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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

GUSTAVO SOLDATI REIS

AMBIGUIDADE COMO INVENTIVIDADE:

UM ESTUDO SOBRE O SINCRETISMO RELIGIOSO NA


FRONTEIRA ENTRE A ANTROPOLOGIA E A TEOLOGIA

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2010
GUSTAVO SOLDATI REIS

AMBIGUIDADE COMO INVENTIVIDADE:

UM ESTUDO SOBRE O SINCRETISMO RELIGIOSO NA


FRONTEIRA ENTRE A ANTROPOLOGIA E A TEOLOGIA

Tese apresentada em cumprimento às


exigências do Programa de Pós Graduação em
Ciências da Religião da Faculdade de
Humanidades e Direito da Universidade
Metodista de São Paulo, para obtenção do grau
de Doutor.
Área de Concentração: Teologia e História
Orientador: Prof. Doutor Etienne Alfred
Higuet.

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2010
FICHA CATALOGRÁFICA
R277a Reis, Gustavo Soldati
Ambiguidade como inventividade : um estudo sobre o sincretismo
religioso na fronteira entre a antropologia e a teologia / Gustavo Soldati Reis
-- São Bernardo do Campo, 2010.
233fl.

Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Faculdade de Humanidades e


Direito, Programa de Pós Ciências da Religião da Universidade Metodista de
São Paulo, São Bernardo do Campo
Bibliografia

Orientação de: Etienne Alfred Higuet

1. Certeau, Michel de – Crítica e interpretação 2. Tillich, Paul, 1886-


1965 – Crítica e interpretação 3. Sincretismo 4. Antropologia social 5. Índios
Guarani – Religião I. Título
CDD 230
A tese de doutorado sob o título “Ambiguidade como Inventividade: um estudo sobre o
sincretismo religioso na fronteira entre a Antropologia e a Teologia”, elaborada por Gustavo
Soldati Reis, foi defendida e aprovada em 16 de setembro de 2010, perante banca
examinadora composta por Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet (Presidente/UMESP), Prof. Dr.
Cláudio Oliveira Ribeiro (Titular/UMESP), Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth
(Titular/UMESP), Profa. Dra. Cândida Graciela Chamorro (Titular/UFGD), Prof. Dr.
Afonso Maria Ligório Soares (Titular/PUC-SP).

__________________________________________

Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________

Prof. Dr. Jung Mo Sung

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Ciências da Religião

Área de Concentração: Teologia e História

Linha de Pesquisa: História e Narrativa da Experiência Religiosa


A meus pais, Marisia e Márcio;

À minha querida esposa Giselle

Em profundo amor e reconhecimento.


AGRADECIMENTOS

Em vários anos de Pesquisa a minha memória tenta reconstruir, ainda que em


pequenos fragmentos, as trilhas das vidas que ofereceram o apoio fundamental para que eu
conquistasse esse momento. Sei que as nomeações abaixo não abarcam todos, mas são
símbolos representativos de uma realidade mais ampla, a qual reporto-me em profunda
consideração e gratidão:

_ A Deus, fonte de sentido para uma vida inventiva;

_ Ao meu grande amigo Manoel Ribeiro de Moraes Jr. O seu companheirismo, lealdade e
incentivo sempre foram um referencial para mim. Foi muito bom partilhar parte da trajetória
do doutorado junto com você;

_ Aos meus irmãos e irmãs de caminhada de trabalho no Conselho Diretor da Faculdade


Teológica Batista Ana Wollerman. Em particular: Sergio Nogueira, Zadenir Aragão, Marta
Simis, Alice Sarmento e Douglas Janzen. Obrigado pela paciência, incentivo e por terem
segurado “as pontas” em minhas ausências nos últimos meses de escrita da tese;

_ Aos meus caros irmãos, amigos e todos os colegas de docência teológica: vocês são a razão
de ser da qualidade de nosso trabalho e muito me apoiaram na trajetória do doutorado. Sem
vocês meu trabalho na Coordenação Acadêmica não teria sentido. Em especial agradeço ao
José Américo, José Augusto, Eugênio Quispe, Lilian Sarat, Kleiton Cerqueira e Givaldo
Matos pelas conversas amigas e atos de solidariedade. Obrigado também porque, em várias
ausências, vocês foram minha presença na dinâmica da Faculdade;

_ Aos meus queridos alunos e alunas. Agradeço a compreensão de todos vocês e por
partilharmos as trilhas saborosas do saber teológico nesses anos;

_ Ao grande amigo e irmão de fé Marcelo Moura da Silva. Sua presença continua sendo
fundamental como referencial de vida digna e ética para mim. Você me mostrou com sua
própria experiência que, mesmo com muitos compromissos e “pressões”, é possível trilhar
com competência o caminho do doutorado;

_ Aos meus mestres de ensino no programa de doutorado. Faço menção nominal a cada um
porque vocês acreditaram em mim e a tese reflete as múltiplas fronteiras do saber que me
educaram a trilhar: Prof. Etienne Higuet, Prof. Lauri Wirth; Profa. Sandra Duarte de Souza,
Prof. Leonildo Campos, Prof. James Farris; Prof. Paulo Nogueira e Prof. Jung Mo Sung;

_ Em particular, ao meu excelente orientador e professor, Dr. Etienne Alfred Higuet. Seu
suporte, dedicação e competência são um exemplo caro de como aproveitar a “fronteira de
saberes” e da vida. Muito obrigado pela paciência e apoio, principalmente em momentos em
que causei maiores apreensões;

_ Aos professores que participaram da Banca/Exame de Qualificação: Dr. Lauri Wirth e Dr.
Cláudio Ribeiro. Suas contribuições foram significativas para que pudesse pensar mais
coerentemente minha tese;

_ Ao ex-coordenador do Programa, Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães e o atual


Coordenador, Dr. Jung Mo Sung, pela competência e seriedade na condução de nosso
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e por terem me ajudado na continuidade
do curso. Muito obrigado;

_ Ao Instituto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG) pelo apoio financeiro durante a quase


totalidade do curso. Fica registrado um abraço especial para a Ana Fonseca pela compreensão
e ajuda;

_ Ao professor Dr. Levi Marques Pereira e Dra. Graciela Chamorro, ambos da Universidade
Federal da Grande Dourados. Vocês me introduziram em reflexões significativas no campo da
etnologia indígena. Partilhar da presença de vocês é sempre algo prazeroso e significativo;

_ Por fim, mas da maior importância, aos meus interlocutores e interlocutoras indígenas na
Pesquisa. Com alguns tive breves momentos. Com outros, uma convivência mais prolongada.
Mas todos foram sujeitos imprescindíveis para a minha vida, como pesquisador e ser humano.
As amizades feitas perdurarão, porque são maiores que a pesquisa. Obrigado por me
acolherem em vários momentos e épocas diferentes sob a sombra de uma árvore, tomando um
bom tereré ou junto ao fogo que nos aquecia em noites frias. Em especial agradeço a dois
deles: Eder Vito e Jayson “Tato” Souza. Em momentos diferentes e em tempos comuns vocês
estiveram ao meu lado nesses últimos anos. Vocês são absolutamente imprescindíveis, por
razões que nossos corações conhecem. Amo vocês!

Enterove tapevya py’agua-py reheve!

Felicidade e paz para todo mundo (com todos vocês)!


ONTEM

Até hoje perplexo


ante o que murchou
e não eram pétalas.

De como este banco


não reteve forma,
cor ou lembrança.

Nem esta árvore


balança o galho
que balançava.

Tudo foi breve


e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,


que por minha vez
escrevo, dissipo.

Carlos Drummond de Andrade


REIS, Gustavo Soldati. Ambiguidade como Inventividade: um estudo sobre o sincretismo
religioso na fronteira entre a Antropologia e a Teologia. São Bernardo do Campo, SP, 2010.
233p. Tese (Doutorado em Ciências da Religião – Teologia e História). São Bernardo do
Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2010.

RESUMO

Essa tese é um estudo sobre o problema do sincretismo religioso, quando pensado no diálogo
entre a antropologia e a teologia. Para tanto, a pesquisa faz um exercício hermenêutico de
ressignificação do conceito, a partir das diversas teorias sobre o sincretismo e seus usos
antropológicos e teológicos, buscando subsídios no pensamento de Michel de Certeau e Paul
Tillich para tal ressignificação. Assim, a perspectiva certeauniana de uma reflexão
heterológica da cultura e a noção de “demônico” na teologia e filosofia do sentido de Tillich
fundamentam a percepção do sincretismo como uma teoria da mediação entre religião e
cultura. Isso significa que o sincretismo opera uma relação dialética com o seu pólo
denominado, nessa tese, de “diacretismo”, tornando a dinâmica cultural e religiosa um espaço
inventivo, posto que manifesta aspectos ambíguos de criações de sentido positivas
(experiência de aproximação sincrética) e criações de sentido distorcidas (experiência de
fragmentação “diacrética”), essência da relação com o sagrado, vivida culturalmente. A
cultura, entendida como espaço para a vivência do religioso, exprime-se em uma profunda
relação entre táticas e estratégias, denotando a ambigüidade anteriormente afirmada, quando
reconhece que os atores sociais em interação, mesmo que marcados por lugares próprios
estrategicamente estabelecidos, enquanto lugares de poder, não inibem a formação de ações
táticas que “subervertem” inventivamente esses mesmos lugares, dando a devida dinâmica
cultural. A tese analisa, também, como estudo de caso, as implicações dessa compreensão de
sincretismo para a interpretação da experiência religiosa de grupos de indígenas Guarani e
Kaiowá, na Terra Indígena de Dourados /MS, na fronteira entre tradição e tradução operada
pelos indígenas, a partir do Projeto da “Igreja Indígena Presbiteriana” (IIP), ressignificando
sua alteridade religiosa na interface com os múltiplos cristianismos presentes nas aldeias,
afirmando a possibilidade de um teko retã (“jeito de ser plural, múltiplo”) religioso, a partir
das relações sincréticas e diacréticas propostas.

Palavras-Chave: Sincretismo. Religião. Cultura. Michel de Certeau (Heterologia). Paul


Tillich (Demônico). Etnia Guarani (Kaiowá).
REIS, Gustavo Soldati. Ambiguity as Inventiveness: a study about religious syncretism on
the frontier between Anthropology and Theology. São Bernardo do Campo, Universidade
Metodista de São Paulo, 2010. 233p. Thesis (Doctorate in Religion Sciences – Theology and
History). São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2010.

ABSTRACT

This thesis is a study regarding the problem of religious syncretism, when it is considered in
the dialogue between anthropology and theology. For this purpose, the study employs a
hermeneutical exercise of conceptual resignification, based upon various theories about
syncretism and their anthropological and theological uses, seeking support in the thought of
Michel de Certeau and Paul Tillich for that resignification. Thus, the perspective of Certeau
regarding a heterological reflection of culture and the notion of “demonic” in theology and
philosophy of meaning of Tillich provide the basis for the perception of syncretism as a
theory of mediation between religion and culture. This means that syncretism operates in a
dialectical relation with its named pole, in this thesis, of “diacretism”, considering the cultural
and religious dynamic as an inventive space, a position that manifests ambiguous aspects of
the creation of positive meanings (experience of syncretistic approximation) and the creation
of distorted meanings (experience of “diacretistic” fragmentation), the essence of the relation
with the sacred, lived culturally. The culture, understood as space for the living of the
religious, expresses itself in a profound relation between tactics and strategies, denoting the
ambiguity previously affirmed, when it recognizes that the social actors in interaction, even
when marked by proper places strategically established, as places of power, do not inhibit the
formation of tactical actions that inventively “subvert” these same places, offering the rightful
cultural dynamic. The thesis analyses, also, as a case study, the implications of this
comprehension of syncretism for the interpretation of the religious experience of the Guarani
and Kaiowá native indigenous groups, on the indigenous land of Dourados, MS, on the
frontier between tradition and translation performed by the indigenous people, based on the
“Presbyterian Indigenous Church” Project (IIP), resignifying its alternative religiosity in the
interface with the multiple Christianities present in the villages, affirming the possibility of a
religious teko retã (“a way of being that is plural, multiple”), based on the syncretistic and
diacretistic relations that are proposed.

Keywords: Syncretism. Religion. Culture. Michel de Certeau (Heterology). Paul Tillich


(Demonic). Guarani (Kaiowá) Ethnicity.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1: A “DANÇA” DAS METÁFORAS: PROBLEMATIZAÇÃO DO
SINCRETISMO RELIGIOSO NO SABER ANTROPOLÓGICO E TEOLÓGICO ..... 25
1.1. BREVE HISTÓRICO INTERPRETATIVO DA NOÇÃO DE SINCRETISMO ..... 31
1.2. PERCURSOS E PERCALÇOS DE UMA ANTROPOLOGIA DO SINCRETISMO
RELIGIOSO ............................................................................................................................. 39
1.3. PERCURSOS E PERCALÇOS TEOLÓGICOS SOBRE O SINCRETISMO
RELIGIOSO ............................................................................................................................. 50
1.3.1 Sincretismo e suas modalidades para a compreensão da experiência cristã:
perspectiva de Leonardo Boff................................................................................................... 51
1.3.2 Sincretismo para além da Inculturação do Evangelho: diálogo crítico entre Mário de
França Miranda e Antonio Magalhães...................................................................................... 53
1.3.3 Os “rastros” sincréticos de Deus na história: a contribuição de Afonso Maria Ligorio
Soares ................................................................................................................................... 55
CAPÍTULO 2: DO “INVENTIVO” E DO “DEMÔNICO”: O SINCRETISMO COMO
AFIRMAÇÃO DA AMBIGUIDADE ÚLTIMA DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ...... 60
2.1 SINCRETISMO E INVENÇÕES COTIDIANAS: TÁTICAS E ESTRATÉGIAS
CULTURAIS EM DIÁLOGO COM MICHEL DE CERTEAU ............................................. 65
2.1.1 Religião enquanto cultura “heteróloga” ..................................................................... 71
2.1.2 A Teologia enquanto discurso “heterológico” ........................................................... 78
2.1.3 Na fronteira das “Táticas” e “Estratégias” como configuradoras das relações
culturais ................................................................................................................................... 85
2.2 FRONTEIRAS DO SENTIDO: PAUL TILLICH E A INVENÇÃO DO
“DEMÔNICO” ......................................................................................................................... 93
2.2.1 Religião e Cultura: relações de mediação .................................................................. 99
2.2.2 Religião como criação “demônica” ......................................................................... 105
2.3 SINCRETISMO E DIACRETISMO: MEDIAÇÕES HERMENÊUTICAS PARA A
INVENÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E CULTURA.................................... 115
CAPÍTULO 3: SINCRETISMO E DIACRETISMO COMO CATEGORIAS
COMPREENSIVAS DAS RELAÇÕES ENTRE IGREJA, VIDA GUARANI E
KAIOWÁ NA TERRA INDÍGENA DE DOURADOS/MS .............................................. 125
3.1 UM CENÁRIO RELIGIOSAMENTE PLURAL: AS MÚLTIPLAS FRONTEIRAS
CRISTÃS NA TERRA INDÍGENA DE DOURADOS ......................................................... 133
3.1.1 Hermenêuticas da experiência religiosa Guarani e Kaiowá: uma aproximação sócio-
antropológica .......................................................................................................................... 138
3.1.1.1 Religião Guarani em Kurt Nimuendajú Unkel: uma negação do sincretismo? ... 138
3.1.1.2 Religião Guarani no pensamento de Egon Schaden: sincretismo como
“aculturação”? ........................................................................................................................ 141
3.1.1.3 Religião Guarani na fronteira de saberes de métodos antropológicos “sincréticos”
contemporâneos ...................................................................................................................... 144
3.1.2 A experiência religiosa indígena em chave teológica: breves apontamentos .......... 149
3.1.2.1 Sincretismo como Inculturação? Diálogos com Manuel Marzal ......................... 151
3.1.2.2 Sincretismo como inclusivismo? Diálogos com Graciela Chamorro .................. 154
3.1.3 Espaços e lugares da Igreja Indígena Presbiteriana: breve cenário da pluralidade
cristã na Terra Indígena de Dourados ..................................................................................... 160
3.2 RELAÇÕES SINCRÉTICAS E DIACRÉTICAS COMO INVENÇÃO DO TEKO
RETÃ RELIGIOSO ................................................................................................................ 172
3.2.1 Sincretismo e diacretismo religioso na fronteira das modalidades e mobilidades
sociais ................................................................................................................................. 176
3.2.2 Sincretismo e diacretismo religioso e suas fronteiras teológicas ............................. 187
CONCLUSÃO....................................................................................................................... 203
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 212
OBRAS CONSULTADAS ................................................................................................... 219
ANEXOS ............................................................................................................................... 229
12

INTRODUÇÃO

Outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos.

Padre Antônio Vieira. “Sermão do Espírito Santo”


13

Essa tese é um estudo sobre o problema do sincretismo religioso que, em boa medida,
consiste em repensar radicalmente a construção das alteridades e do sentido que se dá à vida
em situações de contato cultural, mesmo quando se trata de repensar a própria cultura em suas
múltiplas fronteiras. Assim, o problema do sincretismo é uma hermenêutica do “outro” ou,
nos termos de Michel de Certeau, um discurso heterológico. Mas não do outro como projeção
de si mesmo apenas, em uma visão “especular” e reducionista, mas como espaço de diálogo e
crítica, como horizonte de novas possibilidades significativas. A epígrafe da introdução foi
extraída de um texto do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro intitulado “O
Mármore e a Murta: sobre a inconstância da alma selvagem”1 e faz referência às metáforas
utilizadas pelo Padre Antonio Vieira que, por sua vez, comparava os índios Tupinambás,
enquanto uma das “nações” indígenas do Brasil no século XVII, a uma planta chamada
“murta”. Diferentemente de outras nações que se pareciam mais com o “mármore”, os
indígenas recebiam a mensagem cristã até com facilidade, deixavam-se “moldar” suavemente
como a murta, mas que, ao menor afastamento do “jardineiro/missionário”, voltava-se a
“murta/indígena” a desfigurar-se, a retornar para a “barbárie” e o “paganismo”: “[...] o índio
mal-converso que, à primeira oportunidade, manda Deus, enxada e roupas ao diabo,
retornando feliz à selva, presa de um atavismo incurável. A inconstância é uma constante da
equação selvagem” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 187). Nesse sentido, a metáfora da
murta serve para situar as perspectivas em torno do problema do sincretismo religioso e
cultural. Em que aspecto? Parece que quanto mais os “jardineiros”/cientistas tentam podar a
“murta”/sincretismo, ao menor descuido, por exemplo, ao considerar a noção como
superficialmente analítica, ela retorna com muita força, ainda que nomeada de maneiras
diversas. Ainda assim, muitos analistas insistem em enxergar no termo “sincretismo” uma
degeneração, uma decomposição “indigesta” de elementos diferenciados e, até mesmo, a
mistura de vários sistemas epistemológicos. Assim como a murta volta a crescer “para todos
os lados”, o sincretismo está aí, como a “inconstância” que atravessa as constantes culturais e
religiosas, com os fatos dos muitos trânsitos, transversalidades e interfaces religiosas.

