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Mestrado em Lingüística
FRANCA
2008
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II
III
AGRADECIMENTOS
À professora Dra. Maria Silvia Olivi Louzada, por sua paciente e dedicada
orientação.
À minha família: Solange, Maria e Tiago, pela compreensão diante das horas
gastas neste trabalho.
À Universidade de Franca.
V
RESUMO
Este trabalho buscou refletir sobre o processo de construção e enfrentamento dos discursos
pró-aborto/pró-vida a partir dos conceitos que o lingüista francês Dominique Maingueneau
expôs em “genèses du discours” (1984), especialmente os referentes ao primado do
interdiscurso, que mostram como discursos que se encontram em concorrência – como os
discursos pró-aborto e pró-vida de nossa pesquisa – não se constituem de forma independente
para serem em seguida colocados em relação, mas estruturam suas identidades a partir de uma
formação regulada dentro de um campo discursivo. Outros conceitos, tais como identidade,
cenografia e discursos constituintes também foram discutidos neste trabalho e constituíram o
embasamento teórico que nos permitiu trabalhar um corpus que, partindo dos exemplares da
revista Veja editados entre junho de 1997 e junho de 2007 – dos quais selecionamos todas as
matérias concernentes ao tema “aborto” – se estendeu a um amplo conjunto de matérias
veiculadas no mass media mundial e aos sites de grandes entidades governamentais e de
organizações não governamentais mundialmente conhecidas. Procuramos trabalhar diversos
pontos de emergência desse tema, tendo como resultado um material amplo que, acreditamos,
espelha as diversas tendências discursivas sobre a temática do aborto, que é objeto deste
estudo.
РЕЗЮМЕ
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................................... 01
INTRODUÇÃO
1
Internacionalmente conhecidos como pro-choice e pro-life. O termo pró-escolha, tradução literal de pro-choice,
parece não ter se firmado no Brasil, por isso usaremos pro-choice/pro-life ou pró-aborto/pró-vida.
2
para serem em seguida colocados em relação, mas estruturam suas identidades a partir de uma
formação regulada dentro de um campo discursivo.
aborto. Aqui temos a oportunidade de utilizar uma nova abordagem, onde a interação
semântica entre os discursos não é mais um processo de interincompreensão regrada, de
tradução do Outro nas categorias do Mesmo, sob a forma de simulacros, mas sim “uma
análise da ‘constituência’2 dos discursos constituintes [...], mostrar o vínculo inextricável
entre o intradiscursivo e o extradiscursivo, a imbricação entre uma organização textual e uma
atividade enunciativa” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 62). Essa atividade enunciativa “se
instaura como dispositivo de legitimação de seu próprio espaço, incluindo seu aspecto
institucional; ela articula o engendramento de um texto e uma maneira de inscrever-se
num universo social” (ibid., grifo nosso). Entre outros, utilizaremos os conceitos de
discursos constituintes, paratopia, particitação e hiperenunciador.
2
Termo usado no sentido de auto-instauração, autofundação, conforme a nota do tradutor em MAINGUENEAU
(2006b, p. 62).
4
Quando lemos diversos trabalhos e/ou resumos atuais que procuram pertencer a
Análise de Discurso de orientação francesa, publicados nos mais diversos anais e/ou
cadernos de resumos tanto de eventos nacionais quanto de eventos internacionais, é
possível constatar a recorrência do enunciado ou de suas paráfrases: este trabalho se
fundamenta na análise do discurso francesa a partir das idéias de Bakhtin, Pêcheux e
Foucault. Numa leitura acurada dos trabalhos, no entanto, é possível constatar a
presença de conceitos que pertencem desde a Retórica Aristotélica até conceitos
advindos da Análise da Conversação, conceitos esses forjados em bases epistêmicas,
bastante divergentes daquelas da Análise de Discurso francesa (BARONAS, 2005,
p. 4).
3
A França é dividida em 100 departamentos. Val-de-Marne é um desses departamentos.
4
Artigo disponível em: <http://www.discurso.ufrgs.br/sead2/doc/sentido/Roberto.pdf.>. Acesso em 02 de out. de
2007.
6
(1) AD-1 (1966-1975) – As duas obras marcantes desse período são “Análise Automática do
Discurso”, publicada em 1969, e Les Vérités de la Palice, lançada em 1975 (aqui no Brasil
este livro foi publicado com o título “Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do
óbvio”). Aqui temos o conceito de máquina discursiva, fechada sobre si mesma, onde o
conceito de heterogeneidade não é considerado. Nessa fase são trabalhados os grandes
discursos, como os discursos políticos, produzidos a partir do interior de lugares sociais
mais estáveis e, portanto mais homogêneos. Os procedimentos de análise da AD-1 são
descritos de maneira bastante clara por Mussalim (2004):
5
Estas são, na verdade, apenas algumas referências cronológicas sobre a Escola Francesa de Análise do
Discurso. Um estudo abrangente sobre suas origens deveria, entre outras coisas, remontar às condições históricas
que permitiram a emergência de suas bases e da própria Análise do Discurso. Por exemplo: o papel do
romantismo alemão na formação do conceito de inconsciente na teoria freudiana (a imagem – tantas vezes
mostrada – de Freud caminhando pelos asilos e, apenas a partir de observações sobre a condição histérica,
intuindo a presença de componentes inconscientes constituintes da personalidade humana, exclui o papel
fundamental do já citado romantismo na constituição das teorias da Psicanálise). Infelizmente tal estudo
extrapolaria totalmente as dimensões deste trabalho.
7
d) Por fim, procura-se mostrar que tais relações de sinonímia e de paráfrase são
decorrentes de uma mesma estrutura geradora do processo discursivo.
(2) AD-2 (1976-1979) – Nesta fase a visão de uma máquina discursiva estrutural, homogênea
e fechada em si mesma começa a ser abandonada. É aqui que aparece o conceito de
formação discursiva (FD). Esse conceito encontra sua origem no livro “A Arqueologia do
Saber” de Michel Foucault, onde ele é construído passo a passo:
Finalmente, o que se chama “prática discursiva” pode ser agora precisado. Não
podemos confundi-la com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula
uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser
acionada em um sistema de inferência; nem com a “competência” de um sujeito
falante, quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas,
sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e
para um determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições
de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 1987, p. 136).
(3) AD-3 (1980-1983) – Aqui temos um conceito de sujeito heterogêneo, cujo inconsciente
faz parte de sua identidade. Aqui também aparece o conceito de interdiscurso, lugar onde
teriam origem, em uma relação dialógica6, os discursos que pertencem a uma determinada
FD. Este conceito receberá um tratamento bastante detalhado no livro “Gênese dos
discursos”, escrito por Dominique Maingueneau.
6
O conceito de dialogismo foi formulado por Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975).
9
7
A abordagem técnica da concepção ocupa 23 páginas ilustradas com dezenas de imagens.
10
O autor considera que essa hipótese pode receber duas interpretações, uma
fraca e outra forte. A primeira supõe que um discurso deve ser colocado em relação com
outros. A segunda, que consideramos essencial para nosso trabalho, diz que:
8
A globalização levanta novas questões em um amplo limite de campos, incluída a atividade científica. A
recente evolução da análise de discurso ilumina algumas delas. O desenvolvimento de um campo mundial de
“estudos de discurso”, o qual resulta de uma progressiva convergência de tendências que apareceram em vários
países e em vários contextos teóricos, coloca os estudiosos em uma nova situação: como pode alguém praticar
análise de discurso em um campo que não é estruturado por fronteiras tradicionais?
11
Assim, o Outro não deve ser pensado como uma espécie de “envelope” do discurso,
ele mesmo considerado como o envelope de citações tomadas em seu fechamento.
No espaço discursivo, o Outro não é nem fragmento localizável, uma citação, nem
uma entidade exterior; não é necessário que seja localizável por alguma ruptura
visível da compacidade do discurso. Encontra-se na raiz de um Mesmo sempre já
descentrado em relação a si próprio, que não é em momento algum passível de ser
considerado sob a figura de uma plenitude autônoma. É o que faz sistematicamente
falta a um discurso e lhe permite fechar-se em um todo. É a parte de sentido que foi
necessário que o discurso sacrificasse para constituir sua identidade
(MAINGUENEAU, 2005, p. 39).
9
Embora esse capítulo trate da competência interdiscursiva, o próprio Maingueneau o chamou de “Uma
competência discursiva”, por isso mantivemos o título.
12
discursiva que constituem o Outro dentro do mesmo espaço discursivo, com os quais se
reconhece incompatível, reconhecimento esse que leva a traduzir – e aqui vale o axioma de
que todo tradutor é um traidor – o Outro em seu próprio sistema de restrições. Maingueneau
assim resume sua proposição:
10
Temos pesquisado, durante muitos anos, o confronto entre pró-aborto e pró-vida e jamais encontramos
qualquer coisa semelhante a um pro-choice (pró-escolha) real, ou seja, alguém ou alguma entidade que dê
suporte simultaneamente aos dois posicionamentos, que ofereça opções de escolha. Os assim chamados pro-
choice são radicalmente pró-aborto.
13
Neste ponto somos levados a tratar da delicada questão do Sujeito que ocupa
certa posição enunciativa, a partir de uma determinada competência discursiva, dentro de uma
formação discursiva. Maingueneau, ao mesmo tempo rejeita a figura do sujeito idealista,
individual e “... uma concepção pouco satisfatória dos enunciadores discursivos, ceras moles
que se deixariam ‘dominar’, ‘assujeitar’ por um discurso todo poderoso” (2005, p. 53); pois o
autor considera que “Falar de ‘assujeitamento’, de ‘dominação’, é apenas uma forma de dizer
o resultado de um processo de inscrição numa atividade discursiva...” (2005, p. 53, grifo
nosso). E continua:
6 O modo de enunciação: Maingueneau afirma que “Não se trata de fazer falar um texto
mudo, mas de identificar as particularidades da voz que sua semântica impõe (2005,
p. 95, grifo nosso)”.
15
7 O modo de coesão: o autor considera que toda formação discursiva possui um modo
próprio de construir sua rede de remissões internas, o que influencia, entre outras
coisas, a maneira de construção de sua argumentação.
... o discurso não pode convencer, já que não se pode mostrar uma exterioridade
entre o código de referência e as interpretações dos discursos que se fundam nele. O
público não é convencido pelos argumentos expressos, mas pela própria enunciação
desses argumentos por tal discurso, isto é, pelo universo de sentido ao qual remete
este último. Coerentemente, o discurso convence porque ia pela nossa cabeça o que
já convencia, mais ou menos obscuramente. Reminiscência platônica que permite
dizer “é isso mesmo”, o mesmo marcando a coincidência com a verdade já lá, da
qual o texto seria apenas a explicação ou a repetição. A evidência que produz adesão
vem de outro lugar, e é essa a própria condição de possibilidade do conceito de
discurso: que haja momentos e lugares para os quais uma configuração de sentido
possa ser reconhecida por um conjunto de sujeitos como o Todo da verdade (2005,
p. 118).
filiados a um mesmo sistema global de restrições semânticas, estando submetidos aos mesmos
processos de estruturação:
11
Não confundir com o seu antônimo “esotérico” = hermético, ensinado apenas a poucos discípulos.
12
É sintomático que nessas ocasiões a reação, o contra-discurso, venha sempre da Igreja Católica.
18
Amnesty International today firmly stood by the rights of women and girls to be free
from threat, force or coercion as they exercise their sexual and reproductive rights.
13
Responding to a statement from the Vatican, Amnesty International…
Nossas pesquisas mostram que essas mudanças radicais nos discursos sempre
foram precedidas por mudanças nos membros das instituições que os produzem, existindo
mesmo violentas disputas pelos cargos com poder de decisão. Dois desdobramentos
particularmente interessantes decorrem dessa realidade. O primeiro é o surgimento de grupos
midiáticos diretamente ligados a essas instituições, especialmente à Igreja Católica que,
impossibilitada de se expressar por não encontrar espaço no mass media, criou seus próprios
veículos. No Brasil, no momento em que estamos escrevendo este trabalho, existem quatro
emissoras de TV católicas: Rede Vida, TV Século XXI, TV Aparecida e TV Canção Nova.
Esses grupos possuem, além das TVs, emissoras de rádio, sites na internet e editoras. Nessas
mídias a palavra sempre é dada aos anunciadores que possuem “legitimação discursiva”:
sacerdotes, médicos etc.:
13
A Anistia Internacional hoje se posiciona firmemente junto aos direitos das mulheres e meninas serem livres
de ameaças, força e coerção enquanto elas exercerem seus direitos sexuais e reprodutivos. Respondendo a uma
declaração do Vaticano, a Anistia Internacional... (texto completo e referências no anexo 27, página 243).
19
Para nós, a possibilidade de integrar textos não lingüísticos a uma prática discursiva,
que até aqui era definida apenas com base em seus enunciados, supõe que se possa
proceder à leitura mais abrangente possível desses textos através do sistema de
restrições semânticas. (2005, p.151).
Essa leitura pode ser mais bem compreendida a partir dos parâmetros que o
autor usa para analisar uma determinada pintura. Vamos mostrar o texto do autor e depois
aplicá-lo na análise do nosso corpus:
Com relação ao primeiro ponto devemos dizer que após muitos anos
pesquisando sobre o tema aborto pudemos constatar que os sites, revistas, livros e outras
instâncias midiáticas do movimento pro-choice fazem uso bastante restrito de imagens,
enquanto os grupos pro-life as usam em abundância. O segundo ponto será abordado com
20
... depois de haver construído uma semântica global para a prática discursiva, não
estaríamos impossibilitados de sair dela para articulá-la com a história?
Observar-se-á, todavia, que o simples fato de postular o primado do interdiscurso
afeta já notavelmente o caráter autárquico do modelo semântico, já que não se está
mais diante de objetos fechados e compactos, mas de um espaço de circulação
semântica articulado sobre uma descontinuidade fundadora. Essa descontinuidade,
fonte da interincompreensão, só pode remeter a rupturas que o discurso, em si
mesmo, não poderia explicar. Assim, mesmo que a análise do espaço discursivo não
vá além de um estudo imanente, a estrutura de seu objeto exige sua ultrapassagem
(2005, p. 171).
14
De tal modo essa realidade está estabelecida que se encontra referenciada até nos dicionários: liberalismo:
rubrica: economia, filosofia, política: doutrina cujas origens remontam ao pensamento de Locke (1632-1704),
baseada na defesa intransigente da liberdade individual, nos campos econômico, político, religioso e intelectual,
contra ingerências excessivas e atitudes coercitivas do poder estatal. Conservador: aquele que propugna pelo
autoritarismo e é favorável à tradição, seja monárquica, eclesiástica ou liberalista nas suas formas burguesa e
oligárquica, demonstrando hostilidade a inovações na moral e nas instituições (HOUAISS Eletrônico, 2002,
verbetes “liberalismo” e “conservador”).
23
momento, isso nos impulsionou a trabalhar a partir de um embate amplo entre liberais e
conservadores, que progressivamente se concentraria na oposição pro-choice/pro-life.
Entretanto, nossas pesquisas mostraram que as correlações esquerda/liberal/pro-choice e
direita/conservador/pro-life não são perfeitamente estáveis ao longo da história e,
particularmente, na história contemporânea: “A oposição entre a direita e a esquerda
certamente não desapareceu, mas sua percepção está, num certo sentido, frouxa; as posições
estão flutuantes, os programas mais similares, os antagonismos menos delimitados”
(COURTINE, 2006, p. 107). Além disso, percebemos que o tema “aborto” tem vida mais
longa que os diversos posicionamentos sóciopolíticos que o assumiram ao longo da história.
Por isso, faremos aqui apenas referência ao tratamento dado ao tema dentro do sistema
político norte-americano, uma vez que essa abordagem serve de modelo para o debate em
todo o mundo, embora – e isso é especialmente verdadeiro no caso do Brasil, onde o
posicionamento dos partidos não é claramente definido – esse modelo não seja acompanhado
pari passu. No sistema político americano, entre os diversos aspectos que constituem a vida
humana, dois grupos se destacam: os chamados assuntos pessoais (personal issues) e os
assuntos econômicos (economic issues). O posicionamento dos indivíduos diante desses dois
temas fundamentais resulta em cinco vertentes político-ideológicas:
Para nós, mesmo quando se republicam textos, mesmo quando se produzem novos
textos que parecem resultar da mesma competência discursiva, não se poderia falar
do mesmo discurso. Esse sempre se confunde com a sua emergência histórica, o
espaço discursivo no interior do qual se constituiu, as instituições através das quais
se desenvolveu, os isomorfismos em cuja rede ele foi envolvido. Basta que isso
falte para que a identidade de uma posição enunciativa se desfaça (2005, p. 188,
grifos nossos).
15
A liberdade é indivisível. A liberação das crianças, mulheres, amantes de meninos (pedófilos), e homossexuais
em geral, só pode acontecer como facetas complementares do mesmo sonho. Fonte: <http://www.nambla.org/>.
Acesso em 30 de maio de 2007.
26
Pelo grande impacto que causa em todo o sistema de valores do mundo atual, o
discurso pró-aborto foi escolhido como tema de nosso projeto de dissertação. Aqui se faz
27
16
Conforme a definição clássica, o mundo ocidental refere-se à Europa e os seus herdeiros genealógicos e
filosóficos, principalmente ao continente americano. Também se considera o oeste da África, que mesmo não
sendo um herdeiro genealógico, é considerado pela semelhança cultural. Fonte: <http://pt.wikipedia.org/
wiki/Mundo_Ocidental>. Acesso em: 04 mai. 2007.
17
A Idade Antiga compreende o período entre 4.000 a.C. (descoberta da escrita) e 476 d.C. (queda do império
romano do ocidente); a Idade Média situa-se entre 476 d.C. e 1453 d.C. (fim do império romano do Oriente); a
Idade Moderna entre 1453 d.C. e 1799 (fim da Revolução Francesa) e a Idade Contemporânea iniciou-se em
1799 e prossegue até nossos dias.
28
Ele (o faraó do Egito) disse ao seu povo: “Vede: os israelitas tornaram-se numerosos
e fortes demais para nós. Vamos! É preciso tomar precaução contra eles e impedir
que se multipliquem”. [...] O faraó do Egito dirigiu-se, igualmente, às parteiras dos
hebreus [...] e disse-lhes: “Quando assistirdes às mulheres dos hebreus, e as virdes
sobre o leito, se for um filho, matá-lo-eis; mas se for uma filha, deixá-la-eis viver”.
Mas as parteiras temiam a Deus, e não executaram as ordens do Faraó do Egito,
deixando viver os meninos (Êx. 1, 9).
18
Devido aos riscos inerentes ao aborto, o infanticídio foi amplamente usado na antiguidade como forma de se
eliminar os filhos não desejados, pelos pais ou pela sociedade, podendo, portanto, ser tratado como sinônimo de
aborto.
19
Nossas reflexões sobre o conceito de cenografia, conforme exposto por Maingueneau, sinalizam a existência
de arquétipos cenográficos, que atravessam culturas e sociedades, mudando apenas seus elementos acidentais e
mantendo suas estruturas fundamentais (“Já vi este filme antes...”).
20
O Didaqué foi escrito provavelmente entre os anos 90/100 e é possivelmente o primeiro Catecismo da Igreja
Católica.
29
É importante destacar que, por ser este um trabalho sobre o discurso, temos
interesse nas mudanças ocorridas no processo discursivo que sempre esteve imbricado à
prática do aborto. Uma mudança particularmente interessante é aquela do discurso em favor
do controle de natalidade em discurso pró-aborto. Conforme teremos oportunidade de ver
durante a análise de nosso corpus, muitos enunciados que pertenciam à contracepção
passaram a ser usados diretamente no discurso pró-aborto, tentando dar a este o mesmo
estatuto daquela. A respeito da dinâmica desse processo, citamos Foucault (1987, p. 82):
21
Secularização é quando a religião deixa de ser o aspecto cultural agregador da sociedade.
22
A Revolução de Fevereiro de 1917 (março de 1917, pelo calendário ocidental), que derrubou a autocracia do
Czar Nicolau II da Rússia, o último Czar a governar, e procurou estabelecer em seu lugar uma república de
cunho liberal e a Revolução de Outubro (novembro de 1917, pelo calendário ocidental), na qual o Partido
Bolchevique, liderado por Vladimir Lênin, derrubou o governo provisório e impôs uma ditadura. Fonte: Nova
Enciclopédia Ilustrada Folha, 1996, páginas 836-837.
30
Uma formação discursiva não desempenha, pois, o papel de uma figura que pára o
tempo e o congela por décadas ou séculos: ela determina uma regularidade própria
de processos temporais; coloca o princípio de articulação entre uma série de
acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos, transformações,
mutações e processos. Não se trata de uma forma intemporal, mas de um esquema
de correspondência entre diversas séries temporais.
Este Congresso da Liga Mundial para a Reforma Sexual declara que, desde que os
métodos contraceptivos atualmente em uso não são suficientemente perfeitos nem
amplamente difundidos, muitas mulheres são forçadas a recorrer à interrupção da
gravidez. Em todos os países, exceto na Rússia Soviética, este ato envolve sérias
penalidades legais. Estas recaem de fato principalmente sobre as mulheres das
classes mais pobres, e não impedem a prática do aborto, mas fazem com que ela se
realize secretamente, incompetentemente e com dano para a vida e para a saúde.
Nós, portanto, clamamos pela abolição das penalidades para a mãe e por uma
revisão das leis que dizem respeito ao aborto de tal maneira que se torne possível
para uma mulher obter uma interrupção da gravidez por um médico qualificado, por
motivos econômicos, sociais e eugênicos, como também para as indicações médicas
já permitidas na presente data.
Esta resolução foi como que uma pedra angular para o movimento
internacional para a revogação das leis do aborto. Foi também através deste
31
23
Dados disponíveis em: http://www.wpro.who.int/sites/rph/data/abortion.htm. Acesso em 20 set. 2007.
24
São comuns os casos de múltiplos abortos realizados por uma mesma mulher. Estudos recentemente realizados
nos Estados Unidos sinalizam a presença de fatores psíquicos e fisiológicos que facilitam uma nova gravidez na
mulher que acabou de abortar – e subseqüente ocorrência de um novo aborto.
32
Nos Estados Unidos, entre 1967 e 1970, cerca de metade dos estados
legalizaram o aborto, porém com várias restrições. Não existia então o chamado abortion on
demand (aborto por solicitação livre ou aborto a pedido). Geralmente a prática só era
permitida até o terceiro mês de gravidez e desde que preenchidas diversas restrições legais,
que variavam de estado para estado.
Em 1970 o estado de Nova York legalizou o aborto a pedido até o quinto mês
de gravidez. Um grande número de mulheres de outros estados americanos começaram a ir
para Nova York para abortar, o que causou acirradas polêmicas e diversas reações. Uma
dessas reações partiu do movimento pró-vida, que realizou uma exposição de fetos de abortos
tardios nas proximidades do Legislativo, impressionando profundamente os políticos que
tinham votado a favor do aborto, bem como a todos que tiveram acesso à mostra. Para que se
tenha uma idéia do que foi visto então, mostramos algumas fotos (anexo 1, página 191).
Bebês como esses eram mostrados aos políticos que haviam votado a lei
aprovando o aborto, ao mesmo tempo em que eram questionados acerca do conhecimento e da
consciência de que o aborto significava aquilo que estavam vendo. O impacto foi tal que em
poucas semanas o Legislativo de Nova York revogou por unanimidade a lei do aborto a
pedido. Entretanto, o governador do estado, Nelson Rockfeller, vetou a revogação e a lei foi
mantida. Nos outros estados americanos, entretanto, a repercussão foi tal que apenas o estado
da Flórida manteve a lei permitindo o aborto. Esta situação durou até 22 de janeiro de 1973,
quando a Suprema Corte Americana votou Roe versus Wade.
33
25
Nos Estados Unidos, em processos judiciais, são usados pseudônimos para preservar a identidade do
queixoso. Jane Roe foi o pseudônimo escolhido para Norma Leah McCorvey. Henry Wade era o promotor do
município de Dallas e representou o estado do Texas perante a Suprema Corte. Essa é a origem do nome da
decisão da Suprema Corte Americana Roe versus Wade.
34
Ora, tudo isso se reflete nos discursos que, como já foi observado, são
produzidos nos Estados Unidos e exportados/importados para todo o mundo. Um desses
reflexos é este: a partir do momento em que o movimento pro-choice se sentiu ameaçado pela
possibilidade de derrubada da lei pró-aborto, seu discurso se tornou mais tímido, buscando
uma posição aparentemente moderada, visando a defender o mainstream (corrente em voga).
No momento, vamos fazer um breve histórico daquela que é a personagem central dessa
decisão, Norma Leah McCorvey.
Ela passou então a trabalhar na indústria do aborto, tendo sido por vinte e dois
anos a poster woman (mulher símbolo) do movimento pró-aborto.
Este capítulo ficaria incompleto sem uma referência mais direta à prática do
aborto, afinal precisamos ter uma visão mais clara sobre o que estamos falando. Por isso
passamos a expor como o aborto é realizado na atualidade. Os procedimentos que
explicitamos foram ampla e detalhadamente descritos pelo médico norte-americano Tony
Levatino – que atuou durante vários anos na área, tendo praticado cerca de 1.200 abortos
pessoalmente – e podem ser lidos em Nazaré (2005 p. 51-56). Faremos aqui uma exposição
resumida e já traduzida para o português.
27
A palavra usada no texto original é abortionist (aborteiro). Como essa palavra aponta para um juízo de valor
pro-life – contrário à isenção que deve marcar todo trabalho cientifico – e como o termo “médico” ofende essa
classe – afinal, relativamente poucos realizam esse procedimento – usaremos expressões como “quem está
fazendo o aborto” ou outras parecidas. Entretanto, gostaríamos de observar que a impossibilidade de usar o
termo “aborteiro” constitui, em si mesma, uma negação que expressa um posicionamento – mainstream – pro-
choice e – tertio non datur – sinaliza a impossibilidade de um posicionamento totalmente neutro em relação ao
nosso tão polêmico corpus. Com efeito, parece-nos que a percepção de isenção deriva de um posicionar-se
conjuntamente (mainstream) em relação a um tema – fato que cria uma ilusão de “imparcialidade enunciativa”.
37
processo é repetido até que todas as partes sejam arrancadas e extraídas. A última parte a ser
extraída geralmente é a cabeça (anexos 2 e 3, páginas 192 e 193).
Além dos métodos cirúrgicos, existem também os métodos que usam certos
tipos de medicamento, como a RU-486 (Mifepristone), um hormônio esteróide sintético que
atua como abortivo. Como esses compostos podem ser facilmente contrabandeados, o
controle sobre esse tipo de prática é bastante difícil.
28
Pensava-se que apenas a terceira opção era usada, por ser a normalmente descrita por médicos praticantes do
aborto aos seus alunos, entretanto, o depoimento de médicos e enfermeiras do ramo, prestados perante a
Suprema Corte americana, revelaram as outras formas. Também gostaríamos de esclarecer que atenuamos os
termos e expressões que aparecem no texto da Suprema Corte. Assim, no original, o esmagamento do crânio do
bebê é descrito como segue: “Another doctor, for example, squeezes the skul after it has been pierced ‘so that
enough brain tissue exudes to alloow the head passe true’” – Outro médico, por exemplo, espreme o crânio após
esse ter sido pinçado “para que o tecido cerebral escorra para permitir que a cabeça passe” (Supreme Court PBA
ban, 2007, p. 8).
38
• O presidente George W. Bush proibiu (ban) o PBA. O caso foi apreciado pela Suprema
Corte americana, sob enorme pressão dos grupos pró-vida e pró-aborto e, em 18 de abril
de 2007 – momento em que estávamos escrevendo este texto – o veto do presidente
George W. Bush foi confirmado e o Partial Birth Abortion banido. Essa derrota
enfraqueceu ainda mais o movimento pro-choice;
• Enunciados como “... the independent existence of the second life can in reason and all
fairness be the object of state protection that now overrides the rights of the woman...”29
(Supreme Court PBA ban, 2007, p. 19), surgem, mesmo como negação, no texto final da
decisão da Suprema Corte, discurso impensável há poucos meses atrás. Expliquemos
melhor esse enunciado, que assinala um divisor de águas, um novo elemento incorporado
ao interdiscurso30 onde se enfrentam pro-choice/pro-life: até o presente momento, a
tendência predominante – mainstream – dizia que os direitos da mulher, mesmo aqueles
subjetivos, como o seu bem estar psicológico, prevaleciam sobre o direito do nascituro à
vida. Essa é a base do aborto a pedido, que não necessita de qualquer justificativa ou
explicação. Agora, o paradigma começa a mudar na direção da relação entre os direitos do
nascituro e os da mãe;
29
Tradução: “A existência de uma segunda vida pode, com direito e imparcialidade, ser um objeto de proteção
do Estado que agora supera os direitos da mulher”.
30
Consideramos a incorporação de novos elementos ao interdiscurso um tema absolutamente fascinante.
Estamos efetuando pesquisas e reflexões nessa área e os resultados parecem promissores.
39
“Dr. Haskell went in with forceps and grabbed the baby’s legs and pulled them
down into the birth canal. Then he delivered the baby’s body and the arms –
everything but the head. The doctor kept the head right inside the uterus... The
baby’s little fingers were clasping and unclasping, and his little feet were kicking.
Then the doctor stuck the scissors in the back of his head, and the baby’s arms
jerked out, like a startle reaction, like a flinch, like a baby does when he thinks he is
going to fall. The doctor opened the scissors, stuck a high-powered suction tube into
the opening, and sucked the baby’s brains out. Now the baby went completely limp.
He cut the umbilical cord and delivered the placenta. He threw the baby in a pan,
along with the placenta and the instruments he had just used. […] After Dr.
Haskell’s procedure received public attention [..] bans on “partial birth abortion”
proliferated. [...] In 1996, Congress also acted to ban partial-birth abortion.
President Clinton votoed the congressional legislation. Congress approved another
bill banning the procedure in 1997, but President Clinton again vetoed it (Supreme
Court PBA ban, 2007, p. 8).32
Destacamos aqui a questão do PBA por ser a de maior impacto sobre o tema.
Entretanto, essa não é a única. Outras questões, como Parental Consent e Parental
Notification (consentimento dos pais e notificação aos pais), são ainda mais polêmicas.
Basicamente, são leis que permitem que menores de idade, pratiquem – ou sejam levadas a
31
O fim de Roe vs. Wade não implicaria na criminalização do aborto nos Estados Unidos, mas sim no fato de
que, segundo o princípio do federalismo, cada estado americano teria sua própria legislação sobre o assunto.
32
O doutor Haskell introduziu o fórceps e agarrou as pernas do bebê e as puxou para a vagina. Então ele fez
nascer o corpo e os braços do bebê – tudo menos a cabeça. O doutor manteve a cabeça dentro do útero. Os
dedinhos do bebê estavam se fechando e abrindo e seus pezinhos estavam chutando. O doutor enterrou a tesoura
na sua nuca e um espasmo percorreu os braços do bebê, como um choque, como uma reação de fuga, como um
bebê faz quando ele acha que vai cair. O doutor abriu a tesoura, introduziu um tubo de sucção de alta potência no
orifício e sugou o cérebro do bebê. Agora o bebê estava completamente mole. Ele cortou o cordão umbilical, e
retirou a placenta. Ele jogou o bebê em uma tina, juntamente com a placenta e os instrumentos que tinha usado.
[...] Depois que a prática do dr. Haskell recebeu atenção pública [...] leis proibindo o aborto no nascimento
parcial proliferaram [...] Em 1996 o congresso também agiu para proibir o PBA. O presidente Clinton vetou a
legislação do Congresso. O Congresso aprovou uma outra lei banindo o procedimento em 1997, mas o
presidente Clinton novamente a vetou.
40
praticar – o aborto sem o consentimento e/ou conhecimento de seus pais. Essas leis variam de
estado para estado.
Duas razões nos levaram a escrever este capítulo: sabermos que, segundo o
princípio do primado do interdiscurso, “a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas
um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos” e que “seria a
relação interdiscursiva, pois, que estruturaria a identidade (dos posicionamentos ou formações
discursivas)” (MAINGUENEAU, 2005, p. 21). Ora, o Outro do posicionamento pro-choice é
o discurso pro-life e, portanto, sem entender este não é possível compreender aquele. Em
segundo lugar, vermos aqui uma oportunidade de tratarmos de alguns aspectos teóricos
aplicados por Maingueneau, particularmente daquilo que o autor denomina de “discursos
constituintes”.
prático, levam ao confronto direto, por vezes violento33. Mas, como já citamos anteriormente,
as formações discursivas pro-choice e pro-life têm suas origens em discursos maiores: o
discurso liberal e o discurso conservador, sendo que o discurso conservador, particularmente
na sociedade ocidental, tem sua origem nos valores do cristianismo, de um modo especial na
Igreja Católica. De fato, movimento pro-life e Igreja Católica se confundem muitas vezes,
chegando ao ponto em que os defensores do movimento pro-choice atacam diretamente a
Igreja, passando por cima do movimento pro-life propriamente dito. Chegamos, então, ao
discurso religioso. Maingueneau, no “prefácio do autor” escrito para a tradução brasileira de
“Gênese dos discursos” no ano de 2004, portanto vinte anos após o lançamento do original na
França34, diz que “pode-se lamentar que o discurso religioso continue a ser o parente pobre da
análise do discurso, ao mesmo tempo em que o fato religioso está particularmente presente no
mundo contemporâneo” (2005, p. 13). Destacaríamos a presença do discurso religioso não
apenas enquanto tal, mas enquanto fonte do discurso pro-life. Isso nos remete a um outro
conceito trabalhado por Maingueneau, o conceito de discurso constituinte:
Até hoje não foi justificada a necessidade de agrupar em uma unidade consistente
discursos como o religioso, o filosófico, o literário, o científico etc. Enquadrá-los em
uma mesma categoria, a de discursos constituintes, permite, porém, pôr em
evidência propriedades comuns que são invisíveis ao primeiro olhar [...] A pretensão
desses discursos [...] é de não reconhecer outra autoridade que não a sua própria, de
não admitir quaisquer outros discursos acima deles. [...] Os discursos constituintes
operam a mesma função na produção simbólica de uma sociedade, uma função que
nós poderíamos chamar de archeion. Esse termo grego, étimo do latino archivum,
apresenta uma polissemia interessante para a nossa perspectiva: ligado a archè,
“fonte”, “princípio”, e a partir daí a “comando”, “poder”, o archeion é a sede da
autoridade, um palácio, por exemplo, um corpo de magistrados, mas também os
arquivos públicos. O archeion associa assim intimamente o trabalho de fundação no
e pelo discurso, a determinação de um lugar associado a um corpo de enunciadores
consagrados e uma gestão da memória [...] Os discursos constituintes dão sentido
aos atos da coletividade, eles são os fiadores de múltiplos gêneros do discurso. O
jornalista às voltas com um debate sobre um problema social recorrerá muito
naturalmente à autoridade do intelectual, do teólogo ou do filósofo. Mas o inverso
não acontece (MAINGUENEAU, 2006a, p. 33-34).
33
Pensamos que grande parte da violência ocorrida durante a história da humanidade pode ser mais bem
analisada a partir dessa premissa.
34
O livro foi publicado pela editora Mardaga, na cidade de Liège, Bélgica, em 1984, sob o título “Genèses du
discours”. A Bélgica faz parte dos países francófonos.
35
Embora portal e site possam ser considerados sinônimos, o termo portal costuma ser aplicado aos grandes
projetos, grandes sites, como o da Universidade de Paris 12, que abriga muitos outros sites, entre eles o do
professor Maingueneau. O endereço do portal da Universidade de Paris 12 é <http://www.univ-paris12.fr> e o
site do professor Maingueneau é <http://www.univ-paris12.fr/www/labos/ceditec/maingueneau.html>. Aqui
43
pode-se acessar livremente muitos artigos e escritos desse professor – em francês e inglês - especialmente
materiais recentemente escritos, o que é realmente interessante.
36
Por natureza, discursos auto-constituintes reivindicam fundar outros e não serem fundados. Essa propriedade
permite a definição de seu status no interdiscurso, mas não corresponde necessariamente às convicções de seus
enunciadores. Tais discursos são ao mesmo tempo auto e heteroconstituintes, dois aspectos inseparáveis:
somente um discurso que constitui a si mesmo pode fundar outros. Portanto o nome discurso auto-constituinte
não deve ser interpretado erroneamente: idealmente, nós deveríamos escrever “discurso (auto) constituinte”, com
“auto” posto entre parênteses. Isso não significa que outras formas de discurso não tenham efeito sobre eles; ao
contrário, discursos auto-constituintes e outras áreas estão sempre interagindo, mas no caso dos discursos auto-
constituintes, essa interação é regida por princípios específicos, os quais são diferentes para cada tipo de
discurso.
37
Presente em 75 países, a HLI é a maior organização pro-life do mundo. Ressaltamos, assim, nosso
compromisso de apresentar apenas enunciadores que sejam representativos em seus posicionamentos, quer sejam
pro-choice ou pro-life.
44
38
Há muitos anos, quando iniciamos nossas leituras sobre os movimentos pro-choice/pro-life, notamos que o
discurso pro-life parecia ser eminentemente católico, fato que pudemos constatar nos anos que se seguiram.
Constatamos igualmente a presença católica em outros movimentos que defendem a moralidade conservadora,
como a oposição à eutanásia, ao casamento homossexual etc. A adesão dos movimentos derivados da reforma
(luterana) só se deu anos depois.
