas de Pereira et al. (2012), Couto et al. (2015) e Diniz et
al. (2012) que evidenciam a relação entre aborto e raça, tendo como resultado a violência
doméstica como um dos motivos elencados pelas mulheres para realizar um aborto e um
elemento presente na própria vivência do aborto. Outros estudos apresentam o quesito raça/cor
das mulheres participantes da pesquisa, porém não analisam os resultados em uma perspectiva
racial (BERALDO; BIRCHAL; MAYORGA, 2017; SANTOS; BRITO, 2014; FERRARI;
81

PERES; NASCIMENTO, 2018; GUIMARÃES; ALMEIDA; CARNEIRO, 2018; PORTO;


SOUSA, 2017; MCCALLUM; MENEZES; REIS, 2016) e um terceiro grupo de artigos não
apresenta a raça/cor das mulheres no momento em que traçam o perfil das entrevistadas
(CARVALHO; PAES, 2014; SILVEIRA; MCCALLUM; MENEZES, 2016).
Pereira et al (2012) aponta em seu estudo quais os principais motivos que interferem na
decisão pelo aborto entre mulheres soteropolitanas. A autora entrevistou nove mulheres, entre
20 e 29 anos, maioria se declara negra (maior número de aborto entre elas), baixa escolaridade
(fundamental completo), com filhos, que utilizaram misoprostol como método para interromper
a gestação e todas estavam utilizando algum método contraceptivo. A maior parte é casada e
depende financeiramente do parceiro. Esse perfil também foi encontrado por Couto et al. (2015)
e Diniz et al. (2012). No entanto em Couto et al. (2015) todas eram negras e estavam em
situação de violência doméstica. Já na pesquisa de Diniz et al. (2012), 88% das mulheres viviam
ou já tinham vivido em uma situação de violência doméstica e 90% se declarou negra.
Entre os motivos alegados pelas mulheres negras, jovens e baianas para interromperem
a gestação, de acordo com Pereira et al. (2012) estão dificuldades financeiras, a situação de
violência e o receio de ter que deixar de trabalhar, corroborando com (DINIZ et al., 2012).
Entretanto, todas as narrativas das mulheres apresentadas pela autora em seu artigo nos remetem
a pensar que a dificuldade financeira é pano de fundo para a relação com o parceiro. As
mulheres alegam que cuidam dos filhos sozinhas, pois, por alguma razão, a relação ou se
rompeu ou se tornou descontínua no processo de aborto.
A relação entre violência doméstica e a experiência de aborto nos chama atenção.
Couto et al. (2015) e Diniz et al. (2012) vão abordar essa relação nos seus estudos. A violência
doméstica não apenas se conforma como um dos motivos alegados, mas também agrava física
e psicologicamente a situação das mulheres. As hemorragias e outras complicações decorrentes
do aborto provocado são mais agudas em mulheres em situação de violência doméstica, bem
como o transtorno de estresse pós-traumático. Diniz e Medeiros (2012) apontam que as
mulheres negras estão expostas ao triplo do risco do que mulheres brancas nos percursos
abortivos.
Guimarães, Vieira e Carneiro (2018) ao analisarem a história de vida de Helena, uma
mulher que recorreu ao aborto na juventude, desvelam esse entrelaçamento entre raça, aborto e
violência. Helena é uma mulher autodeclarada parda, oriunda do centro-oeste que precisou
migrar para o centro urbano em busca de condições de vida. A vida de Helena é marcada por
trabalho infantil, sucedido pelo trabalho desvalorizado, casamento precoce, violência
doméstica, física e sexual, em um contexto em que era proibida pelo marido de usar método
82

contraceptivo. Assim, Helena engravidou em uma situação de violência e decidiu interromper


a gestação por causa da precariedade do relacionamento. Depois do aborto, o marido ainda
tentou matá-la. Helena fez um aborto aos 26 anos e relatou que nunca contou nada para
ninguém. Sentiu culpa e vergonha pelo aborto.
A pesquisa de Ferrari, Peres e Nascimento (2018) 32 é relevante para articularmos
racismo e aborto. Os autores e a autora discutiram o tema da iniciação sexual na adolescência,
com foco nas narrativas de dez jovens, entre 15 e 17 anos, com experiência de aborto induzido,
moradoras de uma favela do Rio de Janeiro. Essas jovens estavam devidamente matriculadas
na escola, moravam com a família e a maioria declarou-se negra (apenas uma branca). O
primeiro sexo se deu entre 11 e 15 anos, em sua maioria com parceiros mais velhos. Das dez
jovens, sete transaram a primeira vez com respectivos namorados. A maioria relatou pressão
do parceiro para fazer sexo com penetração. Alguns relatos demonstram violência, e chama
atenção o relato de uma menina de 12 que foi pressionada pelo parceiro (aqui entendido como
agressor) de 42 anos para fazer sexo e ‘provar a virgindade’. Ao mesmo tempo que aprendem
o exercício da sexualidade, as meninas aprendem também sobre a violência que constitui a
experiência de ser mulher.
O aprendizado do uso dos métodos contraceptivos se deu entre 12 e 14 anos. A meninas
relataram o uso de uma série de métodos. Entretanto a escola e a família não são citadas como
alternativa para obtenção de informações. As adolescentes recorreram à internet para obter as
informações contraceptivas que necessitavam. Os autores e a autora destacam a diferença das
idades entre as jovens e os parceiros, sendo naturalizado pelas jovens, pois esses homens têm
mais experiência. Além de estar associado ao aborto induzido entre jovens, a relação afetiva
sexual com parceiros bem mais velhos favorece a desigualdade de gênero, bem como dificulta
as negociações e a autonomia na tomada de decisões.
As jovens enfatizaram que ao longo da trajetória sexual os parceiros recusavam-se a
usar o preservativo masculino. A insistência dos homens era difícil de driblar e o sexo
desprotegido acabou tornando-se rotineiro na vida sexual das jovens (FERRARI, PAES,
NASCIMENTO, 2018). Soma-se a isso o fato de não obterem informações contraceptivas
através das instituições que deveriam acolher suas demandas, como a escola, os postos de saúde
e a família. Assim, a gravidez imprevista é uma realidade entre mulheres jovens em uma

32
A pesquisa foi realizada, numa mesma favela da Zona Sul do Rio de Janeiro, com dez jovens com idade entre
15 e 17 anos, com episódio de gravidez e de aborto clandestino entre 12 e 17 anos.
83

sociedade que se recusa a discutir educação sexual, direitos, relações de gênero e planejamento
reprodutivo.
Além da omissão da sociedade no debate sobre contraceptivos com jovens, há a
violência doméstica contra as mulheres. Ferrari, Paes e Nascimento (2018) discutiram como,
de forma pretensamente sutil os homens, em sua maioria mais velhos, recusavam-se a utilizar
o preservativo no sexo desrespeitando a autonomia reprodutiva das jovens. As adolescentes
engravidaram, em sua maioria, de ‘ficantes’, de relações sexuais episódicas ou ainda de homens
casados, o que leva à conclusão de que não possuíam um vínculo fixo com seus parceiros.
O status do relacionamento com o parceiro foi um dos elementos centrais na decisão
pelo aborto. Quatro jovens não comunicaram a decisão ao parceiro porque temiam a reação
deles. Assim, tiveram que arcar com os custos e foram ajudadas pelas amigas. Obtiveram o
método também através de traficantes das favelas que cobravam juros semanais. Seis jovens
comunicaram a gravidez ao parceiro e foram responsabilizadas por não terem se protegido
adequadamente. Dessas seis, três não queriam a gravidez e recorreram ao parceiro; apenas dois
parceiros ajudaram financeiramente, mas não acompanharam o processo. Três jovens queriam
levar adiante a gestação, mas a oposição do parceiro foi determinante na decisão pelo aborto.
Essas jovens relataram sofrer ameaças físicas e de vida dos parceiros desde a descoberta da
gestação até a consolidação do aborto induzido. Saliento que as jovens em sua quase totalidade
são negras. A violência é recorrente nas experiências de aborto entre mulheres negras como
aprofundaremos no tópico a seguir.
O processo de clandestinidade do aborto expõe as mulheres ao tráfico de drogas,
agravando o quadro de vulnerabilidade das mulheres, principalmente das mulheres negras e
jovens. Nos estudos sobre aborto há um jargão recorrente: ‘as mulheres negras e pobres são as
que mais morrem e adoecem devido ao aborto inseguro”, mas pouco se aprofunda nas demais
implicações do aborto clandestino na vida dessas mulheres. A pesquisa de Ferrari, Paes e
Nascimento (2018) apesar de não discutir os dados produzidos à luz das teorias raciais, nos
alude com reflexões sobre o entrelaçamento da trajetória sexual e reprodutiva de jovens negras
e periféricas e o tráfico de drogas. Para conseguirem concretizar o aborto, as jovens requereram
empréstimos com altos juros aos traficantes, além de sofrer violências dos parceiros e realizar
o aborto em condições insalubres, pois a maioria delas (sete) abortaram em clínicas privadas de
baixa qualidade (FERRARI, PAES, NASCIMENTO, 2018), podendo ser designadas como
populares, nos termos de Silveira; McCallum; Menezes (2018). Eram clínicas consideradas
sujas em condições precárias, situadas na própria na própria comunidade.
84

A partir dos estudos expostos, é possível refletir que as mulheres negras recorrem ao
aborto por não disporem de alternativas. Para essas mulheres, realizar um aborto é doloroso e
não reflete um sentimento de liberdade, bem como não significa necessariamente exercício de
uma decisão autônoma. As mulheres negras realizam aborto porque suas vidas são precárias
devido ao racismo e suas interfaces. Nesse sentido, a discussão do aborto precisa ser realizada
à luz da justiça reprodutiva, para que os direitos reprodutivos das mulheres negras sejam
efetivados.

3.2 O direito ao aborto como justiça reprodutiva para as mulheres

“O direito ao aborto é uma questão política e é incontornável para a democracia”


(BIROLI, 2014, p. 44). Tal premissa é nítida quando nos debruçamos sobre o contexto do aborto
no mundo. Esta situação pode ser dividida entre as regiões colonizadas e as não colonizadas.
Os chamados países desenvolvidos e os não desenvolvidos e, ainda, os emergentes. De fato,
poucos são os países do Sul Global que permitem a prática do aborto por escolha da mulher.
Nas Américas Central e do Sul, apenas Cuba e recentemente Uruguai legalizaram a prática. Na
África, o aborto é legalizado na África do Sul, Etiópia, Zâmbia e, desde 2015, Moçambique.
Nos demais países, ou há legislações totalmente restritivas, como Nicarágua, Honduras e El
Salvador, ou permissivos gradativos que não podem ser compreendidos como respeito à
autonomia das mulheres, mas como medidas para conter danos maiores à saúde pública. As
mulheres são vistas como vítimas seja do acaso nos casos de anencefalia, seja da pobreza nos
casos do aborto legalizado por razões socioeconômicas, e vítimas da violência sexual, nos casos
de estupro.
Faúndes (2015) questiona porquê as leis permanecem restritivas em relação ao aborto
nos países em desenvolvimento. O autor aponta duas questões. A primeira está no rechaço à
prática e, consequentemente, uma crença de que a legalização do aborto levaria a um aumento
da prática, sem que haja nenhum dado que confirme essa afirmação. A segunda questão repousa
nas relações de poder: as pessoas que elaboram as leis não são afetadas pela criminalização do
aborto.
A tipificação do aborto como crime passa pela compreensão do que seja considerado
como tal em cada sociedade de acordo com o seu momento histórico. Na sociedade brasileira,
questões que eram vistas pelo viés penal, passaram a ser tratadas por uma perspectiva social,
de acolhimento, cuidado e enfrentamento a um problema social. Prostituição e dependência de
álcool e outras drogas são exemplos desse processo. Vladimir Polízio Júnior (2015) argumenta
85

que a construção social dos atos criminosos precisa ser pensada a partir das necessidades reais
da coletividade. Sendo o crime uma categoria arbitrária, a tipificação dos atos tem de
acompanhar o desenvolvimento das mentalidades coletivas.
Biroli (2014) argumenta que o estado e a sociedade lidam de formas diferentes com as
questões relativas à laicidade, populações e controle da sexualidade e reprodução de acordo
com o momento histórico. Ao contrário do que se pensa, as normas, valores e morais não são
universais. O conjunto da moralidade é cambiante, flexível e mutável, a despeito das
continuidades. Mesmo algo condenado jurídica e moralmente pode ser de certa forma tolerado
pela sociedade porque diz respeito a uma dinâmica da vida concreta. Esse é o caso do aborto.
Apesar de largamente reprovado, há diferentes níveis de tolerância para a prática, como nos
recorda Boltanski (2012).
Assim, retomando a Polízio Júnior (2015) a tipificação de crime precisa considerar dois
princípios jurídicos: o de lesividade e o da proporcionalidade mínima. O primeiro diz respeito
à magnitude do crime, se esse representa um prejuízo à vida em sociedade. O segundo refere-
se à proporcionalidade entre a pena e a lesão ao bem jurídico tutelado. No caso do aborto, não
há prejuízo à vida em sociedade. Há apenas prejuízo para a mulher que precisa decidir sobre
sua capacidade reprodutiva e encontra impeditivos do próprio estado para tal. Ademais, a pena
imputada às mulheres é completamente desproporcional, devido à ausência de possibilidades
em prejudicar terceiro nesse ato. A concepção da vida do feto não pode ser superior ao direito
da mulher de decidir sobre sua vida. Não há direito fundamental absoluto que não possa ser
confrontado com outro direito fundamental mediado pelo princípio da ponderação e da
proporcionalidade.
Corroborando com essa concepção, Azevedo (2017) defende a inexistência dos direitos
fundamentais fora das relações sociais que os projeta. Pensar direitos fundamentais é pensar
construções históricas e sociais determinadas subjacentes a esses princípios que normatizam a
vida em sociedade. O princípio da dignidade da pessoa humana assegura que toda pessoa tem
o direito de ser tratada com dignidade e de ter o seu direito à integridade física reconhecido e
respeitado pelo Estado (JUNIOR, 2015), ainda mais quando se trata de um direito comparativo
com algo que não goza de status de pessoa e de indivíduo, haja vista que a Constituição Federal
só reconhece como cidadão aquele ou aquela que nasce com vida. Há uma querela que circunda
o início da vida humana, ainda sem consenso. O parâmetro encontrado é a formação do sistema
nervoso cerebral, pois é o órgão que dita a morte, sendo um parâmetro legítimo. A
criminalização do aborto ainda viola o direito à intimidade e à vida privada das mulheres, tendo
86

em vista que o Estado interfere em uma situação que só traz implicações para as mulheres
brasileiras (JUNIOR, 2015).
O aborto no Brasil passou a ser crime da forma como entendemos atualmente em
meados do século XX. Pouco tempo depois foi despenalizado e/ou legalizado em diversos
países no norte global (BIROLI, 2014). O Código Penal de 1940, que tipifica o aborto como
crime, é obsoleto, pois reflete a mentalidade da época em relação às discussões de gênero. Os
arcabouços jurídicos desse contexto reconheciam apenas o homem como chefe da casa,
restringia a liberdade da mulher à expressa autorização do marido, permitia ao homem anular
o casamento caso a mulher já tivesse mantido relações sexuais anteriores (JUNIOR, 2015).
Esses exemplos revelam que a normatização atual do aborto está alicerçada em um contexto
histórico retrógrado, que reconhecia a mulher como cidadã de segunda categoria, sem
autonomia e sem investimento ético para tomar as próprias decisões.
As discussões em torno da laicidade do Estado apontam para a necessidade de
radicalizar a compreensão da pluralidade como fundante de um estado democrático e de direito.
O que assistimos hoje é uma deturpação deste princípio pelos movimentos religiosos que
defendem o tolhimento da vida reprodutiva das mulheres a partir de uma defesa de uma vida
abstrata, desprovida de qualquer comprovação material. O que move esses grupos são
fundamentalismos religiosos alicerçados em questões morais que não podem ser positivadas
pelo ordenamento jurídico. O direito deve adequar-se à sociedade e não ao contrário. A busca
pelo bem comum e pelo reconhecimento dos direitos das pessoas em decidirem sobre suas vidas
precisar ser fundamental. Assim, “transformar também aqui Direito em Justiça” (JUNIOR,
2015, p. 195).
A suspeição da mulher como pessoa dotada de direitos, mensagem que brota da
criminalização do aborto, significa que os preceitos morais e religiosos estão sendo sustentados
jurídica e politicamente por um Estado pretensamente laico. De acordo com Biroli (2014), a
defesa pelo direito ao aborto coloca em xeque duas questões importantes da ordem moral de
gênero. A primeira refere-se à interface entre o controle da sexualidade das mulheres e a
violência contra elas, pois mulheres de caráter duvidoso justificariam as situações de violência.
E o segundo diz respeito à maternidade que a autora designa como dispositivo.
A autonomia das mulheres esta, assim, no centro das disputas relativas
ao aborto. Os arranjos atuais – o conjunto das normas, das
representações e das justificações – que organizam e que coíbem a
prática do aborto nas nossas sociedades são, sempre, arranjos que
incidem sobre seu exercício (BIROLI, 2014, p. 42).
87

A questão não é a prática do aborto em si, mas quem decide e em que circunstâncias.
Vários países mantêm legislações mais abertas em casos de má formação e de pobreza. Isso é
algo a se pensar. Em tempo, nos Estados Unidos, o aborto foi legalizado a partir de uma política
racista de contenção das populações negras e latinas (DAVIS, 2016). “Eugenia, racismo e a
busca do controle social da pobreza fundamentaram, assim, políticas que fizeram do corpo das
mulheres objeto de intervenções sancionadas” (BIROLI, 2014, p. 39).
As políticas de controle da reprodução e sexualidade das mulheres são marcadas por
raça e classe, não atingindo-as da mesma forma. As práticas de esterilização do Brasil em que
mulheres negras e pobres eram, e ainda são, o alvo prioritário escancaram o controle seletivo
dos corpos das mulheres.
Ferraza e Peres (2016) compreendem as políticas de controle de natalidade (aborto,
esterilização, contraceptivos, formas de nascer) como estratégias de controle biopolíticas que
regulam a população a partir de seus corpos, mas também regulam sistemas de pensamento. O
investimento ideológico de um padrão de comportamento reprodutivo e sexual teve êxito e o
eco desse processo produz efeitos na sociedade contemporânea (FERRAZZA; PERES, 2016).
Os sistemas de dominação no mundo regido pela colonialidade do poder regulam a vida, os
nascimentos, os partos, as práticas sexuais, as condutas reprodutivas, o tempo de vida e as
mentalidades. A colonialidade do saber, parte integrante desse processo, convenceu as
populações que criminalizar o aborto é uma forma de manter a família em seu aspecto mais
divino. Controlar o corpo das mulheres seria a única forma de reproduzir o mundo dentro de
uma moral cristã.
Ferrazza e Peres (2016) argumentam que a criminalização do aborto seria uma estratégia
de poder que permite que a vida das mulheres, em especial pobres e negras, seja ‘matável’. Não
se extermina diretamente, mas através de leis cruéis, escondidas pelas cortinas da defesa do
direito da vida e da família, que não consideram a realidade concreta da vida das mulheres.
O mais interessante nesse debate é a mutação da compreensão acerca do aborto ao longo
do tempo por parte dos setores mais empenhados na defesa da criminalização do aborto.
Segundo Católicas pelo Direito de Decidir (2009), durante os seis primeiros séculos do
cristianismo, a punição ao aborto não era para proteção do feto, mas por causa da relação entre
a interrupção da gravidez e o adultério. Este último era tão rechaçado pelo cristianismo que
possuía castigos mais severos do que assassinato, pois o Estado e a Igreja estavam muito
empenhados em conservar o casamento e a família como a base da sociedade, principalmente
interessados em garantir a fidelidade feminina. Isso demonstra o caráter político da proibição
ao aborto.
88

Ainda de acordo com Católicas pelo Direito de Decidir (2009), durante séculos a Igreja
acreditava que a matéria só receberia a alma após a concepção. São Tomás de Aquino foi o
teólogo do cristianismo que referenciou a ideia hilemórfica33, considerando que o aborto só
seria considerado homicídio quando houvesse alma no feto, ou seja, após 40 dias depois da
fecundação de meninos e 80 dias após a fecundação de meninas34. Essa compreensão vigorou
até 1869, quando o papa Pio IX declarou o aborto enquanto pecado em qualquer situação em
que fosse praticado. “Assim, a teoria de São Tomás de Aquino foi substituída pela ideia de
hominização imediata, ou seja, a de que a alma já está no feto desde a fecundação” (Católicas
pelo Direito de Decidir, 2009, p. 130). Nessa época, por determinação do Vaticano, houve
incentivo ao culto à Imaculada Concepção da Virgem Maria, que apregoava que Maria tivesse
recebido Jesus em seu ventre já com alma, reforçando a ideia de vida desde a concepção.
No século XIX, com o advento da industrialização e com a exploração da mão-de-obra
operária, inclusive a das mulheres, eclode o movimento operário, primeiramente, na Inglaterra.
Nessa conjuntura, surgem também movimentos de cunho feminista na Europa, com o objetivo
de defender os direitos das mulheres. Nesse ínterim, a Igreja Católica conclama as mulheres
para a maternidade, afirmando que este deveria ser o papel principal em suas vidas (Católicas
pelo Direito de Decidir, 2009).
Apesar de parte da Igreja Católica afirmar que a proibição do aborto é uma questão de
dogma, algo que não pode ser contestado, na verdade, a proibição do aborto por parte da Igreja
Católica é questão de lei eclesiástica - de lei da Igreja definida por sua hierarquia. “A proibição
do aborto é uma das regras de comportamento estabelecida para orientar as práticas das pessoas
católicas” (Católicas pelo Direito de Decidir, 2009, p. 12). Isso evidencia, portanto, que a
questão da ilicitude do aborto está calcada em discussões políticas e morais e não de fé.
Não obstante, entrelaça-se nesse processo o avanço da medicina entre os séculos XVIII
e XIX, como nos relembra Ferraza e Peres (2016). A medicina moderna fabricou uma série de
dispositivos de controle dos corpos de homens e de mulheres para normalizar comportamentos
e condutas. Entretanto tal processo desdobrou-se diferenciadamente para as mulheres, tendo em
vista as estruturas falocêntricas de poder que constitui o que é ser mulher na modernidade. O
processo de medicalização da sexualidade das mulheres ergueu um discurso higienista e
culpabilizador da maternidade. Os prazeres precisaram ser controlados através de estratégias

33 A concepção hilemórfica é baseada na filosofia de Aristóteles e considera a forma e a matéria como dois
princípios básicos complementares, constituindo todos os seres da realidade, inclusive a alma (Católicas pelo
Direito de Decidir, 2009).
34
Existia um consenso de que a alma das mulheres demorava o dobro de tempo dos homens para se introduzir no
corpo, reforçando a visão de inferioridade que a Igreja tinha da mulher.
89

biopolíticas, haja vista que nesse momento histórico o capital reorganizava-se para expandir e
maximizar os lucros. Estratégias de controle eficientes resultariam em uma massa de força de
trabalho ajustada aos interesses do capitalismo. Impor um modelo de família, perseguir
sexualidades dissidentes, controlar prazeres domesticariam esses corpos para a produção de
mercadoria.
Assim, a Igreja Católica e, mais tarde, as Igrejas Pentecostais e o saber médico
empenhariam-se na construção de um discurso criminalizante do aborto com o objetivo de
controlar a capacidade reprodutiva das mulheres. Para se opor a esse discurso, no Brasil, o
movimento feminista construiu a defesa da legalização do aborto a partir dos direitos
individuais. Na década de 1970, em pleno regime militar, a máxima feminista ‘Nossos corpos
nos pertencem’ ecoava em diferentes regiões, inclusive entre os grupos feministas na América
Latina. As especificidades da formação sócio-histórica dos países desse continente forçaram a
recuada e/ou omissão da pauta do aborto por parte do movimento feminista (BASTERD, 1992).
Na redemocratização, a pauta do aborto junto à esquerda manteve-se difícil. Apesar dos
avanços conquistados na Constituição Federal de 1988, muitas negociações precisaram ser
feitas. A ampla aliança contra a Ditadura Militar implicou na construção de um campo com
grupos de centro, inclusive conservadores. De acordo com Scavone (2008), o feminismo
brasileiro utilizou dois argumentos na pauta da legalização: a legalização pela via dos direitos
individuais e pela dos direitos sociais. Estes últimos atrelavam-se diretamente às questões de
saúde pública e classe social. Nas décadas de 1980 e 1990 os dois argumentos coexistiram
dentro do campo maior do movimento feminista.
Entretanto, o argumento dos direitos sociais mostrou-se mais potente para sensibilizar a
sociedade. O aborto como uma questão de saúde pública constituiu a premissa capaz de manter
a legislação sem grandes recuos e conquistar os serviços de aborto legal, as normas técnicas e
o permissivo no caso de anencefalia fetal em 2012. A trajetória política em defesa do aborto
deu-se, como já mencionado anteriormente, na construção da mulher como vítima das
consequências da criminalização, diferentemente do contexto francês, como nos alude
Machado (2010). Naquele país, a conquista da legalização do aborto ocorreu pelo viés do direito
de decidir, da autonomia das mulheres sobre sua capacidade reprodutiva, a partir de uma
perspectiva liberal, apesar de garantido pelos serviços de saúde pública.
A defesa do aborto tanto pelo viés dos direitos individuais, quanto pelo viés dos direitos
sociais compõe o campo dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos. Esses termos são
cunhados na década de 1990, a partir de uma preocupação global com uma série de injustiças
que acomete meninas e mulheres em diversas regiões do mundo: mutilação genital, casamento
90

infantil forçado, estupros, aborto inseguro, violência no parto, etc. O debate dos direitos sexuais
e dos direitos reprodutivos ergue-se como contraponto às políticas de controle de natalidade,
mais precisamente na Conferência do Cairo, em 1994, e na Conferência de Beijing, em 1995.
A partir dessas duas conferências, diversos países do Sul Global comprometeram-se em rever
suas políticas de controle de natalidade e as leis punitivas acerca do aborto. Para Ávila (2003),
esses direitos reivindicam liberdade e igualdade no campo reprodutivo, superando o caráter de
normatização reguladora que gera um modelo de sexualidade e de vida reprodutiva a ser
seguida. Para a autora, os direitos sexuais e reprodutivos constroem um sentido divergente da
tradição repressiva e discriminatória na qual estava imersa a sexualidade e a reprodução.
Davis (2016) aponta importantes elementos para discutir aborto e racismo. O aborto está
no campo dos direitos reprodutivos e a reprodução, por sua vez, sempre foi um aspecto
espinhoso para as mulheres negras. Na década de 1970, as feministas elencaram o aborto como
pauta central de reivindicação. O controle de natalidade, métodos seguros e aborto legal eram
considerados fundamentais para a emancipação da mulher. E de fato são. Entretanto, a
comunidade afro-estadunidense mantinha certa desconfiança com o movimento pelo controle
de natalidade. Decerto, as esterilizações forçadas continham um forte componente racial e
legitimaram interesses racistas. Não por acaso a população negra comparou o controle de
natalidade ao genocídio.
As mulheres negras e latinas recorriam ao aborto não pela vontade de liberar-se da
maternidade, mas das miseráveis condições sociais que convenciam-nas a não trazer novas
vidas ao mundo. Essa mesma situação, de acordo com Davis (2016), era vivida pelas escravas.
O aborto e o infanticídio na escravidão estadunidense representavam o desespero das mulheres,
uma forma de não trazer filhos a um mundo de trabalho forçado. Assim, argumentar que as
mulheres negras recorriam ao aborto para se emancipar e que o aborto representa para elas
liberdade é reivindicar um sujeito mulher universal, no qual apenas a história das mulheres
brancas é visibilizada e respeitada.
No Brasil, a esterilização em massa foi a estratégia utilizada pelo racismo, mascarada
de planejamento familiar empreendido por entidades sociais. O trabalho consistia na
esterilização massiva das mulheres, em sua maioria mulheres negras e jovens, e a distribuição
em larga escala de pílulas e dispositivos intrauterinos. As mulheres não eram informadas
devidamente sobre as consequências dos procedimentos. Eram intervenções coercitivas e
violentas que impunha às mulheres negras caminhos sem alternativas.
91

No Brasil, a primeira entidade desta natureza — a Sociedade de Bem-Estar da Família


(BEMFAM) — foi criada sob o augúrio da Internacional Planed Parenthood Federation
(IPPF), organismo internacional financiado por governos europeus, estadunidense e pelas
Nações Unidas, a partir da década de 1960. Sustentando-se na premissa do enfrentamento da
morbimortalidade materna e infantil e nos crescentes índices de aborto provocado e abarcando
parte significativa do setor médico do país, a BEMFAM, alcançou visibilidade social. Contudo,
a entidade respondia a interesses controlistas de organismos internacionais e dos poderosos
laboratórios farmacêuticos estrangeiros (BONAN, 2001), alinhados às mesmas políticas raciais
dos Estados Unidos, citadas anteriormente.
Entretanto, o marco dos direitos reprodutivos e direitos sexuais é compreendido por
alguns grupos de mulheres, em especial negras e latinas, como proteção ao direito individual
da mulher de escolher sobre continuar ou não a gestação 35 . Smith (2013) discute que na
polarização entre os grupos pró-vida e pró escolha no contexto estadunidense, as mulheres
negras e latinas foram marginalizadas. “O paradigma pró-vida versus pró-escolha reifica e
máscara as estruturas da supremacia branca e do capitalismo que sustentam as escolhas
reprodutivas que as mulheres fazem, e também restringe o foco de nossos objetivos políticos à
questão da criminalização do aborto” (SMITH, 2013, p. 120). A questão específica da
legalização do aborto no Estados Unidos, como já discutimos, foi obtida a partir de um viés
racista de controle das populações negras e latinas e do argumento dos direitos individuais,
desconsiderando as condições materiais para as mulheres pobres acessarem serviços de
qualidade, haja vista a ausência de serviços públicos de aborto legal, afastando as mulheres
negras e latinas do debate acerca dos direitos sexuais e reprodutivos. Embora Smith (2013) se
refira ao contexto estadunidense, na sua crítica há elementos importantes para pensarmos os
direitos reprodutivos e o aborto no Brasil.
Nas décadas de 1980 e 1990 grupos de mulheres negras organizadas politicamente
atuaram vigorosamente contra a esterilização em massa das mulheres negras no Brasil,
principalmente, no nordeste brasileiro. Famílias com proles numerosas eram vistas como a
causa do subdesenvolvimento do país e uma forma de conter o avanço da população pobre era
a esterilização das mulheres. Damasco, Maio e Monteiro (2012) argumentam que a questão da
saúde reprodutiva das mulheres negras disparou a organização politica de mulheres em
coletivos específicos. Estas enfrentavam os homens do movimento negro que defendiam que

35
Essas percepções estão desenvolvidas em: <https://forwardtogether.org/programs/strong-families-network/>.
Acesso em: 15 de jul. de 2019.
92

as mulheres negras tinham a tarefa política de gerar filhas(os) e o movimento de mulheres que
defendia o aborto sem considerar as necessidades e desejos específicos das mulheres negras
(DAMASCO; MAIO; MONTEIRO, 2012).
A IPPF implementava nos municípios uma política de controle da natalidade
respondendo às aspirações racistas do poder vigente. Damasco, Maio e Monteiro (2012)
resgatam o pronunciamento do Deputado Luis Carlos Santos (PMDB-SP) em agosto de 1982,
no qual demonstrou preocupação no aumento da população negra no Brasil, pois representava
uma ameaça aos interesses eleitorais. O deputado chegou a afirmar que caso a população negra
ultrapassasse a população branca as eleições deveriam ser extinguidas. Essa fala ocorreu ainda
no regime militar, porém no processo de redemocratização. Propagandas racistas articulando
crianças negras a “defeitos de fabricação” ocorreram na Bahia, mais precisamente na
inauguração do Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana (CEPARH), criado
em 1986, em Salvador, e dirigido pelo médico Elsimar Coutinho na Bahia (DAMASCO;
MAIO; MONTEIRO, 2012). Esses dois episódios elucidam o racismo entranhado nos debates
sobre população, desenvolvimento e saúde reprodutiva e os desafios para o movimento de
mulheres negras. Em 1990, as mulheres negras lideradas pela médica Jurema Werneck criaram
a Campanha Nacional contra a Esterilização de Mulheres Negras, sob o slogan “Esterilização
— Do controle da natalidade ao genocídio do povo negro!” (DAMASCO; MAIO;
MONTEIRO, 2012).
O ativismo das mulheres negras resultou na criação da Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito (CPMI) em 1993, com o objetivo de investigar as esterilizações em massa das
mulheres negras. Chegou-se a conclusão que a inexistência do quesito raça/cor nas estatísticas
dificultava a obtenção de informações precisas sobre a questão, bem como a ausência de
regulações do estado brasileiro acerca da esterilização. As discussões advindas da CPMI
resultaram na Lei do Planejamento Familiar nº 9.263, criada em janeiro de 1996, com o fim de
regular as esterilizações cirúrgicas no país. Apesar de problemática, a Lei conteve as práticas
racistas de controle dos corpos das mulheres negras.
Nesse sentido, a concepção de direitos sexuais e direitos reprodutivos não se apresenta
para as mulheres negras como uma estratégia para alcançar a vivência livre da reprodução e
sexualidade. Mesmo entre atores e atrizes do debate sobre saúde reprodutiva, o racismo que
norteou o processo de esterilização em massa das mulheres negras não foi reconhecido.
Médicos e pesquisadoras da área não atentaram a essa questão e até mesmo negaram que o
número expressivo de mulheres negras esterilizadas era resultado da política racista de controle
de natalidade, sendo a ausência de condições financeiras para arcar com os custos da
93

esterilização em serviços privados a justificativa dos altos números de esterilização em


mulheres negras (DAMASCO; MAIO; MONTEIRO, 2012). Soma-se a isso uma extensa
discussão sobre legalização do aborto que apenas recentemente considerou o debate acerca da
maternidade livre atrelado ao direito ao aborto legal e seguro.
Assim, o termo justiça reprodutiva é desenvolvido como alternativa que atrela o direito
à saúde reprodutiva à justiça social para as mulheres negras. O termo é criado em 1994, no
contexto estadunidense, mas apenas popularizado nos anos 2000.36 A justiça reprodutiva é o
reconhecimento da situação de opressão estrutural que mulheres negras e mulheres do Sul
Global vivenciam em suas vidas. O termo traduz o entrelaçamento entre saúde, sexualidade e
direitos humanos com as discussões sobre justiça social para as mulheres negras e do Sul
Global. Compreender o aborto a partir da justiça reprodutiva significa radicalizar o direito de
escolhas das mulheres negras.
O aborto legal e seguro para as mulheres negras precisa traduzir alternativas mais dignas
frente a uma gravidez imprevista. O aborto precisa ser legal e seguro para que as mulheres
negras não sejam esterilizadas em massa. Encerrar o ciclo reprodutivo de mulheres ainda jovens
é uma violação dos seus direitos sexuais e reprodutivos. As esterilizações no Brasil ainda são
feitas sem os devidos esclarecimentos às mulheres, como discutiremos nos capítulos
subsequentes. A ausência de políticas para que as mulheres negras exerçam o direito à
maternidade com segurança e com qualidade, a inexistência de uma política efetiva de
planejamento reprodutivo aliada a uma política de enfrentamento ao racismo impõe às mulheres
negras o aborto como alternativa frente a uma gestação que pode ser desejada, porém
imprevista.

3.2.1 A questão do aborto e as reflexões decoloniais

A cada ano, 20 milhões de abortos são realizados de forma insegura em todo o mundo,
gerando a morte de 68 mil mulheres, sendo que 97% do total de abortos realizados acontecem
em países em desenvolvimento. Apenas 26% dos países do mundo ainda não descriminalizaram
o aborto, a maioria deles na América Latina, África e Ásia37. O Brasil faz parte do grupo, com
68 nações “subdesenvolvidas”, onde vivem 25,9% da população global. Tais dados

36
Ver mais sobre em: <https://catarinas.info/justica-reprodutiva-e-relevante-para-a-luta-pelo-fim-da-violencia-
contra-as-mulheres/#_ftn3 >. Acesso em: 24 set. 2019.
37
Dados disponíveis em: <http://reproductiverights.org/centro-de-prensa/siguiendo-los-
progresos%E2%80%94y-los-desaf%C3%ADos-del-futuro%E2%80%94con-la-reforma-de-las-leyes-sobre>.
Acesso: 17 out. de 2012.
94

demonstram que a questão do aborto está localizada na divisão internacional do trabalho, que
representa um deslocamento do imperialismo territorial do século XIX, dividindo os países em
uma geopolítica global, na qual os países do sul do globo são marcados por códigos coloniais
de poder.
Os países da América Latina apresentam um conjunto de legislações restritivas em
relação ao aborto38. Apenas Cuba, Porto Rico (que segue a normativa dos Estados Unidos),
Guiana e Guiana Francesa (ambas seguindo a normativa da França) e Uruguai permitem a
interrupção voluntária da gravidez. Na capital do México, o aborto também é permitido, mas
isso não se estende ao restante do país, apenas sendo permitido no caso de gravidez decorrente
de estupro.
República Dominicana, Haiti, Suriname, El Salvador, Nicarágua e Honduras proíbem a
interrupção voluntária da gravidez em qualquer caso, sendo a mulher passível de privação de
liberdade. Nestes países, quando há o conflito moral imposto pelo risco de morte da gestante
em decorrência da gravidez é permitido a equipe médica avaliar o procedimento de aborto.
Apenas nessas circunstâncias o aborto é considerado, excluindo os casos de gravidez decorrente
de estupro.
Os demais países apresentam uma legislação restritiva. Isso significa dizer que o aborto
é considerado crime, salvo algumas exceções como gravidez decorrente de estupro, risco de
morte para a gestante e formação fetal incompatível com a vida extrauterina. Estão incluídos
nesse grupo o Paraguai, Bolívia, Chile, Brasil, Argentina, Colômbia, Costa Rica, Venezuela,
Peru, Panamá, México, Equador e Guatemala. Porém, os permissivos não garantem
automaticamente o acesso ao aborto garantido em lei. Uma série de impedimentos é colocado
às mulheres no acesso ao aborto legal, devido a própria concepção de vida que está instaurada
nesses países, a partir do viés cristão.
Neste terceiro grupo de países, destaco o Chile e a Bolívia por recentemente terem
apresentado o alargamento de suas legislações. O Chile, em agosto de 2017, descriminalizou o
aborto em três situações: risco de morte para a mulher, gravidez decorrente de estupro e má
formação fetal. A legislação chilena hoje é similar a brasileira. Até então, as mulheres não
gozavam de nenhum permissivo legal nos casos de aborto.

38
Os dados apresentados sobre as legislações dos países sobre aborto na América Latina são provenientes do
acompanhamento de notícias sobre o assunto e pesquisas feitas nas próprias legislações. Entretanto, para fins
deste texto, disponibilizo o link de uma página virtual que contém as informações resumidas. Disponível em:
<http://www.generonumero.media/aborto-na-america-latina-como-paises-regulamentam-interrupcao-
voluntaria-da-gravidez-na-regiao/> Acesso em: 09 dez. 2017.
95

A Bolívia, em setembro de 2017, aprovou uma nova lei que amplia as possibilidades do
aborto legal. Aos permissivos do aborto em casos decorrentes de estupro e risco de morte para
a mulher soma-se a permissão para a interrupção voluntária da gravidez até a 8º semana de
gestação, quando decidido por mulheres estudantes ou mulheres que tenham aos seus cuidados,
filhos pequenos e adultos maiores e descapacitados. Esta normativa obriga os serviços de saúde
públicos a prestarem atendimento a essas mulheres que solicitarem, sem poder alegar objeção
de consciência39. A correlação de forças na Bolívia diverge um pouco do restante da América
Latina, pois o parlamento boliviano foi favorável ao alargamento da lesgislação. O ponto de
contraposição emanava de uma articulação da categoria médica com os bispos católicos, a
despeito do estado boliviano reivindicar-se laico desde 2009. Tal posição da casa legislativa
boliviana me remete a opção decolonial feita por esse país40, como argumenta Mignolo (2008).
Para o autor, a opção decolonial refere-se a uma insurgência a partir do reconhecimento
da diferença colonial instaurada nas linhas geopolíticas do sistema mundo. É reconhecer as
identidades múltiplas apagadas pelo colonialismo e reatualizadas pela colonialidade do poder.
É um processo que Estados-nação e povos exteriores ao pensamento decolonial adotam para
modificar as estruturas de dominação e de dependência do capital estrangeiro (dos países
centrais) sob as quais estão assentados. Ainda na linha de pensamento de Mignolo (2008), o
pensamento colonial está presente em diversos povos considerados não-modernos (aqui me
distanciando da concepção do pré-moderno) pelo projeto colonial. O pensamento decolonial
faz parte dos povos andinos e quilombolas durante séculos. É um pensamento orgânico de
povos que ao passo que são constituídos pela modernidade colonial conseguem manter uma
cosmovisão que se contrapõe à modernidade.
Estado-nação é um construto do projeto colonial como forma de reatualizar os processos
de dominação nos territórios coloniais. Não o utilizamos aqui como sinônimo de país, mas sim
como uma produção moderna que as populações da América Latina organizaram em torno de
um projeto de identidade nacional. De acordo com Quijano (2005), estado-nação é uma
estrutura de poder e um produto do poder ao mesmo tempo; um fenômeno moderno específico
que requer a democratização parcial do trabalho, seus produtos e seus recursos. Ou seja, é um
aparato que precisa de democracia liberal para existir, requer participação democrática parcial
e temporal. Uma verdadeira arena de disputas sobre o trabalho o sexo, seus produtos e seus

39
Disponível em: <https://elpais.com/internacional/2017/09/29/america/1506707616_443555.html> . Acesso
em: 06 out. 2017.
40
O projeto de opção decolonial em curso na Bolívia enquanto um país pluriétnico foi interrompido em 2019
com o golpe que depôs o então presidente Evo Morales e possibilitou a ascensão da direita à governança.
96

recursos, autoridade e violência, intersubjetividade e conhecimento. Para pensarmos a relação


entre estado e aborto, é preciso compreender, em consonância com Collins (2019), que raça,
classe, gênero e sexualidade estão intimamente relacionadas com a nação.
Uma nação é consiste em um conjunto de pessoas que passaram a acreditar
que foram moldadas por um passado comum e estão destinadas a compartilhar
um futuro comum. Essa crença é em geral alimentada por características
culturais comuns, como idioma e costumes; um território geográfico bem
definido; a crença em uma história ou origem comum; a crença que existem
laços mais estreitos entre os membros da nação que com quem é de fora; a
ideia de que o grupo se distingue de outros a seu redor; e uma hostilidade
compartilhada em relação a grupos externos. (COLLINS, 2019, p. 370)

Essa concepção de nação de Collins (2019) qualifica a compreensão acerca do estado-


nação controlado por um determinado grupo e o seu funcionamento na América Latina. Quijano
(2005) discute a construção e desenvolvimento dos Estados-nação a partir de sua composição
racial. Para o autor, o grupo dominante desta estrutura de poder precisa representar os interesses
comuns da população sobre a qual ele governa. A minoria branca, colonizadora, dominante não
representa o conjunto da população colonizada que governam. Não há interesses em comum.
Em países com maioria de negros e mestiços, o estado-nação em sua forma clássica (um modelo
de estado eurocêntrico) torna impossível-se, pois a maioria de negros e mestiços coloca sérios
problemas ao desenvolvimento e à distribuição de recursos. Como desenvolver um estado-
nação sem garantir participação política parcial e atender parte das demandas sociais da
população?
Construir estados-nação em territórios forjados pela violência colonial e reordenados
nos processos de independência pela colonialidade do saber, ser e poder requer a construção de
uma identidade nacional arbitrária, que se espelha no modo de vida do colonizador e não nos
povos que os constituem. Os territórios coloniais apresentam uma dependência histórico-
estrutural e uma subordinação nacional aos seus colonizadores. As elites dominantes não podem
ser compreendidas como elites nacionais. Em geral, demonstram ojeriza a tudo que é nacional
e de interesse público, erguem discursos de privatizações e abertura ao capital estrangeiro
mascarado de desenvolvimento, garantindo, assim, que a Europa e os Estados Unidos 41
expurguem para a periferia do mundo tudo aquilo que fere o êxito de um estado-nação.

