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Universidade de Franca - UNIFRAN

Mestrado em Lingüística

INTERDISCURSIVIDADE E POSICIONAMENTO LIBERAL:


A construção midiática do discurso pró-aborto.

Gilberto José de Nazaré

Dissertação apresentada à Universidade de


Franca, como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre em Lingüística.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Silvia Olivi


Louzada.

FRANCA
2008
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II
III

DEDICO este trabalho ao professor Dominique Maingueneau, cujas


proposições despertaram em mim um profundo interesse pela Análise
do Discurso.
IV

AGRADECIMENTOS

À professora Dra. Maria Silvia Olivi Louzada, por sua paciente e dedicada
orientação.

À professora Maria Flávia de Figueiredo Pereira Bollela, que me acompanha


desde a pós-graduação, e a quem muito devo pelo incentivo para continuar meus
estudos.

Ao professor Sírio Possenti, pela sua generosidade em aceitar participar da


banca que avaliou nosso trabalho.

À minha família: Solange, Maria e Tiago, pela compreensão diante das horas
gastas neste trabalho.

À Ana Maria Martinez de Oliveira, secretária de pós-graduação.

Aos meus colegas de percurso.

À Universidade de Franca.
V

RESUMO

NAZARÉ, Gilberto José de. Interdiscursividade e posicionamento liberal: a construção


midiática do discurso pró-aborto. 2008. 271 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) –
Universidade de Franca, Franca-SP.

Este trabalho buscou refletir sobre o processo de construção e enfrentamento dos discursos
pró-aborto/pró-vida a partir dos conceitos que o lingüista francês Dominique Maingueneau
expôs em “genèses du discours” (1984), especialmente os referentes ao primado do
interdiscurso, que mostram como discursos que se encontram em concorrência – como os
discursos pró-aborto e pró-vida de nossa pesquisa – não se constituem de forma independente
para serem em seguida colocados em relação, mas estruturam suas identidades a partir de uma
formação regulada dentro de um campo discursivo. Outros conceitos, tais como identidade,
cenografia e discursos constituintes também foram discutidos neste trabalho e constituíram o
embasamento teórico que nos permitiu trabalhar um corpus que, partindo dos exemplares da
revista Veja editados entre junho de 1997 e junho de 2007 – dos quais selecionamos todas as
matérias concernentes ao tema “aborto” – se estendeu a um amplo conjunto de matérias
veiculadas no mass media mundial e aos sites de grandes entidades governamentais e de
organizações não governamentais mundialmente conhecidas. Procuramos trabalhar diversos
pontos de emergência desse tema, tendo como resultado um material amplo que, acreditamos,
espelha as diversas tendências discursivas sobre a temática do aborto, que é objeto deste
estudo.

Palavras-chave: análise do discurso, interdiscurso, mídia, aborto.


VI

РЕЗЮМЕ

В этой работе была сделана попытка рассмотреть процесс возникновения и


противостояния суждений между сторонниками абортов и сторонниками жизни,
основываясь на понятиях, описанных французским лингвистом Домиником Мэнгено в
труде "Происхождение суждений" ("genèses du discours", Dominique Maingueneau,
1984), в особенности, относящихся к приоритетности взаимодискуссий, которые
показывают как противоборствующие суждения, подобные ведущимся между
сторонниками абортов и сторонниками жизни, и являющиеся объектами настоящего
исследования, не возникают независимым друг от друга образом, чтобы впоследствии
стать зависимыми, но формируют свою идентичность согласно канонам обсуждаемой
области. Другие понятия, такие как идентичность, сценография и основополагающие
суждения также были рассмотрены в этой работе и составили теоретическое основание,
которое дало возможность обсуждения сути (corpus) этой темы, начинающееся с
номеров журнала Вежа (Veja), изданных в период с июня 1997 по июнь 2007, из
которых были отобраны статьи, касающиеся темы абортов и охватило обширное
количество материалов, опубликованных в мировых средствах массовой информации и
на сайтах крупных правительственных учереждений и всемирноизвестных
неправительственных организаций. Мы постарались проработать различные
критические моменты этой темы, получив в результате обширный материал, который,
как нам хотелось бы верить, отражает разнообразные тенденции в обсуждениях на тему
абортов, которая являлась предметом изучения.

Ключевые слова: анализ обсуждения, взаимодискуссия, СМИ, аборт.


VII

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................................... 01

1 A ESCOLA FRANCESA DE ANÁLISE DO DISCURSO E AS PROPOSIÇÕES


DE DOMINIQUE MAINGUENEAU .................................................................................................................. 05

1.1 A ORIGEM E AS TRÊS ÉPOCAS DA ESCOLA FRANCESA DE ANÁLISE DO


DISCURSO ................................................................................................................................................................................. 06

1.2 AS CONCEPÇÕES DE MAINGUENEAU EM “GÊNESE DOS DISCURSOS” .... 09

1.2.1 O primado do interdiscurso .................................................................................................................................. 09

1.2.2 Competência discursiva .......................................................................................................................................... 11

1.2.3 Semântica global .......................................................................................................................................................... 14

1.2.4 A polêmica como interincompreensão ......................................................................................................... 15

1.2.5 Do discurso à prática discursiva ....................................................................................................................... 16

1.2.6 Uma prática intersemiótica ................................................................................................................................... 19

1.2.7 Um esquema de correspondência..................................................................................................................... 20

2 O PERCURSO HISTÓRICO DA POLÊMICA SOBRE O ABORTO ......................... 22

2.1 OS POSICIONAMENTOS SOCIOPOLÍTICOS E O ABORTO ........................................... 22

2.2 A INSCRIÇÃO DA POLÊMICA SOBRE O ABORTO NA HISTÓRIA ....................... 26


VIII

2.3 A POLÊMICA SOBRE O ABORTO NOS ESTADOS UNIDOS ......................................... 32

2.4 ROE VERSUS WADE ............................................................................................................................................. 33

2.5 NORMA McCORVEY .......................................................................................................................................... 34

2.6 A POSIÇÃO DA IGREJA CATÓLICA .................................................................................................... 35

2.7 A PRÁTICA DO ABORTO ............................................................................................................................... 36

2.8 PARTIAL BIRTH ABORTION............................................................................................................................ 37

3 A CONSTITUIÇÃO DO DISCURSO DO MOVIMENTO PRO-LIFE .................... 41

4 A INTERSEMIÓTICA E O EMBATE PRO-LIFE/PRO-CHOICE ............................. 64

5 O DISCURSO PRÓ-ABORTO NA REVISTA VEJA .............................................................. 86

5.1 NÓS FIZEMOS ABORTO – A REPORTAGEM .............................................................................. 87

6 OS ARTICULISTAS DE VEJA E O DISCURSO PRÓ-ABORTO ............................. 106

6.1 A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE SI NA MÍDIA .................................................................. 106

6.2 OS ARTIGOS DE ANDRÉ PETRY, O MAIS RADICAL COLUNISTA PRÓ-


ABORTO DE VEJA .............................................................................................................................................................. 118

6.3 A IRONIA CÁUSTICA DOS ARTIGOS DE DIOGO MAINARDI .................................. 139

7 O POSICIONAMENTO PRÓ-ABORTO NAS REPORTAGENS DE VEJA ..... 159

8 A HISTÓRIA E O FUTURO DA POLÊMICA PRO-CHOICE/PRO-LIFE ......... 171

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................................ 187


IX

10 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................................................... 189

11 ANEXOS ......................................................................................................................................................................... 191


1

INTRODUÇÃO

Este trabalho objetiva refletir sobre o processo interdiscursivo de construção


dos discursos pró-aborto/pró-vida1, a partir de um enfrentamento entre os posicionamentos
liberal e conservador dentro da perspectiva sócio-histórica de uma sociedade dominada por
poderosos suportes midiáticos.

Para tanto selecionamos um corpus que, partindo dos exemplares da revista


Veja editados entre junho de 1997 e junho de 2007 – dos quais selecionamos todas as matérias
concernentes ao tema “aborto” – se estendeu a um amplo conjunto de matérias veiculadas no
mass media mundial, entre as quais destacamos: a revista norte-americana TIME, o jornal
inglês Daily Mail, a TV norte-americana EWTN etc. Além disso, efetuamos pesquisas junto
aos sites de grandes entidades governamentais como a Organização Mundial da Saúde, o
Ministério da Saúde do Brasil e a Suprema Corte dos Estados Unidos. Também buscamos
informações junto a organizações não governamentais mundialmente conhecidas: IPPF,
NARAL, naf etc. Particularmente interessante foi nossa navegação por um conjunto de 240
sites de clínicas de aborto nos Estados Unidos, Canadá e Europa. Também utilizamos
materiais publicados em livros e outros papéis, como os documentos oficiais da Igreja
Católica. Em resumo, procuramos trabalhar diversos pontos de emergência do discurso sobre
o aborto, tendo como resultado um material amplo que, acreditamos, espelha as diversas
tendências discursivas sobre a temática que nos propomos analisar.

Como embasamento teórico para a análise desse corpus escolhemos, a partir


das teorias da Escola Francesa de Análise de Discurso, os conceitos que o lingüista francês
Dominique Maingueneau, professor de Ciências da Linguagem da Universidade de Paris 12,
expôs em “Gênese dos discursos” (2005), especialmente os referentes ao primado do
interdiscurso, que mostram como discursos que se encontram em concorrência – como os
discursos pró-aborto e pró-vida de nossa pesquisa – não se constituem de forma independente

1
Internacionalmente conhecidos como pro-choice e pro-life. O termo pró-escolha, tradução literal de pro-choice,
parece não ter se firmado no Brasil, por isso usaremos pro-choice/pro-life ou pró-aborto/pró-vida.
2

para serem em seguida colocados em relação, mas estruturam suas identidades a partir de uma
formação regulada dentro de um campo discursivo.

Além do primado do interdiscurso, outros conceitos expostos em “Gênese dos


discursos” também foram usados: formação discursiva, competência discursiva, semântica
global – que busca integrar os diversos planos do discurso –, polêmica e interincompreensão,
prática discursiva – que compreende instituições e ethos –, abordagem intersemiótica – que
estende a análise do discurso além dos limites da produção lingüística – e, finalmente, a
relação da prática discursiva com o ambiente sócio-histórico.

Também utilizamos outros conceitos como, identidade, cenografia, discursos


constituintes, paratopia, particitação e hiperenunciador. Esses conceitos estão expostos
principalmente em dois livros: “Cenas da enunciação” (2006a) e “Discurso literário” (2006b),
e que, juntamente com “Gênese dos discursos”, constituem os principais suportes teóricos de
nossa análise.

Discutimos o tema, extremamente polêmico, considerando o confronto entre os


posicionamentos pró-aborto e pró-vida, a partir de uma perspectiva que começa nas matérias
publicadas pela revista Veja e se estende além das fronteiras nacionais, especialmente para a
América do Norte, lugar onde o confronto é mais intenso e de onde são importados os
discursos e práticas, referentes a essa problemática, usados no Brasil. Também procuramos
manter nossos textos atualizados pela incorporação de informações relevantes que surgiram
durante o processo de desenvolvimento desta dissertação, conferindo assim a este trabalho um
caráter de relevância e atualidade.

Nossa proposta de trabalho está desenvolvida em uma dissertação que


compreende oito capítulos:

No primeiro capítulo – A escola francesa de análise do discurso e as


proposições de Dominique Maingueneau – expomos o embasamento teórico e as ferramentas
que utilizamos para a análise do nosso corpus.

No segundo capítulo – O percurso histórico da polêmica sobre o aborto –


procuramos recuperar a memória dos acontecimentos e os discursos que sustentaram essa
prática ao longo da história, de forma a “... interpretar o estatuto histórico dos discursos”
(MAINGUENEAU, 2005, p. 18).

No terceiro capítulo – A constituição do discurso do movimento pro-life –


abordamos a constituição da formação discursiva pró-vida e sua relação com o discurso pró-
3

aborto. Aqui temos a oportunidade de utilizar uma nova abordagem, onde a interação
semântica entre os discursos não é mais um processo de interincompreensão regrada, de
tradução do Outro nas categorias do Mesmo, sob a forma de simulacros, mas sim “uma
análise da ‘constituência’2 dos discursos constituintes [...], mostrar o vínculo inextricável
entre o intradiscursivo e o extradiscursivo, a imbricação entre uma organização textual e uma
atividade enunciativa” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 62). Essa atividade enunciativa “se
instaura como dispositivo de legitimação de seu próprio espaço, incluindo seu aspecto
institucional; ela articula o engendramento de um texto e uma maneira de inscrever-se
num universo social” (ibid., grifo nosso). Entre outros, utilizaremos os conceitos de
discursos constituintes, paratopia, particitação e hiperenunciador.

No quarto capítulo – A intersemiótica e o embate pro-life/pro-choice – vemos a


aplicação dessa interessante perspectiva abordada em “Gênese dos discursos”, por meio da
qual a semântica do discurso se estende para além dos domínios lingüísticos. De um modo
especial trabalhamos o uso das imagens como forma de construção do discurso.

No quinto capítulo – O discurso pró-aborto na revista Veja – trabalhamos a


reportagem “NÓS FIZEMOS ABORTO – O depoimento das mulheres e a polêmica no
Brasil”, publicada na edição de 17 de setembro de 1997, a mais extensa e profunda publicada
por Veja sobre o tema.

No sexto capítulo – Os articulistas de Veja e o discurso pró-aborto –


analisamos as matérias escritas pelos principais articulistas de Veja sobre o tema “aborto”.
Aqui também temos a oportunidade de estudar com mais profundidade alguns dos tópicos
expostos por Maingueneau, especialmente o conceito de ethos.

No sétimo capítulo – O posicionamento pró-aborto nas reportagens de Veja –,


voltamos nossa atenção para aquilo que pode ser considerado como “reportagens comuns”,
aqui entendidas como as matérias que não se enquadram na categoria de grandes reportagens
– como as matérias de capa – nem como artigos – cujo conteúdo repousa sobre as percepções
pessoais de seus autores. Para tanto selecionamos uma reportagem que nos pareceu
representar bem esse gênero.

No oitavo capítulo – O futuro dos discursos pro-choice/pro-life – buscamos


estender nosso percurso e investigar como os posicionamentos pro-choice e pro-life se

2
Termo usado no sentido de auto-instauração, autofundação, conforme a nota do tradutor em MAINGUENEAU
(2006b, p. 62).
4

inscrevem historicamente, procurando “definir uma relação interessante entre (o discurso) e


sua conjuntura histórica” (MAINGUENEAU, 2005, p. 173), buscando definir alguns
possíveis caminhos para essas formações discursivas enquanto práticas sociais e históricas.

Sabemos que, talvez, nossas análises possam parecer excessivamente críticas,


por isso gostaríamos de citar uma proposição de Charaudeau que nos parece muito adequada a
este momento:

Um trabalho científico não tem por vocação pôr em julgamento as instâncias


responsáveis pelas organizações sociais. Entretanto, cabe destacar as
contradições de certas práticas e as transgressões a regras que, se fossem
acatadas, contribuiriam para um melhor convívio social (Charaudeau, 2006, p.
46, grifo nosso).

Esperamos que este trabalho possa ajudar a clarificar alguns aspectos da


polêmica do aborto e também sinalizar caminhos de utilização dos conceitos expostos por
Maingueneau na análise crítica das produções midiáticas contemporâneas.
5

1 A ESCOLA FRANCESA DE ANÁLISE DO DISCURSO E AS PROPOSIÇÕES DE


DOMINIQUE MAINGUENEAU

Para analisarmos nosso corpus, escolhemos como embasamento teórico, a


partir das teorias da Escola Francesa de Análise de Discurso, os conceitos que o lingüista
francês Dominique Maingueneau, professor de Ciências da Linguagem da Universidade de
Paris 12 Val-de-Marne3, expôs em “Gênese dos discursos” (2005). Ora, sabemos da existência
de diversas polêmicas quanto ao pertencimento ou não de determinados conceitos e teorias a
essa escola, como nos mostra Roberto Leiser Baronas em seu artigo “Efeito de sentido de
pertencimento à análise de discurso.”4:

Quando lemos diversos trabalhos e/ou resumos atuais que procuram pertencer a
Análise de Discurso de orientação francesa, publicados nos mais diversos anais e/ou
cadernos de resumos tanto de eventos nacionais quanto de eventos internacionais, é
possível constatar a recorrência do enunciado ou de suas paráfrases: este trabalho se
fundamenta na análise do discurso francesa a partir das idéias de Bakhtin, Pêcheux e
Foucault. Numa leitura acurada dos trabalhos, no entanto, é possível constatar a
presença de conceitos que pertencem desde a Retórica Aristotélica até conceitos
advindos da Análise da Conversação, conceitos esses forjados em bases epistêmicas,
bastante divergentes daquelas da Análise de Discurso francesa (BARONAS, 2005,
p. 4).

Acreditamos que esse questionamento – em si mesmo dos mais ricos e


instigantes – ultrapassa os objetivos deste trabalho, por isso nos limitaremos a uma breve
exposição sobre a origem da Escola Francesa de Análise do Discurso, seguida de algumas
referências ao conceito de formação discursiva e logo em seguida entraremos diretamente nos
conceitos que Dominique Maingueneau apresenta em “Gênese dos discursos”, que juntamente
com aqueles presentes em “Cenas da Enunciação” (2006a) e “Discurso Literário” (2006b),
formam o conjunto de proposições com as quais pretendemos analisar nosso corpus.

3
A França é dividida em 100 departamentos. Val-de-Marne é um desses departamentos.
4
Artigo disponível em: <http://www.discurso.ufrgs.br/sead2/doc/sentido/Roberto.pdf.>. Acesso em 02 de out. de
2007.
6

1.1 A ORIGEM E AS TRÊS ÉPOCAS DA ESCOLA FRANCESA DE ANÁLISE DO


DISCURSO

A origem5 da Escola Francesa de Análise do Discurso remonta aos anos 60 na


França:

O rótulo “Escola Francesa” permite designar a corrente da análise do discurso


dominante na França nos anos 60 e 70. Surgido na metade dos anos 60, esse
conjunto de pesquisas foi consagrado em 1969 com a publicação do número 13 da
revista Langages, intitulado “A Análise do discurso” e com o livro Análise
automática do discurso de Pêcheux (1938-1983), autor mais representativo dessa
corrente. Essa problemática não permaneceu restrita ao quadro francês; ela emigrou
para outros países, sobretudo para os francófonos e para os de língua latina. O
núcleo dessas pesquisas foi o estudo do discurso político conduzido por lingüistas e
historiadores com uma metodologia que associava a lingüística estrutural a uma
“teoria da ideologia”, simultaneamente inspirada na leitura da obra de Marx pelo
filósofo Louis Althusser e na psicanálise de Lacan (CHARAUDEAU &
MAINGUENEAU, 2006, p. 202).

A Análise do Discurso é dividida em três épocas:

(1) AD-1 (1966-1975) – As duas obras marcantes desse período são “Análise Automática do
Discurso”, publicada em 1969, e Les Vérités de la Palice, lançada em 1975 (aqui no Brasil
este livro foi publicado com o título “Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do
óbvio”). Aqui temos o conceito de máquina discursiva, fechada sobre si mesma, onde o
conceito de heterogeneidade não é considerado. Nessa fase são trabalhados os grandes
discursos, como os discursos políticos, produzidos a partir do interior de lugares sociais
mais estáveis e, portanto mais homogêneos. Os procedimentos de análise da AD-1 são
descritos de maneira bastante clara por Mussalim (2004):

5
Estas são, na verdade, apenas algumas referências cronológicas sobre a Escola Francesa de Análise do
Discurso. Um estudo abrangente sobre suas origens deveria, entre outras coisas, remontar às condições históricas
que permitiram a emergência de suas bases e da própria Análise do Discurso. Por exemplo: o papel do
romantismo alemão na formação do conceito de inconsciente na teoria freudiana (a imagem – tantas vezes
mostrada – de Freud caminhando pelos asilos e, apenas a partir de observações sobre a condição histérica,
intuindo a presença de componentes inconscientes constituintes da personalidade humana, exclui o papel
fundamental do já citado romantismo na constituição das teorias da Psicanálise). Infelizmente tal estudo
extrapolaria totalmente as dimensões deste trabalho.
7

a) Primeiramente se seleciona um corpus fechado de seqüências discursivas (um


manifesto político, por exemplo);

b) Em seguida faz-se a análise lingüística de cada seqüência, considerando as


construções sintáticas (de que maneira são estabelecidas as relações entre os
enunciados) e o léxico (levantamento do vocabulário);

c) Passa-se depois à análise discursiva, que consiste basicamente em construir sítios


de identidades a partir da percepção da relação de sinonímia (substituição de uma
palavra por outra no contexto) e de paráfrase (seqüências substituíveis entre si no
contexto);

d) Por fim, procura-se mostrar que tais relações de sinonímia e de paráfrase são
decorrentes de uma mesma estrutura geradora do processo discursivo.

Para o trabalho que estamos realizando, que contrapõe os discursos pró-vida e


pró-aborto em uma relação fundamentalmente não estabilizada e heterogênea, os
procedimentos da AD-1 obviamente não são os mais adequados.

(2) AD-2 (1976-1979) – Nesta fase a visão de uma máquina discursiva estrutural, homogênea
e fechada em si mesma começa a ser abandonada. É aqui que aparece o conceito de
formação discursiva (FD). Esse conceito encontra sua origem no livro “A Arqueologia do
Saber” de Michel Foucault, onde ele é construído passo a passo:

Finalmente, o que se chama “prática discursiva” pode ser agora precisado. Não
podemos confundi-la com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula
uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser
acionada em um sistema de inferência; nem com a “competência” de um sujeito
falante, quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas,
sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e
para um determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições
de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 1987, p. 136).

Pêcheux (1988, p. 160) faz uma apropriação do conceito de formação


discursiva dentro de uma perspectiva marxista:

Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica


dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo
estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a
8

forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um


programa etc.).
Isso equivale a afirmar que as palavras, expressões, proposições etc., recebem seu
sentido da formação discursiva na qual são produzidas...

Atualmente o conceito de formação discursiva tem sido colocado em questão,


como mostra Maingueneau em entrevista concedida à Revista Virtual de Estudos da
Linguagem - ReVEL:

ReVEL - A Análise do Discurso se desenvolveu no Brasil com forte dependência do


conceito de “Formação Discursiva”. Ainda é possível fazer da Formação Discursiva
o conceito-chave da Análise do Discurso?
Maingueneau - Eu já falei sobre este assunto diversas vezes. Eu acredito que essa
noção rendeu bons serviços no começo da AD. Mas ela é muito imprecisa, como
mostra o fato de que ela foi empregada tanto por Michel Pêcheux como por Michel
Foucault, e com sentidos bastante diferentes. Nem mesmo se tem certeza de que ela
tenha tido um significado claro nesses dois autores. Hoje, para trabalhar em AD, me
parece que se tem interesse em trabalhar com noções mais precisas. Eu propus
restringir o emprego dessa noção a certas “unidades”; assim, quando falamos de
“discurso patronal”, “discurso racista”, “discurso da publicidade para as mulheres”
etc., o termo formação discursiva seria útil. De fato, trata-se de corpus que
transpassam os gêneros ou os tipos de discurso, e que o pesquisador pode constituir
bastante livremente em função de suas hipóteses de pesquisa. Em contrapartida, eu
não acredito esteja bem claro utilizar a noção de formação discursiva para designar
um gênero de discurso ou para um posicionamento em um campo discursivo (um
movimento literário, um partido político etc.). Mas ao fim das contas, é um
problema de terminologia: cada um pode empregar “formação discursiva” como
bem entende, com a condição de que haja uma proposta bem clara de definição. O
que nem sempre é o caso (MAINGUENEAU, 2006, p. 3).

Entretanto, acreditamos na utilidade prática desse conceito e pretendemos


utilizá-lo como ferramenta para trabalhar o nosso corpus.

(3) AD-3 (1980-1983) – Aqui temos um conceito de sujeito heterogêneo, cujo inconsciente
faz parte de sua identidade. Aqui também aparece o conceito de interdiscurso, lugar onde
teriam origem, em uma relação dialógica6, os discursos que pertencem a uma determinada
FD. Este conceito receberá um tratamento bastante detalhado no livro “Gênese dos
discursos”, escrito por Dominique Maingueneau.

6
O conceito de dialogismo foi formulado por Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975).
9

1.2 AS CONCEPÇÕES DE MAINGUENEAU EM “GÊNESE DOS DISCURSOS”

Nosso trabalho tem por título “INTERDISCURSIVIDADE E


POSICIONAMENTO LIBERAL: A construção midiática do discurso pró-aborto”. Há muitos
anos estamos trabalhando com o tema “pró-aborto versus pró-vida” e temos acompanhado os
enfrentamentos dessas duas formações discursivas, tanto através da mídia nacional como
internacional. Em 2005, escrevemos uma monografia intitulada “The Language of Natural
Family Planning” como conclusão de nossa especialização lato sensu em língua inglesa, pela
Universidade de Franca, onde as questões da concepção e do aborto foram abordadas dentro
de uma perspectiva técnica7 e social. Esse contato constante com o tema permitiu certo
aprofundamento de nossas reflexões, entretanto, sempre sentimos a necessidade de encontrar
dispositivos teóricos que permitissem uma leitura mais esclarecedora. Acabamos encontrando
esse embasamento nas concepções de Dominique Maingueneau, particularmente em “Gênese
dos discursos”, obra traduzida para o português por Sírio Possenti. Por isso, neste capítulo que
é especialmente dedicado à teoria, vamos nos deter mais demoradamente sobre os conceitos
desenvolvidos nessa obra.

Maingueneau, em “Gênese dos discursos”, formulou sete hipóteses, dedicando


um capítulo do livro a cada uma delas. Também, nesta breve exposição, iremos trabalhá-las
separadamente, o que facilitará nossas referências a elas durante a análise do corpus.

1.2.1 O primado do interdiscurso

A primeira hipótese refere-se ao primado do interdiscurso. Segundo o próprio


Maingueneau (2005, p. 21):

7
A abordagem técnica da concepção ocupa 23 páginas ilustradas com dezenas de imagens.
10

O interdiscurso tem precedência sobre o discurso. Isso significa propor que a


unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de trocas entre vários
discursos convenientemente escolhidos.

O autor considera que essa hipótese pode receber duas interpretações, uma
fraca e outra forte. A primeira supõe que um discurso deve ser colocado em relação com
outros. A segunda, que consideramos essencial para nosso trabalho, diz que:

A interpretação forte exige mais, já que coloca o interdiscurso como o espaço de


regularidade pertinente, do qual diversos discursos são apenas componentes. Em
termos de gênese, isso significa que esses últimos não se constituem
independentemente uns dos outros, para serem em seguida, postos em relação, mas
que eles se formam de maneira regulada no interior de um interdiscurso. Seria a
relação interdiscursiva, pois, que estruturaria a identidade. Todo discurso, como toda
cultura, é finito, na medida em que repousa sobre partilhas iniciais, mas essas
partilhas não tomariam forma sobre um espaço semântico indiferenciado (2005, p.
21).

Com o processo de globalização, o interdiscurso rompeu as fronteiras


tradicionais, abrangendo em seus limites diversas nações e línguas, conforme o próprio
Maingueneau (2003, p. 4):

Globalization raises new questions in a wide range of fields, scientific activity


included. The recent evolution of discourse analysis highlights some of them. The
development of a worldwide field of “discourse studies”, which results from the
progressive convergence of trends which have appeared in various countries and in
different theoretical contexts, places the scholars in a new situation: how can one
practice discourse analysis in a field which is not structured by traditional
boundaries?8

Esse é o questionamento que embasa nossa decisão de não restringir nosso


corpus ao âmbito das mídias nacionais.

Em suas reflexões sobre o interdiscurso, Maingueneau criou uma tríade:


universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. O conceito de universo discursivo
é muito amplo, referindo-se “ao conjunto de formações discursivas de todos os tipos que
interagem numa conjuntura dada” (2005, p. 35). Campos discursivos são definidos como:

8
A globalização levanta novas questões em um amplo limite de campos, incluída a atividade científica. A
recente evolução da análise de discurso ilumina algumas delas. O desenvolvimento de um campo mundial de
“estudos de discurso”, o qual resulta de uma progressiva convergência de tendências que apareceram em vários
países e em vários contextos teóricos, coloca os estudiosos em uma nova situação: como pode alguém praticar
análise de discurso em um campo que não é estruturado por fronteiras tradicionais?
11

... um conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência,


delimitando-se reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo.
“Concorrência” deve ser entendida da maneira mais ampla; inclui tanto o confronto
aberto como a aliança, a neutralidade aparente etc. entre discursos que possuem a
mesma função social e divergem sobre o modo pelo qual ela deve ser
preenchida (2005, p. 35, grifo nosso).

Dentro do campo discursivo, temos os “espaços discursivos”, que


Maingueneau define como subconjuntos de formações discursivas que o analista de discurso,
partindo de seus conhecimentos e pesquisas, coloca em relação. Relação esta que deve ser
apreendida não como encontro de discursos autônomos, mas como a presença do interdiscurso
no próprio intradiscurso, a presença do Outro – que não deve ser confundido com o “Outro”
da teoria de Lacan, que se refere ao inconsciente. Maingueneau vê no Outro um “eu”
interdito, fora da delimitação do dizível legítimo. Ao definir seus próprios enunciados, uma
FD define aquilo que é enunciado do Outro, o interdito. Como se cada enunciado tivesse um
anverso, relacionado à própria FD, e um verso, na medida em que rejeita o discurso do Outro:

Assim, o Outro não deve ser pensado como uma espécie de “envelope” do discurso,
ele mesmo considerado como o envelope de citações tomadas em seu fechamento.
No espaço discursivo, o Outro não é nem fragmento localizável, uma citação, nem
uma entidade exterior; não é necessário que seja localizável por alguma ruptura
visível da compacidade do discurso. Encontra-se na raiz de um Mesmo sempre já
descentrado em relação a si próprio, que não é em momento algum passível de ser
considerado sob a figura de uma plenitude autônoma. É o que faz sistematicamente
falta a um discurso e lhe permite fechar-se em um todo. É a parte de sentido que foi
necessário que o discurso sacrificasse para constituir sua identidade
(MAINGUENEAU, 2005, p. 39).

1.2.2 Uma competência discursiva9

Vimos no subtítulo anterior que Maingueneau trabalha embasado no conceito


de primado do interdiscurso, premissa que o leva a conceber a competência discursiva como
competência interdiscursiva, o que implica um duplo relacionamento, mediado pelo sistema
de restrições semânticas: com os enunciados e textos de sua própria formação discursiva – o
Mesmo – com os quais se reconhece compatível; e com os enunciados e textos da formação

9
Embora esse capítulo trate da competência interdiscursiva, o próprio Maingueneau o chamou de “Uma
competência discursiva”, por isso mantivemos o título.
12

discursiva que constituem o Outro dentro do mesmo espaço discursivo, com os quais se
reconhece incompatível, reconhecimento esse que leva a traduzir – e aqui vale o axioma de
que todo tradutor é um traidor – o Outro em seu próprio sistema de restrições. Maingueneau
assim resume sua proposição:

O caráter constitutivo da relação interdiscursiva faz aparecer a interação semântica


entre os discursos como um processo de tradução, de interincompreensão regrada.
Cada um introduz o Outro em seu fechamento, traduzindo seus enunciados nas
categorias do Mesmo e, assim, sua relação com esse Outro se dá sempre sob a forma
do “simulacro” que dele constrói.
Nesse quadro, a relação polêmica, no sentido mais amplo, longe de ser o reencontro
acidental de dois discursos que se teriam instituído independentemente um do outro,
é de fato a manifestação de uma incompatibilidade radical, a mesma que permitiu a
constituição do discurso. O conflito não vem acrescentar-se, do exterior, a um
discurso por direito auto-suficiente; ele está inscrito em suas próprias condições de
possibilidade. Nesse nível, o sentido não remete a um espaço fechado dependente de
uma posição enunciativa absoluta, mas deve ser apreendido como circulação
dissimétrica de uma posição enunciativa à outra; a identidade de um discurso
coincide com a rede de interincompreensão na qual ela é capturada. Não existe, de
um lado, o sentido e, de outro, certos “mal-entendidos” contingentes na
comunicação do sentido, mas, num só movimento, o sentido como mal-entendido
(2005, p. 22).

Para que não fiquem dúvidas quanto ao posicionamento de Maingueneau com


relação ao tema competência discursiva, queremos reiterar que ele a vê como competência
interdiscursiva, ou seja, com aptidão para reconhecer a incompatibilidade semântica do
discurso Outro e a capacidade de traduzir esse discurso no Mesmo.

Ora, o que expusemos até aqui, especialmente a proposição sobre a interação


semântica entre os discursos como um processo de tradução, de interincompreensão regrada,
onde cada um introduz o Outro em seu fechamento, traduzindo seus enunciados nas categorias
do Mesmo e relacionando-se com o Outro sempre sob a forma do “simulacro” que dele
constrói, nos permite enunciar, de modo científico, aquilo que já sabíamos empiricamente10, a
saber: que o título pro-choice (pró-escolha) é apenas uma construção retórica, existindo apenas
o movimento pró-aborto, uma vez que um movimento pró-escolha implicaria a integração do
Mesmo (pró-aborto) e do Outro (pró-vida) sem qualquer simulacro, sem fechamento na
própria formação discursiva, sem tradução e sem interincompreensão, o que contraria
totalmente as proposições de Maingueneau com as quais estamos trabalhando.

10
Temos pesquisado, durante muitos anos, o confronto entre pró-aborto e pró-vida e jamais encontramos
qualquer coisa semelhante a um pro-choice (pró-escolha) real, ou seja, alguém ou alguma entidade que dê
suporte simultaneamente aos dois posicionamentos, que ofereça opções de escolha. Os assim chamados pro-
choice são radicalmente pró-aborto.
13

Neste ponto somos levados a tratar da delicada questão do Sujeito que ocupa
certa posição enunciativa, a partir de uma determinada competência discursiva, dentro de uma
formação discursiva. Maingueneau, ao mesmo tempo rejeita a figura do sujeito idealista,
individual e “... uma concepção pouco satisfatória dos enunciadores discursivos, ceras moles
que se deixariam ‘dominar’, ‘assujeitar’ por um discurso todo poderoso” (2005, p. 53); pois o
autor considera que “Falar de ‘assujeitamento’, de ‘dominação’, é apenas uma forma de dizer
o resultado de um processo de inscrição numa atividade discursiva...” (2005, p. 53, grifo
nosso). E continua:

No curso de sua vida, o mesmo indivíduo pode, sucessivamente e talvez


simultaneamente, inscrever-se em competências discursivas distintas, embora se
tenha facilmente a tendência a imaginar que cada um está associado a uma e só a
uma competência. [...] a capacidade de adaptação da grande maioria não padece de
nenhuma dúvida: a maior parte dos pregadores, dos jornalistas etc... católicos de
antes do Concílio Vaticano II não deu lugar a outros; eles mudaram de discurso
(2005, p. 34).

O autor deixa claro que não se deve confundir a capacidade de mudar de


discurso com a capacidade de escolher “livremente” seus discursos, cujo conteúdo é
historicamente determinado.

Nesse capítulo de “Gênese dos discursos”, partindo da proposição de que “... a


formação discursiva não seria um conglomerado mais ou menos consistente de elementos
diversos que se soldariam pouco a pouco, mas sim a exploração sistemática das possibilidades
de um núcleo semântico” (2005, p. 64), Maingueneau procura construir modelos para o
espaço discursivo jansenismo/humanismo devoto a partir de oposições primitivas como
“Concentração versus Expansão” e de objetos semânticos como “Ordem”. Esses modelos
funcionam como regras de filtragem que permitem construir enunciados de acordo com o
sistema de restrições de uma formação discursiva. Sem pretender explorar exaustivamente o
modelo criado pelo autor, mas apenas para demonstrar uma oposição primitiva entre as
formações discursivas do nosso corpus e também alguns poucos objetos semânticos e, a partir
daí, analisar alguns aspectos fundamentais derivados desses dois posicionamentos, faremos
uso desse modelo nos capítulos quinto e sexto deste trabalho.
14

1.2.3 Semântica global

Aqui Maingueneau nos diz que:

Um procedimento que se funda sobre uma semântica “global” não apreende o


discurso privilegiando tal ou tal de seus “planos”, mas integrando-os a todos, tanto
na ordem do enunciado quanto na da enunciação. (2005, p. 79).

O autor trabalha, assim, com um sistema de restrições que abrange


conjuntamente todos os planos do discurso; sem distinguir fundamental/superficial,
essencial/acessório. Sua abordagem é exemplificada em sete planos:

1 A intertextualidade: é regulamentada pela competência discursiva, não podendo


reportar-se livremente a outros discursos. Pode atuar no interior do campo
(intertextualidade interna) ou no exterior do mesmo (intertextualidade externa).

2 O vocabulário: o sistema de restrições das formações discursivas rejeita fortemente


alguns termos enquanto privilegia outros.

3 Os temas: considerando “tema de um discurso” como “aquilo de que um discurso


trata”, o autor considera que, a exemplo do vocabulário, nosso foco deve estar no
tratamento semântico dado ao tema.

4 O estatuto do enunciador e do destinatário: o autor considera que os discursos definem


o estatuto que o enunciador deve conferir a si e ao seu destinatário para legitimar seu
dizer.

5 A dêixis enunciativa: Maingueneau diz (2005, p. 93-94) que “o ato de enunciação


supõe a instauração de uma ‘dêixis’ espaciotemporal que cada discurso constrói em
função de seu próprio universo”, procurando “estabelecer uma cena e uma cronologia
conformes às restrições da formação discursiva”.

6 O modo de enunciação: Maingueneau afirma que “Não se trata de fazer falar um texto
mudo, mas de identificar as particularidades da voz que sua semântica impõe (2005,
p. 95, grifo nosso)”.
15

7 O modo de coesão: o autor considera que toda formação discursiva possui um modo
próprio de construir sua rede de remissões internas, o que influencia, entre outras
coisas, a maneira de construção de sua argumentação.

1.2.4 A polêmica como interincompreensão

Segundo Maingueneau (2005, p. 103) “... para constituir e preservar sua


identidade no espaço discursivo, o discurso não pode haver-se com o Outro como tal, mas
somente com o simulacro que constrói dele”. Esse simulacro é construído a partir de um
processo que interpreta o Outro nas categorias do registro negativo de seu próprio sistema.
Assim, um enunciador pró-vida vê a gravidez como uma dádiva, uma nova vida, alguém que
traz alegria e felicidade; enquanto isso, um enunciador pró-aborto vê a gravidez como um
castigo (que azar, a camisinha falhou!!!), uma coisa (feto), um intruso (minha vida vai virar
de pernas pro ar!). Note-se que, empiricamente, uma gravidez é uma gravidez. A posição
discursiva assumida pelos enunciadores é que determina o discurso, ou como diz o autor:
“Não existe relação polêmica ‘em si’: a relação com o Outro é função da relação consigo
mesmo” (2005, p. 108). Um exemplo curioso é o “ex-alguma coisa”. Ninguém rejeita tanto o
Outro como ele. Assim é que ninguém é tão anti-marxista como um ex-marxista, tão ateu
como um ex-religioso etc.

Continuando o desenvolvimento de suas proposições, Maingueneau trabalha a


noção de polêmica, entendida aqui como o fenômeno das relações explícitas entre duas
formações discursivas. O autor considera que esse gesto é muito mais um engodo, uma vez
que o Outro não é introduzido no Mesmo como tal, mas apenas como simulacro, realizado na
passagem de um discurso a outro.

Maingueneau também considera que, a partir da constatação da raridade do


enunciado por Foucault, “o discurso responderia ou denunciaria lá onde percebe um ponto
chave” (MAINGUENEAU, 2005, p. 114). Mais ainda:

Polemizar no interior de um certo campo é apresentar-se implicitamente como


aceitando os pressupostos que lhe são associados; a existência de um corpus
16

dogmático oficial é apenas a solidificação, o resultado de um fenômeno geral. Se for


possível mostrar a não convergência entre esses “dogmas” e um enunciado do
adversário, marca-se um ponto decisivo (MAINGUENEAU, 2005, p. 115).

Gostaríamos de nos deter um pouco mais na questão levantada pelo autor no


fragmento acima. Ele afirma que “A polêmica sustenta-se com base na convicção de que
existe um código que transcende os discursos antagônicos, reconhecido por eles, que
permitiria decidir entre o justo e o injusto” (MAINGUENEAU, 2005, p. 115). Entretanto, esse
código será sempre interpretado, o que tornará a polêmica sempre estéril, com cada discurso
enunciando e traduzindo conforme sua própria formação discursiva. Como então pode o
discurso convencer? Maingueneau responde com uma proposição extremamente interessante:

... o discurso não pode convencer, já que não se pode mostrar uma exterioridade
entre o código de referência e as interpretações dos discursos que se fundam nele. O
público não é convencido pelos argumentos expressos, mas pela própria enunciação
desses argumentos por tal discurso, isto é, pelo universo de sentido ao qual remete
este último. Coerentemente, o discurso convence porque ia pela nossa cabeça o que
já convencia, mais ou menos obscuramente. Reminiscência platônica que permite
dizer “é isso mesmo”, o mesmo marcando a coincidência com a verdade já lá, da
qual o texto seria apenas a explicação ou a repetição. A evidência que produz adesão
vem de outro lugar, e é essa a própria condição de possibilidade do conceito de
discurso: que haja momentos e lugares para os quais uma configuração de sentido
possa ser reconhecida por um conjunto de sujeitos como o Todo da verdade (2005,
p. 118).

Esse fragmento mostra como se dá a adesão a um outro discurso, como se


migra de uma formação discursiva a outra. Resta agora falar sobre o desaparecimento dos
discursos. Maingueneau afirma que “Um discurso não é abandonado porque um texto lhe
aplicou um golpe fatal, mas porque alguma coisa abalou tudo o que o sustentava
silenciosamente e a crença se transferiu para outros lugares” (2005, p. 119). O trabalho de
Courtine (2006) explora bem esse aspecto ao tratar do declínio da esquerda francesa.

1.2.5 Do discurso à prática discursiva

Nesse capítulo Maingueneau trabalha com as “instituições que tornam o


discurso possível” (2005, p. 126), procurando demonstrar que discurso e instituições estão
17

filiados a um mesmo sistema global de restrições semânticas, estando submetidos aos mesmos
processos de estruturação:

Da mesma forma que uma doutrina revolucionária se edifica a si mesma edificando


a rede de seus suportes práticos, a formação de uma doutrina religiosa nada mais é
que a formação de uma comunidade hierárquica dos fiéis. O processo de
constituição do grupo não é exterior ao do pensamento; ele é seu corpo, exotérico11,
mas não extrínseco. Não há um conjunto mais ou menos sistematizado de
representações ao qual se acrescentaria, em seguida e de fora, uma estrutura mais ou
menos complexa de organizações, as duas séries se fazem e se desfazem juntas,
segundo uma só e mesma lógica (REGIS DEBRAY, 1981, apud MAINGUENEAU,
2005, p. 126).

Temos aqui o surgimento e crescimento simultâneo do discurso e da instituição


que lhe serve de suporte. Uma segunda situação é aquela em que temos a mudança de um
discurso: Maingueneau, ressaltando a importância das instituições na formação do discurso,
afirma que “a passagem de um discurso a outro é acompanhada de uma mudança na estrutura
e no funcionamento dos grupos que gerem esses discursos” (2005, p. 125), ou seja, como os
discursos e instituições se articulam através de um sistema comum de restrições semânticas,
mudanças nestas causam mudanças naqueles – dizer, por exemplo, que tal instituição está
mudando seu discurso equivale a dizer que a instituição em si mesma está mudando. Não há,
entretanto, mudança gradual nos enunciadores, indo lentamente de um discurso a outro, mas
sim a substituição de um conjunto de enunciadores por outro, de um complexo de produção-
difusão por outro.

A articulação entre discurso e instituição implica, entre outras coisas, a


produção e circulação dos enunciados. O movimento feminista – instituição que produz e
coloca em circulação, através de um poderoso esquema midiático, o discurso pró-aborto – e a
Igreja Católica – principal instituição a apoiar o movimento pró-vida – são exemplos
fundamentais em nosso corpus. Um outro exemplo da validade dessas teses ocorreu no
momento em que estávamos escrevendo este texto. Recebemos então a informação de que a
organização Anistia Internacional (Amnesty International) havia lançado um press release
(comunicado à imprensa) informando uma mudança radical em seu discurso em defesa dos
direitos humanos, o que ocasionou uma reação imediata da Igreja Católica12:

11
Não confundir com o seu antônimo “esotérico” = hermético, ensinado apenas a poucos discípulos.
12
É sintomático que nessas ocasiões a reação, o contra-discurso, venha sempre da Igreja Católica.
18

Amnesty International today firmly stood by the rights of women and girls to be free
from threat, force or coercion as they exercise their sexual and reproductive rights.
13
Responding to a statement from the Vatican, Amnesty International…

Nossas pesquisas mostram que essas mudanças radicais nos discursos sempre
foram precedidas por mudanças nos membros das instituições que os produzem, existindo
mesmo violentas disputas pelos cargos com poder de decisão. Dois desdobramentos
particularmente interessantes decorrem dessa realidade. O primeiro é o surgimento de grupos
midiáticos diretamente ligados a essas instituições, especialmente à Igreja Católica que,
impossibilitada de se expressar por não encontrar espaço no mass media, criou seus próprios
veículos. No Brasil, no momento em que estamos escrevendo este trabalho, existem quatro
emissoras de TV católicas: Rede Vida, TV Século XXI, TV Aparecida e TV Canção Nova.
Esses grupos possuem, além das TVs, emissoras de rádio, sites na internet e editoras. Nessas
mídias a palavra sempre é dada aos anunciadores que possuem “legitimação discursiva”:
sacerdotes, médicos etc.:

A vocação enunciativa supõe uma harmonização mais ou menos estrita entre as


práticas individuais do autor e as representações coletivas nas quais ele se reconhece
e que comunidades mais ou menos amplas verão, por sua vez, encarnadas nele
(Maingueneau, 2005, p.198).

A existência de “mídias próprias” produziu o segundo desdobramento: o debate


passou a ser realizado à distância, sem o enfrentamento face a face. Assim, sem ter que
responder diretamente às objeções da formação discursiva contrária, cada discurso tende a se
fechar cada vez mais.

Outro aspecto abordado, nesse capítulo, é a imbricação entre os modos de


difusão e os modos de consumo do discurso. Dentro do viés teórico com o qual estamos
trabalhando, o tipo de consumo é criado pelo próprio discurso, através de seu sistema global
de restrições semânticas.

13
A Anistia Internacional hoje se posiciona firmemente junto aos direitos das mulheres e meninas serem livres
de ameaças, força e coerção enquanto elas exercerem seus direitos sexuais e reprodutivos. Respondendo a uma
declaração do Vaticano, a Anistia Internacional... (texto completo e referências no anexo 27, página 243).
19

1.2.6 Uma prática intersemiótica

Partindo de um modelo de formação discursiva que funciona como um sistema


de restrições que se aplica não somente a objetos lingüísticos, mas também sobre produções
de ordem não lingüística, Maingueneau nos remete a uma prática que integra diversos
suportes intersemióticos, como a sons (música, canto), imagens (pintura, escultura, fotos,
filmagens) etc.: “O pertencimento a uma mesma prática discursiva de objetos de domínios
intersemióticos diferentes exprime-se em termos de conformidade a um mesmo sistema de
restrições semânticas” (2005, p.146). Para evitar confusões, o autor declara que os “objetos de
domínios intersemióticos diferentes pertencentes a uma prática discursiva” são chamados de
“textos” e o termo “enunciado” aplica-se tão somente à produção lingüística.

Nesse ponto uma questão se impõe: como avaliar o pertencimento de


determinado “texto” a certa formação discursiva? Maingueneau responde:

Para nós, a possibilidade de integrar textos não lingüísticos a uma prática discursiva,
que até aqui era definida apenas com base em seus enunciados, supõe que se possa
proceder à leitura mais abrangente possível desses textos através do sistema de
restrições semânticas. (2005, p.151).

Essa leitura pode ser mais bem compreendida a partir dos parâmetros que o
autor usa para analisar uma determinada pintura. Vamos mostrar o texto do autor e depois
aplicá-lo na análise do nosso corpus:

A conformidade de um texto pictórico com as restrições de um discurso deve ser


estabelecida em dois níveis complementares:
• Mostrando que as “condições genéricas” às quais ele está submetido são
exatamente as mesmas que, para esta prática discursiva, definem a legitimidade
desse tipo de produções;
• Mostrando que o texto considerado em sua singularidade está em
conformidade com a formação discursiva pertinente (MAINGUENEAU, 2005, p.
153).

Com relação ao primeiro ponto devemos dizer que após muitos anos
pesquisando sobre o tema aborto pudemos constatar que os sites, revistas, livros e outras
instâncias midiáticas do movimento pro-choice fazem uso bastante restrito de imagens,
enquanto os grupos pro-life as usam em abundância. O segundo ponto será abordado com
20

mais detalhes no capítulo quarto – A intersemiótica e o embate pro-life/pro-choice. Por ora,


podemos adiantar que imagens de mulheres grávidas assumidas e felizes não são usadas em
sites pró-aborto, também não o são as modernas imagens de bebês dentro do útero materno e
jamais imagens de bebês abortados aparecem nesses espaços. Outras cenas que não fazem
parte do sistema intersemiótico do discurso pró-aborto são aquelas em que são mostrados
objetos como berços, parques infantis, escolinhas e outros objetos que evoquem infância. O
motivo desse acontecimento é fácil de ser percebido: a valorização da maternidade e da vida
intra-uterina e a rejeição ao aborto são três objetos semânticos do discurso pró-vida e estão
totalmente de acordo com o sistema de restrições desta formação discursiva, portanto essas
imagens são pro-life. Gostaríamos aqui de chamar a atenção para o fato de que esses três
conjuntos de imagens ameaçam de forma progressiva o movimento pró-aborto, recebendo por
parte deste atenção diferenciada: “No conjunto de enunciados que lhe são dirigidos, o
discurso responde àqueles que lhe parecem mais ameaçadores (MAINGUENEAU, 2005, p.
114). Assim, na reportagem que analisaremos no capítulo quinto, existe até a foto de uma
mulher grávida, mas não existe nenhuma foto de um bebê no útero materno e jamais haveria a
foto de um bebê abortado.

1.2.7 Um esquema de correspondência

Nesse capítulo, Maingueneau considera que os sistemas de restrições permitem


relacionar a prática discursiva e outras séries em um determinado ambiente sócio-histórico:
“... é antes de tudo pelo sistema de restrições semânticas que deve passar a inscrição das
práticas discursivas em suas conjunturas históricas” (2005, p. 170). Para tanto, trabalha
buscando isomorfismos – aqui entendidos como semelhança de forma – entre as estruturas
externas a um discurso e o sistema de restrições semânticas deste.

É provável que neste ponto alguém possa considerar estar diante de um


retrocesso e mesmo de uma contradição, questão que o próprio Maingueneau coloca e procura
responder:
21

... depois de haver construído uma semântica global para a prática discursiva, não
estaríamos impossibilitados de sair dela para articulá-la com a história?
Observar-se-á, todavia, que o simples fato de postular o primado do interdiscurso
afeta já notavelmente o caráter autárquico do modelo semântico, já que não se está
mais diante de objetos fechados e compactos, mas de um espaço de circulação
semântica articulado sobre uma descontinuidade fundadora. Essa descontinuidade,
fonte da interincompreensão, só pode remeter a rupturas que o discurso, em si
mesmo, não poderia explicar. Assim, mesmo que a análise do espaço discursivo não
vá além de um estudo imanente, a estrutura de seu objeto exige sua ultrapassagem
(2005, p. 171).

Acreditamos que as proposições de Maingueneau em “Gênese dos discursos”,


completadas por aquelas feitas em “Cenas da Enunciação” (2006a) e “Discurso Literário”
(2006b) – as quais veremos nos próximos capítulos – formam um conjunto de ferramentas
que permitem a análise dos discursos que circulam pelos diversos meios de comunicação
modernos, conforme teremos oportunidade de ver ao longo deste trabalho, justificando-se
assim nossa escolha das proposições desse lingüista francês como instrumento para a análise
de nosso corpus.
22

2 O PERCURSO HISTÓRICO DA POLÊMICA SOBRE O ABORTO

Dominique Maingueneau, na introdução de “Gênese dos discursos”, coloca de


maneira clara sua intenção de trabalhar uma análise do discurso que não esteja divorciada da
história:

Estamos, assim, diante de objetos que aparecem ao mesmo tempo como


integralmente lingüísticos e integralmente históricos. As unidades do discurso
constituem, com efeito, sistemas, sistemas significantes, enunciados, e, nesse
sentido, têm a ver com uma semiótica textual; mas eles também têm a ver com a
história que fornece a razão para as estruturas de sentido que elas manifestam. [...]
De nossa parte, nós nos situaremos no lugar em que vêm articular-se um
funcionamento discursivo e sua inscrição histórica, procurando pensar as condições
de uma “enunciabilidade” possível de circunscrever-se historicamente (2005, p.16-
17).

Seguindo essa linha de raciocínio, vamos, neste capítulo, relatar o percurso


histórico do aborto, procurando sempre relacioná-lo com as estruturas de sentido – com os
discursos – que acompanharam a sua evolução, procurando legitimar ou denegar a prática, de
forma a também “... interpretar o estatuto histórico dos discursos” (MAINGUENEAU, 2005,
p. 18).

2.1 OS POSICIONAMENTOS SOCIOPOLÍTICOS E O ABORTO

É um fato amplamente conhecido pela sociedade que os chamados liberais


costumam apoiar o aborto e os conservadores fazer oposição a ele14. Em um primeiro

14
De tal modo essa realidade está estabelecida que se encontra referenciada até nos dicionários: liberalismo:
rubrica: economia, filosofia, política: doutrina cujas origens remontam ao pensamento de Locke (1632-1704),
baseada na defesa intransigente da liberdade individual, nos campos econômico, político, religioso e intelectual,
contra ingerências excessivas e atitudes coercitivas do poder estatal. Conservador: aquele que propugna pelo
autoritarismo e é favorável à tradição, seja monárquica, eclesiástica ou liberalista nas suas formas burguesa e
oligárquica, demonstrando hostilidade a inovações na moral e nas instituições (HOUAISS Eletrônico, 2002,
verbetes “liberalismo” e “conservador”).
23

momento, isso nos impulsionou a trabalhar a partir de um embate amplo entre liberais e
conservadores, que progressivamente se concentraria na oposição pro-choice/pro-life.
Entretanto, nossas pesquisas mostraram que as correlações esquerda/liberal/pro-choice e
direita/conservador/pro-life não são perfeitamente estáveis ao longo da história e,
particularmente, na história contemporânea: “A oposição entre a direita e a esquerda
certamente não desapareceu, mas sua percepção está, num certo sentido, frouxa; as posições
estão flutuantes, os programas mais similares, os antagonismos menos delimitados”
(COURTINE, 2006, p. 107). Além disso, percebemos que o tema “aborto” tem vida mais
longa que os diversos posicionamentos sóciopolíticos que o assumiram ao longo da história.
Por isso, faremos aqui apenas referência ao tratamento dado ao tema dentro do sistema
político norte-americano, uma vez que essa abordagem serve de modelo para o debate em
todo o mundo, embora – e isso é especialmente verdadeiro no caso do Brasil, onde o
posicionamento dos partidos não é claramente definido – esse modelo não seja acompanhado
pari passu. No sistema político americano, entre os diversos aspectos que constituem a vida
humana, dois grupos se destacam: os chamados assuntos pessoais (personal issues) e os
assuntos econômicos (economic issues). O posicionamento dos indivíduos diante desses dois
temas fundamentais resulta em cinco vertentes político-ideológicas:

1 Direita ou conservadora (Right/Conservative) – apóia a liberdade econômica, opondo-


se ao excessivo controle governamental sobre os negócios. Ao mesmo tempo dá
suporte a ações governamentais que defendem a moralidade tradicional, conservadora,
de origem judaico-cristã. Opõe-se ao aborto, à eutanásia, ao casamento homossexual
etc. O Partido Republicano americano é uma referência mundial desse modelo.

2 Esquerda ou liberal (Left/Liberal) – ao contrário da posição conservadora, aqui a


liberdade de escolha em questões pessoais é amplamente apoiada, enquanto a
liberdade em assuntos econômicos é desencorajada em favor de um significativo
suporte ao controle governamental. Nessa vertente, existe uma clara rejeição ao
posicionamento judaico-cristão, com apoio ao aborto, à eutanásia, ao casamento
homossexual etc. Temos aqui o Partido Democrata americano como protótipo desse
posicionamento.

3 Libertária (Libertarian) – dá suporte ao máximo de liberdade em ambos os aspectos –


econômico e pessoal.
24

4 Estatista (Statist) – defende um alto grau de poder governamental sobre a economia e


sobre o comportamento individual.

5 Centrista (Centrist) – apóia posições não-radicais tanto em questões pessoais quanto


econômicas. A posição centrista é criticada por seu relativismo.

Entre esses cinco posicionamentos dois são realmente importantes: o


conservador e o liberal. São essas as duas linhas mestras que conduzem e moldam a política e
a estrutura social na civilização ocidental. Temos observado que, em nossa era globalizada,
essas duas ideologias se espalharam pelo mundo sem perder suas principais características
identitárias. Essas identidades são caracterizadas através dos discursos adotados pelos
representantes dos dois grupos. São reconhecidos como representantes desses
posicionamentos aqueles indivíduos que possuem acesso ao complexo da máquina midiática e
nela expressam, geralmente de maneira radical, os pressupostos da posição que defendem.
Essas personagens são a face e a personalização dessas formações discursivas.

Temos, portanto, dois posicionamentos com características identitárias que se


opõem por meio do discurso. Essa luta acontece em diversas frentes. Uma dessas – onde o
combate é mais acirrado – é aquela do debate pró-aborto/pró-vida.

A importância desse debate cresceu após os anos 80 do século XX, quando


houve uma forte retração da esquerda enquanto projeto fortemente ligado ao determinismo
econômico – dimensão essencial do marxismo ortodoxo – e o simultâneo crescimento de um
viés que poderia ser definido como socialismo gramsciano. Essa vertente do socialismo
fundamenta-se nas idéias de Antonio Gramsci, que definia a sociedade como um sistema
complexo que relaciona ideologia e cultura e afirmava que a luta entre as ideologias de
esquerda e de direita deveria ser no plano cultural – entendido não apenas como cultura
acadêmica, mas também religiosa, filosófica, comportamental etc. Essa luta buscaria, usando
os meios de comunicação social, envolver o conjunto da sociedade numa tentativa de
estigmatizar os valores tradicionais e implantar valores materialistas; entre eles destaca-se o
chamado direito ao aborto. O debate sobre a questão do aborto – em si mesmo de grande
relevância – reveste-se então de maior importância, ao tornar-se a representação de um
combate muito mais amplo, sócio-historicamente situado, e que tem na prática discursiva a
sua principal arma: “... é antes de tudo pelo sistema de restrições semânticas que deve passar
a inscrição das práticas discursivas em suas conjunturas históricas” (MAINGUENEAU,
2005, p. 170). Exemplo da amplitude desse enfrentamento pode ser observado na associação
25

de outros movimentos ao viés sócio-histórico “liberalismo/pró-aborto”: os movimentos pro-


gay marriage, pró-eutanásia, pró-pedofilia etc., tendo todos esses movimentos como ponto
comum – isomorfismo – a liberdade individual. Esse isomorfismo funciona como
justificativa para a existência de um discurso que seria impensável há alguns anos atrás – o
discurso pró-pedofilia – que atualmente se espalha pelo mundo, ganha espaço e conquista
direitos. Como diz David Thorstad, membro da organização pró-pedofilia norte americana
North American Man/Boy Love Association:

Freedom is indivisible. The liberation of children, women, boy-lovers, and


homosexuals in general, can occur only as complementary facets of the same
dream.15

Sabemos que não só as pessoas de formação conservadora rejeitam a pedofilia,


mas também as de formação liberal. Entretanto, a inserção do discurso pró-pedofilia dentro de
uma estrutura sócio-histórica que compreende outros componentes discursivos que possuem
em comum, como fator estrutural de seu sistema global de restrições semânticas, a rejeição da
não-liberdade, faz com que esse discurso não possa ser denegado pelo liberalismo sem que
sejam afetadas todas as formações discursivas que possuem o mesmo viés. De fato, por mais
absurdo que seja um discurso pró-pedofilia, ele não é explicitamente rejeitado pelo discurso
de outras formações discursivas liberais, sendo tratado como se não existisse. Por outro lado,
os tradicionais adversários do movimento pró-aborto são também ferrenhos inimigos do
movimento pró-pedofilia. Sabemos que alguém poderá tentar relacionar esse discurso (pró-
pedofilia) com outro semelhante, existente principalmente na Grécia antiga, nas relações
mestre-discípulo. Discordaremos disso citando Maingueneau:

Para nós, mesmo quando se republicam textos, mesmo quando se produzem novos
textos que parecem resultar da mesma competência discursiva, não se poderia falar
do mesmo discurso. Esse sempre se confunde com a sua emergência histórica, o
espaço discursivo no interior do qual se constituiu, as instituições através das quais
se desenvolveu, os isomorfismos em cuja rede ele foi envolvido. Basta que isso
falte para que a identidade de uma posição enunciativa se desfaça (2005, p. 188,
grifos nossos).

15
A liberdade é indivisível. A liberação das crianças, mulheres, amantes de meninos (pedófilos), e homossexuais
em geral, só pode acontecer como facetas complementares do mesmo sonho. Fonte: <http://www.nambla.org/>.
Acesso em 30 de maio de 2007.
26

O autor coloca nesse enunciado quatro pontos fundamentais (destacados por


nós em negrito). Vejamos como os discursos pró-pedofilia e pró-aborto se situam dentro deste
paradigma:

• A emergência histórica: a revolução sexual ocorrida nos anos 1960 é o


cenário histórico onde ganham força o movimento gay e o movimento
feminista. Este logo assumiu o aborto como uma de suas principais
bandeiras, aquele está assumindo progressivamente o discurso boy-lover;

• Embora estejamos considerando o espaço discursivo em que se enfrentam


pro-choice/pro-life, nada impede que nele sejam incluídas outras formações
discursivas: “... inclui tanto o confronto aberto quanto a aliança, a
neutralidade aparente etc. entre discursos que possuem a mesma função
social e divergem sobre o modo pelo qual ela deve ser preenchida”
(MAINGUENEAU, 2005, p. 36);

• As instituições que apóiam esses discursos costumam estar muito próximas


ou até serem as mesmas e

• O isomorfismo entre esses discursos é grande, especialmente no que se


refere à defesa da liberdade individual.

Essa rápida análise que acabamos de fazer demonstra como as proposições de


Maingueneau em “Gênese dos discursos” se aplicam a um universo onde estão envolvidos
conjuntos de formações discursivas, em uma realidade que é multifacetada, complexa, como
bem coloca o autor no último enunciado de sua obra: “... o discurso se encontra engajado em
uma reversibilidade essencial com grupos, instituições, e, igualmente, com outros campos.
Não há imagem simples que torne isso visível” (MAINGUENEAU, 2005, p.189).

2.2 A INSCRIÇÃO DA POLÊMICA SOBRE O ABORTO NA HISTÓRIA

Pelo grande impacto que causa em todo o sistema de valores do mundo atual, o
discurso pró-aborto foi escolhido como tema de nosso projeto de dissertação. Aqui se faz
27

necessário clarificar a expressão “discurso pró-aborto”. Adotaremos, inicialmente, a definição


de discurso dada por Maingueneau: “Em uma primeira aproximação, na perspectiva da
‘escola francesa de análise do discurso’ entenderemos por ‘discurso’ uma dispersão de
textos cujo modo de inscrição histórica permite definir como um espaço de
regularidades enunciativas” (2005, p. 35. Grifo nosso). De fato, o discurso pró-aborto está
inserido em determinado contexto histórico, o que nos conduz a descrever uma breve história
sobre o aborto (“inscrição histórica”), particularmente na civilização ocidental16. Mais ainda,
o corpus com o qual iremos trabalhar é formado por textos escritos por diversos repórteres e
articulistas, constituindo, pois, uma “dispersão de textos”, fato que nos impulsiona a mostrar
com maior clareza o tema abordado, de forma a evitar que a “dispersão” se torne confusão,
como nos mostra Charaudeau:

Informação, comunicação, mídias, eis as palavras de ordem do discurso da


modernidade. Cada vez que as palavras ficam na moda, passam a funcionar como
emblema, criando a ilusão de que têm um grande poder explicativo, quando, na
verdade, o que domina muitas vezes é a confusão, isto é, a ausência de
discriminação dos fenômenos, a falta de distinção entre os termos empregados, o
déficit na explicação (2006, p.15).

Como o aborto é um assunto extremamente polêmico, é natural que os diversos


posicionamentos dos autores influenciem seus escritos, o que tornou nossa pesquisa bastante
trabalhosa. Por essa razão procuramos selecionar apenas aquelas afirmações sobre as quais
existe certo consenso. Basicamente, podemos dividir a história do aborto no ocidente em três
períodos. O primeiro período situa-se entre o início da Idade Antiga ou Antigüidade17
(invenção da escrita – mais ou menos 4.000 a.C.) e o aparecimento do Cristianismo; o
segundo, do início do cristianismo até 1799, ano que marca o fim da Revolução Francesa e o
terceiro período compreende os anos que se iniciam com o término da revolução e o início do
Iluminismo até nossos dias.

16
Conforme a definição clássica, o mundo ocidental refere-se à Europa e os seus herdeiros genealógicos e
filosóficos, principalmente ao continente americano. Também se considera o oeste da África, que mesmo não
sendo um herdeiro genealógico, é considerado pela semelhança cultural. Fonte: <http://pt.wikipedia.org/
wiki/Mundo_Ocidental>. Acesso em: 04 mai. 2007.
17
A Idade Antiga compreende o período entre 4.000 a.C. (descoberta da escrita) e 476 d.C. (queda do império
romano do ocidente); a Idade Média situa-se entre 476 d.C. e 1453 d.C. (fim do império romano do Oriente); a
Idade Moderna entre 1453 d.C. e 1799 (fim da Revolução Francesa) e a Idade Contemporânea iniciou-se em
1799 e prossegue até nossos dias.
28

Sobre o primeiro período encontramos referências dispersas ao aborto.


Entretanto, há certo consenso de que tanto o aborto quanto o infanticídio18 eram praticados na
Antigüidade. Uma referência dessa época é encontrada na Bíblia, no livro do Êxodo (1250
a.C.):

Ele (o faraó do Egito) disse ao seu povo: “Vede: os israelitas tornaram-se numerosos
e fortes demais para nós. Vamos! É preciso tomar precaução contra eles e impedir
que se multipliquem”. [...] O faraó do Egito dirigiu-se, igualmente, às parteiras dos
hebreus [...] e disse-lhes: “Quando assistirdes às mulheres dos hebreus, e as virdes
sobre o leito, se for um filho, matá-lo-eis; mas se for uma filha, deixá-la-eis viver”.
Mas as parteiras temiam a Deus, e não executaram as ordens do Faraó do Egito,
deixando viver os meninos (Êx. 1, 9).

Vemos aqui um governante, por motivos políticos, impondo o


infanticídio/aborto sobre os hebreus, e parteiras pró-vida, motivadas por sua fé religiosa,
enfrentando o faraó, uma cenografia que irá atravessar a história e chegar ao século XXI,
como teremos oportunidade de mostrar com mais detalhes durante a exploração de nosso
corpus19. Por ora, vamos apenas considerar que o aborto era praticamente desconhecido na
cultura judaica. Sabemos que o cristianismo tem seu primeiro momento dentro dessa cultura
e, portanto, o aborto provocado não representou problemas nesse instante inicial. Isso explica
a ausência de censuras ao aborto nos escritos do novo testamento.

O segundo período é marcado pelo surgimento e expansão do cristianismo.


Este, ao entrar em contato com o mundo pagão, encontrou culturas que aceitavam o aborto e o
infanticídio. O cristianismo posicionou-se contrariamente a essas realidades. Como exemplo
podemos citar o Didaqué: “Não mate a criança no seio de sua mãe, nem depois que ela tenha
nascido” (1989, p. 10)20. O cristianismo lançou as bases de uma nova civilização, a
civilização cristã ocidental, na qual o aborto teve existência marginal, que se traduzia em dois
elementos: primeiro, uma redução na prática do mesmo; segundo, a ausência de um discurso
pró-aborto, não apenas como manifestação pública, mas especialmente como inexistência de
uma formação discursiva que desse suporte à prática. As pessoas que praticavam o aborto o
faziam com a consciência de se tratar de algo que era condenado pela sociedade.

18
Devido aos riscos inerentes ao aborto, o infanticídio foi amplamente usado na antiguidade como forma de se
eliminar os filhos não desejados, pelos pais ou pela sociedade, podendo, portanto, ser tratado como sinônimo de
aborto.
19
Nossas reflexões sobre o conceito de cenografia, conforme exposto por Maingueneau, sinalizam a existência
de arquétipos cenográficos, que atravessam culturas e sociedades, mudando apenas seus elementos acidentais e
mantendo suas estruturas fundamentais (“Já vi este filme antes...”).
20
O Didaqué foi escrito provavelmente entre os anos 90/100 e é possivelmente o primeiro Catecismo da Igreja
Católica.
29

O terceiro período começa com o fim da Revolução Francesa e o início do


movimento conhecido como Iluminismo. Para muitos autores, o Iluminismo marca o
nascimento do processo de secularização21, como nos mostra Damásio (2005, p. 1):

Para compreendermos melhor a forte secularização européia é interessante olharmos


a historia: o espírito das luzes e da Revolução Francesa do século XVIII. A Europa
conheceu um anti-clericalismo violento que, enfaticamente na França, deveria
“esmagar a Igreja”, como disse Voltaire. Os meios intelectuais propagaram essas
idéias voltadas, sobretudo, para a economia. Quando a escola tornou-se obrigatória,
sendo função do Estado central, as crianças foram encharcadas dessa inteligência
secularizada. [...] Mais globalmente, a secularização designa o processo visível
desde o final da Idade Média que vê atividades ou dimensões da vida humana
ligados à esfera religiosa como a Arte, a Ética, a Moral ou a Política cortar-se de
toda referência ao sagrado ou transcendência. Hoje, a expressão secularização é
usada para definir um processo no qual o mundo e a história humana se
compreendem a partir deles mesmos, de maneira propriamente imanente.

Ora, se o cristianismo, fator determinante na formação da cultura ocidental e


maior opositor ao aborto e ao infanticídio, perde influência no mundo moderno, é de se
esperar que os discursos pró-aborto e a prática deste ressurjam e se fortaleçam gradualmente a
partir do enfraquecimento do cristianismo como fundamento dos princípios que regem a
sociedade, ou seja, do processo de secularização. A perda de influência do cristianismo na
sociedade foi mais dramática na Rússia, onde, após as revoluções de 191722, foi implantado
um estado materialista, que, entre outras coisas, legalizou o aborto em 8 de novembro de
1920, tornando-se o primeiro país do mundo a legalizar o aborto a pedido. Esses eram
realizados gratuitamente e sem restrições durante o primeiro trimestre da gravidez.

É importante destacar que, por ser este um trabalho sobre o discurso, temos
interesse nas mudanças ocorridas no processo discursivo que sempre esteve imbricado à
prática do aborto. Uma mudança particularmente interessante é aquela do discurso em favor
do controle de natalidade em discurso pró-aborto. Conforme teremos oportunidade de ver
durante a análise de nosso corpus, muitos enunciados que pertenciam à contracepção
passaram a ser usados diretamente no discurso pró-aborto, tentando dar a este o mesmo
estatuto daquela. A respeito da dinâmica desse processo, citamos Foucault (1987, p. 82):

21
Secularização é quando a religião deixa de ser o aspecto cultural agregador da sociedade.
22
A Revolução de Fevereiro de 1917 (março de 1917, pelo calendário ocidental), que derrubou a autocracia do
Czar Nicolau II da Rússia, o último Czar a governar, e procurou estabelecer em seu lugar uma república de
cunho liberal e a Revolução de Outubro (novembro de 1917, pelo calendário ocidental), na qual o Partido
Bolchevique, liderado por Vladimir Lênin, derrubou o governo provisório e impôs uma ditadura. Fonte: Nova
Enciclopédia Ilustrada Folha, 1996, páginas 836-837.
30

Uma formação discursiva não desempenha, pois, o papel de uma figura que pára o
tempo e o congela por décadas ou séculos: ela determina uma regularidade própria
de processos temporais; coloca o princípio de articulação entre uma série de
acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos, transformações,
mutações e processos. Não se trata de uma forma intemporal, mas de um esquema
de correspondência entre diversas séries temporais.

Vejamos, pois, como os movimentos que defendiam a contracepção


rejeitavam, inicialmente, o recurso ao aborto:

A Liga Americana para o Controle da Natalidade [...] patrocinava (em 1921) no


Hotel Plaza em Nova York a Primeira Conferência para o Controle da Natalidade.
Nesta época a Liga fazia drásticas distinções entre contracepção e aborto. Isto ficou
bem claro quando o primeiro dos conferencistas apresentou um trabalho intitulado
"Controle da Natalidade sim, Aborto não". Neste trabalho se declarava que
‘qualquer meio utilizado para impedir os elementos masculinos e femininos de se
unirem é um preventivo ou contraceptivo. Mas uma vez que a fertilização teve lugar
todas as possibilidades de uma nova alma, de um novo indivíduo, estão abertas, e
iniciou-se uma vida individual que deveria ser amparada pelas mesmas leis
protetivas que amparam todos os seres humanos. As mesmas leis que protegem os
adultos protegem as crianças. Não é menos crime matar um bebê do que matar um
adulto. Por que deveria ser menos crime, por que deveria ser mais moral ou legal
destruir uma vida em seus estágios intra-uterinos do que o é depois que estes
estágios foram ultrapassados e o bebê nasceu? Nós afirmamos que desde o momento
em que o óvulo foi fertilizado até o momento em que a criança abandona o útero
qualquer interferência destrutiva para com o mesmo deve ser considerado um
aborto, e que o aborto nunca deveria ser necessário, nunca pode ser moral,
raramente deve ser legal’. HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DA PROBLEMÁTICA
DO ABORTO. Disponível em: <abortos.com.br>. Acesso em: 07 mai. 2007.

Esse congresso foi realizado em Nova York em 1921. Em 1929 – portanto


apenas oito anos depois – foi realizado em Londres o “Congresso Internacional da Liga
Mundial para a Reforma Sexual”. Entre as resoluções votadas no final dessa conferência
destaca-se a transcrita abaixo, onde a defesa do aborto é feita de maneira clara e direta:

Este Congresso da Liga Mundial para a Reforma Sexual declara que, desde que os
métodos contraceptivos atualmente em uso não são suficientemente perfeitos nem
amplamente difundidos, muitas mulheres são forçadas a recorrer à interrupção da
gravidez. Em todos os países, exceto na Rússia Soviética, este ato envolve sérias
penalidades legais. Estas recaem de fato principalmente sobre as mulheres das
classes mais pobres, e não impedem a prática do aborto, mas fazem com que ela se
realize secretamente, incompetentemente e com dano para a vida e para a saúde.
Nós, portanto, clamamos pela abolição das penalidades para a mãe e por uma
revisão das leis que dizem respeito ao aborto de tal maneira que se torne possível
para uma mulher obter uma interrupção da gravidez por um médico qualificado, por
motivos econômicos, sociais e eugênicos, como também para as indicações médicas
já permitidas na presente data.
Esta resolução foi como que uma pedra angular para o movimento
internacional para a revogação das leis do aborto. Foi também através deste
31

congresso que o eufemismo termination of pregnancy, ou interrupção da gravidez,


foi introduzido pela primeira vez. HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DA
PROBLEMÁTICA DO ABORTO. Disponível em: <abortos.com.br>. Acesso em:
07 mai. 2007.

Vemos aqui uma mudança fundamental na prática discursiva que migra de um


posicionamento pró-contracepção para um posicionamento pró-aborto enquanto, ao mesmo
tempo, a prática do aborto cresce rapidamente – atualmente são praticados 45 milhões de
abortos no mundo, segundo a organização mundial de saúde23. São duas mudanças de
extraordinário peso na história e no campo discursivo que, acreditamos, não são
adequadamente avaliadas, possivelmente pela maneira fragmentada com que são tratadas.
Nossas pesquisas e reflexões sobre a temática mostram que, para além de um universo
complexo de processos e acontecimentos, existem alguns fatos básicos na origem dessas
mudanças. São eles: (1) para a emergência de um discurso pró-aborto – e aqui é necessário
insistir enfaticamente que, embora o aborto como prática sempre tenha existido, nunca houve,
pelo menos na civilização cristã ocidental, nada parecido com um discurso pró-aborto –
foram fundamentais: (a) o processo de secularização; (b) a inserção, no interdiscurso, da
abordagem contracepção/planejamento familiar, muito mais palatável que o discurso pró-
aborto e sua posterior transformação em discurso pró-aborto; (2) para o aumento exponencial
do número de abortos foi – e ainda é – essencial a existência de um processo extremamente
curioso e de difícil compreensão, em toda sua extensão e profundidade – a chamada
mentalidade contraceptiva. Vamos explicitá-lo: antes do surgimento da pílula
anticoncepcional, a gravidez era aceita como uma conseqüência natural das relações sexuais.
Assim, mesmo uma prole numerosa tendia a ser naturalmente aceita. Essa era a cultura, o
mainstream. A contracepção dissociou sexo e gravidez – essa dissociação é denominada de
mentalidade contraceptiva. A partir daí a gravidez passou a ser fortemente rejeitada e o aborto
passou a ser visto como solução para uma contracepção falhada – ou várias.24

A partir do momento em que o discurso pró-contracepção se transforma em


discurso pró-aborto, inicia-se uma série de enfrentamentos, tanto na Europa como nos Estados
Unidos, que durarão algumas décadas e levarão à legalização do aborto neste último e em
grande parte dos países daquela. Como os posicionamentos sobre o aborto nos Estados
Unidos têm grande influência em todo o mundo e particularmente no Brasil, vamos nos

23
Dados disponíveis em: http://www.wpro.who.int/sites/rph/data/abortion.htm. Acesso em 20 set. 2007.
24
São comuns os casos de múltiplos abortos realizados por uma mesma mulher. Estudos recentemente realizados
nos Estados Unidos sinalizam a presença de fatores psíquicos e fisiológicos que facilitam uma nova gravidez na
mulher que acabou de abortar – e subseqüente ocorrência de um novo aborto.
32

concentrar a partir de agora na problemática americana a partir de 1967, ano em que o


processo sofreu grande aceleração, até chegar à legalização do aborto on demand (a pedido)
durante os nove meses de gestação.

2.3 A POLÊMICA SOBRE O ABORTO NOS ESTADOS UNIDOS

Nos Estados Unidos, entre 1967 e 1970, cerca de metade dos estados
legalizaram o aborto, porém com várias restrições. Não existia então o chamado abortion on
demand (aborto por solicitação livre ou aborto a pedido). Geralmente a prática só era
permitida até o terceiro mês de gravidez e desde que preenchidas diversas restrições legais,
que variavam de estado para estado.