O filósofo cubano Raúl Fornet-Betancourt, ao defender o que ele chama de


“paradigma da interculturalidade” como chave interpretativa, inclusive da teologia, para a
compreensão de uma filosofia da cultura, enumera alguns princípios da interculturalidade em
posicionar-se, de maneira renunciadora, em face de alguns problemas culturais e religiosos.

1
VIVEIROS DE CASTRO, E. O Mármore e a Murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: VIVEIROS
DE CASTRO, E. A Inconstância da Alma Selvagem, p. 183ss.
14

Uma dessas renúncias é a “[...] sincretizar as diferenças sobre a base de um suposto fundo
comum estável e, por isso, também renuncia (grifo nosso) à teleologia da unidade sem mais”2.
A pergunta seria se o sincretismo quer justamente isso: eliminar as diferenças, o que parece
eliminar sua própria condição de possibilidade. Mas há outros analistas, como o antropólogo
italiano Massimo Canevacci, que iguala completamente sincretismo e culturas, operando
quase que uma absolutização do conceito. Corre-se, assim, o risco de negar o que propõe, ou
seja, uma releitura da própria cultura vista em seus aspectos mais “superficiais”,
fragmentários, descentrados, longe das leituras identitárias e homogeneizadoras da cultura
feitas pela modernidade, mesmo que tardia3.

Ao pontuar essas questões iniciais é importante deixar claro que no Brasil as


discussões sobre o sincretismo religioso, especificamente, chegam por força das análises das
interações entre experiências religiosas “afro” e católicas. Não obstante, importante ressaltar,
nos últimos anos ter-se observado um aumento na análise de outras interações religiosas que
não o binômio “religiões afro – catolicismo” sob a perspectiva da noção de sincretismo,
como, por exemplo, a coletânea organizada pelo antropólogo Pierre Sanchis sob o título
“Fiéis e Cidadãos. Percursos de Sincretismo no Brasil” (2001). Quando se trata de pensar e
interpretar, por exemplo, as interações religiosas entre expressões cristãs e indígenas, através
do olhar específico do sincretismo, as possibilidades são bem menores se comparadas com os
estudos sobre religiosidades afro-católicas. Porém, as coletâneas organizadas pela antropóloga
Paula Montero intitulada “Deus na Aldeia” (2006) e a organizada pelo antropólogo Robin
Wright chamada “Transformando os Deuses” (2004, volume II), ainda que não apresentem
textos específicos sobre a noção de sincretismo, várias das abordagens assumidas nesses
textos aproximam-se das preocupações que as pesquisas sobre sincretismo apontam. Por
exemplo: a socióloga Cristina Pompa, ao analisar as situações de encontro cultural entre
missionários e indígenas no Brasil dos séculos XVI e XVII procura superar a visão de que se
tratava do encontro de dois blocos/sistemas religiosos monolíticos, onde um impunha sua
cultura e religião ao outro, sendo que esse outro, ora era absorvido via “aculturação”, ora
resistia, tendo em vista sua tradição nativa considerada imutável. Assim, entre as perdas e
resistências, deixava-se “[...] para os povos nativos apenas dois papéis, os de vítima de

2
Cf. FORNET-BETANCOURT, F. Religião e Interculturalidade, p. 51.
3
Cf. CANEVACCI, M. Sincretismos: uma exploração das hibridações culturais, p. 13ss.
15

aniquilação ou de mártires da conservação de sua cultura. Num e noutro caso, o destino é um


silencioso ou heróico desaparecimento”4.

Na realidade, Pompa não quer negar as violentações seculares que os povos indígenas
sofreram na história. Mas quer, analiticamente, desconstruir um quadro que só existe na
“cabeça” de vários intérpretes quando tentam reler as comunidades indígenas como
mantenedoras de um patrimônio cultural incólume e puro, retratado, furtivamente, em
algumas análises antropológicas e teológicas. Afirma-se, com isso, que a experiência da
resistência deve também ser vista como um campo de “[...] estratégias de mediação, de
adaptação e reformulação de identidades, de construção de novas formações sociais e
culturais” (POMPA, 2003, p. 22). Esse exemplo foi posto porque as teorias sobre o
sincretismo religioso debateram-se e debatem-se, justamente, com a questão do “outro”, de
como projeta-se sobre este “outro” o “mito” de uma origem pura que antecederia qualquer
tentativa de mistura de tendências estranhas ao universo original/nativo. Mas também
algumas dessas teorias pensam o sincretismo como mistura de “tendências opostas” para
driblar os impositores de uma cultura/religião outra. Nessa perspectiva, Pierre Sanchis
apresenta, na citação seguinte, um bom resumo das tendências nas pesquisas atuais sobre o
sincretismo religioso. O referido antropólogo afirma:

Alguns analistas do campo religioso “pós-moderno” insistem sobre a


existência, em toda parte, de uma particular fluidez, de encontros ontem
impensáveis, capazes de generalizar um tipo novo de porosidade, de
identidades múltiplas e/ou compósitas, considerando tais fenômenos
“sincretismo” [...] Outro grupo crescente no Brasil resiste ao uso de tal
categoria pelo lastro de dominação que historicamente a legitima, pelo uso
ideológico que dela fizeram as elites e as ortodoxias e pelo caráter
estigmatizante que acabou assumindo [...] outros analistas vêem no
sincretismo uma dimensão possivelmente universal na história das religiões,
mas não pensam encontrá-lo mais no Brasil do que em outras sociedades,
igualmente feitas de superposições étnicas e sociais, de dominações
religiosas e políticas há muito assentadas e ainda de processos dialéticos
brutais ou sutis, travados entre poderes e resistências (SANCHIS, 2001, p.
9; 10)

Como se percebe na citação o assunto é complexo, uma vez que se insere no próprio
debate de constituição da noção de cultura que atravessa a construção moderna até as críticas

4
POMPA, C. Religião como Tradução, p. 22.
16

pós-modernas dos saberes antropológicos5. Se for levada em consideração a afirmação da


antropóloga Paula Montero (2006, p. 31) de que toda cultura formula um modo de pensar o
outro, esse “modo de pensar” fica mais instigante e desafiador quando as alteridades são
construídas em múltiplas fronteiras. Nesse sentido, ao voltar no início do texto dessa
Introdução, no âmago o sincretismo leva ao limite o pensar o “outro”. Algo que não é só um
problema antropológico e filosófico mas, também, teológico. Ou a teologia não “ousa”
problematizar o limite da alteridade que ela nomeia por Deus e sua revelação? De fato, essa
tese quer ser uma contribuição ao tema das discussões em torno do sincretismo religioso.
Ainda que não pretenda “inventar a roda” sobre o assunto, haja vista a extensa bibliografia
sobre o mesmo, onde uma parte pode ser vislumbrada na bibliografia, pretende a tese repensar
o sincretismo a partir da fundamentação teórica produzida sobre o tema e por situações de
profundos contatos religiosos concretos, como o caso a ser apresentado no último capítulo, a
título de exemplificação e exercício interpretativo da teoria exposta no segundo capítulo, das
experiências religiosas de indígenas Guarani e Kaiowá na Terra Indígena de Dourados6, no
Estado de Mato Grosso do Sul. Especificamente, em relação a como determinados
agrupamentos sociais desses indígenas pensam a sua alteridade religiosa a partir da vivência
de várias Congregações Cristãs do chamado Projeto da “Igreja Indígena Presbiteriana”7.

Com o título “Ambiguidade como inventividade: um estudo sobre o sincretismo


religioso na fronteira entre a Antropologia e a Teologia”, pretende-se apontar para os
conceitos e relações centrais que serão desenvolvidas ao longo da tese. A noção de
ambigüidade, inventividade e fronteira passam a ser centrais na proposta dessa pesquisa, uma
vez que traduzem a perspectiva com a qual se pretende reler a noção de sincretismo. Todavia,
esses conceitos estão assentados em referenciais teóricos específicos que, mesmo não
aparecendo explicitamente no título da tese, são de suma importância. Trata-se da relação
dialética entre “estratégias” e “táticas”, centrais para a compreensão de uma cultura
heteróloga, do historiador e cientista da religião, teólogo e, também, antropólogo e sociólogo
por vocação de pesquisa, o jesuíta francês Michel de Certeau e a noção de “demônico” no
pensamento do filósofo e teólogo protestante, germano-americano, Paul Tillich. Dois autores

5
Para uma boa compreensão panorâmica acerca do desenvolvimento da antropologia, no seu específico discurso
etnográfico, ver CLIFFORD, J. Sobre a autoridade etnográfica. In: CLIFFORD, J. A Experiência
Etnográfica, p. 16-62. O prórprio Clifford afirma: “O desenvolvimento da ciência etnográfica não pode, em
última análise, ser compreendido em separado de um debate político-epistemológico mais geral sobre a escrita
e a representação da alteridade”. De fato o sincretismo, enquanto objeto de análise cultural, está inserido nessa
“escrita de representação da alteridade”.
6
A partir de agora, denominada pela sigla “TID” em todo o corpo do texto dessa Tese.
7
Denominada pela sigla “IIP” em todo o corpo do texto dessa Tese.
17

tão díspares e que não problematizaram especificamente a noção de sincretismo, mas que
guardam homologias no sentido de terem pensado a realidade na fronteira dos saberes e que,
cada um a seu modo, desenvolveu uma ampla hermenêutica das relações entre cultura e
religião. Mais do que isso: marcados por certa visão “mística” da experiência religiosa
expressavam, cada um em seu próprio método, a impossibilidade da linguagem captar
totalmente o sagrado, necessitando sempre de novas aproximações/mediações hermenêuticas.
Como um “outro” o sagrado, nesses dois autores, sempre é o horizonte de diálogo que nunca
se esgota em mediações culturais e históricas específicas. De certa forma o discurso dos dois
teóricos funda uma heterologia, ou seja, o “destino” da reflexão filosófica, teológica e
antropológica são os muitos “outros” que instalam diferenças como espaços de reflexão. São
pensadores de fronteira, de “mediações”, como sugere o título da tese.

Michel de Certeau, por exemplo, levou tão a sério essas perspectivas que fez delas a
essência de suas reflexões culturais. Conforme a afirmação de uma de suas principais
intérpretes, Luce Giard: “[...] nenhuma ação cultural ou política que seja inventiva e apoiada
no real pode nascer de uma deficiência do pensamento ou se alimentar do desprezo do
próximo”8. Certeau aposta que as dinâmicas culturais precisam ser olhadas pelas ações
“táticas” promovidas pelas multidões anônimas que marcam decisivamente o cotidiano,
mesmo que essas ações sejam circunscritas por “estratégias” que procuram dissimular ou até
coibir o protagonismo daqueles que, muitas vezes, são considerados “invisíveis”: “[...] é
preciso perguntar-se como uma combinatória de forças em competição ou em conflito
desenvolve uma (sic) grande número de táticas em espaços organizados, ao mesmo tempo,
por coerções e contratos”9. Assim, nessa relação de busca de afirmação da alteridade através
das táticas (materiais e simbólicas) em meio a lugares não próprios (as estratégias, também
materiais e simbólicas), o “ser humano ordinário” vai inventando a cultura cotidiana.

Por sua vez, Paul Tillich não desenvolveu análises culturais a modo de Certeau, uma
vez que tinha outras preocupações e interesses, bem como outros horizontes teóricos.
Todavia, Tillich dizia que não é possível “hipostatizar”10 demasiadamente a noção de religião.
Esta só é autenticamente vivida na mediação de formas culturais concretas, não porque
também seja cultura, mas porque ele entendia a religião como o horizonte de sentido mais

8
GIARD, L. A invenção do possível. In: CERTEAU, M. de. A Cultura no Plural, p. 9.
9
CERTEAU, M. de. A Cultura no Plural, p. 19.
10
O termo “hipóstase” vem do grego e pode significar “substância”, “essência”, “fundamento”. Todavia, aqui o
termo é tomado como metáfora para qualificar discursos e teorias que se abstraem excessivamente da
realidade, perdendo a referência histórica concreta ao cair em um grande “essencialismo”.
18

profundo de todas as expressões culturais. Mas toda experiência cultural lida com suas
limitações, não conseguindo expressar totalmente o sentido último da existência que, para
Tillich11, é o sentido religioso. Justamente porque a percepção do sentido religioso é
profundamente ambígua, ou seja, o ser humano participa, une-se, mas reage, distorce e afasta-
se de si mesmo e do próximo/outro quando lida com o sagrado: essência e mistério profundo
da experiência religiosa. Essas ambigüidades desdobram-se concretamente nas formas
culturais que passam, por sua vez, a serem marcadas por essas mesmas ambigüidades, em um
acento dialético. Surge, assim, o conceito de “demônico” em Tillich: um recurso teórico para
significar e interpretar o fato de que, na vivência religiosa, o ser humano vive uma relação de
criatividade, ora positiva, ora destrutiva, distorcida, mas não deixa de ser “criadora”, porque o
fundamento religioso, enquanto experiência de sentido (e não uma experiência objetivamente
empírica) exprime essa ambiguidade criadora. Se Certeau ajuda a entender como ocorre,
concretamente nas formas culturais, a experiência da inventividade criadora, Tillich ajuda a
entender como, na experiência de sentido religioso, há uma pulsão também inventiva e que,
portanto, é profundamente ambígua: criação e distorção. Trata-se de um princípio simbólico
de significação da realidade12.

Assim, o principal objetivo dessa tese consiste justamente nisso: no exercício teórico e
hermenêutico de ressignificação da noção de sincretismo, a partir dos conceitos anteriormente
introduzidos, de tal forma a desdobrar-se, em afirmações mais específicas, a hipótese central:
considerar o sincretismo como expressão “demônica” da cultura, ou seja, a radicalização da
experiência ambígua de inventividade criadora e distorcedora de sentidos, nos encontros
estabelecidos por múltiplas fronteiras religiosas. Daí a criação do neologismo, nessa tese, do
“diacretismo”, a fim de dar maior realismo a essas experiências “inventivas”: se o sincretismo
“une”, “combina”, cria positivamente novas possibilidades de rearranjos religiosos, o
diacretismo “desune”, “distorce”, “desagrega”, mas como criação também, mantendo a
necessária dinâmica cultural e religiosa. Todavia, a possibilidade de se repensar o sincretismo
precisa ganhar contornos mais concretos para que tenha maior validade na interpretação de
situações de contatos históricos e cotidianos. Por isso, as relações sincréticas e diacréticas
acontecem, com inspiração certeauniana, nas relações táticas e estratégias que os sujeitos
religiosos estabelecem para significar suas realidades culturais. Essas relações táticas e
estratégias são, de certa forma, outra maneira de nomear as relações sincréticas e diacréticas

11
O próprio Tillich afirma: “A religião, como tudo na vida, submete-se à lei da ambiguidade que é construtiva e
destrutiva ao mesmo tempo. A religião é santa e pecadora”. Cf. TILLICH, P. Teologia da Cultura, p. 104.
12
Cf. TILLICH, P. Filosofía de la Religión, p. 75
19

estabelecidas. No fundo, o percurso teórico desta tese procura lidar com o seguinte problema
central: o que significa o sincretismo e quais as implicações dessa noção, quando pensado
como categoria de mediação/fronteira, para interpretar situações de contato religioso que
envolve profundas ambigüidades e ressignificação do sentido das alteridades envolvidas?

Para tanto, na investigação da questão levantada anteriormente, a tese está estruturada


em torno de três capítulos: o primeiro, intitulado “A “dança” das metáforas: problematização
do sincretismo religioso no saber antropológico e teológico”, procura situar a questão do
sincretismo no conjunto do estado atual da questão, na fronteira entre a antropologia e a
teologia. Ainda que de forma panorâmica, pois o capítulo não é uma leitura exaustiva, mostra-
se que a noção de sincretismo, enquanto significante para interpretar as experiências de
múltiplas pertenças religiosas (seus significados) precisa ser, tanto na literatura antropológica
quanto teológica, reinventada na sua força metonímica para dar conta, justamente, de
representar significativamente a realidade plural para a qual aponta e procura interpretar.
Assim, o capítulo está dividido em três itens: no primeiro (1.1), procura-se traçar o percurso
histórico da noção de sincretismo, a partir de sua conotação originalmente política até a
tentativa de utilizar a noção como categoria interpretativa de discursos religiosos e teológicos,
marcando diferenciações e lutas de poderes hegemônicos em torno desses mesmos discursos.
No segundo item (1.2), há uma análise da pluralidade de significados em que o termo é
tomado nos saberes antropológicos, pluralidade essa tributária (ainda que em parte) de leituras
ora mais descritivistas, ora mais interpretativistas consoante o método antropológico utilizado.
No último item do capítulo (1.3), a mesma perspectiva do item anterior é perseguida, só que
aplicada aos saberes teológicos. Percebe-se que a maior capacidade dialógica e hermenêutica
da Teologia facilita a uma interpretação mais “positiva” do sincretismo como categoria
legitima da relação entre revelação e história. De fato, embora não seja abordada
explicitamente no capítulo, a noção de sincretismo implica, também, na releitura das relações
de poder das instâncias institucionais que regem os discursos antropológicos e teológicos.

O segundo capítulo intitulado “Do „Inventivo‟ e do „Demônico‟: O Sincretismo como


afirmação da ambigüidade última da experiência religiosa” é, justamente, o exercício
hermenêutico afirmado anteriormente de correlacionar a noção de “demônico” em Paul
Tillich (segundo item do capítulo, “2.2”) com a idéia de “cultura heteróloga”, fundada na
relação entre táticas e estratégias que, por sua vez, perfaz a dinâmica inventiva do cotidiano,
tal como postulado por Michel de Certeau (primeiro item do capítulo, “2.1”). A idéia é propor
um exercício analítico de reposicionamento da definição de sincretismo religioso, de tal forma
20

a atrelar ao termo não somente os aspectos de aproximação e conjunção entre os elementos


culturais (simbólicos e materiais) com todos os termos semelhantes que evocam uma relação
mais “homológica”, mas também uma relação “heterológica” desses mesmos elementos que
performam toda experiência religiosa. Isso significa que o sincretismo, enquanto
“radicalização” (outro sentido da palavra “último” no título do capítulo) da inventividade nos
encontros e “desencontros” religiosos, correlaciona-se dialeticamente com o seu pólo
chamado de “diacretismo”, a fim de ressaltar que nas dinâmicas inventivas das “tramas
sincréticas da história”13 a invenção ocorre também nos “desvios”, “disjunções” e, até mesmo,
“distorções” (último item do capítulo, “2.3”). A tese, pois, tenta contribuir para o debate
epistemológico ao repensar o sincretismo sob essas perspectivas. Considera-se aqui,
justamente, a possibilidade de uma proposta original para o estado atual da questão.