41
Quijano (2005) argumenta que o Estado-Nação dos Estados Unidos apresentou algumas particularidades que
tornou a construção desta estrutura possível. Os Estados Unidos não tiveram todo o seu território colonizado
pelos britânicos e a burguesia branca que ali emergiu representava a maioria da população, haja vista que negros
e indígenas eram minoria. Isso permitiu que as elites dominantes construíssem interesses comuns com a maioria
da população, tornando possível a distribuição parcial dos recursos. A reforma agrária que ocorreu nos Estados
Unidos é emblemática nesse processo.
97

Um desses fatores é o pensamento secular moderno ocidental. O êxito da cristianização


da política e das mentalidades coletivas nos países do Terceiro Mundo (cristão) é emblemático
desse processo. A modernidade ocidental se assenta na conquista da separação entre religião e
conhecimento; religião e política. Na política não caberia o mágico, apenas o racional.
Entretanto, o que vemos atualmente na América Latina é o aprofundamento da subordinação
nacional através de golpes de Estado, em muitos casos apoiados por países da Europa que
utilizam o cristianismo como aparato ideológico. É uma releitura da missão civilizatória do
cristianismo, termo de Costa (2002), que causa o entrelaçamento entre fragmentos da ciência
com fragmentos da religião resultando em discussões como a alma dotada de DNA
(MACHADO, 2017).
Assim, a disposição territorial e política forjada pela legislação sobre aborto nos países
no mundo reporta à frente estatal-empresária-midiática-cristã discutida por Segato (2014) que
complexifica o lugar dos códigos de gênero ocidentais. Esse olhar desloca a esfera do debate:
a criminalização do aborto não se trata de defender possíveis vidas humanas, mas sim de um
poderoso instrumento de despossesión (SEGATO, 2014) que as mulheres sofrem em um
sistema de dominação colonial. Ainda, a questão do aborto na América Latina traduz o sucesso
da missão civilizatória do cristianismo (COSTA, 2014), como já mencionada acima, na
elaboração da não humanidade da mulher, despida da sua capacidade ética de decidir. Esse
protótipo não humano não é universal, é sobretudo, racializado e ressignificado pela
colonialidade, a partir de códigos de gênero ocidentais e localizado em um tecido social
patriarcal e racializado.
As discussões contemporâneas sobre aborto no seio do feminismo ocidental versam a
respeito de uma mulher essencializada do “Terceiro Mundo”. Mohanty (2008) segue na direção
dos demais autores decoloniais ao argumentar que a colonização além de ser uma relação
estrutural de violência, suprime a heterogeneidade dos sujeitos colonizados. As teorias
feministas são construídas nesse mundo cravado pela colonização. Não existe conhecimento
puro produzido fora da colonialidade do saber. O feminismo acadêmico está circunscrito em
práticas de poder que enfrentam, resistem ou respaldam. O feminismo acadêmico ocidental
proveniente dos países de capitalismo avançado, chamados de Primeiro Mundo, erguerem um
discurso sobre a mulher terceiro-mundista essencializada, homogênea e monolítica. Uma
mulher, sobretudo, vitimada pelas estruturas econômicas e estereotipada 42 em imagens

42
Um exemplo desse processo são as campanhas da ONG ActionAid sempre protagonizadas por imagens
estereotipadas de mulheres e crianças do Terceiro Mundo sujas, desarrumadas, com feições de sofrimento,
98

caricatas do Terceiro Mundo. Essa concepção singular da mulher terceiro-mundista é


largamente encontrada entre as políticas dos organismos internacionais dos direitos das
mulheres e das crianças, que terminam por formular editais e políticas sem conexão com a
realidade local das pessoas.
Com isso não pretendo argumentar que a legalização do aborto não afeta o conjunto das
mulheres que vivem nos territórios do chamado Terceiro Mundo. Porém elas não são um todo
monolítico. A criminalização do aborto apresenta diferentes níveis de implicações para as
mulheres desses territórios de acordo com paradigmas interseccionais de classe, raça, território,
geração. Ademais, a construção da mulher do terceiro mundo como vitimada e sem poder apaga
os anos de luta e resistência empenhados por essas mesmas mulheres em diversas temáticas,
incluindo o aborto. As mulheres dos territórios colonizados desafiam não apenas a dominação
do patriarcado quando reivindicam o direito de disporem sobre seus corpos, mas antes,
enfrentam um sistema colonial de opressão que negam este direito, situando-as como
reprodutoras da força de trabalho, ou quando reconhecidas é a partir de uma política racista que
visa impedir a reprodução dessa população, como a legalização do aborto nos Estados Unidos.
Compreender a criminalização do aborto na América Latina diz respeito ao campo da
justiça reprodutiva, dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, inalienáveis, porém, em
uma longa cruzada pela efetivação na história da América Latina e do Caribe. A nossa formação
social e histórica é marcada pela instauração da ordem social cristã, que a ferro, fogo, sangue e
cruz condenou os sistemas sociais dos povos, tomou nossas terras e domesticou nossos corpos
através da dominação. A violência fundou os nossos Estados e nossas leis, o estupro contra as
mulheres forjou nossa mestiçagem e marcou politicamente o nosso lugar enquanto mulher no
mundo. Entretanto, nossa história também é de resistência.

rogando pelo apadrinhamento das pessoas brancas dos países de primeiro mundo. O cenário é sempre um
território longínquo, sem árvores e água em que as pessoas estão vivendo em total miséria.
99

4 “QUEM ME PARIU FOI O VENTRE DE UM NAVIO”: O PENSAMENTO


FEMINISTA NEGRO A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DIASPÓRICA

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de


cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis
tormentos e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos
nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a
mercadoria humana no porão, fomos amarrados em pé e, para que não
houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes das nossas
matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. (Maria Firmino
dos Reis, Úrsula)

Maria Firmino dos Reis, mulher negra nascida em São Luís do Maranhão, é considerada
uma das primeiras escritoras brasileiras. O romance Úrsula foi publicado em 1859 e denunciava
os horrores da escravidão. Trata-se de uma obra abolicionista fundamental para entendermos
as relações coloniais que sustentam a sociedade que vivemos. Entretanto, apagada da história.
A invisibilidade marca as trajetórias sociais das mulheres negras, suas lutas e formas de
resistências e suas escritas. Não é de hoje que as mulheres elaboram conhecimento para
analisarmos as dinâmicas sociais. Não é de hoje que as mulheres negras nos contam histórias
que sobre modos de viver e sentir.
Para analisar as narrativas sobre aborto no sertão pernambucano, nos reportamos ao
feminismo negro em uma perspectiva decolonial. É este o aporte teórico-epistemológico que
rege o nosso olhar. Consideramos que a produção teórica desde o ponto de vista das mulheres
negras e subalternas traz vantagens analíticas para compreendermos as relações de dominação
marcadas por gênero, classe, raça, geração e território.
Para isto, dividimos o capítulo em três partes. A princípio discutimos o ponto de vista
através do qual costuramos críticas à ciência tradicional. A produção de conhecimento é
elaborada a partir de um lugar social corporificado. Assim, refletimos sobre algumas dualidades
clássicas presentes na ciência como objetividade e o dualismo razão e emoção para apresentar
o ponto de vista racial que costura essa pesquisa. Em seguida, discutimos o pensamento
feminista negro em diáspora, a crítica ao feminismo tradicional, as suas formulações, o sujeito
do feminismo negro e o conceito de opressões interseccionais. Por fim, analisamos o racismo
patriarcal brasileiro como uma matriz de dominação.
100

4.1 De lugar nenhum à consciência negra: a construção do conhecimento através do


ponto de vista parcial

O pensamento fronteiriço que proponho desloca-se entre os subalternos. Viaja de uma


metrópole para o sertão buscando as diferenças que moldam as experiências das mulheres com
o aborto. Partindo das mulheres negras e brancas pobres, a viagem segue encontrando meninas
indígenas da etnia Atikum no Sertão Central, emociona-se com o saber das Pankararus em
encontros na Chapada do Araripe, dança toré com as Xukurus do arco do Sertão, conversa na
sombra de árvores com quilombolas de São Elesbão de Assum, até ser arrebatada pela força da
organização política das mulheres trabalhadoras rurais. Uma viagem que aspira a construção de
um conhecimento compromissado com a justiça social e relações igualitárias. Ser uma mestiça
deslocando-me entre essas fronteiras, maravilhando-me com as diferenças e costurando saberes
de resistência só aconteceu a partir de uma tomada de consciência sobre a construção de
identidades negras em um mundo construído por um projeto colonial, o que designo consciência
negra. Não é possível formular saberes potentes de lugar nenhum.
Aprendi o feminismo negro a partir do tema do aborto. Mais precisamente eu aprendi
sobre feminismo negro através do meu engajamento político na luta pela legalização do aborto.
O ativismo político no movimento feminista propiciou a primeira aproximação com as teorias
feministas. Imbuída de alguma noção de injustiça em relação aos corpos e à vida das mulheres,
debrucei-me sobre os processos que envolviam a criminalização aborto. Na minha visão, o
aborto era um problema para todas as mulheres: estamos todas sob a égide da dominação
patriarcal de controle da capacidade reprodutiva sem distinções.
No meu ponto de vista eu não tinha pertença racial: cabia apenas a noção famigerada de
pertencer à classe trabalhadora. Mesmo vigilante e ativista contra o racismo, eu não tinha cor
alguma. Racialmente eu não vinha de lugar nenhum e essa impressão era legitimada pela minha
pele mais clara, pelo meu cabelo alisado e pela escolaridade em ascensão. Nitidamente
embranquecida socialmente, meu pensamento também não tinha cor. Nos meus objetivos de
pesquisa do mestrado, raça não era uma preocupação a priori. A questão é que as múltiplas
opressões que constituem a vida reprodutiva das mulheres têm cor e raça, além de classe social
e geração. Enxergar a questão do aborto permeada por múltiplos marcadores sociais só foi
possível após o encontro com o feminismo negro durante o mestrado, em especial com os textos
de bell hooks. Desvencilhar-me das certezas do feminismo hegemônico, aquele que nos ensina
a olhar para sua historiografia a partir do sufrágio e não da luta pela abolição ou pelos direitos
trabalhistas, exigiu racializar meu ponto de vista, alcançando uma consciência negra que
101

possibilitou interpretar o trabalho de campo em uma perspectiva racial, extrapolando o debate


dos ‘recortes’.
O enegrecimento das análises sobre aborto acompanhou o enegrecimento da produtora
destas análises. Collins (2016), ao discutir sobre a outsider whitin, nos relembra que sistemas
de conhecimento nunca são completos. São parciais, produtos daqueles que praticam a
formulação do pensamento. Khun (1997) apresenta uma concepção de ciência como construção
humana e, consequentemente, construções sociais e históricas. Um paradigma refere-se a um
conjunto de crenças, valores e crenças compartilhadas por uma dada comunidade cientifica.
Essa concepção apresenta dois fatores importantes para pensar a importância do pensamento
corporificado. A primeira que a Ciência é falível. A segunda é que ela é dependente de quem a
promove. Ou seja, a concepção de ciência neutra, imparcial e objetiva é completamente
questionada.
Quando me refiro à ciência como falível lembro-me quase que imediatamente do
racismo científico disseminado através das teorias racialistas. Teorias criadas para classificação
dos seres humanos, a partir de diferenças e similitudes, com base primeiramente na cor e,
posteriormente, em outros traços morfológicos, como nariz, lábios, formato do crânio, textura
dos cabelos, etc. Esse processou fundou uma teoria pseudocientífica racialista (MUNANGA,
2004) importada das metrópoles coloniais e impregnada nas principais instituições sociais do
Brasil, tais como Institutos Históricos Geográficos, Museus etnográficos, Faculdade de Direito,
Faculdade de medicina e os demais homens de sciência (SCHWARCZ, 1993). Procedimentos
de pesquisas mediam o crânio de grupos populacionais distintos e “cientificamente”
formulavam categorias e hierarquizações morais sobre esses mesmos grupos. Os selvagens
negros e os inventivos brancos criados tranquilamente por uma ciência que se pretendia neutra,
incorpórea, objetiva. Entre a exposição grotesca da Vênus Negra nas metrópoles coloniais e as
pesquisas de Nina Rodrigues com himens de recém-nascidas mestiças e negras, que já nasciam
com um formato de hímem facilmente confundido como de um hímem rompido (CORRÊA,
1996), viajava um aparato ideológico para sustentar uma opressão genocida, que entrou em
decadência, pelo menos em tese, a partir de meados do século XX. Explicitando que a ciência
é fruto de quem a produz e determinada por condições históricas, políticas, econômicas e
sociais.
Os riscos de uma história única, descorporificada e pretensamente universal são muitos
(ADICHIE, 2010). Assim, discutir que o conhecimento é dependente de quem o produz é tarefa
cabal para aquelas(es) que pretendem formular um pensamento que transcendem as fronteiras
da academia. hooks (1995) nos conta sobre as distinções entre acadêmicas e intelectuais.
102

Acadêmicas seriam pessoas que lidam com ideias. Intelectuais lidam com ideias enquanto
rompem fronteiras discursivas porque julgam necessário. Ainda, intelectual “é alguém que lida
com ideias em sua vital relação com uma cultura política mais ampla” (hooks, 1995, p. 468).
Nesse sentido, a crítica feminista à ciência questionou o que seria objetividade. Por meio
da metáfora da visão, Haraway (1995) propõe uma concepção de objetividade corporificada.
Para a autora (1995, p. 18), “objetividade feminista significa, simplesmente, saberes
localizados”. Uma visão que não invoca mais o “truque de Deus”, que observa tudo de lugar
nenhum, uma visão restrita e presa ao pensamento androcêntrico, racista e colonial. Uma
ideologia da visão que busca incessantemente generalizar saberes que são localizados, que
pertence a um determinado grupo de interesse, no território geopolítico global. O conhecimento
norteado pela visão do truque de Deus dividiu o mundo entre civilizados e selvagens, entre os
racionais e as passionais, entre os dignos e os indignos de fazer parte de uma nação. Aqui mais
uma vez retornamos ao dualismo da ciência positivista. A ciência norteada pela ideologia da
visão do truque de Deus transcende todos os limites, mas também as responsabilidades
(HARAWAY, 1995). “A objetividade feminista trata da localização limitada e do
conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto. Desse
modo, podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver” (HARAWAY, 1995, p.
21).
A visão não é passiva, não é algo dado. Pelo contrário, a visão integra o mundo
cognoscente do sujeito. A partir do meu lugar, não consigo ver tudo, e o que eu consigo ver é
diretamente afetado, não simplesmente pelo meu lugar de fala43, mas pelo meu lugar social que
permitiu insights poderosos sobre aborto, racismo e identidade racial ao longo da minha
trajetória acadêmica.
Haraway (1995) argumenta a vantagem que os pontos de vista dos subalternos
fornecem. Ver a partir da periferia, das margens e das fronteiras tem grande valor. Porém, essa
visão não pode ser romantizada ou essencializada. Desnaturalizar os processos de dominação
exige pensamento crítico, autoavaliação e reconhecimento da pluralidade do conhecimento
produzido. “As perspectivas dos subjugados não são posições "inocentes". Ao contrário, elas
são preferidas porque, em princípio, são as que tem menor probabilidade de permitir a negação
do núcleo crítico e interpretativo de todo conhecimento” (HARAWAY, 1995, p. 23). A

43
A concepção de lugar de fala tem sido popularizada no Brasil a partir da Djamila Ribeiro. Os usos e abusos
dessa concepção aliados com a deturpação da sua proposição me fizeram perceber que facilmente a concepção
de lugar de fala pode resvalar em um essencialismo do sujeito, bem como em um individualismo. O lugar social
remete a encontros que são coletivos; a uma formação de sujeito que é iminentemente social.
103

construção de um conhecimento comprometido com o bem viver passa pela desconstrução da


objetividade positivista, ao mesmo tempo que propõe “saberes parciais, localizáveis, críticos,
apoiados na possibilidade de redes de conexão, chamadas de solidariedade em política e de
conversas compartilhadas em epistemologia” (HARAWAY, 1995, p.23).
O único modo de aprendermos uma visão mais ampla é estando em algum lugar; este
lugar precisa ser decodificado e não essencializado. Não há uma visão imediata a partir dos
subjugados (HARAWAY, 1995). Ainda neste raciocínio, saberes localizados requerem o
reconhecimento da agência daquilo que é conhecido. Dotar o “objeto” de conhecimento de ator
construtor ativo do mundo é imprescindível para pensar objetividade feminista. O mundo e as
“coisas do mundo” não são passivos, esperando um tradutor ou decodificador. O mundo e os
objetos que pretendemos conhecer estão ativos. Não há matéria inerte esperando ser descoberta.
Olhamos para o mundo tentando estabelecer conversas não inocentes e carregadas de poder,
utilizando os termos de Haraway (1995). É uma retórica, empreendida dos nossos lugares
sociais e comprometidas com a criação de esperanças circulem no mundo.
Outro dualismo presente na ciência androcêntrica e que a crítica contribui para
avançarmos no desenvolvimento da relevância do ponto de vista parcial é a razão versus
emoção. Jaggar (1997) argumenta que as emoções são formas por onde conhecemos o mundo.
No positivismo as emoções são vistas como instintos, algo pré-social, completamente apartado
da racionalidade, como um campo que precisa ser domesticado e descredibilizado por não servir
como lente para olhar o mundo que se pretende conhecer. A autora reconhece que as emoções
podem ter se desenvolvido a partir de instintos ou de respostas pré-sociais e que foram moldadas
culturalmente. Ou seja, as emoções longe de ser um contínuo de respostas involuntárias, são
construções sociais. Não sentimos raiva, medo, alegria, vergonha, pavor de tudo. Há códigos
sociais por onde aprendemos o que nos causa raiva ou alegria; “e como todas as construções
sociais, são produtos históricos, apresentando as marcas da sociedade que as construiu”
(JAGGAR, 1997, p. 173).
O aprendizado das emoções acompanha as construções morais dos grupos aos quais
pertencemos. O que nos indigna? O que nos causa horror? O que nos causa alegria? Somos
ensinadas a sentir determinadas emoções a partir do lugar social que ocupamos. As emoções
direcionam os nossos olhares para aquilo que é importante ou não. Com isso não queremos
dizer que, enquanto pesquisadoras, precisamos nos deixar levar por paixões coléricas. Pelo
contrário, quando reconhecemos que somos constituídos por emoções temos a possibilidade de
objetivar nossa visão na produção de conhecimento. A ausência da consciência das emoções,
de acordo com Jaggar (1997), não significa que não estejam nas canaletas dos valores, dos atos,
104

das observações e das posturas dos praticantes da ciência. O mito da investigação imparcial não
leva em conta que
as emoções nos levam a agir adequadamente, a nos aproximar de algumas
pessoas e situações e evitar outras: acariciar ou abraçar, lutar ou fugir. Sem
emoções, a vida humana seria impensável. Elas têm, além disso, um valor
tanto intrínseco como instrumental. Embora nem todas as emoções sejam
agradáveis ou justificáveis (...) a vida sem qualquer emoção seria também sem
qualquer significado (JAGGAR, 1997, p. 168).

Ao discutir estratégias para reconhecer e lidar com as emoções dentro de uma


investigação que visa a construção de saberes localizados, Jaggar (1997) propõe a quebra da
hegemonia emocional através da subversão. Tal subversão materializa-se na experimentação
de emoções não convencionais, nos termos da autora, emoções proscritas. Os grupos
subalternizados são subordinados a processos ideológicos de aceitação das estruturas de
desigualdades. O racismo, por exemplo, através do projeto colonial foi posto na sociedade como
algo que deveria ser aceito ao invés de causar horror aos indivíduos, aos grupos e à mentalidade
social mais ampla. Sabemos que os processos de colonialidade do ser (QUIJANO, 2005) são
complexos, contínuos, destróem as subjetividades dos grupos colonizados, a partir de processos
profundos de exploração, para construir identidades fraturadas e vinculadas emocionalmente
ao modo de vida do colonizador 44 . Entretanto, os grupos oprimidos detêm privilégios
epistêmicos para refletir sobre as estruturas de dominação (JAGGAR, 1997).
A situação social dessas pessoas torna-as incapazes de experimentar as
emoções convencionalmente prescritas: por exemplo, é mais provável que
pessoas de cor se encolerizem em vez de achar graça quando uma piada racista
é contada, e mulheres, alvo de gracejos sexuais masculinos, podem não se
sentir lisonjeadas, mas incomodadas ou até assustadas (JAGGAR, 1997, p.
174).

A partir da experimentação das emoções proscritas no campo individual, os sujeitos


podem compartilhar as emoções não convencionais, validando-as e possibilitando um campo
de questionamentos e construções de outras formas de conceber a realidade. Esse giro de
compreender a si e aos outros nas estruturas de dominação é potente. Positivar e validar

44
Frantz Fanon em Os Condenados da Terra (1978) compreende o colonizado como produto do colonizador. O
sujeito colonizado é uma invenção do colonizador. “O colonizado só encontra fundamento na presença do
colonizador” (1978, p. 26). Um corpo com espírito extraviado, sem conhecimentos e sem domínio de si mesmo.
De acordo com o autor a identidade do colonizado é fabricada em uma zona de guerra, em um território
selvagem, em que as estruturas de poder estão nas mãos dos inimigos, inclusive o monopólio do saber. Fanon
ilustra esse processo discutindo a construção do argelino como criminoso nato, mentiroso, ladrão e indolente
através de comprovações cientificas. Tal verdade construída sobre o colonizado pelo colonizador eram
ensinadas nas Universidade de Psiquiatria em Argel, por exemplo, causando uma anomalia naqueles sujeitos,
de tal modo que eles não conseguem ver a verdade sobre si mesmos refletida no espelho, apenas uma projeção
borrada fundada pelo colonizador.
105

emoções que não são socialmente aceitas transforma as bases da produção de conhecimento,
levando os grupos oprimidos, aqui em especial as mulheres negras, a se autodeterminarem e
autoavaliarem, nos termos de Collins (2016). É profundamente incoerente postular
investigações imparciais livre de emoções em um mundo que se estrutura a partir do ódio à
diferença.
Tomo emprestado a noção de emoções proscritas de Jaggar (1997) para demonstrar a
potência dos usos da raiva empreendida por Lorde (1981). A raiva é uma resposta subversiva
às estruturas racistas e sexista. A raiva desestabiliza padrões de aceitabilidade das relações
raciais engendradas hierarquicamente. Enquanto presenciamos situações racistas e somos
‘tomadas de raiva’, prontamente, desnaturalizamos os nossos lugares sociais, mesmo que a
análise política teórica só seja alcançada posteriormente. A raiva é a ponte para a construção de
um pensamento crítico. A raiva que sentimos ao responder a situações racistas e sexistas
possibilita insights poderosos que acoplam-se aos privilégios epistêmicos dos grupos
subalternos enunciados por Jaggar (1997). Foi a partir da raiva que senti em relação a
determinadas situações que consegui construir uma reflexão sobre a minha identidade racial,
levando-me a autodeterminação do meu lugar social, pois, assim como Lorde (1981),
Minha raiva é uma resposta às atitudes racistas e às ações e presunção que
surgem dessas atitudes. Se você lidar com outras mulheres reflete essas
atitudes, então minha raiva e seus medos são focos que podem ser usados para
crescimento, da mesma forma em que eu usei aprender a lidar com a raiva
para o meu crescimento. Mas para controle de danos, não para culpa. Culpa e
defensividade são tijolos numa parede contra a qual todas nós batemos; ela
não serve a nenhum de nossos futuros. (LORDE, 1981, p. 2).

Diversas situações me conduziram a reflexões sobre racismo, sexismo e mestiçagem no


Brasil através da raiva que senti ao compartilhar conversas nos ambientes acadêmicos e de
militância. Em uma determinada aula da pós-graduação, uma mulher branca provocou os
discentes sobre a inexistência da concepção de raça, a partir de um ponto de vista da genética.
Prontamente, e até de forma gentil, eu e outras pessoas ali presentes iniciamos uma conversa
sobre a ideia de raça como ficções sociais (GUIMARÃES, 1999), ou seja, raça como princípio
organizador da sociedade e não como herança genética. A mulher branca não se dava por
satisfeita e continuava a nos questionar, enquanto tentava explicar comentei que eu era negra.
Imediatamente e com o dedo em riste, ela me diz “você não é negra!”. Assustada com essa
resposta agressiva em um ambiente em que se propõe a troca de conhecimentos, perguntei o
que eu era então: “eu sou branca?” (Esperava que ela dissesse sim). Mas recebi como resposta
“não!”. Ela sabia nitidamente que eu não pertencia ao mesmo grupo racial que ela, e eu,
ingenuamente, considerei que por ser mais clara poderia pertencer à branquitude. Por fim, ela
106

disse que era parda. “Parda também não aceito. Pardo não é identidade racial”, respondi com
raiva. E a conversa terminou no constrangimento.
Ao reviver essa situação anos depois, refleti sobre a pardificação social e a invenção da
categoria social mulata. Por muito tempo me considerei uma sujeita de fronteira, aquela que
pertence a dois lugares ao mesmo tempo, um pouco inspirada por Gloria Anzaldua (2005)45.
Pelo menos do ponto de vista de como ser lida socialmente: branca demais para ser negra, negra
demais para ser branca. A forma com a questão racial é vista no Brasil nos leva a ideia de um
contínuo racial: o colorismo vai gradativamente afastando ou aproximando os sujeitos das
possibilidades de acesso a bens, serviços, oportunidades e direitos.
O que acontece, de fato, é que a cultura do mestiço no Brasil, bem como a crença na
concepção que “preto é tudo uma coisa só”, cria ilusões de um não-lugar racial para grande
parte da população. Se os indivíduos não correspondem ao estereótipo fenotípico do negro —
cabelos crespos, pele escura, nariz largo — não são negros, têm sangue branco nas veias, são
morenos, cor de jambo, chocolate, branco sujo, da cor do pecado ou qualquer outra definição
pertencente ao mundo do entremeio. Particularmente, neste contexto, a fronteira mais cega do
que constrói questionamentos.
De acordo com o IBGE (2017), a população brasileira é composta racialmente por
pardos e brancos. Os primeiros representando 46,7% e o segundo grupo correspondendo a
44,2%. Apenas 8,2% da população brasileira se declara de cor preta, sendo este país um dos
maiores receptores de navio negreiros traficados de África no período escravocrata. A complexa
percepção da população brasileira sobre si mesma enquanto grupo reflete as metamorfoses de
um racismo arguto e dissimulado que nega a si mesmo sistematicamente em um discurso de
apagamento das diferenças: racista é aquele que ousa dizer que há diferenças entre populações
negras e brancas. Discutiremos os caminhos da construção do racismo brasileiro mais adiante,
porém, antecipo a concepção de pardificação da população brasileira (WESCHENFELDER;
SILVA, 2018) para compreender a conformação de lugares sociais em estruturas raciais
complexas.
De acordo com Weschenfelder e Silva (2018), o pardo não remete a uma raça ou a uma
etnia. Remete-se a uma cor ou ao que se pretende dela. O pardo é a tradução de uma narrativa
para higienizar a própria narrativa. Para torná-la não ideológica ou não política. Assim, o pardo

45
Digo um pouco, pois compreendo que Glória Anzaldúa refere-se à mestiça chicana, proveniente das cidades que
compõem as fronteiras entre México e Estados Unidos, uma realidade distinta da mestiça brasileira. A forma
com o mestiço brasileiro e o mestiço chicano foram concebidos diz respeito a processos de formação de
identidades raciais com gritantes diferenças históricas, econômicas e políticas.
107

emerge no processo de metamorfose tenso e conflitivo do racismo brasileiro com o intuito de


ser neutro; um meio termo para enterrar um antagonismo.
Na verdade, a categoria pardo acontece, primeiramente, para designar os negros e negras
nascidos livres (WESCHENFELDER; SILVA, 2018), pois, negro não poderia ser outra coisa a
não ser escravo e uma nova linguagem precisou ser criada para designar este outro sujeito. No
final do século XIX, nos primeiros recenseamentos, a categoria pardo traduz a miscigenação,
tanto os sujeitos fruto de relações inter-raciais, mas também a própria ideologia da mestiçagem
e do embranquecimento, de que no Brasil não há negros, no máximo mestiços. Em 1980, o
Movimento Negro Unificado desloca esta categoria ao denunciar o mito da democracia racial
e integrando o pardo na categoria da negritude. Muitos anos de extermínio da identidade racial
de diversos povos que foram forçados a formar uma nação dominada pela supremacia branca
não se apagam em 40 anos. O pardo continua sendo a categoria utilizada pela maioria dos
brasileiros, retirando o viés político da reivindicação por uma identidade racial, restringindo as
políticas de resistência ao racismo.
A categoria social do pardo recai sobre grande parte da população no Brasil e foi por
onde caminhei por muito tempo. A construção do lugar social dos mestiços é repleta de
vicissitudes que resultam na ideia destes como um grupo populacional sem identidade racial.
Avaliava o racismo como algo abstrato que dizia respeito aos outros, sem lugar na minha vida.
Muitos foram os processos de insights para ver, compreender e aceitar a minha própria
negritude. Uma caminhada longa de reconhecimento de si que revela o que eu acredito de mais
potente: enquanto me afogava na pardificação social não enxergava perspectivas raciais nas
minhas pesquisas acadêmicas, ou o pouco que eu via, era com muita dificuldade.
O embranquecimento da minha própria identidade racial contaminava a lente pela qual
eu via o mundo que eu pretendia conhecer enquanto pesquisadora. Ao ser chamada de negra
pela primeira vez, retirei a peiteira racial que me prendia e desaguei nas análises sobre a
estruturação racial da vida reprodutiva das mulheres no sertão. A resistência é um processo que
pode emergir do lugar social que os sujeitos ocupam. Os nossos lugares sociais promovem
encontros, situações, percepções que aliadas às nossas condições de classe, raça e gênero podem
gerar processos profundos de reflexão crítica e tomada de consciência libertária. De acordo com
Collins (2019),
raça, gênero, classe, condição de cidadania, sexualidade e idade definem o
lugar social dos grupos na matriz transnacional de dominação. Esses lugares,
por sua vez, enquadram a participação dos grupos em uma ampla gama de
atividades. Como os grupos ocupam lugares diferentes, que apresentam
expressões variadas de poder, eles participam da formação das dinâmicas de
108

dominação e resistência segundo padrões distintivos. (COLLINS, 2019, p.


394)

Esses lugares sociais às quais as mulheres negras pertencem, muitas vezes produzem
saberes de resistências ou conhecimentos triviais, ainda de acordo com Collins (2019). Até
porque mesmo que os sujeitos não se identifiquem como negros não significa que o racismo os
poupe. A própria negação da identidade racial já é um efeito perverso do racismo. As
populações subalternizadas criam estratégias e conhecimentos para lidar com os tentáculos das
opressões. “Estudiosas ou especialistas que se originam e participam de determinado grupo
produzem um segundo tipo de conhecimento, mais especializado (COLLINS, 2019, p. 81).
Entretanto a autora argumenta que não se trata apenas de pertencer a grupos subalternizados,
aqui especificamente ao grupo de mulheres negras estadunidense, mas antes, de aprender a fazer
as perguntas certas e investigar o mundo vivido a partir de um ponto de vista. Saberes
localizados é a objetividade feminista, compreendendo razão e emoção como interdependente
na produção de conhecimento.
Assim, não é simplesmente pertencer de um modo essencializado a um grupo subalterno
que garante as vantagens epistêmicas. Alinho-me a Jaggar (1997) e Farganis (1997) sobre as
possibilidades críticas fornecidas pela visão desde os abismos, mas como Haraway (1995, p.
26), presumo que “o eu dividido e contraditório é o que pode interrogar os posicionamentos e
ser responsabilizado, o que pode construir e juntar-se a conversas racionais e imaginações
fantásticas que mudam a história”. Foram os choques provenientes da minha presença enquanto
mestiça/mulata nos espaços da branquitude que permitiram insights capazes de me refazer
enquanto sujeito cognoscente sem os quais o pensamento aqui apresentado não seria plausível.
Entretanto, ao passo que reflito sobre o ser e o estar dos lugares sociais, lembro-me de
Carolina Maria de Jesus que a partir de um cotidiano de exploração inexorável produziu um
saber de resistência potente que compõe a construção de uma epistemologia negra brasileira,
como veremos adiante. Decerto é um debate complexo que, temporariamente, encontramos
repouso nas formulações de Haraway (1995): há a possibilidade de o ponto de vista dos
subalternos ser mais vantajoso, mas é necessário criticidade e perguntas certas (COLLINS,
2019); não é uma relação simples e direta.
Lembro que quando ainda engatinhava em busca da pertença racial ou quando “falava
de lugar racial nenhum”, em uma determinada seleção ouvi da avaliadora branca a seguinte
frase: “por quê você quer ser uma professora? Você daria uma ótima globeleza”. Essa frase, na
época e, hoje, provocaram e provocam inúmeros deslocamentos. Ao pleitear um lugar na
branquitude (ser uma formadora de opinião não cabe às pessoas negras), meu lugar social
109

organizado por múltiplas opressões — classe, raça, gênero, idade, território —, situou-me na
categoria social da mulata, enquanto eu julgava pertencer a um continuum racial.
Gilliam A. e Gilliam O. (1995) discutem a mulata como uma figura, uma imagem de
controle, nos termos da Collins (2019), como me parece. O mito da mulata, uma criatura que
não ocupa o lugar de esposa, mas sim “o lugar recorrente do desejo imaginário escravocrata”
(GILLIAM A.; GILLIAM O., 1995, p. 529). A mulata encarna a ideologia inteira da
mestiçagem, é transformada em marketing e torna-se sinônimo de mulher brasileira. É o
símbolo da identidade nacional. Mesmo assim, a mulata é uma categoria cambiante. A mulata
ocupa um território fronteiriço instável. É ter sua identidade sistematicamente questionada.
Figueiredo (2015) corrobora com Gilliam A. e Gilliam O. (1995). Para a autora, a
miscigenação no Brasil é um processo complexo que longe de afirmar uma identidade nacional,
fragiliza ainda mais a identidade racial dos sujeitos. Sendo a mestiçagem um dispositivo
engendrado, deixa à mostra os ossos da opressão imbricada por raça, classe e gênero. O mulato,
o homem, é aquele que encarna as chances de ascensão, enquanto a mulata é inventada através
de imagem controlada pela hipersexualização, procriadora dos mulatos. De acordo com
Figueiredo (2015) o mestiço brasileiro representa uma fronteira, uma diluição das tensões
raciais da polarização branco/negro (FIGUEIREDO, 2015).
A reflexão sobre ser uma sujeita de fronteira, nos termos de Gilliam A. e Gilliam O.
(1995) e Figueiredo (2015), conduziu-me à Anzaldúa (2005). A sujeita de Anzaldúa, la mestiza,
é hibrida e contraditória. Move-se em um estado constante de transição. Não pertence a
categorias polarizadas. “la mestiza é um produto da transferência de valores culturais e
espirituais de um grupo para outro” (ANZALDÚA, 2005, p. 705). A autora deseja uma
consciência que desmonte a dualidade sujeito-objeto. Mais, ela repousa as respostas na
cicatrização dos antagonismos que fundamentam as vidas, as culturas, as línguas e
pensamentos. “Nuestra alma el trabajo, a obra, o grande trabalho alquímico; mestizaje
espiritual, uma “morfogênese”, um desdobramento inevitável. Tornamo-nos o movimento
acelerado da serpente” (ANZALDÚA, 2005, p. 708). Nas palavras da autora:
A fronteira específica tematizada neste livro é a fronteira entre o México e o
sudoeste dos E.U.A.‒ Texas. As fronteiras psicológicas, as fronteiras sexuais
e as fronteiras espirituais não são exclusivas a essa região. As fronteiras se
tornam fisicamente presentes em todos os lugares onde duas ou mais culturas
se tocam, onde pessoas de raças diferentes ocupam o mesmo território, onde
as classes mais baixas, baixas, médias e altas se tocam, onde o espaço entre
dois indivíduos se encolhe na intimidade (ANZALDÚA, 1987, p. 17).

Anzaldúa (2005), desde o lugar da fronteira, traça larga crítica à cultura branca
dominante e a todos os seus contraditórios: violência racial, sexismo, extermínio. Sua
110

contribuição epistemológica preconiza a construção de um saber cuja objetividade seja parcial


e que possa ser chamada a responsabilidade. Todavia, ao passo que critica os grupos
dominantes, bem como grupos subalternos que reproduzem padrões dominação, como os
homens chicanos, Anzaldúa (2005) evoca mais uma vez a cicatrização da divisão intracultural
mediante a aceitação das “sombras coletivas”. Mas é possível cicatrizar a ferida colonial?
O sedutor pensamento mestiço de Anzaldúa (2005) e os rasgos epistemológicos que seu
ele causa, necessitam de ressalvas para se compreender as relações raciais no Brasil. Essas
ressalvas são menos das desestabilizações que ela provoca nas bases da ciência tradicional e
mais na própria concepção de mestiço. Guimarães (1995) ressalta que cada racismo tem sua
história específica e o do Brasil é a história do embranquecimento. A cultura da mestiçagem
configurou o veículo para que a nação alcançasse a branquitude almejada. A mestiçagem é uma
realidade e a mulata desponta como símbolo da nação à medida em que é sistematicamente
rejeitada. O mestiço brasileiro corporifica as políticas eugênicas da primeira metade do século
XX e as esperanças das elites dominantes, coloniais, imperiais e republicanas, de branquear a
população brasileira. Parece-me, no mínimo, fatigante caminhar por esse limítrofe.
Fronteiras são muito perigosas. “Assentar (atentar para) fronteiras é uma prática muito
arriscada”, alerta Haraway (1995, p. 41). Certa de que me movia entre fronteiras, sufoquei na
categoria social da mulata. Corrêa (1996), em A Invenção da Mulata, nos brinda com a
concepção desta enquanto sujeito construído por discursos médicos, literários e carnavalescos.
Para a autora, a invenção da mulata corresponde a uma fronteira, mas uma fronteira entre raça
e gênero e não entre branco e negro. Corrêa (1996) concebe a mulata, através das vicissitudes
histórico-sociais do racismo brasileiro; como uma categoria fixa em uma fronteira. “Ela está a
meio caminho (no limiar, diria Lacan: nem natural, nem cultural, nem individual, nem social)
entre o Branco e o Negro – mas aí fica” (CORRÊA, 1996, p. 41). A mulata é a cristalização do
encontro das raças. Mulata deriva de mula e antes do racismo culturalista, ainda no racismo
chamado clássico ou científico, era objeto de frequentes questionamentos sobre a esterilidade
daquelas criaturas. A mulata (ou o mulato) era produto dos elementos negativos das raças, um
erro genético, um ser indolente, preguiçoso e apático. A positivação dessa figura a década de
1930 resultou em um processo frankesteniano: o mulato (a mulata) agora é síntese perfeita das
três raças, o símbolo da nação, “uma pororoca cultural” (CORRÊA, 1996, p 47.).
“O teu cabelo não nega mulata, mulata quero teu amor / Mas como a cor não pega,
mulata/ Mulata quero teu amor/ Tens um sabor bem do Brasil / Tens a cor de anil/ Fui
consagrado teu tenente interventor”. Lamartine Babo, em 1932, traduziu o imaginário sobre a
mulata brasileira. A mulata corresponde a um conjunto de estereótipos sendo o cabelo um dos
111

mais centrais (GILLIAM A.; GILLIAM O., 1995; GOMES, 2019). O cabelo crespo, mas que
sacode, a pele mais clara, a juventude, as curvas do corpo, o comportamento sensual com sabor
do Brasil. Essa imagem controlada constrói uma figura desejável para o homem branco
enquanto encarna a rejeição do corpo das mulheres negras. Neste paradoxo, o interessante é
que, consoante com Lélia Gonzalez (1983), a invenção da mulata objetifica a população negra
de um modo geral e as mulheres negras em particular, ainda que esteja sistematicamente sendo
excluída e excluindo.
Recordo que 2014 quando estive na Argentina e pela primeira vez fora do Brasil,
conheci duas jovens em Buenos Aires. Uma das jovens era mais escura que eu, com a mesma
idade, mas com os cabelos lisos e, em um dado momento, falava para todos em volta, inclusive
para os rapazes gringos que ali estavam: “Essa é a típica mulher brasileira, ela quem é uma
brasileira, ela é a nossa mulata”. Essa foi a primeira vez que fui chamada diretamente de mulata
e se repetiu em todas as vezes que estive fora do país. Nunca fui confundida com outra coisa
que não seja uma brasileira. Nunca tentaram conversar comigo em outra língua como acontecia
com as amigas que viajavam comigo. Não importava a minha ascensão, refletida pela condição
financeira de estar fora do país. Eu não deixaria de ser uma mulata devido a qualquer ascensão
social, explicitando a engenhosidade do racismo brasileiro em “colocar cada coisa em seu
lugar”.
Apesar disso, relembro Foucault (1995, p. 8): “o que faz com que o poder se mantenha
e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de
fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”. Assim, mesmo
compreendendo o meu lugar social como uma categoria fixa, ainda que ambígua, em uma
fronteira, reivindico o pensamento fronteiriço. O que é possível produzir dentro dessas
fronteiras de poder?
Acredito que a outsider whitin proposta pela Collins (2016) seja de grande utilidade para
pensar a mulata. O próprio lugar social da mulata nos situa em um trânsito territorial que nos
permite estar em determinados lugares da branquitude ao mesmo tempo em que se é excluída.
Essa mecânica permite a construção de um certo ponto de vista que pode ser vantajoso. Se está
em ascensão devido as dinâmicas governamentais conjunturais46, e fruto da pigmentocracia
brasileira que confere aos negros de pele mais clara possibilidades de ascensão. Isso não
significa um processo linear, mas, sobretudo, uma ascensão precária. No que tange o ensino
superior, a presença de negras e mulatas na pós-graduação retrata o “não ser deixada em paz”,

46
Os governos do PT nos anos 2000 elaboraram políticas de educação, ciência e tecnologia que permitiu que
negros e pobres ingressassem na educação superior e na pós-graduação.
112

designadas como petulantes, a que não sabe o que está falando ou a que sabe demais e não
deveria estar ali, porque o ali é para quem se propõe a questionar, para quem é bom o suficiente
para a academia.
“Fronteiras são muito enganosas” (HARAWAY, 1995, p. 41): levam a crer em
condições de ascensão social enquanto, na maior parte do tempo, estamos em processos de
subalternidades diferenciados dos sujeitos que pertencem a categorias polarizadas. As fronteiras
que pretendo reivindicar são as fronteiras dos grupos subalternos. A partir da fronteira que
constrói meu lugar na academia, sendo uma sujeita codificada socialmente como mulata,
higienizada como parda que circula penosamente nos espaços da branquitude. Essa fronteira
não me interessa. Não quero reivindicar a branquitude que clareia minha pele porque esta é
demasiado perversa. Não quero cicatrizar a ferida colonial. Como Collins (2019), não julgo
possível construir coalizões com os grupos dominantes. Não nos curvaremos às conversas
inocentes. Desejo construir saberes subjugados nos espaços de poder que tenho oportunidade
de ocupar como outsider whithin.

4.2 O Pensamento Feminista Negro em diáspora


Quipnayra uñtasis sarnaqapxañani47.

Os brancos jogaram em cima dos tutsis os monstros famintos de seus próprios


pesadelos. Eles nos ofereceram espelhos que distorciam a farsa deles e, em
nome da ciência e da religião, nós tínhamos que nos reconhecer nesse duplo
perverso nascido de seus fantasmas. Os brancos pretendiam saber melhor do
que nós quem erámos e de onde vínhamos. Eles nos apalparam, nos pesaram,
nos mediram. As nossas conclusões a que chegaram foram categóricas: nossos
crânios eram caucasianos, nossos perfis, semíticos, nossa estatura, nilótica.
Eles conheciam até mesmo nosso ancestral, estava na Bíblia e se chamava Cã.
Nós erámos os quase brancos, apesar de algumas mestiçagens repugnantes,
um pouco judeus, um pouco arianos. Os cientistas (a quem devíamos ser
gratos) tinham feito até uma raça sob medida para nós: nós erámos os Camitas!
(Scholastique Mukasonga – A Mulher dos pés descalços)

Após ler A mulher dos pés descalços da ruandesa Scholastique Mukasonga (2017)
consegui aprofundar melhor o que até então compreendia como feminismo negro. Mukasonga
(2017) escreveu uma tríade literária, uma autobiografia ficcional, que retrata os longos anos de
conflito entre Tutsis e Hutus em Ruanda e que nos auxilia a pensar o pensamento feminista
negro como uma forma especializada de pensamento, fincada em determinados pilares e que
emerge da vida cotidiana das mulheres (COLLINS, 2019).

47
“Olhando atrás e adiante podemos caminhar no presente futuro”. Aforismo Aymara.
113

Mukasonga48 (2017) retrata os longos anos de exílio em terras inóspitas em Ruanda e


como as mulheres tutsis conseguiram erguer vida em um processo de intensa diabolização e
animalização da etnia Tutsi. É um livro sobre sua mãe confrontada durante toda a vida pela
possibilidade de extermínio das suas crianças, mas também é sobre todas as mães da diáspora,
imersas na violência colonial materializada por vezes pela pobreza e outras vezes pela violência
policial que carrega seus filhos e filhas. Mukasonga (2017) descortina ainda que a vida das
mulheres negras precisa ser compreendida a partir das estruturais coloniais de dominação.
Enquanto nos conta sobre o trabalho das mulheres, tece análises sobre a Ruanda pós-
colonização, conformada pela colonialidade do poder.
Partindo da citação de Mukasonga (2017), uma primeira questão importante acerca do
pensamento feminista negro é que não se trata de um aporte teórico para compreender a vida
das mulheres. O pensamento feminista negro é uma forma de analisar as estruturas de opressão
que constroem a vida em sociedade, mas que ao contrário dos aportes epistemológicos
clássicos, não excluem a experiência, o conhecimento e as práticas políticas das mulheres
negras.
Mulheres negras de diversas partes do mundo denunciaram a hegemonia do feminismo
branco, bem como a invisibilidade da produção teórica e práticas políticas das mulheres negras
dentro do próprio feminismo (LA COLECTIVA DEL RÍO COMBAHEE, 1988; MAMA, 2008;
GONZALEZ, 1982a; 1982b; 1983); CARNEIRO, 2003; 2011; 2019; PAREDES, 2010; hooks,
1995; 2019; KILOMBA, 2019; DAVIS, 2016; OYÊWÙMÍ, 2019; CURIEL. 2008; LORDE,
1988; 2015; COLLINS, 2015; 2016; 2019; BRAH; PHOENIX, 2004; BRAH, 2006;
WERNECK, 2011; CRENSHAW, 2004; CALDWELL, 2000)49. Ainda, mulheres de cor, pós-
coloniais, decoloniais e terceiro-mundistas também teceram críticas ao feminismo ocidental
que formula desde o norte do globo, generalizando as suas experiências locais e, por vezes,
furtando-se do debate anti-imperialista e anticolonial (NARAYAN, 1997; MOHANTY, 2008;
PAREDES, 2010; ANZALDUA, 2000; 2005; COSTA, 2014; GONZALEZ, 1988; LUGONES,
2014; SEGATO, 2014; BALLESTRIN, 2017). Além de mulheres que através da literatura
expressaram as condições de vida das mulheres negras dentro das relações coloniais de poder
(WALKER, 2016; MUKASONGA, 2017; JESUS, 2014; REIS, 1975). E mulheres negras que
muito antes do termo feminismo nomear a luta das mulheres, já desafiavam sistemas poderosos

48
Mukasonga não se reivindica feminista, assim como não se reivindicavam Soujourne Truth, Ida Wells, Harriett
Tubman, mas seus escritos deram vida à construção desse pensamento especializado. Acredito que a literatura
contemporânea das mulheres negras fortalece o desenvolvimento desse campo teórico-político.
49
Algumas obras estão com data recente devido às atuais traduções para o português. Mas são produções que
remetem à década de 1980.
114

de opressão (TRUTH, 2012; WELLS, 2012)50, estas consideradas as precursoras do feminismo


negro em escala mundial.
De fato, a elaboração teórica dessas mulheres provocou profundos abalos
epistemológicos nos seus lugares sociais. Em conjunto, formam parcialmente um corpo
cambiante e transnacional (COLLINS, 2019) que alia a análises das vidas de mulheres negras
em diáspora as análises das estruturas de poder capitalista, coloniais, racistas e sexistas. Essas
autoras me ensinaram que, ao contrário do que é difundido pelo feminismo branco ocidental
hegemônico, os feminismos negros não fragmentam a luta das mulheres. Em direção oposta, o
feminismo negro finalmente apresenta uma proposta de análise completa e complexa, que parte
da experiência concreta de vida das mulheres, mas transborda pela teoria social crítica ao
questionar os pilares da ciência tradicional, bem como a própria crítica feminista à ciência
(NARAYAN, 1997; OYÊWÙMÍ, 2019), propondo novas bases epistemológicas e referenciais
interpretativos, e ainda outras formas de validação do conhecimento produzido que escampem
aos moldes do eurocêntrismo. Essa é uma primeira questão.
A segunda questão que considero crucial é a centralidade do feminismo negro
estadunidense na construção do feminismo da América Latina e no Brasil, especialmente.
Embora a elaboração teórica de autoras como Audre Lorde, Patricia Hill Collins, bell hooks,
Kimberle Crenshaw e Angela Davis sejam fundamentais para compreendermos as estruturas de
opressão, elas estão produzindo conhecimento em um país de capitalismo avançado do Norte
global. Como já analisado no item anterior a circulação das teorias no mundo globalizado
obedece a padrões coloniais de poder, em que o Norte produz conhecimento e o Sul consome
esse mesmo conhecimento, por vezes de forma acrítica (SPIVAK, 2010). Assim, mesmo dentro
dos feminismos subalternos, a colonialidade do saber costura hierarquias capazes de tornar
alguns saberes invisíveis. Os critérios dos mercados editoriais, a valorização da produção
estadunidense e europeia, a inferiorização dos saberes produzidos nas ex-colônias, bem como
as recentes (e importantes) traduções de teóricas negras dos EUAs, popularizaram esse campo
do feminismo negro em detrimento de outros, como os feminismos africanos por exemplo.
Collins (2019) atenta para o fato do pensamento feminista negro estadunidense possuir um
status privilegiado em um contexto transnacional.
A construção de um pensamento feminista negro dos trópicos não é apenas importante
para visibilizar teóricas negras não-anglo-saxônicas e não-ocidentais, mas também para
elaborar outros eixos que sustentam o feminismo negro e reformular as críticas à ciência. Por

50
O texto de Sojouner Truth é de 1850 e o texto da Ida Wells data de 1982. Ambos traduzidos em JABARDO,
Mercedes et al. Feminismos negros: una antología. Traficantes de sueños, 2012.
115

exemplo, Collins (2019) elenca três dimensões da opressão das mulheres afro-estadunidenses:
a exploração do trabalho das mulheres negras, a negação dos direitos e privilégios e as imagens
de controle (estereótipos negativos) que garantem a dimensão ideológica da opressão. Esse
esquema precisa ser alargado. Sabemos que para as feministas comunitárias a invasão dos
territórios sagrados e das reservas indígenas, o roubo das suas riquezas e o apagamento de suas
espiritualidades e culturas não pertencem a um passado colonial, sendo este um movimento
mais amplo. Nos países da América Latina as políticas econômicas impostas pelos Estados
Unidos e países europeus transferem a riqueza dessas sociedades, bem como seus recursos e
produtos para multinacionais estrangeiras. Ambos processos afetam diretamente as mulheres
negras e mulheres de cor do Sul-Global.