Em 1970 o estado de Nova York legalizou o aborto a pedido até o quinto mês
de gravidez. Um grande número de mulheres de outros estados americanos começaram a ir
para Nova York para abortar, o que causou acirradas polêmicas e diversas reações. Uma
dessas reações partiu do movimento pró-vida, que realizou uma exposição de fetos de abortos
tardios nas proximidades do Legislativo, impressionando profundamente os políticos que
tinham votado a favor do aborto, bem como a todos que tiveram acesso à mostra. Para que se
tenha uma idéia do que foi visto então, mostramos algumas fotos (anexo 1, página 191).

Bebês como esses eram mostrados aos políticos que haviam votado a lei
aprovando o aborto, ao mesmo tempo em que eram questionados acerca do conhecimento e da
consciência de que o aborto significava aquilo que estavam vendo. O impacto foi tal que em
poucas semanas o Legislativo de Nova York revogou por unanimidade a lei do aborto a
pedido. Entretanto, o governador do estado, Nelson Rockfeller, vetou a revogação e a lei foi
mantida. Nos outros estados americanos, entretanto, a repercussão foi tal que apenas o estado
da Flórida manteve a lei permitindo o aborto. Esta situação durou até 22 de janeiro de 1973,
quando a Suprema Corte Americana votou Roe versus Wade.
33

2.4 ROE VERSUS WADE25

No dia 22 de janeiro de 1973, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no


processo Roe versus Wade, 410 U.S. 113 (1973), decidiu por sete votos contra dois que as leis
estaduais que tornavam ilegal para uma mulher fazer um aborto com mais de três meses de
gravidez eram inconstitucionais e que a decisão de ter um aborto deveria ser deixada para a
mulher e seu médico. Embora ferisse diversos princípios fundamentais da democracia
americana, como o federalismo e o texto constitucional, que sempre assegurou o direito à
vida, a decisão prevaleceu e legalizou o chamado aborto a pedido, durante todos os nove
meses da gestação, em todo o território americano.

Essa decisão teve um impacto extraordinário na história americana


contemporânea, remodelando a conjuntura política e radicalizando o debate pro-choice versus
pro-life. Todos os grandes debates políticos e sociais passaram então a ter no tema um ponto
inelutável, reestruturando sua prática discursiva. Políticos foram eleitos com base em
plataformas que favoreciam ou condenavam o aborto. Em seus discursos, o posicionamento a
respeito dessa questão era exigido pelos eleitores. Os presidentes americanos que se opuseram
à decisão foram: Gerald Ford, Ronald Reagan, George H. W. Bush e George W. Bush; os que
a apoiaram foram Jimmy Carter e Bill Clinton. Desde a questão escravocrata, nenhum outro
tema tinha causado tanta celeuma. Mais ainda: esse discurso não ficou restrito aos Estados
Unidos. Ele acabou sendo exportado para praticamente todos os continentes. Como exemplo
podemos citar a IPPF – International Planned Parenthood Federation (Federação
Internacional de Planejamento Familiar), presente em 180 países, inclusive no Brasil (com o
nome de BEMFAM).

Entretanto, os erros da decisão foram se tornando cada vez mais evidentes.


Diversos advogados liberais, especialistas em leis de diversas universidades, mesmo se
opondo ao movimento pró-vida, criticaram a decisão por sua inconstitucionalidade e diversos
outros pontos falhos. Isso tudo fortaleceu os movimentos que buscam derrubar Roe versus
Wade e o overturn (reversão de uma lei) é cada vez mais provável.

25
Nos Estados Unidos, em processos judiciais, são usados pseudônimos para preservar a identidade do
queixoso. Jane Roe foi o pseudônimo escolhido para Norma Leah McCorvey. Henry Wade era o promotor do
município de Dallas e representou o estado do Texas perante a Suprema Corte. Essa é a origem do nome da
decisão da Suprema Corte Americana Roe versus Wade.
34

Ora, tudo isso se reflete nos discursos que, como já foi observado, são
produzidos nos Estados Unidos e exportados/importados para todo o mundo. Um desses
reflexos é este: a partir do momento em que o movimento pro-choice se sentiu ameaçado pela
possibilidade de derrubada da lei pró-aborto, seu discurso se tornou mais tímido, buscando
uma posição aparentemente moderada, visando a defender o mainstream (corrente em voga).
No momento, vamos fazer um breve histórico daquela que é a personagem central dessa
decisão, Norma Leah McCorvey.

2.5 NORMA McCORVEY

Em 1970, as advogadas Linda Coffe e Sarah Weddington iniciaram um


processo contra o estado do Texas, em nome de Norma Leah McCorvey, nascida em 22 de
setembro de 1947, que alegava ter sido engravidada por meio de um estupro – embora mais
tarde tenha dito que isso era falso – e que exigia o direito de abortar. O caso chegou até a
Suprema Corte dos Estados Unidos26, que aprovou o aborto a pedido, conforme já foi exposto
acima. Todavia, como o processo demorou muito, Norma acabou tendo o bebê, que deu para
adoção.

Ela passou então a trabalhar na indústria do aborto, tendo sido por vinte e dois
anos a poster woman (mulher símbolo) do movimento pró-aborto.

Em 22 de julho de 1995, Norma tornou-se cristã. O processo de sua mudança,


segundo entrevistas dadas por ela, deveu-se particularmente à percepção entre a diferença do
discurso pró-aborto e sua prática. Passou, então, a trabalhar em tempo integral para o
movimento pró-vida. Em 17 de agosto de 1998, Norma McCorvey tornou-se católica, tendo
sido recebida na Igreja pelo padre Frank Pavone, diretor da organização Priests for Life –
Padres pela Vida.

26 Norma McCorvey nunca compareceu perante a Suprema Corte.


35

2.6 A POSIÇÃO DA IGREJA CATÓLICA

A Igreja Católica sempre condenou e puniu o aborto. No século XX, com o


surgimento e acirramento do discurso pró-aborto, as condenações da Igreja passam a ser
expressas de forma mais constante e assertiva, criando e colocando em circulação novos
enunciados. Nossas pesquisas sinalizam que esses enunciados não são criados a partir do
nada. Surgem a partir do confronto que um novo objeto, pela sua simples emergência, faz
aparecer, ao se posicionar frontalmente contra um princípio pré-existente em determinada
formação discursiva. Dessa forma a Igreja publica no século XX muitos documentos que
condenam o aborto, conforme o papa João Paulo II (1993, p. 124):

A disciplina canônica da Igreja, desde os primeiros séculos, puniu com sanções


penais aqueles que se manchavam com a culpa do aborto, e tal praxe, com penas
mais ou menos graves, foi confirmada nos sucessivos períodos históricos. O Código
de Direito Canônico de 1917, para o aborto, prescrevia a pena de excomunhão.
Também a legislação canônica, há pouco renovada, continua nesta linha quando
determina que “quem procura o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em
excomunhão latae sententiae”, isto é, automática. A excomunhão recai sobre todos
aqueles que cometem este crime com conhecimento da pena, incluindo também
cúmplices sem cujo contributo o aborto não se teria realizado: com uma sanção
assim reiterada, a Igreja aponta este crime como um dos mais graves e perigosos,
incitando, deste modo, quem o comete a ingressar diligentemente pelo caminho da
conversão. Na Igreja, de fato, a finalidade da pena de excomunhão é tornar
plenamente consciente da gravidade de um determinado pecado e,
conseqüentemente, favorecer a adequada conversão e penitência.

Em termos de prática discursiva, esse posicionamento firme da Igreja gera uma


polêmica dentro da polêmica, especialmente com aqueles que consideram possível o
simultâneo apoio às teses pró-aborto e a manutenção do status de católico. De um modo
particular, são atingidas as pessoas públicas, de qualquer um dos poderes, que dão suporte ao
aborto.

Particularmente importante é observar que os princípios que deram origem e


que sustentam o movimento pró-vida têm sua origem na Igreja Católica, sendo que a maioria
dos membros daquele são também membros desta.
36

2.7 A PRÁTICA DO ABORTO

Este capítulo ficaria incompleto sem uma referência mais direta à prática do
aborto, afinal precisamos ter uma visão mais clara sobre o que estamos falando. Por isso
passamos a expor como o aborto é realizado na atualidade. Os procedimentos que
explicitamos foram ampla e detalhadamente descritos pelo médico norte-americano Tony
Levatino – que atuou durante vários anos na área, tendo praticado cerca de 1.200 abortos
pessoalmente – e podem ser lidos em Nazaré (2005 p. 51-56). Faremos aqui uma exposição
resumida e já traduzida para o português.

Existem dois conjuntos de métodos abortivos: o cirúrgico e o químico.


Atualmente, o aborto cirúrgico é realizado de duas maneiras, de acordo com a idade do feto.
Até o final do primeiro trimestre de gravidez usa-se um método chamado aborto por sucção e
curetagem. Nesse procedimento, quem está fazendo o aborto27 dilata o colo do útero até poder
inserir uma cânula de plástico ligada a um poderoso aspirador, movendo então a ponta da
cânula pelo interior do útero causando o desmembramento do feto em pedaços que são então
sugados pelo aspirador, juntamente com a placenta. Possíveis partes remanescentes são
raspadas do útero e então uma nova aspiração é feita. Todo o conteúdo do aborto é recolhido
em uma recipiente de vidro, para se ter a certeza de que nenhuma parte foi deixada para trás
(anexos 2 e 3, páginas 192 e 193). Acima de três meses de idade o feto já está muito grande
para ser usado o processo de sucção e curetagem. Usa-se então o método conhecido como
dilatação e evacuação. Primeiramente, é retirado um dispositivo dilatador cervical conhecido
como laminaria, que foi fixado na cervix 24 horas antes do aborto. Introduz-se então uma
cânula ligada a um aspirador para sugar o liquido amniótico. Então, usando uma espécie de
pinça conhecida como Sopher clamp, procura-se agarrar partes do feto – qualquer parte, já
que esse é um procedimento cego – e puxá-las com muita força, de forma a arrancá-las. O

27
A palavra usada no texto original é abortionist (aborteiro). Como essa palavra aponta para um juízo de valor
pro-life – contrário à isenção que deve marcar todo trabalho cientifico – e como o termo “médico” ofende essa
classe – afinal, relativamente poucos realizam esse procedimento – usaremos expressões como “quem está
fazendo o aborto” ou outras parecidas. Entretanto, gostaríamos de observar que a impossibilidade de usar o
termo “aborteiro” constitui, em si mesma, uma negação que expressa um posicionamento – mainstream – pro-
choice e – tertio non datur – sinaliza a impossibilidade de um posicionamento totalmente neutro em relação ao
nosso tão polêmico corpus. Com efeito, parece-nos que a percepção de isenção deriva de um posicionar-se
conjuntamente (mainstream) em relação a um tema – fato que cria uma ilusão de “imparcialidade enunciativa”.
37

processo é repetido até que todas as partes sejam arrancadas e extraídas. A última parte a ser
extraída geralmente é a cabeça (anexos 2 e 3, páginas 192 e 193).

Além dos métodos cirúrgicos, existem também os métodos que usam certos
tipos de medicamento, como a RU-486 (Mifepristone), um hormônio esteróide sintético que
atua como abortivo. Como esses compostos podem ser facilmente contrabandeados, o
controle sobre esse tipo de prática é bastante difícil.

2.8 PARTIAL BIRTH ABORTION

Durante o governo do presidente Bill Clinton (1993-2001), começou a ser


praticado nos Estados Unidos o chamado Partial Birth Abortion-PBA (aborto no nascimento
parcial), realizável até o nono mês de gestação, ou seja, durante o processo de nascimento,
quando o bebê – cujo corpo está parcialmente fora do corpo da mãe, portanto legalmente não
completamente nascido – é: ou decapitado, ou tem sua cabeça esmagada, ou tem seu cérebro
sugado por um aspirador28. Esse procedimento estava implicitamente amparado pela decisão
Roe versus Wade, quando legalizou o aborto a pedido durante todos os nove meses da
gestação, deixando o “quando” e o “como” realizá-lo como mútuo entendimento entre médico
e paciente. As notícias sobre essa prática produziram um grande impacto sobre a opinião
pública americana e desencadearam mudanças na política e nos discursos americanos.
Algumas destas mudanças foram:

• O enfretamento pro-choice vs. pro-life se acirrou;

• O movimento pro-life ganhou simpatia junto à opinião pública, o movimento pro-choice


começou a ser repudiado;

28
Pensava-se que apenas a terceira opção era usada, por ser a normalmente descrita por médicos praticantes do
aborto aos seus alunos, entretanto, o depoimento de médicos e enfermeiras do ramo, prestados perante a
Suprema Corte americana, revelaram as outras formas. Também gostaríamos de esclarecer que atenuamos os
termos e expressões que aparecem no texto da Suprema Corte. Assim, no original, o esmagamento do crânio do
bebê é descrito como segue: “Another doctor, for example, squeezes the skul after it has been pierced ‘so that
enough brain tissue exudes to alloow the head passe true’” – Outro médico, por exemplo, espreme o crânio após
esse ter sido pinçado “para que o tecido cerebral escorra para permitir que a cabeça passe” (Supreme Court PBA
ban, 2007, p. 8).
38

• Os políticos americanos se envolveram em grandes debates. Alguns, como a senadora


Barbara Boxer (Califórnia) e o senador Barack Hussein Obama (Illinois) defenderam o
PBA e sofreram os efeitos das vitórias e derrotas do embate;

• A câmara e o senado americanos (House of Representatives and the Senate) aprovaram


em 1996 e em 1997 leis proibindo (ban) o PBA. O presidente Clinton vetou ambas;

• O crescimento do movimento pró-vida foi decisivo para a eleição e re-eleição do


Republicano George W. Bush como 43° presidente americano;

• O presidente George W. Bush proibiu (ban) o PBA. O caso foi apreciado pela Suprema
Corte americana, sob enorme pressão dos grupos pró-vida e pró-aborto e, em 18 de abril
de 2007 – momento em que estávamos escrevendo este texto – o veto do presidente
George W. Bush foi confirmado e o Partial Birth Abortion banido. Essa derrota
enfraqueceu ainda mais o movimento pro-choice;

• Muitos políticos democratas, defensores do aborto, recuaram de suas posições – ou as


ocultaram esperando outras oportunidades – como a senadora pelo estado de Nova Iorque,
Hillary Rodham Clinton e a senadora Boxer, citada acima, que agora defende causas
ecológicas;

• Enunciados como “... the independent existence of the second life can in reason and all
fairness be the object of state protection that now overrides the rights of the woman...”29
(Supreme Court PBA ban, 2007, p. 19), surgem, mesmo como negação, no texto final da
decisão da Suprema Corte, discurso impensável há poucos meses atrás. Expliquemos
melhor esse enunciado, que assinala um divisor de águas, um novo elemento incorporado
ao interdiscurso30 onde se enfrentam pro-choice/pro-life: até o presente momento, a
tendência predominante – mainstream – dizia que os direitos da mulher, mesmo aqueles
subjetivos, como o seu bem estar psicológico, prevaleciam sobre o direito do nascituro à
vida. Essa é a base do aborto a pedido, que não necessita de qualquer justificativa ou
explicação. Agora, o paradigma começa a mudar na direção da relação entre os direitos do
nascituro e os da mãe;

29
Tradução: “A existência de uma segunda vida pode, com direito e imparcialidade, ser um objeto de proteção
do Estado que agora supera os direitos da mulher”.
30
Consideramos a incorporação de novos elementos ao interdiscurso um tema absolutamente fascinante.
Estamos efetuando pesquisas e reflexões nessa área e os resultados parecem promissores.
39

• A possibilidade do overturn de Roe vs. Wade é cada vez mais forte31.

Transcrevemos abaixo alguns trechos do texto final da decisão da Suprema


Corte Americana, onde é descrita com detalhes o que é a prática do PBA. Sabemos que se
trata de algo bastante forte, entretanto acreditamos que sem uma visão clara do procedimento
não é possível compreender todos os impactos que sua divulgação causou, conforme
descrevemos acima. Um esquema gráfico da prática pode ser encontrado no anexo 4, página
194.

“Dr. Haskell went in with forceps and grabbed the baby’s legs and pulled them
down into the birth canal. Then he delivered the baby’s body and the arms –
everything but the head. The doctor kept the head right inside the uterus... The
baby’s little fingers were clasping and unclasping, and his little feet were kicking.
Then the doctor stuck the scissors in the back of his head, and the baby’s arms
jerked out, like a startle reaction, like a flinch, like a baby does when he thinks he is
going to fall. The doctor opened the scissors, stuck a high-powered suction tube into
the opening, and sucked the baby’s brains out. Now the baby went completely limp.
He cut the umbilical cord and delivered the placenta. He threw the baby in a pan,
along with the placenta and the instruments he had just used. […] After Dr.
Haskell’s procedure received public attention [..] bans on “partial birth abortion”
proliferated. [...] In 1996, Congress also acted to ban partial-birth abortion.
President Clinton votoed the congressional legislation. Congress approved another
bill banning the procedure in 1997, but President Clinton again vetoed it (Supreme
Court PBA ban, 2007, p. 8).32

Destacamos aqui a questão do PBA por ser a de maior impacto sobre o tema.
Entretanto, essa não é a única. Outras questões, como Parental Consent e Parental
Notification (consentimento dos pais e notificação aos pais), são ainda mais polêmicas.
Basicamente, são leis que permitem que menores de idade, pratiquem – ou sejam levadas a

31
O fim de Roe vs. Wade não implicaria na criminalização do aborto nos Estados Unidos, mas sim no fato de
que, segundo o princípio do federalismo, cada estado americano teria sua própria legislação sobre o assunto.
32
O doutor Haskell introduziu o fórceps e agarrou as pernas do bebê e as puxou para a vagina. Então ele fez
nascer o corpo e os braços do bebê – tudo menos a cabeça. O doutor manteve a cabeça dentro do útero. Os
dedinhos do bebê estavam se fechando e abrindo e seus pezinhos estavam chutando. O doutor enterrou a tesoura
na sua nuca e um espasmo percorreu os braços do bebê, como um choque, como uma reação de fuga, como um
bebê faz quando ele acha que vai cair. O doutor abriu a tesoura, introduziu um tubo de sucção de alta potência no
orifício e sugou o cérebro do bebê. Agora o bebê estava completamente mole. Ele cortou o cordão umbilical, e
retirou a placenta. Ele jogou o bebê em uma tina, juntamente com a placenta e os instrumentos que tinha usado.
[...] Depois que a prática do dr. Haskell recebeu atenção pública [...] leis proibindo o aborto no nascimento
parcial proliferaram [...] Em 1996 o congresso também agiu para proibir o PBA. O presidente Clinton vetou a
legislação do Congresso. O Congresso aprovou uma outra lei banindo o procedimento em 1997, mas o
presidente Clinton novamente a vetou.
40

praticar – o aborto sem o consentimento e/ou conhecimento de seus pais. Essas leis variam de
estado para estado.

Ao concluirmos este capítulo sobre a história da polêmica e da prática do


aborto, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que essa não é uma história acabada,
que podemos analisar com a tranqüilidade de quem estuda fatos ocorridos em outro tempo,
mas sim uma realidade que faz parte do nosso dia-a-dia e que – de uma forma ou de outra –
nos afeta, ao mesmo tempo em que também é afetada por nós.
41

3 A CONSTITUIÇÃO DO DISCURSO DO MOVIMENTO PRO-LIFE

Duas razões nos levaram a escrever este capítulo: sabermos que, segundo o
princípio do primado do interdiscurso, “a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas
um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos” e que “seria a
relação interdiscursiva, pois, que estruturaria a identidade (dos posicionamentos ou formações
discursivas)” (MAINGUENEAU, 2005, p. 21). Ora, o Outro do posicionamento pro-choice é
o discurso pro-life e, portanto, sem entender este não é possível compreender aquele. Em
segundo lugar, vermos aqui uma oportunidade de tratarmos de alguns aspectos teóricos
aplicados por Maingueneau, particularmente daquilo que o autor denomina de “discursos
constituintes”.

Iniciaremos nosso percurso a partir de uma proposição do lingüista francês em


“Gênese dos discursos”, que, ao definir “campo discursivo”, diz:

... um conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência,


delimitando-se reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo.
“Concorrência” deve ser entendida da maneira mais ampla; inclui tanto o confronto
aberto como a aliança, a neutralidade aparente etc. entre discursos que possuem a
mesma função social e divergem sobre o modo pelo qual ela deve ser
preenchida (2005, p. 35, grifo nosso).

O aspecto que gostaríamos de destacar nessa proposição está contido na


expressão “discursos que possuem a mesma função social e divergem sobre o modo pelo qual
ela deve ser preenchida”. Realmente – e isto é absolutamente essencial para a compreensão de
nosso trabalho – tanto o movimento pro-choice como o movimento pro-life reconhecem toda
a problemática concernente ao aborto. Reconhecem, igualmente, a questão do planejamento
familiar. A diferença entre eles refere-se às soluções que esses movimentos apontam e
procuram implementar para essas questões sociais; soluções essas que passam pelo filtro do
sistema de restrições semânticas de cada uma dessas formações discursivas e que, no plano
42

prático, levam ao confronto direto, por vezes violento33. Mas, como já citamos anteriormente,
as formações discursivas pro-choice e pro-life têm suas origens em discursos maiores: o
discurso liberal e o discurso conservador, sendo que o discurso conservador, particularmente
na sociedade ocidental, tem sua origem nos valores do cristianismo, de um modo especial na
Igreja Católica. De fato, movimento pro-life e Igreja Católica se confundem muitas vezes,
chegando ao ponto em que os defensores do movimento pro-choice atacam diretamente a
Igreja, passando por cima do movimento pro-life propriamente dito. Chegamos, então, ao
discurso religioso. Maingueneau, no “prefácio do autor” escrito para a tradução brasileira de
“Gênese dos discursos” no ano de 2004, portanto vinte anos após o lançamento do original na
França34, diz que “pode-se lamentar que o discurso religioso continue a ser o parente pobre da
análise do discurso, ao mesmo tempo em que o fato religioso está particularmente presente no
mundo contemporâneo” (2005, p. 13). Destacaríamos a presença do discurso religioso não
apenas enquanto tal, mas enquanto fonte do discurso pro-life. Isso nos remete a um outro
conceito trabalhado por Maingueneau, o conceito de discurso constituinte:

Até hoje não foi justificada a necessidade de agrupar em uma unidade consistente
discursos como o religioso, o filosófico, o literário, o científico etc. Enquadrá-los em
uma mesma categoria, a de discursos constituintes, permite, porém, pôr em
evidência propriedades comuns que são invisíveis ao primeiro olhar [...] A pretensão
desses discursos [...] é de não reconhecer outra autoridade que não a sua própria, de
não admitir quaisquer outros discursos acima deles. [...] Os discursos constituintes
operam a mesma função na produção simbólica de uma sociedade, uma função que
nós poderíamos chamar de archeion. Esse termo grego, étimo do latino archivum,
apresenta uma polissemia interessante para a nossa perspectiva: ligado a archè,
“fonte”, “princípio”, e a partir daí a “comando”, “poder”, o archeion é a sede da
autoridade, um palácio, por exemplo, um corpo de magistrados, mas também os
arquivos públicos. O archeion associa assim intimamente o trabalho de fundação no
e pelo discurso, a determinação de um lugar associado a um corpo de enunciadores
consagrados e uma gestão da memória [...] Os discursos constituintes dão sentido
aos atos da coletividade, eles são os fiadores de múltiplos gêneros do discurso. O
jornalista às voltas com um debate sobre um problema social recorrerá muito
naturalmente à autoridade do intelectual, do teólogo ou do filósofo. Mas o inverso
não acontece (MAINGUENEAU, 2006a, p. 33-34).

Em um outro texto, publicado por Maingueneau em seu site dentro do portal da


Universidade de Paris 12 (Université Paris 12 Val-de-Marne)35, onde é professor de ciências

33
Pensamos que grande parte da violência ocorrida durante a história da humanidade pode ser mais bem
analisada a partir dessa premissa.
34
O livro foi publicado pela editora Mardaga, na cidade de Liège, Bélgica, em 1984, sob o título “Genèses du
discours”. A Bélgica faz parte dos países francófonos.
35
Embora portal e site possam ser considerados sinônimos, o termo portal costuma ser aplicado aos grandes
projetos, grandes sites, como o da Universidade de Paris 12, que abriga muitos outros sites, entre eles o do
professor Maingueneau. O endereço do portal da Universidade de Paris 12 é <http://www.univ-paris12.fr> e o
site do professor Maingueneau é <http://www.univ-paris12.fr/www/labos/ceditec/maingueneau.html>. Aqui
43

da linguagem (professeur en sciences du langage), o autor faz algumas proposições


interessantes. Particularmente, chamamos a atenção para o termo original self-constituting
discourses (discursos auto-constituintes) que encerra melhor a natureza auto-fundadora e
independente que esses discursos reivindicam:

By nature, self-constituting discourses claim to found others and not to be founded.


This property permits a definition of their status in interdiscourse, but it does not
correspond necessarily to the personal convictions of their speakers. Such
discourses are at once self- and heteroconstituents, two inseparable aspects : only
a discourse that constitutes itself can found others. Therefore the name « self-
constituting discourses » must not be misconstrued: ideally, we should write « (self-)
constituting discourses », with « self » put in brackets. That does not mean that
other forms of discourse do not act on them; on the contrary, self-constituting
discourses and other areas are always interacting, but in the case of self-
constituting discourses, that interaction is ruled by specific principles, which are
different for each type of discourse (MAINGUENEAU, 1999, p. 3).36

Passemos, pois, a trabalhar com a vertente pro-life do discurso católico. Para


isto iremos, partindo dos pressupostos colocados por Maingueneau em “Gênese dos
discursos” e de seus estudos sobre discursos constituintes, utilizar uma nova abordagem, que
consistirá em relacionar o discurso constituinte religioso ao discurso pro-life, seguindo um
percurso que se inicia nas Sagradas Escrituras, passa pelo Magistério da Igreja Católica,
através da encíclica Evangelium Vitae do papa João Paulo II e vai até dois grandes líderes do
movimento pro-life: madre Tereza de Calcutá – que embora tenha falecido em 1997 ainda
continua sendo um dos ícones desse movimento – e o padre americano Thomas J. Euteneuer,
presidente da ONG HLI – Human Life International37. Utilizamos aqui a expressão “nova
abordagem” relativamente ao procedimento normalmente adotado, que consiste em relacionar
uma formação discursiva ao seu Outro:

pode-se acessar livremente muitos artigos e escritos desse professor – em francês e inglês - especialmente
materiais recentemente escritos, o que é realmente interessante.
36
Por natureza, discursos auto-constituintes reivindicam fundar outros e não serem fundados. Essa propriedade
permite a definição de seu status no interdiscurso, mas não corresponde necessariamente às convicções de seus
enunciadores. Tais discursos são ao mesmo tempo auto e heteroconstituintes, dois aspectos inseparáveis:
somente um discurso que constitui a si mesmo pode fundar outros. Portanto o nome discurso auto-constituinte
não deve ser interpretado erroneamente: idealmente, nós deveríamos escrever “discurso (auto) constituinte”, com
“auto” posto entre parênteses. Isso não significa que outras formas de discurso não tenham efeito sobre eles; ao
contrário, discursos auto-constituintes e outras áreas estão sempre interagindo, mas no caso dos discursos auto-
constituintes, essa interação é regida por princípios específicos, os quais são diferentes para cada tipo de
discurso.
37
Presente em 75 países, a HLI é a maior organização pro-life do mundo. Ressaltamos, assim, nosso
compromisso de apresentar apenas enunciadores que sejam representativos em seus posicionamentos, quer sejam
pro-choice ou pro-life.
44

O caráter constitutivo da relação interdiscursiva faz aparecer a interação semântica


entre os discursos como um processo de tradução, de interincompreensão regrada.
Cada um introduz o Outro em seu fechamento, traduzindo seus enunciados nas
categorias do Mesmo e, assim, sua relação com esse Outro se dá sempre sob a forma
do “simulacro” que dele constrói (MAINGUENEAU, 2005, p. 28).

Aqui a interação semântica entre os discursos não é mais um processo de


interincompreensão regrada, de tradução do Outro nas categorias do Mesmo, sob a forma de
simulacros, mas sim “uma análise da ‘constituência’ dos discursos constituintes [...], mostrar
o vínculo inextricável entre o intradiscursivo e o extradiscursivo, a imbricação entre uma
organização textual e uma atividade enunciativa” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 62). Essa
atividade enunciativa “se instaura como dispositivo de legitimação de seu próprio espaço,
incluindo seu aspecto institucional; ela articula o engendramento de um texto e uma
maneira de inscrever-se num universo social” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 62, grifo
nosso). Temos, portanto, um discurso – o discurso pro-life – que se auto-instaura e, através de
uma atividade enunciativa, legitima seu próprio espaço e se inscreve em um universo social –
particularmente o universo católico –, inscrição que implica em seguir um outro que não mais
é o reverso, a oposição, o criador de simulacros, mas sim aquele que dá legitimidade à
enunciação, que permite situar-se, ocupar um espaço definido dentro do interdiscurso. No
caso do discurso pro-life, a legitimidade da enunciação deriva de sua profunda inscrição na
religião católica38, cujo discurso constituinte religioso se inscreve em uma relação
transcendental, pois a Igreja reivindica sua autoridade do próprio Deus, em nome do qual fala.

Neste ponto, gostaríamos de colocar algumas reflexões a respeito desse tópico,


reflexões essas nascidas de dois questionamentos instigantes. O primeiro refere-se à
“ecologia” do interdiscurso: como os inúmeros enunciados que fazem parte do interdiscurso
mantêm suas identidades, permitindo assim que esse mesmo interdiscurso se mantenha
heterogêneo sem se tornar caótico, sem se tornar uma massa amorfa de enunciados órfãos,
matéria prima informe para ser apropriada aleatoriamente por quaisquer enunciadores? O
segundo questionamento é: como uma formação discursiva emerge de maneira tão rápida e
tão perfeitamente estruturada, com um sistema de restrições semânticas que sabe reconhecer,
desde o início, aquilo que pertence e aquilo que não pertence ao seu posicionamento –

38
Há muitos anos, quando iniciamos nossas leituras sobre os movimentos pro-choice/pro-life, notamos que o
discurso pro-life parecia ser eminentemente católico, fato que pudemos constatar nos anos que se seguiram.
Constatamos igualmente a presença católica em outros movimentos que defendem a moralidade conservadora,
como a oposição à eutanásia, ao casamento homossexual etc. A adesão dos movimentos derivados da reforma
(luterana) só se deu anos depois.
45

devendo, portanto, ser acolhido ou rejeitado? Pensamos que a resposta para as duas questões
seja: uma formação discursiva, em seu processo de nascimento, possui dois referenciais: um
referencial negativo, o reverso, o Outro, aquilo que “faz sistematicamente falta a um discurso
e lhe permite fechar-se em um todo. É a parte de sentido que foi necessário que o discurso
sacrificasse para constituir sua identidade” (MAINGUENEAU, 2005, p. 39) e um referencial
positivo, modelo a ser imitado, um discurso fonte, pai, origem de seu “código genético”: o
discurso constituinte, no qual o discurso “filho” se inscreve: “A inscrição é assim
profundamente marcada pelo oxímoro de uma repetição constitutiva, a repetição de um
enunciado que se situa numa rede repleta de outros enunciados (por filiação ou rejeição) e se
abre à possibilidade de uma reatualização” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 63). Conforme
veremos na análise do corpus que vamos iniciar em seguida, grande parte dos esforços de um
discurso é despendida demonstrando seu posicionamento em relação a esses dois referenciais:

Eis um tema recorrente na análise do discurso na França: a unidade de análise


pertinente não é o discurso em si mesmo, mas o sistema de referência aos outros
discursos através do qual ele se constitui e se mantém; referir-se aos outros e referir-
se a si mesmo não são atos distinguíveis senão de modo ilusório; o interdiscurso não
se encontra no exterior de uma identidade fechada sobre suas próprias operações.
Certamente o posicionamento pretende nascer de um retorno às coisas, de uma justa
apreensão do Belo, da Verdade etc. que os outros posicionamentos teriam
desfigurado, esquecido, subvertido etc., mas essa pretensão por um termo que está
além dos discursos é na realidade atravessada por esses outros discursos
(MAINGUENEAU, 2006a, p.39).

Iniciemos, pois, a análise do corpus que selecionamos para este capítulo. Ele é
formado por quatro grupos de enunciados, distribuídos na tabela 1 (p. 46). O primeiro grupo
de enunciados foi retirado da Bíblia. O segundo da encíclica Evangelium Vitae, do papa João
Paulo II. O terceiro e quarto grupos foram extraídos do discurso de Madre Tereza de Calcutá
por ocasião da abertura do Congresso pela Família das Américas39 e do discurso “The Church
is the Pre-Eminent Defender of the Innocents”, proferido pelo padre Thomas J. Euteneuer,
presidente da ONG HLI .

39
Realizado em julho de 1980 na Guatemala, esse congresso tratou especialmente do tema “Planejamento
familiar natural”.
46
47

Comecemos por analisar o primeiro grupo de enunciados, retirados da Bíblia


que, enquanto discurso religioso, é um discurso constituinte por excelência40. Uma análise dos
principais semas presentes no texto nos mostra que a palavra Deus aparece onze vezes, a
palavra amor (amar etc.) oito vezes e a palavra próximo (irmão etc.) quatorze vezes. De fato,
os textos bíblicos referidos no primeiro quadro da tabela 1 (p. 46) falam da relação de amor
que o ser humano deve ter com Deus e da subseqüente relação de amor com seu semelhante,
tornado irmão por uma única e mesma filiação divina, conforme este excerto do primeiro
quadro: “Temos de Deus este mandamento: o que amar a Deus, ame também a seu irmão”41.
Esse mesmo enunciado encerra também um princípio fundamental dos chamados discursos
constituintes: “discursos que se propõem como discursos de origem, validados por uma cena
de enunciação que autoriza a si mesma” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 60). Acrescentaríamos
a essas considerações uma reflexão derivada de observações realizadas durante muitos anos
sobre o discurso religioso. Observamos que textos religiosos contidos na bíblia, nos escritos
dos Santos Padres e nos documentos do Magistério da Igreja Católica são silogisticamente tão
bem construídos – referimo-nos aqui ao silogismo formal – que os que se filiam aos
posicionamentos ateístas não arrostam sua lógica formal, buscando, então, recusar a
veracidade de suas premissas42. Isso vai acontecer de maneira marcante após a instauração do
humanismo renascentista e terá um dos seus ápices em três ícones da ciência racionalista:
Darwin, Freud e Marx. Esses negaram a premissa do homem criado por Deus, com destino
transcendental e eterno, e o transformaram em um ser produzido por uma evolução imanente
(Darwin), movido por interesses fundamentalmente econômicos (Marx) e por um conjunto de
componentes subjetivos (Freud). Não obstante os grandes fracassos experimentados pela
aplicação prática dos componentes das teorias de Darwin, Freud e Marx, continuamos
assistindo – particularmente nos meios acadêmicos brasileiros – a uma insistência pertinaz em
teses de um universo cultural e lingüístico que não mais existe43.
Essas proposições originárias do ateísmo militante, negando a veracidade da
premissa na qual se fundamenta o discurso religioso – a existência de Deus – pois, como
40
Se considerarmos a Bíblia apenas enquanto conjunto de textos, estaremos diante de um arquitexto.
41
Aliás, é interessante conferir nessa carta do apóstolo São João o uso recorrente da palavra irmão no lugar de
semelhante, próximo etc.
42
A expressão “recusar a veracidade de suas premissas” não implica em expressarmos no texto posicionamentos
pessoais, mas tão somente a tese corrente de que premissas são – ou pelo menos deveriam ser – verdadeiras.
43
Consideremos, aqui, de maneira breve, a realidade das línguas eslavas nos países que pertenciam ao bloco
soviético. Com o fim do regime comunista a língua mudou e expressões exaustivamente usadas durante aquele
período simplesmente desapareceram lá, mas ainda continuam a ser usadas aqui. Um bom exemplo é a expressão
ТОВАРИЩ = camarada, companheiro (pronuncia-se tavárish) que não é mais, de modo algum, usada na Rússia,
enquanto no Brasil... Um outro – intersemiótico – exemplo é a figura do Mickey Mouse estampada na primeira
página do jornal ПРАВДА (Pravda).
48

afirma Maingueneau: “Com eles44 são formuladas em toda a sua acuidade as questões
relativas ao carisma, à Encarnação, à delegação do absoluto45: a fim de autorizar-se por si
mesmos, eles devem se propor como ligados a uma fonte legitimadora” (2006b, p. 61),
buscam retirar a autoridade do discurso religioso. É, portanto, através da negação de Deus –
fonte legitimadora do discurso constituinte religioso – que se nega esse discurso e não através
da contestação de suas proposições. Não se nega o discurso em si, mas a sua autoridade.

Passemos ao segundo quadro da tabela 1 (p.46), onde encontramos fragmentos


da encíclica Evangelium Vitae, do papa João Paulo II. Esse texto do papa se enquadra naquilo
que Maingueneau chama de arquitexto: “A inscrição se distribui por degraus de hierarquias
instáveis. Certos textos adquirem um estatuto de inscrição última, eles se tornam o que se
poderia chamar de arquitextos” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 43). O autor cita, como
exemplo de arquitextos, os textos de Platão para filosofia, os textos dos Padres da Igreja para
o discurso religioso etc. Aqui se torna necessário explicar o que é inscrição. Segundo
Maingueneau:

O caráter constituinte de um discurso confere a seus enunciados um estatuto


particular. Mais que de “texto” e mesmo de “obra”, poderíamos falar aqui de
inscrições, noção que desfaz toda distinção empírica entre oral e gráfico: inscrever
não é forçosamente escrever. As literaturas orais são “inscritas”, como o são
numerosos enunciados míticos orais, mas essa inscrição segue caminhos que não são
os de um código gráfico. Uma inscrição é por natureza exemplar; ela segue os
exemplos e dá o exemplo. Produzir uma inscrição não é tanto falar em seu nome
quanto seguir o rastro de um Outro invisível, que associa os enunciadores-modelo de
seu próprio posicionamento e, para além disso, a presença da fonte que funda o
discurso constituinte: a tradição, a verdade, a beleza (2006b, p. 63).

Destacamos desse excerto o enunciado “Uma inscrição é por natureza


exemplar; ela segue os exemplos e dá o exemplo”, que parece aplicar-se perfeitamente ao
papa, que é definido como o “Vigário46 de Cristo” e, portanto, segue os seus exemplos
(ensinamentos): “devemos cuidar do outro enquanto pessoa confiada por Deus à nossa
responsabilidade” e dá o exemplo (ensina os fiéis): “A presente Encíclica quer ser uma
reafirmação precisa e firme...”.

44
Os discursos constituintes. No presente caso o discurso constituinte religioso.
45
“Temos de Deus este mandamento”.
46
Aquele que substitui outro, religioso que, investido dos poderes de outro, exerce em seu nome suas funções
(Houaiss Eletrônico, 2002, verbete “vigário”).
49

Outro enunciado que destacamos dos fragmentos da Evangelium Vitae


apresentados no segundo quadro é o seguinte: “Reivindicar o direito ao aborto, ao
infanticídio, à eutanásia, e reconhecê-lo legalmente, equivale a atribuir à liberdade humana
um significado perverso e iníquo: o significado de um poder absoluto sobre os outros e contra
os outros”. Aqui temos um exemplo da proposição de Maingueneau “Os discursos
constituintes são discursos que conferem sentido aos atos da coletividade [...] O jornalista, às
voltas com um debate social, vai recorrer à autoridade do sábio, do teólogo [...] mas o
contrário não acontece” (2006b, p. 61). Um outro exemplo: ao afirmar que “como discípulos
de Jesus, somos chamados a fazermo-nos próximos de cada homem”, o papa está dando
sentido a atos da coletividade – nesse caso a prática do amor fraterno – e não necessita
recorrer a discursos outros que não sejam os pertencentes ao chamado “depósito da fé”: “tudo
o que se contém na palavra de Deus escrita ou transmitida por Tradição, ou seja, no único
depósito da fé confiado à Igreja” (João Paulo II, Motu Proprio AD TUENDAM FIDEM, Cân.
750 – §1). Talvez o enunciado do papa pareça forte, entretanto, como afirma Maingueneau
“quando trabalhamos com discursos constituintes, estamos diante de sólidas estruturas
textuais que pretendem ter um alcance global, dizer algo sobre a sociedade, a verdade, a
beleza, a existência...” (2006b, p. 68).

Nesse percurso que estamos realizando, gostaríamos de chamar a atenção para


um aspecto pouco compreendido da função do papa dentro da Igreja, aspecto esse que pode
ajudar a clarificar o debate pro-choice versus pro-life e ao mesmo tempo trabalhar um
conceito introduzido por Maingueneau em 1993, conceito esse que tem despertado o interesse
de vários estudiosos do discurso. Referimo-nos à paratopia, definida pelo lingüista francês
como uma noção “para designar a relação paradoxal de inclusão/exclusão em um espaço
social que implica o estatuto de locutor de um texto que decorre dos discursos constituintes”
(CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2005, p. 368):

É uma difícil negociação entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária que
vive da própria impossibilidade de se estabilizar. Esse estatuto paradoxal resulta da
especificidade desses discursos que só podem autorizar-se por si mesmos: se o
locutor ocupa uma posição tópica, ele não pode falar em nome de alguma
transcendência, mas se não se inscreve de alguma forma no espaço social, não pode
proferir uma mensagem aceitável [...] um profeta ou um filósofo são paratópicos na
medida em que os discursos religiosos o são).

Quanto à função do papa dentro da Igreja, ele é o guardião de um depósito, o


depósito da fé; fala em nome de uma transcendência e, ao mesmo tempo, se inscreve em um
50

espaço social, a Igreja: está no mundo sem pertencer ao mundo, e por isso ele não pode
modificar os dogmas que formam esse depósito, entre os quais está o da inviolabilidade da
vida humana inocente. Isso implica, entre outras coisas, que o aborto nunca poderá ser
autorizado pela Igreja, conforme declaração realizada pelo papa João Paulo II na encíclica
Evangelium Vitae:

Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em
comunhão com os bispos – que de várias e repetidas formas condenaram o aborto e
que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram
unânime consenso sobre esta doutrina – declaro que o aborto direto, isto é,
querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave,
enquanto morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada
sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da
Igreja e ensinada pelo magistério ordinário e universal. Nenhuma circunstância,
nenhum fim, nenhuma lei no mundo poderá jamais tornar lícito um ato que é
intrinsecamente ilícito, porque contrário à Lei de Deus, inscrita no coração de cada
homem, reconhecível pela própria razão e proclamada pela Igreja (EV, p. 125).

Passemos agora à análise dos dois últimos grupos da tabela 1 (p. 46). Esses
enunciados se situam dentro daquilo que Maingueneau chamou de gêneros segundos: “os
discursos que se limitam a resumir, explicitar etc., uma doutrina já constituída” (2006b, p.
45).

O terceiro grupo de enunciados foi extraído do discurso de Madre Tereza de


Calcutá por ocasião da abertura do Congresso pela Família das Américas, realizado em julho
de 1980 na Guatemala, onde foi criticada a prática do aborto, da esterilização e o uso de
métodos artificiais de planejamento familiar e proposta como alternativa a utilização dos
métodos naturais de planejamento familiar, dos quais Madre Tereza foi certamente uma das
maiores promotoras:

Nas constituições de nossa congregação (não sei se alguma outra congregação o tem
na sua), há algo sobre o planejamento familiar que me marcou. Passo a ler esse
trecho: “Nossos centros de planejamento familiar instruem nossos pobres em relação
à dignidade, à beleza e à expressão do amor no matrimônio, com uma paternidade
responsável, sempre de acordo com os ensinamentos da Igreja, defendendo o direito
absoluto do próprio Deus” (GIBBONS, 1981, p. 22).

É interessante notar como esse excerto, apresentado como introdução, pode ser
analisado dentro do conceito de discurso constituinte com o qual estamos trabalhando. Logo
no início, Madre Tereza fala nas “constituições de nossa congregação”, que são as chamadas
“regras” de uma ordem religiosa, lugar onde são determinados todos os elementos da estrutura
51

dessa mesma ordem, seus objetivos e a maneira de viver a fé. Essa “regra” deve ser aprovada
pelo próprio papa e constitui-se no arquitexto fundamental para todos os que pertencem à
determinada congregação. No fim do fragmento ela diz “sempre de acordo com os
ensinamentos da Igreja, defendendo o direito absoluto do próprio Deus”, evocando a fonte
legitimadora de seus enunciados: “O caráter constituinte de um discurso confere uma
autoridade particular a seus enunciados, que são investidos de toda a autoridade conferida por
seu estatuto enunciativo47” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 43).

Falar de Madre Tereza de Calcutá a partir das proposições de Dominique


Maingueneau nos conduz a um conceito que o lingüista francês tem utilizado bastante em
seus trabalhos mais recentes, em particular naqueles referentes ao discurso constituinte: a
noção de ethos. Uma demonstração da formação do ethos pode ser vista no enunciado abaixo:

Figura 1 – Madre Tereza de Calcutá. Disponível em: < http://www.cancaonova.com/portal/ canais/especial


/madre_teresa/>. Acesso em: 01 set. 2007.

Colocamos o enunciado do papa João Paulo II a respeito de Madre Tereza


especialmente por ser um modelo de constituição do ethos. Assim, vemos que o papa atribui a
Madre Tereza um ethos – o de ser a personificação do próprio Cristo – ethos esse constituído
através de três características: o sorriso, as palavras e as obras. Sem desprezarmos as obras de
Madre Tereza e o valor de seu sorriso, já que, “a bem dizer, essas características (do ethos)
não são estritamente ‘intradiscursivas’, pois na elaboração do ethos intervêm igualmente
dados exteriores à fala propriamente dita (gestos, roupas...)” (MAINGUENEAU, 2006b, p.
268), vamos nos concentrar em suas palavras, na ligação do ethos ao ato de enunciação, que,
como nos informa Maingueneau, “não se trata de uma representação estática e bem
delimitada, mas uma forma primordialmente dinâmica construída pelo destinatário mediante o
próprio movimento de fala do locutor” (2006b, p. 268). Na análise das palavras de Madre
Tereza fomos ajudados por um feliz acontecimento: no exato momento em que, após

47
Nesse caso, falar em nome de Deus.
52

havermos transcrito esse enunciado de Maingueneau, íamos dar seqüência ao nosso trabalho,
a emissora católica norte-americana EWTN transmitia a gravação de um discurso proferido
por Madre Tereza48 para uma grande platéia. Ao final da exposição, diversas pessoas dessa
platéia foram entrevistadas, permitindo-nos ver o processo dinâmico de construção do ethos
pelo destinatário a partir da enunciação do locutor. Os destinatários manifestaram percepções
a nível intelectivo, emocional e espiritual (she made me cry – ela me fez chorar, I’ve felt close
to God – me senti próximo a Deus), estando todos visivelmente contentes. Um outro aspecto
que observamos foi o tom de voz. Ela se expressou muito bem em inglês – embora não seja
falante nativa – e, apesar da idade avançada, tinha um tom de voz firme e que denotava
convicção. Quanto à expressão corporal, em seu conjunto, diríamos que a tônica seria a
humildade. Essa combinação de postura forte e humilde, ao mesmo tempo, é rara, já que se
tende a associar força com orgulho e humildade com fraqueza, sendo esses dois simulacros
bastante usados quando se traduz o Outro na categoria do Mesmo. Enfim, se tivéssemos que
nomear o ethos que percebemos em Madre Tereza, diríamos que se trata de um ethos materno
clássico – a combinação de autoridade e doçura. É importante observar que, além do ethos
discursivo – que é construído durante a enunciação – existe também um ethos pré-discursivo
– formado pelas representações que os enunciatários fazem ou já possuem do enunciador
antes que ele comece o ato de enunciação – conceito que, evidentemente, se aplica à Madre
Tereza. Esse processo acaba sendo uma faca de dois gumes, pois, se por um lado favorece o
enunciador ao criar uma expectativa favorável ao seu discurso, por outro lado cobra dele nada
menos que a excelência.

Para continuarmos nossas observações sobre a constituição do ethos de Madre


Tereza, vamos aprofundar um pouco mais os conceitos de ethos e ethé49, a partir da noção de
incorporação, particularmente a partir das extensões feitas por Maingueneau em sua obra
“Discurso Literário” (2006b). Aqui o lingüista nos diz que incorporação é a maneira como o
destinatário-intérprete se apropria do ethos do enunciador e que essa ocorre em três passos
(2006b, p. 272):

1. A enunciação da obra confere uma “corporalidade” ao fiador, dá-lhe


um corpo.

48
O programa estava quase acabando, mas pudemos assistir cerca de 20 minutos de transmissão. Importante
observar que até então nunca tínhamos tido oportunidade de ver madre Tereza se expressando verbalmente.
49
Plural de ethos.
53

2. O destinatário incorpora, assimila um conjunto de esquemas que


correspondem a uma maneira específica de se relacionar com o mundo
habitando seu próprio corpo.

3. Essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um


corpo, o da comunidade imaginária daqueles que aderem ao mesmo
discurso.

O autor prossegue explicando que:

Na verdade, a “incorporação” do leitor vai além de uma simples identificação com


um “fiador”, implicando um mundo ético de que esse “fiador” participa e ao qual dá
50
acesso. Esse mundo ético ativado através da leitura subsume certo número de
situações estereotípicas associadas a comportamentos: a publicidade contemporânea
se baseia amplamente nesses estereótipos (o mundo ético do funcionário dinâmico,
dos vaidosos, dos astros de cinema etc.). (MAINGUENEAU, 2006b, p. 272).

Aplicando essas proposições aos três excertos do terceiro quadro da tabela 1


(p. 46) teremos:

(1) O primeiro excerto pode ser dividido em duas partes. Na primeira, Madre Tereza se coloca
como exemplo. Essa parte corresponde ao primeiro passo da proposição de Maingueneau,
onde “a enunciação da obra confere uma corporalidade ao fiador, dá-lhe um corpo”:

Um dia desses, estive pensando que, se meu pai e minha mãe não me houvessem
querido, se minha mãe me tivesse abortado, hoje eu não seria Missionária da
Caridade. Não poderia cuidar desses leprosos, moribundos, aleijados, indesejados e
esquecidos. Não teria a oportunidade de sorrir e levar alegria a tantos seres
solitários.

Na segunda parte Madre Tereza estende seu exemplo: “Deus criou a cada um
de nós à sua imagem. Nós fomos criados para amar e ser amados. E, se não cumprimos nossa
parte, teremos deixado de experimentar a felicidade de amar e ser amados”. Aqui o processo
descrito no passo dois se torna mais claro, com o destinatário sendo explicitamente instado a
assimilar um esquema que corresponde a uma maneira específica de se relacionar com o
mundo. É fundamental destacar que esse processo existe desde o início da comunicação –
caso contrário o destinatário não teria se integrado a ela – e mesmo antes do início, pois
50
Subsumir = incluir, classificar, agrupar.
54

quando os enunciatários se dispuseram a assistir a uma palestra de Madre Tereza, já estavam


se integrando em um determinado universo, o “mundo ético de que esse fiador participa e ao
qual dá acesso” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 272, grifo nosso). Destacamos a expressão “ao
qual dá acesso” para relacioná-la com uma das declarações ouvidas logo após a palestra de
Madre Tereza: “I’ve felt close to God = eu me senti próximo a Deus”. Na verdade esse
processo de ter acesso a um determinado mundo ético, através de um fiador, representa a
segunda mais fundamental necessidade humana, logo após a satisfação das necessidades
biológicas mais elementares, como respirar e se alimentar; e mesmo essas não podem ser
satisfeitas se não tivermos acesso a um mundo ético, seja a família, a escola, o trabalho, a
comunidade etc. É fácil perceber, partindo dessas reflexões, como todas as lideranças – sem
qualquer exceção – se fundamentam nesse mesmo princípio: dar acesso a um mundo ético. As
lideranças políticas prometem dar aos indivíduos o acesso ao mundo da cidadania, fazer de
todos “cidadãos”; as lideranças religiosas criam acesso ao transcendental51; a sociedade
moderna, com todos os seus suportes midiáticos, dá acesso ao mundo do consumismo, do
hedonismo, do utilitarismo52 etc.; os líderes de seitas esotéricas iniciam seus discípulos em
ramos ocultos de conhecimento; a lista é interminável, porém a função é sempre a mesma:
inserir o enunciatário na comunidade imaginária daqueles que aderem ao mesmo discurso.

(2) No segundo excerto, após ter passado por si mesma e pelos seus enunciatários, Madre
Tereza prossegue em seu percurso discursivo até a figura do próprio Deus:

Nós devemos entender como amar a Deus, porque é muito difícil amar um Deus que
não podemos ver, muito difícil mesmo [...] Foi por isso que ele se converteu em pão
vivo para satisfazer nossa fome de Deus, nossa fome do amor de Deus. E, como se
isso não bastasse, converteu-se no faminto, no desnudo, no mais humilde, no
solitário, no indesejado, no doente. E disse: “O que fizeste ao último dos meus
irmãos, a mim o fizestes”. E esse nosso “fazer” representa a satisfação de sua fome
de nosso amor.

51
A necessidade do transcendental é de tal forma intensa que os que apóiam teses materialistas perceberam não
ser possível enfrentá-la pela simples negação ateísta. Essa percepção estaria na origem do movimento NEW
AGE, que procura enfrentar a religião – especialmente o Cristianismo – não por negação, mas por substituição,
através de formas neo-pagãs, que são simulacros de religião sutilmente construídos. O simulacro aqui fica por
conta do redirecionamento de religião – do latim religare, religar o homem a Deus – para um viés que procura
preencher uma necessidade psicológica do transcendental sem, no entanto, realmente conduzir o homem a Deus.
Esse é um tema que estamos pesquisando há algum tempo e as noções de “incorporação”, “fiador” e “mundo
ético” deram novo impulso aos nossos estudos.
52
Utilitarismo que se revela, analisando dentro do viés de nosso corpus, na “criação” do ser humano descartável,
através do aborto e da eutanásia.
55

Para melhor compreendermos esse texto, vamos colocar duas noções


introduzidas por Maingueneau (2006a, p. 91-110): particitação e hiperenunciador. Sem nos
estendermos muito, diremos apenas que particitação deriva de participação e citação e é uma
forma de co-citação onde o enunciado possui autonomia e é facilmente reconhecido pelos
alocutários – caso das citações bíblicas e católicas que destacamos no excerto do discurso de
Madre Tereza – e onde o locutor “mostra claramente sua adesão ao enunciado citado, que
pertence àquilo que se poderia denominar um Thesaurus de enunciados [...] indissociável de
uma comunidade [...] e que, precisamente, se define de maneira privilegiada por compartilhar
um tal Thesaurus” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 92). Maingueneau explica que a validade e
adequação desse Thesaurus é garantida por um hiperenunciador, noção que remete, entre
outras, às de “sabedoria popular”, “sabedoria das nações”, “o Direito Francês”, “A
Antiguidade” etc. Entre os diversos Thesaurus citados por Maingueneau destacaremos o
Thesaurus bíblico, usado constantemente por Madre Tereza e por todos os que aderem ao
Cristianismo53, em nosso caso particular, pelo movimento pro-life; e que tem como
hiperenunciador o próprio Deus. Temos então a seguinte análise dos três fragmentos
destacados do excerto de Madre Tereza (quadro 1, tabela 1, p. 46):

• “Amar um Deus que não podemos ver” é a particitação de “Porque


aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus,
que não vê”.

• “Ele se converteu em pão vivo” é a particitação dos diversos textos


referentes à Eucaristia, tanto aqueles presentes na bíblia como os
originários dos inúmeros documentos sobre o tema escritos pela Igreja
Católica.

• “O que fizestes ao último dos meus irmãos, a mim o fizestes”. Esse


exemplo é semelhante a um outro, comentado por Maingueneau, por

53
Na verdade, a partir das reflexões do papa Bento XVI na Universidade de Regensburg (2006), podemos
considerar que temos dentro do Cristianismo ocidental dois Thesaurus: (1) o Thesaurus católico que, após um
trabalho de crítica filosófica, tornou o patrimônio filosófico grego uma parte integrante da fé cristã,
especialmente através de Santo Agostinho, que foi um dos principais expoentes da chamada Patrística e o
responsável pelo resgate cristão do pensamento do filósofo grego Platão, movimento onde se buscou explicar a
fé através de argumentos racionais fundados na filosofia Platônica; e da Escolástica, que teve na pessoa de São
Tomás de Aquino um de seus principais pensadores, resgatando o pensamento de Aristóteles e buscando a
harmonização entre fé e razão. (2) A partir de um processo começado com a tese Sola Scriptura, iniciado pela
Reforma luterana no século XVI, começa um trabalho de deselenização do cristianismo nas chamadas “igrejas
oriundas da reforma” que se referem às Escrituras de modo fundamentalista, fundando assim um novo
Thesaurus. Uma análise da constituição do discurso protestante, especialmente do seu viés léxico, a partir de um
processo histórico – a deselenização – certamente seria um trabalho interessante.
56

isso iremos reproduzir aqui a análise do autor: “Nesse exemplo a


particitação implica diretamente o hiperenunciador, por menos que se
admita que Jesus é Deus: por intermédio do Cristo, exprime-se o
hiperenunciador que funda o Thesaurus católico, o próprio Deus”
(2006a, p. 100).

(3) Finalmente, no último excerto, temos o enunciado “Nós sabemos o que fez Jesus, como
proclamou a boa nova de que Deus realmente nos ama”. Aqui são integrados o enunciador, os
enunciatários e o hiperenunciador no mesmo mundo ético e, a partir desse ponto o discurso
pode assumir um tom mais “familiar”, onde todos se sentem parte de uma mesma
comunidade, onde algo é compartilhado: “nós sabemos... Deus realmente nos ama”.

Os enunciados do quarto grupo da tabela 1 (p. 46) foram retirados do discurso


“The Church is the Pre-Eminent Defender of the Innocents”, proferido pelo padre Thomas J.
Euteneuer, presidente da ONG HLI (Human Life International) no mês de maio de 2001
(anexo 5, página 197). Antes de entrarmos na análise dos fragmentos selecionados,
gostaríamos de mostrar os dois segmentos iniciais do discurso e relacioná-los com as noções
que estamos estudando. Os fragmentos são estes:

Rev. Thomas J. Euteneuer became president of Human Life International in


December of 2000. Human Life International is the world’s largest pro-life
organization with affiliate offices and associates in eighty countries around the
world. In six years of service to this unique mission Fr. Euteneuer has traveled more
than 700,000 miles as a pro-life missionary and visited more than fifty countries. Fr.
Euteneuer was born in Detroit, Michigan in 1962, the fourth of seven children born
to Joseph and Marian Euteneuer. He has a Bachelor's degree in Philosophy from
the University of Notre Dame in Indiana as well as a Licentiate degree in Biblical
Theology from the Pontifical Gregorian University in Rome, Italy. He is fluent in
Spanish.

The Church is the Pre-Eminent Defender of the Innocents - Rev. Thomas J.


Euteneuer. May 28, 2001: Many people feel both overwhelmed and uncomfortable
facing such complex technical issues in the news today such as cloning, in-vitro
fertilization, the freezing of embryos and genetic screening (sex or defect selection).
This is understandable. The technical sophistication required to address these issues
is immense, and the average lay person is unprepared to deal with them. However,
we cannot ignore these issues because they may affect any one of us at any time, and
we want to have solid answers when we need them. Not only that, but there is
something more fundamental at stake which we cannot ignore either: the sanctity of
human life.

No primeiro fragmento temos a apresentação do padre Euteneuer. Essa


apresentação tem por finalidade lançar os alicerces de seu ethos. Merecem destaque as
57

afirmações de que ele é presidente da ONG pro-life HLI, a maior organização pró-vida do
mundo, presente em oitenta países e que em seis anos viajou mais de um milhão de
quilômetros em sua missão pró-vida. Também a sua foto (anexo 5, página 197), sorridente e
trajando clergyman, ajuda na formação do ethos. É importante enfatizar que o ethos e a
construção da cenografia estão presentes em todo o texto – e em qualquer texto – portanto
nossa análise, ressaltando o ethos em determinado segmento e a cenografia em outro, visa a
clarificar essas noções, sem qualquer equivocada intenção de confiná-las a determinados
segmentos textuais.

No segundo fragmento busca-se criar a cenografia de um mundo onde a


tecnologia manipula a vida humana de forma opressiva, gerando desconforto e perplexidade.
É justamente essa cenografia, aliada ao ethos de autoridade moral, que vão permitir o
desenvolvimento de toda uma argumentação que busca subordinar o desenvolvimento a um
conjunto de princípios morais, conforme podemos ver na tradução do segundo fragmento:

Muitas pessoas se sentem oprimidas e desconfortáveis ao encarar os complexos


assuntos tecnológicos nas notícias hoje em dia, tais como clonagem, fertilização in-
vitro, congelamento de embriões e triagem genética (seleção sexual e de defeitos).
Isso é compreensível. A sofisticação requerida para tratar desses assuntos é imensa,
e o leigo está despreparado para lidar com eles. Entretanto, nós não podemos ignorar
esses assuntos porque eles podem afetar cada um de nós, a qualquer momento, e nós
queremos ter respostas firmes quando delas precisarmos. Não apenas isso, mas há
algo mais fundamental em jogo e que nós não podemos ignorar: a santidade da vida
humana.

Destacaríamos aqui a dupla relação do discurso constituinte religioso com o


interdiscurso: alimentando-se dos pressupostos tecnológicos presentes nele e ao mesmo tempo
oferecendo seus próprios pressupostos éticos e morais.

Além das definições de CHARAUDEAU e MAINGUENEAU (2006, p. 286) que


consideram que “todo discurso é atravessado pela interdiscursividade, tem a propriedade de
estar em relação multiforme com outros discursos” e que o interdiscurso é “o conjunto das
unidades discursivas com as quais um discurso particular entra em relação implícita ou
explícita”, gostamos também de pensar o interdiscurso segundo um quadro do pintor francês
Paul Gauguin que em 1892, durante uma estadia na Polinésia, entrou em contato com uma
realidade fundamental na vida daqueles povos: o mercado (Ta Matete na língua local).
58

Figura 2 – Quadro Ta Matete. Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f6/Paul_


Gauguin_ 030.jpg>. Acesso em: 04 set. 2007.

Ta Matete era um espaço de trocas não só material, mas também social e


cultural; o centro nervoso da comunidade. De Ta Matete haurimos o sentido de interdiscurso
não somente como espaço de trocas, mas também de ressignificações, de formulações e
reformulações de sentidos. Analisando rapidamente a pintura, destacaríamos a forma como o
artista coloca em primeiro plano as relações sociais, representadas pelas mulheres e em um
plano de fundo as relações comerciais. Esse quadro está atualmente no Museu de Orsay, em
Paris54.

Vamos, agora, analisar os enunciados presentes no quarto quadro da tabela 1


(p. 46):

54
A inserção do quadro Ta Matete em nosso trabalho nos dá a oportunidade de colocarmos um fato peculiar:
tivemos contato com a realidade do Ta Matete há muitos anos atrás, quando ainda éramos adolescentes. Ao
descobrirmos o conceito de interdiscurso, este nos trouxe à mente os conceitos abarcados por aquele quadro,
formando uma conexão que consideramos interessante expor, ainda que de maneira rápida.
59

(1) “Quando a Igreja Católica defende a vida humana contra aqueles que querem desvalorizá-
la e destruí-la na Era Moderna, ela está simplesmente fazendo o que tem feito durante séculos.
Uma mãe defende seus filhos”.

Esse enunciado possui uma sutileza discursiva interessante. Vejamos: o padre


Euteneuer, no início de seu discurso (no segundo fragmento) ao construir a cena da
enunciação, refere-se, de maneira um tanto negativa, à modernidade. Essa modernidade deve
ser entendida não como o avanço tecnológico, que em si mesmo não pode ser considerado
bom ou mau por nenhuma formação discursiva, mas como uma série de concepções derivadas
do pensamento liberal oriundo do Iluminismo que, por sua vez, é filho da Revolução
Francesa. Portanto, as referências “durante séculos” e “Era Moderna” não devem ser lidas
apenas como referências cronológicas55 mas muito mais como semas pertencentes – e,
portanto, indicativos de – a posicionamentos, a formações discursivas (conservadora e
modernista, respectivamente). Insistimos neste ponto fundamental: modernismo e
conservadorismo não são expressões referentes à tecnologia, mas aos posicionamentos.

(2) “Sendo a pecaminosidade humana o que é, cada geração apresenta novos ataques ao
precioso presente da vida dado por Deus, e a vocação da Igreja é se posicionar entre os
atacantes e os inocentes em cada dia e em cada era”. O enunciado “sendo a pecaminosidade
humana o que é” é um exemplo de particitação feita dentro do Thesaurus católico, ou seja,
aqui é referido um conceito de pecaminosidade que é amplamente conhecido por essa
comunidade, dispensando, portanto, maiores definições. Também os “novos ataques ao
precioso presente da vida dado por Deus” coloca noções amplamente conhecidas dentro desse
posicionamento. Finalmente o enunciado “a vocação da Igreja é se posicionar entre os
atacantes e os inocentes em cada dia e em cada era” não só coloca para o fiel aquilo que é
missão da Igreja, mas também o interpela a assumir esse posicionamento, inserindo-se na
“comunidade imaginária daqueles que aderem ao mesmo discurso” (MAINGUENEAU,
2006b, p. 272).

55
Estudos feitos pela lingüista americana Linda Gentry El-Dash (iel.unicamp), da qual fomos alunos em um
curso de pós-graduação na UNIFRAN, indicam que o sentido de sucessão cronológica está presente de forma
muito mais intensa nas línguas neo-latinas, enquanto nas línguas anglo-saxônicas o sentido de estado é mais
marcante. Assim, enquanto em português se diz “Eu comprei uma caneta” (ontem, na semana passada etc.)
marcando um acontecimento dentro de uma cronologia, em inglês se diz “I have bought a pen” (comprei e estou
de posse), marcando um estado, o de possuir (no caso, a caneta).
60

(3) “O século vinte assistiu a uma extraordinária produção de encíclicas e documentos pelos
nossos corajosos papas em defesa da vida humana inocente e das sagradas instituições do
casamento e da família”. Aqui o padre Euteneuer se apresenta claramente como pro-life.

(4) “O papa Pio XI escreveu a encíclica Casti Connubi (1930) para defender a santidade do
casamento e da família quando a Igreja Anglicana permitiu a contracepção em algumas
circunstâncias naquele ano”.

(5) “O Concílio Vaticano Segundo condenou todos os crimes contra a vida humana em sua
Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno (1965)”.

(6) “Em 1968 o papa Paulo VI escreveu sua profética encíclica Humanae Vitae, reafirmando o
seu posicionamento sobre a dignidade da vida humana e a procriação, sendo seguida
logicamente pela encíclica Evangelium Vitae do papa João Paulo II em 1995, defendendo a
vida das violentas e insidiosas forças da morte na era moderna”.

Comentaremos conjuntamente os enunciados 4, 5 e 6 – pois têm conteúdo


similar – a partir de uma proposição feita por Maingueneau e que julgamos imprescindível
para o estudo que estamos realizando:

O que se constitui no início da existência de um discurso é uma competência que se


encontra investida em um conjunto muito limitado de textos, eventualmente um só,
isto é, em cobertura temática muito reduzida. É através do tecido imprevisível que as
controvérsias, diretas ou indiretas, vão suscitar progressivamente, que essa cobertura
vai tornar-se uma superfície importante. Certamente, no nível dos sistemas de
restrições, a área de incompatibilidade entre os discursos é instituída em seus
grandes traços desde o início, mas apenas as interações efetivas atribuirão seu
traçado temático aos acontecimentos enunciativos (2005, p 121).

O principal ponto a ser observado é: trata-se de três documentos que falam


sobre o tema “aborto”, produzidos por três papas diferentes no espaço – historicamente curto
– de 38 anos. De fato, uma rápida consulta aos registros históricos mostraria que, desde o
início da era cristã, embora o aborto fosse sempre condenado, os textos concernentes ao tema
eram limitados, com “cobertura temática reduzida” e assim permaneceram ao longo dos
séculos. A falta de oposição a esse posicionamento da Igreja seria o principal motivo da não
expansão da cobertura temática. Quando, no início do século XX, o movimento pró-aborto
61

surge e ganha força56, a controvérsia se instaura, levando a uma expansão da cobertura


temática, especialmente pelo uso cada vez mais intenso dos recursos do mass media. A
interação entre esses dois processos – instauração de uma controvérsia cada vez mais acirrada
e o uso intenso de recursos midiáticos – produz um fenômeno realmente interessante,
expresso por Maingueneau no fragmento citado: “as interações efetivas atribuirão seu traçado
temático aos acontecimentos enunciativos”. Esse pressuposto implica que existem diferenças,
por vezes grandes, entre os conteúdos que formam o arcabouço dessas – e de outras –
formações discursivas e o que é efetivamente levado para o “campo de batalha”,
particularmente o campo do mass media que, por suas próprias características constitutivas,
especialmente pela maneira como instaura suas cenas de enunciação, molda o discurso: “A
cenografia não é um simples alicerce, uma maneira de transmitir ‘conteúdos’, mas o centro
em torno do qual gira a enunciação” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 264). Particularmente, a
capacidade de produzir e transmitir imagens é um dos fatores fundamentais na constituição do
discurso pro-life, permitindo a construção de enunciados como este57:

Figura 3 – Adesivo pro-life. Disponível em: <http://www.cafepress.com>.


Acesso em: 05 set. 2007.

Podemos depreender diversos elementos desse enunciado intersemiótico. Entre


eles nossa afirmação de que o interdiscurso não é apenas um espaço de trocas, mas também
um espaço de ressignificações, pois aqui podemos ver claramente o termo pro-choice
ressignificado e negado. Um outro elemento é a utilização de uma forma sintética de
enunciado, o slogan, adequado a uma comunicação rápida (esse é um adesivo para ser usado
em carros). Um recurso sutil foi usado ao colocar letras brancas sobre um fundo azul e letras
azuis sobre um fundo branco, sinalizando a oposição pro-choice/pro-life. Mais sutil ainda é a
pequena mão da criança indicando o enunciado “I’m a child”, sentido reivindicado pelo
movimento pro-life. Note-se, também, que o enunciado reivindicado está em cima, em
posição superior e o enunciado rejeitado, o Outro, está em baixo, em posição inferior. Um

56
Até o início do século XX, embora houvesse a prática do aborto, não existia nada que pudesse ser denominado
“movimento pró-aborto” ou “discurso pró-aborto”.
57
“I’m a child, not a choice” = eu sou uma criança, não uma escolha.
62

outro elemento presente nesse sticker, e cuja análise completa extrapola os objetivos desse
trabalho, é a utilização de um padrão clean ou plain. Esse padrão foi desenvolvido
inicialmente pela empresa IBM para ser utilizado pelos programadores58 na formação de
interfaces59 de computador e consiste fundamentalmente na eliminação de detalhes, de forma
a concentrar a atenção do usuário em determinados pontos. Dessa forma, entre outras coisas, o
usuário é guiado através da tela, embora pense que se move livremente através dela60. O que
acabamos de afirmar se torna mais claro se comparamos o adesivo que estamos analisando
com este outro, cheio de detalhes:

Figura 4 – Adesivo pro-life. Disponível em: <http://www.cafepress.com>.


Acesso em: 05 set. 2007.

Entre outros detalhes, chamaríamos a atenção para a predominância da imagem


do bebê, ocupando a maior parte do espaço útil, enquanto no primeiro sticker o texto
predomina. Um outro detalhe, aparentemente sutil, mas na verdade extremamente poderoso
(não como facilitador, mas como dificultador), é a posição da cabeça do bebê, que conduz o
olhar de quem observa a imagem para um plano diferente daquele do enunciado. Esse recurso
de orientação dos eixos visuais é bastante utilizado em propaganda. É ele que faz, por

58
Já fomos programadores. Essa inovação surgiu quando atuávamos nessa área.
59
De modo simplista, interfaces são as imagens através das quais os usuários de computador interagem com as
máquinas, como os ícones do Windows etc.
60
Conduzir o enunciatário – intelectualmente, emocionalmente etc. – seria, de acordo com nossas observações e
reflexões, uma das principais funções da cenografia.
63

exemplo, com que certos tipos de roupa tornem as pessoas – aparentemente – mais magras ou
mais gordas.

Finalmente – e esse é um campo que tem despertado nossa atenção na análise


do discurso – chamaríamos a atenção para o fato de que o imbricamento do discurso na
história limita a utilização aleatória de cenografias. Assim, o discurso pro-choice é
estruturalmente bastante limitado na utilização de suportes visuais, enquanto o movimento
pro-life se move com facilidade nesse campo.

Concluiremos este capítulo fazendo alusão ao já citado enunciado de


Maingueneau sobre o discurso religioso: “pode-se lamentar que o discurso religioso continue
a ser o parente pobre da análise do discurso, ao mesmo tempo que o fato religioso está
particularmente presente no mundo contemporâneo” (2005, p. 13) e a um enunciado
pertencente ao discurso do papa Bento XVI na universidade de Regensburg (2006, p. 7), onde
também é mostrada a importância da religião, particularmente como componente essencial de
um diálogo intercultural:

No mundo ocidental domina amplamente a opinião de que só a razão positivista e as


formas de filosofia dela derivantes sejam universais. Mas as culturas profundamente
religiosas do mundo vêem precisamente nesta exclusão do divino da universalidade
da razão um ataque às suas convicções mais íntimas. Uma razão, que diante do
divino é surda e rejeita a religião do âmbito das subculturas, é incapaz de se inserir
no diálogo das culturas.

Essas proposições embasam nosso sentimento de que este capítulo – ao mesmo


tempo em que permitiu trabalhar alguns dos conceitos divulgados por Maingueneau – também
pode representar uma contribuição, ainda que modesta, para a análise do discurso religioso, ao
mesmo tempo em que lança bases para uma melhor compreensão da formação do discurso
pro-choice.
64

4 A INTERSEMIÓTICA E O EMBATE PRO-LIFE/PRO-CHOICE

Neste capítulo veremos a aplicação desse interessante componente das


concepções teóricas adotadas por Maingueneau, onde a semântica do discurso se estende para
além dos domínios lingüísticos. Esse aspecto torna-se particularmente importante em um
mundo onde a comunicação e a informação se apóiam cada vez mais em conjuntos de
suportes multimídia. Conforme destacamos no capítulo um, Maingueneau considera que seu
modelo de formação discursiva não está limitado apenas ao domínio textual, mas abrange
também outros tipos de estruturas semióticas, dentro de um mesmo sistema de restrições
semânticas: “O pertencimento a uma mesma prática discursiva de objetos de domínios
intersemióticos diferentes exprime-se em termos de conformidade a um mesmo sistema de
restrições semânticas” (MAINGUENEAU, 2005, p.146). Para evitar confusões, o autor
estabelece que os “objetos de domínios intersemióticos diferentes pertencentes a uma prática
discursiva” são chamados de “textos” e a produção lingüística propriamente dita é
denominada “enunciado”.

Para avaliar o pertencimento de determinado texto a certa formação discursiva,


Maingueneau diz que é necessário “proceder à leitura mais abrangente possível desses textos
através do sistema de restrições semânticas” (2005, p.151). Esse esquema de leitura, aplicado
a uma pintura, pode ser realizado da seguinte forma:

A conformidade de um texto pictórico com as restrições de um discurso deve ser


estabelecida em dois níveis complementares:
• Mostrando que as “condições genéricas” às quais ele está submetido são
exatamente as mesmas que, para esta prática discursiva, definem a legitimidade
desse tipo de produções;
• Mostrando que o texto considerado em sua singularidade está em
conformidade com a formação discursiva pertinente (2005, p. 153).

Analisemos o primeiro ponto, chamado de “condições genéricas”, dentro do


nosso corpus. A semântica da formação discursiva pro-choice baseia-se na tese da liberdade
individual, que geralmente é defendida com o uso de enunciados que buscam (re)construir a
65

realidade através do lingüístico, portanto os sites, papers e outras formas de comunicação


usadas por esse posicionamento geralmente são pobres em imagens (1) e utilizam uma
linguagem bastante conceitual (2). Por outro lado, o sistema de restrições semânticas do
movimento pro-life é rico em imagens (3) e procura utilizar linguagem menos abstrata (4):

(1) O site do grupo norte-americano NARAL61 – National Abortion Rights Action League
(Liga de Ação Nacional dos Direitos Abortivos), contém, como imagem principal, apenas um
banner (faixa) no lado superior da tela com o logotipo da entidade e fotos de rostos femininos
que se alternam na medida em que o visitante navega pelo site:

FIGURA 5 – Tela inicial do site da ONG NARAL. Disponível em: <http://www.naral.org>.


Acesso em: 28 jul. 2007.

61
NARAL Pro-Choice America is a pro-choice organization in the United States that engages in political action
to oppose restrictions on abortion and expand access to abortion. (NARAL Pro-choice America é uma
organização pro-choice nos Estados Unidos que se dedica a ações políticas para se opor às restrições sobre o
aborto e expandir o acesso ao aborto). Disponível em <http://en.wikipedia.org/wiki/NARAL>. Acesso em 01 de
ago. de 2007.
66

62
(2) Na abertura do site da naf = National Abortion Federation (Federação Nacional do
Aborto) temos o enunciado: “our mission is to ensure safe, legal, and accessible abortion
care to promote health and justice for women” (nossa missão é garantir aborto seguro, legal e
acessível para promover saúde e justiça para as mulheres). No site da IPPF – International
Planned Parenthood Federation (Federação Internacional de Planejamento Familiar), a maior
organização provedora de abortos no mundo63, temos a descrição da entidade por ela mesma:

About plannedparenthood.org: Planned Parenthood believes in the fundamental


right of each individual, throughout the world, to manage his or her fertility,
regardless of the individual's income, marital status, race, ethnicity, sexual
orientation, age, national origin, or residence. Disponível em
<http://www.plannedparenthood.org/about-us/about-this-site-4461. htm>. Acesso
em 28 de julho de 2007.64

(3) O site pro-life “Just the Facts” (Somente os fatos – esse título já um exemplo (4) de busca
de uma linguagem factual) tem na sua página inicial uma imagem que abrange quase toda a
tela. Todas as opções do site dão acesso a imagens, inclusive video clips. São centenas de
imagens como estas:

FIGURAS 6, 7, 8 e 9 – Imagens pro-life. Disponíveis em: < http://www.justthefacts.org/clar.asp>. Acesso em:


29 jul. 2007.

62
The National Abortion Federation (NAF) is an organization of abortion providers. Though originally a U.S.
group, NAF has expanded to include practitioners in Canada and Australia as well as many European countries.
According to their web site, half of all abortions performed in the United States and Canada are performed by
NAF members. (A Federação Nacional do Aborto é uma organização de provedores de aborto. Embora seja
originalmente um grupo norte-americano, a NAF expandiu para incluir profissionais médicos no Canadá e na
Austrália, bem como muitos países Europeus. De acordo com seu site na web, metade de todos os abortos
realizados nos Estados Unidos e Canadá são feitos por membros da NAF). Disponível em
<http://en.wikipedia.org/wiki/National_Abortion_Federation>. Acesso em 01 de ago. de 2007.
63
A IPPF possui cerca de 850 clínicas onde são realizados cerca de 200.000 abortos anualmente; possui também
afiliadas em 180 países. Não se trata, pois, de uma organização que somente defende o aborto. Juntamente com a
NARAL e a naf forma possivelmente o grupo das três maiores e mais influentes organizações pro-choice
mundiais, portanto nossos exemplos são representativos.
64
Tradução: A Federação Internacional de Planejamento Familiar acredita no direito fundamental de cada
indivíduo, através do mundo, de controlar sua própria fertilidade, independentemente de sua renda, estado civil,
raça, etnia, orientação sexual, idade, nacionalidade ou residência.
67

FIGURA 10 – Tela inicial do site Just the Facts. Disponível em: <http://www. http://www.justthefacts.org>.
Acesso em: 28 jul. 2007.