Por fim, no terceiro e último capítulo da tese intitulado “Sincretismo e Diacretismo


como campo de mediação para a compreensão das relações entre Igreja, vida Guarani e
Kaiowá na Terra Indígena de Dourados/MS”, delineia-se uma tentativa reflexiva de perceber
as implicações da ressignificação do sincretismo e do diacretismo proposta no capítulo
anterior, enquanto categorias analíticas, a fim de interpretar a vivência religiosa de pessoas
indígenas que vivem nas fronteiras ambíguas das culturalidades na TID. Especificamente, as
experiências religiosas vividas a partir de suas inserções nas Congregações que compõem o
projeto da “Igreja Indígena Presbiteriana (IIP)”, projeto esse derivado das ações missionárias
da “Missão Evangélica Caiuá (MEC)” em todo o cone sul de Mato Grosso do Sul. Todo o
capítulo terceiro é orientado teoricamente a partir dos estudos sobre “religião Guarani”, mas
confrontado, principalmente na última seção do capítulo (3.2) com testemunhos orais de
vários indígenas que, direta ou indiretamente, estão envolvidos no referido projeto. Assim, as
interpretações que esses indígenas interlocutores fazem sobre sua própria situação frente ao
projeto da IIP, convertem-se em profundos referenciais para a pesquisa ao longo dos anos de
estudo. A idéia central é perceber as implicações das “relações sincréticas e diacréticas” no
seu poder interpretativo de um possível “teko retã”, ou seja, um “jeito de ser múltiplo,
plural”, no caso, em termos religiosos. Ainda que a expressão Guarani teko retã seja tomada
aqui mais em seu sentido adjetivado para qualificar a referida pluralidade, sem maiores
precisões e análises etnológicas. Assim, o objetivo deste capítulo é aproximar as elaborações
teóricas em torno do sincretismo e diacretismo para o exame de situações concretas de vida

13
Expressão em referência ao título do texto do antropólogo Pierre Sanchis. Cf. SANCHIS, P. As Tramas
Sincréticas da História. Sincretismo e modernidades no espaço luso-brasileiro. Revista Brasileira de Ciências
Sociais. São Paulo, n.28, p. 113-138. 1995.
21

religiosa na fronteira de múltiplas tendências cristãs, como é o caso da Terra indígena de


Dourados hoje. De como esses indígenas, especificamente, repensam sua alteridade religiosa
nessas situações de mediação. Ainda que o capítulo não seja exaustivo, tendo um caráter mais
“ensaístico”, quer ser uma contribuição para os estudos de religião indígena Guarani e
Kaiowá contemporâneos, ou seja, no que diz respeito, especificamente, aos indígenas que
constroem sua história de vida em contato cotidiano com as missões cristãs e assumem, a seu
modo, determinadas faces dessa experiência religiosa cristã. Com isso, a recomposição do
teko retã religioso, através das relações sincréticas e diacréticas, passa por uma
ressignificação religiosa das modalidades sociais tradicionais e, também, de rearranjos
teológicos através da presença das Igrejas do referido projeto. O capítulo, pois, promove
discussões iniciais que, longe de esgotar o assunto, abre perspectivas para o aprofundamento
em pesquisas futuras. Importante salientar que a primeira seção deste último capítulo (3.1)
constitui-se na análise de alguns referenciais teóricos clássicos acerca de uma antropologia da
religião Guarani e teologia indígenas. O objetivo é “mapear” a dificuldade no uso da categoria
do sincretismo, como reflexo da época histórica de construção do método, para interpretar os
múltiplos contatos religiosos que os povos indígenas efetivam com a sociedade não-indígena.

Para encerrar essa introdução, uma nota metodológica. Esta pesquisa é


fundamentalmente bibliográfica e exploratória. Isso significa que está amplamente amparada
em referenciais teóricos que propiciam a formulação de correlações entre problemas e
hipóteses. Ainda que no último capítulo haja uma interlocução, como estudo de caso, com a
inserção no campo para perceber, em ato, a dinâmica religiosa de indígenas Guarani e
Kaiowá nas Congregações da IIP a tese, no sentido estrito do termo, não gira em torno dessa
pesquisa de campo, como ficará claro ao longo do texto. Não se faz uma leitura etnográfica
exaustiva da “religião” Guarani e Kaiowá, em suas múltiplas faces cristãs na TID hoje. Nem
o autor desta tese teria competência para isso, uma vez que não possui formação específica
em antropologia e não direciona a tese para esse campo disciplinar próprio, ou seja, uma
densa etnografia14. A convivência com os indígenas iniciou-se, para mim, no ano de 2005
quando me preparava para tentar ingressar no programa de doutorado da Universidade
Metodista de São Paulo - UMESP. Mas o interesse por questões indígenas me acompanhava
14
A expressão “densa etnografia” é tomada aqui, simplesmente, no sentido adjetivado de uma etnologia
aprofundada, solidamente construída a partir de métodos etnográficos específicos. Não é tomado aqui no
sentido epistemológico tornado clássico pela antropologia de Clifford Geertz em sua “descrição densa”:
“Assim, há três características da descrição etnográfica: ela é interpretativa; o que ela interpreta é o fluxo do
discurso social e a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o „dito‟ num tal discurso de sua
possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis”. Cf. GEERTZ, C. A Interpretação das
Culturas, p. 31.
22

desde que fui residir no município de Dourados em 2003. Chamava-me atenção a


proximidade das aldeias com a cidade de Dourados e um silêncio quase total das Igrejas
evangélicas em problematizar e contribuir para a reflexão da situação dos povos indígenas na
região, tornado agudo pelas discussões e práticas conflituosas entre agentes do governo,
produtores rurais15, Organizações Não Governamentais (ONG`s) e os próprios indígenas em
torno da questão da demarcação das terras. Além disso, tive o privilégio de ter como alunos
no curso de bacharelado em Teologia da Faculdade Teológica Batista Ana Wollerman –
FTBAW (em Dourados) alguns alunos indígenas, o que me provocou a conhecer melhor suas
histórias de vida. Alguns desses alunos eram participantes do Projeto da Igreja Indígena
Presbiteriana e foram responsáveis por me inserirem nas aldeias de Dourados, não obstante
haver outros que partilharam suas caminhadas comigo dentro das aldeias. Assim, nos dois
primeiros anos de pesquisa (2005-2007) tive contatos mais pontuais com os indígenas, em
uma inserção no campo de caráter preliminar. A ideia foi conhecer a realidade das aldeias e
sendo conhecido pelos meus interlocutores, principalmente visitando as Igrejas, indo a alguns
cultos e “mapeando” a presença dessas Igrejas nas aldeias Jaguapirú e Bororó em Dourados.
A partir de 2008 fui delimitando melhor o universo da pesquisa ao consolidar as redes de
socialização e contato de meus interlocutores indígenas, o que só viria a ficar mais claro após
as demandas estabelecidas no Exame de Qualificação do doutorado em julho de 2009. No
último ano de pesquisa, principalmente no segundo semestre de 2009, pude estar presente de
forma quase semanal nas aldeias. Isso permitiu o aprofundamento de diálogos e perspectivas
com meus principais interlocutores, ao buscar em suas narrativas de vida e memória oral
compreender a presença das Igrejas na TID e como os indígenas constroem sua alteridade nas
fronteiras entre essas Igrejas. Em especial, as Igrejas do rojeto da Igreja Indígena, foco
delimitador da pesquisa.

Ainda que não tenha ocorrido o rigor metodológico das clássicas pesquisas de campo
etnográficas tentei, de certa forma, treinar o “olhar, ouvir e escrever” enquanto categorias
interpretativas a modo do que afirma o antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira.
Para esse autor, “Se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na
pesquisa empírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pensamento, uma
vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar” 16. Com isso, a necessária

15
O Estado de Mato Grosso do Sul é um dos maiores produtores de grãos do país, destacando-se o plantio de
soja. Nos últimos anos os investimentos na criação de Usinas de Álcool têm crescido bastante onde, inclusive,
muitos indígenas são levados para trabalhar em condiçõs, muitas vezes, precárias.
16
Cf. CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O trabalho do antropólogo, p. 31-2.
23

sensibilidade hermenêutica que me marcou para partilhar histórias de vida em muitas


conversas. Claro que essas conversas foram orientadas teoricamente, com questões
específicas e utilizando-se de técnicas como registro de imagens, gravação e uso do caderno
de campo. Todavia, evitei ao máximo gravar as entrevistas e utilizei mais as minhas próprias
anotações, uma vez que percebia que meus interlocutores ficavam mais à vontade e as
conversas “fluíam” com mais facilidade. Evito mencionar o nome de meus interlocutores
indígenas, especificamente, por eles se verem, em alguns momentos, em posição de crítica
frente a Instituições a qual fazem parte, não obstante vários deles não se opuseram a
mencionar o nome. Contudo, o que mais importa são as ideias. Mais do que uma clássica
“observação participante”, foi um compartilhar de histórias e memórias da vida cotidiana
desses indígenas em um intenso processo de diálogo, uma vez que não somente eu formulava
questões, mas era também interpelado por meus interlocutores. De fato, eles foram
construtores de interpretações também, autênticos agentes hermenêuticos.

Ao longo da tese e, principalmente no último capítulo uso, indistintamente, os termos


“Igreja” e “Congregação” de forma análoga, muito embora esteja ciente de que, do ponto de
vista sociológico, há diferenças. Nesse caso, as Congregações não possuiriam maior
autonomia política, administrativa e doutrinária, estando ligadas a Igrejas, Presbitérios,
Concílios ou projetos missionários já consolidados institucionalmente. Muito embora esse
seja um dos problemas das Congregações da IIP, ou seja, as relações estabelecidas com a
Missão mantenedora, no caso, a Missão Evangélica Caiuá. Procurei destacar os termos
Guarani e Kaiowá em itálico toda vez que se refere ao povo/etnia, tal como os Guarani ou os
Kaiowá. As palavras e expressões em guarani seguem o uso feito em etnografias clássicas
desses grupos, tal como a de Levi Pereira (“Imagens Kaiowá do Sistema Social e seu
Entorno”, 2004), além da própria grafia mostrada pelos interlocutores da pesquisa. Se posso
afirmar que houve “etnografia” no estudo de caso proposto no último capítulo, ela foi mais
pautada pela pesquisa bibliográfica em textos etnográficos já produzidos. Nesse caso esses
textos foram a minha pesquisa “de campo” também, em conformidade com a seguinte
afirmação do antropólogo Vagner da Silva:

O “campo” não é somente a nossa experiência concreta (mesmo se esta fosse


mensurável de forma tão objetiva) que se realiza entre o projeto e a escrita
etnográfica. Junto a essa experiência, o “campo” (no sentido amplo do
termo) se forma através dos livros que lemos sobre o tema, dos relatos de
outras experiências que nos chegam por diversas vias [...]17

17
GONÇALVES DA SILVA, V. O Antropólogo e sua Magia, p. 27.
24

Nesse campo que são os textos, ainda que de fontes de “segunda mão”, muito aprendi
sobre as culturas Guarani e Kaiowá. Porém, se for levado em conta a afirmação de Clifford
Geertz de que somente o nativo pode fazer uma leitura “em primeira mão” de sua própria
cultura, penso que posso estar justificado18. Em seguida, o primeiro capítulo.

18
“[...] os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por
definição, somente um „nativo‟ faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura). Trata-se, portanto, de
ficções; ficções no sentido de que são „algo construído‟, „algo modelado‟ – o sentido original de fictio – não
que sejam falsas, não-fatuais ou apenas experimento de pensamento”. Cf. GEERTZ, C. A Interpretação das
Culturas, p. 26.
CAPÍTULO 1: A “DANÇA” DAS METÁFORAS: PROBLEMATIZAÇÃO
DO SINCRETISMO RELIGIOSO NO SABER ANTROPOLÓGICO E
TEOLÓGICO

O sincretismo (...) No âmago de seu conceito permanece um sentido de desordem, de


confusão, de sujeira. De „selvageria‟. E de movimento desejoso e inquieto.

Massimo Canevacci

As variáveis sincréticas são justamente o rastro que vai ficando ao longo do caminho da
autocomunicação de Deus na história.

Afonso Maria Ligório Soares


26

Do Sincretismo religioso como problema aos problemas do sincretismo


religioso: uma breve introdução ao capítulo

O enunciado desta introdução é uma paráfrase inspirada no título do texto do


antropólogo André Droogers intitulado “Syncretism: the problem of definition, the definition
of the problem” (“Sincretismo: o problema da definição, a definição do problema”)19. Neste
texto Droogers evoca as controversas tentativas de definição do termo, ora priorizando
aspectos mais objetivos, ou seja, o posicionamento descritivo frente aos contatos
interreligiosos, ora priorizando aspectos mais subjetivos, ou seja, a interpretação das
intencionalidades dos atores sociais envolvidos nos processos de contatos religiosos. Uma
perspectiva, afirmará Droogers, não exclui necessariamente a outra, mesmo que se tome o
termo “sincretismo” em um sentido meramente adjetivado para celebrar as pulsões criativas
das interações religiosas. Existe, também, a possibilidade pela negação do termo, uma vez que
ocultaria uma ineficácia dos analistas sociais em compreender a lógica própria e as estruturas
específicas de determinados sistemas religiosos, já que estariam “misturados”. O fato é que,
com a potencialização das relações globais e locais, pondo em contato culturas e experiências
religiosas até então distantes não dá para negar o termo, uma vez que impõe-se o fenômeno
que esse mesmo termo pretende interpretar. Melhor, então, é lidar com seus problemas e o
próprio termo enquanto problema (DROOGERS, 1989, p. 7).

Nascido na cultura grega antiga, o termo sincretismo evoca vozes interpretativas


profundamente dissonantes em relação aos fenômenos culturais (sejam religiosos ou não) que
esse termo pretende significar. Contudo, algo parece ser contundente no uso desse termo: a
radicalização da experiência da ambigüidade (no caso, religiosa) que o mesmo pretende, com
vigor, pontuar. Etimologicamente é sabido que o termo, possivelmente, remonta ao uso feito
pelo filósofo e poeta romano Plutarco em seu texto περί θιλαδελθίας (“Do Amor Fraterno”).
Nesse texto, quando cada “irmão e amigo” lançavam-se em conflitos entre si e não percebiam
a aproximação dos inimigos comuns, deveriam agir como os habitantes das ilhas de Creta:
estes sim, em freqüentes conflitos entre si, reconciliavam-se e uniam-se para combater o
inimigo comum externo à conjuntura de Creta. Surgiam, assim, os synkretismos, ou seja,

19
Texto que pode ser encontrado na coletânea: GORT, Gerald D. et. al. (eds.). Dialogue and Syncretism. An
interdisciplinary approach. Grand Rapids/Amsterdam: Eerdmans/Rodopi, 1989.
27

aqueles que “mantinham-se juntamente no caminho de Creta” ou aqueles que “pensavam


como os cretenses” (synkretisai, no grego). Há outras tradições lingüísticas como as usadas no
grego Koiné (que significa “comum”) do Novo Testamento, onde surgem as formas verbais
ζύγκραηος e κεράννσμι, respectivamente “misturar conjuntamente” e “misturar/mesclar”20. No
século XVI, por exemplo, o humanista Erasmo de Roterdã recupera o uso poético e político
de Plutarco que consagrou a origem do termo: prosseguir juntos, contra um obstáculo comum,
apesar de diferentes visões21. Por esse momento histórico as chamadas elaborações sincréticas
ganharam uma face mais religiosa, diferente do realce político e poético dado por Plutarco,
uma vez que os humanistas e os teólogos reformadores encontravam-se em meio a uma
Europa cindida pelo advento da modernidade, mas ainda majoritariamente cristã. Com isso,
“As tentativas sincréticas referiam-se às possíveis alianças momentâneas entre diferentes
interpretações da religião cristã em risco de heresia, sem excessivas preocupações quanto às
coerências dogmáticas” (CANEVACCI, 1996, p. 15). Assim, o sincretismo passou a ser visto
como algo profundamente deletério e corrompedor das “puras” tradições cristãs.

Todavia, conforme afirmado anteriormente, a noção de sincretismo lida com muitas


ambigüidades, a começar pela definição do termo. Como há certa pretensão de se atribuir ao
sincretismo um poder descritivo e interpretativo de fenômenos religiosos em complexas
interações, posto que atravessados por muitas variáveis, ao sincretismo atrela-se muitos
significados. Se há uma “constante” nos estudos sobre o sincretismo é essa: tanto o fenômeno
quanto o termo são profundamente polissêmicos. Curioso é que muitos estudiosos remontam
a origem do termo ao texto de Plutarco afirmado anteriormente. Além disso, o fazem para
celebrar o aspecto de “junção”, “proximidade”, “união” de grupos (com suas representações e
valores próprios) diferenciados, em prol de um objetivo comum, até então rivais e opostos
entre si. Todavia, ao unirem-se para atingir um fim comum os habitantes de Creta, por
exemplo, fizeram-se outros sem deixar de ser a si mesmos. E quando o propósito que levou à
união acabou, as diferenças, rivalidades e violentações mútuas provavelmente retornaram.
Mas não “retornam” da mesma maneira. Isso significa que, se o sincretismo é tomado a partir
de uma categoria para qualificar a “união dos cretenses” é justamente para afirmar que essa
20
Por exemplo, a única ocorrência nas narrativas neotestamentárias do verbo κεράννσμι está no texto de
Apocalipse 18,6, justamente com o sentido de “misturar”. Trata-se de uma narrativa em referência à potência
da “Babilônia” (símbolo de estrutura política e religiosa de dominação) que experimentaria o juízo e a cólera
divina. A imagem é a de uma Babilônia completamente “embriagada”, cambaleante, por conta de uma taça de
vinho “misturada”, portanto, sem percepção justa da realidade. Cf. COENEN, L. & BROWN, C. (eds.).
Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Vol. II, p. 2576. Verbete “κεράμιον”.
21
Cf. RUDOLPH, K. Syncretism: From Theological invective to a concept in the Study of Religion. In:
LEOPOLD, A. & JENSEN, J. Syncretism in Religion, p. 68-9. Para maiores matizações etmológicas e
linguísticas ver BAERMAN, M. et al. The Syntax-Morphology Interface. A Study of Syncretism, p. 5ss.
28

“união ou mistura” é sempre tensiva, pois implica também em dissoluções e rearranjos


fundamentais após os processos de contato que, na realidade, gerarão outros contatos. Essas
possíveis dissoluções também fazem parte do rearranjo de sentido nos contatos religiosos
interculturais, podendo ser denominados, como será mostrado no final do segundo capítulo,
de “diacretismo”. Por isso a ambigüidade afirmada anteriormente, além de já introduzir a
perspectiva, tão importante para a antropologia quanto para a teologia, do problema da
alteridade. O sincretismo torna-se uma maneira própria de ressignificar o “próprio” tendo o
“outro” como meta.