4.2.1 Da crítica à formulação

Para além de expandir a visão da ciência e integrar as contribuições das mulheres, o


projeto epistemológico feminista solapou as bases próprias da Ciência, ao questionar os
dualismos inerentes ao projeto positivista e ao propor novos olhares, novas bases
epistemológicas e novas formas de validação do conhecimento produzido. Muito já foi dito
sobre a crítica feminista à ciência (HARAWAY, 1995; SARDENBERG, 2002; COLLINS,
2019). O que pretendo ressaltar aqui são aspectos que considero mais problemáticos. O projeto
epistemológico feminista não é um todo coerente e homogêneo (SARDENBERG, 2002).
Diversas perspectivas coexistem baixo esse projeto mais amplo, concorrendo pela legitimidade
dos seus sistemas teóricos, metodológicos e políticos, sendo mais adequado utilizar projetos
epistemológicos feministas nos termos de Narayan (1997).
A autora aponta que a questão da experiência assume significados diferentes entre
feministas ocidentais e não ocidentais ou, ainda, feministas do primeiro mundo e as do terceiro
mundo. Ao informar dentro do campo feminista mais amplo as opressões advindas da cultura e
das tradições que as mulheres de cor do sul global padecem, as visões de inferioridade cultural
entre o Ocidente e as culturas do Sul-Global são reforçadas. A criação do estereótipo da mulher
do terceiro mundo como bloco homogêneo e quase sempre vítima das tradições ou da pobreza
do Terceiro Mundo, como já nos alertara Mohanty (2008), está acompanhada de uma suposta
superioridade cultural do feminismo ocidental51 (NARAYAN, 1997).

51
O uso do hijab por mulheres mulçumanas é emblemático dessa concepção. Em toda a minha formação feminista
jovem escutei e li sobre como as mulheres mulçumanas são mais oprimidas que nós, as ocidentais. A insurgência
do feminismo islâmico, à despeito das suas fragilidades, descortina a triangulação gênero-religiosidade-
116

Outro ponto importante é a discussão que Narayan (1997) empreende à crítica do


feminismo ao positivismo. Essa crítica não tem a mesma importância para feministas ocidentais
e não-ocidentais. Outras perspectivas teóricas são igualmente colonizadoras e não podem mais,
nos termos de Narayan (1997), ser dignas da nossa complacência52.
A crítica elucidada acima por Narayan (1997) como feminista indiana é crucial para
refletirmos sobre os pressupostos do feminismo branco e liberal e os feminismos negros. hooks
(2019) e Jabardo (2012) argumentam sobre as diferentes bases por onde se assentam ambos os
feminismos. Ao aportar as suas bases teóricas em produções subalternas e racializadas, o
feminismo negro compromete-se com a descolonização do conhecimento. O texto da Sojouner
Turth “E acaso não sou uma mulher?” proferido em 1850, é considerado o primeiro texto do
feminismo negro em escala mundial. Nele, Thuth (2012) questiona o sujeito universal mulher.
Enquanto o feminismo branco parte de uma afirmação: Ninguém nasce mulher, torna-se,
máxima da Simone de Bouvouir, o feminismo negro nasce de uma negação, um questionamento
do seu status de mulher, haja vista a incompatibilidade do que era apresentado pelas mulheres
brancas organizadas naquele contexto histórico. O discurso de Truth, uma escrava alforriada,
dialoga com a formulação de um sujeito colonial em disputa pelo seu lugar como sujeito
humano. Assim, o primeiro pressuposto, ao nosso ver, do feminismo negro foi afirmar que as
mulheres negras são humanas, sendo dispensável perseguir o protótipo da mulher branca. As
mulheres negras construíram suas próprias bases do que é ser mulher, a partir de suas próprias
experiências e distanciando-se do mito da fragilidade da mulher branca.
Um segundo pressuposto é o alinhamento do projeto feminista negro com projetos por
justiça social mais amplos. Como nos relembra Collins (2019), “a luta das mulheres negras é
parte de uma luta mais ampla pela dignidade humana, pelo empoderamento e pela justiça social.
O compromisso com a solidariedade humana tem que ser um pilar, do contrário o movimento
está fadado ao fracasso”. Este princípio está na base do feminismo negro. Ida Wells socióloga
negra, em 1892, denunciou e analisou os linchamentos no Sul dos Estados Unidos como
estratégia de extermínio da população negra no pós-abolição. Wells (2012), além de debater o

xenofobia. Para além de demonstrar uma preocupação tutelada com as mulheres islâmicas, o feminismo
hegemônico contribui, muitas vezes, com o imaginário de um Oriente conformado a partir da outridade
(KILOMBA, 2019) refletindo os valores que são próprios do Ocidente, mas sistematicamente negados: bárbaros,
violentos, tradicionais, e portanto, culturalmente inferiores. A consciência emergente entre mulheres
mulçumanas revela a luta entre a denúncia e enfrentamento das opressões de gênero, ao mesmo tempo em que
se preocupam em defender suas culturas e a soberania de seus territórios. Uma empreitada árdua e complexa,
compartilhada também por feministas subalternas ou contra-coloniais de outros espaços geopolíticos
(PAREDES, 2010; NARAYAN, 1997; MAMA, 2008; SPIVAK, 2010).
52
Com exceção da Heleieth Saffiotti (1992), O feminismo marxista no Brasil é o norte teórico de grupos feministas
importantes e durante muitos anos contribuíram para invisibilizar as questões raciais dentro do movimento.
117

sistema de injustiças raciais em que se baseavam essas práticas, averiguou como as questões de
gênero eram manejadas para enquadrar os homens negros no arquétipo do negro estuprador. A
violência sexual cometida contra as mulheres brancas era frequentemente utilizada para
justificar os linchamentos, enquanto os estupros contra mulheres negras sequer eram
investigados. Em belíssimo ensaio, Wells (2012) demonstra inúmeros casos em que os
depoimentos das mulheres brancas eram falaciosos e denunciou a imprensa estadunidense como
maliciosa, mentirosa expressando profundo desprezo pela vida humana. Assim, os primeiros
textos do feminismo negro, nos oferece uma visão ampla de como as sociedades estão
estruturadas e como as questões de gênero, classe e raça estão complexamente imbrincadas.
Nesse sentido, a articulação entre as categorias analíticas e a visão ampla dos processos
de opressão que constroem a vida das mulheres negras e brancas é uma premissa do feminismo
negro desde a sua formulação embrionária. A teórica feminista porto-riquenha Curiel (2007)
argumenta que o feminismo negro e chicano dos Estados Unidos, bem como as formulações
das afroamericanas e indígenas da América Latina e do Caribe, desde a década de 1960, traziam
em suas análises as imbricações entre raça, classe, sexualidade, gênero nos processos de
colonização e escravidão.
Um ponto crucial que a autora aborda é, ao apontar as contribuições de Anzaldúa no
feminismo crítico ao racismo e ao imperialismo, através do pensamento fronteiriço, chama
atenção para o fato que mestiço representa um instrumento poderoso de dominação na América
Latina e Caribe. Longe de representar um ato de resistência, a mestiçagem no Brasil significou
um processo perverso de embranquecimento da nação. Não obstante umas das importantes
contribuições das feministas latino-americanas negras foi evidenciar a violência colonial contra
mulheres negras e indígenas como motor importante do colonialismo nesses territórios e sua
estreita relação com os processos de miscigenação. Estas feministas elaboraram, de acordo com
a autora, um pensamento profundo e sistemático, cada vez mais enraizado nas análises
históricas sobre colonialismo, escravidão e américa latina.
Os feminismos subalternos (BALLESTRIN, 2017), ao nascerem da crítica do
feminismo da diferença, resgataram uma multiplicidade de experiências com as opressões em
uma perspectiva interseccional, mas também uma multiplicidade de formas de resistência, que
foram profundamente ignoradas pelo feminismo hegemônico (WERNECK, 2005). A teórica
53
feminista estadunidense bell hooks (2019) e a brasileira Jurema Werneck (2005)
empreenderam duras críticas. Ambas reforçam o conhecido fato de que o movimento feminista

53
Tradução do original Feminist Theory: From Margen to Center, publicado em 1984.
118

em diferentes territórios geopolíticos, aqui nos reportamos especialmente ao estadunidense e


brasileiro, não foi e não é protagonizado pelas mulheres que mais sofrem as retaliações das
opressões de classe, raça, gênero, sexualidade e nação. hooks (2019) questiona o ponto de
referência pelo qual foi universalizado as experiências das mulheres estadunidenses: o drama
das mulheres de classe média donas de casa. Em A Mística Feminina, Betty Friedan compara
os efeitos psicológicos das mulheres brancas esposas com os sentimentos dos judeus nos
campos de concentração nazistas (hooks, 2019). Parece-me que tal argumento, apesar de
narcísico, politiza um contexto singular de opressão de tal forma que torna-se significativo para
abarcar uma multiplicidade de experiências. É nessa premissa que reside o núcleo duro do
feminismo hegemônico: a produção de um sofrimento universal. Óbvio que esse sofrimento
universal tem um sujeito político bastante definido e com uma identidade fixa: a mulher. Então,
as mulheres de diversas partes do mundo, tempos históricos, cores, credos, idades,
compartilhariam uma mesma opressão, sendo os moldes dessa opressão estruturados a partir da
experiência social e racial de um grupo de mulheres. Esse feminismo cresceu e se expandiu
com base no individualismo e com pano de fundo do capitalismo crescente, de acordo com
Werneck (2005). Seus eixos e formas de reivindicações, redirecionamento dos recursos e a
própria história do feminismo deixaram de lado a contribuição das mulheres negras, indígenas,
lésbicas. Situaram-se no centro e tudo que era erguido como Outra estava à margem, ou era, no
máximo, complemento. O movimento feminista no ocidente nasce com uma contradição
interior que lhe é indissociável: as suas posições de privilégio e dominação.
As análises feministas da situação da mulher tendem a focar exclusivamente
no gênero, se abstendo de fornecer um alicerce para a edificação de uma teoria
feminista. Refletem a tendência dominante nas mentes patriarcais do Ocidente
a mistificar a realidade da mulher, na medida em que insistem na tese de que
gênero é o único fator determinante do seu destino. Claro que é mais para
mulheres que não sofrem opressão de classe e raça focar exclusivamente no
gênero. Embora feministas de orientação socialista foquem nas questões de
raça e classe social, elas tendem a negligenciar o problema racial ou, embora
declarem reconhecer a importância desse aspecto, na prática oferecem análises
em que a questão racial não é levada em consideração (hooks, 2019, p. 45).

O feminismo negro apresenta uma crítica, uma formulação e uma disputa dentro do
próprio feminismo; uma proposta de alargamento e reformulação dos limites da opressão.
Collins (2019, p. 33) define opressão como “qualquer situação injusta que sistematicamente um
grupo nega ao outro acesso aos recursos da sociedade”. hooks (2019) argumenta que ser
oprimido significa ausência de opções. A análise de hooks (2019) tem como fundamento as
diversas intensidades da força opressiva do sexismo na vida das mulheres a partir das
imbricações cambiáveis das categorias de classe, raça, geração, sexualidade, nação, etc. As
119

concepções de opressão têm como objetivo disputar o feminismo de modo que ele se torne
plural, localizado, histórico e aliado a projetos de justiça sociais mais amplos, porém, ainda
reivindicando o feminismo como um campo de luta das mulheres contra a opressão sexista54.
Nesse sentido, compreendemos o feminismo como um projeto teórico e político radical.
Um compromisso ético-político para “acabar com a opressão sexista. Seu objetivo não é
beneficiar apenas um grupo específico de mulheres, uma raça ou classe especial de mulheres
em particular” (hooks, 2019, p. 59). Segundo a autora, feminismo não é um estilo de vida, uma
atuação a ser desempenhada no lócus da vida individual. É, antes, a luta de uma multiplicidade
de mulheres que compartilhar como ponto em comum o desejo pelo fim da opressão patriarcal.
Para garantir a libertação das mulheres em sua pluralidade, é imperativo que o feminismo seja,
antirracista, anticapitalista, antipatriarcal, anticolonial e anti-imperialista. Creio que a definição
da feminista boliviana Paredes (2010) seja as bases dessa proposta.
Nos parece importante partir de nuestra definición de feminismo: feminismo
es la lucha y Ia propuesta política de vida de cualquíer mujer en cualquier
lugar del mundo, en cualquier etapa de la historin que se haya rebelado ante
el patrilrcado que la oprime. Esta definición nos permite reconocemos hijas y
nietas de nuestras propias tatarabuelas aymaras, quechuas y guaraníes
rebeldes y antipatriarcales. También nos ubica como hermanas de otras
ferninistas en el mundo y nos posiciona políticamente frente al feminismo
hegemónico occidental. (PAREDES, 2010, p. 76)

Essa definição está em consonância com a concepção de pensamento feminista negro


em contexto transnacional elaborada por Collins (2019). Para a autora, o feminismo negro é um
conhecimento adquirido nas opressões interseccionais de raça, classe e gênero. Uma
transmissão de saberes subjugados comprometidos com a libertação das mulheres negras em
diversas partes do mundo. “A identidade do pensamento feminista negro como teoria social
crítica reside em seu compromisso com a justiça, tanto para as estadunidenses negras como
coletividade quanto para grupos oprimidos” (COLLINS, 2019, p. 43). Ainda, o feminismo
negro é uma sabedoria coletiva de resistência que conforma uma visão de mundo que dá base
para avaliar as experiências dos grupos subordinados.
É um pensamento que pressupõe a relação dialética entre ativismo e opressão. Ao
mesmo tempo em que vivenciam opressões múltiplas, as mulheres negras podem desenvolver

54
Algumas teóricas como Jurema Werneck (2009; 2011) e Alice Walker (2016) reivindicam outros termos e outras
bases representativas que articulem as estratégias teóricas e políticas formuladas pelas mulheres negras. “Ou
seja, nosso desafio ainda é indagar a partir de qual ou quais formas poderemos, radicalizando os princípios das
ialodês ou os princípios feministas e suas contradições, nos colocar na arena pública em nosso próprio nome”
(WERNECK, 2009, p. 163). Um questionamento pertinente frente à larga invisibilização das mulheres negras e
outros grupos subalternos dentro do feminismo hegemônico. Entretanto, acreditamos que este movimento ainda
se é um espaço de disputa.
120

pontos de vistas privilegiados que analisam as estruturas de opressão de forma mais ampla,
conforme discutimos no primeiro item do capítulo. E assim fizeram através de diversas
estratégias: poesia, música, literatura, performance-crítica, ativismo político, conhecimento
acadêmico. O pensamento feminista negro manifesta a tomada de consciência crítica das
mulheres negras, invisibilizadas pelo feminismo hegemônico e pelo movimento negro ou
movimentos nacionalistas. Esse pensamento situa as experiências de mulheres negras
especificas, mas em um contexto diaspórico negro transnacional, revelando semelhanças entre
os grupos de mulheres negras, mas também aquilo que é específico de cada grupo (COLLINS,
2019). No sentido da relação dialética, desenvolver o pensamento feminista negro requer
elucidar os ideais e experiências das anônimas. Assim, a partir do ponto de vista feminista negro
multifacetado, as mulheres anônimas deixam de ser objetos de estudo para integrar um
pensamento específico.
Collins (2019) elenca seis características do pensamento feminista negro que podem ser
compartilhadas com outros campos de conhecimento subordinados. De forma esquemática, a
primeira diz respeito ao ponto de vista coletivo das mulheres negras. Suas experiências com as
opressões interseccionais provocam um tipo de ponto de vista coletivo cambiante, não fixo, que
desafia os pressupostos da consciência dos grupos oprimidos, como já mencionado
anteriormente. A segunda característica vincula experiências e ideias. As experiências das
mulheres negras não são as mesmas, tendo em vista que esse sujeito político não é homogêneo,
assim, as respostas às questões centrais são diversas. As questões de classe, geração,
sexualidade, nação atuam dentro desse ponto de vista coletivo, as tensões geradas nesse
processo produzem diferentes respostas aos desafios comuns.
A terceira característica, segundo a autora, diz respeito à relação dialógica entre um
pensamento e uma prática feminista negra. Ação e pensamento informam um ao outro, nos
alerta Collins (2019). O feminismo negro não pode ser encastelado ou servir a interesses da
supremacia branca capitalista. É, antes, um conhecimento que ao partir das experiências
concretas das mulheres negras fornece ferramentas para que as mulheres negras resistam à
opressão. A armas do senhor não desmantelam a casa do senhor, nos inspira Lorde (1988).
Nesse desejo e nesse compromisso político, mulheres negras da diáspora elaboraram suas
ferramentas teóricas e políticas de enfrentamento ao racismo patriarcal transnacional.
A quarta característica situa a importância das intelectuais negras na produção desse
conhecimento. As anônimas produzem um pensamento trivial, naturalizado no cotidiano,
responsável por manter a vida de um grupo social sistematicamente exterminado. A partir desse
chão, as mulheres negras produzem o conhecimento especializado, capaz de desenvolver
121

coalizões com demais grupos oprimidos. Dessa característica, destaco que a as intelectuais
negras são importantes para a autodeterminação das mulheres negras, ou seja, falar por si
enquanto coletividade é essencial para desmantelar as imagens de controle acerca deste grupo
subordinado.
O feminismo negro como movimento cambiante e dinâmico é a quinta característica.
Como um movimento dialético, a opressão reformula os obstáculos para a expressão de um
ponto de vista autodefinido, exigindo que as mulheres negras reatualizem as suas análises sobre
as condições de vida e as estratégias de ativismo. Por fim, a sexta característica situa o
feminismo negro em uma luta mais ampla pela dignidade humana. Sem o pilar da solidariedade,
o feminismo negro está fadado ao enfraquecimento (COLLINS, 2019).
Dentro do amplo pensamento feminista negro desenvolvido por Collins (2019), destaco
três eixos que corroboram com as análises desenvolvidas neste trabalho.
O primeiro refere-se à autodeterminação e autoavaliação. Imagens estereotipadas têm
sido usadas externamente para controlar e explorar o trabalho das mulheres negras. A função
da imagem estereotipada é de desumanizar e controlar os grupos. As imagens controladas
servem para domesticar as mulheres naquilo que ameaça o status quo. Mães negras fortes e
mulheres negras agressivas ameaçam o padrão de feminilidade imposto pelo patriarcado racista.
No Brasil, é comum que as mulheres negras que questionam o estabelecido pela supremacia
branca sejam taxadas de petulantes. É preciso criar os próprios padrões de autoavaliação da
forma de ser mulher. Como estar no mundo, como enfrentar as relações de opressão, como ser
mulher. “Definir e valorizar a consciência do próprio ponto de vista autodefinido frente a
imagens que promovem uma autodefinição sob a forma de “outro” objetificado é uma forma
importante de se resistir à desumanização essencial aos sistemas de dominação” (COLLINS,
2016, p. 105). Assim, autodeterminação e autoavaliação são imprescindíveis para a não
naturalização do lugar de subalternidade.
O segundo eixo diz respeito à natureza interligada da opressão. Uma coisa é explicar os
elementos de gênero, classe e raça, algo que pode ser traduzido pelo debate dos “recortes”, outra
é analisar os elos entre esses sistemas. O pensamento feminista negro tem como objetivo
“desenvolver interpretações teóricas da própria interação em si” (COLLINS, 2016, p. 108).
Uma das características encontradas ao analisar a interação dos sistemas de opressão é o que
Collins (2016) designa como constructo da diferença dicotômica por oposição, um pensamento
dualístico que estrutura a organização da vida ocidental, ou isto ou aquilo. A categorização das
coisas e pessoas e fatos em termos das suas diferenças. Essas diferenças não são
complementares, são concebidas em exclusão e são intrinsicamente instáveis. A relação instável
122

é resolvida ao subordinar uma metade à outra. Na dicotomia branco/negro, o negro fica


subordinado. Na dicotomia homem/mulher, a mulher está subordinada.
Por fim, o terceiro eixo é concernente à importância da cultura das mulheres
afroamericanas. A cultura é um conjunto de valores e símbolos que criam a moldura ideológica
pela qual os sujeitos se autodeterminam e aprendem a lidar com as circunstâncias que
encontram na vida. A cultura está em constante mudança. Não é homogênea; é tecida por
diversos pontos de vista que compõe uma referência compartilhada. Investigar a cultura das
mulheres negras é significativa por três razões. A primeira porque a consciência da opressão e
ações de enfrentamento das opressões são mais complexas do que o apresentado pelo
pensamento hegemônico. A segunda porque mostra as diversas formas como o ativismo surge
para mulheres negras: negar os estereótipos, sustentar suas comunidades, construir famílias
negras conformam formas de ativismo. O terceiro diz respeito ao modelo analítico da relação
entre opressão, consciência e ativismo advindo do foco na cultura das mulheres negras.

4.2.2 Quem é o sujeito do feminismo negro?

As mulheres negras enquanto sujeito político protagonista do feminismo negro enquanto


movimento teórico e político, de acordo com Wenerck (2009), não existem.
Ou falando de outra forma: as mulheres negras, como sujeitos identitários e
políticos, são resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de
demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das condições
adversas estabelecidas pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos
séculos de escravidão, expropriação colonial e da modernidade racializada e
racista em que vivemos (WERNECK, 2009, p. 151).

Como sujeito colonizado, as mulheres negras produziram suas identidades entrecortadas


pelas relações coloniais de poder. Conduziram suas estratégias vendo-se em imagens como
prostitutas, hookies e mulatas, “espalhadas pelo mundo sob variações que parecem infinitas
(COLLINS, 2019, p. 448). Uma subjetividade marcada pelo resultado de uma violência colonial
excruciante, servindo de depósito para tudo aquilo que causa ojeriza na sociedade branca,
confome Kilomba (2019). Dentro do próprio movimento feminista vistas como raivosas e
sectárias, e nos movimentos nacionalistas negros acusadas como aquelas que enfraquecem e/ou
rompem a solidariedade racial necessária para enfrentar a supremacia branca. Entretanto, neste
mosaico complexo, as mulheres negras são aquelas que levam a pobreza nas costas e não têm
seus direitos humanos efetivamente garantidos nas redes de proteção social em contexto
transnacional.
123

Para a teórica nigeriana Mama (2008) identidades referem-se a lutas de resistência por
integridade e seguridade, justiça social e redistribuição. O que ameaça esses eixos, como, por
exemplo, a pobreza, é alvo das lutas identitárias. A pobreza é uma questão dentro do
pensamento feminista negro e entre as mulheres que inspiram a construção desse aporte.
Carolina Maria de Jesus, catadora de lixo, negra e favelada, escreveu na década de 1950 diários,
publicados no livro Quarto de Despejo — Diários de uma favelada, em 1960, que retratavam e
analisavam a síntese da opressão vivenciada pelas mulheres negras: “Como é horrível ver um
filho comer e perguntar: tem mais? Essa palavra ‘tem mais’ fica oscilando no cérebro de uma
mãe que olha para as panela e não tem mais”. (JESUS, 2014, p. 38),
De acordo com Mama (2008), a pobreza afeta com mais profundidade os ‘Outros’, ou
seja, os sujeitos com identidades homogeneizantes, situados à margem da humanidade. A
construção de identidades contra-coloniais (MATIAS, 2018) ou identidades subalternas
(BALLESTRIN, 2017), identidades estas estratégicas e cambiantes, reflete um processo
político de descolonização do eu (KILOMBA, 2019), que possibilita o levante do sujeito negro
autônomo que rompe com a fantasia branca do que ele deveria ser. Nem sub-humanas, nem
super-humanas. As mulheres negras em diáspora dedicam esforços para erguer identidades
próprias como contra-argumento, desmantelando as identidades fixas que as localizam no lixo
da sociedade (GONZALEZ, 1983) e produzindo novas narrativas em primeira pessoa. Ainda
seguindo os passos de Mama (2008), a identidade não pode ser tomada como artefato
psicológico ou um consumo cultural, mas sim como um aspecto profundamente político e
econômico e de estratégia militar, e de contraestratégia; um caminho para entender o significado
do poder. Tal acepção é notável nas palavras de Jesus (2014)
Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu
até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o
cabelo de preto onde põe fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um
movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe
reencarnações, eu quero voltar sempre preta […] O branco é que diz que é
superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga,
o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco
sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém (JESUS,
2014, p. 58).

A despeito do contexto de profunda desigualdade social e racial, as mulheres negras são


aquelas que, em consonância com Gonzalez (1982b), carregam a chama da libertação,
justamente por experienciarem os horrores profundos do Atlântico negro, seja nos porões dos
navios negreiros, seja nos porões da pobreza. Não existem enquanto essência, mas produziram
um sujeito político complexo tecido pela dialética entre as relações coloniais de poder e os
desejos de libertação. A resistência é parte da experiência concreta das mulheres negras, seja
124

pela força ancestral das Ialodês55, seja pela construção histórica de uma cultura das mulheres
negras transmitida entre as gerações. O fato é que esses ensinamentos norteiam as estratégias
das mulheres negras para enfrentar os obstáculos que lhes são impostos.

4.2.3 Opressões interseccionais

Ao questionar se a irmandade era global, Brah (2006) aponta que a diferença articula
discursos e práticas dentro das relações sociais, construindo diferentes posições de sujeitos e
construções de subjetividades. As diferenças entre mulheres precisam estar situadas nos níveis
globais de poder. Se a diferença costura as relações sociais, a construção de um “outro”, neste
caso, uma “outra” subalternizada é posta em xeque, pois “tanto negros quanto brancos
experimentam seu gênero, classe e sexualidade através da raça” (BRAH, 2006, p. 345). O
convite de Brah (2006) permite-nos compreender que a diferença como subjetividade é
construída em referência às relações sociais erguidas através de experiência interior e exterior;
pressupõem um sujeito descentrado, contingente e heterogêneo. “A racialização da
subjetividade branca não é muitas vezes manifestamente clara para grupos brancos, porque
branco é um significante de dominância, mas isso não torna o processo de racialização menos
significativo” (BRAH, 2006, p. 345).
Ao desconfiar da opressão universal compartilhada pelas mulheres, as feministas negras
formularam a categoria de interseccionalidade na discriminação de raça, gênero e classe. De
acordo com Crenshaw (2004), a interseccionalidade é uma categoria que permite reconhecer a
atuação simultânea de diversas estruturas de discriminação. A interseccionalidade possibilita
superar a concepção de que as opressões afetam os indivíduos em uma soma mecânica. Tal
categoria qualifica o debate ao abordar a subordinação estrutural das mulheres negras como um
processo resultante da confluência entre raça, gênero, classe e globalização. A
interseccionalidade propicia a ampliação das categorias de raça e gênero e aborda a diferença
na própria diferença, visibilizando contextos de opressão específicos.
Tal premissa é uma tradição no pensamento negro feminista estadunidense, mas também
no brasileiro, bem como entre autoras africanas e entre o feminismo comunitário. Os
feminismos subalternos despontam a partir do reconhecimento da diferença entre as mulheres
como um processo positivo, plural e democrático. Então, as análises interseccionais
configuram-se como um dos pilares desses feminismos. Os textos de Sojouner Truth e Ida Wells

55
Representação sagrada da força ancestral das mulheres negras da diáspora.
125

já formulavam, em pleno século XIX, a imbricação entre gênero, classe e raça. Segundo Curiel
(2007), as feministas na década de 1960 traziam nas suas análises as imbricações entre raça,
classe, sexualidade e gênero nos processos de colonização, escravidão e capitalistas. Em 1977,
as mulheres do Coletivo do Rio Combahee 56 escreveram um manifesto expressando que a
subordinação das mulheres só era possível de ser compreendida a partir de múltiplas opressões.
Creemos que las políticas sexuales en el patriarcado dominan las vidas de las
mujeres negras, así como lo hacen las políticas de classe y de raza. Además,
con frecuencia, nos es difícil separar la raza de la clase, y de la opresión sexual,
dado que en la mayoría de los casos las experimentamos simultáneamente en
nuestras vidas (COLECTIVA DEL RÍO COMBAHEE, 1988, p. 175).

Nas décadas de 1960 e 1970, as feministas marxistas e materialistas (KERGOAT, 2010)


construíram análises sobre a relação entre classe e gênero construindo a identidade especifica
da mulher trabalhadora. No Brasil, Heleieth Saffioti foi pioneira nos estudos sobre mulher e a
articulação com o debate de classe. Em 1969, a autora publicou A Mulher na Sociedade de
Classes e tornou-se uma referência, abordando a classe como um marcador de diferença na
condição de ser mulher. Decerto que a articulação entre classe e gênero é uma preocupação do
feminismo marxista e socialista, mas as questões raciais ocupam um lugar secundário. Saffioti
consegue ir mais além tratando o racismo como estruturante nas relações sociais, a partir da
metáfora do nó.
A recente querela entre os debates de consubstancialidade (KERGOAT, 2010;
HIRATA, 2014)57 e de interseccionalidade, mais especificamente a categoria formulada por
Crenshaw (2004), chama minha atenção. O que está no cerne desse embate proposto pelas
feministas francesas (KERGOAT, 2010; HIRATA, 2014) é qual a centralidade que as
categorias possuirão dentro das relações imbricadas. Kergoat (2010) acusa o conceito de
interseccionalidade de naturalizar categorias analíticas, fixar identidades, setorializar os
sujeitos, pensar as relações de dominação fora dos contextos históricos que as determinam.
Tanto Kergoat (2010) quanto Hirata (2014) postulam que o conceito de
interseccionalidade quase sempre privilegia o par raça-gênero, relegando a classe a um patamar
secundário. Nas palavras de Kegoat (2010): “É certo que os estudos feministas invocam
regularmente a necessidade do cruzamento entre gênero, “raça” e classe. No entanto, o
cruzamento privilegiado é entre “raça” e gênero, enquanto a referência à classe social não passa

56
Grupo feminista negro da cidade de Boston. O nome é em homenagem à ação guerrilheira liderada por Harriet
Tubman, em 1863, liberando mais de 750 escravos e reconhecida como a única ação militar dirigida por uma
mulher na história dos Estados Unidos.
57
Remeto-me a essas autoras por influenciarem significativamente os pressupostos teóricos de movimentos
feministas com alcance nacional no Brasil.
126

muitas vezes de uma citação obrigatória” (KERGOAT, 2010, p. 97). Nesse caso, a crítica à
interseccionalidade qualifica-se pelo entendimento das categorias de opressão como isoladas e
não imbricadas nas relações sociais. Hirata (2014) vai além ao investir considerável energia em
explicar que desde a década de 1970 as francesas dedicavam-se aos estudos de raça e racismo,
utilizando uma pesquisa do final da década de 1990 sobre a média de rendimentos entre homens
e mulheres, negros e brancos para referir-se à conjuntura dos anos 2010. Na pesquisa citada
pela autora os homens negros aparecem com rendimento maior que as mulheres brancas.
O Brasil é um país com forte subnotificação racial. O sujeito colonizado espelha-se no
colonizador ao conformar a sua subjetividade, como já mencionado anteriormente. Além do
mais, a trajetória histórica da relação entre censo e a categoria racial é omissa, ambivalente e
complexa, mascarando a tensão 1racial sob o viés do pardo. Ainda, o quesito raça/cor só se
torna obrigatório no sistema de saúde em 2017; no sistema previdenciário, entre outros, ainda
não o é. Assim, de acordo com Schwarcz (2012), os dados raciais provindos do censo são irreais
e de difícil interpretação.
Dessa maneira é que pode ser entendida a campanha encabeçada pelo Ibase
(Instituto Brasileiro de Análise Social e Econômica) que veiculou na mídia,
em 1991 — e em razão da “inflação branca do censo —, a seguinte mensagem:
“Não deixe sua cor passar em branco: responda com bom ‘censo’”.
(SCHWARCZ, 2012, p. 106),

Dados mais atualizados (PNAD, 2019), apontam que as mulheres brancas no Brasil
recebem um rendimento 35% maior que a média dos homens negros. As análises estatísticas
isoladas demonstram que o peso do racismo na desigualdade racial é o dobro que as
desigualdades de gênero. Análises apressadas podem nos levar a interpretações simplificadas
da realidade. Porém, as explicações propostas pelas pesquisas indicam o aumento da
escolaridade das mulheres como justificativa: cerca de três anos a mais que os homens negros.
Se essa assertiva fosse coerente o que explicaria a disparidade salarial entre mulheres negras e
homens brancos? O rendimento médio delas é menos da metade do rendimento dos homens
brancos (R$ 1.394 contra R$3.138), sendo que elas estudam em média 9,7 anos e os homens
brancos 10,1 anos. Se raça não é uma categoria central na sociedade brasileira, como explicar
o aumento de 54% dos homicídios entre mulheres negras e a diminuição de 10% entre mulheres
brancas, segundo o Mapa da Violência de 2015 (JACOBO, 2015)? Não se trata simplesmente
de serem mulheres pobres, mas, sobretudo, sobre corpos que historicamente não importam. Ou
seja, trata-se de uma matriz de dominação específica — racismo patriarcal brasileiro —
conformada por opressões interseccionais, para utilizar o escopo analítico de Collins (2019).
127

Acredito que ambas as autoras francesas (KERGOAT, 2010; HIRATA, 2014), entre
outras teóricas feministas, desconhecem a realidade excruciante da população negra brasileira
e de outros países, insistindo na primazia do par classe-gênero e desconsiderando as
determinações históricas dos países colonizados. As questões de classe nesses países são
questões de raça. A formação social brasileira não seguiu o receituário da imperialista França,
que até a atualidade mantém relações espúrias com suas ex-colônias. Tais autoras não analisam
seus lugares sociais como privilegiados, podendo se darem ao luxo de não considerar as
questões de raça como centrais em suas análises.
Sobre a categoria interseccionalidade da Crenshaw (2004), autoras negras, como
Werneck (2005) teceram críticas a essas construções. Apesar de representar um avanço nas
análises das imbricações entre racismo e sexismo, fragmenta as Ialodês, retiram a
potencialidade delas de serem inteiras e autênticas. Para Werneck (2005), a subordinação das
mulheres negras precisa ser compreendida de forma sistemática dentro das estruturas coloniais
de dominação.
Mas devemos explicitar a impossibilidade prática de dissociação entre
patriarcado, racismo, colonialismo e capitalismo — tudo parte do mesmo
“pacote” de dominação do ocidente sobre as demais regiões do mundo. E que
não se estrutura em capítulos ou hierarquias. Ao contrário, age sobre as
mulheres como um bloco monolítico, às vezes pesado demais (WENERCK,
2005, p. 27).

A proposta do pensamento das mulheres negras não é naturalizar categorias analíticas,


fixar identidades, fragmentar realidades ou, ainda, conceber relações sociais a-históricas. Ao
contrário, enveredar análises sobre gênero e classe que prescindam das relações coloniais
racializadas entre Norte e Sul expressa uma análise estilhaçada dos mecanismos de opressão
que constrói a vida das mulheres. Como nos alerta Werneck (2005, p. 28) o feminismo branco
europeu foi fundado “em uma ignorância profunda acerca das demais mulheres do mundo”.
Um olhar mais atento, observaria que as mulheres negras não formularam as intersecções de
maneira isolada e não fixaram a identidade das mulheres negras desmembradas das questões de
classe. Entretanto, as dinâmicas de construção da classe trabalhadora nas ex-colônias obedecem
a uma ordem colonial de poder que torna impossível analisar as questões de classe fora dos
limites do racismo. A violência policial, o encarceramento em massa, o desemprego massivo
da população negra, o trabalho informal e a pobreza exigem análises racializadas de classe.
Jesus (2014) retrata como a pobreza era vivenciada pelas pessoas negras ao fim da década de
1950 no Brasil.
Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo
um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e
128

amarrou numa árvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que


transforma preto em bode expiatório. Quem sabe se guarda civil ignora que já
foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata? (JESUS, 2014,
p. 96).

Para analisar as relações sociais em países que vivenciaram séculos de escravidão é


imprescindível a racialização das relações sociais nas estruturas de classes e gênero, o que nos
permite formular respostas teóricas complexas e verdadeiramente localizadas, determinadas
historicamente e não-fixas. De acordo com Collins (2015, p. 15), “cada grupo identifica o tipo
de opressão que se sente mais à vontade em atribuir como fundamental e classificam todos os
outros tipos como menos importantes”. Por isso, proponho utilizar categorias analíticas
alinhadas ao paradigma de opressões interseccionais proposto por Collins (2015). Conforme a
autora, raça, classe, gênero, sexualidade e nação agem conjuntamente e de maneira distintas,
ou seja, são interdependentes, e produzem uma matriz de dominação em uma determinada
sociedade.
A ideia de interseccionalidade se refere a formas particulares de opressão
interseccional, por exemplo, intersecções entre raça e gênero, ou entre
sexualidade e nação. Os paradigmas interseccionais nos lembram que a
opressão não é redutível a um tipo fundamental, e que as formas de opressão
agem conjuntamente na produção da injustiça. Em contrapartida, a ideia de
matriz de dominação se refere ao modo como as opressões interseccionais são
de fato organizadas. Independentemente das intersecções especificas em
questão, domínios de poder estruturais, disciplinares, hegemônicos e
interpessoais reaparecem em formas bastante diferentes de opressão
(COLLINS, 2019, p. 57).

Assim, o paradigma das opressões interseccionais, como referencial interpretativo


dentro do feminismo negro, ultrapassa a rigidez das categorias analíticas bem como as
identidades. Inclusive, é fundamental para descontruir a noção de opressão universal e a
primazia por uma categoria analítica em detrimento das outras. A divisão sexual do trabalho é
um exemplo importante para analisarmos a plasticidade de opressões interseccionais que
costura dentro dessa estrutura de poder contextos situacionais de opressões. Apesar da PNAD
de 2019 apontar que as mulheres ganham 27% do rendimento médio dos homens, uma análise
a partir das opressões interseccionais aponta que a branquitude é um fator fundamental para ter
uma vivência mais digna no mundo do trabalho, já que mulheres brancas ganham mais que
homens negros, e as mulheres negras situam-se nos piores índices. Obviamente, quando nos
debruçamos nos debates acerca da violência doméstica e sexual as opressões interseccionais
situam as mulheres brancas e negras, de classes médias e de classes populares como vítimas da
violência masculina e do domínio dos homens no controle dos corpos, ainda que raça seja um
fator fundamental.
129

No que concerne ao sistema prisional brasileiro, raça e classe operam afim de garantir
o encarceramento em massa dos homens negros e a violência policial extermina aqueles que
não conseguem encarcerar, haja vista o número alarmante de jovens negros assassinados no
Brasil, cerca de 21 mil jovens por ano. De modo complexo e resultado de uma violência colonial
que contaminou e produziu o modo como homens negros vivenciam a masculinidade tendo
com espelho a masculinidade do homem branco, algo já elucidado por Carneiro (1995), ainda
há as extenuantes opressões de gênero cometidas dentro do mesmo grupo racial. A violência à
qual as mulheres negras são submetidas pelos homens negros foi retratada de forma corajosa
na obra literária de Alice Walker (2016), A cor púrpura, lançada em 1982, sendo ela acusada
de causar tensões e rupturas dentro da comunidade negra estadunidense (COLLINS, 2019).
Nesse sentido, “como forma particular que as opressões interseccionais tomam em um
lugar social único, qualquer matriz de dominação pode ser vista como uma organização de
poder historicamente específica na qual os grupos sociais estão inseridos e sobre a qual pretende
influir” (COLLINS, 2019, p. 368). Assim, tomo emprestado o arquétipo das opressões
interseccionais e da matriz de dominação como estrutura de poder para compreender como a
questão do aborto estrutura a vida reprodutiva de mulheres negras e brancas.
Nomearei a matriz de dominação brasileira como racismo patriarcal brasileiro cuja
dominação concretiza-se nas instituições sociais, tais como escola, emprego, habitação, saúde,
previdência social, sistema jurídico e demais políticas governamentais que regulam os padrões
das opressões interseccionais. A matriz de dominação obedece a quatro domínios de poder
inter-relacionados: o estrutural, o disciplinar, o hegemônico e o interpessoal.
O domínio estrutural refere-se, segundo Collins (2019), aos padrões organizativos das
instituições de poder que reproduzem a subordinação das mulheres negras. Sabemos que no
Brasil as instituições são essencialmente racistas. Werneck (2016) denunciou que o racismo
institucional no sistema de saúde relega a população negra a riscos, vulnerabilidades e
adoecimentos que não acometem a população branca, por exemplo. O sistema político também
é outro exemplo de como é organizado esse padrão de poder, haja vista a participação ínfima
de mulheres negras na política institucional, impedindo que legislações que favoreçam a vida
digna delas sejam elaboradas, discutidas e aprovadas. Os diversos índices apresentados ao longo
desse texto mostram que as instituições atuam conjuntamente para relegar as mulheres negras
periféricas, em particular, a população negra em geral, e também as mulheres brancas pobres.
Ou seja, o domínio estrutural da matriz de dominação apresenta graus variados de punições e
privilégios para os diferentes grupos sociais.
130

Enquanto o domínio estrutural organiza a opressão, nos termos de Collins (2019), o


domínio disciplinar administra as relações de poder. É o poder disciplinar que torna as
dificuldades de acessar bens e serviços públicos diferenciadas para os diversos grupos sociais.
Digamos que esse domínio opere de tal modo que as práticas sociais são modificadas sem que
o núcleo da opressão se modifique. Ou seja, mesmo com a abolição e o fim da escravidão como
modo de produção no Brasil, as instituições sociais continuam agindo para situar a população
negra, em destaque, as mulheres negras em lugares sociais precarizados, empobrecidos e
estereotipados.
O domínio disciplinar cria novas maneiras para o domínio estrutural continuar agindo
mesmo que transformações significativas — como o direito ao voto para as mulheres brancas,
abolição para população negra, por exemplo, — ocorram. Assim, na ausência de interdições
diretas, o domínio disciplinar, através da vigilância atuando por meio das imagens de controle,
e os processos das instituições continuam a agir para tornar a vida das mulheres negras, dentre
outros grupos sociais, asfixiante socialmente (CARNEIRO, 2002). Mesmo que, atualmente, as
mulheres negras tenham os mesmos direitos políticos, sociais e econômicos de homens e de
mulheres brancas, o acesso a esses direitos é intermediado pelo racismo patriarcal,
estabelecendo que elas sejam um dos grupos minoritários na educação superior — o percentual
de mulheres brancas com ensino superior completo é 2,3 vezes maior que o de mulheres pretas
e pardas, e o triplo do encontrado entre homens pretos e pardos — (IBGE, 2018)58 e um dos
grupos majoritários no sistema prisional, representa 62% da população feminina encarcerada
no Brasil, segundo o INFOPEN de 201759. Dessa forma, o domínio disciplinar atua para que,
por meio da vigilância e de critérios burocráticos espúrios, a estrutura siga regulando as
opressões de gênero, classe e raça, ainda que historicamente transformadas e avanços tenham
sido conquistados pelos grupos subalternizados.
O terceiro domínio reflete o limite que existe dentro do domínio disciplinar (COLLINS,
2019), atuando como justificativa para o exercício dos dois domínios mencionados
anteriormente. O domínio hegemônico funciona de forma complexa, envolvendo as mulheres
negras e demais grupos subalternizados no mesmo sistema que atua reiteradamente para

58
Ver em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-
noticias/releases/20232-estatisticas-de-genero-responsabilidade-por-afazeres-afeta-insercao-das-mulheres-no-
mercado-de-trabalho>. Acesso: 10 jan. 2020.
59
O levantamento do Infopen utiliza as cinco categorias propostas pelo IBGE para classificação quanta à cor ou
raça: Branca, Preta, Parda, Amarela ou Indígena. A categoria Negra é construída pela soma das categorias Preta
e Parda. É importante ressaltar que os dados coletados pelo IBGE acerca da cor ou raça da população são
autodeclarados, enquanto os dados coletados pelo Infopen para essas variáveis são cadastrados pelos gestores
responsáveis pelo preenchimento do formulário de coleta do Infopen, não havendo controle sobre a
autodeclaração das características.
131

promover a sua subordinação. “Como o domínio hegemônico do poder diz respeito à ideologia,
cultura e consciência, ele é importante para atender a essa necessidade (COLLINS, 2019, p.
447). Esse domínio é absolutamente importante para o sistema de opressão, tendo em vista que
necessita do aval dos grupos dominantes e dos grupos subordinados para ter legitimidade.
Assim, as elites brasileiras produziram ao longo da formação do social do país um sistema de
crenças populares que sustentam as imagens estereotipadas (imagens de controle) sobre as
mulheres negras, que funciona, inclusive, na maneira como as próprias mulheres negras avaliam
a sua imagem. Assim, estereótipos escravocratas como mãe preta, ama de leite, mucama e dama
de companhia, sempre dóceis e passivas, desemprenharam um papel estratégico nas diferentes
visões acerca da mulher negra na sociedade atual (CARNEIRO, 2019). A mulata carnavalesca,
prostituta, empregada doméstica, auxiliar de serviços gerais, as usuárias da assistência social,
entre outras imagens de controle estereotipadas agem em conjunto de modo multifacetado para
justificar o lugar de subordinação das mulheres brasileiras. Sobre os impactos da política sexual
do racismo patriarcal brasileiro, veremos no próximo item.
Por último, Collins (2019, p. 453) aponta o domínio interpessoal do poder como aquele
que materializa cotidianamente a opressão, “funciona por meio de práticas rotineiras e
cotidianas que dizem respeito ao modo como as pessoas tratam umas às outras (por exemplo, o
nível micro da organização social) ”. Kilomba (2019) designa esse processo como racismo
cotidiano, um conjunto de episódios que não apenas reencenam uma memória escravocrata,
mas sobretudo significa uma realidade traumática com sérias implicações para a população
negra. É nesse momento do cotidiano que o sujeito branco deposita no sujeito negro tudo aquilo
que rejeita em si mesmo. O sujeito branco cria, através do processo de Outridade, um
imaginário social no qual o sujeito negro é visto como infantilizado, primitivo, incivilizado,
animalizado e erotizado. Ao personificar o sujeito negro a partir desses aspectos, o sujeito
branco produz uma imagem coletiva daquilo que o sujeito negro deveria ser; amputa assim a
responsabilidade do sujeito branco de toda a relação colonial de apropriação de territórios,
produtos e recursos, bem como as identidades por parte do sujeito branco colonizador. Há algo
mais violento que empilhar pessoas negras em navios negreiros para o trabalho compulsório
em diversos países da América? É no cotidiano que o sujeito negro produz suas subjetividades
na presença alienante do sujeito branco, sendo o depósito de tudo aquilo é reprimido na
sociedade branca (KILOMBA, 2019).
É no nível do cotidiano que os quatro domínios da matriz de dominação são
naturalizados. Diluído no emaranhado das opressões interseccionais, o racismo quase sempre é
minimizado frente às questões de classe, possibilitando plena liberdade para que os mecanismos
132

perversos do racismo patriarcal ajam livremente. No Brasil, há três cenários em que os episódios
de racismo no cotidiano expressam-se sobre a população negra, sobretudo sobre as mulheres.
O primeiro diz respeito às mulheres como vítimas da pobreza e da violência, o que justificaria
ser maioria entre a população usuária das políticas públicas. O segundo cenário seria a
culpabilização pela própria pobreza e violência sofrida, aspectos materializados nas seguintes
crenças: as mulheres têm mais filhos para receber dinheiro da assistência social, as mulheres
são estupradas porque são fáceis e não se dão ao respeito, a gravidez pode não ser
necessariamente do episódio do estupro. O terceiro cenário remete à romantização da opressão
sob a qual se constrói a figura heroica das mulheres negras (COLLINS, 2019) e da mulher negra
superforte (KILOMBA, 2019) que obriga uma determinada performance da negritude. Esses
três cenários conformam uma subjetividade das mulheres negras intrínseca a um silêncio
doloroso, em que são lidas sempre em terceira pessoa.
Nesse sentido, os quatro domínios estruturam a matriz de dominação brasileira, atuando
para tornar sistemática a subordinação das mulheres negras. Porém, como bem nos lembra
Collins (2019), a opressão funciona em dialética com o ativismo. As mulheres negras brasileiras
enfrentaram esses cenários das opressões interseccionais formulando teoria e práticas de
autodeterminação e autoavaliação de si enquanto indivíduos e enquanto coletividade. É nessa
dialética que situamos historicamente o racismo patriarcal brasileiro.