Em marchas e protestos, tão comuns nos EUA, é comum também o uso de


imagens por parte dos movimentos pro-life e o uso de apenas textos por parte do movimento
pro-choice.

FIGURAS 11 e 12 – Protestos pro-choice. Disponíveis em <http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Roevwade.jpg>


e <http://www.now.org/history/slideshows/march2004/>. Acesso em: 29 jul. 2007.
68

FIGURAS 13 e 14 – Protestos pro-life. Disponíveis em: <http://transporter.com/apologia/life/March4Life02>.


Acesso em: 29 jul. 2007.

Naturalmente, outros fatores podem contribuir para que uma manifestação seja
mais ou menos incisiva. Assim, em países onde o movimento pro-life está iniciando suas
manifestações, evita-se tanto o uso de imagens fortes como a aplicação de enunciados fortes.
Esse é o caso da França:

FIGURAS 15, 16 e 17 – Protestos pro-life em 15 de janeiro de 2005 na cidade de Grenoble. Disponíveis em:
<http://laissezlesvivre.free.fr/actualite/respectdelavie/2005/vie2005.htm>. Acesso em: 10 out. 2007.

Aqui podemos ver uma manifestação moderada, onde o enunciado principal


“Si tu veux la paix, defends la vie” (Se quer a paz, defenda a vida) também é moderado, não
falando diretamente de aborto (avortement). Entretanto – e isto nos pareceu um interessante
elemento a ser observado – a construção do discurso pro-life (pro-vie65) na França sinaliza
mudanças em direção a um discurso mais enfático. Na mesma página onde foi tratada a
manifestação em Grenoble, o articulista Charles Guillot, após um artigo ironicamente

65
O movimento pro-choice é denominado, na França, de pro-choix e é um mouvement de défense des libertés
individuelles (movimento de defesa das liberdades individuais) enquanto o movimento pro-vie se define como
défenseurs de la culture de vie (defensores da cultura da vida). Esses enunciados podem ser encontrados em
<http://fr.wikipedia.org/wiki/Pro-choix> e <http://laissezlesvivre.free.fr/Llv/llv.htm> respectivamente; acesso
em 10 out. 2007. Nossa intenção, aqui, é apenas demonstrar aquilo que temos afirmado desde o início de nosso
trabalho: os discursos pro-choice e pro-life são globalizados.
69

moderado, diz: “Pardon: j’ai écrit ce que je ne pense pas; je me dois d’écrire ce que je pense:
les 220.000 assassinats légaux remboursés par la Sécurité Sociale…’”. (Desculpe, eu escrevi o
que não penso; eu devo escrever o que penso: os 220.000 assassinatos legais reembolsados
pela Previdência Social...).

O segundo ponto a ser analisado consiste em verificar a pertinência do texto,


em sua singularidade, à formação discursiva considerada.

Para estudarmos esse ponto vamos inicialmente trabalhar com as figuras 18,
19, 20 e 21 deste capítulo. Na figura 18 vemos uma mulher feliz com sua gravidez e na figura
19 uma outra mulher, cheia de ternura com seu bebê; duas figuras que valorizam a
maternidade, em conformidade com o posicionamento pro-life. Na figura 20 temos um bebê,
dentro do útero materno, no sexto mês de gestação. Essas imagens representam um poderoso
discurso em favor da vida intra-uterina, fato que o movimento pro-choice procura negar.
Finalmente, a figura 21 mostra o aborto de forma cruenta, acontecimento que o movimento
pro-life procura colocar em evidência – daí o uso constante de imagens – e o movimento pro-
choice procura negar – razão que o leva a evitar imagens e a usar textos. Neste ponto surge
uma questão fundamental: o que é realmente o aborto? Basicamente, existe inicialmente uma
gravidez:

Figuras 18 e 19 – Mulheres grávidas. Disponíveis em: <http://pregnancy.about.com/od/pregnancy


photos /ig/2005-Pregnant-Belly-Gallery.htm>. Acesso em: 20 abr. 2007.
70

Gravidez significa a existência de uma nova vida humana:

Figura 20 - bebê com seis meses de idade dentro do útero materno. Disponível em:
<http://priestsforlife.org/resources/abortionimages/fetaldevelopment.htm>. Acesso
em: 20 maio 2007.
E o aborto consiste em eliminar essa vida:

Figura 21 – Bebê abortado. Disponível em:


<http://www.priestsforlife.org/resources/photosassorted/index2.htm>.
Acesso em: 20 maio 2007.

(Observação: a seqüência de fotos não pertence, obviamente, ao mesmo conjunto, estamos


apenas ilustrando um processo).
71

Ora, essa realidade, da maneira como está exposta, é simplesmente


indefensável. Isto faz com que o movimento pro-choice evite o uso de imagens e construa um
grande número de enunciados que visam mudar o foco da discussão, produzindo
determinados efeitos de sentido e excluindo outros. Alguns exemplos: “interrupção da
gravidez”, “liberdade de escolha”, “direitos reprodutivos”. Dessa forma, o discurso pro-
choice não apenas evita o uso de imagens como também utiliza enunciados que evitam a
construção de imagens mentais por parte de seus leitores – referimo-nos àqueles que evocam
maternidade, bebês etc.:

Um posicionamento não se define então somente por “conteúdos”. Entre o caráter


oral da epopéia, seus modos de organização textual e seus conteúdos existe uma
relação essencial; da mesma forma, entre a mídia televisiva e os “conteúdos” que aí
podem estar investidos. O “suporte” não é um suporte, ele não é exterior ao que ele
supostamente “veicula”. Sobre esse ponto, como sobre outros, trata-se de superar as
imemoriais oposições da análise textual: ação e representação, fundo e forma, texto
e contexto, produção e recepção etc. Ao invés de opor conteúdos e modos de
transmissão, um interior do texto e um entorno de práticas não verbais, é preciso
conceber um dispositivo em que a atividade enunciativa articula uma maneira de
dizer e um modo de veiculação dos enunciados que implica um modo de relação
entre os homens (MAINGUENEAU, 2006a, p. 44).

Gostaríamos aqui de chamar a atenção para o fato de que esses três conjuntos
de imagens ameaçam de forma progressiva ao movimento pró-aborto, recebendo por parte
deste atenção diferenciada: “No conjunto de enunciados que lhe são dirigidos, o discurso
responde àqueles que lhe parecem mais ameaçadores” (MAINGUENEAU, 2005, p. 114). A
valorização da maternidade e da vida intra-uterina e a rejeição ao aborto são três objetos
semânticos do discurso pró-vida e estão totalmente de acordo com o sistema de restrições
dessa formação discursiva, portanto esses textos (imagens) são pro-life.

Conforme temos enfatizado, o discurso pro-choice usa preferencialmente


enunciados, o que dificultou a localização de imagens que permitissem uma análise
intersemiótica desse posicionamento. Eventualmente, nossas buscas nos levaram a descobrir
um local onde forçosamente imagens deveriam ser usadas: os sites das clínicas de aborto:

Especialmente nos Estados Unidos, onde essa atividade movimenta


anualmente bilhões de dólares – e com margens de lucro altíssimas – constituindo-se na
chamada “indústria do aborto”, o uso de propaganda torna-se bastante freqüente. O site
<http://www.gynpages.com> acessa centenas de clínicas de aborto nos Estados Unidos,
72

Canadá, Europa e Austrália. Passamos muitas horas navegando por esses sites, selecionando
material que fosse realmente representativo desse viés.

Figuras 22, 23, 24, 25, 26 e 27 – Páginas iniciais de clínicas de aborto. Disponíveis em:
<http://www.alleghenyreproductive.com/>; <http://www.wa-wc.com>; <http://www.camelbackfamily
planning.com>; <http://www.abortionadvantage.com>; <http://www.drbenjamin.com> e
<http://www.illinoisabortion.com> respectivamente. Acesso em: 31 jul. 2007.

Inicialmente, analisaremos alguns aspectos das imagens desses sites,


procurando situá-los dentro do sistema global de restrições semânticas do posicionamento
73

pro-choice: “O pertencimento a uma mesma prática discursiva de objetos de domínios


intersemióticos diferentes exprime-se em termos de conformidade a um mesmo sistema de
restrições semânticas” (MAINGUENEAU, 2005, p. 146). Essa análise será realizada
dialogando sempre com o Outro da formação discursiva pro-choice, o posicionamento pro-
life. Vamos concentrar nossas observações em seis pontos:

(1) As seis telas contêm fotos de rostos de mulheres que são bonitas e sorriem levemente,
refletindo autoconfiança, calma e tranqüilidade. Esse ethos é reforçado pela cenografia
intersemioticamente construída pela combinação de cores, pelas paisagens e pelas flores,
presentes na maioria dessas telas. Particularmente as paisagens amplas – céu, montanhas,
praias – potencializam idéia de liberdade. Destacamos que, ao associarmos diferentes suportes
semióticos, ethos e cenografia, o fazemos seguindo os passos de Maingueneau, e
consideramos ambos – ethos e suportes intersemióticos – como parte pregnante66 da
cenografia: “O discurso não resulta da associação contingente de um ‘fundo’ e de uma
‘forma’; não se pode dissociar a organização de seus conteúdos e do modo de legitimação de
sua cena de ‘fala’” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 67).

Observamos que a mulher, nesse tipo de imagem, geralmente está só, mesmo
quando há mais de uma mulher na imagem, pois, ou se trata claramente de uma montagem –
fotos 22 e 25 – ou, quando não há montagem, a interação entre as personagens é fraca. Aqui
temos, de maneira intersemiótica, os semas individualidade e liberdade pessoal, reivindicados
como positivos pelo movimento pro-choice. Isto fica bastante evidente ao se comparar essas
fotos com aquelas (6 a 9) do movimento pro-life, onde há forte interação entre os
componentes da cena, com especial ênfase para o inter-relacionamento entre pai e mãe, tendo
como centro o bebê – imagem da família clássica, formada por um homem e uma mulher e
seus filhos, sema reivindicado pelo movimento pro-life. Ainda nesse conjunto de imagens
merece destaque a grande valorização da maternidade, cercada de carinho, atenção e amor,
significado permanentemente reivindicado como positivo pelo posicionamento pro-life.

(2) Um aspecto que chama a atenção, especialmente pela sua recorrência, é a presença de
flores e de paisagens nessas telas. As reflexões e análises que temos feito até aqui parecem
indicar que se trata de uma espécie de substituição ou mecanismo de transferência: a vida, o
bebê, como na figura 10 é representada na flor, é a tradução do Outro, do discurso
66
Sem trocadilhos; o termo é de Maingueneau.
74

profundamente pro-life presente na imagem da figura 10, que é traduzido no Mesmo pela
figura das flores. Essa substituição estaria de acordo com a tese de Maingueneau segundo a
qual:

Mesmo quando a transformação parece ter tocado apenas alguns pontos localizados
do texto67 original, é o conjunto da organização que foi recomposto. Como já
sublinhamos no capítulo 3, não existe hierarquia entre os “planos”: uma modificação
na cor das vestes não é em si menos importante do que uma redistribuição de toda a
composição; a supressão de alguns objetos em um canto pode ser tão carregada de
sentido quanto uma reorganização do recorte do espaço. É unicamente em relação às
restrições da competência transformadora que se pode julgar; a filtragem se faz em
função da relação entre as duas competências, e só uma coisa conta: que o texto de
chegada esteja conforme à semântica da competência transformadora. Esse resultado
poderá ser obtido por meios infinitamente variados, desde os aparentemente mais
insignificantes, até os mais patentes (MAINGUENEAU, 2005, p. 158).

Contra o argumento da flor substituindo o bebê, alguém poderia interpor o


argumento que diz que flores e mulheres estão sempre relacionadas. Porém não é o que ocorre
no conjunto das figuras 6 a 9 e 18/19, onde há mulheres e nenhuma flor.

(3) Gravidez. Todas as mulheres das fotos 6 a 9 e 18/19 estão grávidas, visivelmente grávidas.
Um detalhe interessante: as fotos (6 a 9) são recortadas, no seu lado direito, por um círculo
que lembra o perfil da barriga na gravidez. Por outro lado, nas figuras pro-choice (22 a 27) a
barriga das mulheres que ilustram as telas não são mostradas. E não estamos nos referindo
apenas a barrigas de gravidez, aquelas com um bebê dentro – interdito máximo do
posicionamento pro-choice – mas também as barrigas sem sinais de gravidez. Talvez aqui o
interdito seja contra a evocação de uma possível gravidez abortada. O fato é que pesquisamos
amplamente nos sites da abortion clinics on line – que reúne cerca de 240 clínicas de aborto
nos Estados Unidos, Canadá e Europa (anexo 28, página 245) – e esse parece ser realmente
um dos interditos da intersemiótica pro-choice.

(4) Sorriso. O sorriso das imagens pro-choice (22 a 27) é leve e discreto, representando um
estado de tranqüilidade. O sorriso das imagens pro-life, especialmente das imagens 6 a 9, são
mais amplos e representam felicidade. Destacamos, para nossa análise, quatro sorrisos.
Durante a pesquisa que efetuamos entre os 240 sites de clínicas de aborto, raramente vimos,
nas modelos que representam as clientes dessas clínicas, um sorriso aberto.

67
O termo texto aqui se refere às imagens.
75

Figuras 28, 29, 30 e 31 – Páginas iniciais de clínicas de aborto. Disponíveis em:


<http://www.topchoicemed.com>; < http://www.drbenjamin.com >; < http://www.choicemedicalgroup.com/ > e
< http://www.camelbackfamily planning.com >. Acesso em: 03 ago. 2007.

Esses sorrisos discretos, que buscam passar um estado de tranqüilidade, são


acompanhados por um olhar direto, símbolo de autoconfiança, de uma suposta segurança na
tomada de uma decisão – choice – a favor do aborto, já que aqui se trata de clínicas de aborto
e a presença de eufemismos é menor.

Figura 32 – recorte e ampliação da figura 31.

Um detalhe relevante para a análise que estamos empreendendo pode ser visto
na figura 32, ampliação da figura 31. Tem sido observado que, quando o sorriso é verdadeiro,
76

acontece um relaxamento geral dos músculos da face, que acaba por ser envolvida totalmente
no sorriso. É o que pode ser visto na foto de Madre Tereza, na página 51. Entretanto, quando
o sorriso é artificial – e voltamos a lembrar que as mulheres dessas fotos são modelos
profissionais68 – o rosto, especialmente a região dos olhos, não participa completamente do
sorriso. É o que se pode ver na figura 32, grandemente ampliada.

(5) Presença masculina. Essa é freqüente e altamente interativa nas imagens pro-life (estão
cheias de pais babões e corujas). Naturalmente, alguém poderá comentar que são montagens,
ao que responderíamos: montagens feitas de acordo com o sistema de restrições semânticas da
formação discursiva pro-life. Há, entretanto, um outro aspecto da presença masculina que está
além de qualquer montagem: referimo-nos à presença masculina nas marchas pela vida, como
nas figuras 13, 14, 15, 16 e 17 (comparar com as figuras 11 e 12).

(6) Um aspecto mais profundo seria aquele da oposição entre imanente/transcendente69, semas
fundamentais na oposição pro-choice/pro-life. O pensamento imanentista alicerça-se na tese
de que uma “força vital” estaria intrinsecamente ligada ao mundo material, por oposição ao
pensamento transcendental, que enuncia que Deus ultrapassa, é causa externa, está além do
mundo. O posicionamento imanentista é a origem, entre outros, do Humanismo, base
filosófica do discurso pro-choice. Por outro lado, o posicionamento pro-life está embasado no
princípio da transcendência – citamos aqui, de passagem, a Escolástica Tomista70 – e é a base
do posicionamento pro-life. Acreditamos que esta questão poderá ser melhor esclarecida
através de alguns exemplos:

- Evolução versus Criação: a tese criacionista é transcendente – Deus, o criador, está além do
mundo – enquanto a tese evolucionista é imanente – a força que, a partir de matéria
inanimada, cria a vida, é imanente à própria matéria – razão pela qual a teoria da evolução não
pode ser tratada como simples teoria científica, aqui entendida como aquela que se supõe
objetiva. É fácil perceber que, dentro da oposição pro-choice/pro-life, alguém que apóie a

68
É interessante observar que, mesmo que as mulheres que aparecem nas fotos 6, 7, 8, 9, 18 e 19 sejam também
modelos profissionais, elas estão efetivamente grávidas, ao contrário das modelos dos sites pro-choice, que
certamente não acabaram de fazer um aborto.
69
Esta oposição é fundadora. Basta citarmos o início da Bíblia – o livro do Gênese – onde a descrição da criação
esvazia qualquer tentativa imanentista.
70
Este foi o tema central do discurso do Papa Bento XVI, em 12 de setembro de 2006, na Universidade de
Regensburg.
77

teoria da evolução tende a também apoiar as teses pro-choice, enquanto quem aceita a tese
criacionista tenderá a filiar-se às teses pro-life.

- O Iluminismo, ao rejeitar Deus como a força condutora da história e colocar em seu lugar o
homem, associa-se ao viés imanente.

- O marxismo althusseriano, a psicanálise lacaniana e a lingüística estrutural são imanentistas


(as forças que movem a história, o indivíduo e os objetos lingüísticos vêm de dentro), logo a
Escola Francesa de Análise do Discurso, na sua origem, se alinha ao posicionamento
imanentista71, portanto mais próximo da FD pro-choice: “Ora, obstinei-me em avançar. Não
que esteja certo da vitória nem conte com as minhas armas. Mas porque achei que, no
momento, era o essencial: liberar a história do pensamento de sua sujeição transcendental”
(FOUCAULT, 1987, p. 230).

Essas reflexões parecem sinalizar a impossibilidade da existência de uma


análise totalmente isenta de tendências, pois para isso o analista teria que estar fora de
qualquer posicionamento, fora de qualquer formação discursiva, e acima do interdiscurso –
em uma palavra, teria que ser um analista transcendente. Consideramos o que acabamos de
dizer como simples reflexão, sem qualquer pretensão de colocar questionamentos aos
procedimentos adotados pela Análise do Discurso, embora o próprio Maingueneau pareça se
mover nessa direção:

Terminarei com uma questão impossível de ser evitada: a da relação entre discursos
constituintes e a análise do discurso que se debruça sobre eles. Esta última está presa
em um paradoxo insuperável, dado que pertence ao discurso constituinte (científico,
nesse caso), pretendendo ao mesmo tempo estar acima do caráter constituinte de
qualquer discurso. Se pretendesse negar esse paradoxo, a análise do discurso cairia
na mesma ingenuidade da Filosofia, da Teologia e da Ciência, quando, em
diferentes momentos, tiveram a pretensão de reinar sobre a totalidade do dizível.
Como não está em questão para a análise do discurso se auto-proclamar a única
instância de legitimação, cabe-lhe aceitar que está incluída no domínio de
investigação que procura analisar, e ser criticada por aquilo que ela pretende tomar
como objeto. (MAINGUENEAU, 2006a, p. 51).

Isto posto, continuemos nossas análises. Em nossa exploração intersemiótica a


imanência estaria expressa no ato que em língua inglesa é designado pelo phrasal verb
“merge into/with” (= if two things merge, they combine or become mixed so that you can no
longer tell the difference between them; se duas coisas merge, elas se combinam ou se tornam

71
Nossas reflexões parecem indicar que essa seria uma das causas de algumas dificuldades que a AD encontra ao
tratar de um sujeito que ao longo da história se constituiu por referência a um transcendente.
78

tão misturadas que então você não pode mais dizer a diferença entre elas. MACMILLAN,
2002, p. 880). Se observarmos cuidadosamente as telas dos sites pro-choice (figuras 22 a 27),
poderemos ver que em várias delas as figuras femininas merge into/with às paisagens e/ou
outros elementos. Na figura 33, a cor e o tom dos cabelos da mulher, de suas sobrancelhas e
da sombra que ela está usando nos olhos, combinam com a cor e o tom das folhas das árvores,
da moldura da tela e das flores – que se misturam aos seus cabelos.

Figura 33 – recorte da figura 27.

Na figura 34 a mulher também parece fundir-se à paisagem: à direita (de quem


olha) temos a luz do sol, à esquerda temos montanhas e o céu azul, com nuvens brancas. Os
cabelos – ícone feminino por excelência – se entrelaçam à paisagem.

Figura 34 – recorte da figura 25.

Há nessa tela um enunciado: “95% of our patients sleep feeling nothing and
have no memory of the procedure” (noventa e cinco por cento de nossas pacientes dormem,
não sentindo nada e não guardando qualquer memória do procedimento); que se alinha com o
“efeito de sentido” da paisagem “céu azul e nuvens brancas”.
79

A figura 47 também apresenta aspectos interessantes: Uma paisagem marinha,


com a qual combinam o vestido da mulher e sua pele bronzeada – ela é a única com esse tom
de pele nas seis telas que estamos analisando. Um detalhe: o moderno computador portátil que
ela está carregando ajuda a criar um ethos de mulher moderna, dinâmica e se associa
perfeitamente ao seu sorriso autoconfiante: “Em última instância, a questão do ethos está
ligada à da construção da identidade” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 56).

Figura 35 – recorte da figura 26.

Se considerarmos que a tese do primado do interdiscurso de Maingueneau


trabalha dentro de um sistema global de restrições semânticas, veremos que os diversos
componentes intersemióticos do discurso estão profundamente imbricados: “Um
posicionamento não implica apenas a definição de uma situação de enunciação e uma certa
relação com a linguagem: deve-se igualmente levar em conta o investimento imaginário do
corpo, a adesão “física” a um certo universo de sentido” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 49).
Portanto, as imagens que estamos analisando não são simples capas, molduras, uma forma
que viria se somar a um conteúdo preexistente, formado de maneira independente: “As formas
enunciativas não são aí um simples vetor de idéias, elas representam a instituição no discurso,
ao mesmo tempo em que moldam, legitimando-o (ou deslegitimando-o) esse universo social
no qual elas vêm se inscrever” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 50).

A figura 36 possui uma interessante combinação de cores. A rosa vermelha


combinando com o batom da mulher é um detalhe sutilmente trabalhado, como também o é a
luz solar incidindo sobre uma flor amarela, que em si mesma representa a luz solar.
80

Figura 36 – recorte da figura 23.

Naturalmente, foge do escopo deste trabalho expor a simbologia das cores,


entretanto, a título de curiosidade, gostaríamos de chamar a atenção para a moldura amarelo
claro que existe na figura 35, onde essa moldura de cor amarelo claro (luz solar) reforça a
cena marítima, alinhando-se com nossas reflexões que sinalizam que os conteúdos
intersemióticos possuem enunciado e enunciação. Assim, uma rosa seria uma rosa
(enunciado), porém quando alguém dá rosas para sua mãe, para sua amada, as coloca sobre
um túmulo ou as deposita aos pés de uma imagem de Maria, temos uma enunciação,
intersemioticamente realizada.

Chamar a atenção para os signos intersemióticos que compõem essas cenas não
implica em dar ao discurso um estatuto de “conjuntos de signos”, pelo contrário, nos
inserimos em “uma tarefa inteiramente diferente, que consiste em não mais tratar os discursos
como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a
representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”
(FOUCAULT, 1987, p. 56).

Dentro do conceito de semântica global Maingueneau trabalha com um sistema


de restrições que abrange conjuntamente todos os planos do discurso; sem distinguir
fundamental/superficial, essencial/acessório: “Um procedimento que se funda sobre uma
semântica ‘global’ não apreende o discurso privilegiando tal ou tal de seus ‘planos’, mas
integrando-os a todos, tanto na ordem do enunciado quanto na da enunciação” (2005, p. 79).
Para ilustrarmos esse procedimento que integra os diversos planos de um discurso, vamos
trabalhar com a figura 37:
81

Figura 37 – recorte da figura 24.

Aqui vemos um conjunto de imagens que se insere nos mesmos padrões já


expostos: a mulher só (individualidade) em uma paisagem ampla (liberdade) sorrindo
levemente (tranqüilidade) olhando para frente (auto-confiança) amalgamada com a natureza
viva (imanentismo panteísta) etc.72 , imagens essas que se integram em um conjunto de
enunciados, dos quais destacamos:

(a) When privacy matters... you now have a choice (Quando a privacidade é importante…
você agora tem escolha);

(b) Abortion services in a private office with personal care from a woman doctor who
understands the difficult choice you are making (Serviços de aborto em um consultório
privado com cuidados personalizados de uma doutora que compreende a difícil escolha que
você está fazendo). Os termos e expressões “privacidade”, “você”, “consultório privado”,
“cuidados personalizados” reforçam as idéias de individualidade, liberdade, tranqüilidade e
autoconfiança afirmadas pelas imagens.

Ao finalizarmos essa exposição de imagens derivadas de sites de clínicas de


aborto, gostaríamos de dizer que, embora tenhamos enfatizado que os diversos grupos que se
filiam ao posicionamento pro-choice usam as imagens de maneira limitada, se comparados
aos grupos pro-life, há um grupo pro-choice que utiliza muitas imagens, algumas das quais se
72
Existem outros elementos passíveis de análise, como as (des)proporções entre os diversos elementos que
compõem a cena, sem o uso de perspectiva. Esta técnica já foi utilizada por pintores medievais, como forma de
representar o valor dos elementos que formam uma cena.
82

situam claramente fora do sistema de restrições semânticas do movimento pro-choice. É o


grupo Women on Waves. A explicação desse fato é bastante simples, porém muito interessante
para os analistas do discurso: Rebecca Gomperts, fundadora dessa ONG, foi anteriormente
membro do grupo GreenPeace, que utiliza muitas imagens em seu discurso, procurando
chamar a atenção do público para realidades como a matança das baleias. Quando, por
exemplo, pequenos barcos procuram salvar uma baleia, interpondo-se entre ela e um grande
barco pesqueiro, obviamente o objetivo não é apenas salvar uma baleia, mas sim criar uma
imagem poderosamente midiática, que chame a atenção para o extermínio da espécie.
Rebecca trouxe as mesmas estratégicas enunciativas para o movimento pró-aborto. Assim, o
seu barco, ao realizar alguns abortos fora do limite marítimo de países onde este é proibido,
atua muito mais no sentido de criar um fato midiático.

Para encerrarmos nossa exposição sobre a abordagem intersemiótica,


gostaríamos de analisar uma imagem que chamou nossa atenção durante nossas pesquisas:

Figura 38 – Marcha pro-life. Disponível em <http://en.wikipedia.org/wiki/Pro-life>.


Acesso em 08 de ago. de 2007.
83

Trata-se da imagem de Nossa Senhora de Guadalupe73, que sempre acompanha


os grupos pro-life.

Figura 39 – Virgem de Guadalupe. Disponível em: <http://www.sancta.org


/gallery/ >. Acesso em 08 de ago. de 2007.

A virgem de Guadalupe é considerada a protetora dos nascituros,


especialmente por um detalhe: as fitas suspensas na altura de sua cintura, símbolo da gravidez
usado pelas mulheres nas regiões da América Central. Quando o movimento pro-life, que

73
Em 1531 uma "Senhora do Céu" apareceu a um pobre índio de Tepeyac, em uma montanha a noroeste da
Cidade do México; Ela identificou-se como a Mãe do Verdadeiro Deus, instruiu-o a dizer ao Bispo que
construísse um templo no lugar, e deixou Sua própria imagem impressa milagrosamente em seu Tilma, um
tecido de pouca qualidade (feito a partir do cacto), que deveria se deteriorar em 20 anos, mas não mostra sinais
de deterioração depois de 474 anos, desafiando qualquer explicação científica sobre sua origem. Aparentemente
parece refletir em seus olhos o que estava a Sua frente em 1531! Anualmente, Ela é visitada por 10 milhões de
fiéis, fazendo de Sua Basílica no México, O Santuário Católico mais popular do mundo depois do Vaticano. Ao
todo 24 Papas tem honrado, oficialmente, a Nossa Senhora de Guadalupe. Sua Santidade João Paulo II, já visitou
seu Santuário por três vezes: Em sua primeira viagem como Papa em 1979 e novamente em 1990 e 1999. Ele
ajoelhou-se diante de Sua imagem, invocou Sua assistência maternal e dirigiu-se a Ela como a Mãe das
Américas (disponível em: <http://www.sancta.org/intro_p.html>. Acesso em 09 de ago. de 2007)).
84

como já dissemos é fundamentalmente católico, procurou um santo padroeiro, encontrou na


Virgem de Guadalupe o ícone ideal.

Intersemioticamente, a presença de ícones religiosos nos grupos pro-life e a


presença de ícones naturalistas (montanhas, praias etc.) nos grupos pro-choice reforça a
oposição pro-life-transcendente versus pro-choice-imanente: “O poder de persuasão de um
discurso decorre em parte do fato de que ele leva o destinatário a identificar-se com o
movimento de um corpo, por mais esquemático que seja, investido de valores historicamente
especificados” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 70).

Neste ponto achamos ser oportuno colocar algumas observações a respeito da


“resposta” que uma formação discursiva dá aos ataques que sofre de seu Outro. Temos
observado que uma determinada formação discursiva reconhece com incrível precisão não só
os enunciados do Outro, mas também seus textos – entendidos aqui como os diversos suportes
intersemióticos dos quais se pode valer uma formação discursiva.

Partindo dessas proposições, e acrescentado o enunciado de Maingueneau que


nos diz que “no conjunto de enunciados que lhe são dirigidos, o discurso responde àqueles
que lhe parecem os mais ameaçadores” (2005, p. 114), fica fácil perceber por que o discurso
Outro do movimento pro-choice – o discurso pro-life – responde usando enunciados como
este (É uma grande pobreza decidir que uma criança deve morrer para que você possa viver
como você quer):

FIGURA 40 – Enunciado pro-life. Disponível em: <http://transporter.com/apologia/life/>.


Acesso em 01 de agosto de 2007.

Esse enunciado merece uma atenção especial. Trata-se de uma proposição


muito forte, que poderia ofender pessoas que, em última análise, o movimento pro-life
procura converter e não confrontar. Por isso, dificilmente um enunciador pro-life “comum”
poderia usar essa expressão. Somente um enunciador muito especial, com um ethos
respeitadíssimo, inscrito em uma cenografia única poderia ter essa ousadia: Madre Tereza de
85

Calcutá. Note-se que ao fazer referência a “uma criança que deve morrer”, o enunciado de
Madre Tereza “responderia ou denunciaria lá onde percebe um ponto chave [..] polemizar é,
sobretudo, apanhar publicamente em erro, colocar o adversário em situação de infração em
relação a uma Lei que se impõe como incontestável” (MAINGUENEAU, 2005, p. 114). O
erro, nesse caso, está na negação da existência de uma nova vida na gravidez. Ao fazermos
contraponto entre pro-choice e pro-life, mantemos nossa fidelidade à tese do primado do
interdiscurso:

A unidade de análise pertinente não é o discurso em si mesmo, mas o sistema de


referência aos outros discursos através do qual ele se constitui e se mantém; referir-
se aos outros e referir-se a si mesmo não são atos distinguíveis senão de modo
ilusório; o interdiscurso não se encontra no exterior de uma identidade fechada sobre
suas próprias operações (MAINGUENEAU, 2006a, p. 39).

Finalizaremos insistindo na proposição que nos levou a escrever este capítulo:


a extraordinária expansão dos meios de comunicação com suporte multimídia torna os estudos
do discurso, dentro de uma perspectiva intersemiótica, imprescindíveis para o
desenvolvimento da Análise do Discurso Francesa no século XXI.
86

5 O DISCURSO PRÓ-ABORTO NA REVISTA VEJA

Entre os anos de 1964 e 1985 o Brasil viveu sob a chamada Ditadura Militar.
Em 11 de setembro de 1968 chegava às bancas a primeira edição daquela que se tornaria a
maior revista semanal brasileira de informações, a revista Veja, criada nos moldes da revista
norte-americana TIME.

Figura 41 - Primeira capa da revista Veja. Disponível em:


<http://veja.abril.com.br/busca/resultadoCapas>. Acesso em: 21 maio 2007.

Não faz parte do escopo deste trabalho efetuar uma ampla análise do
posicionamento de Veja, mas tão somente daquele viés ligado diretamente ao corpus desta
dissertação: os artigos e matérias sobre o tema “aborto”. Por isso diremos apenas que a revista
parece tentar combinar a visão econômica da direita americana (Republicana), que procura
reduzir a presença do Estado na economia, incentivando a iniciativa privada; com a visão da
87

esquerda, também americana (Democrata), que busca impor a liberdade individual em


assuntos pessoais (o enunciado “impor a liberdade” não é, de forma nenhuma, um paradoxo
pragmático, trata-se, antes, da retirada da autoridade de instituições clássicas, como a família,
para se impor uma visão do Estado, como fizeram os regimes comunistas, particularmente o
Soviético).

5.1 NÓS FIZEMOS ABORTO – A REPORTAGEM

Entre as matérias produzidas por Veja abordando o tema “aborto”, uma merece
destaque especial: a reportagem de capa de sua edição de 17 de setembro de 1997, intitulada
“NÓS FIZEMOS ABORTO – O depoimento das mulheres e a polêmica no Brasil”74, que pela
sua extensão, profundidade e asserções marca definitivamente o posicionamento da revista em
relação ao tema e, por isso, será o objeto do presente capítulo.

Entretanto, afirmar que uma reportagem de Veja marca seu posicionamento é


negar o pretenso posicionamento factual da revista. Sem nos determos longamente no assunto,
vamos recorrer a Patrick Charaudeau, que em seu livro “Discurso das Mídias” (2006, p. 42),
trabalha o mito da informação factual, considerando que é “... inútil colocar o problema da
informação em termos de fidelidade aos fatos ou a uma fonte de informação. Nenhuma
informação pode pretender, por definição, à transparência, à neutralidade ou à factualidade”.
Apenas informações extremamente simples poderiam pretender possuir esse caráter, o que
não é absolutamente o caso da reportagem em questão:

Não há “grau zero” da informação. As únicas informações que se aproximam do


grau zero, entendido este como ausência de implícito e de todo valor de crença, o
que seria característico da informação puramente factual, são aquelas que se
encontram nas páginas de anúncios dos jornais: os programas de cinemas, dos
teatros e de outras manifestações culturais; as farmácias de plantão, os diversos
anúncios classificados etc. (CHARAUDEAU, 2006, p. 59).

74
O título na capa era “EU FIZ ABORTO”, porém, dentro da revista, foi alterado para “NÓS FIZEMOS
ABORTO”. A reportagem completa está no anexo 6, página 199.
88

Figura 42 – Capa da revista Veja. Disponível em:


<http://veja.abril.com.br/busca/resultadoCapas>. Acesso em: 21 maio de 2007.

Se aceitarmos as proposições de Charaudeau, dificilmente poderemos


considerar Veja como neutra em relação à temática do aborto. Resta-nos, então, a tarefa de
procurar desvendar sua posição, já que “O sentido nunca é dado antecipadamente. Ele é
construído pela ação linguageira do homem em situação de troca social” (CHARAUDEAU,
2006, p. 41). Para isso vamos usar como ferramenta as proposições que Dominique
Maingueneau trabalhou em “Gênese dos discursos” e buscar, neste capítulo, demonstrar qual
é esse posicionamento e como ele se situa dentro de um campo discursivo que confronta os
movimentos pro-life e pro-choice. Afinal, como afirma esse autor, “O que é realmente
problema não é tanto a existência de uma formação discursiva, mas a extensão do corpus que
lhe diz respeito” (2005, p. 66).

No segundo capítulo de “Gênese dos discursos”, partindo da tese de que “... a


formação discursiva não seria um conglomerado mais ou menos consistente de elementos
diversos que se soldariam pouco a pouco, mas sim a exploração sistemática das possibilidades
89

de um núcleo semântico” (2005, p. 63), Maingueneau procura construir modelos para o


espaço discursivo jansenismo/humanismo devoto a partir de oposições primitivas como
“Concentração versus Expansão” e de objetos semânticos como “Ordem”. Esses modelos
funcionam como regras de filtragem que permitem construir enunciados de acordo com o
sistema de restrições de uma formação discursiva. Não pretendemos aqui explorar
exaustivamente o modelo aplicado pelo autor, mas apenas mostrar uma oposição primitiva
entre as formações discursivas do nosso corpus e também alguns poucos objetos semânticos
pertencentes a essas formações e, a partir daí, analisar diversos aspectos fundamentais
derivados desses dois posicionamentos.

Estamos trabalhando com o espaço discursivo pro-life/pro-choice. Como


procuramos demonstrar no capítulo 2 – “O percurso histórico da polêmica sobre o aborto” –,
consideramos que esses dois discursos se fundamentam em concepções antropológicas
divergentes. Cremos ser necessário clarificar melhor o conceito de “concepção
antropológica”. Se recorrermos ao dicionário, encontraremos: “ciência do homem no sentido
mais lato, que engloba origens, evolução, desenvolvimentos físico, material e cultural,
fisiologia, psicologia, características raciais, costumes sociais, crenças etc.” (HOUAISS
ELETRÔNICO, verbete “antropologia”). Essa definição representa um primeiro passo,
entretanto necessita ser aprofundada. Segundo Nazaré (1997a, páginas 3-5) há três
(principais) concepções antropológicas: (1) “a concepção metafísica (doutrina da essência das
coisas, conhecimento das causas primeiras e dos primeiros princípios) que olha o homem sob
o prisma ontológico, o ente enquanto ente, transcendental” (Ibid., p. 3). Esse é o
posicionamento religioso e conservador; o posicionamento católico, ao qual está ligado o
movimento pro-life, conforme as palavras do Papa João Paulo II “Não se pode pensar
adequadamente o homem sem a referência, que lhe é constitutiva, a Deus” (1995, p. 51). Esse
posicionamento é chamado de “vertical”, por constituir-se a partir de um processo dialógico
entre o homem e Deus75, processo esse que também dá um segundo estatuto, o de
“objetividade”: “que está situado na exterioridade do sujeito cognitivo humano, podendo ser
capturado pelo intelecto” (HOUAISS ELETRÔNICO, verbete “objetivo”). Para evitarmos
longas – e estéreis – discussões a respeito das proposições da Análise do Discurso e da
Antropologia Filosófica a respeito das conceituações de objetivo/subjetivo, diremos que aqui

75
Em termos lingüísticos podemos usar a palavra “Deus”, mesmo falando com interlocutores ateus, pois se esses
podem negar sua existência enquanto ente (com existência própria) não o podem negar enquanto conceito ou
entidade conceitual. Dois exemplos simples podem confirmar essa tese: (1) um católico praticante não aceita a
tese da reencarnação, mas não pode negar a existência do conceito e de seus princípios; (2) não é necessário
acreditar na existência do inferno para poder ler “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri.
90

“objetivo” refere-se simplesmente às normas a respeito da moral (sexualidade, aborto,


eutanásia etc.) emanadas da autoridade religiosa católica e que levam em conta os grandes
princípios da religião – considerados por ela como emanados do próprio Deus76 – e, portanto,
independentes dos indivíduos e de suas situações particulares. Aqui predomina a norma, a
regra – geralmente de origem filosófico-religiosa – aplicada à coletividade. (2) e (3): As
concepções naturalista e histórico-social. Ainda segundo Nazaré (1997a, páginas 4-5),
partindo do posicionamento racionalista de René Descartes – que pode ser considerado o pai
do racionalismo e do subjetivismo modernos – e passando por vários pensadores,
especialmente Kant, chegamos ao imanentismo – doutrina filosófica que exclui o efeito de
forças transcendentais sobre o mundo – no qual a metafísica é abandonada e se abre um
grande espaço para a concepção histórico-social, particularmente para as teses marxistas.
Dentro desse viés, lugar onde se situam os posicionamentos liberal e pro-choice, se proclama
a liberdade individual e o antropocentrismo humanista – onde o mundo é visto a partir do
homem, daí ser considerado subjetivo. Como na análise do termo “objetivo”, também diremos
que aqui o termo subjetivo refere-se simplesmente às normas a respeito da moral
(sexualidade, aborto, eutanásia etc.) emanadas a partir dos indivíduos e suas realidades sócio-
históricas, sem quaisquer referências a um transcendente ou autoridade religiosa. O processo
dialógico que aí se estabelece é chamado de “horizontal”, tanto por ser realizado entre os
indivíduos, socialmente, como por se opor à chamada dimensão vertical. O posicionamento
aqui é claramente materialista:

Segundo o materialismo histórico marxista, para se estudar o homem e a sociedade é


preciso partir da análise do que os homens fazem, da forma como produzem os bens
necessários à vida. Só então será possível compreender como eles são e pensam.
Dessa forma, para Marx não há natureza humana universal (como queriam as
filosofias existencialistas). Seres práticos que são, os homens se definem pela
produção e pelo trabalho coletivo. Assim, as condições econômicas estabelecem os
modelos sociais em determinadas circunstâncias. Por isso Marx se recusa a definir o
homem de forma abstrata, buscando compreendê-lo como homem real (concreto),
sempre situado em um contexto histórico-social (ARANHA, MARIA, apud
NAZARÉ, 1997b, p. 3).

Já temos nossa oposição primitiva: liberdade (individual, individualismo)


versus norma (moral, coletiva). Temos também alguns objetos semânticos: humanista,
subjetiva, transcendente, objetiva. Dito de outra maneira, as duas formações discursivas

76
Obviamente, para quem é ateu, essa proposição é uma ilusão.
91

possuem valores que, a partir de seus fundamentos e origens, se excluem mútua e


radicalmente.

Partindo do exposto, podemos montar um quadro onde os principais


significados derivados dessas análises podem ser mais bem explicitados e, a partir daí,
podemos retirar alguns elementos e aplicá-los às duas formações discursivas em questão.

Características básicas dos movimentos pro-choice e pro-life:


Pro-choice Pro-life
Horizontal Vertical
77
Imanente Transcendente78
Subjetivo/Relativo Objetivo/Absoluto
Indivíduo Grupo
Liberdade individual Responsabilidade coletiva
Liberal Conservador
Tabela 2 – Características básicas dos movimentos pró-aborto e pró-vida.

Iniciemos, pois, nosso trabalho diretamente com o corpus. Após uma primeira
leitura, pudemos observar a validade da proposição de Maingueneau:

... na realidade, “o enunciado é raro”, para retomar a expressão de Foucault, e


redundante. Em relação ao campo do possível, a lista dos assuntos efetivamente
debatidos é muito limitada, e mesmo pouco variada, a polêmica indo e voltando em
torno de poucos pontos (2005, p. 113).

E quais são, na reportagem que estamos analisando, esses enunciados raros,


esses poucos pontos em torno dos quais a polêmica circula? Primeiramente temos o
enunciado-título “EU FIZ ABORTO/NÓS FIZEMOS ABORTO”, que forma o fio condutor
dessa reportagem onde mulheres, a maioria famosas e ligadas à mídia televisiva, contam suas
experiências de aborto, mostram a face e – em sua maioria – agregam ao enunciado “EU FIZ
ABORTO” outros enunciados como “... melhor coisa a fazer”, “... até hoje não me arrependo
do que fiz”, “Foi uma decisão tranqüila”, “... não me senti culpada...” etc., enunciados esses
que confirmam o status pro-choice da declaração “eu fiz aborto”, pois, obviamente, se os

77
Que está inseparavelmente contido ou implicado na natureza de um ser, ou de um conjunto de seres, de uma
experiência ou de um conceito (HOUAIS ELETRÔNICO, 2002).
78
Que transcende a natureza física das coisas; metafísico (ibid.).
92

enunciados fossem “... pior coisa a fazer”, “... até hoje me arrependo do que fiz”, “Foi uma
decisão terrível”, “... senti-me culpada...” etc., o sentido seria totalmente contrário. A
característica marcante desses enunciados – tanto os reais como os que criamos para
exemplificar – é o impacto que produzem, de maneira instantânea, nos grandes grupos de
enunciatários aos quais se destinam, como nos mostra Maingueneau (2005, p. 52):

... o tipo de discurso que visamos de maneira privilegiada produz enunciados que
entram em luta de maneira mais imediata no vivido de grandes camadas de
população. Mesmo sendo numerosos, seus autores não passam, eles próprios, de um
subconjunto restrito de inumeráveis outros enunciadores, dos quais, através de seus
escritos, são ao mesmo tempo eco e suporte.

Mas esses enunciados não surgem sozinhos. Sabemos, pelo primado do


interdiscurso, que “a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de trocas
entre vários discursos convenientemente escolhidos” (MAINGUENEAU, 2005, p. 21) e que
os discursos “não se constituem independentemente uns dos outros, para serem em seguida,
postos em relação, mas que eles se formam de maneira regulada no interior de um
interdiscurso” (MAINGUENEAU, 2005, p. 21). Qual seria, então, o “outro” do enunciado
“EU FIZ ABORTO”? Como afirmamos logo acima, nossa análise deve se situar no espaço de
trocas entre discursos, espaço que não mais se encontra limitado por fronteiras nacionais,
conforme foi demonstrado no capítulo segundo. Afirmamos também que Veja utiliza-se do
discurso pró-aborto americano. Logo, é perfeitamente natural que o Outro da relação
interdiscursiva com Veja seja um enunciado pro-life americano: I regret my abortion – eu me
arrependo do meu aborto – que é amplamente usado em suas campanhas, pois dentro dessa
formação discursiva alguém só pode declarar que abortou ou cooperou em abortos se – ao
mesmo tempo – se declarar clara, absoluta e objetivamente arrependido.
93

Figura 43 - Jennifer O'Neill discursa em frente ao edifício da Suprema Corte Americana.


Disponível em: <http://www.pfltv.com/testimony5110/>. Acesso em: 25 maio 2007
Figura 44 - Jennifer O'Neill – foto. Disponível em: <http://www.jenniferoneill.com/modeling.html>.
Acesso em: 27 maio 2007.

Esse é o caso da modelo e atriz norte americana Jennifer O'Neill e do produtor


de cinema Jonathan Flora, que passaram pela experiência do aborto, se arrependeram e hoje
são ativistas do movimento pro-life.

Nas figuras 43, 44, 45 e 46 vemos Jennifer O'Neill e Jonathan Flora


discursando em frente ao prédio da Suprema Corte americana, que em 1973 aprovou o aborto
on demand (a pedido) em todo o território americano.

Na verdade, o interdito é tão forte que obriga o enunciador a usar a palavra


arrependimento antes da palavra aborto. Dizer “Eu fiz aborto, mas me arrependo” não possui
o mesmo tom de “eu me arrependo do meu aborto”, como afirma Maingueneau: “Não se trata
de fazer falar um texto mudo, mas de identificar as particularidades da voz que sua
semântica impõe” (2005, p. 95, grifo nosso).
94

Figura 45 – Jonathan Flora discursa em frente ao edifício da Suprema Corte americana.


Disponível em: <http://www.pfltv.com/testimony5114/>. Acesso em: 27 maio 2007.
Figura 46 - Jonathan Flora – foto. Disponível em: <http://www.imdb.com/name/nm0282620/>.
Acesso em: 27 maio 2007.

O que acabamos de expor exclui a possibilidade do enunciado “eu fiz aborto”


da reportagem de Veja ser apenas factual ou ambíguo e não ser, necessariamente, pro-choice,
pois ambigüidade (subjetivismo, relativismo) é característica desse discurso – aliás, pró-
escolha é em si mesma uma expressão ambígua; enquanto o posicionamento pró-vida – vida
originada em um estupro, deficiente, que existirá apenas durante algumas horas fora do útero
materno, que acabou de ser concebida... – não comporta relativismo: é contra o aborto em
qualquer circunstância.

É importante deixar claro que não estamos de modo algum afirmando que os
repórteres de Veja teriam visto o enunciado I Regret My Abortion e, a partir daí, criado a
expressão “eu fiz aborto”. Pelo contrário, ao nos filiarmos à proposta de Maingueneau, que
diz que os discursos se constituem a partir de um espaço interdiscursivo, onde o Outro já está
presente como a outra face do Mesmo, acreditamos que esses tipos de enunciados são muitas
vezes produzidos sem conhecimento prévio do que está acontecendo nos grupos que
defendem discursos contrários. Eles são simplesmente a rejeição do Outro, presente no
Mesmo:

O caráter constitutivo da relação interdiscursiva faz aparecer a interação semântica


entre os discursos como um processo de tradução, de interincompreensão regrada.
Cada um introduz o Outro em seu fechamento, traduzindo seus enunciados nas
categorias do Mesmo e, assim, sua relação com esse Outro se dá sempre sob a forma
do “simulacro” que dele constrói (MAINGUENEAU, 2005, p. 22).
95

Partindo deste enunciado – Eu fiz aborto – a revista Veja coloca em cena uma
série de depoimentos de mulheres, destacando cinco desses testemunhos, através de quadros
com textos e fotos. O depoimento que foi colocado em maior evidência foi o da apresentadora
de televisão Hebe Camargo, sobre um aborto que ela realizou quando tinha dezoito anos.

Esse depoimento é formado por aquilo que Charaudeau chama de “atividades


discursivas complementares: o relato e o comentário” (2006, p. 175). Inicialmente temos um
relato sumário dos acontecimentos, feito com enunciados curtos. Essa parte vai até “Minha
família nunca soube disso...”. A segunda parte inicia-se no restante da frase: “... foi ruim ter
de esconder”, a partir de onde temos comentários e juízos de valor, que remetem a uma
formação discursiva pro-choice, pois obedecem ao sistema de restrições semânticas dessa
formação discursiva.

Vamos analisar esses enunciados, deixando claro, mais uma vez, que pela tese
do sistema global de restrições semânticas, a formação discursiva na qual o enunciador está
inserido determina o que pode ser enunciado e como deve ser enunciado. Parafraseando
Maingueneau (2005, p. 40), diríamos que “... enquanto enunciadora do discurso pro-choice,
Hebe Camargo não dispõe de outro código”.
96

"Lembro de uma mulher falando alto: 'Não grita!


Não grita!'
Eu tinha 18 anos e um corpinho lindo, sobrancelhas
grandes, cabelos compridos e escuros. Começava minha
carreira de cantora no rádio. Na minha primeira relação
sexual fiquei grávida. Não podia contar para ninguém.
Meus pais sempre foram muito severos e naquela época
era uma perversão ter relação sexual sem se casar. Contei
para uma amiga, uma vizinha. Ela soube de um local
onde uma mulher fazia aborto. Ela não era médica. Numa
sala pequena, sem anestesia, sem medicamento nenhum,
fez a curetagem. A dor era tão intensa que ameacei gritar.
Jamais vou esquecer-me daquela voz falando em tom alto
e áspero para eu calar a boca. Voltei para casa e tive
hemorragia por vários dias. Acabei em um hospital.
Estava muito doente. Minha família nunca soube disso e
foi ruim ter de esconder. Para ser mãe a gente tem de
Foto: Laison Santos desejar ter um filho. Ele tem direito à vida, é verdade.
Mas com amor dos pais, com condições para crescer com
saúde e boa educação. Quem vai garantir isso? Um Estado falido, miserável e hipócrita?
A Igreja? Nem pensar. Sou católica e até hoje não me arrependo do que fiz. Hoje tenho o
Marcelo, a melhor coisa que me aconteceu. Estava casada e preparada para ter um filho.
Sinto-me muito feliz."
Hebe Camargo, 68 anos, apresentadora de TV
Figura 47 - O depoimento de Hebe Camargo.
Fonte: Revista Veja. Edição: 17 maio 1997. Matéria: “Nós fizemos aborto”.

- “... foi ruim ter de esconder”. Esse enunciado remete à questão do aborto ilegal, aquele que é
feito às escondidas. Ora, afirmar que é ruim ter de esconder subentende que seria bom não ter
de esconder, o que só seria possível se o aborto fosse legal.

- “Para ser mãe a gente tem de desejar ter um filho”. Essa afirmação contém o principal ponto
de atrito entre os movimentos pro-choice e pro-life. Este afirma a existência de uma nova vida
humana desde a concepção, considerando, portanto, que a mulher grávida já é mãe e que esse
tipo de argumento é mais uma figura de retórica que procura aplicar conceitos referentes à
contracepção ao aborto. Aquele procura negar a existência de uma nova vida humana antes do
nascimento – origem da legalização, nos Estados Unidos, do aborto a pedido durante os nove
meses de gestação – e afirma que a mulher só se torna mãe após o nascimento da criança. O
desenvolvimento da genética, da fetologia e – especialmente – da ultra-sonografia
desautorizou essa argumentação pro-choice nos últimos anos.
97

- “Ele tem direito à vida, é verdade. Mas com amor dos pais, com condições para crescer com
saúde e boa educação”. Aqui temos uma argumentação fundada em uma posição relativista
em relação à vida, relativismo que é característico do movimento pro-choice.

- “Quem vai garantir isso? Um Estado falido, miserável e hipócrita? A Igreja? Nem pensar”.
Qual o motivo do ataque à Igreja e ao Estado? Eles são atualmente as duas maiores forças
pró-vida no Brasil – a Igreja porque é constitutivamente pró-vida e o Estado porque o aborto é
ilegal no Brasil. Assim, em países onde o aborto é legal, a argumentação contra o estado é
formulada pelo movimento pro-life: “les 220 000 assassinats légaux remboursés par la
Sécurité Sociale…” (=os 220.000 assassinatos legais reembolsados pela Previdência Social...,
capítulo 4, p. 68-69). Também observamos uma interessantíssima sutileza discursiva,
originária dos posicionamentos assumidos pela apresentadora: ela chamou o Estado de falido,
miserável e hipócrita, mas não usou nenhuma adjetivação ao se referir à Igreja, possivelmente
por se considerar católica, como podemos ver no próximo enunciado.

- “Sou católica e até hoje não me arrependo do que fiz”. Temos aqui duas afirmações. A
segunda – até hoje (cinqüenta anos após) não me arrependo do que fiz – é o corolário perfeito
do enunciado “Eu fiz aborto”. O enunciado “Eu fiz aborto e não me arrependo do que fiz”
constitui-se em uma declaração pro-choice completamente construída. A primeira afirmação –
sou católica – ligada diretamente à prática do aborto – é um simulacro: “... para constituir e
preservar sua identidade no espaço discursivo, o discurso não pode haver-se com o Outro
como tal, mas somente com o simulacro que constrói dele” (MAINGUENEAU, 2005, p. 103).
Parafraseando Maingueneau: Evidentemente, esse discurso pró-aborto que se integra a uma
prática católica é apenas um simulacro construído pelo sistema pro-choice (2005, p. 109).
Obviamente, não estamos julgando o ser empírico Hebe Camargo e sim analisando um
discurso.

- “Hoje tenho o Marcelo, a melhor coisa que me aconteceu”. (pois) “Estava casada e
preparada para ter um filho”. Esse conjunto de enunciados comporta pelo menos duas
análises, uma relativa ao suporte teórico com o qual estamos trabalhando; a outra embasada
em uma complexa construção teológico-filosófica. Na primeira temos o princípio subjetivista
no qual se assenta a FD pro-choice, onde o filho só é acolhido se a mãe decidir segundo
98

critérios pessoais e, portanto, subjetivos, se quer e/ou tem condições de ter esse filho, critérios
esses que podem variar de uma pessoa para outra e em diferentes momentos na vida de uma
mesma pessoa. Na segunda, considera-se que, sendo os conceitos morais algo objetivo, não
caberiam aqui decisões pautadas em critérios pessoais, e que atos bons, como ter o filho
Marcelo, não se somam ao ato intrinsecamente mau do aborto para constituir um só conjunto.

- “Sinto-me muito feliz”. Naturalmente Hebe Camargo está afirmando sua felicidade em
função de seu filho Marcelo. Entretanto, após dizer que fez um aborto e que não se
arrependeu, a afirmação de felicidade não deixa de reforçar a argumentação pro-choice.

Outro depoimento que iremos analisar é o da artista plástica Pinky Wainer, que
traz acréscimos interessantes para o nosso estudo.

"Já tinha três filhos e usava Diu. Não podia ter uma
quarta criança
Conversei com meu marido e chegamos à conclusão de que
o aborto seria a melhor coisa a fazer. Procurei meu médico
e ele indicou um outro. Foi muito rápido, e, quando acordei,
tudo tinha acabado. Depois disso, voltei ao meu
ginecologista. Ele me examinou e estava tudo bem. A
decisão foi difícil, pesou-me por um tempo. Como eu tinha
outros filhos, pensava muito nisso. Mas eu tinha certeza de
que queria ter somente três filhos. Além disso, não me senti
culpada porque eu me protegia com o DIU. Acho que a
mulher tem plenas condições de decidir o que é melhor para
ela."
Foto: Antonio Milena Pinky Wainer, 42 anos, artista plástica
Figura 48 – O depoimento da artista plástica Pinky Wainer.
Fonte: Revista Veja. Edição: 17 maio 1997. Matéria: “Nós fizemos aborto”.

Temos, nesse depoimento de Pinky Wainer, um elemento muito importante em


termos de interdiscurso: o contraponto ao enunciado de Jonathan Flora I Regret (My) Lost
Fatherhood (eu me arrependo da minha paternidade perdida), que está subentendido em
“Conversei com meu marido e chegamos à conclusão de que o aborto seria a melhor coisa a
fazer”. A presença masculina, enquanto médico praticante do aborto, sempre esteve bem
marcada no espaço discursivo que estamos analisando (“Procurei meu médico e ele indicou
99

um outro”), porém o homem enquanto pai era uma presença “dissimulada”, subentendida,
mas que agora começa a se mostrar79. Vamos agora analisar alguns enunciados desse
depoimento, especialmente aqueles que traduzem o discurso pró-aborto em uma linguagem
pró-contracepção:

- “Acho que a mulher tem condições de decidir o que é melhor para ela”. O termo pro-choice
– pró-escolha – deriva diretamente desse posicionamento. Obviamente escolha aqui não se
refere a qualquer escolha, mas à decisão pelo aborto, ou seja, a mulher, baseando-se em si
mesma, naquilo que julga melhor para si – “... eu tinha certeza de que queria ter somente três
filhos” – poderia decidir rejeitar um novo filho, visto como um empecilho, e eliminá-lo pelo
aborto. Outro fundamento do movimento pro-choice é adotar o aborto como alternativa para
uma contracepção falhada: “... não me senti culpada porque eu me protegia com o DIU”. Há
diversos trabalhos e estudos que apontam a relação entre formação discursiva contraceptiva e
formação discursiva pró-aborto, o que, aliás, é coerente com as proposições de Maingueneau,
que podem perfeitamente dar conta da coexistência de mais que dois discursos dentro de um
mesmo espaço discursivo. Uma outra observação pertinente seria a de que essa proposição
representa uma tradução do Outro – aqui do sentimento de culpa que o aborto gera: “... me
senti culpada” – no Mesmo, através de um simulacro: “... não me senti culpada, porque usava
DIU”.

Finalmente, é necessário dizer que, nesta matéria, entre os muitos depoimentos


e textos claramente a favor do aborto, existem alguns discursos pro-life, formados por um
depoimento pró-vida e algumas considerações feitas pelo bispo católico Dom Rafael
Cinfuentes. Tudo isso somado não chega a seis por cento do espaço total da matéria. Também
a posição que esse material ocupa na reportagem, espremido e entremeado por textos pro-
choice, longe da introdução, onde são formadas as idéias, e do final da matéria, onde são
tiradas as conclusões, enfraquece muito o posicionamento pro-life e sinalizam muito mais a
intencionalidade de Veja apresentar-se como factual do que realmente dar igual espaço para
os dois posicionamentos. Vejamos alguns enunciados pró-vida retirados desse material:

79
Um dos impulsionadores dessa “entrada na cena enunciativa” é o fundamento religioso que atribui
responsabilidade moral também ao pai da criança abortada, quer por ter abandonado a mulher grávida, quer por
pressioná-la ao aborto.
100

- Dom Rafael Cinfuentes: “Entre o embrião, o feto e o bebê não há uma diferença qualitativa.
No início da fecundação já é uma vida humana”. Esse certamente é um dos “enunciados
raros” aos quais Foucault se refere em “A Arqueologia do Saber” (1987), sendo mesmo uma
espécie de “enunciado fundador” do discurso pro-life. Dizer que desde a fecundação já existe
uma nova vida humana implica atribuir o mesmo valor à vida do bebê e à vida da mãe e,
portanto, afirmar que ambas devem ser objeto de igual atenção, que ambas devem ser
preservadas. Acreditamos também que esse é um exemplo perfeito daquilo que Maingueneau
chama de “sistema global de restrições semânticas ligado a uma formação discursiva”, pois
uma vez definida a concepção como sendo o início da vida, qualquer proposta, enunciado ou
discurso que se alinhar com essa tese será imediatamente reconhecido como pertencente à
formação discursiva pro-life e qualquer formulação que vá na direção contrária será vista
como pertencente a FD pro-choice. Se analisarmos os enunciados “As pessoas têm de ter
consciência de que o aborto, em qualquer circunstância, é um crime” e “... mesmo que ficasse
comprovado algum problema com o bebê, ainda assim eu levaria a gravidez adiante”, ditos
pela atriz Cássia Kiss nessa mesma matéria, veremos que esses se alinham como o enunciado
fundador proferido por Dom Rafael Cinfuentes – que, logicamente, não é o seu autor, mas
apenas um enunciador.

Durante muitos anos o movimento pro-choice procurou negar a existência de


uma nova vida após a concepção usando o enunciado “a mulher é dona de seu próprio corpo”,
enunciado fundador que representa o Outro do enunciado “a vida começa na concepção” e
que trazia implícita a tese de que o bebê era apenas um montinho de células, um apêndice do
corpo feminino. Com a evolução da ultra-sonografia esse argumento perdeu força em nível
mundial, mas continua sendo muito usado pela (anacrônica) imprensa brasileira.

Passemos agora à análise dos elementos pro-choice existentes no corpo da


reportagem, agrupados por objetos semânticos. Esta análise abordará a concentração da
polêmica em torno de poucos pontos que revelam a incompatibilidade global dos discursos e
remetem cada enunciado a uma determinada formação discursiva à qual pertence, conforme
Maingueneau:

... na realidade, “o enunciado é raro”, para retomar a expressão de Foucault, e


redundante. Em relação ao campo do possível, a lista dos assuntos efetivamente
debatidos é muito limitada, e mesmo pouco variada, a polêmica indo e voltando
em torno de poucos pontos. Para a análise, é difícil não ver aí pontos chave, como
se fala de palavras chave, pontos de imbricação semântica que abrem um acesso
privilegiado à incompatibilidade global dos discursos. A esse propósito, os
101

assuntos debatidos constituem uma semiologia preciosa, cada sintoma devendo ser
relacionado ao sistema que o funda (2005, p. 113, grifos nossos).

A reportagem com que estamos trabalhando é iniciada com o enunciado


“Quebrando o muro de silêncio que sempre cercou o aborto...”, o que imediatamente nos
remete80 ao grupo americano Silent no more Awareness Campaign, ao qual pertencem
Jennifer O'Neill e Jonathan Flora, apresentados anteriormente. Começamos aqui a ter a
experiência de “... discursos que possuem a mesma função social e divergem sobre o modo
pelo qual ela deve ser preenchida” (MAINGUENEAU, 2005, p. 36), pois certamente pro-
choice e pro-life trabalham como o mesmo tema – o aborto – possuem relatos muitas vezes
semelhantes – como as histórias de morte por aborto que Veja conta nas páginas finais de sua
reportagem – mas divergem nas reflexões que tudo isso suscita e nas soluções que oferecem
para essas questões. Dessa forma, as mortes de mulheres que praticaram aborto são
consideradas como motivo para não abortar (posição pro-life) ou como motivo para a
legalização do aborto (posição pro-choice), constituindo-se no que Maingueneau chama de
“explorações semânticas contraditórias das mesmas unidades lexicais por diferentes
discursos” (2006, p. 83).

A narrativa de Veja é entremeada de comentários que dão o tom do discurso.


Nela são colocadas as histórias das mulheres que fizeram aborto – e não se arrependeram,
pois isto as colocaria do lado pró-vida – e comentários que procuram justificar a prática. Os
comentários partem tanto da reportagem quanto das pessoas entrevistadas sendo, entretanto,
selecionados de acordo com a formação discursiva pró-aborto e em total desacordo com o que
seria uma prática jornalística responsável:

O comentário midiático corre o risco constante de produzir efeitos perversos de


dramatização abusiva, de amálgama, de reação paranóica. Assim, a instância
midiática procura, para compensar tais efeitos, multiplicar os pontos de vista e
colocar num plano de igualdade os argumentos contrários. Talvez esteja aí a
especificidade do comentário jornalístico: uma argumentação que, certamente,
bloqueia a análise crítica, mas que, pela sua própria fragmentação, sua própria
multiplicidade de pontos de vista, fornece elementos para que se construa uma
verdade mediana. É uma atitude discursiva que aposta na responsabilidade do
sujeito interpretante (CHARAUDEAU, 2006, p. 187).

É evidente que Veja “não coloca num plano de igualdade os argumentos


contrários”, mas comenta com parcialidade. Vejamos alguns enunciados:

80
É o conhecimento enciclopédico ou conhecimento de mundo que permite estabelecer, de maneira quase
instantânea, essas relações. Após isso, recursos de pesquisa são utilizados para confirmar ou infirmar a tese.
102

Procurando silenciar os argumentos contrários, através de posicionamentos que ferem


diretamente a liberdade de expressão:

• “O debate não deve girar em torno da vida no ventre da mãe, mas no tipo de vida que
o feto terá depois do nascimento, quando se transforma num bebê, num cidadão”,
considera o obstetra Thomaz Gollop, professor de genética médica da Universidade
de São Paulo;

• “Algumas mudanças de valores são tão gigantescas que não podem sequer ser
discutidas.”

Relativizando:

• Casado com uma espírita, pai de dois filhos, 46 anos e católico praticante, Galvão
Bruno (juiz corregedor) é contra o aborto. Teve até uma experiência traumática,
quando sua mulher sofreu um, espontâneo. "Vi o feto, de oito meses, e fiquei
traumatizado. Nunca permitiria que minha esposa ou minha filha abortassem." (mas...)
"Cheguei à conclusão de que minhas convicções pessoais e religiosas devem ficar em
segundo plano quando estou no papel de juiz. Tenho aqui em meu escritório cinco
juízes auxiliares – um espírita e quatro católicos. Nenhuma mulher. Quando estamos
decidindo, a lei é a nossa religião. Isso é o bastante para nossa consciência”.

• “Nem todas as fileiras da Igreja Católica têm a mesma opinião que o papa João Paulo
II.”

• “Como sempre acontece, são os valores de cada época e de cada lugar que determinam
a discussão sobre temas delicados como esse.”

• “A força dos argumentos religiosos, que tanto podem ser sinceros como apenas
manipulados, vem daí.”

Linguagem ambígua:

• “Interromper81 a gravidez.”

81
Consultando o dicionário Houaiss (eletrônico) verificamos que na maior parte dos significados atribuídos ao
termo interromper sinalizam “parar de fazer (algo) temporariamente”, como “interromper uma reunião para o
almoço” etc. Ora, não se interrompe uma gravidez para retomá-la mais tarde.
103

O argumento da modernidade:

• “O Brasil perfila-se com as teocracias islâmicas no trato do aborto”.

• “... sempre que a mulher assim o desejar, respeitando-se os padrões internacionais


estabelecidos sobre o assunto.”

Dramatização abusiva:

• É difícil encontrar profissionais curtidos pelos corredores dos hospitais públicos


brasileiros que não usem o tempo inteiro a frase “Aborto é uma questão de saúde
pública”.

• O médico Aníbal Faundes, um professor reputado, titular da cadeira de obstetrícia da


Unicamp [...] Herói das mulheres que lutam pela descriminação do aborto, Faundes
nunca se furtou a fazer, ele mesmo, as interrupções de gestação previstas em lei.

• “Foi a decisão mais lúcida que poderia ter tomado”.

Argumentação contraceptiva (dar ao aborto o mesmo status da contracepção):

• “E a maioria delas não fez aborto pelos motivos previstos em lei, mas porque, cada
uma em seu momento, cada uma com sua história pessoal, considerou as
circunstâncias e concluiu que interromper a gravidez era uma saída menos dolorosa do
que ter um filho que não poderia criar.”

• “Eu não estava pronta para ser mãe.”

• “Como é que o Estado julga-se no direito de obrigar as mulheres a ter filhos, se ele é
incapaz de garantir o mínimo para essas mães e seus bebês?”.

Nas semanas que se seguiram a essa reportagem, Veja recebeu muitas cartas,
cujo conteúdo espelhava as proposições da revista sobre o tema, o que talvez torne lícita a
suposição de um processo evenemencial – processo de construção do acontecimento – por
parte de Veja, conforme a proposta de Charaudeau:

... o propósito, como componente do contrato de informação midiática, inscreve-se


num processo de construção evenemencial, que deve apontar para o que é “notícia”.
104

O propósito recorta o mundo em um certo número de universos de discurso


tematizados, transformando-os em rubricas, tratando-os segundo critérios de
atualidade, de socialidade e de imprevisibilidade, assegurando-lhes assim uma
visibilidade, uma publicação, e produzindo um possível efeito de captação. Com
isso, compreende-se que o espaço público se confunda com o próprio acontecimento
midiático, tal como aparece em sua configuração discursiva (CHARAUDEAU,
2006, p. 103).

Para encerrar este capítulo, gostaríamos de apresentar uma ocorrência no


mínimo curiosa. Quando estávamos efetuando nossas pesquisas descobrimos algo
interessante, relativamente às capas – e conteúdos – das edições da revista Veja que vieram
logo após a edição que estamos analisando neste capítulo. A seqüência dessas edições parece
sinalizar a construção de uma cenografia que teria como objetivo fortalecer o movimento pro-
choice e ao mesmo tempo reduzir os possíveis impactos favoráveis ao movimento pro-life
relacionados à visita do papa João Paulo II ao Brasil, que ocorreu duas semanas após a
publicação da reportagem em questão. Após a publicação da matéria de capa “Eu fiz aborto”,
tivemos, na semana seguinte, esta capa:

Figura 49 - Capa da revista Veja. Disponível em:


<http://veja.abril.com.br/busca/resultadoCapas>. Acesso em: 21 maio 2007.
105

Aqui trata-se de uma matéria de capa que poderia ser considerada “neutra” em
relação às capas da edição anterior e da próxima edição. Entretanto, ao lermos seu conteúdo –
nos referimos aqui à seção “Cartas” – veremos que a questão do aborto está sendo
amplamente discutida. E, na segunda semana seguinte à publicação da reportagem “NÓS
FIZEMOS ABORTO – O depoimento das mulheres e a polêmica no Brasil”, a capa de Veja
foi esta:

Figura 50 - Capa da revista Veja. Disponível em:


<http://veja.abril.com.br/busca/resultadoCapas>. Acesso em: 21 maio 2007.

Ou seja: a reportagem de Veja intitulada “NÓS FIZEMOS ABORTO – O


depoimento das mulheres e a polêmica no Brasil” foi realizada duas semanas antes da terceira
e última visita do papa João Paulo II ao Brasil, realizada entre os dias 2 e 6 de outubro de
1997 (as outras duas foram em 1980 e 1991). Mais ainda: em 1995 João Paulo II, que já
combatia tenazmente o aborto, lançou a encíclica Evangelium Vitae, onde esta prática foi
definitiva e irrevogavelmente condenada com toda a sua autoridade de sucessor de Pedro
(conhecida como declaração ex cathedra). E isto acirrou ainda mais a polêmica. E era do
conhecimento de todos que também nesta visita o papa voltaria a condenar o aborto. Por tudo
isto, é difícil não imaginar que Veja tenha propositadamente escolhido esse e não outro
momento para tal reportagem.
106

6 OS ARTICULISTAS DE VEJA E O DISCURSO PRÓ-ABORTO

6.1 A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE SI NA MÍDIA

Um dos principais focos de interesse dos leitores de Veja são os escritos de seu
corpo de articulistas, como mostra o grande número de cartas e e-mails que são endereçados a
eles todas as semanas. Some-se a isto o fato de que, em relação ao assunto do nosso corpus,
esses articulistas costumam expressar as opiniões mais contundentes, e teremos bons motivos
para dedicar um capítulo desta dissertação especialmente ao estudo desse segmento.

Uma vez que pretendemos analisar articulistas envolvidos com um


determinado órgão midiático, uma questão se impõe: como é constituído o ethos, a imagem de
si, dentro da tese do primado do interdiscurso, com a qual estamos trabalhando?

Segundo Charaudeau e Maingueneau o termo ethos “designa a imagem de si


que o locutor constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre seu alocutário”
(2006, p. 220). Se olharmos essa definição mais de perto, veremos que ela, ao enunciar que “o
locutor constrói... para...”, parece sinalizar82 certa autonomia e intencionalidade do sujeito ao
trabalhar a maneira de colocar em circulação os enunciados de sua formação discursiva, o que
estaria em desacordo com a tese do primado do interdiscurso proposta por Maingueneau
(2005), pela qual se considera que os discursos não se formam de maneira isolada, diacrônica,
independente, para depois entrarem em relação, mas são construídos dentro de um processo
interdiscursivo sincrônico, onde um sistema global de restrições semânticas delimita o
conteúdo e a forma do discurso. Também Amossy parece ter essa mesma posição:

Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto,
não é necessário que o locutor faça seu auto-retrato, detalhe suas qualidades nem
mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências lingüísticas e

82
Naturalmente esses autores, experientes e preparados, não cometeram esse deslize. Apenas utilizamos essa
suposta possibilidade como recurso retórico para chamar a atenção para o primado do interdiscurso.
107

enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma


representação de sua pessoa. Assim, deliberadamente ou não, o locutor efetua uma
apresentação de si (2005, p. 9).

Em “Gênese dos discursos” Maingueneau trabalha uma definição ampla, que é


construída em um percurso que se inicia a partir das noções de estatuto do enunciador e do
destinatário. Para o lingüista francês “cada discurso define o estatuto que o enunciador deve
conferir-se e o que deve conferir a seu destinatário para legitimar seu dizer” (2005, p. 91).
Note-se que aqui é o discurso – através de seu sistema global de restrições semânticas – que
define o estatuto do enunciador e do destinatário.

O enunciador geralmente está integrado a uma instituição – os articulistas de


Veja à revista, o papa à Igreja, os ativistas pro-choice ou pro-life a um grupo – IPPF, HLI,
priestsforlife etc. O discurso que o papa83 faz todas as semanas na Praça de São Pedro, ao
dirigir-se aos fiéis católicos, mostra o estatuto do enunciador: o papa é o líder máximo da
Igreja Católica, fundada por Cristo e confiada a Pedro e seus sucessores; e dos enunciatários:
os fiéis, que reconhecem no papa o sucessor de Pedro e possuidor da autoridade e da
competência para falar sobre questões de fé e de moral84. Os demais enunciadores católicos
– bispos, padres e leigos – que aderem ao papa e discursam segundo o sistema global de
restrições semânticas da formação discursiva alinhada ao sucessor de Pedro são reconhecidos
e aceitos pelos fiéis. Aqueles enunciadores que rejeitam essa filiação e aderem a outras
formações discursivas – por exemplo, Leonardo Boff e a Teologia da Libertação – não têm
seu dizer reconhecido pelos fiéis, mas sim pelos dissidentes. Aqui vemos as implicações dos
pressupostos teóricos de Maingueneau, pois o dizer de Leonardo Boff só foi legitimado
através de uma relação que ele conseguiu estabelecer com um corpo de destinatários, dentro
de um discurso bem determinado, o da Teologia da Libertação, que de certa forma se tornou
uma instituição. Neste ponto, gostaríamos de fazer algumas reflexões a respeito do conceito
de “instituição”. Sabemos que o termo geralmente se aplica às estruturas formalmente
constituídas, como a Igreja, os partidos políticos, as ONGs etc. Entretanto, temos observado a
existência de “instituições” informais que surgem dentro de instituições maiores, podendo

83
O papa é o mais perfeito exemplo de ethos, pois ao ser eleito, o cardeal assume uma posição à qual está
perfeitamente integrado, 24 horas por dia, sempre. Não existe mais Joseph Ratzinger, apenas o papa Bento XVI.
84
Autoridade, competência, fé e moral são os quatro pilares sobre os quais se assenta a função exercida pelo
papa. Enquanto as três primeiras dizem respeito especialmente aos fiéis católicos, a quarta, ao tratar dos usos e
costumes – casamento, família, eutanásia, aborto etc. – afeta todo o conjunto da sociedade e é exatamente o
ponto de origem da controvérsia dos Liberais contra a Igreja. Quando os articulistas de Veja atacam algum dos
três primeiros pontos, eles muitas vezes estão simplesmente tergiversando (usando subterfúgios = ardil para se
conseguir algo), já que esses três pontos dizem respeito apenas aos fiéis.
108

chegar a ter vida própria. Como exemplo podemos citar o Jansenismo – analisado por
Maingueneau em diversas obras; a Teologia da Libertação – concepção marxista, portanto
contrária à Igreja85, o movimento Tradicionalista86, que lutou por décadas para conservar a
tradição católica, como a missa rezada em latim – que está neste momento (07/07/2007) sendo
liberada para toda a Igreja pelo papa Bento XVI – e o movimento pró-vida87: todos esses
movimentos surgiram dentro da Igreja, entretanto, o jansenismo foi extinto, a Teologia da
Libertação caminha para a extinção, mas o Tradicionalismo e o movimento pró-vida parecem
estar cada vez mais fortes. O que determina o fim de um discurso nem sempre é algo
explícito: “Um discurso não é abandonado porque um texto lhe aplicou um golpe fatal, mas
porque alguma coisa abalou tudo o que o sustentava silenciosamente e a crença se transferiu
para outros lugares” (MAINGUENEAU, 2005, p. 119). Entretanto, as observações que temos
realizado sobre diversos corpora mostram que a ausência de qualquer um destes três
elementos – enunciador, instituição e co-enunciador – implica a extinção do discurso, como
podemos ver em Courtine (2006) a respeito do discurso comunista. Nessa obra, Courtine
mostra que, em certo momento da história do Partido Comunista Francês, o destinatário do
seu discurso, o proletariado, estava numericamente tão reduzido que o PCF discursava para
ninguém. O fim foi inevitável.