Porém, essas dissonâncias e ambigüidades parecem ser típicas dos saberes das ciências
humanas em geral, principalmente em relação a seus conceitos clássicos como, por exemplo,
o termo “cultura” para a Antropologia e o próprio termo “Religião” para as Ciências que
levam esse nome. Cultura e Religião são noções profundamente polissêmicas. Porque o
sincretismo também não seria? Uma vez que, mesmo que se aplique o termo para fenômenos
especificamente religiosos, não deixam esses fenômenos de serem culturais. Um exemplo
disso é que algumas críticas feitas ao uso do termo “Cultura” são basicamente as mesmas
feitas em relação ao sincretismo. O antropólogo norte-americano Marshall Sahlins, por
exemplo, vai afirmar que existem as chamadas controvérsias morais e políticas em relação ao
uso antropológico do conceito de cultura “[...] porque marcaria diferenças de costume entre
povos e grupos, sobretudo quando, ao fazê-lo, visa populações subordinadas dentro de
regimes políticos opressivos”22. Ou seja, reminiscências da compreensão de que a formulação
do conceito de cultura ainda paga tributo ao seu transfundo de formação colonialista, mesmo
em tempos considerados pós-coloniais. Isso ocorre, de certa maneira, com a noção de
sincretismo. Basta lembrar que a história do uso do conceito na antropologia brasileira e,
quando usado na teologia, o foi para explicar as múltiplas conseqüências do contato
intercultural e de ressignificações religiosas entre as culturas e religiosidades “afro” com o
catolicismo ibérico, via de regra, em contextos de dominação cultural23. Daí a idéia do
sincretismo como “resistência” e “disfarce” das culturas dominadas frente às dominadoras e,
consequentemente, a acusação de se manter, com o termo “sincretismo”, uma ideologia que
acaba reforçando a própria lógica desta mesma dominação ou “[...] um meio ideológico de
vitimização” (SAHLINS, parte I, 1997). Com a crítica desta crítica, pois reduz a cultura (e o

22
Cf. SAHLINS, M. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um
“objeto” em via de extinção. Parte I. Mana. Rio de Janeiro, v.3, n.1, 1997.
23
Conforme o texto de Roger Bastide intitulado “Problems of Religious Syncretism”, In: LEOPOLD, A. &
JENSEN, J. Syncretism in Religion. A Reader, p. 113ss.
29

sincretismo) a uma função meramente instrumental e funcionalista, redescobre-se que as


culturas são processos profundamente relacionais, baseados no poder de significação
simbólica que os atores culturais atribuem a ela, poder este que não nega as resistências e
“disfarces”, mas que ocorre muito mais pela lógica própria e inventiva (que muitas vezes não
obedece aos “cânones” da lógica ocidental) dos seres humanos “ordinários” (para lembrar
Michel de Certeau) performativos destas mesmas experiências culturais e, no caso,
sincréticas. Ao analisar alguns casos específicos de sincretismo entre tradições afro e o
catolicismo, o teólogo e cientista da religião brasileiro Afonso Ligório Soares afirma que a
mensagem cristã “hibridiza-se”, sem desconsiderar sua fé norteadora, “[...] nas metáforas que
aprende de outras religiões, embora não abra mão de sua força metonímica” 24. “Metaforizar”
as realidades culturais (e sincréticas) porque, somente assim, é possível perceber os múltiplos
sentidos que as pessoas atribuem às suas realidades, ou seja, é preciso que o sincretismo
ganhe polissemia e os termos do discurso adequem-se melhor aos fenômenos que se pretende
estudar. Não é basicamente isso o que fazem vários antropólogos hoje ao assumir o
sincretismo com suas muitas faces e, atribuindo a essas múltiplas faces várias metáforas
interpretativas? Como exemplificado na seguinte citação: “[...] pastiche, patchwork,
marronização, híbrido, mélange, mulatismo, aculturação: todos ligados ao jogo, por
excelência ambíguo, da chamada contaminação” (CANEVACCI, 1996, p. 13).

O mesmo André Droogers afirma que as metáforas são a condição de possibilidade de


todo discurso religioso e, consequentemente, sincrético (DROOGERS, 2004, p. 219). Isso
deveria levar as ciências antropológicas a problematizarem mais a própria idéia de
“metáfora”, o que foge da proposta dessa tese. Pelo menos indica que, senão para todos, mas
para as correntes mais hermenêuticas do saber antropológico (como o próprio Sahlins e
Clifford Geertz)25, é impossível pensar os fenômenos culturais e, no caso desta tese, o
sincretismo, fora das representações de valores e sentidos que os seres humanos produzem.
Ora, é sabido que a teologia deve sentir-se mais à vontade (nem todas, é claro) no campo da
hermenêutica dos símbolos e metáforas, pois seu “objeto” não pode ser apreendido fora
dessas perspectivas, para lembrar o que já dizia Paul Tillich e, mais recentemente, o teólogo

24
Cf. SOARES, A. M. L. No Espírito do Abbá, p. 208.
25
Isso não significa, necessariamente, que Sahlins e Geertz assumam o mesmo método antropológico. Aqui no
Brasil antropólogos como Roberto Cardoso de Oliveira falaram muito do “paradigma hermenêutico” nas
ciências antropológicas em obras, tais como, “Sobre o Pensamento Antropológico”, texto original de 1987.
Cardoso de Oliveira fala em quatro grandes paradigmas que moldaram o saber antropológico: o paradigma
racional-estruturalista; estrutural-funcionalista; culturalista e o hermenêutico. Veja-se em: CARDOSO DE
OLIVEIRA, R. Sobre o Pensamento Antropológico, p. 15ss.
30

canadense Roger Haight (só para ficar nesses exemplos)26. O mesmo pode ser dito das
compreensões sobre o sincretismo em Afonso Soares, tal como citado anteriormente.

Neste capítulo o principal objetivo, ainda que de forma mais panorâmica, será a
análise das polissemias da noção de sincretismo, como forma de situar o leitor e a leitora em
um quadro teórico referencial mais amplo que será melhor delimitado e aprofundado no
capítulo seguinte. Essa polissemia ocorre, primeiro, no discurso antropológico e,
posteriormente, no teológico, ainda que o sincretismo, em dadas reflexões desses saberes, não
seja assim nomeado. A hipótese de trabalho é a seguinte: mais do que tentar enquadrar o
sincretismo em um conceito de caráter o mais amplo possível, sem perder sua especificidade,
é necessário entender que o mesmo só consegue “sustentabilidade” epistemológica em um
“arco conceitual” ou em uma pluralidade de definições (cada uma, por sua vez, com sua
“polissemia”). Isso para dar conta de fenômenos muito complexos, atravessados por diversos
níveis, sentidos e transversalidades outras. No fundo, o que se pergunta mesmo e se
problematiza é: a que se refere o sincretismo? Até que ponto não se “prende” o termo a uma
só dada conotação em função da manutenção dos “objetos” culturais e religiosos a que
pretende explicar? Esse parece ser o desafio, tanto para a antropologia quanto para a teologia.
Assim, o percurso desse primeiro capítulo constitui-se em três seções amplas, mas não menos
reflexivas, em torno do estado atual da questão. Em uma primeira seção (1.1), esboça-se um
percurso interpretativo sobre a construção histórica da noção de sincretismo, justamente com
a preocupação de perguntar a que experiência cultural e religiosa o termo torna-se referente.
Nas duas seções seguintes a principal preocupação é “repertoriar” os percursos e percalços de
leituras sócio-antropológicas (1.2) e de leituras teológicas (1.3) acerca do problema do
sincretismo religioso, nos termos afirmados anteriormente. É preciso prosseguir.

26
Haight, por exemplo, define a Teologia como “[...] a interpretação da realidade à luz dos símbolos cristãos.
Em termos mais gerais, a teologia é uma disciplina que interpreta o todo da realidade – existência humana, a
sociedade, a história, o mundo e Deus – nos termos dos símbolos da fé cristã”. Cf. HAIGHT, R. Dinâmica da
Teologia, p. 238. Por sua vez, os símbolos são “[...] qualquer fragmento da realidade finita, qualquer coisa,
evento, pessoa, situação, conceito, proposição ou narrativa que medeie à consciência humana algo diverso de si
mesmo”, cf. Idem, Ibidem, p. 241. Haight reconhece sua dependência da teoria dos símbolos religiosos de
alguns outros teólogos, dentre os quais o próprio Tillich. Paul Tillich reforça esse aspecto da mediação de todo
símbolo que, por sua vez, consiste em qualquer elemento da realidade condicionada/cultural que expressa a
experiência de sentido incondicional da vida, captada pela fé. Tillich afirma: “O objeto da fé necessariamente
possui um caráter simbólico; quer dizer muito mais do que expressa. Seja que se creia em uma pedra sagrada
ou em um Espírito pessoal onipotente, a intenção da fé sempre transcende o objeto da fé”. Cf. TILLICH, P.
Filosofía da La Religión, p. 68. Para uma teoria dos símbolos religiosos em Tillich veja-se TILLICH, P.
Dinâmica da Fé, p. 30-35.
31

1.1. BREVE HISTÓRICO INTERPRETATIVO DA NOÇÃO DE SINCRETISMO

Em 1970 Michel de Certeau, juntamente com Dominique Julia e Jacques Revel


publicaram o texto “La beauté du mort: Le concept de „culture populaire‟” (“A Beleza do
morto: o conceito de „cultura popular‟”)27. O objetivo principal desse texto é analisar como a
noção de “cultura popular” é construída na crítica literária e histórica moderna,
principalmente a partir do século XVIII, tendo por base o contexto francês. Essa construção,
segundo Certeau, Revel e Julia revela que a erudição acadêmica, ao analisar o “popular” em
textos como a literatura folclorista e a literatura de colportage retira, justamente, o popular do
povo, reservando-o aos “[...] letrados ou aos amadores”28. Nesse sentido, a ironia no título: a
beleza está no “assassinato” de uma pretensa cultura popular pelos cânones acadêmicos, pois
o que se celebra com o termo “popular” só habita o funeral de uma suposta cultura erudita. A
exotização, a ingenuidade, a “inocência” e outros qualificativos são a expressão erudita e
“bela” de um cadáver: a cultura popular. Justamente quando as culturas e religiões não
possuem mais meios de se defender no contato intercultural, posto que revela desníveis de
poder, é que acionam-se os saberes eruditos para fazer esse trabalho defensivo:

Ela [leitura erudita de temas populares] pressupõe que o popular seja o


começo da literatura e a infância da cultura; que a pureza de uma origem
social esteja enterrada na história; que uma genialidade primitiva seja
incessantemente adaptada pela literatura e deva ser incessantemente
preservada e reencontrada [...] A reconhecida incerteza quanto às fronteiras
do domínio popular quanto à sua homogeneidade diante da unidade profunda
e sempre reafirmada da cultura das elites poderia justamente justificar que o
domínio popular não existe ainda porque somos incapazes de falar dele sem
fazer com que ele não mais exista (CERTEAU, 2005, p. 68; 70-1)

Conquanto essas reflexões não sejam especificamente sobre a noção de sincretismo,


servem como um bom horizonte reflexivo para se pensar os usos em relação ao conceito por
parte da literatura especializada. Ao longo da história da construção do termo é possível
perceber, desde uma rejeição epistemológica ou de princípio em relação à noção de
sincretismo, desde o assumi-lo, paradoxalmente, como o depurador da “pureza” de uma
origem cultural perdida e camuflada pelos asseios positivistas, dogmáticos e objetivistas de
várias ciências modernas. Essas ciências, cada uma a seu modo, enxergavam nas “misturas”
27
Sobre Michel de Certeau e suas contribuições teóricas para essa tese, veja-se o capítulo 2.
28
CERTEAU, M. de et. al. A beleza do morto. In: CERTEAU, M. de. A Cultura no Plural, p. 56. A palavra
“colportagem” vem do francês colporteur que traduz, por sua vez, a experiência do mascate, do vendedor
viajante, do “livreiro ambulante”.
32

culturais e religiosas um crime contra os referidos “asseios” afirmados anteriormente. Talvez,


provocado pela citação anterior, fosse possível perguntar: até que ponto, tanto os defensores
como os detratores da noção de sincretismo celebram a “beleza de um morto” ou, em outras
palavras, quanto mais se fala, mais se “mata” o termo?

Uma boa reconstrução histórica da noção de sincretismo encontra-se no próprio texto


de Droogers citado no início do capítulo. De fato, o antropólogo holandês antecipa teses e a
reflexão sobre vários autores que reapareceriam, anos depois, na coletânea “Syncretism in
Religion: a Reader” (“Sincretismo na Religião: um Guia”), texto de 2004, organizado pelos
historiadores da religião Anita Leopod e Jeppe Jensen. Vários analistas, além de Droogers, tal
como o antropólogo e historiador das religões Charles Stewart (2004, p. 264) enfatizam que,
na origem do termo, remontado a Plutarco (afirmado no início do capítulo), havia uma
conotação positiva marcada pelo princípio/valor da união e superação das divergências (ainda
que temporariamente). Isso é compreensível em um período histórico de conquistas e tensões
marcadas pelas políticas do Império Romano no primeiro século. A ascensão e extensão da
própria religião cristã como braço político sobre a Europa, nos muitos séculos seguintes, vão
começar a consolidar uma conotação mais negativa no uso do termo. De acordo com o
antropólogo italiano Massimo Canevacci isso ocorreu, basicamente, porque a história do
Cristianismo foi uma constante luta em negar, em prol das “coerências dogmáticas” e dos
rearranjos políticos em torno da unidade identitária cristã na Europa, aquilo que caracterizou
sua gênese: a “mistura” de múltiplas tendências. Ao sincretismo atrelou-se a idéia de
superficialidade, alianças e uniões momentâneas e instáveis, em contraposição “[...] às
„profundezas‟ filosófico-religiosas” (CANEVACCI, 1996, p. 15).

Tentativas de reabilitação do termo em um acento mais positivo, mesmo em meio a


uma cultura européia majoritariamente cristã, ocorreram ainda no século XVI e XVII. Já foi
citado no início do capítulo Erasmo de Roterdã. Também a experiência, entre os séculos XVI
e XVII do teólogo luterano George Calixtus que, em uma Europa fracionada pelos conflitos
religiosos oriundos da Reforma Protestante, propôs uma unificação de várias denominações
cristãs. Sua proposta encontrou muita resistência e foi qualificada como uma ameaça herética
em termos de uma reunião “bagunçada” (no inglês, jumble) e inconsistente de teólogos,
discussão essa que continuou ao longo do século XVII e tornou-se conhecida como as
“controvérsias sincréticas” (STEWART, 2004, p. 264-5). De certa forma, antecipando alguns
conceitos do segundo capítulo, na essência da discussão sobre o sincretismo, ainda que o
mesmo não fosse utilizado como categoria analítica e epistêmica para se interpretar as
33

possíveis dissonâncias nos encontros religiosos e nas ambigüidades da própria religião (no
caso a cristã), estabelecem-se os conflitos. Tais conflitos entre poderes religiosos
“heterônimos” e a vivência mais “teônoma” da experiência cristã, onde essa heteronomia
“exorciza” o sentido “demônico” da própria fé cristã, em acento tillichiano, e o jogo de poder
inventivo de grupos cristãos ao estabelecer táticas “sincréticas” aos lugares próprios de poder
estabelecidos pelas estratégias das Igrejas dominantes, em estilo certeauniano29. A conotação
negativa vai alastrar-se, juntamente, com o expansionismo missionário e colonialista de
muitas igrejas cristãs para além das fronteiras européias. Isso torna o problema do sincretismo
mais complexo, pois entra em cena, agora, a radicalização do contato com um “outro”, ou
seja, com culturas religiosas que operam lógicas completamente diferentes (heterológicas) do
ocidente “cristão”. Esse problema perdurará até o século XX enquanto permanecer as
fronteiras colonialistas dos processos civilizatórios modernos e cristãos. Vale lembrar que a
nascente ciência antropológica na segunda metade do século XIX, muito influenciada pelo
pensamento evolucionista clássico tinha, nas narrativas missionárias, muito das suas fontes de
compreensão das outras culturas (principalmente não ocidentais). Essa herança colonialista
vai reforçar, em setores antropológicos e teológicos do século XX, uma ojeriza ao termo
sincretismo por enxergar no mesmo um discurso ideológico de manutenção da coabitação de
elementos cristãos, considerados símbolos de dominação, com elementos que denotam a
“pureza nativa” de outras experiências religiosas30. Nega-se o sincretismo em prol de uma
entidade pura chamada “cultura”: a beleza do morto.

No século XIX a “Escola de História das Religiões”31 procurou estabelecer definições


mais objetivas acerca do sincretismo, principalmente ao olhar não somente para os encontros
interculturais entre Cristianismo e os povos “outros”, alvo das ações missionárias. Passa a
29
Conforme afirmado na Introdução da Tese, o lugar dos conceitos certeaunianos de táticas e estratégias para a
construção de uma teoria do sincretismo religioso será desenvolvido no segundo capítulo. Assim, não há maior
necessidade de explicitá-los no momento. As noções tillichianas de heteronomia e teonomia serão, ainda que
de forma suscinta, definidas no segundo capítulo, muito embora não seja o foco dessa tese, ao contrário da
noção de demônico.
30
No caso da antropologia. Na teologia, o raciocínio pode ser invertido.
31
Por “Escola de História das Religiões” remeto a um movimento intelectual ocorrido na segunda metade do
século XIX, na Europa, principalmente a partir do contexto do historicismo alemão. O método histórico-
comparativo passa a ganhar terreno, principalmente a partir dos textos do historiador alemão Max Müller. De
acordo com Filoramo e Prandi “A ´história das religiões´, entendida como disciplina autônoma, com objeto e
métodos próprios, representa uma conquista cultural de libertação, por parte da dimensão religiosa e de suas
dinânicas, dos vínculos de tipo teológico estabelecidos na segunda metade do século XIX. [...] Ia tomando
forma, então, embora com fortes conotações positivistas, um conceito de ciência da religião cujos critérios
metodológicos deviam fundar-se no método histórico-filológico: coleta de documentos, seu exame a partir de
um sólido background linguistico, sua colocação nos respectivos contextos históricos, pesquisa das leis de
desenvolvimento dos sistemas religiosos, dos mais simples aos mais complexos, extensão do método
comparativo já amplamente utilizado pelas ciências da natureza”. Cf. FILORAMO, G. & PRANDI, C. As
ciências das religiões, p. 59; 61.
34

haver toda uma investigação acerca das religiões antigas, principalmente as de corte helenista,
cultos orientais do antigo Império Romano, religiões de “mistério” e de rituais “extáticos”,
dentre outros. Em princípio, uma tentativa de reabilitação positiva do termo sincretismo ao
pontuar, com vigor, o aspecto da “mistura” de diversas fontes que caracterizam todos os
movimentos religiosos, principalmente no período de formação desses movimentos e nas
“lacunas” abertas pelas grandes religiões32. Essa última frase é importante porque houve uma
tendência de atrelar o sincretismo à descrição objetivista de movimentos “politeístas” ou
“polidemonistas”, para lembrar Gerardus van der Leeuw em seu clássico “Fenomenologia da
Religião”, publicado já no século XX, em 1933. Esse historiador da religião opera uma grande
contribuição ao desenvolver sistematicamente o aspecto sincrético de toda manifestação
religiosa, inclusive do Cristianismo. Todavia, o sincretismo é visto como uma espécie de
“estágio” dentro de um processo mais longo, onde o “homem religioso” (homo religiosus)
necessita reconfigurar seu universo de sentido diante de muitas variáveis/fontes. Assim, van
der Leeuw utiliza o conceito de “transposição”, ou seja, muda-se (“transpõe-se”) o
significado, mesmo que as formas culturais em contato mantenham-se constantes
(RUDOLPH, 2004, p. 71).