45
devendo, portanto, ser acolhido ou rejeitado? Pensamos que a resposta para as duas questões
seja: uma formação discursiva, em seu processo de nascimento, possui dois referenciais: um
referencial negativo, o reverso, o Outro, aquilo que “faz sistematicamente falta a um discurso
e lhe permite fechar-se em um todo. É a parte de sentido que foi necessário que o discurso
sacrificasse para constituir sua identidade” (MAINGUENEAU, 2005, p. 39) e um referencial
positivo, modelo a ser imitado, um discurso fonte, pai, origem de seu “código genético”: o
discurso constituinte, no qual o discurso “filho” se inscreve: “A inscrição é assim
profundamente marcada pelo oxímoro de uma repetição constitutiva, a repetição de um
enunciado que se situa numa rede repleta de outros enunciados (por filiação ou rejeição) e se
abre à possibilidade de uma reatualização” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 63). Conforme
veremos na análise do corpus que vamos iniciar em seguida, grande parte dos esforços de um
discurso é despendida demonstrando seu posicionamento em relação a esses dois referenciais:
Iniciemos, pois, a análise do corpus que selecionamos para este capítulo. Ele é
formado por quatro grupos de enunciados, distribuídos na tabela 1 (p. 46). O primeiro grupo
de enunciados foi retirado da Bíblia. O segundo da encíclica Evangelium Vitae, do papa João
Paulo II. O terceiro e quarto grupos foram extraídos do discurso de Madre Tereza de Calcutá
por ocasião da abertura do Congresso pela Família das Américas39 e do discurso “The Church
is the Pre-Eminent Defender of the Innocents”, proferido pelo padre Thomas J. Euteneuer,
presidente da ONG HLI .
39
Realizado em julho de 1980 na Guatemala, esse congresso tratou especialmente do tema “Planejamento
familiar natural”.
46
47
afirma Maingueneau: “Com eles44 são formuladas em toda a sua acuidade as questões
relativas ao carisma, à Encarnação, à delegação do absoluto45: a fim de autorizar-se por si
mesmos, eles devem se propor como ligados a uma fonte legitimadora” (2006b, p. 61),
buscam retirar a autoridade do discurso religioso. É, portanto, através da negação de Deus –
fonte legitimadora do discurso constituinte religioso – que se nega esse discurso e não através
da contestação de suas proposições. Não se nega o discurso em si, mas a sua autoridade.
44
Os discursos constituintes. No presente caso o discurso constituinte religioso.
45
“Temos de Deus este mandamento”.
46
Aquele que substitui outro, religioso que, investido dos poderes de outro, exerce em seu nome suas funções
(Houaiss Eletrônico, 2002, verbete “vigário”).
49
É uma difícil negociação entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária que
vive da própria impossibilidade de se estabilizar. Esse estatuto paradoxal resulta da
especificidade desses discursos que só podem autorizar-se por si mesmos: se o
locutor ocupa uma posição tópica, ele não pode falar em nome de alguma
transcendência, mas se não se inscreve de alguma forma no espaço social, não pode
proferir uma mensagem aceitável [...] um profeta ou um filósofo são paratópicos na
medida em que os discursos religiosos o são).
espaço social, a Igreja: está no mundo sem pertencer ao mundo, e por isso ele não pode
modificar os dogmas que formam esse depósito, entre os quais está o da inviolabilidade da
vida humana inocente. Isso implica, entre outras coisas, que o aborto nunca poderá ser
autorizado pela Igreja, conforme declaração realizada pelo papa João Paulo II na encíclica
Evangelium Vitae:
Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em
comunhão com os bispos – que de várias e repetidas formas condenaram o aborto e
que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram
unânime consenso sobre esta doutrina – declaro que o aborto direto, isto é,
querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave,
enquanto morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada
sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da
Igreja e ensinada pelo magistério ordinário e universal. Nenhuma circunstância,
nenhum fim, nenhuma lei no mundo poderá jamais tornar lícito um ato que é
intrinsecamente ilícito, porque contrário à Lei de Deus, inscrita no coração de cada
homem, reconhecível pela própria razão e proclamada pela Igreja (EV, p. 125).
Passemos agora à análise dos dois últimos grupos da tabela 1 (p. 46). Esses
enunciados se situam dentro daquilo que Maingueneau chamou de gêneros segundos: “os
discursos que se limitam a resumir, explicitar etc., uma doutrina já constituída” (2006b, p.
45).
Nas constituições de nossa congregação (não sei se alguma outra congregação o tem
na sua), há algo sobre o planejamento familiar que me marcou. Passo a ler esse
trecho: “Nossos centros de planejamento familiar instruem nossos pobres em relação
à dignidade, à beleza e à expressão do amor no matrimônio, com uma paternidade
responsável, sempre de acordo com os ensinamentos da Igreja, defendendo o direito
absoluto do próprio Deus” (GIBBONS, 1981, p. 22).
É interessante notar como esse excerto, apresentado como introdução, pode ser
analisado dentro do conceito de discurso constituinte com o qual estamos trabalhando. Logo
no início, Madre Tereza fala nas “constituições de nossa congregação”, que são as chamadas
“regras” de uma ordem religiosa, lugar onde são determinados todos os elementos da estrutura
51
dessa mesma ordem, seus objetivos e a maneira de viver a fé. Essa “regra” deve ser aprovada
pelo próprio papa e constitui-se no arquitexto fundamental para todos os que pertencem à
determinada congregação. No fim do fragmento ela diz “sempre de acordo com os
ensinamentos da Igreja, defendendo o direito absoluto do próprio Deus”, evocando a fonte
legitimadora de seus enunciados: “O caráter constituinte de um discurso confere uma
autoridade particular a seus enunciados, que são investidos de toda a autoridade conferida por
seu estatuto enunciativo47” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 43).
47
Nesse caso, falar em nome de Deus.
52
havermos transcrito esse enunciado de Maingueneau, íamos dar seqüência ao nosso trabalho,
a emissora católica norte-americana EWTN transmitia a gravação de um discurso proferido
por Madre Tereza48 para uma grande platéia. Ao final da exposição, diversas pessoas dessa
platéia foram entrevistadas, permitindo-nos ver o processo dinâmico de construção do ethos
pelo destinatário a partir da enunciação do locutor. Os destinatários manifestaram percepções
a nível intelectivo, emocional e espiritual (she made me cry – ela me fez chorar, I’ve felt close
to God – me senti próximo a Deus), estando todos visivelmente contentes. Um outro aspecto
que observamos foi o tom de voz. Ela se expressou muito bem em inglês – embora não seja
falante nativa – e, apesar da idade avançada, tinha um tom de voz firme e que denotava
convicção. Quanto à expressão corporal, em seu conjunto, diríamos que a tônica seria a
humildade. Essa combinação de postura forte e humilde, ao mesmo tempo, é rara, já que se
tende a associar força com orgulho e humildade com fraqueza, sendo esses dois simulacros
bastante usados quando se traduz o Outro na categoria do Mesmo. Enfim, se tivéssemos que
nomear o ethos que percebemos em Madre Tereza, diríamos que se trata de um ethos materno
clássico – a combinação de autoridade e doçura. É importante observar que, além do ethos
discursivo – que é construído durante a enunciação – existe também um ethos pré-discursivo
– formado pelas representações que os enunciatários fazem ou já possuem do enunciador
antes que ele comece o ato de enunciação – conceito que, evidentemente, se aplica à Madre
Tereza. Esse processo acaba sendo uma faca de dois gumes, pois, se por um lado favorece o
enunciador ao criar uma expectativa favorável ao seu discurso, por outro lado cobra dele nada
menos que a excelência.
48
O programa estava quase acabando, mas pudemos assistir cerca de 20 minutos de transmissão. Importante
observar que até então nunca tínhamos tido oportunidade de ver madre Tereza se expressando verbalmente.
49
Plural de ethos.
53
(1) O primeiro excerto pode ser dividido em duas partes. Na primeira, Madre Tereza se coloca
como exemplo. Essa parte corresponde ao primeiro passo da proposição de Maingueneau,
onde “a enunciação da obra confere uma corporalidade ao fiador, dá-lhe um corpo”:
Um dia desses, estive pensando que, se meu pai e minha mãe não me houvessem
querido, se minha mãe me tivesse abortado, hoje eu não seria Missionária da
Caridade. Não poderia cuidar desses leprosos, moribundos, aleijados, indesejados e
esquecidos. Não teria a oportunidade de sorrir e levar alegria a tantos seres
solitários.
Na segunda parte Madre Tereza estende seu exemplo: “Deus criou a cada um
de nós à sua imagem. Nós fomos criados para amar e ser amados. E, se não cumprimos nossa
parte, teremos deixado de experimentar a felicidade de amar e ser amados”. Aqui o processo
descrito no passo dois se torna mais claro, com o destinatário sendo explicitamente instado a
assimilar um esquema que corresponde a uma maneira específica de se relacionar com o
mundo. É fundamental destacar que esse processo existe desde o início da comunicação –
caso contrário o destinatário não teria se integrado a ela – e mesmo antes do início, pois
50
Subsumir = incluir, classificar, agrupar.
54
(2) No segundo excerto, após ter passado por si mesma e pelos seus enunciatários, Madre
Tereza prossegue em seu percurso discursivo até a figura do próprio Deus:
Nós devemos entender como amar a Deus, porque é muito difícil amar um Deus que
não podemos ver, muito difícil mesmo [...] Foi por isso que ele se converteu em pão
vivo para satisfazer nossa fome de Deus, nossa fome do amor de Deus. E, como se
isso não bastasse, converteu-se no faminto, no desnudo, no mais humilde, no
solitário, no indesejado, no doente. E disse: “O que fizeste ao último dos meus
irmãos, a mim o fizestes”. E esse nosso “fazer” representa a satisfação de sua fome
de nosso amor.
51
A necessidade do transcendental é de tal forma intensa que os que apóiam teses materialistas perceberam não
ser possível enfrentá-la pela simples negação ateísta. Essa percepção estaria na origem do movimento NEW
AGE, que procura enfrentar a religião – especialmente o Cristianismo – não por negação, mas por substituição,
através de formas neo-pagãs, que são simulacros de religião sutilmente construídos. O simulacro aqui fica por
conta do redirecionamento de religião – do latim religare, religar o homem a Deus – para um viés que procura
preencher uma necessidade psicológica do transcendental sem, no entanto, realmente conduzir o homem a Deus.
Esse é um tema que estamos pesquisando há algum tempo e as noções de “incorporação”, “fiador” e “mundo
ético” deram novo impulso aos nossos estudos.
52
Utilitarismo que se revela, analisando dentro do viés de nosso corpus, na “criação” do ser humano descartável,
através do aborto e da eutanásia.
55
53
Na verdade, a partir das reflexões do papa Bento XVI na Universidade de Regensburg (2006), podemos
considerar que temos dentro do Cristianismo ocidental dois Thesaurus: (1) o Thesaurus católico que, após um
trabalho de crítica filosófica, tornou o patrimônio filosófico grego uma parte integrante da fé cristã,
especialmente através de Santo Agostinho, que foi um dos principais expoentes da chamada Patrística e o
responsável pelo resgate cristão do pensamento do filósofo grego Platão, movimento onde se buscou explicar a
fé através de argumentos racionais fundados na filosofia Platônica; e da Escolástica, que teve na pessoa de São
Tomás de Aquino um de seus principais pensadores, resgatando o pensamento de Aristóteles e buscando a
harmonização entre fé e razão. (2) A partir de um processo começado com a tese Sola Scriptura, iniciado pela
Reforma luterana no século XVI, começa um trabalho de deselenização do cristianismo nas chamadas “igrejas
oriundas da reforma” que se referem às Escrituras de modo fundamentalista, fundando assim um novo
Thesaurus. Uma análise da constituição do discurso protestante, especialmente do seu viés léxico, a partir de um
processo histórico – a deselenização – certamente seria um trabalho interessante.
56
(3) Finalmente, no último excerto, temos o enunciado “Nós sabemos o que fez Jesus, como
proclamou a boa nova de que Deus realmente nos ama”. Aqui são integrados o enunciador, os
enunciatários e o hiperenunciador no mesmo mundo ético e, a partir desse ponto o discurso
pode assumir um tom mais “familiar”, onde todos se sentem parte de uma mesma
comunidade, onde algo é compartilhado: “nós sabemos... Deus realmente nos ama”.
afirmações de que ele é presidente da ONG pro-life HLI, a maior organização pró-vida do
mundo, presente em oitenta países e que em seis anos viajou mais de um milhão de
quilômetros em sua missão pró-vida. Também a sua foto (anexo 5, página 197), sorridente e
trajando clergyman, ajuda na formação do ethos. É importante enfatizar que o ethos e a
construção da cenografia estão presentes em todo o texto – e em qualquer texto – portanto
nossa análise, ressaltando o ethos em determinado segmento e a cenografia em outro, visa a
clarificar essas noções, sem qualquer equivocada intenção de confiná-las a determinados
segmentos textuais.
54
A inserção do quadro Ta Matete em nosso trabalho nos dá a oportunidade de colocarmos um fato peculiar:
tivemos contato com a realidade do Ta Matete há muitos anos atrás, quando ainda éramos adolescentes. Ao
descobrirmos o conceito de interdiscurso, este nos trouxe à mente os conceitos abarcados por aquele quadro,
formando uma conexão que consideramos interessante expor, ainda que de maneira rápida.
59
(1) “Quando a Igreja Católica defende a vida humana contra aqueles que querem desvalorizá-
la e destruí-la na Era Moderna, ela está simplesmente fazendo o que tem feito durante séculos.
Uma mãe defende seus filhos”.
(2) “Sendo a pecaminosidade humana o que é, cada geração apresenta novos ataques ao
precioso presente da vida dado por Deus, e a vocação da Igreja é se posicionar entre os
atacantes e os inocentes em cada dia e em cada era”. O enunciado “sendo a pecaminosidade
humana o que é” é um exemplo de particitação feita dentro do Thesaurus católico, ou seja,
aqui é referido um conceito de pecaminosidade que é amplamente conhecido por essa
comunidade, dispensando, portanto, maiores definições. Também os “novos ataques ao
precioso presente da vida dado por Deus” coloca noções amplamente conhecidas dentro desse
posicionamento. Finalmente o enunciado “a vocação da Igreja é se posicionar entre os
atacantes e os inocentes em cada dia e em cada era” não só coloca para o fiel aquilo que é
missão da Igreja, mas também o interpela a assumir esse posicionamento, inserindo-se na
“comunidade imaginária daqueles que aderem ao mesmo discurso” (MAINGUENEAU,
2006b, p. 272).
55
Estudos feitos pela lingüista americana Linda Gentry El-Dash (iel.unicamp), da qual fomos alunos em um
curso de pós-graduação na UNIFRAN, indicam que o sentido de sucessão cronológica está presente de forma
muito mais intensa nas línguas neo-latinas, enquanto nas línguas anglo-saxônicas o sentido de estado é mais
marcante. Assim, enquanto em português se diz “Eu comprei uma caneta” (ontem, na semana passada etc.)
marcando um acontecimento dentro de uma cronologia, em inglês se diz “I have bought a pen” (comprei e estou
de posse), marcando um estado, o de possuir (no caso, a caneta).
60
(3) “O século vinte assistiu a uma extraordinária produção de encíclicas e documentos pelos
nossos corajosos papas em defesa da vida humana inocente e das sagradas instituições do
casamento e da família”. Aqui o padre Euteneuer se apresenta claramente como pro-life.
(4) “O papa Pio XI escreveu a encíclica Casti Connubi (1930) para defender a santidade do
casamento e da família quando a Igreja Anglicana permitiu a contracepção em algumas
circunstâncias naquele ano”.
(5) “O Concílio Vaticano Segundo condenou todos os crimes contra a vida humana em sua
Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno (1965)”.
(6) “Em 1968 o papa Paulo VI escreveu sua profética encíclica Humanae Vitae, reafirmando o
seu posicionamento sobre a dignidade da vida humana e a procriação, sendo seguida
logicamente pela encíclica Evangelium Vitae do papa João Paulo II em 1995, defendendo a
vida das violentas e insidiosas forças da morte na era moderna”.
56
Até o início do século XX, embora houvesse a prática do aborto, não existia nada que pudesse ser denominado
“movimento pró-aborto” ou “discurso pró-aborto”.
57
“I’m a child, not a choice” = eu sou uma criança, não uma escolha.
62
outro elemento presente nesse sticker, e cuja análise completa extrapola os objetivos desse
trabalho, é a utilização de um padrão clean ou plain. Esse padrão foi desenvolvido
inicialmente pela empresa IBM para ser utilizado pelos programadores58 na formação de
interfaces59 de computador e consiste fundamentalmente na eliminação de detalhes, de forma
a concentrar a atenção do usuário em determinados pontos. Dessa forma, entre outras coisas, o
usuário é guiado através da tela, embora pense que se move livremente através dela60. O que
acabamos de afirmar se torna mais claro se comparamos o adesivo que estamos analisando
com este outro, cheio de detalhes:
58
Já fomos programadores. Essa inovação surgiu quando atuávamos nessa área.
59
De modo simplista, interfaces são as imagens através das quais os usuários de computador interagem com as
máquinas, como os ícones do Windows etc.
60
Conduzir o enunciatário – intelectualmente, emocionalmente etc. – seria, de acordo com nossas observações e
reflexões, uma das principais funções da cenografia.
63
exemplo, com que certos tipos de roupa tornem as pessoas – aparentemente – mais magras ou
mais gordas.
(1) O site do grupo norte-americano NARAL61 – National Abortion Rights Action League
(Liga de Ação Nacional dos Direitos Abortivos), contém, como imagem principal, apenas um
banner (faixa) no lado superior da tela com o logotipo da entidade e fotos de rostos femininos
que se alternam na medida em que o visitante navega pelo site:
61
NARAL Pro-Choice America is a pro-choice organization in the United States that engages in political action
to oppose restrictions on abortion and expand access to abortion. (NARAL Pro-choice America é uma
organização pro-choice nos Estados Unidos que se dedica a ações políticas para se opor às restrições sobre o
aborto e expandir o acesso ao aborto). Disponível em <http://en.wikipedia.org/wiki/NARAL>. Acesso em 01 de
ago. de 2007.
66
62
(2) Na abertura do site da naf = National Abortion Federation (Federação Nacional do
Aborto) temos o enunciado: “our mission is to ensure safe, legal, and accessible abortion
care to promote health and justice for women” (nossa missão é garantir aborto seguro, legal e
acessível para promover saúde e justiça para as mulheres). No site da IPPF – International
Planned Parenthood Federation (Federação Internacional de Planejamento Familiar), a maior
organização provedora de abortos no mundo63, temos a descrição da entidade por ela mesma:
(3) O site pro-life “Just the Facts” (Somente os fatos – esse título já um exemplo (4) de busca
de uma linguagem factual) tem na sua página inicial uma imagem que abrange quase toda a
tela. Todas as opções do site dão acesso a imagens, inclusive video clips. São centenas de
imagens como estas:
62
The National Abortion Federation (NAF) is an organization of abortion providers. Though originally a U.S.
group, NAF has expanded to include practitioners in Canada and Australia as well as many European countries.
According to their web site, half of all abortions performed in the United States and Canada are performed by
NAF members. (A Federação Nacional do Aborto é uma organização de provedores de aborto. Embora seja
originalmente um grupo norte-americano, a NAF expandiu para incluir profissionais médicos no Canadá e na
Austrália, bem como muitos países Europeus. De acordo com seu site na web, metade de todos os abortos
realizados nos Estados Unidos e Canadá são feitos por membros da NAF). Disponível em
<http://en.wikipedia.org/wiki/National_Abortion_Federation>. Acesso em 01 de ago. de 2007.
63
A IPPF possui cerca de 850 clínicas onde são realizados cerca de 200.000 abortos anualmente; possui também
afiliadas em 180 países. Não se trata, pois, de uma organização que somente defende o aborto. Juntamente com a
NARAL e a naf forma possivelmente o grupo das três maiores e mais influentes organizações pro-choice
mundiais, portanto nossos exemplos são representativos.
64
Tradução: A Federação Internacional de Planejamento Familiar acredita no direito fundamental de cada
indivíduo, através do mundo, de controlar sua própria fertilidade, independentemente de sua renda, estado civil,
raça, etnia, orientação sexual, idade, nacionalidade ou residência.
67
FIGURA 10 – Tela inicial do site Just the Facts. Disponível em: <http://www. http://www.justthefacts.org>.
Acesso em: 28 jul. 2007.
Naturalmente, outros fatores podem contribuir para que uma manifestação seja
mais ou menos incisiva. Assim, em países onde o movimento pro-life está iniciando suas
manifestações, evita-se tanto o uso de imagens fortes como a aplicação de enunciados fortes.
Esse é o caso da França:
FIGURAS 15, 16 e 17 – Protestos pro-life em 15 de janeiro de 2005 na cidade de Grenoble. Disponíveis em:
<http://laissezlesvivre.free.fr/actualite/respectdelavie/2005/vie2005.htm>. Acesso em: 10 out. 2007.
65
O movimento pro-choice é denominado, na França, de pro-choix e é um mouvement de défense des libertés
individuelles (movimento de defesa das liberdades individuais) enquanto o movimento pro-vie se define como
défenseurs de la culture de vie (defensores da cultura da vida). Esses enunciados podem ser encontrados em
<http://fr.wikipedia.org/wiki/Pro-choix> e <http://laissezlesvivre.free.fr/Llv/llv.htm> respectivamente; acesso
em 10 out. 2007. Nossa intenção, aqui, é apenas demonstrar aquilo que temos afirmado desde o início de nosso
trabalho: os discursos pro-choice e pro-life são globalizados.
69
moderado, diz: “Pardon: j’ai écrit ce que je ne pense pas; je me dois d’écrire ce que je pense:
les 220.000 assassinats légaux remboursés par la Sécurité Sociale…’”. (Desculpe, eu escrevi o
que não penso; eu devo escrever o que penso: os 220.000 assassinatos legais reembolsados
pela Previdência Social...).
Para estudarmos esse ponto vamos inicialmente trabalhar com as figuras 18,
19, 20 e 21 deste capítulo. Na figura 18 vemos uma mulher feliz com sua gravidez e na figura
19 uma outra mulher, cheia de ternura com seu bebê; duas figuras que valorizam a
maternidade, em conformidade com o posicionamento pro-life. Na figura 20 temos um bebê,
dentro do útero materno, no sexto mês de gestação. Essas imagens representam um poderoso
discurso em favor da vida intra-uterina, fato que o movimento pro-choice procura negar.
Finalmente, a figura 21 mostra o aborto de forma cruenta, acontecimento que o movimento
pro-life procura colocar em evidência – daí o uso constante de imagens – e o movimento pro-
choice procura negar – razão que o leva a evitar imagens e a usar textos. Neste ponto surge
uma questão fundamental: o que é realmente o aborto? Basicamente, existe inicialmente uma
gravidez:
Figura 20 - bebê com seis meses de idade dentro do útero materno. Disponível em:
<http://priestsforlife.org/resources/abortionimages/fetaldevelopment.htm>. Acesso
em: 20 maio 2007.
E o aborto consiste em eliminar essa vida:
Gostaríamos aqui de chamar a atenção para o fato de que esses três conjuntos
de imagens ameaçam de forma progressiva ao movimento pró-aborto, recebendo por parte
deste atenção diferenciada: “No conjunto de enunciados que lhe são dirigidos, o discurso
responde àqueles que lhe parecem mais ameaçadores” (MAINGUENEAU, 2005, p. 114). A
valorização da maternidade e da vida intra-uterina e a rejeição ao aborto são três objetos
semânticos do discurso pró-vida e estão totalmente de acordo com o sistema de restrições
dessa formação discursiva, portanto esses textos (imagens) são pro-life.
Canadá, Europa e Austrália. Passamos muitas horas navegando por esses sites, selecionando
material que fosse realmente representativo desse viés.
Figuras 22, 23, 24, 25, 26 e 27 – Páginas iniciais de clínicas de aborto. Disponíveis em:
<http://www.alleghenyreproductive.com/>; <http://www.wa-wc.com>; <http://www.camelbackfamily
planning.com>; <http://www.abortionadvantage.com>; <http://www.drbenjamin.com> e
<http://www.illinoisabortion.com> respectivamente. Acesso em: 31 jul. 2007.
(1) As seis telas contêm fotos de rostos de mulheres que são bonitas e sorriem levemente,
refletindo autoconfiança, calma e tranqüilidade. Esse ethos é reforçado pela cenografia
intersemioticamente construída pela combinação de cores, pelas paisagens e pelas flores,
presentes na maioria dessas telas. Particularmente as paisagens amplas – céu, montanhas,
praias – potencializam idéia de liberdade. Destacamos que, ao associarmos diferentes suportes
semióticos, ethos e cenografia, o fazemos seguindo os passos de Maingueneau, e
consideramos ambos – ethos e suportes intersemióticos – como parte pregnante66 da
cenografia: “O discurso não resulta da associação contingente de um ‘fundo’ e de uma
‘forma’; não se pode dissociar a organização de seus conteúdos e do modo de legitimação de
sua cena de ‘fala’” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 67).
Observamos que a mulher, nesse tipo de imagem, geralmente está só, mesmo
quando há mais de uma mulher na imagem, pois, ou se trata claramente de uma montagem –
fotos 22 e 25 – ou, quando não há montagem, a interação entre as personagens é fraca. Aqui
temos, de maneira intersemiótica, os semas individualidade e liberdade pessoal, reivindicados
como positivos pelo movimento pro-choice. Isto fica bastante evidente ao se comparar essas
fotos com aquelas (6 a 9) do movimento pro-life, onde há forte interação entre os
componentes da cena, com especial ênfase para o inter-relacionamento entre pai e mãe, tendo
como centro o bebê – imagem da família clássica, formada por um homem e uma mulher e
seus filhos, sema reivindicado pelo movimento pro-life. Ainda nesse conjunto de imagens
merece destaque a grande valorização da maternidade, cercada de carinho, atenção e amor,
significado permanentemente reivindicado como positivo pelo posicionamento pro-life.
(2) Um aspecto que chama a atenção, especialmente pela sua recorrência, é a presença de
flores e de paisagens nessas telas. As reflexões e análises que temos feito até aqui parecem
indicar que se trata de uma espécie de substituição ou mecanismo de transferência: a vida, o
bebê, como na figura 10 é representada na flor, é a tradução do Outro, do discurso
66
Sem trocadilhos; o termo é de Maingueneau.
74
profundamente pro-life presente na imagem da figura 10, que é traduzido no Mesmo pela
figura das flores. Essa substituição estaria de acordo com a tese de Maingueneau segundo a
qual:
Mesmo quando a transformação parece ter tocado apenas alguns pontos localizados
do texto67 original, é o conjunto da organização que foi recomposto. Como já
sublinhamos no capítulo 3, não existe hierarquia entre os “planos”: uma modificação
na cor das vestes não é em si menos importante do que uma redistribuição de toda a
composição; a supressão de alguns objetos em um canto pode ser tão carregada de
sentido quanto uma reorganização do recorte do espaço. É unicamente em relação às
restrições da competência transformadora que se pode julgar; a filtragem se faz em
função da relação entre as duas competências, e só uma coisa conta: que o texto de
chegada esteja conforme à semântica da competência transformadora. Esse resultado
poderá ser obtido por meios infinitamente variados, desde os aparentemente mais
insignificantes, até os mais patentes (MAINGUENEAU, 2005, p. 158).
(3) Gravidez. Todas as mulheres das fotos 6 a 9 e 18/19 estão grávidas, visivelmente grávidas.
Um detalhe interessante: as fotos (6 a 9) são recortadas, no seu lado direito, por um círculo
que lembra o perfil da barriga na gravidez. Por outro lado, nas figuras pro-choice (22 a 27) a
barriga das mulheres que ilustram as telas não são mostradas. E não estamos nos referindo
apenas a barrigas de gravidez, aquelas com um bebê dentro – interdito máximo do
posicionamento pro-choice – mas também as barrigas sem sinais de gravidez. Talvez aqui o
interdito seja contra a evocação de uma possível gravidez abortada. O fato é que pesquisamos
amplamente nos sites da abortion clinics on line – que reúne cerca de 240 clínicas de aborto
nos Estados Unidos, Canadá e Europa (anexo 28, página 245) – e esse parece ser realmente
um dos interditos da intersemiótica pro-choice.
(4) Sorriso. O sorriso das imagens pro-choice (22 a 27) é leve e discreto, representando um
estado de tranqüilidade. O sorriso das imagens pro-life, especialmente das imagens 6 a 9, são
mais amplos e representam felicidade. Destacamos, para nossa análise, quatro sorrisos.
Durante a pesquisa que efetuamos entre os 240 sites de clínicas de aborto, raramente vimos,
nas modelos que representam as clientes dessas clínicas, um sorriso aberto.
67
O termo texto aqui se refere às imagens.
75
Um detalhe relevante para a análise que estamos empreendendo pode ser visto
na figura 32, ampliação da figura 31. Tem sido observado que, quando o sorriso é verdadeiro,
76
acontece um relaxamento geral dos músculos da face, que acaba por ser envolvida totalmente
no sorriso. É o que pode ser visto na foto de Madre Tereza, na página 51. Entretanto, quando
o sorriso é artificial – e voltamos a lembrar que as mulheres dessas fotos são modelos
profissionais68 – o rosto, especialmente a região dos olhos, não participa completamente do
sorriso. É o que se pode ver na figura 32, grandemente ampliada.
(5) Presença masculina. Essa é freqüente e altamente interativa nas imagens pro-life (estão
cheias de pais babões e corujas). Naturalmente, alguém poderá comentar que são montagens,
ao que responderíamos: montagens feitas de acordo com o sistema de restrições semânticas da
formação discursiva pro-life. Há, entretanto, um outro aspecto da presença masculina que está
além de qualquer montagem: referimo-nos à presença masculina nas marchas pela vida, como
nas figuras 13, 14, 15, 16 e 17 (comparar com as figuras 11 e 12).
(6) Um aspecto mais profundo seria aquele da oposição entre imanente/transcendente69, semas
fundamentais na oposição pro-choice/pro-life. O pensamento imanentista alicerça-se na tese
de que uma “força vital” estaria intrinsecamente ligada ao mundo material, por oposição ao
pensamento transcendental, que enuncia que Deus ultrapassa, é causa externa, está além do
mundo. O posicionamento imanentista é a origem, entre outros, do Humanismo, base
filosófica do discurso pro-choice. Por outro lado, o posicionamento pro-life está embasado no
princípio da transcendência – citamos aqui, de passagem, a Escolástica Tomista70 – e é a base
do posicionamento pro-life. Acreditamos que esta questão poderá ser melhor esclarecida
através de alguns exemplos:
- Evolução versus Criação: a tese criacionista é transcendente – Deus, o criador, está além do
mundo – enquanto a tese evolucionista é imanente – a força que, a partir de matéria
inanimada, cria a vida, é imanente à própria matéria – razão pela qual a teoria da evolução não
pode ser tratada como simples teoria científica, aqui entendida como aquela que se supõe
objetiva. É fácil perceber que, dentro da oposição pro-choice/pro-life, alguém que apóie a
68
É interessante observar que, mesmo que as mulheres que aparecem nas fotos 6, 7, 8, 9, 18 e 19 sejam também
modelos profissionais, elas estão efetivamente grávidas, ao contrário das modelos dos sites pro-choice, que
certamente não acabaram de fazer um aborto.
69
Esta oposição é fundadora. Basta citarmos o início da Bíblia – o livro do Gênese – onde a descrição da criação
esvazia qualquer tentativa imanentista.
70
Este foi o tema central do discurso do Papa Bento XVI, em 12 de setembro de 2006, na Universidade de
Regensburg.
77
teoria da evolução tende a também apoiar as teses pro-choice, enquanto quem aceita a tese
criacionista tenderá a filiar-se às teses pro-life.
- O Iluminismo, ao rejeitar Deus como a força condutora da história e colocar em seu lugar o
homem, associa-se ao viés imanente.
Terminarei com uma questão impossível de ser evitada: a da relação entre discursos
constituintes e a análise do discurso que se debruça sobre eles. Esta última está presa
em um paradoxo insuperável, dado que pertence ao discurso constituinte (científico,
nesse caso), pretendendo ao mesmo tempo estar acima do caráter constituinte de
qualquer discurso. Se pretendesse negar esse paradoxo, a análise do discurso cairia
na mesma ingenuidade da Filosofia, da Teologia e da Ciência, quando, em
diferentes momentos, tiveram a pretensão de reinar sobre a totalidade do dizível.
Como não está em questão para a análise do discurso se auto-proclamar a única
instância de legitimação, cabe-lhe aceitar que está incluída no domínio de
investigação que procura analisar, e ser criticada por aquilo que ela pretende tomar
como objeto. (MAINGUENEAU, 2006a, p. 51).
71
Nossas reflexões parecem indicar que essa seria uma das causas de algumas dificuldades que a AD encontra ao
tratar de um sujeito que ao longo da história se constituiu por referência a um transcendente.
78
tão misturadas que então você não pode mais dizer a diferença entre elas. MACMILLAN,
2002, p. 880). Se observarmos cuidadosamente as telas dos sites pro-choice (figuras 22 a 27),
poderemos ver que em várias delas as figuras femininas merge into/with às paisagens e/ou
outros elementos. Na figura 33, a cor e o tom dos cabelos da mulher, de suas sobrancelhas e
da sombra que ela está usando nos olhos, combinam com a cor e o tom das folhas das árvores,
da moldura da tela e das flores – que se misturam aos seus cabelos.
Há nessa tela um enunciado: “95% of our patients sleep feeling nothing and
have no memory of the procedure” (noventa e cinco por cento de nossas pacientes dormem,
não sentindo nada e não guardando qualquer memória do procedimento); que se alinha com o
“efeito de sentido” da paisagem “céu azul e nuvens brancas”.
79
Chamar a atenção para os signos intersemióticos que compõem essas cenas não
implica em dar ao discurso um estatuto de “conjuntos de signos”, pelo contrário, nos
inserimos em “uma tarefa inteiramente diferente, que consiste em não mais tratar os discursos
como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a
representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”
(FOUCAULT, 1987, p. 56).
(a) When privacy matters... you now have a choice (Quando a privacidade é importante…
você agora tem escolha);
(b) Abortion services in a private office with personal care from a woman doctor who
understands the difficult choice you are making (Serviços de aborto em um consultório
privado com cuidados personalizados de uma doutora que compreende a difícil escolha que
você está fazendo). Os termos e expressões “privacidade”, “você”, “consultório privado”,
“cuidados personalizados” reforçam as idéias de individualidade, liberdade, tranqüilidade e
autoconfiança afirmadas pelas imagens.
73
Em 1531 uma "Senhora do Céu" apareceu a um pobre índio de Tepeyac, em uma montanha a noroeste da
Cidade do México; Ela identificou-se como a Mãe do Verdadeiro Deus, instruiu-o a dizer ao Bispo que
construísse um templo no lugar, e deixou Sua própria imagem impressa milagrosamente em seu Tilma, um
tecido de pouca qualidade (feito a partir do cacto), que deveria se deteriorar em 20 anos, mas não mostra sinais
de deterioração depois de 474 anos, desafiando qualquer explicação científica sobre sua origem. Aparentemente
parece refletir em seus olhos o que estava a Sua frente em 1531! Anualmente, Ela é visitada por 10 milhões de
fiéis, fazendo de Sua Basílica no México, O Santuário Católico mais popular do mundo depois do Vaticano. Ao
todo 24 Papas tem honrado, oficialmente, a Nossa Senhora de Guadalupe. Sua Santidade João Paulo II, já visitou
seu Santuário por três vezes: Em sua primeira viagem como Papa em 1979 e novamente em 1990 e 1999. Ele
ajoelhou-se diante de Sua imagem, invocou Sua assistência maternal e dirigiu-se a Ela como a Mãe das
Américas (disponível em: <http://www.sancta.org/intro_p.html>. Acesso em 09 de ago. de 2007)).
84
Calcutá. Note-se que ao fazer referência a “uma criança que deve morrer”, o enunciado de
Madre Tereza “responderia ou denunciaria lá onde percebe um ponto chave [..] polemizar é,
sobretudo, apanhar publicamente em erro, colocar o adversário em situação de infração em
relação a uma Lei que se impõe como incontestável” (MAINGUENEAU, 2005, p. 114). O
erro, nesse caso, está na negação da existência de uma nova vida na gravidez. Ao fazermos
contraponto entre pro-choice e pro-life, mantemos nossa fidelidade à tese do primado do
interdiscurso:
Entre os anos de 1964 e 1985 o Brasil viveu sob a chamada Ditadura Militar.
Em 11 de setembro de 1968 chegava às bancas a primeira edição daquela que se tornaria a
maior revista semanal brasileira de informações, a revista Veja, criada nos moldes da revista
norte-americana TIME.
Não faz parte do escopo deste trabalho efetuar uma ampla análise do
posicionamento de Veja, mas tão somente daquele viés ligado diretamente ao corpus desta
dissertação: os artigos e matérias sobre o tema “aborto”. Por isso diremos apenas que a revista
parece tentar combinar a visão econômica da direita americana (Republicana), que procura
reduzir a presença do Estado na economia, incentivando a iniciativa privada; com a visão da
87
Entre as matérias produzidas por Veja abordando o tema “aborto”, uma merece
destaque especial: a reportagem de capa de sua edição de 17 de setembro de 1997, intitulada
“NÓS FIZEMOS ABORTO – O depoimento das mulheres e a polêmica no Brasil”74, que pela
sua extensão, profundidade e asserções marca definitivamente o posicionamento da revista em
relação ao tema e, por isso, será o objeto do presente capítulo.
74
O título na capa era “EU FIZ ABORTO”, porém, dentro da revista, foi alterado para “NÓS FIZEMOS
ABORTO”. A reportagem completa está no anexo 6, página 199.
88
75
Em termos lingüísticos podemos usar a palavra “Deus”, mesmo falando com interlocutores ateus, pois se esses
podem negar sua existência enquanto ente (com existência própria) não o podem negar enquanto conceito ou
entidade conceitual. Dois exemplos simples podem confirmar essa tese: (1) um católico praticante não aceita a
tese da reencarnação, mas não pode negar a existência do conceito e de seus princípios; (2) não é necessário
acreditar na existência do inferno para poder ler “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri.
90
76
Obviamente, para quem é ateu, essa proposição é uma ilusão.