Tudo que acabamos de dizer se aplica aos articulistas de Veja e a seus escritos
pro-choice. Temos uma organização midiática – a revista Veja – que, como procuramos
demonstrar no capítulo quarto não é de forma alguma independente, mas filia-se a um viés
liberal; um corpo (corporativista?) de articulistas (articulados – pois dizem a mesma coisa)
que trabalha (e mantém seu emprego!) dentro de um sistema de restrições semânticas imposto
pela formação discursiva liberal assumida pela revista:

O discurso filtra a aparição, no campo da palavra, de uma população enunciativa


distinta. Chamemos vocação enunciativa às condições assim postas por uma

85
O confronto entre as posições católicas e marxistas foram trabalhadas por Jean-Jacques Courtine em seu
escrito “Analyse du discours politique: le discours communiste adressé aux chrétiens”, publicado em 1981 na
revista Langages..
86
Temos acompanhado os debates que envolvem os Tradicionalistas, os Modernistas e a Igreja. Ao aplicar aos
seus discursos as proposições de Maingueneau, descobrimos que o sistema global de restrições semânticas dos
Tradicionalistas está muito mais próximo ao da Igreja, enquanto o sistema dos Modernistas difere bastante do
adotado por esta. Portanto os Tradicionalistas, mesmo tendo seus principais líderes excomungados (muitos
consideram que não haveria elementos para uma real excomunhão) deverão voltar para a Igreja (as excomunhões
seriam retiradas) enquanto os Modernistas serão extintos, pois sua heresia, a exemplo da heresia luterana, os
coloca fora da Igreja, mas, ao contrário do Heresiarca alemão, eles não possuem estrutura teológica – a heresia
modernista é formada por proposições fragmentadas – ou material para se sustentarem sozinhos.
87
O movimento pró-vida é essencialmente católico. Os articulistas de Veja, conforme poderemos observar neste
capítulo, têm clara percepção deste fato e por isso atacam repetida e diretamente a Igreja e não os grupos pró-
vida. Por isso nós também citaremos a Igreja como sinônimo do movimento pró-vida.
109

formação discursiva para que o sujeito nela se inscreva, ou melhor, se sinta


“chamado” a inscrever-se nela. Assim, trata-se menos de um procedimento de
seleção explícita (ainda que possa às vezes tomar essa forma) do que de um
ajustamento “espontâneo” dos sujeitos às condições requeridas, a autocensura
levando a se excluírem aqueles que não têm as qualificações exigidas ou a
possibilidade (por qualquer razão) de dotar-se delas (MAINGUENEAU, 2005, p.
137).

E temos, finalmente, os destinatários, os leitores de Veja. Esses são, em sua


maioria, cidadãos de classe média, segmento da sociedade onde a legalização do aborto on
demand é defendida por 59% dos eleitores, segundo pesquisas publicadas pela própria revista:

As pesquisas de opinião revelam que, nesse assunto, existem dois mundos de


mulheres brasileiras. Um levantamento do instituto Vox Populi feito com eleitores
de classe média demonstra que uma maioria de 59% é favorável a que o governo
autorize a interrupção da gravidez não apenas nos casos previstos pelo Código
Penal, mas sempre que a mulher assim o desejar, respeitando-se os padrões
internacionais estabelecidos sobre o assunto. Coube ao Ibope, contudo, apurar essa
mesma questão no conjunto de 160 milhões de brasileiros. A maioria favorável
encolheu, transformando-se numa minoria de apenas 18%, contra 80% contrários à
legalização (Veja, “Nós fizemos aborto”, 17/09/1997, anexo 6, p. 199).

Que Veja é dirigida à classe média é algo que pode ser percebido em todo o
conteúdo da revista – nas matérias e na publicidade. Consideremos os comerciais de
instituições bancárias. Eles existem em toda parte, porém em mídias mais populares, como a
TV, eles oferecem produtos como poupança, mas em Veja são oferecidas aplicações em
fundos de investimento, acessíveis apenas a pessoas com certo poder aquisitivo. Se Veja
trabalhasse com o outro segmento da população, aquele no qual 80% dos eleitores são
contrários à legalização do aborto, provavelmente seu discurso seria diferente. Quanto ao
corporativismo e empregabilidade dos articulistas, parece ser evidente que apenas aqueles que
dão sua adesão ao posicionamento da revista têm seu espaço e emprego garantidos:

Quem entende, por exemplo, a defesa incondicional da Veja, e do resto de todo o


Grupo Abril, da chamada economia de mercado? Alguém aí já ouviu alguma voz
dissonante do semanário em relação ao livre comércio? Por que todos os articulistas
da Veja rezam pelo mesmo credo? O que seria? Defesa de interesses corporativos ou
fé no pensamento único? (Márcio de Matos Souza. Disponível em: <http://obser
vatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=307FDS002>.Acesso em 06 de
maio de 2007).

Ao digitarmos a expressão “articulistas de Veja” no mecanismo de busca da


Google, encontramos 122.000 resultados, o que mostra que eles são mesmo considerados
como um monólito. Disso resulta um construto curioso: articulistas que fazem o mesmo
110

discurso e tentam se diferenciar por aspectos particulares de personalidade, aspectos esses que
iremos abordar mais adiante. Por ora vamos nos deter no terceiro elo da estrutura que estamos
analisando: a “instituição”.

Consideremos, então, a “instituição”, a revista Veja. No início do capítulo


quinto falamos um pouco sobre a origem da revista. Ali dissemos que ela nasceu em plena
ditadura militar e possuía um viés direitista, antimarxista. Ocorre que a direita, especialmente
no Brasil daquela época, se alinhava com os princípios morais de origem cristã. Com o passar
do tempo, Veja manteve-se fiel ao posicionamento econômico de direita – a economia de
mercado – mas não ao conservadorismo moral cristão. Pelo contrário, aderiu – ou mostrou
mais claramente uma adesão pré-existente – ao modelo liberal em termos de comportamento
individual. Veja é, pois, explícita ou implicitamente, a favor do:

• Aborto;

• Eutanásia;

• Casamento gay;

• Liberação das drogas;

• Pesquisas com células tronco embrionárias e

• Liberdade individual.

Veja é contra:

• A Igreja Católica;

• Os grupos pró-vida;

• A defesa do modelo tradicional de família;

• A manutenção da criminalização das drogas;

• Restrições éticas à pesquisa científica e

• As restrições impostas por conjuntos de valores morais.


111

Definimos, assim, a trilogia midiática de Veja: o estatuto do enunciador (os


articulistas), o estatuto do destinatário (os leitores) e a instituição (a revista). Passemos agora
ao segundo passo de nosso percurso, a “relação do enunciador e do destinatário com as
diversas fontes de saber; o que nos leva à dimensão intertextual” (MAINGUENEAU, 2005, p.
92), que compreende o diálogo entre textos e a relação do enunciador e enunciatário através
de um conhecimento compartilhado. Quando anteriormente falávamos de “questões de fé e de
moral”, estávamos falando de textos (conteúdos) que se relacionam entre si – os princípios da
fé e da moral estão interligados – e de conhecimentos compartilhados pelos enunciadores
católicos e seus fiéis.

Esse passo em direção à dimensão intertextual, ao saber, nos aproxima de uma


“materialidade lingüística”, área que em nosso corpus, representa uma das principais arenas
de conflito.

… Putting emphasis on language ‘materiality’ means turning one’s attention to


linguistic forms. From that viewpoint, language is not a mere instrument for
speakers: they have to negotiate with what language materiality imposes to them.
(MAINGUENEAU, 2003, p. 4).88

Na materialidade da linguagem usada pelos articulistas de Veja vemos surgir a


agressão verbal – por meio do uso da ironia, da derrisão, do sarcasmo, do deboche, do
escárnio etc. – contra aquilo que a revista rejeita, geralmente acompanhada de negação
retórica. Como na matéria em que André Petry fala do aborto como redutor da criminalidade,
colocando as palavras na boca do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, para,
logo em seguida afirmar “embora, é claro, nem ele nem ninguém defenda legalizar o aborto
como medida de combate ao crime” (Veja, “Sem trava na língua”, 03/03/2007, anexo 7, p.
215).

Quanto ao saber, é interessante notar que Veja se concentra em torno de pontos


fundamentais da teoria liberal, excluindo tudo que não pertence a esse viés, produzindo assim
um quadro bastante restrito do mundo.

88
Colocar ênfase na materialidade da língua significa voltar a atenção para as formas lingüísticas. Deste ponto de
vista, a língua não é um mero instrumento para falantes: eles têm que negociar com o que a materialidade da
língua impõe a eles.
112

Um último, porém não menos importante aspecto da relação com o saber,


refere-se à veracidade dos dados e informações colocadas pelos meios de comunicação social.
Os dados apresentados pelos meios de comunicação que defendem o aborto costumam ser
contestados pelos movimentos pró-vida, com base em informações recolhidas em fontes
oficiais. Quando iniciamos nossa pesquisa, o primeiro artigo que surgiu em nosso computador
foi “Fora do passado”, na seção “Saúde”, escrito por Esdras Paiva e Ricardo Balthazar, edição
de 27/08/1997 (anexo 8, p. 216). Logo no início da matéria havia o seguinte quadro, com
dados sobre o aborto no Brasil:

Figura 51 – Quadro com informações sobre o aborto no Brasil.


Fonte: revista Veja. Edição: 27 maio 1997. Matéria: “Fora do
passado”.

Ao analisarmos os dados colocados por Veja, percebemos que os números


expressos eram “perfeitos” demais: 1.000.000, 300.000, 10.000. Resolvemos então verificar
em outras fontes e obtivemos um quadro interessante, referente ao número de mortes por
aborto no Brasil:

Ano 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
Mortes maternas em gravidez 146 163 119 147 128 148 115 152 156
que terminou em aborto
Tabela 3 – Mortes por aborto. Disponível em: < www.providaanapolis.org.br/index1.htm>. Acesso
em 08 de junho de 2007.
113

Esse quadro era acompanhado por uma série de informações, dados e


referências, das quais extraimos o fragmento abaixo:

Outra informação falsa é de que o número de mulheres mortas em decorrência de


“abortos inseguros” é muito grande. Basta consultar o Departamento de Informação
e Informática do SUS – DATASUS para verificar que o índice de mortes maternas
tem permanecido estável ao longo dos anos em nosso país: 1577 mortes em 2001,
1655 em 2002, 1584 em 2003 e 1641 em 2004. Deste número, a quantidade de
mortes maternas em gravidez que terminou em aborto nunca passou de 200. Seu
ponto máximo foi 163 mortes, em 1997. Com um detalhe importante: essa cifra
engloba não só a morte materna devida a abortos provocados. Ela engloba:
gravidez ectópica, mola hidatiforme, outros produtos anormais da concepção, aborto
espontâneo, aborto “por razões médicas e legais” (sic), outros tipos de aborto, aborto
não especificado, e falhas de tentativa de aborto. Com uma gama tão abrangente, a
cifra não chega a duas centenas anuais, para decepção dos abortistas. Disponível em:
< www.providaanapolis. org.br/index1.htm>. Acesso em 08 de junho de 2007.

Verificamos, outrossim, que os dados de Veja não eram acompanhados de


citação de fontes. Percorrendo as 653 páginas e quase 300 artigos do segmento de nosso
corpus referentes a esse semanário, pudemos verificar que essa prática é comum nessa revista.
Particularmente nas matérias escritas pelos articulistas – objeto deste capítulo – aparecem
proposições como esta:

Não, o aborto é essencialmente uma questão de saúde pública. O aborto malfeito


está entre as principais causas de morte de mulheres no Brasil (mulheres pobres, é
claro, que não têm dinheiro para recorrer às boas casas do ramo). É a terceira causa
de mortalidade feminina em São Paulo. Na Bahia, é a primeira. O aborto não é um
direito desejável, é um direito necessário (Veja, André Petry: “O mensalão do
aborto”, 17/08/2005, anexo 9, página 219).

O terceiro passo no percurso que estamos percorrendo nos leva a dêixis


enunciativa, entendida como “o conjunto de localizações no espaço e no tempo que um ato de
enunciação apresenta, graças aos ‘embreadores’” e que “... trata-se de estabelecer uma cena e
uma cronologia conformes às restrições da formação discursiva” (MAINGUENEAU, 2005, p.
93-94). No corpus que estamos trabalhando, os enunciadores articulistas apenas podem
colocar enunciados como: “Que Deus é esse? Que Deus irônico... Que Deus mordaz... Que
Deus mórbido e tirânico…” (Veja, “Estupidez em nome de Deus”, 09/06/2004. Anexo 10,
página 220) ao falar a partir de um espaço secularizado.

O quarto passo nos leva ao “modo de enunciação”: “Um discurso não é


somente um certo conteúdo associado a uma dêixis e a um estatuto de enunciador e de
destinatário, é também uma ‘maneira de dizer’ específica, a que nós chamamos um modo de
114

enunciação” (MAINGUENEAU, 2005, p. 94). Aqui o autor distingue gênero discursivo –


lado formal e tipológico do modo de enunciação – e tom, conceito que associa aos enunciados
e aos discursos uma voz e mesmo um corpo e um caráter, mostrados através da semântica
usada pelo discurso:

Pode-se muito bem, à maneira de Foucault, recusar-se a ver no texto “a linguagem


de uma voz agora reduzida ao silêncio” e admitir portanto que, através de seus
enunciados, o discurso produz um espaço onde se desdobra uma “voz” que lhe é
própria. Não se trata de fazer falar um texto mudo, mas de identificar as
particularidades da voz que sua semântica impõe. [...] O discurso, por mais escrito
que seja, tem uma voz própria, mesmo quando ele a nega. […] O próprio “tom” se
apóia sobre uma dupla figura do enunciador, a de um caráter e a de uma
corporalidade, estreitamente associadas. Com efeito, o rosto que suporta o tom deve
ser caracterizado “psicologicamente”, ver-se dotado por disposições mentais que
sejam o correlato dos afetos que o modo de enunciação engendra
(MAINGUENEAU, 2005, p. 95-96).

Esses conceitos foram estendidos em “Ethos, cenografia, incorporação”


(MAINGUENEAU, 2005a). Todo esse conjunto, ligado à forma do discurso, também obedece
às mesmas regras de restrições semânticas ligadas ao seu conteúdo. Isso nos remete para além
da retórica, que trabalha dentro de uma perspectiva de escolha, por parte do enunciador, de
uma forma para negociar um determinado conteúdo.

Em suas proposições teóricas, Maingueneau considera que o discurso e seu


modo de enunciação estão profundamente imbricados, chamando a esse processo de
“incorporação”: “Falamos de incorporação para designar a maneira pela qual o co-enunciador
se relaciona ao ethos de um discurso” (2005a, p. 72), o qual é composto por três dimensões:

1. O discurso, através do corpo textual, faz o enunciador encarnar-se, dá-lhe


corpo;
2. Esse fenômeno funda a “incorporação” pelos sujeitos de esquemas que definem
uma forma concreta, socialmente caracterizável, de habitar o mundo, de entrar
em relação com o outro;
3. Essa dupla “incorporação” assegura, ela própria, a “incorporação imaginária”
dos destinatários no corpo dos adeptos do discurso (2005, p. 98).

Em “Ethos, cenografia, incorporação” o autor coloca de maneira


um pouco mais clara o mesmo esquema:

1. A enunciação do texto confere uma corporalidade ao fiador, ela lhe dá um


corpo.
115

2. O co-enunciador incorpora, assimila um conjunto de esquemas que


correspondem à maneira específica de relacionar-se com o mundo, habitando
seu próprio corpo.
3. Essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo, da
comunidade imaginária dos que aderem a um mesmo discurso (2005a, p. 73).

O lingüista francês considera que “nessa perspectiva, o destinatário não é


somente um consumidor de ‘idéias’. Ele acede a uma ‘maneira de ser’ através de uma
‘maneira de dizer’” (2005, p. 98). Esse princípio é constantemente usado na publicidade, onde
o discurso de um enunciador em uma determinada cenografia – um bar festivo, cheio de
amigos, mulheres-objetos e determinada marca de cerveja, por exemplo – faz com que o
telespectador entre imaginariamente nessa cenografia. Dentro de nosso corpus a imagem do
fiador pro-choice, que se mostra com um ethos liberal e progressista, apresenta o aborto como
símbolo de modernidade: “O Brasil ainda está longe de entrar para a galeria dos países
civilizados, modernos e emancipados do jugo religioso, onde o aborto não é crime nem dá
prisão a ninguém” (Veja, André Petry, “Do castigo ao amparo”, 15/12/2004, anexo 11, página
221).

Trabalhemos agora o conceito de “cena de enunciação”, que Maingueneau


divide em três aspectos. O primeiro é a “cena englobante”, que corresponde ao tipo de
discurso – literário, religioso, filosófico. Situar o discurso dentro de determinada cena
englobante é fundamental para sua interpretação. O segundo aspecto, a “cena genérica”,
refere-se aos gêneros de discursos. Quanto à “cenografia”, essa “não é imposta pelo tipo ou
pelo gênero de discurso, mas instituída pelo próprio discurso” (CHARAUDEAU &
MAINGUENEAU, 2005, p. 96). Os autores também consideram que:

Na sua emergência, a fala implica uma certa cena de enunciação, que, de fato, se
valida progressivamente por meio da própria enunciação. A cenografia é, assim, ao
mesmo tempo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra; ela
legitima um enunciado que, em troca, deve legitimá-la. [...] Além de uma figura de
enunciador e uma figura correlativa de co-enunciador, a cenografia implica uma
cronografia (um momento) e uma topografia (um lugar) das quais o discurso
pretende surgir (2005, p. 96).

Em “Ethos, cenografia, incorporação”, Maingueneau define cenografia nos


seguintes termos:

Não empregamos aqui “cenografia” no sentido que tem seu uso teatral, mas dando-
lhe um duplo valor: (1) Acrescentando à noção teatral de “cena”, a de –grafia, da
“inscrição”: para além da oposição empírica entre o oral e o escrito, uma enunciação
116

se caracteriza, de fato, por sua maneira específica de inscrever-se, de legitimar-se,


prescrevendo-se um modo de existência no interdiscurso. (2) Não definimos a “cena
enunciativa” em termos de “quadro”, de decoração, como se o discurso se
manifestasse no interior de um espaço já construído e independente desse discurso,
mas consideramos o desenvolvimento da enunciação como a instauração progressiva
de seu próprio dispositivo de fala. A “-grafia” deve, pois, ser apreendida ao mesmo
tempo como quadro e como processo (MAINGUENEAU, 2005a, p. 76).

Para exemplificar essas proposições, consideremos os escritos de André Petry


em Veja: são artigos (cena genérica) de uma revista semanal de informações (cena
englobante). Quanto às cenografias, estas, apesar de serem variadas, obedecem sempre ao
sistema de restrições semânticas da formação discursiva liberal à qual ele pertence. Assim, ao
referir-se ao movimento pró-aborto, a cenografia é sempre positiva; quando é apresentado o
movimento pró-vida, a cenografia instaurada é depreciativa:

“Era justo, solidário, humano demais para ser definitivo. O procurador-geral da


República, Cláudio Fonteles, anunciou que vai contestar no Supremo Tribunal
Federal a decisão que autorizou o aborto de fetos sem cérebro. [...] Espera-se,
apenas, que o Supremo mantenha a decisão inicial do ministro Marco Aurélio
Mello, que é justa, solidária e humana – e merece ser definitiva” (Veja, André Petry,
“A favor do aborto – e da vida”, 14/07/2004, anexo 12, p. 222).

“A decisão do Supremo Tribunal Federal de derrubar a liminar que autorizava o


aborto de fetos sem cérebro é a expressão de um retrocesso. Os igrejeiros... ...utopias
bíblicas. Um atraso e tanto. Mas a tirania religiosa... É outra tortura. E outro
retrocesso” (Veja, André Petry, “Sem aborto. Com dor”, 27/10/2004, anexo 13, p.
223).

O que até agora temos exposto ficaria incompleto se não deixássemos claro
que o ethos é parte constituinte da cena de enunciação e construtor da identidade:

Em uma perspectiva de análise do discurso, não podemos nos contentar, como na


retórica tradicional, em fazer do ethos um meio de persuasão: ele é parte pregnante
da cena de enunciação, com o mesmo estatuto que o vocabulário ou os modos de
difusão que o enunciado implica por seu modo de existência. (MAINGUENEAU,
2006a, p. 67).

Em última instância, a questão do ethos está ligada à da construção da identidade.


Cada tomada da palavra implica ao mesmo tempo levar em conta representações que
os parceiros fazem um do outro, e a estratégia de fala de um locutor que orienta o
discurso de forma a sugerir através dele uma certa identidade (MAINGUENEAU,
2006a, p. 56).

Vemos, nesse enunciado, que Maingueneau usa duas vezes o termo


“identidade”. Sabemos que esse conceito é bastante complexo e comporta diversas
117

abordagens. A identidade aqui referida é a chamada identidade de posicionamento, conforme


Maingueneau e Charaudeau:

A identidade de posicionamento caracteriza a posição que o sujeito ocupa em um


campo discursivo em relação aos sistemas de valor que ai circulam, não de forma
absoluta, mas em função dos discursos que ele mesmo produz. Esse tipo de
identidade inscreve-se então em uma formação discursiva (2006, p. 267).89

Também julgamos importante enfatizar que a cenografia não pode ser


considerada como uma moldura, uma embalagem ou um “pano de fundo” sobre o qual a
enunciação se desenvolveria, conforme nos explica Maingueneau em “Cenas da enunciação”:

A cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e
que, por sua vez, deve validar através de sua própria enunciação: qualquer discurso,
por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir a situação de enunciação que o
torna pertinente. A cenografia não é, pois, um quadro, um ambiente, como se o
discurso ocorresse em um espaço já construído e independente do discurso, mas
aquilo que a enunciação instaura progressivamente como seu próprio dispositivo de
fala (MAINGUENEAU, 2006a, p. 68).

Um dos mal-entendidos que dificilmente falta quando se suscita a noção de


cenografia é que ela é muitas vezes interpretada como uma simples cena, como um
quadro estável no interior do qual se desenrolaria a enunciação. Na verdade, é
preciso concebê-la ao mesmo tempo como quadro e como processo. A –grafia é um
processo de inscrição legitimante que traça um círculo: o discurso implica uma certa
situação de enunciação, um ethos e um “código linguageiro” através dos quais se
configura um mundo que, em retorno, os valida por seu próprio desenvolvimento. O
“Conteúdo” aparece assim inseparável da cenografia que o porta
(MAINGUENEAU, 2006a, p. 47).

Após havermos trabalhado as concepções de Maingueneau sobre o ethos,


cenografia e identidade, vamos passar à aplicação prática de seus conceitos na análise dos
textos dos articulistas de Veja e na constituição do discurso pró-aborto. Selecionamos
matérias de dois articulistas: André Petry e Diogo Mainardi, pois esses foram os que mais
escreveram sobre o tema, e o fizeram de maneira mais incisiva, sendo também os mais
conhecidos do público.

89
No exato momento em que estávamos escrevendo essas linhas (e assistindo simultaneamente a emissora norte-
americana EWTN na internet) um famoso palestrante chamado padre Corapi, Ph.D., abordava a questão da
identidade – e suas crises no mundo pós-moderno – naturalmente sob o posicionamento católico, que trabalha
esse conceito em uma relação dialógica entre o crente e Jesus Cristo. Muito interessante. Citamos esse fato
apenas para enfatizar a amplitude do conceito, que não se reduz de modo algum à nossa exposição, embora ela
seja suficiente para o viés que estamos abordando.
118

6.2 OS ARTIGOS DE ANDRÉ PETRY, O MAIS RADICAL COLUNISTA PRÓ-ABORTO


DE VEJA

Entre os articulistas de Veja que escrevem sobre o aborto, André Petry


certamente é o que mais se refere ao tema, sempre defendendo veementemente o
posicionamento pro-choice. No segmento de nosso corpus referente a ele, a palavra aborto
apareceu cento e cinco vezes em quatorze artigos e dez seções “Cartas”. Dentro das
proposições de Maingueneau sobre a formação da imagem de si mesmo no discurso – o ethos
– que apresentamos neste capítulo, as proposições sobre a noção de tom, entendidas como as
características de voz, de caráter, de corporalidade, de disposições mentais e de afetos que são
impostas pela semântica dos enunciados ao enunciador, se aplicam perfeitamente aos escritos
desse articulista. Ele usa uma linguagem que demonstra grande predisposição para a derrisão
e a agressividade, sendo a diatribe90 a forma discursiva preferida e mesmo a marca
característica fundamental do tom de André Petry.

O discurso de Petry é formado por sofismas e falácias, que constroem


simulacros de discursos pró-vida: “para construir e preservar sua identidade no espaço
discursivo, o discurso não pode haver-se com o Outro como tal, mas somente com o
simulacro que constrói dele” (MAINGUENEAU, 2005, p. 103). Como teremos oportunidade
de demonstrar nesta seção, o Sr. Petry é um exemplo de discurso falacioso e anacrônico. Esse
estado de coisas já produziu situações raras e talvez mesmo inéditas na revista, como receber
somente cartas desfavoráveis após a publicação do artigo “Isso é que é racismo” (Veja,
27/04/2005, anexo 14, p. 224) no qual defendia o direito de se sacrificar animais em rituais de
culto de origem africana. Embora, evidentemente, não seja nossa intenção produzir qualquer
espécie de “Tratado de Sofística”, vamos expor brevemente esse (interessantíssimo) assunto,
que tem, sim, relação com a tese do primado do interdiscurso com a qual estamos
trabalhando, pois falácias e sofismas são formas de simulacro – tradução deformada, que
permite traduzir o Outro na forma do Mesmo:

90
Discurso escrito ou oral, em tom violento e geralmente afrontoso, em que se ataca alguém ou alguma coisa
(HOUAIS ELETRÔNICO, 2002). Naturalmente não temos a pretensão de tratar neste trabalho as distinções
tipológicas do discurso, mas tão somente situar o discurso do articulista André Petry.
119

Sofística é o estudo das generalizações possíveis sobre erros formais com


definições, classificações, analogias, induções e argumentos. Sofisma: De modo
aproximado, sofisma é o enunciado falso que parece verdadeiro numa compreensão
superficial. Tradicionalmente, nem todo enunciado que parece verdadeiro é
considerado sofisma. O tipo de semelhança que determina o sofisma geralmente é a
relacionada com a forma lógica do enunciado. Também é comum considerar como
sofisma aqueles enunciados aparentemente verdadeiros, em função de induções
malfeitas, provavelmente devido à contigüidade que sempre existiu entre lógica e
epistemologia na história do pensamento. [...] O sofisma nasce do lapso ou da
intenção de iludir. O lapso pode ser do emissor ou do receptor. [...]... uma
contradição camuflada pode ser encarada como sofisma se quem a avaliar julgá-la
sutil. Outro pode considerá-la grosseira e rotulá-la como simples mentira, equívoco,
contradição.
Fatores que favorecem o efeito de ilusão do sofisma:
• Uso de forma de silogismo. A forma do silogismo tem a ela associada uma
conotação de credibilidade.
• Uso de forma elaborada leva a uma conotação de credibilidade.
• Arredondamentos. Supõe-se, por exemplo, que o improvável é impossível,
que quase tudo significa tudo, que 'se' significa 'se e somente se', etc.
Pessoas que não são rigorosas no raciocínio praticam estas operações.
[...] Um sofisma é formal se as premissas que o sustentam são válidas e se sua
falsidade derivar do mau uso das regras de inferência lógica, o que pode ser
mostrado com os recursos da lógica formal, usando-se uma tabela-verdade, por
exemplo.
Um sofisma é material se resultar falso mesmo sendo validado pelos critérios da
lógica formal. Sua falsidade vem da falsidade das premissas. Disponível em: <http://
www.radames.manosso.nom.br/retorica/sofistica.htm>. Acesso em 10 de junho de
2007.

Vimos no capítulo primeiro, que versava sobre teoria, que:

O caráter constitutivo da relação interdiscursiva faz aparecer a interação semântica


entre os discursos como um processo de tradução, de interincompreensão regrada.
Cada um introduz o Outro em seu fechamento, traduzindo seus enunciados nas
categorias do Mesmo e, assim, sua relação com esse Outro se dá sempre sob a forma
do “simulacro” que dele constrói (MAINGUENEAU, 2005, p. 22).

Sabemos que o Outro do movimento pró-vida é o movimento pró-aborto.


Sabemos, também, que o movimento pró-vida está intimamente ligado à Igreja
Católica e que nela a filosofia grega possui grande importância. Nessa linha filosófica a lógica
sempre teve um papel de destaque. A forma fundamental da construção lógica é o silogismo.
Se o articulista de Veja, Sr. André Petry, discursa contra o movimento pro-life e contra a
Igreja Católica, ele, pelo princípio da interincompreensão, só pode introduzir este Outro em
seu fechamento através de um simulacro. E qual é o simulacro de um silogismo? É um
sofisma, pois este objetiva criar uma ilusão de verdade, apresentado-a sob esquemas que
parecem seguir as regras da lógica.
120

Ora, mesmo sem ter conhecimentos de lógica, os leitores de Veja – referimo-


nos aqui aos que são pró-vida – percebem o engodo91 e sentem-se ofendidos e reagem,
escrevendo para a redação de Veja, na ilusória expectativa de ter seus pontos de vista
apontados pela revista92, mas esta, dentro de seu sistema de restrições semânticas, filtra,
seleciona e recorta o que será dito e como será dito, “traduzindo seus enunciados nas
categorias do Mesmo”, impondo uma censura ao dizer do Outro. Mais do que isto: ao traduzir
o Outro – aqui o movimento pró-vida – na categoria do Mesmo – o movimento pró-aborto – a
identidade do movimento pro-life é desfigurada, é transformada em caricatura – que é um
simulacro de imagem. Para demonstrar o que estamos afirmando, vejamos as cartas dos
leitores publicadas em 24 de agosto de 2005, referentes ao artigo intitulado “O mensalão do
aborto” (anexo 9, p. 219):

Com precisão, André Petry mostra em "O mensalão do aborto" (17 de agosto) como
é difícil avançar na garantia dos direitos das mulheres. Mostra também como é frágil
o compromisso deste governo com as questões sociais, não titubeando no sacrifício
da laicidade do nosso Estado. No entanto, o processo de debate sobre a necessidade
de revisão da legislação sobre o aborto, que ganhou visibilidade com a Conferência
Nacional de Política para as Mulheres, ampliou o apoio de setores importantes, em
especial de reconhecidos profissionais dos meios de comunicação. Há muito ainda
que caminhar, mas fica cada vez mais claro para outros setores da sociedade, além
das feministas, que o aborto é uma questão de saúde pública, justiça social e de
democracia. Maria José Rosado. São Paulo, SP.

Ser a favor da descriminalização do aborto equivale a ser conivente com o


assassinato de embriões e fetos, pois o ser humano, desde o ovo até o fim da vida,
passa por diversas fases de desenvolvimento em processo de autoconstrução e auto-
organização. Sérgio Vicentin. Curitiba, PR.

O artigo revela quanto estamos atrasados em relação aos temas de saúde pública e
quão controlados somos pela mão "pesada" da Igreja Católica, que insiste em fechar
os olhos para a realidade. Mesmo com o aborto sendo considerado crime pela
legislação brasileira, de 750.000 a 1 milhão de mulheres são vítimas de práticas
malfeitas, segundo os dados de internação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Gilberta Soares. Secretária executiva do Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto
Legal e Seguro. João Pessoa, PB .

91
Nossas pesquisas e reflexões sinalizam que o processo de tradução do Outro no Mesmo, parafraseando
Pêcheux, determina o que pode e deve ser ouvido [...] Isso equivale a afirmar que as palavras, expressões,
proposições etc. recebem seu sentido da formação discursiva na qual são recebidas. Ou seja: o sistema de
restrições semânticas de uma FD filtra o que pode ser dito e também o que pode ser ouvido (referimos aos
sentidos percebidos). É por isso que os que aderem ao discurso pro-choice não percebem esses engodos.
92
Após a publicação da reportagem “Nós fizemos aborto”, membros dos movimentos pro-life enviaram cartas à
redação de Veja, cartas que nunca foram publicadas, conforme pode ser visto no anexo 31, p. 259.
121

Discurso pro-choice Discurso pro-life Simulacro de Discurso pro-life


O ethos: textos longos e bem O ethos: o movimento é integrado O ethos: texto curto e pobremente
elaborados, transmitindo uma por pessoas de alto nível acadêmico elaborado, transmitindo uma
imagem de saber. Provável e usa linguagem bem elaborada. imagem negativa. Possível
intervenção dos editores de Veja, Aqui o protótipo é o papa. intervenção dos editores de Veja,
seja agindo diretamente sobre o seja agindo diretamente sobre o
texto das cartas, seja através de um texto da carta, seja através de um
processo de seleção das processo de seleção das
correspondências disponíveis. correspondências disponíveis.
Sistema de restrições semânticas: Sistema de restrições semânticas: Sistema de restrições semânticas:
linguagem pró-aborto com linguagem pró-vida (real): simulacro da linguagem pró-vida:
expressões como: - O sistema de restrições - Embora o signatário da carta
- Garantia dos direitos das semânticas impõe como verdadeira pareça defender o posicionamento
mulheres; linguagem pró-vida o uso de pro-life, sua missiva usa palavras e
- Compromisso [...] com as palavras e expressões como: expressões que não são
questões sociais; - Assassinato de bebês; verdadeiramente pró-vida:
- Laicidade do nosso Estado; - Desde a concepção; - Assassinato de embriões e fetos;
- Necessidade da revisão da - Processo de desenvolvimento do - Desde o ovo;
legislação sobre o aborto; bebê; - Processo de autoconstrução e
- O aborto é uma questão de saúde auto-organização.
pública, justiça social e
democracia;
- Mulheres vítimas de práticas
malfeitas.
Vocabulário: Vocabulário: Vocabulário:
- direitos - assassinato - assassinato
- questões sociais - bebês - embriões
- laicidade - nova vida - fetos
- saúde pública - concepção - ovo
- justiça social - desenvolvimento - autoconstrução
- democracia - auto-organização
- vítimas
O estatuto do enunciador: as Estatuto do enunciador: Estatuto do enunciador: o
signatárias das cartas enunciam de geralmente os representantes do signatário da carta não se apresenta
uma posição de autoridade, movimento pro-life enunciam de enunciando a partir de qualquer
enquanto ativistas de movimentos uma posição de autoridade moral posição de autoridade. Talvez o
feministas. É possível que o fato de no assunto. O papa é o exemplo fato de ser homem sugira alguma
serem mulheres reforce o número um. posição machista ou equivalente,
posicionamento feminista pró- em oposição às mulheres do
aborto. Certamente podem ser discurso pro-choice nas outras duas
consideradas enunciadoras do cartas. Certamente não pode ser
movimento pro-choice. considerado legítimo enunciador do
movimento pro-life.
O estatuto do destinatário: aqui O estatuto do destinatário: são as O estatuto do destinatário: o
os destinatários são os leitores de pessoas que apóiam o movimento simulacro não consegue realizar a
Veja que apóiam o movimento pro- pro-life. “incorporação imaginária” dos
choice. destinatários no corpo dos adeptos
do discurso.
Tabela 4 – Diferenças entre discurso pró-vida, pró-aborto e simulacro de discurso pró-vida.

Em um primeiro momento, analisando apenas com base naquilo que os leitores


dizem – ou parecem dizer – temos três discursos: dois pro-choice – o primeiro e o terceiro – e
um pro-life: o segundo. Entretanto, ao aplicarmos aos textos em análise as ferramentas criadas
122

por Maingueneau em “Gênese dos discursos”, veremos uma nova realidade emergir,
demonstrando a utilidade prática das proposições desse autor e as sutilezas da tradução do
Outro no Mesmo.

Para melhor visualização, distribuímos os componentes das cartas analisadas


em três colunas: na primeira temos os conteúdos das cartas um e três (pró-aborto), na terceira,
o conteúdo da carta dois que, como demonstraremos, não é pró-vida, mas sim um simulacro
de discurso pró-vida; e na segunda coluna mostraremos, por analogia, como seria a
abordagem da temática por um discurso pro-life real.

Acreditamos que o autor da segunda carta se julga – sinceramente – pró-vida e


que está defendendo esse posicionamento. Acreditamos também que nossos leitores
compartilharão esse sentimento, considerando nossa análise como wishful thinking93. Por isso,
antes de prosseguir, citaremos mais uma vez Maingueneau, que esclarece bem esse ponto
fundamental:

A competência é um fato discursivo, não uma questão de crença. A representação


que os Sujeitos se fazem de seu pertencimento não coincide necessariamente
com sua situação efetiva; [...] Os Sujeitos podem igualmente crer de boa fé na
homogeneidade de suas produções, mesmo quando a análise semântica revela que,
em tais textos, em tais fases de sua carreira, eles enunciaram no interior de
competências diferentes (2005, p. 59, grifo nosso).

Reiteramos aqui que competência discursiva é a habilidade de reconhecer e


produzir enunciados – inéditos e em número ilimitado – pertencentes a uma determinada
formação discursiva. O autor da segunda carta – que se posiciona como pro-life – não
demonstra a habilidade de produzir enunciados pro-life verdadeiros – embora aparentemente
enuncie dentro de uma FD pro-life – pois seus enunciados e termos não pertencem ao sistema
semântico dessa formação discursiva; em outras palavras, seus enunciados são simulacros de
um discurso pro-life:

• “Assassinato de embriões e fetos”: embora o termo assassinato esteja em


conformidade com a semântica pro-life, o objeto – embriões e fetos – está
em total desacordo, pois retira o sentido de vida humana da expressão. Esta
é a semântica pro-choice, que não considera a criança no ventre de sua mãe
como um ser humano, com direito à vida. A expressão “Assassinato de

93
Expressão que pode ser traduzida por “pensamento desejoso”, significando a criação mental e emocional de
fatos que se desejaria que fossem realidade.
123

embriões e fetos” é um simulacro do enunciado pró-vida “Assassinato de


bebês”;

• “Desde o ovo até o fim da vida”: esta expressão é absolutamente inédita!


Simulacro caricatural da expressão “... se respeite a vida desde a sua
concepção até o seu término natural”, usada frequentemente pelos papas
(Bento XVI usou-a em seu primeiro discurso na visita ao Brasil, em maio
de 2007), ela demonstra a verdade do enunciado de Maingueneau “A
representação que os Sujeitos se fazem de seu pertencimento não coincide
necessariamente com sua situação efetiva”. Note-se que o termo “ovo” se
contrapõe fortemente ao termo “vida humana”.

• “... processo de autoconstrução e auto-organização”: esse enunciado possui


uma falácia – um raciocínio falso sutilmente construído – pois falar em
autoconstrução e auto-organização implica o “ainda não formado”, o “em
processo de construção”, na “ainda não existência de uma vida humana”. É
o discurso pro-choice da vida incipiente, considerada por esse
posicionamento como não vida humana.

Neste ponto é importante que seja feito o seguinte esclarecimento: Veja é pro-
choice e não está tentando simular que é pro-life. A publicação de uma carta aparentemente
pro-life é apenas uma estratégia para tentar se mostrar factual, como, aliás, toda revista de
informações deveria ser. Entretanto, a publicação de uma carta verdadeiramente pro-life
contraria totalmente os princípios de sua formação discursiva pro-choice. Assim, a única
solução é lançar mão de um simulacro. Essa estratégia é amplamente usada não só por Veja,
mas por todos que, de uma forma ou de outra, querem simular um ethos agradável.

Continuando, vamos mostrar outras cartas de leitores que se situam do lado


pró-vida e se sentem ofendidos e reagem, escrevendo para a revista, que, para aparentar
imparcialidade, publica alguns “pontos de vista contrários” selecionados entre aqueles mais
inócuos ou mesmo que, indiretamente, favoreçam as teses defendidas por Veja. Vejamos estes
exemplos:

Continuam as investidas do senhor André Petry contra os evangélicos. Desta vez são
os americanos, que ele nem conhece direito, pois afirma que os mesmos crêem na
virgindade de Maria, o que é um equívoco. Das outras acusações, já que sou
evangélico, não me envergonho, pois é nisso mesmo que creio, ou seja, na origem
124

divina dos seres humanos, na defesa da vida, no casamento entre um homem e uma
mulher. É lamentável que isso seja visto como "obscurantismo" e "trevas" ("Um
tempo de trevas", 10 de novembro). Pastor Carlos Osmar Trapp, Presidente do
Grupo Evangélico de Ação Política (Geap). Campo Grande, MS (Seção “Cartas”,
17/11/2004).

Essa carta foi escrita em protesto contra as proposições do articulista na


matéria “Um tempo de trevas”, onde, entre outras coisas, chama os evangélicos de “massa
atrasada” num claro Argumentum ad hominem (ataque ao argumentador): o Sr. André Petry
não busca provar a falsidade dos argumentos enunciados pelo seu opositor, ele falaciosamente
ataca a pessoa ou entidade que faz o enunciado:

Como um terço do eleitorado americano é evangélico, e boa parte tem uma visão um
tanto obscurantista da vida, além de achar que os democratas esnobam sua fé, Bush
saiu-se muito bem. A massa mais atrasada dos Estados Unidos, aquela parcela que
acredita mais no mito da virgindade de Maria do que na teoria evolucionista de
Charles Darwin, entregou a Bush a missão clara de restringir o direito ao aborto, de
impedir o casamento homossexual, de travar as pesquisas científicas com células-
tronco, entre outros primitivismos. (“Um tempo de trevas”, 10/11/2004, anexo 15, p.
225).

Outra falácia do articulista consiste em repetir ad nauseam o anacrônico


argumento de que a mulher é dona do próprio corpo:

Defender a legalização do aborto, ou a manutenção do aborto legal, não é pregar o


triunfo da morte sobre a vida – é reconhecer o direito inalienável da mulher sobre
o próprio corpo, coisa que só o medievalismo não admite (10/11/2004, “Um tempo
de trevas” 10/11/2004, anexo 15, página 225).
Finalmente o Brasil começa a dar sinais de entender que o aborto integra a lista de
direitos inalienáveis da mulher – de seus direitos reprodutivos, de seus direitos
sexuais, de seus direitos sobre o próprio corpo (16/03/2005, “Aborto, uma vitória
católica”, anexo 16, página 226).
O grupo Católicas pelo Direito de Decidir, formado por defensoras do direito da
mulher sobre seu corpo, encomendou uma pesquisa ao Ibope (16/03/2005,
“Aborto, uma vitória católica”).

Nossas pesquisas nos sites das grandes organizações mundiais pro-choice


sinalizam que esse argumento não é mais usado, nem mesmo por ferrenhos defensores do
aborto, pois a evolução da fetologia e dos equipamentos de ultra-sonografia mostram
claramente aquilo que já se sabia de forma empírica: o bebê que habita o corpo da mãe é uma
nova vida, um outro ser e não um apêndice do corpo feminino . Essa posição é defendida não
só por aqueles que seguem princípios religiosos:
125

Ao contrário do que afirma André Petry, defender a legalização do aborto é


reconhecer o direito da mulher não sobre o próprio corpo, mas sobre fetos, indefesos
seres humanos em formação. Embora a luta contra o aborto seja normalmente
identificada com pregações religiosas, ateus como eu podem muito bem considerar
que o conforto físico ou psicológico da mãe não é justificativa para que se mate o
filho que está por nascer. Quem defende o direito à vida sobre todos os demais é,
acima de tudo, um humanista. Hugo Dart Rio de Janeiro, RJ. (11.07.2004,
“Cartas”).

Um curioso tipo de falácia encontrada nos escritos do Sr. André Petry é a


anfibologia – do grego amphibolia: ambíguo – que consiste em criar, através de uma má
elaboração da estrutura gramatical do enunciado, sentidos diversos que permitem múltiplas
interpretações. Os dois exemplos seguintes foram tirados do artigo “O beato do apagão”, de
23/02/2007 (anexo 17, p. 227):

Como radical da direita católica, daqueles que desenvolvem um tipo peculiar de


fobia pública a tudo o que se assemelha a prazer sexual, Severino é contra a
flexibilização da lei do aborto.

Afinal, todo mundo sabe que a gravidez indesejada é comum entre mulheres pobres.
Mulher abastada, se quiser, faz aborto na esquina, com todo o conforto e com a
higiene necessária.

No primeiro enunciado parece estar implícito que o aborto é um prazer sexual.


Se fosse, por exemplo: “Como radical da direita católica, daqueles que desenvolvem um tipo
peculiar de fobia pública a tudo o que se assemelha ao prazer sexual, Severino é contra a
flexibilização da lei que permite manter relações sexuais em via pública”, o enunciado seria,
pelo menos do ponto de vista formal, correto.

No segundo enunciado Petry confunde tudo. Uma coisa é a ocorrência de uma


gravidez indesejada, que pode e de fato acontece tanto com mulheres pobres como com ricas.
Outra coisa é a ocorrência ou não do aborto em tais casos.

Um outro aspecto que chama a atenção nos artigos de André Petry é a sua
particular hostilidade para com a Igreja Católica. Aliás, no nosso corpus, no segmento
composto pelos seus artigos, o nome da Igreja Católica aparece trinta e cinco vezes, a palavra
papa treze e a palavra Deus dezoito vezes, totalizando sessenta e seis vezes, contra cento e
cinco repetições da palavra aborto. A explicação desse fato é a seguinte: embora o Outro do
discurso pró-aborto seja, primariamente, o discurso pró-vida, é essencial colocar que o
fundamento e suporte desse discurso é a Igreja Católica, sendo esta o verdadeiro Outro do
discurso pró-aborto, como fica claramente demonstrado neste enunciado, extraído de uma
126

entrevista dada por Frances Kissling, presidente do grupo pró-aborto Catholics for A Free
Choice94 à jornalista Rebecca Sharpless em 13 de setembro de 2002, em Whashington, D. C.
(disponível em: <http://www.smith.edu/libraries/libs/ssc/transcripts/kissling-trans.html>,
acesso em 13 jan. 2008):

You know, the Catholic perspective is a good place to start—in either philosophical,
sociological, theological terms—because the Catholic position is the most developed
position. So if you can refute the Catholic position, you have refuted everything else.
Okay. I mean, none of the other faith groups really have as well-defined statements
on personhood, when does life begin, fetuses, et cetera. So by debunking the
Catholic position, you win.95

Nesse ponto a percepção do articulista André Petry, passando sobre o


movimento pró-vida e confrontando diretamente a Igreja, pode ser considerada bastante clara.
Por outro lado, também a Igreja Católica não se detém em artigos como os do Sr. André
Petry, mas confronta diretamente as proposições liberais das quais as defesas do aborto,
eutanásia etc. se origina. Isso ocorre porque “o espaço discursivo pode ter mais de dois
termos” (MAINGUENEAU, 2005, p. 42). Tudo isso se encaixa perfeitamente na tese do
primado do interdiscurso, inicialmente defendida por Maingueneau em 1984, no livro
“Gênese dos discursos” e que ele sustenta ainda hoje, como podemos ver na seguinte citação,
retirada de um artigo escrito em 2003, na Alemanha, onde se considera que “a identidade do
discurso é constituída e mantida através de outros discursos, da relação do texto consigo
mesmo e com outros; intradiscurso e interdiscurso não podem ser dissociados” (2003, p. 1).
No original:

The assertion of the primacy of interdiscourse. Such a principle does not only mean
that discourse analysts ought to compare texts with each other, instead of studying
isolated texts; it means more : the identity of discourse is constituted and
maintained through other discourses, the relation of a text to itself and its relation
to others, ‘intradiscourse’ and ‘interdiscourse’, cannot be dissociated.96

94
O título “Católicas pelo direito de decidir” é, obviamente, um simulacro: essa é uma das ONGs onde o anti-
catolicismo é assumido de modo explícito. Atualmente o grupo trabalha pela retirada do Vaticano da ONU e pela
recusa da aceitação da alegação de motivo de consciência pelos médicos europeus como motivo para não
praticar o aborto em hospitais públicos, o que, sob qualquer ponto de vista, é um absurdo (esse posicionamento é
típico da chamada esquerda liberal).
95
Você sabe, a perspectiva católica é um bom lugar para começar – seja em termos filosóficos, sociológicos ou
teológicos – porque a posição católica é a mais desenvolvida. Portanto, se você puder refutar a posição católica,
você terá refutado todas as outras posições. OK. Eu quero dizer, nenhum outro grupo religioso possui
declarações tão bem definidas sobre a pessoa, quando a vida começa, o feto etc. Portanto, ridicularizando a
posição católica, você vence.
96
A afirmação do primado do interdiscurso. Tal princípio não significa somente que a análise do discurso deve
comparar os textos, ao invés de estudar textos isolados, significa mais: a identidade do discurso é constituída e
127

Fundamentando-nos em tais proposições, destacamos do nosso corpus um


artigo que teve bastante repercussão, para procedermos a uma análise detalhada. Trata-se do
artigo “Aborto, uma vitória católica”, publicado na edição da revista Veja de 16/03/2005.
Vamos analisá-lo na relação com outros textos, surgidos da polêmica que sua publicação
gerou. Procuraremos abordar especialmente alguns aspectos e ângulos não tratados
anteriormente97.

"O enfoque da Igreja Católica é chocante, pois pressupõe que as mulheres são
essencialmente mentirosas e que, quando têm uma brecha qualquer, fazem
abortos com a voracidade de moscas buscando açúcar”.

Finalmente o Brasil começa a dar sinais de entender que o aborto integra a lista de
direitos inalienáveis da mulher – de seus direitos reprodutivos, de seus direitos
sexuais, de seus direitos sobre o próprio corpo. Duas decisões fortalecem essa
impressão. A primeira veio dos trinta membros do Conselho Nacional de Saúde, que
assessora e orienta o ministro da área. Numa reunião de cinco horas, eles decidiram
– por 27 votos contra 3 – manifestar-se a favor do direito da mulher de abortar
quando grávida de um feto sem cérebro, cuja vida fora do útero é 100% inviável. A
decisão é importante porque ajuda a ampliar o coro dos que defendem a legalização
do aborto de fetos sem cérebro, tema que a Justiça deverá julgar em breve. A outra
decisão veio na forma de uma norma do Ministério da Saúde. A norma diz o
seguinte: mulheres grávidas de estupro agora podem abortar nos hospitais públicos
sem apresentar o boletim de ocorrência da polícia. É outra medida que merece
aplauso. Revela o devido respeito à mulher, na medida em que dá à sua palavra a
mesma importância dada a um boletim burocrático, e sobretudo retira da órbita
policial uma questão de saúde física e psicológica.

E isso pode ser chamado de vitória católica?

No Conselho Nacional de Saúde, entre os três votos contrários ao aborto de feto sem
cérebro estava o de Zilda Arns, que representa a entidade dos bispos católicos do
Brasil. A Igreja Católica, todos sabemos, é contra o aborto em qualquer situação. Em
caso de risco de morte para a mãe, em caso de gravidez resultante de estupro, em
caso de fetos sem chance de sobrevivência fora do útero. A Igreja Católica também
rejeita a nova norma do Ministério da Saúde. Teme que, sem terem de registrar a
ocorrência do estupro numa delegacia, as mulheres farão abortos nos hospitais
públicos mesmo quando não sofrerem estupro... Teme, portanto, que a nova norma
sirva de estímulo ao aborto nos hospitais do SUS. É um enfoque chocante, pois
pressupõe que as mulheres são essencialmente mentirosas e que, quando encontram
uma brecha qualquer, fazem abortos com a voracidade de moscas buscando açúcar...

A novidade é que a flexibilização da lei do aborto incomoda a cúpula da Igreja


Católica, mas não os fiéis. Pelo menos, a maioria dos fiéis. O grupo Católicas pelo
Direito de Decidir, formado por defensoras do direito da mulher sobre seu corpo,
encomendou uma pesquisa ao Ibope. A pesquisa levantou a opinião geral, de toda a

mantida através de outros discursos, da relação do texto consigo mesmo e com outros, intradiscurso e
interdiscurso não podem ser dissociados.
97
Para facilitar a leitura apresentaremos inicialmente o texto completo e depois o dividiremos em fragmentos,
que serão numerados, e faremos os comentários desses fragmentos. A letra “E” usada juntamente com os
números significa apenas “enunciado”.
128

população, e a opinião apenas dos católicos sobre o aborto. Descobriu que os


católicos são mais liberais que a população em geral. Um exemplo: 76% dos
brasileiros concordam com o aborto de fetos com problemas letais, mas esse número
chega a 80% entre os católicos. Outro: 62% dos brasileiros defendem o aborto em
caso de estupro, e 67% dos católicos têm a mesma posição. Mais um: 74% dos
brasileiros querem que o SUS ofereça o serviço de aborto nos casos previstos em lei,
e 78% dos católicos dizem o mesmo. Ou seja: flexibilizar a lei do aborto é uma
vitória da maioria do povo brasileiro, particularmente dos católicos.

E1 - Finalmente o Brasil começa a dar sinais de entender que o aborto integra a


lista de direitos inalienáveis da mulher – de seus direitos reprodutivos, de seus
direitos sexuais, de seus direitos sobre o próprio corpo.

Temos em E1 (grifado) um enunciado pro-choice padrão, originário dos EUA


e usado em todo o mundo, empregado como topic sentence (tópico frasal)98 do artigo.
Precedido pela afirmação “Finalmente... que” esse enunciado ganha um tom de veracidade
(“finalmente entender algo” significa que esse algo era verdadeiro, só não havia sido
percebido; mais ainda: como esse enunciado é amplamente usado, a memória dos
enunciatários automaticamente se “conecta” com um sentido de verdade preexistente).

E2 - Duas decisões fortalecem essa impressão. A primeira veio dos trinta membros
do Conselho Nacional de Saúde, que assessora e orienta o ministro da área. Numa
reunião de cinco horas, eles decidiram – por 27 votos contra 3 – manifestar-se a
favor do direito da mulher de abortar quando grávida de um feto sem cérebro, cuja
vida fora do útero é 100% inviável.

Anencefalia é a malformação caracterizada pela ausência total ou parcial do


encéfalo e da calota craniana. Dependendo da extensão dessa malformação, o bêbe pode viver
horas ou meses. O uso dos enunciados fortes e concisos “feto sem cérebro” e “cuja vida fora
do útero é 100% inviável” visa mais convencer do “direito da mulher de abortar”: “O público
não é convencido pelos argumentos expressos, mas pela própria enunciação desses
argumentos por tal discurso, isto é, pelo universo de sentido ao qual remete este último”
(MAINGUENEAU, 2005, p. 117).

E3 - A decisão é importante porque ajuda a ampliar o coro dos que defendem a


legalização do aborto de fetos sem cérebro, tema que a Justiça deverá julgar em
breve.

98
Os conceitos de topic sentence e tópico frasal podem ser encontrados em (GEAR, ROBERT & GEAR,
JOLENE, 2002, p. 391) e (GARCIA, 1982, p. 206), respectivamente. Discordamos da função meramente
informativa atribuída por esses autores a esses conceitos, pois acreditamos que o estabelecimento de uma
cenografia é a sua real função. Assim, quando em uma manhã de domingo, o marido acorda a esposa dizendo
“Querida, o dia está lindo! Vamos à praia?” o enunciado “o dia está lindo” visa criar uma cenografia que valida o
convite “Vamos à praia?”, estando muito além de um caráter apenas informativo.
129

Em E3 o enunciado “legalização do aborto de fetos sem cérebro” é uma


repetição do que acabou de ser dito na frase anterior e funciona como reforço da tese e como
memorização (essa técnica é exaustivamente usada em propaganda) e demonstra que o
articulista procura convencer o leitor de suas idéias e não apenas informar. Note-se também a
adjetivação “a decisão é importante”, sempre positiva quando o tema flui na direção pró-
aborto, sempre negativa quando focaliza o posicionamento pró-vida.

E4 - A outra decisão veio na forma de uma norma do Ministério da Saúde. A norma


diz o seguinte: mulheres grávidas de estupro agora podem abortar nos hospitais
públicos sem apresentar o boletim de ocorrência da polícia. É outra medida que
merece aplauso. Revela o devido respeito à mulher, na medida em que dá à sua
palavra a mesma importância dada a um boletim burocrático, e sobretudo retira da
órbita policial uma questão de saúde física e psicológica.

E4 é um exemplo de simulacro: estupro é crime e por isso exige ocorrência


policial – não se trata, portanto, de falta de respeito pela palavra da mulher. Mas o enunciado
que considera o aborto como “uma questão de saúde física e psicológica” e outros
semelhantes merecem atenção especial, por encerrarem uma falácia que remete a uma
reflexão fundamental para o conjunto teórico com o qual estamos trabalhando. E o que há de
tão especial com enunciados como “O aborto é uma questão de saúde pública”? Simples: ele
remete a uma questão que seria somente técnica, entretanto, nossas observações e reflexões
sobre o tema “formações discursivas” e “campos e espaços discursivos” indicam que
formações discursivas que se enfrentam dentro de determinado espaço discursivo possuem
sempre funções que se referem diretamente ao ser humano e seus valores pessoais – visão de
mundo, filosofia de vida, ética e moral, fé e religião. Desta forma, Maingueneau trabalha com
a oposição jansenismo/humanismo devoto, nós trabalhamos com pró-vida/pró-aborto, outros
trabalharão com direita/esquerda, marxismo/capitalismo, homossexualidade/heterossexua-
lidade, ateísmo/religiosidade etc. Se, porém, procurarmos aplicar as proposições de
Maingueneau sobre conteúdos cuja “polêmica” seja basicamente técnica, veremos que a
análise não irá progredir, por mais importante que seja o tema: “A ‘gramática geral’ do século
XVII ou a ‘economia política’ do séc. XIX não são submetidas exatamente às mesmas
condições de existência que os discursos qualificados comumente de ‘ideologias’”
(MAINGUENEAU, 2005, p. 52). Exemplifiquemos:
130

(1) A microinformática é essencial na vida moderna. Dentro dela temos dois espaços
discursos: hardware (a máquina) e software (os sistemas). Em cada um desses espaços temos
duas formações discursivas: hardware: Intel e AMD (as duas marcas de processador, o
cérebro da máquina); software: Windows (da empresa Microsoft) e Linux (o software livre).
Poderíamos definir, a partir de um sistema de restrições semânticas, o Windows como
software proprietário e o Linux como software livre99. Também mostraríamos que quando os
usuários de um sistema se referem ao outro, o fazem sob a forma de simulacro. Assim, os
usuários do Linux irão se referir aos custos do Windows, “esquecendo-se” de que, apesar de
gratuito, o Linux gera custos de treinamento e manutenção mais altos, por ser mais difícil de
operar etc. Poderíamos construir um corpus a partir de análises feitas por revistas técnicas etc.
e, no fim de tudo, o que teríamos seria uma caricatura lingüística.

(2) Se capitalismo e marxismo fossem apenas duas escolas de administração, desenvolvendo e


criando técnicas para administrar a coisa pública; se não tivessem qualquer envolvimento com
questões como visão de mundo e religião (especialmente esta), não existiria o colossal
enfrentamento entre esses dois discursos.

(3) Questões modernas como cirurgia plástica, cosmética avançada, body building etc.,
embora envolvam amplos setores da sociedade e grandes somas de recursos, não se
constituem em formações discursivas, não se enfrentam dentro de um espaço discursivo, não
provocam passeatas e protestos públicos: são, no máximo, temas de programas e revistas de
atualidades, pois embora digam respeito ao ser humano e ao seu corpo, não se referem
diretamente a valores morais e religiosos. Já a prática da Yoga, enquanto veículo de
transmissão da cultura New Age, é fortemente condenada pela Igreja Católica.

Essas proposições esclarecem porque temas como o uso de preservativos no


combate à AIDS e o casamento de pessoas do mesmo sexo são mais polêmicos que temas
como o aquecimento global e o uso de fontes alternativas de energia (se somarmos o número
de todos os participantes em protestos ecológicos ao redor do mundo, nos últimos vinte anos,
teremos apenas uma pequena fração do número de participantes em uma única passeata do
movimento gay em São Paulo, São Francisco ou Berlin).

99
De fato, é assim que esses programas de computador são definidos pelo mercado.
131

E5 - E isso pode ser chamado de vitória católica?

E5 é uma pergunta retórica100, usada com a finalidade de introduzir o Outro do


discurso pró-aborto (a Igreja Católica, como já expusemos anteriormente). Como sabemos, o
Outro sempre é introduzido no Mesmo sob a forma de simulacro. Ora chamar progressos na
agenda abortista de “vitória Católica” é, além de simulacro, uma construção plasmada na
derrisão, característica do ethos que o articulista procura construir.

E6 - No Conselho Nacional de Saúde, entre os três votos contrários ao aborto de feto


sem cérebro estava o de Zilda Arns, que representa a entidade dos bispos católicos
do Brasil. A Igreja Católica, todos sabemos, é contra o aborto em qualquer situação.
Em caso de risco de morte para a mãe, em caso de gravidez resultante de estupro,
em caso de fetos sem chance de sobrevivência fora do útero.

E6 é um exemplo de simulacro sutilmente construído. O modelo usado aqui é


um dos preferidos pela imprensa brasileira101 e por isso vamos comentá-lo detalhadamente.
Esta construção consiste em, basicamente, afirmar várias verdades ao mesmo tempo em que
se omite outras tantas, indispensáveis para uma correta apreciação do assunto que está sendo
abordado. Aqui o articulista afirma que a Igreja Católica é contra o aborto em qualquer
situação, o que é uma verdade. Coloca, em seguida, como exemplos, os casos de risco de
morte para a mãe, de gravidez resultante de estupro e de fetos sem chance de sobrevivência
fora do útero. Esses exemplos são também verdadeiros. Mas não os únicos e nem os mais
comuns, pelo contrário: são os mais críticos, são os mais extremos. Não correspondem à
realidade, tomada em seu sentido amplo, ou seja: são simulacros.

E7 - A Igreja Católica também rejeita a nova norma do Ministério da Saúde. Teme


que, sem terem de registrar a ocorrência do estupro numa delegacia, as mulheres
farão abortos nos hospitais públicos mesmo quando não sofrerem estupro... Teme,
portanto, que a nova norma sirva de estímulo ao aborto nos hospitais do SUS.
E7a - É um enfoque chocante, pois pressupõe que as mulheres são essencialmente
mentirosas e que, quando encontram uma brecha qualquer, fazem abortos com a
voracidade de moscas buscando açúcar...

E7 e E7a formam um conjunto interessante. Em E7 são feitas, de maneira


equilibrada, três afirmações sobre o posicionamente da Igreja. Mas em E7a o articulista muda

100
Pergunta usada como argumentação e/ou com a finalidade de envolver o enunciatário e conduzir seu
raciocinio em determinada direção.
101
Identificamos esse tipo de falácia durante nossa juventude e passamos a chamá-la de “mentira jornalística”,
devido ao seu uso intensivo pela imprensa brasileira.
132

totalmente o tom e coloca inferências sobre o que significaria esse enfoque da Igreja: “É um
enfoque chocante (o da Igreja), pois (a Igreja) pressupõe que as mulheres são essencialmente
mentirosas e que, quando encontram uma brecha qualquer, fazem abortos com a voracidade
de moscas buscando açúcar”.

A conclusão deste artigo está em E8:

E8 - A novidade é que a flexibilização da lei do aborto incomoda a cúpula da Igreja


Católica, mas não os fiéis. Pelo menos, a maioria dos fiéis. O grupo Católicas pelo
Direito de Decidir, formado por defensoras do direito da mulher sobre seu corpo,
encomendou uma pesquisa ao Ibope. A pesquisa levantou a opinião geral, de toda a
população, e a opinião apenas dos católicos sobre o aborto. Descobriu que os
católicos são mais liberais que a população em geral. Um exemplo: 76% dos
brasileiros concordam com o aborto de fetos com problemas letais, mas esse número
chega a 80% entre os católicos. Outro: 62% dos brasileiros defendem o aborto em
caso de estupro, e 67% dos católicos têm a mesma posição. Mais um: 74% dos
brasileiros querem que o SUS ofereça o serviço de aborto nos casos previstos em lei,
e 78% dos católicos dizem o mesmo. Ou seja: flexibilizar a lei do aborto é uma
vitória da maioria do povo brasileiro, particularmente dos católicos.

Aqui temos a conclusão do artigo, onde o articulista (pró-aborto) constrói seu


melhor simulacro do Outro (a pró-vida Igreja Católica). Esse simulacro consiste em traduzir o
discurso pró-vida em discurso pró-aborto atribuindo posicionamentos favoráveis ao aborto a
membros ou supostos membros da Igreja102, que, de qualquer forma, não representariam o
verdadeiro discurso da Igreja, aqui entendido como aquele construído dentro do sistema
global de restrições semânticas dessa entidade. Isto foi observado pelo leitor Lincoln Meireles
Tomaz na seção “Cartas” da edição de 23/03/2005:

Não pode ser uma vitória católica aquilo que vai contra sua doutrina. Toda religião
tem seu credo. O que se cobra dos fiéis é que sejam coerentes com ele. Ser católico
não é, como pretende o nominalismo do articulista, apenas se dizer católico; é ser fiel
à doutrina do magistério da Igreja. Sendo assim, não induza os leitores ao erro,
criando antagonismos onde não existem. Fiéis católicos são, com toda a força do
Espírito Santo e da tautologia, os que são fiéis ao catolicismo. Os que não aceitam ou
discordam estejam à vontade, assumam a condição de opositores e avante, em vez de
se dizerem católicos não-católicos. Façam como Lutero ("Aborto, uma vitória
católica", 16 de março). Lincoln Meireles Tomaz. Rio de Janeiro, RJ

102
O grupo Católicas pelo Direito de Decidir é uma organização pró-aborto que simula pertencer à Igreja para
confundir o público e a mídia, ou seja: A ONG é, em si mesma, um grande simulacro. Aqui também devemos
considerar a possibilidade de que os católicos entrevistados sejam não-praticantes.
133

Também nessa mesma seção “Cartas” temos proposições de um leitor que


exemplificam bem uma proposição de Maingueneau no quarto capítulo de “Gênese do
discurso”, intitulado “A polêmica como interincompreensão”:

A controvérsia se desdobra em dois terrenos ao mesmo tempo. Cada discurso deve


simultaneamente responder aos golpes que recebe e dar golpes; mas isso supõe duas
séries de escolhas: (1) No conjunto de enunciados que lhe são dirigidos, o discurso
responde àqueles que lhe parecem mais ameaçadores. [...] (2) Na massa
freqüentemente considerável dos enunciados não polêmicos do Outro, o discurso
define alguns pontos de ataque. Escolha da qual o sistema de restrições deve dar
conta. As ameaças virtuais que o discurso percebe só o são em virtude do ponto de
vista de seu próprio universo discursivo (MAINGUENEAU, 2005, p. 114).

A Igreja não pressupõe que as mulheres são mentirosas; não sejamos é hipócritas
achando que apenas as mulheres que sofrem estupros irão procurar esse recurso para
se livrar de uma gravidez indesejada. Essa facilidade de abortar nos hospitais públicos
do Brasil vai virar um verdadeiro matadouro. A Igreja Católica não está preocupada
com pesquisas, pois não é a Igreja que tem de se moldar aos fiéis, e sim os fiéis que
têm de se moldar às normas da Igreja. ("Aborto, uma vitória católica", 16 de março).
Ana Luiza Vasconcelos. Recife, PE

Vemos que o leitor aborda apenas dois enunciados: que a Igreja consideraria as
mulheres como mentirosas e que as pesquisas colocam os fiéis em contradição com a
instituição.

Passemos agora à análise de um texto publicado em março de 2005, no Site


“Mídia sem Máscara”, com o título “Obtusidade anticlerical”, escrito por Marcelo Moura
Coelho103.

Articulista da revista Veja adota festival de clichês e simplificações absurdas


quando se trata de analisar a Igreja Católica.
Quem lê a revista Veja toda semana, com certeza conhece o colunista André Petry.
Ele faz o estilo iluminista anticlerical e de cada 10 artigos que escreve, 9 são para
criticar o cristianismo, especialmente a Igreja Católica. A quantidade de clichês
anticlericais que esse senhor dispara praticamente toda semana beira a mais
completa obtusidade. Para Petry, que toma por evidente uma oposição (que não
existe entre fé e razão), todos aqueles que realmente seguem os preceitos da Igreja
Católica são um bando de ignorantes. Defender o direito à vida daqueles que ainda
não nasceram, ou um pouco de ética na ciência é, na linguagem orweliana de Petry,
criar um ambiente de trevas.
O artigo da edição de Veja do dia 16 de março não podia ser diferente, sendo
também um primor da novilíngua petryana. Esse fato já é percebido apenas pela
leitura do título do artigo: “Aborto, uma vitória católica”. Petry aproveita os dados
de uma pesquisa encomendada pelo grupo “Católicas pelo direito de decidir” (outro

103
Aqui também apresentaremos inicialmente o texto completo e depois o dividiremos em fragmentos, que serão
numerados, e faremos os comentários desses fragmentos. A letra “E” usada juntamente com os números significa
apenas “enunciado”.
134

primor de novilíngua, já que ou se é ou católico, ou se é a favor do aborto, tertium


non datur) que indicam que, proporcionalmente, o número de católicos que
defendem o aborto de anencéfalos e em caso de estupro e que o SUS ofereça o
serviço de aborto nos casos previstos em lei, é maior que os defensores das mesmas
posições na população em geral, para falar que o aborto é uma vitória católica.
(Tanto Petry quanto o grupo de supostas católicas só se “esqueceram” de divulgar
que entre os católicos, apenas 3% dos entrevistados são a favor do aborto em
qualquer circunstância).
O problema é que Petry se esqueceu de um pequeno detalhe: o conteúdo doutrinal
do catolicismo (assim como de todas as grandes religiões tradicionais, diga-se de
passagem) não é definido democraticamente. Independente da discussão sobre a
validade das diferentes religiões, todas elas têm em comum o fato de atribuírem a si
mesmas o caráter de revelação divina, e uma revelação divina não pode ser alterada
por opiniões humanas. Portanto, se a Igreja Católica se posiciona contra o aborto,
não é por causa de opiniões pessoais do papa, de cardeais e de bispos, mas porque
assim foi revelado.
Se o colunista de Veja tivesse o trabalho de abrir a Bíblia ele encontraria versículos
como estes:
“Antes mesmo de te formar no ventre materno, eu te conheci;
antes que saísses do seio, eu te consagrei”. (Jr. 1,5)
“Meus ossos não te foram escondidos quando eu era feito, em segredo, tecido na
terra mais profunda. Teus olhos viam o meu embrião. No teu livro estão todos
inscritos os dias que foram fixados e cada um deles nele figura”. (Sl. 139, 15-16)
Encontramos, ainda, no catecismo escrito pelos Apóstolos (Didaché) a seguinte
passagem:
“Não matarás o embrião por aborto e não farás perecer o recém-nascido”.
(Didaché 2,2)
Por fim, a atual edição do Catecismo da Igreja Católica ensina que:
“A vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir do
momento da concepção. Desde o primeiro momento de sua existência, o ser humano
deve ver reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre os quais o direito inviolável
de todo ser inocente à vida”. (Catecismo da Igreja Católica, § 2270)
E o que isso quer dizer? Que pessoas como os integrantes do grupo “Católicas pelo
direito de decidir” e aqueles que concordam com o aborto em caso de estupro
pensam assim não porque são católicos, mas apesar disso e contrariando
frontalmente o ensino de toda a Tradição católica. Ou seja, o aborto não é e nunca
será uma vitória católica, pelo contrário. Será uma derrota, não apenas católica, mas
da vida.
No primeiro parágrafo a gramática petryana continua fazendo estragos. O colunista
fala que o aborto integra a lista de direitos inalienáveis da mulher, lista que inclui
direitos reprodutivos, direitos sexuais e direitos sobre o próprio corpo. Em outras
palavras, a mulher tem o direito de fazer sexo sem se preocupar com as
conseqüências, mesmo que essas conseqüências sejam a geração de uma nova vida,
e ainda por cima tem o direito de achar que essa nova vida é apenas um órgão do
corpo feminino que pode ser retirado como se fosse um apêndice. E quem disser o
contrário é um defensor das trevas!
No penúltimo parágrafo de seu artigo Petry escreve que a Igreja Católica adota um
enfoque chocante ao defender a necessidade de um boletim de ocorrência para os
casos de aborto por causa de um estupro, pois, segundo ele, isso seria tachar as
mulheres de mentirosas. Caso o obtuso colunista não saiba, estupro é crime,
portanto precisa ser denunciado à autoridade competente, ou seja, a polícia. Além do
mais, parece-me que num país onde as seguradoras exigem boletim de ocorrência
em caso de acidente de carro para que o segurado tenha direito ao seguro, quanto
mais se exigirá quando uma vida está em jogo. E, ao contrário do que Petry e o
135

pensamento iluminista postulam, a Igreja Católica, seguindo os ensinamentos dos


profetas judaicos e de Cristo, sempre ensinou que o homem foi corrompido pelo
pecado e não é dotado de uma bondade natural, que, no caso em questão, impediria
as mulheres de mentir.
Na verdade, chocante é o ódio que Petry demonstra contra a Igreja Católica.

E1 - Articulista da revista Veja adota festival de clichês e simplificações absurdas


quando se trata de analisar a Igreja Católica.

Em E1 vemos que Marcelo Coelho percebeu empiricamente dois componentes


das proposições de Maingueneau: (1) a formação discursiva pró-aborto, enunciada por André
Petry, dirige seus ataques não ao movimento pró-vida mas sim à Igreja Católica, entidade que
sustenta o discurso pro-life. (2) O “festival de clichês e simplificações absurdas” aos quais o
autor se refere nada mais são do que os simulacros construídos pelo articulista.

E2 - Quem lê a revista Veja toda semana, com certeza conhece o colunista André
Petry. Ele faz o estilo iluminista anticlerical e de cada 10 artigos que escreve, 9 são
para criticar o cristianismo, especialmente a Igreja Católica. A quantidade de clichês
anticlericais que esse senhor dispara praticamente toda semana beira a mais
completa obtusidade. Para Petry, que toma por evidente uma oposição (que não
existe entre fé e razão), todos aqueles que realmente seguem os preceitos da Igreja
Católica são um bando de ignorantes. Defender o direito à vida daqueles que ainda
não nasceram, ou um pouco de ética na ciência é, na linguagem orweliana de Petry,
criar um ambiente de trevas.

Em E2 vemos que o autor continua trabalhando os simulacros criados pelo


articulista. Vemos também o confronto com o ethos criado pelo articulista.

E3 - O artigo da edição de Veja do dia 16 de março não podia ser diferente, sendo
também um primor da novilíngua petryana. Esse fato já é percebido apenas pela
leitura do título do artigo: “Aborto, uma vitória católica”. Petry aproveita os dados
de uma pesquisa encomendada pelo grupo “Católicas pelo direito de decidir” (outro
primor de novilíngua, já que ou se é ou católico, ou se é a favor do aborto, tertium
non datur104) que indicam que, proporcionalmente, o número de católicos que
defendem o aborto de anencéfalos e em caso de estupro e que o SUS ofereça o
serviço de aborto nos casos previstos em lei, é maior que os defensores das mesmas
posições na população em geral, para falar que o aborto é uma vitória católica.
(Tanto Petry quanto o grupo de supostas católicas só se “esqueceram” de divulgar
que entre os católicos, apenas 3% dos entrevistados são a favor do aborto em
qualquer circunstância).
E4 - O problema é que Petry se esqueceu de um pequeno detalhe: o conteúdo
doutrinal do catolicismo (assim como de todas as grandes religiões tradicionais,
diga-se de passagem) não é definido democraticamente. Independente da discussão
sobre a validade das diferentes religiões, todas elas têm em comum o fato de
atribuírem a si mesmas o caráter de revelação divina, e uma revelação divina não
pode ser alterada por opiniões humanas. Portanto, se a Igreja Católica se posiciona

104 tertium non datur = não há terceira hipótese.


136

contra o aborto, não é por causa de opiniões pessoais do papa, de cardeais e de


bispos, mas porque assim foi revelado105.

Em E3 e E4 vemos que Marcelo Coelho, ao citar os aparentes “esquecimentos”


de Petry, tem a mesma percepção de Charaudeau, a saber, que as mídias “só tornam visível
aquele visível que decidiram nos exibir, e esse visível não é necessariamente igual àquele que
o cidadão espera ou deseja: agenda midiática, agenda política e agenda cidadã não são sempre
as mesmas” (2006, p. 253). Quanto aos comentários (E4) concernentes à revelação divina,
remetemos nossos leitores ao capítulo cinco, p. 89-90, onde tratamos das concepções
antropológicas que embasam os posicionamentos pro-choice/pro-life.

E5 - Se o colunista de Veja tivesse o trabalho de abrir a Bíblia ele encontraria


versículos como estes:
“Antes mesmo de te formar no ventre materno, eu te conheci;
antes que saísses do seio, eu te consagrei”. (Jr. 1,5)
“Meus ossos não te foram escondidos quando eu era feito, em segredo, tecido na
terra mais profunda. Teus olhos viam o meu embrião. No teu livro estão todos
inscritos os dias que foram fixados e cada um deles nele figura”. (Sl. 139, 15-16)
Encontramos, ainda, no catecismo escrito pelos Apóstolos (Didaché) a seguinte
passagem:
“Não matarás o embrião por aborto e não farás perecer o recém-nascido”.
(Didaché 2,2)
Por fim, a atual edição do Catecismo da Igreja Católica ensina que:
“A vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir do
momento da concepção. Desde o primeiro momento de sua existência, o ser humano
deve ver reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre os quais o direito inviolável
de todo ser inocente à vida”. (Catecismo da Igreja Católica, § 2270)

E6 - E o que isso quer dizer? Que pessoas como os integrantes do grupo “Católicas
pelo direito de decidir” e aqueles que concordam com o aborto em caso de estupro
pensam assim não porque são católicos, mas apesar disso e contrariando
frontalmente o ensino de toda a Tradição católica. Ou seja, o aborto não é e nunca
será uma vitória católica, pelo contrário. Será uma derrota, não apenas católica, mas
da vida.

E5 e E6 representam um caso bastante interessante para a análise que estamos


efetuando, pois o Marcelo Coelho utiliza aqui argumentos que se enquadram perfeitamente
nas proposições de Maingueneau sobre a polêmica como interincompreensão. Vejamos: em
E5 ele expõe a doutrina católica sobre o aborto, não com a intenção de convencer Petry – o

105 Rubrica: teologia – ato pelo qual Deus fez saber aos homens os seus mistérios, sua vontade (HOUAISS,
2002, verbete “revelação”).
137

que seria inútil, já que este faria a leitura dessa argumentação com base em seu próprio
sistema de restrições semânticas106: “A polêmica, então, só pode ser estéril, resolvendo-se no
afrontamento de dois universos incompatíveis (MAINGUENEAU, 2005, p. 117) – mas para
mostrar, em E6, que o articulista violou o “código dogmático ligado ao campo discursivo”,
(Ibid., 2005, p. 115), ao afirmar uma inverdade, a saber: que a quase totalidade das pessoas
pertencentes à formação discursiva católica – e por extensão, a própria FD católica –
apoiariam a prática do aborto:

O essencial se passa alhures, nas infrações que incidem no código dogmático ligado
ao campo discursivo. Polemizar no interior de um certo campo é apresentar-se
implicitamente como aceitando os pressupostos que lhe são associados; a existência
de um corpus dogmático oficial é apenas a solidificação, o resultado de um
fenômeno geral. Se for possível mostrar a não convergência entre esses “dogmas” e
um enunciado do adversário, marca-se um ponto decisivo: violar os princípios
democráticos, colocar em causa a virgindade da Virgem Maria, comportar-se como
um intelectual pequeno burguês, contrapor-se às regras universais do Belo..., os
dogmas variam, mas não sua necessidade. Na polêmica, contrariamente ao que se
pensa espontaneamente, é a convergência que prevalece sobre a divergência, já que
o desacordo supõe um acordo sobre “um conjunto ideológico comum” sobre as leis
do campo discursivo partilhado. A polêmica sustenta-se com base na convicção de
que existe um código que transcende os discursos antagônicos, reconhecido por eles,
que permitiria decidir entre o justo e o injusto (MAINGUENEAU, 2005, p. 115)

Quando, em E6, Marcelo Coelho diz “os integrantes do grupo ‘Católicas pelo
direito de decidir’ e aqueles que concordam com o aborto em caso de estupro pensam assim
não porque são católicos, mas apesar disso e contrariando frontalmente o ensino de toda a
Tradição católica”, ele demonstra que André Petry violou um dos principais dogmas da
polêmica, aquele que impede o uso de inverdades, dogma esse que faz parte daquilo que
Maingueneau chama de “um conjunto ideológico comum sobre as leis do campo discursivo
partilhado”. O mesmo ocorrerá em E8, quando Marcelo Coelho trabalha sobre duas outras
inverdades colocadas por André Petry: (1) A não existência de necessidade de boletim policial
de ocorrência em caso de estupro. Esse deslize permitiu ao autor chamar o articulista de
obtuso. (2) A pressuposição do não uso da mentira por mulheres que desejassem fazer um
aborto.