4.3 O Racismo Patriarcal Brasileiro

De acordo com Brah (2006, p. 344), “cada racismo tem uma história particular. Surgiu
no contexto de um conjunto específico de circunstâncias econômicas, políticas e culturais, foi
produzido e reproduzido através de mecanismos específicos e assumiu diferentes formas em
diferentes situações”. A história do racismo brasileiro é a história do embranquecimento da
identidade nacional. A construção da identidade do povo brasileiro precisou recorrer a uma
série de fragmentos simbólicos que formou um mosaico de contraditórios. O mito nacional, no
nosso caso da brasilidade, de acordo com Santos (2009) é algo que tem como propósito
construir um sentimento de solidariedade aos filhos daquele território, daquela nação. Trata-se
de um conjunto simbólico de características que não necessariamente reflete as dinâmicas reais
das relações micro e macrossociais. Acima de tudo, são invenções que justificam processos nos
quais os países estão submetidos.
O fato é que a história da formação social do Brasil é a história da escravidão e,
consequentemente, dos seus desdobramentos: racismo científico, racismo cultural, mito da
133

democracia racial, ideologia da mestiçagem. A escravidão é o motor da colonização brasileira


e estendeu-se por quase quatro séculos. Para além de um modo de produção, a escravidão era
um tipo de sociabilidade, uma mentalidade coletiva que ordenava as práticas sociais. Collins
(2016) argumenta que a escravidão era uma instituição específica de raça, classe e gênero, na
qual sujeitos colonizados ocupavam lugares sociais diferenciados. “A escravidão foi uma
instituição profundamente patriarcal” (COLLINS, 2016, p. 21), uma vez que o centro do poder
era o homem branco proprietário de terras e de escravos, que regia a familiar nuclear em que as
mulheres brancas desempenhavam uma função específica. O controle dos corpos e da
sexualidade dessas mulheres era feito a fim de assegurar a sucessão dos bens daquela família,
nos termos da autora, e também para garantir-lhes status de inferioridade.
A escravidão funcionou como um processo de intensa desumanização dos sujeitos
colonizados. A partir dessa concepção, o racismo patriarcal (WENERCK; IRACI, 2016)
representa a matriz de dominação (COLLINS, 2019) do Brasil, já que caracteriza sua
organização social geral. Werneck e Iraci (2016) elaboram o termo racismo patriarcal para
analisar como as formas de hierarquização racial persistentes são marcadas por relações
patriarcais. Assim, o racismo patriarcal heteronormativo
é um modo de definir o racismo atuante no Brasil e seus modos de atuação
diferenciada a partir do sexismo e das fobias LGBT. O conceito permite
chamar atenção para os diferentes processos que atuam na produção da
subordinação de indivíduos e grupos, jogando luz ao fenômeno denominado
de interseccionalidade. Sob o racismo patriarcal heteronormativo, processos
de subordinação, violência e inferiorização das pessoas negras adquire
ferramentas que atingem de forma específica todas as que se situam em
posições femininas dentro do espectro das identidades de gênero
(WENERCK; IRACI, 2016, p. 11)

O racismo não pode ser restringido a uma mera continuação da escravidão, pois constitui
um desdobramento das relações raciais de dominação após a abolição. Entretanto, os lugares
sociais das mulheres negras na sociedade escravocrata são cotidianamente reatualizados e
materializados na pobreza, desemprego, emprego informal, morte materna, barreiras de acesso
à saúde, insegurança alimentar, hipersexualização, marginalização das esferas políticas,
controle da sexualidade e, ainda imagens de controle.
Gonzalez (1982b) e Davis (2016)60 revisitaram esse lugar social, um lugar subordinado,
obviamente, mas principalmente marcado por uma profunda resistência. Essa história permite,

60
Mulher, raça e classe de Angela Davis foi publicado originalmente em 1981, porém lançado em português
apenas em 2016. Lelia Gonzalez e Angela Davis desenvolveram um pensamento negro sobre a mulher na
sociedade racista, bem como reflexões sobre a mulher negras na escravidão na mesma década. Ambas foram
protagonistas de uma construção que visava a emancipação do povo negro, em especial, da mulher negra.
134

por um lado desestabilizar categorias caras para o feminismo como divisão sexual do trabalho,
mulher e experiência (BAIRROS, 1995), e por outro, possibilita compreender os contextos de
opressão das mulheres negras engendrados pelo racismo.
As mulheres negras tiveram uma centralidade no período escravocrata que ultrapassa a
exploração das suas existências através do trabalho compulsório. Elas foram protagonistas no
processo de sobrevivência do seu povo (GONZALEZb, 1982; DAVIS, 2016). A população
negra na escravidão era objeto e propriedade, como já largamente compreendido, a condição
humana era inexistente. Coisificado, o povo escravizado não tinha gênero, ou para utilizar as
palavras de Davis (2016, p. 17), “já que as mulheres eram vistas, não menos que os homens,
como unidades de trabalho lucrativas, para os proprietários de escravos elas poderiam ser
desprovidas de gênero”. Ou seja, as mulheres negras escravizadas trabalhavam no eito tanto
quanto os homens. O trabalho pesado nas lavouras também era atribuição das mulheres, que
eram enviadas desde crianças, e mesmo grávidas e recém paridas não eram retiradas dele. Essa
realidade também foi constatada por Gonzalez (1982b). As mulheres negras trabalhavam de sol
a sol, eram subalimentadas e não incomum recorriam ao suicídio, infanticídio e aborto para que
suas crianças não tivessem como destino a escravidão.
Entretanto, a sua condição de mulher impunha-se mesmo que, de modo geral, fosse
desconsiderada. É o que Davis (2016, p. 19) designa como uma postura dos senhores regida
pela conveniência em relação as escravas: “quando era lucrativo explorá-las como se fossem
homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas, quando podiam ser exploradas, punidas
e reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua
condição de fêmea”. A violência sexual era um castigo recorrente destinado as mulheres negras.
Além dos açoites e mutilações, também sofridos pelos homens escravizados, as mulheres negras
eram estupradas, condicionando seu lugar específico de mulher (lida como fêmea) no regime
escravista.
Segundo Davis (2016), após o fim do tráfico internacional de mão-de-obra escrava, a
capacidade reprodutiva da mulher negra passou a ser valorada como meio para perpetuar a
população escravizada. As mulheres negras que tinha a capacidade biológica de gerar uma prole
numerosa eram valiosas. Mas isso não as colocava no ensejo do ideário da maternidade, essas
escravas eram vistas como uma trabalhadora e não gozavam de numa condição especial.

A exaltação ideológica da maternidade — tão popular no século XIX — não


se estendia às escravas. Na verdade, aos olhos dos seus proprietários, elas não

Aproximá-las temporalmente diz respeito a um compromisso político de corporificar um debate negro que
estava em pleno vapor nas Américas nos anos de 1980.
135

eram realmente mães; eram apenas instrumentos que garantiam a ampliação


da força de trabalho escrava. Elas eram “reprodutoras” – animais cujo valor
monetário podia ser calculado com precisão a partir da sua capacidade de se
multiplicar (DAVIS, 2016, p. 19).
De acordo com Gonzalez (1982b; 1983), uma outra função destinada às mulheres negras
era a mucama. A mucama era responsável pelo trabalho doméstico da casa grande, incluindo a
criação das crianças. Essa função específica cria a figura da mãe preta que Gonzalez (1983) vai
designar como uma colher de chá do racismo, pois aparentemente é construída como uma
metáfora da dedicação e do cuidado, ao passo também que era resistência ao regime escravista,
uma resistência passiva, pois consistia em passar os valores da população negra para as crianças
brancas. A mucama também representava a função de prestadora de serviços sexuais; ela era o
objeto com o qual os filhos e parentes dos senhores brancos iniciavam-se sexualmente. A
política sexual brasileira escravista consistia na violação das mulheres negras de forma
indelével, ao passo que os estupros ocorriam, as mulheres escravas eram categorizadas como
promíscuas, permissivas e reduzidas ao estatuto de fêmeas animais.
A miscigenação brasileira é fruto da violência colonial contra as mulheres negras
(CARNEIRO, 2003). O estupro foi o meio utilizado pelo qual a miscigenação tornou-se
possível e diferentemente da versão romanceada proposta por Freyre (2003) fazia parte de uma
realidade excruciante vivenciada pelas mulheres negras, pela qual terminavam de retirar toda a
sua dignidade humana. O pensamento do cruzamento interrracial harmônico, bem como a ideia
da mucama como permissiva e promíscua, estão presentes na construção da mulata brasileira e
em todos os elementos que lhe dão significado: carnaval, samba, produto de exportação e
símbolo da democracia racial brasileira.
Entretanto, além dessas funções atribuídas às mulheres negras no regime escravista,
havia uma que lhe era própria e lhe dotava da humanidade devida: a resistência. Davis (2016)
e Gonzalez (1982b) explanam que a história das mulheres negras escravas é, antes de mais nada,
uma história de resistência. Seja qual fosse a categoria de escrava à qual estava submetida, à
mulher negra (trabalhadora do eito e mucama ou reprodutora), “cabia-lhe a tarefa de doação de
força moral para o seu homem, seus filhos ou seus irmãos de cativeiro” (GONZALEZ, 1982b,
p. 92). As mulheres, estadunidenses e brasileiras, enfrentaram a escravidão em todos os
momentos: incentivaram e protagonizaram lutas e revoltas, lideraram fugas, construíram
quilombos, lutaram capoeira, cometeram suicídios contra o regime, elaboraram uma rede de
espionagem dentro da casa grande, envenenaram seus senhores, apressaram as conspirações de
escravos, aprenderam a ler e a escrever de forma clandestina, mataram os próprios filhos para
livrá-los da escravidão, foram ‘insolentes’, participaram da luta armada; e, formaram famílias
136

negras, como forma de dar assistência ao seus filhos e companheiros, bem como criar um
espaço de resistência para a comunidade negra sobreviver à escravidão (DAVIS, 2016;
GONZALEZ, 1982b). “A consciência que tinham de sua capacidade ilimitada para o trabalho
pesado pode ter dado a elas a confiança em sua habilidade para lutar por si mesmas, sua família,
seu povo” (DAVIS, 2016, p. 24). Essas mulheres negras, ainda nostermos da autora, lançam as
bases para uma nova condição de mulher.
O racismo moderno, enquanto discurso e doutrina, é criado após o processo de abolição
e a partir da igualdade política e formal (GUIMARÃES, 2008). Devido às consequências
políticas do racismo científico (vide holocausto e sistemas formais de discriminação racial)61,
após a Segunda Guerra Mundial o ocidente inaugurou uma agenda anti-racialista, que em
muitas vezes foi confundida com anti-racismo (GUIMARÃES, 1995). Esse programa consistia
numa lógica universal que negava a existência de diferenças raciais entre os seres humanos,
enfatizava o estatuto formal de cidadania em detrimento da igualdade prática entre os homens,
de acordo com Guimarães (1995).
Esse discurso alimentou as elites brancas brasileiras, que no início do século XX
estavam em busca da construção de uma identidade nacional que, aproveitando o ensejo da
queda do conceito biológico de raça e a ascensão da concepção preconceito de cor que relegava
as discriminações raciais ao plano comportamental, contrapôs-se aos regimes raciais
estadunidense e sul-africano, construindo para si e para o mundo a imagem de paraíso racial.
O mito da democracia racial edificado nas primeiras décadas do século XX, bem como
o projeto de embranquecimento ainda dirige as práticas políticas, sociais e econômicas no
Brasil. Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, publicada em 1922, é considerada um marco
no pensamento social brasileiro. A obra oferece uma narrativa ideológica nas relações sociais
no Brasil escravocrata, a partir das dinâmicas dos engenhos de açúcar pernambucanos; uma
sociologia despretensiosa acerca da vida cotidiana. A obra consiste em uma etnografia
funcionalista que se propunha a descrever e explicar um contexto sociocultural novo. Decerto,
é uma obra genial, ideológica, porém escrita em um tom literário, rapidamente se entranhou no
pensamento social brasileiro, exceto nas escolas de direito, nas quais o pensamento racialista
persistia (GUIMARÃES, 1995). Freyre (2003) constrói um discurso sobre a formação do
Brasil, na qual, o povo brasileiro é fruto das melhores qualidades das três raças que aqui
habitavam, elaborando uma sociedade composta por mestiços vivendo harmonicamente.

61
Guimarães (2008) aponta que foi construída primeiro uma justificativa em termos teológicos e não em termos
científicos para escravidão.
137

Dos inúmeros problemas da obra de Freyre (2003), destaco a romantização das


violências sexuais cometidas contra as mulheres negras escravizadas. A miscigenação foi
elaborada como fruto do “contato íntimo natural” entre os portugueses e as mulheres negras e
indígenas. A violência colonial contra as mulheres negras escravas não é coisa alguma que se
possa romantizar, mas sim “uma arma de dominação, uma arma de repressão, cujo objetivo
oculto era aniquilar o desejo das escravas de resistir e, nesse processo, desmoralizar seus
companheiros” (DAVIS, 2016, p. 36).
A partir desse cenário, de acordo com Guimarães (1999), a classe é posta no centro do
debate. É essa categoria apenas que definirá as oportunidades de vida de uma pessoa. Esse
pensamento foi difundido pós-Freyre por um leque de autores, incluindo Donald Pierson
(GUIMARÃES, 1999). Tal autor afirmou que o Brasil seria uma sociedade multirracial de
classes; as barreiras existentes não se devem às origens étnico raciais, mas são decorrentes da
ordem econômica cultural. Esse ideário anti-racialista é, portanto, uma política de negação do
racismo como fenômeno social. Teóricos marxistas como Florestan Fernandes e Caio Padro
Júnior e a teórica Heleieth Saffioti, contemporâneos desse processo, consideravam a questão
racial relevante, mas subordinada às questões de classe. Uma tendência que ainda persiste.
Segundo Gonzalez (1982a), o mito da democracia racial será incorporado
veementemente pela ditadura brasileira. Falar de discriminação racial era considerado
contravenção pelo Estado Ditatorial, através da Lei de Segurança Nacional. O chamado milagre
econômico brasileiro, fruto da tríplice aliança entre Estado militar, multinacionais e
empresariado nacional, gerou o empobrecimento das massas, e como as massas eram (e são)
compostas em sua maioria por negros e negras, ficou cada vez mais explícito a exclusão social
desta população. O avanço do agronegócio no campo potencializou o êxodo rural das massas
negras; nas cidades, este contingente populacional ocupou progressivamente postos de trabalho
precarizados na construção civil e principalmente no setor de serviços. A servidão, pois,
reatualizava-se no Brasil. A tensão entre o ideário anti-racista e a vida concreta das pessoas
tornou-se insuportável (GUIMARÃES, 1999).
Esse contexto político, social e econômico colocou em suspeita o mito de ascensão do
homem negro, nos termos de Carneiro (1995), bem como da incorporação de mestiços pelo
status de grupo dominantes, tal qual o pensamento de embraquecimento social brasileiro
preconizava. As massas negras empobrecidas eram compostas por pretos e mulatos. Os poucos
negros que ascenderam individualmente não compartilhavam do poder real com os homens
brancos. Como nos diz Carneiro (1995), a exaltação dessa ascensão servia apenas para
alimentar o mito da democracia social. Ainda de acordo com a autora, a ascensão dos homens
138

negros brasileiros é vazia politicamente, pois, não expressa conquistas para a sua comunidade
racial.
Assim, em meados dos anos 1970, o Movimento Negro Unificado retoma a categoria
raça no seu sentido político como forma de denunciar a clivagem racial vivida no Brasil
(GUIMARÃES, 1995; GONZALEZ, 1982a). Para Guimarães (1995), a categoria de raça foi
compreendida como “construtos sociais, formas de identidade baseadas numa ideia biológica
errônea, mas eficaz socialmente para construir, manter e reproduzir privilégios e diferenças”
(GUIMARÃES, 1995, p. 153). A partir dessa retomada do conceito social de raça, as
desigualdades apresentam um componente racial que não pode ser restringido à classe,
tampouco a categoria objetiva da cor de pele (GUIMARÃES, 1999).
Apesar da reformulação do debate racial no Brasil, o racismo está longe de ser superado,
sobretudo em sua imbricação intrínseca com o patriarcado. O racismo brasileiro patriarcal
cavou um não-lugar para as mulheres negras em diversas esferas sociais, inclusive nos
movimentos sociais: invisibilizadas pela raça e classe, as mulheres negras esbarravam no
racismo do movimento feminista e no sexismo do movimento negro centrado nas experiências
masculinas. Ao nomear e datar a luta das mulheres e de formar pretensiosa universalizar as
experiências de seus próprios grupos sociais e raciais, o feminismo hegemônico deixou à
margem um contingente enorme de mulheres, de lutas, estratégias, experiências e vidas
(WERNECK, 2005).
Dessa forma as mulheres negras brasileiras (JESUS, 2014; BAIRROS, 1995,
GONZALEZ, 1982a; 1982b; WERNECK, 2005; 2013; 2016; CARNEIRO, 1995; 2003; 2011;
2019) postularam críticas contumazes a ambos movimentos que ao mesmo tempo que
invisibilizavam as contribuições das mulheres negras na sociedade brasileira,
descredibilizavam as práticas político-teóricas das mulheres negras.
A consciência de que a identidade de gênero não se desdobra naturalmente em
solidariedade racial intragênero conduziu as mulheres negras a enfrentar, no
interior do próprio movimento feminista, as contradições e as desigualdades
que o racismo e a discriminação racial produzem entre as mulheres,
particularmente entre negras e brancas no Brasil. O mesmo se pode dizer em
relação à solidariedade de gênero intragrupo racial que conduziu as mulheres
negras a exigirem que a dimensão de gênero se instituísse como elemento
estrutura (CARNEIRO, 2003, p. 120)

Acusadas de falta de solidariedade racial de um lado e de ‘criadoras de caso’ e agressivas


por outro, as mulheres negras arquitetaram estratégias políticas próprias para a enfrentar a
asfixia social (CARNEIRO, 2019) que o racismo patriarcal as submetia. Um momento
emblemático desse processo foi a presença massiva de mulheres negras na III Conferência
139

contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, conhecida como


Conferência de Durban no ano de 2001. Carneiro (2019) argumenta que as conquistas políticas
das mulheres negras na conferência inauguraram um novo momento no relacionamento entre
mulheres brancas e negras no Brasil.
Ao longo dos anos 2000, o debate racial no Brasil, bem como sobre os direitos humanos
da população negra, implicou na forma como raça e racismo são compreendidos no país. O
debate sobre a Lei de Cotas, o Estatuto da Igualdade Racial, a criação da Secretária de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003, e demais políticas afirmativas, mesmo
que ambíguas, já que o Estado busca corrigir as desigualdades raciais que ele mesmo cria
(CARNEIRO, 2011), descredibilizou, mesmo que de modo tímido, a premissa de que no Brasil
há uma democracia racial. A denúncia das mulheres negras em uma conferência internacional
é notável, haja vista que anos antes a ONU empenhou-se, através do Projeto Unesco,62 para
provar que no Brasil não havia racismo, apenas preconceito de cor aliado às questões de classe.
Assim, as mulheres negras brasileiras elaboraram a tese de que a realidade brasileira é
conformada pelo colonialismo, racismo, sexismo e pobreza, imbricados em um sistema de
opressão que oprime as mulheres negras de forma específica, perpetrando contra elas a
violência sexual colonial e seus desdobramentos, bem como estereótipos (imagens de controle)
que impedem a ascensão das mulheres negras e relegam-nas sistematicamente a um lugar de
animalização. Nesse sentido, era salutar modificar as bases do feminismo brasileiro para que as
diferenças entre as mulheres fossem reconhecidas. Ao negar sistematicamente os lugares

62
No final da década de 1940 e na década de 1950, logo após a Segunda Guerra Mundial e a criação da ONU em
1948, essa dedicou-se a criar uma contra-narrativa global ao nazismo. Imbuída desse propósito, a ONU financiou
uma série de intelectuais brasileiros e enviou outros estrangeiros ao Brasil em busca de uma sociedade com
baixos conflitos étnico/raciais. Participaram desse projeto intelectuais como Florestan Fernandes, Oracy
Nogueira, Guerreiro Ramos, Arthur Ramos e estrangeiros como Charles Wagley e Alfred Métraux, entre outros.
O Brasil foi escolhido devido a estudos anteriores que apontavam o país como harmônico socialmente. O
pensamento social brasileiro, após os estudos de Donald Pierson (1930/1940), privilegiou a categoria cor nos
seus estudos. A incorporação dessa categoria objetiva variava entre considerar a cor um critério de identidade
de classe juntamente ao status, e considerar o preconceito de cor como uma reação das elites à integração tardia
dos negros à sociedade de classes. O primeiro caminho afirmava que no Brasil ocorria um processo de
embranquecimento social a partir da elevação econômica de mestiços, bem como a assimilação de estilos
comportamentais dos grupos dominantes e, o segundo, apesar de avaliar a sociedade brasileira composto por
hierarquias entre grupos, esses não eram codificados a partir da raça, mas sim da cor (GUIMARÃES, 1999).
Esse pensamento continha, segundo Guimarães (1999), uma série de equívocos: a elaboração de que raça
inexiste no Brasil, apenas há diferenças de cor, o que poderia ser constatado a partir da aparência física dos
sujeitos e não com base na sua origem racial; a suspeita de que a discriminação por raça ou por cor não poderia
ocorrer no Brasil, por que nos faltaria critérios claros de classificação, bem como uma homogeneidade de
sujeitos (mestiços) compondo o território nacional, como se a própria categoria de cor fosse possível fora de um
sistema de representações raciais; a pressuposição de que mulatos poderiam ascender ao status de brancos; e ,
que se há discriminação racial no Brasil, ela seria apenas resquício de uma ordem escravocrata em extinção.
Esse conjunto de elementos, segundo o autor, articulados ao insistente anti-racialismo dará corpo ao que
chamamos de democracia racial.
140

sociais distintos das mulheres negras, o feminismo brasileiro alimentou o mito da democracia
brasileira e contribuiu para o abismo social entre as mulheres.
A violência sexual colonial, conforme Carneiro (2003), constitui as hierarquias de
gênero e raça, o que possibilita a erotização das desigualdades entre homens e mulheres, bem
como a romantização da violência sexual. O mito da fragilidade feminina não encontra repouso
sobre a vida das mulheres negras, pois essas nunca foram consideradas frágeis, tampouco
rainhas do lar. As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que sempre
tiveram sua força de trabalho explorada, seja no modo de produção escravagista seja no
capitalismo moderno. As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que
sempre tiveram sua subjetividade arruinada por meio do padrão estético branco.
Assim, as mulheres negras impuseram ao feminismo brasileiro a urgência de
compreender que gênero, classe e raça estão necessariamente vinculados. Para a autora, o
feminismo tem um desafio teórico-político evidente em relação ao debate racial, pois a
liberação (e/ou empoderamento) das mulheres só é possível a partir da problematização de
todos os eixos de opressão. Ou seja, é necessário enegrecer o feminismo.
Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente,
demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a
questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas,
na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do
conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de
violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca;
introduzir a discussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com
maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na
formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos
mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que
mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras
(CARNEIRO, 2003, p. 3).

Não obstante, enegrecer o feminismo contribui para alicerçarmos a nossa história em


outros pilares. Inspirada em Collins (2019) e Gonzalez (1982b), argumento que o feminismo
negro é tecido também por mulheres anônimas e mulheres não acadêmicas que escreveram
sobre suas histórias. Jesus (2014) em Diário de uma favelada63 oferece um lúcido esquema de
análise para compreensão da subordinação das mulheres negras e as opressões interseccionais
que atravessam suas vidas. A pobreza é o pano de fundo sob o qual ela tece as tramas de uma
cotidianidade atravessada por classe e raça. Jesus (2014) analisou a fome — a Amarela,
designando que uma pessoa quando atingia essa cor era porque estava transcendendo o estágio

63
O livro foi lançado em 1960.
141

do suportável. A condição das mulheres e mães pretas faveladas não era interpretada por Jesus
(2014) como descolada de uma estrutura de dominação.
Até que enfim parou de chover. As nuvens deslizam-se para o poente. Apenas
o frio nos fustiga. E várias pessoas da favela não tem agasalhos. Quando uns
tem sapatos, não tem palitol. E eu fico condoída vendo as crianças pisar na
lama [...] percebi que chegaram novas pessoas para a favela. Estão
maltrapilhas e as faces desnutridas. Improvisaram um barracão. Condoí-me de
ver tantas agruras reservadas aos proletários. Fitei a nova companheira de
infortúnio. Ela olhava a favela, suas lamas e suas crianças paupérrimas. Foi o
olhar mais triste que já presenciei. Talvez ela não mais tenha ilusão. Entregou
sua vida aos cuidados da vida ... Há de existir alguém que lendo o que eu
escrevo dirá ... isto é mentira! Mas, as misérias são reais.... O que eu revolto é
contra a ganancia dos homens que espremem uns aos outros como se espreme
uma laranja (JESUS, 1963, p. 41).

Em toda a obra, Jesus (2014) articula as condições de vida das mulheres negras às
estruturas políticas.
Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa
incluir-se na política para melhorar as nossas condições de vida pedindo o
nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este
grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo
com olhos semi-cerrados. Com orgulho fere a nossa sensibilidade (JESUS,
2014, p. 38)

Não se trata de um mero retrato da miséria que acomete as mulheres negras brasileiras,
mas de uma proposta analítica às múltiplas opressões que desenham a vida destas mulheres,
situando a fome como um problema político, questionando profundamente os pressupostos da
meritocracia brasileira. Apesar da vida exasperante imposta a ela, e demais mulheres negras
periféricas, pelo racismo patriarcal, Jesus (2014) escreve sobre a sua realidade para resistir e
resiste à miséria no cotidiano. Sua obra revela que ao contrário dos esforços intelectuais, em
sua maioria brancos, que compuseram o Projeto Unesco na década de 1950, as questões que
afligiam o Brasil não eram de classe, mas sim de classe e raça.
A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E
nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu.
A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde
eu moro (JESUS, 2014, p. 160).

O projeto eugênico erguido no país nas primeiras décadas do século XX visou espremer
a população negra, recentemente liberta, nos piores espaços urbanos; nenhuma política
compensatória foi ofertada, prisões e manicômios foram construídos para reter a massa negra
indesejada e a fome refletiu uma estratégia de aniquilar a parcela que não encarcerada. A
despeito das tensões que decorreram dos resultados das pesquisas do Projeto Unesco, o legado
142

consistiu em consolidar o mito da democracia brasileira, conferindo unicamente à pobreza a


responsabilidades pelas desigualdades sociais no país.
Assim, para Gonzalez (1982a, p. 94), o racismo é “uma construção ideológica cujas
práticas se caracterizam nos diferentes processos de discriminação racial. Um discurso de
exclusão, interpretado e reinterpretado de acordo com os interesses de quem dele se beneficia”.
A importância da categoria raça impõe-se a partir da necessidade de denunciarmos o mito da
democracia racial e as tentativas de embranquecimento da população negra brasileira. Resgatar
nossas origens, língua, costumes e culturas diz respeito a valorar um povo historicamente
massacrado pelo escravismo colonial. Negar a categoria raça significa negar a construção
discursiva dos sujeitos negros, bem como potencializar o racismo brasileiro, com a sua aversão
aos conflitos e diferenças, aquele racismo arraigado nas instituições, relações sociais e
movimentos.
143

5 AS TRAMAS SOBRE ABORTO NO SERTÃO: O CENÁRIO DA ILEGALIDADE

O cenário do aborto no sertão traduz-se em uma trama complexa e ambivalente que


envolve silenciamento e publicização, humilhações e apoio, situando a prática do aborto como
racialmente diferenciada, frequente, tolerada e condenada ao mesmo tempo.
Neste capítulo, discutiremos os elementos que compõem o cenário ilegal do aborto no
sertão. Denominamos por aborto ilegal aquele provocado fora dos casos previstos em lei.
Dividimos o capítulo em cinco partes. Na primeira parte, analisamos como a humilhação,
narrada por muitas mulheres, desdobra-se nas histórias sobre aborto ilegal. Neste caminho
elaboramos dois eixos de análise: o concepto morto, as denúncias e peregrinações como
elementos da condenação moral destas mulheres e a exigência de uma performance da vítima
perfeita que tem como objetivo atenuar os efeitos dessa condenação. A segunda parte refere-se
à relação entre a ausência do anonimato e a prática do aborto no sertão. O terceiro momento
corresponde às discussões entre a solidão das mulheres negras nos percursos abortivos. O quarto
item diz respeito aos silêncios e silenciamentos que circunscrevem essas narrativas, destacando
as histórias sobre aborto das mulheres dos sítios. Na última parte, analisamos as ambivalências
do acolhimento das mulheres que recorreram ao aborto legal.

5.1 O cenário ilegal: “Ela foi muito humilhada, muito mesmo”

O cenário ilegal do aborto no Brasil traduz-se em índices alarmantes que configuram o


aborto com um problema de saúde pública, como dito anteriormente. Mais ainda, a ilegalidade
do aborto expressa como funciona os tentáculos do racismo patriarcal brasileiro, haja visto que
a criminalização impacta de forma contundente a vida reprodutiva das mulheres negras, jovens
e pobres. A frequência da prática do aborto entre mulheres negras já é resultado das condições
de vida moldadas pelo racismo, pobreza e desigualdades de gênero.
No sertão, o cenário do aborto ilegal é sustentado pelas opressões interseccionais de
raça, geração, classe e território. Mulheres jovens, negras, pobres e das zonas rurais apresentam
vivências diferenciadas. A centralidade da família e a valorização exacerbada da maternidade
constroem um imaginário coletivo em que o aborto é condenado moralmente. As implicações
de tal condenação desdobram-se em peregrinação pelos serviços de saúde, tempo prolongado
para realizar o esvaziamento uterino nas mulheres, ameaças de denúncias, solidão, silêncios e
silenciamentos, em que os obstáculos ao anonimato impõem que as mulheres performem
144

desespero e arrependimento no momento que suas histórias são publicizadas ou que precisem
recorrer aos serviços de saúde para finalizar o aborto. Como se trata de uma sociedade de
interconhecimento (WANDERLEY, 2009) a proximidade das relações comunitárias possibilita
redes de apoio mais estruturadas, porém contraditórias devido ao aborto divergir das
moralidades compartilhadas naquela comunidade.
O atendimento nos serviços de saúde é conduzido pela moralidade hegemônica em
relação ao aborto, resultando em um acolhimento tecnicista, discriminatório e, por vezes,
violento. O acolhimento é ambivalente dentro e fora do hospital. Apoios, julgamentos,
discriminações e omissões norteiam o acolhimento das mulheres em situação de abortamento.
A proximidade das relações interpessoais no sertão proporciona uma atmosfera de ajuda mútua
entre as pessoas, as famílias e as localidades. Porém, nas práticas de aborto, a ausência do
anonimato publiciza as histórias de aborto, muitas vezes em forma de fofoca, dificultando o
acesso a um atendimento adequado.
Grande parte das atitudes discriminatórias é conduzida pelo estigma que recai na prática
de aborto (ADESSE et al., 2016; VILELA; MONTEIRO, 2015). Adesse et al. (2016)
identificou três grupos estigmatizados devido ao abortamento: as mulheres que abortam, os
profissionais que prestam atendimento ao abortamento e os apoiadores sejam eles os parceiros,
as amigas ou os que reivindicam a legalização do aborto. O estigma causa vergonha, medo e
silêncio. Muitas vezes por vergonha e conhecedora do estigma sobre quem aborta, as mulheres
retardam a ida aos serviços de saúde mesmo sentindo as complicações pós-abortamento. O
estigma contribui para a construção do aborto como um segredo. Poucas mulheres falam sobre
o aborto e isso reforça o aborto como exceção, como algo que desvia da norma e do padrão. O
medo causado pelo estigma não está vinculado à criminalização judicial, mas sim a julgamentos
morais. As mulheres muitas vezes não contam para as pessoas próximas não porque acham que
serão denunciadas, mas porque serão julgadas e as pessoas passarão a vê-las de modo diferente,
com restrições e discriminações. Nesse sentido, Vilela e Monteiro (2015) concluem que o
estigma opera como um instrumento que encobre as desigualdades sociais e de gênero, que
compromete a autonomia e a saúde sexual das mulheres.
Valesca, uma das jovens entrevistadas, utilizou com frequência a palavra humilhação
na narrativa da sua história e das histórias de suas amigas. Mesmo quando não verbalizou a
palavra, baixava os olhos demonstrando que a vivência do aborto foi acompanhada de
humilhação. Quando indagada por que teria sido humilhação, Valesca responde contanto a
experiência de uma amiga que acompanhou:
145

Eu tenho uma amiga que fez o aborto e tipo ficou mal mesmo, teve que ir às
pressas pro pronto de socorro né? E tipo chegando lá, ela tava... eu lembro
como fosse hoje, ela desmaiou ainda. Foi levada às pressas mesmo pro
hospital e quando chegou lá ela tava se vendo com muita dor mesmo, ela tava
sangrando bastante, eu nunca vi tanto sangue em minha vida como eu vi dessa
minha amiga, E tipo ela foi muito humilhada pelas enfermeiras, pelo médico
que tava lá que tinha que fazer a curetagem e ela tava sentindo muita dor, a
menina chega tava pálida e eles tirando sarro mesmo entendeu? Tipo, não
deixar.... teve que ficar sentada, não botaram ela nem na maca, ficou sentada
esperando atendimento e elas nem ai, passavam de um lado pro outro. Tinha
eu e outra minha amiga com ela, e a gente chamando as enfermeiras pra pelo
menos dar um remédio pra ela. E tipo, humilharam mesmo ela. E ficaram
falando assim, tipo, 'ah você tá ai sentindo essas dores, tá sangrando desse
jeito porque você quis isso, porque aborto é crime e se ficar ainda zoando a
gente ainda liga pra polícia, viu?'. Tipo, teve essa minha amiga que ela
precisou e foi super humilhada.

O estigma do aborto parte de uma concepção moral que tem a humilhação como
objetivo, pois trata-se de um rebaixamento moral como forma de castigo ou como “dar uma
lição” (ALENCAR; LA TAILLE, 2007). Na narrativa de Valesca é nítido que a demora no
atendimento e ausência de acolhimento adequado não eram resultado do sucateamento do
serviço de saúde, mas de uma atitude moral dos(as) profissionais. Outras mulheres definiram
suas experiências não como violentas, mas como humilhantes. A humilhação por realizar o
aborto sozinha, pelo abandono, pelo segredo, pelas contradições entre suas próprias convicções
morais, pelo silêncio, medo de morrer e vergonha.
Assim, nesta parte do capítulo discutiremos de que forma o aborto é vivenciado pelas
mulheres e retratado no sertão pernambucano.

5.1.1 Concepto morto, peregrinação e denúncias: as mulheres condenadas no sertão.

Devido às intensas discussões sobre aborto no Brasil, muitas destas mediadas pelos
equipamentos de saúde e realizadas entre esses profissionais, causaram uma mudança na atitude
frente ao aborto provocado. Cenas de mulheres em abortamento sangrando em corredores de
hospitais já não são mais frequentes. Isso significa que ocorre um cuidado técnico nos serviços
de saúde (PITILIN et al., 2016; STREFLING, 2015), ou seja, um atendimento tecnicista,
distante e pontual que visa a recuperação das mulheres que estão em situação grave de
abortamento. Porém o cenário de acolhimento encontrado nesses serviços é mediado pelo
estigma do aborto.
O estigma em relação à prática contamina todos os grupos envolvidos. No sertão, o
estigma do aborto tem como desdobramentos o concepto morto, as peregrinações e as
146

denúncias. Tais situações são acentuadas pelas inadequações físicas da estrutura do serviço,
pela escassez de serviços que atendam as mulheres e pela falta de capacitação dos profissionais.
Esses três elementos agravam a situação, mas não são os causadores das discriminações e
julgamentos que ocorrem em relação às mulheres que realizaram o aborto.
Tentativas de aborto que resultam em abortos malsucedidos podem causar hemorragias
ou outras complicações, como apontado por Adesse et al. (2015). Dessa forma, cerca de metade
das mulheres recorrem aos serviços de saúde devido a complicações ou para finalizar o
procedimento (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017). No sertão, as mulheres procuram o
hospital com frequência considerável, tendo em vista o número de habitantes da cidade. Há três
cenários de procura pelo serviço de saúde: a procura por abortamento espontâneo, as mulheres
que provocaram o aborto, mas dissimulam e as mulheres que também provocaram e contaram
para os profissionais que realizaram o aborto. Independentemente do cenário, a peregrinação e
a ‘volta para casa’ com o concepto morto e sem informação é frequente. Já as denúncias são
destinadas àquelas que publicizaram que o aborto tinha sido provocado.
O pano de fundo dessas práticas, em maior ou menor medida, está relacionado aos
valores compartilhados, dentro e fora do hospital, de que o aborto é um atentado contra a vida.
Alguns profissionais fazem a separação entre o início da gestação e o avanço da gestação. Se o
feto já está “mais grandinho” configura-se como vida. Antes disso, o aborto é tolerado.
Entretanto, dificilmente encontrei profissionais que defendessem64 o aborto como um direito da
mulher. O estigma e a tensão entre vida da mulher e vida do feto estiveram presentes em todo
trabalho de campo, nos atendimentos, nas conversas com os profissionais e nas conversas com
as mulheres na espera obstétrica65.
Um diálogo com Luciana, técnica de enfermagem, é emblemático do estigma que
recobre o aborto enquanto prática social.
Continuamos o debate e Luciana começa a contar uma história de uma mulher
que chegou no hospital e pediu para ela arrumar remédio para abortar.
Segundo Luciana, ela até ajoelhou. “E eu disse que de jeito nenhum! Mulher,
ela fez a ultrassom, o bebê tava vivo e mesmo assim ela queria matar o bebê.
Só porque não era do marido dela e ela disse pra mim ‘não é do meu marido,
me ajuda pelo amor de deus, me arruma”, me relata Luciana. “E depois eu
encontrei com ela no corredor do hospital, ela tava com macaquinho melado

64
Conheci duas estagiárias que defendiam o aborto abertamente, uma de psicologia e outra de enfermagem. Além
de Cecilia, assistente social interlocutora chave, que apoia a legalização do aborto. Valentina sempre me pareceu
aberta ao diálogo, mas em seu discurso aparece sempre a tensão entre vida do feto e o direito das mulheres.
65
Eu passava horas na espera obstétrica conversando com as mulheres sobre diversos assuntos e sempre corria
naturalmente. Quando eu tocava no assunto em relação ao aborto, as mulheres respondiam “essas coisas não” e
assumiam uma postura de distanciamento ou diziam que há abortos em São Elesbão de Assum, mas continuam
“eu não tenho coragem não, de tirar um filho meu” ou “mas Deus me livre matar uma vida” e contornam o
assunto da conversa.
147

de sangue e eu disse ‘mas mulher, tu conseguiu mesmo?!’ ‘É consegui’, isso


nas palavras de Luciana. “Mas ela disse isso na tua cara mesmo, desse jeito?”,
perguntei surpresa. “Foi... ‘consegui’. É muita frieza, ela matou a sangue frio.
Porque eu vejo aqui várias mulheres chegando, é assim, mata uma, duas,
três, quatro gestações. É quase um assassinato em série”, me responde
Luciana. Isso foi muito impactante porque faz muito tempo que eu não escuto
palavras tão duras em relação ao aborto (Diário de campo, 03/08/2018).

A compreensão do aborto como assassinato foi corroborada por outras profissionais


durante o trabalho de campo. Nesse mesmo dia da conversa com Luciana, outras duas técnicas
endossaram: “Não importa, desde a fecundação é vida, é vida, não importa se não tem cérebro,
é uma vida”. Em uma outra ocasião, uma das enfermeiras recusou-se a realizar um
procedimento de aborto legal, pois “era um coração batendo, era uma vida”. Inclusive
Valentina me disse em uma das nossas conversas: “Era grandinho, tinha mãozinha, tudo. Era
uma vida já”. Assim, a percepção da vida desde a fecundação influencia parte do imaginário
social e, portanto, manifesta-se também entre os profissionais de saúde no hospital em São
Elesbão de Assum, assumindo inclusive formas distorcidas, como a comparação entre aborto e
assassinato em série.
O estigma resultante da tensão entre vida do feto e vida das mulheres expressa-se em
uma série de maus tratos e discriminações. As práticas discriminatórias materializam-se em
julgamento moral, tratamento não digno com ameaça de denúncia à polícia, rispidez na forma
de tratar, internação junto às puérperas, longa espera para o procedimento de esvaziamento
uterino, procedimentos realizados sem explicação, violação de privacidade e confidencialidade,
excesso de ‘toques’ e outras manipulações vaginais, baixo controle e manejo da dor com
fármacos, fato também apontado por Madeiro e Rufino (2017). Nesta pesquisa, as mulheres
submetidas a essa grave situação de desrespeito aos direitos humanos eram mulheres
majoritariamente entre 20 a 24 anos, solteiras, negras (82%), sendo que pretas representaram
53,8% da amostra e com baixa escolaridade, algo similar ao analisado na presente pesquisa.
Neste item destaco três formas por meio das quais a humilhação é expressa: o concepto
morto, a peregrinação e as ameaças de denúncias. Escolhemos essas situações devido a
naturalidade com que ocorrem e por representarem as estratégias de condenação das mulheres
que precisaram recorrer ao abortamento. São frutos não apenas da falta de condições estruturais,
mas sobretudo de uma cultura institucional baseada no estigma do aborto que se materializa nas
atitudes discriminatórias dos profissionais de saúde de forma complexa e contraditória.
Por concepto morto compreendo a prática de fazer as mulheres retornarem para casa ou
procurarem outro serviço, mesmo com o conhecimento que o feto ou embrião já está morto.
Essa prática ocorre com uma frequência significativa no hospital de São Elesbão de Assum. As
148

histórias sobre o concepto morto foram narradas por mulheres negras, em sua maioria, sendo
as histórias pertencentes ao hospital em questão, mas também a outros serviços de saúde, o que
aponta para uma prática generalizada em relação ao aborto: enviar as mulheres de volta para a
casa com o concepto morto sem as devidas informações.
Destaco duas histórias que abordam a interseccionalidade entre raça, classe e território.
Josineide é uma mulher negra, de 34 anos, moradora da zona rural que conversei na enfermaria
enquanto ela se recuperava da curetagem. A história de Josineide aponta para um aborto
provocado que ela soube contornar. De forma muito tranquila me conta que não sabe como o
aborto ocorreu, pois não sentiu dores. Apenas decidiu pagar por uma ultrassonografia particular
que mostrou o feto morto. Procurou o hospital que a mandou de volta para casa devido à falta
de obstetra. Josineide só regressou dois dias depois ao hospital, pois não tinha transporte
disponível. O sítio onde reside é perto da sede do município, mas como a estrada estava “ruim”,
demorava algumas horas e há dificuldade de transporte. Góes (2019) apontou as dificuldades
com o transporte como uma das barreiras para o acesso à saúde entre mulheres negras em
abortamento. A situação de injustiça social que acomete a vida das mulheres negras estrutura
também os contextos reprodutivos, o que agrava episódios como o abortamento expondo ainda
mais a integridade física das mulheres.
Janaína é negra, na casa dos 30 anos e da zona rural. Procurou o hospital para fazer a
curetagem, pois já sabia que o feto estava morto. “O bebê tá morto na barriga, fez a ultrassom
e o coração já tava lento. No sábado fez outro e viu que tava morto”, me conta a acompanhante
quando eu pergunto qual a demanda delas na espera obstétrica. A acompanhante explica que
ela não está com dor, mas já rodou muito.
Realmente ela não estava chorando e não aparentava dor. Entretanto, é uma
segunda feira, dia 18 de março, e os batimentos já estavam baixos na quarta
dia 13 de março e no sábado dia 16 de março, o feto já estava morto. Dois dias
com um feto morto sem conseguir atendimen. Os homens saem da sala.
Pergunto para onde vão. “Vamo ter que ir no outro médico”, me responde.
(Diário de campo, 11/03/2019).