91
Iniciemos, pois, nosso trabalho diretamente com o corpus. Após uma primeira
leitura, pudemos observar a validade da proposição de Maingueneau:
77
Que está inseparavelmente contido ou implicado na natureza de um ser, ou de um conjunto de seres, de uma
experiência ou de um conceito (HOUAIS ELETRÔNICO, 2002).
78
Que transcende a natureza física das coisas; metafísico (ibid.).
92
enunciados fossem “... pior coisa a fazer”, “... até hoje me arrependo do que fiz”, “Foi uma
decisão terrível”, “... senti-me culpada...” etc., o sentido seria totalmente contrário. A
característica marcante desses enunciados – tanto os reais como os que criamos para
exemplificar – é o impacto que produzem, de maneira instantânea, nos grandes grupos de
enunciatários aos quais se destinam, como nos mostra Maingueneau (2005, p. 52):
... o tipo de discurso que visamos de maneira privilegiada produz enunciados que
entram em luta de maneira mais imediata no vivido de grandes camadas de
população. Mesmo sendo numerosos, seus autores não passam, eles próprios, de um
subconjunto restrito de inumeráveis outros enunciadores, dos quais, através de seus
escritos, são ao mesmo tempo eco e suporte.
É importante deixar claro que não estamos de modo algum afirmando que os
repórteres de Veja teriam visto o enunciado I Regret My Abortion e, a partir daí, criado a
expressão “eu fiz aborto”. Pelo contrário, ao nos filiarmos à proposta de Maingueneau, que
diz que os discursos se constituem a partir de um espaço interdiscursivo, onde o Outro já está
presente como a outra face do Mesmo, acreditamos que esses tipos de enunciados são muitas
vezes produzidos sem conhecimento prévio do que está acontecendo nos grupos que
defendem discursos contrários. Eles são simplesmente a rejeição do Outro, presente no
Mesmo:
Partindo deste enunciado – Eu fiz aborto – a revista Veja coloca em cena uma
série de depoimentos de mulheres, destacando cinco desses testemunhos, através de quadros
com textos e fotos. O depoimento que foi colocado em maior evidência foi o da apresentadora
de televisão Hebe Camargo, sobre um aborto que ela realizou quando tinha dezoito anos.
Vamos analisar esses enunciados, deixando claro, mais uma vez, que pela tese
do sistema global de restrições semânticas, a formação discursiva na qual o enunciador está
inserido determina o que pode ser enunciado e como deve ser enunciado. Parafraseando
Maingueneau (2005, p. 40), diríamos que “... enquanto enunciadora do discurso pro-choice,
Hebe Camargo não dispõe de outro código”.
96
- “... foi ruim ter de esconder”. Esse enunciado remete à questão do aborto ilegal, aquele que é
feito às escondidas. Ora, afirmar que é ruim ter de esconder subentende que seria bom não ter
de esconder, o que só seria possível se o aborto fosse legal.
- “Para ser mãe a gente tem de desejar ter um filho”. Essa afirmação contém o principal ponto
de atrito entre os movimentos pro-choice e pro-life. Este afirma a existência de uma nova vida
humana desde a concepção, considerando, portanto, que a mulher grávida já é mãe e que esse
tipo de argumento é mais uma figura de retórica que procura aplicar conceitos referentes à
contracepção ao aborto. Aquele procura negar a existência de uma nova vida humana antes do
nascimento – origem da legalização, nos Estados Unidos, do aborto a pedido durante os nove
meses de gestação – e afirma que a mulher só se torna mãe após o nascimento da criança. O
desenvolvimento da genética, da fetologia e – especialmente – da ultra-sonografia
desautorizou essa argumentação pro-choice nos últimos anos.
97
- “Ele tem direito à vida, é verdade. Mas com amor dos pais, com condições para crescer com
saúde e boa educação”. Aqui temos uma argumentação fundada em uma posição relativista
em relação à vida, relativismo que é característico do movimento pro-choice.
- “Quem vai garantir isso? Um Estado falido, miserável e hipócrita? A Igreja? Nem pensar”.
Qual o motivo do ataque à Igreja e ao Estado? Eles são atualmente as duas maiores forças
pró-vida no Brasil – a Igreja porque é constitutivamente pró-vida e o Estado porque o aborto é
ilegal no Brasil. Assim, em países onde o aborto é legal, a argumentação contra o estado é
formulada pelo movimento pro-life: “les 220 000 assassinats légaux remboursés par la
Sécurité Sociale…” (=os 220.000 assassinatos legais reembolsados pela Previdência Social...,
capítulo 4, p. 68-69). Também observamos uma interessantíssima sutileza discursiva,
originária dos posicionamentos assumidos pela apresentadora: ela chamou o Estado de falido,
miserável e hipócrita, mas não usou nenhuma adjetivação ao se referir à Igreja, possivelmente
por se considerar católica, como podemos ver no próximo enunciado.
- “Sou católica e até hoje não me arrependo do que fiz”. Temos aqui duas afirmações. A
segunda – até hoje (cinqüenta anos após) não me arrependo do que fiz – é o corolário perfeito
do enunciado “Eu fiz aborto”. O enunciado “Eu fiz aborto e não me arrependo do que fiz”
constitui-se em uma declaração pro-choice completamente construída. A primeira afirmação –
sou católica – ligada diretamente à prática do aborto – é um simulacro: “... para constituir e
preservar sua identidade no espaço discursivo, o discurso não pode haver-se com o Outro
como tal, mas somente com o simulacro que constrói dele” (MAINGUENEAU, 2005, p. 103).
Parafraseando Maingueneau: Evidentemente, esse discurso pró-aborto que se integra a uma
prática católica é apenas um simulacro construído pelo sistema pro-choice (2005, p. 109).
Obviamente, não estamos julgando o ser empírico Hebe Camargo e sim analisando um
discurso.
- “Hoje tenho o Marcelo, a melhor coisa que me aconteceu”. (pois) “Estava casada e
preparada para ter um filho”. Esse conjunto de enunciados comporta pelo menos duas
análises, uma relativa ao suporte teórico com o qual estamos trabalhando; a outra embasada
em uma complexa construção teológico-filosófica. Na primeira temos o princípio subjetivista
no qual se assenta a FD pro-choice, onde o filho só é acolhido se a mãe decidir segundo
98
critérios pessoais e, portanto, subjetivos, se quer e/ou tem condições de ter esse filho, critérios
esses que podem variar de uma pessoa para outra e em diferentes momentos na vida de uma
mesma pessoa. Na segunda, considera-se que, sendo os conceitos morais algo objetivo, não
caberiam aqui decisões pautadas em critérios pessoais, e que atos bons, como ter o filho
Marcelo, não se somam ao ato intrinsecamente mau do aborto para constituir um só conjunto.
- “Sinto-me muito feliz”. Naturalmente Hebe Camargo está afirmando sua felicidade em
função de seu filho Marcelo. Entretanto, após dizer que fez um aborto e que não se
arrependeu, a afirmação de felicidade não deixa de reforçar a argumentação pro-choice.
Outro depoimento que iremos analisar é o da artista plástica Pinky Wainer, que
traz acréscimos interessantes para o nosso estudo.
"Já tinha três filhos e usava Diu. Não podia ter uma
quarta criança
Conversei com meu marido e chegamos à conclusão de que
o aborto seria a melhor coisa a fazer. Procurei meu médico
e ele indicou um outro. Foi muito rápido, e, quando acordei,
tudo tinha acabado. Depois disso, voltei ao meu
ginecologista. Ele me examinou e estava tudo bem. A
decisão foi difícil, pesou-me por um tempo. Como eu tinha
outros filhos, pensava muito nisso. Mas eu tinha certeza de
que queria ter somente três filhos. Além disso, não me senti
culpada porque eu me protegia com o DIU. Acho que a
mulher tem plenas condições de decidir o que é melhor para
ela."
Foto: Antonio Milena Pinky Wainer, 42 anos, artista plástica
Figura 48 – O depoimento da artista plástica Pinky Wainer.
Fonte: Revista Veja. Edição: 17 maio 1997. Matéria: “Nós fizemos aborto”.
um outro”), porém o homem enquanto pai era uma presença “dissimulada”, subentendida,
mas que agora começa a se mostrar79. Vamos agora analisar alguns enunciados desse
depoimento, especialmente aqueles que traduzem o discurso pró-aborto em uma linguagem
pró-contracepção:
- “Acho que a mulher tem condições de decidir o que é melhor para ela”. O termo pro-choice
– pró-escolha – deriva diretamente desse posicionamento. Obviamente escolha aqui não se
refere a qualquer escolha, mas à decisão pelo aborto, ou seja, a mulher, baseando-se em si
mesma, naquilo que julga melhor para si – “... eu tinha certeza de que queria ter somente três
filhos” – poderia decidir rejeitar um novo filho, visto como um empecilho, e eliminá-lo pelo
aborto. Outro fundamento do movimento pro-choice é adotar o aborto como alternativa para
uma contracepção falhada: “... não me senti culpada porque eu me protegia com o DIU”. Há
diversos trabalhos e estudos que apontam a relação entre formação discursiva contraceptiva e
formação discursiva pró-aborto, o que, aliás, é coerente com as proposições de Maingueneau,
que podem perfeitamente dar conta da coexistência de mais que dois discursos dentro de um
mesmo espaço discursivo. Uma outra observação pertinente seria a de que essa proposição
representa uma tradução do Outro – aqui do sentimento de culpa que o aborto gera: “... me
senti culpada” – no Mesmo, através de um simulacro: “... não me senti culpada, porque usava
DIU”.
79
Um dos impulsionadores dessa “entrada na cena enunciativa” é o fundamento religioso que atribui
responsabilidade moral também ao pai da criança abortada, quer por ter abandonado a mulher grávida, quer por
pressioná-la ao aborto.
100
- Dom Rafael Cinfuentes: “Entre o embrião, o feto e o bebê não há uma diferença qualitativa.
No início da fecundação já é uma vida humana”. Esse certamente é um dos “enunciados
raros” aos quais Foucault se refere em “A Arqueologia do Saber” (1987), sendo mesmo uma
espécie de “enunciado fundador” do discurso pro-life. Dizer que desde a fecundação já existe
uma nova vida humana implica atribuir o mesmo valor à vida do bebê e à vida da mãe e,
portanto, afirmar que ambas devem ser objeto de igual atenção, que ambas devem ser
preservadas. Acreditamos também que esse é um exemplo perfeito daquilo que Maingueneau
chama de “sistema global de restrições semânticas ligado a uma formação discursiva”, pois
uma vez definida a concepção como sendo o início da vida, qualquer proposta, enunciado ou
discurso que se alinhar com essa tese será imediatamente reconhecido como pertencente à
formação discursiva pro-life e qualquer formulação que vá na direção contrária será vista
como pertencente a FD pro-choice. Se analisarmos os enunciados “As pessoas têm de ter
consciência de que o aborto, em qualquer circunstância, é um crime” e “... mesmo que ficasse
comprovado algum problema com o bebê, ainda assim eu levaria a gravidez adiante”, ditos
pela atriz Cássia Kiss nessa mesma matéria, veremos que esses se alinham como o enunciado
fundador proferido por Dom Rafael Cinfuentes – que, logicamente, não é o seu autor, mas
apenas um enunciador.
assuntos debatidos constituem uma semiologia preciosa, cada sintoma devendo ser
relacionado ao sistema que o funda (2005, p. 113, grifos nossos).
80
É o conhecimento enciclopédico ou conhecimento de mundo que permite estabelecer, de maneira quase
instantânea, essas relações. Após isso, recursos de pesquisa são utilizados para confirmar ou infirmar a tese.
102
• “O debate não deve girar em torno da vida no ventre da mãe, mas no tipo de vida que
o feto terá depois do nascimento, quando se transforma num bebê, num cidadão”,
considera o obstetra Thomaz Gollop, professor de genética médica da Universidade
de São Paulo;
• “Algumas mudanças de valores são tão gigantescas que não podem sequer ser
discutidas.”
Relativizando:
• Casado com uma espírita, pai de dois filhos, 46 anos e católico praticante, Galvão
Bruno (juiz corregedor) é contra o aborto. Teve até uma experiência traumática,
quando sua mulher sofreu um, espontâneo. "Vi o feto, de oito meses, e fiquei
traumatizado. Nunca permitiria que minha esposa ou minha filha abortassem." (mas...)
"Cheguei à conclusão de que minhas convicções pessoais e religiosas devem ficar em
segundo plano quando estou no papel de juiz. Tenho aqui em meu escritório cinco
juízes auxiliares – um espírita e quatro católicos. Nenhuma mulher. Quando estamos
decidindo, a lei é a nossa religião. Isso é o bastante para nossa consciência”.
• “Nem todas as fileiras da Igreja Católica têm a mesma opinião que o papa João Paulo
II.”
• “Como sempre acontece, são os valores de cada época e de cada lugar que determinam
a discussão sobre temas delicados como esse.”
• “A força dos argumentos religiosos, que tanto podem ser sinceros como apenas
manipulados, vem daí.”
Linguagem ambígua:
• “Interromper81 a gravidez.”
81
Consultando o dicionário Houaiss (eletrônico) verificamos que na maior parte dos significados atribuídos ao
termo interromper sinalizam “parar de fazer (algo) temporariamente”, como “interromper uma reunião para o
almoço” etc. Ora, não se interrompe uma gravidez para retomá-la mais tarde.
103
O argumento da modernidade:
Dramatização abusiva:
• “E a maioria delas não fez aborto pelos motivos previstos em lei, mas porque, cada
uma em seu momento, cada uma com sua história pessoal, considerou as
circunstâncias e concluiu que interromper a gravidez era uma saída menos dolorosa do
que ter um filho que não poderia criar.”
• “Como é que o Estado julga-se no direito de obrigar as mulheres a ter filhos, se ele é
incapaz de garantir o mínimo para essas mães e seus bebês?”.
Nas semanas que se seguiram a essa reportagem, Veja recebeu muitas cartas,
cujo conteúdo espelhava as proposições da revista sobre o tema, o que talvez torne lícita a
suposição de um processo evenemencial – processo de construção do acontecimento – por
parte de Veja, conforme a proposta de Charaudeau:
Aqui trata-se de uma matéria de capa que poderia ser considerada “neutra” em
relação às capas da edição anterior e da próxima edição. Entretanto, ao lermos seu conteúdo –
nos referimos aqui à seção “Cartas” – veremos que a questão do aborto está sendo
amplamente discutida. E, na segunda semana seguinte à publicação da reportagem “NÓS
FIZEMOS ABORTO – O depoimento das mulheres e a polêmica no Brasil”, a capa de Veja
foi esta:
Um dos principais focos de interesse dos leitores de Veja são os escritos de seu
corpo de articulistas, como mostra o grande número de cartas e e-mails que são endereçados a
eles todas as semanas. Some-se a isto o fato de que, em relação ao assunto do nosso corpus,
esses articulistas costumam expressar as opiniões mais contundentes, e teremos bons motivos
para dedicar um capítulo desta dissertação especialmente ao estudo desse segmento.
Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto,
não é necessário que o locutor faça seu auto-retrato, detalhe suas qualidades nem
mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências lingüísticas e
82
Naturalmente esses autores, experientes e preparados, não cometeram esse deslize. Apenas utilizamos essa
suposta possibilidade como recurso retórico para chamar a atenção para o primado do interdiscurso.
107
83
O papa é o mais perfeito exemplo de ethos, pois ao ser eleito, o cardeal assume uma posição à qual está
perfeitamente integrado, 24 horas por dia, sempre. Não existe mais Joseph Ratzinger, apenas o papa Bento XVI.
84
Autoridade, competência, fé e moral são os quatro pilares sobre os quais se assenta a função exercida pelo
papa. Enquanto as três primeiras dizem respeito especialmente aos fiéis católicos, a quarta, ao tratar dos usos e
costumes – casamento, família, eutanásia, aborto etc. – afeta todo o conjunto da sociedade e é exatamente o
ponto de origem da controvérsia dos Liberais contra a Igreja. Quando os articulistas de Veja atacam algum dos
três primeiros pontos, eles muitas vezes estão simplesmente tergiversando (usando subterfúgios = ardil para se
conseguir algo), já que esses três pontos dizem respeito apenas aos fiéis.
108
chegar a ter vida própria. Como exemplo podemos citar o Jansenismo – analisado por
Maingueneau em diversas obras; a Teologia da Libertação – concepção marxista, portanto
contrária à Igreja85, o movimento Tradicionalista86, que lutou por décadas para conservar a
tradição católica, como a missa rezada em latim – que está neste momento (07/07/2007) sendo
liberada para toda a Igreja pelo papa Bento XVI – e o movimento pró-vida87: todos esses
movimentos surgiram dentro da Igreja, entretanto, o jansenismo foi extinto, a Teologia da
Libertação caminha para a extinção, mas o Tradicionalismo e o movimento pró-vida parecem
estar cada vez mais fortes. O que determina o fim de um discurso nem sempre é algo
explícito: “Um discurso não é abandonado porque um texto lhe aplicou um golpe fatal, mas
porque alguma coisa abalou tudo o que o sustentava silenciosamente e a crença se transferiu
para outros lugares” (MAINGUENEAU, 2005, p. 119). Entretanto, as observações que temos
realizado sobre diversos corpora mostram que a ausência de qualquer um destes três
elementos – enunciador, instituição e co-enunciador – implica a extinção do discurso, como
podemos ver em Courtine (2006) a respeito do discurso comunista. Nessa obra, Courtine
mostra que, em certo momento da história do Partido Comunista Francês, o destinatário do
seu discurso, o proletariado, estava numericamente tão reduzido que o PCF discursava para
ninguém. O fim foi inevitável.
Tudo que acabamos de dizer se aplica aos articulistas de Veja e a seus escritos
pro-choice. Temos uma organização midiática – a revista Veja – que, como procuramos
demonstrar no capítulo quarto não é de forma alguma independente, mas filia-se a um viés
liberal; um corpo (corporativista?) de articulistas (articulados – pois dizem a mesma coisa)
que trabalha (e mantém seu emprego!) dentro de um sistema de restrições semânticas imposto
pela formação discursiva liberal assumida pela revista:
85
O confronto entre as posições católicas e marxistas foram trabalhadas por Jean-Jacques Courtine em seu
escrito “Analyse du discours politique: le discours communiste adressé aux chrétiens”, publicado em 1981 na
revista Langages..
86
Temos acompanhado os debates que envolvem os Tradicionalistas, os Modernistas e a Igreja. Ao aplicar aos
seus discursos as proposições de Maingueneau, descobrimos que o sistema global de restrições semânticas dos
Tradicionalistas está muito mais próximo ao da Igreja, enquanto o sistema dos Modernistas difere bastante do
adotado por esta. Portanto os Tradicionalistas, mesmo tendo seus principais líderes excomungados (muitos
consideram que não haveria elementos para uma real excomunhão) deverão voltar para a Igreja (as excomunhões
seriam retiradas) enquanto os Modernistas serão extintos, pois sua heresia, a exemplo da heresia luterana, os
coloca fora da Igreja, mas, ao contrário do Heresiarca alemão, eles não possuem estrutura teológica – a heresia
modernista é formada por proposições fragmentadas – ou material para se sustentarem sozinhos.
87
O movimento pró-vida é essencialmente católico. Os articulistas de Veja, conforme poderemos observar neste
capítulo, têm clara percepção deste fato e por isso atacam repetida e diretamente a Igreja e não os grupos pró-
vida. Por isso nós também citaremos a Igreja como sinônimo do movimento pró-vida.
109
Que Veja é dirigida à classe média é algo que pode ser percebido em todo o
conteúdo da revista – nas matérias e na publicidade. Consideremos os comerciais de
instituições bancárias. Eles existem em toda parte, porém em mídias mais populares, como a
TV, eles oferecem produtos como poupança, mas em Veja são oferecidas aplicações em
fundos de investimento, acessíveis apenas a pessoas com certo poder aquisitivo. Se Veja
trabalhasse com o outro segmento da população, aquele no qual 80% dos eleitores são
contrários à legalização do aborto, provavelmente seu discurso seria diferente. Quanto ao
corporativismo e empregabilidade dos articulistas, parece ser evidente que apenas aqueles que
dão sua adesão ao posicionamento da revista têm seu espaço e emprego garantidos:
discurso e tentam se diferenciar por aspectos particulares de personalidade, aspectos esses que
iremos abordar mais adiante. Por ora vamos nos deter no terceiro elo da estrutura que estamos
analisando: a “instituição”.
• Aborto;
• Eutanásia;
• Casamento gay;
• Liberdade individual.
Veja é contra:
• A Igreja Católica;
• Os grupos pró-vida;
88
Colocar ênfase na materialidade da língua significa voltar a atenção para as formas lingüísticas. Deste ponto de
vista, a língua não é um mero instrumento para falantes: eles têm que negociar com o que a materialidade da
língua impõe a eles.
112
Ano 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
Mortes maternas em gravidez 146 163 119 147 128 148 115 152 156
que terminou em aborto
Tabela 3 – Mortes por aborto. Disponível em: < www.providaanapolis.org.br/index1.htm>. Acesso
em 08 de junho de 2007.
113
Na sua emergência, a fala implica uma certa cena de enunciação, que, de fato, se
valida progressivamente por meio da própria enunciação. A cenografia é, assim, ao
mesmo tempo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra; ela
legitima um enunciado que, em troca, deve legitimá-la. [...] Além de uma figura de
enunciador e uma figura correlativa de co-enunciador, a cenografia implica uma
cronografia (um momento) e uma topografia (um lugar) das quais o discurso
pretende surgir (2005, p. 96).
Não empregamos aqui “cenografia” no sentido que tem seu uso teatral, mas dando-
lhe um duplo valor: (1) Acrescentando à noção teatral de “cena”, a de –grafia, da
“inscrição”: para além da oposição empírica entre o oral e o escrito, uma enunciação
116
O que até agora temos exposto ficaria incompleto se não deixássemos claro
que o ethos é parte constituinte da cena de enunciação e construtor da identidade:
A cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e
que, por sua vez, deve validar através de sua própria enunciação: qualquer discurso,
por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir a situação de enunciação que o
torna pertinente. A cenografia não é, pois, um quadro, um ambiente, como se o
discurso ocorresse em um espaço já construído e independente do discurso, mas
aquilo que a enunciação instaura progressivamente como seu próprio dispositivo de
fala (MAINGUENEAU, 2006a, p. 68).
89
No exato momento em que estávamos escrevendo essas linhas (e assistindo simultaneamente a emissora norte-
americana EWTN na internet) um famoso palestrante chamado padre Corapi, Ph.D., abordava a questão da
identidade – e suas crises no mundo pós-moderno – naturalmente sob o posicionamento católico, que trabalha
esse conceito em uma relação dialógica entre o crente e Jesus Cristo. Muito interessante. Citamos esse fato
apenas para enfatizar a amplitude do conceito, que não se reduz de modo algum à nossa exposição, embora ela
seja suficiente para o viés que estamos abordando.
118
90
Discurso escrito ou oral, em tom violento e geralmente afrontoso, em que se ataca alguém ou alguma coisa
(HOUAIS ELETRÔNICO, 2002). Naturalmente não temos a pretensão de tratar neste trabalho as distinções
tipológicas do discurso, mas tão somente situar o discurso do articulista André Petry.
119
Com precisão, André Petry mostra em "O mensalão do aborto" (17 de agosto) como
é difícil avançar na garantia dos direitos das mulheres. Mostra também como é frágil
o compromisso deste governo com as questões sociais, não titubeando no sacrifício
da laicidade do nosso Estado. No entanto, o processo de debate sobre a necessidade
de revisão da legislação sobre o aborto, que ganhou visibilidade com a Conferência
Nacional de Política para as Mulheres, ampliou o apoio de setores importantes, em
especial de reconhecidos profissionais dos meios de comunicação. Há muito ainda
que caminhar, mas fica cada vez mais claro para outros setores da sociedade, além
das feministas, que o aborto é uma questão de saúde pública, justiça social e de
democracia. Maria José Rosado. São Paulo, SP.
O artigo revela quanto estamos atrasados em relação aos temas de saúde pública e
quão controlados somos pela mão "pesada" da Igreja Católica, que insiste em fechar
os olhos para a realidade. Mesmo com o aborto sendo considerado crime pela
legislação brasileira, de 750.000 a 1 milhão de mulheres são vítimas de práticas
malfeitas, segundo os dados de internação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Gilberta Soares. Secretária executiva do Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto
Legal e Seguro. João Pessoa, PB .
91
Nossas pesquisas e reflexões sinalizam que o processo de tradução do Outro no Mesmo, parafraseando
Pêcheux, determina o que pode e deve ser ouvido [...] Isso equivale a afirmar que as palavras, expressões,
proposições etc. recebem seu sentido da formação discursiva na qual são recebidas. Ou seja: o sistema de
restrições semânticas de uma FD filtra o que pode ser dito e também o que pode ser ouvido (referimos aos
sentidos percebidos). É por isso que os que aderem ao discurso pro-choice não percebem esses engodos.
92
Após a publicação da reportagem “Nós fizemos aborto”, membros dos movimentos pro-life enviaram cartas à
redação de Veja, cartas que nunca foram publicadas, conforme pode ser visto no anexo 31, p. 259.
121
por Maingueneau em “Gênese dos discursos”, veremos uma nova realidade emergir,
demonstrando a utilidade prática das proposições desse autor e as sutilezas da tradução do
Outro no Mesmo.
93
Expressão que pode ser traduzida por “pensamento desejoso”, significando a criação mental e emocional de
fatos que se desejaria que fossem realidade.
123
Neste ponto é importante que seja feito o seguinte esclarecimento: Veja é pro-
choice e não está tentando simular que é pro-life. A publicação de uma carta aparentemente
pro-life é apenas uma estratégia para tentar se mostrar factual, como, aliás, toda revista de
informações deveria ser. Entretanto, a publicação de uma carta verdadeiramente pro-life
contraria totalmente os princípios de sua formação discursiva pro-choice. Assim, a única
solução é lançar mão de um simulacro. Essa estratégia é amplamente usada não só por Veja,
mas por todos que, de uma forma ou de outra, querem simular um ethos agradável.
Continuam as investidas do senhor André Petry contra os evangélicos. Desta vez são
os americanos, que ele nem conhece direito, pois afirma que os mesmos crêem na
virgindade de Maria, o que é um equívoco. Das outras acusações, já que sou
evangélico, não me envergonho, pois é nisso mesmo que creio, ou seja, na origem
124
divina dos seres humanos, na defesa da vida, no casamento entre um homem e uma
mulher. É lamentável que isso seja visto como "obscurantismo" e "trevas" ("Um
tempo de trevas", 10 de novembro). Pastor Carlos Osmar Trapp, Presidente do
Grupo Evangélico de Ação Política (Geap). Campo Grande, MS (Seção “Cartas”,
17/11/2004).
Como um terço do eleitorado americano é evangélico, e boa parte tem uma visão um
tanto obscurantista da vida, além de achar que os democratas esnobam sua fé, Bush
saiu-se muito bem. A massa mais atrasada dos Estados Unidos, aquela parcela que
acredita mais no mito da virgindade de Maria do que na teoria evolucionista de
Charles Darwin, entregou a Bush a missão clara de restringir o direito ao aborto, de
impedir o casamento homossexual, de travar as pesquisas científicas com células-
tronco, entre outros primitivismos. (“Um tempo de trevas”, 10/11/2004, anexo 15, p.
225).
Afinal, todo mundo sabe que a gravidez indesejada é comum entre mulheres pobres.
Mulher abastada, se quiser, faz aborto na esquina, com todo o conforto e com a
higiene necessária.
Um outro aspecto que chama a atenção nos artigos de André Petry é a sua
particular hostilidade para com a Igreja Católica. Aliás, no nosso corpus, no segmento
composto pelos seus artigos, o nome da Igreja Católica aparece trinta e cinco vezes, a palavra
papa treze e a palavra Deus dezoito vezes, totalizando sessenta e seis vezes, contra cento e
cinco repetições da palavra aborto. A explicação desse fato é a seguinte: embora o Outro do
discurso pró-aborto seja, primariamente, o discurso pró-vida, é essencial colocar que o
fundamento e suporte desse discurso é a Igreja Católica, sendo esta o verdadeiro Outro do
discurso pró-aborto, como fica claramente demonstrado neste enunciado, extraído de uma
126
entrevista dada por Frances Kissling, presidente do grupo pró-aborto Catholics for A Free
Choice94 à jornalista Rebecca Sharpless em 13 de setembro de 2002, em Whashington, D. C.
(disponível em: <http://www.smith.edu/libraries/libs/ssc/transcripts/kissling-trans.html>,
acesso em 13 jan. 2008):
You know, the Catholic perspective is a good place to start—in either philosophical,
sociological, theological terms—because the Catholic position is the most developed
position. So if you can refute the Catholic position, you have refuted everything else.
Okay. I mean, none of the other faith groups really have as well-defined statements
on personhood, when does life begin, fetuses, et cetera. So by debunking the
Catholic position, you win.95
The assertion of the primacy of interdiscourse. Such a principle does not only mean
that discourse analysts ought to compare texts with each other, instead of studying
isolated texts; it means more : the identity of discourse is constituted and
maintained through other discourses, the relation of a text to itself and its relation
to others, ‘intradiscourse’ and ‘interdiscourse’, cannot be dissociated.96
94
O título “Católicas pelo direito de decidir” é, obviamente, um simulacro: essa é uma das ONGs onde o anti-
catolicismo é assumido de modo explícito. Atualmente o grupo trabalha pela retirada do Vaticano da ONU e pela
recusa da aceitação da alegação de motivo de consciência pelos médicos europeus como motivo para não
praticar o aborto em hospitais públicos, o que, sob qualquer ponto de vista, é um absurdo (esse posicionamento é
típico da chamada esquerda liberal).
95
Você sabe, a perspectiva católica é um bom lugar para começar – seja em termos filosóficos, sociológicos ou
teológicos – porque a posição católica é a mais desenvolvida. Portanto, se você puder refutar a posição católica,
você terá refutado todas as outras posições. OK. Eu quero dizer, nenhum outro grupo religioso possui
declarações tão bem definidas sobre a pessoa, quando a vida começa, o feto etc. Portanto, ridicularizando a
posição católica, você vence.
96
A afirmação do primado do interdiscurso. Tal princípio não significa somente que a análise do discurso deve
comparar os textos, ao invés de estudar textos isolados, significa mais: a identidade do discurso é constituída e
127
"O enfoque da Igreja Católica é chocante, pois pressupõe que as mulheres são
essencialmente mentirosas e que, quando têm uma brecha qualquer, fazem
abortos com a voracidade de moscas buscando açúcar”.
Finalmente o Brasil começa a dar sinais de entender que o aborto integra a lista de
direitos inalienáveis da mulher – de seus direitos reprodutivos, de seus direitos
sexuais, de seus direitos sobre o próprio corpo. Duas decisões fortalecem essa
impressão. A primeira veio dos trinta membros do Conselho Nacional de Saúde, que
assessora e orienta o ministro da área. Numa reunião de cinco horas, eles decidiram
– por 27 votos contra 3 – manifestar-se a favor do direito da mulher de abortar
quando grávida de um feto sem cérebro, cuja vida fora do útero é 100% inviável. A
decisão é importante porque ajuda a ampliar o coro dos que defendem a legalização
do aborto de fetos sem cérebro, tema que a Justiça deverá julgar em breve. A outra
decisão veio na forma de uma norma do Ministério da Saúde. A norma diz o
seguinte: mulheres grávidas de estupro agora podem abortar nos hospitais públicos
sem apresentar o boletim de ocorrência da polícia. É outra medida que merece
aplauso. Revela o devido respeito à mulher, na medida em que dá à sua palavra a
mesma importância dada a um boletim burocrático, e sobretudo retira da órbita
policial uma questão de saúde física e psicológica.
No Conselho Nacional de Saúde, entre os três votos contrários ao aborto de feto sem
cérebro estava o de Zilda Arns, que representa a entidade dos bispos católicos do
Brasil. A Igreja Católica, todos sabemos, é contra o aborto em qualquer situação. Em
caso de risco de morte para a mãe, em caso de gravidez resultante de estupro, em
caso de fetos sem chance de sobrevivência fora do útero. A Igreja Católica também
rejeita a nova norma do Ministério da Saúde. Teme que, sem terem de registrar a
ocorrência do estupro numa delegacia, as mulheres farão abortos nos hospitais
públicos mesmo quando não sofrerem estupro... Teme, portanto, que a nova norma
sirva de estímulo ao aborto nos hospitais do SUS. É um enfoque chocante, pois
pressupõe que as mulheres são essencialmente mentirosas e que, quando encontram
uma brecha qualquer, fazem abortos com a voracidade de moscas buscando açúcar...
mantida através de outros discursos, da relação do texto consigo mesmo e com outros, intradiscurso e
interdiscurso não podem ser dissociados.
97
Para facilitar a leitura apresentaremos inicialmente o texto completo e depois o dividiremos em fragmentos,
que serão numerados, e faremos os comentários desses fragmentos. A letra “E” usada juntamente com os
números significa apenas “enunciado”.
128
E2 - Duas decisões fortalecem essa impressão. A primeira veio dos trinta membros
do Conselho Nacional de Saúde, que assessora e orienta o ministro da área. Numa
reunião de cinco horas, eles decidiram – por 27 votos contra 3 – manifestar-se a
favor do direito da mulher de abortar quando grávida de um feto sem cérebro, cuja
vida fora do útero é 100% inviável.
98
Os conceitos de topic sentence e tópico frasal podem ser encontrados em (GEAR, ROBERT & GEAR,
JOLENE, 2002, p. 391) e (GARCIA, 1982, p. 206), respectivamente. Discordamos da função meramente
informativa atribuída por esses autores a esses conceitos, pois acreditamos que o estabelecimento de uma
cenografia é a sua real função. Assim, quando em uma manhã de domingo, o marido acorda a esposa dizendo
“Querida, o dia está lindo! Vamos à praia?” o enunciado “o dia está lindo” visa criar uma cenografia que valida o
convite “Vamos à praia?”, estando muito além de um caráter apenas informativo.
129
(1) A microinformática é essencial na vida moderna. Dentro dela temos dois espaços
discursos: hardware (a máquina) e software (os sistemas). Em cada um desses espaços temos
duas formações discursivas: hardware: Intel e AMD (as duas marcas de processador, o
cérebro da máquina); software: Windows (da empresa Microsoft) e Linux (o software livre).
Poderíamos definir, a partir de um sistema de restrições semânticas, o Windows como
software proprietário e o Linux como software livre99. Também mostraríamos que quando os
usuários de um sistema se referem ao outro, o fazem sob a forma de simulacro. Assim, os
usuários do Linux irão se referir aos custos do Windows, “esquecendo-se” de que, apesar de
gratuito, o Linux gera custos de treinamento e manutenção mais altos, por ser mais difícil de
operar etc. Poderíamos construir um corpus a partir de análises feitas por revistas técnicas etc.
e, no fim de tudo, o que teríamos seria uma caricatura lingüística.
(3) Questões modernas como cirurgia plástica, cosmética avançada, body building etc.,
embora envolvam amplos setores da sociedade e grandes somas de recursos, não se
constituem em formações discursivas, não se enfrentam dentro de um espaço discursivo, não
provocam passeatas e protestos públicos: são, no máximo, temas de programas e revistas de
atualidades, pois embora digam respeito ao ser humano e ao seu corpo, não se referem
diretamente a valores morais e religiosos. Já a prática da Yoga, enquanto veículo de
transmissão da cultura New Age, é fortemente condenada pela Igreja Católica.
99
De fato, é assim que esses programas de computador são definidos pelo mercado.
131
100
Pergunta usada como argumentação e/ou com a finalidade de envolver o enunciatário e conduzir seu
raciocinio em determinada direção.
101
Identificamos esse tipo de falácia durante nossa juventude e passamos a chamá-la de “mentira jornalística”,
devido ao seu uso intensivo pela imprensa brasileira.
132
totalmente o tom e coloca inferências sobre o que significaria esse enfoque da Igreja: “É um
enfoque chocante (o da Igreja), pois (a Igreja) pressupõe que as mulheres são essencialmente
mentirosas e que, quando encontram uma brecha qualquer, fazem abortos com a voracidade
de moscas buscando açúcar”.
Não pode ser uma vitória católica aquilo que vai contra sua doutrina. Toda religião
tem seu credo. O que se cobra dos fiéis é que sejam coerentes com ele. Ser católico
não é, como pretende o nominalismo do articulista, apenas se dizer católico; é ser fiel
à doutrina do magistério da Igreja. Sendo assim, não induza os leitores ao erro,
criando antagonismos onde não existem. Fiéis católicos são, com toda a força do
Espírito Santo e da tautologia, os que são fiéis ao catolicismo. Os que não aceitam ou
discordam estejam à vontade, assumam a condição de opositores e avante, em vez de
se dizerem católicos não-católicos. Façam como Lutero ("Aborto, uma vitória
católica", 16 de março). Lincoln Meireles Tomaz. Rio de Janeiro, RJ
102
O grupo Católicas pelo Direito de Decidir é uma organização pró-aborto que simula pertencer à Igreja para
confundir o público e a mídia, ou seja: A ONG é, em si mesma, um grande simulacro. Aqui também devemos
considerar a possibilidade de que os católicos entrevistados sejam não-praticantes.
133
A Igreja não pressupõe que as mulheres são mentirosas; não sejamos é hipócritas
achando que apenas as mulheres que sofrem estupros irão procurar esse recurso para
se livrar de uma gravidez indesejada. Essa facilidade de abortar nos hospitais públicos
do Brasil vai virar um verdadeiro matadouro. A Igreja Católica não está preocupada
com pesquisas, pois não é a Igreja que tem de se moldar aos fiéis, e sim os fiéis que
têm de se moldar às normas da Igreja. ("Aborto, uma vitória católica", 16 de março).
Ana Luiza Vasconcelos. Recife, PE
Vemos que o leitor aborda apenas dois enunciados: que a Igreja consideraria as
mulheres como mentirosas e que as pesquisas colocam os fiéis em contradição com a
instituição.
103
Aqui também apresentaremos inicialmente o texto completo e depois o dividiremos em fragmentos, que serão
numerados, e faremos os comentários desses fragmentos. A letra “E” usada juntamente com os números significa
apenas “enunciado”.