E7 - No primeiro parágrafo a gramática petryana continua fazendo estragos. O


colunista fala que o aborto integra a lista de direitos inalienáveis da mulher, lista que
inclui direitos reprodutivos, direitos sexuais e direitos sobre o próprio corpo. Em
outras palavras, a mulher tem o direito de fazer sexo sem se preocupar com as

106
Tentar convencer o articulista a partir de argumentos embasados nos ensinamentos da doutrina católica – na
qual Petry não crê – seria permitir a este condenar mais firmemente as proposições pró-vida.
138

conseqüências, mesmo que essas conseqüências sejam a geração de uma nova vida,
e ainda por cima tem o direito de achar que essa nova vida é apenas um órgão do
corpo feminino que pode ser retirado como se fosse um apêndice. E quem disser o
contrário é um defensor das trevas!

Em E7 Marcelo Coelho explora uma falha comum – e muito grave – da revista


Veja: o seu anacronismo107. Como ja dissemos antes, a afirmação do aborto enquanto “direito
sobre seu próprio corpo” foi abandonada nos países do primeiro mundo diante dos estudos da
fetologia e do desenvolvimento da ultra-sonografia, que explicitaram cientificamente que o
bêbe é uma outra pessoa e não um apêndice da mãe.

E8 - No penúltimo parágrafo de seu artigo Petry escreve que a Igreja Católica adota
um enfoque chocante ao defender a necessidade de um boletim de ocorrência para
os casos de aborto por causa de um estupro, pois, segundo ele, isso seria tachar as
mulheres de mentirosas. Caso o obtuso colunista não saiba, estupro é crime,
portanto precisa ser denunciado à autoridade competente, ou seja, a polícia. Além do
mais, parece-me que num país onde as seguradoras exigem boletim de ocorrência
em caso de acidente de carro para que o segurado tenha direito ao seguro, quanto
mais se exigirá quando uma vida está em jogo. E, ao contrário do que Petry e o
pensamento iluminista postulam, a Igreja Católica, seguindo os ensinamentos dos
profetas judaicos e de Cristo, sempre ensinou que o homem foi corrompido pelo
pecado e não é dotado de uma bondade natural, que, no caso em questão, impediria
as mulheres de mentir.

E9 - Na verdade, chocante é o ódio que Petry demonstra contra a Igreja Católica.

Em E8 podemos perceber, subentendida, uma das principais questões da


polêmica pró-aborto/vida – e que foi tratada no capítulo dois: o chamado abortion on demand
(aborto a pedido, sem qualquer necessidade de apresentação de motivos), pois é exatamente
isso que se está discutindo quando se fala da necessidade ou não de um boletim de ocorrência.
Também podemos ver a oposição entre liberais (humanismo iluminista) e conservadores
(Igreja Católica). Em E9 vemos um aspecto ainda pouco estudado na Análise do Discurso: as
paixões. Talvez, seguindo o caminho da semiótica, possamos também, no futuro, trabalhar
esse viés tão interessante e que certamente lançaria novas luzes sobre os – profundamente
emocionais – artigos de André Petry.

107
Esse anacronismo consiste, entre outras coisas, em trabalhar a partir de matérias publicadas meses atrás na
imprensa internacional, particularmente nas revistas TIME e Newsweek e no jornal The New York Times.
139

6.3 A IRONIA CÁUSTICA DOS ARTIGOS DE DIOGO MAINARDI

Ao iniciarmos nossa exposição sobre o articulista Diogo Mainardi e seus


escritos, duas observações se fazem necessárias. Primeiro, ele escreveu um número limitado
de artigos sobre temas gerais, entre os quais o aborto, passando então a escrever sobre temas
políticos. Por isso seus escritos, em nosso corpus, não representam uma parte muito extensa.
Segundo – e isto se aplica ao conjunto de articulistas e repórteres de Veja – é preciso
explicitar a distinção existente entre o articulista enquanto ser empírico, no mundo e o
articulista enquanto enunciador de uma determinada formação discursiva108:

...trata-se somente de dar conta de regularidades interdiscursivas historicamente


definidas, e não de descrever uma semelhança entre as trajetórias biográficas dos
indivíduos que formam o conjunto dos enunciadores efetivos de tal ou tal discurso,
mesmo se esses dois aspectos são, com justiça, freqüentemente associados pelos
historiadores. Existem inegavelmente semelhanças sociológicas, psicológicas...
interessantes entre esses indivíduos, mas seu grau de homogeneidade não é
absolutamente comparável ao grau de coesão da formação discursiva da qual eles
são enunciadores. A homogeneidade discursiva não é a projeção de uma coesão
social prévia, como se a comunidade de seus enunciadores fosse exterior ao discurso
e preexistisse a ele (MAINGUENEAU, 2005, p. 58).

De fato, embora existam semelhanças entre os ethos de André Petry e de Diogo


Mainardi, especialmente no que diz respeito à agressividade verbal (1), existem também
diferenças, como o uso mais freqüente da ironia cáustica – sarcasmo (2), como podemos ver
nestes enunciados, extraídos de artigo “Meus queridos leitores” (Veja, 14/04/2004, anexo 18,
p. 228):

(1) “Em primeiro lugar, professor Garrafa, não sou seu amigo”. É interessante observar que
neste artigo foram tratadas – agressivamente – uma série de cartas de seus leitores, logo a
expressão “Meus queridos leitores” não passa de ironia... grosseira.

(2) “Em nenhum momento pretendi sugerir que houvesse algo de errado em comer papelão,
tecidos e cosméticos”.

108
Particularmente importante é ressaltar que nossas análises – muitas vezes incisivas – não são dirigidas, de
modo algum, ao cidadão Diogo Mainardi, ser empírico e merecedor de todo respeito e consideração, mas ao
enunciador “articulista Diogo Mainardi”, personagem midiaticamente criado.
140

Vamos examinar inicialmente o ethos de Diogo Mainardi, a partir de algumas


formulações de Maingueneau sobre o tema:

O “fiador”, cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de
diversas ordens, vê-se, assim, investido de um caráter e de uma corporalidade, cujo
grau de precisão varia conforme os textos. O “caráter” corresponde a um feixe de
traços psicológicos [...] Caráter e corporalidade do fiador apóiam-se, então, sobre
um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de
estereótipos sobre os quais a enunciação se apóia e, por sua vez, contribui para
reforçar ou transformar. Esses estereótipos culturais circulam nos registros mais
diversos da produção semiótica de uma coletividade: livros de moral, teatro, pintura,
escultura, cinema, publicidade... (2005a, p. 72, grifos nossos).

Como vimos nos dois exemplos citados e veremos exaustivamente, o ethos


de Mainardi fundamenta-se no sarcasmo, na derrisão, no escárnio, aplicados mesmo contra
aqueles que são seus admiradores (3). Isso faz com que, ao traduzir o Outro nas categorias do
Mesmo, o articulista realize uma dupla operação: primeiro traduz o Outro na categoria
semântica considerada negativa pelo Mesmo – conservador é traduzido por anacrônico,
ultrapassado, antiquado. Segundo, leva esse registro negativo – anacrônico – para um nível
duplamente negativo, ao lhe acrescentar uma conotação derrisória: geriátrico (4). Paroxismo
da afirmação de Maingueneau “É preciso desqualificar o adversário, custe o que custar,
porque ele é constituído exatamente do Mesmo que nós, mas deformado, invertido,
conseqüentemente, insuportável” (1993, p. 125), Mainardi busca projetar sobre seus
adversários a sombra de seu niilismo nietzschiniano passivo109, o que o leva a contrariar o
senso-comum.

(3) “Vik Muniz é um dos mais bem-sucedidos artistas plásticos brasileiros. Tempos
atrás, em cartinha a VEJA, ele comparou minha coluna à imagem da Virgem Maria e
o menino Jesus. Agradeço muito. Eu só gostaria de notar, Vik, que cartesiano é com
‘s’" (Veja, 14/04/2004, “Meus queridos leitores”).

(4) “A revolução geriátrica de Ratzinger pretende enfrentá-la com o rigor


intelectual, a insubmissão e o absolutismo” (Veja, 27/04/2005, “A revolução
geriátrica”, anexo 19, p. 229).

109
No nietzschianismo, sentimento niilista característico da decadência moderna, e consistente na ausência de
desejo pela vida, o que implica a inexistência de convicções, crenças fundamentais e valorações éticas – por
oposição a niilismo ativo = niilismo vital e necessário por ser capaz de destruir os valores tradicionais da
civilização ocidental, abrindo caminho para a transmutação da moral hegemônica e o surgimento de um novo
homem (HOUAISS, 2002, verbete “niilismo”).
141

Do estereótipo sarcástico adotado por Mainardi deriva uma característica


básica de sua enunciação: ela é dirigida preferencialmente a pessoas e não a instituições: “em
uma polêmica, todas as dimensões da discursividade podem estar implicadas (a querela pode
incidir sobre o ethos, a intertextualidade, a dêixis etc.)” (MAINGUENEAU, 1993, p. 124).
Assim, comparando o número de ocorrências dos termos papa e Igreja nos artigos de Petry e
Mainardi, temos:

PETRY MAINARDI
PAPA 13 32
IGREJA 35 30
Tabela 5 – Termos usados por André Petry e Diogo Mainardi.

Esse estilo sarcástico criou para o articulista muitos problemas, entre os quais
vários processos na justiça. Também produziu algumas situações curiosas, relativamente à
Análise do Discurso. Uma dessas foi a publicação da carta do deputado federal Durval Orlato
(PT-SP) na seção cartas de 24/03/2004. O conteúdo dessa carta contraria o posicionamento
pró-aborto da revista e provavelmente a publicação só ocorreu com uma espécie de “direito de
resposta”, já que o deputado havia sido citado no artigo de Mainardi publicado na semana
anterior. Entretanto, a carta foi publicada entre três outras, francamente pró-Mainardi, o que
assegurou o posicionamento da revista:

Sobre o meu projeto de conscientização junto aos hospitais dos efeitos do aborto na
mulher e de incentivo à adoção pós-parto, quem entende que o feto humano não tem
vida e pode ser tratado como um simples furúnculo a ser extraído será contra sua
aprovação. Parte significativa e importante da comunidade científica prova que há
vida desde a concepção, portanto não se trata apenas de uma questão religiosa.
Quantas mulheres ficaram com seqüelas físicas e/ou psicológicas após a realização
de um aborto? Quantos abortos são feitos apenas porque casais de namorados
tiveram atitudes irresponsáveis? A ciência e a tecnologia devem estar a serviço da
vida em todas as suas fases, ou seja, dos "menos 9 meses" aos 199 anos, caso
contrário serão apenas experiências secundárias que mais polemizam do que ajudam
na resolução dos problemas de saúde ("O planejamento petista", 17 de março).
Durval Orlato Deputado federal (PT-SP) Brasília, DF. (Veja, 24/03/2004, Seção
Cartas).

Um último aspecto a ser observado na constituição do ethos em Diogo


Mainardi é o seu – mas também de André Petry – “estereótipo estereotipado”,
homogeneizado, mono “tom”, sempre mais do mesmo. O leitor de Veja poderá facilmente
comprovar o que estamos afirmando pela simples comparação entre os escritos desses
142

articulistas e os de – por exemplo – Lya Luft. Nesta o “tom” sofre variações, segundo os
temas tratados e de acordo com a abordagem utilizada. Naturalmente, não estamos de modo
algum afirmando que o ethos é simplesmente uma máscara imposta sobre um conteúdo pré-
estabelecido, pelo contrário, concordamos com Maingueneau quando diz:

Não há incompatibilidade entre ritos pessoais e ritos ‘impostos’ por um


pertencimento institucional e discursivo. A vocação enunciativa supõe uma
harmonização mais ou menos estrita entre as práticas individuais do autor e as
representações coletivas nas quais ele se reconhece e que comunidades mais ou
menos amplas verão, por sua vez, encarnadas nele (2005, p. 139).

Apenas consideramos que em Mainardi existe um ethos sarcástico, que


contraria o senso comum e não raramente desliza para o vitupério, a afronta, o insulto – tudo
com a finalidade de provocar seus leitores – e que é a origem de muitos de seus enunciados.

Iniciaremos nossa análise dos artigos de Diogo Mainardi pela matéria “Um
estranho no ninho”, publicada em 23 de fevereiro de 2000, sendo esse o seu primeiro artigo
sobre o tema aborto publicado pelo articulista na revista Veja:

O papa, em sua eterna cruzada antiaborto, lançou um novo alarme contra o baixo
índice de natalidade dos italianos. Eu me pergunto: quem é ele para reclamar que os
outros não procriam? Um dos dogmas irrenunciáveis de sua função eclesiástica não
é, justamente, a renúncia a ter filhos? O senador e cineasta Franco Zeffirelli foi ainda
mais longe, sugerindo que as mulheres que recorrem a abortos sejam decapitadas em
praça pública. Desnecessário dizer, claro, que Zeffirelli nunca teve nem nunca terá
uma mulher ou um filho. O fato é que, no mesmo período em que o papa e Zeffirelli
faziam seus pronunciamentos, fui informado de que minha mulher estava grávida. O
meu impulso natural, ouvindo-os, seria correr para o hospital mais próximo. O
aborto é legal na Itália, graças a um referendo de 1974. Depois de refletir por alguns
dias, porém, acabamos por descartar essa opção. E, em setembro, serei pai.

Eu nunca imaginei que viesse a ter um filho. A recusa da paternidade foi uma das
poucas certezas que jamais questionei em minha vida. Eu detesto crianças. Muito
melhor do que uma criança é um cachorro. Infelizmente, a probabilidade de que meu
filho nasça igual a um basset hound é um tanto remota. Eu também ficaria satisfeito
com um filho-tartaruga: toda vez que ele se agitasse demais, bastaria revirá-lo de
barriga para cima, e ele permaneceria imóvel, em silêncio, sacudindo os bracinhos.

Imagino que todo pai tenha um medo danado de não gostar do próprio filho. Não
deve ser uma eventualidade tão rara assim. Ter um filho, a meu ver, equivale a enfiar
um completo estranho dentro de casa. É como se eu convidasse o gerente do meu
banco a morar comigo e, ainda por cima, passasse a sustentá-lo. Porque nada exclui
que meu filho tenha uma cabeça idêntica à do gerente do meu banco. O que vai
acontecer, por exemplo, se meu filho gostar dos filmes de Zeffirelli? O que eu posso
fazer para impedi-lo? E se ele tiver o desplante de desaprovar o que eu escrevo? Se
não achar graça neste artigo?

A solução perfeita, para contornar esses casos, seria mudar a legislação relativa ao
aborto. Na Itália, o aborto é permitido até o terceiro mês de gravidez. Eu estenderia
143

esse prazo até o décimo quinto aniversário da criança. Seria uma arma potentíssima
nas mãos dos pais. Faríamos crianças obedientes e solícitas. Aterrorizadas com a
possibilidade de que pudéssemos descartá-las de um momento para o outro, elas
sempre fariam de tudo para nos agradar. A idéia é muito boa. O único problema será
convencer o papa e Zeffirelli sobre os benefícios da nova lei.

Por fim, minha mulher suspeita que eu tenha concordado em ter esse filho apenas
porque não tinha assunto para o artigo desta semana. Parece-me um motivo tão
válido quanto qualquer outro.

E1 - O papa, em sua eterna cruzada antiaborto, lançou um novo alarme contra o


baixo índice de natalidade dos italianos. Eu me pergunto: quem é ele para reclamar
que os outros não procriam? Um dos dogmas irrenunciáveis de sua função
eclesiástica não é, justamente, a renúncia a ter filhos?

Em E1 temos duas perguntas retóricas – interrogação usada para afirmar


enfaticamente algo, envolver o leitor, mudar o fio condutor do raciocínio ou ofender o
enunciatário.

E2 - O senador e cineasta Franco Zeffirelli foi ainda mais longe, sugerindo que as
mulheres que recorrem a abortos sejam decapitadas em praça pública. Desnecessário
dizer, claro, que Zeffirelli nunca teve nem nunca terá uma mulher ou um filho.

O cineasta Franco Zeffirelli, conhecido no Brasil apenas pelos seus filmes, é


um ativista pró-vida com atuação internacional110. Ao atacar conjuntamente dois nomes
importantes do movimento pro-life, Mainardi nos dá a oportunidade de expormos algumas
reflexões formuladas a partir das proposições de Maingueneau, que costuma se referir a
pontos chaves aos quais o discurso costuma responder e/ou atacar, por serem os que mais lhe
ameaçam. Ora, como expusemos acima, Mainardi focaliza seu discurso especialmente contra
pessoas, logo, contra pessoas que são enunciadores do discurso Outro, o discurso pró-vida.
Em Mainardi é bem mais rara a argumentação contra o argumento. A sua argumentação é
basicamente argumentum ad hominem. Assim, vemos em seus artigos tratando de temas
políticos, que o foco está direcionado mais para abordagens pessoais e menos para teses e
políticas. Igualmente, o articulista constantemente se sente ameaçado pessoalmente,
fisicamente – até de morte – e não atingido em suas argumentações.

E3 - O fato é que, no mesmo período em que o papa e Zeffirelli faziam seus


pronunciamentos, fui informado de que minha mulher estava grávida. O meu
impulso natural, ouvindo-os, seria correr para o hospital mais próximo. O aborto é

110
Efetuamos longas buscas na internet e não localizamos o discurso no qual ele supostamente sugere que “as
mulheres que recorrem a abortos sejam decapitadas em praça pública”.
144

legal na Itália, graças a um referendo de 1974. Depois de refletir por alguns dias,
porém, acabamos por descartar essa opção. E, em setembro, serei pai.

Em E3 o articulista coloca em ação a porção de seu ethos que contraria o senso


comum, ao supostamente atribuir ao discurso pró-vida a excitação de seus sentimentos pró-
aborto.

E4 - Eu nunca imaginei que viesse a ter um filho. A recusa da paternidade foi uma
das poucas certezas que jamais questionei em minha vida. Eu detesto crianças. Muito
melhor do que uma criança é um cachorro. Infelizmente, a probabilidade de que meu
filho nasça igual a um basset hound é um tanto remota. Eu também ficaria satisfeito
com um filho-tartaruga: toda vez que ele se agitasse demais, bastaria revirá-lo de
barriga para cima, e ele permaneceria imóvel, em silêncio, sacudindo os bracinhos.

Gostaríamos de, por uma questão ética, deixar de comentar esse parágrafo, já
que a imprecação do articulista acabou se tornando realidade111.

E5 - Imagino que todo pai tenha um medo danado de não gostar do próprio filho.
Não deve ser uma eventualidade tão rara assim. Ter um filho, a meu ver, equivale a
enfiar um completo estranho dentro de casa. É como se eu convidasse o gerente do
meu banco a morar comigo e, ainda por cima, passasse a sustentá-lo. Porque nada
exclui que meu filho tenha uma cabeça idêntica à do gerente do meu banco. O que
vai acontecer, por exemplo, se meu filho gostar dos filmes de Zeffirelli? O que eu
posso fazer para impedi-lo? E se ele tiver o desplante de desaprovar o que eu
escrevo? Se não achar graça neste artigo?

Em E5 o articulista trabalha seu ethos sobre a contestação do senso comum.

E6 - A solução perfeita, para contornar esses casos, seria mudar a legislação relativa
ao aborto. Na Itália, o aborto é permitido até o terceiro mês de gravidez. Eu
estenderia esse prazo até o décimo quinto aniversário da criança. Seria uma arma
potentíssima nas mãos dos pais. Faríamos crianças obedientes e solícitas.
Aterrorizadas com a possibilidade de que pudéssemos descartá-las de um momento
para o outro, elas sempre fariam de tudo para nos agradar. A idéia é muito boa. O
único problema será convencer o papa e Zeffirelli sobre os benefícios da nova lei.

D6 – A “solução perfeita” proposta por Mainardi em sua pilhéria foi


amplamente usada pelo regime nazista na segunda guerra mundial sob a forma de eugenia –
onde crianças eram executadas até mesmo pelo seu rendimento escolar abaixo da média. O
articulista certamente conhece esse fato. Esse e outros comportamentos burlescos – aqui
entendidos como propositadamente extravagantes, contrastando como a condição e meio do
111
Entretanto, é necessário dizer que esse triste acontecimento foi bem aceito pelo articulista, que se tornou um
pai extremamente dedicado, conforme pode ser visto em sua coluna de 30 de janeiro de 2008, exato momento
em que encerrávamos este trabalho (anexo 34, p. 262).
145

indivíduo – indicam a construção de um ethos artificial, que joga com diversas possibilidades
enunciativas, criando assim um estado permanente de polêmica que ajuda a vender (segundo a
própria revista Veja, Diogo Mainardi é o seu articulista mais lido).

E7 - Por fim, minha mulher suspeita que eu tenha concordado em ter esse filho
apenas porque não tinha assunto para o artigo desta semana. Parece-me um motivo
tão válido quanto qualquer outro.

E7 – vemos predominar aqui, mais uma vez, o ethos articulista, que costuma
referir-se muitas vezes a sua própria pessoa, ao contrário de André Petry, que raramente
refere-se a si mesmo.

Passemos agora à análise de alguns trechos de artigos escritos por Diogo


Mainardi. A escolha de analisar fragmentos deriva da maneira que o articulista usa para
escrever seus artigos – fragmentada112.

F1 - A eutanásia é um desses assuntos de competência exclusivamente civil a


respeito do qual a Igreja Católica se sente no direito de interferir. Não é o único.
Tem também o divórcio, o aborto, as drogas leves, a fecundação artificial, a pena de
morte (Veja, 06/09/2000, “Meu cachorro e o papa”, anexo 20, p. 230).

F1 – O sistema de restrições da formação discursiva liberal do articulista se


mantém focado na liberdade individual, assumindo como positivos a eutanásia, o divórcio, o
aborto, a liberação das drogas (não somente das drogas leves, como citado pelo articulista;
veremos mais adiante, em F9, esse mesmo articulista citar novamente a liberação das drogas,
desta vez sem a restrição “leves”), a fecundação artificial etc. Se aprofundarmos nossas
análises veremos emergir um detalhe extremamente relevante: A FD liberal assume todos
esses posicionamentos de forma bruta, sem observar de forma analítica o que realmente está
apoiando. Em 03/02/1999 a revista Veja publicou na seção “Medicina” um artigo sobre
inseminação artificial (“A escolha mais difícil”, anexo 21, p. 231), onde é abordada a questão
dos chamados supra numéricos – bebês gerados em maior número do que seria desejável e
que são, então eliminados. O fragmento desta reportagem, reproduzido abaixo, dá uma melhor
idéia do que se está falando:

112
Aqui indicaremos os fragmentos pela letra “F” (fragmento) acompanhada de uma numeração seqüencial.
146

A escolha mais difícil


O aumento no número de gestações múltiplas
coloca o dilema: abortar ou não alguns dos fetos?
— Mais para a direita... Não, não... Um pouco mais para a esquerda... Agora, para
cima...
Enquanto o médico falava, a tela do aparelho de ultra-sonografia estampava a
imagem de quatro fetos. Na 12ª semana de gestação, quatro corações pulsavam com
vigor. Ao lado da máquina, deitada sobre uma maca, a mãe chorava. Há um ano a
economista A.L.M., de 29 anos, tentava engravidar. Passou por meia dúzia de
centros de reprodução assistida. Em vão. No último, indicaram-lhe injeções de
gonadotrofina, o hormônio estimulante da ovulação. No primeiro mês, nada. No
seguinte, quatro óvulos, a fecundação... e os quatro fetos.
— Por favor, não se mexa — pedia o outro médico, tentando impedir o sobe-e-
desce da barriga da moça em prantos.
— Isso! — anunciou o primeiro doutor. A agulha de aproximadamente 15
centímetros de comprimento e 1 milímetro de diâmetro chegara a seu destino: o
coraçãozinho de um dos fetos. O segundo médico disparou a injeção. Cloreto de
potássio. Parada cardíaca. Morte. A.L.M. virou o rosto. Soluçava. Com a mesma
punção no abdome da mãe, a agulha alcançou o coração de outro bebê. Cloreto de
potássio. Parada cardíaca. Morte.
Quarenta minutos e A.L.M. deixava a clínica. Não era mais a gestante de
quadrigêmeos, mas apenas de gêmeos. Hoje, às vésperas de completar oito meses de
gravidez, os bebês remanescentes estão prestes a nascer. "Prefiro não pensar sobre o
que foi feito dos outros", diz a mãe. Medindo 6 centímetros cada um, depois de
quatro semanas, foram absorvidos pelo organismo materno. "Tento imaginar que
não existiram." A.L.M. tenta. Mas, não importa quanto tente, o sentimento de luto
existe. Ela não engravidou sem querer. Ao contrário — como desejava ter um bebê!
"Fiz o que fiz pelo bem desses dois que carrego no ventre", defende ela. Ninguém,
além do marido e de uma amiga, sabe do sacrifício, algo que os médicos, na fria
linguagem técnica, chamam apenas de "redução embrionária".

Enquanto isso, o movimento pró-vida é muito mais meticuloso em suas


análises, posição esta originária da formação discursa católica, na qual se embasa, e que cuida
bastante dos detalhes, especialmente quando o assunto envolve diretamente questões éticas
referentes à vida humana.

F2 - O que os atuais sectários de Pio IX pretendem afirmar, portanto, é que a palavra


do papa é lei, devendo ser estendida à sociedade inteira. Para o resto de nós, a
palavra do papa pode ter um grande peso moral, mas só vale dentro da Igreja,
servindo para guiar o comportamento individual de seus fiéis (Veja, 06/09/2000,
“Meu cachorro e o papa”).

F2 – O termo “sectários”, registro negativo de partidários, é a forma de traduzir


o Outro no Mesmo utilizada pelo articulista. A expressão “os atuais sectários de Pio IX” é
uma referência à Constituição Dogmática "Pastor Aeternus", concebida no Concílio Vaticano
I, proclamado pelo papa Pio IX e que versava sobre o primado e infalibilidade do Papa
quando se pronuncia ex-catedra, em assuntos de fé e de moral. Mainardi mostra aqui certo
147

conhecimento enciclopédico não compartilhado – provavelmente – pela maioria de seus


leitores, fato que poderia – para o prazer do articulista – deixá-los confusos. Quanto aos
enunciados “... a palavra do papa é lei, devendo ser estendida à sociedade inteira” e “mas só
vale dentro da Igreja”, estamos diante de uma discussão que envolve duas propostas de
valores morais113: a primeira considera a veracidade dos valores morais da Igreja, condição
que os tornaria universais (lei natural); a segunda pugna pela liberdade individual relativista,
onde cada um faz seus próprios valores. Continuamos, portanto, dentro do mesmo embate
liberal/conservador que embasa o confronto pro-life/pro-choice114.

F3 - João Paulo II consagrou mais santos do que qualquer outro papa. Esse dado
reflete o seu modo de ver a religião: mágica, miraculosa, irracional. (Veja,
06/09/2000, “Meu cachorro e o papa”).

Em F3 Mainardi reivindica enunciados que a priori só poderiam ser usados por


quem enunciasse a partir de uma posição discursiva inserida dentro de uma formação
discursiva religiosa opondo-se a outra formação discursiva religiosa. Seria o caso de uma seita
protestante criticando a Igreja. Como o articulista é ateu, ele não poderia ocupar essa posição,
apenas rejeitar a ação do papa (de canonizar, não consagrar) muitos santos.

F4 - A Igreja Católica já perdeu. Veja a controversa questão do aborto. Não há um


único país desenvolvido que o proíba. A proibição é uma bandeira exclusiva de
países subdesenvolvidos, como o Brasil. (Veja, 18/07/2001, “Meu assunto
preferido”, anexo 22, p. 237).

F4 - Associar suas posições à modernidade, ao mesmo tempo em que remete as


posições do adversário ao anacronismo, é uma estratégia discursiva que busca desvalorizar os
enunciados da formação discursiva oposta sem ter que enfrentar suas proposições.

F5 - Schwarzenegger é a favor do aborto e pretende cortar os gastos públicos. Como


plataforma política, é mais que suficiente (Veja, 08/10/2003, “O exemplo da
Califórnia”, anexo 32, p. 260).

113
Não para Mainardi, que não propõe nada que não esteja solidamente embasado no casuísmo.
114
Possivelmente nosso leitor terá observado que utilizamos as expressões pro-choice/pro-life e pro-life/pro-
choice aparentemente de forma aleatória. Esclarecemos que esse procedimento é intencional, pois uma vez que
as duas formações discursivas se formam de maneira sincrônica dentro do interdiscurso, não há uma primeira e
uma segunda expressão.
148

Assim como o articulista dirige seus ataques aos enunciadores da FD


discursiva contrária, aqui temos o movimento inverso, onde os “aliados” são valorizados.

F6 - Calcula-se que os abortos clandestinos sejam responsáveis por cerca de 15% das
mortes de gestantes. Acabando com os abortos clandestinos, a mortalidade materna
diminui na mesma proporção, em particular entre as mulheres mais pobres e mais
jovens (Veja, 17/03/2004, “O planejamento petista”, anexo 23, p. 238).

F6 – Aqui a estratégia consiste em, diante de um número relativamente baixo


de óbitos (ver tabela 3, p. 113), trabalhar percentuais, de forma que os números representem
maior impacto.

F7 - ...subterfúgio empregado pelos constituintes para impedir qualquer política de


controle da natalidade. Sobretudo o aborto (Ibid.).

Em F7 vemos o aborto citado como processo de controle de natalidade, tese


essa (re)criada nas primeiras décadas do século XX e que o articulista usa para realimentar a
discussão: “As diversas memórias polêmicas recorrem a um tesouro cujas linhas de partilha
são incessantemente deslocadas. Quando um discurso novo emerge, ele faz emergir com ele
uma redistribuição dessas memórias” (MAINGUENEAU, 1993, p. 125).

F8 - No mundo todo, o direito ao aborto foi uma conquista dos partidos de esquerda
[...] Agora mudou. Os petistas perderam o interesse pelo assunto. (Ibid.).

F7 – Esse enunciado nos remete a duas questões: (1) o apoio da esquerda ao


projeto do aborto. A esse respeito sugerimos ao nosso leitor que retome o início do capítulo
segundo, onde fazemos uma exposição detalhada do assunto. (2) esse enunciado é a acusação
de uma “traição” à formação discursiva esquerdista/pró-aborto na qual o Partido dos
Trabalhadores se insere. De fato, nada costuma causar tanta exasperação aos que pertencem à
determinada FD do que verem enunciadores pertencentes a instituições ligadas a esta FD
enunciando de posições que não se identificam com ela, que não obedecem ao seu sistema de
restrições semânticas. Essa tese foi a base dos chamados “expurgos” feitos pelo partido
comunista na antiga União Soviética.

F9 - Políticos e padres estão sempre querendo tirar algum direito do cidadão: o


direito ao suicídio assistido, ao aborto, ao consumo de drogas, às pesquisas
científicas, à informação livre, às uniões do mesmo sexo (Veja, 09/03/2005, “Contra
o desarmamento”, anexo 24, p. 239).
149

Em F9, o articulista apresenta – maquiavelicamente – o suicídio, o aborto, o


consumo de drogas etc. como direito já adquirido (“...querendo tirar algum direito do
cidadão”), o que, evidentemente, não é verdade, mas representa uma estratégia discursiva que
temos observado crescer nos últimos anos. Essa estratégia consiste basicamente em introduzir
no espaço interdiscursivo “fatos” artificialmente construídos, mitos modernos, histórias que
nunca aconteceram e que passam, então, a fazer parte da memória discursiva, sendo
“recuperados” e utilizados nos discursos.

F10 - Ele (o cardeal dom Cláudio Hummes) acredita que a religião pode fazer muito
mais, funcionando como um contrapeso para o capitalismo e a sociedade de
consumo. A maior parte dos discípulos de João Paulo II exibe a mesma presunção.
Eles imaginam que o papa de fato derrubou o comunismo. E que, a seguir, derrubaria
também os aspectos mais daninhos do capitalismo, que se manifestam sob a forma
de um degenerado materialismo. É um erro de avaliação da hierarquia católica. Em
primeiro lugar, quem derrubou o comunismo foi o capitalismo, e não o papa. Em
segundo lugar, o grande atributo do capitalismo é a capacidade de se corrigir
sozinho. Sem religião. Sem papa. Sem o cardeal de São Paulo (Veja, “As respostas
da Igreja”, 13/04/2005, anexo 25, p. 240).

Em nossas análises temos usado, exaustivamente, o termo simulacro para


designar, segundo o sistema global de restrições semânticas de uma determinada formação
discursiva, a tradução do Outro no Mesmo. Ora, esses simulacros podem assumir diversas
formas, já que se trata de um sistema global, portanto possuidor de diversos recursos. O
formato do simulacro em F10 é bastante curioso, por isso vamos analisá-lo detalhadamente.
Em primeiro lugar devemos destacar que a formação discursiva liberal assumida por Veja e
seus articulistas é formada por dois componentes: do lado das questões econômicas ela segue
a cartilha do capitalismo neoliberal; quanto às questões humanas, de cunho pessoal, ela
defende ampla liberdade focalizada no indivíduo. Assim, o direito da mãe prevalece sobre o
direito do nascituro, o direito do casal de mesmo sexo sobre a instituição familiar clássica etc.
Ora, nossas pesquisas e reflexões a respeito da existência de dois componentes na constituição
de uma única formação discursiva mostram que esse fato produz, na relação entre diversas
FDs, situações peculiares. Assim, Veja e seus articulistas aprovam as teses liberais do
socialismo em questões humanas e rejeitam as teses do mesmo socialismo em questões
econômicas. Inversamente, aprovam as teses da Igreja e dos movimentos conservadores em
questões econômicas e rejeitam as teses desses mesmos grupos em questões pessoais. De fato,
150

em nenhum momento em nossas extensas pesquisas através do mass media nacional e


internacional, encontramos críticas oriundas do liberalismo às teses econômicas da Igreja.

Portanto, uma vez que Mainardi e a revista Veja são contra o comunismo (pelo
viés econômico) e contra a Igreja (pelo viés moral), como conciliar o fato de que o papa
ajudou a derrubar o comunismo, já que ambos, cada um por um viés específico, são
rejeitados? Como aplaudir a queda do muro de Berlin sem ao mesmo tempo tecer elogios a
João Paulo II? A resposta é: negando a participação e importância do papa nesse fato
histórico, negação esta que permite a Mainardi e a Veja a preservação de sua identidade
discursiva.

Após termos efetuado a análise de fragmentos de artigos de Diogo Mainardi,


vamos nos deter em um de seus escritos em que os temas do liberalismo foram novamente
defendidos, ao mesmo tempo em que o papa foi atacado. Estamos nos referindo ao artigo “A
revolução geriátrica”, publicado na edição da revista Veja de 27/04/2005. Aqui também
apresentaremos inicialmente o texto completo, para que o leitor possa apreender a construção
retórico-semântica de Mainardi na sua totalidade, sem as influências e interrupções realizadas
pelo nosso estudo, para só então dividirmos e analisarmos o artigo e mostrarmos algumas
novas perspectivas de leitura e entendimento.

"A fé verdadeira, segundo Joseph Ratzinger, exige maturidade. É para adultos. É


para gente grande. Não para a rapaziada, que sofre de 'fraqueza mental'“.
O melhor de todos foi eleito – Joseph Ratzinger. Sua maior qualidade é o profundo
menosprezo que ele tem pelos jovens. Um bom exemplo do menosprezo
ratzingeriano foi dado na homilia que antecedeu a eleição papal, na última terça-
feira, quando ele ridicularizou a ala reformista da Igreja Católica comparando-a a um
menor de idade. A fé verdadeira, segundo Ratzinger, exige maturidade. É para
adultos. É para gente grande. Não para a rapaziada, que sofre de "fraqueza mental",
sendo permanentemente "jogada pelas ondas e atirada de um lado para o outro por
qualquer vento de doutrina".
Ratzinger tem razão. A grande ameaça à civilização ocidental é a infantilização da
sociedade moderna. Na homilia da última terça-feira, ele afirmou que a Igreja
Católica pode oferecer uma única resposta contra a barbárie infantilizadora: o
fundamentalismo religioso. O papado de Ratzinger não tentará estabelecer um
diálogo com a modernidade. Não aceitará o debate sobre o divórcio, a contracepção,
o aborto, a eutanásia. Não mudará os dogmas da Igreja para adaptá-la à realidade dos
dias de hoje. Pelo contrário. Ratzinger defende a atemporalidade da fé. Leonardo
Boff declarou que, a partir de agora, "a Igreja terá mais dificuldade para ser
reconhecida, especialmente pelos jovens". É verdade. A questão é que Ratzinger está
se lixando para o reconhecimento dos jovens. Aliás, está se lixando também para o
reconhecimento de Leonardo Boff. Ratzinger prefere assistir ao esvaziamento da
Igreja a ceder ao catolicismo auto-indulgente praticado por aí. Sua mensagem é
clara, e pode ser facilmente compreendida por qualquer menor de idade
imbecilizado: o papa não irá correr atrás dos fiéis. Os fiéis é que deverão correr atrás
dele, se não quiserem arder no fogo do inferno.
151

O menosprezo de Ratzinger pelos jovens é antigo. Seus biógrafos atestam que, no


Concílio Vaticano II, ele era considerado um teólogo reformista, mas mudou de idéia
depois de testemunhar o vandalismo dos estudantes em 1968. Duas décadas mais
tarde, ele promoveu uma célebre cruzada contra a música "rock", por seu poder de
"abater as barreiras da personalidade, e livrar o homem do peso da consciência".
Nesse aspecto, Ratzinger é o exato oposto de João Paulo II. Para atrair os jovens,
João Paulo II se cercou de estrelas da música popular e transformou as missas
campais em grandes espetáculos profanos. Ratzinger não fará nada disso. Para ele, "a
liturgia não é um espetáculo, não vive de surpresas simpáticas, cativantes, e sim de
repetições solenes". Numa sociedade cuja maior preocupação é entreter e seduzir os
jovens, Ratzinger tem a ousadia de lhes oferecer apenas seu menosprezo e seu
sentimento de superioridade. A meninada é conformista, acomodada, titubeante. A
revolução geriátrica de Ratzinger pretende enfrentá-la com o rigor intelectual, a
insubmissão e o absolutismo.
Dá até uma certa pena de não ser católico.

"A fé verdadeira, segundo Joseph Ratzinger, exige maturidade. É para adultos. É


para gente grande. Não para a rapaziada, que sofre de 'fraqueza mental'".

E1 - O melhor de todos foi eleito – Joseph Ratzinger.

Em E1 temos o uso da ironia, que será o tom dominante nesse artigo. É


interessante observar que, dito por um outro enunciador – um católico conservador, por
exemplo – esse enunciado não seria de modo algum irônico, já que este sujeito ocuparia uma
outra posição. É o posicionamento do enunciador Mainardi que permite inferir o efeito de
sentido de ironia.

E2 - Sua maior qualidade é o profundo menosprezo que ele tem pelos jovens.
E3 - Um bom exemplo do menosprezo ratzingeriano foi dado na homilia que
antecedeu a eleição papal, na última terça-feira, quando ele ridicularizou a ala
reformista da Igreja Católica comparando-a a um menor de idade. A fé verdadeira,
segundo Ratzinger, exige maturidade. É para adultos. É para gente grande. Não para
a rapaziada, que sofre de "fraqueza mental", sendo permanentemente "jogada pelas
ondas e atirada de um lado para o outro por qualquer vento de doutrina". Ratzinger
tem razão. A grande ameaça à civilização ocidental é a infantilização da sociedade
moderna.

Em E2 e E3 continua a ironia em “sua maior qualidade...”, porém acrescida de


uma inferência na qual é extrapolado absurdamente o conteúdo do discurso do papa, ao lhe
atribuir “... profundo menosprezo pelos jovens”. Os supostos enunciados do papa aos quais
Mainardi se refere seriam os reproduzidos abaixo (o discurso completo da missa Pro Eligendo
Pontífice está no anexo 26, p. 241):

Detenhamo-nos apenas sobre dois pontos. O primeiro é o caminho rumo à


"maturidade de Cristo"; assim diz, simplificando um pouco, o texto italiano. Mais
precisamente deveríamos, segundo o texto grego, falar da "medida da plenitude de
152

Cristo", que somos chamados a alcançar para sermos realmente adultos na fé. Não
deveríamos permanecer crianças na fé, em estado de menoridade. Em que consiste
ser crianças na Fé? Responde São Paulo: significa ser "batidos pelas ondas e levados
por qualquer vento da doutrina..." (Ef 4, 14). Uma descrição muito atual!
Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decênios, quantas correntes
ideológicas, quantas modas do pensamento... A pequena barca do pensamento de
muitos cristãos foi muitas vezes agitada por estas ondas lançada de um extremo ao
outro: do marxismo ao liberalismo, até à libertinagem, ao coletivismo radical; do
ateísmo a um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo e por aí
adiante. Cada dia surgem novas seitas e realiza-se quanto diz São Paulo acerca do
engano dos homens, da astúcia que tende a levar ao erro (cf. Ef 4, 14). Ter uma fé
clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como
fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar "aqui e além por
qualquer vento de doutrina", aparece como a única atitude à altura dos tempos
hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece
como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas
vontades.
Ao contrário, nós, temos outra medida: o Filho de Deus, o verdadeiro homem. É ele
a medida do verdadeiro humanismo. "Adulta" não é uma fé que segue as ondas da
moda e a última novidade; adulta e madura é uma fé profundamente radicada na
amizade com Cristo. É esta amizade que nos abre a tudo o que é bom e nos dá o
critério para discernir entre verdadeiro e falso, entre engano e verdade. Devemos
amadurecer esta fé, para esta fé devemos guiar o rebanho de Cristo. E é esta fé só
esta fé que gera unidade e se realiza na caridade. São Paulo oferece-nos a este
propósito em contraste com as contínuas peripécias dos que são como crianças
batidas pelas ondas uma bela palavra: praticar a verdade na caridade, como fórmula
fundamental da existência cristã. Em Cristo, coincidem verdade e caridade. Na
medida em que nos aproximamos de Cristo, também na nossa vida, verdade e
caridade fundem-se. A caridade sem verdade seria cega; a verdade sem caridade
seria como "um címbalo que retine" (1 Cor 13, 1).

Como acabamos de ver, não há nada no pronunciamento do então futuro papa


Bento XVI que pudesse autorizar as inferências do articulista. Além disso, ao atribuir a
outrem declarações que nunca fez, o articulista extrapola o conceito de simulacro enquanto
processo de tradução do Outro no Mesmo, pois esse termo implica a distorção que guarda
relação com o objeto copiado. No simulacro pode-se aumentar, reduzir, distorcer, porém
nunca criar, inventar, mentir. Logo, não estamos mais em um processo de tradução do Outro
no Mesmo e sim diante de um processo de hipertrofia do ethos, através do qual Mainardi e
Veja procuram se projetar no mercado editorial. Mau jornalismo.

E4 - Na homilia da última terça-feira, ele afirmou que a Igreja Católica pode


oferecer uma única resposta contra a barbárie infantilizadora: o fundamentalismo
religioso.
E5 - O papado de Ratzinger não tentará estabelecer um diálogo com a modernidade.
Não aceitará o debate sobre o divórcio, a contracepção, o aborto, a eutanásia. Não
mudará os dogmas da Igreja para adaptá-la à realidade dos dias de hoje. Pelo
contrário. Ratzinger defende a atemporalidade da fé.
153

Em E4 temos mais um simulacro: um enunciador liberal, em posição de


discurso-agente, traduz o posicionamento da Igreja como “fundamentalista”: “Se é o próprio
universo semântico do Outro que é rejeitado, a priori qualquer um de seus enunciados pode
ser questionado” (MAINGUENEAU, 1993, p. 123). Em E5 as coisas se tornam bem mais
interessantes, pois entra em cena um processo de tradução do Outro no Mesmo que consiste
simplesmente em propor a identidade entre o registro positivo da formação discursiva
conservadora e o registro negativo da formação discursiva liberal, sem a necessidade de
qualquer outra operação, sem o processo de criação de simulacros, pois: A Igreja realmente
não aceita o divórcio, a contracepção, o aborto, a eutanásia; ela não mudará seus dogmas115,
pois a fé é atemporal e – sim – o liberalismo defende todas essas coisas. Esta é exatamente a
mesma situação proposta por Maingueneau (2005, p. 108) quando considera que “Essa
identidade – entre os semas rejeitados pelo discurso humanista devoto e os semas
reivindicados pelo discurso jansenista – acaba significando que o discurso humanista devoto
rejeita como negativos os semas que o discurso jansenista considera precisamente como os
únicos legítimos”. De fato, nenhum católico conservador veria nos enunciados de D5
qualquer ofensa, pelo contrário, diria que realmente esta é a verdadeira posição da Igreja.

E5 - Leonardo Boff declarou que, a partir de agora, "a Igreja terá mais dificuldade
para ser reconhecida, especialmente pelos jovens". É verdade.

Em E5 vemos como Leonardo Boff e Diogo Mainardi se filiam à mesma


formação discursiva liberal – em relação à moralidade, claro, jamais em relação ao
posicionamento econômico, já que Leonardo Boff é socialista – sendo aquele é citado sem
simulacros.

E6 - A questão é que Ratzinger está se lixando para o reconhecimento dos jovens.


Aliás, está se lixando também para o reconhecimento de Leonardo Boff. Ratzinger
prefere assistir ao esvaziamento da Igreja a ceder ao catolicismo auto-indulgente
praticado por aí. Sua mensagem é clara, e pode ser facilmente compreendida por
qualquer menor de idade imbecilizado: o papa não irá correr atrás dos fiéis. Os fiéis
é que deverão correr atrás dele, se não quiserem arder no fogo do inferno.

Temos em E6, novamente, Mainardi assumindo uma posição enunciativa que


não lhe compete: já que ele é inimigo da Igreja, por que se preocupar com o esvaziamento

115
Os dogmas fazem parte do chamado “depósito da fé”: aquilo que foi confiado pelo próprio Cristo à Igreja e
que, portanto, não pode ser mudado, já que não tem sua origem em reflexões humanas, mas pertence ao conjunto
da revelação divina. O dogma, por definição, é imutável. O papa, como chefe da Igreja, é o guardião e não o
dono desse depósito, sendo assim, mesmo que desejasse, não poderia autorizar um aborto ou qualquer outra
coisa contrária a tais princípios.
154

desta? Ou teríamos aqui uma percepção de que um posicionamento conservador favoreceria a


Igreja?

E7 - O menosprezo de Ratzinger pelos jovens é antigo. Seus biógrafos atestam que,


no Concílio Vaticano II, ele era considerado um teólogo reformista, mas mudou de
idéia depois de testemunhar o vandalismo dos estudantes em 1968. Duas décadas
mais tarde, ele promoveu uma célebre cruzada contra a música "rock", por seu poder
de "abater as barreiras da personalidade, e livrar o homem do peso da consciência".

Em E7 o articulista recupera a inverdade criada por ele mesmo, logo no início


do artigo. Esse processo – interdiscursivo – consiste, aqui, em recuperar a falsa tese do
desprezo dos jovens pelo papa e colocá-la novamente em circulação, reforçando-a. Essa
estratégia é muito usada em propaganda, aqui entendida não apenas como comerciais de TV e
jornais, mas especialmente como o significado atribuído ao termo na língua inglesa:
“propaganda: information, especially false information, that a government or organization
spreads in order to influence people’s opinions and beliefs” = informação, especialmente
informação falsa, que um governo ou organização espalha para influenciar as opiniões e
crenças das pessoas (MACMILLAN, 2002, p. 725).

E8 - Nesse aspecto, Ratzinger é o exato oposto de João Paulo II. Para atrair os
jovens, João Paulo II se cercou de estrelas da música popular e transformou as
missas campais em grandes espetáculos profanos.

Aqui o articulista aparentemente assume uma – obviamente falsa – posição


pró-papa João Paulo II, pelo menos no que se refere ao relacionamento deste com a juventude.
Esta inverdade pode ser demonstrada através do artigo “Meu cachorro e o papa”, escrito no
ano 2000:

Em minha última coluna, citei, de passagem, o recente encontro do papa com 2


milhões de jovens em Roma. Foi impressionante. Tão impressionante que todos os
políticos italianos se acotovelaram na ânsia de beijar-lhe o anel. Os únicos que se
atreveram a contrariá-lo foram dois ou três pensadores católicos que se assustaram
com o messianismo papal. Eles alegaram que esse tipo de religiosidade massificada
tem mais a ver com o protestantismo dos telepregadores americanos do que com o
catolicismo romano, que sempre privilegiou a interioridade da fé. Qual é a
diferença entre um casamento coletivo do reverendo Moon, por exemplo, e a
confissão coletiva realizada durante o encontro do papa com os jovens? (Veja,
06/09/2000, “Meu cachorro e o papa”, gripo nosso).

E9 - Ratzinger não fará nada disso. Para ele, "a liturgia não é um espetáculo, não
vive de surpresas simpáticas, cativantes, e sim de repetições solenes". Numa
sociedade cuja maior preocupação é entreter e seduzir os jovens, Ratzinger tem a
ousadia de lhes oferecer apenas seu menosprezo e seu sentimento de superioridade.
A meninada é conformista, acomodada, titubeante. A revolução geriátrica de
155

Ratzinger pretende enfrentá-la com o rigor intelectual, a insubmissão e o


absolutismo.

De E9 vamos extrair um enunciado que mostra a construção de simulacros pela


formação discursiva da qual o articulista faz parte: “Numa sociedade cuja maior preocupação
é entreter e seduzir os jovens, Ratzinger tem a ousadia de lhes oferecer apenas seu
menosprezo e seu sentimento de superioridade”. Esta é uma situação similar àquela em que
Maingueneau comenta as palavras que Pascal coloca na boca de um enunciador humanista
devoto:

Quando, nas Provinciais 5 a 10, Pascal coloca em cena um enunciador humanista


devoto defensor da casuística, ele não poderia colocar em sua boca enunciados
humanistas devotos verdadeiros, mas somente enunciados que pertencessem ao
registro negativo da competência jansenista (2005, p. 57).
Se a pergunta é em quais condições um discurso pode “dar a palavra” a seu Outro,
deve-se responder que uma posição enunciativa não pode sair de seu fechamento
semântico, que ela não pode emprestar-lhe suas próprias palavras, manifestando-se,
assim, a irredutível descontinuidade que funda o espaço discursivo. O que faz falta
ao enunciador quando ele é confrontado com seu Outro é a gratuidade. Ao contrário
dos produtores de pastiches e falseadores, que escolhem aqueles que imitam com
motivações ideológicas relativamente “distanciadas”, ele é condenado a produzir
simulacros desse Outro, e simulacros que são apenas seu avesso (MAINGUENEAU,
2005, p. 57).

E10 - Dá até uma certa pena de não ser católico.

Em E10 vemos que o artigo, que foi iniciado com uma declaração irônica, é
encerrado com outra, procurando, assim, manter o tom que se tornou uma espécie de “marca
registrada” de Diogo Mainardi, de seu ethos que, através da instauração de uma cenografia
dominada pela derrisão, se tornou um dos grandes atrativos do articulista mais lido de Veja.
Se o que ele – ou a revista Veja – comunicam tem algo de verdadeiro parece ser uma questão
menor, questão essa que deveria, talvez, ficar fora do âmbito da análise do discurso. Não
acreditamos nessa tese. Pensamos que a Análise do Discurso deve, sim, assumir um
posicionamento investigativo, crítico. Esse parece ser também o posicionamento de
Charaudeau (2006, p. 48):

É nosso direito indagar sobre os efeitos interpretativos produzidos por algumas


manchetes de jornais (ou mesmo sobre determinada maneira de comentar a
atualidade) quando estas, em vez de inclinar-se para saberes de conhecimento (“O
presidente da comissão entrega o relatório ao primeiro-ministro”), põem em cena
saberes de crença que apelam para a reação avaliativa do leitor (“o presidente da
comissão entrega uma bomba ao primeiro-ministro”). Assim, como se vê, são as
palavras que apontam para as representações. No debate político a respeito de
156

trabalhadores, e segundo o contexto em que se insere, o emprego dos qualificativos


“estrangeiros”, “imigrantes”, “clandestinos”, “pardos”, revela as crenças em que se
baseia o pensamento em foco.

Quatro meses após a publicação desse artigo, no qual Diogo Mainardi afirmava
o distanciamento entre o papa Bento XVI e a juventude, aconteceu o encerramento da
“Jornada Mundial da Juventude” com a presença de mais de um milhão de pessoas,
especialmente jovens.

Figura 52 – Mais de um milhão de pessoas na missa de encerramento da Jornada Mundial


da Juventude 2005. Disponível em: <http://www.cancaonova.com/portal/canais/especial/jmj
2005/info15.php>. Acesso em: 22 jul. 2005.

Colocamos essa imagem não como defesa de um posicionamento pro-life, mas


como confirmação de nossas análises críticas à falta de embasamento dos escritos de Diogo
Mainardi referentes ao tema “aborto” 116, ao jornalismo de má qualidade praticado pela revista
Veja, qualquer que seja o tema abordado.

116
É essencial esclarecer que procuramos denunciar, nos capítulos quinto, sexto e sétimo, o mau jornalismo
praticado por Veja. Como o tema aqui tratado é o aborto, é natural que essa crítica ganhe contornos (termo
intencionalmente empregado para rejeitar qualquer conotação constitutiva) de um posicionamento pro-life. Se
estivéssemos analisando outros temas abordados pela mesma revista e pelos mesmos articulistas, mutatis
mutandis, nossas considerações certamente seriam as mesmas.
157

Para concluirmos nossa análise dos escritos dos articulistas André Petry e
Diogo Mainardi, gostaríamos de chamar a atenção para a maneira pela qual esses articulistas
se enquadram dentro da mesma formação discursiva liberal que caracteriza a revista Veja, que
defende a liberdade individual de maneira ampla – aborto, eutanásia, homossexualismo etc.
Como os movimentos que se opõem a esses posicionamentos, como o movimento pró-vida,
fundam-se nos princípios do catolicismo, a Igreja Católica é radicalmente rejeitada. Essa
rejeição se dá através de duas funções, conforme a proposta de Maingueneau no quarto
capítulo de “Gênese dos discursos” intitulado “A polêmica como interincompreensão”: (1) os
semas aborto, eutanásia, homossexualismo etc. são traduzidos diretamente, ou seja: é proposta
a identidade entre o conjunto de semas rejeitados pela Igreja e o conjunto de semas
reivindicados pelo liberalismo e, portanto, aqui não haveria simulacros117:

SEMAS SEMAS
REIVINDICADOS REJEITADOS
PELOS PELOS
LIBERAIS CONSERVADORES
ABORTO ABORTO
EUTANÁSIA EUTANÁSIA
HOMOSSEXUALISMO HOMOSSEXUALISMO
Tabela 6 – Semas ao mesmo tempo aceitos pelos Liberais e rejeitados pelos
Conservadores (movimento pró-aborto e pró-vida).

(2) Outros semas são traduzidos a partir de um duplo processo, que chamamos
de criação de simulacros. Por exemplo, o oposto de liberal é conservador (primeira tradução),
porém os liberais, para que possam integrar o seu Outro (os conservadores) no Mesmo, fazem
uma segunda operação de tradução e conservador torna-se anacrônico, religioso torna-se
moralista etc.:

Cada discurso repousa, de fato, sobre um conjunto de semas repartidos em dois


registros: de um lado os semas “positivos”, reivindicados; de outro, os semas
“negativos”, rejeitados. A cada posição discursiva se associa um dispositivo que a
faz interpretar os enunciados de seu Outro traduzindo-os nas categorias de registro
negativo de seu próprio sistema (MAINGUENEAU, 2005, p. 105).

117
Nossas observações e reflexões sinalizam que, partindo do princípio da não transparência da linguagem,
poderíamos identificar simulacros a partir de efeitos de sentido originários da construção de enunciados usando
os mesmos semas em diferentes posições enunciativas.
158

O MOVIMENTO PRÓ-ABORTO O MOVIMENTO PRÓ-VIDA


M1+ M1- M2+ M2-
LIBERAL ANACRÔNICO CONSERVADOR LAXISTA
HUMANISTA MORALISTA RELIGIOSO ATEU
FLEXÍVEL INFLEXÍVEL DOGMÁTICO RELATIVISTA
RACIONALISTA EMOCIONAL TRANSCENDENTAL MUNDANO
Tabela 7 – Distribuição dos semas originários da tradução do Outro no Mesmo entre o movimento
pró-aborto e o movimento pró-vida. Construção similar àquela citada por Maingueneau: “Consistance vs
Inconsistance – Plasticité vs Dureté” (MAINGUENEAU, 1984, p. 69).

Entretanto, durante o desenvolvimento de nossa pesquisa, pudemos observar


que o articulista Diogo Mainardi também acrescenta ao simulacro um caráter derrisório (aqui
apresentados na coluna M1--). Assim, o já simulacro anacrônico é traduzido por geriátrico,
moralista por fundamentalista, inflexível por absolutista e emocional por irracional (os
quatro semas destacados foram retirados dos textos de Mainardi expostos neste capítulo).

O MOVIMENTO PRÓ-ABORTO O MOVIMENTO PRÓ-VIDA


M1+ M1-- M1- M2+ M2-
LIBERAL GERIÁTRICO ANACRÔNICO CONSERVADOR LAXISTA
HUMANISTA FUNDAMENTALISTA MORALISTA RELIGIOSO ATEU
FLEXÍVEL ABSOLUTISTA INFLEXÍVEL DOGMÁTICO RELATIVISTA
RACIONALISTA IRRACIONAL EMOCIONAL TRANSCENDENTAL MUNDANO
Tabela 8 – Distribuição dos semas originários da tradução do Outro no Mesmo entre o movimento
pró-aborto e o movimento pró-vida acrescida da função de derrisão usada por Diogo Mainardi.

Pelo que acabamos de expor é fácil perceber que a diferença entre os dois
articulistas é apenas no ethos, sendo o posicionamento liberal pró-aborto defendido
igualmente por ambos, em conformidade com o discurso da organização na qual atuam: a
revista Veja118.

118
O posicionamento de grandes órgãos da imprensa nacional e internacional – e a maneira pela qual esses
posicionamentos influenciam suas publicações e a própria situação social e política mundial – é tema de nosso
particular interesse e seria nosso provável tema em uma tese de doutorado.
159

7 O POSICIONAMENTO PRÓ-ABORTO NAS REPORTAGENS DE VEJA

Abordamos no capítulo quinto a matéria de capa da edição de 17 de setembro


de 1997 da revista Veja intitulada “NÓS FIZEMOS ABORTO – O depoimento das mulheres
e a polêmica no Brasil” e no capítulo sexto os escritos dos articulistas André Petry e Diogo
Mainardi, publicados em diversas edições dessa mesma revista. Vamos, neste capítulo,
abordar aquelas que seriam as matérias e reportagens comuns119 da revista Veja sobre o tema
“aborto”. Para tanto selecionamos uma reportagem publicada na edição de 21 de janeiro de
2004 com o título “O barco do aborto – Ex-militante do Greenpeace monta uma embarcação
que ajuda as mulheres a abortar em alto-mar”, realizada pela repórter Juliana Linhares. Vamos
reproduzi-la na íntegra, para que o leitor possa apreendê-la em seu conjunto, e depois faremos
a sua análise, separando os enunciados.

Veja - 21-01-2004.

O barco do aborto – Ex-militante do Greenpeace monta uma


embarcação que ajuda as mulheres a abortar
em alto-mar

Juliana Linhares

Talvez apenas a eutanásia e a pena de morte produzam debates tão apaixonados


quanto os travados entre os defensores e os inimigos do aborto. O mais recente e
ousado movimento nessa guerra partiu dos defensores do aborto. Trata-se de um
barco alugado por uma organização não-governamental de origem holandesa,
devidamente equipado para funcionar como clínica ginecológica, e onde se realizam
abortos. A embarcação só visita os países onde o aborto é proibido, e burla a
legislação local com a ajuda da legislação marítima. Segundo normas internacionais
de navegação, as regras vigentes num barco atracado num porto são as mesmas do
país onde ele está ancorado. Mas a 12 milhas marítimas da costa desse país, algo
como 22 quilômetros, estão as águas internacionais, onde as normas são diferentes.
A essa distância da costa, vale a legislação do país de origem do barco – nesse caso,
a da Holanda, onde o aborto é permitido. O barco funciona assim: quando chega a
um porto, presta atendimento ginecológico convencional às mulheres que o
procuram, quase todas oriundas das camadas de renda mais baixas. Depois,

119
Filiamo-nos aqui aos conceitos de hard news e soft news – notícias de grande impacto e notícias de menor
impacto – conforme tratados por ROGERS (1977). Destacamos que o impacto da notícia não depende somente
do tema tratado, mas também da abordagem. Dessa forma a reportagem “NÓS FIZEMOS ABORTO – O
depoimento das mulheres e a polêmica no Brasil” é hard news enquanto a deste capítulo é soft news, embora
tratem do mesmo tema.
160

catalogam-se as que desejam fazer aborto e é marcado um retorno. O barco então


desatraca com as mulheres a bordo e ancora em águas internacionais. Aí, são feitos
os abortos.

Figura 53 – O barco da ONG Women on Waves.


Fonte: Revista Veja. Edição: 21 jan. 2004. Matéria: “O barco do aborto”.

Viajam no barco dez pessoas, tripulação formada por ginecologistas, enfermeiras,


psicólogas, seguranças e advogados. Pela ousadia envolvida na ação, muitas vezes
os advogados acabam trabalhando mais do que os ginecologistas. As autoridades
dos países escolhidos para receber o barco são avisadas com antecedência, mas a
divulgação pública do destino é feita pela imprensa na última hora, como forma de
evitar manifestações mais violentas. Nos dois países onde o barco do aborto já
esteve, houve manifestações inflamadas. Na Polônia, manifestantes antiaborto
pintaram o corpo com tinta vermelha, sugerindo que a equipe estaria banhada em
sangue. Ainda assim, foram feitos doze abortos. Na Irlanda, a manifestação foi mais
séria e nenhum aborto se consumou. "Enfrentamos enormes dificuldades para
aportar nos países. Daí, só termos conseguido estar em dois deles. Nossos
advogados, todos voluntários, têm de trabalhar duro para vencer a resistência dos
governos", afirma a ginecologista holandesa Rebecca Gomperts, que fundou a ONG
Women on Waves (Mulheres sobre as Ondas) e teve a idéia de montar o barco. O
estilo ousado de agir, Rebecca aprendeu no tempo em que militou no Greenpeace.
Como a entidade não tem tantos recursos, o barco não consegue fazer muitas
viagens. "Nossa ONG depende integralmente de doações, do trabalho voluntário e
da ajuda do governo holandês. Daí por que operamos de forma limitada", diz
Rebecca.
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, praticam-se no mundo 50
milhões de abortos todos os anos. Mais de 20 milhões deles são feitos em países
onde abortar é ilegal. No Brasil, que figura entre os 54 países onde o aborto é
proibido, estima-se que seja realizado 1,5 milhão de abortos ilegais por ano. Mais de
80.000 mulheres morrem todos os anos, e a maior parte dos óbitos ocorre nas nações
que criminalizam a prática. Existem várias técnicas abortivas. Uma das mais
praticadas é a da aspiração, feita por meio de um tubo ligado a um aparelho de
sucção colocado junto ao útero. No barco da ONG holandesa, a técnica utilizada é
um combinado das pílulas abortivas Cytotec (usadas no tratamento de úlceras) e
161

RU-486. Elas geram contrações nos músculos do útero, movimento que termina por
expelir o feto.
Por um lado, a iniciativa da Women on Waves impressiona, pois mostra a que ponto
pode chegar a paixão de um grupo de pessoas por uma causa. No caso, trata-se de
lutar para que as mulheres tenham o direito de decidir se vão ou não dar
prosseguimento a uma gravidez, sem interferência do Estado. Há, no entanto, outro
lado a considerar na ação da ONG da doutora Rebecca, que diz respeito à qualidade
do compromisso que ela estabelece com as mulheres que se propõe a amparar.
Quando o barco chega ao país onde o aborto é proibido, seus profissionais dão um
amparo emergencial às que pretendem abortar. Só que o barco desaparece dias
depois, e as mulheres voltam a depender exclusivamente do sistema de saúde local.
E se houver complicações posteriores? Em que condições essas mulheres serão
socorridas? A embarcação tem entre seus próximos destinos a África. Rebecca
Gomperts informa que o Brasil faz parte de seus planos. "Filhas e esposas de
pessoas ricas abortam em clínicas limpas e seguras, mas a maioria das mulheres
apela para métodos rudimentares. Minha luta é contra essa hipocrisia", diz a médica.

(1) “Talvez apenas a eutanásia e a pena de morte produzam debates tão apaixonados quanto
os travados entre os defensores e os inimigos do aborto”.

Dois comentários: (a) o enunciado comporta uma informação errônea, pois na


verdade os movimentos pro-choice e pro-life estão ativamente envolvidos nos três debates,
sendo o front do aborto o local onde a luta é mais acirrada; (b) embora confuso na informação
factual – que, como já colocamos no início do capítulo quinto, não é uma das qualidades de
Veja – o enunciado, ao se expressar em termos de “... defensores e inimigos do aborto”, inicia
um processo de instauração de uma cenografia favorável ao movimento pró-aborto, de acordo
com o sistema de restrições semânticas do posicionamento pro-choice assumido pela revista.
Isso é feito através da associação da palavra “inimigo” – que possui conotação altamente
negativa – ao movimento pro-life; ao mesmo tempo a palavra “defensor” – com conotação
altamente positiva – é associada ao movimento pro-choice. Veremos que esse processo irá
continuar ao longo do desenvolvimento da matéria: “A cenografia não é, pois, um quadro, um
ambiente, como se o discurso ocorresse em um espaço já construído e independente do
discurso, mas aquilo que a enunciação instaura progressivamente como seu próprio
dispositivo de fala” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 68).

(2) “O mais recente e ousado movimento nessa guerra partiu dos defensores do aborto”.

Interessantíssimo o uso direto do signo “aborto”, já que o sistema de restrições


do movimento pro-choice, que defende o aborto, rejeita o uso dessa palavra, cujos efeitos de
sentido são extremamente negativos. Cremos que, ao se deslocar de um posicionamento
argumentativo de defesa da prática do aborto para sua real e efetiva aplicação na história, o
162

discurso perde – pelo menos parcialmente – sua autonomia. Nossas reflexões, embasadas nas
proposições que Foucault faz da relação entre história e discurso, nos indicam que o sistema
de restrições de uma formação discursiva não pode produzir simulacros, não pode traduzir o
Outro no Mesmo, para além de certos limites; limites esses impostos pela história:

Em outras palavras, a descrição arqueológica dos discursos se desdobra na dimensão


de uma história geral; ela procura descobrir todo o domínio das instituições, dos
processos econômicos, das relações sociais nas quais pode articular-se uma
formação discursiva; ela tenta mostrar como a autonomia do discurso e sua
especificidade não lhe dão, por isso, um status de pura idealidade e de total
independência histórica; o que ela quer revelar é o nível singular em que a história
pode dar lugar a tipos definidos de discurso que têm, eles próprios, seu tipo de
historicidade e que estão relacionados com todo um conjunto de historicidades
diversas (FOUCAULT, 1987, p.189, grifo nosso).

Esse imbricamento entre história e discurso – e a subseqüente limitação dos


simulacros que uma formação discursiva produz – está claramente exposto na parte final do
enunciado:

(3) “Trata-se de um barco alugado por uma organização não-governamental de origem


holandesa, devidamente equipado para funcionar como clínica ginecológica, e onde se
realizam abortos.”

Aqui não é possível a utilização dos usuais simulacros com os quais o


movimento pro-choice traduz a palavra “aborto”; não é possível dizer:

Trata-se de um barco alugado por uma organização não-governamental de origem holandesa,


devidamente equipado para funcionar como clínica ginecológica, e onde se realizam:

(a) escolhas (choice);

(b) liberdade de escolha (free choice);

(c) direitos reprodutivos (Reproductive Rights);

(d) cultura da liberdade (culture of freedom);

(e) fazer escolhas (make decisions);

(f) prevenir gravidez não pretendida (prevent unintended pregnancy);


163

(g) saúde reprodutiva (reproductive health)120.

Gostaríamos de estender um pouco mais nossas reflexões sobre a relação entre


história e discurso. Maingueneau, na introdução do capítulo sétimo (“Um esquema de
correspondência”) de “Gênese dos discursos” afirma que “O que temos a dizer, nesse
domínio, só pode ser algo modesto [...] não dispomos de uma teoria de conjunto sobre a
inscrição sócio-histórica dos discursos” (2005, p.169). Entretanto, buscando manter-se fiel aos
seus postulados, considera que “é antes de tudo pelo sistema de restrições semânticas que
deve passar a inscrição das práticas discursivas em suas conjunturas históricas” (2005, p.
170). No desenvolvimento dessa reflexão ele dá dois exemplos bastante pertinentes, ao
relacionar o discurso jansenista a uma ideologia fundamentada numa estrutura social burguesa
e o humanismo devoto a uma estrutura política feudal. Seguindo essa linha de raciocínio,
temos procurado relacionar o confronto pro-choice/pro-life a uma conjuntura histórica muita
mais ampla, onde um processo crescente de secularização, que tem seu início marcado
particularmente após a revolução francesa, confronta o discurso de base religiosa católica,
inegavelmente fundador da sociedade ocidental, por isso mesmo denominada “sociedade
cristã ocidental”. Dito isto, é necessário clarificar que rejeitamos qualquer proposta
reducionista, que vise apreender todos esses conflitos em uma única perspectiva, antes,
consideramos nossa percepção do processo de secularização como sendo apenas um passo na
construção de um percurso.

(4) “A embarcação só visita os países onde o aborto é proibido, e burla a legislação local com
a ajuda da legislação marítima. Segundo normas internacionais de navegação, as regras
vigentes num barco atracado num porto são as mesmas do país onde ele está ancorado. Mas a
12 milhas marítimas da costa desse país, algo como 22 quilômetros, estão as águas
internacionais, onde as normas são diferentes. A essa distância da costa, vale a legislação do
país de origem do barco – nesse caso, a da Holanda, onde o aborto é permitido”.

À primeira vista temos uma descrição de uma série de fatos, necessários apenas
para que o leitor possa entender a matéria. Entretanto, uma leitura mais atenta mostra fatos
interessantes. Primeiro, o confronto com as leis que proíbem o aborto, confronto este que visa,
claramente, a tornar a ação do grupo um libelo a favor do aborto: “A embarcação só visita os

120
Todos os termos em inglês são amplamente usados no mundo todo e foram recolhidos diretamente nos sites
dos maiores grupos pro-choice, podendo ser considerados como representativos dessa formação discursiva.
164

países onde o aborto é proibido”. Em segundo lugar, a procedência do barco – a Holanda –


onde não só o aborto é legalizado, mas também outras práticas pro-choice, entre elas a
eutanásia121. Esse segundo ponto reforça aquilo que temos afirmado desde o início deste
trabalho, a saber: o confronto pro-choice/pro-life é internacional e não se reduz ao tema
“aborto”. Destacaríamos também um terceiro ponto: no início do artigo (1) foi usada a
expressão “debates tão apaixonados”. Ora, o que se vê aqui está muito além de qualquer
debate; trata-se de ação, de confronto, conforme pode ser visto na figura 54 (p. 165). De fato,
temos acompanhado o enfrentamento liberal/conservador há vários anos e visto que nos
diversos fronts (aborto, eutanásia, pedofilia etc.) o confronto tende a se acirrar, resvalando
cada vez mais para diversas formas de violência.

(5) “O barco funciona assim: quando chega a um porto, presta atendimento ginecológico
convencional às mulheres que o procuram, quase todas oriundas das camadas de renda mais
baixas. Depois, catalogam-se as que desejam fazer aborto e é marcado um retorno. O barco
então desatraca com as mulheres a bordo e ancora em águas internacionais. Aí, são feitos os
abortos”.

O barco não funciona assim. A reportagem de Veja falha tanto na descrição


como na interpretação dos fatos. Vejamos: após chegar a um porto, a equipe do barco procura
promover workshops onde, entre outras coisas, são ensinadas técnicas abortivas,
especialmente do tipo “faça você mesma” usando Mifepristone (RU-486) e Misoprostol
(Cytotec); ao mesmo tempo grupos simpatizantes promovem passeatas, manifestações etc.
Entre o conjunto das ações do grupo, a realização dos abortos em alto mar possui um efeito
intencionalmente midiático: consegue realmente chamar a atenção dos meios de comunicação
social. De fato, alguns abortos realizados não “resolvem o problema”, são muito mais um
libelo pro-choice. Aliás, toda as ações do grupo visam a atrair a atenção da mídia para a causa
do aborto. O próprio grupo assim define sua ação: “As viagens que efetuamos por mar, rumo
a países onde o aborto é ilegal, são a nossa ação mais popular. No entanto, também realizamos
projetos artísticos, ações legais, workshops para médicos e ajudamos mulheres durante o
processo do seu aborto” (Disponível em < http://www.womenonwaves.org/set-1020.38-
pt.html>, acesso em 15/07/2007).
As imagens mostradas nas figuras 54, 55, 56 e 57 são de manifestações que o
grupo promoveu durante sua viagem à Argentina em 08/12/2004 (figura 54), à Irlanda, em
11/06/2001 (figura 55) e ao território Português em 2004 (figuras 56 e 57):

121
A eutanásia já era praticada na Holanda antes de sua legalização, em 10 de abril de 2001 (lei que entrou em
vigor em abril de 2002).
165

FIGURAS 54 e 55 – Visitas do Women on Waves à Argentina e à Irlanda.


Disponível em: < http://www.womenonwaves.org/set-1020.38-pt.html>. Acesso em: 15 ago. 2007.

FIGURAS 56 e 57 – Women on Waves em Portugal. Disponível em: < http://www.womenonwaves.org/article-


1020.1731-pt.html>. Acesso em: 28 jul. 2007.

(6) “Viajam no barco dez pessoas, tripulação formada por ginecologistas, enfermeiras,
psicólogas, seguranças e advogados”.
Temos aqui um lugar comum muito usado na construção de uma cenografia: a
citação de profissionais e técnicos, especialmente de profissionais que possuem alta
conceituação entre o público, como médicos, psicólogos e advogados. Essas citações se
enquadram no processo de construção de uma identidade – através da dupla cenografia/ethos
– favoráveis ao grupo Women on Waves. Temos observado que esse processo tem assumido
cada vez mais o espaço que deveria pertencer ao debate das idéias – quem não se lembra dos
insuportavelmente vazios debates televisivos dos candidatos à presidência do Brasil em
2006122? Temos aqui um paradoxo: depois de haver demonstrado que a antiga retórica grega

122
Pensando em alguém que porventura possa vir a ler este trabalho no futuro, diremos que os debates foram
vazios de idéias, com os candidatos tacitamente evitando toda e qualquer polêmica; procurando apenas passar
uma imagem cool, criar um clima de bom-mocismo.
166

percebia – incorretamente – o ethos apenas como uma forma a ser acrescentada a um


conteúdo, corre-se o risco de descobrir – pelo menos em alguns casos – que a forma está
imbricada, é pregnante de... nada. E não votamos mais em candidatos, mas sim em ethé123 –
sem qualquer alusão à – ou ilusão de – ética.

(7) “Pela ousadia envolvida na ação, muitas vezes os advogados acabam trabalhando mais do
que os ginecologistas. As autoridades dos países escolhidos para receber o barco são avisadas
com antecedência, mas a divulgação pública do destino é feita pela imprensa na última hora,
como forma de evitar manifestações mais violentas. Nos dois países onde o barco do aborto já
esteve, houve manifestações inflamadas. Na Polônia, manifestantes antiaborto pintaram o
corpo com tinta vermelha, sugerindo que a equipe estaria banhada em sangue. Ainda assim,
foram feitos doze abortos. Na Irlanda, a manifestação foi mais séria e nenhum aborto se
consumou”.

O termo antiaborto, usado com certa freqüência pelo movimento pro-choice


para qualificar seu adversário – o movimento pro-life – termina por mostrar seu verdadeiro
posicionamento, já que o oposto de antiaborto é pró-aborto. Quanto ao aviso da chegada do
barco e as subseqüentes manifestações, é óbvio que a ONG Women on Waves tem todo o
interesse nesse acontecimento, pois sua atuação possui objetivos midiáticos.

(8) "Enfrentamos enormes dificuldades para aportar nos países. Daí, só termos conseguido
estar em dois deles. Nossos advogados, todos voluntários, têm de trabalhar duro para vencer a
resistência dos governos", afirma a ginecologista holandesa Rebecca Gomperts, que fundou a
ONG Women on Waves (Mulheres sobre as Ondas) e teve a idéia de montar o barco.

Ressaltamos que a intenção é justamente encontrar resistência, gerar protestos,


violência, enfim, tudo que possa chamar a atenção da mídia.

(9) “O estilo ousado de agir, Rebecca aprendeu no tempo em que militou no Greenpeace”.

Como já se disse no item (1), a matéria que estamos analisando procura


mostrar um ethos positivo para a Dra. Rebecca Gomperts, trabalhando uma cenografia onde é
construída uma imagem de pessoa equilibrada (8), segura, dinâmica (9) e idealista (14): “A
cenografia, com o ethos da qual ele participa, implica um processo de enlaçamento: desde sua

123
Ethé é o plural de ethos.
167

emergência, a fala é carregada de um certo ethos, que, de fato, se valida progressivamente por
meio da própria enunciação” (MAINGUENEAU, 2006a, p. 68). Esse processo de
construção/demolição de identidades através de uma cenografia e de um ethos pré-moldados
na forma do sistema de restrições de uma formação discursiva é um dos recursos mais usados
pela mídia. Tão usado que os personagens da vida real – sejam eles líderes políticos, homens
públicos, personalidades do mundo científico, cultural ou artístico – hoje não são menos
ficção que os heróis – ou bandidos – que voam sem asas, emitem raios pelos olhos ou soltam
teias de aranha pelos punhos.

(10) “Como a entidade não tem tantos recursos, o barco não consegue fazer muitas viagens.
‘Nossa ONG depende integralmente de doações, do trabalho voluntário e da ajuda do governo
holandês. Daí por que operamos de forma limitada’, diz Rebecca”.

(11) “Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, praticam-se no mundo 50 milhões de


abortos todos os anos. Mais de 20 milhões deles são feitos em países onde abortar é ilegal. No
Brasil, que figura entre os 54 países onde o aborto é proibido, estima-se que sejam realizados
1,5 milhões de abortos ilegais por ano. Mais de 80.000 mulheres morrem todos os anos, e a
maior parte dos óbitos ocorre nas nações que criminalizam a prática”.