O fato é que Janaína é da Paraíba, estado vizinho à Pernambuco, mas como são da zona
rural é mais rápido e prático ir à São Elesbão de Assum do que para outra cidade do próprio
estado. Devido a questões de territorialidade, Janaína não conseguiu atendimento no hospital e
precisou continuar a peregrinação.
A peregrinação, por sua vez, ocorre para mulher negras e brancas, apesar de estudos
apontarem que mulheres negras precisam peregrinar mais. Porém, devido a configuração
específica dos serviços socioassistenciais no sertão, a peregrinação está relacionada com as
149

ameaças de abortamento e com a ausência da ultrassonografia. Durante os oito meses de


trabalho de campo, o setor de ultrassonografia não funcionou adequadamente. Algumas vezes
houve falta de médico e em outras a máquina estava com algum defeito. O procedimento padrão
com as situações de abortamento era acolher as mulheres e checar se o colo do útero estava
aberto ou fechado e encaminhar para realizar a ultrassonografia em outro lugar, até mesmo em
particular. O internanmento só acontecia nos casos mais avançados ou quando a mulher já
procurava o serviço para a ultrassonografia indicando a falência do feto ou embrião.
A peregrinação em relação ao abortamento não pode ser encarada apenas como um
problema resultante do sucateamento dos serviços de saúde público. A peregrinação imposta à
Inês, uma jovem que procurou o serviço para interromper a gestação decorrente de estupro,
demonstra que a peregrinação sofrida pelas mulheres em abortamento é resultado do estigma e
da condenação moral que circunda a questão. Inês foi submetida a idas e vindas para o hospital
e precisou iniciar o procedimento do aborto em Recife e no meio do processo voltou para São
Elesbão de Assum para finalizar o aborto com curetagem. A sua história será analisada no
próximo item. Assim, ao sucateamento dos serviços soma-se o estigma do aborto conformando
um contexto adverso que impõe às mulheres a peregrinação por uma rede limitada de serviços
de saúde como uma forma de castigo por necessitarem recorrer ao aborto ou por sofrerem um
aborto espontâneo.
As ameaças de denúncia figuraram desde o início do trabalho de campo. No dia que
busquei a carta de anuência assinada pelo diretor do hospital, decidi conversar com a assistente
social de plantão, Helena, como já mencionado anteriormente. Um mês depois, em agosto de
2018, Cecilia me contou com detalhes essa história.
Uma menina de 19 anos chegou no hospital do Sertão com o namorado e duas
amigas dele com a demanda de sangramento e disse que provocou um aborto.
Ela dizia com muita firmeza que não queria a criança (termo utilizado por
Cecília) e expulsou o feto dentro da sala de triagem. “Mas mulher assim (e
mede nas mãos) muito grande. E ela contou tudo pra todo mundo”, relata
Cecília, “a psicóloga ficou chamando ela de assassina no corredor, foi um
furdunço”. “A psicóloga conhecia, era amiga do delegado e começou a dizer
que ia denunciar. Para piorar tudo no meio da confusão...porque eu fiquei lá
refletindo com as pessoas se elas deveriam acusar uma mulher de assassinato,
a gente não sabe da vida da mulher, a gente não sabe os contextos, o que ela
tá passando, olhavam para mim como quem dizia: a louca (risos)...pra piorar
tudo um comissário da polícia civil chegou e a psicóloga chamou e contou
tudo pra ele, tudo. Não sei como ficou a questão do inquérito. Ainda teve os
médicos que queriam usar os médicos como prova (coloca a mão na cabeça
como quem mostra desespero), porque tem as semanas né? 20 semanas...”,
relata Cecília se referindo à quando o produto do abortamento (embrião ou
feto) é encaminhado para o lixo hospitalar ou quando vai para o necrotério.
“22 semanas, mas o que pesa mais são as 500g”, respondo. - “E a medida né?,
tinha 499g, uma coisa assim, umas 20 semanas, mas tinha 29cm de
150

cumprimento e 22cm de diâmetro de crânio (perímetro cerebral). Ele (o


médico) me fez entrar no bloco cirúrgico e me mostrou as medidas. Mas eu
disse que eles não poderiam denunciar por causa do sigilo. Ai ele disse “então
não é crime. Como é crime e a gente não pode fazer nada?’. Eles ficaram
indignados com isso. Essa discussão foi no staff. E eu fui falar com o diretor
sobre isso. Ele me escuta. Eu disse que uma equipe não pode chamar uma
mulher de assassina no corredor, que o hospital poderia sofrer um processo.
Ele pediu para eu enviar os nomes das pessoas da equipe que acusaram a
mulher pelo WhatsApp, mas não deu em nada. Depois que ela acordou da
anestesia eu fui lá conversar com ela, que nunca mais ela diga para ninguém
que fez um aborto. (Diário de campo, 16/08/2018)

Outra situação de tentativa de denúncia me foi relatada por Valentina:


Chego à sala do serviço social e Valentina é a assistente social do dia. Entro e
aproveito para perguntar sobre o caso de abortamento que ela havia
mencionado antes. Uma adolescente de uma cidade próxima chegou de
madrugada no hospital, cerca de duas semanas atrás, quase expulsando o feto.
De acordo com Valentina, ela teve que ir direto para o bloco cirúrgico. O
médico de plantão era W. Ele chamou Valentina para mostrar o feto e
perguntou a ela se não era uma vida: “tá vendo? Vai dizer que isso não é uma
vida?”. Ela me conta tranquila que ele queria chamar a polícia. Depois de
algum tempo de conversa e convencimento ele decidiu não chamar. Pergunto
a ela como souberam que o aborto foi provocado. “Ela contou. Contou tudo.
Usou comprimido 12h antes. Contou para a mãe que ela e o namorado
planejaram tudo. Disseram que eram muito jovens”, responde. Ela me conta
que conversou com a mãe e a família, que houve todo ao atendimento.
Pergunto se tinha 500g. “Tinha menos. Era grandinho, tinha mãozinha, tudo.
Era uma vida já”, me responde. Para minha surpresa. “A barriga dela já devia
tá grande”, comento. “Estava sim. Ela já estava usando roupa folgadinha para
esconder da mãe. Ela é de uma cidade aqui perto. É conhecida lá. Gente que
parece ter dinheiro, vieram aqui para abafar o caso”, me conta. (Diário de
campo, 14/11/2018).
As tentativas de denúncias são justificadas pela tensão de pano de fundo da condenação
moral das mulheres: a vida do feto frente ao direito das mulheres. Podem também ser mediadas
por diferentes profissionais. No caso do hospital em questão, as denúncias foram
protagonizadas principalmente por médicos, mas também pela psicóloga, fato incomum, já que
a equipe psicossocial em geral atua na direção de não expor ainda mais as mulheres que
recorreram ao aborto. As ameaças de denúncias representam a passagem da condenação moral
para a condenação jurídica daquela mulher. Em geral, as tentativas ocorrem em complicações
de abortos tardios. As duas situações relatadas referem-se a uma jovem negra e outra branca,
mas ocorreram outras situações de denúncia. Uma delas será analisada no ponto 4.1.4 devido
às suas particularidades. As outras não pude obter informações raciais, pois não presenciei
nenhuma situação dessa natureza. Foram histórias contadas dentro do hospital. As tentativas de
denúncias ocorreram também em relação a mulheres muito jovens ou adolescentes,
151

demonstrando que geração é um eixo de opressão junto à classe e raça que aprofunda as
vulnerabilidades em relação ao aborto.
Ainda que nesta pesquisa não possamos relacionar raça e as ameaças de denúncias de
modo contundente, a pesquisa de Madeiro e Rufino (2017) corrobora com as nossas reflexões.
De acordo com os autores, as ameaças de denúncias à polícia foram comuns, porém mais
encontradas entre aquelas internadas por complicações mais graves. Após o uso de sonda e
misoprostol, uma das mulheres precisou fazer uma histerectomia devido a infecção e confessou
a equipe que induziu o aborto. Uma mulher perdeu todo um órgão devido ao aborto inseguro e
desde a admissão no hospital foi ameaçada, além dos julgamentos durante os 15 dias de
internação. Ressaltamos que 82% das mulheres participantes do estudo eram negras.
A insuficiência da condenação moral para os/as profissionais de saúde é traduzida nas
ameaças de denúncias. “Então não é crime, como é crime e a gente não pode fazer nada?”. A
indagação do médico que realizou a curetagem na jovem que relatou o aborto provocado
expressa esse incômodo, mas também a vontade de que a punição moral a que as mulheres já
estão submetidas transforme-se em uma punição judicial. A mesma sede de justiça não é
encontrada nas situações de estupro. Um homem transsexual foi estuprado em São Elesbão em
setembro de 2018 e os médicos do plantão relutaram em fazer o exame de corpo delito. Nenhum
debate sobre o crime de estupro foi instaurado. Nesse sentido, o que incomoda não é uma
suposta injustiça, mas a garantia da autonomia reprodutiva das mulheres.

5.1.2 “Mulher, ela nem chorava, elas são frias”: performando a ‘vítima perfeita’.

O pano de fundo da condenação moral das mulheres, como mencionado no item


anterior, refere-se à tensão entre a vida do feto e o direito da mulher. Essa mesma tensão
desdobra-se na imprescindibilidade de performar a vítima perfeita. Diniz et al (2014) analisa a
construção da mulher como vítima nos serviços de referência de aborto legal a partir do regime
compartilhado de suspeição à narrativa da mulher. No caso do aborto legal, a mulher é
construída como vítima da violência ou do “acaso” — anencefalia e risco de morte para a
gestante, como veremos nos próximos itens. Entretanto, mesmo em situações nas quais a mulher
não é vítima de estupro, ou do acaso a urgência de performar a vítima também se impõe.
Diferentemente do aborto legal, a capacidade das mulheres em encenarem o papel da
vítima em situações de ilegalidade não está relacionado à garantia de um direito. Ou seja, é
necessária uma história convincente em relação à violência sofrida, haja vista que o direito é
mediado por tribunal moral que julga a veracidade da palavra da mulher. No caso do aborto
152

provocado, o papel da vítima se assenta na necessidade de atenuar os desdobramentos da


condenação moral. É preciso encenar o desespero, o arrependimento, os fatores de força maior
que levaram as mulheres àquela decisão.
Nesse processo as mulheres são desprovidas de qualquer autonomia; são apartadas da
concepção de sujeitos com capacidade ética de decidir e transformam-se em pessoas que agiram
por irracionalidade. É esperado das mulheres em situação de abortamento ilegal o sofrimento,
o desalento e o remorso. Assim, as mulheres são reduzidas ao trauma que elas manifestam na
situação. Esse fenômeno é relevante pois está vinculado tanto ao tipo de acolhimento que as
mulheres recebem nos serviços de saúde, mas também pela rede de apoio informal (amigas,
familiares, parceiro), quanto ao debate coletivo sobre o aborto naquela comunidade.
No caso de São Elesbão de Assum é compartilhado, de certa forma, que o aborto é uma
prática banalizada. Embora haja um silenciamento das mulheres, principalmente, das mulheres
dos sítios, a prática do aborto é frequente e praticada por mulheres “ruins”, que “matam um,
dois, três”, mulheres que não têm responsabilidade por seus atos, mulheres que são “umas
vagabundinhas”. Como já mencionado anteriormente, entre as próprias mulheres o aborto é
condenado, pois é preciso performar o que é socialmente aceito. “Deus me livre matar um filho
meu”, a frase que escuto em grande parte das vezes que provoco o debate do aborto entre as
mulheres no hospital. Como o aborto é feito ‘sem justificativas plausíveis’, a ojeriza por tal
prática social é acentuada.
Os desconfortos sobre a performance das mulheres dentro e fora do hospital me foram
contados com frequência. Luciana, a técnica de enfermagem que se referiu às mulheres como
assassinas em série, sempre retornava a esse ponto. “É muita frieza, ela matou a sangue frio.
Porque eu vejo aqui várias mulheres chegando, é assim, mata uma, duas, três, quatro gestações.
É quase um assassinato em série”, me conta. Luciana se refere às mulheres como frias e
assassinas até na ocasião que me contou a história sobre a sua sogra tentar matar o marido dela.
“A minha sogra tentou matar o meu marido, mulher! E não deu certo também. Meu marido tá
aí livre, leve e solto”, fala rindo Luciana.
Não é apenas Luciana que compartilha dessa concepção. Na espera obstétrica as
mulheres referiam-se assim à prática do aborto cometida por outras mulheres. “É muita
coragem”; “requer muito sangue frio”; “são umas desalmadas”, frases que eram seguidas de um
constrangimento silencioso e um redirecionamento do assunto. Pamela, uma das estagiárias em
psicologia do hospital, ao me contar sobre duas amigas que recorrem ao aborto não poupou
julgamentos. “O que me dá mais raiva é que as duas continuaram com o homem que elas não
153

queriam ter o filho junto. Porque eu sou contra, você pode ser a favor, mas eu sou contra”, me
conta Pamela.
A encenação da vítima perfeita ainda é um dos fatores decisivos para evitar denúncias.
Em caso mencionado no item anterior, uma das ameaças de denúncias narrada por Cecília,
sobre a jovem de 19 anos que contou no serviço que provocou o aborto, sendo denunciada pela
psicóloga, a performance da jovem figurou como justificativa para a denúncia: “ela não parecia
estar sofrendo”.
Depois que ela acordou da anestesia eu fui lá conversar com ela, conta Cecilia,
que nunca mais ela diga pra ninguém que fez um aborto. Depois eu e a
psicóloga fomos atender o namorado e as amigas, e a psicóloga disse: ‘é difícil
manter a relação depois disso’, eu interrompi e disse que ela precisava de
apoio, era de apoio, porque ele tá sofrendo, mas ela também, do jeito dela’.
Porque o que ficou foi que ela era fria e ele era a vítima porque ele se
acabava de chorar. A menina tinha acabado de passar em direito na
faculdade de Patos”, relata Cecilia. Pergunto se ela disse com o que fez o
aborto. Ela me relata que ela “tomou remédio”. (Diário de campo,
16/08/2018).

Kilomba (2019), ao analisar como uma pessoa negra é reduzida meramente à ‘raça’,
discute o processo de negação do direito à subjetividade suscitado pelo racismo. Esse processo
é designado pela autora como identificação absoluta ou essencialismo, no qual a pessoa é
cristalizada triplamente em um corpo, uma raça e uma história e precisa representar esse tripé
nos espaços que ocupa. Ou seja, a pessoa passa por um processo de dessubjetivação em que
perde a sua individualidade e precisa representar uma coletividade. Não há aqui apologia ao
individualismo. Vivemos em sociedade e precisamos semear nosso senso de coletividade,
óbvio. Porém, ao negar a individualidade da população negra, negamos também sua pluralidade
e seus diferentes processos. Como o racismo determina as regras sociais, essas pessoas sem
subjetividade representam o mesmo elemento: uma raça desvalorizada que precisam defender
a todo momento. Tal fato impõe às pessoas negras uma performance: a performance da
negritude. “Nos tornamos atrizes e atores excelentes das nossas competências: nada medíocre,
nada ordinário, nada mediano, mas sim excelente” (KILOMBA, 2019, p 177).
No caso do aborto, ocorre o processo de identificação absoluta entre a mulher e a prática
do aborto, condenada moralmente. O processo é agravado pelo racismo, haja vista que as
mulheres negras estão mais vinculadas à criminalidade e à lascividade do que as mulheres
brancas. Nesse sentido, as mulheres são reduzidas às experiências do aborto. Deixam de ser
mães, tias, primas, irmãs, cidadãs e sujeitas de direitos e passam a representar um delito. Para
154

moverem-se nesse processo elas precisam representar um trauma que se manifesta na encenação
da vítima perfeita.
De acordo com Dios (2018, p. 68), “o trauma é não só uma descrição clínica de um
estado psicológico, mas também uma expressão política de um estado de mundo”. O trauma é
uma construção histórica e movediça que pode ser disputada por diferentes moralidades. O
regime discriminatório em relação às mulheres que recorreram ao aborto é complexo,
funcionando como um processo de desconfiança multifacetado. Primeiro essencializa-se as
mulheres na prática de aborto, esvaziando-as de subjetividade. Depois, imputa às mulheres
estereótipos negativos: assassinas, irresponsáveis, mentirosas. A ruptura com esse conjunto de
estereótipos que legitimam práticas discriminatórias, inclusive as ameaças de denúncias, é a
manifestação de um comportamento específico: a performance da vítima. Comportamentos
outros que destoam dessa conduta esperada pelas profissionais de saúde, mas também pelas
pessoas próximas às mulheres, são considerados não adequados, frios e irresponsáveis,
portanto, tornando-as passíveis de serem responsabilizadas pelo seu ato. Todo esse processo é
avaliado de forma subjetiva pelas pessoas que figuram nas histórias das mulheres.
A encenação da vítima é útil também para que os profissionais julguem se o aborto foi
espontâneo ou provocado. Pamela, estagiária de psicologia do hospital, me contou que havia
muitos abortos e que muitos são provocados. Perguntei como ela sabe se é provocado ou
espontâneo. “Pela história, a mulher fica triste, tem um motivo porque perdeu, as que abortam
não, diz que perdeu e pronto”, explica ela. Marcela, enfermeira obstétrica do hospital, me
relatou o mesmo: “Dá pra perceber pela história que não bate, pela tristeza e quando faz os
exames tem resquício de medicamento”. “Quando é provocado geralmente não vem com a
família, nem o marido. Apesar que aqui tem gestante que chega com a vizinha”, completa
Marcela. É fácil identificar esse crivo impreciso no cotidiano do hospital. As mulheres que
recorrem ao aborto provocado precisam encenar o desespero, a irracionalidade, os
arrependimentos, pois, são consideradas mulheres frias, que “diz que perdeu e pronto” ou que
“matam a sangre frio”. O comportamento que desvia da vítima perfeita legitima as práticas
discriminatórias e as ameaças. Quando a mulher representa o comportamento adequado a
compreensão da prática pode ser mais amena. Destaco uma conversa que tive com Marcela
que apresentava sempre uma postura humanizada, mas ambivalente em relação ao aborto.
Recebi uma menina que tinha 19, 20 anos, já tinha um filho e estava bem triste,
claramente deprimida, mas me disse que usou misoprostol. Mas quando
examinei o feto estava vivo. Tentei sensibilizar dizendo que se acontecesse
algo com ela quem iria ficar com seu filho. Mas não sei se ela saiu de lá e foi
tentar de novo”. A enfermeira conta com uma feição de lamento. “A gente fica
dividida entre trazer a vida e se deparar com situações como essa”, continua
155

Marcela, “eu tento não julgar. A gente não sabe o desespero, se ela está sendo
forçada ou outra coisa. O desespero que leva a isso (Diário de campo,
14/03/2019).

A conversa com Marcela é emblemática da identificação absoluta que guia a postura das
pessoas, principalmente das profissionais de saúde que lidam com a questão do aborto. A
mulher é reduzida ao delito e dela espera-se o desespero e tristeza. Caso contrário, são julgadas
como mulheres frias, merecedoras das práticas discriminatórias. Outro fator que agrava a
questão é o interesse ou desinteresse pelo concepto. Um dia, Luciana me abordou no corredor
do hospital e perguntou: “Olha, Nathália e isso de desprezo do feto?”. Para entender melhor,
perguntei: “Você quer dizer descarte?”. Ela me explica: “Porque uma menina expulsou ontem
à noite, estava todo formadinho, mas a família nem aí”. Respondo que compreendo o
questionamento dela, mas tem uma norma e o envio para o IML diz respeito apenas aos fetos
com mais de 500g. Ela me responde que esse tinha cerca de quase 400g. Explico que nesse caso
não tem o que fazer. A família não é obrigada a receber, pois é lixo hospitalar. “Que pena,
infelizmente é assim”, me responde desolada. Todavia, não foi apenas Luciana que se reportou
ao concepto dessa forma. Helena, assistente social do hospital, em um outro momento me
explicou como funciona a declaração de óbito fetal.
Quando a técnica se afasta pergunto sobre a ficha para Helena. Ela explica que
depois 20 semanas ou o feto pesando 500g ou com 25cm de cumprimento, é
necessário fazer a declaração de óbito fetal. Antes disso não. O produto do
abortamento é destino para o lixo hospitalar. Mas quando algumas “mães
pedem”, usando os termos de Helena se faz a declaração de óbito antes desses
critérios. “Mas a maioria não pede, falta de informação, né? Porque é uma
parte da gente. Mas não pedem. Aí é descarte”, comenta. É preciso pontuar
que quando se solicita a declaração de óbito fetal não recebe apenas o papel,
mas também o feto para dar destino a ele. Os fetos que estão dentro dos
critérios de óbito fetal são entregues para a familiar enterrar. Helena se afasta
para atender os usuários. Agradeço pelas explicações. (Diário de campo,
19/09/2018).
As mulheres relataram uma mistura de sentimentos em relação a gravidez. Não
necessariamente era uma gravidez indesejada, mas não poderia ser levada adiante (SANTOS;
BRITO, 2014; BERALDO; BIRCHAL; MAYORGA, 2017). Nesse momento, expectativas,
projeções, desejos, valores em relação à maternidade, preocupações hierarquizam-se para dar
forma ao processo decisório (HEILBORN et al., 2012; SANTOS; BRITO, 2014). Algumas
mulheres relataram que ficaram felizes pela gravidez, mas triste pois sabiam que precisariam
fazer um aborto, ao mesmo tempo que se responsabilizam inteiramente pela falha contraceptiva
(SANTOS; BRITO, 2014), fato que é endossado pelos profissionais quando elas necessitam
recorrer aos serviços de saúde (MCCALLUM; MENEZES; REIS, 2016).
156

Diferentemente do que paira no imaginário social, as mulheres não realizam um aborto


porque rechaçam a maternidade ou porque são mulheres ruins e sem sentimentos. As mulheres
optam pelo aborto por uma miríade de motivações: a rejeição da gravidez em si, a falta de apoio
do companheiro, dificuldade de acesso ao serviço de planejamento familiar ou à contracepção
de emergência, os fatores socioeconômicos (desemprego ou medo de perder o emprego), o
medo da reação dos pais ou de decepcioná-lo,; a violência doméstica (sexual, física, psicológica
e coerção sexual perpetrada pelo companheiro e família), o estado marital, o desejo de não
abandonar os estudos, a noção de responsabilidade, a preocupação com o bem-estar dos filhos
em ser uma boa mãe, vergonha de engravidar fora do casamento (CASTRO, 2010; HEILBORN,
2012; SELL et al., 2015; HEILBORN; CABRAL; CORDEIRO, 2011; BERALDO; BIRCHAL;
MAYORGA, 2017). Dentre todos esses motivos, destaco que a relação com o parceiro é o
elemento mais estruturante da decisão para mulheres negras e pobres. A situação conjugal é um
aspecto primordial no processo decisório do aborto, como apontam também outras pesquisas
(SANTOS; BRITO, 2014; SANTOS; SILVEIRA, 2017; FERRARI; PERES; NASCIMENTO,
2018; GUIMARÃES; ALMEIDA; CARNEIRO, 2018).
No processo de formação da opinião coletiva sobre aborto os motivos das mulheres, suas
vidas, as falhas do estado nas políticas contraceptivas, a importância do reconhecimento das
mulheres como sujeitos autônomos é desprezada. É exigido das mulheres tristeza e desespero
por uma gestação que sequer se desenvolveu. Ainda, a experiência de perda e sofrimento precisa
ser diversificada. Muitas mulheres que recorrem ao aborto tomam essa decisão com sofrimento,
culpa e tristeza, manifestada pelas mulheres diferentemente. Entretanto, a expectativa de um
certo tipo de comportamento norteia o acolhimento.

5.2 “Você viu que saiu no Portal do Sertão?”: a falta que faz o anonimato.

De acordo com DaMatta (1986), a casa e a rua funcionam com duas partes de uma
mesma moeda. São dois polos que se complementam. O que falta na rua, sobra em casa, alerta
o autor. Na casa somos em primeira pessoa, temos uma função e participamos como indivíduo
daquela engrenagem, possuímos pessoalidade. A rua representa o espaço do cruel, da
brutalidade, da falta de afeto e da impessoalidade. Na rua somos anônimos. Apesar da
simplicidade e romantização do autor acerca dos espaços públicos e privados, a ‘rua’ quando
vinculada aos espaços urbanos, das capitais e metrópoles representa o lugar do anonimato, da
impessoalidade dos contatos e da despersonalização das vivências (CARMO, 2009).
157

As cidades do sertão de médio ou pequeno porte apresentam outra dinâmica, pois


operam como sociedades do interconhecimento, como já mencionado anteriormente. O
anonimato é dissolvido e as relações familiares são mais extensas, alcançando as instituições
públicas. Fabiola, uma jovem que acompanhava a prima do marido no hospital, me contou que
o cunhado do marido é ex-prefeito de uma cidade próximo e “ajeitou a cesárea” para a
adolescente de 15 anos que ela acompanhava. Histórias como essas eram frequentes. Por vezes
eram intermediadas por relações familiares ou por relações de compadrio66, e pelas próprias
relações de amizade. “Você precisa fazer amigos, conhecer as pessoas certas”, me relatou uma
mulher com quem conversei rapidamente na espera obstétrica. Contou-me que não enfrentou a
burocracia para conseguir a esterilização e, melhor, conseguiu na hora do parto porque tinha
amizade com o “médico certo”. Uma outra me contou que conseguiu através de Bento. “Quem
é Bento?”. “Bento é enfermeiro e ele é vereador!”.
A despeito da íntima relação entre política local e vida reprodutiva das mulheres no
sertão, aspecto importante no cotidiano da cidade, o fato é que as mulheres conseguiam burlar
as instituições a proximidade das redes interpessoais. A relações sociais tecidas nos contextos
rurais são caracterizadas pela aproximação, diferentemente das relações impessoais que
marcam as grandes cidades. As relações de interconhecimento ultrapassam a relações entre a
família e a vizinhança, pois dizem respeito a uma pessoalidade que se estende a comunidade
local como um todo. Estas relações geram sentimento de pertencimentos mútuos, desenvolvem
relações significativas de ajuda, mas limitam a ação individual. De acordo com Scott et al.
(2016), a rede de interconhecimento e a rede institucional interagem, criando configurações
singulares ao acesso de bens e serviços.
As redes de apoio são marcadas pela dissolução do anonimato. Nitidamente as pessoas
se conhecem no hospital e fora dele. Elas possuem um lugar naquela comunidade e são
conhecidas em primeira pessoa. Cotidianamente observei situações em que enquanto
conversava com uma usuária na espera do hospital, o diálogo era interrompido por um/a
profissional de saúde que conhecia a mulher, mesmo que ela residisse em uma cidade vizinha.
O caso de Inês, uma jovem que procurou o hospital por abortamento legal, é emblemático. A
falta de anonimato fez com que Inês não conseguisse iniciar o procedimento no hospital do
sertão e procurar auxílio em Recife. Esse caso será discutido na próxima parte.

66
Relações de compadrio é um mecanismo que estende as relações de parentesco por meio do ritual católico de
batismo. Joelma Santos da Silva (2016) aponta que as relações de compadrio foram utilizadas como estratégia
de resistência entre escravos no sertão do Piaui.
158

A falta de anonimato e os seus efeitos costuraram a história de Taísa, uma jovem de 17


anos, negra de tom mais claro e moradora da periferia de São Elesbão de Assum. Ela,
acompanhada da mãe e do namorado, procurou o hospital devido ao processo de abortamento.
As versões dessa história são muitas, mas, de fato, a mãe de Taísa, fez um vídeo da jovem com
dor e sangramento nos bancos da espera obstétrica e acionou a polícia devido à demora no
atendimento. No vídeo, a mãe grava Taísa sentada na espera obstétrica do hospital com uma
poça de sangue embaixo da cadeira. A jovem aparenta sentir muita dor e a mãe está gritando
no vídeo porque nenhum profissional se encaminhou para atendê-la. “Olha aqui a situação
dessa criança, vê se isso é justo, vê se você vê algum doutor, alguém da enfermagem, essas
caralha, elas entram e saí daí como vocês estão vendo. Estou gravando que é para não precisar
de testemunha. A testemunha sou eu mesma. Vocês estão vendo alguma enfermeira, algum
médico? ”, são palavras da mãe no vídeo, enquanto a jovem sente muita dor e chora. Há algumas
pessoas olhando enquanto ela filma.
No mesmo dia o Portal do Sertão, o principal site de notícias de São Elesbão de Assum,
veiculou a seguinte matéria:
Menor de 17 anos aborta em São Elesbão de Assum e mãe termina em
delegacia
Uma mãe teve que prestar esclarecimentos na Delegacia de Polícia de São
Elesbão de Assum, na tarde desse sábado, após ser comprovada que a filha,
de 17 anos, teria praticado aborto. A ocorrência foi registrada porque a
genitora levou a menor, que estava com fortes dores, para hospital. Após
preencher a ficha, mãe e filha esperaram o atendimento por quase duas horas,
e durante a consulta, o médico plantonista constatou que havia ocorrido o
aborto. (PORTAL DO SERTÃO, 2019, s.p.)

O médico alegou que encontrou vestígios de medicamento abortivo e a mãe foi indiciada
pelo crime de aborto. “Não sei o que houve, se nesse dia estava sem médico, o obstetra H vem
no sábado de 15 em 15 dias. Mas na curetagem descobriram vestígios de medicamente, então
o aborto foi provocado. Já descobriram tudo, que foi a mãe que comprou, que foi a mãe que
colocou, ela se complicou”, me contou o médico ortopedista. As estagiárias de psicologia,
Pamela, e a de enfermagem também afirmaram que tinha sido um aborto provocado. “A mãe e
a menina são moradoras de Rancho Feliz (periferia de São Elesbão de Assum). A menina
chegou acompanhada da mãe e do marido e que já estava com quatro meses de gestação e
expulsou o feto na triagem”, relata Pamela.
Dois dias depois, a mãe de Taísa deu entrevista sobre o ocorrido e acusou o hospital
pelo aborto. A mãe contou em entrevista que o atendimento demorou duas horas para acontecer
e a jovem sangrava no corredor. O médico só atendeu a jovem após a chegada da polícia no
159

hospital. Essa história foi publicizada ao ponto de a jovem receber comentários odiosos, de
acordo com a mãe:
As pessoas estão dizendo que minha menina perdeu o bebê porque quis, mas
isso não se faz. Ela não perdeu o menino porque quis, a ‘bichinha’ estava
sofrendo, se ela tivesse sido atendida rápido não teria abortado a criança. Foi
descuido de médico, quando chega no hospital, se não tiver cuidado morre,
porque ninguém atende os pacientes. As pessoas ficam dizendo que ela tomou
remédio para abortar, mas isso não existe. O pai da criança até passou mal no
hospital. Falaram para a menina ter morrido junto, nós somos seres humanos.

O hospital lançou uma nota afirmando que a jovem recebeu atendimento em tempo
hábil e que estava à disposição para maiores esclarecimentos, não se posicionando sobre o
aborto ter sido provocado ou espontâneo. O mais interessante dessa história é que ela
ultrapassou os muros do hospital. Várias pessoas que sabiam sobre a minha pesquisa, me
enviavam as matérias que saiam no Portal do Sertão, perguntavam minha opinião em diversos
espaços e sempre afirmavam que tinha sido provocado. Margareth, estudante de psicologia, me
abordou de forma mais incisiva, como conto no diário de campo:
Nesse mesmo dia à noite, fui convidada para ministrar uma atividade no curso
de serviço social, e uma estudante de psicologia que eu já tinha conversado
antes bate na porta. Margareth interrompe a atividade e me chama para contar
do caso. “Você soube a história da menina? Pode ser uma entrevista para
você”. Eu fico completamente desconcertada e apenas repito a história que
pode ser espontâneo. “Não, foi o espontâneo não. Foi a mãe! Ela comprou e
colocou na menina”, devolve Margareth. Minha única reação foi: “eita, mas
não sei o nome dela”. Ela diz que saiu no Portal do Sertão, eu digo que não,
ela insiste e diz que sim. Digo que vou averiguar, mas torcendo para que a
identidade da jovem não tenha saído em nenhuma das matérias. Margareth
completa dizendo que elas moram em Rancho Feliz. Agradeço e digo que vou
atrás (Diário de campo, 27/08/2018).

O desfecho da história aconteceu alguns meses depois na sala de atendimento


psicossocial após uma reunião de planejamento familiar. Antes disso todas as conversas sobre
o caso giraram em torno de que a jovem realmente provocou o aborto, a mãe ajudou e “quem
procura, acha”.
Eva olha para mim e pergunta: “Você está estudando o que mesmo? Que toda
vez eu esqueço”. Eu explico toda a pesquisa para ela. Nesse momento só
estamos nós três na sala, eu, Eva e Valentina. Mas não consigo terminar de
explicar. Somos interrompidas todo o tempo por várias pessoas e a conversa
desembocava em outra coisa. Eu tentava sempre voltar ao tema do aborto. Mas
alguém chegava e o assunto mudava. Quando consegui retornar, Helena entra
na sala. É o seu dia de folga, mas ela esqueceu algo. Mesmo com ela na sala
decido não parar. Quero ver se Eva tem algo a me dizer sobre ao assunto. Ela
fala do caso da jovem que foi parar no Portal do Sertão. “A mãe colocou o
remédio nela e veio colocar toda a culpa no hospital”, me conta Eva. Helena
que estava na sala procurando seu objeto se intromete: “Houve realmente uma
demora no atendimento. Não há como negar. Mas ela se complicou quando
falou na delegacia. Ela disse na delegacia que colocou o remédio na filha.
160

Disse que não sabia que era crime”, explica. Não sabia dessa parte da história.
“Ela não sabia?”, comenta Eva em um tom de deboche. Helena medeia de uma
maneira ética: “É. Ela se viu na situação com a filha de 16 anos grávida.
Complicado. Mas ela disse na delegacia que foi provocado. Maria da
delegacia quem me contou”, explica. “E foi ela quem chamou a polícia?”,
pergunto. Helena e Eva confirmam. (Diário de campo, 05/12/2019).

A investigação sobre o caso não seguiu adiante. Porém, a magnitude que essa história
tomou demonstra que a publicização em sociedades de interconhecimento ocupa uma outra
função: de criar versões diversas acerca dos fatos. O atendimento precário teve um espaço
secundário em toda a história. A questão principal girava em torno da figura da mãe. É esperado
socialmente que as mães condenem as filhas que recorreram ao aborto. O comportamento da
mãe de Taísa destoou desse papel. A resposta da comunidade moral foi a condenação pública
da adolescente.
O alto número de recusas dos convites para entrevistas apresentou-me um cenário de
intenso silenciamento, ao mesmo tempo de ampla publicização. Obtive cerca de 33 recusas,
porém tomei conhecimento de 33 histórias corporificadas em pessoas. Algumas inclusive
cheguei a conhecer, mas se negaram a falar. Dona Marta, uma senhora de cerca de 50 anos, já
havia feito cinco abortos, de acordo com as três diferentes pessoas que me contaram a sua
história. Entrei em contato com ela, confirmei o fato dela realmente ter feito alguns abortos,
mas ela desconversa todas as vezes que eu tentava marcar uma entrevista.
Assim, as histórias sobre aborto circulam. Parte significativa das pessoas têm uma
história para contar. Mas as mulheres que realizaram a prática não. Esse contar é sempre em
terceira pessoa; pessoas essas que têm nome e referência. “A irmã de Cleide, Nathália, ela já
fez um aborto, num foi, Cleide?”. “Foi! Pode ir lá em casa, Nathália, falar com ela”, respondeu
Cleide em uma conversa informal na praça da cidade. Porém, a irmã de Cleide nunca quis falar
sobre o assunto. Outras pessoas me conheceram, conversamos sobre a entrevista, negociamos
o que seria falado, omitido ou gravado, e como resultado obtive o silêncio. As mulheres
permitem que o aborto seja contado e esse fato demonstra que o aborto é uma prática frequente
entre as mulheres. Dona Marta fez cinco abortos. Suzana era lésbica, engravidou em uma
relação casual e fez um aborto. Márcia fez um aborto com ajuda do amigo gay que me contou
a história. Cássia engravidou de gêmeos, fez um aborto tardio e “quase morre porque o aborto
não deu certo e os bebês morreram com seis meses”. Uma outra jovem “usou 15 Cytotecs e o
bebê nasceu em pedaços”. Todas as histórias foram contadas a mim por terceiros.
161

5.3 “Ele não me retornava, ele sumiu”: as mulheres negras e a solidão

Como mencionado em capítulo anterior, o racismo patriarcal conformado pelas


opressões interseccionais arquiteta uma zona crítica para as mulheres negras. O encontro entre
racismo e patriarcado constrói um estereótipo da mulher negra que a relega a lugares de
subalternização, pobreza e erotização. Dentro do racismo brasileiro, a miscigenação ainda
concebe problemas em relação ao tom de pele. As mestiças brasileiras apresentam mais chances
de ascensão social, porém precárias na matriz de dominação brasileira. A figura da mulata
desponta como a representação hegemônica da mulher negra brasileira. Uma figura construída
socialmente (CORRÊA, 1996), categoria fixa que cristaliza as mulheres negras entre a
mucama/doméstica e a mulata do carnaval (GONZALEZ, 1983).
A representação social das mulheres negras é refletida na expressão brasileira “Branca
pra casar, mulata pra fornicar, negra pra trabalhar”, que traduz a objetificação das mulheres
negras. O impacto do estereótipo na vida das mulheres é a violência da desumanização. A
construção das mulheres negras como um “outro” preso em diversas representações negativas
tem como objetivo a dominação e a manutenção desse grupo populacional em lugares
subalternos, porém justificados e legitimados socialmente. Seja na pobreza, na prostituição, no
tráfico de mulheres, nas profissões desvalorizadas socialmente, seja no desafeto. A manutenção
das opressões de gênero e o controle da sexualidade das mulheres negras são garantidos pelos
estereótipos negativos que constroem a imagem da mulher negra como infantil, agressiva e com
uma sexualidade desenfreada.
Assim, não é de estranhar que as mulheres negras sejam aquelas que casam menos e
engravidam mais. A solidão da mulher negra e seu preterimento no mercado afetivo já foi
apontada por Souza (2008) e Pacheco (2013). Abandono, violência e desafeto são questões
apontadas por mulheres negras nas suas vivências afetivas. O campo do afeto é também uma
construção social permeada pelas estruturas de opressão, bem como os estereótipos negativos
advindos das opressões interseccional.
No que tange o aborto, pesquisas indicam que uma das diferenças raciais nas
experiências de aborto entre as mulheres é a abandono do parceiro durante o processo (PINTO,
2002; DIORGENES, 2014; 2016; 2019). Fato que foi corroborado na pesquisa em questão. Nos
contextos urbanos, há uma fragilidade da rede de apoio das mulheres negras de um modo geral.
Ou seja, há uma quantidade menor de pessoas figurando no processo, para além da ausência do
parceiro. No sertão, por ser uma sociedade de interconhecimento, as redes das mulheres negras
não são tão frágeis. Amigas próximas, comadres e mães figuram intensamente nos percursos
162

abortivos de mulheres negras e brancas. A exceção são as mulheres negras retintas e mais
velhas. Essas mulheres estão mais solitárias no ambiente hospitalar independente do
procedimento obstétrico. As mulheres negras de pele mais escrura adultas apresentam situações
em que estão frequentemente sem acompanhantes, seja nas situações de parto, esterilização ou
abortamento.
O que se destaca nas situações de abortamento no sertão em relação às diferenças raciais
é a brutalidade da violência as quais as mulheres negras são submetidas, seja nas situações de
parto (violência obstétrica), aborto (legal e ilegal) ou planejamento familiar. O aborto legal e o
planejamento familiar serão analisados nos próximos itens. Em relação ao aborto ilegal, as
mulheres negras recorrem a práticas mais insalubres e experienciam o abandono do parceiro.
Entretanto, as relações comunitárias costuradas pela falta do anonimato engendram redes de
apoio mais efetivas para jovens negras, mesmo em condições insalubres e com a ausência dos
parceiros, ou seja, mesmo com o abandono afetivo, as jovens negras dispõem de uma rede que
minimamente atende as condições básicas para a realização aborto.
Entre as jovens que entrevistei, a história de Camila destoa das histórias de Patrícia e
Valesca. Camila é uma jovem negra, vinda da zona rural de uma cidade vizinha à São Elesbão
de Assum para estudar. Valesca e Patrícia são jovens brancas, de classe média, que residem na
sede dos seus respectivos municípios. Essas últimas realizaram o aborto com o medicamento e
o parceiro figurou em suas redes de solidariedade. As três apresentaram desfechos complicados
em relação ao percurso abortivo. Valesca, no segundo aborto 67 que realizou, apresentou
complicações, pois o expulsivo ocorreu apenas alguns dias após o procedimento. Patrícia não
conseguiu concretizar, levou a gestação adiante e no momento da entrevista sua filha tinha
quatro anos.
Camila não conseguiu ter acesso ao medicamento conhecido como misoprostol 68 e
realizou o aborto tardiamente. A frequência de aborto tardios entre mulheres negras também é
apontado por Góes (2018). Uma amiga informou sobre uma clínica clandestina que funcionava
no fundo de um serviço de saúde particular em uma cidade a cerca de 90 quilômetros de São
Elesbão de Assum. As amigas de Camila contribuíram no pagamento do procedimento que na
época, no ano de 2013, custou 400 reais. O técnico de enfermagem que trabalhava na clínica
era um “conhecido” de Camila. “Quando chegamos lá na clínica, eu conhecia o irmão do

67
Valesca realizou dois abortos. A primeira gestação decorreu de um estupro, mas ela não conseguiu o atendimento
adequado e precisou recorrer à clandestinidade. Essa narrativa será analisa na segunda parte do capítulo. O
segundo aborto foi decorrente de uma situação conjugal delicada e Valesca optou pela interrupção.
68
O misoprostol por muito tempo foi comercializado com a marca Cytotec; como é ainda popularmente conhecido.
163

técnico de enfermagem que trabalhava lá e foi nosso contato”, me explica Camila. De acordo
com ela, a clínica era um lugar organizado e limpo.
Era uma clínica de atendimento geral. Só que tinha uma parte da clínica que
não era mais usada, mas que tinha mais... assim.... porque eu não sei como era
muito bem o planejamento deles lá. Mas era uma parte que não era acessada
pelas pessoas que vinham pro atendimento normal. Você tinha que entrar por
trás e era meio que numa baixinha assim, tipo no subsolo e tinha tudo, tinha
tudo. Super higienizado. Tinha maca, tinha mesa, tinha um escritoriozinho
(Camila, 26 anos, negra).

A despeito da clínica apresentar condições básicas de salubridade, o procedimento


realizado não condiz com as orientações seguras. Camila conta que um espectro foi usado para
abrir o colo do útero e o técnico de enfermagem usou um bisturi para cortar o cordão umbilical
do feto. “Vi ele pegando e ele me mostrou também... 'olha....' porque como eu tava super tensa
fiquei perguntando. Ele disse 'olhe, isso aqui é o que vai usar pra fazer o corte, num sei o quê,
aí ele fez o corte. Na hora que ele fez o corte eu já senti o sangue descer”, relata Camila. Ela
passou 15 com sangramento controlado e contínuo. Após duas semanas, Camila teve um
episódio hemorrágico, com muito sangue, “um grande susto”, de acordo com ela. Porém, não
precisou recorrer ao serviço de saúde.
Em todo esse percurso, o parceiro não figurou na rede de solidariedade. O rapaz tomou
conhecimento da gestação e depois desapareceu da cena, como conta Camila:
Que quando a gente descobriu no outro dia, no mesmo dia essa minha amiga
ligou pro cara. A gente tentou de toda forma entrar em contato com ele, ele
ficou marcando encontros, sabe, mas nunca dava certo num sei o quê e aí até
uns cinco dias depois do resultado do exame foi que ele veio, veio na minha
casa e eu falei 'olhe aconteceu isso e isso'...Eu disse 'eu sei que é você porque
não houve outro ... outro ato, outro caso, então eu sei que foi você, você
também sabe, você não é nenhum idiota, mas eu não quero ter'. E como ele é
muito conhecido, ele soubesse de remédio, de alguma coisa. e ai falei 'eu não
quero ter, já tentei tomar chá e não deu certo'. E depois disso, depois que eu
recebi o resultado, tentei tomar alguns chás, sentia cólicas muito fortes, mas
não ia. Ai ... é... quando conversei com ele, ele disse 'ah tá bom, tudo certo,
num sei o quê'. Sumiu do mapa. Não me apareceu mais. Ele tinha um escritório
em uma cidade aqui perto. Foi pra lá e pronto. Ele não me procurava e como
eu já tinha recorrido a ele nisso. Eu fui duas vezes. Outra vez eu fui na casa
dele e a mãe dele ficou super preocupada. Acho que ela já desconfiava de
alguma coisa e mesmo assim eu não disse. Então eu recorri essas duas vezes,
ele simplesmente sumiu. Ai eu fiquei na maior bad tentando de toda forma,
eu e as minhas amigas, foi bem parceria mesmo. Tentando de toda forma fazer,
conseguir uma enfermeira que fizesse um, porque você não pode fazer
preventivo quando se tá, quando se tá grávida, ai a gente tentou toda forma
alguém que fizesse um preventivo porque no preventivo podia ser que alguém
topasse fazer o aborto.

O impacto do abandono afetivo não representa somente a ausência do parceiro, mas


também o acesso aos métodos utilizados para concretizar o aborto de forma mais segura. No
164

segundo aborto de Valesca, o parceiro comprou o medicamento e a acompanhou durante o


processo. No caso de Patrícia, ela mesmo comprou o misoprostol, mas o parceiro acompanhou
todo o processo. Camila esperava a compra do medicamento pelo parceiro, haja vista que era
um rapaz conhecido na cidade. A saída de cena dele tornou o percurso do aborto mais sinuoso
e insalubre. Alguns meses depois contei a Marcela, enfermeira obstétrica do hospital, sobre o
procedimento com o corte de bisturi. “Provavelmente se colocou um objeto perfurante para
estourar a bolsa e provocar o aborto”, explica Marcela e afirma ser um procedimento invasivo
e inseguro.
A solidão das mulheres negras nas experiências de abortamento é resultado da pouca
afetividade na vida dessas mulheres (hooks, 2015). As mulheres negras são ensinadas a não
demonstrarem afeto, a serem fortes e dissimular as emoções. Condutas importantes para
sobreviver em contextos adversos, como nos lembra hooks (2015). Corpos objetificados,
subjetividades destituídas. As mulheres negras são aquelas que não podem pedir ajuda, pois
representam o esteio da comunidade. Para superar as imagens de controle negativas, elas
performam a ‘mulher negra superforte’, que encobre um sofrimento silencioso causado pelo
racismo (KILOMBA, 2019). De acordo com Pacheco (2013, p. 27), “falar de afetividade, de
escolhas, de solidão é colocar em xeque (desmontar) os sistemas de preferências que
prescindem a ideia de brasilidade, posto que as mulheres negras aparecem como corpos
sexuados e racializados, não afetivos, na construção da Nação”.
Ou seja, as emoções não traduzem estados puros psicológicos ou individuais. São
entrecortadas pelas relações sociais históricas de uma determinada sociedade (JAGGAR, 1997),
expressas através das escolhas dos indivíduos, mas também experenciadas em coletividade. De
acordo com Velho (1997), as classes médias e as classes populares apresentam códigos culturais
diferenciados através dos quais exprimem suas emoções. Como elas anunciam visões de mundo
(JAGGAR, 1997), também são tecidas pela raça e, portanto, pelo racismo que classifica os
sujeitos como mais ou menos merecedores de afetividade. Assim, “estar só” depende de como
essas relações sociais são processadas em contextos culturais específicos e de como esses
fatores são sentidos e percebidos pelos indivíduos que os vivenciam” (PACHECO, 2013).
Desse modo, quando analisamos a solidão que pesa nas experiências das mulheres
negras com o aborto, encontramos um mercado afetivo marcado pelo racismo que naturaliza as
mulheres negras no mercado do sexo, na erotização e no trabalho doméstico, pois a cultura do
afeto, do casamento e das uniões estáveis pertence às mulheres brancas (PACHECO, 2013).
Isso indica que as situações de aborto na vida das mulheres negras são decorrentes de um
emaranhado de injustiças sociais causado pelas situações de opressão. O sofrimento resultante
165

da própria situação de criminalidade do aborto é resultado do racismo, que priva as mulheres


negras, de modo mais frequente, de apoio afetivo e uma rede de ajuda mais eficaz.