134
E2 - Quem lê a revista Veja toda semana, com certeza conhece o colunista André
Petry. Ele faz o estilo iluminista anticlerical e de cada 10 artigos que escreve, 9 são
para criticar o cristianismo, especialmente a Igreja Católica. A quantidade de clichês
anticlericais que esse senhor dispara praticamente toda semana beira a mais
completa obtusidade. Para Petry, que toma por evidente uma oposição (que não
existe entre fé e razão), todos aqueles que realmente seguem os preceitos da Igreja
Católica são um bando de ignorantes. Defender o direito à vida daqueles que ainda
não nasceram, ou um pouco de ética na ciência é, na linguagem orweliana de Petry,
criar um ambiente de trevas.
E3 - O artigo da edição de Veja do dia 16 de março não podia ser diferente, sendo
também um primor da novilíngua petryana. Esse fato já é percebido apenas pela
leitura do título do artigo: “Aborto, uma vitória católica”. Petry aproveita os dados
de uma pesquisa encomendada pelo grupo “Católicas pelo direito de decidir” (outro
primor de novilíngua, já que ou se é ou católico, ou se é a favor do aborto, tertium
non datur104) que indicam que, proporcionalmente, o número de católicos que
defendem o aborto de anencéfalos e em caso de estupro e que o SUS ofereça o
serviço de aborto nos casos previstos em lei, é maior que os defensores das mesmas
posições na população em geral, para falar que o aborto é uma vitória católica.
(Tanto Petry quanto o grupo de supostas católicas só se “esqueceram” de divulgar
que entre os católicos, apenas 3% dos entrevistados são a favor do aborto em
qualquer circunstância).
E4 - O problema é que Petry se esqueceu de um pequeno detalhe: o conteúdo
doutrinal do catolicismo (assim como de todas as grandes religiões tradicionais,
diga-se de passagem) não é definido democraticamente. Independente da discussão
sobre a validade das diferentes religiões, todas elas têm em comum o fato de
atribuírem a si mesmas o caráter de revelação divina, e uma revelação divina não
pode ser alterada por opiniões humanas. Portanto, se a Igreja Católica se posiciona
E6 - E o que isso quer dizer? Que pessoas como os integrantes do grupo “Católicas
pelo direito de decidir” e aqueles que concordam com o aborto em caso de estupro
pensam assim não porque são católicos, mas apesar disso e contrariando
frontalmente o ensino de toda a Tradição católica. Ou seja, o aborto não é e nunca
será uma vitória católica, pelo contrário. Será uma derrota, não apenas católica, mas
da vida.
105 Rubrica: teologia – ato pelo qual Deus fez saber aos homens os seus mistérios, sua vontade (HOUAISS,
2002, verbete “revelação”).
137
que seria inútil, já que este faria a leitura dessa argumentação com base em seu próprio
sistema de restrições semânticas106: “A polêmica, então, só pode ser estéril, resolvendo-se no
afrontamento de dois universos incompatíveis (MAINGUENEAU, 2005, p. 117) – mas para
mostrar, em E6, que o articulista violou o “código dogmático ligado ao campo discursivo”,
(Ibid., 2005, p. 115), ao afirmar uma inverdade, a saber: que a quase totalidade das pessoas
pertencentes à formação discursiva católica – e por extensão, a própria FD católica –
apoiariam a prática do aborto:
O essencial se passa alhures, nas infrações que incidem no código dogmático ligado
ao campo discursivo. Polemizar no interior de um certo campo é apresentar-se
implicitamente como aceitando os pressupostos que lhe são associados; a existência
de um corpus dogmático oficial é apenas a solidificação, o resultado de um
fenômeno geral. Se for possível mostrar a não convergência entre esses “dogmas” e
um enunciado do adversário, marca-se um ponto decisivo: violar os princípios
democráticos, colocar em causa a virgindade da Virgem Maria, comportar-se como
um intelectual pequeno burguês, contrapor-se às regras universais do Belo..., os
dogmas variam, mas não sua necessidade. Na polêmica, contrariamente ao que se
pensa espontaneamente, é a convergência que prevalece sobre a divergência, já que
o desacordo supõe um acordo sobre “um conjunto ideológico comum” sobre as leis
do campo discursivo partilhado. A polêmica sustenta-se com base na convicção de
que existe um código que transcende os discursos antagônicos, reconhecido por eles,
que permitiria decidir entre o justo e o injusto (MAINGUENEAU, 2005, p. 115)
Quando, em E6, Marcelo Coelho diz “os integrantes do grupo ‘Católicas pelo
direito de decidir’ e aqueles que concordam com o aborto em caso de estupro pensam assim
não porque são católicos, mas apesar disso e contrariando frontalmente o ensino de toda a
Tradição católica”, ele demonstra que André Petry violou um dos principais dogmas da
polêmica, aquele que impede o uso de inverdades, dogma esse que faz parte daquilo que
Maingueneau chama de “um conjunto ideológico comum sobre as leis do campo discursivo
partilhado”. O mesmo ocorrerá em E8, quando Marcelo Coelho trabalha sobre duas outras
inverdades colocadas por André Petry: (1) A não existência de necessidade de boletim policial
de ocorrência em caso de estupro. Esse deslize permitiu ao autor chamar o articulista de
obtuso. (2) A pressuposição do não uso da mentira por mulheres que desejassem fazer um
aborto.
106
Tentar convencer o articulista a partir de argumentos embasados nos ensinamentos da doutrina católica – na
qual Petry não crê – seria permitir a este condenar mais firmemente as proposições pró-vida.
138
conseqüências, mesmo que essas conseqüências sejam a geração de uma nova vida,
e ainda por cima tem o direito de achar que essa nova vida é apenas um órgão do
corpo feminino que pode ser retirado como se fosse um apêndice. E quem disser o
contrário é um defensor das trevas!
E8 - No penúltimo parágrafo de seu artigo Petry escreve que a Igreja Católica adota
um enfoque chocante ao defender a necessidade de um boletim de ocorrência para
os casos de aborto por causa de um estupro, pois, segundo ele, isso seria tachar as
mulheres de mentirosas. Caso o obtuso colunista não saiba, estupro é crime,
portanto precisa ser denunciado à autoridade competente, ou seja, a polícia. Além do
mais, parece-me que num país onde as seguradoras exigem boletim de ocorrência
em caso de acidente de carro para que o segurado tenha direito ao seguro, quanto
mais se exigirá quando uma vida está em jogo. E, ao contrário do que Petry e o
pensamento iluminista postulam, a Igreja Católica, seguindo os ensinamentos dos
profetas judaicos e de Cristo, sempre ensinou que o homem foi corrompido pelo
pecado e não é dotado de uma bondade natural, que, no caso em questão, impediria
as mulheres de mentir.
107
Esse anacronismo consiste, entre outras coisas, em trabalhar a partir de matérias publicadas meses atrás na
imprensa internacional, particularmente nas revistas TIME e Newsweek e no jornal The New York Times.
139
(1) “Em primeiro lugar, professor Garrafa, não sou seu amigo”. É interessante observar que
neste artigo foram tratadas – agressivamente – uma série de cartas de seus leitores, logo a
expressão “Meus queridos leitores” não passa de ironia... grosseira.
(2) “Em nenhum momento pretendi sugerir que houvesse algo de errado em comer papelão,
tecidos e cosméticos”.
108
Particularmente importante é ressaltar que nossas análises – muitas vezes incisivas – não são dirigidas, de
modo algum, ao cidadão Diogo Mainardi, ser empírico e merecedor de todo respeito e consideração, mas ao
enunciador “articulista Diogo Mainardi”, personagem midiaticamente criado.
140
O “fiador”, cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de
diversas ordens, vê-se, assim, investido de um caráter e de uma corporalidade, cujo
grau de precisão varia conforme os textos. O “caráter” corresponde a um feixe de
traços psicológicos [...] Caráter e corporalidade do fiador apóiam-se, então, sobre
um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de
estereótipos sobre os quais a enunciação se apóia e, por sua vez, contribui para
reforçar ou transformar. Esses estereótipos culturais circulam nos registros mais
diversos da produção semiótica de uma coletividade: livros de moral, teatro, pintura,
escultura, cinema, publicidade... (2005a, p. 72, grifos nossos).
(3) “Vik Muniz é um dos mais bem-sucedidos artistas plásticos brasileiros. Tempos
atrás, em cartinha a VEJA, ele comparou minha coluna à imagem da Virgem Maria e
o menino Jesus. Agradeço muito. Eu só gostaria de notar, Vik, que cartesiano é com
‘s’" (Veja, 14/04/2004, “Meus queridos leitores”).
109
No nietzschianismo, sentimento niilista característico da decadência moderna, e consistente na ausência de
desejo pela vida, o que implica a inexistência de convicções, crenças fundamentais e valorações éticas – por
oposição a niilismo ativo = niilismo vital e necessário por ser capaz de destruir os valores tradicionais da
civilização ocidental, abrindo caminho para a transmutação da moral hegemônica e o surgimento de um novo
homem (HOUAISS, 2002, verbete “niilismo”).
141
PETRY MAINARDI
PAPA 13 32
IGREJA 35 30
Tabela 5 – Termos usados por André Petry e Diogo Mainardi.
Esse estilo sarcástico criou para o articulista muitos problemas, entre os quais
vários processos na justiça. Também produziu algumas situações curiosas, relativamente à
Análise do Discurso. Uma dessas foi a publicação da carta do deputado federal Durval Orlato
(PT-SP) na seção cartas de 24/03/2004. O conteúdo dessa carta contraria o posicionamento
pró-aborto da revista e provavelmente a publicação só ocorreu com uma espécie de “direito de
resposta”, já que o deputado havia sido citado no artigo de Mainardi publicado na semana
anterior. Entretanto, a carta foi publicada entre três outras, francamente pró-Mainardi, o que
assegurou o posicionamento da revista:
Sobre o meu projeto de conscientização junto aos hospitais dos efeitos do aborto na
mulher e de incentivo à adoção pós-parto, quem entende que o feto humano não tem
vida e pode ser tratado como um simples furúnculo a ser extraído será contra sua
aprovação. Parte significativa e importante da comunidade científica prova que há
vida desde a concepção, portanto não se trata apenas de uma questão religiosa.
Quantas mulheres ficaram com seqüelas físicas e/ou psicológicas após a realização
de um aborto? Quantos abortos são feitos apenas porque casais de namorados
tiveram atitudes irresponsáveis? A ciência e a tecnologia devem estar a serviço da
vida em todas as suas fases, ou seja, dos "menos 9 meses" aos 199 anos, caso
contrário serão apenas experiências secundárias que mais polemizam do que ajudam
na resolução dos problemas de saúde ("O planejamento petista", 17 de março).
Durval Orlato Deputado federal (PT-SP) Brasília, DF. (Veja, 24/03/2004, Seção
Cartas).
articulistas e os de – por exemplo – Lya Luft. Nesta o “tom” sofre variações, segundo os
temas tratados e de acordo com a abordagem utilizada. Naturalmente, não estamos de modo
algum afirmando que o ethos é simplesmente uma máscara imposta sobre um conteúdo pré-
estabelecido, pelo contrário, concordamos com Maingueneau quando diz:
Iniciaremos nossa análise dos artigos de Diogo Mainardi pela matéria “Um
estranho no ninho”, publicada em 23 de fevereiro de 2000, sendo esse o seu primeiro artigo
sobre o tema aborto publicado pelo articulista na revista Veja:
O papa, em sua eterna cruzada antiaborto, lançou um novo alarme contra o baixo
índice de natalidade dos italianos. Eu me pergunto: quem é ele para reclamar que os
outros não procriam? Um dos dogmas irrenunciáveis de sua função eclesiástica não
é, justamente, a renúncia a ter filhos? O senador e cineasta Franco Zeffirelli foi ainda
mais longe, sugerindo que as mulheres que recorrem a abortos sejam decapitadas em
praça pública. Desnecessário dizer, claro, que Zeffirelli nunca teve nem nunca terá
uma mulher ou um filho. O fato é que, no mesmo período em que o papa e Zeffirelli
faziam seus pronunciamentos, fui informado de que minha mulher estava grávida. O
meu impulso natural, ouvindo-os, seria correr para o hospital mais próximo. O
aborto é legal na Itália, graças a um referendo de 1974. Depois de refletir por alguns
dias, porém, acabamos por descartar essa opção. E, em setembro, serei pai.
Eu nunca imaginei que viesse a ter um filho. A recusa da paternidade foi uma das
poucas certezas que jamais questionei em minha vida. Eu detesto crianças. Muito
melhor do que uma criança é um cachorro. Infelizmente, a probabilidade de que meu
filho nasça igual a um basset hound é um tanto remota. Eu também ficaria satisfeito
com um filho-tartaruga: toda vez que ele se agitasse demais, bastaria revirá-lo de
barriga para cima, e ele permaneceria imóvel, em silêncio, sacudindo os bracinhos.
Imagino que todo pai tenha um medo danado de não gostar do próprio filho. Não
deve ser uma eventualidade tão rara assim. Ter um filho, a meu ver, equivale a enfiar
um completo estranho dentro de casa. É como se eu convidasse o gerente do meu
banco a morar comigo e, ainda por cima, passasse a sustentá-lo. Porque nada exclui
que meu filho tenha uma cabeça idêntica à do gerente do meu banco. O que vai
acontecer, por exemplo, se meu filho gostar dos filmes de Zeffirelli? O que eu posso
fazer para impedi-lo? E se ele tiver o desplante de desaprovar o que eu escrevo? Se
não achar graça neste artigo?
A solução perfeita, para contornar esses casos, seria mudar a legislação relativa ao
aborto. Na Itália, o aborto é permitido até o terceiro mês de gravidez. Eu estenderia
143
esse prazo até o décimo quinto aniversário da criança. Seria uma arma potentíssima
nas mãos dos pais. Faríamos crianças obedientes e solícitas. Aterrorizadas com a
possibilidade de que pudéssemos descartá-las de um momento para o outro, elas
sempre fariam de tudo para nos agradar. A idéia é muito boa. O único problema será
convencer o papa e Zeffirelli sobre os benefícios da nova lei.
Por fim, minha mulher suspeita que eu tenha concordado em ter esse filho apenas
porque não tinha assunto para o artigo desta semana. Parece-me um motivo tão
válido quanto qualquer outro.
E2 - O senador e cineasta Franco Zeffirelli foi ainda mais longe, sugerindo que as
mulheres que recorrem a abortos sejam decapitadas em praça pública. Desnecessário
dizer, claro, que Zeffirelli nunca teve nem nunca terá uma mulher ou um filho.
110
Efetuamos longas buscas na internet e não localizamos o discurso no qual ele supostamente sugere que “as
mulheres que recorrem a abortos sejam decapitadas em praça pública”.
144
legal na Itália, graças a um referendo de 1974. Depois de refletir por alguns dias,
porém, acabamos por descartar essa opção. E, em setembro, serei pai.
E4 - Eu nunca imaginei que viesse a ter um filho. A recusa da paternidade foi uma
das poucas certezas que jamais questionei em minha vida. Eu detesto crianças. Muito
melhor do que uma criança é um cachorro. Infelizmente, a probabilidade de que meu
filho nasça igual a um basset hound é um tanto remota. Eu também ficaria satisfeito
com um filho-tartaruga: toda vez que ele se agitasse demais, bastaria revirá-lo de
barriga para cima, e ele permaneceria imóvel, em silêncio, sacudindo os bracinhos.
Gostaríamos de, por uma questão ética, deixar de comentar esse parágrafo, já
que a imprecação do articulista acabou se tornando realidade111.
E5 - Imagino que todo pai tenha um medo danado de não gostar do próprio filho.
Não deve ser uma eventualidade tão rara assim. Ter um filho, a meu ver, equivale a
enfiar um completo estranho dentro de casa. É como se eu convidasse o gerente do
meu banco a morar comigo e, ainda por cima, passasse a sustentá-lo. Porque nada
exclui que meu filho tenha uma cabeça idêntica à do gerente do meu banco. O que
vai acontecer, por exemplo, se meu filho gostar dos filmes de Zeffirelli? O que eu
posso fazer para impedi-lo? E se ele tiver o desplante de desaprovar o que eu
escrevo? Se não achar graça neste artigo?
E6 - A solução perfeita, para contornar esses casos, seria mudar a legislação relativa
ao aborto. Na Itália, o aborto é permitido até o terceiro mês de gravidez. Eu
estenderia esse prazo até o décimo quinto aniversário da criança. Seria uma arma
potentíssima nas mãos dos pais. Faríamos crianças obedientes e solícitas.
Aterrorizadas com a possibilidade de que pudéssemos descartá-las de um momento
para o outro, elas sempre fariam de tudo para nos agradar. A idéia é muito boa. O
único problema será convencer o papa e Zeffirelli sobre os benefícios da nova lei.
indivíduo – indicam a construção de um ethos artificial, que joga com diversas possibilidades
enunciativas, criando assim um estado permanente de polêmica que ajuda a vender (segundo a
própria revista Veja, Diogo Mainardi é o seu articulista mais lido).
E7 - Por fim, minha mulher suspeita que eu tenha concordado em ter esse filho
apenas porque não tinha assunto para o artigo desta semana. Parece-me um motivo
tão válido quanto qualquer outro.
E7 – vemos predominar aqui, mais uma vez, o ethos articulista, que costuma
referir-se muitas vezes a sua própria pessoa, ao contrário de André Petry, que raramente
refere-se a si mesmo.
112
Aqui indicaremos os fragmentos pela letra “F” (fragmento) acompanhada de uma numeração seqüencial.
146
F3 - João Paulo II consagrou mais santos do que qualquer outro papa. Esse dado
reflete o seu modo de ver a religião: mágica, miraculosa, irracional. (Veja,
06/09/2000, “Meu cachorro e o papa”).
113
Não para Mainardi, que não propõe nada que não esteja solidamente embasado no casuísmo.
114
Possivelmente nosso leitor terá observado que utilizamos as expressões pro-choice/pro-life e pro-life/pro-
choice aparentemente de forma aleatória. Esclarecemos que esse procedimento é intencional, pois uma vez que
as duas formações discursivas se formam de maneira sincrônica dentro do interdiscurso, não há uma primeira e
uma segunda expressão.
148
F6 - Calcula-se que os abortos clandestinos sejam responsáveis por cerca de 15% das
mortes de gestantes. Acabando com os abortos clandestinos, a mortalidade materna
diminui na mesma proporção, em particular entre as mulheres mais pobres e mais
jovens (Veja, 17/03/2004, “O planejamento petista”, anexo 23, p. 238).
F8 - No mundo todo, o direito ao aborto foi uma conquista dos partidos de esquerda
[...] Agora mudou. Os petistas perderam o interesse pelo assunto. (Ibid.).
F10 - Ele (o cardeal dom Cláudio Hummes) acredita que a religião pode fazer muito
mais, funcionando como um contrapeso para o capitalismo e a sociedade de
consumo. A maior parte dos discípulos de João Paulo II exibe a mesma presunção.
Eles imaginam que o papa de fato derrubou o comunismo. E que, a seguir, derrubaria
também os aspectos mais daninhos do capitalismo, que se manifestam sob a forma
de um degenerado materialismo. É um erro de avaliação da hierarquia católica. Em
primeiro lugar, quem derrubou o comunismo foi o capitalismo, e não o papa. Em
segundo lugar, o grande atributo do capitalismo é a capacidade de se corrigir
sozinho. Sem religião. Sem papa. Sem o cardeal de São Paulo (Veja, “As respostas
da Igreja”, 13/04/2005, anexo 25, p. 240).
Portanto, uma vez que Mainardi e a revista Veja são contra o comunismo (pelo
viés econômico) e contra a Igreja (pelo viés moral), como conciliar o fato de que o papa
ajudou a derrubar o comunismo, já que ambos, cada um por um viés específico, são
rejeitados? Como aplaudir a queda do muro de Berlin sem ao mesmo tempo tecer elogios a
João Paulo II? A resposta é: negando a participação e importância do papa nesse fato
histórico, negação esta que permite a Mainardi e a Veja a preservação de sua identidade
discursiva.
E2 - Sua maior qualidade é o profundo menosprezo que ele tem pelos jovens.
E3 - Um bom exemplo do menosprezo ratzingeriano foi dado na homilia que
antecedeu a eleição papal, na última terça-feira, quando ele ridicularizou a ala
reformista da Igreja Católica comparando-a a um menor de idade. A fé verdadeira,
segundo Ratzinger, exige maturidade. É para adultos. É para gente grande. Não para
a rapaziada, que sofre de "fraqueza mental", sendo permanentemente "jogada pelas
ondas e atirada de um lado para o outro por qualquer vento de doutrina". Ratzinger
tem razão. A grande ameaça à civilização ocidental é a infantilização da sociedade
moderna.
Cristo", que somos chamados a alcançar para sermos realmente adultos na fé. Não
deveríamos permanecer crianças na fé, em estado de menoridade. Em que consiste
ser crianças na Fé? Responde São Paulo: significa ser "batidos pelas ondas e levados
por qualquer vento da doutrina..." (Ef 4, 14). Uma descrição muito atual!
Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decênios, quantas correntes
ideológicas, quantas modas do pensamento... A pequena barca do pensamento de
muitos cristãos foi muitas vezes agitada por estas ondas lançada de um extremo ao
outro: do marxismo ao liberalismo, até à libertinagem, ao coletivismo radical; do
ateísmo a um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo e por aí
adiante. Cada dia surgem novas seitas e realiza-se quanto diz São Paulo acerca do
engano dos homens, da astúcia que tende a levar ao erro (cf. Ef 4, 14). Ter uma fé
clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como
fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar "aqui e além por
qualquer vento de doutrina", aparece como a única atitude à altura dos tempos
hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece
como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas
vontades.
Ao contrário, nós, temos outra medida: o Filho de Deus, o verdadeiro homem. É ele
a medida do verdadeiro humanismo. "Adulta" não é uma fé que segue as ondas da
moda e a última novidade; adulta e madura é uma fé profundamente radicada na
amizade com Cristo. É esta amizade que nos abre a tudo o que é bom e nos dá o
critério para discernir entre verdadeiro e falso, entre engano e verdade. Devemos
amadurecer esta fé, para esta fé devemos guiar o rebanho de Cristo. E é esta fé só
esta fé que gera unidade e se realiza na caridade. São Paulo oferece-nos a este
propósito em contraste com as contínuas peripécias dos que são como crianças
batidas pelas ondas uma bela palavra: praticar a verdade na caridade, como fórmula
fundamental da existência cristã. Em Cristo, coincidem verdade e caridade. Na
medida em que nos aproximamos de Cristo, também na nossa vida, verdade e
caridade fundem-se. A caridade sem verdade seria cega; a verdade sem caridade
seria como "um címbalo que retine" (1 Cor 13, 1).
E5 - Leonardo Boff declarou que, a partir de agora, "a Igreja terá mais dificuldade
para ser reconhecida, especialmente pelos jovens". É verdade.
115
Os dogmas fazem parte do chamado “depósito da fé”: aquilo que foi confiado pelo próprio Cristo à Igreja e
que, portanto, não pode ser mudado, já que não tem sua origem em reflexões humanas, mas pertence ao conjunto
da revelação divina. O dogma, por definição, é imutável. O papa, como chefe da Igreja, é o guardião e não o
dono desse depósito, sendo assim, mesmo que desejasse, não poderia autorizar um aborto ou qualquer outra
coisa contrária a tais princípios.
154
E8 - Nesse aspecto, Ratzinger é o exato oposto de João Paulo II. Para atrair os
jovens, João Paulo II se cercou de estrelas da música popular e transformou as
missas campais em grandes espetáculos profanos.
E9 - Ratzinger não fará nada disso. Para ele, "a liturgia não é um espetáculo, não
vive de surpresas simpáticas, cativantes, e sim de repetições solenes". Numa
sociedade cuja maior preocupação é entreter e seduzir os jovens, Ratzinger tem a
ousadia de lhes oferecer apenas seu menosprezo e seu sentimento de superioridade.
A meninada é conformista, acomodada, titubeante. A revolução geriátrica de
155
Em E10 vemos que o artigo, que foi iniciado com uma declaração irônica, é
encerrado com outra, procurando, assim, manter o tom que se tornou uma espécie de “marca
registrada” de Diogo Mainardi, de seu ethos que, através da instauração de uma cenografia
dominada pela derrisão, se tornou um dos grandes atrativos do articulista mais lido de Veja.
Se o que ele – ou a revista Veja – comunicam tem algo de verdadeiro parece ser uma questão
menor, questão essa que deveria, talvez, ficar fora do âmbito da análise do discurso. Não
acreditamos nessa tese. Pensamos que a Análise do Discurso deve, sim, assumir um
posicionamento investigativo, crítico. Esse parece ser também o posicionamento de
Charaudeau (2006, p. 48):
Quatro meses após a publicação desse artigo, no qual Diogo Mainardi afirmava
o distanciamento entre o papa Bento XVI e a juventude, aconteceu o encerramento da
“Jornada Mundial da Juventude” com a presença de mais de um milhão de pessoas,
especialmente jovens.
116
É essencial esclarecer que procuramos denunciar, nos capítulos quinto, sexto e sétimo, o mau jornalismo
praticado por Veja. Como o tema aqui tratado é o aborto, é natural que essa crítica ganhe contornos (termo
intencionalmente empregado para rejeitar qualquer conotação constitutiva) de um posicionamento pro-life. Se
estivéssemos analisando outros temas abordados pela mesma revista e pelos mesmos articulistas, mutatis
mutandis, nossas considerações certamente seriam as mesmas.
157
Para concluirmos nossa análise dos escritos dos articulistas André Petry e
Diogo Mainardi, gostaríamos de chamar a atenção para a maneira pela qual esses articulistas
se enquadram dentro da mesma formação discursiva liberal que caracteriza a revista Veja, que
defende a liberdade individual de maneira ampla – aborto, eutanásia, homossexualismo etc.
Como os movimentos que se opõem a esses posicionamentos, como o movimento pró-vida,
fundam-se nos princípios do catolicismo, a Igreja Católica é radicalmente rejeitada. Essa
rejeição se dá através de duas funções, conforme a proposta de Maingueneau no quarto
capítulo de “Gênese dos discursos” intitulado “A polêmica como interincompreensão”: (1) os
semas aborto, eutanásia, homossexualismo etc. são traduzidos diretamente, ou seja: é proposta
a identidade entre o conjunto de semas rejeitados pela Igreja e o conjunto de semas
reivindicados pelo liberalismo e, portanto, aqui não haveria simulacros117:
SEMAS SEMAS
REIVINDICADOS REJEITADOS
PELOS PELOS
LIBERAIS CONSERVADORES
ABORTO ABORTO
EUTANÁSIA EUTANÁSIA
HOMOSSEXUALISMO HOMOSSEXUALISMO
Tabela 6 – Semas ao mesmo tempo aceitos pelos Liberais e rejeitados pelos
Conservadores (movimento pró-aborto e pró-vida).
(2) Outros semas são traduzidos a partir de um duplo processo, que chamamos
de criação de simulacros. Por exemplo, o oposto de liberal é conservador (primeira tradução),
porém os liberais, para que possam integrar o seu Outro (os conservadores) no Mesmo, fazem
uma segunda operação de tradução e conservador torna-se anacrônico, religioso torna-se
moralista etc.:
117
Nossas observações e reflexões sinalizam que, partindo do princípio da não transparência da linguagem,
poderíamos identificar simulacros a partir de efeitos de sentido originários da construção de enunciados usando
os mesmos semas em diferentes posições enunciativas.
158
Pelo que acabamos de expor é fácil perceber que a diferença entre os dois
articulistas é apenas no ethos, sendo o posicionamento liberal pró-aborto defendido
igualmente por ambos, em conformidade com o discurso da organização na qual atuam: a
revista Veja118.
118
O posicionamento de grandes órgãos da imprensa nacional e internacional – e a maneira pela qual esses
posicionamentos influenciam suas publicações e a própria situação social e política mundial – é tema de nosso
particular interesse e seria nosso provável tema em uma tese de doutorado.
159
Veja - 21-01-2004.
Juliana Linhares
119
Filiamo-nos aqui aos conceitos de hard news e soft news – notícias de grande impacto e notícias de menor
impacto – conforme tratados por ROGERS (1977). Destacamos que o impacto da notícia não depende somente
do tema tratado, mas também da abordagem. Dessa forma a reportagem “NÓS FIZEMOS ABORTO – O
depoimento das mulheres e a polêmica no Brasil” é hard news enquanto a deste capítulo é soft news, embora
tratem do mesmo tema.
160
RU-486. Elas geram contrações nos músculos do útero, movimento que termina por
expelir o feto.
Por um lado, a iniciativa da Women on Waves impressiona, pois mostra a que ponto
pode chegar a paixão de um grupo de pessoas por uma causa. No caso, trata-se de
lutar para que as mulheres tenham o direito de decidir se vão ou não dar
prosseguimento a uma gravidez, sem interferência do Estado. Há, no entanto, outro
lado a considerar na ação da ONG da doutora Rebecca, que diz respeito à qualidade
do compromisso que ela estabelece com as mulheres que se propõe a amparar.
Quando o barco chega ao país onde o aborto é proibido, seus profissionais dão um
amparo emergencial às que pretendem abortar. Só que o barco desaparece dias
depois, e as mulheres voltam a depender exclusivamente do sistema de saúde local.
E se houver complicações posteriores? Em que condições essas mulheres serão
socorridas? A embarcação tem entre seus próximos destinos a África. Rebecca
Gomperts informa que o Brasil faz parte de seus planos. "Filhas e esposas de
pessoas ricas abortam em clínicas limpas e seguras, mas a maioria das mulheres
apela para métodos rudimentares. Minha luta é contra essa hipocrisia", diz a médica.
(1) “Talvez apenas a eutanásia e a pena de morte produzam debates tão apaixonados quanto
os travados entre os defensores e os inimigos do aborto”.
(2) “O mais recente e ousado movimento nessa guerra partiu dos defensores do aborto”.
discurso perde – pelo menos parcialmente – sua autonomia. Nossas reflexões, embasadas nas
proposições que Foucault faz da relação entre história e discurso, nos indicam que o sistema
de restrições de uma formação discursiva não pode produzir simulacros, não pode traduzir o
Outro no Mesmo, para além de certos limites; limites esses impostos pela história:
(4) “A embarcação só visita os países onde o aborto é proibido, e burla a legislação local com
a ajuda da legislação marítima. Segundo normas internacionais de navegação, as regras
vigentes num barco atracado num porto são as mesmas do país onde ele está ancorado. Mas a
12 milhas marítimas da costa desse país, algo como 22 quilômetros, estão as águas
internacionais, onde as normas são diferentes. A essa distância da costa, vale a legislação do
país de origem do barco – nesse caso, a da Holanda, onde o aborto é permitido”.
À primeira vista temos uma descrição de uma série de fatos, necessários apenas
para que o leitor possa entender a matéria. Entretanto, uma leitura mais atenta mostra fatos
interessantes. Primeiro, o confronto com as leis que proíbem o aborto, confronto este que visa,
claramente, a tornar a ação do grupo um libelo a favor do aborto: “A embarcação só visita os
120
Todos os termos em inglês são amplamente usados no mundo todo e foram recolhidos diretamente nos sites
dos maiores grupos pro-choice, podendo ser considerados como representativos dessa formação discursiva.
164
(5) “O barco funciona assim: quando chega a um porto, presta atendimento ginecológico
convencional às mulheres que o procuram, quase todas oriundas das camadas de renda mais
baixas. Depois, catalogam-se as que desejam fazer aborto e é marcado um retorno. O barco
então desatraca com as mulheres a bordo e ancora em águas internacionais. Aí, são feitos os
abortos”.
121
A eutanásia já era praticada na Holanda antes de sua legalização, em 10 de abril de 2001 (lei que entrou em
vigor em abril de 2002).
165
(6) “Viajam no barco dez pessoas, tripulação formada por ginecologistas, enfermeiras,
psicólogas, seguranças e advogados”.
Temos aqui um lugar comum muito usado na construção de uma cenografia: a
citação de profissionais e técnicos, especialmente de profissionais que possuem alta
conceituação entre o público, como médicos, psicólogos e advogados. Essas citações se
enquadram no processo de construção de uma identidade – através da dupla cenografia/ethos
– favoráveis ao grupo Women on Waves. Temos observado que esse processo tem assumido
cada vez mais o espaço que deveria pertencer ao debate das idéias – quem não se lembra dos
insuportavelmente vazios debates televisivos dos candidatos à presidência do Brasil em
2006122? Temos aqui um paradoxo: depois de haver demonstrado que a antiga retórica grega
122
Pensando em alguém que porventura possa vir a ler este trabalho no futuro, diremos que os debates foram
vazios de idéias, com os candidatos tacitamente evitando toda e qualquer polêmica; procurando apenas passar
uma imagem cool, criar um clima de bom-mocismo.
166
(7) “Pela ousadia envolvida na ação, muitas vezes os advogados acabam trabalhando mais do
que os ginecologistas. As autoridades dos países escolhidos para receber o barco são avisadas
com antecedência, mas a divulgação pública do destino é feita pela imprensa na última hora,
como forma de evitar manifestações mais violentas. Nos dois países onde o barco do aborto já
esteve, houve manifestações inflamadas. Na Polônia, manifestantes antiaborto pintaram o
corpo com tinta vermelha, sugerindo que a equipe estaria banhada em sangue. Ainda assim,
foram feitos doze abortos. Na Irlanda, a manifestação foi mais séria e nenhum aborto se
consumou”.
(8) "Enfrentamos enormes dificuldades para aportar nos países. Daí, só termos conseguido
estar em dois deles. Nossos advogados, todos voluntários, têm de trabalhar duro para vencer a
resistência dos governos", afirma a ginecologista holandesa Rebecca Gomperts, que fundou a
ONG Women on Waves (Mulheres sobre as Ondas) e teve a idéia de montar o barco.
(9) “O estilo ousado de agir, Rebecca aprendeu no tempo em que militou no Greenpeace”.
123
Ethé é o plural de ethos.
167
emergência, a fala é carregada de um certo ethos, que, de fato, se valida progressivamente por
meio da própria enunciação” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 68). Esse processo de
construção/demolição de identidades através de uma cenografia e de um ethos pré-moldados
na forma do sistema de restrições de uma formação discursiva é um dos recursos mais usados
pela mídia. Tão usado que os personagens da vida real – sejam eles líderes políticos, homens
públicos, personalidades do mundo científico, cultural ou artístico – hoje não são menos
ficção que os heróis – ou bandidos – que voam sem asas, emitem raios pelos olhos ou soltam
teias de aranha pelos punhos.
(10) “Como a entidade não tem tantos recursos, o barco não consegue fazer muitas viagens.
‘Nossa ONG depende integralmente de doações, do trabalho voluntário e da ajuda do governo
holandês. Daí por que operamos de forma limitada’, diz Rebecca”.
Procuramos verificar os dados citados por Veja, pois mais uma vez os números
“redondos” apresentados pela revista nos pareceram estranhos. Todavia, Veja cita de modo
vago a Organização Mundial de Saúde, ou seja, simplesmente diz que os dados são da OMS,
sem citar nome, data e outras informações que permitam indicar os relatórios de onde retirou
os dados apresentados. Pesquisando no site da OMS em 12 de agosto de 2006, encontramos o
relatório de onde, possivelmente, saíram as informações mostradas pela revista. Trata-se do
relatório “Unsafe abortion – Global and regional estimates of the incidence of unsafe
abortion and associated mortality in 2000”, publicado pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) – World Health Organization (WHO) – em 2004. Lá encontramos as seguintes
informações: “Estimates indicate that 46 million pregnancies are voluntarily terminated each
year […] Estimates based on figures for the year 2000 indicate that 19 million unsafe
abortions take place each year […] Worldwide an estimated 68 000 women die as a
consequence of unsafe abortion” (Estimativas indicam que 46 milhões de gravidezes (e não
‘50 milhões’, conforme afirma Veja) são voluntariamente terminadas cada ano. Estimativas
baseada em números do ano 2000 indicam que 19 milhões (e não ‘mais de vinte milhões’,
168
conforme afirma Veja) de abortos inseguros acontecem a cada ano. Mundialmente um número
estimado de 68.000 (e não “mais de 80.000”) mulheres morrem em conseqüência de abortos
inseguros). O dado realmente distorcido não é representado pelos números, mais sim pela
afirmação “a maior parte dos óbitos ocorre nas nações que criminalizam a prática”, quando na
verdade a WHO não fala em aborto ilegal e sim em aborto inseguro. Um dado concreto
tornará tudo mais claro: a Índia, onde o aborto é legal, responde por 25% das mortes. O
enunciado de Veja induz os leitores a pensarem que a legalização do aborto torna sua prática
automaticamente segura, o que não é verdade, conforme a própria WHO:
Reproductive health
Unsafe abortion
Globally, some 45 million unintended pregnancies are terminated each year; of which an estimated 19 million are terminated in
an unsafe condition. What is most disconcerting is the fact that unsafe abortion affects young women and teenagers.
Approximately 40% of all unsafe abortions are performed on young women aged 15 to 24. It kills an estimated 68 000 women
every year globally. It accounts for 13% of all pregnancy-related deaths.
In a narrow sense, abortion is legal in much of the world. The overwhelming majority of countries and areas permit abortion to
be performed to save pregnant women’s life. National abortion laws and policies are significantly more restrictive in the
developing world than in the developed countries. In the developed countries, abortion is permitted upon request in 31
countries, about two-third of all developed countries. In contrast, only 1 in 7 developing countries allow abortion upon request.
(World Population Monitoring, reproductive right and reproductive health, United Nations, 2003, page 86.) Access to abortion
services is governed by existing laws and policies within countries. Cambodia, China, DPR Korea, Japan, Mongolia, and Viet
Nam are legally permissive countries in the Regions, while Lao PDR, Malaysia, the Philippines, and most South Pacific island
countries are legally restricted.