Várias dessas leituras, principalmente no século XIX, procuraram avaliar o


sincretismo longe das idiossincrasias teológicas atreladas ao termo. Todavia, parecem refletir,
com força, uma leitura “positivista” e evolucionista do fenômeno religioso, uma vez que o
sincretismo, no final das contas, corre o risco de ser superado por acomodações em etapas
posteriores rumo a um “progresso da religião”. Se, por um lado, valoriza-se o aspecto das
conformações sincréticas na origem e no desenvolvimento de todas as religiões, criticando a
vontade de poder por trás de leituras “puristas” originárias, por outro lado corre-se o risco de
esvaziar a dinâmica inventiva do próprio fenômeno sincrético ao colocá-lo em função da
“estabilidade” de sistemas religiosos mais amplos e consolidados. Muito embora van der
Leeuw intui, por conta de seu acento fenomenológico, a importância de não tomar o
sincretismo em um sentido meramente objetivista e descritivista pois, do ponto de vista dos
seres humanos que vivenciam suas experiência sincréticas, a luta pela compreensão do sentido
e até do sem-sentido é fundamental, ainda que as formas culturais não devam ser vistas tão
estanques assim da produção do significado.

32
“Grandes religiões” como consideradas as monoteístas: Cristianismo, Judaísmo e Islamismo, por exemplo.
RUDOLPH, K. Syncretism: From Theological Invective to a Concept in the Study of Religion. In: LEOPOLD,
A. & JENSEN, J. Syncretism in Religion: a Reader, p. 68.
35

No campo antropológico a história da noção de sincretismo passa, obrigatoriamente,


pela figura do antropólogo norte-americano Melville Herskovits que, a partir da noção de
“aculturação”, enfatiza a perspectiva da resistência e da reinterpretação de elementos
culturais que trata-se, por sua vez, de um “[...] processo pelo qual antigos significados se
adscrevem a novos elementos ou através do qual valores novos mudam a significação cultural
de velhas formas (HERSKOVITS apud FERRETTI, 1995, p. 48). Herskovits elaborou essas
teorias a partir de seus importantes estudos sobre o “negro” na África e nas Américas, espaço
interpretativo privilegiado que caracterizou os estudos sobre o sincretismo, notadamente no
Brasil. O sincretismo passa a ser, especialmente no campo religioso, a reinterpretação
afirmada anteriormente, sempre no contato entre o velho e o novo. Por mais que haja os
particularismos que relativizam as culturas33, há também homologias, ou seja, situações
similares que permitem o ponto de contato para as referidas reinterpretações. Surgirá daí a
noção das “sobrevivências” africanas em contextos outros que serão os elementos a serem
reinterpretados nos processos sincréticos. Muito embora essa noção de “sobrevivência” de
traços religiosos do “negro” em ambientes não africanos tenha sido questionada pelo seu peso
ideológico de justificação dos projetos colonialistas. O que fica ainda para o debate histórico é
o problema dos processos reinterpretativos, no horizonte da aculturação, tenderem a uma
“pacificação” dos processos sincréticos, a uma “síntese” compatível dos elementos
diferenciados, quando o sincretismo é, para outras avaliações antropológicas, como a de
Massimo Canevacci (1996, p. 22) “[...] a coexistência ou justaposição de elementos
considerados incompatíveis ou conceitualmente ilegítimos”. Por outra perspectiva, até que
ponto pode ir essa “coexistência ou justaposição”, não fica tão desenvolvido em Canevacci.

Aqui no Brasil e no campo mais específico das relações interétnicas entre sociedades
indígenas e a sociedade nacional, marcaram época as releituras da própria idéia de aculturação
feita por Roberto Cardoso de Oliveira ao propor a noção de “fricção interétnica”34. Cardoso
de Oliveira pensa essa noção a partir da situação de profundas agressões que as populações
indígenas sofreram por conta do avanço avassalador da sociedade nacional sobre seus
territórios, nos anos 50 e 60, e certa ineficácia do aparelho de estado responsável pelas
políticas indigenistas no Brasil. Por mais que se celebre o poder reinterpretativo das
alteridades envolvidas em contextos de contato, esse contato, no caso indígena, é marcado por

33
Herskovits foi herdeiro do culturalismo antropológico, inclusive, foi aluno de Franz Boas na Universidade de
Colúmbia, nos EUA. Esse “culturalismo particularista” consistiu em uma forte reação ao “universalismo” das
“sobrevivências culturais” tão em voga nas leituras evolucionistas. Cf. CASTRO, C. (Org.). Franz Boas.
Antropologia Cultural, p. 7-24.
34
Principalmente em sua obra “O Índio e o Mundo dos Brancos”, cuja primeira edição data de 1963.
36

relações de profundas oposições histórica e estruturalmente observáveis, em relação à


sociedade envolvente. Não são relações baseadas em um diferentismo “exótico”, mas
contrárias e contraditórias, onde uma tende a negar a outra (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1996, p. 46). As “sobrevivências” ou “fragmentos sincréticos” não são suficientes para
esconder o sentido, muitas vezes destruidor, do contato. Por outro lado as sociedades em
contato, indígenas e não indígenas, apresentam suas contradições “internas” também: “[...]
Daí entendermos a situação de contato como uma „totalidade sincrética‟ ou, em outras
palavras, [...] „enquanto situação de contato entre duas populações dialeticamente „unificadas‟
através de interesses diametralmente opostos, ainda que interdependentes, por paradoxal que
seja” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996, p. 47). É essa situação que Cardoso de Oliveira
qualifica pelo termo “fricção interétnica”, que implica também na análise dos processos
históricos performativos que levam à dita “fricção”.

A partir disso, algumas observações se fazem necessárias: a noção de “fricção”


pressupõe um cenário de desfragmentação das sociedades indígenas. Há também uma das
poucas menções ao uso do termo “sincretismo” em estudos de contato envolvendo populações
indígenas. É interessante pontuar que Cardoso de Oliveira, de certa forma, antecipa as
características de ambigüidade/paradoxalidade (contradição em ato) que iriam ganhar maiores
matizações posterior, inclusive nos estudos sobre o sincretismo. Essa ênfase não deixa perder
de vista que, principalmente quando se lida com populações indígenas, o elemento de
violentação, fruto da ambigüidade mencionada, também faz parte dos processos sincréticos.
Talvez essa perspectiva tenha tido certo “arrefecimento” em recortes mais atuais de uma
antropologia “pós-moderna” que passa pela revisão de seus próprios métodos. Essa “revisão”
não nega os processos históricos de violenta “desterritorialização” que muitos grupos
indígenas sofreram e sofrem, mas enfatiza mais o poder da efemeridade, de um “sem-sentido”
perturbador que radicaliza as criações e autonomias indígenas, quando essas mesmas
populações, ainda que lentamente, experimentam um crescimento no Brasil nas últimas
décadas35.

No percurso histórico-reflexivo proposto nesta seção do capítulo, Charles Stewart


afirma que as condições sociais hoje, em situações de liminaridade e exacerbação de
fronteiras, são potencializadas pelos fenômenos da globalização, das migrações internacionais

35
Para o crescimento das populações indígenas e os desafios daí decorrentes veja-se LEVY, M. S. F.
Perspectivas do crescimento das populações indígenas e os direitos constitucionais. Revista Brasileira de
Estudos de População. São Paulo, v.25, n.2, 2008.
37

e da formação de atores sociais “diaspóricos”, valorizando o sincretismo como um dos


possíveis conceitos interpretativos para esses fenômenos somados a outros, tais como
“creolização” e “hibridização” (STEWART, 2004, p. 274). Canevacci afirmará que, no final
das contas, há uma séria mudança na própria concepção de “cultura” o que refletirá também
na idéia de religião e, consequentemente, na idéia de sincretismo. Para o antropólogo italiano
a cultura não deve mais ser vista como algo unitário que garante a identidade de pessoas e
grupos, classes e etnias, mas como “[...] algo bem mais plural, descentrado, fragmentário,
conflitual” (CANEVACCI, 1996, p. 14). Nessa perspectiva, toda tentativa de se enquadrar os
fenômenos culturais e religiosos deparam-se com a “fraqueza” do discurso, pois esse mesmo
discurso vive na liminaridade e nas suas próprias ambigüidades. Prolifera-se, assim, um
conjunto de conceitos que intuem princípios representativos das relações culturais e religiosas
que, mesmo correndo o risco de análises mais superficiais, lutam para que o discurso sobre o
sincretismo não se torne novamente um “belo morto” (Certeau) nas análises científicas.
Possivelmente, afirma Stewart, o sincretismo deverá ser melhor compreendido hoje não como
um “conceito”, mas como um conjunto, um “sistema” teorético “[...] que focaliza sua atenção
precisamente sobre temas de acomodação, contestação, apropriação, indigenização e uma
multidão de outros processos de dinâmica intercultural” (STEWART, 2004, p. 275). Tamanha
“multidão” de processos ainda coloca o problema da possível inespecificidade da noção de
sincretismo que, também, tem seu capítulo específico na história de usos e desusos do
termo36.

Ao caminhar por uma perspectiva mais teológica, o percurso da noção de sincretismo,


pelos motivos já levantados no início dessa seção, foram também complexos. O teólogo e
cientista da religião Antonio Magalhães elenca alguns aspectos da dificuldade do discurso
teológico, tanto católico como protestante, em relação ao termo. Nos termos desse autor, a
teologia católica debateu-se com o desafio de reconfigurar seus horizontes teológicos ao
tentar superar a dicotomia entre “religião oficial” e “religião popular”. Ora acontecia uma
mútua rejeição, levando a uma teologia sem povo religioso e, de outro, a ausência de contato
do povo com uma rica tradição. Ora aconteciam os esforços de complementaridade, o que
sempre gerava a pergunta se somente a religiosidade popular deveria ser “complementada”
pela “oficial”, no sentido de depurá-la e “melhorá-la”. Tal atitude, segundo Magalhães, “[...]
revela um desconhecimento básico da história das igrejas e dos cristianismos: aquilo que se

36
Conforme afirma o historiador Serge Gruzinski: “[...] Tudo bem pesado, sincrético não seria, pois, o conjunto
do real? E isso tornaria tão geral o conceito de sincretismo que ele passaria a ser supérfluo”. In: GRUZINSKI,
S. O Pensamento Mestiço, p. 46.
38

tem como religião oficial, normativa, é resultado de um longo processo, no qual elementos
das diversas religiões populares foram crescendo em influência”37. Nesse aspecto o
sincretismo, atrelado a esses movimentos marginais e “populares” ou era rejeitado de saída ou
era necessário imprimir um esforço teológico imenso para que as “misturas” fossem mais
claras e coerentes. No campo protestante a dificuldade com a noção de sincretismo esbarrou
nas radicais separações entre a noção de revelação e religião. Essa, uma construção humana
imiscuída nos dilemas e ambigüidades culturais. Aquela, captada pela fé e depurada pela
Palavra de Deus, propiciava acesso seguro a esse mesmo Deus. O sincretismo passou a ser
visto como uma perigosa mistura da revelação com a história e a cultura 38. Certamente que
essa dicotomia já foi superada por algumas correntes teológicas. Muito embora essa dicotomia
permaneça muito viva em círculos cristãos, como nos projetos missionários de muitas Igrejas,
fora da realidade das discussões acadêmicas, contribuindo, assim, para certa estigmatização
dos processos sincréticos, ao mesmo tempo em que se observa uma “renovação”
fundamentalista de afirmação da superioridade da fé cristã frente a outras expressões
religiosas.

A esses problemas levantados por Magalhães é possível somar outro: a retomada, com
vigor, em vários setores teológicos contemporâneos, tanto católicos quanto protestantes, do
poder conotativo da linguagem teológica expresso essencialmente em símbolos, metáforas e
metonímias. Isso faz com que o discurso teológico rompa com as “assepsias” de um discurso
teológico monolítico que ainda procura cercear a multiforme expressão do divino. Todavia,
abre-se o risco para o caráter profundamente ambíguo da linguagem simbólica expressiva do
divino e do próprio ser humano, gerando discursos teológicos que terão que lidar com
contraditoriedades em ato, o que significa passar pelo tema do sincretismo como a
radicalização da ambigüidade dessas configurações simbólicas. A seu modo, é para isso que
Afonso Ligório chama a atenção no final de sua obra “Interfaces da Revelação”. Está aí o
sincretismo, em sua controversa história (porque a noção de sincretismo, se não fosse
controversa, não seria sincretismo) para mostrar que “[...] a percepção e a recepção simbólicas
têm no ser humano uma anterioridade ontológica. Antes de discorrer (conceito) já intuímos
algo (símbolo) [...] A viagem de um sistema simbólico a outro não se reduz a uma tradução

37
Cf. MAGALHÃES, A. C. de M. Sincretismo como tema de uma teologia ecumênica. Estudos de Religião.
São Bernardo do Campo, n.14, 1998, p. 55.
38
Magalhães resgata como modelo ilustrativo dessa radical separação entre revelação e religião (enquanto
processo histórico e cultural) a Teologia de Karl Barth, teólogo reformado que viveu em fins do século XIX e
no século XX. Karl Barth foi contemporâneo de Paul Tillich onde esse teólogo luterano já criticava a
dicotomia barthiana entre religião e revelação. Cf. Idem, ibidem, p.55ss.
39

conceitual”39. Essa argumentação parte de um teólogo e cientista da religião, mas bem pode
servir para o discurso antropológico, até porque a Teologia não deve abrir mão de seus
espaços culturais, caso contrário, nem haveria a possibilidade de se formular os horizontes
simbólicos, como diria Paul Tillich. De fato, a maneira de se projetar a discursividade define
o alcance da noção de sincretismo, seja para aqueles que rejeitam o termo, seja para aqueles
que o defendem. Todavia, parece que o não considerar a fundo as implicações da linguagem
simbólica e suas ambiguidades, essenciais para os estudos de religião, principalmente nas
situações de contato intercultural entre indígenas e não indígenas (enquanto estudo de caso), é
negar o espaço promissor de se pensar o sincretismo na fronteira e como fronteira do
pensamento. É, assim, ao retomar o texto de Michel de Certeau no início da seção, a principal
forma de matar o “sincretismo”, mesmo que se crie uma imagem conceitualmente bela do
mesmo. Nas próximas seções várias dessas questões retornarão de forma mais específica, o
que ajudará a delinear a compreensão do sincretismo em autores específicos, mostrando que a
“simbólica sincrética” constitui-se não a partir de uma só dada conotação, mas a um conjunto,
a “arcos” conceituais. Falemos, primeiro, da linguagem antropológica na próxima seção.

1.2. PERCURSOS E PERCALÇOS DE UMA ANTROPOLOGIA DO SINCRETISMO


RELIGIOSO

De acordo com o antropólogo Sérgio Ferretti, em várias vozes antropológicas da


atualidade, a ideia de sincretismo não está restrita ao ambiente religioso, mas é expressão
mais ampla da própria cultura. Assim o faz o sociólogo chileno Cristián Parker Gumucio, que
utiliza a expressão “pensamento sincrético” para designar o conjunto de crenças, pensamentos
e opiniões populares sobre o mundo, a sociedade, a política, a cultura, a família, a vida e o
cosmo (PARKER GUMUCIO apud FERRETTI, 2004, p. 13). Embora fale para a realidade
latino-americana especificamente, é possível perguntar a Parker se esse pensamento sincrético
diz respeito somente a “opiniões populares”. Definição tão ampla ainda deixa o objeto
disperso e corre o risco, consequentemente, de não definir o método. Já o antropólogo italiano
Massimo Canevacci, mesmo reconhecendo que o termo sincretismo esteve atrelado mais ao
campo religioso, reconhece que se constitui em uma chave interpretativa importante para a

39
Cf. SOARES, A. M. L. Interfaces da Revelação, p. 233; 235.
40

compreensão de culturas atuais extremamente “dialógicas e polifônicas”40. Ao partir do


pressuposto das reinterpretações em torno do conceito de “cultura”, esta mesma noção de
cultura passa a ser vista pela contemporaneidade antropológica não mais como algo unitário
que une os indivíduos, classes, grupos e etnias, mas torna-se algo bem mais plural, fronteiriço
e fragmentado, conforme já afirmado na seção anterior41. O sincretismo, assim, torna-se um
conceito paradoxal: tenta ser uma palavra geral para traduzir fenômenos extremamente
particulares. Daí sua necessidade de ser um conceito “camaleônico”, “híbrido”, para dar conta
das multifacetadas expressões culturais. Aliás, Canevacci utiliza muito o conceito de
“hibridação” para essas muitas interações o que, de certa maneira, o aproxima de outro
antropólogo, o mexicano Néstor Canclini. Este, por sua vez, mais “comedido” que Canevacci
no uso de metáforas para representar e significar a pluralidade cultural.