5.4 “Nem o meu marido sabe”: o silêncio das mulheres rurais

Como a descoberta da prática do aborto impacta mulheres dos sítios? Esta indagação
me envolveu em todo o percurso do trabalho de campo após me deparar com as tensões em
torno do anonimato e publicização das histórias de aborto. Muitas mulheres dos sítios procuram
o hospital do sertão por abortamento incompleto. Não cabe especular se eram provocados ou
espontâneos. Posturas investigativas que buscam respostas na encenação da vítima dizem mais
sobre as moralidades dos sujeitos do que sobre a realidade da situação. O fato é que as mulheres
dos sítios constituíram um grupo mais difícil de abordar para conversar sobre aborto
especificamente.
Participei de diversas atividades junto às mulheres rurais; acompanhei as mulheres de
um sindicato rural em uma cidade vizinha a São Elesbão de Assum, contribuí na organização
do 8 de março de 2019 junto a elas, conversei com mulheres quilombolas e assentadas, e
procurei lideranças sindicais e dos movimentos de mulheres do campo. Muitas dessas mulheres
eu já conhecia do ativismo feminista e sabiam sobre a pesquisa em curso, mesmo assim o
assunto acerca do aborto era obstruído. A conversa rendia sobre qualquer tema, mas parava
quando eu mencionava a questão do aborto; as mulheres desconversavam, mudavam de assunto,
mostravam constrangimento. Diferente das mulheres da rua, ou seja, da sede do município, que
contavam histórias de aborto de diversas pessoas, as mulheres dos sítios apresentaram maiores
interdições para falar sobre aborto.
Das histórias contadas sobre as mulheres rurais, sobressaem os motivos, os métodos e
os porquês. Mas, sobretudo, nos conduz a silêncios e silenciamento. De acordo com Ferrari
(2011), silêncio e silenciamento são elementos de um mesmo processo. O silêncio é uma
conduta que os sujeitos impõem a si mesmos. Abstém-se da fala, do pronunciamento, do debate.
Essa postura pode ser pelo medo, pela falta de oportunidade ou representar uma estratégia de
sobrevivência ou de poder. O silenciamento é um ato de dominação que se impõe a grupos
subalternizados dentro das relações de poder. É um processo através do qual produz-se
silêncios, impondo-os ou mantendo-os. O silenciamento ainda pode ser uma estratégia
disciplinar “que atua nos jogos de poder, que podem operar no rompimento dos silêncios ou na
submissão ao silenciador” (MATTOS, 2012, p. 3).
166

Em Pode o Subalterno falar?, Spivak (2010) contribui com as discussões sobre silêncio
e silenciamento em uma perspectiva pós-colonial. Ao postular um sujeito universal soberano e
centrado em suas ações, a modernidade criou a ilusão da igualdade formal e de que as formas
possíveis de se estar no mundo atingem ao conjunto das pessoas. Entretanto, as classes
populares, construídas por modos específicos de exclusão do acesso aos bens, consumo e
participação política, ou seja, os subalternos, não podem falar, pois, de acordo com a autora, a
fala é uma prática discursiva que requer diálogo e interação entre quem fala e quem escuta. Tal
processo dialógico não se concretiza para o sujeito subalterno.
Ao anunciar a impossibilidade de fala do sujeito, Spivak (2010) não pretende afirmar
uma incapacidade de fala, mas os contextos que tornam a fala dos sujeitos subalternos possível.
A indagação da autora nos permite pensar quais sujeitos estão confinados nos silêncios e por
quais processos o silenciamento ocorre. Quem pode falar sobre si em uma experiência de
aborto, haja vista que falar sobre a experiência significa construir redes de apoio fundamentais
para a concretização do processo? O silenciamento imposto para as mulheres rurais difere do
aborto como segredo (PORTO, 2009), pois trata-se mais de acionar pessoas próximas de
confiança e menos de publicizar questões da privacidade. As mulheres dos sítios não têm para
quem contar, mesmo inseridas em comunidades cujos modos de vida são de intensos laços de
solidariedade. Contraditoriamente, a descoberta do aborto pela comunidade colocaria em risco
a garantia de outros diretos para essas mulheres, além de comprometer a reputação das mulheres
rurais que se organizam politicamente.
Scott (2007), em estudo realizado com os índios Pankararus, agricultores assentados e
moradores da periferia de Pernambuco, também destaca que entre agricultores assentados do
sertão médio pernambucano a prática do aborto é silenciosa, porém frequente. Em geral, o
aborto é uma possibilidade frente a uma relação com fracos vínculos ou relações que estão se
iniciando. No momento de decidir pelo aborto as redes das relações na comunidade evidenciam-
se e as interdições que acontecem nesse processo devem-se mais aos regimes e práticas morais
daquele grupo do que das crenças religiosas.
Tais regimes e práticas traduzem o contexto adverso nos quais as mulheres decidem
pelo aborto. Os estudos sobre violência contra a mulher em contextos rurais (SCOTT;
RODRIGUES; SARAIVA, 2010; COSTA; LOPES; SOARES, 2015; SCOTT et al, 2016;
COSTA et al, 2017) apontam para rígidos papéis de gênero nos contextos rurais. É amplamente
compartilhado nessas comunidades que a mulher é responsável pelo trabalho doméstico, além
do trabalho com a terra. A manutenção da família como fundamental para o modo de vida
camponês, a maternidade representando ao mesmo tempo a vida reprodutiva e a vida sexual das
167

mulheres, as dificuldades de acesso à terra, crédito e sementes, a posição geográfica das


comunidades, distanciadas das redes socioassistenciais são fatores intercortados pelo racismo,
patriarcado e pobreza, que erguem um terreno de desigualdades de gênero racializadas.
A centralidade da família no modo de vida camponês é um aspecto importante nas
experiências destas mulheres com o aborto. Diferentemente das classes médias e de parte das
classes populares urbanas, a maternidade não está vinculada a um projeto individual de vida,
mas ao valor-família. Woortmann K. e Woortmann E. (1990, p. 13) compreendem o valor-
família como “uma produção cultural da família enquanto valor” que organiza o modo de vida
camponês, para o qual a família é também uma unidade de produção. Esse valor diz respeito a
um ordenamento moral que direciona as escolhas amorosas, as hierarquias de gênero e geração,
as formas de sucessão e herança da terra e o casamento. Este último imprescindível para a
continuidade de certo modo de vida no campo.
A concepção de valor-família traduz a relação íntima entre reprodução e trabalho no
ethos camponês. Amor, celibato e casamento são construções sociais pautadas pela imbricação
entre as esferas pública e privada, ou seja, pelo lugar de vida e trabalho (WOORTMANN K.;
WOORTMANN E., 1990). Nas sociedades camponesas a manutenção dos valores da família
significa a perpetuação desse modo de vida, incluindo as relações de produção. Desse modo, o
valor-família ordena as dinâmicas da vida reprodutiva das mulheres dos sítios, significando o
aborto como uma ameaça à vida camponesa, marcada por uma moralidade profundamente
cristã. Nesse cenário, silêncio e silenciamento caracterizam a prática do aborto das mulheres
dos sítios.
A esse fato soma-se o estigma que essas mulheres sofrem na sede dos municípios. São
Elesbão de Assum é uma cidade de médio porte. Com cerca de 90 mil habitantes e uma rede de
serviços razoavelmente estruturada, além de ser polo comercial, de saúde e educação da região,
como já dito. É uma paisagem nitidamente em transformação. A modernização provocada pela
instalação de universidades públicas e privadas dão um toque de ‘moderno’ à região. Por vezes,
os valores e modo de vida das comunidades rurais representam uma ameaça a essa
modernização da cidade, que é mais estrutural e menos ideológica. Como já discutido, os
problemas com o anonimato, com a condenação moral das mulheres, a forma tradicional de
pensar o aborto é marcante na rua e no sítio, porém, neste último, conformado pelo valor-
família, o anonimato apresenta outra dimensão.
Durante o trabalho de campo, passei meses negociando algumas entrevistas que não se
concretizaram. Uma delas foi com Iracema. Ela me conheceu na faculdade local e disse que
tinha uma entrevista para mim. Essa negociação durou sete meses e por fim não aconteceu. Pedi
168

para ela mesma me contar a história, mas Iracema se esquivava e dizia “próxima semana vai
dar certo”. Quem daria a entrevista era “a menina que me ajuda lá em casa”, ou seja, a
trabalhadora doméstica, que tinha feito um aborto. “Bichinha, mulher, tu não sabe como esse
povo é?”, era sempre essa resposta quando eu perguntava algo sobre a história do aborto. Mais
tarde descubro que “esse povo” era uma mulher negra do sítio que trabalhava esporadicamente
na casa de Iracema fazendo faxina.
Essa postura de Iracema era generalizada entre as jovens com maior grau de
escolaridade da sede do município. Nas atividades políticas que participei, bem como
seminários, encontros, palestras, quando o assunto era gênero e mulheres rurais, exceto os
momentos que seu estava com as próprias mulheres rurais, as discussões giravam em torno de:
“elas sofrem muito mais machismo”; “elas não denunciam”; “elas são dependentes”; “elas não
sabem para onde ir”; “elas são mais pobres”; “o povo do sítio é bruto, sem conhecimento”; “elas
têm filhos por causa do salário maternidade”; “elas não se cuidam”; “elas são difíceis de serem
conscientizadas”. Essas acepções fazem parte do imaginário social acerca das mulheres rurais.
Obviamente, havia exceções. Professoras e pesquisadoras, principalmente, aquelas que
dedicavam-se aos estudos rurais, não comungavam desse imaginário. Mas eram posturas
específicas dentro de um manancial de estereótipos negativos amplamente disseminados.
Dentro do hospital do sertão as posturas discriminatórias com as mulheres rurais
reproduziam-se. A fala mais comum é que elas “são ignorantes e demoram para entender as
informações”. Duas situações me chamaram atenção, ambas aconteceram no momento do
planejamento familiar. A enfermeira Eva explicava sobre os trâmites burocráticos para a
laqueadura e a usuária não entendia. Eva olha para mim e pergunta de modo impaciente: “tu
pode explicar a ela?”. Curvo-me um pouco sobre ela para explicar os trâmites enquanto Eva
atende o restante das mulheres. A usuária olha para mim e começa a se explicar: “é porque eu
estudei pouco, ai minha mente é mais lenta, não entendo as coisas, desculpe”. Digo que os
processos burocráticos são difíceis para todo mundo. A impaciência com as mulheres rurais
representa um pré-julgamento de que essas mulheres têm dificuldades de compreensão porque
são ignorantes e sem estudos. Em várias situações não houve uma tentativa de traduzir a
linguagem técnica para uma linguagem mais acessível. Essas posturas são justificadoras para o
estereótipo negativo.
A segunda situação tem a ver com a identidade de agricultora das mulheres rurais.
Massivamente as pessoas dos sítios respondem na ficha do planejamento familiar que são
agricultoras. Perceptivelmente isso incomoda as profissionais que conduzem o planejamento,
salvo exceções. O incômodo ocorre devido ao entendimento equivocado de que os agricultores
169

usufruem de privilégios em relação às políticas assistenciais e previdenciárias. Eva conduzia


um planejamento em que uma das mulheres que participava tinha a demanda de laqueadura, era
negra retinta, com 23 anos, da zona rural de um município vizinho. Ao ser perguntada sobre
sua a ocupação, respondeu: “Faço nada não, só fico em casa”. Eva preencheu a ficha como dona
de casa, mas depois a usuária se arrependeu.
O que você colocou em profissão?”. Eva responde que colocou dona de casa.
Ela fala: “é que eu esqueci, coloca agricultora”. “Mas você planta?”, pergunta
Eva. Ela responde que sim. “Você planta o que?”, insiste. “Milho, feijão...”.
“Olha, não se preocupe. Essa ficha aqui não vai mais para lugar nenhum, mas
aqui temos que colocar a verdade”, explica Eva. “Tudo bem”, fala conformada
(Diário de Campo, 20/02/2019).

Após os atendimentos, quando estávamos apenas a equipe psicossocial na sala, Eva


manifesta sua opinião sobre a situação.
“Fico besta com esses agricultores”. Fala isso como quase um desabafo.
Explico que na zona rural é comum se identificar como agricultor. “É por que
isso? Por causa do salário maternidade? Ou outro benefício?”, me pergunta.
O questionamento dela em aborreceu. Primeiro porque toda mulher tem
direito ao salário maternidade. Isso não deveria ser uma questão. Segundo,
porque é um processo tão difícil em que a mulher tem que provar para obter
esse direito que não entendo o que leva uma pessoa a achar que é só dizer que
é agricultora que automaticamente o salário maternidade cai na conta. Explico
a ela sobre a dificuldade. Ela pareceu entender e continuo explicando que é
um hábito, um comportamento social das pessoas das zonas rurais se
declararem agricultoras, que expressa uma realidade concreta. Não tive força
para explicar que agricultor não é somente quem está plantando, que as
transformações dos contextos rurais conduziram a pluriatividade das famílias.
Lorena escuta a conversa e diz que não temos como saber. Pode ser ou pode
não ser agricultor. “Não vou ficar discutindo com o paciente, mas é estranho.
Esses de Rio Velho mesmo nem na zona rural moram”, fala Eva referindo-se
a um outro atendimento. Eva engata comentando que as mulheres rurais não
parecem ter a idade que tem. “Até a de 21 anos parece ter mais”, fala
espantada. Realmente. Aproveito o gancho para dizer que essa é uma das
características de quem trabalha na terra. Ela concorda comigo. Diz que o
trabalho debaixo do sol é muito massacrante. (Diário de campo, 20/02/2018)
O direito à terra independente do estado civil, à previdência social, destacando o salário
maternidade, a extensão dos direitos trabalhistas, o Pronaf Mulher, o Programa de
Documentação da Trabalhadora Rural, o Programa de Organização Produtiva de Mulheres são
conquistas árduas e longas e não privilégios concedidos por um Estado benevolente. As
mulheres rurais, em destaque as negras, carregam a marca ancestral da resistência, tecendo
tramas complexas na luta pela sobrevivência diante dos processos de dominação colonial. Essas
mulheres são remanescentes de territórios negros violados pelos processos de escravidão que
se atualizam no seio da modernidade racista que constrói a sociedade brasileira em toda a sua
dimensão. As mulheres negras rurais resultam das relações contraditórias entre espoliações e
170

enfrentamentos. Forjadas a partir da invisibilidade das populações e territórios negros e da


violência colonial que cravou a nossa mestiçagem, elas encontram formas de construir
esperanças, sendo aquelas que encarnam o sustentáculo de suas famílias e comunidades.
As mulheres que vivem no Brasil rural, que por sua vez é entendido pelo estado
brasileiro a partir do critério da exclusão, ou seja, é tudo aquilo que não é urbano e quase sempre
tratado como atrasado, representam o contingente de mulheres que portam os piores índices
sociais. São aquelas com menores anos de escolaridade e rendimento médio mensal e os
maiores indicies de violência. São estas mulheres que andam quilômetros em busca de água,
pois são as responsáveis pela sobrevivência dos membros daquela família, são as que enfrentam
todo dia a lida com a terra: plantam, colhem e capinam. As atividades laborais que acumulam
transcendem o dito ‘trabalho leve’ da roça, ao qual estão designadas. Essas mulheres estão
encarregadas também de todo o trabalho reprodutivo: gerar, parir, alimentar, vestir e cuidar das
crianças, num eterno tecer da vida, muitas vezes edificado pela solidão a que o racismo as
relega. Não se trata aqui de romantizações, mas de reconhecimento da dureza de suas vidas,
marcadas pela naturalização de diversas formas de violência (BRANDÃO, 2019). O simples
ato de ir ao serviço de saúde é impedido devido às dificuldades com o transporte,
posicionamento geográfico das comunidades e escassez de equipamentos sociais nas áreas
rurais (BRANDÃO, 2019). As estratégias de sobrevivências são muitas, inclusive a
dissimulação nos serviços de saúde que são pautados pelo estigma às mulheres rurais,
construídas como um Outro esvaziado de conhecimento e capacidade de decisão.
É nesse cenário que são construídos os processos de silêncio e silenciamento em relação
às experiências de aborto das mulheres dos sítios. No município de São Elesbão de Assum, a
rede de interconhecimento distinta é manejada diferentemente nos sítios e na rua. Não quero
argumentar que são polos homogêneos, mesmo o espaço rural pertencente a um município
específico é construído pela diversidade. Os modos de vida do campo e da cidade são diversos
em São Elesbão de Assum, e qualquer tipo de generalização desemboca em simplificações.
Mas, a rede de apoio das mulheres dos sítios em relação ao aborto não goza da mesma amplitude
das redes de apoio das mulheres da sede. Isso não se traduz na presença ou ausência da
acompanhante nos serviços de saúde, mas sim quais pessoas ‘de fora’, ou seja, de outros locais,
podem fornecer informações para o aborto ser concretizado.
As observações no hospital do sertão, as conversas com Camila e Luciana indicam a
frequência significativa com que ocorre aborto provocado nestas comunidades, apesar das
interdições ao assunto. No hospital, todo aborto é colocado na vala do aborto espontâneo, exceto
as situações em que as mulheres verbalizam que foi provocado. Entretanto, a presença das
171

mulheres rurais por abortamento no hospital sem terem iniciado o pré-natal é expressiva,
indicando que parte desses abortos são provocados. Camila e Luciana contam sobre o uso de
chás abortivos entre as mulheres mais velhas dos sítios. A sogra de Luciana tentou realizar um
aborto quando grávida do seu marido. “Tentou matar meu marido”, me conta no corredor do
hospital. A sogra tentou abortar com Pacumã, nome dado a “um bichinho que cria na fuligem
da parede perto do fogão a lenha”. O chá é abortivo quando usado junto à cabacinha. A sogra
dela tentou fazer o aborto porque já tinha 45 anos quando ficou grávida na zona rural, e teve
vergonha de engravidar já velha. “O que é besteira, hoje em dia as mulheres engravidam com
45 anos, mas na época de antigamente não. E ela quase que matava o meu marido”, completa
Luciana.
Camila rememora os ensinamentos da mãe sobre os chás no sítio em que viviam, antes
dela migrar para São Elesbão de Assum para estudar. “Minha mãe falava dentro de casa, que
semente de coentro e canela funcionava para abortar e para a menstruação descer. Outros chás
também. Então eu já sabia como podia fazer porque minha mãe já tinha falado em casa”. A
própria Camila utilizou chás antes de recorrer à clínica, mas sem sucesso. Maria Bonita,
liderança sindical de São Elesbão, me contou que sua irmã tentou abortar com chá, mas não
concretizou e o feto morreu perto dos nove meses de gestação.
Depois ela muda de personagem sem eu precisar perguntar. "A minha irmã
também tomou remédio, mas é uma história completamente diferente de
Maria José, porque a minha irmã, o feto morreu com nove meses". Há 13 anos,
a irmã tomou remédio, começa a história assim, o homem que a engravidou
foi embora, não assumiu. Maria Bonita acompanhou ela na maternidade. No
hospital a irmã contou para os profissionais que tinha ‘tomado remédio’ e foi
muito mal atendida. A enfermeira disse que ela era uma assassina, que era
crime. Maria Bonita falou: "não, você tem que cuidar da minha irmã". A
enfermeira a acusou de cumplicidade e continuou: "Mas ai ela tirou uma vida,
ela tem que pagar", fala a enfermeira. Maria Bonita responde que ela não é
ninguém para julgar e que a obrigação dela era ajudar as pessoas. No caso,
não deu certo. Ela tomou o remédio e a gestação seguiu, mas o feto faleceu
perto do nono mês. Uma mulher grávida na zona rural tem que ser
acompanhada por uma mulher que já teve filhos, me explica Maria Bonita.
Assim, ela teve muita dificuldade de acompanhar a irmã nesse processo,
porque ninguém podia saber que ela tentou, tinha que ser tudo escondido. "Ela
conseguiu o remédio onde?", pergunto. Maria Bonita pensou e disse: “planta,
planta em casa, todo mundo tem cabacinha". "Ela não fez com o Cytotec?".
"Não, com cabacinha. Minha mãe também tomou cabacinha, mas não deu
certo, não desceu". Volta a história da irmã: "e ela teve que parir o feto morto,
tava perfeito, tava perfeitinha". A irmã deu o nome de Vitória. O feto nasceu
todo roxo, "terrível". Maria Bonita conta que o cara foi embora, a abandonou,
mas depois a irmã casou com ele e teve dois filhos. (Diário de Campo
09/02/2019).
Outras pesquisas apontam discriminações e maus tratos em relação às mulheres rurais
em abortamento nos serviços de saúde no sertão pernambucano. Brandão (2019), em pesquisa
172

realizada com mulheres rurais chefes de família do sertão pernambucano, encontra um cenário
de violência obstétrica, dificuldades de acesso à saúde devido à escassez de transporte entre as
zonas rurais e a sede do município e agravamento em relação ao abortamento. Uma das suas
entrevistadas, uma mulher negra assentada, relata a experiência com aborto espontâneo aos
cinco meses de gestação. Realizou uma curetagem, mas precisou se submeter ao procedimento
novamente com anestesia local, pois restos ovulares permaneceram no útero.
Todas as histórias que circulam sobre aborto realizado pelas mulheres rurais apresentam
agravantes. Maria José, mulher negra e liderança sindical de uma cidade vizinha à São Elesbão
de Assum, realizou um aborto após ficar viúva. “Ela ficou viúva muito cedo e isso afetou muito
ela e ela começou a se envolver com muitos homens, sem muito compromisso, fazendo sexo,
em uma dessas relações ficou grávida e fez um aborto. Eu fiquei sabendo disso pelo povo”, me
conta Maria Bonita. Esse fato ocorreu há 10 anos e Maria José desenvolveu um processo
depressivo pós-aborto. “Ela não contou para ninguém, aí na reunião do movimento ela foi
cobrada das tarefas e surtou, teve um surto. Como eu já sabia do caso pelas pessoas eu expliquei
para as companheiras na reunião”, continua Maria Bonita.
O silenciamento é um processo que impõe o silêncio sobre algum assunto, interdita a
fala, amedronta e impossibilita espaços de escuta. O medo, a vergonha, as incertezas em relação
a acolhida operam para que as mulheres silenciem sobre as experiências do aborto. A
sexualidade das mulheres rurais é marcada por forte desigualdade de gênero, valorização
exacerbada da maternidade, limitações de acesso aos métodos contraceptivos. Além disso a
sexualidade está intimamente relacionada à construção de famílias impregnadas de valores
tradicionais. Ao decidir pelo aborto, as mulheres estão rompendo com valores de vida e de
família compartilhados por aquela comunidade e pelas suas redes de interconhecimento. Calar
traduz uma estratégia de sobrevivência em um contexto em que a liberdade de ir e vir das
mulheres é controlada, o anonimato indisponível e sua reputação é atacada caso elas burlem as
ordens morais de gênero partilhadas naquela comunidade (CORDEIRO, 2007). O
silenciamento implica em uma rede de apoio fragilizada, que por sua vez põe em risco a
integridade física das mulheres por não obterem métodos seguros para realizar o aborto, além
do medo e da solidão e o sofrimento de fazer o processo escondido e com medo.
A história de Rafaela demonstra o impacto do silenciamento em relação ao aborto na
vida das mulheres rurais. Jovem, com 26 anos, branca, casada, com dois filhos pequenos e
moradora do sítio em uma cidade perto a São Elesbão de Assum de Assum, Rafaela é liderança
do movimento da juventude rural e se desdobra entre as tarefas da militância e o cuidado da
casa e dos filhos. Quando descobriu que estava grávida só podia contar para uma pessoa, sua
173

comadre. Havia engravidado na troca de anticoncepcional que utilizava corretamente. “Precisei


trocar porque não me sentia bem com o que estava tomando”. Demorou muito para conseguir
acionar alguma rede de apoio. Ela e a sua comadre não sabiam onde poderiam comprar o
medicamento. Demoraram muito até Rafaela decidir pedir ajuda a companheiras de movimento
em Recife. A essa altura estava com três meses de gestação, realizou o aborto com misoprostol,
mas não contou para o marido. Precisou deixar os filhos na casa da amiga, pois seu marido não
podia cuidar deles sozinho. Disse ao marido que tinha reunião em Recife e viajou para realizar
o aborto com uma pessoa que ela conheceu em uma atividade política apenas uma vez. Rafaela
narra que se sentiu mal por esconder do marido e da família, mas não tinha condições de ter
outro filho.
Ao pensarmos as redes de apoio e as instituições vinculadas aos percursos de mulheres
rurais em relação ao aborto, encontramos um cenário mais estático em que a necessidade do
anonimato nestas situações especificas esbarra na pessoalidade profunda das relações nas
comunidades rurais. As mulheres procuram o serviço de saúde apenas em casos de agravamento
para finalizar o aborto com curetagem, dissumulam para não serem descobertas, além de
enfrentarem estereótipos negativos que norteiam a atenção à saúde dispensada a elas. O silêncio
e o silenciamento se impõem como primordiais em todo percurso, pois a descoberta da prática
poderia destruir o lugar que as mulheres ocupam naquela comunidade, seja através da fofoca
ou da publicização. As redes de apoio compartilham rígidos valores em relação à maternidade
e unissonante rejeitam o aborto como possibilidade. As mulheres rurais embarcam no percurso
do aborto praticamente sozinhas, solitárias, carregando sofrimento e a responsabilidade de não
terem filhos/as em contextos adversos. Ainda, a decisão pelo aborto está relacionada não ao
desprezo aos valores da maternidade, mas à carga de trabalho doméstico, às desigualdades de
gênero na vida afetiva, ao abandono do parceiro e à vergonha de ter um(a) filho(a) fora do
casamento.

5.5 “Eu não acho certo, mas temos que acolher, né?”: As ambivalências do acolhimento

O acolhimento e o cuidado em relação às situações de abortamento relatadas pelas


mulheres são diversos e transcendem os muros do hospital. A ambivalência do acolhimento
está intimamente relacionada com as questões da condenação moral e com a qualidade da
performance da vítima perfeita por parte das mulheres que recorreram ao aborto. Em item
anterior abordamos como a condenação moral das mulheres que recorreram ao aborto
manifesta-se nos serviços de saúde. Entretanto, as tensões que permeiam o anonimato e a
174

publicização produzem efeitos ambivalentes no acolhimento delas. Devido a pessoalidade que


permeia as relações comunitárias, as mulheres, justamente por não serem anônimas, podem
contar com uma rede de apoio. Esse acolhimento é ao mesmo tempo efetivo e omisso; ampara
e julga. Exceto as mulheres negras de pele escura e adultas, as mulheres estavam
majoritariamente acompanhadas no hospital do sertão.
A tensão que permeia a moralidade da prática do aborto torna o acolhimento
ambivalente dentro e fora do hospital. No sertão, essas tensões são aquecidas, pois as mulheres
ocupam um lugar naquela comunidade. Apesar dos julgamentos e discriminações, pessoas que
não concordam com a prática integram sua rede de solidariedade. O acolhimento é um mosaico
de contraditórios em que os valores religiosos e o apreço pela maternidade imbricam-se com a
vontade de ajudar. Valesca conta que em seu primeiro aborto foi persuadida por amigas que
integravam sua rede de apoio a não interromper a gestação mesmo sido decorrente de estupro:
“ainda teve gente que disse, né, que tipo apesar do que aconteceu comigo, do abuso, às vezes
foi Deus que tipo quis botar aquela criança em mim, entendeu? Porque eu ter tomado pílula,
mesmo assim eu engravidei. Ai tal ficou aqueles amigos, né, ‘pode ter sido deus querendo
mudar a sua vida’”.
Ao participar da rede de segredos das suas amigas, Pamela não poupou críticas à decisão
delas. “Eu falei para elas (as amigas que fizeram aborto) ‘pensem direitinho, a criança não tem
nada a ver com isso’”, afirmou Pamela enquanto me contava que as amigas realizaram os
abortos por causa dos parceiros. Porém, Pamela não revelou a identidade das amigas e não as
denunciou mesmo reiterando em toda a nossa conversa que era contra: “você pode ser a favor,
mas eu sou contra. Essa é a minha opinião”. As situações de aborto envolvem um complexo de
moralidades que se hierarquizam. A defesa da vida do feto e os contextos em que as mulheres
realizam o aborto são considerados no momento em que os sujeitos precisam decidir se vão
integrar ou não uma rede de solidariedade. Essa premissa é expressa nitidamente por Marcela.
“A gente fica dividida entre trazer a vida e se deparar com situações como
essa (de abortamento)”, continua Marcela, “eu tento não julgar. A gente não
sabe o desespero, se ela tá sendo forçada ou outra coisa. O desespero que leva
a isso. Eu já julguei muito, não vou mentir, mas hoje tento não julgar. Mas
fico dividida entre a vida do bebê e a situação de desespero da mulher. Essa
mesmo o BCF do bebê bem direitinho”, e toca no coração. “O BCF é o
batimento?”, pergunto. “É sim, é o coração”. Ela me conta também que as
situações que as mulheres passam é muita sorte não ter hemorragia. (Diário
de campo, 14/03/2019).
Essa postura também é compartilhada por profissionais da equipe psicossocial. Já no
primeiro dia de trabalho de campo, Helena (assistente social) me contou uma história sobre
aborto, já mencionada anteriormente, e me indica os sentidos do acolhimento dentro do
175

hospital: “eu não acho certo, mas temos que acolher, né?”. As conversas nos corredores com
profissionais de saúde como Larissa, enfermeira obstétrica que me acompanhou no início do
trabalho de campo, Fátima, profissional do setor administrativo que me apresentou o hospital e
o obstetra K, que se prontificou a dialogar comigo sobre os procedimentos obstétricos,
estiveram envoltas na qualidade técnica do atendimento no hospital do sertão. Larissa e Fátima
reiteraram que no hospital a curetagem só é realizada quando necessária. “Se tiver restos
ovulares, tem que fazer uma curetagem, mas depende de cada organismo”, relatou Larissa.
“Aqui a gente faz de tudo pela vida da mãe, a vida das mulheres é nossa prioridade”, conta o
médico obstetra K.
A postura tecnicista presente nos serviços de saúde que atendem mulheres em
abortamento incompleto é apontada em alguns estudos (LEMOS; RUSSO, 2014; STREFLING
et al, 2015; PITILIN et al, 2016). A assistência do abortamento, baseada no tratamento
indispensável aquela mulher, seguida de julgamentos e discriminações marcadas por questões
de raça, geração e território. Há uma fissura entre os discursos formais dos/as profissionais de
saúde e a cotidianidade do serviço. Mccallum, Menezes e Reis (2016), em pesquisa realizada
em Salvador (BA), encontraram um cenário preocupante no que tange a percepção das(dos)
profissionais em relação às mulheres que recorrem ao aborto. A percepção das(os) profissionais
acerca das mulheres é de maneira geral é crítica. Elas consideram que as usuárias possuem
baixo nível cultural em comparação às usuárias de serviços privados. As adolescentes são as
que sofrem mais julgamentos: os profissionais acreditam que elas não usam preservativo porque
não querem, abortam de modo indiscriminado, são preguiçosas e ignorantes. Mas às vezes as
críticas são amenizadas devido à inexperiência das jovens.
Ainda de acordo com a pesquisa, as profissionais não consideram adequado uma jovem
se tornar mães antes dos 25 anos, pois terá consequências práticas em suas vidas. Porém não
acreditam que o aborto seja uma alternativa frente a essa situação. O termo utilizado pelas
profissionais para se referir as mulheres parturientes é ‘mãe’ ou ‘filha’, utilizado também para
mulheres em abortamento. Na ultrassonografia os médicos não se dirigem as mulheres.
Conversam com residentes e outros profissionais e até com a máquina, mas as mulheres são
relegadas a condição de não pessoa. Isso também se reflete no termo mais usado pelos
profissionais para se referir às mulheres em situação de abortamento: ‘cureta’ (MACCALLUM;
MENEZES; REIS, 2016).
Essa trama também se desenrola no sertão, com as mulheres jovens, negras e das zonas
rurais sendo as mais atingidas por essa prática. As mulheres jovens são taxadas de
irresponsáveis; as mulheres negras marcadas por uma sexualidade desenfreada e as mulheres
176

das zonas rurais como ignorantes. “Se for do sítio você tem que vir com alguém da cidade,
senão espera pra sempre”, me contam as acompanhantes da espera obstétrica. Os julgamentos
e discriminações são amenizados, contraditoriamente, pela ausência do anonimato. Apesar da
prática se amplamente reprovada aquela mulher detém um lugar nos laços comunitários. O
interconhecimento constrói uma atmosfera de acolhimento ambivalente mesmo nos contextos
de condenação moral, permeado por omissões e auxílio; ausências e presenças; julgamentos e
compreensões.
177

6 ABORTO LEGAL, ESTERILIZAÇÃO E RACISMO NO SERTÃO


PERNAMBUCANO

Os encontros com as histórias sobre aborto no sertão nos mostraram que a prática
extrapola o campo da ilegalidade. A criminalização do aborto impacta a vida reprodutiva das
mulheres como um todo. Seja na política de contraceptivos, nos serviços de aborto legal ou nos
métodos de encerramento da reprodução. A relações patriarcais, o racismo, a centralidade da
família na ética camponesa e consequentemente a valorização da maternidade como projeto da
comunidade são fatores que se articulam para aprofundar a condenação moral à prática de
aborto. O que está em questão é a vigilância da vida reprodutiva das mulheres e nesse processo
as contradições são inúmeras. A maternidade é um projeto coletivo que recai sobre as mulheres,
mas o número de filhos precisa ser limitado às condições da família. O estupro é veementemente
reprovado socialmente, porém a palavra das mulheres enfrenta um regime constate de
suspeição. E a esterilização ainda é manuseada como um método contraceptivo destinado a
mulheres jovens, pobres, negras e dos sítios.
Assim, neste capítulo, abordaremos as nuances do cenário legal, destacando como a
criminalização do aborto, o racismo e os obstáculos no acesso aos serviços articulam-se para
agravar a situação de violência e as relações entre a criminalização do aborto, a valorização da
maternidade e a esterilização no sertão.

6.1 O cenário legal

No planejamento da pesquisa de doutorado não almejava estudar o aborto em contexto


de legalidade, ou seja, o aborto não punido pelo Código Penal, haja vista a inexistência de uma
lei sobre aborto no país. Devido ao não interesse pelo aborto legal não me informei antes de ir
para o trabalho de campo se o hospital em que faria a observação era um serviço de referência
em aborto legal. Logo no início do trabalho de campo, o psicólogo de plantão, Heitor, me
recebeu na sala da equipe psicossocial para eu assistisse o planejamento familiar.
Em um dado momento, eu disse que a pesquisa era sobre aborto e racismo. As
estagiárias ficaram caladas. Eu engatei dizendo que os índices em São Elesbão
eram altos para o sertão, que o dado do hospital era de 15 curetagens por mês,
mas claro que nem todas provocadas. Heitor conta uma história que, no ano
passado, chegou uma mulher dizendo que foi estuprada e estava grávida e
queria fazer um aborto. “A história não batia, sabe?”, relata Heitor. E ela não
tinha prestado boletim de ocorrência. “Mas não precisa de boletim de
178

ocorrência para realizar o aborto legal”, penso, mas não falo. “Porque em caso
de estupro é legalizado no Brasil”, fala Heitor para as estagiárias. Eu balanço
a cabeça concordando. Ele disse que a mulher foi encaminhada para prestar
queixa na delegacia. Ela já estava perto do quinto mês, segundo ele. Disse que
ela era casada e foi para uma festa em Recife e foi estuprada lá. Ele conta isso
com a testa franzindo como se o que ela disse não tinha sido verdade. “Mas
tem um tempo né? Para conseguir o aborto, ela já tava avançada”, relata ele.
Eu explico que este hospital não é um serviço de referência em aborto legal,
dificilmente ela conseguiria por lá. Ele pergunta onde tem e eu explico os
serviços da Região Metropolitana, Agreste e Sertão do Vale do São Francisco.
Heitor sempre se refere às mulheres como “eles” e aos fetos como “crianças”.
Em um momento ele diz que a mulher estava com a gestação avançada, mas
mesmo assim queria tirar a ‘criança’. O telefone toca. Ele atende, pede para
as estagiárias preparem as fichas e sai (Diário de campo, 08 de agosto de
2018).

O comportamento do psicólogo de suspeitar da veracidade da palavra da mulher é


recorrente entre profissionais de saúde que lidam com tais situações. Após um tempo, descubro
que o hospital em que me encontrava era referência em aborto legal. Entretanto, o último que
realizou foi em 2015, de acordo com as documentações e trocas de e-mail que acessei durante
o trabalho de campo. Por ironia, enquanto estive na observação participante, três casos de aborto
legal foram encaminhados para a equipe psicossocial e uma das entrevistas que realizei,
Valesca, contou duas histórias de aborto, sendo uma delas gravidez decorrente de estupro. Ao
acompanhar e analisar os casos compreendi que a lógica da ausência de anonimato através da
fofoca e o aborto como mecanismo de humilhação racializado mantinham-se. Além disso, no
cenário legal o racismo despontou nitidamente como eixo ordenador, atrelado intimamente à
geração expondo as jovens negras e também brancas a situações de humilhação, mesmo elas
estando em uma situação não punida por lei.
Os três permissivos sobre aborto dão corpo ao que chamamos de aborto legal. Esse
termo marca a ambiguidade do arcabouço jurídico brasileiro (DINIZ et al., 2014) quando se
trata do tema aborto. Ambiguidade essa traduzida em uma criminalização que não encontra
respaldo constitucional, tendo em vista que é cidadão e cidadã aquele e aquela que nasce com
vida, ou seja, não há no Brasil um estatuto que resguarde o feto, já que não compreendemos a
vida inviolável desde a concepção. Ao mesmo tempo que o Código Penal de 1940 criminaliza
o aborto voluntário, salvo as duas exceções já citadas, a Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT) reconhece o abono de faltas em caso de aborto espontâneo ou provocado desde a década
de 1990 e mais recentemente, em 2012, a anencefalia integra o rol dos permissivos.
De acordo com Débora Diniz et al (2014), os três casos de aborto nos quais a punição
não se aplica têm em comum uma construção moral da mulher: a mulher como vítima, seja da
violência, seja do acaso. Não é uma compreensão de que a mulher é uma pessoa dotada de
179

capacidade ética de decisão, mas um sujeito que precisa ser tutelado pelo Estado diante da
causalidade. Esse raciocínio construtor da política de aborto legal no Brasil impõe problemas
graves na execução dos serviços: quem legitima a mulher como vítima nos casos de aborto
legal?
Antes de nos debruçarmos sobre essa questão, cabe uma reflexão em como estão
estruturados esses serviços no país. Há um descompasso entre o reconhecimento do aborto em
caso de risco de vida e de estupro como um ato legal e a condição para as mulheres acessarem
esse direito. Após 49 anos do Código Penal, o Brasil implementa seu primeiro serviço de aborto
legal no Hospital Municipal Arthur Ribeiro de Saboya em São Paulo, na gestão de Luiza
Erundina a partir das reivindicações do movimento feminista. Até então o Brasil não havia
regulado o aborto em casos de gravidez decorrente de estupro e os hospitais se negavam a
realizar o procedimento. De acordo com Osmar Colás (1994), médico o responsável junto com
Jorge Andalaft Neto por realizar o primeiro aborto legal do Brasil, o serviço contava com duas
assistentes sociais e psicólogas, três médicos obstetras, uma enfermeira e um advogado. Para
realizar o procedimento era preciso estar gestante de até 12 semanas, apresentar Boletim de
Ocorrência com laudo do Instituto Médico Legal e assinar termo de responsabilidade dos riscos.
O programa apresentou resultados positivos que estão sistematizados no texto do Osmar Colás
(1994).
Em 1998, o Ministério da Saúde lançou a norma técnica Prevenção e Tratamento dos
Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes para regulamentar os
permissivos postos no Código Penal, bem como expandir os serviços de aborto legal no país. O
documento regulamentava todo o processo de acolhimento das mulheres nos serviços de saúde:
instalações físicas, recursos humanos, equipamentos e insumos, registros de dados, apoio
laboratorial, sensibilização e capacitação das equipes multiprofissionais e regulava o
atendimento à mulher com gravidez decorrente de estupro. Nesse item, entre os documentos
exigidos estava o Boletim de Ocorrência e entre os documentos recomendados, cópia do laudo
do Instituto de Medicina Legal. A norma técnica foi devidamente revisada em 2012,
apresentando um documento mais detalhado, consistente e sem a exigência do Boletim de
Ocorrência para a interrupção Legal da Gravidez (IGL). Antes, em 2005, o Ministério da Saúde
lançou a norma técnica Atenção Humanizada ao abortamento sem a exigência do Boletim de
Ocorrência. Essa normativa, devidamente revisada em 2011, abarca os aspectos éticos-
profissionais e jurídicos do aborto, o acolhimento e orientação às mulheres, a atenção clínica
ao abortamento e, o planejamento reprodutivo pós-abortamento. Além das normas técnicas, a
180

Lei n° 12.845/201369 determina que os hospitais acolham com qualidade e prioridade as vítimas
de violência sexual, apresentando como uma das obrigações o fornecimento das possibilidades
frente à gravidez decorrente de estupro.
Apesar dos esforços desses últimos 20 anos, as interdições e os desafios para a
implementação dos serviços de aborto legal no Brasil são presentes. Diniz et al. (2016), em
estudo realizado nos 60 serviços de aborto legal listados pelo Ministério da Saúde como em
funcionamento em 2009, encontrou uma disparidade na realidade concreta desses serviços. Dos
68 serviços70 tidos como em funcionamento, apenas 37 realizavam procedimentos de aborto
legal em caso de estupro, 27 por risco de morte da mulher e 30 por anencefalia. Os serviços
estão concentrados na região sudeste do país e a região norte apresenta o menor número de
serviços atuantes. Todos os 37 serviços em funcionamento afirmaram dispor de uma equipe
multiprofissional mínima com médico, enfermeiro, psicólogo e assistente social. Entretanto, a
maioria (35 deles) não têm equipe específica, sendo o procedimento realizado pela equipe em
regime de plantão; realidade também encontrada na presente pesquisa. O estudo também
verificou a concentração dos serviços nas regiões metropolitanas, restringindo o leque de
mulheres que podem ter acesso ao direito do aborto legal e seguro.
O mapa do aborto legal71 no Brasil (2018), plataforma construída pela organização não-
governamental de direitos humanos ARTIGO 19, apresenta números diferentes do estudo
realizado por Diniz et al. (2016) em relação ao quantitativo de serviços de aborto legal. Há no
Brasil 176 serviços de aborto legal cadastrados72, porém apenas 76 serviços declararam73 estar
em funcionamento, menos que o quantitativo cadastrado como serviço de referência no ano de
2018. O mapa corrobora com o estudo de Diniz et al. (2016) no que diz respeito à distribuição
geográfica: a maioria dos serviços está concentrada na Região Sudeste, sendo as regiões Norte

69
A Lei n. 12.845 de 1° de agosto de 2013 dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação
de violência sexual.
70
Oitos serviços foram incorporados após a equipe de esquisa contactar as secretarias estudais de saúde.
71
Ver plataforma em: < https://mapaabortolegal.org/sobre-o-mapa/>. Acesso em: 13 jun. 2019.
72
O levantamento foi realizado a partir de duas listas do Ministério da Saúde: Cadastro Nacional de
Estabelecimentos de Saúde (CNES), do Sistema Único de Saúde; e a lista intitulada Abortos Legais por
Estabelecimento (CID O04), solicitada diretamente ao Ministério da Saúde. Da primeira lista foram
selecionados os hospitais que se autodeclaram como prestadores de cuidado nas situações de mulheres vítimas
de violência sexual e que atendem aos casos de interrupção da gravidez previsto em lei. São 89 serviços de
referência em aborto legal cadastrados nessa lista. Já da segunda foram selecionados os hospitais que realizaram
pelo menos dois abortos no ano de 2017. Assim, a partir do manuseio com as listas, a equipe alcançou uma lista
de 176 estabelecimentos sem repetições, pois abortos legais podem ser realizados fora dos serviços de referência.
Qualquer hospital que oferece serviços de ginecologia e obstetrícia deve ter equipamento adequado e equipe
treinada para realizar o procedimento de interrupção da gravidez prevista em lei.
73
Para alcançar a realidade da oferta de serviços de aborto legal, uma pesquisa via telefone foi necessária para
confirmar se aquele estabelecimento realmente realizava o procedimento. A equipe entrou em contato com cada
unidade de saúde três vezes através do perfil de pesquisadora e de usuária. Esse processo culminou com a lista
de 86 estabelecimentos no Brasil que oferta o procedimento de aborto legal.
181

e Centro-Oeste com o quantitativo mais escasso de serviços ofertados. Essa disparidade


regional em relação aos serviços de atenção a vítimas de violência também foi encontrada por
Deslandes et al. (2016). De acordo com o mapa do aborto de 2018, os serviços concentram-se
nas capitais e regiões metropolitanas, assim como apontado em Diniz et al. (2016).
A Região Nordeste conta com 20 serviços de aborto legal em funcionamento: um no
Maranhão, dois no Piauí, três no Ceará, um no Rio Grande do Norte, dois na Paraíba, um em
Sergipe, três na Bahia e sete em Pernambuco. Alagoas não declarou nenhum serviço em
funcionamento. Pernambuco é o estado que mais apresenta serviços de aborto legal, dos quais
quatro são na capital, um em cidade da região metropolitana, um serviço em um município do
Sertão Central e um no Sertão do Vale do São Francisco.
A distribuição desigual dos serviços em território brasileiro não é o único desafio para
a implementação da política de aborto legal. A falta de capacitação da equipe multiprofissional
e a baixa disponibilidade da equipe em realizar o procedimento de aborto são os principais
obstáculos para o funcionamento dos serviços (DINIZ et al., 2016). Em pesquisa realizada em
Brasília que ouviu 177 profissionais da saúde, Rocha et al. (2015) apontam que menos da
metade dos profissionais conheciam o programa de interrupção gestacional prevista em lei no
hospital que atuavam e 26% desconheciam totalmente o programa. Porém, entre os
profissionais que declararam conhecer o programa, apenas 16% afirmaram ter encaminhado ou
que encaminhariam uma paciente que solicitasse informações sobre o aborto legal e 63,8%
declararam que nunca atuariam em serviços de aborto legal. As justificativas para essa posição
foram diversas, mas as questões religiosas e a objeção de consciência tiveram um papel central.
A religião foi um fator significativo nas posições contrárias ao aborto, fato também verificado
em Madeiro et al. (2016) e Diniz et al. (2016). A pesquisa indica que a concepção de objeção
de consciência é equivocada para grande parte dos profissionais, pois este dispositivo ético é
encarado como um direito absoluto mesmo quando causa danos a terceiros.
Dentro da moral hegemônica do aborto (DINIZ et al., 2014), conflitos ético-
profissionais extrapolam o campo dos procedimentos institucionais. A ausência de uma
concepção sólida acerca da objeção de consciência gera graves comportamentos profissionais
equivocados e que interditam de forma irresponsável que mulheres gestantes em situações
previstas em lei acessem o direito à interrupção. Essas questões perpassaram os atendimentos
acerca do aborto legal no hospital do sertão, constituindo três cenários principais que serão
discutidos a seguir: o racismo costurando o cuidado, a fofoca regulando o acesso aos serviços
e as novas formas de narrativa do aborto.
182

6.1.1 “Como você deixou isso acontecer com o seu tesourinho, mãe?”: o racismo costura o
cuidado

“Primeiro ele botou a coisa dele na minha coxa e cumeçou a mexer. Depois ele agarrou
meus peitinhos. Depois impurrou a coisa dele pra dentro da minha xoxota. Quando aquilo dueu,
eu gritei. Ele cumeçou a me sufocar, dizendo “É melhor você calar a boca e acustumar. Mas eu
num acostumei, nunca” (WALKER, 2016, p. 10).
A literata Alice Walker (2016) apresenta a vida de Celie no romance A Cor Púrpura,
uma das obras mais marcantes da literatura. Nesse romance, Celie escreve cartas para Deus e
para a sua irmã em missão na África narrando os estupros sofridos pelo seu pai e as gravidezes
decorrentes da violência e depois a violência que sofre de Albert, o marido com quem foi
obrigada a casar. Mas Celie também narra as inúmeras estratégias de sobrevivência que utilizou
em defesa de sua vida. Walker (2016) através da personagem fictícia denunciou a violência que
estrutura a vida de mulheres e meninas negras nos Estados Unidos.
Celie não é apenas uma personagem. É a história real de tantas meninas negras e também
brancas, em menor medida, estupradas por homens da sua família ou próximos a elas. Segundo
Anuário de Segurança Pública (2019), ocorreu 66 mil estupros em 2018 no Brasil. Entre as
vítimas, 54% tinham até 13 anos. Ainda, o documento aponta que 82% dos estupros são contra
mulheres e 76% delas possui algum vínculo com o estuprador. O crime de estupro é um dos
mais subnotificados, portanto, esses dados são ainda mais alarmantes.
Celie também foi o nome que escolhi para a adolescente que conheci em março de 2019
no hospital do sertão. Celie e a mãe foram conduzidas ao serviço de saúde pela polícia para
realizar o exame de corpo de delito74. Celie é uma menina tímida, com 14 anos, negra de pele
escura e reside em um sítio em São Elesbão de Assum. Ela vivia com o pai; a avó paterna reside
na sede do município e a mãe vive com a irmã mais velha em um estado do Centro-Oeste do
país. Celie foi estuprada pelo pai. Como ela sempre negava e resistia, ele a algemava e a
violentava de diversas formas. Devido à violência, Celie estava grávida de dois meses e meio.
Mas, ela havia sido abusada e estuprada por outros homens desde os 12 anos de idade. Em
março de 2019, a mãe, trabalhadora doméstica, veio de férias para ver a filha quando se deparou
com a situação. Elas denunciaram à polícia e o pai esteve foragido todo o tempo que permaneci
acompanhando o caso.