Liberal abortion laws, however, do not guarantee that women can obtain safe abortions. In Cambodia, for example,
where abortion is permitted on broad grounds, too many women still undergo dangerous abortions performed by illegal,
unqualified providers. Despite the magnitude of the problem, data at country level on this important reproductive health
indicator is scarce because it is a very sensitive and a very private topic.
(12) “Existem várias técnicas abortivas. Uma das mais praticadas é a da aspiração, feita por
meio de um tubo ligado a um aparelho de sucção colocado junto ao útero. No barco da ONG
holandesa, a técnica utilizada é um combinado das pílulas abortivas Cytotec (usadas no
169
tratamento de úlceras) e RU-486. Elas geram contrações nos músculos do útero, movimento
que termina por expelir o feto”.
(13) “Por um lado, a iniciativa da Women on Waves impressiona, pois mostra a que ponto
pode chegar a paixão de um grupo de pessoas por uma causa. No caso, trata-se de lutar para
que as mulheres tenham o direito de decidir se vão ou não dar prosseguimento a uma
gravidez, sem interferência do Estado.”
(14) “Há, no entanto, outro lado a considerar na ação da ONG da doutora Rebecca, que diz
respeito à qualidade do compromisso que ela estabelece com as mulheres que se propõe a
amparar. Quando o barco chega ao país onde o aborto é proibido, seus profissionais dão um
amparo emergencial às que pretendem abortar. Só que o barco desaparece dias depois, e as
mulheres voltam a depender exclusivamente do sistema de saúde local. E se houver
complicações posteriores? Em que condições essas mulheres serão socorridas?”
(15) “A embarcação tem entre seus próximos destinos a África. Rebecca Gomperts informa
que o Brasil faz parte de seus planos”.
124
A taxa média de fecundidade na Europa é de 1,4 filhos por mulher, bem abaixo da taxa de manutenção da
população, que é de 2,2 (disponível em: http://www.cursocarpediem.com/?secao=textos_texto1, acesso em 26
jan. 2008). No Japão é de 1,25 (disponível em http://comvisa.anvisa.gov.br/tiki-read_article.php?articleId=
1218&highlight=indesejada, acesso em 26 jan. 2008).
170
(16) "Filhas e esposas de pessoas ricas abortam em clínicas limpas e seguras, mas a maioria
das mulheres apela para métodos rudimentares. Minha luta é contra essa hipocrisia", diz a
médica.
(1) Todas as pessoas têm os mesmos direitos (premissa maior, implícita, que por sua vez
subentende que o aborto está entre esses direitos, o que não é verdade, pelo menos enquanto
abortar for ilegal; é aqui que reside a falácia do argumento, pois um silogismo que se baseia
em uma premissa maior falsa é um sofisma);
(2) Filhas e esposas de pessoas ricas abortam em clínicas limpas e seguras (é um fato);
(3) A maioria das mulheres é obrigada a apelar para métodos rudimentares (também é um
fato);
(4) Isso é uma hipocrisia (é uma injustiça). Enquanto o aborto for ilegal, a diversidade de
situações entre sua prática distribuída pelos diversos níveis sociais não pode ser usada – do
ponto de vista lógico, pois foi essa a formulação evocada pela enunciadora – como argumento
para sua validação, pois essa é uma situação pré-legal, que, aliás, existe também em outras
situações sociais, por exemplo: roubar é ilegal, logo o argumento de que os ladrões de
colarinho branco não são punidos (o que é verdade), enquanto os criminosos comuns são
rigorosamente penalizados (o que também é verdade), não pode ser usado como argumento
para a legalização do crime. Certamente poderia ser usado como argumento para a também
punição dos ladrões de “alto nível”. O mesmo se aplica ao tráfico de drogas (à diversidade
entre os grandes traficantes e os pequenos, que morrem todos os dias nas favelas), à
prostituição (entre as que atendem altos executivos e as que fazem “ponto” nas esquinas das
grandes cidades) etc.
É antes de tudo pelo sistema de restrições semânticas que deve passar a inscrição
das práticas discursivas em suas conjunturas históricas (MAINGUENEAU, 2005, p.
170).
Já que o que resulta do sistema de restrições é o conjunto do discurso considerado na
irredutível diversidade de seus planos, basta que seja possível definir uma relação
interessante entre este último e sua conjuntura histórica para que o conjunto da
superfície discursiva correspondente seja parte relevante dessa relação (Ibid., p.
173).
fortalecimento daquele. As reportagens da revista TIME e do jornal Daily Mail que veremos
logo mais se situam dentro do novo plano em que o debate se posicionou a partir daquela
decisão. Infelizmente a revista Veja mergulhou no silêncio125, talvez não tendo entendido que
“Sería hora de comenzar a romper los espejos”126 (PÊCHEUX, 1981, p. 5).
125
O silêncio da revista Veja diante de acontecimentos realmente importantes – e que, portanto, deveriam ser
objeto de suas matérias, já que ela é “uma revista semanal de informação” – que contrariam seus
posicionamentos é absolutamente inaceitável na revista de maior circulação no Brasil (1.107.050 exemplares por
semana em setembro de 2007, disponível em: <http://publicidade.abril.com.br/geral_circulacao_revista.php>,
acesso em 26 jan. 2008).
126
Não estamos aqui insinuando qualquer mudança de um posicionamento pro-choice para um posicionamento
pro-life, mas sim a mudança de para uma posição que busque ser o mais factual possível.
127
Essa leitura não é a do posicionamento Conservador, adotado pelo próprio papa. De fato, ela parece ser mais
uma falácia do tipo Post hoc ergo propter hoc, que procura estabelecer uma relação de causa e efeito pelo
simples fato de um acontecimento suceder cronologicamente a outro.
128
Temos então três grupos: Tradicionalistas, Modernistas e Conservadores, sendo esse último o grupo no qual
se situam os papas.
173
(2) “Sendo o movimento que politizou e desfez a relação obrigatória entre sexualidade e
reprodução, o feminismo considera a legalização do aborto um marco fundamental na luta por
direitos reprodutivos, direitos sexuais...”.
129
“O discurso liberal ‘todos os homens são iguais perante a lei’ produzindo o apagamento das diferenças
constitutivas dos lugares distintos, reduz o interlocutor ao silêncio” (ORLANDI, 1992, p 43).
174
resultado, o que permite inferir uma mudança no paradigma discursivo da revista em relação
ao tema. Essa seria, pois, a “relação interessante entre o discurso e sua conjuntura histórica”
citada por Maingueneau, que uma vez definida se estende pelos diversos planos das
formações discursivas pertencentes a um determinado campo, permitindo o imbricamento do
discurso na história e vice-versa. É importante destacar que vemos nessa relação uma
participação ativa do discurso na construção da história e não apenas um reflexo desta.
130
O termo “involuntariamente” é aqui empregado significando o peso da conjuntura histórica sobre o discurso.
175
discurso não é somente uma questão de vocabulário ou de sentenças, que ela depende de fato
de uma coerência global que integra múltiplas dimensões textuais” (MAINGUENEAU,
2005, p. 18, grifo nosso). De fato, qualquer leitor poderá perceber a incoerência entre o título
da matéria e o conteúdo da mesma – o que, em se tratando da maior revista semanal de
noticias do planeta e uma das mais respeitadas e conceituadas, não é de maneira nenhuma
pouca coisa. Cremos que essa incoerência não nasce de uma incompetência da jornalista
Nancy Gibbs, mas sim de uma incoerência na integração dos múltiplos aspectos constituintes
do discurso pro-choice, aspectos que davam a ele uma identidade, identidade essa que possuía
um estatuto histórico (modernista) que integrava grandes correntes sociais (metanarrativas131)
em um esquema com amplo suporte midiático. A pós-modernidade está impondo ao discurso
pro-choice – e também a outros segmentos do discurso liberal – um processo de fragmentação
e de perda da legitimação de sua identidade, legitimação essa claramente dependente da
legitimação de seus enunciados – aqui entendida como a possibilidade de um enunciado ser
incluído em um discurso de forma a reforçá-lo. Ora, essa capacidade de reforçar um discurso
sempre esteve presa a uma relação com um Outro, que representava o anverso do discurso e
que servia, em um processo de formação regulada no interior do interdiscurso, para criar e dar
uma identidade à formação discursiva. Como esse Outro se fragmentou132, posicionando-se na
era pós-moderna, o movimento pro-choice se vê atualmente preso entre duas perspectivas:
manter-se dentro de um posicionamento modernista que dá suporte aos seus embasamentos133,
porém torna-se cada vez mais anacrônico ou inserir-se em um viés pós-moderno e correr o
risco de perder seus suportes culturais e históricos. Vemos, aqui, muito mais uma luta interna,
procurando posicionar-se historicamente, do que um enfrentamento com seu Outro, o
movimento pro-life, que dentro desse viés que estamos tratando busca mais oferecer
alternativas reais ao aborto do que o confronto com seu Outro. Coisas da pluralidade pós-
moderna, provavelmente já percebida por Maingueneau, que encerra “Gênese dos discursos”
com o seguinte enunciado (2005, p. 189):
131
Infelizmente, uma abordagem mais ampla dos estudos sobre pós-modernidade, como os efetuados pelo
filósofo francês Jean-François Lyotard (1924-1998), excederia as dimensões (físicas) deste trabalho. Pensamos
particularmente em uma analogia entre metanarrativa – que, para nós, possui estatuto fundamentalmente
histórico – e discurso constituinte – fundamentalmente lingüístico/conceitual. Por isso, apenas sinalizaremos um
dos sintomas desse processo: a mudança da expressão “Análise do Discurso” (a metanarrativa marxista, por
exemplo) para “Análise de Discurso” (o discurso – fragmentado – da propaganda televisiva).
132
Referimo-nos aqui à divisão do movimento pro-life que desenvolveu diversos segmentos que atuam em áreas
especificas, como os “Centros de apoio a gravidez em crise”, tratado nessa edição de TIME, os grupos de ajuda
aos que sofrem conseqüências do pós-aborto (Rachel’s Vineyard – healing the trauma of abortion), o
envolvimento dos homens que perderam seus filhos pelo aborto (I regret my lost fatherhood), o envolvimento
dos mais diversos grupos religiosos – cristãos e não-cristãos etc.
133
Embasamento originário da sua relação com o Outro, como, por exemplo, a relação entre o movimento
feminista e a cultural patriarcal, que dava legitimidade aos enunciados daquela, construídos por oposição a esta.
176
(1) “This bright new examining room is as good a place as any to study the anatomy and
evolution of attitudes about abortion” (= Essa nova sala de exames (referindo-se a sala de
exames de um centro de apoio à gravidez em crise) é um lugar tão bom quanto qualquer outro
para estudar a anatomia e a evolução das atitudes a respeito do aborto). O conceito de
“evolução das atitudes a respeito do aborto” se enquadra perfeitamente dentro do viés que
estamos pesquisando, o da evolução histórica do discurso.
177
(2) “The growth in the movement has raised other alarms with pro-choice groups […]
There’s such momentum behind the CPC (crisis pregnancy centers) movement that abortion-
rights groups have begun to fight back” (= o crescimento do movimento (dos centros de apoio
a gravidez em crise) fez soar outros alarmes nos grupos pelo direito ao aborto [...] há uma tal
vitalidade no movimento CPC que os grupos pró-aborto começaram a contra-atacar). A partir
desse enunciado a reportagem passa a descrever as ações que grupos como Planned
Parenthood, NARAL – National Abortion Rights Action League (Liga de Ação Nacional dos
Direitos Abortivos) e U. S. National Abortion Federation (Federação Nacional Americana do
Aborto) estão realizando especificamente contra os CPCs. O fato relevante para a Análise do
Discurso é que esses grupos sempre se posicionaram como pro-choice (pró-escolha), ou seja,
seriam favoráveis à escolha da mulher – qualquer que fosse essa escolha. Ora, as observações
empíricas que fizemos ao longo dos anos, acompanhando as ações desses grupos através da
mídia internacional, lendo suas publicações, acessando seus sites e verificando os serviços
oferecidos sempre mostraram claramente a inverdade desse enunciado, ou seja: não havia
nada que representasse suporte a uma escolha que não fosse o aborto. Entretanto, o
movimento pro-choice ainda podia usar a argumentação de apoiar a decisão em favor do
aborto – ocasião em que ofereceria seus serviços – e também apoiar a decisão pela vida –
mesmo não oferecendo qualquer suporte material para isso. Recentemente, após termos
iniciado nossos estudos na área de Análise do Discurso, aplicamos os pressupostos de
Maingueneau, particularmente os encontrados em “Gênese dos discursos” a essa questão (ver
1.2.2 – Uma competência discursiva) e cremos ter demonstrado a impossibilidade da
integração entre duas formas discursivas que se enfrentam dentro de um determinado espaço.
Entretanto, faltava algo que desse um embasamento mais sólido a essa tese, que pudesse
demonstrar a ação reflexa da enunciação sobre o enunciado, a ação da história sobre o
discurso. A ascensão desses CPCs – que efetivamente possibilitam a escolha de uma
alternativa ao aborto – colocou a evidência histórica contra os grupos que apóiam o discurso
pro-choice, que se viram na contingência de, ou sustentar seu enunciado “pro-choice” – e
respeitar a existência dos CPCs – ou assumir um posicionamento pro-abortion, reunir suas
forças e se lançar contra os centros de apoio à gravidez em crise. Escolhida a segunda opção,
explicitou-se o posicionamento pro-abortion do movimento pro-choice, “a moldura irrompeu
no quadro”, conforme os estudos de Maingueneau (2006b, p. 291-292):
regras do discurso (que ele está sendo sincero, que seu enunciado é dotado de
sentido etc.). Só se presta atenção quando aparece uma tensão, quando, de alguma
maneira, a moldura irrompe no quadro. Quando, por exemplo, se declara, “Sou
modesto”, abre-se uma discordância entre o enunciado e o ato de enunciação: o fato
de se dizer modesto não constitui um ato de modéstia, manifestando-se então um
paradoxo pragmático, isto é, uma proposição que é contraditada por aquilo que sua
enunciação mostra. Esse tipo de paradoxo pode resultar de incompatibilidades muito
diversas entre o enunciado e as condições (materiais, psicológicas, sociológicas)
vinculadas à sua enunciação.
134
Dados do relatório anual da própria organização, reproduzidos e disponibilizados por diversos grupos, através
de diversas mídias (prática comum em uma sociedade pós-moderna). Recolhemos nossos dados no site
<http://www.lifesite.net/ldn/2006/jun/06060805.html> em 17 de set. de 2007.
179
tínhamos dado muito crédito – sobre mulheres sem recursos financeiros que procuraram
desesperadamente – e sem êxito – abortar junto a esses provedores. Essa realidade ajuda a
desfazer determinada estratégia discursiva falaciosa amplamente usada pela mídia, inclusive
pela revista TIME no artigo que estamos analisando. Essa estratégia consiste em apresentar
provedores de aborto como ligados a uma ideologia feminista representada pela defesa do
direito de escolher – pro-choice – e movidos por um altruísmo natural135, atuando de maneira
equilibrada diante de situações que facilmente despertam sentimentos profundos e
controversos. É dessa maneira que TIME apresenta aos seus leitores a doutora Lorrie136, única
médica da clínica de abortos Femcare, figura que irá dominar o último terço da reportagem137,
escrito em um estilo informal que possibilita a construção de um ethos extremamente positivo
para a doutora Lorrie. Entretanto, descobrimos que a doutora e sua clínica fazem parte da
pesquisa que efetuamos nos 240 sites de clínicas de aborto descritos no anexo 28, p. 245, e
que sua atuação obedece os mesmos padrões de outras clínicas, inclusive no que se refere aos
pagamentos: “The only accepted payment is cash, Mastercard, Visa or Discover. If you bring
a credit card it must be in your name or the name of the person who comes with you138” (= o
único pagamento aceito é em dinheiro, Mastercard, Visa ou Discover. Se você trouxer um
cartão de crédito, este deve estar em seu nome ou no nome da pessoa que vier com você).
135
Bem ao estilo positivista de Isidore Auguste Marie François Xavier Comte.
136
Seu nome completo foi omitido pela revista TIME para preservar sua identidade.
137
Nesta reportagem a revista TIME trabalhou simultaneamente dois gêneros (mídia escrita): feature articles
(que trabalha a matéria de maneira mais humana e informal) e news articles (que procura ser factual – pretensão
que recusamos aceitar – e se estrutura de maneira mais formal). Esses gêneros foram estudados (separadamente)
por ROGERS (1977) e constituem a base dos gêneros empregados por revistas semanais de informação no
mundo todo, que se inspiram na dupla TIME/Newsweek. A aplicação alternada desses gêneros permite favorecer
(feature articles) ou prejudicar (news articles) as personagens apresentadas em uma matéria.
138
Disponível em < http://www.femcare-inc.com>. Acesso em 18 de set. de 2007.
180
(3) “The heat of the national battle, however, doesn’t capture what is happening on the front
lines. In North Carolina, Abortion Clinics in Line lists eight abortion providers, but the state
has more than 70 pregnancy centers. NARAL Pro-Choice North Carolina was so concerned
about their practices that it recruited volunteers to call centers and record the information
they were given.” (= O furor da batalha nacional, entretanto, não mostra o que está
acontecendo na linha de frente. Na Carolina do Norte, o site Abortion Clinics in Line140
relaciona oito provedores de aborto, mas o estado tem mais de 70 centros de gravidez. A Liga
de Ação Nacional dos Direitos Abortivos (NARAL) da Carolina do Norte estava tão
preocupada com suas práticas que recrutou voluntários para telefonar para os centros e gravar
as informações que recebessem). É justamente nesse estado que se situa a Femcare da doutora
Lorrie, citados no item anterior. Aqui apenas chamaremos a atenção para o acirramento do
confronto, acirramento esse que – ao contrário do que pode fazer supor a leitura dessa matéria
– é muito mais no campo discursivo. Sim, porque os CPCs, com seus poucos recursos
materiais, não representam perigo – entendido como “ameaça à integridade física” – para as
poderosas organizações pro-choice. Representam, sim, ameaça à identidade – pro-choice,
pró-escolha – que criaram para si, através de toda uma prática discursiva.
139
Substituímos a expressão “o índio” por “o discurso do movimento pro-life”.
140
Esse site possui centenas de endereços eletrônicos dos provedores de aborto na América do Norte (Canadá,
inclusive) e Europa. Realizamos amplas e demoradas pesquisas nesses sites, particularmente para elaboração do
capítulo sobre intersemiótica.
181
Ao longo desse artigo são feitas diversas declarações criticas usando uma
linguagem tal que ainda não havíamos encontrado antes, nem mesmo nas matérias e artigos
escritos por grupos pro-life, forçados a silenciar diversos sentidos, a usar um discurso
“moderado”. O principal motivo dessa moderação é a mordaça invisível criada pelo
“mainstream”144, silêncio que se impõe além das fronteiras dos sistemas de restrições
141
Consideramos “campo discursivo” e “espaço discursivo” não apenas como suporte, mas como fatores que
interagem no enfrentamento de formações discursivas. E isso ocorre mesmo se considerarmos “espaço discurso”
como uma construção conceitual do analista do discurso. Exemplifiquemos: quando recortamos as formações
discursivas pro-choice/pro-life nos inserimos em um espaço discursivo onde a intensidade da polêmica
dificilmente encontra paralelo.
142
Nascida em 1957, na Austrália, e vivendo atualmente em Londres, Amanda Jane Platell é uma importante
figura no jornalismo britânico. Seu perfil pode ser visto no BBC News em <http://news.bbc.co.uk/1/hi/uk
_politics/1440066.stm>.
143
Com 2.400.143 exemplares diários (dados de julho de 2007), o Daily Mail é o segundo jornal britânico em
tiragem (logo após The Sun) e o décimo segundo do mundo. Foi fundado em 1896.
144
Ilustraremos a tese da imposição pela mainstream (tendência dominante em determinado contexto sócio-
cultural, que paira sobre o Universo Discursivo como uma espécie mega interdito discursivo) com um exemplo
182
semânticas de qualquer formação discursiva. Contudo, esse silêncio “Não é o nada, não é o
vazio sem história. É silêncio significante” (ORLANDI, 1992, p. 23). Tanto mais significante
quanto imposto, esse “deslocamento de palavras em presença e ausência145” (Ibid., p. 24) é
uma forma extremamente forte de discurso, que é preciso calar através do preenchimento de
todos os espaços, particularmente dos espaços de silencio verbal, de ausência sonora, que
poderiam engendrar perigosas reflexões. Essa percepção, que tínhamos antes de iniciarmos
nossos estudos em Análise do Discurso, se tornou mais profunda nos últimos tempos146.
prosaico: Um pai conservador, segundo o intersemioticamente imbricado sistema de restrições semânticas de sua
formação discursiva, não aprovaria o uso da roupa de praia conhecida como tanga por parte de suas filhas.
Entretanto, se esta for a vestimenta usada por todas as moças dentro de seu contexto sócio-cultural, ele
provavelmente terá que silenciar.
145
Essa é, em nossa opinião, uma ótima definição para silêncio.
146
Um fato significativo tem surgido em nossas pesquisas sobre o campo discursivo que compreende as
formações discursivas Tradicionalista e Modernista dentro do catolicismo. A Missa Tradicional, recentemente
liberada pelo papa Bento XVI, possui diversos espaços de silêncio, que seriam melhor definidos como silêncios,
já que cada um desses momentos implica em significados diferentes. Ressaltamos não se tratar de intervalos que
separariam momentos distintos dentro da celebração, mas de partes integrantes e fundamentais desta, sem os
quais ela perderia parte de seu significado.
183
argumentos do adversário. Isso torna, por vezes, a vida dos enunciatários bastante difícil,
sempre tentando distinguir as inúmeras manipulações da máquina midiática.
(2) “It's such a compelling phrase, isn't it? It speaks of freedom, equality, justice; of a society
where women are entitled to live their lives as they wish, not as others might proscribe” (= É
uma frase atrativa, não é? Ela fala de liberdade, igualdade, justiça; de uma sociedade onde as
mulheres têm o direito de viver suas vidas como elas quiserem, não como outros possam
determinar). Atualmente, muitos analistas – a maioria pro-life, evidentemente147 – consideram
que, embora o aborto seja oferecido à mulher como opção, como escolha (choice), na verdade
ele é algo imposto por uma determinada conjuntura sócio-histórica. Esse processo está
presente em todas as sociedades modernas que, aparentemente, só aparentemente, oferecem
“opções” e “escolhas”. Você pode escolher seu banco, seu computador, seu provedor de
internet, seu cartão de crédito etc. Só não pode escolher viver sem qualquer uma dessas coisas
ou viver sem uma infinidade de outras coisas que a sociedade “lhe oferece” – na verdade
impõe com violência estrutural148 e midiática.
(3) “Small wonder, then, that it became the marching banner for the whole feminist
movement, of which I was so proud to be a part”. (= Não é de admirar, então, que tenha se
tornado o lema do movimento feminista, do qual eu tinha tanto orgulho de fazer parte).
Amanda Platell é o protótipo da mulher bem-sucedida, produto do movimento feminista,
sendo, pois, sua mudança de posicionamento – pública e enfaticamente assumida – um
acontecimento emblemático, indicativo de uma mudança maior dentro do espaço discursivo
que envolve as formações discursivas pro-choice/pro-life e, por extensão, o confronto
liberal/conservador.
147
Pensamos que o posicionamento de um analista não pode ser considerado como motivo válido para se rejeitar
suas proposições. Basta citar alguns analistas e pensadores para que isso se torne evidente: Michel Pêcheux e Eni
Orlandi: marxistas, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino: católicos, Freud: ateu (esse posicionamento foi
questionado pelo jornal The New York Times), Michel Foucault: alguém que não gostava de rótulos etc. Esses – e
outros pensadores – normalmente têm suas teses analisadas, discutidas, apoiadas ou rejeitadas, porém SEMPRE
com base em argumentações lógicas, jamais com argumentos ad hominem (latim, argumento contra a pessoa).
148
Exemplo dessa violência é o planejamento familiar estruturalmente imposto: (1) Uma habitação popular
comporta no máximo 4 pessoas; (2) O bolsa família: as famílias em situação de extrema pobreza poderão
acumular o benefício básico e o variável, até o máximo de 3 (três) benefícios por família, totalizando R$ 112,00
(cento e doze reais) por mês – disponível em: <http://www1.caixa.gov.br/gov/gov_social/municipal/distribuição
_servicos_cidadao/bolsa_familia/saiba_mais.asp>, acesso em 16 jan. 2008; (3) De acordo com a Portaria nº 142,
de 11 de abril de 2007, o valor do salário-família será de R$ 23,08, por filho de até 14 anos incompletos ou
inválido, para quem ganhar até R$ 449,93. Para o trabalhador que receber de R$ 449,94 até 676,27, o valor do
salário-família por filho de até 14 anos incompletos ou inválido, será de R$ R$ 16,26 – disponível em: <
http://www.mpas.gov.br/pg_secundarias/beneficios_11.asp>, acesso em 16 jan. 2008.
184
(4) “What it actually stood for, of course, was something rather more specific: the ‘right’ for
a woman to abort an unborn child if she so wished”. (= O que isso queria realmente dizer,
evidentemente, era alguma coisa mais especifica: o “direito” de uma mulher abortar uma
criança não nascida se ela assim o desejar). No processo de construção do discurso pro-choice
um importante papel foi desempenhado pelo professor de lingüística da universidade da
Califórnia (Berkeley), George Lakoff, ativista do movimento liberal, atuando particularmente
nos segmentos pro-choice e pro-gay marriage. O professor Lakoff é considerado um dos
responsáveis pela formulação – framing149 – dos discursos desses movimentos e também foi o
mentor intelectual da reformulação do discurso do partido Democrata (Estados Unidos) –
sendo considerado por seus pares e também por adversários como um dos principais
responsáveis pelo fracasso do partido na eleição presidencial de 2004 e na midterm150 de
2002, como mostrou uma ampla reportagem publicada no jornal The New York Times em 17
de julho de 2005151. O professor Lakoff é autor de enunciados como “operações médicas para
terminar a gravidez” (“medical operations to end a pregnancy”), criado para ser usado em
lugar de aborto (“abortion”), de forma a produzir nos interlocutores um efeito de sentido mais
leve. A jornalista – independentemente de conhecer ou não esses fatos – está se insurgindo
contra essa prática, que foi alvo de duras críticas na reportagem acima citada. Possivelmente o
fracasso dessa estratégia discursiva é uma das causas das mudanças nos discursos que
sustentam a luta pro-choice/pro-life.
(5) “In fact, no such ‘right’ exists, even in our modern, post-feminist world”. (= De fato, tal
“direito” não existe, mesmo em nosso moderno mundo pós-feminista). Estudos e pesquisas
que atualmente são levados a efeito sobre a temática “pós-modernismo” estão incluindo a
expressão “pós-feminismo” no rol dos temas investigados. Basicamente a expressão
compreende o enfraquecimento do feminismo de oposição/afirmação: oposição à opressão
(patriarcal) histórica e afirmação de uma identidade “universal” feminina. Essa identidade,
estratificada pelo discurso feminista da segunda metade do século XX, perde cada vez mais
149
Na teoria da comunicação, Framing é um processo de controle seletivo sobre o conteúdo da mídia ou da
comunicação pública. Framing define como certa porção do conteúdo da mídia ou retórica é “embrulhada” com
a finalidade de gerar determinadas interpretações, determinados sentidos, e excluir outras interpretações, outros
sentidos (um estudo comparativo entre Framing e cenografia seria interessante. Por exemplo: Framing
(=enquadramento) é uma concepção externa ao conteúdo, uma forma, enquanto cenografia é uma concepção
integrante, constitutiva). O professor Lakoff é considerado um expert nessa área e muitos de seus textos podem
ser acessados e lidos em <www.georgelakoff.com>.
150
O termo Midterm refere-se às eleições de deputados e senadores nos Estados Unidos da América.
151
Lembramos que o jornal The New York Times é radicalmente liberal e jamais “daria um tiro no próprio pé” (a
expressão shoot yourself in the foot, significando “dizer ou fazer alguma bobagem que causa problemas a você
mesmo”, é muito usada pelos americanos).
185
espaço no mundo pós-moderno, lugar onde existe uma forte tendência à predominância de
uma “identidade de posicionamento”152, definida por CHARAUDEAU como “a posição que o
sujeito ocupa em um campo discursivo em relação aos sistemas de valor que aí circulam, não
de forma absoluta, mas em função dos discursos que ele mesmo produz”
(CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2006, p. 267, grifo nosso). Essa fragmentação da
identidade feminina levou à pluralização do movimento (feminista). Temos, assim, grupos
feministas que se opõem fortemente ao aborto; outros que consideram o ser housewife153
(dona de casa) uma opção válida etc.:
Já foi dito que a história caminha em círculos, por isso iremos concluir este
capítulo pelo ponto em que o iniciamos, ou seja, a citação de Maingueneau em “Gênese dos
discursos”: “Se a História não interviesse, insidiosa ou violentamente, ter-se-ia apenas um
jogo de espelhos em que cada um leria no Outro sua imagem invertida, tendo por fundo um
campo de batalha indefinidamente simétrico” (p. 120). Mas a história intervém, muda de
rumo, e é isso que mostram as reportagens acima – e tantas outras que apareceram no mass
media recentemente – cuja veiculação por instituições fortemente secularizadas torna essas
discussões e temas conhecidos do grande público, que normalmente só acessa esse tipo de
órgãos de comunicação (secularizados). Naturalmente não estamos colocando aqui qualquer
coisa relacionada ao “fim da história”154, antes vemos o início de uma mudança nos rumos de
um debate que deve continuar e se tornar mais acirrado, ao incorporar outros elementos como
a eutanásia. Apenas esperamos ter contribuído para ampliar as reflexões sobre esses temas de
inelutável existência.
152
Que, obviamente, combina com a fragmentação do espaço social.
153
Ficamos pessoalmente impressionados ao constatarmos a força dessa tendência na sociedade norte-americana
e demoramos para superar a nossa perplexidade, não devido a quaisquer posicionamentos pessoais, mas apenas
pela rapidez na mudança de um discurso que nos parecia muito sólido. A capa da revista TIME de 22 de março
de 2004 (edição americana, anexo 33, p. 261) mostra essa realidade.
154
Tese defendida pelo norte americano Francis Fukuyama.
186
CONSIDERAÇÕES FINAIS
155
Como também não havia um discurso pró-homossexualismo, pró-eutanásia, pró-pedofilia etc.
187
Entendemos, pois, que o percurso que aqui realizamos não encerrou de maneira
nenhuma as questões abordadas, antes abriu novas perspectivas e possibilidades que,
pessoalmente, pretendemos explorar em futuro próximo.
BIBLIOGRAFIA
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Processo Ensino-Aprendizagem: Uma Fundamentação Filosófico-Antropológica e Técnico-
Pedagógica) – Faculdades Claretianas, Batatais-SP.
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referência dialética. 1997b. (Trabalho de pós-graduação lato sensu. Especialização: O
Processo Ensino-Aprendizagem: Uma Fundamentação Filosófico-Antropológica e Técnico-
Pedagógica) – Faculdades Claretianas, Batatais-SP.
PÊCHEUX, Michel. El extraño espejo del análisis de discurso. In: COURTINE, Jean-
Jacques. Anális del discurso político: el discurso comunista dirigido a los cristianos. Tradução
para o espanhol de Maria del Carmen Saint-Pierre. LANGAGES, 1981.
ANEXO 1
ANEXO 2
The Church is the Pre-Eminent Defender of the Innocents - Rev. Thomas J. Euteneuer. May
28, 2001
Many people feel both overwhelmed and uncomfortable facing such complex technical
issues in the news today such as cloning, in-vitro fertilization, the freezing of embryos and genetic
screening (sex or defect selection). This is understandable. The technical sophistication required to
address these issues is immense, and the average lay person is unprepared to deal with them.
However, we cannot ignore these issues because they may affect any one of us at any time, and
we want to have solid answers when we need them. Not only that, but there is something more
fundamental at stake which we cannot ignore either: the sanctity of human life.
When the Catholic Church defends human life against those who would devalue and destroy
it in the modern era, she is simply doing what she has done for centuries. A mother defends her
children. Human sinfulness being what it is, each generation presents new attacks on God’s
precious gift of life, and the Church’s vocation is to stand in the breach between the attackers and
the innocents in every day and age.
For example, as far back as the second century a Church document known as The Teaching
of the Twelve Apostles (the Didache) condemned the ancient world’s practice of leaving “unwanted”
babies out in the wilderness to die from exposure or starvation. That practice was the ancient
equivalent of what we call a woman’s “right to choose”. In the Middle Ages the Church, through its
theologians, developed the Just War theory both to limit the scope of aggression and also to
protect innocent people from being unjustly subject to the ravages of war. In the same way, Pope
Leo XIII in 1891 put the authority of the Church squarely on the side of workers in order to limit
the sway of the powerful over them and to protect their dignity as workers and people.
My personal favorite defender of human life is Cardinal August Clemens van Galen, the
Archbishop of Muenster, Germany during the reign of Adolf Hitler. At the risk of his own life and
those of his priest, Cardinal van Galen stood in the pulpit of Muenster Cathedral and railed against
Hitler’s program of euthanasia which was secretly exterminating thousands of handicapped and
retarded Germans who were deemed “unfit” for membership in the Master Race. It was the
Cardinal’s public defense of life that was primarily successful in stopping the extermination and
earned him the personal wrath of Hitler who declared that he would personally hang Cardinal van
Galen when the war was won. The Cardinal was rightfully given the title, “The Lion of Muenster” for
his courage in defending life.
The twentieth century alone has witnessed an extraordinary outpouring of encyclicals and
documents by our courageous popes in defense of innocent human life and the sacred institutions
of marriage and the family. Pope Pius XI wrote the encyclical Casti Connubii (1930) to defend the
sanctity of marriage and the family when the Anglican Church permitted contraception in some
circumstances earlier that year. The Second Vatican Council condemned all crimes against human
life in its Pastoral Constitution on the Church in the Modern World (1965). In 1968 Pope Paul VI
wrote his prophetic encyclical Humanae Vitae reaffirming the Church’s stance on the dignity of
human life and procreation which was then followed logically by Pope John Paul’s Evangelium Vitae
in 1995 defending life from the more violent and insidious forces of death in the modern age. In
198
addition to these, each 20th century pope has written social encyclicals defending the dignity and
rights of workers in modern circumstances.
It is therefore no wonder why the Church is bracing herself for new battles in the field of
bioethics – in a sense she cannot avoid the battle. The battle was already engaged in 1985 when
the Congregation for the Doctrine of the Faith issued an Instruction called by its Latin title Donum
Vitae (Instruction on Respect for Human Life in Its Origin and on the Dignity of Procreation). It was
a daring move by the Holy Office to actually question the authority of science and remind scientists
that they are subject to ethical standards in the new field of biotechnology. That document is sort
of like the Magna Carta of Church teaching with respect to biotechnology in that it articulates the
basic principles by which we are to evaluate all the life issues but especially those which involve
technical manipulation of human reproduction.
The amazing wisdom of the document did not surprise anyone who has ever read a moral
or social encyclical because it simply reaffirmed eternal truths that we have been taught by the
Church from time immemorial: namely, that science and technology must always be at the service
of the human person and never used against man, that the criteria for making technical judgments
are the sanctity of the human person and the integrity the procreative process, and finally that
every human being is to be considered a gift from God and must be the fruit of marriage. In this
sense the Congregation was not presenting anything new because these are gospel values that
have been handed down to us by the Church for centuries.
The freshness of the Instruction is in its application of these principles to modern
circumstances. Never before has humanity had to grapple with the ethical dimensions of creating a
human being in a petri dish (in-vitro fertilization), but modern technology has made such a
procedure possible. The technological door is also open to the implantation of one woman’s
fertilized egg into another woman’s body (surrogate motherhood). The document addresses these
two issues in detail and comes to a firm if disappointing conclusion to many: these procedures are
wrong because they violate both the dignity of the human person and the integrity of the
procreative process.
Human embryos are not to be played with in laboratories, the document reasons, because
it violates a human being’s innate dignity as a person. Even though an embryo is a microscopic
group of cells, both faith and science tell us that it is still a unique human being. In addition to
that, science must be proscribed by ethical norms in order for it to not to arrogate to itself control
over sacred realities like human life. Human embryos must not be transferred to the bodies of
other women either because each human has a right to birth from its own mother no matter how
grave or painful the situation of infertility may be. That intimate biological and spiritual bond
between mother and child must be preserved intact despite the pressures of infertile couples to use
technology to “produce” a child. Only God has that right. Therefore, any procedure which violates
the unity of the marriage bond is illicit and harmful to the couple and to humanity as a whole.
Among other issues the document addresses are questions which may affect many people
today: prenatal diagnosis – i.e. amniocentesis – (only if it is used to safeguard the life of the child
not destroy it); embryonic and fetal experimentation (only if it is therapeutic, does no harm to the
mother-child relationship and is done with the consent of the couple); producing and using “spare”
embryos obtained by in-vitro fertilization (it is immoral to produce embryos in a laboratory and
even more so when scientists subject them to experimentation or freezing); genetic manipulations
for sex selection or other predetermined qualities (it is always contrary to the dignity of the human
person); cloning (it is always in opposition to the moral law and the dignity of procreation).
The Vatican now has an office called the Pontifical Academy for Life which has the
unenviable task of staying on top of all the developments in modern reproductive science and
evaluating them according to the sound teaching of the Church. Archbishop Elio Sgreccia heads the
Academy and is himself an expert in the area of biotechnology. His office provides an immense
service to the Church by sponsoring conferences for experts in these areas and producing
documents which guide the faithful in their moral decision-making. The Vatican knows that the
moral principles never change; they just need application to new circumstances. It is the Church’s
mission throughout time to stand up for all that is sacred but principally to defend the dignity and
sanctity of human life against all its aggressors. The battlefield is new, but the Church’s zeal for life
is as ancient and as beautiful as the Church herself!