Cumpre aqui, ainda, a extensão de uma palavra reflexiva sobre Massimo Canevacci.
Esse antropólogo pode ser considerado um leitor “pós-moderno” (ou “pós-paradigmático”,
para usar um termo presente nas palavras do próprio autor) das condições de produção das
etnografias, pressuposto fundamental para os saberes antropológicos. Isso porque ele opera
uma “desconstrução” do saber antropológico moderno ao considerar que essa mesma
modernidade insistiu em uma visão unitária, imobilista, de reproduções permanentes, firmezas
teóricas e grandes paradigmas estruturadores da realidade em relação ao seu objeto
privilegiado: a cultura. Propõe, assim, que as culturas sejam pensadas na sua fluidez,
desordenadas, instáveis, “sujas”, “irracionais”, no sentido de se oporem a tudo aquilo que é
“[...] racional e monológico do discurso iluminado” (CANEVACCI, 1996, p. 7). Como a
crítica é referente a uma modernidade iluminista, estamos diante de um antropólogo, de fato,
pós-moderno ou que recobra trajetórias (ainda que “diaspóricas”) na crise da modernidade?
Para Canevacci, no sincretismo encontra-se “[...] o fim da lamentação pela perda da origem,
da identidade fixa, da memória restauradora, que angustia a maioria dos cientistas sociais”
(CANEVACCI, 1996, p. 10). Nesse sentido, Canevacci vai instaurar aquilo que foi insinuado
na introdução deste capítulo: uma “metaforização” dos conceitos, porque a realidade cultural
não é mais aquilo que fazemos dela em termos de representação. O sincretismo passa a ser

40
Cf. FERRETTI, S. F. Sincretismo, Religião e Culturas Populares. In: Caminhos. Goiânia, v.2, n.1, 2004, p.
13. A obra de Parker que Ferretti faz menção é “Religião popular e modernização capitalista: outra lógica na
América Latina”, de 1996. Já a obra de Canevacci é “Sincretismos: uma exploração das hibridações
culturais”, de 1996.
41
CANEVACCI, M. Sincretismos: uma exploração das hibridações culturais, p. 14.
41

“glocal”42 e envolto em uma “dialética” própria. Própria, porque não repete uma dialética
típica da realidade que se preocupou muito mais com superações, nos ordenamentos de teses e
antíteses em busca de sínteses. Para Canevacci:

O que a dialética sintética limpa, ordena, supera, a dialética sincrética suja,


desordena, mistura, fragmenta e sobrepõe. Transfere. [...] A dialética
sincrética – um contágio-oxímoro – não se apossa da coisa exterior, nem a
anula num degrau superior; ela mantém suas plurivocalidades, as
irredutíveis alteridades, e faz com que girem, torna-as inquietas como coisa
densa que está dentro, ao lado e fora do sujeito (CANEVACCI, 1996, p.
39)

Não satisfeito com as múltiplas possibilidades de significação discursiva, pois parece


que a percepção do que é a cultura resume-se a “jogos lingüísticos”, o referido antropólogo
vai cunhar outro neologismo: “Dia-Sin”. Esse termo surge justamente para qualificar e
corroborar a “Dialética sincrética” na citação longa anteriormente. Mas a “dialética sincrética
– Dia-Sin” não deixa de ser “dialética”. Além disso, parece que na citação não há espaço nas
expressões culturais para o que não seja sincrético. O que equivale dizer, em termos
antropológicos, que tudo parecer ser um grandioso sincretismo. Reminiscências de um
passado moderno, pensamento esse que parece tender à totalidade? Seria o sincretismo o novo
“super-orgânico”43, contrariando justamente aquilo que pretende significar? Se for assim,
parece que Canevacci não é tão pós-moderno assim.

Voltemos, agora, ao antropólogo mexicano Nestor Canclini. No sentido lato, Canclini


chama de “hibridações culturais” o que se poderia chamar de “sincretismos culturais”. Para
ele a hibridação (termo que toma emprestado da biologia genética) denota processos sócio-
culturais nas quais estruturas ou práticas discretas que existiam de forma separada,
combinam-se para gerar novas estruturas, objetos e práticas44. Porém, como “funciona” este
processo de hibridação? Canclini responde que, principalmente, através da criatividade

42
Neologismo criado por Canevacci para qualificar o que julga ser a atual fase do pensamento “pós-cultural” de
forte tensão “[...] descentrada e conflitual entre globalização e localização: ou seja, entre processos de
unificação cultural – um conjunto universal de fluxos universalizantes – e pressões antropofágicas „periféricas‟
que descontextualizam, remastigam, regeneram” Cf. CANEVACCI, M. Sincretismos: uma exploração das
hibridações culturais, p. 23.
43
Em referência ao antropólogo norte-americano Alfred Kroeber (1876-1960) que, na primeira metade do século
XX, rompeu com os puros determinismos biológicos como explicações para o comportamento humano. Por
mais que haja determinações biológicas, o ser humano é ser da cultura, é produtor de cultura. A cultura está
acima de qualquer outra experiência, determinando todas: ela é “super-orgânica”. Se tudo, culturalmente
falando é sincrético, é nesse sentido que caberia a pergunta se o sincretismo é esse “super-orgânico”.
44
CANCLINI, N. G. Noticias recientes sobre la hibridación. In: HOLANDA, H. B. de e RESENDE, B. (orgs.)
ArteLatina, p. 64. De forma mais detalhada conferir em CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas. São Paulo:
EDUSP, 1998.
42

individual e coletiva, amparando-se no conceito “Bourdieuano” de reconversão: trocas


dinâmicas dos muitos capitais econômicos e simbólicos entre as culturas envolvidas. Assim,
Canclini afirma que o conceito de hibridação cultural ajuda-nos a relativizar a noção de
identidade para além da pretensão de estabelecer estas mesmas identidades de forma “pura”,
“autêntica”, “a-histórica” e “estereotipada”: “[...] Estudar processos culturais, por isto, mais
que nos levar a afirmar identidades auto-suficientes, serve para conhecer formas de situar-se
em meio à heterogeneidade e entender como se produzem as hibridações” (CANCLINI, 2000,
p. 67). Mais do que identidades, poder-se-ia falar em alteridades. Com isto, Canclini coloca
um problema importante a ser pensado em relação específica aos sincretismos religiosos. Na
sua tentativa de precisar os conceitos, este antropólogo afirma uma polissemia na idéia de
hibridação. Assim sendo, mestiçagem seria a nomeação das hibridações étnicas e raciais e
sincretismo a nomeação das hibridações religiosas (no âmbito das crenças). Esta especificação
é necessária, segundo este antropólogo, para detectar aspectos e contradições mais próprias
dessas interações. Além disso, esses conceitos ajudam a desconstruir o mito sempre presente
das identidades originárias, puras e imaculadas que fundaram ideologias estigmatizadoras e
preconceituosas na história do ocidente.

Em relação a psicóloga e antropóloga Maria de Lourdes Alcântara, a mesma utiliza


também o termo “hibridismo” para qualificar os processos culturais, principalmente em
situações de construção de identidades em “trânsito”, em situação de “fronteira”, como a vida
dos jovens indígenas da Terra Indígena de Dourados, objeto de suas pesquisas45. A referida
pesquisadora informou ao autor dessa tese, que no hibridismo reside uma força metonímica
que qualifica um “entre”: o híbrido não é uma coisa nem outra, nem uma síntese. Constitui-se
em permanente reelaboração, ainda que corra o risco da efemeridade, como o são muitas
relações culturais na atualidade. A autora critica a noção de sincretismo, uma vez que enxerga
nesse termo, na conotação específica de “união”, “mistura”, um desejo de superação, de
aproximação, não transmitindo a idéia de “entre”, de “trânsito”. Maria de Lourdes Alcântara
evocou, também, a metáfora do “caleidoscópio”, de inspiração em Pierre Bourdieu, ou seja, a
cultura como um habitus, estrutura que se faz história (para lembrar a definição de Pierre
Sanchis): por mais que haja os elementos estruturantes que criam esse habitus, existe uma
miríade de possibilidades combinatórias entre esses elementos, como a estrutura limitada do

45
Essa autora será um pouco mais comentada no capítulo 3.
43

caleidoscópio não impede os “giros” que formam as diferentes figurações: essa seria a
dinâmica cultural, multifacetada46.

Em continuidade a essas leituras atuais, outro antropólogo que tem se notabilizado


pelos estudos acerca do sincretismo religioso, principalmente em sociedades africanas em
contato com várias faces da missão cristã, é o francês André Mary47. Mary fala em “lógicas
sincréticas” quando, paradoxalmente, atrela-se à idéia de sincretismo, comumente, uma
“alógica” ou “ilógica”. Nas suas próprias palavras:

Falar de lógicas (mesmo tendo o cuidado de colocar a palavra no plural) em


associação com um termo que é geralmente sinônimo de acumulação ou
mistura mais ou menos incoerente de elementos heteróclitos pode parecer
paradoxal [...] Para os proponentes da cultura “pós-moderna” o problema
não se põe: a reabilitação de um sincretismo “polifônico” e “barroco”
convida não somente a cultivar a coabitação dos contrários mas a assumir,
serenamente, o contraditório como tal ou a “contraditoriedade” em ato
(MARY, 2000, p. 27)

Na citação de Mary está presente uma definição de cultura bem atual enquanto
“contraditoriedade em ato”. Por seu turno, o sincretismo seria a essência dinâmica dessa
contraditoriedade. Todavia, Mary não se furta a criticar certa tendência, estilo “canevacciano”
pós-moderno, de tomar essa contraditoriedade como algo dado e não sócio-culturalmente
construído. Isso implica em ser problematizado. Porém, Mary também não abre mão da força
significativa de outras metáforas para qualificar e descrever os fenômenos sincréticos, tais
como o já falado “hibridismo” e a idéia de “bricolagem”, tomada de sua releitura crítica da
antropologia estruturalista de Lévi-Strauss. Se é promissor tomar metáforas como
transferência de sentido de uma área de saber para outra48, é possível trazê-las para elucidar
aspectos culturais, desde que garantidas as condições sociais e históricas de produções dessas
metáforas e os problemas específicos que elas pretendem responder, sob pena de se

46
Agradeço a profa. Maria de Lourdes Alcântara por ter me recebido, no mês de maio de 2009, na sede da
Organização Não Governamental “AJI” (Ação de Jovens Indígenas de Dourados), na própria cidade de
Dourados, para uma produtiva conversa. Para maiores matizações sobre a relação entre hibridismo, sincretismo
e a noção bourdieuana, veja-se o artigo de Terry Rey intitulado Habitus et hibridité: une interpretation du
syncrétisme dans la religion afro-catholique d‟après Bourdieu (“Habitus e hibridade: uma interpretação do
sincretismo na religião afro-católica segundo Bourdieu”), de 2005.
47
Principalmente em suas obras Le bricolage africain des héros chrétiens (“A bricolagem africana dos heróis
cristãos”), de 2000 e Le défi du syncrétisme (“O desafio do Sincretismo”), de 1999. Até onde o autor dessa tese
saiba, salvo melhor juízo, não há obras de Mary traduzidas para o português.
48
Como a idéia de “bricolagem”, transferida do universo mecânico para o universo lingüístico e, posteriormente,
cultural.
44

transformarem em “metáforas cegas” (blind metaphors)49. Ao analisar as condições sociais de


produção do discurso, Mary retoma toda uma tradição de estudos sobre o sincretismo
religioso em torno do antropólogo francês Roger Bastide, principalmente em relação à leitura
“bastideana” da ideia de “sagrado selvagem” (sacré sauvage). Para Mary, ao analisar o
sincretismo, não se pode desconsiderar a tensão dialética estabelecida entre as formas
instituídas e as instituições sócio-religiosas reguladoras. Nessa tensão estabelece-se o
sincretismo enquanto “descontinuidade contínua”, ou seja, “[...] como compromisso entre
memória coletiva de formas antigas e imaginação criadora, e como arte de gerir as
contradições no nível das pessoas”50. Assim, essa imaginação criadora e inventiva luta contra
a “domesticação do sagrado”: o sincretismo estaria mais para a “selvageria” religiosa.

A partir dessas perspectivas, Mary fala mais em um “sincretismo das formas” do que
em um “sincretismo material”. Por “forma” aqui Mary remete a Gestalttheorie, ou seja, as
formas de expressão dos significados culturais. Com isso, o sincretismo está mais relacionado
a categorias de entendimento expresso em formas simbólicas, ou seja, constitutivas de um
universo de sentido. Por “operar” no campo de uma interface simbólica, as experiências
religiosas que se entrecruzam estabelecem uma miríade de sentidos contraditórios o que gera,
por sua vez, uma permanente criação das categorias de entendimento para compreender a
realidade: “O trabalho sincrético enfrenta aqui o princípio da descontinuidade que controla a
definição mesma de sistemas simbólicos e de sua transformação” (MARY, 2010, p. 137).
Assim, o sincretismo pode ser elucidado ao transpor para essa categoria possibilidades de
sentidos de outros termos, fazendo esse “jogo metafórico” enquanto exercício de
entendimento. Nesse caso, entram em cena as categorias tanto de “bricolagem” como de
“hibridismo”, por exemplo, para interpretar “modalidades do sincretismo”. Essas categorias,
segundo o referido antropólogo, são abandonadas por analistas não por sua possível falta de
“peso analítico”, mas por estigmatização ideologicamente orientada contra o fato de que a
realidade é muito mais concreta em termos de interfaces e “violentações” de fronteiras. Para
Mary, na opinião dos analistas contrários a uma apropriação “indébita” de conceitos de outros
campos do saber, esconde-se uma banalização e a projeção de uma “monstruosidade” inerente
na idéia do híbrido, por exemplo. Todavia, para Mary (2005, p. 282), “[...] A ambigüidade do
cruzamento de fronteiras do produto híbrido transforma-se em recursos criativos que podem

49
Cf. MARY, A. Métissage and Bricolage in the Making off African Christian Identities. Social Compass.
[S.l.], v. 3, n. 52, p. 282-3.
50
Cf. MARY, A. Les anthropologues et la religion, p. 135.
45

nutrir produções de significado completamente novo [...]” nas análises dos processos
sincréticos culturais. Todavia, se a metáfora implica uma transposição de significados, porque
insistir no termo sincretismo? Parece não ficar clara essa questão em Mary ou, em outros
termos, ele acaba por consolidar o uso de outras categorias, como a de bricolagem, afirmada
anteriormente. A bricolagem torna-se uma modalidade de sincretismo. Mas que modalidade?
Em que sentido? Como um “bricoleur”, os atores sociais religiosos, em ações bem práticas no
processo sincrético, utiliza-se de fragmentos simbólicos religiosos oriundos de diversos
planos de sentido e recombinam esses fragmentos, de tal forma a montar um plano de sentido
estruturador da realidade. Não se trata da mistura ou a fusão indiferenciada de elementos, mas
a tentativa de compor uma imagem religiosa de sentido em meio a várias oposições e
contradições. Ao refletir sobre essas “modalidades metafóricas” que traduzem a polissemia do
sincretismo, Mary afirma:

Mas a escolha de palavras é também uma questão de luta simbólica: cada um


dos termos que agora estão no campo semântico do sincretismo (bricolagem,
mestiçagem, hibridismo, ou ainda creolização) faz do objeto das sucessivas
elaborações eruditas exceder as suas conotações imediatas e a desenvolver,
como nós temos feito, o espectro dos paradigmas que competem nas
palavras. Não é de surpreender que, nesta luta pelas palavras e a disputa
pelas metáforas, o sincretismo, mais uma vez, convoca a uma frustração
(MARY, 2010, p. 149)

Nessa citação de Mary, a “frustração” mencionada é, na realidade, a confissão de uma


impossibilidade, com certa ironia: no que diz respeito aos contatos e rearranjos religiosos, no
plano da significação simbólica, as categorias interpretativas, por expressarem um poder
metafórico, nunca são conclusivas: evocam um sempre além, um “excesso” de significações,
como está presente na própria citação de Mary. De fato, se as experiências religiosas
interfaceadas o são dentro de elementos culturais específicos, limitados, as possibilidades de
rearranjos, de combinações, mas também de desarranjos e fragmentações também são. Assim,
as metáforas interpretativas utilizadas para caracterizar as modalidades de sincretismo
“frustam” qualquer tentativa de redução da compreensão do sincretismo a um aspecto
denotativo do discurso interpretativo. Isso equivale a renunciar, no método, uma hermenêutica
dos símbolos portadores de sentidos vividos em ambiguidade, uma vez que as dinâmicas
religiosas, enquanto fenômenos culturais, alimentam sua dinamicidade nessas mesmas
ambiguidades.
46

No Brasil, quando a antropologia utiliza o termo sincretismo, o faz quase que


invariavelmente para compreender fenômenos religiosos, principalmente na análise das
interações entre diversas formas de catolicismo e religiões afro (embora não exclusivamente).
Quando se trata de analisar experiências religiosas indígenas, tal como será feito no último
capítulo desta tese, o uso do termo sincretismo é muito escasso. Daqui em diante, mais
especificamente, toda vez que for feito uso do termo “sincretismo” no corpo do texto, será em
relação a interações religiosas. Isso de forma didática, haja vista que a religião, do ponto de
vista etnológico, não deixa de ser uma expressão cultural.

Importa, agora, desenvolver o diálogo com a antropologia do sincretismo desenvolvida


no contexto nacional. O antropólogo Sérgio Ferretti, já citado no início dessa seção,
acrescentand-se o nome de Pierre Sanchis, só para ficar nesses dois exemplos, têm dado
importantes contribuições para a discussão acerca do status epistemológico da noção de
sincretismo, principalmente no campo religioso brasileiro. Ferretti (1995; 2004), a partir do
estudo que faz das interações entre catolicismo, espiritismo e maçonaria com o Candomblé,
no conhecido terreiro da “Casa das Minas”, em São Luís do Maranhão, vai afirmar que o
fenômeno sincrético está presente em todas as religiões, sendo muito comum na sociedade
brasileira. Além disso, devido à sua dinâmica e complexidade (do Brasil), o sincretismo não
deve estar restrito somente a análises antropológicas. Ferretti, em sua obra “Repensando o
Sincretismo”, dedica um breve capítulo onde sintetiza os “usos e sentidos do conceito de
sincretismo religioso”51. Ao partir do pressuposto da ambigüidade e contraditoriedade
evocada pelo conceito, faz uma análise descritiva e interpretativa da maneira como sociólogos
e antropólogos se apropriaram do termo, sempre em relação às interações com as
religiosidades “afro”. Textualmente, em um parágrafo síntese, ele afirma:

Mesmo sendo tema muito abordado e encontrado na realidade, é criticado e


tratado com preconceito por vários autores; alguns consideram que o
conceito deve ser esclarecido. Pode tratar-se de idéias de sincretismo como
máscara colonial para escapar à dominação, a hipótese do sincretismo como
estratégia de resistência ou, ainda, de sincretismo como justaposição e
outras têm sido criticadas. O evolucionismo viu o sincretismo como ilusão
da catequese, a teoria culturalista estudou o sincretismo como aculturação
ou reinterpretação. Outros procuram entender o sincretismo utilizando pares
de conceitos opostos como mistura versus pureza, embranquecimento
versus empretecimento, ou caipiridade versus africanidade. O tema continua
sendo debatido na atualidade e surgem sempre novas visões (FERRETTI,
2004, p. 14)

51
FERRETTI, S. F. Repensando o Sincretismo, p. 87-93.
47

Talvez as “novas visões” a que Ferretti faz menção no final da citação esteja,
justamente, no poder conotativo da linguagem metafórica em criar estilos e modalidades de
sincretismo nas nomeações anteriores, conforme visto em Mary (bricolagem, hibridismo,
identidades caleidoscópicas, dentre outras). Mas nessa citação é possível entender a
dificuldade do tema. Sua polissemia pode mais esconder do que esclarecer. Certamente que
em sua antropologia Ferretti não descarta “tipologias” do sincretismo52 como recurso “ideal”
para a aproximação à realidade complexa e multifacetada do campo religioso brasileiro. O
exemplo que ele cita é ilustrativo: se considerar as interações entre expressões do candomblé
e o catolicismo (principalmente em suas vertentes “populares”), há um sincretismo de
paralelismo nas correlações entre orixás e santos católicos. Há sincretismo de convergência
entre idéias do candomblé africano e do catolicismo luso-brasileiro sobre “Deus”, os “santos”,
o sofrimento, dentre outros aspectos. Há sincretismo de fusão na observação de alguns rituais
(o batismo, por exemplo) praticados pelas pessoas que freqüentam o terreiro e a missa. Mas
há também a separação ou não-sincretismo na observância de outros rituais (como o
sacrifício de animais, por exemplo) (FERRETTI, 1995, p. 91-2). A tendência é que o processo
sincrético se desdobre a partir de um gradiente “zero” onde, hipoteticamente, não há
sincretismo e transita até o nível citado da convergência, o que implica na possibilidade dos
processos continuarem a depender do gradiente a ser mais acionado. Inclusive, Ferretti propõe
o seguinte quadro conceitual que apresenta as modalidades sincréticas em seus gradientes
(1995, p. 90):

Junção União / confluência / aglutinação

Fusão Ligação

Mistura Amálgama / caldeamento / hibridação

Paralelismo Semelhança / equivalência / correspondência

Justaposição Sobreposição / aproximação / contiguidade

Convergência Reunião / concentração / confluência

Adaptação Acordo / acomodação / concordância

52
O teólogo Leonardo Boff já trabalhava com algumas tipologias do sincretismo religioso em seu texto “Igreja:
Carisma e Poder”. O referido teólogo fala em sincretismo de adição, acomodação, concordismo
(justaposição), mistura, tradução e refundição. Cf. BOFF, L. Igreja: Carisma e Poder, p. 158ss. Sobre Boff
falaremos na próxima seção desse mesmo capítulo.
48

A partir das ideias de Ferreti, é possível um exercício interpretativo, muito breve, do


uso desses sentidos e “tipos” de sincretismo para pensar as relações de tradições cristãs com
grupos indígenas Guarani e Kaiowá: pode haver um sincretismo de “paralelismo” (como será
mostrado no último capítulo) entre a figura do rezador/xamã, principalmente em seus atos de
cura, com a figura do pastor (pentecostal ou não). Pode haver um sincretismo de
“convergência” entre as idéias sociais de família extensa (parentela) e a própria ideia de
igreja, uma vez que as Igrejas reúnem algumas famílias extensas. Pode haver um sincretismo
de fusão na ligação de algumas festas tradicionais (como o guaxirê) com festas tipicamente
católicas, como as “juninas”. E pode haver um sincretismo de “mistura” entre “santos”
católicos e alguns tekojara53, como disse um interlocutor kaiowá participante do projeto da
IIP: “[...] tem muito indìgena que „mistura‟ (ombojopara) tudo. Pega o „São Ramão‟, a
„Nossa Senhora‟, o „Exú‟ e fala que é tudo tekojara”. E isso é um problema pois pode causar
muita confusão na cabeça do índio”.