Procuramos verificar os dados citados por Veja, pois mais uma vez os números
“redondos” apresentados pela revista nos pareceram estranhos. Todavia, Veja cita de modo
vago a Organização Mundial de Saúde, ou seja, simplesmente diz que os dados são da OMS,
sem citar nome, data e outras informações que permitam indicar os relatórios de onde retirou
os dados apresentados. Pesquisando no site da OMS em 12 de agosto de 2006, encontramos o
relatório de onde, possivelmente, saíram as informações mostradas pela revista. Trata-se do
relatório “Unsafe abortion – Global and regional estimates of the incidence of unsafe
abortion and associated mortality in 2000”, publicado pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) – World Health Organization (WHO) – em 2004. Lá encontramos as seguintes
informações: “Estimates indicate that 46 million pregnancies are voluntarily terminated each
year […] Estimates based on figures for the year 2000 indicate that 19 million unsafe
abortions take place each year […] Worldwide an estimated 68 000 women die as a
consequence of unsafe abortion” (Estimativas indicam que 46 milhões de gravidezes (e não
‘50 milhões’, conforme afirma Veja) são voluntariamente terminadas cada ano. Estimativas
baseada em números do ano 2000 indicam que 19 milhões (e não ‘mais de vinte milhões’,
168

conforme afirma Veja) de abortos inseguros acontecem a cada ano. Mundialmente um número
estimado de 68.000 (e não “mais de 80.000”) mulheres morrem em conseqüência de abortos
inseguros). O dado realmente distorcido não é representado pelos números, mais sim pela
afirmação “a maior parte dos óbitos ocorre nas nações que criminalizam a prática”, quando na
verdade a WHO não fala em aborto ilegal e sim em aborto inseguro. Um dado concreto
tornará tudo mais claro: a Índia, onde o aborto é legal, responde por 25% das mortes. O
enunciado de Veja induz os leitores a pensarem que a legalização do aborto torna sua prática
automaticamente segura, o que não é verdade, conforme a própria WHO:

Reproductive health
Unsafe abortion
Globally, some 45 million unintended pregnancies are terminated each year; of which an estimated 19 million are terminated in
an unsafe condition. What is most disconcerting is the fact that unsafe abortion affects young women and teenagers.
Approximately 40% of all unsafe abortions are performed on young women aged 15 to 24. It kills an estimated 68 000 women
every year globally. It accounts for 13% of all pregnancy-related deaths.

In a narrow sense, abortion is legal in much of the world. The overwhelming majority of countries and areas permit abortion to
be performed to save pregnant women’s life. National abortion laws and policies are significantly more restrictive in the
developing world than in the developed countries. In the developed countries, abortion is permitted upon request in 31
countries, about two-third of all developed countries. In contrast, only 1 in 7 developing countries allow abortion upon request.
(World Population Monitoring, reproductive right and reproductive health, United Nations, 2003, page 86.) Access to abortion
services is governed by existing laws and policies within countries. Cambodia, China, DPR Korea, Japan, Mongolia, and Viet
Nam are legally permissive countries in the Regions, while Lao PDR, Malaysia, the Philippines, and most South Pacific island
countries are legally restricted.

Liberal abortion laws, however, do not guarantee that women can obtain safe abortions. In Cambodia, for example,
where abortion is permitted on broad grounds, too many women still undergo dangerous abortions performed by illegal,
unqualified providers. Despite the magnitude of the problem, data at country level on this important reproductive health
indicator is scarce because it is a very sensitive and a very private topic.

FIGURA 58 – Relatório da WHO. Disponível em: http://www.wpro.who.int/sites/ rph/data/abortion.htm.


Acesso em 20 set. 2007.

A tradução do enunciado em destaque é: “Leis liberais sobre o aborto não


garantem que as mulheres possam obter abortos seguros”.

(12) “Existem várias técnicas abortivas. Uma das mais praticadas é a da aspiração, feita por
meio de um tubo ligado a um aparelho de sucção colocado junto ao útero. No barco da ONG
holandesa, a técnica utilizada é um combinado das pílulas abortivas Cytotec (usadas no
169

tratamento de úlceras) e RU-486. Elas geram contrações nos músculos do útero, movimento
que termina por expelir o feto”.

(13) “Por um lado, a iniciativa da Women on Waves impressiona, pois mostra a que ponto
pode chegar a paixão de um grupo de pessoas por uma causa. No caso, trata-se de lutar para
que as mulheres tenham o direito de decidir se vão ou não dar prosseguimento a uma
gravidez, sem interferência do Estado.”

Neste ponto a reportagem deixa de relatar e passa a comentar. E esses


comentários fazem a defesa do movimento pro-choice, deixando claro o posicionamento da
repórter.

(14) “Há, no entanto, outro lado a considerar na ação da ONG da doutora Rebecca, que diz
respeito à qualidade do compromisso que ela estabelece com as mulheres que se propõe a
amparar. Quando o barco chega ao país onde o aborto é proibido, seus profissionais dão um
amparo emergencial às que pretendem abortar. Só que o barco desaparece dias depois, e as
mulheres voltam a depender exclusivamente do sistema de saúde local. E se houver
complicações posteriores? Em que condições essas mulheres serão socorridas?”

O conteúdo da notícia e também aquele existente no site do grupo parece


sinalizar que não há um “compromisso que ela estabelece com as mulheres que se propõe a
amparar”, mas uma forte ação midiática, na qual as mulheres que abortam seriam apenas
atrizes – melhor dizendo, figurantes – de uma ação que visa a promover o aborto e não teria
maiores preocupações com problemas ocorridos na subseqüência das intervenções praticadas;
em outras palavras, essas mulheres estariam sendo usadas.

(15) “A embarcação tem entre seus próximos destinos a África. Rebecca Gomperts informa
que o Brasil faz parte de seus planos”.

Com a implosão populacional se acelerando nos países do primeiro mundo124,


os chamados “emergentes” estão se tornando o foco das grandes organizações pro-choice
multinacionais, entre esses o Brasil, onde muitos desses grupos já atuam há muitos anos.

124
A taxa média de fecundidade na Europa é de 1,4 filhos por mulher, bem abaixo da taxa de manutenção da
população, que é de 2,2 (disponível em: http://www.cursocarpediem.com/?secao=textos_texto1, acesso em 26
jan. 2008). No Japão é de 1,25 (disponível em http://comvisa.anvisa.gov.br/tiki-read_article.php?articleId=
1218&highlight=indesejada, acesso em 26 jan. 2008).
170

(16) "Filhas e esposas de pessoas ricas abortam em clínicas limpas e seguras, mas a maioria
das mulheres apela para métodos rudimentares. Minha luta é contra essa hipocrisia", diz a
médica.

Interessante construção, formada por três proposições que procuram se


articular à maneira de um silogismo, portanto atribuindo a si mesma uma estrutura lógica
formal. Ao analisarmos sob essa perspectiva, vemos a existência de uma quarta proposição,
implícita:

(1) Todas as pessoas têm os mesmos direitos (premissa maior, implícita, que por sua vez
subentende que o aborto está entre esses direitos, o que não é verdade, pelo menos enquanto
abortar for ilegal; é aqui que reside a falácia do argumento, pois um silogismo que se baseia
em uma premissa maior falsa é um sofisma);

(2) Filhas e esposas de pessoas ricas abortam em clínicas limpas e seguras (é um fato);

(3) A maioria das mulheres é obrigada a apelar para métodos rudimentares (também é um
fato);

(4) Isso é uma hipocrisia (é uma injustiça). Enquanto o aborto for ilegal, a diversidade de
situações entre sua prática distribuída pelos diversos níveis sociais não pode ser usada – do
ponto de vista lógico, pois foi essa a formulação evocada pela enunciadora – como argumento
para sua validação, pois essa é uma situação pré-legal, que, aliás, existe também em outras
situações sociais, por exemplo: roubar é ilegal, logo o argumento de que os ladrões de
colarinho branco não são punidos (o que é verdade), enquanto os criminosos comuns são
rigorosamente penalizados (o que também é verdade), não pode ser usado como argumento
para a legalização do crime. Certamente poderia ser usado como argumento para a também
punição dos ladrões de “alto nível”. O mesmo se aplica ao tráfico de drogas (à diversidade
entre os grandes traficantes e os pequenos, que morrem todos os dias nas favelas), à
prostituição (entre as que atendem altos executivos e as que fazem “ponto” nas esquinas das
grandes cidades) etc.

Ao encerrarmos este capítulo, gostaríamos de dizer que nossas incisivas


análises visam a incentivar um posicionamente crítico diante de textos midiáticos, a partir do
uso das ferramentas da Escola Francesa de Análise do Discurso, particularmente dos
pressupostos de Dominique Maingueneau, procurando apreender os fenômenos discursivos
geridos pela mídia e expô-los ao estudo ativo e ao debate social.
171

8 A HISTÓRIA E O FUTURO DA POLÊMICA PRO-CHOICE/PRO-LIFE

“Se a História não interviesse, insidiosa ou violentamente, ter-se-ia apenas um jogo


de espelhos em que cada um leria no Outro sua imagem invertida, tendo por fundo
um campo de batalha indefinidamente simétrico” (MAINGUENEAU, 2005, p. 120).

Maingueneau, na introdução do sétimo – e último – capítulo de “Gênese dos


discursos”, posiciona-se de maneira cautelosa diante do que seria uma tentativa de articulação
entre discurso e história: “Colocamos em evidência uma conexidade semântica entre
funcionamento institucional e funcionamento discursivo, mas não dispomos de uma teoria de
conjunto sobre a inscrição sócio-histórica dos discursos” (2005, p. 169). Não obstante essa
cautela, o lingüista francês se move na direção de uma tentativa de imbricamento de seus
pressupostos com a história. Durante esse capítulo o autor passa a desenvolver uma série de
reflexões, das quais gostaríamos de destacar dois enunciados:

É antes de tudo pelo sistema de restrições semânticas que deve passar a inscrição
das práticas discursivas em suas conjunturas históricas (MAINGUENEAU, 2005, p.
170).
Já que o que resulta do sistema de restrições é o conjunto do discurso considerado na
irredutível diversidade de seus planos, basta que seja possível definir uma relação
interessante entre este último e sua conjuntura histórica para que o conjunto da
superfície discursiva correspondente seja parte relevante dessa relação (Ibid., p.
173).

Buscaremos, pois, neste capítulo, investigar como o sistema de restrições


semânticas dos discursos pro-choice e pro-life se inscrevem historicamente, focalizando nossa
pesquisa em possíveis pontos de imbricamento que permitam “definir uma relação
interessante entre (o discurso) e sua conjuntura histórica”. A finalidade do percurso que ora
iniciamos é inferir algumas possibilidades para o futuro do aborto como prática social e
histórica e como discurso.

Dentro dessa perspectiva merece destaque o acontecimento comentado no


capítulo segundo – O percurso histórico da polêmica sobre o aborto – onde, confirmando um
veto do presidente George W. Bush, a Suprema Corte americana, em 18 de abril de 2007,
proibiu (ban) o chamado PBA – Partial Birth Abortion, aborto no nascimento parcial – que
mudou a direção do debate pro-life/pro-choice, com o enfraquecimento deste e o
172

fortalecimento daquele. As reportagens da revista TIME e do jornal Daily Mail que veremos
logo mais se situam dentro do novo plano em que o debate se posicionou a partir daquela
decisão. Infelizmente a revista Veja mergulhou no silêncio125, talvez não tendo entendido que
“Sería hora de comenzar a romper los espejos”126 (PÊCHEUX, 1981, p. 5).

Inicialmente colocaremos um fato realmente interessante dentro do campo que


estamos trabalhando: algumas formações discursivas que se constituem através do confronto
concordam em pontos fundamentais, muitas vezes em um único ponto, e esse ponto torna-se
justamente a origem do enfrentamento. A diferença está no juízo de valor que fazem do fato.
Um exemplo, retirado do confronto entre Modernistas e Tradicionalistas, corpus que estamos
estudando há algum tempo, mostra que os dois grupos partem da mesma leitura histórica127: O
Concílio Vaticano II representou uma ruptura com a milenar tradição católica. Para os
Modernistas isso é a melhor coisa que poderia ter acontecido; eles reafirmam essa tese e dela
retiram supostas autorizações para extrapolações que não resistem a análises primárias, porém
são bem aceitas por representarem aspirações individuais de seus enunciatários. Também para
os Tradicionalistas a ruptura existe e isso os leva a rejeitar proposições ligadas a esse Concílio
e mesmo posteriores, que pareçam se alinhar com ele. Insistimos nesse ponto: a tese da
ruptura é sustentada pelos dois grupos – mesmo sendo rejeitada pelo papa e outras autoridades
da Igreja128 – e é justamente essa tese que dá suporte às diversas práticas e discursos desses
dois grupos. Dentro do campo discursivo em que se enfrentam os posicionamentos pro-
choice/pro-life as coisas não são diferentes, como veremos na análise de dois enunciados
retirados de artigo “Mulheres pelo direito de decidir”, publicado no site do grupo pro-choice
“Articulação de Mulheres Brasileiras” (o artigo completo está no anexo 29, p. 251):
(1) “O direito das mulheres a interromper uma gravidez é uma das formas mais contundentes
de alterar as relações entre mulheres e homens, com conseqüências para a organização da vida
social e forte repercussão no cotidiano das mulheres”.

125
O silêncio da revista Veja diante de acontecimentos realmente importantes – e que, portanto, deveriam ser
objeto de suas matérias, já que ela é “uma revista semanal de informação” – que contrariam seus
posicionamentos é absolutamente inaceitável na revista de maior circulação no Brasil (1.107.050 exemplares por
semana em setembro de 2007, disponível em: <http://publicidade.abril.com.br/geral_circulacao_revista.php>,
acesso em 26 jan. 2008).
126
Não estamos aqui insinuando qualquer mudança de um posicionamento pro-choice para um posicionamento
pro-life, mas sim a mudança de para uma posição que busque ser o mais factual possível.
127
Essa leitura não é a do posicionamento Conservador, adotado pelo próprio papa. De fato, ela parece ser mais
uma falácia do tipo Post hoc ergo propter hoc, que procura estabelecer uma relação de causa e efeito pelo
simples fato de um acontecimento suceder cronologicamente a outro.
128
Temos então três grupos: Tradicionalistas, Modernistas e Conservadores, sendo esse último o grupo no qual
se situam os papas.
173

(2) “Sendo o movimento que politizou e desfez a relação obrigatória entre sexualidade e
reprodução, o feminismo considera a legalização do aborto um marco fundamental na luta por
direitos reprodutivos, direitos sexuais...”.

Os dois enunciados, a exemplo do enfrentamento Tradicionalistas/Modernistas,


também se situam na perspectiva de uma ruptura histórica, a partir da qual se constrói uma
nova estrutura social, vista pelo movimento pro-choice como a conquista de um direito e pelo
movimento pro-life como um elemento que, incorporado a uma estrutura social, se tornou
uma imposição e não uma escolha: “Women do abortion not because they have a Choice, but
because they have no choice” (as mulheres fazem aborto não porque têm uma opção, mas
porque elas não têm opção) é um slogan muito usado pelo discurso pro-life atualmente.

Dessa percepção surgiu um movimento dentro do movimento pro-life que visa


a atender a chamada gravidez em crise. Esse componente do movimento pro-life foi mantido
no silêncio129 por ser a negação do apagamento, realizado pelo discurso pro-choice, do
componente choose-life (escolha a vida), implícito em seu enunciado, negado pela sua
enunciação através da inscrição em uma cena enunciativa, histórica e socialmente construída,
que exclui sua segunda alternativa: “Sem considerar a historicidade do texto, os processos de
construção dos efeitos de sentido, é impossível compreender o silêncio” (ORLANDI, 1992, p.
47), especialmente quando esse silêncio é uma imposição daqueles que detêm o controle dos
veículos midiáticos. Entretanto, possivelmente em razão das mudanças históricas
impulsionadas pela decisão da Suprema Corte Americana – proibição do chamado PBA – o
mass media começa a sinalizar mudanças. Sem essa chave de leitura, corre-se o risco de uma
apreensão horizontal de textos como o publicado na revista Time de 15 de fevereiro de 2007,
que será objeto de nossa análise.

Inicialmente realizamos uma pesquisa com todas as capas da revista TIME


(edição norte-americana) a partir do ano 2.000 e não encontramos quaisquer matérias
referentes ao tema aborto, muito menos algo tão incisivo quanto à capa dessa edição.
Conforme já tivemos oportunidade de analisar no capítulo quarto, dedicado à intersemiótica, o
uso de suportes visuais é algo típico do movimento pro-life e a grande mídia, que em geral
apenas dá suporte ao movimento pro-choice, não costuma usar esses recursos ao se referir ao
tema. Por isso a capa da revista pode ser considerada uma mudança significativa. Também
pesquisamos (por amostragem, aleatoriamente) capas anteriores ao ano 2.000, com o mesmo

129
“O discurso liberal ‘todos os homens são iguais perante a lei’ produzindo o apagamento das diferenças
constitutivas dos lugares distintos, reduz o interlocutor ao silêncio” (ORLANDI, 1992, p 43).
174

resultado, o que permite inferir uma mudança no paradigma discursivo da revista em relação
ao tema. Essa seria, pois, a “relação interessante entre o discurso e sua conjuntura histórica”
citada por Maingueneau, que uma vez definida se estende pelos diversos planos das
formações discursivas pertencentes a um determinado campo, permitindo o imbricamento do
discurso na história e vice-versa. É importante destacar que vemos nessa relação uma
participação ativa do discurso na construção da história e não apenas um reflexo desta.

Figura 59 – Capa da revista TIME. Disponível em:


<http://www.time.com/time/magazine> . Acesso em: 30 maio 2007.

A reportagem, intitulada “The Abortion Campaign You Neves Hear About” (A


campanha sobre o aborto da qual você nunca ouviu falar, anexo 30, página 252) trata dos
chamados “Crisis Pregnancy Centers” (centros da gravidez em crise). Muito mais que isso,
mostra – involuntariamente130, em nossa opinião – o impacto que a presença desses centros
causa nos processos que sustentam as identidades dos discursos pro-life/pro-choice:
“Qualquer leitor ou ouvinte um pouco atento percebe muito bem que a identidade de um

130
O termo “involuntariamente” é aqui empregado significando o peso da conjuntura histórica sobre o discurso.
175

discurso não é somente uma questão de vocabulário ou de sentenças, que ela depende de fato
de uma coerência global que integra múltiplas dimensões textuais” (MAINGUENEAU,
2005, p. 18, grifo nosso). De fato, qualquer leitor poderá perceber a incoerência entre o título
da matéria e o conteúdo da mesma – o que, em se tratando da maior revista semanal de
noticias do planeta e uma das mais respeitadas e conceituadas, não é de maneira nenhuma
pouca coisa. Cremos que essa incoerência não nasce de uma incompetência da jornalista
Nancy Gibbs, mas sim de uma incoerência na integração dos múltiplos aspectos constituintes
do discurso pro-choice, aspectos que davam a ele uma identidade, identidade essa que possuía
um estatuto histórico (modernista) que integrava grandes correntes sociais (metanarrativas131)
em um esquema com amplo suporte midiático. A pós-modernidade está impondo ao discurso
pro-choice – e também a outros segmentos do discurso liberal – um processo de fragmentação
e de perda da legitimação de sua identidade, legitimação essa claramente dependente da
legitimação de seus enunciados – aqui entendida como a possibilidade de um enunciado ser
incluído em um discurso de forma a reforçá-lo. Ora, essa capacidade de reforçar um discurso
sempre esteve presa a uma relação com um Outro, que representava o anverso do discurso e
que servia, em um processo de formação regulada no interior do interdiscurso, para criar e dar
uma identidade à formação discursiva. Como esse Outro se fragmentou132, posicionando-se na
era pós-moderna, o movimento pro-choice se vê atualmente preso entre duas perspectivas:
manter-se dentro de um posicionamento modernista que dá suporte aos seus embasamentos133,
porém torna-se cada vez mais anacrônico ou inserir-se em um viés pós-moderno e correr o
risco de perder seus suportes culturais e históricos. Vemos, aqui, muito mais uma luta interna,
procurando posicionar-se historicamente, do que um enfrentamento com seu Outro, o
movimento pro-life, que dentro desse viés que estamos tratando busca mais oferecer
alternativas reais ao aborto do que o confronto com seu Outro. Coisas da pluralidade pós-
moderna, provavelmente já percebida por Maingueneau, que encerra “Gênese dos discursos”
com o seguinte enunciado (2005, p. 189):

131
Infelizmente, uma abordagem mais ampla dos estudos sobre pós-modernidade, como os efetuados pelo
filósofo francês Jean-François Lyotard (1924-1998), excederia as dimensões (físicas) deste trabalho. Pensamos
particularmente em uma analogia entre metanarrativa – que, para nós, possui estatuto fundamentalmente
histórico – e discurso constituinte – fundamentalmente lingüístico/conceitual. Por isso, apenas sinalizaremos um
dos sintomas desse processo: a mudança da expressão “Análise do Discurso” (a metanarrativa marxista, por
exemplo) para “Análise de Discurso” (o discurso – fragmentado – da propaganda televisiva).
132
Referimo-nos aqui à divisão do movimento pro-life que desenvolveu diversos segmentos que atuam em áreas
especificas, como os “Centros de apoio a gravidez em crise”, tratado nessa edição de TIME, os grupos de ajuda
aos que sofrem conseqüências do pós-aborto (Rachel’s Vineyard – healing the trauma of abortion), o
envolvimento dos homens que perderam seus filhos pelo aborto (I regret my lost fatherhood), o envolvimento
dos mais diversos grupos religiosos – cristãos e não-cristãos etc.
133
Embasamento originário da sua relação com o Outro, como, por exemplo, a relação entre o movimento
feminista e a cultural patriarcal, que dava legitimidade aos enunciados daquela, construídos por oposição a esta.
176

É forçoso, pois, definir unidades semânticas, separar um interior de um exterior, mas


também admitir que esse dentro é de fato um fora. Em dois sentidos: porque, no
espaço enunciativo, o Mesmo se constitui no Outro, o fora investindo o dentro, pelo
próprio gesto de expulsá-lo; e porque, através de seu sistema de restrições, o
discurso se encontra engajado em uma reversibilidade essencial com grupos,
instituições, e, igualmente, com outros campos. Não há imagem simples que torne
isso visível.

Como estamos trabalhando dentro de uma perspectiva histórica, tomaremos


como exemplo de enfrentamento de uma estrutura monolítica por uma estrutura fragmentada
dois acontecimentos amplamente estudados e conhecidos: a guerra pela independência dos
Estados Unidos da América e Campanha da Rússia, realizada por Napoleão em 1812,
retratada por Leon Tolstoi em “Guerra e Paz”. Nessas guerras dois exércitos altamente
organizados, com muitos recursos materiais e táticos – os exércitos britânico e francês –
foram derrotados por adversários bastante inferiorizados – em número, armas e recursos –
que, porém, lutavam um combate de guerrilha, fragmentado, um inimigo que não podia ser
vencido pelo simples fato de não poder ser enfrentado (diretamente). Se compararmos os
muitos bilhões de dólares do movimento pro-choice – apoiados, entre outros, por três
bilionários: Bill Gates, Warren Buffet e George Soros – e suas mega-estruturas: IPPF, Naral,
Naf, veremos que a analogia é pertinente. E isso está na reportagem, que mostra o confronto
direto entre esses grupos e os pequenos crisis pregnancy centers, embora não comente a
desproporção entre as partes em conflito, silêncio esse que pode induzir leitores desavisados a
uma apreciação incorreta dos fatos noticiados.

Dessa reportagem, que é bastante extensa, vamos trabalhar apenas alguns


enunciados:

(1) “This bright new examining room is as good a place as any to study the anatomy and
evolution of attitudes about abortion” (= Essa nova sala de exames (referindo-se a sala de
exames de um centro de apoio à gravidez em crise) é um lugar tão bom quanto qualquer outro
para estudar a anatomia e a evolução das atitudes a respeito do aborto). O conceito de
“evolução das atitudes a respeito do aborto” se enquadra perfeitamente dentro do viés que
estamos pesquisando, o da evolução histórica do discurso.
177

(2) “The growth in the movement has raised other alarms with pro-choice groups […]
There’s such momentum behind the CPC (crisis pregnancy centers) movement that abortion-
rights groups have begun to fight back” (= o crescimento do movimento (dos centros de apoio
a gravidez em crise) fez soar outros alarmes nos grupos pelo direito ao aborto [...] há uma tal
vitalidade no movimento CPC que os grupos pró-aborto começaram a contra-atacar). A partir
desse enunciado a reportagem passa a descrever as ações que grupos como Planned
Parenthood, NARAL – National Abortion Rights Action League (Liga de Ação Nacional dos
Direitos Abortivos) e U. S. National Abortion Federation (Federação Nacional Americana do
Aborto) estão realizando especificamente contra os CPCs. O fato relevante para a Análise do
Discurso é que esses grupos sempre se posicionaram como pro-choice (pró-escolha), ou seja,
seriam favoráveis à escolha da mulher – qualquer que fosse essa escolha. Ora, as observações
empíricas que fizemos ao longo dos anos, acompanhando as ações desses grupos através da
mídia internacional, lendo suas publicações, acessando seus sites e verificando os serviços
oferecidos sempre mostraram claramente a inverdade desse enunciado, ou seja: não havia
nada que representasse suporte a uma escolha que não fosse o aborto. Entretanto, o
movimento pro-choice ainda podia usar a argumentação de apoiar a decisão em favor do
aborto – ocasião em que ofereceria seus serviços – e também apoiar a decisão pela vida –
mesmo não oferecendo qualquer suporte material para isso. Recentemente, após termos
iniciado nossos estudos na área de Análise do Discurso, aplicamos os pressupostos de
Maingueneau, particularmente os encontrados em “Gênese dos discursos” a essa questão (ver
1.2.2 – Uma competência discursiva) e cremos ter demonstrado a impossibilidade da
integração entre duas formas discursivas que se enfrentam dentro de um determinado espaço.
Entretanto, faltava algo que desse um embasamento mais sólido a essa tese, que pudesse
demonstrar a ação reflexa da enunciação sobre o enunciado, a ação da história sobre o
discurso. A ascensão desses CPCs – que efetivamente possibilitam a escolha de uma
alternativa ao aborto – colocou a evidência histórica contra os grupos que apóiam o discurso
pro-choice, que se viram na contingência de, ou sustentar seu enunciado “pro-choice” – e
respeitar a existência dos CPCs – ou assumir um posicionamento pro-abortion, reunir suas
forças e se lançar contra os centros de apoio à gravidez em crise. Escolhida a segunda opção,
explicitou-se o posicionamento pro-abortion do movimento pro-choice, “a moldura irrompeu
no quadro”, conforme os estudos de Maingueneau (2006b, p. 291-292):

De modo geral, não se presta atenção ao que uma enunciação mostra


implicitamente: que é um ato de comunicação, que este último constitui uma
afirmação, uma promessa, uma ordem..., mas também que o locutor respeita as
178

regras do discurso (que ele está sendo sincero, que seu enunciado é dotado de
sentido etc.). Só se presta atenção quando aparece uma tensão, quando, de alguma
maneira, a moldura irrompe no quadro. Quando, por exemplo, se declara, “Sou
modesto”, abre-se uma discordância entre o enunciado e o ato de enunciação: o fato
de se dizer modesto não constitui um ato de modéstia, manifestando-se então um
paradoxo pragmático, isto é, uma proposição que é contraditada por aquilo que sua
enunciação mostra. Esse tipo de paradoxo pode resultar de incompatibilidades muito
diversas entre o enunciado e as condições (materiais, psicológicas, sociológicas)
vinculadas à sua enunciação.

Exemplos básicos de paradoxo pragmático, tirados da reportagem, são os


próprios nomes dos grandes grupos pro-choice: a NARAL – National Abortion Rights Action
League (Liga de Ação Nacional dos Direitos Abortivos) e a U. S. National Abortion
Federation (Federação Nacional Americana do Aborto, que congrega os provedores de aborto
norte-americanos), são, por óbvia e tautológica definição, pró-aborto e não pró-escolha.
Maingueneau também nos diz, no fragmento acima, que “Esse tipo de paradoxo pode resultar
de incompatibilidades muito diversas entre o enunciado e as condições (materiais,
psicológicas, sociológicas) vinculadas à sua enunciação”. Isso nos leva a um outro tipo de
incompatibilidade entre declarar-se e de fato ser “pró-escolha”, incompatibilidade essa que
reside nos altos ganhos dos provedores de serviços de aborto, o que gerou o termo “indústria
do aborto”, significando uma atividade exercida em busca do lucro e que excluiria qualquer
ação que visasse reduzir essa prática. Apenas a Planned Parenthood, no ano de 2005, teve
uma renda de 882 milhões de dólares por 255.015 abortos cirúrgicos mais a venda de drogas
abortivas (RU-486), pílulas do dia seguinte e contraceptivos134. Se considerarmos que
anualmente são realizados cerca de 1.300.000 abortos nos Estados Unidos e mantivermos a
renda média da Planned Parenthood, teríamos um valor entre quatro e cinco bilhões de
dólares. Acrescente-se a isso o fato de que a prática do aborto tem baixo custo operacional e
se verá que o lucro dessa atividade é bastante elevado. A isso acrescentaríamos um dado
importante, que também se insere dentro da linha de paradoxo pragmático que estamos
demonstrando: durante nossas pesquisas visitamos centenas de sites de provedores de aborto
nos Estados Unidos (e também no Canadá, Inglaterra e Europa continental). Usamos o
material pesquisado especialmente para escrever o capítulo sobre intersemiótica, mas nossa
pesquisa foi muito além daquilo que ali apresentamos. Entre outras coisas, estudamos os
valores pagos pelo aborto – que variam – e a forma de pagamento, que é sempre à vista
(dinheiro ou cartão). Esse fato confirma histórias que havíamos ouvido – e às quais não

134
Dados do relatório anual da própria organização, reproduzidos e disponibilizados por diversos grupos, através
de diversas mídias (prática comum em uma sociedade pós-moderna). Recolhemos nossos dados no site
<http://www.lifesite.net/ldn/2006/jun/06060805.html> em 17 de set. de 2007.
179

tínhamos dado muito crédito – sobre mulheres sem recursos financeiros que procuraram
desesperadamente – e sem êxito – abortar junto a esses provedores. Essa realidade ajuda a
desfazer determinada estratégia discursiva falaciosa amplamente usada pela mídia, inclusive
pela revista TIME no artigo que estamos analisando. Essa estratégia consiste em apresentar
provedores de aborto como ligados a uma ideologia feminista representada pela defesa do
direito de escolher – pro-choice – e movidos por um altruísmo natural135, atuando de maneira
equilibrada diante de situações que facilmente despertam sentimentos profundos e
controversos. É dessa maneira que TIME apresenta aos seus leitores a doutora Lorrie136, única
médica da clínica de abortos Femcare, figura que irá dominar o último terço da reportagem137,
escrito em um estilo informal que possibilita a construção de um ethos extremamente positivo
para a doutora Lorrie. Entretanto, descobrimos que a doutora e sua clínica fazem parte da
pesquisa que efetuamos nos 240 sites de clínicas de aborto descritos no anexo 28, p. 245, e
que sua atuação obedece os mesmos padrões de outras clínicas, inclusive no que se refere aos
pagamentos: “The only accepted payment is cash, Mastercard, Visa or Discover. If you bring
a credit card it must be in your name or the name of the person who comes with you138” (= o
único pagamento aceito é em dinheiro, Mastercard, Visa ou Discover. Se você trouxer um
cartão de crédito, este deve estar em seu nome ou no nome da pessoa que vier com você).

Um último, porém não menos importante aspecto da presença da doutora


Lorrie nessa reportagem, refere-se à maneira como a revista TIME – e o mass media em geral
– relaciona os discursos pro-choice/pro-life. Orlandi, em “As formas do silêncio” (1992, p.
59) faz um questionamento que parece aplicar-se com perfeição a esse confronto:

Como o Índio foi excluído da língua e da identidade nacional brasileira?


Com efeito, o índio não fala na história (nos textos que são tomados como
documento) do Brasil. Ele não fala, mas é falado pelos missionários, pelos
cientistas, pelos políticos. [...] Eles falam do índio para que não signifique fora de
certos sentidos necessários para a construção de uma identidade... [...] Trata-se da
construção de sentidos que servem sobretudo à instituição das relações colonialistas
entre os países europeus e o novo mundo.

135
Bem ao estilo positivista de Isidore Auguste Marie François Xavier Comte.
136
Seu nome completo foi omitido pela revista TIME para preservar sua identidade.
137
Nesta reportagem a revista TIME trabalhou simultaneamente dois gêneros (mídia escrita): feature articles
(que trabalha a matéria de maneira mais humana e informal) e news articles (que procura ser factual – pretensão
que recusamos aceitar – e se estrutura de maneira mais formal). Esses gêneros foram estudados (separadamente)
por ROGERS (1977) e constituem a base dos gêneros empregados por revistas semanais de informação no
mundo todo, que se inspiram na dupla TIME/Newsweek. A aplicação alternada desses gêneros permite favorecer
(feature articles) ou prejudicar (news articles) as personagens apresentadas em uma matéria.
138
Disponível em < http://www.femcare-inc.com>. Acesso em 18 de set. de 2007.
180

Realmente, enquanto a doutora Lorrie tem livre acesso à palavra e pode


discursar a seu bel-prazer, as palavras dos representantes pro-life são faladas. Na melhor das
hipóteses, são colocadas em suas bocas através de questionamentos que forçam as respostas:
“é pela historicidade que se pode encontrar todo um processo discursivo marcado pela
produção de sentidos que apagam {os discursos do movimento pro-life}139, processo que os
colocou em silêncio” (ORLANDI, 1992, p.59). Ainda segundo ORLANDI “isto não tem
nenhum mistério: proíbem-se certas palavras para se proibirem certos sentidos” (1992, p. 78).

(3) “The heat of the national battle, however, doesn’t capture what is happening on the front
lines. In North Carolina, Abortion Clinics in Line lists eight abortion providers, but the state
has more than 70 pregnancy centers. NARAL Pro-Choice North Carolina was so concerned
about their practices that it recruited volunteers to call centers and record the information
they were given.” (= O furor da batalha nacional, entretanto, não mostra o que está
acontecendo na linha de frente. Na Carolina do Norte, o site Abortion Clinics in Line140
relaciona oito provedores de aborto, mas o estado tem mais de 70 centros de gravidez. A Liga
de Ação Nacional dos Direitos Abortivos (NARAL) da Carolina do Norte estava tão
preocupada com suas práticas que recrutou voluntários para telefonar para os centros e gravar
as informações que recebessem). É justamente nesse estado que se situa a Femcare da doutora
Lorrie, citados no item anterior. Aqui apenas chamaremos a atenção para o acirramento do
confronto, acirramento esse que – ao contrário do que pode fazer supor a leitura dessa matéria
– é muito mais no campo discursivo. Sim, porque os CPCs, com seus poucos recursos
materiais, não representam perigo – entendido como “ameaça à integridade física” – para as
poderosas organizações pro-choice. Representam, sim, ameaça à identidade – pro-choice,
pró-escolha – que criaram para si, através de toda uma prática discursiva.

Para encerrar, destacaríamos que a aceleração do processo de enfrentamento


entre os movimentos pro-life/pro-choice e também a abertura, por parte do mass media, de
espaço para o movimento pro-life é de tal ordem que o espaço discursivo onde essas duas FDs
se enfrentam está sofrendo uma reestruturação, uma reconfiguração, fato que certamente

139
Substituímos a expressão “o índio” por “o discurso do movimento pro-life”.
140
Esse site possui centenas de endereços eletrônicos dos provedores de aborto na América do Norte (Canadá,
inclusive) e Europa. Realizamos amplas e demoradas pesquisas nesses sites, particularmente para elaboração do
capítulo sobre intersemiótica.
181

afetará o desenvolvimento desse enfrentamento141. Passemos agora a uma outra matéria,


retirada do jornal inglês Daily Mail.

Amanda Jane Platell142, colunista do jornal britânico Daily Mail143, na edição


de 10 de setembro de 2007, escreveu um artigo intitulado “Why I, as a feminist, abhor how
the abortion law has been so abused” (Porque eu, como feminista, abomino como a lei do
aborto tem sido tão abusiva). O enunciado-título da reportagem é acompanhado de uma
imagem de um bebê no útero materno, imagem que, há alguns anos atrás, dificilmente
freqüentaria as páginas de um jornal de grande circulação, em qualquer lugar do mundo.

Figuras 60 e 61 – Título e foto ilustrativa de matéria do Daily Mail. Disponível em:


<http://www.dailymail.co.uk/pages/live/articles/news/worldnews.html?in_article_id=481103&in_page_id=1811
&ct=5>. Acesso em: 12 set. 2007.

Ao longo desse artigo são feitas diversas declarações criticas usando uma
linguagem tal que ainda não havíamos encontrado antes, nem mesmo nas matérias e artigos
escritos por grupos pro-life, forçados a silenciar diversos sentidos, a usar um discurso
“moderado”. O principal motivo dessa moderação é a mordaça invisível criada pelo
“mainstream”144, silêncio que se impõe além das fronteiras dos sistemas de restrições

141
Consideramos “campo discursivo” e “espaço discursivo” não apenas como suporte, mas como fatores que
interagem no enfrentamento de formações discursivas. E isso ocorre mesmo se considerarmos “espaço discurso”
como uma construção conceitual do analista do discurso. Exemplifiquemos: quando recortamos as formações
discursivas pro-choice/pro-life nos inserimos em um espaço discursivo onde a intensidade da polêmica
dificilmente encontra paralelo.
142
Nascida em 1957, na Austrália, e vivendo atualmente em Londres, Amanda Jane Platell é uma importante
figura no jornalismo britânico. Seu perfil pode ser visto no BBC News em <http://news.bbc.co.uk/1/hi/uk
_politics/1440066.stm>.
143
Com 2.400.143 exemplares diários (dados de julho de 2007), o Daily Mail é o segundo jornal britânico em
tiragem (logo após The Sun) e o décimo segundo do mundo. Foi fundado em 1896.
144
Ilustraremos a tese da imposição pela mainstream (tendência dominante em determinado contexto sócio-
cultural, que paira sobre o Universo Discursivo como uma espécie mega interdito discursivo) com um exemplo
182

semânticas de qualquer formação discursiva. Contudo, esse silêncio “Não é o nada, não é o
vazio sem história. É silêncio significante” (ORLANDI, 1992, p. 23). Tanto mais significante
quanto imposto, esse “deslocamento de palavras em presença e ausência145” (Ibid., p. 24) é
uma forma extremamente forte de discurso, que é preciso calar através do preenchimento de
todos os espaços, particularmente dos espaços de silencio verbal, de ausência sonora, que
poderiam engendrar perigosas reflexões. Essa percepção, que tínhamos antes de iniciarmos
nossos estudos em Análise do Discurso, se tornou mais profunda nos últimos tempos146.

Dissemos que a imagem que ilustrava o título da reportagem dificilmente


poderia ser vista há alguns anos atrás em jornais de grande circulação. Ora, muito mais que
isso, o conteúdo da reportagem certamente não seria escrito; se fosse escrito, não seria
publicado; se fosse publicado, o jornalista seria estigmatizado. Mas agora uma jornalista
famosa como Amanda Platell pôde escrever tudo o que escreveu sem medo. Isso é uma
mudança extraordinária nos rumos do enfrentamento pro-life/pro-choice e é justamente o que
queremos demonstrar: uma mudança na direção do discurso. Vejamos os primeiros
enunciados dessa reportagem:

(1) “A woman's Right To Choose” (= O direito de escolha da mulher). Esse é um dos


principais enunciados do movimento pro-choice, constituindo-se em uma memória
interdiscursiva amplamente compartilhada pelos enunciatários da sociedade inglesa, e é
normal um artigo escrito dentro desse posicionamento ser iniciado por essa expressão. Aqui a
jornalista joga com essa memória discursiva, que aparentemente daria início a um discurso
pro-choice, para introduzir um discurso pro-life. Por ser uma das estratégias discursivas mais
usadas no mundo moderno, vamos dar a ela um pouco mais de atenção: no mundo midiático
em que vivemos, é bastante fácil ter acesso aos textos e teses dos posicionamentos com os
quais se disputa o mesmo campo discursivo, fato que permite construir argumentos usando os

prosaico: Um pai conservador, segundo o intersemioticamente imbricado sistema de restrições semânticas de sua
formação discursiva, não aprovaria o uso da roupa de praia conhecida como tanga por parte de suas filhas.
Entretanto, se esta for a vestimenta usada por todas as moças dentro de seu contexto sócio-cultural, ele
provavelmente terá que silenciar.
145
Essa é, em nossa opinião, uma ótima definição para silêncio.
146
Um fato significativo tem surgido em nossas pesquisas sobre o campo discursivo que compreende as
formações discursivas Tradicionalista e Modernista dentro do catolicismo. A Missa Tradicional, recentemente
liberada pelo papa Bento XVI, possui diversos espaços de silêncio, que seriam melhor definidos como silêncios,
já que cada um desses momentos implica em significados diferentes. Ressaltamos não se tratar de intervalos que
separariam momentos distintos dentro da celebração, mas de partes integrantes e fundamentais desta, sem os
quais ela perderia parte de seu significado.
183

argumentos do adversário. Isso torna, por vezes, a vida dos enunciatários bastante difícil,
sempre tentando distinguir as inúmeras manipulações da máquina midiática.

(2) “It's such a compelling phrase, isn't it? It speaks of freedom, equality, justice; of a society
where women are entitled to live their lives as they wish, not as others might proscribe” (= É
uma frase atrativa, não é? Ela fala de liberdade, igualdade, justiça; de uma sociedade onde as
mulheres têm o direito de viver suas vidas como elas quiserem, não como outros possam
determinar). Atualmente, muitos analistas – a maioria pro-life, evidentemente147 – consideram
que, embora o aborto seja oferecido à mulher como opção, como escolha (choice), na verdade
ele é algo imposto por uma determinada conjuntura sócio-histórica. Esse processo está
presente em todas as sociedades modernas que, aparentemente, só aparentemente, oferecem
“opções” e “escolhas”. Você pode escolher seu banco, seu computador, seu provedor de
internet, seu cartão de crédito etc. Só não pode escolher viver sem qualquer uma dessas coisas
ou viver sem uma infinidade de outras coisas que a sociedade “lhe oferece” – na verdade
impõe com violência estrutural148 e midiática.

(3) “Small wonder, then, that it became the marching banner for the whole feminist
movement, of which I was so proud to be a part”. (= Não é de admirar, então, que tenha se
tornado o lema do movimento feminista, do qual eu tinha tanto orgulho de fazer parte).
Amanda Platell é o protótipo da mulher bem-sucedida, produto do movimento feminista,
sendo, pois, sua mudança de posicionamento – pública e enfaticamente assumida – um
acontecimento emblemático, indicativo de uma mudança maior dentro do espaço discursivo
que envolve as formações discursivas pro-choice/pro-life e, por extensão, o confronto
liberal/conservador.

147
Pensamos que o posicionamento de um analista não pode ser considerado como motivo válido para se rejeitar
suas proposições. Basta citar alguns analistas e pensadores para que isso se torne evidente: Michel Pêcheux e Eni
Orlandi: marxistas, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino: católicos, Freud: ateu (esse posicionamento foi
questionado pelo jornal The New York Times), Michel Foucault: alguém que não gostava de rótulos etc. Esses – e
outros pensadores – normalmente têm suas teses analisadas, discutidas, apoiadas ou rejeitadas, porém SEMPRE
com base em argumentações lógicas, jamais com argumentos ad hominem (latim, argumento contra a pessoa).
148
Exemplo dessa violência é o planejamento familiar estruturalmente imposto: (1) Uma habitação popular
comporta no máximo 4 pessoas; (2) O bolsa família: as famílias em situação de extrema pobreza poderão
acumular o benefício básico e o variável, até o máximo de 3 (três) benefícios por família, totalizando R$ 112,00
(cento e doze reais) por mês – disponível em: <http://www1.caixa.gov.br/gov/gov_social/municipal/distribuição
_servicos_cidadao/bolsa_familia/saiba_mais.asp>, acesso em 16 jan. 2008; (3) De acordo com a Portaria nº 142,
de 11 de abril de 2007, o valor do salário-família será de R$ 23,08, por filho de até 14 anos incompletos ou
inválido, para quem ganhar até R$ 449,93. Para o trabalhador que receber de R$ 449,94 até 676,27, o valor do
salário-família por filho de até 14 anos incompletos ou inválido, será de R$ R$ 16,26 – disponível em: <
http://www.mpas.gov.br/pg_secundarias/beneficios_11.asp>, acesso em 16 jan. 2008.
184

(4) “What it actually stood for, of course, was something rather more specific: the ‘right’ for
a woman to abort an unborn child if she so wished”. (= O que isso queria realmente dizer,
evidentemente, era alguma coisa mais especifica: o “direito” de uma mulher abortar uma
criança não nascida se ela assim o desejar). No processo de construção do discurso pro-choice
um importante papel foi desempenhado pelo professor de lingüística da universidade da
Califórnia (Berkeley), George Lakoff, ativista do movimento liberal, atuando particularmente
nos segmentos pro-choice e pro-gay marriage. O professor Lakoff é considerado um dos
responsáveis pela formulação – framing149 – dos discursos desses movimentos e também foi o
mentor intelectual da reformulação do discurso do partido Democrata (Estados Unidos) –
sendo considerado por seus pares e também por adversários como um dos principais
responsáveis pelo fracasso do partido na eleição presidencial de 2004 e na midterm150 de
2002, como mostrou uma ampla reportagem publicada no jornal The New York Times em 17
de julho de 2005151. O professor Lakoff é autor de enunciados como “operações médicas para
terminar a gravidez” (“medical operations to end a pregnancy”), criado para ser usado em
lugar de aborto (“abortion”), de forma a produzir nos interlocutores um efeito de sentido mais
leve. A jornalista – independentemente de conhecer ou não esses fatos – está se insurgindo
contra essa prática, que foi alvo de duras críticas na reportagem acima citada. Possivelmente o
fracasso dessa estratégia discursiva é uma das causas das mudanças nos discursos que
sustentam a luta pro-choice/pro-life.

(5) “In fact, no such ‘right’ exists, even in our modern, post-feminist world”. (= De fato, tal
“direito” não existe, mesmo em nosso moderno mundo pós-feminista). Estudos e pesquisas
que atualmente são levados a efeito sobre a temática “pós-modernismo” estão incluindo a
expressão “pós-feminismo” no rol dos temas investigados. Basicamente a expressão
compreende o enfraquecimento do feminismo de oposição/afirmação: oposição à opressão
(patriarcal) histórica e afirmação de uma identidade “universal” feminina. Essa identidade,
estratificada pelo discurso feminista da segunda metade do século XX, perde cada vez mais
149
Na teoria da comunicação, Framing é um processo de controle seletivo sobre o conteúdo da mídia ou da
comunicação pública. Framing define como certa porção do conteúdo da mídia ou retórica é “embrulhada” com
a finalidade de gerar determinadas interpretações, determinados sentidos, e excluir outras interpretações, outros
sentidos (um estudo comparativo entre Framing e cenografia seria interessante. Por exemplo: Framing
(=enquadramento) é uma concepção externa ao conteúdo, uma forma, enquanto cenografia é uma concepção
integrante, constitutiva). O professor Lakoff é considerado um expert nessa área e muitos de seus textos podem
ser acessados e lidos em <www.georgelakoff.com>.
150
O termo Midterm refere-se às eleições de deputados e senadores nos Estados Unidos da América.
151
Lembramos que o jornal The New York Times é radicalmente liberal e jamais “daria um tiro no próprio pé” (a
expressão shoot yourself in the foot, significando “dizer ou fazer alguma bobagem que causa problemas a você
mesmo”, é muito usada pelos americanos).
185

espaço no mundo pós-moderno, lugar onde existe uma forte tendência à predominância de
uma “identidade de posicionamento”152, definida por CHARAUDEAU como “a posição que o
sujeito ocupa em um campo discursivo em relação aos sistemas de valor que aí circulam, não
de forma absoluta, mas em função dos discursos que ele mesmo produz”
(CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2006, p. 267, grifo nosso). Essa fragmentação da
identidade feminina levou à pluralização do movimento (feminista). Temos, assim, grupos
feministas que se opõem fortemente ao aborto; outros que consideram o ser housewife153
(dona de casa) uma opção válida etc.:

Ora, essa fragmentação produz um interessante efeito sobre a


interdiscursividade enquanto processo de construção do discurso feminista (e do discurso pro-
choice): a principal força do discurso feminista consistia em incursões ao interdiscurso,
espaço de onde se retiravam enunciados padronizados – como o “A woman's Right To
Choose” – que eram redistribuídos através do mass media, cujo trunfo consiste em enviar a
mesma mensagem para o maior número possível de enunciatários, ou seja: o mass media só
funciona em um regime de informações padronizadas, perdendo força em um sistema que
privilegia a segmentação da informação.

Já foi dito que a história caminha em círculos, por isso iremos concluir este
capítulo pelo ponto em que o iniciamos, ou seja, a citação de Maingueneau em “Gênese dos
discursos”: “Se a História não interviesse, insidiosa ou violentamente, ter-se-ia apenas um
jogo de espelhos em que cada um leria no Outro sua imagem invertida, tendo por fundo um
campo de batalha indefinidamente simétrico” (p. 120). Mas a história intervém, muda de
rumo, e é isso que mostram as reportagens acima – e tantas outras que apareceram no mass
media recentemente – cuja veiculação por instituições fortemente secularizadas torna essas
discussões e temas conhecidos do grande público, que normalmente só acessa esse tipo de
órgãos de comunicação (secularizados). Naturalmente não estamos colocando aqui qualquer
coisa relacionada ao “fim da história”154, antes vemos o início de uma mudança nos rumos de
um debate que deve continuar e se tornar mais acirrado, ao incorporar outros elementos como
a eutanásia. Apenas esperamos ter contribuído para ampliar as reflexões sobre esses temas de
inelutável existência.

152
Que, obviamente, combina com a fragmentação do espaço social.
153
Ficamos pessoalmente impressionados ao constatarmos a força dessa tendência na sociedade norte-americana
e demoramos para superar a nossa perplexidade, não devido a quaisquer posicionamentos pessoais, mas apenas
pela rapidez na mudança de um discurso que nos parecia muito sólido. A capa da revista TIME de 22 de março
de 2004 (edição americana, anexo 33, p. 261) mostra essa realidade.
154
Tese defendida pelo norte americano Francis Fukuyama.
186

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sob o título “INTERDISCURSIVIDADE E POSICIONAMENTO LIBERAL:


A construção midiática do discurso pró-aborto” procuramos empreender um percurso que
demonstrasse como, a partir de uma relação construída dentro de um processo interdiscursivo
abrangendo os posicionamentos liberal e conservador e seus enfrentamentos através das
mídias, foram construídas as formações discursivas pro-choice e pro-life, com seus
respectivos discursos e práticas sócio-históricas.

Ao longo desse percurso foram desenvolvidas análises e reflexões que,


acreditamos, permitiram uma melhor compreensão desses fenômenos, além de suscitar novas
possibilidades de trabalho com temas polêmicos.

Pensamos que, de um modo particular, emergiram pontos importantes em


nosso fio condutor, como a constatação do surgimento, no século XX, de um discurso pró-
aborto. Esse tópico foi trabalhado no capítulo segundo “O percurso histórico da polêmica
sobre o aborto”. Conforme procuramos ali demonstrar, embora a prática do aborto tenha
existido ao longo da história, jamais, particularmente na história da civilização cristã
ocidental, havia existido um discurso, um posicionamento, uma formação discursiva que
desse suporte – pública e abertamente – a essa prática155. Creditamos a emergência desse
discurso ao processo instaurado pelo Iluminismo, que fortaleceu amplamente o pensamento
liberal e, simultaneamente, enfraqueceu o posicionamento católico, permitindo o
estabelecimento da secularização. Simultaneamente ao surgimento do discurso pró-aborto
emergiu também o seu Outro, o discurso pró-vida. A compreensão do interessante fenômeno
da emergência conjunta desse segundo discurso nos foi possibilitada pelos pressupostos de
Dominique Maingueneau em “Gênese dos discursos”, particularmente pelo conceito de
interdiscurso, elemento fundamental nesse processo, por demonstrar que os discursos em
confronto dentro de um determinado espaço discursivo não se constituíram de forma

155
Como também não havia um discurso pró-homossexualismo, pró-eutanásia, pró-pedofilia etc.
187

independente para em seguida serem confrontados, antes se formaram de maneira regulada no


interior de um interdiscurso.

Nossas reflexões sobre o interdiscurso foram ampliadas pelo conceito de


discurso constituinte, que nos permitiu compreender como a atividade enunciativa “se
instaura como dispositivo de legitimação de seu próprio espaço, incluindo seu aspecto
institucional; ela articula o engendramento de um texto e uma maneira de inscrever-se num
universo social” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 62). Aliando os conceitos de Thesaurus de
enunciados, particitação e hiperenunciador, utilizamos uma abordagem que, partindo do
conceito de discursos constituintes, procurou investigar não somente a relação do discurso
com o seu Outro, mas as relações do discurso com seu próprio posicionamento, em um
movimento duplamente direcionado, onde se dialoga simultaneamente com o Outro e com o
Mesmo.

Acreditamos que o imbricamento dessas duas proposições – as relações do


discurso consigo mesmo e com seu Outro – permitiu uma melhor percepção do continuo
movimento que busca afirmar a identidade de um discurso através da rejeição do Outro e
simultânea legitimação do Mesmo, através da inscrição em um determinado posicionamento.
Esse movimento foi amplamente mostrado na análise de nosso corpus, onde também ficou
clara a proposição de Charaudeau (2006) sobre a inexistência de informação puramente
factual, com ausência de implícito e de valor de crença.

Termos demonstrado a ausência de informação factual nas diversas mídias


parece-nos de real importância para o desenvolvimento de uma leitura crítica do conteúdo do
grande volume de informações que recebemos todos os dias e que são absorvidas sem maiores
análises. Fomos particularmente críticos na análise da imprensa nacional, representada pela
revista Veja. Esperamos que essas análises – que não possuem caráter destrutivo, antes visam
a uma correção de rumos – possam contribuir de alguma forma para a melhoria do trabalho
jornalístico no Brasil.

Finalmente, partindo da consideração de que essa polêmica não está de modo


algum encerrada, procuramos, através de uma análise que buscou situar o confronto dentro da
história contemporânea, estudar algumas perspectivas sobre o futuro do enfrentamento pro-
choice/pro-life, considerando os pressupostos predominantes em uma sociedade pós-moderna,
especialmente a fragmentação das grandes identidades discursivas construídas na idade
moderna, como os discursos feminista e liberal.
188

Entendemos, pois, que o percurso que aqui realizamos não encerrou de maneira
nenhuma as questões abordadas, antes abriu novas perspectivas e possibilidades que,
pessoalmente, pretendemos explorar em futuro próximo.
BIBLIOGRAFIA

AMOSSY, Ruth (Org). IMAGENS DE SI NO DISCURSO: a construção do ethos. Tradução


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191

ANEXO 1

Figura 63 – Bebê Afro-americano.


Disponível em: < www.priestsforlife.org>. Acesso em: 20 abr. 2007.
Este bebê afro-americano, perfeitamente formado, foi morto no quinto mês de gestação no
Michigan Avenue Medical Center, 30 South Michigan Avenue, Chicago, Illinois, em março de 1987. Ele foi
enterrado no St. Mary’s Cemetery, Evergreen Park, Illinois em 21 de junho de 1987 com a permissão da
arquidiocese de Chicago (tradução do original).

Figura 64– bebê de treze semanas.


Disponível em: < www.priestsforlife.org>. Acesso em: 20 abr. 2007.
Este bebê tinha treze semanas de idade. Ele foi morto no Michigan Avenue Medical Center, 30 South Michigan
Avenue, Chicago, Illinois, em abril de 1987 (tradução do original).
192

ANEXO 2

Figura 65 – Sucção e curetagem. Disponível em: < www.priestsforlife.org>.


Acesso em: 20 abr. 2007.

Figura 66 – Dilatação e evacuação. Disponível em: < www.priestsforlife.org>.


Acesso em: 20 abr. 2007.
193

ANEXO 3 – instrumentos usados para a prática do aborto. Disponível em:


<www.proestsforlife.org>. Acesso em: 20 abr. 2007.
194

ANEXO 4 – Partial birth abortion . Disponível em:


<http://www.nrlc.org/abortion/pba/PBA_Images> . Acesso em: 17 jun. 2007.
195
196
197

ANEXO 5 – The Church is the Pre-Eminent Defender of the Innocents.


Disponível em: <http://www.hli.org/commentaries_fr_tom_culture_of_life_
preeminent_defender.html>. Acesso em 28/08/2007

Rev. Thomas J. Euteneuer (EYE-ten-our) became president of Human Life


International in December of 2000. Human Life International is the world’s largest
pro-life organization with affiliate offices and associates in eighty countries
around the world. In six years of service to this unique mission Fr. Euteneuer has
traveled more than 700,000 miles as a pro-life missionary and visited more than
fifty countries.
Fr. Euteneuer was born in Detroit, Michigan in 1962, the fourth of seven children
born to Joseph and Marian Euteneuer. He has a Bachelor's degree in Philosophy
from the University of Notre Dame in Indiana as well as a Licentiate degree in
Biblical Theology from the Pontifical Gregorian University in Rome, Italy. He is fluent in Spanish.

The Church is the Pre-Eminent Defender of the Innocents - Rev. Thomas J. Euteneuer. May
28, 2001
Many people feel both overwhelmed and uncomfortable facing such complex technical
issues in the news today such as cloning, in-vitro fertilization, the freezing of embryos and genetic
screening (sex or defect selection). This is understandable. The technical sophistication required to
address these issues is immense, and the average lay person is unprepared to deal with them.
However, we cannot ignore these issues because they may affect any one of us at any time, and
we want to have solid answers when we need them. Not only that, but there is something more
fundamental at stake which we cannot ignore either: the sanctity of human life.
When the Catholic Church defends human life against those who would devalue and destroy
it in the modern era, she is simply doing what she has done for centuries. A mother defends her
children. Human sinfulness being what it is, each generation presents new attacks on God’s
precious gift of life, and the Church’s vocation is to stand in the breach between the attackers and
the innocents in every day and age.
For example, as far back as the second century a Church document known as The Teaching
of the Twelve Apostles (the Didache) condemned the ancient world’s practice of leaving “unwanted”
babies out in the wilderness to die from exposure or starvation. That practice was the ancient
equivalent of what we call a woman’s “right to choose”. In the Middle Ages the Church, through its
theologians, developed the Just War theory both to limit the scope of aggression and also to
protect innocent people from being unjustly subject to the ravages of war. In the same way, Pope
Leo XIII in 1891 put the authority of the Church squarely on the side of workers in order to limit
the sway of the powerful over them and to protect their dignity as workers and people.
My personal favorite defender of human life is Cardinal August Clemens van Galen, the
Archbishop of Muenster, Germany during the reign of Adolf Hitler. At the risk of his own life and
those of his priest, Cardinal van Galen stood in the pulpit of Muenster Cathedral and railed against
Hitler’s program of euthanasia which was secretly exterminating thousands of handicapped and
retarded Germans who were deemed “unfit” for membership in the Master Race. It was the
Cardinal’s public defense of life that was primarily successful in stopping the extermination and
earned him the personal wrath of Hitler who declared that he would personally hang Cardinal van
Galen when the war was won. The Cardinal was rightfully given the title, “The Lion of Muenster” for
his courage in defending life.
The twentieth century alone has witnessed an extraordinary outpouring of encyclicals and
documents by our courageous popes in defense of innocent human life and the sacred institutions
of marriage and the family. Pope Pius XI wrote the encyclical Casti Connubii (1930) to defend the
sanctity of marriage and the family when the Anglican Church permitted contraception in some
circumstances earlier that year. The Second Vatican Council condemned all crimes against human
life in its Pastoral Constitution on the Church in the Modern World (1965). In 1968 Pope Paul VI
wrote his prophetic encyclical Humanae Vitae reaffirming the Church’s stance on the dignity of
human life and procreation which was then followed logically by Pope John Paul’s Evangelium Vitae
in 1995 defending life from the more violent and insidious forces of death in the modern age. In
198

addition to these, each 20th century pope has written social encyclicals defending the dignity and
rights of workers in modern circumstances.
It is therefore no wonder why the Church is bracing herself for new battles in the field of
bioethics – in a sense she cannot avoid the battle. The battle was already engaged in 1985 when
the Congregation for the Doctrine of the Faith issued an Instruction called by its Latin title Donum
Vitae (Instruction on Respect for Human Life in Its Origin and on the Dignity of Procreation). It was
a daring move by the Holy Office to actually question the authority of science and remind scientists
that they are subject to ethical standards in the new field of biotechnology. That document is sort
of like the Magna Carta of Church teaching with respect to biotechnology in that it articulates the
basic principles by which we are to evaluate all the life issues but especially those which involve
technical manipulation of human reproduction.
The amazing wisdom of the document did not surprise anyone who has ever read a moral
or social encyclical because it simply reaffirmed eternal truths that we have been taught by the
Church from time immemorial: namely, that science and technology must always be at the service
of the human person and never used against man, that the criteria for making technical judgments
are the sanctity of the human person and the integrity the procreative process, and finally that
every human being is to be considered a gift from God and must be the fruit of marriage. In this
sense the Congregation was not presenting anything new because these are gospel values that
have been handed down to us by the Church for centuries.
The freshness of the Instruction is in its application of these principles to modern
circumstances. Never before has humanity had to grapple with the ethical dimensions of creating a
human being in a petri dish (in-vitro fertilization), but modern technology has made such a
procedure possible. The technological door is also open to the implantation of one woman’s
fertilized egg into another woman’s body (surrogate motherhood). The document addresses these
two issues in detail and comes to a firm if disappointing conclusion to many: these procedures are
wrong because they violate both the dignity of the human person and the integrity of the
procreative process.
Human embryos are not to be played with in laboratories, the document reasons, because
it violates a human being’s innate dignity as a person. Even though an embryo is a microscopic
group of cells, both faith and science tell us that it is still a unique human being. In addition to
that, science must be proscribed by ethical norms in order for it to not to arrogate to itself control
over sacred realities like human life. Human embryos must not be transferred to the bodies of
other women either because each human has a right to birth from its own mother no matter how
grave or painful the situation of infertility may be. That intimate biological and spiritual bond
between mother and child must be preserved intact despite the pressures of infertile couples to use
technology to “produce” a child. Only God has that right. Therefore, any procedure which violates
the unity of the marriage bond is illicit and harmful to the couple and to humanity as a whole.
Among other issues the document addresses are questions which may affect many people
today: prenatal diagnosis – i.e. amniocentesis – (only if it is used to safeguard the life of the child
not destroy it); embryonic and fetal experimentation (only if it is therapeutic, does no harm to the
mother-child relationship and is done with the consent of the couple); producing and using “spare”
embryos obtained by in-vitro fertilization (it is immoral to produce embryos in a laboratory and
even more so when scientists subject them to experimentation or freezing); genetic manipulations
for sex selection or other predetermined qualities (it is always contrary to the dignity of the human
person); cloning (it is always in opposition to the moral law and the dignity of procreation).
The Vatican now has an office called the Pontifical Academy for Life which has the
unenviable task of staying on top of all the developments in modern reproductive science and
evaluating them according to the sound teaching of the Church. Archbishop Elio Sgreccia heads the
Academy and is himself an expert in the area of biotechnology. His office provides an immense
service to the Church by sponsoring conferences for experts in these areas and producing
documents which guide the faithful in their moral decision-making. The Vatican knows that the
moral principles never change; they just need application to new circumstances. It is the Church’s
mission throughout time to stand up for all that is sacred but principally to defend the dignity and
sanctity of human life against all its aggressors. The battlefield is new, but the Church’s zeal for life
is as ancient and as beautiful as the Church herself!
199

ANEXO 6

"NÓS FIZEMOS ABORTO" - 17-09-1997

"NÓS FIZEMOS ABORTO"

Mulheres de três gerações enfrentam a lei, o medo


e o preconceito e revelam suas experiências

Andréa Barros, Angélica Santa Cruz e Neuza Sanches

Tata Amaral, cineasta Cássia Kiss, atriz Edna Roland, psicóloga

Cissa Guimarães, atriz Ruth Escobar, empresária, e a mãe, Marília Elba Ramalho, cantora
200

Marli Medeiros, líder comunitária Marília Gabriela, jornalista Maria Adelaide Amaral, escritora

ELAS RESOLVERAM FALAR. Quebrando o muro de silêncio que sempre cercou o


aborto, oito dezenas de mulheres procuradas por VEJA decidiram contar como aconteceu,
quando, por quê. Falaram atrizes, cantoras, intelectuais mas também operárias, domésticas,
donas de casa. Falaram de angústia, de culpa, de dor e de solidão. Também falaram de
clínicas mal equipadas, de médicos sem escrúpulos, de enfermeiras sem preparo, de maridos e
namorados ausentes. A apresentadora Hebe Camargo contou que, quando era uma jovem de
18 anos, ficou grávida do primeiro namorado e foi parar nas mãos de uma curiosa que fez a
cirurgia sem anestesia nem cuidado. A atriz Aracy Balabanian, a Cassandra do Sai de Baixo,
ficou grávida quando estava chegando aos 40 anos e dando fim a um longo relacionamento.
Resolveu fazer o aborto, convencida de que a criança não teria um bom pai nem ela seria
capaz de criá-la sozinha. Metalúrgica da Força Sindical, a mineira Nair Goulart, 45 anos, fez
dois abortos nos anos 70 por motivos econômicos. Ela e o marido, também operário,
ganhavam pouco, viviam num quarto de despejo e não teriam meios de educar nenhum filho.

Quando o Congresso brasileiro debate a regulamentação de uma legislação que autoriza a


realização de aborto apenas em caso de estupro e de risco de vida para a mãe como está
previsto no Código Penal desde 1940 , a disposição das mulheres que falaram a VEJA não é
apenas oportuna, mas também corajosa. Embora o 1º Tribunal do Júri de São Paulo, o maior
do país, já tenha completado mais de uma década sem condenar nenhuma mulher em função
do aborto, a legislação estabelece para esses casos penas que vão de um a três anos de prisão.
E a maioria delas não fez aborto pelos motivos previstos em lei, mas porque, cada uma em seu
momento, cada uma com sua história pessoal, considerou as circunstâncias e concluiu que
interromper a gravidez era uma saída menos dolorosa do que ter um filho que não poderia
criar.
201

Nair Goulart, metalúrgica Vera Gimenez, atriz Ivonete da Silva, faxineira

Arlete Salles, atriz Tereza Rachel, atriz Vânia Toledo, fotógrafa

Aracy Balabanian, atriz Angela da Silva, doméstica

Cláudia Alencar, atriz Cynthia Sarti, antropóloga Zezé Polessa, atriz


202

"Lembro de uma mulher falando alto: 'Não grita! Não


grita!'

Eu tinha 18 anos e um corpinho lindo, sobrancelhas grandes,


cabelos compridos e escuros. Começava minha carreira de
cantora no rádio. Na minha primeira relação sexual fiquei
grávida. Não podia contar para ninguém. Meus pais sempre
foram muito severos e naquela época era uma perversão ter
relação sexual sem se casar. Contei para uma amiga, uma
vizinha. Ela soube de um local onde uma mulher fazia
aborto. Ela não era médica. Numa sala pequena, sem
anestesia, sem medicamento nenhum, fez a curetagem. A dor
Foto: Laison Santos era tão intensa que ameacei gritar. Jamais vou esquecer-me
daquela voz falando em tom alto e áspero para eu calar a boca. Voltei para casa e tive
hemorragia por vários dias. Acabei em um hospital. Estava muito doente. Minha família
nunca soube disso e foi ruim ter de esconder. Para ser mãe a gente tem de desejar ter um filho.
Ele tem direito à vida, é verdade. Mas com amor dos pais, com condições para crescer com
saúde e boa educação. Quem vai garantir isso? Um Estado falido, miserável e hipócrita? A
Igreja? Nem pensar. Sou católica e até hoje não me arrependo do que fiz. Hoje tenho o
Marcelo, a melhor coisa que me aconteceu. Estava casada e preparada para ter um filho.
Sinto-me muito feliz."

Hebe Camargo, 68 anos, apresentadora de TV

Quem fala de aborto no Brasil de hoje não enfrenta apenas uma questão legal mas a
condenação de quem o considera um inaceitável atentado à vida humana. E também a
hipocrisia de quem apenas pretende que não se comente em voz alta um problema que afeta
milhares de famílias. Um dos países mais conservadores do mundo em matéria de legislação
sobre o assunto, o Brasil perfila-se com as teocracias islâmicas no trato do aborto. As
pesquisas de opinião revelam que, nesse assunto, existem dois mundos de mulheres
brasileiras. Um levantamento do instituto Vox Populi feito com eleitores de classe média
demonstra que uma maioria de 59% é favorável a que o governo autorize a interrupção da
203

gravidez não apenas nos casos previstos pelo Código Penal, mas sempre que a mulher assim o
desejar, respeitando-se os padrões internacionais estabelecidos sobre o assunto (veja
reportagem). Coube ao Ibope, contudo, apurar essa mesma questão no conjunto de 160
milhões de brasileiros. A maioria favorável encolheu, transformando-se numa minoria de
apenas 18%, contra 80% contrários à legalização. Mas há uma novidade. O mesmo Ibope
confirma aquilo que outras pesquisas já apontaram. Em se tratando dos casos em que houve
estupro ou em que há risco de vida para a mãe, uma maioria de 70% considera que o aborto
deve ser autorizado sem mais demora. É uma notícia coerente com a realidade do país.

Juízes anômalos A maioria das pessoas ainda não se deu conta, mas, num movimento
discreto o suficiente para que não se produzam escândalos, porém eficaz a ponto de produzir
resultados em escala apreciável, um número cada vez maior de mulheres, juízes e médicos
procura e encontra brechas cada dia mais amplas para realizar abortos com amparo legal, em
hospitais públicos, com condições de higiene e saúde que em nada lembram aquelas clínicas
de má fama e tantos traumas do passado. O prédio da 16ª Vara Criminal de São Paulo é o
mais movimentado do Judiciário no Estado. No 16º andar, esse burburinho é menos
acentuado. Ali trabalham o juiz corregedor e quatro juízes auxiliares da Polícia Judiciária do
Estado, chamados de brincadeira pelos corredores de "os anômalos". Desde 1993, eles
concedem alvarás para a chamada interrupção médica da gravidez, o aborto feito por
anomalia fetal. Pelas contas do juiz corregedor Francisco José Galvão Bruno, mais de 130
alvarás saíram dali. Para se ter uma idéia, todos os outros Estados da União somados
acumulam apenas 300 alvarás concedidos desde 1991. No setor dos "anômalos", um alvará sai
em três dias. Se a gravidez envolve anomalia grave, incurável e sem perspectiva de sobrevida
prolongada para o bebê, nunca é recusado. Todos os casos do gênero são resolvidos com uma
justificativa padrão pois, a rigor, não existe amparo legal para esse tipo de aborto, já que o
Código Penal apenas fala em casos de estupro e risco de vida para a mãe. O juiz e seus
auxiliares, no entanto, consideram que, ao autorizar o aborto em caso de estupro, os
legisladores do Código Penal brasileiro tinham em mente a manutenção da saúde mental da
mãe. Ora, raciocinam, os casos de anomalia fetal não foram incluídos no Código porque em
1940, quando foi elaborado, não havia tecnologia suficiente para identificar doenças em fetos.
"Mas, por analogia, consideramos que casos de anomalia fetal são graves ameaças à saúde
mental das mães. Portanto, concedemos os alvarás", justifica Galvão Bruno.
204

"O médico disse: 'Só vou fazer o aborto porque é um


direito seu'

Era um senhor de meia-idade, simpático, que me explicou


que não fazia aquilo por dinheiro. Defendia o direito de a
mulher abortar sem correr riscos. Não gostaria de entregar
meu corpo a um aborteiro profissional. Eu nunca entrara
numa sala de cirurgia. Tinha 20 anos e fazia cursinho.
Namorava havia dois anos e estudava muito para entrar na
USP. Minha primeira reação quando soube que estava
grávida foi ficar feliz. Mas nós não tínhamos condições
financeiras. Foi uma decisão tranqüila. Eu não estava pronta
para ser mãe. Mas sou louca por ter um filho."

Foto: Antonio Milena

Renata Vicentini Mielle, 25 anos, estudante da USP

A rapidez e a justificativa padrão transformam o setor do juiz Galvão Bruno numa espécie de
linha de produção de alvarás. O pedido chega, acompanhado de dois laudos médicos, é
rapidamente analisado e a autorização legal para o aborto é concedida. Hoje, é simples. Mas,
como tudo o que envolve o aborto, já houve conflitos por ali. "Para chegar a essa serenidade
foi um sufoco", diz o juiz. O primeiro caso de aborto por anomalia chegou às suas mãos logo
que assumiu o comando da Polícia Judiciária, em 1993. Quando lembra do episódio, ele
define: "Foi uma decisão sofrida". Casado com uma espírita, pai de dois filhos, 46 anos e
católico praticante, Galvão Bruno é contra o aborto. Teve até uma experiência traumática,
quando sua mulher sofreu um, espontâneo. "Vi o feto, de oito meses, e fiquei traumatizado.
205

Nunca permitiria que minha esposa ou minha filha abortassem", conta. Para começar a decidir
sobre o assunto, debruçou-se numa pesquisa sobre doutrinas religiosas, procurou referências
sobre o tema em autores como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, afogou-se em
debates com religiosos. O primeiro alvará para aborto por anomalia fetal de São Paulo foi
concedido no dia 5 de novembro de 1993, pelo juiz Geraldo Pinheiro Franco, católico. Galvão
Bruno teve longas conversas com ele. "Cheguei à conclusão de que minhas convicções
pessoais e religiosas devem ficar em segundo plano quando estou no papel de juiz. Tenho
aqui em meu escritório cinco juízes auxiliares um espírita e quatro católicos. Nenhuma
mulher. Quando estamos decidindo, a lei é a nossa religião. Isso é o bastante para nossa
consciência. O fato é que não podemos comprometer a saúde mental de mães que estão
passando por uma situação terrível", diz.

Discussão interminável Essa é a mudança. A decisão individual, privada, reservada, antes


escondida, começa a invadir a esfera pública. Fala-se, discute-se. Porque a decisão sobre um
aborto envolve aqueles dilemas morais insolúveis, que lidam com vida e morte e, de certa
maneira, é irmã gêmea da discussão sobre a eutanásia. Feministas de longa jornada, como a
socióloga Danielle Ardaillon, que nesta semana defenderá sua tese de doutorado na USP
sobre o tema, aponta: "As mulheres sabem que a responsabilidade final é delas. O difícil é
enfrentar a pressão dos valores mais prezados, o diz-que-diz, e, muito mais importante, como
decidir não apenas com a cabeça tão cheia, mas com o corpo habitado?". A poeta americana
Adrienne Rich escreveu uma bela definição do que venha a ser essa habitação: "A criança que
carrego por nove meses não pode ser definida nem como eu nem como não-eu". Aí o drama.
O aborto dispõe sobre a vida de um outro. Quem tem o direito de atentar contra ela? Não é
doloroso autorizar o aborto, quando se sabe que dentro de poucos meses aquele ser de formas
arredondadas vai crescer, depois estará andando, sorrindo, terá um nome, fará brincadeiras? É
muito doloroso. A força dos argumentos religiosos, que tanto podem ser sinceros como
apenas manipulados, vem daí. Fala dom Rafael Cinfuentes, responsável pela Pastoral Familiar
da Arquidiocese do Rio de Janeiro e um dos principais organizadores da visita do papa em 2
de outubro: "Entre o embrião, o feto e o bebê não há uma diferença qualitativa. No início da
fecundação já é uma vida humana". Bem diferente de fundamentalistas, dom Rafael embasa
seu raciocínio em considerações de biologia molecular: "Esse é um princípio insofismável da
genética moderna: dono de todo o patrimônio genético humano, o feto tem vida. Por isso, a
legalização do aborto é a legalização de homicídio. É o Estado, que deveria zelar pela vida de
todos, inclusive dos mais desprotegidos, assumindo a posição de algoz. O bebê está indefeso,
206

inocente. Ele não tem advogado de defesa. É como se o seio materno estivesse passando de
lugar acolhedor, de proteção, para cadeira elétrica".

"Não podia querer aquele filho.


Não era fruto do amor, mas de um estupro

Era verão de 1987, eu passava férias em Salvador. Numa noite, quando voltava sozinha para o
hotel, um homem bêbado me agarrou, tirou minhas roupas à força e me estuprou. Ninguém
ouviu meus gritos. Nem o meu choro. No dia seguinte, voltei para Belo Horizonte. Aquele
monstro me engravidou. Eu tinha 24 anos, era divorciada e mãe de um filho de 3 anos. Fui
para uma clínica no Rio de Janeiro. A única sensação que tive foi de alívio. A decisão foi
madura, mas fiquei muito tempo em conflito porque, afinal, eu tinha um filho e tive uma
formação católica."

Myriam Marques, 34 anos, enfermeira

Culpa Dom Rafael tem lógica no que diz. Tanto que nenhuma mulher que fez aborto
consegue referir-se ao fato com a naturalidade da pessoa que foi lixar unhas no cabeleireiro.
"Tem hora em que eu lembro que fiz um aborto e digo para mim mesma: 'Não havia outra
saída, eu agi corretamente' ", fala a cantora Elba Ramalho, 46 anos, um filho, um aborto, que
realizou 24 anos atrás, numa clínica no Recife. "Mas depois eu penso de novo e fico em
dúvida: 'Será que agi certo, mesmo?' " A própria Elba completa: "Se ficasse grávida de novo,
não faria o aborto mesmo que não desejasse o filho". VEJA encontrou mulheres que
admitiram ter realizado um aborto mas não conseguem conviver com o fato. Não importa que
não estivessem em condições de criar a criança que levavam no ventre, que depois tiveram
filhos saudáveis, criados com todo carinho, e algumas estejam até à espera dos netos em
muitos casos sobrou uma coisa amarga, uma tristeza, uma culpa. "É sempre um caso de
extrema necessidade", afirma a socióloga e professora Maria Ligia de Moraes, da
Universidade de Campinas. Maria Ligia abortou no exílio, quando se tornara viúva de Alberto
Nehring, engenheiro que militou numa organização armada e foi morto pelo porão militar. Foi
a decisão mais lúcida que poderia ter tomado, mas, mesmo assim, ela é dessas pessoas que de
207

certa maneira sentem necessidade de dizer e repetir: "Adoro minha filha, adoro criança, adoro
meus netos".

A atriz Cássia Kiss, 39 anos, um aborto, dois filhos, lembra: "As pessoas têm de ter
consciência de que o aborto, em qualquer circunstância, é um crime", afirma. Ela baseia sua
opinião em dois fatos de sua vida. Em 1990, alguns anos depois de ter feito o aborto, Cássia
Kiss fazia parte do elenco da novela Pantanal, da Rede Manchete. Ela interpretava uma
mulher forte, parideira, de nome Maria Marruá. Em uma cena antológica, a personagem dá à
luz a menina Juma Marruá. "Fiquei emocionadíssima durante as gravações dessa cena. Logo
depois, chorei copiosamente durante quase uma hora. Foi um momento divino. Ali comecei a
descobrir o valor da maternidade e da importância de ter um filho", diz. Numa segunda fase
de sua vida, já casada e disposta a ter um filho, engravidou. Mas, com três meses de gravidez,
Cássia foi surpreendida por um aborto espontâneo. "Recebi aquilo como um castigo de Deus.
Mesmo traumatizada resolvi que iria tentar novamente, quantas vezes fossem necessárias.
Hoje eu acho que me recusaria a fazer qualquer exame, pois, mesmo que ficasse comprovado
algum problema com o bebê, ainda assim eu levaria a gravidez adiante."