74
Corpo de delito é, para a Medicina Legal e o Direito, o conjunto dos vestígios materiais resultantes da prática
criminosa.
183

O caso de Celie foi exaustivo, longo e complexo. Aqui empreendemos o esforço de


resumi-lo em três eixos: 1. O despreparo do hospital no acolhimento; 2. O momento de
atendimento da equipe externa ao hospital e 3. As incompreensões sobre a concepção de
violência sexual.
Eixo 1 – Quando Celie chegou ao hospital, era nítida a falta de um protocolo de
atendimento. As profissionais não sabiam como elaborar uma resposta profissional. O
atendimento foi tão conturbado que as dificuldades de sistematizá-lo foram imensas. Em suma,
no dia 15 de março de 2019 (sexta-feira) a adolescente e a mãe foram conduzidas por policiais
ao hospital para realizar a perícia e na ocasião foram atendidas pelo psicólogo de plantão. A
mãe relatou que o psicólogo sugeriu que elas colocassem a criança para adoção ao invés de
interromper a gestação e não comunicou ao serviço social sobre o caso. Elas retornaram no
sábado, mas a espera foi longa e mais uma vez elas foram embora sem o atendimento acerca do
aborto legal. Na segunda, 18 de março de 2019, foi o dia em que o caso chegou ao conhecimento
do serviço social. “Pra consertar ventilador chamam a gente, mas pra isso não, eu que pedi o
caso para mim, peguei o bonde andando, fiquei sabendo e pedi o caso pra mim”, me conta
Beatriz, a assistente social de plantão da segunda. Quando eu cheguei ao hospital nesse dia,
Celie e a mãe já estavam lá. Beatriz me recebeu aliviada por eu ter chegado ao serviço de saúde,
me ambientou sobre o caso do lado de fora da sala da equipe psicossocial. Nessa ocasião, me
perguntou se o caso permaneceria no hospital ou seria melhor encaminhar para Recife.
Respondi apenas que o hospital conta com toda a equipe necessária, inclusive com uma médica
para realizar o procedimento. Nesse dia, a adolescente contou toda a violência sofrida mais uma
vez para a psicóloga do plantão, Lorena, e Beatriz escutou o atendimento pela metade. Depois,
a decisão foi aguardar Valentina, a coordenadora do serviço social, que não estava de plantão,
mas chegaria à tarde. A adolescente e a mãe esperaram no hospital por algum encaminhamento
desde a manhã até cerca de 15 horas. Foi preciso uma reunião com o diretor do hospital sobre
caso na tarde da segunda-feira. Ele ligou para a médica que realizaria na quinta o procedimento
e um dia antes a adolescente faria os exames necessários.
No tempo que esperávamos Valentina, a psicóloga Lorena me contou alguns bastidores
do trâmite da adolescente dentro do hospital, conforme registrado em diário de campo.
A mãe e adolescente chegaram ao hospital do sertão trazidas pela polícia.
Prestaram queixa e o policial trouxe para o Hospital para fazer a perícia que
foi feita pelo Doutor X. “Pior foi o comentário do médico ‘nessa idade sabe
mais que a gente’ achei desnecessária essa fala”, nos conta Lorena. Fico
perplexa com a fala do médico diante da monstruosidade que a menina sofreu.
Vou começando a me sentir enojada e ansiosa com esse caso. A adolescente
fez a perícia médica. Lorena comenta de novo que a menina foi algemada e
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que ele fez de tudo com ela. Comento com Beatriz que mãe e filha ainda estão
em situação de violência e será importante encaminhar para algum serviço
especializado (Diário de campo, 18/03/2019).

O comentário do médico revela o modo como meninas negras são vistas dentro do
racismo patriarcal brasileiro. Racismo esse que segue uma ordem moral de gênero que situa a
sexualidade das mulheres como desenfreadas enquanto naturaliza a violência perpetrada pelos
homens. Gonzalez (1983) abordou as três imagens estereotipadas da mulher brasileira: a mulata,
a mãe preta e a doméstica. Como mencionado em capítulo anterior, as imagens de controle são
vitais para o racismo. A mulata é a figura que encarna a objetificação das mulheres negras
dentro da matriz de dominação brasileira. As mulheres não são encaixadas nesse estereótipo
apenas quando adultas. Mas, ao contrário, são preparadas desde a infância pelas instituições
que lhe devem proteção social para entronizar que ser mulata é o seu lugar social. Para o médico
responsável pelo plantão, Celie seria uma aprendiz. “Nessa idade já sabe mais que a gente”,
desconsiderando o estupro de vulnerável, o incesto e o crime. A invenção da mulata é o código
social pelo qual meninas e mulheres negras tornam-se inteligíveis socialmente. Ainda, é uma
característica basilar do racismo brasileiro. O comentário do médico em relação a uma situação
tão delicada expõe a fragilidade da proteção à infância sem o devido enfretamento ao racismo
patriarcal.
Eixo 2 – O momento em que a adolescente e a mãe são atendidas pela equipe externa
que veio dar suporte ao caso, desdobra-se o racismo. Agora é a figura da mãe preta que entra
em cena no enredo de Celie. Como mencionado no trecho acima do diário de campo, eu sugeri
que mãe e adolescente estavam em situação de violência e vulnerabilidade, já que o agressor
não estava detido. Assim, uma equipe especializada externa ao hospital atendeu a adolescente
e a mãe na tarde da segunda-feira, após as 16 horas.
Entramos na sala do atendimento psicossocial. Erámos sete pessoas dentro da sala: eu,
Valentina, Beatriz e as duas pessoas da equipe externa, em uma sala relativamente pequena.
Celie e a mãe sentaram em bancos em frente às duas mesas que há na sala. Nós estávamos
sentadas nas cadeiras por trás das mesas de atendimento e as duas pessoas da equipe externa
sentadas ao lado de Celie e da mãe.
Valentina diz que vamos nos apresentar e que estamos todas ali para ajudar.
Julia e Margarida, as profisisonais do serviço especializado, também se
apresentam. Valentina me apresenta, explica que também sou assistente social
e que estou ali para ajudar. Margarida começa explicando o serviço, dizendo
que estão ali para ajudar. Julia pergunta detalhes e inicia um momento
constrangedor. Ela pergunta como foi que isso aconteceu e com quem a
menina morava. “Morava eu, ela, a irmã dela encostada a ela e o meu marido.
Mas ela tava me dando muito trabalho e eu pedi pro pai dela ir buscar ela”,
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explica a mãe. Júlia pergunta à adolescente quando começaram os abusos.


Celie olha para baixo e responde que desde maio do ano passado (2018),
quando ele foi buscá-la. Júlia pergunta mais detalhes da história. A mãe
explica que ele (o agressor) matou um filho dela, mas não foi por isso que ele
foi preso, tentou estuprar uma outra jovem. “E você sabia disso? Que ele era
violento?”, pergunta Júlia. “Eu tava em São Paulo quando ele foi preso, a mãe
dele veio atrás de mim para assinar uns papeis, ai foi quando ela disse”,
responde a mãe. “Você saiu de casa e deixou seus filhos com um homem
violento?”, pergunta Júlia. “Nessa época ele não fazia malvadeza com eles,
não”, responde a mãe, “eu fugi porque ele era muito violento comigo, com
elas não”. “Mas depois que você sabendo disso, você entregou o seu
tesourinho para ele, mãe? Como você deixou acontecer isso com seu
tesourinho, mãe?” insiste Júlia. “Eu não ia adivinhar que ele ia fazer isso com
ela, o próprio pai, ela tava me dando muito trabalho, vivia na rua, foi quando
eu pedi para ele ir buscar elas. Mas a irmã dela não quis vim de jeito nenhum,
mas ela quis”, responde a mãe. Júlia continua com o espetáculo, fazendo
perguntas julgadoras com um tom de voz que lembra um programa
sensacionalista: “E você Celie, o que tem para dizer disso?”. A menina baixa
a cabeça. A mãe conta que elas ficaram muito tempo na casa da vó também,
mas depois ela foi buscá-las e em maio do ano passado o pai buscou apenas
Celie no estado do Centro-Oeste em que ela estava morando. Ela saiu fugida
porque ele matou um filho dela que não era filho dele, no caso o enteado e
disse que ia matar ela como fez com o menino. Ela, a adolescente, conta que
ficou um tempo na casa da vó quando foi morar com ele. Mas em dezembro
foi com ele “pro mato”, zona rural do município. Foi quando começaram os
estupros, em dezembro do ano passado. A mãe descobriu e no dia 18 de
fevereiro enviou um WhatsApp para o conselho tutelar da cidade. Ela abre o
celular e nos mostra as conversas. Por mensagens, conta o problema da filha
e pede ajuda. O conselho tutelar não faz absolutamente nada. Eu li as
mensagens, Margarida e Valentina também. Nesse momento, entendo que ela
não está se sentindo mal com a minha presença. Sou a primeira pessoa para
quem ela mostra a mensagem. Júlia desiste das perguntas vexatórias e meu
coração se alivia um pouco (Diário de Campo, 18/03/2019).

Com exceção da adolescente, da mãe e de mim todas as mulheres eram brancas. Nesse
momento, a humilhação se concentra no estereótipo da mãe preta. Cardoso (2014), ao analisar
o pensamento de Lélia Gonzalez, argumenta que a mãe preta condensa passividade,
amorosidade e resignação. Na reatualização do racismo brasileiro, a mãe preta é incrementada
pela imagem de mulheres superfortes (KILOMBA, 2019), que sozinhas conseguem consertar
os danos causados pelo racismo. Como isso não é possível, pois apesar de negada a humanidade
sistematicamente, são humanas e não super, a responsabilidade e a culpabilização são reiteradas
em todo o atendimento. Júlia em nenhum momento fez qualquer comentário sobre a violência
perpetrada pelo pai. De acordo com Kilomba (2019), o arquétipo da maternidade requer auto
sacrifício, dedicação e amor incondicional. Por isso o comportamento da mãe de Celie era
ininteligível para Júlia. Para ela, ao deixar o marido devido à violência doméstica e cobrar o
seu papel de pai com as filhas, a mãe de Celie cometeu o erro grave de tornar a violência
possível.
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Além da culpabilização da mãe pela agressão, a cena nos informa sobre o teatro do
racismo e sua triangulação (KILOMBA, 2019). A triangulação, em consonância com Kilomba
(2019), diz respeito aos personagens centrais: a mãe de Celie (e Celie também, nesse momento
em menor medida) como o sujeito negro objeto da agressão racista, Júlia como quem performa
o racismo e a plateia branca que legítima a cena, haja vista que ninguém interrompeu as
perguntas vexatórias de Júlia. Tal triangulação tem como objetivo naturalizar a tutela e a
infantilização mascarada de atendimento profissional. Em todo momento, Júlia conversa com
a mãe em tom infantil e utilizando as palavras no diminutivo; ela trata a mãe de Celie como se
fosse uma pessoa digna de pena ou compaixão, ao mesmo tempo em que a localiza como sujeito
da ação criminosa. A infantilização é uma das formas, junto a primitivização, incivilização,
animalização e erotização, pela qual o sujeito negro é construído como um “outro” na lógica da
branquitude. Nos termos de Kilomba (2019, p. 79) a infantilização diz respeito “à
personificação do dependente que não pode sobreviver sem o senhor (ou a senhora)”. Apesar
do acontecimento na escuta, pois, elas foram levadas para a sede do serviço para finalizar o
atendimento, além de outras medidas que foram tomadas para a segurança das duas, como a
solicitação da Patrulha Maria da Penha no lugar onde elas estavam residindo temporariamente,
todo o cuidado foi costurado pelo racismo. O racismo não é apenas a negação ou a falha de um
serviço ou de uma coletividade de serviços, mas é também a deturpação do acolhimento por
meio de inúmeros mecanismos que negam a autonomia e rebaixam a humanidade das pessoas.
Eixo 3 – Após a segunda-feira e o atendimento com a equipe especializada externa, a
adolescente e a mãe retornaram na quarta (20/03/2019) e na quinta (21/03/2019). Sendo este
último o dia de realização do procedimento, mas também quando outro personagem apareceu
no enredo: o “namoradinho”, para usar o termo da psicóloga de plantão, que coincidentemente
era novamente Lorena. Nesse dia Valentina estava de plantão e não Beatriz, que sai da história.
Quando chego no hospital vou direito para a sala da equipe social. Valentina
está sozinha, entro na sala e nos abraçamos. Pergunto se terá a reunião com o
diretor e a médica na segunda. “Veja, as coisas mudaram um pouco”, começa
Silvia e eu sento em frente a ela para ouvir, “a menina está em dúvida se faz
o procedimento – meu coração congelou – há um namoradinho na história
com quem ela se relacionava e ela não sabe de quem é, se é do pai ou desse
namorado. Olhe, Nathália, ontem foi uma loucura. Foi o dia inteiro só isso.
Muito difícil conseguir a ultrassom. O diretor falou com o médico, mas
ninguém conseguia ligar a máquina, uma loucura, passei o dia em pé, quando
eu deitei latejava. E agora elas virão para cá hoje, mas ela está em dúvida. Não
dá para acionar Doutora Y (a única que faz o procedimento de aborto legal)
dessa forma”. De pronto respondo que no caso de aborto legal não importa. A
violência não é um ato, mas sim uma situação. Neste exato momento o diretor
entra na sala e pergunta sobre o caso. “Então, ela meio que tá em dúvida”,
explica Valentina sem dar muitos esclarecimentos. “Então é bom ela assinar
um documento para depois não sair dizendo que foi o hospital que não quis
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fazer”, responde o diretor. Valentina explica que estamos resolvendo isso. Ela
me relata, após a saída dele da sala, que não queria dar muitos detalhes e que
a situação era essa (Diário de campo, 21/03/2019).
Na verdade, Celie relaciona-se com um rapaz de 19 anos que conheceu pela internet e
se encontram no recreio do colégio. O rapaz a pediu em casamento para o pai que, para a
surpresa dela, deixou ela namorar. Conversávamos eu, Celie e Valentina. A mãe de Celie estava
fora da sala. De fato, o vínculo entre mãe e filha era frágil e Celie nos conta que a mãe disse
que ela estava mentindo sobre a violência, o que desencadeou uma briga entre as duas no dia
do procedimento. Valentina tenta mediar a situação dizendo que a mãe se preocupa com ela,
pois fez a denúncia, acompanhou em todo o momento.

A situação é caótica e completamente complicada. Lorena chega na sala para


piorar tudo. Olha para a menina, pede para ela olhar para a gente quando esta
desvia o olhar, a trata com tutela, desconfia de tudo que ela fala. “Eu acho que
você tá enrolando a gente, eu acho que você vai fugir com esse namorado”,
comenta Lorena enquanto eu tento entender o relacionamento dela com esse
rapaz. Celie responde que não, olha para mim e diz que está em dúvida, que à
noite vai contar para ele que está grávida. Como não houve um acolhimento
responsável e há fragilidade do vínculo mãe e filha, é esperado que Celie
recorra ao rapaz. Nos procedimentos de aborto legal, quando a adolescente
tem 14 anos, o responsável legal toma a decisão. Com certeza algo complexo,
pois retirar da adolescente a condição de decidir é negar sua autonomia
relativa. Porém, é necessário instrução e acolhimento responsável. Algo que
não aconteceu. (...) Lorena continua contando e me deixando claro a gravidade
da situação. O rapaz está “arrumando uma casa para ela ir morar com ele”,
mas Celie não gosta de tudo nele, “Né isso?”, pergunta Lorena a ela. A
adolescente contou para ela não gostava do jeito que ele falava com ela.
“Gritava e é grosso”, completa Celie. E eu vou ficando mais desesperada. “Eu
to achando que você tá enganando a gente, acho que você vai fugir com esse
namorado”, fala a psicóloga novamente. A adolescente diz que não de forma
tímida, olhando para baixo. Avalio todo o atendimento como não profissional
e exagerado (Diário de campo, 21/03/2019).
O atendimento que recebeu nesse dia não forneceu suporte para a decisão de Celie. O
vínculo frágil com a mãe, o trauma do estupro, a desconfiança e a desresponsabilização do
serviço desencadearam uma postura de dúvida frente à gestação por parte de Celie. Não houve
uma escuta terapêutica séria para dar suporte a sua decisão. Desconfiança e tutela nortearam o
seu caso. O desfecho da história é que a adolescente realizou o procedimento de aborto legal
nesse mesmo dia. Como não foram devidamente instruídas, mãe e filha permaneceram no
hospital sem os objetos pessoais e tiveram alta no dia 22 de março.
Esses três eixos sustentam meu argumento de que o aborto legal no Brasil é também
estruturado pelo racismo e que ganha contornos próprios devido ao território e geração. Raça e
geração, seguidas imediatamente de território, delineiam uma situação específica em que o
atendimento a um caso grave de estupro de vulnerável aconteceu de forma precária, frágil e
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tutelada. Ainda, diferentemente do que a parca literatura aborda, o racismo não apenas
aprofunda um episódio reprodutivo da vida das jovens, que é o aborto, mas ele próprio é a causa
do aborto. Apesar do Ipea (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2011) não apontar diferenças estatísticas
significativas por raça/cor nos índices de estupro no Brasil, o Ministério Público do Distrito
Federal (2015), ao analisar dados do Ministérios da Saúde e do Sinan, demonstra que quando
as vítimas de estupro têm até 12 anos, há um predomínio da raça/cor parda e preta (3.649) em
relação a raça/cor branca (2.144). Ademais, como já discutido no capítulo anterior, há um
problema em relação a auto declaração nos censos no Brasil, o que nos permite refletir que esse
número pode ser maior.
Ainda, enfrentamos a difícil discussão sobre o estupro de vulnerável. De acordo com o
Código Penal de 1940, em seu art. 217- A, é crime ter conjunção carnal com menor de 14 anos.
Esse normativa padece de legitimidade social, visto que é amplamente tolerado socialmente
que meninas iniciem-se sexualmente com parceiros muito mais velhos como é discutido por
Ferrari, Peres e Nascimento (2018). Nessa pesquisa, os autores entrevistaram uma adolescente
negra que aos 12 anos mantinha relações sexuais com um homem de 42 anos, engravidou e
realizou um aborto. Nove, das dez adolescentes, entrevistadas estavam em uma situação de
violência sexual, que não era compreendida por elas nem pela comunidade como tal. O mesmo
padrão estava presente na história de Celie. Quando o relacionamento com o rapaz foi de
conhecimento da equipe, a violência foi rebaixada e a equipe iniciou um movimento de “lavar
as mãos” à respeito da situação.
Será que isso tem a ver com a negritude de Celie? Ou todo caso de gravidez decorrente
de estupro seria tratado daquela forma pelo serviço? A idade deveria ser um marcador central,
já que independentemente da situação Celie estava resguarda pelo Código Penal. Ainda por ser
tão jovem, deveria sensibilizar a equipe para um atendimento mais humanizado. O fato de ser
do sítio agravou sua situação. Como já discutido anteriormente, ser da zona rural significa ser
tratada com discriminação: aquela que não sabe, com mais baixa escolaridade, com modo de
falar não civilizado, a mãe irresponsável como a mãe de Celie foi tratada. As respostas para
essas perguntas estão na história de Inês, discutida a seguir.
O racismo constrói uma vida de violência naturalizada para meninas e mulheres negras,
tornando o estupro e o aborto episódios recorrentes em suas vidas reprodutivas. E, ainda,
constrói uma situação de abortamento permeada pelo racismo, haja vista que as mulheres negras
são expostas a três vezes mais risco que as mulheres brancas (DINIZ; MADEIRO, 2017) e estão
mais solitárias durante o processo (DIORGENES, 2014; 2016).
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6.1.2 “O anestesista contou para a médica que ela estava mentindo”: a fofoca como regulador
do direito

O caso de Inês foi narrado por Cecilia, uma das minhas informantes-chave dentro do
hospital. Cecilia é uma assistente social negra e muito próxima do debate feminista.
Diferentemente de Celie, eu não tive contato algum com a jovem. Apesar das inúmeras idas e
vindas, ela obteve uma resposta profissional do serviço. Entretanto, as especificidades da
cidade, como uma comunidade com traços de interconhecimento, causaram uma ruptura no seu
acolhimento, o que exigiu estratégias por parte do hospital para driblar tal intercorrência.
Inês é uma jovem de 19 anos, branca com cabelos lisos até a cintura e reside em uma
cidade próxima ao hospital. Em julho de 2018 foi para uma festa em que ela só conhecia o
aniversariante, em uma granja. Como não era acostumada a beber, depois de dois copos de
uísque ela dormiu. Acordou nua e com dores. Tinha sido estuprada. Mas não sabe quem da festa
a violentou. Esse fato ocorreu entre os dias 14 e 15 de julho de 2018. Não denunciou por
vergonha e descobriu que estava grávida de dois meses, setembro do mesmo ano. Chegou
sozinha ao hospital por intermédio de uma amiga, que sugeriu que ela procurasse atendimento.
Enquanto contava a história, Cecília comentou que a amiga tinha a informação precisa, pois o
hospital é realmente o equipamento certo para atendê-la. Mas jovem não disse quem era a
amiga. “Ainda tentei puxar, mas nada”, relata Cecília. Apesar de demonstrar apoio a situação
da jovem, em um dado momento ela fala que a história dela não batia, pois tinha uma confusão
nas datas. “Primeiro ela fala que foi no fim de semana e depois disse que a violência tinha sido
no dia 17 de julho, dia 17 é uma terça não um fim de semana”, me relata enquanto mostra o
calendário que estava em cima da sua mesa. E olha para mim como se esperasse uma resposta.
Sem querer desapontá-la digo que é preciso ter muita coragem para mentir em um serviço de
saúde. Acrescento que é natural confundir-se após uma experiência traumática, que a violência
cria uma memória descontínua e confusa. “Seria bom alguém da psicologia acompanhar o
processo”, continuo. Cecília conversou com o serviço especializado que virá fazer uma escuta
da jovem, mas está sem psicóloga. “E a psicóloga daqui só Jesus na causa”, completa Cecília
fazendo referência à psicóloga do plantão. Cecília mapeou os profissionais do plantão que
fariam o procedimento. A enfermeira recorreu à objeção de consciência. “Ela disse que era uma
vida, é um coração que está batendo”. O obstetra de plantão por sua vez informou desconhecer
que o aborto por estupro era legalizado no Brasil. A advogada do serviço especializado orientou
que a jovem procurasse a defensoria pública, pois precisava de uma ordem judicial para realizar
o aborto legal e se retira do processo. Cecília articula com a médica Y para realizar o
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procedimento na quinta (04/10/2018). No dia 27/09/2018 a jovem vai ao hospital realizar a


ultrassom, mas o médico não comparece. Precisará fazer na quinta. No dia 04/10/2018
conforme combinado a jovem retorna ao serviço, mas a médica Y precisou viajar a Recife
acompanhando uma gestante de alto risco na ambulância. Inês precisará voltar na próxima
quinta.
No dia 11/10/2018 a jovem regressa, conseguiu ser internada para realizar o
procedimento. Entretanto, o hospital está sem a medicação necessária. O diretor do hospital,
inclusive, tomou o caso para si: ele mesmo iria realizar o procedimento com a médica Y. Inês
recebeu alta por falta de medicação. Contudo, um episódio ocorrido neste mesmo dia dificulta
ainda mais o acesso da jovem ao direito.
Cecília me conta que a obstetra Y, que iria fazer o procedimento, a chamou
para conversar. Disse que a história da jovem era mentira. O anestesista, que
participaria do procedimento, é da mesma cidade que a jovem, conhece a
moça. Ele conta que ela já o havia procurado pedindo ajuda para realizar o
aborto. A médica disse que depois dessa informação não vai mais fazer e
que ficaria enrolando a jovem porque ela não foi estuprada, e sim, está
grávida de um homem casado. Fiquei chocada com o desfecho da trama.
Imediatamente pensei na falta de limite nas construções de narrativas para
impedir o acesso das mulheres aos seus direitos. “A tia dela (da jovem) me
disse hoje que conhecia o anestesista, que ele era da mesma cidade e queria
falar com ele para ver se ele agilizava o aborto”, me conta Cecília.
Infelizmente, a tia não imaginava que se tratando de aborto não importa se
seja espontâneo provocado, legal ou ilegal, todas as mulheres são suspeitas.
Cecília completa dizendo que a jovem não quer a gravidez e tem direito a
escolher mesmo que legalmente seja negado. Comento que talvez a história
não seja exatamente como ela contou, mas seria muito difícil ela inventar um
estupro. “Mas para a médica o que vale é a palavra do anestesista, não da
mulher”, rebate Cecília. “Eu expliquei a ela que o discurso foi bem coerente,
que até o período gestacional cabe no tempo, porque se ela tem algo com ele
não saberia como precisar a data, pois não saberia quando tinha sido”,
completa. (Diário de campo, 11/10/2018).
No entanto, não adiantou. Apenas no fim de outubro de 2018, a jovem conseguiu ser
encaminhada de ambulância para um serviço de referência em Recife. Recebeu uma injeção de
potássio para induzir o abortamento, porém, precisava regressar para o sertão. Não tinha como
explicar tantos dias fora de casa para os pais e iria fazer a prova do ENEM. Regressou para o
hospital no plantão da média Y, que mesmo contrariada teve que realizar a curetagem, haja
vista que a jovem já estava em processo de abortamento. Essa foi a estratégia encontrada pelo
serviço para garantir o atendimento a Inês. Desde o primeiro dia, a jovem estava acompanhada
por uma tia que reside na mesma cidade do hospital. Inês esteve sempre muito certa de decisão
e informada do que tinha direito. Chegou a ameaçar processar o hospital caso não interrompesse
a gestação.
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No caso de Inês figuram três elementos relevantes: a objeção de consciência, a fofoca e


o componente racial.
Na pesquisa de Rocha et al. (2015), 27% dos profissionais concordam com a postura de
convencer a mulher grávida pós-estupro de levar adiante a gestação. Madeiro et al. (2016) ao
realizar estudo sobre a percepção da objeção de consciência entre estudantes de medicina no
estado do Piauí, encontrou, além do alto índice de recusas em realizar o procedimento de aborto
legal, que 13% se recusaria a realizar o procedimento em caso de risco de vida para a mulher;
31% se recusaria no caso de anencefalia; e 50%, nos casos de gravidez decorrente de estupro.
Há uma recusa sistemática em encaminhar a mulher para outro médico que realize o
procedimento (54%) e uma renúncia massiva (72%) em informar às mulheres suas opções
frente à gestação decorrente de estupro. Nesse sentido, estudo realizado entre estudantes de
medicina na Bahia (DARZÉ; AZEVEDO, 2014), revelou que 54,6% dos discentes mostraram-
se desconfortáveis em realizar o aborto legal, apesar de 86% dos estudantes concordarem com
a ampliação dos permissivos de aborto legal. Entretanto, é possível relacionar a
permissibilidade do aborto com a eugenia, haja vista que 79,9% declarou concordar com o
aborto legal em caso de má formações incompatíveis com a vida, 27% com qualquer má
formação, 21,8% declarou justificar o aborto legal para mulheres com transtornos mentais
(DARZÉ; AZEVEDO, 2014).
A objeção de consciência funciona como um dispositivo que interdita o direito das
mulheres ao aborto legal e não como uma possibilidade da prática profissional, quando uma
situação específica se choca com os valores dos agentes profissionais. Para além de se
resguardarem, há uma intenção de deslegitimar a partir de uma prática pessoal um direito
conquistado por um grupo populacional. “Ela disse que era uma vida, é um coração que está
batendo”, me contou Cecília sobre a enfermeira do plantão que alegou objeção de consciência.
As situações de estupro são as mais dramáticas dentro do regime de interdição das mulheres ao
aborto legal.
Madeiro et al. (2016) aponta que na presença de um motivo clínico para se realizar o
aborto os profissionais são mais propensos a não alegar objeção de consciência, como também
aponta Rocha et al. (2015). Entretanto no caso de gravidez decorrente de estupro ocorre uma
verdadeira cruzada para a negação do direito à interrupção. A falta de informação e capacitação
da equipe é um elemento relevante. Rocha et al. (2015) indicam que apenas 8% dos
profissionais conhecem a documentação necessária no caso de aborto legal por estupro e a
maior parte acredita ainda ser necessário o Boletim de Ocorrência. Como já dito, a cópia do
Boletim não é mais exigida desde 2005 por determinação de norma técnica do Ministério da
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Saúde, mas é descumprida por alguns serviços que ofertam o procedimento (DINIZ et al., 2014;
DINIZ et al., 2016).
Diniz et al. (2014) indicam que há um regime compartilhado de suspeição à narrativa
das mulheres, mesmo quando elas apresentam o Boletim de Ocorrência. Tal fato elucida que
não se trata meramente de medo por parte dos profissionais de serem enganados (DINIZ et al.,
2014; ROCHA et al., 2015), mas a ojeriza moral ao aborto acima da violência sexual. A mulher
é vista como suspeita antes de dar entrada na unidade de saúde. Sua palavra não é suficiente
para garantir a interrupção da gravidez, muito menos validar a violência sofrida. A verdade do
estupro é colocada em xeque em um processo com testes de veridição, como ultrassonografia e
exames de sangue, para respaldar a narrativa da violência como causadora da gestação. Além
disso, a mulher precisa apresentar-se como uma boa vítima, cujo sofrimento aparente seja
suficiente para que o trauma decorrente da violência sexual se torne visível. A apresentação de
si como uma vítima legítima gera compaixão entre os membros da equipe, sendo por sua vez,
elemento relevante para a verdade do estupro.
A moral hegemônica do aborto (DINIZ et al., 2014) traz o processo de inquérito para as
práticas médicas. Durante todo o processo a mulher é confrontada e vista como uma suspeita
que distorce e inventa fatos para burlar a lei. Ademais, a leitura subjetiva da mulher, situando
o comportamento da maior parte das mulheres como ‘não adequados’ ou ‘liberais’ (DINIZ et
al., 2014) agrava o regime de suspeição e dificulta ainda o acesso ao aborto legal. Um elemento
que contribui para amenizar esse contexto de interdição é a crueldade em algumas situações de
estupro. Quando o crime é muito bárbaro e ocasiona marcas aparentes, a narrativa da mulher
torna-se mais legitima e palatável.
O regime compartilhado de suspeição à palavra da mulher está atrelado tanto à própria
natureza da criminalização do aborto quanto à ambiguidade legal e moral dos serviços.
Ambiguidade legal porque os serviços de aborto legal atuam em cima da execeção; no Brasil o
aborto é crime, no caso de estupro se torna um permissivo, além do mais não há uma lei que
regule os serviços. A ambiguidade moral diz respeito as questões em torno do crime de estupro
em si. Como apontado anteriormente, para o estupro ser condenado socialmente, é necessário
que seja cruel e visível o suficiente e a vítima deve veicular um comportamento social
considerado adequado. O que é considerado violência em determinada sociedade é fruto de
disputas históricas. Trata-se de uma invenção que traduz um consenso sobre situações de
transgressão ao território do outro, seja em nível material, subjetivo ou físico-corpóreo.
Pitanguy (2003) nos relembra que historicamente a violência de gênero sequer existia
socialmente no Brasil. Assassinatos e estupros eram desconsiderados caso perpetrados pelos
193

maridos movidos pela suspeita de infidelidade. A narrativa da violência contra a mulher era
vista sob o manto da naturalização social. O estupro é crime coletivo. Padece de um paradoxo
social que contamina os debates públicos: ao mesmo tempo em que é considerado um crime
grave, encontra legitimidade em algum aspecto do comportamento da mulher. A cultura do
estupro estrutura os discursos públicos e políticos e está entranhada nas instituições sociais,
incluindo os serviços de saúde.
Contudo, na história de Inês o enredo é agravado pela fofoca. A fofoca é a veiculação
de uma história que não tem compromisso com a verdade. De acordo com Fonseca (2000), a
fofoca apresenta diversas funções, mas sempre é considerada uma força nefasta com o objetivo
de prejudicar indivíduos. Funciona também como um mecanismo de integração com a
comunidade, atuando como um motor que põe as histórias para circular na cidade, transmitindo
através daquelas histórias reais ou imaginárias os códigos sociais que dão sentido à vida naquela
localidade. Das diversas funções da fofoca, ressalto a informação da reputação de alguém.
Remetendo ainda a Fonseca (2000, p. 44), “enquanto a reputação é útil ao homem, ela é crucial
para a mulher”. A fofoca age na sexualidade e na vida reprodutiva das mulheres como um
regulador. Segundo Cordeiro (2012), a fofoca apresenta um caráter ambíguo, pois ao passo que
conta histórias sobre a vida de um determinado grupo social estreitando laços sociais, tem um
caráter de vigilância e controle sobre a vida das mulheres, especialmente.
Nesse sentido, a fofoca tem o poder de excluir e causar rupturas sociais. Pode ser
compreendida nos termos de Adichie (2010) como histórias que podem destruir a dignidade.
Nesse caso, mulheres em busca da interrupção da gravidez em casos não puníveis em lei. Ao
informar à médica Y que Inês tinha um caso com um homem casado, o anestesista não apenas
impediu que o direito dela fosse garantido, mas o fez ‘manchando sua reputação’, tornando Inês
indigna daquele direito. A médica em nenhum momento ponderou a história, revelando a
fragilidade da palavra da mulher nos procedimentos de aborto legal. A fofoca atuou como um
mecanismo de regulação no acesso ao direito.
Apesar da postura da equipe médica, Inês recebeu pleno apoio do hospital. O esforço
para ela realizar o procedimento foi nítido durante todo o processo, sobretudo para adaptar as
estratégias do hospital às exigências da vida de Inês, como a realização do ENEM. Ela começou
o procedimento em Recife e depois voltou para o hospital já em abortamento, impossibilitando
a objeção de consciência por parte da médica, pois configuraria omissão de socorro. Uma
estratégia elaborada pelo próprio hospital para conseguir o atendimento adequado para jovem.
Ainda que seja função do serviço garantir atendimento nos casos de aborto legal, percebemos
um hiato nesse caso quando confrontamos com o de Celie. Hiato esse causado pelo componente
194

racial. Houve empenho por parte da equipe psicossocial nos dois casos, entretanto, no caso de
Celie houve uma sutil desresponsabilização quando o “namoradinho” entrou em cena. A
violência sofrida por Celie foi atenuada diante de sua dúvida em realizar o procedimento, o que
era completamente compreensível e também devido ao relacionamento com o rapaz de 19 anos,
ainda que configurasse violência, implicando em enfraquecimento do empenho da equipe
social.
Isso não aconteceu com Inês. Celie é uma menina negra e pobre da zona rural estuprada
pelo pai e por diversos homens. Uma pessoa que deveria ter sua proteção social como prioridade
do Estado. Entretanto, recebeu um atendimento descontínuo e amador, permeado de racismo
do começo ao fim. Inês, jovem, branca e residente da sede do seu município sofreu as
implicações da criminalização do aborto no seu processo, mas recebeu o empenho do hospital
até a finalização do aborto, inclusive adaptando o fluxo do atendimento às suas necessidades
pessoais.

6.1.3 “Eles só fazem o procedimento depois dos quatro, cinco meses”: as novas narrativas que
negam o direito

Além da objeção de consciência, da fofoca como reguladora do acesso aos serviços de


aborto legal no sertão e as questões raciais no acolhimento dos casos de aborto por estupro,
ainda nos deparamos com as novas narrativas que negam o direito. A história de Valesca é
emblemática para refletirmos sobre as manobras dos serviços de saúde para impedir que as
mulheres acessem o direito ao aborto seguro nos casos de estupro. Aqui, não se trata de uma
história que aconteceu no hospital do sertão. Entrevistei Valesca em novembro de 2018. Ela
reside em outra cidade do sertão com a mãe e a irmã, mas veio de férias visitar um amigo, sendo
entrevistada nessa ocasião.
Valesca tem 23 anos, é estudante de curso técnico, nasceu no sertão, onde reside até hoje,
é de classe média e branca. Ela conheceu um rapaz no aplicativo de relacionamento Tinder,
amplamente utilizado pelos9as) jovens. Marcou o encontro com um homem e depois foram
para um motel. Ela narra que em nenhum momento ele apresentou um comportamento suspeito.
“(...) ele falou assim ‘bora tira a roupa’. Aí eu ‘oxe, vamo conversar primeiro’,
aí pronto. Aí ele já foi, tipo, foi uma coisa muito rápida, porque quando chegou
ele já começou a vir pra cima de mim, entendeu? E eu gritando mandando ele
sair e ele ligou o som do motel, pra ninguém escutar, foi uma coisa muito
triste. Muito triste mesmo”. (Valesca, 23 anos, branca.
195

Quando saíram do motel, ele a largou na rodovia, “na estrada que vai para Recife”, conta
Valesca. Uma mulher passou por onde ela estava, a resgatou e foram imediatamente para o
hospital. Toda profilaxia foi realizada e Valesca foi encaminhada para fazer a denúncia e uma
investigação sobre seu caso foi aberta, inclusive ela foi chamada na delegacia para identificar
possíveis suspeitos. Ou seja, Valesca seguiu todo o protocolo em relação ao crime de estupro.
Apesar da profilaxia, Valesca engravidou. Quando descobriu estava com dois meses. “(...) então
não passava pela minha cabeça que eu estaria grávida, entendeu? porque quando aconteceu um
anjo né, que deus mandou na vida, me levou pro hospital e tal e eu tomei tudo, coquetel, tudo,
pílula do dia seguinte, só que...”. Ela procurou o serviço de referência da sua cidade porque
sabia que era direito seu interromper a gestação.

Então, já tava decidida a fazer. Então recorri ao hospital da mulher que tem na
minha cidade pra poder fazer o aborto legal. Só que até eu consegui o aborto
legal demora, entendeu? Só que lá o procedimento dele pra interromper a
gestação é com quatro, cinco, quatro meses, cinco meses. Entendeu? Foi o que
eles me disseram lá. Então minha mãe já tava desconfiada porque a minha
menstruação estava atrasada. Eu tava chorando bastante, então, eu fui falei
com uns amigos e consegui comprar o remédio, né? para poder fazer. Ai fiz o
ilegal mesmo, mas graças a deus deu tudo certo, entende?

O atendimento ofertado para Valesca foi cuidadoso e atencioso, de acordo com a sua
narrativa. Ela foi atendida pela equipe e nenhuma indagação discriminatória sobre a violência
foi proferida. Porém, o serviço inventou um critério para a realização do aborto legal. Quatro
ou cinco meses de gestação significa mais de 20 ou 22 semanas de gestação, sendo esse o tempo
limite para realização do aborto em caso de estupro no Brasil. Quanto mais cedo se interrompe
a gravidez, mais seguro é para a mulher. A proposta era fazer com que Valesca esperasse para
quando retornasse ao hospital já estivesse fora do prazo legal para realizar o procedimento.

“(...) no começo foi bom, entendeu? porque eu tava com a psicóloga e tava
tipo, tudo dando certo. Eu fiz ultrassom tal pra saber quanto meses tava. Bateu
certo a data do abuso com os meus meses, entendeu? Tudo certinho. o que
aconteceu foi que elas disseram que tinha que mandar um negócio ainda pra
justiça, entendeu? Esse negócio ia demorar muito então, ai eu fiz, eu decidi
fazer, comprei o remédio e fiz mesmo eu mesma”.

Apesar da Norma Técnica de 2005 do Ministério da Saúde, ainda em vigor, dispor que
não é necessário Boletim de Ocorrência para a mulher interromper a gestação no caso de
estupro, esse ainda é um documento pedido frequentemente pelos serviços para dificultar o
acesso.No caso de Valesca ela já o tinha e isso foi apresentado ao serviço, que precisou construir
uma outra narrativa para impedi-la de acessar o aborto seguro. Diante da humilhação social
sofrida no serviço, já que esta é caracterizada também por impedimentos e privações que
196

impossibilitam grupos sociais subordinados de exercerem seus direitos, Valesca precisou


recorrer ao aborto na clandestinidade. A postura equivocada do serviço relegou Valesca à uma
experiência de aborto clandestino e inseguro mesmo que ela tenha apresentado todas as
comprovações do crime de estupro que sofreu.
As pesquisas de Nunes e Moraes (2016) e Machado et al. (2015), ao analisarem histórias
de gravidez decorrente de estupro, salientam que o estupro é uma experiência fulcral na vida
das mulheres. Sentimentos de vergonha e culpa atuam de modo que dificultam a busca de ajuda.
A ajuda institucional ainda é mais custosa. Nem as delegacias, nem as unidades de saúde de
referência figuram como equipamentos confiáveis e acessíveis para as mulheres. Nunes e
Moraes (2016) indicam que primeiro as mulheres buscam métodos clandestinos para
interromper a gestação prevista em lei. A possibilidade de mulheres cobertas pela lei realizarem
abortos com métodos clandestinos também é apontada por Diniz et al. (2016), pois apenas
metade das mulheres que buscaram atendimento nos serviços pesquisados conseguiram
interromper a gestação. A interrupção da gestação em caso de estupro é traduzida pelas
mulheres como alívio e a melhor solução para as suas vidas (MACHADO et al., 2015), pois
aquela gestação seria marcada por uma série de sentimentos negativos decorrente da violência;
essa e o agressor estariam sempre associadas à imagem da criança (NUNES; MORAES, 2016).
Não obstante, medidas mais radicais poderiam ser adotadas pelas mulheres caso não
conseguissem o direito ao aborto, como suicídio. Apesar de ser compreendida como a melhor
decisão, as mulheres relatam sentimentos dolorosos em torno da experiência do abortamento.
É um momento mobilizante, de demanda emocional densa, na qual valores precisam ser
reavaliados para a situação ser mais aceitável para elas mesmas (MACHADO et al., 2015).
A falta de conhecimento sobre os serviços de aborto legal e onde buscar ajuda
institucional é uma realidade quando as mulheres se deparam com uma gravidez decorrente de
estupro (NUNES; MORAES, 2016; MACHADO et al., 2015). Isso faz com que elas cheguem
ao serviço já com a gestação avançada, sendo necessário mobilizar recursos emocionais que as
façam olhar para a gravidez, rechaçada devido à violência, de uma outra forma (NUNES;
MORAES, 2016). O direito ao aborto legal é necessário para reconhecer a autonomia das
mulheres diante da sua vida reprodutiva, bem como a reparação da violência sexual. Obrigar
uma mulher a levar adiante uma gravidez nesse contexto configura tortura e grave violação aos
direitos humanos das mulheres, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O cenário dos serviços de aborto legal por estupro é complexo. A ambiguidade moral e
legal do aborto no Brasil constrói uma esfera permeada por descontinuidades, equívocos éticos
e negação de direitos. A falta de capacitação e treinamento adequado das equipes
197

multiprofissionais, os escassos serviços de aborto legal em um país de dimensões continentais,


a concentração dos serviços nas regiões metropolitanas, os regimes de suspeição à narrativa da
mulher, as imposições de uma moralidade de gênero sob uma leitura dos perfis das mulheres
fazem com que essas tenham negadas sua solicitação e não recebam informações básicas, além
da ausência de encaminhamentos adequados. Mesmo quando conseguem interromper a
gestação e avaliam positivamente o serviço, há relatos de reprovação da decisão por parte de
profissionais que alegam princípios religiosos, como exposto por Machado et al., (2015). A
objeção de consciência e os valores morais e as éticas particulares dos profissionais de saúde
não podem ser decisivas para o acesso ou não de um direito previsto em lei. A objeção de
consciência não é absoluta, pois o estado brasileiro é laico. Caso ocorra a recusa ao atendimento,
a usuária precisa ser encaminhada a outro médico e ser devidamente informada das suas opções
legais frente àquela gravidez (MADEIRO et al., 2016).