Mas o que chama atenção no quadro acima é que todos os sentidos para o uso da
noção de sincretismo implicam, para fazer jus ao termo, em aspectos de aproximação e união.
Todavia, esses processos necessitam encontrar-se dialeticamente com seu oposto, que são os
processos que implicam em desagregações, separações e disjunções, qualificados nessa tese,
conforme o capítulo 2, pelo termo “diacretismo”. É importante também destacar o fato de
Ferretti insistir na não absolutização destes “tipos” de sincretismos. Com acento webberiano,
são “tipos ideais”, elaborado no plano das ideias e do sentido e não realidades puramente
empíricas e objetivamente observáveis com tão facilidade. Em outras palavras: deve-se ter o
cuidado de não enquadrar as interações religiosas em um só tipo ideal. Em relação ao terreiro
da “Casa das Minas”, por exemplo, Ferretti é taxativo em afirmar que em um mesmo espaço
(mesmo grupo de culto/rito) pode ser encontrado separações, paralelismos, misturas e
convergências. O fenômeno sincrético não se prende a um só dado sentido. Por isso, para
além do descritivismo positivista, é preciso uma tarefa hermenêutica. Assim, para Ferretti, o
sincretismo denota a expressão criativa da cultura brasileira, principalmente para os muitos
atores sociais que vivenciam este fenômeno. O sincretismo configura-se em ricas traduções
simbólicas que constroem as estruturas sócio-religiosas cotidianamente. O sincretismo não
53
A palavra Tekojara pode ser traduzida por “dono” do meu modo de ser, da minha conduta. Como nas
experiências religiosas tradicionais dos Guarani e Kaiowá há uma profunda humanização de toda a realidade
“natural”, cada elemento da natureza possui seu “Jara”, seu senhor, dono. Assim, as plantas, os animais, os
acidentes geográficos, todos tem um Jara. A cosmologia Guarani e Kaiowá tradicional implica em uma
constante negociação entre os Jara para a efetivação das reais condições sociais. Sobre a questão dos Jara
voltaremos no último capítulo. O Guaxirê é uma dança ritual, uma celebração importante na tradição de
conhecimento nativa dos Guarani e Kaiowá onde se rememora o “bom viver” legado pelos divinos.
49

deixa de ser, paradoxalmente, um reforço da identidade e dos laços sociais. E o antropólogo


sentencia: “[...] Verificamos, assim, que o sincretismo contribui para o enriquecimento e a
fertilização de nossas manifestações culturais mais autênticas, numa evidência de que não
existem contradições entre sincretismo e tradição cultural ou tradição religiosa” (FERRETI,
1995, p. 28). Claro que aqui Ferretti limita-se a um uso excludente e não necessariamente
dialético da idéia de contradição nesta afirmação. Mas é possível perguntar mais
apropriadamente pela permanência da categoria: se existe a fala de interações religiosas
paralelas, convergentes, fusões, dentre outras, é necessário nomear isto de sincretismo? Outra
questão: no fundo, existe interação religiosa que não seja, em maior ou menor grau,
sincrética? Assim, o sincretismo aqui não seria redutivamente o “denominador comum” das
experiências religiosas? Estas questões bem podem abrir pistas para a continuidade das
pesquisas e do debate, indo além dos objetivos desse texto.

Em relação ao antropólogo Pierre Sanchis, especialista na análise do catolicismo luso


e brasileiro, este também escreveu importantes artigos sobre o sincretismo religioso. No texto
intitulado “Religiões, religião... Alguns problemas do sincretismo no campo religioso
brasileiro” (2001), postula os sincretismos (conjugado sempre no plural) como um intenso
“jogo dialético” que descortina o Brasil religioso 54. Rigoroso em sua epistemologia, Sanchis
articula seu pensamento dialético em torno de dois traços marcantes: de um lado o que ele
chama de “porosidade” das muitas identidades religiosas, suas fragmentariedades (mas não
confusão) e, de outro lado, a multiplicidade dos processos de construção desses mesmos
sujeitos religiosos plurais. Assim, “[...] assistimos à formação de um campo religioso em que
os recortes, diferenças e eventuais oposições entre universos simbólicos e cosmovisões
institucionalmente estabelecidos não correspondem necessariamente a experiências religiosas
individuais, segmentárias mas não isolantes”55. Esta dialética aponta para um dado
antropológico fundamental para Sanchis: o ser humano contemporâneo assume elementos de
diversas sínteses para compor seu próprio universo simbólico, universo este nunca acabado,
em constante refazer, sempre protelado. Este compósito de tramas simbólicas, com toda sua
contradição dialética é que vai configurar as “tramas sincréticas” da história na visão do
antropólogo francês radicado no Brasil há muitos anos.

54
Outros artigos de Sanchis também sobre o tema são: “Pra não dizer que não falei de sincretismo”. In:
Comunicações do ISER, 45, 1994, p. 4-11 e “As tramas sincréticas da história” In: Revista Brasileira de
Ciências Sociais, 28, 1995b, p. 123-38.
55
SANCHIS, P. Religiões, religião... Alguns problemas do sincretismo no campo religioso brasileiro. In:
SANCHIS, P. (org.) Fiéis e Cidadãos. Caminhos e percursos de Sincretismo no Brasil, p. 27.
50

Ao pensar em termos histórico-culturais, o Brasil religioso para Sanchis, assume,


sincrônica e diacronicamente, as identidades religiosas disciplinadas institucionalmente,
excludentes, centradas ainda em uma subjetividade bem “racional” e moderna. Já no nível
existencial dos fiéis, um conjunto de experiências idiossincráticas e comunitárias que
evidenciam visões de mundo sobejamente marcado pelo sagrado, em um sentido ainda pré-
moderno, “mágico” e, por fim, a pluralidade, a indecisão de identidades, a reconfiguração de
novos universos simbólicos e fragmentários, bem típico da pós-modernidade. O Brasil, então,
formou seu habitus (influência de Pierre Bourdieu) na afirmada “[...] porosidade das
identidades e de ambivalência dos valores, de uma tendência, sempre frustrada mas
permanentemente retomada, em direção à conjugação do múltiplo numa unidade nunca
atingida” (SANCHIS, 2001, p. 45). Nesta “porosidade” dialética repousa,
epistemologicamente falando, o conceito de sincretismo para Sanchis. Não seria com esta
dialética entre a compreensão de um campo religioso que consegue ser, ao mesmo tempo, pré-
moderno, moderno e pós-moderno, que o próprio discurso teológico se debate também? Mas
o fato é que, nos “percursos e percalços” do sincretismo nas ciências antropológicas, Sanchis
ajuda a pensar na perspectiva de que o horizonte metafórico de significação dos vários usos e
sentidos do sincretismo, como essa seção mostrou, pode ser um poderoso instrumento
analítico. Principalmente para interpretar a sociogênese e o desenvolvimento histórico de
fronteiras religiosas que compõem o cenário de várias sociedades, como a brasileira. Próxima
seção: percursos e percalços no saber teológico.

1.3. PERCURSOS E PERCALÇOS TEOLÓGICOS SOBRE O SINCRETISMO


RELIGIOSO

A acolhida do termo sincretismo por parte da Teologia é muito complexa. Via de


regra, não são muitos os teólogos e teólogas que utilizam o conceito para expressar as
implicações da vivência da fé, em torno dos dados da revelação, a partir das situações de
profundo contato intercultural onde se reelabora o sentido da existência a partir das muitas
significações dos símbolos de fé. Em tese, ainda há uma boa rejeição ao termo sincretismo por
parte de teólogos e teólogas. Talvez não uma rejeição explícita, mas “camuflada” por outros
termos como a chamada “contextualização” e “inculturação” do Evangelho bem como, a
partir das discussões da teologia da revelação e da soteriologia (discurso acerca da salvação),
das tipologias “inclusivistas” e “pluralistas”, dependendo do tipo de relação e princípios
norteadores do contato entre o Cristianismo com outras religiões. O teólogo cingalês Aloysius
51

Pieris, por exemplo, ao estudar as relações entre cristãos de “base”, a partir da experiência da
pobreza, e o Budismo, rejeita o termo “sincretismo” em prol da noção de “simbiose”, uma vez
que aquele aponta para uma “[...] mistura aleatória de religiões: algo como um coquetel que
muda o sabor de cada ingrediente sob a influência do outro”56. Mas há teólogos que, por outro
lado, passaram a celebrar o sincretismo como a própria essência dinâmica do Cristianismo, tal
como o teólogo brasileiro Leonardo Boff (principalmente a partir dos anos 70 do século
passado), que será discutido a seguir, e o teólogo espanhol Manuel Marzal, tal como será
mostrado no último capítulo. O principal objetivo, agora, é mostrar, por um lado, algumas
tentativas de afirmação do sincretismo como categoria interpretativa e outras, por outro lado,
de “disfarce” dessa mesma noção, colocada em função de outras categorias interpretativas
para a relação de encontro do Cristianismo com outras experiências religiosas.

1.3.1 Sincretismo e suas modalidades para a compreensão da experiência cristã: perspectiva


de Leonardo Boff

O teólogo Leonardo Boff, quando da publicação de seu clássico “Igreja: Carisma e


Poder”, dedica um capítulo inteiro para mostrar que o cristianismo, dentro de sua evolução
histórica, é profundamente sincrético57. Entenda-se sincretismo aqui, na linguagem boffiana,
como um longo processo de produção religiosa onde cada religião se abre à outra,
assimilando, reinterpretando e refundindo universos simbólicos, tendo como critério a
identidade própria de cada religião. Se é possível, hoje em dia, deliberar sobre esta
“identidade própria”, inclusive do cristianismo, é uma questão a se pensar. Mas é sintomático
que o teólogo brasileiro retome as discussões sobre o sincretismo em um texto de severas
críticas à Igreja, conservadora de um certo “purismo”, segundo ele, que não existe. Mas o fato
é que este fenômeno sincrético, para Boff, é muito ambíguo, gerador de crises, de
indefinições, uma vez que que toca em valores religiosos até então inegociáveis. Daí que o
fenômeno sincrético pode ser legítimo ou gerar “patologias” (para ser fiel à expressão de
Boff)58.
Boff trabalha a correlação entre fé e religião (seguindo a intuição de Clodovis Boff). A
fé, enquanto acolhida da abertura transcendental ao Mistério, é experiência originária,
irredutível a qualquer outra. A religião é a expressão histórico-cultural da fé, com maior ou

56
PIERIS. A. Viver e Arriscar, p. 21.
57
Estas ideias já estavam postas na segunda metade da década de 70, no seguinte artigo: BOFF, L. Avaliação
teológico-crítica do Sincretismo. In: Revista de Cultura Vozes, n. 71, 1977, p. 53-68.
58
BOFF, L. Igreja: Carisma e Poder, p. 160-1.
52

menor grau de institucionalização. É nesse processo de “religionação” da fé que se dá o


sincretismo, esta inevitável “encarnação” da fé nas culturas. Como o sincretismo é um
processo inevitável de toda religião que se pretende, de fato, histórica, ou seja, encarnada em
suas mediações estruturais (seria a lógica da revelação cristã estendida a todas as religiões? É
possível?), Boff não discute se há ou não o sincretismo. Sempre há. A questão é: que tipo de
sincretismo existe e qual deve ser buscado. Assim, ele trabalha com a categoria de
verdadeiros e falsos sincretismos e procura evitar todo “purismo” do cristianismo, haja vista
que o divino sempre se dá em mediações humanas. Por isso, a pergunta pela “veracidade” e
“falsidade” é sempre condicionada, nunca devendo ser absolutizada. Observa-se, com isso, o
deslocamento das discussões sobre o sincretismo para o campo da mediação de valores, com
um acento ético formal.
O que vai definir a “veracidade” do sincretismo é sua fidelidade à dialética fé e
religião (toda fé sem religião _ fé purista, abstrata e sem objetivação _; e toda religião sem fé
_ religião que se fecha em si mesma, meramente instrumental e legalista, deve ser evitado) e a
fidelidade ao núcleo da fé cristã. Assim mesmo: o sincretismo religioso, para Boff, de alguma
forma, parece ter que passar pelo crivo do cristianismo, que é um crivo, volta-se a dizer,
profundamente ético. Com isso, toda interação sincrética que preserva o jogo da liberdade, do
amor, da fé e esperança, denota sua “veracidade”. Quando o cristianismo, a partir de seu
núcleo essencial, encarna-se no universo simbólico de uma outra cultura, ou seja, “converte”
esta cultura a este núcleo essencial (mantendo as coordenadas culturais), há um sincretismo a
ser celebrado. Mas Boff diz que pode ocorrer o risco do contrário: ao entrar em contato com o
cristianismo, uma dada religião pode “converter” esta fé cristã ao núcleo essencial de sua
identidade “pagã”. O teólogo brasileiro (com influências do teólogo alemão Karl Rahner), não
nega que neste caso há sincretismo, mas afirma que esta religiosidade que assimilou e
refundiu elementos cristãos se tornou uma “religiosidade cristã anônima” (BOFF, 1994, p.
173-5). Nesse sentido é que o também teólogo católico e cientista da religião Afonso Soares
pergunta se Boff realmente fala de sincretismo quando seu discurso parece aproximar-se mais
da noção de “inculturação da fé”, haja vista que o pretenso processo sincrético sempre ocorre
em relação às iniciativas e coordenadas cristãs (SOARES, 2003, p. 68-9). Se Leonardo Boff
avança porque, nos anos setenta, intui que o caminho sincrético do Cristianismo é recheado de
contradições, parece perceber que, ao voltar essa categoria de análise para outras religiões, o
Cristianismo torna-se menos contraditório que essas mesmas religiões. Nesse caso, como falar
de uma “inculturação”, no final das contas, se o agente inculturador referencial, no caso o
53

Cristianismo, está cheio de contradições? Por falar em “inculturação” do Evangelho,


passemos à próxima subseção.