199
ANEXO 6
Cissa Guimarães, atriz Ruth Escobar, empresária, e a mãe, Marília Elba Ramalho, cantora
200
Marli Medeiros, líder comunitária Marília Gabriela, jornalista Maria Adelaide Amaral, escritora
Quem fala de aborto no Brasil de hoje não enfrenta apenas uma questão legal mas a
condenação de quem o considera um inaceitável atentado à vida humana. E também a
hipocrisia de quem apenas pretende que não se comente em voz alta um problema que afeta
milhares de famílias. Um dos países mais conservadores do mundo em matéria de legislação
sobre o assunto, o Brasil perfila-se com as teocracias islâmicas no trato do aborto. As
pesquisas de opinião revelam que, nesse assunto, existem dois mundos de mulheres
brasileiras. Um levantamento do instituto Vox Populi feito com eleitores de classe média
demonstra que uma maioria de 59% é favorável a que o governo autorize a interrupção da
203
gravidez não apenas nos casos previstos pelo Código Penal, mas sempre que a mulher assim o
desejar, respeitando-se os padrões internacionais estabelecidos sobre o assunto (veja
reportagem). Coube ao Ibope, contudo, apurar essa mesma questão no conjunto de 160
milhões de brasileiros. A maioria favorável encolheu, transformando-se numa minoria de
apenas 18%, contra 80% contrários à legalização. Mas há uma novidade. O mesmo Ibope
confirma aquilo que outras pesquisas já apontaram. Em se tratando dos casos em que houve
estupro ou em que há risco de vida para a mãe, uma maioria de 70% considera que o aborto
deve ser autorizado sem mais demora. É uma notícia coerente com a realidade do país.
Juízes anômalos A maioria das pessoas ainda não se deu conta, mas, num movimento
discreto o suficiente para que não se produzam escândalos, porém eficaz a ponto de produzir
resultados em escala apreciável, um número cada vez maior de mulheres, juízes e médicos
procura e encontra brechas cada dia mais amplas para realizar abortos com amparo legal, em
hospitais públicos, com condições de higiene e saúde que em nada lembram aquelas clínicas
de má fama e tantos traumas do passado. O prédio da 16ª Vara Criminal de São Paulo é o
mais movimentado do Judiciário no Estado. No 16º andar, esse burburinho é menos
acentuado. Ali trabalham o juiz corregedor e quatro juízes auxiliares da Polícia Judiciária do
Estado, chamados de brincadeira pelos corredores de "os anômalos". Desde 1993, eles
concedem alvarás para a chamada interrupção médica da gravidez, o aborto feito por
anomalia fetal. Pelas contas do juiz corregedor Francisco José Galvão Bruno, mais de 130
alvarás saíram dali. Para se ter uma idéia, todos os outros Estados da União somados
acumulam apenas 300 alvarás concedidos desde 1991. No setor dos "anômalos", um alvará sai
em três dias. Se a gravidez envolve anomalia grave, incurável e sem perspectiva de sobrevida
prolongada para o bebê, nunca é recusado. Todos os casos do gênero são resolvidos com uma
justificativa padrão pois, a rigor, não existe amparo legal para esse tipo de aborto, já que o
Código Penal apenas fala em casos de estupro e risco de vida para a mãe. O juiz e seus
auxiliares, no entanto, consideram que, ao autorizar o aborto em caso de estupro, os
legisladores do Código Penal brasileiro tinham em mente a manutenção da saúde mental da
mãe. Ora, raciocinam, os casos de anomalia fetal não foram incluídos no Código porque em
1940, quando foi elaborado, não havia tecnologia suficiente para identificar doenças em fetos.
"Mas, por analogia, consideramos que casos de anomalia fetal são graves ameaças à saúde
mental das mães. Portanto, concedemos os alvarás", justifica Galvão Bruno.
204
A rapidez e a justificativa padrão transformam o setor do juiz Galvão Bruno numa espécie de
linha de produção de alvarás. O pedido chega, acompanhado de dois laudos médicos, é
rapidamente analisado e a autorização legal para o aborto é concedida. Hoje, é simples. Mas,
como tudo o que envolve o aborto, já houve conflitos por ali. "Para chegar a essa serenidade
foi um sufoco", diz o juiz. O primeiro caso de aborto por anomalia chegou às suas mãos logo
que assumiu o comando da Polícia Judiciária, em 1993. Quando lembra do episódio, ele
define: "Foi uma decisão sofrida". Casado com uma espírita, pai de dois filhos, 46 anos e
católico praticante, Galvão Bruno é contra o aborto. Teve até uma experiência traumática,
quando sua mulher sofreu um, espontâneo. "Vi o feto, de oito meses, e fiquei traumatizado.
205
Nunca permitiria que minha esposa ou minha filha abortassem", conta. Para começar a decidir
sobre o assunto, debruçou-se numa pesquisa sobre doutrinas religiosas, procurou referências
sobre o tema em autores como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, afogou-se em
debates com religiosos. O primeiro alvará para aborto por anomalia fetal de São Paulo foi
concedido no dia 5 de novembro de 1993, pelo juiz Geraldo Pinheiro Franco, católico. Galvão
Bruno teve longas conversas com ele. "Cheguei à conclusão de que minhas convicções
pessoais e religiosas devem ficar em segundo plano quando estou no papel de juiz. Tenho
aqui em meu escritório cinco juízes auxiliares um espírita e quatro católicos. Nenhuma
mulher. Quando estamos decidindo, a lei é a nossa religião. Isso é o bastante para nossa
consciência. O fato é que não podemos comprometer a saúde mental de mães que estão
passando por uma situação terrível", diz.
inocente. Ele não tem advogado de defesa. É como se o seio materno estivesse passando de
lugar acolhedor, de proteção, para cadeira elétrica".
Era verão de 1987, eu passava férias em Salvador. Numa noite, quando voltava sozinha para o
hotel, um homem bêbado me agarrou, tirou minhas roupas à força e me estuprou. Ninguém
ouviu meus gritos. Nem o meu choro. No dia seguinte, voltei para Belo Horizonte. Aquele
monstro me engravidou. Eu tinha 24 anos, era divorciada e mãe de um filho de 3 anos. Fui
para uma clínica no Rio de Janeiro. A única sensação que tive foi de alívio. A decisão foi
madura, mas fiquei muito tempo em conflito porque, afinal, eu tinha um filho e tive uma
formação católica."
Culpa Dom Rafael tem lógica no que diz. Tanto que nenhuma mulher que fez aborto
consegue referir-se ao fato com a naturalidade da pessoa que foi lixar unhas no cabeleireiro.
"Tem hora em que eu lembro que fiz um aborto e digo para mim mesma: 'Não havia outra
saída, eu agi corretamente' ", fala a cantora Elba Ramalho, 46 anos, um filho, um aborto, que
realizou 24 anos atrás, numa clínica no Recife. "Mas depois eu penso de novo e fico em
dúvida: 'Será que agi certo, mesmo?' " A própria Elba completa: "Se ficasse grávida de novo,
não faria o aborto mesmo que não desejasse o filho". VEJA encontrou mulheres que
admitiram ter realizado um aborto mas não conseguem conviver com o fato. Não importa que
não estivessem em condições de criar a criança que levavam no ventre, que depois tiveram
filhos saudáveis, criados com todo carinho, e algumas estejam até à espera dos netos em
muitos casos sobrou uma coisa amarga, uma tristeza, uma culpa. "É sempre um caso de
extrema necessidade", afirma a socióloga e professora Maria Ligia de Moraes, da
Universidade de Campinas. Maria Ligia abortou no exílio, quando se tornara viúva de Alberto
Nehring, engenheiro que militou numa organização armada e foi morto pelo porão militar. Foi
a decisão mais lúcida que poderia ter tomado, mas, mesmo assim, ela é dessas pessoas que de
207
certa maneira sentem necessidade de dizer e repetir: "Adoro minha filha, adoro criança, adoro
meus netos".
A atriz Cássia Kiss, 39 anos, um aborto, dois filhos, lembra: "As pessoas têm de ter
consciência de que o aborto, em qualquer circunstância, é um crime", afirma. Ela baseia sua
opinião em dois fatos de sua vida. Em 1990, alguns anos depois de ter feito o aborto, Cássia
Kiss fazia parte do elenco da novela Pantanal, da Rede Manchete. Ela interpretava uma
mulher forte, parideira, de nome Maria Marruá. Em uma cena antológica, a personagem dá à
luz a menina Juma Marruá. "Fiquei emocionadíssima durante as gravações dessa cena. Logo
depois, chorei copiosamente durante quase uma hora. Foi um momento divino. Ali comecei a
descobrir o valor da maternidade e da importância de ter um filho", diz. Numa segunda fase
de sua vida, já casada e disposta a ter um filho, engravidou. Mas, com três meses de gravidez,
Cássia foi surpreendida por um aborto espontâneo. "Recebi aquilo como um castigo de Deus.
Mesmo traumatizada resolvi que iria tentar novamente, quantas vezes fossem necessárias.
Hoje eu acho que me recusaria a fazer qualquer exame, pois, mesmo que ficasse comprovado
algum problema com o bebê, ainda assim eu levaria a gravidez adiante."
É tão difícil tomar a decisão de fazer um aborto que, nos países onde essa cirurgia foi
legalizada, a mulher que resolve fazer a operação é obrigada a cumprir uma jornada de
reflexão, em geral de uma semana para que possa amadurecer a idéia, evitando fazer algo de
que venha a se arrepender mais tarde. Uma pessoa com valores religiosos muito arraigados
talvez nunca deva fazer um aborto pois seu risco será de sentir-se mal pelo resto da vida,
ainda que tenha extraído do útero um feto doente, incapaz de levar uma vida normal ou
mesmo de sobreviver por mais do que alguns dias. Fora do mundo da doença e da violência, a
discussão do aborto coloca-se, na realidade, para mulheres ocupadas em tocar sua vida, ou
com falta de dinheiro e mesmo de neurônios maduros para cuidar de um filho no momento.
Quando é possível fazer um aborto? Depende.
Guilhotina Uma mulher que vivesse na Suíça, no século XIII, seria enterrada viva pois
essa era a punição para quem interrompesse a gravidez, mesmo demonstrando a extraordinária
coragem necessária para enfrentar a medicina daquela época. Se estivesse na França, durante
a II Guerra, o risco seria a guilhotina a pena pelo aborto sob a ocupação nazista. Por outro
lado, se vivesse na Idade Média e fosse católica fanática, com a felicidade de ser aconselhada
pelo maior pensador de seu tempo, Tomás de Aquino, poderia fazer o aborto com a bênção
dos céus. Ao contrário dos prelados de hoje, Tomás de Aquino era favorável ao aborto. Pelas
concepções da Igreja da época, que acompanhava o que se conhecia do organismo humano,
pensava-se que a vida começava depois do nascimento e não antes. Assim, o aborto podia
ser feito sem receio algum. O mesmo acontecia entre alguns índios brasileiros antes do
desembarque de Pedro Álvares Cabral, em 1500, como anotou o padre José de Anchieta:
"Essas mulheres brasílicas mui facilmente movem (abortam): ou iradas contra seus maridos,
ou não os têm por medo; ou por outra qualquer ocasião mui leviana bebem beberagens, ou
apertam a barriga, ou tomam alguma carga grande". No final do século XX, no Brasil, nem
todas as religiões condenam o aborto. Os evangélicos estão divididos entre os que o
combatem com dureza e aqueles que o admitem em alguns casos. Favorável à legalização do
aborto, o pastor Jaime Wright, reverendo da Igreja Presbiteriana, acha que "é um direito da
mulher decidir o que fazer". Nem todas as fileiras da Igreja Católica têm a mesma opinião que
o papa João Paulo II. Religiosos do círculo do cardeal Paulo Evaristo Arns admitem a
chamada pílula do dia seguinte que age após o encontro do espermatozóide com o óvulo e
impede a fixação do ovo humano no útero, produzindo uma espécie de aborto químico.
209
"Já tinha três filhos e usava Diu. Não podia ter uma
quarta criança
Como sempre acontece, são os valores de cada época e de cada lugar que determinam a
discussão sobre temas delicados como esse. Algumas mudanças de valores são tão
gigantescas que não podem sequer ser discutidas. Podem ser provadas com apenas uma
consulta ao IBGE, que registra que a entrada das mulheres no mercado de trabalho deu fim à
família extensiva, aquela com oito, dez ou mais filhos. Segundo o último censo demográfico,
as mulheres que se encontram na faixa dos 20 aos 24 anos e não trabalham têm três vezes
mais filhos do que as economicamente ativas. Na faixa dos 25 aos 29 anos, 50% das mulheres
economicamente ativas não têm filhos. Entre as que não trabalham, esse porcentual é de
apenas 17%. "São números reveladores de como a vida profissional se contrapõe aos filhos,
embora não saibamos se essas mulheres não trabalham porque têm filhos, ou não têm filhos
porque trabalham", diz a demógrafa da Fundação Seade e doutora em saúde pública Maria
Graciela Morell.
Anomalia "O debate não deve girar em torno da vida no ventre da mãe, mas do tipo de vida
que o feto terá depois do nascimento, quando se transforma num bebê, num cidadão",
considera o obstetra Thomaz Gollop, professor de genética médica da Universidade de São
Paulo. A julgar pelo número de mulheres que fazem aborto no Brasil, essa discussão vem
210
sendo feita todos os dias e é imensa a quantidade daquelas que acham melhor interromper a
gravidez. Legalmente, o número é baixíssimo. Somando os casos de anomalia com os de
estupro e risco de vida para a mãe, desde 1989 em todo o país foram feitos apenas 205 abortos
legais. A questão é a clandestinidade. O número mais aceito de abortos é uma enormidade
1,4 milhão por ano. Como nascem perto de 3 milhões de crianças, conclui-se desse cálculo
que de cada catorze mulheres que ficam grávidas dez vão para a maternidade e quatro
entram numa clínica clandestina para fazer aborto. Num puro exercício matemático, e
supondo que as mulheres só fizessem um aborto na vida, pode-se até imaginar que, percorrido
o prazo de 25 anos, o equivalente a toda a população feminina brasileira teria feito aborto. É
difícil adivinhar onde se pode realizar 1,4 milhão de cirurgias desse tipo sem causar um
imenso transtorno em hospitais, clínicas e consultórios médicos pois a rede pública do
Estado de São Paulo, que é de longe a maior do país, possui 85.000 leitos.
Ainda que tais estimativas mereçam a credibilidade de qualquer outra estatística brasileira, é
tão fácil encontrar pessoas que tenham feito um ou mais abortos na vida que a conclusão é
que têm boas raízes na realidade. Como a pílula anticoncepcional e o DIU são invenções
211
recentes, e a camisinha só teve seu grande momento depois da Aids, o aborto é tão mais
comum quanto maior for a idade da mulher. "Com tantos métodos à disposição, é só em
último caso que o aborto se apresenta hoje", diz a deputada Marta Suplicy. "Antigamente não
era assim." VEJA conversou com 22 estudantes da USP na última quarta-feira. Todas usam
métodos para evitar filhos. Apenas uma, a aluna do 3º ano de química e diretora do DCE
Renata Mielli, 25 anos, admitiu já ter feito um aborto. Nenhuma delas, porém, descarta
liminarmente a hipótese de fazer um. "Ninguém na nossa idade quer ser mãe", explica
Natasha Madov, 21 anos, que cursa o 3º ano de jornalismo. "Só ficando grávida para saber."
Uma amostra de que o aborto varia conforme a idade se encontra nos depoimentos dados à
revista. Entre as mulheres ouvidas, 57,3% têm mais de 45 anos. Outras 38,2% têm entre 26 e
40 anos. Apenas 4,5% têm até 25 anos. Dona Marília, 90 anos, mãe da empresária e atriz Ruth
Escobar, fez dois abortos. A própria Ruth fez três. Ela tem três filhas, das quais duas fizeram
um cada uma. Numa das vezes, a própria Ruth foi com a filha até a clínica. "Foi difícil",
lembra a empresária. "Eu, que era uma personalidade conhecida, que havia declarado
publicamente minha posição a favor da legalização do aborto, acabei naquela situação." Nas
antigas clínicas que realizam aborto no país, o movimento tem diminuído. Em grande parte
isso aconteceu porque hoje em dia não é preciso fazer uma cirurgia para provocar um aborto.
Existe uma droga, originalmente fabricada contra úlcera, chamada Cytotec, que é usada como
abortivo em vários países, inclusive no Brasil. Sua venda é proibida, o único meio de
encontrá-la é por contrabando, mas o Cytotec é um sucesso. Estima-se que 80% dos abortos
realizados no país empreguem esse tipo de remédio. O preço é de 100 reais por quatro
comprimidos no mercado negro, enquanto um aborto numa clínica com jeito de hospital
decente pode chegar a 2.000 reais. Há dois anos, a primeira-dama americana, Hillary Clinton,
visitou uma maternidade em Salvador, mostrando-se horrorizada com os casos de mulheres
com seqüelas de abortos malfeitos, em qualquer quartinho sujo. Hillary chegou a filmar o
hospital para exibir as cenas mais chocantes nos Estados Unidos para demonstrar como fica
ruim a vida das mulheres em países onde o aborto não é legalizado. Dois anos depois de uma
visita tão ilustre, a diretora do lugar, Sara Barbosa, comemora a diminuição de óbitos na
chamada "enfermaria do aborto".
"O Cytotec chegou à Bahia", diz ela. À venda por contrabandistas, a droga provoca
contrações fortíssimas, que produzem hemorragias intensas. Sua eficácia não é garantida. O
embrião pode não sair provocando uma infecção gravíssima na mulher. Ou seja: não é
212
nenhuma sétima maravilha abortiva. Mesmo na era do Cytotec, contudo, registram-se casos
de mulheres que interrompem a gravidez em situação brutal. A estudante pernambucana
Cisleide Silva, 19 anos, deu entrada na emergência do Hospital Tricentenário, em Olinda, às
11 horas da terça-feira passada. Amparada por familiares, estava pálida, com febre e
sangramento ocasionados por um aborto induzido cinco dias antes. Cisleide tomou dois
comprimidos de Cytotec, que expulsaram o feto lentamente. Exames no hospital mostraram
que a gravidez foi interrompida no terceiro mês. Mãe de uma menina de 2 anos, Cisleide ficou
desesperada quando soube que estava grávida. Ela não trabalha, cursa o 2º. grau e mora com o
marido, Antonio Pereira, de 23 anos, na casa dos pais. Motorista de caminhão, Pereira ganha
460 reais por mês. Cisleide não esperava que fosse padecer tanto tomando Cytotec. "As
cólicas eram tão fortes que parecia que eu estava parindo", diz.
É difícil encontrar profissionais curtidos pelos corredores dos hospitais públicos brasileiros
que não usem o tempo inteiro a frase "Aborto é uma questão de saúde pública". A chefe do
departamento de enfermagem da Universidade Federal de São Paulo, Lucila Viana, 54 anos, é
uma dessas pessoas. "Durante anos, vi mulheres desesperadas chegando ao hospital e dizendo
que não podiam e não queriam ter filhos. É uma realidade triste e constrangedora para quem
trabalha com saúde. Qualquer resposta é inadequada. Não podemos aconselhar ninguém a
fazer aborto, porque isso é ilegal. E como vamos dizer para não fazer? O sentimento de
frustração e impotência é incrível", conta.
A clandestinidade que envolve os abortos também lança um manto de mistério sobre suas
conseqüências. Não se tem muito controle sobre o que acontece nesse submundo. Intrigada
com essa névoa, Lucila resolveu puxar o fio da meada pelo lado mais trágico, o das mortes
declaradas. Em sete hospitais públicos da periferia de São Paulo, descobriram-se oito óbitos
diretamente atribuídos a abortos, em dados de 1994. Na verdade, sabe-se que o número é bem
maior. A maioria é registrada através de suas causas finais. Uma morte por aborto precário,
por exemplo, pode ser arquivada como um caso de embolia pulmonar, hemorragia uterina ou
septicemia. Na lista disponível, havia uma adolescente de 16 anos e outra de 17. As demais
mulheres tinham 20, 30, 31, 33 e 35 anos. Lucila foi até a casa das famílias delas e encontrou
um perfil parecido. Todas eram solteiras, tinham o 1o. grau, namorado fixo e moravam na
periferia. Em todos os casos, a família não sabia que estavam grávidas. Por isso, elas
demoraram muito a procurar socorro depois que surgiram as complicações. Morreram sem
que ninguém soubesse que métodos abortivos usaram. São baixas causadas pelo limite do
213
Em um túmulo simples no cemitério da Santa Casa em Porto Alegre, identificado apenas pelo
número 1.311 e uma rosa de plástico vermelha, está o corpo de Maria Barbosa da Silva, 29
anos, morta há pouco mais de um mês em decorrência de um aborto clandestino. Por dez dias,
Maria suportou em silêncio o aborto e as dores em decorrência de uma infecção generalizada
contraída na clínica clandestina. Só quando não deu mais para disfarçar foi para o hospital
onde ainda agonizou por dezessete dias antes de morrer. Manteve até o fim o pacto de silêncio
exigido pelos aborteiros: o de nunca revelar quem fez o trabalho caso algo saia errado.
O pior método A mãe, dona Senhorinha Barbosa da Silva, 69 anos, foi pega de surpresa. Já
tinha notado que a filha andava pálida, insistia em levá-la ao posto da Vila Tronco, onde mora
em Porto Alegre, mas Maria se negava. "Ela não tinha força para nada, nem para lavar a
roupa", lembra. Até que, numa manhã de julho, Maria passou mal e foi hospitalizada.
Somente aí dona Senhorinha ficou sabendo que a filha tinha feito um aborto. "Se ela tivesse
me contado, eu aconselharia a não fazer", diz Senhorinha, que, apesar de no seu tempo não
haver anticoncepcionais, teve apenas três filhas. O método que usava era simplesmente não
manter relações outro fato a lembrar como essa questão envolve os valores de cada um.
Imaginar que a legalização do aborto aumente o número de casos é uma visão enganosa sobre
o problema. Na Itália, os casos registrados caíram 20%. Na França, eram 250.000 abortos em
1976, foram 195.000 em 1992. Em Cuba, com a legalização, houve uma queda de 50% nos
últimos cinco anos. O mais importante, porém, é que menos mulheres morrem quando o
aborto é legalizado. Porque é mais fácil pedir ajuda, é mais fácil atender, ninguém tem medo
de falar do problema. Em 1973, na França, morreram 27 gestantes em decorrência de abortos
realizados nos últimos meses na clandestinidade. Em 1992, o número de mortes caiu para três.
Nem na França nem em qualquer país do mundo se pensa que o aborto seja o melhor método
para uma mulher evitar filhos. É o pior o mais traumático, o mais doloroso, o que mais
deixa seqüelas, físicas e emocionais. O melhor, sempre, é o planejamento. Mas, depois que
todos os outros recursos foram tentados, pode ser a última saída. "Nossa legislação é um
dinossauro", afirma a deputada Zulaiê Cobra Ribeiro, nenhum aborto, que foi chamada de
assassina e carniceira ao decidir-se a favor da regulamentação dos casos de aborto previstos
no Código Penal.
214
Se o principal tribunal de júri do país não registra uma condenação de mulher que tenha feito
aborto há pelo menos dez anos, o médido Aníbal Faundes, um professor reputado, titular da
cadeira de obstetrícia da Unicamp, até hoje está sendo processado por uma entrevista dada em
junho de 1994. Na época, Faundes declarou que o Centro de Assistência Integral à Saúde da
Mulher, que coordenava, fazia abortos em casos de malformação de fetos sem condições de
sobreviver. "Eu me sinto muito mal quando me chamam de aborteiro, porque não me sinto
aborteiro. Tenho muitas restrições a quem faz aborto por dinheiro. É a exploração de uma
desgraça. Cobra-se não pelo ato médico, mas pela ilegalidade", disse ele. Herói das mulheres
que lutam pela descriminação do aborto, Faundes nunca se furtou a fazer, ele mesmo, as
interrupções de gestação previstas em lei, quando outros médicos do serviço se recusavam.
"Criminalizar o aborto só piora, é uma agressão física e emocional à mulher." Com uma
carreira acadêmica brilhante, Faundes fala do aborto com conhecimento de causa. "O país que
tem o menor índice de abortos do mundo é a Holanda, que é de 0,5 para cada grupo de 100
mulheres. Sabe por quê? Porque, além de ser legalizado, ali se faz campanha de educação
sexual, o funcionamento da pílula é explicado." O médico também lembra um detalhe muitas
vezes esquecido: não há proteção apenas para quem quer evitar filhos mas também para
quem deseja tê-los. "Como é que o Estado julga-se no direito de obrigar as mulheres a ter
filhos, se ele é incapaz de garantir o mínimo para essas mães e seus bebês?", pergunta a
psicóloga Edna Roland, 46 anos, um aborto.Com reportagem de Cíntia Campos e Marcia Guena, de
Salvador, Juliana De Mari, do Recife, Marcos Gusmão, de Belo Horizonte, Alexandre Oltramari e Ricardo
Vilela, de Porto Alegre, Raquel Almeida e Roberta Paixão, do Rio de Janeiro, e sucursais.
215
ANEXO 7
Enviado por André Petry -
3.3.2007
| 16h00m
Sem trava na língua
Artigo de André Petry na Veja desta semana:
"Na tradição brasileira, os políticos ocultam opiniões polêmicas para não perder voto. Por isso, é um alento
ouvir um governador dizer claramente que defende a legalização do aborto e das drogas"
O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, é um homem cheio de idéias. Desde que assumiu seu
posto, e sobretudo depois do assassinato brutal do menino João Hélio, o governador não tem fugido de temas
polêmicos. Na semana passada, afirmou que o país precisava debater a legalização das drogas e do aborto. Ficou
parecendo que o governador, bem ao estilo das raposas políticas, estava saindo pela tangente: não disse que era a
favor de legalizar drogas e aborto; disse apenas que era a favor do debate.
O SENHOR DISSE QUE A SOCIEDADE PRECISA DISCUTIR A LEGALIZAÇÃO DAS DROGAS. MAS O
SENHOR É PESSOALMENTE A FAVOR DA LEGALIZAÇÃO DAS DROGAS?
Sou a favor da legalização das drogas.
O governador acha que a legalização do aborto poderia ter no Brasil o mesmo efeito colateral que teve nos
Estados Unidos – o de reduzir a criminalidade. A relação está no livro Freakonomics, do renomado economista
Steven Levitt. Ele diz que o aborto, aprovado em 1973, impediu o nascimento de filhos indesejados, em geral
pobres e de mães solteiras, que, pelo ambiente familiar desestruturado, tinham maior possibilidade de se
envolver com o crime. Como não nasceram, vinte anos depois a criminalidade nos EUA caiu. "Estou de acordo
com Freakonomics", diz o governador – embora, é claro, nem ele nem ninguém defenda legalizar o aborto como
medida de combate ao crime.
Na tradição brasileira, os políticos escondem opiniões polêmicas para não perder voto. Por isso, é um alento
ouvir um governador dizer claramente que defende a legalização do aborto e das drogas.
216
Fora do passado
Há 57 anos, não existia divórcio nem pílula anticoncepcional, as brasileiras tinham em média
sete filhos e só 15% das mulheres trabalhavam. Há 57 anos, o jurista Francisco Campos,
ministro da Justiça do Estado Novo de Getúlio Vargas, colocou no Código Penal um artigo, o
128, em que concedeu às mulheres o direito de fazer um aborto em caso de estupro ou de
risco de vida para a mãe. De lá para cá, o artigo 128 não saiu do papel ficou esquecido por
cinco décadas. Só muito recentemente, copiando uma iniciativa da então prefeita Luiza
Erundina, de São Paulo, sete hospitais públicos no país inteiro passaram a oferecer esse
serviço às mulheres interessadas. Na semana passada, numa sessão tumultuada, em que não
faltaram cenas de fanatismo religioso e um princípio de pancadaria, a Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou, com a diferença de apenas 1 voto,
um projeto de lei para encerrar tantas décadas de passividade e silêncio. Conforme a proposta,
217
cuja aprovação não é definitiva, pois está sujeita a novos debates em plenário, emendas e até
vetos presidenciais, os hospitais públicos têm obrigação de realizar os abortos legais previstos
no Código Penal. Foram 23 votos a favor e 23 contra. Para o desempate, contabilizou-se o
voto da relatora, deputada Zulaiê Cobra Ribeiro, do PSDB de São Paulo, que saiu da
comissão acompanhada por seguranças da Câmara, sob gritos de "assassina", "açougueira",
"carniceira".
Embora a comissão de parlamentares tenha apenas regulamentado um artigo que estava na lei
desde 1940, a mobilização antiaborto, que chega ao Brasil importando palavras de ordem dos
Estados Unidos, já promete guerra. O presidente da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, dom Lucas Moreira Neves, prometeu mobilizar os bispos, párocos e leigos para que
telefonem a cada um dos congressistas, pressionando-os pela rejeição do projeto de lei e
ameaçando abandoná-los na campanha do ano que vem. Até o ministro da Saúde, Carlos
Albuquerque, tão silencioso diante de fatos mais graves e urgentes de sua Pasta, como a falta
de vacina anti-sarampo nos hospitais públicos, resolveu subir no palanque para anunciar que é
um adversário ferrenho do aborto. Explicando que é espírita de linha kardecista, o ministro
disse: "Se minhas filhas ou netas ficassem grávidas após um estupro, eu as aconselharia para
que não fizessem o aborto", diz Albuquerque. "A vida física começa na concepção e eliminá-
la, na minha opinião, é um assassinato." Esclarecimento: o ministro Carlos Albuquerque usou
esses exemplos como retórica, pois não tem filhas nem netas. Por outro lado, confundir
política de governo com convicção religiosa é uma postura que não dá muito certo imagine
se o Ministério da Saúde seguisse a política da Igreja Católica, que proíbe o uso de camisinha,
e acabasse sendo cúmplice na transmissão da Aids.
Opção difícil O que a comissão aprovou não foi a legalização do aborto. Os casos de
gravidez interrompida em função de estupro ou risco de vida para a mãe são raríssimos, em
comparação com abortos realizados porque a mulher não deseja um filho em determinado
momento da vida. Mas a discussão não é sobre números, e sim sobre direitos, opções, valores.
Por exemplo: durante a Guerra da Bósnia, soldados sérvios cometeram estupros em massa em
mulheres muçulmanas e católicas. Sem disposição para criar filhos de soldados inimigos,
muitas mulheres abortaram. Outras seguiram o conselho do papa João Paulo II, que numa
carta à Igreja local exortava essas mulheres a "não interromper a gravidez, de forma a
transformar o ato de violência que haviam sofrido em ato de amor". Regulando o artigo 128
do Código Penal, o que se faz é permitir as duas soluções. As mulheres que quiserem ter um
bebê após um estrupro podem fazê-lo. As que não quiserem passam a ter o direito de pedir
auxílio a um hospital público -- sem isso, a única saída é pagar 4.000 reais numa clínica
privada que faz o serviço clandestinamente ou submeter-se aos riscos de fazer o aborto em
casa, tomando remédios vendidos ilegalmente. O artigo 128 tem um aspecto humanitário
também ao permitir o aborto no caso em que a mulher corre risco de morrer em função da
gravidez. A idéia de que às mães cabe inclusive o dever de sacrificar a própria vida em função
dos filhos combina perfeitamente com a visão de mundo de muitas mulheres, mas não precisa
ser impingida, compulsoriamente, a todas elas.
Embandeirados pela visita que o papa João Paulo II fará ao Brasil em outubro, ativistas de
uma organização chamada Pró-Vida invectivam: "Não é agradável para o Santo Padre chegar
a um país onde se acaba de aprovar uma lei que favorece o aborto", criticou o chefe da
Pastoral Familiar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, dom Rafael Cifuentes. Trata-se de uma
piada de mau gosto. "Se fosse pelo Vaticano, não se poderia usar anticoncepcionais, os
preservativos não seriam distribuídos para conter a Aids e nem sequer o divórcio seria
admitido", lembra a deputada federal Marta Suplicy, do PT de São Paulo. "O Brasil é um país
218
laico, e desde a proclamação da República a Igreja e o Estado são instituições separadas. Não
dá para retroceder", diz. A Itália, país católico por excelência, dentro do qual fica o trono de
Pedro, tem uma legislação sobre o aborto entre as mais liberais do mundo. Pode-se
interromper a gravidez, ali, não apenas em casos de violência e ameaça à própria vida. A
mulher pode fazer o aborto porque se separou do namorado, porque resolveu mudar de
profissão, mudou de país enfim, porque se tornou dona de seu corpo. É bem diferente do
que se coloca no Brasil o que só torna ainda mais estranha uma campanha no estilo Pró-
Vida. Negando proteção a uma mulher que corre risco de vida, esse movimento se coloca a
favor da morte dela.
Em 1989, o hospital do Jabaquara, num bairro de classe média de São Paulo, foi o primeiro da
rede pública a oferecer o serviço de aborto para mulheres que preenchessem as condições
impostas pelo Código Penal. Não é uma opção fácil para ninguém. Osmar Ribeiro Colás, 42
anos, médico da Universidade Federal de São Paulo que trabalhou nesse serviço, lembra:
"Quando eu fiz o primeiro aborto, não dormi durante três dias. Sempre fui a favor da
descriminação do aborto, sempre achei que era uma decisão de cada um. Mas era fácil falar.
Qualquer médico que faz o aborto nos casos previstos em lei se submete a isso por respeito ao
estado psicológico da paciente. Não é agradável. Qualquer médico prefere dez partos a uma
interrupção de gestação." É natural. Não se conhece ninguém que sinta prazer em fazer um
aborto seja na posição de paciente, seja na de médico. É um momento delicado e difícil para
qualquer pessoa próxima. Mas, para muitas delas, pior do que essa opção é não ter escolha
nenhuma.
219
O mensalão do aborto
"O aborto malfeito é uma das principais
causas de morte de mulheres no Brasil.
É a terceira causa em São Paulo. Na Bahia,
é a primeira. Ou seja: o aborto não é um
direito desejável, é um direito necessário"
Quando estava de pé, o governo Lula vinha acertando no trato dos chamados temas
sociais: sancionou as pesquisas com células-tronco embrionárias, distribuiu pílulas do dia
seguinte nos postos de saúde, tentou combater a desigualdade racial nas universidades e
– sobretudo – criou uma comissão para revisar a antiquada legislação brasileira sobre o
aborto. Agora que está de cócoras, o governo Lula está começando a vender a alma ao
diabo também nos temas sociais. O caso mais recente está na carta que Lula mandou à
cúpula da Igreja Católica saudando a abertura da assembléia-geral da CNBB, em
Indaiatuba, São Paulo. Todo mundo ficou olhando para os trechos em que Lula diz ter
consciência da "gravidade da crise" e promete apurar tudo "doa a quem doer". Mas o
trecho mais revelador está no sexto parágrafo.
Diz o seguinte: "Quero reafirmar minha posição em defesa da vida em todos os seus
aspectos e em todo o seu alcance. Os debates que a sociedade brasileira realiza, em sua
pluralidade cultural e religiosa, são acompanhados e estimulados pelo nosso governo,
que, no entanto, não tomará nenhuma iniciativa que contradiga os princípios cristãos".
Ou seja: Lula está dizendo que o governo formou a comissão tripartite para revisar a Lei
do Aborto – integrada por respeitáveis representantes do governo, do Congresso e da
sociedade – e está deixando o pessoal falar à vontade, distrair-se com os debates na
ilusão de que vai decidir alguma coisa, mas, na hora H, o governo vai dar as cartas – e,
em defesa dos "princípios cristãos", não permitirá a descriminalização do aborto.
A comissão – que Lula agora diz que trabalhou de mentirinha – já concluiu sua proposta.
É claríssima: propõe que toda gravidez possa ser interrompida até a 12ª semana de
gestação e não define prazo-limite nos casos de ameaça à vida da gestante ou de má-
formação fetal incompatível com a vida fora do útero. A proposta é avançada. É certo
que, para ser aprovada, vai atravessar um oceano de dificuldades, mas o que ninguém
esperava é que, já na largada, fosse desautorizada com uma canelada do presidente da
República.
Na carta, Lula trata o aborto como uma questão moral e religiosa, como se pertencesse à
esfera dos "princípios cristãos", fazendo música para os ouvidos dos bispos. Não, o
aborto é essencialmente uma questão de saúde pública. O aborto malfeito está entre as
principais causas de morte de mulheres no Brasil (mulheres pobres, é claro, que não têm
dinheiro para recorrer às boas casas do ramo). É a terceira causa de mortalidade
feminina em São Paulo. Na Bahia, é a primeira. O aborto não é um direito desejável, é
um direito necessário.
A intenção de Lula é clara: quer seduzir a CNBB, evitando que os bispos migrem para a
oposição numa hora em que o governo se desmancha e o próprio presidente se entrega
ao exercício diário de se apequenar diante do país. É negócio, barganha. É o "mensalão
do aborto". É lamentável que milhares de brasileiras – pobres, na maioria – seguirão
morrendo todos os anos porque o presidente resolveu adular os bispos.
220
O Congresso Nacional está para votar nos próximos dias um projeto fundamental: a lei
que vai autorizar (ou proibir) a pesquisa científica com as células-tronco de embriões
humanos. As células-tronco, com seu notável potencial de reprodução e especialização,
são a esperança mais promissora da medicina atual para encontrar a cura de doenças
graves como diabetes, esclerose, infarto, distrofia muscular, Alzheimer, Parkinson. De
um lado, batalhando pela autorização da pesquisa com as células-tronco embrionárias,
está a comunidade científica. Em peso. De outro, contra a pesquisa, estão os religiosos,
principalmente os representantes dos católicos e evangélicos. As autoridades religiosas
até admitem as pesquisas com células-tronco, desde que sejam as células extraídas da
medula óssea ou do cordão umbilical, e não de embriões humanos. A Igreja diz que
pesquisar com embriões é uma ofensa à vida, tal como o aborto. Afinal, a manipulação
impediria o embrião de crescer. Seria, portanto, como matar alguém. A questão é que as
células-tronco mais potentes e versáteis são justamente as embrionárias, razão pela qual
pesquisá-las tende a ser muito mais eficiente.