"Resolvemos sair do país depois do golpe de 64. Não


podíamos levar um bebê

Eu fazia filosofia na USP, era recém-casada, tinha 22 anos e


descobri que estava com dois meses de gravidez. Um médico
famoso me indicou o consultório de uma médica amiga. Fui
sozinha achando que não haveria problema nenhum. Meu
marido tinha outro compromisso. Passei mal durante a
curetagem, feita sem anestesia. A dor era forte demais e eu
Foto: Antonio Milena desmaiei. Depois de algumas horas em repouso, fui andando
para casa. No caminho, vomitei e quase desmaiei outra vez.
Pessoas estranhas me ajudaram. Foi horrível. Dois dias depois, estava num hospital, com
hemorragia intensa. Descobri que não era tão forte para encarar tudo sozinha."

Clarice Herzog, 55 anos, publicitária


208

É tão difícil tomar a decisão de fazer um aborto que, nos países onde essa cirurgia foi
legalizada, a mulher que resolve fazer a operação é obrigada a cumprir uma jornada de
reflexão, em geral de uma semana para que possa amadurecer a idéia, evitando fazer algo de
que venha a se arrepender mais tarde. Uma pessoa com valores religiosos muito arraigados
talvez nunca deva fazer um aborto pois seu risco será de sentir-se mal pelo resto da vida,
ainda que tenha extraído do útero um feto doente, incapaz de levar uma vida normal ou
mesmo de sobreviver por mais do que alguns dias. Fora do mundo da doença e da violência, a
discussão do aborto coloca-se, na realidade, para mulheres ocupadas em tocar sua vida, ou
com falta de dinheiro e mesmo de neurônios maduros para cuidar de um filho no momento.
Quando é possível fazer um aborto? Depende.

Guilhotina Uma mulher que vivesse na Suíça, no século XIII, seria enterrada viva pois
essa era a punição para quem interrompesse a gravidez, mesmo demonstrando a extraordinária
coragem necessária para enfrentar a medicina daquela época. Se estivesse na França, durante
a II Guerra, o risco seria a guilhotina a pena pelo aborto sob a ocupação nazista. Por outro
lado, se vivesse na Idade Média e fosse católica fanática, com a felicidade de ser aconselhada
pelo maior pensador de seu tempo, Tomás de Aquino, poderia fazer o aborto com a bênção
dos céus. Ao contrário dos prelados de hoje, Tomás de Aquino era favorável ao aborto. Pelas
concepções da Igreja da época, que acompanhava o que se conhecia do organismo humano,
pensava-se que a vida começava depois do nascimento e não antes. Assim, o aborto podia
ser feito sem receio algum. O mesmo acontecia entre alguns índios brasileiros antes do
desembarque de Pedro Álvares Cabral, em 1500, como anotou o padre José de Anchieta:
"Essas mulheres brasílicas mui facilmente movem (abortam): ou iradas contra seus maridos,
ou não os têm por medo; ou por outra qualquer ocasião mui leviana bebem beberagens, ou
apertam a barriga, ou tomam alguma carga grande". No final do século XX, no Brasil, nem
todas as religiões condenam o aborto. Os evangélicos estão divididos entre os que o
combatem com dureza e aqueles que o admitem em alguns casos. Favorável à legalização do
aborto, o pastor Jaime Wright, reverendo da Igreja Presbiteriana, acha que "é um direito da
mulher decidir o que fazer". Nem todas as fileiras da Igreja Católica têm a mesma opinião que
o papa João Paulo II. Religiosos do círculo do cardeal Paulo Evaristo Arns admitem a
chamada pílula do dia seguinte que age após o encontro do espermatozóide com o óvulo e
impede a fixação do ovo humano no útero, produzindo uma espécie de aborto químico.
209

"Já tinha três filhos e usava Diu. Não podia ter uma
quarta criança

Conversei com meu marido e chegamos à conclusão de que


o aborto seria a melhor coisa a fazer. Procurei meu médico
e ele indicou um outro. Foi muito rápido, e, quando acordei,
tudo tinha acabado. Depois disso, voltei ao meu
ginecologista. Ele me examinou e estava tudo bem. A
decisão foi difícil, pesou-me por um tempo. Como eu tinha
outros filhos, pensava muito nisso. Mas eu tinha certeza de
Foto: Antonio Milena
que queria ter somente três filhos. Além disso, não me senti
culpada porque eu me protegia com o DIU. Acho que a mulher tem plenas condições de
decidir o que é melhor para ela."

Pinky Wainer, 42 anos, artista plástica

Como sempre acontece, são os valores de cada época e de cada lugar que determinam a
discussão sobre temas delicados como esse. Algumas mudanças de valores são tão
gigantescas que não podem sequer ser discutidas. Podem ser provadas com apenas uma
consulta ao IBGE, que registra que a entrada das mulheres no mercado de trabalho deu fim à
família extensiva, aquela com oito, dez ou mais filhos. Segundo o último censo demográfico,
as mulheres que se encontram na faixa dos 20 aos 24 anos e não trabalham têm três vezes
mais filhos do que as economicamente ativas. Na faixa dos 25 aos 29 anos, 50% das mulheres
economicamente ativas não têm filhos. Entre as que não trabalham, esse porcentual é de
apenas 17%. "São números reveladores de como a vida profissional se contrapõe aos filhos,
embora não saibamos se essas mulheres não trabalham porque têm filhos, ou não têm filhos
porque trabalham", diz a demógrafa da Fundação Seade e doutora em saúde pública Maria
Graciela Morell.

Anomalia "O debate não deve girar em torno da vida no ventre da mãe, mas do tipo de vida
que o feto terá depois do nascimento, quando se transforma num bebê, num cidadão",
considera o obstetra Thomaz Gollop, professor de genética médica da Universidade de São
Paulo. A julgar pelo número de mulheres que fazem aborto no Brasil, essa discussão vem
210

sendo feita todos os dias e é imensa a quantidade daquelas que acham melhor interromper a
gravidez. Legalmente, o número é baixíssimo. Somando os casos de anomalia com os de
estupro e risco de vida para a mãe, desde 1989 em todo o país foram feitos apenas 205 abortos
legais. A questão é a clandestinidade. O número mais aceito de abortos é uma enormidade
1,4 milhão por ano. Como nascem perto de 3 milhões de crianças, conclui-se desse cálculo
que de cada catorze mulheres que ficam grávidas dez vão para a maternidade e quatro
entram numa clínica clandestina para fazer aborto. Num puro exercício matemático, e
supondo que as mulheres só fizessem um aborto na vida, pode-se até imaginar que, percorrido
o prazo de 25 anos, o equivalente a toda a população feminina brasileira teria feito aborto. É
difícil adivinhar onde se pode realizar 1,4 milhão de cirurgias desse tipo sem causar um
imenso transtorno em hospitais, clínicas e consultórios médicos pois a rede pública do
Estado de São Paulo, que é de longe a maior do país, possui 85.000 leitos.

"Eu era contra o aborto. Até que descobri que meu


filho iria nascer muito doente

Os exames de ultra-sonografia mostraram que o feto tinha


síndrome de Turner, disfunção cromossômica que lhe
garantiria sobrevida de apenas alguns dias. Quando soube,
minha primeira reação foi tê-lo assim mesmo. Durante
duas semanas minha vida virou do avesso. A certa altura vi
que, para protegê-lo, estava sendo egoísta. Não havia
motivo para prolongar o sofrimento daquele feto. Fiz o
aborto com autorização judicial. A sensação de estar
fazendo um aborto dentro da lei muda tudo. Mesmo
arrasada, senti-me amparada, protegida."
Foto: Claudio Rossi

Desirèe Zanelato, 30 anos, biomédica

Ainda que tais estimativas mereçam a credibilidade de qualquer outra estatística brasileira, é
tão fácil encontrar pessoas que tenham feito um ou mais abortos na vida que a conclusão é
que têm boas raízes na realidade. Como a pílula anticoncepcional e o DIU são invenções
211

recentes, e a camisinha só teve seu grande momento depois da Aids, o aborto é tão mais
comum quanto maior for a idade da mulher. "Com tantos métodos à disposição, é só em
último caso que o aborto se apresenta hoje", diz a deputada Marta Suplicy. "Antigamente não
era assim." VEJA conversou com 22 estudantes da USP na última quarta-feira. Todas usam
métodos para evitar filhos. Apenas uma, a aluna do 3º ano de química e diretora do DCE
Renata Mielli, 25 anos, admitiu já ter feito um aborto. Nenhuma delas, porém, descarta
liminarmente a hipótese de fazer um. "Ninguém na nossa idade quer ser mãe", explica
Natasha Madov, 21 anos, que cursa o 3º ano de jornalismo. "Só ficando grávida para saber."

Uma amostra de que o aborto varia conforme a idade se encontra nos depoimentos dados à
revista. Entre as mulheres ouvidas, 57,3% têm mais de 45 anos. Outras 38,2% têm entre 26 e
40 anos. Apenas 4,5% têm até 25 anos. Dona Marília, 90 anos, mãe da empresária e atriz Ruth
Escobar, fez dois abortos. A própria Ruth fez três. Ela tem três filhas, das quais duas fizeram
um cada uma. Numa das vezes, a própria Ruth foi com a filha até a clínica. "Foi difícil",
lembra a empresária. "Eu, que era uma personalidade conhecida, que havia declarado
publicamente minha posição a favor da legalização do aborto, acabei naquela situação." Nas
antigas clínicas que realizam aborto no país, o movimento tem diminuído. Em grande parte
isso aconteceu porque hoje em dia não é preciso fazer uma cirurgia para provocar um aborto.

Existe uma droga, originalmente fabricada contra úlcera, chamada Cytotec, que é usada como
abortivo em vários países, inclusive no Brasil. Sua venda é proibida, o único meio de
encontrá-la é por contrabando, mas o Cytotec é um sucesso. Estima-se que 80% dos abortos
realizados no país empreguem esse tipo de remédio. O preço é de 100 reais por quatro
comprimidos no mercado negro, enquanto um aborto numa clínica com jeito de hospital
decente pode chegar a 2.000 reais. Há dois anos, a primeira-dama americana, Hillary Clinton,
visitou uma maternidade em Salvador, mostrando-se horrorizada com os casos de mulheres
com seqüelas de abortos malfeitos, em qualquer quartinho sujo. Hillary chegou a filmar o
hospital para exibir as cenas mais chocantes nos Estados Unidos para demonstrar como fica
ruim a vida das mulheres em países onde o aborto não é legalizado. Dois anos depois de uma
visita tão ilustre, a diretora do lugar, Sara Barbosa, comemora a diminuição de óbitos na
chamada "enfermaria do aborto".

"O Cytotec chegou à Bahia", diz ela. À venda por contrabandistas, a droga provoca
contrações fortíssimas, que produzem hemorragias intensas. Sua eficácia não é garantida. O
embrião pode não sair provocando uma infecção gravíssima na mulher. Ou seja: não é
212

nenhuma sétima maravilha abortiva. Mesmo na era do Cytotec, contudo, registram-se casos
de mulheres que interrompem a gravidez em situação brutal. A estudante pernambucana
Cisleide Silva, 19 anos, deu entrada na emergência do Hospital Tricentenário, em Olinda, às
11 horas da terça-feira passada. Amparada por familiares, estava pálida, com febre e
sangramento ocasionados por um aborto induzido cinco dias antes. Cisleide tomou dois
comprimidos de Cytotec, que expulsaram o feto lentamente. Exames no hospital mostraram
que a gravidez foi interrompida no terceiro mês. Mãe de uma menina de 2 anos, Cisleide ficou
desesperada quando soube que estava grávida. Ela não trabalha, cursa o 2º. grau e mora com o
marido, Antonio Pereira, de 23 anos, na casa dos pais. Motorista de caminhão, Pereira ganha
460 reais por mês. Cisleide não esperava que fosse padecer tanto tomando Cytotec. "As
cólicas eram tão fortes que parecia que eu estava parindo", diz.

É difícil encontrar profissionais curtidos pelos corredores dos hospitais públicos brasileiros
que não usem o tempo inteiro a frase "Aborto é uma questão de saúde pública". A chefe do
departamento de enfermagem da Universidade Federal de São Paulo, Lucila Viana, 54 anos, é
uma dessas pessoas. "Durante anos, vi mulheres desesperadas chegando ao hospital e dizendo
que não podiam e não queriam ter filhos. É uma realidade triste e constrangedora para quem
trabalha com saúde. Qualquer resposta é inadequada. Não podemos aconselhar ninguém a
fazer aborto, porque isso é ilegal. E como vamos dizer para não fazer? O sentimento de
frustração e impotência é incrível", conta.

A clandestinidade que envolve os abortos também lança um manto de mistério sobre suas
conseqüências. Não se tem muito controle sobre o que acontece nesse submundo. Intrigada
com essa névoa, Lucila resolveu puxar o fio da meada pelo lado mais trágico, o das mortes
declaradas. Em sete hospitais públicos da periferia de São Paulo, descobriram-se oito óbitos
diretamente atribuídos a abortos, em dados de 1994. Na verdade, sabe-se que o número é bem
maior. A maioria é registrada através de suas causas finais. Uma morte por aborto precário,
por exemplo, pode ser arquivada como um caso de embolia pulmonar, hemorragia uterina ou
septicemia. Na lista disponível, havia uma adolescente de 16 anos e outra de 17. As demais
mulheres tinham 20, 30, 31, 33 e 35 anos. Lucila foi até a casa das famílias delas e encontrou
um perfil parecido. Todas eram solteiras, tinham o 1o. grau, namorado fixo e moravam na
periferia. Em todos os casos, a família não sabia que estavam grávidas. Por isso, elas
demoraram muito a procurar socorro depois que surgiram as complicações. Morreram sem
que ninguém soubesse que métodos abortivos usaram. São baixas causadas pelo limite do
213

abandono, da ignorância. "Essas mortes são pavorosas, porque dolorosas, solitárias,


envolvidas em segredos e baseadas na falta de conhecimento. E só acontecem com mulheres
pobres, que dependem de um local público para fazer qualquer intervenção", diz Lucila.

Em um túmulo simples no cemitério da Santa Casa em Porto Alegre, identificado apenas pelo
número 1.311 e uma rosa de plástico vermelha, está o corpo de Maria Barbosa da Silva, 29
anos, morta há pouco mais de um mês em decorrência de um aborto clandestino. Por dez dias,
Maria suportou em silêncio o aborto e as dores em decorrência de uma infecção generalizada
contraída na clínica clandestina. Só quando não deu mais para disfarçar foi para o hospital
onde ainda agonizou por dezessete dias antes de morrer. Manteve até o fim o pacto de silêncio
exigido pelos aborteiros: o de nunca revelar quem fez o trabalho caso algo saia errado.

O pior método A mãe, dona Senhorinha Barbosa da Silva, 69 anos, foi pega de surpresa. Já
tinha notado que a filha andava pálida, insistia em levá-la ao posto da Vila Tronco, onde mora
em Porto Alegre, mas Maria se negava. "Ela não tinha força para nada, nem para lavar a
roupa", lembra. Até que, numa manhã de julho, Maria passou mal e foi hospitalizada.
Somente aí dona Senhorinha ficou sabendo que a filha tinha feito um aborto. "Se ela tivesse
me contado, eu aconselharia a não fazer", diz Senhorinha, que, apesar de no seu tempo não
haver anticoncepcionais, teve apenas três filhas. O método que usava era simplesmente não
manter relações outro fato a lembrar como essa questão envolve os valores de cada um.

Imaginar que a legalização do aborto aumente o número de casos é uma visão enganosa sobre
o problema. Na Itália, os casos registrados caíram 20%. Na França, eram 250.000 abortos em
1976, foram 195.000 em 1992. Em Cuba, com a legalização, houve uma queda de 50% nos
últimos cinco anos. O mais importante, porém, é que menos mulheres morrem quando o
aborto é legalizado. Porque é mais fácil pedir ajuda, é mais fácil atender, ninguém tem medo
de falar do problema. Em 1973, na França, morreram 27 gestantes em decorrência de abortos
realizados nos últimos meses na clandestinidade. Em 1992, o número de mortes caiu para três.
Nem na França nem em qualquer país do mundo se pensa que o aborto seja o melhor método
para uma mulher evitar filhos. É o pior o mais traumático, o mais doloroso, o que mais
deixa seqüelas, físicas e emocionais. O melhor, sempre, é o planejamento. Mas, depois que
todos os outros recursos foram tentados, pode ser a última saída. "Nossa legislação é um
dinossauro", afirma a deputada Zulaiê Cobra Ribeiro, nenhum aborto, que foi chamada de
assassina e carniceira ao decidir-se a favor da regulamentação dos casos de aborto previstos
no Código Penal.
214

Se o principal tribunal de júri do país não registra uma condenação de mulher que tenha feito
aborto há pelo menos dez anos, o médido Aníbal Faundes, um professor reputado, titular da
cadeira de obstetrícia da Unicamp, até hoje está sendo processado por uma entrevista dada em
junho de 1994. Na época, Faundes declarou que o Centro de Assistência Integral à Saúde da
Mulher, que coordenava, fazia abortos em casos de malformação de fetos sem condições de
sobreviver. "Eu me sinto muito mal quando me chamam de aborteiro, porque não me sinto
aborteiro. Tenho muitas restrições a quem faz aborto por dinheiro. É a exploração de uma
desgraça. Cobra-se não pelo ato médico, mas pela ilegalidade", disse ele. Herói das mulheres
que lutam pela descriminação do aborto, Faundes nunca se furtou a fazer, ele mesmo, as
interrupções de gestação previstas em lei, quando outros médicos do serviço se recusavam.
"Criminalizar o aborto só piora, é uma agressão física e emocional à mulher." Com uma
carreira acadêmica brilhante, Faundes fala do aborto com conhecimento de causa. "O país que
tem o menor índice de abortos do mundo é a Holanda, que é de 0,5 para cada grupo de 100
mulheres. Sabe por quê? Porque, além de ser legalizado, ali se faz campanha de educação
sexual, o funcionamento da pílula é explicado." O médico também lembra um detalhe muitas
vezes esquecido: não há proteção apenas para quem quer evitar filhos mas também para
quem deseja tê-los. "Como é que o Estado julga-se no direito de obrigar as mulheres a ter
filhos, se ele é incapaz de garantir o mínimo para essas mães e seus bebês?", pergunta a
psicóloga Edna Roland, 46 anos, um aborto.Com reportagem de Cíntia Campos e Marcia Guena, de
Salvador, Juliana De Mari, do Recife, Marcos Gusmão, de Belo Horizonte, Alexandre Oltramari e Ricardo
Vilela, de Porto Alegre, Raquel Almeida e Roberta Paixão, do Rio de Janeiro, e sucursais.
215

ANEXO 7
Enviado por André Petry -
3.3.2007
| 16h00m
Sem trava na língua
Artigo de André Petry na Veja desta semana:

"Na tradição brasileira, os políticos ocultam opiniões polêmicas para não perder voto. Por isso, é um alento
ouvir um governador dizer claramente que defende a legalização do aborto e das drogas"

O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, é um homem cheio de idéias. Desde que assumiu seu
posto, e sobretudo depois do assassinato brutal do menino João Hélio, o governador não tem fugido de temas
polêmicos. Na semana passada, afirmou que o país precisava debater a legalização das drogas e do aborto. Ficou
parecendo que o governador, bem ao estilo das raposas políticas, estava saindo pela tangente: não disse que era a
favor de legalizar drogas e aborto; disse apenas que era a favor do debate.

A novidade é que não é nada disso.

A seguir, confira a clareza com que o governador aborda as duas idéias:

O SENHOR DISSE QUE A SOCIEDADE PRECISA DISCUTIR A LEGALIZAÇÃO DAS DROGAS. MAS O
SENHOR É PESSOALMENTE A FAVOR DA LEGALIZAÇÃO DAS DROGAS?
Sou a favor da legalização das drogas.

O SENHOR SE REFERE A DROGAS LEVES?


Não. Sou a favor da legalização de drogas pesadas, inclusive. A relação custo-benefício da proibição das drogas
tem sido dramaticamente negativa, com milhares, talvez milhões, de pessoas morrendo no Brasil, na América
Latina, na África. Claro que o Brasil, sozinho, não pode legalizar as drogas, sob pena de virar uma ilha de
consumidores. O ideal seria que o governo dos Estados Unidos entrasse corajosamente nesse assunto. No
governo de Bill Clinton, até existia um começo saudável de debate. Com Bush, isso acabou.

O SENHOR TAMBÉM AFIRMOU QUE A SOCIEDADE PRECISA DEBATER A LEGALIZAÇÃO DO


ABORTO. MAS QUAL A SUA POSIÇÃO PESSOAL?
Defendo claramente a legalização do aborto.

O SENHOR NÃO TEM RECEIO DE PERDER VOTOS, EM ESPECIAL ENTRE RELIGIOSOS?


Quando propus que a Previdência do Rio pagasse pensão a casais homossexuais, os religiosos me diziam que eu
jamais seria reeleito. No ano seguinte, fui eleito senador com 4,2 milhões de votos, a maior votação da história
do Rio.

O governador acha que a legalização do aborto poderia ter no Brasil o mesmo efeito colateral que teve nos
Estados Unidos – o de reduzir a criminalidade. A relação está no livro Freakonomics, do renomado economista
Steven Levitt. Ele diz que o aborto, aprovado em 1973, impediu o nascimento de filhos indesejados, em geral
pobres e de mães solteiras, que, pelo ambiente familiar desestruturado, tinham maior possibilidade de se
envolver com o crime. Como não nasceram, vinte anos depois a criminalidade nos EUA caiu. "Estou de acordo
com Freakonomics", diz o governador – embora, é claro, nem ele nem ninguém defenda legalizar o aborto como
medida de combate ao crime.

Na tradição brasileira, os políticos escondem opiniões polêmicas para não perder voto. Por isso, é um alento
ouvir um governador dizer claramente que defende a legalização do aborto e das drogas.
216

ANEXO 8. Fora do passado - 27-08-1997

Esdras Paiva e Ricardo Balthazar

Fora do passado

Com cinco décadas de atraso, deputadas tentam


regulamentar lei do aborto do Estado Novo

Esdras Paiva e Ricardo Balthazar

Há 57 anos, não existia divórcio nem pílula anticoncepcional, as brasileiras tinham em média
sete filhos e só 15% das mulheres trabalhavam. Há 57 anos, o jurista Francisco Campos,
ministro da Justiça do Estado Novo de Getúlio Vargas, colocou no Código Penal um artigo, o
128, em que concedeu às mulheres o direito de fazer um aborto em caso de estupro ou de
risco de vida para a mãe. De lá para cá, o artigo 128 não saiu do papel ficou esquecido por
cinco décadas. Só muito recentemente, copiando uma iniciativa da então prefeita Luiza
Erundina, de São Paulo, sete hospitais públicos no país inteiro passaram a oferecer esse
serviço às mulheres interessadas. Na semana passada, numa sessão tumultuada, em que não
faltaram cenas de fanatismo religioso e um princípio de pancadaria, a Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou, com a diferença de apenas 1 voto,
um projeto de lei para encerrar tantas décadas de passividade e silêncio. Conforme a proposta,
217

cuja aprovação não é definitiva, pois está sujeita a novos debates em plenário, emendas e até
vetos presidenciais, os hospitais públicos têm obrigação de realizar os abortos legais previstos
no Código Penal. Foram 23 votos a favor e 23 contra. Para o desempate, contabilizou-se o
voto da relatora, deputada Zulaiê Cobra Ribeiro, do PSDB de São Paulo, que saiu da
comissão acompanhada por seguranças da Câmara, sob gritos de "assassina", "açougueira",
"carniceira".

Embora a comissão de parlamentares tenha apenas regulamentado um artigo que estava na lei
desde 1940, a mobilização antiaborto, que chega ao Brasil importando palavras de ordem dos
Estados Unidos, já promete guerra. O presidente da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, dom Lucas Moreira Neves, prometeu mobilizar os bispos, párocos e leigos para que
telefonem a cada um dos congressistas, pressionando-os pela rejeição do projeto de lei e
ameaçando abandoná-los na campanha do ano que vem. Até o ministro da Saúde, Carlos
Albuquerque, tão silencioso diante de fatos mais graves e urgentes de sua Pasta, como a falta
de vacina anti-sarampo nos hospitais públicos, resolveu subir no palanque para anunciar que é
um adversário ferrenho do aborto. Explicando que é espírita de linha kardecista, o ministro
disse: "Se minhas filhas ou netas ficassem grávidas após um estupro, eu as aconselharia para
que não fizessem o aborto", diz Albuquerque. "A vida física começa na concepção e eliminá-
la, na minha opinião, é um assassinato." Esclarecimento: o ministro Carlos Albuquerque usou
esses exemplos como retórica, pois não tem filhas nem netas. Por outro lado, confundir
política de governo com convicção religiosa é uma postura que não dá muito certo imagine
se o Ministério da Saúde seguisse a política da Igreja Católica, que proíbe o uso de camisinha,
e acabasse sendo cúmplice na transmissão da Aids.

Opção difícil O que a comissão aprovou não foi a legalização do aborto. Os casos de
gravidez interrompida em função de estupro ou risco de vida para a mãe são raríssimos, em
comparação com abortos realizados porque a mulher não deseja um filho em determinado
momento da vida. Mas a discussão não é sobre números, e sim sobre direitos, opções, valores.
Por exemplo: durante a Guerra da Bósnia, soldados sérvios cometeram estupros em massa em
mulheres muçulmanas e católicas. Sem disposição para criar filhos de soldados inimigos,
muitas mulheres abortaram. Outras seguiram o conselho do papa João Paulo II, que numa
carta à Igreja local exortava essas mulheres a "não interromper a gravidez, de forma a
transformar o ato de violência que haviam sofrido em ato de amor". Regulando o artigo 128
do Código Penal, o que se faz é permitir as duas soluções. As mulheres que quiserem ter um
bebê após um estrupro podem fazê-lo. As que não quiserem passam a ter o direito de pedir
auxílio a um hospital público -- sem isso, a única saída é pagar 4.000 reais numa clínica
privada que faz o serviço clandestinamente ou submeter-se aos riscos de fazer o aborto em
casa, tomando remédios vendidos ilegalmente. O artigo 128 tem um aspecto humanitário
também ao permitir o aborto no caso em que a mulher corre risco de morrer em função da
gravidez. A idéia de que às mães cabe inclusive o dever de sacrificar a própria vida em função
dos filhos combina perfeitamente com a visão de mundo de muitas mulheres, mas não precisa
ser impingida, compulsoriamente, a todas elas.

Embandeirados pela visita que o papa João Paulo II fará ao Brasil em outubro, ativistas de
uma organização chamada Pró-Vida invectivam: "Não é agradável para o Santo Padre chegar
a um país onde se acaba de aprovar uma lei que favorece o aborto", criticou o chefe da
Pastoral Familiar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, dom Rafael Cifuentes. Trata-se de uma
piada de mau gosto. "Se fosse pelo Vaticano, não se poderia usar anticoncepcionais, os
preservativos não seriam distribuídos para conter a Aids e nem sequer o divórcio seria
admitido", lembra a deputada federal Marta Suplicy, do PT de São Paulo. "O Brasil é um país
218

laico, e desde a proclamação da República a Igreja e o Estado são instituições separadas. Não
dá para retroceder", diz. A Itália, país católico por excelência, dentro do qual fica o trono de
Pedro, tem uma legislação sobre o aborto entre as mais liberais do mundo. Pode-se
interromper a gravidez, ali, não apenas em casos de violência e ameaça à própria vida. A
mulher pode fazer o aborto porque se separou do namorado, porque resolveu mudar de
profissão, mudou de país enfim, porque se tornou dona de seu corpo. É bem diferente do
que se coloca no Brasil o que só torna ainda mais estranha uma campanha no estilo Pró-
Vida. Negando proteção a uma mulher que corre risco de vida, esse movimento se coloca a
favor da morte dela.

Em 1989, o hospital do Jabaquara, num bairro de classe média de São Paulo, foi o primeiro da
rede pública a oferecer o serviço de aborto para mulheres que preenchessem as condições
impostas pelo Código Penal. Não é uma opção fácil para ninguém. Osmar Ribeiro Colás, 42
anos, médico da Universidade Federal de São Paulo que trabalhou nesse serviço, lembra:
"Quando eu fiz o primeiro aborto, não dormi durante três dias. Sempre fui a favor da
descriminação do aborto, sempre achei que era uma decisão de cada um. Mas era fácil falar.
Qualquer médico que faz o aborto nos casos previstos em lei se submete a isso por respeito ao
estado psicológico da paciente. Não é agradável. Qualquer médico prefere dez partos a uma
interrupção de gestação." É natural. Não se conhece ninguém que sinta prazer em fazer um
aborto seja na posição de paciente, seja na de médico. É um momento delicado e difícil para
qualquer pessoa próxima. Mas, para muitas delas, pior do que essa opção é não ter escolha
nenhuma.
219

ANEXO 9. VEJA - 17-08-2005


André Petry

O mensalão do aborto
"O aborto malfeito é uma das principais
causas de morte de mulheres no Brasil.
É a terceira causa em São Paulo. Na Bahia,
é a primeira. Ou seja: o aborto não é um
direito desejável, é um direito necessário"

Quando estava de pé, o governo Lula vinha acertando no trato dos chamados temas
sociais: sancionou as pesquisas com células-tronco embrionárias, distribuiu pílulas do dia
seguinte nos postos de saúde, tentou combater a desigualdade racial nas universidades e
– sobretudo – criou uma comissão para revisar a antiquada legislação brasileira sobre o
aborto. Agora que está de cócoras, o governo Lula está começando a vender a alma ao
diabo também nos temas sociais. O caso mais recente está na carta que Lula mandou à
cúpula da Igreja Católica saudando a abertura da assembléia-geral da CNBB, em
Indaiatuba, São Paulo. Todo mundo ficou olhando para os trechos em que Lula diz ter
consciência da "gravidade da crise" e promete apurar tudo "doa a quem doer". Mas o
trecho mais revelador está no sexto parágrafo.

Diz o seguinte: "Quero reafirmar minha posição em defesa da vida em todos os seus
aspectos e em todo o seu alcance. Os debates que a sociedade brasileira realiza, em sua
pluralidade cultural e religiosa, são acompanhados e estimulados pelo nosso governo,
que, no entanto, não tomará nenhuma iniciativa que contradiga os princípios cristãos".
Ou seja: Lula está dizendo que o governo formou a comissão tripartite para revisar a Lei
do Aborto – integrada por respeitáveis representantes do governo, do Congresso e da
sociedade – e está deixando o pessoal falar à vontade, distrair-se com os debates na
ilusão de que vai decidir alguma coisa, mas, na hora H, o governo vai dar as cartas – e,
em defesa dos "princípios cristãos", não permitirá a descriminalização do aborto.

A comissão – que Lula agora diz que trabalhou de mentirinha – já concluiu sua proposta.
É claríssima: propõe que toda gravidez possa ser interrompida até a 12ª semana de
gestação e não define prazo-limite nos casos de ameaça à vida da gestante ou de má-
formação fetal incompatível com a vida fora do útero. A proposta é avançada. É certo
que, para ser aprovada, vai atravessar um oceano de dificuldades, mas o que ninguém
esperava é que, já na largada, fosse desautorizada com uma canelada do presidente da
República.

Na carta, Lula trata o aborto como uma questão moral e religiosa, como se pertencesse à
esfera dos "princípios cristãos", fazendo música para os ouvidos dos bispos. Não, o
aborto é essencialmente uma questão de saúde pública. O aborto malfeito está entre as
principais causas de morte de mulheres no Brasil (mulheres pobres, é claro, que não têm
dinheiro para recorrer às boas casas do ramo). É a terceira causa de mortalidade
feminina em São Paulo. Na Bahia, é a primeira. O aborto não é um direito desejável, é
um direito necessário.

A intenção de Lula é clara: quer seduzir a CNBB, evitando que os bispos migrem para a
oposição numa hora em que o governo se desmancha e o próprio presidente se entrega
ao exercício diário de se apequenar diante do país. É negócio, barganha. É o "mensalão
do aborto". É lamentável que milhares de brasileiras – pobres, na maioria – seguirão
morrendo todos os anos porque o presidente resolveu adular os bispos.
220

ANEXO 10. VEJA - 09-06-2004


André Petry

Estupidez em nome de Deus


"É quase inacreditável, mas, às vésperas de
votar o assunto, existem senadores dispostos
a levar em conta os argumentos de autoridades
religiosas e proibir a pesquisa de células-tronco"

O Congresso Nacional está para votar nos próximos dias um projeto fundamental: a lei
que vai autorizar (ou proibir) a pesquisa científica com as células-tronco de embriões
humanos. As células-tronco, com seu notável potencial de reprodução e especialização,
são a esperança mais promissora da medicina atual para encontrar a cura de doenças
graves como diabetes, esclerose, infarto, distrofia muscular, Alzheimer, Parkinson. De
um lado, batalhando pela autorização da pesquisa com as células-tronco embrionárias,
está a comunidade científica. Em peso. De outro, contra a pesquisa, estão os religiosos,
principalmente os representantes dos católicos e evangélicos. As autoridades religiosas
até admitem as pesquisas com células-tronco, desde que sejam as células extraídas da
medula óssea ou do cordão umbilical, e não de embriões humanos. A Igreja diz que
pesquisar com embriões é uma ofensa à vida, tal como o aborto. Afinal, a manipulação
impediria o embrião de crescer. Seria, portanto, como matar alguém. A questão é que as
células-tronco mais potentes e versáteis são justamente as embrionárias, razão pela qual
pesquisá-las tende a ser muito mais eficiente.

É quase inacreditável, mas, às vésperas de votar o assunto, existem senadores dispostos


a levar em conta os argumentos de autoridades religiosas e proibir a pesquisa. Sim,
querem proibir a pesquisa que pode salvar vidas e reduzir o sofrimento humano – e tudo,
é claro, "em nome de Deus". Ora, mas que Deus é esse? Que Deus irônico nos daria
talento, dom e fé para chegar perto das descobertas mais sensacionais da vida, mas nos
proibiria de exercer nosso talento, nosso dom e nossa fé? Era tudo só para Deus ver?
Que Deus mordaz nos daria condições de prolongar a vida e reduzir o sofrimento, mas,
apesar da generosa doação, nos proibiria de fazê-lo, obrigando-nos a permanecer,
mesmo doentes ou à beira da morte, infensos à intervenção humana, feito relíquias de
redoma, apenas para que nosso Criador, egoísta e genial, pudesse contemplar Sua obra
intocada? Que Deus mórbido e tirânico exigiria de nós, Suas criaturas, a resignação com
o sofrimento e a dor apenas para que ficasse patente o respeito que Lhe devotamos?

Do bispo de Alexandria, que colocou abaixo o mais efervescente centro de ciência e


cultura dos primórdios da era cristã até o inquisidor que calou Galileu Galilei, a Igreja
Católica sempre reagiu poderosamente quando os avanços científicos punham à prova
seus dogmas e sua moral. Foi assim no passado. Com variações de tom e intensidade, é
assim hoje em dia, quando as autoridades eclesiásticas, por exemplo, chegam ao ponto
de, tateando entre a irresponsabilidade e o crime, torpedear o uso de camisinha para
evitar a transmissão da aids. Com essas posições, a Igreja está a favor da vida humana
ou de sua moral religiosa? Não surpreende que os igrejeiros sejam contra a pesquisa de
células-tronco embrionárias, que estejam novamente no clima do obscurantismo
medieval, minando a ideologia da razão e do progresso. O estarrecedor é que o Senado,
como instituição, laica aliás, seja capaz de pensar do mesmo modo. Seria bom que o
Brasil deixasse essas tolices apenas aos fundamentalistas cristãos de George W. Bush.
Por sinal, Bush proibiu a pesquisa de células-tronco embrionárias nos Estados Unidos,
mas, como isso ainda vai render muito dinheiro, já tem até republicano querendo mudar
de idéia. Até eles.
221

ANEXO 11. VEJA - 15-12-2004


André Petry

Do castigo ao amparo
"Por preconceito, por machismo ou por
crendice, as brasileiras – as pobres, é claro,
as que não têm dinheiro para abortar numa
boa clínica clandestina – estão morrendo.
Primeiro, a lei as condena ao crime.
Depois, à morte"

O Brasil ainda está longe de entrar para a galeria dos países civilizados, modernos e
emancipados do jugo religioso, onde o aborto não é crime nem dá prisão a ninguém.
Mas, mesmo atolado no atraso, o país acaba de ver uma tênue luz no fim do túnel: a
ministra Nilcéa Freire, que cuida de políticas voltadas para as mulheres, anunciou que o
governo vai instalar uma comissão encarregada de reavaliar a lei brasileira sobre o
assunto, que permite o aborto apenas quando a vida da mulher está em risco ou a
gravidez resulta de estupro. A ministra já fez questão de avisar – talvez para, desde já, ir
tentando desarmar um pouquinho a imperecível fúria da Igreja Católica – que a idéia
nem é chegar à descriminalização do aborto. É só mudar o eixo da lei atual. Hoje, a lei
está focada na punição à mulher que aborta. Seu negócio é castigar, justiçar, censurar. A
idéia é fazer com que a lei, em vez de só punir, passe a garantir assistência à mulher que
aborta, não importa o motivo. A intenção é dar proteção, amparo, conforto, apoio. É uma
bela proposta.

Aos 52 anos, a ministra Nilcéa Freire conhece o assunto na pele: além de mulher, é
médica e mãe de dois filhos, um de 27 e outro de 25 anos. A ministra demorou a dizer a
que veio, mas, quando finalmente o fez, foi em noite de gala. Parabéns. Sua proposta
reflete as recomendações feitas por sucessivas conferências da ONU sobre a mulher.
Chuta-se que entre 50.000 e 100.000 mulheres morrem por ano devido a complicações
decorrentes de abortos inseguros, feitos em condições precárias e por gente
desqualificada – quadro comum nos países em que o aborto é ilegal, como no Brasil. A
OMS informa que a média mundial de mortalidade materna provocada por abortos
inseguros é de 13%. Na católica América do Sul, é o dobro. Calcula-se que, todos os
anos, 240 000 brasileiras submetidas ao aborto inseguro são hospitalizadas por causa de
complicações posteriores. Por preconceito, por machismo ou por crendice, as brasileiras
– as pobres, é claro, as que não têm dinheiro para abortar numa boa clínica clandestina
– estão morrendo, abandonadas à própria sorte. É o próprio cenário do horror. Primeiro,
a lei as condena ao crime. Depois, à morte.

Quem pode ser contra uma mudança radical nesse cenário? Quem pode ser contra a
idéia de dar amparo à mulher que, tendo acabado de passar pela dolorosa experiência do
aborto, ainda sofre com problemas de saúde? Quem pode ser cruel a ponto de deixar que
essa mulher morra, relegada à desproteção, porque fez um aborto não previsto em lei?
Os que militam contra o aborto, com destaque para a Igreja Católica, em vez de
responder a essas perguntas, vão apresentar aquela outra, igualmente legítima: onde
fica o direito à vida, o direito de nascer de uma criança indefesa, criminosamente
arrancada do útero materno? Ainda que seja impróprio tratar um feto como se fosse uma
criança, ainda que uma conferência episcopal no México tenha chegado ao extremo de
usar o termo "cidadão" como sinônimo de "embrião", ainda que não se esteja discutindo
a legalização do aborto, mas apenas o amparo à mulher que o faz, a resposta é
cristalina: o direito de nascer do embrião, cuja existência resulta de um ato humano e
não de uma intervenção divina, fica submetido aos direitos humanos da mulher, entre os
quais estão incluídos seus direitos sexuais e reprodutivos.
222

ANEXO 12. VEJA - 14-07-2004


André Petry

A favor do aborto
– e da vida
"Qual o sentido de forçar uma mulher
a levar no útero, por nove meses, um feto
que, em vez de proporcionar a festa da vida,
será protagonista de um funeral hospitalar?"

Era justo, solidário, humano demais para ser definitivo. O procurador-geral da República,
Cláudio Fonteles, anunciou que vai contestar no Supremo Tribunal Federal a decisão que
autorizou o aborto de fetos sem cérebro. Ou seja: mulheres grávidas de fetos sem
nenhuma possibilidade de vida fora do útero podem abortar sem pedir autorização
judicial. A decisão é um avanço. Um avanço da dignidade, do respeito à mulher, um
avanço civilizatório. O procurador Fonteles, no entanto, vai contestar a decisão. Católico
fervoroso, que jamais perde a missa aos domingos e dá aulas de catequese aos sábados,
Fonteles diz que sua opinião não é movida por razões religiosas, mas jurídicas. "Em
havendo vida intra-uterina, é lícito matar? Sou defensor da vida", diz ele. Fonteles,
correto e honesto como é, deve mover-se pela melhor das intenções, mas parece que
uma razão teológica está a lhe agitar a cabeça. Afinal, fora do universo dogmático da fé,
não há argumento razoável para obrigar uma mulher a manter uma gravidez de um feto
sem cérebro.

A ausência de cérebro mata o feto durante a gravidez ou, no máximo, nos primeiros
minutos após o parto. Não existe cura nem tratamento. O risco de morte é de 100%.
Qual o sentido, fora das premissas religiosas, de obrigar uma mulher a manter uma
gestação assim? Qual o sentido de forçar uma mulher a levar no útero, por nove meses,
um feto que, chegado à sala de parto, em vez de proporcionar a festa da vida, será
protagonista de um funeral hospitalar? Será que o Estado deve ter o direito de punir uma
mulher, inocente para todos os efeitos, com o sofrimento prolongado, psicologicamente
torturante e absolutamente inútil? Em nome de quê? O procurador Fonteles diz que a
gravidez deve ser mantida em nome da vida. É bonito. Mas a única vida em discussão,
no caso, é a da gestante, pois o feto, como se sabe, não completará dez minutos fora do
útero. Quem gosta de falar em defesa da vida, portanto, tem de falar da vida da futura
ex-mãe – que, não tendo nenhuma escolha feliz possível, deve ao menos ter o direito de
escolha sobre prolongar ou encurtar um sofrimento.

Quando se combate o aborto de um feto sem cérebro não se está defendendo a vida –
defende-se só um dogma religioso pelo qual a interrupção de uma vida, mesmo em
estágio intra-uterino, mesmo sem chance de sobrevivência, só pode ocorrer por obra
divina. Os religiosos têm todo o direito de manifestar seus pontos de vista e orientar seu
rebanho a viver de acordo com seus ensinamentos. Afinal, o Estado brasileiro é
democrático, e qualquer cidadão pode professar a crença que quiser. O Estado brasileiro,
além de democrático, é laico. Não faz parte do rebanho que vive segundo dogmas da
religião. No Estado brasileiro, não se faz lei nem se julga ninguém dentro de templos,
igrejas, mesquitas. E os demais cidadãos, que têm toda a liberdade de não professar
crença alguma, não podem ser obrigados a viver conforme ensinamentos religiosos. É
bom que Fonteles conteste a decisão do Supremo. Vai dar legitimidade – religiosa até – à
decisão. Espera-se, apenas, que o Supremo mantenha a decisão inicial do ministro Marco
Aurélio Mello, que é justa, solidária e humana – e merece ser definitiva.
223

ANEXO 13. VEJA - 27-10-2004


André Petry

Sem aborto. Com dor


"A idéia, generosamente humana, era conceder às mulheres o direito de fugir
do suplício de dar à luz um filho que, já em sua primeira noite, em vez do berço,
deita no caixão"

A decisão do Supremo Tribunal Federal de derrubar a liminar que autorizava o aborto de


fetos sem cérebro é a expressão de um retrocesso. É verdade que as pressões religiosas,
principalmente dos católicos, chegaram a um ponto inédito, de tão abertas e
escancaradas. Os igrejeiros atulharam os e-mails dos ministros do STF, entupiram os
aparelhos de fax e houve quem tenha ido ao tribunal para distribuir pessoalmente
panfletos e cartazes na campanha contra o aborto. Circularam comentários, com suspeita
insistência, de que houve até ministro redigindo seu voto com o prestimoso auxílio de um
arcebispo da Igreja Católica. No fim, por 7 votos a 4, os ministros derrubaram a liminar.
Resta uma esperança. O STF terá de tomar uma decisão definitiva sobre o tema,
autorizando ou proibindo o aborto, quando julgar o mérito da ação em data a ser
marcada. Mas a cassação da liminar já emite um sinal desolador de que a maioria dos
ministros tende a votar pela proibição do aborto.

A decisão do STF é perfeitamente lógica e defensável do ponto de vista teológico, mas é


um monturo do ponto de vista jurídico. No universo da fé, a vida é uma dádiva divina. Só
Deus pode tirá-la. O aborto, qualquer um, mesmo o aborto terapêutico de fetos sem
cérebro, cuja chance de sobreviver fora do útero é nula, mesmo nesses casos, é visto
como pecado e, portanto, inadmissível. No mundo jurídico de um Estado laico, porém, as
coisas não funcionam assim. Não somos guiados na vida civil pelos dogmas católicos,
evangélicos, islâmicos, candomblecistas. E, neste mundo, a vida não é sagrada, nem
mesmo absoluta. Tanto que a legislação brasileira não preserva a vida fetal sob qualquer
hipótese. Ao contrário. Autoriza o aborto se a gestante correr risco de vida ou se a
gravidez for resultado de estupro. Por que nesses casos pode, mas no caso de um feto
sem cérebro não? Aparentemente, apenas porque o STF, que deveria ater-se aos
princípios legais como corte constitucional de um Estado laico, se deixou influenciar por
utopias bíblicas. Um atraso e tanto.

Atraso porque, além de tudo, o STF deu guarida ao autoritarismo religioso pelo qual
todos têm de viver sob os ditames da fé – queiram ou não, sejam crentes, sejam ateus.
Afinal, a liminar não obrigava mulher alguma a interromper a gravidez de um feto sem
cérebro. Apenas autorizava o aborto às mulheres que, torturadas pela dor psicológica de
gerar um filho que morrerá ao nascer, quisessem fazê-lo. A idéia, generosamente
humana, era conceder a elas o direito de fugir do suplício de dar à luz um filho que, já
em sua primeira noite, em vez do berço, deita no caixão. Não obrigava ninguém a
abortar nem a levar a gravidez até o fim. Dava às mulheres o direito de fazer uma
escolha numa situação já dolorosa o bastante. Mas a tirania religiosa não admite que
apenas seu rebanho viva segundo sua fé. Todos os demais também devem fazê-lo. É
outra tortura. E outro retrocesso. •••

Na semana passada, ao comentar o caso do criminoso conhecido como "Champinha",


assassino confesso de um casal de adolescentes, este colunista escreveu que, pela lei, a
Febem tem de libertar os internos quando completam 18 anos de idade. Erro crasso.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, a libertação só é compulsória aos 21
anos. Aos que confiaram na informação errada, as devidas desculpas.
224

ANEXO 14. VEJA - 27-04-2005


André Petry

Isso é que é racismo.


Desde que o argentino foi preso num campo de futebol sob a
acusação de racismo, ficou claro que entramos numa distraída temporada
de combate à discriminação racial. É uma campanhazinha distraída
porque, no entusiasmo da denúncia, no gozo do espetáculo, no embalo
dessa nossa americanização do racismo, estamos enxergando racismo
demais onde ele é escasso — e, o que é pior, enxergando quase racismo
nenhum onde ele é farto. O prêmio de racista do mês, por exemplo, não
deve ir para jogadores de futebol da Argentina. Deve ir para aqueles
brasileiros que dizem pertencer às sociedades protetoras dos animais.
Eis o caso: os defensores dos animais tentaram derrubar um
artigo de uma lei gaúcha que autoriza o sacrifício de animais nos cultos
de religiões de origem africana — cujos adeptos, ninguém desconhece,
são na maioria negros. Os defensores dos animais acham que imolar
bichos numa cerimônia religiosa é crueldade e que a lei de proteção aos
animais, portanto, não pode permitir tal selvageria. O racismo aqui é
sutil, mas é imensamente nefasto: o que os pró-bichos estavam tentando,
na prática, era impedir que os negros exercessem na plenitude a sua
cultura — aliás, uma cultura bela, rica, colorida e intensa, à qual os
brasileiros devem talvez mais do que costumam perceber.
Nas religiões de matriz africana, sacrifica-se um animal para
oferecê-lo às divindades. Impedir que tal prática seja exercida, além de
constituir um agudo desrespeito à cultura do outro, é mais ou menos
como dizer que os deuses dos negros não merecem tantas regalias. É
como dizer que são deuses de segunda classe. É como dizer que os
nossos bichos, os bichinhos dos brancos, ora essa, não podem ser mortos
só para que deuses de negros, ora essa, se sintam devidamente
reverenciados. Até porque deus que preste, ora essa, não exige que seus
fiéis saiam por aí matando bichos...
Como racismo no Brasil é sempre coisa do vizinho (argentino ou
não), os defensores dos animais que lutam contra o rito das religiões
africanas vão jurar de pés juntos que não são racistas, que jamais
quiseram dizer que o deus dos negros não é tão bom quanto o deus dos
brancos, que existem até negros entre eles e que queriam apenas evitar
atrocidades contra os animais. Pode ser verdade, mas não basta. Se for
isso mesmo, se o que os move é tão-somente a defesa dos animais, onde
estão então os protestos diante dos abatedouros de bois, porcos e aves?
Onde estão os protestos contra a condição do Brasil de maior exportador
mundial de carne bovina e de frango? Dias atrás, o governo da Rússia
anunciou que vai voltar a permitir a importação de carnes bovina, suína e
de frango de regiões do Brasil onde havia suspeita de alguma doença. Foi
uma excelente notícia para a economia brasileira — e não se ouviu o
protesto dos defensores dos bois, porcos e galinhas.
Em tempo: por sorte, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
decidiu, embora por maioria apertada, apenas 14 votos contra 10, que a
lei vale. Ou seja: o racismo saiu derrotado. Mas cuidado: ainda 'stamos
em pleno mar.
225

ANEXO 15. VEJA 10-11-2004


André Petry

Um tempo de trevas
"O que mais assusta na eleição dos EUA,mais que o frenético belicismo de Bush,
é isto: o triunfo das trevas na terra da democracia e da liberdade"

Esse Bush é um craque. Ele e seus estrategistas políticos sabiam que, caso conseguissem
empolgar os evangélicos a ponto de fazê-los sair de casa para se enfileirar nas cabines
de votação, sua reeleição estaria garantida. Como um terço do eleitorado americano é
evangélico, e boa parte tem uma visão um tanto obscurantista da vida, além de achar
que os democratas esnobam sua fé, Bush saiu-se muito bem. A massa mais atrasada dos
Estados Unidos, aquela parcela que acredita mais no mito da virgindade de Maria do que
na teoria evolucionista de Charles Darwin, entregou a Bush a missão clara de restringir o
direito ao aborto, de impedir o casamento homossexual, de travar as pesquisas
científicas com células-tronco, entre outros primitivismos. O que mais assusta na eleição
dos Estados Unidos, mais que a alarmante dessintonia dos americanos com o resto do
mundo, mais que o frenético belicismo de Bush, mais que a primazia da versão sobre o
fato, é isto: o triunfo das trevas na terra da democracia e da liberdade.

Defender a legalização do aborto, ou a manutenção do aborto legal, não é pregar o


triunfo da morte sobre a vida – é reconhecer o direito inalienável da mulher sobre o
próprio corpo, coisa que só o medievalismo não admite. Defender a união civil entre
pessoas do mesmo sexo não é difundir a promiscuidade nem atentar contra a
preservação da espécie humana – é reconhecer a liberdade de cada cidadão para lidar
com a própria sexualidade. Defender as pesquisas com células-tronco, essa maravilha
que a ciência promete nos entregar no combate à morte e à dor, não é atentar contra o
direito de embriões indefesos – é reconhecer que o universo dogmático da fé, com suas
imensas palmeiras de belas crenças, não pode atrapalhar o mundo laico da ciência. A
maioria do eleitorado americano, ao reeleger Bush, diz não a tudo isso e aposta no que
há de mais rudimentar na sociedade. É de espantar: se queriam tanto obscurantismo
nem precisavam se dar ao trabalho de reeleger Bush – bastava que se mudassem para
as cavernas do Afeganistão dos talibãs.

Preocupa o fato de que, como potência única, dona de uma influência e de um poder
incontrastáveis, os Estados Unidos têm força para espalhar as trevas mundo afora. Por
isso, é importante saber o que se passa lá dentro. Um artigo recente de Maureen Dowd,
a mais ferina e engraçada colunista do The New York Times, depois de observar a ironia
de ver um presidente que decretou uma guerra com base em mentiras ser eleito por
causa de seus "valores morais", conta um pouco dos novos eleitos na América:

• Tom Coburn, que ganhou a eleição como senador pelo Estado de Oklahoma dizendo
que a disputa era entre o bem e o mal, defende a aplicação da pena de morte para
médicos que fazem aborto.

• John Thune, conservador cristão que faz campanha contra o aborto e também foi
eleito, afirma que é a favor de incluir na Constituição uma emenda que proíba o
casamento homossexual e a queima da bandeira dos Estados Unidos.

• Jim DeMint, eleito senador pela Carolina do Sul, defende que homossexuais sejam
proibidos de ensinar nas escolas públicas. E que a escola deveria demitir a professora
que, sendo solteira, ficasse grávida de seu namorado.

É, esse Bush é um craque. Tempos difíceis vêm por aí.


226

ANEXO 16. VEJA 16-03-2005


André Petry

Aborto, uma vitória católica


"O enfoque da Igreja Católica é chocante, pois pressupõe que as mulheres são
essencialmente mentirosas e que, quando têm uma brecha qualquer,
fazem abortos com a voracidade de moscas buscando açúcar"

Finalmente o Brasil começa a dar sinais de entender que o aborto integra a lista de
direitos inalienáveis da mulher – de seus direitos reprodutivos, de seus direitos sexuais,
de seus direitos sobre o próprio corpo. Duas decisões fortalecem essa impressão. A
primeira veio dos trinta membros do Conselho Nacional de Saúde, que assessora e
orienta o ministro da área. Numa reunião de cinco horas, eles decidiram – por 27 votos
contra 3 – manifestar-se a favor do direito da mulher de abortar quando grávida de um
feto sem cérebro, cuja vida fora do útero é 100% inviável. A decisão é importante
porque ajuda a ampliar o coro dos que defendem a legalização do aborto de fetos sem
cérebro, tema que a Justiça deverá julgar em breve. A outra decisão veio na forma de
uma norma do Ministério da Saúde. A norma diz o seguinte: mulheres grávidas de
estupro agora podem abortar nos hospitais públicos sem apresentar o boletim de
ocorrência da polícia. É outra medida que merece aplauso. Revela o devido respeito à
mulher, na medida em que dá à sua palavra a mesma importância dada a um boletim
burocrático, e sobretudo retira da órbita policial uma questão de saúde física e
psicológica.

E isso pode ser chamado de vitória católica?

No Conselho Nacional de Saúde, entre os três votos contrários ao aborto de feto sem
cérebro estava o de Zilda Arns, que representa a entidade dos bispos católicos do Brasil.
A Igreja Católica, todos sabemos, é contra o aborto em qualquer situação. Em caso de
risco de morte para a mãe, em caso de gravidez resultante de estupro, em caso de fetos
sem chance de sobrevivência fora do útero. A Igreja Católica também rejeita a nova
norma do Ministério da Saúde. Teme que, sem terem de registrar a ocorrência do
estupro numa delegacia, as mulheres farão abortos nos hospitais públicos mesmo
quando não sofrerem estupro... Teme, portanto, que a nova norma sirva de estímulo ao
aborto nos hospitais do SUS. É um enfoque chocante, pois pressupõe que as mulheres
são essencialmente mentirosas e que, quando encontram uma brecha qualquer, fazem
abortos com a voracidade de moscas buscando açúcar...

A novidade é que a flexibilização da lei do aborto incomoda a cúpula da Igreja Católica,


mas não os fiéis. Pelo menos, a maioria dos fiéis. O grupo Católicas pelo Direito de
Decidir, formado por defensoras do direito da mulher sobre seu corpo, encomendou uma
pesquisa ao Ibope. A pesquisa levantou a opinião geral, de toda a população, e a opinião
apenas dos católicos sobre o aborto. Descobriu que os católicos são mais liberais que a
população em geral. Um exemplo: 76% dos brasileiros concordam com o aborto de fetos
com problemas letais, mas esse número chega a 80% entre os católicos. Outro: 62% dos
brasileiros defendem o aborto em caso de estupro, e 67% dos católicos têm a mesma
posição. Mais um: 74% dos brasileiros querem que o SUS ofereça o serviço de aborto
nos casos previstos em lei, e 78% dos católicos dizem o mesmo. Ou seja: flexibilizar a lei
do aborto é uma vitória da maioria do povo brasileiro, particularmente dos católicos.
227

Anexo 17. VEJA 23-02-2005


André Petry

O beato do apagão
"Afinal, todo mundo sabe que a gravidez indesejada é comum entre mulheres
pobres. Mulher abastada, se quiser, faz aborto na esquina, com conforto e a
higiene necessária"

Severino Cavalcanti não é um homem de seu tempo. É de antes. Como radical da direita católica,
daqueles que desenvolvem um tipo peculiar de fobia pública a tudo o que se assemelha a prazer
sexual, Severino é contra a flexibilização da lei do aborto. Acha que a legislação atual, que autoriza
o aborto apenas em casos de estupro e risco para a vida da gestante, já é permissiva demais e
deveria ser revogada.

Enquanto isso...

O governo decidiu aumentar a distribuição de pílulas do dia seguinte nos postos da rede pública de
saúde. A pílula do dia seguinte -- que os religiosos dizem ser abortiva, mas os cientistas, que afinal
são autoridade no assunto, afirmam que não -- é uma medida sensata de saúde pública. Afinal,
todo mundo sabe que a gravidez indesejada é comum entre mulheres pobres. Mulher abastada, se
quiser, faz aborto na esquina, com todo o conforto e com a higiene necessária.

Severino acha que relacionamento homossexual é coisa do diabo. Jamais votaria a favor de
qualquer projeto de lei que regularizasse a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Como
presidente da Câmara, já prometeu que nada nesse âmbito, no que depender dele, será aprovado.

Enquanto isso...

Um juiz de Porto Alegre, Roberto Arriada Lerea, reconheceu que a separação de um casal de
homens que viviam juntos havia cinco anos devia gerar os mesmos efeitos de um divórcio
heterossexual. Ou seja: os bens adquiridos durante a união estável deveriam ser divididos entre os
dois. É uma decisão inovadora, na qual o juiz faz questão de dizer que a união estável -- ou o
casamento civil -- é acessível a todos os brasileiros, não importa o sexo. Nem a religião.

Severino rejeita a idéia de autorizar a pesquisa de células-tronco embrionárias, sob a alegação,


difundida pelo dogma religioso, de que um embrião representa uma vida, a vida é um dom divino
e, portanto, tem de manter-se imune à ação do homem. A pesquisa de células-tronco embrionárias
é a maior promessa científica de triunfo humano sobre a morte e a dor, mas religiosos como
Severino não entendem assim. No Congresso Nacional, o projeto que trata do assunto produziu um
consenso. Os cientistas brasileiros poderão pesquisar os embriões que estiverem há mais de cinco
anos nos estoques das clínicas de fertilização e prestes a ser descartados. Ou seja: o máximo que
se conseguiu foi permitir que os cientistas estudem os cerca de 20.000 embriões que, de qualquer
modo, acabarão sendo jogados no lixo.

Enquanto isso...

O governo da Inglaterra já concedeu duas licenças para que dois grupos de cientistas explorem os
mistérios das células-tronco embrionárias, que prometem oferecer a cura de doenças
degenerativas, como Alzheimer e Parkinson. A autorização mais recente foi dada ao cientista Ian
Wilmut, o pai da ovelha Dolly. Ele ganhou a permissão mais avançada que existe até hoje: poderá
fazer clonagem terapêutica de embriões humanos para estudar sua mecânica a fundo. Se e quando
os ingleses tiverem sucesso, é provável que apareça carola brasileiro rico pegando o avião para se
tratar por lá.

Durante a longa votação que resultou na vitória de Severino, o plenário da Câmara ficou
subitamente às escuras. O apagão durou uns quatro minutos. Era premonitório.
228

ANEXO 18. VEJA - 14-04-2004


Diogo Mainardi

Meus queridos leitores


"O capitão Ronaldo Santoro respondeu à minha tentativa de desqualificar o programa
nuclear brasileiro. Assim como o Washington Post, ele acredita que o Brasil sabe
enriquecer urânio. Bobagem. A gente só sabe enriquecer político ladrão"

Vik Muniz é um dos mais bem-sucedidos artistas plásticos brasileiros. Tempos atrás, em
cartinha a VEJA, ele comparou minha coluna à imagem da Virgem Maria e o menino
Jesus. Agradeço muito. Eu só gostaria de notar, Vik, que cartesiano é com "s".

Outro correspondente que merece uma resposta, mesmo que atrasada, é o presidente da
Associação Brasileira dos Produtores de Amido de Mandioca (Abpam). Ele defendeu a
coragem e o patriotismo do ministro Aldo Rebelo, que apresentou um projeto de lei
determinando o acréscimo de amido de mandioca ao pão francês. O presidente da
Abpam garantiu que a mandioca é um "tubérculo de grande valor". E que o amido de
mandioca é "um produto nobre, matéria-prima para a fabricação de papelão, tecidos e
cosméticos". Peço desculpas aos associados da Abpam se eles se sentiram diminuídos. O
propósito do meu artigo era apenas denunciar a jequice e a inaptidão dos mais altos
representantes do governo Lula. Em nenhum momento pretendi sugerir que houvesse
algo de errado em comer papelão, tecidos e cosméticos.

Adriano Diogo é secretário do Meio Ambiente de Marta Suplicy. Ele negou que a fonte do
Ibirapuera, a principal obra da prefeitura petista, tenha sido instalada num lago cheio de
coliformes fecais. Chamou-me de leviano. Assegurou que a balneabilidade do lago é
"igual ou superior à de muitas praias do litoral brasileiro". E afirmou que a água do lago
"não é potável apenas porque para isso seria necessário acrescentar cloro". Proponho o
seguinte, Adriano Diogo: eu recolho um copo de água do lago, pingo duas gotinhas de
cloro e você toma tudo num gole só.

Volnei Garrafa é o presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, indicado pelo ministro


da Saúde, Humberto Costa. Ele não aprovou meu artigo sobre o aborto. Disse que "há
tempo não se lia algo tão ruim sobre o assunto". Para ele, demonstrei "ignorância com
relação ao tema". E despejei "fogo amigo sobre aqueles que lutam pela descriminalização
do aborto no país". Em primeiro lugar, professor Garrafa, não sou seu amigo. Em
segundo lugar, não defendi a descriminalização do aborto, e sim a legalização. Em
terceiro lugar, é "descriminalização", não "discriminalização". Qual a classificação da
Universidade de Brasília no último Provão?

Olívio Dutra escreveu-me que, quando era governador do Rio Grande do Sul, deu todo o
apoio à abertura de uma CPI do jogo do bicho. Agora que é ministro, mudou de idéia,
sendo contrário à CPI do bingo. O que mais surpreende nos petistas é que eles ainda não
perceberam que, independentemente da CPI, o governo Lula acabou. Em junho de 2003,
previ que Lula seria desmascarado em dois anos. Durou ainda menos. Na época, tracei
um paralelo entre Lula e Silvio Berlusconi, o primeiro-ministro italiano. Para impedir
investigações contra suas empresas, Berlusconi sempre acusa o Ministério Público de ter
motivações políticas. E uma de suas principais bandeiras é intensificar o controle externo
sobre a Justiça.

O capitão-de-mar-e-guerra Ronaldo Santoro respondeu à minha tentativa de


desqualificar o programa nuclear brasileiro. Assim como o Washington Post, ele acredita
que o Brasil sabe enriquecer urânio. Bobagem. A gente só sabe enriquecer político
ladrão.
229

ANEXO 19. VEJA 27-04-2005


Diogo Mainardi

A revolução geriátrica
"A fé verdadeira, segundo Joseph Ratzinger,
exige maturidade. É para adultos. É para
gente grande. Não para a rapaziada, que
sofre de 'fraqueza mental'"

O melhor de todos foi eleito – Joseph Ratzinger. Sua maior qualidade é o profundo
menosprezo que ele tem pelos jovens. Um bom exemplo do menosprezo ratzingeriano foi
dado na homilia que antecedeu a eleição papal, na última terça-feira, quando ele ridicularizou
a ala reformista da Igreja Católica comparando-a a um menor de idade. A fé verdadeira,
segundo Ratzinger, exige maturidade. É para adultos. É para gente grande. Não para a
rapaziada, que sofre de "fraqueza mental", sendo permanentemente "jogada pelas ondas e
atirada de um lado para o outro por qualquer vento de doutrina".

Ratzinger tem razão. A grande ameaça à civilização ocidental é a infantilização da sociedade


moderna. Na homilia da última terça-feira, ele afirmou que a Igreja Católica pode oferecer
uma única resposta contra a barbárie infantilizadora: o fundamentalismo religioso. O papado
de Ratzinger não tentará estabelecer um diálogo com a modernidade. Não aceitará o debate
sobre o divórcio, a contracepção, o aborto, a eutanásia. Não mudará os dogmas da Igreja para
adaptá-la à realidade dos dias de hoje. Pelo contrário. Ratzinger defende a atemporalidade da
fé. Leonardo Boff declarou que, a partir de agora, "a Igreja terá mais dificuldade para ser
reconhecida, especialmente pelos jovens". É verdade. A questão é que Ratzinger está se
lixando para o reconhecimento dos jovens. Aliás, está se lixando também para o
reconhecimento de Leonardo Boff. Ratzinger prefere assistir ao esvaziamento da Igreja a
ceder ao catolicismo auto-indulgente praticado por aí. Sua mensagem é clara, e pode ser
facilmente compreendida por qualquer menor de idade imbecilizado: o papa não irá correr
atrás dos fiéis. Os fiéis é que deverão correr atrás dele, se não quiserem arder no fogo do
inferno.

O menosprezo de Ratzinger pelos jovens é antigo. Seus biógrafos atestam que, no Concílio
Vaticano II, ele era considerado um teólogo reformista, mas mudou de idéia depois de
testemunhar o vandalismo dos estudantes em 1968. Duas décadas mais tarde, ele promoveu
uma célebre cruzada contra a música "rock", por seu poder de "abater as barreiras da
personalidade, e livrar o homem do peso da consciência". Nesse aspecto, Ratzinger é o exato
oposto de João Paulo II. Para atrair os jovens, João Paulo II se cercou de estrelas da música
popular e transformou as missas campais em grandes espetáculos profanos. Ratzinger não fará
nada disso. Para ele, "a liturgia não é um espetáculo, não vive de surpresas simpáticas,
cativantes, e sim de repetições solenes". Numa sociedade cuja maior preocupação é entreter e
seduzir os jovens, Ratzinger tem a ousadia de lhes oferecer apenas seu menosprezo e seu
sentimento de superioridade. A meninada é conformista, acomodada, titubeante. A revolução
geriátrica de Ratzinger pretende enfrentá-la com o rigor intelectual, a insubmissão e o
absolutismo.

Dá até uma certa pena de não ser católico.


230

ANEXO 20. Veja 06-09-2000

Diogo Mainardi

Meu cachorro e o papa


Ilustração Ale Setti
Um cachorro não tem muitos privilégios, mas um deles
consiste no seguinte: em seu caso, a eutanásia não é
proibida por lei. A frase é de Milan Kundera, no final do
romance A Insustentável Leveza do Ser. O cachorro do
protagonista sofre de câncer. Arrasta uma pata. Fica
jogado num canto. Geme de dor. Até o dia em que o
protagonista o sacrifica. Na semana passada, aconteceu a
mesma coisa comigo. Meu cachorro estava com câncer.
Doente terminal. Segundo o veterinário, restava-lhe, no
máximo, um mês de vida. Quando começou a vomitar, a
arrastar a pata e a gemer de dor, decidimos sacrificá-lo.
Um dia antes da data marcada ele morreu por conta
própria. Foi um alívio não ter de matá-lo. Mas também
teria sido um alívio matá-lo, poupando-o de um
sofrimento inútil. Seu nome era "Tatu". Agora eu ando
pela cidade e desato a chorar toda vez que passo por uma de suas ruas preferidas.

A eutanásia é um desses assuntos de competência exclusivamente civil a respeito do


qual a Igreja Católica se sente no direito de interferir. Não é o único. Tem também o
divórcio, o aborto, as drogas leves, a fecundação artificial, a pena de morte. Em minha
última coluna, citei, de passagem, o recente encontro do papa com 2 milhões de jovens
em Roma. Foi impressionante. Tão impressionante que todos os políticos italianos se
acotovelaram na ânsia de beijar-lhe o anel. Os únicos que se atreveram a contrariá-lo
foram dois ou três pensadores católicos que se assustaram com o messianismo papal.
Eles alegaram que esse tipo de religiosidade massificada tem mais a ver com o
protestantismo dos telepregadores americanos do que com o catolicismo romano, que
sempre privilegiou a interioridade da fé. Qual é a diferença entre um casamento coletivo
do reverendo Moon, por exemplo, e a confissão coletiva realizada durante o encontro do
papa com os jovens?

João Paulo II consagrou mais santos do que qualquer outro papa. Esse dado reflete o seu
modo de ver a religião: mágica, miraculosa, irracional. Neste exato momento, dia 3 de
setembro, ele está beatificando mais dois: os papas João XXIII e Pio IX. Além de se
tornar santo, Pio IX passa por um processo de revisionismo histórico. Até hoje, os
italianos associaram a criação do Estado a figuras como Garibaldi e Cavour. Agora um
movimento ligado a João Paulo II decidiu atacar essas figuras porque suas idéias liberais
minaram o poder temporal da Igreja. Pio IX é conhecido por ter proclamado o dogma da
infalibilidade papal logo depois que as tropas garibaldinas ocuparam o Estado Pontifício.
O que os atuais sectários de Pio IX pretendem afirmar, portanto, é que a palavra do papa
é lei, devendo ser estendida à sociedade inteira. Para o resto de nós, a palavra do papa
pode ter um grande peso moral, mas só vale dentro da Igreja, servindo para guiar o
comportamento individual de seus fiéis. O risco é que, no ano 2000, os sectários de Pio
IX acabem por prevalecer. Quanto mais a política se desmoraliza, mais a Igreja ocupa
espaços que não lhe competem. Não digo que vamos virar um Afeganistão. Mas, se a
Igreja pudesse proibir contraceptivos, censurar a TV, cercear pesquisas científicas e
controlar a maneira como nos vestimos, certamente o faria. Assim como faz de tudo para
impedir a eutanásia. Eu gostaria de decidir como vou morrer. Gostaria de ter os mesmos
direitos do meu cachorro. Um beijo no focinho do "Tatu".
231

ANEXO 21. Veja 03-02-1999

A escolha mais difícil


O aumento no número de gestações múltiplas
coloca o dilema: abortar ou não alguns dos fetos?
Karina Pastore

— Mais para a direita... Não, não... Um pouco mais para a


esquerda... Agora, para cima...

Enquanto o médico falava, a tela do aparelho de ultra-sonografia


estampava a imagem de quatro fetos. Na 12ª semana de gestação,
quatro corações pulsavam com vigor. Ao lado da máquina, deitada
sobre uma maca, a mãe chorava. Há um ano a economista A.L.M.,
de 29 anos, tentava engravidar. Passou por meia dúzia de centros
de reprodução assistida. Em vão. No último, indicaram-lhe injeções
de gonadotrofina, o hormônio estimulante da ovulação. No primeiro mês, nada. No seguinte,
quatro óvulos, a fecundação... e os quatro fetos.

— Por favor, não se mexa — pedia o outro médico, tentando impedir o sobe-e-desce da
barriga da moça em prantos.

— Isso! — anunciou o primeiro doutor. A agulha de aproximadamente 15 centímetros de


comprimento e 1 milímetro de diâmetro chegara a seu destino: o coraçãozinho de um dos
fetos. O segundo médico disparou a injeção. Cloreto de potássio. Parada cardíaca. Morte.
A.L.M. virou o rosto. Soluçava. Com a mesma punção no abdome da mãe, a agulha alcançou
o coração de outro bebê. Cloreto de potássio. Parada cardíaca.
Morte.
"Fiquei grávida de
quadrigêmeos. Mas abri Quarenta minutos e A.L.M. deixava a clínica. Não era mais a
mão de dois deles para gestante de quadrigêmeos, mas apenas de gêmeos. Hoje, às vésperas
tentar preservar a saúde de completar oito meses de gravidez, os bebês remanescentes estão
dos outros dois. Tento prestes a nascer. "Prefiro não pensar sobre o que foi feito dos
não pensar no que foi
feito deles."
outros", diz a mãe. Medindo 6 centímetros cada um, depois de
A.L.M., 29 anos quatro semanas, foram absorvidos pelo organismo materno. "Tento
imaginar que não existiram." A.L.M. tenta. Mas, não importa
quanto tente, o sentimento de luto existe. Ela não engravidou sem querer. Ao contrário —
como desejava ter um bebê! "Fiz o que fiz pelo bem desses dois que carrego no ventre",
defende ela. Ninguém, além do marido e de uma amiga, sabe do sacrifício, algo que os
médicos, na fria linguagem técnica, chamam apenas de "redução embrionária".
232

Às vésperas do Natal de 1998, num hospital de


Boston, nos Estados Unidos, a nigeriana Nkem
Chukwu, de 29 anos, deu à luz seis meninas e dois
meninos — três meses antes do previsto para uma
gestação normal. Sete dias depois, a pequena Odera,
a menorzinha dos óctuplos, morreu vítima de
insuficiência cardíaca e respiratória. Tinha o
tamanho de um passarinho: 320 gramas, 24
centímetros. Foi uma gravidez dura. Por várias
semanas a mãe só se alimentou à base de líquidos e
teve de ficar deitada — a bacia numa posição mais
alta do que a cabeça para não sobrecarregar a região pélvica. Como a economista paulistana, a
nigeriana recebeu injeções de gonadotrofina. Mas, cristã fervorosa, recusou-se a abortar
alguns dos fetos. "Fui abençoada por Deus", afirmou ela na época. A probabilidade de uma
mulher ter oito bebês de uma só vez, sem auxílio de tratamento, é de uma em 21 trilhões. Para
se ter uma idéia do que isso significa, é uma probabilidade igual à de um raio cair três vezes
na cabeça de uma só pessoa. Ou seja, é virtualmente impossível. Nkem fez certo? A.L.M. fez
errado? A ninguém cabe julgar.

"Não consegui fazer a redução. Hoje, olho para


meus filhos e penso: quais deles teriam sido
mortos?"
Teresa Lopes, 38 anos, mãe de Bárbara, Raquel,
Bruno e Catarina, de 2 anos
Foto: Renan Cepeda

O drama e a angústia pelos quais passaram essas duas mulheres são emblemáticos de um dos
grandes dilemas da medicina à beira do século XXI. Com o nascimento da inglesinha Louise
Brown, o primeiro bebê de proveta, em 24 de julho de 1978, conquistou-se o poder de agir
sobre um dos maiores imperativos da natureza — a perpetuação da espécie. De cada dez
recém-nascidos no mundo, um é resultado da fertilização in vitro. No início dos anos 80, as
taxas de sucesso dos tratamentos eram de apenas 5%. Hoje, são de quatro a sete vezes mais
altas. "Apesar dos avanços tecnológicos, é preciso muita cautela", alerta o médico gaúcho
Paulo Serafini, especialista em reprodução humana e professor da Universidade Yale, nos
Estados Unidos. O pedido de cautela do médico tem sua razão: as terapias de fertilização
aumentaram a incidência das gestações múltiplas, aquelas que envolvem mais de um feto. Em
quase duas décadas, saltou de uma em 100 para uma em cinco, entre as mulheres submetidas
a tratamentos de fertilidade. "A espécie humana não foi programada para gerar mais de um
feto por vez", diz o médico Marcelo Zugaib, chefe do departamento de obstetrícia e
ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, USP. Até dois, a
natureza ainda consegue dar conta do recado com certa tranqüilidade. "A partir de três, as
complicações são inevitáveis — tanto para a mãe quanto para os fetos", garante o
ginecologista paulista Thomaz Rafael Gollop, diretor do Instituto de Medicina Fetal e
Genética Humana. E a alegria com a notícia das crianças vem acompanhada pela agonia da
233

decisão: ir com a gestação até o fim ou abortar um ou mais nenês na tentativa de preservar a
mãe e as crianças remanescentes dos riscos de uma
gravidez múltipla?

O travo da tragédia — Qual dos bebês é aquele que


está demais? O primeiro? O terceiro? O quarto?
Qual? Busca-se sempre preservar o feto que está
próximo do colo do útero. Ele serviria como uma
espécie de tampão para evitar a saída dos outros. De
resto, os médicos tendem a optar pelos menores,
pelos que apresentam batimentos cardíacos mais
fracos e por aqueles de mais fácil acesso à injeção de
cloreto de potássio. Apesar da aparência de critério
científico, é pura aposta. Há casos de gravidezes
múltiplas em que, depois do nascimento, morre exatamente o mais robusto e sobrevivem os
que, no útero materno, davam sinais de extrema fraqueza.

Nas melhores clínicas de reprodução assistida do Brasil, 35% das mulheres grávidas de três
ou mais fetos optam pela redução embrionária. Seria até uma escolha mais fácil se a redução
desse alguma garantia de que os bebês remanescentes nasceriam sadios e perfeitos. Mas não.
Também as reduções implicam altas taxas de risco. As injeções de cloreto de potássio podem
causar infecções, inviabilizando a vida dos fetos que se tentou preservar. Uma em cada dez
mulheres que optam pela redução acaba perdendo todos os bebês. Impossível não
experimentar o travo da tragédia. Arrependimento, culpa: "E se eu tivesse deixado todos?"

"Nunca me importei com os riscos. Eles eram um


presente de Deus."
Suerli Galvão, 45 anos, com o marido, José
Rinaldo, e Luiz Felipe, Carlos Eduardo e Paulo
Augusto
Foto: Claudio Rossi

A escolha é difícil porque tirar não garante nada. Não tirar, também. Trigêmeos têm dez vezes
mais chance de nascer antes do tempo do que os fetos únicos. Sem as funções orgânicas
totalmente formadas, os prematuros estão ameaçados de sofrer paralisia cerebral. Nada menos
234

do que a metade dos quádruplos e 8% dos triplos amargarão as seqüelas dessas paralisias,
caso sobrevivam. Já seria grave. Há mais. Prematuros estão sujeitos a hemorragias no coração
e no cérebro, déficit visual e motor, comprometimento respiratório, inflamação na parede dos
intestinos e retardamento intelectual. "A prematuridade pode até não deixar sintomas
imediatamente", diz a médica Clea Rodrigues Leone, chefe do berçário Anexo à Maternidade,
do Instituto da Criança, da USP. "Mas nada garante que a longo prazo essas crianças não
venham a apresentar seqüelas neurológicas." A redução fetal — a eliminação de alguns fetos
— evita essas mazelas.