6.2 “A rua inteira quer a laqueadura de Eliane”: a vigilância da vida reprodutiva das
mulheres no Sertão.

Como mencionado anteriormente, a esterilização é aqui compreendida como uma


cultura, nos termos de Berquó (1996). Em São Elesbão de Assum a esterilização é vista como
um método contraceptivo e não como um procedimento cirúrgico de encerramento da vida
reprodutiva. A maternidade é valorizada entre as mulheres do sertão, mas não como um projeto
individual, mas intimamente relacionado ao valor-família, característica de um modo de vida
camponês. Entretanto, a maternidade é determinada pelo racismo patriarcal. Isso significa dizer
que as opressões de classe, gênero, raça, geração e território interseccionam-se produzindo
diversas formas de viver e sentir a maternidade.
A cultura da esterilização funciona como um regulador dessa variedade da maternidade.
Às mulheres cabe a responsabilidade de ter filhas(os), mas não quantos elas quiserem,
tampouco no tempo escolhido por elas. A vida reprodutiva das mulheres jovens, pobres, negras
e dos sítios é constantemente vigiada pela “rua inteira”. Assim, nesta seção discutiremos as
questões que envolvem aborto, racismo e esterilização a partir de dois eixos. O primeiro analisa
quem pode ter filhas(os), na perspectiva de problematizar os motivos pelos quais a esterilização
tornou-se tão popular entre as mulheres. No segundo eixo, examinamos se a esterilização pode
ser entendida como uma alternativa ao aborto.
198

6.2.1 Quem pode ter filhos?

A maternidade é um tema permeado por tensões, haja vista a sua relação com o tema da
população e desenvolvimento, racismo, pobreza e território. A maternidade já foi compreendida
dentro do feminismo como uma fonte de poder das mulheres –‒ o poder de gerar a vida –‒ que
tornavam-nas poderosas e os homens invejavam essa fonte de poder (SCAVONE, 2001). Em
um outro momento a maternidade foi completamente rechaçada por ser identificada como a
fonte de opressão das mulheres, até ser reconhecida como uma prática social, cujo significado
social é atribuído pelas relações de dominação (SCAVONE, 2011). A desnaturalização do mito
do amor materno permitiu recusar a maternidade como um processo biológico, instantâneo, que
conecta naturalmente a mulher e o bebê por meio do cordão umbilical. A maternidade tem uma
história social que a situa de modo diferenciado para as mulheres.
Para as mulheres negras a maternidade é desenhada pelo racismo. Para as feministas
negras, a exemplo de Collins (2019), as análises sobre maternidade transcendem o biológico,
haja vista que as mães de criação desempenham uma função tão importante nas comunidades
negras quanto as mães biológicas. Ainda, Collins (2019) situa a maternidade como uma
instituição que é ao mesmo tempo dinâmica e dialética. Ou seja, a maternidade é sustentada por
tensões. A naturalização da maternidade como um sinônimo de amor materno para as mulheres
brancas e a imagem da maternidade tradicional atrelada a família nuclear, tornando a
maternidade compulsória para as mulheres brancas não se replicou igualmente para as mulheres
negras. No caso dessa pesquisa, não se aplica da mesma forma para as mulheres negras, pobres
e dos sítios.
Inspiro-me no arquétipo da maternidade como instituição dinâmica e dialética e nas
imagens de controle em torno da maternidade elaborada por Collins (2019) para compreender
a esterilização no sertão pernambucano. De fato, as tensões em torno da maternidade como
prática social e como instituição são distintas. Há uma instituição maternidade vinculada à
família que a valoriza e que a torna um destino social para as mulheres. Mesmo que as mudanças
nos padrões sociais e nas dinâmicas de gênero nas últimas décadas, a exemplo da expansão das
mulheres no mercado de trabalho e o advento dos métodos contraceptivos, a maternidade ainda
continua sendo uma prática valorizada e outorgada para as mulheres.
Tal fato é nítido ao analisarmos a maternidade como instituição no sertão. O discurso
de que o filho é o ritual necessário para a mulher se tornar mãe e ter valor social não é apenas
frequente, mas norteador das práticas dentro e o fora do hospital do sertão. Diariamente eu
ouvia “filho é uma benção” ou “não há nada mais importante no mundo que ter um filho”.
199

Atrelados a essas frases casos de mulheres muito jovens que planejaram a gestação. Uma vez
uma senhora cuja nora estava em trabalho de parto iniciou uma conversa comigo sobre a minha
vida pessoal: quem eu era, o que estava fazendo ali, se era casada e se tinha filhas(os). Ao
responder que não tinha filhas(os) recebi como resposta: “Mas você é nova, né? Ainda tem
tempo”. Expliquei que tinha 30 anos e ela disse que era melhor eu começar a me apressar para
ter logo um filho. Nada do que eu disse antes sobre estar em doutoramento e ser uma
pesquisadora chamou a atenção dela. Poderíamos fazer uma análise geracional dessa conversa,
afinal era uma senhora de mais de 60 anos. Porém, era algo corriqueiro entre pessoas mais
jovens também.
Enquanto estava na espera obstétrica conheci Carol, uma adolescente negra de 15 anos
e moradora do sítio. Estava esperando seu primeiro filho e já era casada com um homem de 19
anos. Conversamos durante toda a manhã e em um determinado momento perguntei se ela
engravidou por falha contraceptiva. Carol de forma segura me disse que não e que a gestação
foi planejada, demonstrando o valor social da maternidade no sertão. Esse discurso social
impacta, obviamente, a forma como o aborto é encarada no sertão. A cobrança social de ser
uma boa mãe, junto ao orgulho de ser uma mãe que sacrificou tudo pelos filhos é justificativa
para condenar moralmente as mulheres que recorreram ao aborto. Pamela, estagiária do
hospital, ao me contar das amigas que fizeram aborto enquanto conversávamos na pracinha do
hospital não poupou elogios a si mesma enquanto taxava as amigas de ‘mães ruins’: “O que
mais me incomoda é que elas fizeram porque o parceiro não quis. Eu tenho duas filhas de pais
diferentes. Mas tive. Não tava grávida já? Teve pressão, teve pressão da minha família, mas eu
tive”.
Então, a maternidade como instituição apresenta-se de forma pretensamente organizada
e coesa, naturalizada por discursos biológicos e religiosos de que ser mãe é uma “benção de
Deus”. E isso teoricamente se aplicaria a todas as mulheres. Já que o aborto é condenado de
forma tão aguda naquela comunidade, faz sentido que a maternidade seja valorizada.
Entretanto, as conversas no planejamento familiar nos apresentam tensões inerentes a
maternidade que abrem um hiato entre maternidade como instituição e maternidade como
prática social. Esse processo é mediado pelas preocupações em torno da pobreza e população
legitimadas pelo racismo brasileiro. Como já mencionado em capítulo anterior, tanto o aborto
quanto a esterilização são permeados por uma arena de contraditórios que se hierarquizam a
fim de formar um espaço de produção e reprodução de desigualdades. Raça, geração, classe e
território são opressões centrais desses dois fenômenos sociais, pois as mulheres jovens, negras
e pobres são o alvo dessas políticas reprodutivas.
200

Ao passo em que a maternidade é naturalizada enquanto instituição e um destino social


das mulheres, a esterilização também é normalizada entre as mulheres através do discurso
médico (FONTENELE; TANAKA, 2014). Devido às dificuldades de acesso e o manejo
contraceptivo, bem como a árdua negociação do uso do preservativo com os parceiros mediada
pelas relações patriarcais, a esterilização como método contraceptivo mais eficaz foi
amplamente disseminada entre as mulheres. Utiliza-se na saúde o termo “laqueadura” e não
esterilização. Uma forma de higienizar o debate, visto que esterilização significa tornar estéril
e não suspender a capacidade reprodutiva por um tempo determinado. Esse debate não é posto
de forma honesta na sociedade, gerando arrependimentos entre as mulheres que passaram pelo
procedimento (GONÇALVES; GARCIA; COELHO, 2008; FONTENELE; TANAKA, 2014)
e desconfiança quanto aos demais métodos contraceptivos. Além do mais, as mulheres negras,
pobres e jovens são as mais afetadas por esse procedimento irreversível.
O planejamento familiar do hospital do Sertão acontece duas vezes por mês e atende
pelo encaminhamento da atenção básica. A reunião acontece na sala de atendimento
psicossocial conduzida por uma profissional da enfermagem e da psicologia e/ou o serviço
social. O atendimento consiste em duas partes. Primeiro, as orientações gerais e triagem. Na
primeira reunião de planejamento que participei o psicólogo conduziu e explicou os métodos
contraceptivos como um todo: preservativo, diafragma, pílulas, DIU e o procedimento da
laqueadura e vasectomia. Nas outras reuniões esse momento não existiu. Todo o planejamento
é concentrado no DIU, laqueadura e vasectomia, o que faz sentido já que é da atenção básica a
responsabilidade de fornecer as orientações contraceptivas e é responsabilidade da média e alta
complexidade, os procedimentos cirúrgicos e ambulatoriais. Assim, nesse primeiro momento
há as explicações dessa natureza, o reconhecimento de quem fará qual procedimento e se essas
pessoas estão dentro dos critérios, sendo orientado às gestantes que busquem novamente o
planejamento, pois não é permitido realizar os procedimentos estando grávidas. Infelizmente,
eram muitas as que procuravam o hospital do sertão encaminhadas indevidamente pela atenção
básica. Elas deixavam a reunião retrucando e perguntando “vão me abrir para tirar o menino e
depois abrir de novo?”. Ouviam como resposta que infelizmente era desse jeito. Não eram
orientadas que realizar a esterilização no momento do parto cesáreo traz uma série de
complicações, como por exemplo aumentar os riscos de infecções, além de incentivar cesáreas
desnecessárias. A segunda parte do planejamento diz respeito ao atendimento individual que
consistia no preenchimento de uma ficha de atendimento com os dados da usuária e usuário e
201

as informações dos demais passos para realizar o procedimento75. Depois de realizar os exames,
as usuárias retornavam ao hospital para consulta com a médica responsável pelo planejamento.
Após a consulta, é marcada a cirurgia ou procedimento de DIU.
A Lei 9.263 de 1996, a lei de planejamento familiar, determina que não é permitido
realizar esterilização nos momentos de parto e abortamento. Ainda, é necessário respeitar o
espaço de 60 dias entre a expressão da vontade da pessoa e a realização do procedimento. Como
já mencionado anteriormente, a lei de planejamento familiar é fruto de uma discussão sobre a
esterilização em massa das mulheres no Brasil. Apesar da CPMI de 1993 não apresentar
diferenças significativas entre a esterilização entre mulheres negras e brancas, fato contestado
por Berquó (1994) e Roland (1995), a questão racial foi um dos fatores determinantes nessa
pesquisa.
Assisti o planejamento de cerca de 40 pessoas, dessas 30 eram mulheres, 28 negras e
duas brancas, mais da metade da zona rural e quase todas com idade entre 25 e 35 anos.
Massivamente a demanda era pela esterilização e quando persuadidas de optarem pelo DIU
demonstravam muita desconfiança. ‘É um aparelhinho, né?’; ‘sai do lugar?’; ‘aumenta
cólicas?’, eram dúvidas frequentes que mesmo quando respondidas não descontruiam a
desconfiança por aquele procedimento. A esterilização é familiar para as mulheres,
proporcionando a segurança que elas precisam de não ter mais filhas(os), pois naquele contexto
o aumento da prole agravaria a situação de vulnerabilidade. O cuidado com as(os) filhas(os)
recaem quase exclusivamente para as mulheres. Junto a isso, há a ausência de creches na cidade
e do trabalho extenuante na terra o que torna a ‘laqueadura’ atrativa para as mulheres.
Porém, é nítido que as mulheres recorrem a esterilização por um discurso erguido de
que a laqueadura é um método contraceptivo e não uma cirurgia irreversível. A esterilização
não é condizente com as dinâmicas da vida. Mulheres de 20, 23, 25 anos procurando o serviço
para se tornar estéreis significa o fracasso das políticas contraceptivas no Brasil e não o êxito.
Ademais, a aceitação passiva dessa demanda pelo serviço de saúde não significa que esse
apenas contribui para esse imaginário social, mas que é parte fundamental dessa construção
pois são instituições legitimadas socialmente e que abrigam as autoridades médicas. Entretanto,
é fato que o respaldo da esterilização como melhor alternativa contraceptiva transcende os
serviços de saúde, sendo compartilhada com a comunidade como um todo.
Esse quadro traduz a vitória do pensamento malthusiano e do embranquecimento racial
sobre os direitos reprodutivos. As mulheres negras, jovens, pobre e das zonas rurais têm as suas

75
Para colocar o DIU necessita apenas de um exame de gravidez e um preventivo. Para realizar a laqueadura
necessita ainda de um parecer cardiológico.
202

vidas reprodutivas restringidas ao encerramento, pois é isso que a esterilização significa: o


encerramento da vida reprodutiva das mulheres. O agravamento desse cenário ocorre pela
ausência de autonomia diante da decisão de se realizar a esterilização, haja vista que em estudo
de Gonçalves, Garcia e Coelho (2008), 25% das mulheres submetidas ao procedimento
alegaram que não participaram da decisão, e que as informações passadas foram insuficientes,
o que gerou arrependimentos e tristezas (GONÇALVES; GARCIA; COELHO, 2008;
FONTENELE; TANAKA, 2014).
Nesses dois cenários, as tensões relativas à maternidade se aprofundam, pois, nos fazem
perguntar quem pode ser mãe na matriz de dominação do racismo patriarcal brasileiro. O lapso
entre o discurso do “filho é uma benção de Deus” e a esterilização corriqueira das mulheres
negras, jovens, pobres e das zonas rurais tornou-se mais evidente no atendimento de Eliane,
conduzido pela enfermagem e pelo serviço social. Ela chegou para o atendimento acompanhada
da prima do ex-parceiro, uma mulher branca de cerca de 40 anos.
Eliane é uma jovem negra, de pele escura, de 27 anos, reside em um bairro periférico e
tem três filhos: um de sete anos, dois anos e um ano. Assim, que entram na sala de atendimento
psicossocial a acompanhante se apressa em dizer: “Ela tem uma escadinha de filhos, tem que
fazer”. A taxa de fecundidade das mulheres no Brasil a partir de 1980 esteve acompanhada de
uma mudança de postura da sociedade em torno do número de filhas(os) que uma mulher
deveria ter. Associa-se, como já mencionado, a pobreza ao maior quantitativo de crianças em
uma determinada família. Atualmente, temos no Brasil uma taxa de fecundidade de 1,73 contra
4,07 no começo da década de 1980. Ter filhos(as) é o esperado de uma mulher desde que o
quantitativo se encaixe dentro de um limite pré-estabelecido. A acompanhante segue
explicando que “é melhor fazer laqueadura do que ficar ‘perdendo”. Quando indagada na
entrevista social se já teve um aborto, Eliane disse que não. Enquanto as profissionais de saúde
preparavam os papéis para começar o processo, a acompanhante disse: “A rua toda lá quer a
ligação de Eliane”. Ela repetiu essa frase várias vezes durante o atendimento. Valentina em um
desses momentos de uma forma tímida e rindo diz que Eliane precisa querer também. Mas
nenhuma outra intervenção foi feita no sentido de resgatar a autonomia da jovem durante o
atendimento. A rua inteira quer o encerramento da vida reprodutiva de uma jovem negra porque
o corpo dela não pertence a si mesma: esse corpo pertence à violência sexual, ao tráfico de
mulheres, à cristalização da figura da mulata nua no carnaval, ao trabalho doméstico mal
remunerado. Assim, na hora de ‘planejar’ a capacidade reprodutiva esse corpo não fala,
precisando de uma porta-voz branca para dizer quantas filhas(os) ela deve ter, uma encenação
203

legitimada por duas plateias: a ‘rua inteira’ e o serviço de saúde. “Já são três filhos, quando eu
vejo aquela escadinha, chega dá uma agonia”, continua a acompanhante.
Quando perguntada se ela realmente gostaria de fazer a laqueadura, Eliane responde que
cuida dos filhos sozinhas e que está se separando do parceiro. A esterilização aparece como
resposta para as desigualdades de gênero. Durante os meses de planejamento, foram frequentes
as frases “eu cuido dos filhos sozinha”; “é muito cansativo”; “meu marido não ajuda”; “ah!
Jamais ele faria vasectomia”. Apesar das mudanças no padrão das relações de gênero, a
exemplo da quantidade significativa de homens que procuraram o atendimento para vasectomia
no hospital do sertão, as relações patriarcais permanecem estruturando a vida das mulheres.
Assim, não é a diminuição do número de filhos(as) a estratégia necessária para alcançarmos a
democratização da vida social através da atenuação das desigualdades de gênero.
Para facilitar o procedimento, foi retirado da ficha que ela era casada para o parceiro
não precisar assinar. Nitidamente, a assinatura do parceiro é uma medida presente na legislação
que precisa ser repensada, mas a preocupação de Eliane com a necessidade da assinatura dele
poderia indicar uma situação de violência que não foi questionada. E o desfecho do atendimento
se tornou mais dramático.
Melissa, para minha surpresa também, diz que era para ter feito a laqueadura
no último parto, que foi cesárea. “Eu ia fazer, mas Dr. X me enganou”, explica
Eliane. A profissional de enfermagem ignora complemente os prazos
impostos pela legislação. Elas levantam para ir embora, mas antes a
acompanhante fala para Valentina e Melissa: “Vim aqui em nome de toda a
população de Caixa d’água que quer essa ligação, já para garantir”.
Melissa ri e pisca para ela (como despachando a pessoa) “pra ela fazer mesmo,
né?”. Elas saem (Diário de Campo, 24/10/2018).

A normalização da esterilização entre mulheres jovens, negras, pobres e dos sítios está
intimamente relacionada com a concepção de que as mulheres negras são procriadoras da
violência. Essa percepção é um desdobramento das teorias racialistas de embranquecimento:
uma nação de negros e mulatos não tem como ser uma nação desenvolvida, portanto precisamos
de uma mestiçagem redentora. Uma nação de negros seria incivilizada, não produtiva,
selvagem. Poderíamos pensar que tal pensamento tenha ficado no século XIX com João Batista
Lacerda. Entretanto, com o racismo cultural potencializado por Gilberto Freyre, o
embranquecimento subsumiu as questões de classe e perpetua-se sem as devidas contenções.
O médico baiano, Elsimar Coutinho, diretor do Centro de Pesquisa e Assistência em
Reprodução Humana (Ceparh), reatualiza a ideologia do embranquecimento tornando-a
204

palatável ao século XXI. Em entrevista para o seu próprio site76 argumenta que o planejamento
familiar, leia-se esterilização, diminui a violência. Ora, sabendo que quem são esterilizadas
cotidianamente nesse país são as mulheres negras, seriam elas então as perpetuadoras da
violência? Por gerar filhos(as) que potencialmente são criminosos? A relação entre esterilização
das mulheres negras e pobres com a redução da violência expressa a reatualização do racismo
científico dentro do racismo patriarcal brasileiro.
Ademais, a tese de que a redução da fecundidade diminuiria a pobreza demostrou-se
equivocada: temos uma taxa de fecundidade de 1,73 e uma concentração de riqueza
exorbitante77. Segundo Roland (1995), a taxa de fecundidade diminuiu, porém as mulheres
continuam pobres. “A fecundidade foi reduzida no Brasil a um custo altíssimo pago pelas
mulheres, a quem foi vendido um sonho impossível de se realizar sem que se altere a cruel
concentração de renda no Brasil” (ROLAND, 1995, p. 510).
Nesse sentido, ao ser vendida como uma fórmula mágica de resoluções dos diversos
problemas sociais que acometem a vida das mulheres brasileiras, a esterilização tornou-se
massiva, tendo em vista que 40% das mulheres brasileiras em idade reprodutiva são
esterilizadas, bem como a procura pelo procedimento no planejamento familiar. Entretanto,
após a esterilização as mulheres percebem que concordaram com um procedimento sem as
devidas orientações, bem como a ausência de mudanças sociais em suas vidas. Pelo contrário,
estudo de Fontenele e Tanaka (2014), ao entrevistar 16 mulheres esterilizadas que aguardavam
a fertilização in vitro, encontram como resultado tristeza, arrependimento e sofrimento
emocional. A proposta não é generalizar esses dados, haja vista que entrevistaram mulheres que
tiveram novamente vontade de engravidar, mas apontar a gravidade de tornar as mulheres
estéreis sem as devidas informações. Ademais, a cirurgia de recanalização78 não poderia ser
realizada nessas mulheres, pois o procedimento de laqueadura danificou ou extirpou as trompas
uterinas.
A procura pela recanalização é escoltada pelo desalento, pois não é um procedimento
comum no serviço público. As mulheres que procuraram o hospital do sertão com a demanda
de recanalização não foram encaminhadas para outro serviço. “A decisão tem que ser bem

76
Ver mais em: <http://www.elsimarcoutinho.com/entrevistas/planejamento-familiar-diminui-violencia-diz-
elsimar-coutinho/ >. Acesso: 12 dez. 2019.
77
30% da riqueza é concentrada em 1% da população, situando o brasil entre os países de maior desigualdade de
renda do mundo, de acordo com a Pesquisa de Desigualdade Mundial de 2018. Ver mais em:
<https://www.ufjf.br/ladem/2019/05/30/brasil-tem-maior-concentracao-de-renda-do-mundo-entre-o-1-mais-
rico/>. Aceso em: 12 dez. 2019.
78
Recanalização tubária é o procedimento cirúrgico de reversão da esterilização, por meio da reconstrução das
trompas uterinas. É preciso que as trompas não tenham sido danificadas de nenhuma forma durante o
procedimento de esterilização.
205

pensada, pois a cirurgia de recanalização é rara e no SUS a fila é imensa”, explica Melissa em
um dos encontros do planejamento familiar. “Eu mesma não conheço ninguém quem faça”,
completa. Como a lógica do planejamento familiar é focada na restrição da fecundidade das
mulheres (e de homens) procedimentos como recanalização e fertilização in vitro não fazem
parte da rotina desse serviço. Essa concepção dificulta, inclusive, a recepção da demanda por
parte dos profissionais de saúde.
Simone procurou o planejamento familiar com o marido, encaminhada pela atenção
básica. “Não sei se foi nó ou corte”, comenta aleatoriamente ao entregar os papéis do
encaminhamento para Cecilia, que neste dia estava com assistente social do plantão79. Cecília
explicou que no planejamento é feita a laqueadura ou o DIU, destacando este último. Simone é
casada, agricultora, tem 34 anos e dois filhos. Seu companheiro é mais novo, tem 23 anos e é
tapeceiro. Ambos são brancos, mas se declararam pardos. Passaram todo o atendimento de mãos
dadas. Compreendo que este é o seu segundo casamento. Cecilia continua preenchendo a ficha
de laqueadura. Pergunta se o companheiro dela não queria fazer a vasectomia já que era um
procedimento mais simples do ponto de vista clínico. “Mas eu já sou ligada”, explica Simone.
Demorou um pouco para Cecilia compreender que a demanda era recanalização.
A usuária realizou o procedimento no casamento anterior, mas casou novamente e se
arrependeu da esterilização. Simone gostaria de ter um filho com o novo parceiro. Cecilia
explica que o hospital não realiza esse tipo de cirurgia. “Só se vocês conhecerem algum médico
que faz”. O semblante deles era de decepção. “Ah, por isso que a mulher não entendeu”, disse
Simone olhando para o companheiro. “Infelizmente, vocês terão que procurar, aqui não
fazemos”, finaliza Cecilia.
Eva, a outra enfermeira que atende no planejamento familiar, relatou que recebeu uma
usuária com a demanda de recanalização. “Olha, Nathália é muito triste porque a gente vê que
tem o desejo de ter outro filho, mas na época não pensaram direito”. O discurso da esterilização,
na verdade, não deixa espaço para a análise do “pensar direito”. As mulheres se arrependeram
da esterilização porque não tinham a dimensão do impacto do procedimento em suas vidas
reprodutivas. Na ânsia de ter controle da sua capacidade reprodutiva, em meio a políticas
contraceptivas restritas e ineficazes, ausência de educação sexual, racismo que envolve a
maternidade como instituição e como prática social e as relações patriarcais, as mulheres

79
Não há uma equipe específica para o planejamento familiar. As profissionais que estão no plantão se
comprometem com o planejamento. Porém, como as equipes se organizam por dia da semana que estão no
serviço, há a possibilidade de estipular quem é a assistente social, psicóloga e enfermeira que conduz o
planejamento. Porém, o tempo que estive em trabalho de campo apenas as enfermeiras se mantiveram as
mesmas: Melissa e Eva.
206

submetem-se à esterilização sob as promessas de melhorar a condição de vida no que concerne


à pobreza ou atenuar situações de violência doméstica, diminuir a sobrecarga do trabalho
doméstico não remunerado ou até mesmo conseguir romper com um relacionamento, no qual
mais um(a) filho(a) significaria mais um obstáculo para sair de uma determinada relação.
Entretanto, não é possível enfrentar o racismo patriarcal brasileiro tornando mulheres
jovens, negras, pobres e das zonas rurais estéreis. Esse pensamento apenas individualiza
problemas que são estruturais. Como já mencionado, as dimensões de raça, classe, gênero, bem
como de território não podem ser reduzidas às posturas dos sujeitos. Coerção ou omissão não
são os princípios norteadores dos direitos sexuais e direitos reprodutivos das mulheres, que
desde a década de 1990 são consolidados como direitos humanos. Os debates sobre população
e desenvolvimento tiveram como marco a Conferência do Cairo que, em 1994, reconheceu que
as mulheres são sujeitos de direitos capazes de tomar as decisões referentes à suas vidas
reprodutivas. O número de filhos(as) não pode ser estimulado ou restringido por causa dos
interesses políticos, econômicos ou sociais de uma nação. Os corpos das mulheres, em especial
os grupos subalternizados como as mulheres negras, jovens, pobres e das zonas rurais, não
podem ser responsabilizados pelas condições estruturais da pobreza, racismo e desigualdades
sociais.

6.2.2 O encerramento da vida reprodutiva como alternativa ao aborto?

A vida reprodutiva das mulheres é determinada historicamente pelas condições sociais


e econômicas de uma dada sociedade. Enganam-se aquelas e aqueles que acreditam ser esse um
tema secundário ou de fácil explicação. Reprodução expressa diretamente as relações entre
população, desenvolvimento e trabalho, entre Estado e soberania nacional. Debates geopolíticos
desaguam no corpo das mulheres os jogos de poder que por muito tempo se traduziram
unicamente em controle de natalidade. Ou em morte.
Uma perspectiva decolonial nos conduz à análise da reprodução dentro de um projeto
em que a mulher colonizada vê a sua humanidade extirpada e sua capacidade de gestar
demonizada, pelos postulados que relacionam negritude e criminalidade e as simbolizações dos
úteros negros como perpetuadores da morte. Mukasonga (2017) nos conta sobre a vida das
mulheres em situações de guerra:
Eles pegaram Merciana e a levaram até o meio do pátio, um lugar onde todo
mundo podia ver. Tiraram a roupa dela, deixaram-na completamente nua. As
mulheres esconderam seus filhos debaixo dos panos. Lentamente, os dois
militares pegaram as espingardas. “Eles não miravam no coração, repetia
207

minha mãe, e sim nos seios, somente nos seios. Eles queriam dizer a nós,
mulheres tutsis: ‘Não deem a vida a mais ninguém, pois, na verdade, se
colocarem mais alguém no mundo, vocês vão acabar trazendo a morte. Vocês
não são mais portadoras da vida, são portadoras da morte’. (MUKASONGA,
2017, p. 22)

Exterminaram Merciana como quem extermina um povo inteiro. As mulheres negras


representam a continuação, a resistência, o contravento das situações de desumanização. Nas
sociedades democráticas o controle da capacidade reprodutiva das mulheres ocorreu por meio
de diferentes instrumentos e diferentes graus de violações de direitos, como já mencionado
anteriormente. A maternidade como instituição manifesta-se em um discurso que
aparentemente abarca todas as mulheres: é compulsória. Como prática social, a maternidade
abriga uma série de tensões, ou seja, são práticas constituídas a partir das opressões
interseccionais de raça, geração, classe e território que restringe a maternidade a uma obrigação
controlada.
Aqui, tratam-se de controles meticulosos que decidem sobre corpos subalternizados
espoliados de autonomia. Mecanismos diversos decidem quem pode ou não acessar o direito à
maternidade e de que forma se pode ser mãe, quantos filhos(as) pode ter, como pode parir, se
pode ou não abortar e, sobretudo, quem deve encerrar a vida reprodutiva o mais cedo possível.
Os direitos reprodutivos não conseguem garantir a integridade reprodutiva das mulheres rurais,
das jovens pobres, das mulheres negras de país. As mulheres sertanejas deparam-se com o
discurso de que casem, tenham um(a) filho(a) nas condições ideais, mas não tenham muitos,
pois será “uma escadinha que dá agonia”, ou serão responsabilizadas pela pobreza e racismo
estrutural.
Diversas pesquisas realizam a relação entre esterilização e pobreza e baixa escolaridade
(GONÇALVES; GARCIA; COELHO, 2008; NICOLAU et al., 2010; FONTENELE;
TANAKA, 2014), mas não especificam a raça/cor das mulheres que participaram dos estudos.
Roland (1995) e Berquó (1994) apontam para a íntima relação entre esterilização e racismo, o
que também é corroborado pela pesquisa em questão. A esterilização é imposta como medida
eugênica e como alternativa ao aborto. Encerra-se a vida reprodutiva das mulheres como
justificativa para diminuir o número de abortos. A interrupção da gestação precisa ser legal e
segura para que as mulheres não precisem tomar medidas drásticas na vida reprodutiva, como
a esterilização.
O estudo de Nicolau et al. (2010) debruçou-se em compreender as histórias reprodutivas
de mulheres laqueadas em São Paulo. A pesquisa aponta que mulheres com resistências e
posturas mais negativas em relação ao aborto apresentaram tendência em realizar laqueaduras
208

mais cedo. A mesma pesquisa também demonstrou que mulheres que se esterilizam mais
jovens, ou seja, antes dos 35 anos têm 17 vezes mais chances de se arrepender. A condenação
moral do aborto no Brasil impacta as escolhas reprodutivas, pois induz as mulheres a crerem
que tornar-se estéreis é uma decisão mais digna que interromper uma gestão não prevista.
Ademais, o estudo ainda indica que a ocorrência de um ou mais abortos funciona como um
fator de proteção à esterilização precoce.
O aborto é momento de reflexão na vida das mulheres, provocando reformulações em
suas vidas concernentes aos relacionamentos afetivos e aos desejos acerca da maternidade
(BAJOS; FERRAND, 2002). A experiência de abortamento pode levar as mulheres a decidirem
por não querer (mais) filhos(as) ou por querê-los(as) em outro momento. Assim, mulheres que
passaram pela experiência de aborto podem desistir ou adiar a esterilização.
Entretanto, ressaltamos que a indução de mulheres jovens, pobres, negras e dos sítios à
esterilização não decorre somente da ojeriza à prática de aborto, mas também como controle
dos corpos de grupos populacionais considerados secundários no desenvolvimento da nação.
São as negras com a sexualidade ‘desenfreada’, as jovens irresponsáveis e as mulheres rurais
que, de acordo com conversas em meio a risos nos corredores do hospital, ‘parecem que nem
tem televisão’. O discurso capitalista, racista e neoliberal conseguiu consolidar a relação entre
pobreza e quantidade de filhos sem necessitar de evidências concretas para isso. A esterilização
seria, nessa lógica, o remédio que além de interromper o nascimento de vidas ‘inconvenientes’,
também diminuiria o número de abortos. O que não ocorreu, pois apesar de termos 40% das
mulheres em idade reprodutiva laqueadas, os números de aborto são altos, com já discutidos
anteriormente.
209

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa tese começou a ser desenvolvida em 2016, ano marcado pelo golpe contra a
presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff e pela ascensão das forças antipopulares ao
poder, atravessou o fascismo e termina em meio a uma pandemia. Durante o doutorado, assisti
ao desmonte das políticas de educação e ciência e tecnologia com a tomada do governo por um
projeto político fascista que vê o conhecimento e a ciência como inimigos. A escalada do
pensamento único, característica proeminente do fascismo, tenta mascarar a diversidade que
singulariza a formação social do Brasil. O reconhecimento da diversidade de cores, gêneros,
sexualidades, sotaques, modos de vida, territórios, etnias é o que torna a democracia um projeto
pelo qual vale a pena lutar.
Nesses anos, estudar aborto e racismo tornou-se um perigo ao mesmo tempo em que
representa o caminho correto a se trilhar, pois espelha a nossa ousadia de confrontar um projeto
político nefasto. Encerrar esse processo é difícil porque o que se escreve é também fruto da luta
coletiva concreta. Tomando emprestado as palavras de Andrea Martini (2007), encerro esse
ciclo “esvaziada de mim e repleta de outros... quase cheia, de ossos fraturados; atropelada”.
Assim para tornar inteligível o fim deste texto, organizo as considerações finais a partir do que
foi feito, do que foi aprendido e o que é importante fazer.
Esse caminho começa com a racialização da questão do aborto. As pesquisas no Brasil
apontam o aborto como uma prática social amplamente realizada pelas mulheres (AQUINO,
MENEZES, 2009; BRASIL, 2010; DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017). Ao completar 40
anos, uma a cada quatro mulheres fará um aborto ilegal (DINIZ, MEDEIROS, MADEIRO,
2017). As pesquisas ainda mostram que as mulheres negras, jovens e pobres são as mais
afetadas pela criminalização do aborto (DINIZ, MEDEIROS, MADEIRO, 2017; GOES, 2018;
MADEIRO, RUFINO, 2017). Assim, o aborto é um episódio reprodutivo que afeta a vida das
mulheres de modo racialmente diferenciado.
A frequência da prática do aborto na vida das mulheres negras está relacionada à
precariedade das suas vidas de modo geral. Como apontado por Davis (2016), as mulheres
negras e latinas nos Estados Unidos não recorriam ao aborto como alternativa a uma gravidez
imprevista, mas como alternativa frente às condições miseráveis de vida. Na escravidão, o
aborto, assim como o infanticídio, era uma estratégia das mulheres negras de não ter filhas(os)
em um sistema de desumanização das pessoas negras. A despeito da abolição, o capitalismo
colonial criou estratégias de manutenção do núcleo da dominação baseada na raça. Assim, a
geopolítica do mundo é conduzida pela mão do racismo (QUIJANO, 2005) que continua
210

dividindo o mundo em linhas raciais (SOUZA SANTOS, 2009) e perpetuando a política de


supremacia branca (hooks, 2019) mesmo no mundo pós-abolição.
A questão do aborto é racializada na medida em que compreendemos o racismo como
estruturante da vida em sociedade, portanto, elemento definidor das dinâmicas da vida
reprodutiva das mulheres. Nesse caminho, assim como Roland (1995), ressaltamos que a vida
reprodutiva das mulheres negras é marcada pelo controle racista sobre seus corpos. Mortalidade
materna, esterilização em massa, acesso precário a políticas contraceptivas, extermínio dos seus
filhos e criminalização do aborto são os elementos que retratam esse cenário.
O aporte teórico que nos conduz é o feminismo negro em diáspora. Uma forma
especializada de pensamento (COLLINS, 2019) por meio do qual podemos analisar as
estruturas de opressão que constroem a vida em sociedade, considerando as experiências, o
conhecimento e as práticas políticas das mulheres negras. Ainda o feminismo negro em diáspora
está comprometido com análises sociais que partem das estruturas coloniais de dominação.
Dessa forma, a raça é central para as relações coloniais de dominação (QUIJANO, 2005). Trata-
se do centro da ferida colonial que constitui a colonialidade do poder-saber-ser. Os processos
de intensa desumanização do sujeito colonizado, resultado do processo de expropriação e
violência na colonização, relega as mulheres negras à invisibilidade, aos estereótipos, à
erotização dos seus corpos e aos piores índices sociais.
O racismo patriarcal (WERNECK; IRACI, 2016) é como designamos a matriz de
dominação pela qual as opressões interseccionais são organizadas para produzir desigualdades
e injustiças. Nesse sentido, o racismo brasileiro e as relações patriarcais atuam de forma
imbricada fomentados por um capitalismo dependente. O resultado desse processo é um
racismo que se apresenta como cordial, chama a si mesmo de antirracista (GUIMARÃES, 1999)
e nega as desigualdades raciais. A mestiçagem é resultado de um esforço do Estado brasileiro
em busca do embranquecimento. Apesar de fracassarem na construção de um Brasil branco, as
elites ergueram o mito da democracia racial, dificultando a constituição de identidades entre a
população negra. Vivemos em um país que insiste em dizer: somos todos brasileiros e não
negros ou brancos.
O Movimento Negro Unificado denuncia há mais de 40 anos o mito da democracia
racial como uma farsa das elites e a miscigenação como uma estratégia de embranquecimento.
A luta da população negra organizada resultou em algumas conquistas, tais como: lei de cotas,
Estatuto da Igualdade Racial, Programa Juventude Viva, entre outras. Contudo, mudanças nas
estruturas de supremacia branca requerem um tempo histórico considerável. Além disso, a
resistência da população brasileira em relação à discussão racial dificulta a transformação do
211

padrão dessas relações. De fato, nos últimos anos com ascensão do fascismo ao poder,
assistimos também a uma mudança nesse debate. Frases e posturas racistas proferidas por Jair
Bolsonaro, representante desse projeto político no Brasil, causaram indignação e a resposta a
essas posturas foi a efervescência do debate sobre racismo.
Partindo desse aporte, realizamos uma pesquisa narrativa sobre aborto no sertão de
Pernambuco utilizando a observação participante como estratégia metodológica privilegiada
para acessar as histórias que importam (ADICHIE, 2010). A pesquisa narrativa (CLANDININ;
CONNELLY, 2011) permite a compreensão dos modos de vida, das estruturas sociais, bem
como das estratégias de resistência utilizadas pelo sujeito. Durante o trabalho de campo, as
histórias que emergiram naquela paisagem possibilitaram a análise das ambivalências e
particularidades sobre aborto no sertão. Ainda, empreendemos uma análise racializada, na qual
as experiências de mulheres negras e brancas foram consideradas e diferenciadas.
A questão do aborto no sertão traduz-se em uma trama complexa e ambivalente que
envolve silenciamento e publicização, humilhações e apoio, situando sua prática ao mesmo
tempo como, frequente, tolerada, condenada e racialmente diferenciada. Organizamos essa
problemática em três cenários: o cenário ilegal, o cenário legal e a relação entre a esterilização
e aborto. No cenário ilegal encontramos ambivalências no cuidado costuradas pela ausência do
anonimato. A prática do aborto é condenada moralmente, haja vista que confronta o valor-
família próprio do campesinato brasileiro, mas também presente em cidades de pequeno e
médio porte. As relações de proximidade proporcionam uma rede de ajuda maior às mulheres,
porém as relações de interconhecimento terminam por publicizar as experiências do aborto. No
cenário legal, a questão do anonimato é aprofundada, visto que a fofoca funciona como um
regulador do acesso aos serviços. Diferentemente do cenário ilegal, no qual a clandestinidade
do aborto é o centro da problemática, no cenário legal, o racismo apresentou-se como ordenador
das práticas, comportamentos e condutas.
Ainda, a cultura da esterilização (BERQUÓ, 1996) é amplamente compartilhada
pelas(os) profissionais de saúde e pelas mulheres. Tal cultura é resultado das políticas eugênicas
implementadas pelo Brasil desde o início do século XX. Apesar da família ser um valor
fundamental entre as pessoas dos contextos rurais, a esterilização é vendida como um produto
de enfrentamento à pobreza. A política incipiente de contraceptivo, as dificuldades de negociar
a contracepção com os parceiros e as orientações inadequadas por parte dos serviços de saúde
fazem com que as mulheres continuem recorrendo com frequência à esterilização como método
contraceptivo. Assim, essa é vista como uma forma de evitar gestações de mulheres negras,
jovens pobres e rurais, consideradas como responsáveis pelo aumento da pobreza. Também é
212

compreendida como uma alternativa ao aborto, quando, na verdade, o aborto legal e seguro é
uma medida quer resguardar a vida reprodutiva das mulheres, já que estas não precisariam
recorrer a esterilização ou, ao menos, a esterilização precoce.
É importante ressaltar que o cenário do aborto em seus três desdobramentos constrói-se
diferentemente mulheres negras e brancas, jovens e adultas, urbanas e rurais. No caso dessa
pesquisa, afeta de forma desigual mulheres dos sítios e da rua. O silenciamento é a principal
características das histórias sobre aborto entre as mulheres dos sítios. Nesses lugares, há maior
controle das ações individuais devido às relações de interconhecimento e a descoberta do aborto
poderia fraturar as relações entre aquela mulher e sua comunidade. Além da prática do aborto
significar uma violação direta ao valor-família.
Os aprendizados durante a jornada foram inúmeros. Aprendi sobre o peso do racismo
na produção de conhecimento desse país. A colonialidade do saber reflete-se no epistemicídio
dos povos colonizados e na construção de verdades universais que tem a branquitude como
referência. Difícil construir uma tese sobre aborto em meio a uma estrutura de conhecimento
que insiste no jargão “quem mais morre e adoece pela criminalização do aborto são as mulheres
negras e pobres”, mas que ao mesmo tempo insiste em pesquisas que se distanciam da
perspectiva racial ou sequer apresentam os dados segregados por raça/cor. Aprendemos que o
racismo é ordenador das práticas sociais. Portanto o aborto é um fenômeno racializado, no qual
as mulheres negras e brancas apresentam uma multiplicidade de experiências, inclusive de
resistência.
Aprendi que a pesquisa é uma prática social negociada que tem na ética o motor
propulsor. A observação participante mostrou-se uma estratégia metodológica potente nas
pesquisas sobre aborto. Como o aborto é um tema difícil de se investigar, sobretudo, em
comunidades rurais e com traços de ruralidades, a observação participante permite identificar
nuances importantes, inclusive no que concerne ao racismo.
A observação participante ainda requer negociações e interações cotidianas em um
ambiente institucional hierarquizado e ordenado pelo racismo. Foi penoso presenciar diversas
cenas do cotidiano do hospital. Alguns atendimentos foram intensos e desgastantes. Muitas
vezes me indaguei sobre qual era a postura ética mais adequada. É ético assistir ao racismo em
silêncio? Ao mesmo tempo como pesquisadora não gozava da autoridade para interferir em
determinadas cenas. Essa interação requereu energia e trouxe muitas angústias. Elaborei
diversas estratégias para lidar com as situações adversas e ao fim do processo aprendi que ser
ético também é cuidar. Perdi diversas oportunidades de escutar histórias por avaliar que abordar
as mulheres à beira do leito não era a melhor opção; perdi outras porque rejeitei o contexto de
213

autoridade em que fui colocada, pois avaliei que havia constrangimento por parte das usuárias,
retirei-me de espaços para respeitar o sigilo e a privacidade das profissionais ou das usuárias
mesmo sendo autorizada a estar ali. Ainda, orientei usuárias e profissionais, elaborei fluxos para
propor ao hospital, participei de capacitações com os profissionais, promovi debates dentro e
fora do hospital. A ética ultrapassa os processos formais.
Aprendi também sobre as estratégias de resistências. Apesar da criminalização do aborto
causar inúmeros sofrimentos e humilhações para as mulheres, elas utilizam-no também como
uma estratégia legítima frente às suas condições de vida. É a escolha possível em contextos de
adversidade. As mulheres, ainda, enfrentam os processos institucionais que lhes são postos:
chamam a polícia para conseguir atendimento, negam o aborto como provocado, performam a
vítima para não serem criminalizadas, utilizam as pessoas de fora como porta-vozes80, valem-
se das relações locais para burlar os trâmites e conseguir os procedimentos. Trata-se de diversas
estratégias às quais as mulheres necessitam recorrer em um contexto de restrição dos direitos
reprodutivos.
Por fim, ainda há muito por fazer. Como já mencionado, há uma lacuna de estudos sobre
aborto em uma perspectiva racial. As feministas negras vêm abordando o tema da justiça
reprodutiva como aporte analítico para compreender a vida reprodutiva das mulheres negras. É
imprescindível relacionar o aborto com a maternidade livre e a justiça social para que a
interrupção da gestação não seja uma alternativa frente a pobreza.
A violência obstétrica é outro tema caro ao debate do aborto. Esse tema é relativamente
recente e esteve presente em todo trabalho de campo. A violência obstétrica estrutura as
dinâmicas da vida reprodutiva das mulheres de forma eficaz e silenciosa. Diante do estigma
sofrido pelas mulheres rurais e pelas mulheres negras, é salutar a elaboração de estudos sobre
o tema.
Consideramos importantes estudos que aprofundem a relação entre racismo e a vida
reprodutiva das mulheres fora dos grandes centros urbanos. Durante o trabalho de campo,
diversas questões mostraram-se relevantes: o poder médico e os direitos reprodutivos das
mulheres no sertão, o poder local e a vida reprodutiva das mulheres nas cidades de pequeno e
médio porte, a resistência das parteiras tradicionais, a incorporação da figura das parteiras nas
instituições de saúde em cidades do sertão, a prática do aborto nas comunidades indígenas e

80
Uma das mulheres que conheci na espera obstétrica, perguntou se eu era enfermeira. Expliquei que era
pesquisadora e contei sobre o que era a pesquisa. Prontamente, ela disse: “pois venha cá que eu vou lhe contar
como esse hospital é ruim, pra quando você falar lá na universidade alguém faça alguma coisa pra mudar. A
gente é só um pedaço de carne aqui”.
214

quilombolas, os impactos dos estigmas na saúde sexual e reprodutiva das mulheres dos sítios,
a relação entre aborto, racismo e violência doméstica.
Investigações sobre os temas mencionados em diversas áreas de conhecimento são
necessárias para melhor compreensão da questão do aborto em uma perspectiva interseccional.
As pesquisas sobre aborto precisam se distanciar do sujeito mulher universal para dar palco a
multiplicidade de experiências que desponta da vida concreta das mulheres.
Os tempos atuais requerem inovação político-teórica. A legalização do aborto é
fundamental para a democratização da vida social, mas as estratégias políticas para alcançarmos
precisam ser antirracistas. Nesse caminho, o aborto precisa ser compreendido como justiça
reprodutiva para as mulheres, aliados à luta por melhores condições de vida, pela maternidade
livre e contra o extermínio da juventude negra.
215

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