Do castigo ao amparo
"Por preconceito, por machismo ou por
crendice, as brasileiras – as pobres, é claro,
as que não têm dinheiro para abortar numa
boa clínica clandestina – estão morrendo.
Primeiro, a lei as condena ao crime.
Depois, à morte"
O Brasil ainda está longe de entrar para a galeria dos países civilizados, modernos e
emancipados do jugo religioso, onde o aborto não é crime nem dá prisão a ninguém.
Mas, mesmo atolado no atraso, o país acaba de ver uma tênue luz no fim do túnel: a
ministra Nilcéa Freire, que cuida de políticas voltadas para as mulheres, anunciou que o
governo vai instalar uma comissão encarregada de reavaliar a lei brasileira sobre o
assunto, que permite o aborto apenas quando a vida da mulher está em risco ou a
gravidez resulta de estupro. A ministra já fez questão de avisar – talvez para, desde já, ir
tentando desarmar um pouquinho a imperecível fúria da Igreja Católica – que a idéia
nem é chegar à descriminalização do aborto. É só mudar o eixo da lei atual. Hoje, a lei
está focada na punição à mulher que aborta. Seu negócio é castigar, justiçar, censurar. A
idéia é fazer com que a lei, em vez de só punir, passe a garantir assistência à mulher que
aborta, não importa o motivo. A intenção é dar proteção, amparo, conforto, apoio. É uma
bela proposta.
Aos 52 anos, a ministra Nilcéa Freire conhece o assunto na pele: além de mulher, é
médica e mãe de dois filhos, um de 27 e outro de 25 anos. A ministra demorou a dizer a
que veio, mas, quando finalmente o fez, foi em noite de gala. Parabéns. Sua proposta
reflete as recomendações feitas por sucessivas conferências da ONU sobre a mulher.
Chuta-se que entre 50.000 e 100.000 mulheres morrem por ano devido a complicações
decorrentes de abortos inseguros, feitos em condições precárias e por gente
desqualificada – quadro comum nos países em que o aborto é ilegal, como no Brasil. A
OMS informa que a média mundial de mortalidade materna provocada por abortos
inseguros é de 13%. Na católica América do Sul, é o dobro. Calcula-se que, todos os
anos, 240 000 brasileiras submetidas ao aborto inseguro são hospitalizadas por causa de
complicações posteriores. Por preconceito, por machismo ou por crendice, as brasileiras
– as pobres, é claro, as que não têm dinheiro para abortar numa boa clínica clandestina
– estão morrendo, abandonadas à própria sorte. É o próprio cenário do horror. Primeiro,
a lei as condena ao crime. Depois, à morte.
Quem pode ser contra uma mudança radical nesse cenário? Quem pode ser contra a
idéia de dar amparo à mulher que, tendo acabado de passar pela dolorosa experiência do
aborto, ainda sofre com problemas de saúde? Quem pode ser cruel a ponto de deixar que
essa mulher morra, relegada à desproteção, porque fez um aborto não previsto em lei?
Os que militam contra o aborto, com destaque para a Igreja Católica, em vez de
responder a essas perguntas, vão apresentar aquela outra, igualmente legítima: onde
fica o direito à vida, o direito de nascer de uma criança indefesa, criminosamente
arrancada do útero materno? Ainda que seja impróprio tratar um feto como se fosse uma
criança, ainda que uma conferência episcopal no México tenha chegado ao extremo de
usar o termo "cidadão" como sinônimo de "embrião", ainda que não se esteja discutindo
a legalização do aborto, mas apenas o amparo à mulher que o faz, a resposta é
cristalina: o direito de nascer do embrião, cuja existência resulta de um ato humano e
não de uma intervenção divina, fica submetido aos direitos humanos da mulher, entre os
quais estão incluídos seus direitos sexuais e reprodutivos.
222
A favor do aborto
– e da vida
"Qual o sentido de forçar uma mulher
a levar no útero, por nove meses, um feto
que, em vez de proporcionar a festa da vida,
será protagonista de um funeral hospitalar?"
Era justo, solidário, humano demais para ser definitivo. O procurador-geral da República,
Cláudio Fonteles, anunciou que vai contestar no Supremo Tribunal Federal a decisão que
autorizou o aborto de fetos sem cérebro. Ou seja: mulheres grávidas de fetos sem
nenhuma possibilidade de vida fora do útero podem abortar sem pedir autorização
judicial. A decisão é um avanço. Um avanço da dignidade, do respeito à mulher, um
avanço civilizatório. O procurador Fonteles, no entanto, vai contestar a decisão. Católico
fervoroso, que jamais perde a missa aos domingos e dá aulas de catequese aos sábados,
Fonteles diz que sua opinião não é movida por razões religiosas, mas jurídicas. "Em
havendo vida intra-uterina, é lícito matar? Sou defensor da vida", diz ele. Fonteles,
correto e honesto como é, deve mover-se pela melhor das intenções, mas parece que
uma razão teológica está a lhe agitar a cabeça. Afinal, fora do universo dogmático da fé,
não há argumento razoável para obrigar uma mulher a manter uma gravidez de um feto
sem cérebro.
A ausência de cérebro mata o feto durante a gravidez ou, no máximo, nos primeiros
minutos após o parto. Não existe cura nem tratamento. O risco de morte é de 100%.
Qual o sentido, fora das premissas religiosas, de obrigar uma mulher a manter uma
gestação assim? Qual o sentido de forçar uma mulher a levar no útero, por nove meses,
um feto que, chegado à sala de parto, em vez de proporcionar a festa da vida, será
protagonista de um funeral hospitalar? Será que o Estado deve ter o direito de punir uma
mulher, inocente para todos os efeitos, com o sofrimento prolongado, psicologicamente
torturante e absolutamente inútil? Em nome de quê? O procurador Fonteles diz que a
gravidez deve ser mantida em nome da vida. É bonito. Mas a única vida em discussão,
no caso, é a da gestante, pois o feto, como se sabe, não completará dez minutos fora do
útero. Quem gosta de falar em defesa da vida, portanto, tem de falar da vida da futura
ex-mãe – que, não tendo nenhuma escolha feliz possível, deve ao menos ter o direito de
escolha sobre prolongar ou encurtar um sofrimento.
Quando se combate o aborto de um feto sem cérebro não se está defendendo a vida –
defende-se só um dogma religioso pelo qual a interrupção de uma vida, mesmo em
estágio intra-uterino, mesmo sem chance de sobrevivência, só pode ocorrer por obra
divina. Os religiosos têm todo o direito de manifestar seus pontos de vista e orientar seu
rebanho a viver de acordo com seus ensinamentos. Afinal, o Estado brasileiro é
democrático, e qualquer cidadão pode professar a crença que quiser. O Estado brasileiro,
além de democrático, é laico. Não faz parte do rebanho que vive segundo dogmas da
religião. No Estado brasileiro, não se faz lei nem se julga ninguém dentro de templos,
igrejas, mesquitas. E os demais cidadãos, que têm toda a liberdade de não professar
crença alguma, não podem ser obrigados a viver conforme ensinamentos religiosos. É
bom que Fonteles conteste a decisão do Supremo. Vai dar legitimidade – religiosa até – à
decisão. Espera-se, apenas, que o Supremo mantenha a decisão inicial do ministro Marco
Aurélio Mello, que é justa, solidária e humana – e merece ser definitiva.
223
Atraso porque, além de tudo, o STF deu guarida ao autoritarismo religioso pelo qual
todos têm de viver sob os ditames da fé – queiram ou não, sejam crentes, sejam ateus.
Afinal, a liminar não obrigava mulher alguma a interromper a gravidez de um feto sem
cérebro. Apenas autorizava o aborto às mulheres que, torturadas pela dor psicológica de
gerar um filho que morrerá ao nascer, quisessem fazê-lo. A idéia, generosamente
humana, era conceder a elas o direito de fugir do suplício de dar à luz um filho que, já
em sua primeira noite, em vez do berço, deita no caixão. Não obrigava ninguém a
abortar nem a levar a gravidez até o fim. Dava às mulheres o direito de fazer uma
escolha numa situação já dolorosa o bastante. Mas a tirania religiosa não admite que
apenas seu rebanho viva segundo sua fé. Todos os demais também devem fazê-lo. É
outra tortura. E outro retrocesso. •••
Um tempo de trevas
"O que mais assusta na eleição dos EUA,mais que o frenético belicismo de Bush,
é isto: o triunfo das trevas na terra da democracia e da liberdade"
Esse Bush é um craque. Ele e seus estrategistas políticos sabiam que, caso conseguissem
empolgar os evangélicos a ponto de fazê-los sair de casa para se enfileirar nas cabines
de votação, sua reeleição estaria garantida. Como um terço do eleitorado americano é
evangélico, e boa parte tem uma visão um tanto obscurantista da vida, além de achar
que os democratas esnobam sua fé, Bush saiu-se muito bem. A massa mais atrasada dos
Estados Unidos, aquela parcela que acredita mais no mito da virgindade de Maria do que
na teoria evolucionista de Charles Darwin, entregou a Bush a missão clara de restringir o
direito ao aborto, de impedir o casamento homossexual, de travar as pesquisas
científicas com células-tronco, entre outros primitivismos. O que mais assusta na eleição
dos Estados Unidos, mais que a alarmante dessintonia dos americanos com o resto do
mundo, mais que o frenético belicismo de Bush, mais que a primazia da versão sobre o
fato, é isto: o triunfo das trevas na terra da democracia e da liberdade.
Preocupa o fato de que, como potência única, dona de uma influência e de um poder
incontrastáveis, os Estados Unidos têm força para espalhar as trevas mundo afora. Por
isso, é importante saber o que se passa lá dentro. Um artigo recente de Maureen Dowd,
a mais ferina e engraçada colunista do The New York Times, depois de observar a ironia
de ver um presidente que decretou uma guerra com base em mentiras ser eleito por
causa de seus "valores morais", conta um pouco dos novos eleitos na América:
• Tom Coburn, que ganhou a eleição como senador pelo Estado de Oklahoma dizendo
que a disputa era entre o bem e o mal, defende a aplicação da pena de morte para
médicos que fazem aborto.
• John Thune, conservador cristão que faz campanha contra o aborto e também foi
eleito, afirma que é a favor de incluir na Constituição uma emenda que proíba o
casamento homossexual e a queima da bandeira dos Estados Unidos.
• Jim DeMint, eleito senador pela Carolina do Sul, defende que homossexuais sejam
proibidos de ensinar nas escolas públicas. E que a escola deveria demitir a professora
que, sendo solteira, ficasse grávida de seu namorado.
Finalmente o Brasil começa a dar sinais de entender que o aborto integra a lista de
direitos inalienáveis da mulher – de seus direitos reprodutivos, de seus direitos sexuais,
de seus direitos sobre o próprio corpo. Duas decisões fortalecem essa impressão. A
primeira veio dos trinta membros do Conselho Nacional de Saúde, que assessora e
orienta o ministro da área. Numa reunião de cinco horas, eles decidiram – por 27 votos
contra 3 – manifestar-se a favor do direito da mulher de abortar quando grávida de um
feto sem cérebro, cuja vida fora do útero é 100% inviável. A decisão é importante
porque ajuda a ampliar o coro dos que defendem a legalização do aborto de fetos sem
cérebro, tema que a Justiça deverá julgar em breve. A outra decisão veio na forma de
uma norma do Ministério da Saúde. A norma diz o seguinte: mulheres grávidas de
estupro agora podem abortar nos hospitais públicos sem apresentar o boletim de
ocorrência da polícia. É outra medida que merece aplauso. Revela o devido respeito à
mulher, na medida em que dá à sua palavra a mesma importância dada a um boletim
burocrático, e sobretudo retira da órbita policial uma questão de saúde física e
psicológica.
No Conselho Nacional de Saúde, entre os três votos contrários ao aborto de feto sem
cérebro estava o de Zilda Arns, que representa a entidade dos bispos católicos do Brasil.
A Igreja Católica, todos sabemos, é contra o aborto em qualquer situação. Em caso de
risco de morte para a mãe, em caso de gravidez resultante de estupro, em caso de fetos
sem chance de sobrevivência fora do útero. A Igreja Católica também rejeita a nova
norma do Ministério da Saúde. Teme que, sem terem de registrar a ocorrência do
estupro numa delegacia, as mulheres farão abortos nos hospitais públicos mesmo
quando não sofrerem estupro... Teme, portanto, que a nova norma sirva de estímulo ao
aborto nos hospitais do SUS. É um enfoque chocante, pois pressupõe que as mulheres
são essencialmente mentirosas e que, quando encontram uma brecha qualquer, fazem
abortos com a voracidade de moscas buscando açúcar...
O beato do apagão
"Afinal, todo mundo sabe que a gravidez indesejada é comum entre mulheres
pobres. Mulher abastada, se quiser, faz aborto na esquina, com conforto e a
higiene necessária"
Severino Cavalcanti não é um homem de seu tempo. É de antes. Como radical da direita católica,
daqueles que desenvolvem um tipo peculiar de fobia pública a tudo o que se assemelha a prazer
sexual, Severino é contra a flexibilização da lei do aborto. Acha que a legislação atual, que autoriza
o aborto apenas em casos de estupro e risco para a vida da gestante, já é permissiva demais e
deveria ser revogada.
Enquanto isso...
O governo decidiu aumentar a distribuição de pílulas do dia seguinte nos postos da rede pública de
saúde. A pílula do dia seguinte -- que os religiosos dizem ser abortiva, mas os cientistas, que afinal
são autoridade no assunto, afirmam que não -- é uma medida sensata de saúde pública. Afinal,
todo mundo sabe que a gravidez indesejada é comum entre mulheres pobres. Mulher abastada, se
quiser, faz aborto na esquina, com todo o conforto e com a higiene necessária.
Severino acha que relacionamento homossexual é coisa do diabo. Jamais votaria a favor de
qualquer projeto de lei que regularizasse a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Como
presidente da Câmara, já prometeu que nada nesse âmbito, no que depender dele, será aprovado.
Enquanto isso...
Um juiz de Porto Alegre, Roberto Arriada Lerea, reconheceu que a separação de um casal de
homens que viviam juntos havia cinco anos devia gerar os mesmos efeitos de um divórcio
heterossexual. Ou seja: os bens adquiridos durante a união estável deveriam ser divididos entre os
dois. É uma decisão inovadora, na qual o juiz faz questão de dizer que a união estável -- ou o
casamento civil -- é acessível a todos os brasileiros, não importa o sexo. Nem a religião.
Enquanto isso...
O governo da Inglaterra já concedeu duas licenças para que dois grupos de cientistas explorem os
mistérios das células-tronco embrionárias, que prometem oferecer a cura de doenças
degenerativas, como Alzheimer e Parkinson. A autorização mais recente foi dada ao cientista Ian
Wilmut, o pai da ovelha Dolly. Ele ganhou a permissão mais avançada que existe até hoje: poderá
fazer clonagem terapêutica de embriões humanos para estudar sua mecânica a fundo. Se e quando
os ingleses tiverem sucesso, é provável que apareça carola brasileiro rico pegando o avião para se
tratar por lá.
Durante a longa votação que resultou na vitória de Severino, o plenário da Câmara ficou
subitamente às escuras. O apagão durou uns quatro minutos. Era premonitório.
228
Vik Muniz é um dos mais bem-sucedidos artistas plásticos brasileiros. Tempos atrás, em
cartinha a VEJA, ele comparou minha coluna à imagem da Virgem Maria e o menino
Jesus. Agradeço muito. Eu só gostaria de notar, Vik, que cartesiano é com "s".
Outro correspondente que merece uma resposta, mesmo que atrasada, é o presidente da
Associação Brasileira dos Produtores de Amido de Mandioca (Abpam). Ele defendeu a
coragem e o patriotismo do ministro Aldo Rebelo, que apresentou um projeto de lei
determinando o acréscimo de amido de mandioca ao pão francês. O presidente da
Abpam garantiu que a mandioca é um "tubérculo de grande valor". E que o amido de
mandioca é "um produto nobre, matéria-prima para a fabricação de papelão, tecidos e
cosméticos". Peço desculpas aos associados da Abpam se eles se sentiram diminuídos. O
propósito do meu artigo era apenas denunciar a jequice e a inaptidão dos mais altos
representantes do governo Lula. Em nenhum momento pretendi sugerir que houvesse
algo de errado em comer papelão, tecidos e cosméticos.
Adriano Diogo é secretário do Meio Ambiente de Marta Suplicy. Ele negou que a fonte do
Ibirapuera, a principal obra da prefeitura petista, tenha sido instalada num lago cheio de
coliformes fecais. Chamou-me de leviano. Assegurou que a balneabilidade do lago é
"igual ou superior à de muitas praias do litoral brasileiro". E afirmou que a água do lago
"não é potável apenas porque para isso seria necessário acrescentar cloro". Proponho o
seguinte, Adriano Diogo: eu recolho um copo de água do lago, pingo duas gotinhas de
cloro e você toma tudo num gole só.
Olívio Dutra escreveu-me que, quando era governador do Rio Grande do Sul, deu todo o
apoio à abertura de uma CPI do jogo do bicho. Agora que é ministro, mudou de idéia,
sendo contrário à CPI do bingo. O que mais surpreende nos petistas é que eles ainda não
perceberam que, independentemente da CPI, o governo Lula acabou. Em junho de 2003,
previ que Lula seria desmascarado em dois anos. Durou ainda menos. Na época, tracei
um paralelo entre Lula e Silvio Berlusconi, o primeiro-ministro italiano. Para impedir
investigações contra suas empresas, Berlusconi sempre acusa o Ministério Público de ter
motivações políticas. E uma de suas principais bandeiras é intensificar o controle externo
sobre a Justiça.
A revolução geriátrica
"A fé verdadeira, segundo Joseph Ratzinger,
exige maturidade. É para adultos. É para
gente grande. Não para a rapaziada, que
sofre de 'fraqueza mental'"
O melhor de todos foi eleito – Joseph Ratzinger. Sua maior qualidade é o profundo
menosprezo que ele tem pelos jovens. Um bom exemplo do menosprezo ratzingeriano foi
dado na homilia que antecedeu a eleição papal, na última terça-feira, quando ele ridicularizou
a ala reformista da Igreja Católica comparando-a a um menor de idade. A fé verdadeira,
segundo Ratzinger, exige maturidade. É para adultos. É para gente grande. Não para a
rapaziada, que sofre de "fraqueza mental", sendo permanentemente "jogada pelas ondas e
atirada de um lado para o outro por qualquer vento de doutrina".
O menosprezo de Ratzinger pelos jovens é antigo. Seus biógrafos atestam que, no Concílio
Vaticano II, ele era considerado um teólogo reformista, mas mudou de idéia depois de
testemunhar o vandalismo dos estudantes em 1968. Duas décadas mais tarde, ele promoveu
uma célebre cruzada contra a música "rock", por seu poder de "abater as barreiras da
personalidade, e livrar o homem do peso da consciência". Nesse aspecto, Ratzinger é o exato
oposto de João Paulo II. Para atrair os jovens, João Paulo II se cercou de estrelas da música
popular e transformou as missas campais em grandes espetáculos profanos. Ratzinger não fará
nada disso. Para ele, "a liturgia não é um espetáculo, não vive de surpresas simpáticas,
cativantes, e sim de repetições solenes". Numa sociedade cuja maior preocupação é entreter e
seduzir os jovens, Ratzinger tem a ousadia de lhes oferecer apenas seu menosprezo e seu
sentimento de superioridade. A meninada é conformista, acomodada, titubeante. A revolução
geriátrica de Ratzinger pretende enfrentá-la com o rigor intelectual, a insubmissão e o
absolutismo.
Diogo Mainardi
João Paulo II consagrou mais santos do que qualquer outro papa. Esse dado reflete o seu
modo de ver a religião: mágica, miraculosa, irracional. Neste exato momento, dia 3 de
setembro, ele está beatificando mais dois: os papas João XXIII e Pio IX. Além de se
tornar santo, Pio IX passa por um processo de revisionismo histórico. Até hoje, os
italianos associaram a criação do Estado a figuras como Garibaldi e Cavour. Agora um
movimento ligado a João Paulo II decidiu atacar essas figuras porque suas idéias liberais
minaram o poder temporal da Igreja. Pio IX é conhecido por ter proclamado o dogma da
infalibilidade papal logo depois que as tropas garibaldinas ocuparam o Estado Pontifício.
O que os atuais sectários de Pio IX pretendem afirmar, portanto, é que a palavra do papa
é lei, devendo ser estendida à sociedade inteira. Para o resto de nós, a palavra do papa
pode ter um grande peso moral, mas só vale dentro da Igreja, servindo para guiar o
comportamento individual de seus fiéis. O risco é que, no ano 2000, os sectários de Pio
IX acabem por prevalecer. Quanto mais a política se desmoraliza, mais a Igreja ocupa
espaços que não lhe competem. Não digo que vamos virar um Afeganistão. Mas, se a
Igreja pudesse proibir contraceptivos, censurar a TV, cercear pesquisas científicas e
controlar a maneira como nos vestimos, certamente o faria. Assim como faz de tudo para
impedir a eutanásia. Eu gostaria de decidir como vou morrer. Gostaria de ter os mesmos
direitos do meu cachorro. Um beijo no focinho do "Tatu".
231
— Por favor, não se mexa — pedia o outro médico, tentando impedir o sobe-e-desce da
barriga da moça em prantos.
O drama e a angústia pelos quais passaram essas duas mulheres são emblemáticos de um dos
grandes dilemas da medicina à beira do século XXI. Com o nascimento da inglesinha Louise
Brown, o primeiro bebê de proveta, em 24 de julho de 1978, conquistou-se o poder de agir
sobre um dos maiores imperativos da natureza — a perpetuação da espécie. De cada dez
recém-nascidos no mundo, um é resultado da fertilização in vitro. No início dos anos 80, as
taxas de sucesso dos tratamentos eram de apenas 5%. Hoje, são de quatro a sete vezes mais
altas. "Apesar dos avanços tecnológicos, é preciso muita cautela", alerta o médico gaúcho
Paulo Serafini, especialista em reprodução humana e professor da Universidade Yale, nos
Estados Unidos. O pedido de cautela do médico tem sua razão: as terapias de fertilização
aumentaram a incidência das gestações múltiplas, aquelas que envolvem mais de um feto. Em
quase duas décadas, saltou de uma em 100 para uma em cinco, entre as mulheres submetidas
a tratamentos de fertilidade. "A espécie humana não foi programada para gerar mais de um
feto por vez", diz o médico Marcelo Zugaib, chefe do departamento de obstetrícia e
ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, USP. Até dois, a
natureza ainda consegue dar conta do recado com certa tranqüilidade. "A partir de três, as
complicações são inevitáveis — tanto para a mãe quanto para os fetos", garante o
ginecologista paulista Thomaz Rafael Gollop, diretor do Instituto de Medicina Fetal e
Genética Humana. E a alegria com a notícia das crianças vem acompanhada pela agonia da
233
decisão: ir com a gestação até o fim ou abortar um ou mais nenês na tentativa de preservar a
mãe e as crianças remanescentes dos riscos de uma
gravidez múltipla?
Nas melhores clínicas de reprodução assistida do Brasil, 35% das mulheres grávidas de três
ou mais fetos optam pela redução embrionária. Seria até uma escolha mais fácil se a redução
desse alguma garantia de que os bebês remanescentes nasceriam sadios e perfeitos. Mas não.
Também as reduções implicam altas taxas de risco. As injeções de cloreto de potássio podem
causar infecções, inviabilizando a vida dos fetos que se tentou preservar. Uma em cada dez
mulheres que optam pela redução acaba perdendo todos os bebês. Impossível não
experimentar o travo da tragédia. Arrependimento, culpa: "E se eu tivesse deixado todos?"
A escolha é difícil porque tirar não garante nada. Não tirar, também. Trigêmeos têm dez vezes
mais chance de nascer antes do tempo do que os fetos únicos. Sem as funções orgânicas
totalmente formadas, os prematuros estão ameaçados de sofrer paralisia cerebral. Nada menos
234
do que a metade dos quádruplos e 8% dos triplos amargarão as seqüelas dessas paralisias,
caso sobrevivam. Já seria grave. Há mais. Prematuros estão sujeitos a hemorragias no coração
e no cérebro, déficit visual e motor, comprometimento respiratório, inflamação na parede dos
intestinos e retardamento intelectual. "A prematuridade pode até não deixar sintomas
imediatamente", diz a médica Clea Rodrigues Leone, chefe do berçário Anexo à Maternidade,
do Instituto da Criança, da USP. "Mas nada garante que a longo prazo essas crianças não
venham a apresentar seqüelas neurológicas." A redução fetal — a eliminação de alguns fetos
— evita essas mazelas.
Há três anos, a psicóloga carioca Teresa Mota Igrejas Lopes, 38 anos, viu-se diante da
tenebrosa dúvida. Casada pela segunda vez com o economista Roberto Costa, ela já era mãe
de duas meninas, filhas de seu primeiro casamento. Com o novo marido, Teresa queria uma
nova criança, mas não conseguia engravidar. O diagnóstico: entupimento das tubas uterinas.
Submetida a tratamentos de fertilização, engravidou de quadrigêmeos. "Sou contra o aborto,
mas fiquei com medo de carregar quatro bebês em minha barriga", lembra Teresa. "Não ia
agüentar também a dor de perdê-los depois do nascimento." Desde o princípio, Roberto
recusou-se a abrir mão de dois dos filhos. Convenceu a mulher. Teresa teve de ficar de
repouso. Engordou 21 quilos. Sete meses depois, em maio de 1996, chegaram Bárbara, Bruno,
Raquel e Catarina. Pesavam entre 1,5 e 1,8 quilo. "Hoje, a gente olha para as crianças e pensa
quais deles teriam sido os escolhidos para a injeção letal de cloreto de potássio", diz ela.
Bárbara? Bruno? Raquel? Catarina?
A redução fetal surgiu como conseqüência de um defeito nos tratamentos que ajudam as
mulheres a engravidar. "A gravidez múltipla é o tiro pela culatra das terapias de fertilização",
define o ginecologista Eduardo Leme Alves da Motta, diretor da Huntington Centro de
Medicina Reprodutiva. Apesar de todos os avanços, não há droga nem tratamento de
fertilização precisos o bastante para garantir a gravidez de um único feto. "O objetivo é
reduzir o número de gestações multifetais para taxas semelhantes às da natureza", completa o
médico Agnaldo Cedenho, coordenador do setor de reprodução humana da Universidade
Federal de São Paulo (veja quadro).
Um em cada sete casais brasileiros encontra dificuldade para ter filhos. A maioria recorre à
fertilização in vitro, ao bebê de proveta. Os óvulos da mulher são fecundados pelos
espermatozóides do homem em laboratório. O embrião é transferido depois para o útero
materno. Outros casais são submetidos a tratamentos à base de hormônios. A mulher recebe
substâncias químicas que estimulam a ovulação. Uma resolução de 1992 do Conselho Federal
de Medicina estabeleceu algumas normas para reduzir os riscos de gravidez múltipla
decorrente da reprodução assistida. Quando fazem a fertilização in vitro, os médicos devem
implantar no organismo feminino no máximo quatro embriões. Em busca de resultados, no
entanto, muitos especialistas transferem cinco, seis, sete, oito embriões. Obviamente,
aumentam também as chances de gestações multifetais. O professor Volnei Garrafa, da
Universidade de Brasília e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, diz que o
correto seria colocar menos embriões no útero das mulheres, em vez de colocar todos os
embriões possíveis e depois eliminar os excedentes.
Foi por insistência da própria professora paulista M.V.B.V, de 43 anos, que o médico
implantou sete embriões em seu útero. Depois de um ano e dois meses e 30.000 reais gastos
em tratamentos de fertilização, assustada com o avançar da idade, ela estava prestes a
aposentar o desejo de ser mãe. "Sabia que com a minha idade a chance de engravidar com
apenas quatro embriões era de apenas 20%", conta. "Por isso, quis otimizar o tratamento."
235
Qual não foi a surpresa quando cerca de vinte dias depois da implantação ela e o marido
receberam a notícia de que três dos sete embriões se haviam fixado no útero materno. Ele
ficou feliz da vida. Ela, assustadíssima: "Eu estava lutando para ter um único filho". O tempo
foi passando, os fetos crescendo, corações pulsando — tudo normal. "Quando vi a imagem de
meus filhos no ultra-som, tudo mudou", lembra M.V.B.V. Ela e o marido pesaram os prós e
os contras da gestação múltipla e hoje, depois de cinco meses, esperam pela chegada dos três
bebês. "Sei que fiz uma escolha de risco", diz a mãe. Acostumada a trabalhar mais de doze
horas por dia, ela está de repouso desde setembro. Ao contrário das mães de primeira viagem
que se deleitam em comprar casaquinhos, cueiros, mantas e mamadeiras, M.V.B.V. não pode
fazer nada disso. Tem de ficar de repouso. Assim, são as irmãs e o marido que se encarregam
da tarefa.
Sem regulamento — Diferentemente do que acontece na Inglaterra, por exemplo, onde leis
regulamentam a prática da medicina reprodutiva, no Brasil, fora a resolução do Conselho
Federal de Medicina, sem poder de lei, não há regulamento algum sobre o assunto. E a
redução embrionária enquadra-se no crime de aborto. Os empresários Suerli Galvão, de 45
anos, e José Rinaldo da Nóbrega, de 37 anos, estão casados há quatro anos. Divorciada, ela
teve três filhos do primeiro casamento — o mais velho, que morreu atropelado aos 8 anos,
estaria hoje com 23, a do meio tem 20 anos e a caçula, 18. No último parto ela fez laqueadura.
Ao conhecer José Rinaldo, quis ter mais filhos. Em 1996 foi submetida a uma fertilização in
vitro. Nada. No final de 1997, de novo. Dos cinco óvulos implantados, três vingaram. Pela
idade de Suerli e pelo fato de ela estar carregando três bebês, o casal foi aconselhado a fazer a
redução. Extremamente religiosos, recusaram: "Não, não, eles são um presente de Deus! Não
importa o que aconteça". Como era de esperar, Suerli teve uma gravidez complicada. Durante
os sete meses e meio que durou a gestação, ela precisou ser internada quatro vezes. Sentia
uma terrível falta de ar. O coração parecia uma batedeira. Era o corpo dando sinais de que
estava sobrecarregado com os três fetos. No sexto mês, recebeu uma transfusão de sangue.
Estava anêmica. Até aquele momento, ela só conseguia alimentar-se com bolacha maizena e
chá. No dia 26 de agosto do ano passado, nasceram Luiz Felipe, 1.760 gramas, Paulo
Augusto, 1.650 gramas, e Carlos Eduardo, 1.250 gramas. A mãe foi para casa em três dias. Os
dois maiores, em quinze. E o menorzinho, um mês depois. Foi a escolha do casal, e não foi
fácil. Suerli quase morreu com os bebês. Felizmente deu certo. E se não desse? Um último
detalhe: o cloreto de potássio, usado na redução embrionária, é a mesma substância utilizada
em alguns Estados americanos para executar criminosos condenados à pena capital.
Sem a ajuda dos métodos artificiais, a probabilidade de uma mulher ter mais de um bebê por
vez é muito baixa. Pelas vias naturais, o nascimento dos sétuplos McCaughey, em novembro
de 1997, nos Estados Unidos, seria praticamente impossível: um em 262 bilhões. Os
tratamentos de fertilização mudam as regras da natureza. Vai-se de um extremo a outro. A
mulher que não pode ter filhos tem, de repente, uma ninhada de bebês. A chance de trigêmeos
é de apenas uma em 10.000. Nos tratamentos de fertilização, sobe para uma em dez. A
natureza não fez o sistema reprodutivo humano funcionar à imagem e semelhança dos coelhos
e ratos. É a ciência que o está fazendo.
materno. As chances de gravidez eram baixas. Pelo método natural, 48 horas depois da
fecundação o embrião ainda está nas tubas uterinas a caminho do útero, aonde só chegará por
volta do sétimo dia de vida. A ciência, contudo, não havia desenvolvido um meio de cultura
que garantisse o crescimento do embrião no tubo de ensaio por mais de 48 horas. Até o
segundo dia de vida, o embrião cresce lentamente. "A partir do terceiro dia, no entanto, o
crescimento se torna exponencial", diz o ginecologista Eduardo Motta, diretor do Huntington
Centro de Medicina Reprodutiva. A demanda de energia é cada vez maior — o que exigiria
meios de cultura extremamente sofisticados.
Diogo Mainardi
Você está seguindo a disputa sobre as células estaminais embrionárias? Virou meu
assunto preferido. Só falo nisso. Arrependo-me de ter matado tantas aulas de ciência nos
tempos de escola. Leio todas as notícias que aparecem e as comento com ar doutoral,
apesar de compreendê-las pouquíssimo. Outro dia, por exemplo, cientistas introduziram
células estaminais num rato infartado e seu tecido cardíaco se reconstituiu. Existe uma
razoável esperança de que as células estaminais possam fazer o mesmo com outros
tecidos lesados, sobretudo os do cérebro, ajudando a curar mal de Parkinson, Alzheimer
ou paralisia cerebral. O problema é que as experiências mais promissoras nesse campo
envolvem células estaminais retiradas de embriões humanos. Para retirá-las, é
necessário destruir os embriões. A Igreja Católica é contrária. Diz que equivale a um
aborto. Um documento do Vaticano, assinado pelo professor Juan de Dios Vial Correa,
considera o uso científico de embriões humanos "gravemente imoral e, portanto,
gravemente ilícito". Não é a opinião do governo britânico, o primeiro a consentir esse tipo
de experimentação. A seguir, vieram países como Austrália e Israel. Alguns dias atrás, foi
a vez da Alemanha. A posição dos Estados Unidos é mais complicada. O ex-presidente
Clinton autorizou o financiamento federal de pesquisas com células embrionárias. Assim
que George W. Bush assumiu o cargo, pensou em suspender a autorização. Mas está
tendo de voltar atrás, por causa da pressão de parlamentares de seu próprio partido.
Seja como for, parece que nada será definido antes de 23 de julho, quando Bush se
encontrará com o papa.
O Brasil nunca fez uma descoberta científica importante. Significa que qualquer opinião
do nosso governo sobre a experimentação com embriões humanos será irrelevante,
assim como é irrelevante a opinião expressa neste artigo. Indiretamente, porém, a coisa
nos diz respeito. Meu filho sofreu uma grave asfixia durante o parto. Li que um cientista
de Harvard, Evan Snyder, está analisando o efeito de células estaminais implantadas no
cérebro de animais que sofreram grave asfixia perinatal. É possível que, um dia, essas
pesquisas envolvam células estaminais retiradas de embriões humanos. O que fazer?
Deixar as pesquisas de lado? Decretar guerra contra a Igreja Católica? Perda de tempo. A
Igreja Católica já perdeu. Veja a controversa questão do aborto. Não há um único país
desenvolvido que o proíba. A proibição é uma bandeira exclusiva de países
subdesenvolvidos, como o Brasil. Não implica que ele não seja praticado. As brasileiras
abortam como em qualquer outro lugar. A diferença é que as brasileiras ricas vão a
clínicas mais ou menos seguras, enquanto as pobres correm o risco de morrer. A
clandestinidade do aborto não preserva a vida, preserva um privilégio de classe. Como
sempre, na base do nosso comportamento não há um princípio ético, mas apenas a
aceitação de uma iniqüidade social. Como no caso da prisão especial. Felizmente,
podemos contar com os lobistas da indústria farmacêutica americana. Pensando no lucro
das empresas que representam, eles farão com que as pesquisas com células estaminais
embrionárias possam prosseguir. E a opinião da Igreja Católica se tornará tão irrelevante
quanto a minha.
238
O planejamento petista
"Se depender do PT, a maior contribuição científica brasileira continuará sendo
o polvilho
anti-séptico Granado, para as frieiras nos pés.
Chega de reclamar de Bush. Lula é muito mais
retrógrado do que ele"
No mundo todo, o direito ao aborto foi uma conquista dos partidos de esquerda. Até
alguns anos atrás, o PT o defendia. Em 1995, o atual presidente do partido, José
Genoino, chegou a apresentar um projeto de lei permitindo o aborto nos primeiros
noventa dias de gestação. Agora mudou. Os petistas perderam o interesse pelo assunto,
preferindo se concentrar em metas de superávit fiscal e expedientes para abafar
denúncias de corrupção. O único parlamentar petista que se ocupa ativamente da
questão é Durval Orlato, que tenta limitar ainda mais sua aplicação. Ele pleiteia que as
vítimas de estupro sejam obrigadas a ver filmes sobre o desenvolvimento dos fetos caso
decidam abortar. Além da tortura do estuprador, portanto, as mulheres deverão ser
submetidas à tortura do Estado. Um fiel aliado do PT, Severino Cavalcanti, do PP,
também se engajou na campanha. Ele planeja enfiar na cadeia todas as mulheres que
praticarem abortos clandestinos.
O jornalista americano Hunter S. Thompson se matou duas semanas atrás. Deu um tiro na
cabeça. Ele era colecionador de armas. Em seu último artigo, ditou as regras para um novo
esporte, inventado por ele, que consistia em abater bolinhas de golfe com uma espingarda.
Suicidar-se é um dos direitos primordiais do homem. Todo mundo deveria ter uma arma em
casa, para esse fim. Outro direito é defender-se quando atacado. Perguntaram a Hunter S.
Thompson por que ele era contra a política de desarmamento civil. Ele respondeu
sensatamente que "quando só os malucos estão armados, não sobra ninguém para vigiar os
malucos".
Menina de Ouro e Mar Adentro, ganhadores do Oscar de melhor filme e de melhor filme
estrangeiro do ano, defendem o direito ao suicídio assistido. O diretor de Menina de Ouro,
Clint Eastwood, já defendeu também o direito à posse de armas, com a célebre tirada do
inspetor Callaghan: "Tenho uma opinião muito clara sobre o controle de armas. Se há uma
arma por perto, eu quero estar controlando". Clint Eastwood entende do assunto. Seus
melhores filmes são aqueles em que ele mata mais gente, usando poncho e sendo dublado em
italiano. Os piores são aqueles em que ele não mata ninguém, protagonizados por Sondra
Locke, sua mulher na época, e pelo orangotango Clyde. Imagine o que seria a história do
cinema sem armas. Um monte de filmes com o orangotango Clyde. Pior: um monte de filmes
com Sondra Locke.