Há três anos, a psicóloga carioca Teresa Mota Igrejas Lopes, 38 anos, viu-se diante da
tenebrosa dúvida. Casada pela segunda vez com o economista Roberto Costa, ela já era mãe
de duas meninas, filhas de seu primeiro casamento. Com o novo marido, Teresa queria uma
nova criança, mas não conseguia engravidar. O diagnóstico: entupimento das tubas uterinas.
Submetida a tratamentos de fertilização, engravidou de quadrigêmeos. "Sou contra o aborto,
mas fiquei com medo de carregar quatro bebês em minha barriga", lembra Teresa. "Não ia
agüentar também a dor de perdê-los depois do nascimento." Desde o princípio, Roberto
recusou-se a abrir mão de dois dos filhos. Convenceu a mulher. Teresa teve de ficar de
repouso. Engordou 21 quilos. Sete meses depois, em maio de 1996, chegaram Bárbara, Bruno,
Raquel e Catarina. Pesavam entre 1,5 e 1,8 quilo. "Hoje, a gente olha para as crianças e pensa
quais deles teriam sido os escolhidos para a injeção letal de cloreto de potássio", diz ela.
Bárbara? Bruno? Raquel? Catarina?

A redução fetal surgiu como conseqüência de um defeito nos tratamentos que ajudam as
mulheres a engravidar. "A gravidez múltipla é o tiro pela culatra das terapias de fertilização",
define o ginecologista Eduardo Leme Alves da Motta, diretor da Huntington Centro de
Medicina Reprodutiva. Apesar de todos os avanços, não há droga nem tratamento de
fertilização precisos o bastante para garantir a gravidez de um único feto. "O objetivo é
reduzir o número de gestações multifetais para taxas semelhantes às da natureza", completa o
médico Agnaldo Cedenho, coordenador do setor de reprodução humana da Universidade
Federal de São Paulo (veja quadro).

Um em cada sete casais brasileiros encontra dificuldade para ter filhos. A maioria recorre à
fertilização in vitro, ao bebê de proveta. Os óvulos da mulher são fecundados pelos
espermatozóides do homem em laboratório. O embrião é transferido depois para o útero
materno. Outros casais são submetidos a tratamentos à base de hormônios. A mulher recebe
substâncias químicas que estimulam a ovulação. Uma resolução de 1992 do Conselho Federal
de Medicina estabeleceu algumas normas para reduzir os riscos de gravidez múltipla
decorrente da reprodução assistida. Quando fazem a fertilização in vitro, os médicos devem
implantar no organismo feminino no máximo quatro embriões. Em busca de resultados, no
entanto, muitos especialistas transferem cinco, seis, sete, oito embriões. Obviamente,
aumentam também as chances de gestações multifetais. O professor Volnei Garrafa, da
Universidade de Brasília e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, diz que o
correto seria colocar menos embriões no útero das mulheres, em vez de colocar todos os
embriões possíveis e depois eliminar os excedentes.

Foi por insistência da própria professora paulista M.V.B.V, de 43 anos, que o médico
implantou sete embriões em seu útero. Depois de um ano e dois meses e 30.000 reais gastos
em tratamentos de fertilização, assustada com o avançar da idade, ela estava prestes a
aposentar o desejo de ser mãe. "Sabia que com a minha idade a chance de engravidar com
apenas quatro embriões era de apenas 20%", conta. "Por isso, quis otimizar o tratamento."
235

Qual não foi a surpresa quando cerca de vinte dias depois da implantação ela e o marido
receberam a notícia de que três dos sete embriões se haviam fixado no útero materno. Ele
ficou feliz da vida. Ela, assustadíssima: "Eu estava lutando para ter um único filho". O tempo
foi passando, os fetos crescendo, corações pulsando — tudo normal. "Quando vi a imagem de
meus filhos no ultra-som, tudo mudou", lembra M.V.B.V. Ela e o marido pesaram os prós e
os contras da gestação múltipla e hoje, depois de cinco meses, esperam pela chegada dos três
bebês. "Sei que fiz uma escolha de risco", diz a mãe. Acostumada a trabalhar mais de doze
horas por dia, ela está de repouso desde setembro. Ao contrário das mães de primeira viagem
que se deleitam em comprar casaquinhos, cueiros, mantas e mamadeiras, M.V.B.V. não pode
fazer nada disso. Tem de ficar de repouso. Assim, são as irmãs e o marido que se encarregam
da tarefa.

Sem regulamento — Diferentemente do que acontece na Inglaterra, por exemplo, onde leis
regulamentam a prática da medicina reprodutiva, no Brasil, fora a resolução do Conselho
Federal de Medicina, sem poder de lei, não há regulamento algum sobre o assunto. E a
redução embrionária enquadra-se no crime de aborto. Os empresários Suerli Galvão, de 45
anos, e José Rinaldo da Nóbrega, de 37 anos, estão casados há quatro anos. Divorciada, ela
teve três filhos do primeiro casamento — o mais velho, que morreu atropelado aos 8 anos,
estaria hoje com 23, a do meio tem 20 anos e a caçula, 18. No último parto ela fez laqueadura.
Ao conhecer José Rinaldo, quis ter mais filhos. Em 1996 foi submetida a uma fertilização in
vitro. Nada. No final de 1997, de novo. Dos cinco óvulos implantados, três vingaram. Pela
idade de Suerli e pelo fato de ela estar carregando três bebês, o casal foi aconselhado a fazer a
redução. Extremamente religiosos, recusaram: "Não, não, eles são um presente de Deus! Não
importa o que aconteça". Como era de esperar, Suerli teve uma gravidez complicada. Durante
os sete meses e meio que durou a gestação, ela precisou ser internada quatro vezes. Sentia
uma terrível falta de ar. O coração parecia uma batedeira. Era o corpo dando sinais de que
estava sobrecarregado com os três fetos. No sexto mês, recebeu uma transfusão de sangue.
Estava anêmica. Até aquele momento, ela só conseguia alimentar-se com bolacha maizena e
chá. No dia 26 de agosto do ano passado, nasceram Luiz Felipe, 1.760 gramas, Paulo
Augusto, 1.650 gramas, e Carlos Eduardo, 1.250 gramas. A mãe foi para casa em três dias. Os
dois maiores, em quinze. E o menorzinho, um mês depois. Foi a escolha do casal, e não foi
fácil. Suerli quase morreu com os bebês. Felizmente deu certo. E se não desse? Um último
detalhe: o cloreto de potássio, usado na redução embrionária, é a mesma substância utilizada
em alguns Estados americanos para executar criminosos condenados à pena capital.

Fora dos padrões naturais

Sem a ajuda dos métodos artificiais, a probabilidade de uma mulher ter mais de um bebê por
vez é muito baixa. Pelas vias naturais, o nascimento dos sétuplos McCaughey, em novembro
de 1997, nos Estados Unidos, seria praticamente impossível: um em 262 bilhões. Os
tratamentos de fertilização mudam as regras da natureza. Vai-se de um extremo a outro. A
mulher que não pode ter filhos tem, de repente, uma ninhada de bebês. A chance de trigêmeos
é de apenas uma em 10.000. Nos tratamentos de fertilização, sobe para uma em dez. A
natureza não fez o sistema reprodutivo humano funcionar à imagem e semelhança dos coelhos
e ratos. É a ciência que o está fazendo.

Em busca do feto único


O grande desafio da medicina reprodutiva é reduzir o número de gestações múltiplas. Até o
início da década de 90, o embrião era mantido por apenas dois dias fora do organismo
236

materno. As chances de gravidez eram baixas. Pelo método natural, 48 horas depois da
fecundação o embrião ainda está nas tubas uterinas a caminho do útero, aonde só chegará por
volta do sétimo dia de vida. A ciência, contudo, não havia desenvolvido um meio de cultura
que garantisse o crescimento do embrião no tubo de ensaio por mais de 48 horas. Até o
segundo dia de vida, o embrião cresce lentamente. "A partir do terceiro dia, no entanto, o
crescimento se torna exponencial", diz o ginecologista Eduardo Motta, diretor do Huntington
Centro de Medicina Reprodutiva. A demanda de energia é cada vez maior — o que exigiria
meios de cultura extremamente sofisticados.

Com reportagem de Roberta Paixão, do Rio de Janeiro,


e Daniella Camargos, de Belo Horizonte
237

ANEXO 22. Veja 18-07-2001

Diogo Mainardi

Meu assunto preferido


"Não há país desenvolvido que
proíba o aborto. A proibição é
bandeira de países atrasados"

Você está seguindo a disputa sobre as células estaminais embrionárias? Virou meu
assunto preferido. Só falo nisso. Arrependo-me de ter matado tantas aulas de ciência nos
tempos de escola. Leio todas as notícias que aparecem e as comento com ar doutoral,
apesar de compreendê-las pouquíssimo. Outro dia, por exemplo, cientistas introduziram
células estaminais num rato infartado e seu tecido cardíaco se reconstituiu. Existe uma
razoável esperança de que as células estaminais possam fazer o mesmo com outros
tecidos lesados, sobretudo os do cérebro, ajudando a curar mal de Parkinson, Alzheimer
ou paralisia cerebral. O problema é que as experiências mais promissoras nesse campo
envolvem células estaminais retiradas de embriões humanos. Para retirá-las, é
necessário destruir os embriões. A Igreja Católica é contrária. Diz que equivale a um
aborto. Um documento do Vaticano, assinado pelo professor Juan de Dios Vial Correa,
considera o uso científico de embriões humanos "gravemente imoral e, portanto,
gravemente ilícito". Não é a opinião do governo britânico, o primeiro a consentir esse tipo
de experimentação. A seguir, vieram países como Austrália e Israel. Alguns dias atrás, foi
a vez da Alemanha. A posição dos Estados Unidos é mais complicada. O ex-presidente
Clinton autorizou o financiamento federal de pesquisas com células embrionárias. Assim
que George W. Bush assumiu o cargo, pensou em suspender a autorização. Mas está
tendo de voltar atrás, por causa da pressão de parlamentares de seu próprio partido.
Seja como for, parece que nada será definido antes de 23 de julho, quando Bush se
encontrará com o papa.

O Brasil nunca fez uma descoberta científica importante. Significa que qualquer opinião
do nosso governo sobre a experimentação com embriões humanos será irrelevante,
assim como é irrelevante a opinião expressa neste artigo. Indiretamente, porém, a coisa
nos diz respeito. Meu filho sofreu uma grave asfixia durante o parto. Li que um cientista
de Harvard, Evan Snyder, está analisando o efeito de células estaminais implantadas no
cérebro de animais que sofreram grave asfixia perinatal. É possível que, um dia, essas
pesquisas envolvam células estaminais retiradas de embriões humanos. O que fazer?
Deixar as pesquisas de lado? Decretar guerra contra a Igreja Católica? Perda de tempo. A
Igreja Católica já perdeu. Veja a controversa questão do aborto. Não há um único país
desenvolvido que o proíba. A proibição é uma bandeira exclusiva de países
subdesenvolvidos, como o Brasil. Não implica que ele não seja praticado. As brasileiras
abortam como em qualquer outro lugar. A diferença é que as brasileiras ricas vão a
clínicas mais ou menos seguras, enquanto as pobres correm o risco de morrer. A
clandestinidade do aborto não preserva a vida, preserva um privilégio de classe. Como
sempre, na base do nosso comportamento não há um princípio ético, mas apenas a
aceitação de uma iniqüidade social. Como no caso da prisão especial. Felizmente,
podemos contar com os lobistas da indústria farmacêutica americana. Pensando no lucro
das empresas que representam, eles farão com que as pesquisas com células estaminais
embrionárias possam prosseguir. E a opinião da Igreja Católica se tornará tão irrelevante
quanto a minha.
238

ANEXO 23. Veja 17-03-2004


Diogo Mainardi

O planejamento petista
"Se depender do PT, a maior contribuição científica brasileira continuará sendo
o polvilho
anti-séptico Granado, para as frieiras nos pés.
Chega de reclamar de Bush. Lula é muito mais
retrógrado do que ele"

O ministro da Saúde, Humberto Costa, anunciou que quer diminuir em 15% a


mortalidade materna. Há uma maneira simples e rápida para atingir a meta. Basta
legalizar o aborto. Calcula-se que os abortos clandestinos sejam responsáveis por cerca
de 15% das mortes de gestantes. Acabando com os abortos clandestinos, a mortalidade
materna diminui na mesma proporção, em particular entre as mulheres mais pobres e
mais jovens.

O plano de Humberto Costa, como todos os outros planos do governo, é só conversa


mole. Ele promete salvar a vida dessas mulheres garantindo o acesso ao planejamento
familiar. O planejamento familiar é uma das inúmeras falácias da nossa Constituição. Foi
o subterfúgio empregado pelos constituintes para impedir qualquer política de controle da
natalidade. Sobretudo o aborto. O planejamento familiar se baseia quase exclusivamente
em programas educacionais. Quando o poder público não sabe resolver um problema,
como a criminalidade ou a miséria, recorre sempre à educação. A educação é o principal
mito paralisante do Brasil, o argumento que sufoca todos os demais. Se os políticos
parassem de usar a educação para encobrir sua incompetência e inoperância, o Brasil
teria alguma chance de ir para a frente.

No mundo todo, o direito ao aborto foi uma conquista dos partidos de esquerda. Até
alguns anos atrás, o PT o defendia. Em 1995, o atual presidente do partido, José
Genoino, chegou a apresentar um projeto de lei permitindo o aborto nos primeiros
noventa dias de gestação. Agora mudou. Os petistas perderam o interesse pelo assunto,
preferindo se concentrar em metas de superávit fiscal e expedientes para abafar
denúncias de corrupção. O único parlamentar petista que se ocupa ativamente da
questão é Durval Orlato, que tenta limitar ainda mais sua aplicação. Ele pleiteia que as
vítimas de estupro sejam obrigadas a ver filmes sobre o desenvolvimento dos fetos caso
decidam abortar. Além da tortura do estuprador, portanto, as mulheres deverão ser
submetidas à tortura do Estado. Um fiel aliado do PT, Severino Cavalcanti, do PP,
também se engajou na campanha. Ele planeja enfiar na cadeia todas as mulheres que
praticarem abortos clandestinos.

Recentemente, membros do PT pensaram em adotar algumas medidas de controle


demográfico, mas a ala mais carola do partido os impediu. A idéia era associar os
benefícios do Bolsa-Família a formas de desincentivo à natalidade. Por mais paradoxal
que possa parecer, o governo brasileiro, como o da Dinamarca, subsidia o aumento da
natalidade. Quanto mais filhos tem uma mulher, mais esmolas governamentais ela
recebe. Os fundamentalistas católicos do PT determinaram também a proibição de
experimentos com células-tronco desenvolvidas a partir de embriões humanos.
Curiosamente, o Brasil conseguiu avanços importantes nesse campo de pesquisa.
Avanços que agora irão se perder. Se depender do PT, a maior contribuição científica
brasileira continuará sendo o polvilho anti-séptico Granado, para as frieiras nos pés.
Chega de reclamar de Bush. Lula é muito mais retrógrado do que ele.
239

ANEXO 24. Veja 09-03-2005


Diogo Mainardi
Contra o desarmamento
"No segundo semestre, será realizado
o plebiscito sobre o desarmamento. O governo
é a favor. Vote contra. Políticos e padres estão
sempre querendo tirar algum direito do cidadão.
Agora é o direito à autodefesa. Não aceite"

O jornalista americano Hunter S. Thompson se matou duas semanas atrás. Deu um tiro na
cabeça. Ele era colecionador de armas. Em seu último artigo, ditou as regras para um novo
esporte, inventado por ele, que consistia em abater bolinhas de golfe com uma espingarda.
Suicidar-se é um dos direitos primordiais do homem. Todo mundo deveria ter uma arma em
casa, para esse fim. Outro direito é defender-se quando atacado. Perguntaram a Hunter S.
Thompson por que ele era contra a política de desarmamento civil. Ele respondeu
sensatamente que "quando só os malucos estão armados, não sobra ninguém para vigiar os
malucos".

Menina de Ouro e Mar Adentro, ganhadores do Oscar de melhor filme e de melhor filme
estrangeiro do ano, defendem o direito ao suicídio assistido. O diretor de Menina de Ouro,
Clint Eastwood, já defendeu também o direito à posse de armas, com a célebre tirada do
inspetor Callaghan: "Tenho uma opinião muito clara sobre o controle de armas. Se há uma
arma por perto, eu quero estar controlando". Clint Eastwood entende do assunto. Seus
melhores filmes são aqueles em que ele mata mais gente, usando poncho e sendo dublado em
italiano. Os piores são aqueles em que ele não mata ninguém, protagonizados por Sondra
Locke, sua mulher na época, e pelo orangotango Clyde. Imagine o que seria a história do
cinema sem armas. Um monte de filmes com o orangotango Clyde. Pior: um monte de filmes
com Sondra Locke.

No segundo semestre, será realizado o plebiscito sobre o desarmamento. A idéia é banir o


comércio de armas de fogo do território nacional. O governo é a favor. Vote contra. Políticos
e padres estão sempre querendo tirar algum direito do cidadão: o direito ao suicídio assistido,
ao aborto, ao consumo de drogas, às pesquisas científicas, à informação livre, às uniões do
mesmo sexo. Agora querem tirar também o direito à autodefesa. Não aceite. Se eu me sinto
mais seguro com uma arma na cintura, o problema é meu, desde que não dispare
indevidamente. O governo não tem uma política para o combate à criminalidade. O ministro
da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, tenta encobrir esse fato com o apoio à lei do
desarmamento. Para ele, se um criminoso invade minha casa, rouba minha arma e a usa para
matar inocentes, o culpado sou eu, não o governo que deixou o criminoso solto. Como a culpa
é minha, meu lugar é a cadeia.

O debate sobre o desarmamento poderia fazer algum sentido se o governo cumprisse sua parte
e apreendesse as armas clandestinas em circulação. Como isso nunca vai acontecer, a questão
não se coloca. Cada um deve tentar se proteger por conta própria. Compre uma arma de bom
calibre. Aprenda a usá-la. Pratique tiro ao alvo em máquinas de escrever e bolinhas de golfe,
como Hunter S. Thompson. Em seguida, alugue todos os filmes com o orangotango Clyde e
entrincheire-se em casa, vestindo um poncho e grunhindo em italiano.
240

ANEXO 25. VEJA 13-04-2005


Diogo Mainardi

As respostas da Igreja
"Os católicos, segundo dom Cláudio
Hummes, precisam olhar para a frente.
É um erro. Seu lugar é lá atrás. O melhor
argumento de que a Igreja dispõe é o
mesmo de sempre: as profundezas do inferno"

Dom Cláudio Hummes é candidato a papa. Eu voto contra. No meu conclave particular,
dou-lhe fumacinha preta. Ele diz que a Igreja Católica "está a serviço dos pobres". Que
seu papel é "combater o privilégio e a desigualdade social". Que a "pobreza, hoje, é mais
desumana". Que o desemprego é causado pela "globalização e pelo neoliberalismo". Que
a "reforma agrária deve ser acelerada". Que o agronegócio não garante a "justiça social".
Que o Fome Zero é um "feito muito grande em termos de distribuição de renda". Que o
homem precisa "entender que dá para ser feliz com menos". Que é urgente abandonar as
"ambições individualistas".

A única maneira que a Igreja tem para ajudar os pobres é dar-lhes sopa e roupa velha.
Não é a opinião do cardeal Cláudio Hummes. Ele acredita que a religião pode fazer muito
mais, funcionando como um contrapeso para o capitalismo e a sociedade de consumo. A
maior parte dos discípulos de João Paulo II exibe a mesma presunção. Eles imaginam
que o papa de fato derrubou o comunismo. E que, a seguir, derrubaria também os
aspectos mais daninhos do capitalismo, que se manifestam sob a forma de um
degenerado materialismo. É um erro de avaliação da hierarquia católica. Em primeiro
lugar, quem derrubou o comunismo foi o capitalismo, e não o papa. Em segundo lugar, o
grande atributo do capitalismo é a capacidade de se corrigir sozinho. Sem religião. Sem
papa. Sem o cardeal de São Paulo.

O principal ponto da plataforma papal de dom Cláudio é que "a Igreja não pode dar
respostas antigas a perguntas novas". Não tenho idéia do que isso significa. Claro que a
Igreja pode dar respostas antigas. O que não pode dar são respostas novas. Qualquer
tentativa de encontrar respostas novas para questões como células-troco embrionárias,
ou aborto, ou eutanásia, ou métodos contraceptivos será sempre grotescamente
malsucedida. A melhor saída é fazer o contrário do que diz dom Cláudio. Em vez de
enfrentar os temas da modernidade, a Igreja deve simplesmente ignorá-los. Dom Cláudio
gosta de pescar e tocar violino. É uma vantagem. Quando lhe perguntarem sobre as
células-tronco embrionárias, ele pode sair para pescar ou se fechar no quarto com seu
violino. Se não tiver para onde escapar, o conselho é abrir a Escritura ao acaso e citar o
primeiro versículo que lhe saltar aos olhos. Uma resposta antiga certamente será menos
imprópria do que um arremedo de resposta nova.

Dom Cláudio é tido como um conservador no campo moral. Deveria ser mais. Um
exemplo: mães solteiras. Elas representam um dos maiores problemas sociais do país,
porque só contam com a renda de um salário. Se dom Cláudio fizesse uma cruzada
amaldiçoando os homens que abandonam as mulheres grávidas, o resultado certamente
seria nulo, mas pelo menos colocaria a Igreja do lado da razão. Os católicos, segundo
dom Cláudio, precisam olhar para a frente. É um erro. Seu lugar é lá atrás. O melhor
argumento de que a Igreja dispõe é o mesmo de sempre: as profundezas do inferno.
241

ANEXO 26 – SANTA MISSA «PRO ELIGENDO ROMANO PONTIFICE»


Disponível em:
<http://www.vatican.va/gpII/documents/homily-pro-eligendo-pontifice_20050418_po.html>. Acesso em 21 de
julho de 2007.
CAPELA PAPAL
SANTA MISSA «PRO ELIGENDO ROMANO PONTIFICE»
HOMILIA DO CARDEAL JOSEPH RATZINGER
DECANO DO COLÉGIO CARDINALÍCIO
Segunda-feira 18 de Abril de 2005
Is 61, 1-3a. 8v-9
Ef 4, 11-16
Jo 15, 9-17
Nesta hora de grande responsabilidade, ouvimos com particular atenção quanto o Senhor nos diz com as suas
mesmas palavras. Gostaria de escolher, das três leituras, só alguns trechos, que nos dizem respeito
directamente num momento como este.
A primeira leitura oferece um retrato profético da figura do Messias um retrato que recebe todo o seu
significado a partir do momento em que Jesus lê este texto na sinagoga de Nazaré, quando diz: "Cumpriu-se
hoje esta passagem da Escritura" (Lc 4, 21). No centro do texto profético encontramos uma palavra que pelo
menos à primeira vista é contraditória. O Messias, falando de si, diz que é enviado "para proclamar o ano de
misericórdia do Senhor, um dia de vingança para o nosso Deus" (Is 61, 2). Ouvimos, com alegria, o anúncio do
ano de misericórdia: a misericórdia divina põe um limite ao mal disse-nos o Santo Padre. Jesus Cristo é a
misericórdia divina em pessoa: encontrar Cristo significa encontrar a misericórdia de Deus. O mandato de
Cristo tornou-se nosso mandato através da unção sacramental; somos chamados a promulgar não só com
palavras mas com a vida, e com os sinais eficazes dos sacramentos, "o ano de misericórdia do Senhor". Mas
que pretende dizer Isaías quando anuncia o "dia da vingança para o nosso Deus"?
Jesus, em Nazaré, na sua leitura do texto profético, não pronunciou estas palavras concluiu anunciando o ano
da misericórdia. Foi porventura este o motivo do escândalo que se realizou depois da sua pregação? Não o
sabemos. De qualquer forma o Senhor ofereceu o seu comentário autêntico a estas palavras com a morte de
cruz. "Subindo ao madeiro da cruz, Ele levou os nossos pecados no seu corpo...", diz São Pedro (1 Pd 2, 24). E
São Paulo escreve aos Gálatas: "Cristo resgatou-nos da maldição da lei, ao fazer-se maldição por nós, pois está
escrito: Maldito seja todo aquele que é suspenso no madeiro. Isto, para que a bênção de Abraão chegasse até
aos gentios, em Cristo Jesus, para recebermos a promessa do Espírito, por meio da fé" (Gl 3, 13 s.).
A misericórdia de Cristo não é uma graça a bom preço, não supõe a banalização do mal. Cristo leva no seu
corpo e na sua alma todo o peso do mal, toda a sua força destruidora. Ele queima e transforma o mal no
sofrimento, no fogo do seu amor sofredor. O dia da vingança e o ano da misericórdia coincidem no mistério
pascal, no Cristo morto e ressuscitado. Esta é a vingança de Deus: ele mesmo, na pessoa do Filho, sofre por
nós. Quanto mais formos tocados pela misericórida do Senhor, tanto mais entramos em solidariedade com o
seu sofrimento tornamo-nos disponíveis para completar na nossa carne "o que falta aos padecimentos de
Cristo" (Cl 1, 24).
Passamos à segunda leitura, à carta aos Efésios. Trata-se aqui em substância de três coisas: em primeiro lugar,
dos ministérios e dos carismas na Igreja, como dons do Senhor ressuscitado que subiu ao céu; por
conseguinte, da maturação da fé e do conhecimento do Filho de Deus, como condição e conteúdo da unidade
no corpo de Cristo; e, por fim, da comum participação ao crescimento do corpo de Cristo, isto é, da
transformação do mundo na comunhão com o Senhor.
Detenhamo-nos apenas sobre dois pontos. O primeiro é o caminho rumo à "maturidade de Cristo"; assim diz,
simplificando um pouco, o texto italiano. Mais precisamente deveríamos, segundo o texto grego, falar da
"medida da plenitude de Cristo", que somos chamados a alcançar para sermos realmente adultos na fé. Não
deveríamos permanecer crianças na fé, em estado de menoridade. Em que consiste ser crianças na Fé?
Responde São Paulo: significa ser "batidos pelas ondas e levados por qualquer vento da doutrina..." (Ef 4, 14).
Uma descrição muito actual!
Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decénios, quantas correntes ideológicas, quantas
modas do pensamento... A pequena barca do pensamento de muitos cristãos foi muitas vezes agitada por estas
ondas lançada de um extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, até à libertinagem, ao colectivismo
radical; do ateísmo a um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo e por aí adiante. Cada dia
surgem novas seitas e realiza-se quanto diz São Paulo acerca do engano dos homens, da astúcia que tende a
levar ao erro (cf. Ef 4, 14). Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como
fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar "aqui e além por qualquer vento de doutrina",
aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo
que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades.
Ao contrário, nós, temos outra medida: o Filho de Deus, o verdadeiro homem. É ele a medida do verdadeiro
humanismo. "Adulta" não é uma fé que segue as ondas da moda e a última novidade; adulta e madura é uma
fé profundamente radicada na amizade com Cristo. É esta amizade que nos abre a tudo o que é bom e nos dá o
242

critério para discernir entre verdadeiro e falso, entre engano e verdade. Devemos amadurecer esta fé, para
esta fé devemos guiar o rebanho de Cristo. E é esta fé só esta fé que gera unidade e se realiza na caridade.
São Paulo oferece-nos a este propósito em contraste com as contínuas peripécias dos que são como crianças
batidas pelas ondas uma bela palavra: praticar a verdade na caridade, como fórmula fundamental da existência
cristã. Em Cristo, coincidem verdade e caridade. Na medida em que nos aproximamos de Cristo, também na
nossa vida, verdade e caridade fundem-se. A caridade sem verdade seria cega; a verdade sem caridade seria
como "um címbalo que retine" (1 Cor 13, 1).
Falemos agora do Evangelho, de cuja riqueza gostaria de extrair só duas pequenas observações. O Senhor
dirige-nos estas maravilhosas palavras: "Já não vos chamo servos... mas a vós chamei-vos amigos" (Jo 15,
15). Muitas vezes sentimos que somos como é verdade unicamente servos inúteis (cf. Lc 17, 10). E, não
obstante, o Senhor chama-nos amigos, torna-nos seus amigos, oferece-nos a sua amizade. O Senhor define a
amizade de uma dupla forma. Não existem segredos entre amigos: Cristo diz-nos tudo quando ouve o Pai;
oferece-nos a sua plena confiança e, com a confiança, também o conhecimento. Revela-nos o seu rosto, o seu
coração. Mostra-nos a sua ternura por nós, o seu amor apaixonado que vai até à loucura da cruz. Confia-se a
nós, dá-nos o poder de falar com o seu eu: "este é o meu corpo...", "eu te absolvo...". Confia o seu corpo, a
Igreja, a nós. Confia às nossas mentes débeis, às nossas mãos débeis a sua verdade o mistério do Deus Pai,
Filho e Espírito Santo; o mistério do Deus que "tanto amou o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito"
(Jo 3, 16). Fez de nós amigos seus e nós como respondemos?
O segundo elemento, com que Jesus define a amizade, é a comunhão das vontades. "Idem velle idem nolle",
era também para os Romanos a definição de amizade. "Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando"
(Jo 15, 14). A amizade com Cristo coincide com o que exprime a terceira pergunta do Pai Nosso: "seja feita a
tua vontade assim na terra como no céu". Na hora do Getsémani Jesus transformou a nossa vontade humana
rebelde em vontade conforme e unida à vontade divina. Sofreu todo o drama da nossa autonomia e
precisamente levando a nossa vontade às mãos de Deus, oferece-nos a liberdade verdadeira: "Não como eu
quero, mas segundo a tua vontade (Mt 21, 39). Nesta comunhão da vontade realiza-se a nossa redenção: ser
amigos de Jesus, tornar-nos amigos de Deus. Quanto mais amamos Jesus, quanto mais o conhecemos, tanto
mais cresce a nossa verdadeira liberdade, cresce a alegria de ser remidos. Obrigado Jesus, pela tua amizade!
O outro elemento do Evangelho que desejo mencionar é o sermão de Jesus sobre o dar fruto: "fui eu que vos
escolhi a vós e vos destinei a ir e a dar fruto, e fruto que permaneça" (Jo 15, 16).
Realça aqui o dinamismo da existência do cristianismo, do apóstolo: constituí-vos para irdes...
Devemos estar animados por uma santa preocupação: a preocupação de levar a todos o dom da fé, da amizade
com Cristo. Na verdade, o amor, a amizade de Deus foi dada para que chegue também aos outros. Recebemos
a fé para a levar aos outros somos sacerdotes para servir os outros. E devemos levar um fruto que permaneça.
Todos os homens querem deixar vestígios duradouros. Mas o que permanece? O dinheiro não. Também os
edifícios não permanecem; os livros também não. Depois de um certo tempo, mais ou menos longo, todas
estas coisas desaparecem. A única coisa que permanece eternamente, é a alma humana, o homem criado por
Deus para a eternidade. O fruto que permanece é portanto quanto semeámos nas almas humanas o amor, o
conhecimento; o gesto capaz de tocar o coração; a palavra que abre a alma à alegria do Senhor. Então vamos
rezar ao Senhor, para que nos ajude a dar fruto, um fruto que permaneça. Só assim a terra será mudada de
vale de lágrimas para jardim de Deus.
Por fim, voltemos mais uma vez à carta aos Efésios. A carta diz com as palavras do Salmo 68 que Cristo,
subindo ao céu, "deu dádivas aos homens" (Ef 4, 8). O vencedor distribui dons. E estes dons são apóstolos,
profetas, evangelistas, pastores e mestres. O nosso ministério é um dom de Cristo aos homens, para construir
o seu corpo o mundo novo. Vivamos o nosso ministério assim, como dom de Cristo aos homens! Mas nesta
hora, sobretudo, peçamos com insistência ao Senhor, para que depois do grande dom do Papa João Paulo II,
nos ofereça um pastor segundo o seu coração, um pastor que nos guie ao conhecimento de Cristo, ao seu
amor, à verdadeira alegria. Amém.
243

ANEXO 27 – Press release Anistia Internacional . Disponível em:


<http://www.amnestyusa.org//document.php?lang=e&id=engpol300122007>

AMNESTY INTERNATIONAL

PRESS RELEASE

AI Index: POL 30/012/2007 (Public)

News Service No: 110

14 June 2007

Amnesty International defends access to abortion for women at risk

Amnesty International today firmly stood by the rights of women and girls to be free from threat, force
or coercion as they exercise their sexual and reproductive rights.

Responding to a statement from the Vatican, Amnesty International contradicted the claim of Cardinal
Renato Martino, head of the Pontifical Council for Justice and Peace, that Vatican funding for Amnesty
International would cease. "We have not accepted funds from the Vatican and do not accept funds from
any other state in support of our work against human rights violations," said Kate Gilmore, Executive
Deputy Secretary General of Amnesty International.

"Millions of people around the world of many faiths and creeds donate to Amnesty International as
individuals. Among them are welcome donations from members of the Catholic faith. We hope that
Amnesty InternationaI's work against torture, against the death penalty and for the proper
administration of justice including for women and girls will continue to draw active support from people
of conviction the world over," said Kate Gilmore.

Defending the right of women to sexual and reproductive integrity in the face of grave human rights
violations, Amnesty International recently incorporated a focus on selected aspects of abortion into its
broader policy on sexual and reproductive rights. These additions do not promote abortion as a universal
right and Amnesty International remains silent on the rights and wrongs of abortion.

"Amnesty International's position is not for abortion as a right but for women's human rights to be free
of fear, threat and coercion as they manage all consequences of rape and other grave human rights
violations," clarified Kate Gilmore.

Yesterday Cardinal Martino, through an interview, encouraged Catholics to withdraw support for Amnesty
International, claimed that Amnesty International is "promoting abortion rights". Amnesty International's
actual policy, however, standing alongside its long-standing opposition to forced abortion, is to support
the decriminalisation of abortion, to ensure women have access to health care when complications arise
244

from abortion and to defend women's access to abortion, within reasonable gestational limits, when their
health or human rights are in danger.

"Amnesty International stands alongside the victims and survivors of human rights violations. Our policy
reflects our obligation of solidarity as a human rights movement with, for example, the rape survivor in
Darfur who, because she is left pregnant as a result of the enemy, is further ostracised by her
community," said Kate Gilmore.

"We are a movement to protect citizens including the believer but we do not impose beliefs. Ours is a
movement dedicated to upholding human rights, not specific theologies. Our purpose invokes the law
and the state, not God. It means that sometimes the secular framework of human rights that Amnesty
International upholds will converge neatly with the standpoints of certain faith based communities;
sometimes it will not."

Amnesty International encouraged the Catholic Church not to turn away from the suffering that women
face because of sexual violence and urged the Catholic leadership to advocate tolerance and respect to
freedom of expression for all human rights defenders, including Amnesty International, just as Amnesty
International will continue to defend the freedom of religion.

Public Document
****************************************
For more information please call Amnesty International's press office in London, UK,
on +44 20 7413 5566
Amnesty International, 1 Easton St., London WC1X 0DW. web: http://www.amnesty.org
245

ANEXO 28 – Relação de 240 sites de clínicas de aborto pesquisadas.


Disponível em: < http://www.gynpages.com/>.
Acesso em 01/08/2007.

Aalto Women's Center (Houston TX)


AAnchor Health Center, Ltd. (Glen Ellyn IL)
Aaron Women's Clinic & Surgical Center (Houston TX)
Aaron Women's Health Center (Dallas TX)
AASTRA Women's Center (Ft. Lauderdale FL)
Abortion Advantage (Dallas TX)
Abortion Medical Services (Denver CO)
Access Health Center, Ltd. (Downers Grove IL)
A Choice for Women (Miami FL)
A Jacksonville Women's Health (Jacksonville FL)
A to Z Women's Center (Las Vegas NV)
ACU Health Center, Ltd. (Hinsdale IL)
Adoption Affiliates (San Antonio TX)
Advantage Health Center, Ltd. (Wood Dale IL)
Affiliated Medical Services (Milwaukee WI)
Alamo Women's Clinic (Corpus Christi TX)
Alamo Women's Clinic (San Antonio TX)
All Suffolk OB/GYN (Bay Shore NY)
All Women's Care (Long Island NY)
All Women's Center (Ft. Lauderdale FL)
All Women's Health (Tacoma WA)
Allegheny Reproductive Health Center (Pittsburgh PA)
Allentown Women's Center (Allentown PA)
Alternatives (Atlantic City NJ)
American Women's Medical Center (Chicago & Des Plaines IL)
America's Women Clinic (Houston TX)
Amethyst Health Center for Women (Manassas VA)
AMS of Pensacola (Pensacola FL)
Annandale Women and Family Center (Alexandria VA)
Aradia Women's Health Center (Seattle WA)
Atlanta Surgi-Center (Atlanta GA)
Austin Women's Health Center (Austin TX)
Beacon Women's Center (Montgomery AL)
Drs. Berger and Benjamin (Philadelphia PA)
BirthControl.com
Birth Control Care Center (Las Vegas NV)
Bossier City Medical Suite (Bossier City LA)
Boulder Abortion Clinic (Boulder CO)
Curtis Boyd MD (Albuquerque NM)
Brandeis Medical Center (Beverly Hills CA)
246

BSS International (Ft. Lauderdale FL)


Buena Vista Women's Consultation Center (San Francisco CA)
Buffalo GYN Womenservices (Buffalo NY)
Camelback Family Planning (Phoenix AZ)
Carolina Center for Women (Charlotte NC)
Capital Women's Health Clinic (Richmond VA)
Causeway Medical Clinic (Metairie LA)
Center for Women's Health (Cleveland OH)
Center for Women's Health (Overland Park KS)
Central Ohio Women's Center / Planned Parenthood (Columbus OH)
Choice Medical Group (Concord CA)
Choice Medical Group (Fremont CA)
Choice Medical Group (Sacramento CA)
Choice Medical Group (Salinas CA)
Choice Medical Group (San Francisco CA)
Choice Medical Group (San Jose CA)
Choices Women's Medical Center (Long Island City NY)
Cincinnati Women's Services (Cincinnati OH)
Columbus Women's Health Organization (Columbus GA)
Comprehensive Women's Health Center (Denver CO)
Concord Feminist Health Center (Concord NH)
Crescent City Women's Center (Houston TX)
Crist Clinic for Women (Jacksonville NC)
Dekalb Gynecology Associates (Decatur GA)
Delaware Women's Health Organization (Wilmington DE)
Dimensions Medical Center, Ltd. (Des Plaines IL)
Downtown Women's Center (Portland OR)
Dunwoody OB-GYN (Atlanta GA)
Early Options (Brooklyn NY)
Eastside Gynecology (New York NY)
EMW Women's Surgical Center (Lexington KY)
Englewood Women's Center (Tenafly/Englewood NJ)
EPOC Clinic (Orlando FL)
Eve Clinic (Miami FL & Kendall FL)
Fairmount Center (Dallas TX)
Falls Church Healthcare Center (Falls Church VA)
Family Planning Associates Medical Group (20 clinics in Southern CA & 2 clinics in Chicago IL)
Family Planning Associates Medical Group (Phoenix AZ)
Family Planning Associates Medical Group (Tempe AZ)
Family Planning Centre (Melbourne, Australia)
Family Planning Specialists Medical Group (Oakland CA)
Family Reproductive Health (Charlotte NC)
Fayetteville Women's Clinic (Fayetteville AR)
Femcare (Asheville NC)
247

Feminist Women's Health Center (Atlanta GA)


Bruce Ferguson MD (Albuquerque NM)
Florida Women's Center (Jacksonville FL)
Forest View Medical Center, Ltd. (Des Plaines IL)
Ft. Lauderdale Women's Center (Ft. Lauderdale FL)
Ft. Wayne Women's Health Organization (Ft. Wayne IN)
Germantown Reproductive Health Services (Germantown MD)
Ginetec (Alicante Spain)
E.M.E.C.E. (Barcelona Spain)
Ginemedex (Barcelona Spain)
Ginetec (Barcelona Spain)
E.M.E.C.E. (Palma Mallorca Spain)
Greenville Women's Clinic (Greenville SC)
Gynecare Center (Severna Park MD)
Gynecologia Almeria (Almeria Spain)
Gynecological Surgical Services (New York NY)
Gynemed SurgiCenter (Baltimore MD)
Hanson, Mildred MD (Minneapolis MN)
Healthy Futures for Women (Denver CO)
Hillcrest Clinic (Baltimore MD)
Hillcrest Clinic (Norfolk VA)
Hope Clinic for Women (Granite City IL)
Hope Medical Group (Shreveport LA)
Houston Women's Clinic (Houston TX)
Illinois Abortion Clinics (7 clinics in Chicago area)
Imagine Pro-Choice Abortion Resolution Counseling
Jackson Women's Health Organization (Jackson MS)
Kanawha Surgicenter (Charleston WV)
Knoxville Center for Reproductive Health (Knoxville TN)
Liberty Women's Healthcare of Queens (Flushing NY)
Little Rock Family Planning Service (Little Rock AK)
Long Island Gynecological (Long Island NY)
Lovejoy SurgiCenter (Portland OR)
Meadowbrook Women's Clinic (Minneapolis MN)
MedGyn (Chicago IL)
Medical Options (Danbury CT)
Memphis Center for Reproductive Health (Memphis TN)
Metropolitan Medical Associates (Englewood NJ)
Michigan Avenue Center for Health, Ltd. (Chicago, IL)
Midwest Health Center for Women (Minneapolis MN)
Mile High OB-GYN (Denver CO)
NARAL - Wisconsin (Milwaukee WI)
National Health Care (Peoria IL)
National Women's Health Foundation
248

National Women's Health Organization (DE GA IN MS NC)


New Jersey Abortion (Englewood & Hackensack NJ)
New Woman All Women (Birmingham AL)
New York OB-GYN (Rego Park NY)
North County Women's Medical Clinic (San Diego CA)
North Florida Women's Health (Tallahassee FL)
Northern Illinois Women's Center (Rockford IL)
Northland Family Planning (Clinton Township MI)
Northland Family Planning (Detroit MI)
Northland Family Planning (Westland MI)
Northside Women's Clinic (Atlanta GA)
NOVA Healthcare (Fairfax VA)
NOVA / Reproductive Services (OK TX)
Ocala Women's Center (Ocala FL)
Old National OB-GYN (College Park GA)
Old Pueblo Family Planning (Tucson AZ)
Options (Howell & Woodbridge NJ)
Orlando Women's Center (Orlando FL)
Physician Reproductive Services (Knoxville TN)
Physicians for Reproductive Choice and Health (New York NY)
Pilgrim Medical Center (Montclair NJ)
Planned Parenthood Association of Utah (Salt Lake City UT)
Planned Parenthood of Austin Surgical & Sexual Health Services (Austin TX)
Planned Parenthood of Australia (4 clinics)
Planned Parenthood of the Blue Ridge (Roanoke & Charlottesville VA)
Planned Parenthood Bryan College Station (Houston TX)
Planned Parenthood of Bucks County (Bristol PA)
Planned Parenthood of Central North Carolina (Chapel Hill NC)
Planned Parenthood of Central and Northern Arizona (Phoenix AZ)
Planned Parenthood of Central Washington (Kennewick WA)
Planned Parenthood of Chester County (West Chester PA)
Planned Parenthood Chicago Area (Chicago IL)
Planned Parenthood of the Columbia/Willamette (Bend OR)
Planned Parenthood of the Columbia/Willamette (Portland OR)
Planned Parenthood of the Columbia/Willamette (Salem OR)
Planned Parenthood of the Columbia/Willamette (Vancouver WA)
Planned Parenthood of East Central Illinois (Champaign IL)
Planned Parenthood Fannin Surgical Services (Houston TX)
Planned Parenthood Houston & SE Texas (Houston TX)
Planned Parenthood of Middle and East Tennessee (Nashville TN)
Planned Parenthood of Minnesota/SouthDakota (Sioux Falls SD)
Planned Parenthood New York City (Bronx, Brooklyn, and Manhattan NY)
Planned Parenthood of North Texas (Dallas TX)
Planned Parenthood of Northeast Pennsylvania (Reading PA)
249

Planned Parenthood of the Rocky Mountains (Denver CO - 4 clinics)


Planned Parenthood of San Diego & Riverside (San Diego, Riverside, Rancho Mirage CA)
Planned Parenthood of South Central Michigan (Kalamazoo MI)
Planned Parenthood of Southwest and Central Florida (St. Pete & Sarasota FL)
Planned Parenthood of Waco Family Planning & Surgical Services (Waco TX)
Planned Parenthood of Western Washington (Seattle WA)
Planned Parenthood Reproductive Health Services (Augusta GA)
Planned Parenthood Women's Health Services (Pittsburgh PA)
Potomac Family Planning (Rockville MD)
Pregnancy Consultation Center (Sacramento CA)
Presidential Women's Center (W. Palm Beach FL)
Preterm (Cleveland OH)
Prince George's Reproductive Health Services (Adelphi MD)
Princeton Women's Center (Princeton NJ)
Pro-Choice Medical Center (Los Angeles CA)
Raleigh Women's Health Organization (Raleigh NC)
Reproductive Health Services (Montgomery AL)
Reproductive Health Services of Planned Parenthood (St. Louis MO)
Reproductive Services (Austin TX)
Reproductive Services (ElPaso TX)
Reproductive Services (Harlingen TX)
Reproductive Services (San Antonio TX)
Reproductive Services (Tulsa OK)
Robbinsdale Clinic (Minneapolis MN)
Bernard Rosenfeld MD (Houston TX)
Routh Street Women's Clinic (Dallas TX)
Milroy J. Samuel MD & Mervyn J. Samuel MD (Columbus OH)
San Diego Women's Medical Clinic (San Diego CA)
Scotsdale Women's Center (Detroit MI)
Seattle Medical and Wellness Clinic (Seattle WA)
South Jersey Women's Center (Cherry Hill NJ)
Southern Tier Women's Services (Vestal NY)
Stockton Pregnancy Control Medical Clinic (Stockton CA)
Summit Medical Centers (AL CT GA MI NV)
Summit Women's Center (Atlanta GA)
Summit Women's Center (Birmingham AL)
Summit Women's Center (Bridgeport CT)
Summit Women's Center (Detroit MI)
Summit Women's Center (Hartford CT)
Summit Women's Center (Las Vegas NV)
Summit Women's Health Organization (Milwaukee WI)
The Women's Choice (Brooklyn NY)
Trinity Valley Women's Center (Ft. Worth TX)
UCLA Center for Reproductive Services (Los Angeles CA)
250

Van Nuys Women's Care Clinic (Van Nuys CA)


Virginia League for Planned Parenthood (Richmond VA)
Volunteer Medical Clinic (Knoxville TN)
West Alabama Women's Center (Tuscaloosa AL)
West Side Clinic (Ft. Worth TX)
Whole Woman's Health (Austin, Beaumont, McAllen & San Marcos TX)
Whole Woman's Health (Baltimore MD)
Wilmington Women's Center (Wilmington NC)
Women's Aid Clinic (Lincolnwood IL)
Women's Center of Hyde Park (Tampa FL)
Women's Choice (Hackensack NJ)
Womens Clinic (Waterford MI)
Women's Community Medical Clinic (San Jose CA)
Women's Health Care Services (Wichita KS)
Women's Health Center of West Virginia (Charleston WV)
Women's Health Practice (Champaign IL)
Women's Health Services (Boston MA)
Women's Health Specialists (Chico, Redding, Sacramento & Santa Rosa CA)
Women's Med Center (Akron OH)
Women's Med Center (Cincinnati OH)
Women's Med Center (Dayton OH)
Women's Med Center (Indianapolis IN)
Women's Medical Center of NW Houston (Houston TX)
Yoffa, Jack MD (East Syracuse NY)
251

ANEXO 29 – Artigo “Mulheres Pelo Direito de Decidir”.


Produzido pelo site do grupo pro-choice “Articulação de Mulheres Brasileiras”
Disponível em: < http://www.articulacaodemulheres.org.br/amb/index.php?cod_pagina=121>
Acesso em 06/09/2007.

Mulheres Pelo Direito de Decidir

No período de implantação do aborto legal no país, na década de 90, parlamentares e


setores conservadores alegavam que esta legalidade traria um 'risco': o risco de as
mulheres usarem o mecanismo legal para se livrarem de uma gravidez indesejada, não
por estupro, como prevê a lei, mas por conta de uma relação extra-conjugal.
Além da profunda indignação que este argumento provocou entre as feministas, na
época e também hoje, o episódio ainda evidenciou que, para esses setores, nós mulheres
estamos sempre sob suspeição, só restando aos homens controlar a nossa sexualidade.
Lutamos por igualdade e por autonomia das mulheres. Neste sentido, o
reconhecimento do direito das mulheres a interromper uma gravidez é uma das formas
mais contundentes de alterar as relações entre mulheres e homens, com conseqüências
para a organização da vida social e forte repercussão no cotidiano das mulheres. Por
isso, a partir de 2004, a Campanha 28 de Setembro - pela legalização do aborto na
América Latina e Caribe, passou a lutar pelo direito das mulheres a interromperem uma
gravidez indesejada com o seguinte lema: 'Aborto - as mulheres decidem, a sociedade
respeita, o Estado garante'.
No início da história do Brasil, com boa parte da população tendo se constituído a partir
de vários atos de violência sexual (estupros) de homens brancos sobre mulheres negras
e indígenas, a luta pela autonomia e pelos direitos sexuais das mulheres também assume
um caráter de luta pela reparação das desigualdades de gênero e raça.
Sendo o movimento que politizou e desfez a relação obrigatória entre
sexualidade e reprodução, o feminismo considera a legalização do aborto um marco
fundamental na luta por direitos reprodutivos, direitos sexuais e por uma democracia que
seja vivenciada no cotidiano de mulheres e homens. Por isso, a Campanha 28 de
Setembro diz: as mulheres decidem, a sociedade respeita.
A Conferência Nacional de Políticas para Mulheres (Brasília, julho de 2004)
aprovou, entre suas diretrizes, a de que o Brasil deve rever a legislação punitiva sobre
mulheres e profissionais que realizam abortos, considerando compromissos
internacionais firmados pelo Brasil na Conferência sobre a Mulher (Beijing, 1995).
Ao criminalizar o aborto, o Estado brasileiro nega a autonomia e o direito das mulheres
de serem reconhecidas em sua liberdade individual e revela ainda o quanto está
comprometida a democracia brasileira, em função da contaminação do Estado (que é
constitucionalmente laico), por valores religiosos. Valores que oprimem todas as pessoas
que não compartilham desses valores.
Por isso, conclamamos nós, do movimento feminista: Aborto - as mulheres decidem, a
sociedade respeita, o Estado garante.
252

ANEXO 30 – Artigo “The Grassroots Abortion War”.


TIME magazine.
Disponível em: < http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,1590444,00.html>.
Acesso em 06/09/2007.

Thursday, Feb. 15, 2007

The Grassroots Abortion War


By NANCY GIBBS

The pregnancy-center clinic, with its new ultrasound machine, has been open only since December, but
already the staff can count the women who came in considering an abortion and changed their minds: five
women converted, six lives saved, they declare, since one was carrying twins. "They connected," nurse Joyce
Wilson says, recalling the reaction of the women who saw the filmy image of their fetus onscreen. "They
bonded. You could just see it. One girl got off the table and said, 'That's my baby.'"

"Another got up," Deborah Wood says, "and said, 'This changes everything.'"

Wood is the CEO of Asheville Pregnancy Support Services in Asheville, North Carolina, one of the thousands
of crisis pregnancy centers in the U.S. that are working to end abortion. Hers is the new face of an old
movement: kind, calm, nonjudgmental, a special-forces soldier in the abortion wars who is fighting her
battles one conscience at a time. Her center helps women navigate the social-service bureaucracy, sign up
for Medicaid and begin prenatal care. She helps pregnant girls find emergency housing if their parents
threaten to throw them out. Free pregnancy tests and ultrasounds are just the latest service.

"They've been fed these lies, that it's just a bunch of cells that's not worth anything," Wilson says. "But those
limbs are moving. That heart is beating. You don't have to say anything ..." She brings out a black velvet box
that looks as if it holds a strand of pearls. Inside are four tiny rubber fetuses, the smallest like a kidney bean
with limbs, the biggest about the size of a thumb. This is what your baby looks like, she tells clients; this is
about how much it weighs right now. "When we do the ultrasound, we ask the girl how she's feeling," Wilson
explains. "I ask what she would like to put on the picture for her baby book. One girl put ANGEL. Some put
the name they've picked out for the baby." She points to the translucent image on the screen. "One put
LITTLE MIRACLE!!!!"
253

This bright new examining room is as good a place as any to study the anatomy and evolution of attitudes
about abortion. About half of American women will face an unplanned pregnancy, according to the
nonprofit Guttmacher Institute, and at current rates more than one-third will have an abortion by the time
they are 45. Since Roe v. Wade legalized the procedure in 1973, no other issue has so contorted U.S. politics
or confounded values. When does life begin? Who should decide? And is there anything that can be agreed
on to make the hard choices less painful? Much of the antiabortion movement remains focused on changing
laws, tightening restrictions one by one, state by state. But Wood and her team talk of changing hearts. They
are part of a whole other strategy that is more personal and more pastoral, although to some people it's
every bit as controversial.

It's easy to support the goal: helping women facing an unplanned pregnancy. What critics challenge are the
means, the information these centers give, the methods they use and the costs they ignore. Even among pro-
life activists, there's an argument about emphasis: Do you focus on fear and guilt, to make choosing an
abortion harder, or on hope and support, to make "choosing life" easier? Either way, the pregnancy-center
movement takes the fight over abortion deep inside some of the most intimate conversations a woman ever
has.

Crisis pregnancy centers (CPCS, now often called pregnancy resource centers) have been around for a few
decades, but the Bush Administration has made them a centerpiece of compassionate conservatism, a signal
to members of the President's evangelical base that he shares their values. But as a new presidential race
looms, the signals may be shifting, the rancor of the public fight fading. Hillary Clinton has called abortion
"a sad, even tragic choice to many, many women" and talks about improving education and access to birth
control so that abortion becomes a right most women never have to exercise. On the Republican side, Rudy
Giuliani is pro-choice, Mitt Romney used to be, and John McCain's pro-life record doesn't keep social
conservatives from viewing him with some suspicion. Other issues, whether war and peace or gay marriage
and stem cells, may be the prime motivators in this election; and in the meantime, pro-choice Democrats
are back in control of Congress. "The power change in Washington highlights the increasingly strategic role
pregnancy centers play in the pro-life movement," says Kurt Entsminger, president of Care Net, the largest
pregnancy-center network. With abortion-rights advocates now in leadership positions, "pro-life legislative
advances will inevitably be shut down."

The centers are typically Christian charities, often under the umbrella of one of three national groups: Care
Net, Heartbeat International and the U.S. National Institute of Family and Life Advocates. No one can say
precisely how many pregnancy centers there are, since some aren't affiliated with any national group. Care
Net puts the figure at around 2,300, though that does not include traditional maternity homes, adoption
agencies or Catholic Charities. Care Net and Heartbeat International also operate Option Line, a 24/7 call
center based in Columbus, Ohio, that women can contact for information and referral to a CPC near them.
Last year Care Net spent $4 million on marketing, including more than $2 million on billboards alone
(PREGNANT AND SCARED? 1-800-395-HELP. WE'RE HERE 24/7). The Internet has become a tool for
outreach as well. Care Net has got into bidding wars with abortion providers over who would receive top
placement in the sponsored-links sections on Yahoo! and Google when someone searches for abortion.

In the past 10 years, as public funding for family planning has stalled, unplanned pregnancy rates have
jumped 29% among poor women; they are now more than four times as likely to have abortions as richer
ones. Pregnancy centers offer everything from emergency food and formula to strollers and baby clothes to
help with the month's rent. "We're willing to offer $200, $300, $400 on the spot, no strings attached," says
Pat Foley, who runs the Wakota Life Care Center in St. Paul, Minnesota. "No life should end because of
254

money." While no one disagrees with that, some do wonder how much help will be available for these
families in the years to come, with school, housing and health care, since according to the Guttmacher
Institute, 3 out of 4 women contemplating abortion cite economic pressure as a reason.

The latest trend is to convert pregnancy centers into health clinics that offer free pregnancy tests,
ultrasounds and testing for sexually transmitted diseases. What they will not offer is referral for birth
control. Married clients wanting information on contraception are referred to their own doctor or pastor.
But, as Wood explains, most clients are unmarried, and "the Bible clearly states that sex outside of marriage
is against God's will for our lives."

That alone is enough to discredit the centers in the eyes of many pro-choice groups, which have always
argued that the best way to prevent abortions is to prevent unwanted pregnancies in the first place. They are
hoping that with the Democrats in control of Congress, legislation like the Prevention First Act will reduce
the need for abortions by promoting comprehensive sex education and expanding access to contraception.
At Planned Parenthood clinics, fewer than 1 in 10 clients is there for an abortion; the vast majority are there
for birth control and reproductive health care (98% of American women have used contraception at some
point in their lives). But because promoting abstinence before marriage is a part of the CPC mission, centers
are eligible for federal abstinence-education grants, which in some cases have instantly doubled or tripled
their budgets. In 2005, roughly 13% of Care Net affiliates got state or federal money; their average budget
was $155,000.

The growth in the movement has raised other alarms with pro-choice groups. They point out that while
counselors at crisis pregnancy centers lay out the physical and psychological risks associated with abortion,
they don't mention that the risk of death in childbirth is 12 times as high and that many women who get
abortions experience only relief. Both sides talk about the importance of complete information and
informed consent, then argue over what that means. Each side challenges the other's motives: pro-life
activists say abortionists are in business for the money and don't care about women; pro-choice advocates
counter that crisis pregnancy centers are in the business for the ideology and don't care about women either.

The movement toward "medicalizing" the centers particularly concerns groups like Planned Parenthood that
define their mission as offering the most accurate information about the most complete range of
reproductive options. The motive behind offering free ultrasounds, which would typically cost at least $100,
is more emotional than medical, critics argue, and having them performed by people with limited training
and moral agendas poses all kinds of hazards. "What is really tragic to me is that a woman goes into a center
looking for information, looking to be able to make a better, healthy choice, and she doesn't get all the facts,"
argues Christopher Hollis, Planned Parenthood's vice president for governmental and political affairs in
North Carolina. "That's taking someone's life and playing a really dangerous game with it."

There's such momentum behind the CPC movement that abortion-rights groups have begun to fight back.
Last summer the U.S. National Abortion Federation published a study on the centers subtitled An Affront to
Choice, which charged them with marketing themselves so that women looking for a full-service health
clinic might mistakenly go to a CPC instead and be "harassed, bullied and given blatantly false information."
It accused centers of focusing on women's needs through the first two trimesters but then abandoning them
once obtaining an abortion becomes much more difficult. Los Angeles Democrat Henry Waxman, now
chairman of the House Committee on Oversight and Government Reform, investigated federally funded
CPCs, using callers posing as pregnant 17-year-olds. The investigators reported that 20 of 23 centers they
reached provided "false or misleading information about the health effects of abortion," inflating the risk of
breast cancer, infertility, depression and suicide.
255

The heat of the national battle, however, doesn't capture what is happening on the front lines. In North
Carolina, Abortion Clinics OnLine lists eight abortion providers, but the state has more than 70 pregnancy
centers. NARAL Pro-Choice North Carolina was so concerned about their practices that it recruited
volunteers to call centers and record the information they were given. NARAL reported that in the course of
promoting abstinence, a counselor told an investigator that "all condoms are defective and have slots and
holes in them." Another warned that "9 out of 10 couples that go through an abortion split up."

Wood hears these stories of undercover reconnaissance missions and just shakes her head. "It's about
discrediting our centers," she says flatly, but she welcomes anyone who wants to call hers. Everyone gets the
same information, and she's confident that it's accurate: "They can come after us all they want--it won't
change what we're trying to do." What they're trying to do, she says, is prevent a frightened pregnant woman
from making a rash decision that she may come to regret. You can talk about choice all you like, she argues,
but if a woman feels overwhelmed and all alone and thinks she can somehow "turn back the clock like the
pregnancy never happened," then she doesn't understand what abortion really entails. "We need to counter
the message that abortion won't have any consequences," she says. "That's unrealistic. All decisions have
consequences."

She tells her counselors to tread gently. You don't need to lie or bully, she says--just listen and love: "We
understand completely that this is her decision." The waiting room is not full of baby pictures, she notes,
and the counseling room is no place for political debates. "We don't want a zealot in there," she says. "We
want someone who's going in there with a heart and compassion who'll talk reasonably and present the
options." And, she adds, she would never, ever show graphic pictures or movies like The Silent Scream, the
landmark 1984 video that presents an abortion being performed in which the fetus is portrayed as crying in
pain. The women who come through her door, Wood says, "are traumatized enough already. Why would we
do that? We're trying to be caretakers. I know how I'd respond if somebody did this in-your-face thing to
me. I'd pull back. It's ineffective ... so why do it?"

But pressure can take many forms, and the experience of a NARAL investigator suggests that manipulation
may be in the eye of the beholder. Courtney Barbour, an administrative assistant at the University of North
Carolina at Chapel Hill, arranged to pick up the urine of a pregnant woman on her way to Birthchoice, a CPC
in nearby Raleigh, so she would test positive and see the reaction. Having heard horror stories from friends
in college, she was braced for the worst. "But it really wasn't what I expected," Barbour says. "They acted like
they really did want to help me." While one woman handled the pregnancy test, Barbour spoke to a
counselor who was very sympathetic. "She didn't show me any disgusting movies--though she did show me
these plastic models of the fetus at each stage of development--and told me that it has a heartbeat
immediately, which I knew medically was not true." The counselor asked about her resources, her family
and her intentions. "She didn't actually prod me in any particular direction," Barbour says. "She was just
listening to me, nodding her head. She wanted to know if my family was religious, and I told her, well, I
don't go to church, but my grandfather was a Methodist minister. She didn't act really judgmental or
anything. She did say, 'Well, I bet that your grandfather really would like you to have this baby.'"

Eventually the woman who had done the test reappeared, holding a pair of soft blue, hand-knit baby
booties. "Congratulations!" she said. "You're a mother."

How you classify that encounter says a lot about your politics: one person's loving support is another's
emotional pressure. "They talk about the joys of childbirth, which can certainly be a joy," says Melissa Reed,
executive director of NARAL's North Carolina chapter, "but they can make a woman feel very intimidated
about making any other choice in her life." Wood insists that at her center counselors are trained not to
256

push. "We don't hand out baby booties to everyone with a positive pregnancy test," she says. "We don't do
emotional blackmail." And her center at least continues to provide support through the first year of a baby's
life. But Wood's priority has been to move away from general maternal help and focus on "abortion
vulnerable" women, which is to say, any woman facing an unplanned pregnancy who might entertain
abortion as an option.

The ultrasound machine arrived at the Asheville center last summer, thanks to funding from Focus on the
Family's Option Ultrasound initiative ("Revealing Life, to Save Life"). Nurse Wilson and her colleague
Denise Bagby had two weeks of intensive training in "limited obstetrical ultrasound," practicing on pregnant
women recruited from local doctors' offices and churches and by word of mouth. They learned how to
confirm and date a pregnancy and measure a fetus--but not how to diagnose fetal abnormality. Two medical
directors sign off on every report. "We're not giving medical care," Wood insists, although she stresses the
value of early ultrasound in helping persuade women to quit smoking, eat better, get prenatal care and come
to grips with what is happening inside their bodies. "I can't tell you how many women we see who have had
an abortion in the past who all say the same thing," Wood says. "'If only someone had told me. If only I had
someone to talk to.'"

And now the conversation gets more complicated, as information and ideology conjoin. If a woman is
"abortion minded," Wilson says, "then we go over the medical risks--and there's research for this, even
though the other side says there's not." She ticks off grim possibilities with fervor: "The research is that
breast cancer is more prevalent. You have the rupture of the uterus. Infection is major. The risk of ectopic
pregnancy is greater later on." It is this discussion of risk that most enrages defenders of abortion rights,
especially doctors who routinely see terrified women who come in for an abortion after hearing such
warnings and ask over and over, "Am I going to die?"

Despite restricted access, abortion remains one of the most common surgical procedures in the U.S. for
women and, according to the Guttmacher Institute, fewer than 0.3% of patients experience a complication
serious enough to require hospitalization. First-trimester abortions in particular are considered extremely
safe. After years of debate about breast cancer and abortion, the U.S. National Cancer Institute in February
2003 gathered the world's leading experts to review the data and assess the risk. They stated that their
conclusion that "induced abortion is not associated with an increase in breast cancer risk"was "well
established," the institute's highest rating for research findings.

But none of that convinces Wilson. "It's a money issue," she says of the studies rejecting a breast-cancer risk.
"The abortion people have a lot of money. If there's a study, I want to know who's sponsoring it because nine
times out of 10, it's skewed to the money." It's hard to imagine what it would take--certainly not a ruling
from the U.S. National Cancer Institute--to change her mind.

Locals describe Asheville as "half Christian, half New Age," a town where Baptists preach about Jesus'
saving grace while mystics talk about the vortex entrance panels tucked in the mountains. There are a great
many churches and Presbyterian summer camps here in Billy Graham's backyard, but there is also a lively
population of retirees and artists and entrepreneurs opening craft shops and microbreweries. It thinks of
itself as a tolerant town--to the point that the only facility in all of western North Carolina that publicly
offers abortions is the city's Femcare clinic. It has a fence around it, cameras, alarms and a security guard
because it was bombed in 1999 and had its windows shot out in 2003. "It really tested me," says Lorrie, the
clinic's sole abortion provider, who, given past threats, prefers that her full name not be used. "If I didn't
continue, the place would close. No one wants to go into abortion providing. But it's so important. I know
that I'm providing a service to women that no one else will."
257

Certainly not a crisis pregnancy center, she adds, and her voice takes on a tighter edge. Two days ago, she
had a woman come into the clinic who was a wreck. She had seen an ad for a women's health center in
Charlotte, which is two hours away, and called saying she wanted an abortion. "They said sure, we can help
you," Lorrie says. "They told her she could even come in after hours so she wouldn't miss a day at work. She
drove all the way to Charlotte." But when she got there, she realized her mistake. "They showed her pictures
of aborted fetuses," Lorrie goes on. "She was a basket case when she got here. They had told her that if she
had an abortion, she'd probably never be able to have a child." Now Lorrie is plainly furious. "These
[pregnant] women are scared out of their minds," she says. "It doesn't change their minds--it just scares
them. It's cruel and un-Christian to lie to patients."

Abortion providers, of course, have been accused of coercion as well, but Lorrie says the last thing she wants
to do is perform an abortion on a woman who is confused or ambivalent or being pressured by her parents
or boyfriend. If Lorrie senses second thoughts, even at the last minute, she says she refuses to proceed. "This
happens at least once a month," Lorrie says. "I don't care if her parents are in the waiting room. It's her
decision." In those cases, she points patients to public and private groups that can help with financial, social
or emotional support in carrying the pregnancy to term. And she's constantly working to put herself out of
business, counseling women about birth control and directing them to a new state program to help pay for
it.

Yet Lorrie's primary job makes her a target. The pregnancy-center movement may promote "loving
support," but there are still other activists fighting a holy war. She had to call in a fire-department haz-mat
team after an envelope arrived claiming to contain anthrax. Her neighbors were sent a newsletter with her
picture: "It said, 'This woman is a killer and she lives in your neighborhood,'" Lorrie recalls. Her nurse-
midwife Bonnie Frontino discovered her picture on what looked like WANTED posters all around her
neighborhood; sheriffs began patrolling the area of her house. "I was really angry, but I was scared also,"
Frontino says. "You never know who's going to see this and think it's their moral duty to kill us."

That was in the fall of 2002, and given the climate, it's hard to imagine the two sides of the abortion war
having anything to say to each other. But Lorrie needed to do something and ended up calling Jeff
Hutchinson, senior pastor of Trinity Presbyterian, a theologically conservative church that she knew the
lead protester attended. "I said, 'I don't think you know what this member of your congregation is doing, but
it's not Christian.'" Hutchinson and some church members agreed to meet Lorrie and her clinic colleagues at
the Blue Moon café to have a conversation they thought might happen "only once in a blue moon."

"I thought they might be really defensive or judgmental," Frontino recalls. "The first word out of their
mouths was to ask our forgiveness that they hadn't dealt with this sooner. I think we were all surprised."
Five years have passed since that initial summit meeting, and against all odds, they are now good friends.
The protester has left Hutchinson's church, but no one wanted to stop meeting, because they had found a
larger mission. Now they are out to show how people who disagree violently can debate civilly, even
lovingly, and find some common ground. They know they won't change one another's core beliefs, but that
doesn't mean they haven't changed.

Friends or not, it took a year to come up with a common-ground statement of goals: to decrease abortions,
relieve the social and economic conditions that lead women to consider abortion, make adoption easier,
condemn violence and keep talking. "One of the principles is the importance of factual information," says
Lynn von Unwerth, a nurse at Asheville Planned Parenthood who has been attending the meetings from the
start. And then she pauses: "That's something we're still wrestling with."
258

Hutchinson has wrestled with it himself, as a spiritual matter. "I never would have said that the ends justify
the means," he says. "But I know that was in my heart--if lying helps save a baby's life, that glorifies God."
He has read some pregnancy-center brochures that he suspects are maybe shading the truth in the name of
a larger good. "This whole process has reminded me that Jesus is not a Machiavellian," he says. "It really
helps me trust the sovereignty of God. He's in control of who lives and dies. My effort is to serve folks, and
the means I use matter. I have to glorify Jesus. The results are in God's hands."

Since Hutchinson's church sponsors the Asheville pregnancy center and the former director goes to Blue
Moon meetings, Planned Parenthood's Von Unwerth brought in examples of its literature and argued that
some of it was misleading and out of date. She points to one brochure that is still in use called "You're
Considering an Abortion: What Can Happen to You?" It warns, "Your next baby will be twice as likely to die
in the first few months of life" and "After an abortion you may become sterile." The citations throughout are
to journal articles dating back to 1967, with none from the past 20 years. Since that discussion, Wood took
over the Asheville center and Hutchinson hopes the topic will be revisited. Wood says she would be glad to
meet with the group; she has created a new brochure, but would be prepared to discuss the ones she
inherited and still uses. "It's been a real education about the scientific facts and data and who are reliable
sources," Hutchinson says. "That gets to the heart of the divide. If we as a society can't agree on who is the
gold-standard source of medical information, that just reveals we've really got problems."

But he thinks Asheville's experiment in détente could be a model for any community to follow. He knows
there will always be people who think it is wrong even to talk with people they disagree with. The hard-core
"Culture-War Christians," he says, "have no interest in finding common ground. Their constituencies don't
like it; they won't send in any more money." But that doesn't mean the conversation about all these issues of
mind and heart and body are fated to be reduced to a fund-raising tool or political weapon. "The good news
is that the Culture-War Christian can actually change because God is alive and can change the heart,"
Hutchinson says. "I know it. Because I was a Culture-War Christian once myself."

Once you've come to know your adversaries personally, once the cartoon villains are brushed away, the
conversation becomes more complicated--and more useful. "When we talk, we really have to examine our
own beliefs and why we do what we do," Lorrie says. "Abortion is a reality. For me, I feel it can be a
lifesaving choice for a woman. But decreasing abortion is a goal we all strive for." As for Hutchinson, "I still
keep the 'choice' of abortion off the menu. But I hadn't thought through how difficult a choice it is. I'd been
pretty simplistic. I just think a lot more about the pregnant woman herself now than I had before." On issues
of such weight, making the questions harder for people is the first step toward finding some answers.
259

ANEXO 31 – Sobre as cartas enviadas à redação de Veja

Disponível em <http://www.providafamilia.org.br/doc.php?doc=doc27958>. Acesso em 15 de


out. 2007.

PROVIDAFAMÍLIA
[Arquivos] - [Aborto] - [Campanha contra a vida e a família]

providafamilia.org

Campanha contra a vida e a família

A revista VEJA em suas últimas edições vem sistematicamente publicando matéria favorável
ao aborto, à esterilização e ao controle de população.
Numa das últimas reportagens traz a declaração pública de mulheres que confessaram ter
praticado o crime do aborto, assassinando seus próprios filhos. Em um debate na Câmara o
advogado Dr. José Carlos Graça Wagner, informou aos presentes que iniciou um processo
criminal contra as que confessaram o crime e um outro processo contra a VEJA pela incitação
ao crime. Cartas enviadas para a seção dos leitores da revista protestando contra essa
campanha não são publicadas.
Tendo em vista esses fatos, vários líderes pró-vida têm cancelado a assinatura de VEJA. Essa
é, sem dúvida, uma maneira dos leitores protestarem contra a orientação da revista. Se você é
defensor da vida e dos valores cristãos da família e é assinante de VEJA faça o mesmo. Não
podemos continuar a prestigiar uma revista que defende o aborto.

Atue em favor da vida — divulgue estas informações! provida@providafamilia.org


260

ANEXO 32. Veja 08-10-2003 Diogo Mainardi

O exemplo da Califórnia
"Não vejo nada de escandaloso em chutar um político antes que ele possa
começar a governar. O resto do mundo deveria imitar os californianos. Se o
mandato dos governantes durasse apenas um ano, todos sairíamos ganhando"

Schwarzenegger? Todo mundo debocha dele. Todo mundo debocha da Califórnia. Eu


seria um pouco mais cauteloso. Schwarzenegger pode ser um tipo pitoresco e impróprio
para governar, mas o que dizer de gente como Rosinha Garotinho, Wellington Dias,
Alvaro Dias, Geraldo Alckmin e todos os outros governadores brasileiros? Algum deles lhe
parece menos pitoresco e impróprio para governar do que Schwarzenegger? E Marta
Suplicy? E Lula? Schwarzenegger é a favor do aborto e pretende cortar os gastos
públicos. Como plataforma política, é mais que suficiente. Antes de debochar de
Schwarzenegger, lembre em quem você votou nas últimas eleições.

Os californianos conquistaram o direito de substituir o atual governador depois de


somente um ano de mandato. Foram muito criticados por causa disso. Não vejo nada de
escandaloso em chutar um político antes que ele possa começar a governar. O resto do
mundo deveria imitá-los. Se o mandato de todos os governantes durasse apenas um
ano, sem a possibilidade de reeleição, todos sairíamos ganhando. A classe política seria
formada por burocratas sem brilho e sem ambição. O governo tenderia a ficar cada dia
menos importante. Desapareceriam os líderes carismáticos e populistas. Um ano de
mandato é pouco. Pouco o bastante para evitar que se façam grandes asneiras. O que
mais desejar de um político?

Além das eleições californianas, os Estados Unidos também assistem às prévias do


Partido Democrata para presidente. Howard Dean é o candidato que arrecadou mais
dinheiro até agora. É assim que os americanos avaliam seus políticos: contando quanto
dinheiro eles conseguem arrecadar. Achamos muita graça desse materialismo simplório
dos americanos, mas foi por isso que eles dominaram o mundo. Estou em Boston. O
supermercado perto de casa oferece mais de setenta molhos prontos para temperar
salada. Pouco importa que sejam todos ruins. O que importa é a quantidade. É natural
que uma sociedade com setenta molhos prontos para salada acabe prevalecendo sobre
as outras.

O principal adversário de Howard Dean no Partido Democrático é Wesley Clark. Como


Schwarzenegger, ele é a favor do aborto e pretende cortar os gastos públicos, mas eu
torço contra ele. Wesley Clark é um general. O pior dos políticos é melhor do que o
melhor dos generais. Os generais brasileiros se meteram em política e sabemos
perfeitamente o que aconteceu. Bush pediu a Lula que mandasse nossos militares ao
Iraque. Lula se recusou. Eu, no lugar dele, mandaria. Quanto mais longe estiverem os
militares, melhor.

Como eu já disse, estou em Boston. Boston é igual à Barra da Tijuca. Assim como a
Barra da Tijuca tem uma réplica da Estátua da Liberdade, Boston tem réplicas de
catedrais góticas, castelos escoceses, fortalezas normandas e mansões vitorianas. Boston
tem até uma réplica de um palácio veneziano. Foi construída em 1903, com peças
contrabandeadas diretamente de Veneza. A República Veneziana foi uma das mais bem-
sucedidas democracias da história. Lá os senadores cumpriam mandato de apenas um
ano. É a solução para todos os problemas da humanidade: impedir os políticos de
governar.
261

ANEXO 33
Capa da revista TIME (ed. norte-americana) de 22 de março de 2004. Disponível em:
http://www.time.com/time/covers/0,16641,20040322,00. html. Acesso em: 17 set. 2007.
262

ANEXO 34. Veja 30-01-2003 Diogo Mainardi

359 passos ao redor do mundo


"Se filosofar é aprender a morrer, a paternidade
é a filosofia do homem comum, a filosofia dos pobres
de espírito, a filosofia das massas. É a única filosofia
ao alcance de gente como Tom Cruise e eu"

Edmund Hillary morreu em 11 de janeiro. No mesmo dia, meu filho deu 359 passos. Escalar o Monte
Everest, como fez Edmund Hillary, pode parecer um feito um tantinho mais notável do que dar 359
passos, como fez meu filho. Mas, para quem tem uma paralisia cerebral como a dele, dar 359 passos
seguidos, sem ajuda, sem cair, sem espatifar os dentes, é um evento épico, pelo menos na mitografia
familiar. Se meu filho é Edmund Hillary, eu só posso ser seu sherpa, Tenzing Norgay. Ele cambaleia
de um lado para o outro, com sua marcha incerta, progredindo lentamente de metro em metro, eu me
mantenho na retaguarda, indicando-lhe o caminho menos acidentado e salvando-o das quedas.

Os 359 passos de meu filho foram dados em Veneza. Já estamos planejando nossos próximos desafios.
Em primeiro lugar, daremos 359 passos no Corcovado. Depois disso, 359 passos na Muralha da China.
Depois disso, 359 passos no Deserto do Saara. Depois disso, 359 passos na Acrópole. Depois disso,
359 passos no Monte Everest. Meu filho e eu daremos a volta ao mundo a pé, de 359 passos em 359
passos.

Sou um pai dedicado. O único aspecto frustrante de ser um pai dedicado é que agora todos os pais
parecem ser igualmente dedicados. Time publicou uma reportagem sobre o assunto. Ela mostra como
os pais passaram a se sujeitar cada vez mais às necessidades dos filhos, desempenhando uma série de
tarefas maternais. De acordo com a reportagem, nós, pais dedicados, formamos uma nova categoria
social. Mais do que isso: pertencemos a uma nova espécie. Até nosso nível de testosterona é inferior
ao dos outros pais. Sou um sherpa hermafrodita.

Montaigne também era um pai dedicado. Num de seus ensaios, ele discorreu sobre o afeto paterno,
ostentando sua filha Léonor, assim como eu ostentei meu filho Edmund Hillary e Tom Cruise ostentou
sua filha Suri. Léonor foi a Suri do Renascimento. Em outro ensaio, Montaigne argumentou que
filosofar é aprender a morrer. Depois de uma longa temporada de férias com meus filhos, estou
perfeitamente preparado para a morte. Além de ser emasculado por meus filhos, fui subjugado por
eles. Deixei de existir. Perdi a vontade própria. Desencarnei. Se filosofar é aprender a morrer, a
paternidade é a filosofia do homem comum, a filosofia dos pobres de espírito, a filosofia das massas. É
a única filosofia ao alcance de gente como Tom Cruise e eu.

No penúltimo dia de férias em Veneza, fomos a uma mostra fotográfica sobre a Aktion T4, o programa
secreto de extermínio de deficientes físicos e mentais na Alemanha nazista. Entre 1940 e 1941, 70.273
deficientes foram mortos, muitos dos quais crianças. Quando a SS assumiu o controle do programa,
seu nome mudou para Aktion 14F13. Até o fim da guerra, outros 200.000 deficientes foram mortos
nas câmaras de gás dos campos de concentração. O Edmund Hillary da paralisia cerebral e seu sherpa
hermafrodita ganharam uma nova meta: 359 passos em Buchenwald.
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