O debate sobre o desarmamento poderia fazer algum sentido se o governo cumprisse sua parte
e apreendesse as armas clandestinas em circulação. Como isso nunca vai acontecer, a questão
não se coloca. Cada um deve tentar se proteger por conta própria. Compre uma arma de bom
calibre. Aprenda a usá-la. Pratique tiro ao alvo em máquinas de escrever e bolinhas de golfe,
como Hunter S. Thompson. Em seguida, alugue todos os filmes com o orangotango Clyde e
entrincheire-se em casa, vestindo um poncho e grunhindo em italiano.
240
As respostas da Igreja
"Os católicos, segundo dom Cláudio
Hummes, precisam olhar para a frente.
É um erro. Seu lugar é lá atrás. O melhor
argumento de que a Igreja dispõe é o
mesmo de sempre: as profundezas do inferno"
Dom Cláudio Hummes é candidato a papa. Eu voto contra. No meu conclave particular,
dou-lhe fumacinha preta. Ele diz que a Igreja Católica "está a serviço dos pobres". Que
seu papel é "combater o privilégio e a desigualdade social". Que a "pobreza, hoje, é mais
desumana". Que o desemprego é causado pela "globalização e pelo neoliberalismo". Que
a "reforma agrária deve ser acelerada". Que o agronegócio não garante a "justiça social".
Que o Fome Zero é um "feito muito grande em termos de distribuição de renda". Que o
homem precisa "entender que dá para ser feliz com menos". Que é urgente abandonar as
"ambições individualistas".
A única maneira que a Igreja tem para ajudar os pobres é dar-lhes sopa e roupa velha.
Não é a opinião do cardeal Cláudio Hummes. Ele acredita que a religião pode fazer muito
mais, funcionando como um contrapeso para o capitalismo e a sociedade de consumo. A
maior parte dos discípulos de João Paulo II exibe a mesma presunção. Eles imaginam
que o papa de fato derrubou o comunismo. E que, a seguir, derrubaria também os
aspectos mais daninhos do capitalismo, que se manifestam sob a forma de um
degenerado materialismo. É um erro de avaliação da hierarquia católica. Em primeiro
lugar, quem derrubou o comunismo foi o capitalismo, e não o papa. Em segundo lugar, o
grande atributo do capitalismo é a capacidade de se corrigir sozinho. Sem religião. Sem
papa. Sem o cardeal de São Paulo.
O principal ponto da plataforma papal de dom Cláudio é que "a Igreja não pode dar
respostas antigas a perguntas novas". Não tenho idéia do que isso significa. Claro que a
Igreja pode dar respostas antigas. O que não pode dar são respostas novas. Qualquer
tentativa de encontrar respostas novas para questões como células-troco embrionárias,
ou aborto, ou eutanásia, ou métodos contraceptivos será sempre grotescamente
malsucedida. A melhor saída é fazer o contrário do que diz dom Cláudio. Em vez de
enfrentar os temas da modernidade, a Igreja deve simplesmente ignorá-los. Dom Cláudio
gosta de pescar e tocar violino. É uma vantagem. Quando lhe perguntarem sobre as
células-tronco embrionárias, ele pode sair para pescar ou se fechar no quarto com seu
violino. Se não tiver para onde escapar, o conselho é abrir a Escritura ao acaso e citar o
primeiro versículo que lhe saltar aos olhos. Uma resposta antiga certamente será menos
imprópria do que um arremedo de resposta nova.
Dom Cláudio é tido como um conservador no campo moral. Deveria ser mais. Um
exemplo: mães solteiras. Elas representam um dos maiores problemas sociais do país,
porque só contam com a renda de um salário. Se dom Cláudio fizesse uma cruzada
amaldiçoando os homens que abandonam as mulheres grávidas, o resultado certamente
seria nulo, mas pelo menos colocaria a Igreja do lado da razão. Os católicos, segundo
dom Cláudio, precisam olhar para a frente. É um erro. Seu lugar é lá atrás. O melhor
argumento de que a Igreja dispõe é o mesmo de sempre: as profundezas do inferno.
241
critério para discernir entre verdadeiro e falso, entre engano e verdade. Devemos amadurecer esta fé, para
esta fé devemos guiar o rebanho de Cristo. E é esta fé só esta fé que gera unidade e se realiza na caridade.
São Paulo oferece-nos a este propósito em contraste com as contínuas peripécias dos que são como crianças
batidas pelas ondas uma bela palavra: praticar a verdade na caridade, como fórmula fundamental da existência
cristã. Em Cristo, coincidem verdade e caridade. Na medida em que nos aproximamos de Cristo, também na
nossa vida, verdade e caridade fundem-se. A caridade sem verdade seria cega; a verdade sem caridade seria
como "um címbalo que retine" (1 Cor 13, 1).
Falemos agora do Evangelho, de cuja riqueza gostaria de extrair só duas pequenas observações. O Senhor
dirige-nos estas maravilhosas palavras: "Já não vos chamo servos... mas a vós chamei-vos amigos" (Jo 15,
15). Muitas vezes sentimos que somos como é verdade unicamente servos inúteis (cf. Lc 17, 10). E, não
obstante, o Senhor chama-nos amigos, torna-nos seus amigos, oferece-nos a sua amizade. O Senhor define a
amizade de uma dupla forma. Não existem segredos entre amigos: Cristo diz-nos tudo quando ouve o Pai;
oferece-nos a sua plena confiança e, com a confiança, também o conhecimento. Revela-nos o seu rosto, o seu
coração. Mostra-nos a sua ternura por nós, o seu amor apaixonado que vai até à loucura da cruz. Confia-se a
nós, dá-nos o poder de falar com o seu eu: "este é o meu corpo...", "eu te absolvo...". Confia o seu corpo, a
Igreja, a nós. Confia às nossas mentes débeis, às nossas mãos débeis a sua verdade o mistério do Deus Pai,
Filho e Espírito Santo; o mistério do Deus que "tanto amou o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito"
(Jo 3, 16). Fez de nós amigos seus e nós como respondemos?
O segundo elemento, com que Jesus define a amizade, é a comunhão das vontades. "Idem velle idem nolle",
era também para os Romanos a definição de amizade. "Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando"
(Jo 15, 14). A amizade com Cristo coincide com o que exprime a terceira pergunta do Pai Nosso: "seja feita a
tua vontade assim na terra como no céu". Na hora do Getsémani Jesus transformou a nossa vontade humana
rebelde em vontade conforme e unida à vontade divina. Sofreu todo o drama da nossa autonomia e
precisamente levando a nossa vontade às mãos de Deus, oferece-nos a liberdade verdadeira: "Não como eu
quero, mas segundo a tua vontade (Mt 21, 39). Nesta comunhão da vontade realiza-se a nossa redenção: ser
amigos de Jesus, tornar-nos amigos de Deus. Quanto mais amamos Jesus, quanto mais o conhecemos, tanto
mais cresce a nossa verdadeira liberdade, cresce a alegria de ser remidos. Obrigado Jesus, pela tua amizade!
O outro elemento do Evangelho que desejo mencionar é o sermão de Jesus sobre o dar fruto: "fui eu que vos
escolhi a vós e vos destinei a ir e a dar fruto, e fruto que permaneça" (Jo 15, 16).
Realça aqui o dinamismo da existência do cristianismo, do apóstolo: constituí-vos para irdes...
Devemos estar animados por uma santa preocupação: a preocupação de levar a todos o dom da fé, da amizade
com Cristo. Na verdade, o amor, a amizade de Deus foi dada para que chegue também aos outros. Recebemos
a fé para a levar aos outros somos sacerdotes para servir os outros. E devemos levar um fruto que permaneça.
Todos os homens querem deixar vestígios duradouros. Mas o que permanece? O dinheiro não. Também os
edifícios não permanecem; os livros também não. Depois de um certo tempo, mais ou menos longo, todas
estas coisas desaparecem. A única coisa que permanece eternamente, é a alma humana, o homem criado por
Deus para a eternidade. O fruto que permanece é portanto quanto semeámos nas almas humanas o amor, o
conhecimento; o gesto capaz de tocar o coração; a palavra que abre a alma à alegria do Senhor. Então vamos
rezar ao Senhor, para que nos ajude a dar fruto, um fruto que permaneça. Só assim a terra será mudada de
vale de lágrimas para jardim de Deus.
Por fim, voltemos mais uma vez à carta aos Efésios. A carta diz com as palavras do Salmo 68 que Cristo,
subindo ao céu, "deu dádivas aos homens" (Ef 4, 8). O vencedor distribui dons. E estes dons são apóstolos,
profetas, evangelistas, pastores e mestres. O nosso ministério é um dom de Cristo aos homens, para construir
o seu corpo o mundo novo. Vivamos o nosso ministério assim, como dom de Cristo aos homens! Mas nesta
hora, sobretudo, peçamos com insistência ao Senhor, para que depois do grande dom do Papa João Paulo II,
nos ofereça um pastor segundo o seu coração, um pastor que nos guie ao conhecimento de Cristo, ao seu
amor, à verdadeira alegria. Amém.
243
AMNESTY INTERNATIONAL
PRESS RELEASE
14 June 2007
Amnesty International today firmly stood by the rights of women and girls to be free from threat, force
or coercion as they exercise their sexual and reproductive rights.
Responding to a statement from the Vatican, Amnesty International contradicted the claim of Cardinal
Renato Martino, head of the Pontifical Council for Justice and Peace, that Vatican funding for Amnesty
International would cease. "We have not accepted funds from the Vatican and do not accept funds from
any other state in support of our work against human rights violations," said Kate Gilmore, Executive
Deputy Secretary General of Amnesty International.
"Millions of people around the world of many faiths and creeds donate to Amnesty International as
individuals. Among them are welcome donations from members of the Catholic faith. We hope that
Amnesty InternationaI's work against torture, against the death penalty and for the proper
administration of justice including for women and girls will continue to draw active support from people
of conviction the world over," said Kate Gilmore.
Defending the right of women to sexual and reproductive integrity in the face of grave human rights
violations, Amnesty International recently incorporated a focus on selected aspects of abortion into its
broader policy on sexual and reproductive rights. These additions do not promote abortion as a universal
right and Amnesty International remains silent on the rights and wrongs of abortion.
"Amnesty International's position is not for abortion as a right but for women's human rights to be free
of fear, threat and coercion as they manage all consequences of rape and other grave human rights
violations," clarified Kate Gilmore.
Yesterday Cardinal Martino, through an interview, encouraged Catholics to withdraw support for Amnesty
International, claimed that Amnesty International is "promoting abortion rights". Amnesty International's
actual policy, however, standing alongside its long-standing opposition to forced abortion, is to support
the decriminalisation of abortion, to ensure women have access to health care when complications arise
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from abortion and to defend women's access to abortion, within reasonable gestational limits, when their
health or human rights are in danger.
"Amnesty International stands alongside the victims and survivors of human rights violations. Our policy
reflects our obligation of solidarity as a human rights movement with, for example, the rape survivor in
Darfur who, because she is left pregnant as a result of the enemy, is further ostracised by her
community," said Kate Gilmore.
"We are a movement to protect citizens including the believer but we do not impose beliefs. Ours is a
movement dedicated to upholding human rights, not specific theologies. Our purpose invokes the law
and the state, not God. It means that sometimes the secular framework of human rights that Amnesty
International upholds will converge neatly with the standpoints of certain faith based communities;
sometimes it will not."
Amnesty International encouraged the Catholic Church not to turn away from the suffering that women
face because of sexual violence and urged the Catholic leadership to advocate tolerance and respect to
freedom of expression for all human rights defenders, including Amnesty International, just as Amnesty
International will continue to defend the freedom of religion.
Public Document
****************************************
For more information please call Amnesty International's press office in London, UK,
on +44 20 7413 5566
Amnesty International, 1 Easton St., London WC1X 0DW. web: http://www.amnesty.org
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The pregnancy-center clinic, with its new ultrasound machine, has been open only since December, but
already the staff can count the women who came in considering an abortion and changed their minds: five
women converted, six lives saved, they declare, since one was carrying twins. "They connected," nurse Joyce
Wilson says, recalling the reaction of the women who saw the filmy image of their fetus onscreen. "They
bonded. You could just see it. One girl got off the table and said, 'That's my baby.'"
"Another got up," Deborah Wood says, "and said, 'This changes everything.'"
Wood is the CEO of Asheville Pregnancy Support Services in Asheville, North Carolina, one of the thousands
of crisis pregnancy centers in the U.S. that are working to end abortion. Hers is the new face of an old
movement: kind, calm, nonjudgmental, a special-forces soldier in the abortion wars who is fighting her
battles one conscience at a time. Her center helps women navigate the social-service bureaucracy, sign up
for Medicaid and begin prenatal care. She helps pregnant girls find emergency housing if their parents
threaten to throw them out. Free pregnancy tests and ultrasounds are just the latest service.
"They've been fed these lies, that it's just a bunch of cells that's not worth anything," Wilson says. "But those
limbs are moving. That heart is beating. You don't have to say anything ..." She brings out a black velvet box
that looks as if it holds a strand of pearls. Inside are four tiny rubber fetuses, the smallest like a kidney bean
with limbs, the biggest about the size of a thumb. This is what your baby looks like, she tells clients; this is
about how much it weighs right now. "When we do the ultrasound, we ask the girl how she's feeling," Wilson
explains. "I ask what she would like to put on the picture for her baby book. One girl put ANGEL. Some put
the name they've picked out for the baby." She points to the translucent image on the screen. "One put
LITTLE MIRACLE!!!!"
253
This bright new examining room is as good a place as any to study the anatomy and evolution of attitudes
about abortion. About half of American women will face an unplanned pregnancy, according to the
nonprofit Guttmacher Institute, and at current rates more than one-third will have an abortion by the time
they are 45. Since Roe v. Wade legalized the procedure in 1973, no other issue has so contorted U.S. politics
or confounded values. When does life begin? Who should decide? And is there anything that can be agreed
on to make the hard choices less painful? Much of the antiabortion movement remains focused on changing
laws, tightening restrictions one by one, state by state. But Wood and her team talk of changing hearts. They
are part of a whole other strategy that is more personal and more pastoral, although to some people it's
every bit as controversial.
It's easy to support the goal: helping women facing an unplanned pregnancy. What critics challenge are the
means, the information these centers give, the methods they use and the costs they ignore. Even among pro-
life activists, there's an argument about emphasis: Do you focus on fear and guilt, to make choosing an
abortion harder, or on hope and support, to make "choosing life" easier? Either way, the pregnancy-center
movement takes the fight over abortion deep inside some of the most intimate conversations a woman ever
has.
Crisis pregnancy centers (CPCS, now often called pregnancy resource centers) have been around for a few
decades, but the Bush Administration has made them a centerpiece of compassionate conservatism, a signal
to members of the President's evangelical base that he shares their values. But as a new presidential race
looms, the signals may be shifting, the rancor of the public fight fading. Hillary Clinton has called abortion
"a sad, even tragic choice to many, many women" and talks about improving education and access to birth
control so that abortion becomes a right most women never have to exercise. On the Republican side, Rudy
Giuliani is pro-choice, Mitt Romney used to be, and John McCain's pro-life record doesn't keep social
conservatives from viewing him with some suspicion. Other issues, whether war and peace or gay marriage
and stem cells, may be the prime motivators in this election; and in the meantime, pro-choice Democrats
are back in control of Congress. "The power change in Washington highlights the increasingly strategic role
pregnancy centers play in the pro-life movement," says Kurt Entsminger, president of Care Net, the largest
pregnancy-center network. With abortion-rights advocates now in leadership positions, "pro-life legislative
advances will inevitably be shut down."
The centers are typically Christian charities, often under the umbrella of one of three national groups: Care
Net, Heartbeat International and the U.S. National Institute of Family and Life Advocates. No one can say
precisely how many pregnancy centers there are, since some aren't affiliated with any national group. Care
Net puts the figure at around 2,300, though that does not include traditional maternity homes, adoption
agencies or Catholic Charities. Care Net and Heartbeat International also operate Option Line, a 24/7 call
center based in Columbus, Ohio, that women can contact for information and referral to a CPC near them.
Last year Care Net spent $4 million on marketing, including more than $2 million on billboards alone
(PREGNANT AND SCARED? 1-800-395-HELP. WE'RE HERE 24/7). The Internet has become a tool for
outreach as well. Care Net has got into bidding wars with abortion providers over who would receive top
placement in the sponsored-links sections on Yahoo! and Google when someone searches for abortion.
In the past 10 years, as public funding for family planning has stalled, unplanned pregnancy rates have
jumped 29% among poor women; they are now more than four times as likely to have abortions as richer
ones. Pregnancy centers offer everything from emergency food and formula to strollers and baby clothes to
help with the month's rent. "We're willing to offer $200, $300, $400 on the spot, no strings attached," says
Pat Foley, who runs the Wakota Life Care Center in St. Paul, Minnesota. "No life should end because of
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money." While no one disagrees with that, some do wonder how much help will be available for these
families in the years to come, with school, housing and health care, since according to the Guttmacher
Institute, 3 out of 4 women contemplating abortion cite economic pressure as a reason.
The latest trend is to convert pregnancy centers into health clinics that offer free pregnancy tests,
ultrasounds and testing for sexually transmitted diseases. What they will not offer is referral for birth
control. Married clients wanting information on contraception are referred to their own doctor or pastor.
But, as Wood explains, most clients are unmarried, and "the Bible clearly states that sex outside of marriage
is against God's will for our lives."
That alone is enough to discredit the centers in the eyes of many pro-choice groups, which have always
argued that the best way to prevent abortions is to prevent unwanted pregnancies in the first place. They are
hoping that with the Democrats in control of Congress, legislation like the Prevention First Act will reduce
the need for abortions by promoting comprehensive sex education and expanding access to contraception.
At Planned Parenthood clinics, fewer than 1 in 10 clients is there for an abortion; the vast majority are there
for birth control and reproductive health care (98% of American women have used contraception at some
point in their lives). But because promoting abstinence before marriage is a part of the CPC mission, centers
are eligible for federal abstinence-education grants, which in some cases have instantly doubled or tripled
their budgets. In 2005, roughly 13% of Care Net affiliates got state or federal money; their average budget
was $155,000.
The growth in the movement has raised other alarms with pro-choice groups. They point out that while
counselors at crisis pregnancy centers lay out the physical and psychological risks associated with abortion,
they don't mention that the risk of death in childbirth is 12 times as high and that many women who get
abortions experience only relief. Both sides talk about the importance of complete information and
informed consent, then argue over what that means. Each side challenges the other's motives: pro-life
activists say abortionists are in business for the money and don't care about women; pro-choice advocates
counter that crisis pregnancy centers are in the business for the ideology and don't care about women either.
The movement toward "medicalizing" the centers particularly concerns groups like Planned Parenthood that
define their mission as offering the most accurate information about the most complete range of
reproductive options. The motive behind offering free ultrasounds, which would typically cost at least $100,
is more emotional than medical, critics argue, and having them performed by people with limited training
and moral agendas poses all kinds of hazards. "What is really tragic to me is that a woman goes into a center
looking for information, looking to be able to make a better, healthy choice, and she doesn't get all the facts,"
argues Christopher Hollis, Planned Parenthood's vice president for governmental and political affairs in
North Carolina. "That's taking someone's life and playing a really dangerous game with it."
There's such momentum behind the CPC movement that abortion-rights groups have begun to fight back.
Last summer the U.S. National Abortion Federation published a study on the centers subtitled An Affront to
Choice, which charged them with marketing themselves so that women looking for a full-service health
clinic might mistakenly go to a CPC instead and be "harassed, bullied and given blatantly false information."
It accused centers of focusing on women's needs through the first two trimesters but then abandoning them
once obtaining an abortion becomes much more difficult. Los Angeles Democrat Henry Waxman, now
chairman of the House Committee on Oversight and Government Reform, investigated federally funded
CPCs, using callers posing as pregnant 17-year-olds. The investigators reported that 20 of 23 centers they
reached provided "false or misleading information about the health effects of abortion," inflating the risk of
breast cancer, infertility, depression and suicide.
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The heat of the national battle, however, doesn't capture what is happening on the front lines. In North
Carolina, Abortion Clinics OnLine lists eight abortion providers, but the state has more than 70 pregnancy
centers. NARAL Pro-Choice North Carolina was so concerned about their practices that it recruited
volunteers to call centers and record the information they were given. NARAL reported that in the course of
promoting abstinence, a counselor told an investigator that "all condoms are defective and have slots and
holes in them." Another warned that "9 out of 10 couples that go through an abortion split up."
Wood hears these stories of undercover reconnaissance missions and just shakes her head. "It's about
discrediting our centers," she says flatly, but she welcomes anyone who wants to call hers. Everyone gets the
same information, and she's confident that it's accurate: "They can come after us all they want--it won't
change what we're trying to do." What they're trying to do, she says, is prevent a frightened pregnant woman
from making a rash decision that she may come to regret. You can talk about choice all you like, she argues,
but if a woman feels overwhelmed and all alone and thinks she can somehow "turn back the clock like the
pregnancy never happened," then she doesn't understand what abortion really entails. "We need to counter
the message that abortion won't have any consequences," she says. "That's unrealistic. All decisions have
consequences."
She tells her counselors to tread gently. You don't need to lie or bully, she says--just listen and love: "We
understand completely that this is her decision." The waiting room is not full of baby pictures, she notes,
and the counseling room is no place for political debates. "We don't want a zealot in there," she says. "We
want someone who's going in there with a heart and compassion who'll talk reasonably and present the
options." And, she adds, she would never, ever show graphic pictures or movies like The Silent Scream, the
landmark 1984 video that presents an abortion being performed in which the fetus is portrayed as crying in
pain. The women who come through her door, Wood says, "are traumatized enough already. Why would we
do that? We're trying to be caretakers. I know how I'd respond if somebody did this in-your-face thing to
me. I'd pull back. It's ineffective ... so why do it?"
But pressure can take many forms, and the experience of a NARAL investigator suggests that manipulation
may be in the eye of the beholder. Courtney Barbour, an administrative assistant at the University of North
Carolina at Chapel Hill, arranged to pick up the urine of a pregnant woman on her way to Birthchoice, a CPC
in nearby Raleigh, so she would test positive and see the reaction. Having heard horror stories from friends
in college, she was braced for the worst. "But it really wasn't what I expected," Barbour says. "They acted like
they really did want to help me." While one woman handled the pregnancy test, Barbour spoke to a
counselor who was very sympathetic. "She didn't show me any disgusting movies--though she did show me
these plastic models of the fetus at each stage of development--and told me that it has a heartbeat
immediately, which I knew medically was not true." The counselor asked about her resources, her family
and her intentions. "She didn't actually prod me in any particular direction," Barbour says. "She was just
listening to me, nodding her head. She wanted to know if my family was religious, and I told her, well, I
don't go to church, but my grandfather was a Methodist minister. She didn't act really judgmental or
anything. She did say, 'Well, I bet that your grandfather really would like you to have this baby.'"
Eventually the woman who had done the test reappeared, holding a pair of soft blue, hand-knit baby
booties. "Congratulations!" she said. "You're a mother."
How you classify that encounter says a lot about your politics: one person's loving support is another's
emotional pressure. "They talk about the joys of childbirth, which can certainly be a joy," says Melissa Reed,
executive director of NARAL's North Carolina chapter, "but they can make a woman feel very intimidated
about making any other choice in her life." Wood insists that at her center counselors are trained not to
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push. "We don't hand out baby booties to everyone with a positive pregnancy test," she says. "We don't do
emotional blackmail." And her center at least continues to provide support through the first year of a baby's
life. But Wood's priority has been to move away from general maternal help and focus on "abortion
vulnerable" women, which is to say, any woman facing an unplanned pregnancy who might entertain
abortion as an option.
The ultrasound machine arrived at the Asheville center last summer, thanks to funding from Focus on the
Family's Option Ultrasound initiative ("Revealing Life, to Save Life"). Nurse Wilson and her colleague
Denise Bagby had two weeks of intensive training in "limited obstetrical ultrasound," practicing on pregnant
women recruited from local doctors' offices and churches and by word of mouth. They learned how to
confirm and date a pregnancy and measure a fetus--but not how to diagnose fetal abnormality. Two medical
directors sign off on every report. "We're not giving medical care," Wood insists, although she stresses the
value of early ultrasound in helping persuade women to quit smoking, eat better, get prenatal care and come
to grips with what is happening inside their bodies. "I can't tell you how many women we see who have had
an abortion in the past who all say the same thing," Wood says. "'If only someone had told me. If only I had
someone to talk to.'"
And now the conversation gets more complicated, as information and ideology conjoin. If a woman is
"abortion minded," Wilson says, "then we go over the medical risks--and there's research for this, even
though the other side says there's not." She ticks off grim possibilities with fervor: "The research is that
breast cancer is more prevalent. You have the rupture of the uterus. Infection is major. The risk of ectopic
pregnancy is greater later on." It is this discussion of risk that most enrages defenders of abortion rights,
especially doctors who routinely see terrified women who come in for an abortion after hearing such
warnings and ask over and over, "Am I going to die?"
Despite restricted access, abortion remains one of the most common surgical procedures in the U.S. for
women and, according to the Guttmacher Institute, fewer than 0.3% of patients experience a complication
serious enough to require hospitalization. First-trimester abortions in particular are considered extremely
safe. After years of debate about breast cancer and abortion, the U.S. National Cancer Institute in February
2003 gathered the world's leading experts to review the data and assess the risk. They stated that their
conclusion that "induced abortion is not associated with an increase in breast cancer risk"was "well
established," the institute's highest rating for research findings.
But none of that convinces Wilson. "It's a money issue," she says of the studies rejecting a breast-cancer risk.
"The abortion people have a lot of money. If there's a study, I want to know who's sponsoring it because nine
times out of 10, it's skewed to the money." It's hard to imagine what it would take--certainly not a ruling
from the U.S. National Cancer Institute--to change her mind.
Locals describe Asheville as "half Christian, half New Age," a town where Baptists preach about Jesus'
saving grace while mystics talk about the vortex entrance panels tucked in the mountains. There are a great
many churches and Presbyterian summer camps here in Billy Graham's backyard, but there is also a lively
population of retirees and artists and entrepreneurs opening craft shops and microbreweries. It thinks of
itself as a tolerant town--to the point that the only facility in all of western North Carolina that publicly
offers abortions is the city's Femcare clinic. It has a fence around it, cameras, alarms and a security guard
because it was bombed in 1999 and had its windows shot out in 2003. "It really tested me," says Lorrie, the
clinic's sole abortion provider, who, given past threats, prefers that her full name not be used. "If I didn't
continue, the place would close. No one wants to go into abortion providing. But it's so important. I know
that I'm providing a service to women that no one else will."
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Certainly not a crisis pregnancy center, she adds, and her voice takes on a tighter edge. Two days ago, she
had a woman come into the clinic who was a wreck. She had seen an ad for a women's health center in
Charlotte, which is two hours away, and called saying she wanted an abortion. "They said sure, we can help
you," Lorrie says. "They told her she could even come in after hours so she wouldn't miss a day at work. She
drove all the way to Charlotte." But when she got there, she realized her mistake. "They showed her pictures
of aborted fetuses," Lorrie goes on. "She was a basket case when she got here. They had told her that if she
had an abortion, she'd probably never be able to have a child." Now Lorrie is plainly furious. "These
[pregnant] women are scared out of their minds," she says. "It doesn't change their minds--it just scares
them. It's cruel and un-Christian to lie to patients."
Abortion providers, of course, have been accused of coercion as well, but Lorrie says the last thing she wants
to do is perform an abortion on a woman who is confused or ambivalent or being pressured by her parents
or boyfriend. If Lorrie senses second thoughts, even at the last minute, she says she refuses to proceed. "This
happens at least once a month," Lorrie says. "I don't care if her parents are in the waiting room. It's her
decision." In those cases, she points patients to public and private groups that can help with financial, social
or emotional support in carrying the pregnancy to term. And she's constantly working to put herself out of
business, counseling women about birth control and directing them to a new state program to help pay for
it.
Yet Lorrie's primary job makes her a target. The pregnancy-center movement may promote "loving
support," but there are still other activists fighting a holy war. She had to call in a fire-department haz-mat
team after an envelope arrived claiming to contain anthrax. Her neighbors were sent a newsletter with her
picture: "It said, 'This woman is a killer and she lives in your neighborhood,'" Lorrie recalls. Her nurse-
midwife Bonnie Frontino discovered her picture on what looked like WANTED posters all around her
neighborhood; sheriffs began patrolling the area of her house. "I was really angry, but I was scared also,"
Frontino says. "You never know who's going to see this and think it's their moral duty to kill us."
That was in the fall of 2002, and given the climate, it's hard to imagine the two sides of the abortion war
having anything to say to each other. But Lorrie needed to do something and ended up calling Jeff
Hutchinson, senior pastor of Trinity Presbyterian, a theologically conservative church that she knew the
lead protester attended. "I said, 'I don't think you know what this member of your congregation is doing, but
it's not Christian.'" Hutchinson and some church members agreed to meet Lorrie and her clinic colleagues at
the Blue Moon café to have a conversation they thought might happen "only once in a blue moon."
"I thought they might be really defensive or judgmental," Frontino recalls. "The first word out of their
mouths was to ask our forgiveness that they hadn't dealt with this sooner. I think we were all surprised."
Five years have passed since that initial summit meeting, and against all odds, they are now good friends.
The protester has left Hutchinson's church, but no one wanted to stop meeting, because they had found a
larger mission. Now they are out to show how people who disagree violently can debate civilly, even
lovingly, and find some common ground. They know they won't change one another's core beliefs, but that
doesn't mean they haven't changed.
Friends or not, it took a year to come up with a common-ground statement of goals: to decrease abortions,
relieve the social and economic conditions that lead women to consider abortion, make adoption easier,
condemn violence and keep talking. "One of the principles is the importance of factual information," says
Lynn von Unwerth, a nurse at Asheville Planned Parenthood who has been attending the meetings from the
start. And then she pauses: "That's something we're still wrestling with."
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Hutchinson has wrestled with it himself, as a spiritual matter. "I never would have said that the ends justify
the means," he says. "But I know that was in my heart--if lying helps save a baby's life, that glorifies God."
He has read some pregnancy-center brochures that he suspects are maybe shading the truth in the name of
a larger good. "This whole process has reminded me that Jesus is not a Machiavellian," he says. "It really
helps me trust the sovereignty of God. He's in control of who lives and dies. My effort is to serve folks, and
the means I use matter. I have to glorify Jesus. The results are in God's hands."
Since Hutchinson's church sponsors the Asheville pregnancy center and the former director goes to Blue
Moon meetings, Planned Parenthood's Von Unwerth brought in examples of its literature and argued that
some of it was misleading and out of date. She points to one brochure that is still in use called "You're
Considering an Abortion: What Can Happen to You?" It warns, "Your next baby will be twice as likely to die
in the first few months of life" and "After an abortion you may become sterile." The citations throughout are
to journal articles dating back to 1967, with none from the past 20 years. Since that discussion, Wood took
over the Asheville center and Hutchinson hopes the topic will be revisited. Wood says she would be glad to
meet with the group; she has created a new brochure, but would be prepared to discuss the ones she
inherited and still uses. "It's been a real education about the scientific facts and data and who are reliable
sources," Hutchinson says. "That gets to the heart of the divide. If we as a society can't agree on who is the
gold-standard source of medical information, that just reveals we've really got problems."
But he thinks Asheville's experiment in détente could be a model for any community to follow. He knows
there will always be people who think it is wrong even to talk with people they disagree with. The hard-core
"Culture-War Christians," he says, "have no interest in finding common ground. Their constituencies don't
like it; they won't send in any more money." But that doesn't mean the conversation about all these issues of
mind and heart and body are fated to be reduced to a fund-raising tool or political weapon. "The good news
is that the Culture-War Christian can actually change because God is alive and can change the heart,"
Hutchinson says. "I know it. Because I was a Culture-War Christian once myself."
Once you've come to know your adversaries personally, once the cartoon villains are brushed away, the
conversation becomes more complicated--and more useful. "When we talk, we really have to examine our
own beliefs and why we do what we do," Lorrie says. "Abortion is a reality. For me, I feel it can be a
lifesaving choice for a woman. But decreasing abortion is a goal we all strive for." As for Hutchinson, "I still
keep the 'choice' of abortion off the menu. But I hadn't thought through how difficult a choice it is. I'd been
pretty simplistic. I just think a lot more about the pregnant woman herself now than I had before." On issues
of such weight, making the questions harder for people is the first step toward finding some answers.
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PROVIDAFAMÍLIA
[Arquivos] - [Aborto] - [Campanha contra a vida e a família]
providafamilia.org
A revista VEJA em suas últimas edições vem sistematicamente publicando matéria favorável
ao aborto, à esterilização e ao controle de população.
Numa das últimas reportagens traz a declaração pública de mulheres que confessaram ter
praticado o crime do aborto, assassinando seus próprios filhos. Em um debate na Câmara o
advogado Dr. José Carlos Graça Wagner, informou aos presentes que iniciou um processo
criminal contra as que confessaram o crime e um outro processo contra a VEJA pela incitação
ao crime. Cartas enviadas para a seção dos leitores da revista protestando contra essa
campanha não são publicadas.
Tendo em vista esses fatos, vários líderes pró-vida têm cancelado a assinatura de VEJA. Essa
é, sem dúvida, uma maneira dos leitores protestarem contra a orientação da revista. Se você é
defensor da vida e dos valores cristãos da família e é assinante de VEJA faça o mesmo. Não
podemos continuar a prestigiar uma revista que defende o aborto.
O exemplo da Califórnia
"Não vejo nada de escandaloso em chutar um político antes que ele possa
começar a governar. O resto do mundo deveria imitar os californianos. Se o
mandato dos governantes durasse apenas um ano, todos sairíamos ganhando"
Como eu já disse, estou em Boston. Boston é igual à Barra da Tijuca. Assim como a
Barra da Tijuca tem uma réplica da Estátua da Liberdade, Boston tem réplicas de
catedrais góticas, castelos escoceses, fortalezas normandas e mansões vitorianas. Boston
tem até uma réplica de um palácio veneziano. Foi construída em 1903, com peças
contrabandeadas diretamente de Veneza. A República Veneziana foi uma das mais bem-
sucedidas democracias da história. Lá os senadores cumpriam mandato de apenas um
ano. É a solução para todos os problemas da humanidade: impedir os políticos de
governar.
261
ANEXO 33
Capa da revista TIME (ed. norte-americana) de 22 de março de 2004. Disponível em:
http://www.time.com/time/covers/0,16641,20040322,00. html. Acesso em: 17 set. 2007.
262
Edmund Hillary morreu em 11 de janeiro. No mesmo dia, meu filho deu 359 passos. Escalar o Monte
Everest, como fez Edmund Hillary, pode parecer um feito um tantinho mais notável do que dar 359
passos, como fez meu filho. Mas, para quem tem uma paralisia cerebral como a dele, dar 359 passos
seguidos, sem ajuda, sem cair, sem espatifar os dentes, é um evento épico, pelo menos na mitografia
familiar. Se meu filho é Edmund Hillary, eu só posso ser seu sherpa, Tenzing Norgay. Ele cambaleia
de um lado para o outro, com sua marcha incerta, progredindo lentamente de metro em metro, eu me
mantenho na retaguarda, indicando-lhe o caminho menos acidentado e salvando-o das quedas.
Os 359 passos de meu filho foram dados em Veneza. Já estamos planejando nossos próximos desafios.
Em primeiro lugar, daremos 359 passos no Corcovado. Depois disso, 359 passos na Muralha da China.
Depois disso, 359 passos no Deserto do Saara. Depois disso, 359 passos na Acrópole. Depois disso,
359 passos no Monte Everest. Meu filho e eu daremos a volta ao mundo a pé, de 359 passos em 359
passos.
Sou um pai dedicado. O único aspecto frustrante de ser um pai dedicado é que agora todos os pais
parecem ser igualmente dedicados. Time publicou uma reportagem sobre o assunto. Ela mostra como
os pais passaram a se sujeitar cada vez mais às necessidades dos filhos, desempenhando uma série de
tarefas maternais. De acordo com a reportagem, nós, pais dedicados, formamos uma nova categoria
social. Mais do que isso: pertencemos a uma nova espécie. Até nosso nível de testosterona é inferior
ao dos outros pais. Sou um sherpa hermafrodita.
Montaigne também era um pai dedicado. Num de seus ensaios, ele discorreu sobre o afeto paterno,
ostentando sua filha Léonor, assim como eu ostentei meu filho Edmund Hillary e Tom Cruise ostentou
sua filha Suri. Léonor foi a Suri do Renascimento. Em outro ensaio, Montaigne argumentou que
filosofar é aprender a morrer. Depois de uma longa temporada de férias com meus filhos, estou
perfeitamente preparado para a morte. Além de ser emasculado por meus filhos, fui subjugado por
eles. Deixei de existir. Perdi a vontade própria. Desencarnei. Se filosofar é aprender a morrer, a
paternidade é a filosofia do homem comum, a filosofia dos pobres de espírito, a filosofia das massas. É
a única filosofia ao alcance de gente como Tom Cruise e eu.
No penúltimo dia de férias em Veneza, fomos a uma mostra fotográfica sobre a Aktion T4, o programa
secreto de extermínio de deficientes físicos e mentais na Alemanha nazista. Entre 1940 e 1941, 70.273
deficientes foram mortos, muitos dos quais crianças. Quando a SS assumiu o controle do programa,
seu nome mudou para Aktion 14F13. Até o fim da guerra, outros 200.000 deficientes foram mortos
nas câmaras de gás dos campos de concentração. O Edmund Hillary da paralisia cerebral e seu sherpa
hermafrodita ganharam uma nova meta: 359 passos em Buchenwald.
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