1.3.2 Sincretismo para além da Inculturação do Evangelho: diálogo crítico entre Mário de
França Miranda e Antonio Magalhães

Outras considerações sobre a perspectiva teológica do sincretismo podem ser vistas


em uma leitura crítica e comparativa entre as ideias de Mário Miranda e Antonio Magalhães59.
Miranda, inicialmente, trabalha a questão do sincretismo no horizonte mais amplo da
inculturação da fé, ou seja, analisa as implicações da inserção do cristianismo em culturas
diferenciadas, o que é sempre um tema complexo e controverso. Em um primeiro momento é
possível afirmar que se há semelhanças entre Miranda e Magalhães, é que os dois se esforçam
para manter a diferenciação entre sincretismo e inculturação como dois conceitos não
redutíveis um ao outro. Mas as semelhanças devem ficar por aqui, até porque Miranda opta
pela inculturação e Magalhães opta pelo sincretismo60.
O teólogo Mário Miranda encara o sincretismo como a vertente religiosa dos
processos de inculturação. Assim, o sincretismo seria uma etapa dentro do processo mais
amplo da inculturação da fé. Afirma que a inserção da categoria de sincretismo nos estudos de
inculturação deu-se mais por questões antropológicas do que propriamente teológicas
(MIRANDA, 2001, p. 110; 120; 127). Isso não deve causar, a princípio, estranhamento, uma
vez que não existe discurso teológico cabível hoje como uma realidade independente de uma
anterioridade antropológico/cultural. Percebe-se uma certa influência de Boff no pensamento
de Miranda, pois este também trabalha com a díade fé e religião, perguntando-se, a partir daí,
pela existência de sincretismos legítimos e ilegítimos. Com isso, Miranda reduz seu conceito
de sincretismo à tese que lhe interessa: “[...] Assim, nosso objetivo não consiste
primariamente em estudar as mútuas transformações resultantes do encontro de duas religiões,
mas a incidência da dimensão religiosa da cultura no cristianismo, como fator intrínseco ao
processo de inculturação” (MIRANDA, 2001, p. 110). Parece que Miranda está preocupado
com um processo de mão única: do cristianismo para as culturas. Existe, no final das contas,

59
Cf. MAGALHÃES, A. C. de M. Sincretismo como tema de uma teologia ecumênica. In: Estudos de Religião,
n. 14, 1998, p. 49-70. MIRANDA, M. de F. Inculturação da fé e sincretismo religioso. In: MIRANDA, M. de
F. Inculturação da Fé. Uma abordagem teológica, p. 107-127.
60
Para uma discussão da relação entre inculturação e sincretismo, que foge ao propósito deste trabalho, remeto
novamente a SOARES, A. M. L. Interfaces da Revelação, p. 71-91.
54

possibilidade de se pensar o sincretismo neste sentido? Para Antonio Magalhães parece que
não. Vejamos.
Ao contrário de Miranda, Magalhães encara o sincretismo como “produto final” do
processo de inculturação. Assim, para Magalhães, a inculturação é sempre mediação,
caminho, uma forma de concreção da mensagem a partir de referenciais pertinentes à cultura
de um povo. Por isso que todo processo de inculturação, para esse teólogo e cientista da
religião, tem que respeitar as mediações simbólico-culturais existentes em um povo
(MAGALHÃES, 1998, p. 68). Certamente que o processo é dinâmico. O “produto final”
sincrético a qual Magalhães refere-se é sempre fugidio, nunca plenamente “controlado” por
missionários (ou qualquer outro agente religioso de mediação) e os receptores da nova
mensagem religiosa. Além de ser “fluído”, a dinamicidade sincrética aponta novos começos
para outros processos de sincretização e inculturação da fé, o que relativiza, por sua vez, esse
dualismo entre anunciantes e receptores.
Além disso, uma das diferenças marcantes entre os dois autores cotejados nesta
subseção é que, se para Miranda as discussões entre sincretismo e inculturação não devem
priorizar as mútuas transformações do encontro entre as religiões, conforme dito, é
exatamente aí que se insere o interesse maior de Magalhães. Para este autor, uma teologia do
sincretismo religioso, não dispensando necessariamente a riqueza da tradição, deve se
preocupar “[...] de que forma as expressões religiosas da atualidade repensam os conteúdos
clássicos e apresentam alternativas próprias para as mediações deste anúncio”
(MAGALHÃES, 1998, p. 69). Isso é assim porque, nas interações religiosas, no caso, do
cristianismo com outras religiões, os conteúdos de ambas vão sendo refeitos neste processo
sincrético de reelaboração da fé. Com isso, Magalhães conclui com sua tese que se contrapõe,
pelo menos em parte, a Miranda:
O sincretismo apresenta perspectivas que outras (sic) conceitos como
inculturação, teologia das religiões, contextualização etc. , não tiveram a
clareza de enfrentar. O cristianismo não somente transformou as formações
culturais, mas foi profundamente mudado pelas culturas dos povos e pela
sabedoria das religiões. A tarefa que se impõe ao pensamento teológico é
justamente de estabelecer um diálogo com esta mudança (MAGALHÃES,
1998, p. 70)

Longe de ser uma via de mão única, esta citação coloca o acento nas reciprocidades.
Para Magalhães, se os processos de inculturação levarem em conta as transformações
sincréticas, o cristianismo oportuniza transformações mais ricas e plenas. Não é que o
sincretismo necessariamente “destrói” as identidades religiosas, mas possibilita a
55

reconfiguração destas próprias identidades. O que se percebe também nesta citação,


implicitamente, é que o fenômeno sincrético paga “forte tributo” às muitas reinterpretações e
reinvenções cotidianas dos muitos sujeitos religiosos que, de fato, através de suas narrativas
de fé, concretizam seus valores e suas crenças, com inspiração em Michel de Certeau. Mas é
possível perguntar se essa concepção do sincretismo não se concentra demasiadamente em um
certo pólo de positividade, deixando de vista os aspectos profundamente ambíguos, geradores
de negatividades (violências simbólicas, por exemplo) dentro deste fenômeno religioso. Essa
parece ser uma tendência ainda forte dentre de perspectivas teológicas. Normalmente lê-se o
sincretismo a partir das teorias sobre inculturação da fé ou procura-se garantir uma maior
autonomia ao termo sincretismo, dependendo a partir de onde se lança o olhar interpretativo.
Visto mais pela perspectiva do povo que elabora e reelabora suas “bricolagens” religiosas,
muitas vezes além do que os discursos teológicos formais estabelecem, é preferível falar de
sincretismo. Há esforços teológicos de contrabalancear o termo “inculturação” com a noção
de “inreligionação”, por exemplo, presente no teólogo galego Andrés Torres Queiruga61. A
ideia é que não somente o Cristianismo “encarna” nas outras culturas, mas é preciso se
perguntar até que ponto os grupos, pessoas e povos outros “inreligionam”, a partir de suas
condições históricas concretas, os dados cristãos e até que ponto o cristianismo “inreligiona”
elementos heteróclitos a ele. Ou seja, a perspectiva é que a inculturação não pode reforçar
uma suposta divisão entre cultura e religião do povo. Por falar em “inreligionação”, passemos
à subseção final do capítulo.

1.3.3 Os “rastros” sincréticos de Deus na história: a contribuição de Afonso Maria Ligorio


Soares

Um dos teólogos e cientista da religião brasileiro que mais tem trabalhado a noção de
sincretismo é Afonso Ligorio Soares que, inclusive, dedicou uma tese de doutorado sobre o
tema publicada com o título “Interfaces da Revelação. Pressupostos para uma teologia do
sincretismo religioso no Brasil”, no ano de 2003. Além disso, em texto mais recente
(publicado em 2008) intitulado “No espírito do Abbá. Fé, revelação e vivências plurais”,
Afonso Soares investiga, com o rigor analítico que qualifica suas obras, as implicações da

61
Para a noção de “inreligionação” ver TORRES QUEIRUGA, A. Do Terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p.
322-35. Também o artigo TORRES QUEIRUGA, A. Cristianismo y Religiones: “inreligionación” y
cristianismo assimétrico. Disponível em: http://www.servicioskoinonia.org/relat/241.htm. Acesso em: 17
mai. 2006.
56

noção de sincretismo para uma teologia cristã da revelação62. Nesse sentido, se a mensagem
cristã, baseada na autorevelação de Deus aos seres humanos, tem a pretensão à
universalidade, deve assumir os riscos das muitas assimetrias, fragmentações, percursos e
percalços da “recepção” dessa mesma revelação por parte do humano63. Inspirando-se nas
ideias do já citado teólogo Torres Queiruga, Soares reposiciona o sincretismo não como mera
etapa da “inculturação”, mas como a própria condição de uma vivência dos dados revelados.
O sincretismo, nesse caso, é a resposta humana, sempre provisória e finita, a autocomunicação
divina. Assim, Soares configura o que nomeia por “fé sincrética”. Essa expressão, segundo
ele:
[...] conjuga a origem mais profunda dessa resposta humana com seus
inevitáveis limites na expressão e na prática. Ela é absoluta quanto aos
valores fundamentais que estão em jogo na escolha aparentemente
contraditória dos significantes religiosos (dimensão fé); mas é relativa
quanto aos resultados efetivamente atingidos (dimensão ideológico-
sincrética). Pode-se falar, portanto, de fé sincrética para identificar o modo
mesmo de uma fé “concretizar-se”. De fato, não existe fé em estado puro; ela
se mostra na práxis (SOARES, 2008, p. 102-3)

Nessa citação transparece a polaridade “fé-ideologia”, tão cara ao pensamento do


teólogo uruguaio Juan Luis Segundo, referencial teórico central nas discussões que Soares
empreende. De certa forma, como será mostrada no segundo capítulo, essa compreensão
aparece em Paul Tillich quando o teólogo protestante procura trabalhar a relação entre valores
“absolutos”, que ele chamava de “incondicionais” e como se estabelece a relação desta
“incondicionalidade” com as formas culturais, com todas as ambigüidades envolvidas. Vai ser
justamente essa dimensão do incondicional que Tillich chamará de “religião” e que vai estar
na essência do seu conceito de demônico. Retornando ao pensamento de Afonso Soares, em
acento segundiano, o mesmo afirma que “[...] todos nós somos antropologicamente obrigados
a estabelecer em nossa vida um valor absoluto, “cuja perda equivaleria à „morte‟ do sentido””
(SOARES, 2008, p. 69). Com isso, Soares não tem dificuldade de afirmar que os dogmas e
doutrinas formuladas pela tradição cristã, muito mais próximas da dimensão “ideológica”,

62
Na realidade, retoma o grande tema de sua tese de doutorado. Já na introdução desse texto, Soares preocupa-se
em deixar bem claro que sua investigação preocupa-se com as implicações dogmáticas e pastorais de uma
análise da experiência do sincretismo religioso. Ele afirma: “Orienta-o [ou seja, a reproposição de uma questão
teológica fundamental] a convicção de que uma religião que se pretenda universal [no caso, o cristianismo] e
que fundamente sua argumentação na crença de que o absoluto de Deus concentra-se na relatividade de um ser
humano localizável no tempo e no espaço não pode, honestamente, desconsiderar teologicamente a análise dos
benefícios e limites do sincretismo”. Cf. SOARES, A. M. L. Interfaces da Revelação, p. 17.
63
“O cristianismo, por ser uma religião universalista, não pôde se subtrair ao sincretismo, já que chamou sobre si
a responsabilidade de conter, em princípio, toda a pluralidade encontrável no gênero humano”. Cf. SOARES,
A. M. L. No espírito do Abbá, p. 193. Essa citação, na realidade, vem corroborar a citação da nota anterior.
57

estão também embebidos em um percurso sincrético. A fé sincrética expressa uma perspectiva


diferente da inculturação, pois olha para como o povo acolhe as “novidades” nas interfaces
sincréticas, “[...] de acordo com suas reais estruturas significativas” (SOARES, 2008, p. 103)
e que o Espírito não pode ser enquadrado totalmente por formas culturais específicas64. De
fato, o esforço em ressignificar temas clássicos da teologia cristã à luz do sincretismo é um
mérito inegável no texto de Soares, muito embora possa perguntar se não é um problema
analisar categorias de pensamento e de culturas religiosas “outras” que não lidam com essa
idéia de “fé como absoluto” ou como expressão do incondicional. Isso não seria, justamente,
negar aos povos o direito de acolher elementos de outras “fés”, a seu modo? Mas também não
dá para dizer o que é absoluto ou não em relação a outras culturas religiosas. Eles precisam e
têm o direito de dizer.

A partir dessas questões, Soares propõe uma “síntese” de sua compreensão acerca da
análise teológica do problema do sincretismo religioso. Em primeiro lugar, o sincretismo
constitui-se na dinâmica histórica da pluralidade das religiões em ato, ou seja, o “rastro” das
manifestações revelatórias de Deus e da resposta humana na história (SOARES, 2008, p.
195). Em segundo lugar, independente do juízo de valores que se possa fazer, principalmente
quando envolve a complexa relação entre a experiência de fé e os compromissos científicos, o
sincretismo parece ser uma “constante” em meio às “inconstâncias” culturais e deve, portanto,
ser analisado com a maior competência possível nas interfaces dos saberes. Nesse aspecto, é
importante ressaltar que, para Soares, o que se nomeia por sincretismo é, antes, uma prática
que antecede as escolhas teóricas e discursos ideológicos dos analistas: “Trata-se, em primeiro
lugar, de reconhecer o sincretismo de fato; só depois pode ter algum sentido a pergunta sobre
o que poderíamos aprender teologicamente desse dado real” (SOARES, 2008, p. 197). Mas
essa “realidade” do sincretismo como dado também não seria uma percepção orientada
ideologicamente? Fica a questão. Em terceiro lugar, o sincretismo é a fronteira, o limiar dos
encontros e possíveis diálogos inter-religiosos, desde que se reconheça a autonomia e a
capacidade de grupos originalmente não cristãos de “saborear”, a seu modo, o que julgam de
bom e verdadeiro nas tradições cristãs (SOARES, 2008, p. 201). Por fim, a necessária
hermenêutica teológica de compreender o tema da revelação sem desconsiderar a experiência
do sincretismo religioso. Nesse ponto, Soares não faz maiores diferenciações entre o uso do

64
Também em SOARES, A. M. L. Interfaces da Revelação, p. 246: “A diferença (não indiferente) é de trajeto,
ou seja, o ponto de vista de onde se observa ou de onde se participa da invenção religiosa popular. A
comunidade eclesial propõe-se a inculturar a mensagem evangélica; o povo responde, acolhendo
(inreligionando) a „novidade‟ de acordo com suas reais possibilidades contextuais (políticas, culturais etc.)”.
58

termo “hibridismo” do termo “sincretismo”, haja vista a afirmação de que a teologia deve
considerar que as experiências de “hibridismo religioso” fazem parte do desígnio divino de
autocomunicar-se à condição humana. A mensagem cristã “hibridiza-se” em múltiplas
metáforas que aprende de outras experiências religiosas, sem abrir mão de sua força
metafórica também. Parece que, nesse caso, o hibridismo seria uma modalidade do
sincretismo, para lembrar as ideias de Andre Mary. Compete ao teólogo ou teóloga e a(o)
cientista da religião identificar, justamente, as teologias subjacentes aos muitos “hibridismos
culturais”. A questão que sempre marcará uma possível “teologia do sincretismo religioso” é
a possibilidade de uma pessoa ou um grupo social viver, simultaneamente, mais de uma fé ou,
em outras palavras, como uma mesma fé pode suportar as mais diferentes concretizações
culturais (SOARES, 2008, p. 209-11). Daí que o sincretismo é o grande tema para o que
Soares chama de interfaith theology (teologia entre-as-fés), pois essa teologia parte do
pressuposto de que a revelação de Deus, se também é histórica, tem que assumir em seu
interior ambiguidades, erros e contradições que fazem parte da busca humana pela
compreensão da verdade (SOARES, 2008, p. 213). De fato, continua válida sua intuição de
base de que “[...] a autocomunicação divina já atuante nas várias tradições culturais antes,
contra ou mesmo apesar do contato com as comunidades cristãs [...]” (SOARES, 2008, p.
214) é o privilegiado “lugar teológico” em que os discursos interpretativos sobre a fé,
captados simbolicamente, devem fazer seu permanente exercício, na qual as ideias de Soares
são uma profícua contribuição.

Em síntese

Nesse capítulo inicial foi mostrado que o percurso histórico de formação e


compreensão do sincretismo tenta fazer “jus” ao nome: a tentativa de unir e aproximar, ainda
que o risco de certa inconstância epistemológica “assombre”, diferentes perspectivas, sejam
mais explicativas e descritivas, sejam mais interpretativas, em relação ao que parece ser um
dado empírico constatado em sua dinâmica histórica: a vivência da fé e das crenças no
entrecruzamento de múltiplas fronteiras religiosas. Não é difícil perceber, também, que a
construção histórica da noção de sincretismo reage a realidades de disputas de poder, uma vez
que a afirmação do termo foi uma forma de contestar setores hegemônicos que, por sua vez,
utilizavam a força política de discursos religiosos majoritários para afirmar identidades
59

culturais pretensamente consolidadas, muitas vezes, em contextos colonialistas. Ao trazer a


discussão teórica sobre o sincretismo religioso principalmente para o campo de uma
“hermenêutica simbólica”, tanto a antropologia quanto a teologia não desconsideraram os
embates políticos e ideológicos de afirmação ou deslegitimação do uso do termo. Assim,
quando se fala em sincretismo no seu poder “metafórico” de significação e compreensão das
realidades religiosas plurais em situação de fronteira, é justamente a tentativa de construir um
método que dê conta de um “objeto” tão fluido e fugidio, na prática. Na realidade trata-se de
métodos, no plural, uma vez que ao falar em sincretismo, tanto na literatura antropológica e
teológica especializada, o termo “transforma-se”, em suas múltiplas transferências de sentido
(meta-phorein), em modalidades descritivas e interpretativas das mudanças culturais, no caso
da antropologia da religião e, no caso da teologia, em uma hermenêuticaa dos símbolos de fé
que moldam o sentido último da existência. Para isso, no final das contas, aponta as categorias
de bricolagem, hibridismo, inculturação e outras categorias que especificam e interpretam os
tipos e sentidos das múltiplas fronteiras religiosas afirmadas. Assim, com a noção de
sincretismo não se pensa um encadeamento de tipos descritivos, mas na conjunção de
modalidades interpretativas ou na formação de um “arco semântico”, onde cada noção dentro
desse “arco” desnuda uma face, uma perspectiva dos fenômenos religiosos que se nomeiam
por sincréticos.

É importante também frisar, por fim, o seguinte: mesmo que o discurso teológico
guarde preocupações epistemológicas diferentes da antropologia, no fundo tenta-se reabilitar a
noção de sincretismo, em perspectiva antropológica, não como etapa ou fase das produções
culturais, mas como o lado necessariamente fragmentário, ambíguo, o caminho sine qua non
(“sem o qual não é possível”) de falar das culturas e, do lado teológico, impossível falar da
dinâmica histórica da revelação divina. A teologia aqui entendida como hermenêutica dos
símbolos de fé subjacentes às formulações culturais. Por isso, tanto a teologia quanto a
antropologia, nas breves análises exemplificadoras neste capítulo, necessitam ressignificar a
noção de sincretismo ao apegar-se à sua força metafórica, pois só assim é possível significar
uma realidade tão complexa e cheia de variáveis como as culturas religiosas.

Basicamente é isso que se pretende fazer no próximo capítulo, uma vez que ao
aproximar as idéias de Michel de Certeau e Paul Tillich, tenta-se uma atitude hermenêutica de
articular uma perspectiva do sincretismo que conjugue também a experiência do absoluto, só
que vivido ambiguamente nas manifestações concretas da religião na dinâmica social e
cultural. É para onde o texto da tese caminha agora.
CAPÍTULO 2: DO “INVENTIVO” E DO “DEMÔNICO”: O
SINCRETISMO COMO AFIRMAÇÃO DA AMBIGUIDADE ÚLTIMA
DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Ela [a Cultura] é uma proliferação de invenções em espaços circunscritos

Michel de Certeau

A religião, como a função autotranscendente da vida, reivindica ser a resposta para as


ambiguidades da vida em todas as outras dimensões; ela transcende as tensões e conflitos
finitos destas. Mas, ao fazê-lo, ela incorre em tensões, conflitos e ambigüidades ainda mais
profundas

Paul Tillich
61

O Sincretismo religioso como expressão simbólica das reinvenções cotidianas:


uma introdução ao capítulo

Nesse segundo capítulo será enfocado o “núcleo” teórico que fundamenta a presente
tese. A proposta consiste em um exercício interpretativo da categoria do sincretismo, a partir
das relações entre experiências culturais e religiosas que, por sua vez, fundamentam o diálogo
entre uma “antropologia da cultura e da linguagem religiosa” em Michel de Certeau e a
Teologia da Cultura em Paul Tillich. Essa discussão servirá de base hermenêutica para a
interpretação, no próximo capítulo, da experiência religiosa dos indígenas Guarani e Kaiowá
em torno do projeto da “Igreja Indígena Presbiteriana”, vivida no cenário das múltiplas
fronteiras religiosas (notadamente cristãs) na Terra Indígena do município de Dourados, no
específico estudo de caso proposto. O diálogo anunciado com o pensamento de Michel de
Certeau e Paul Tillich é realizado, a partir de agora, para fundamentar a hipótese/tese central
do trabalho: compreender o sincretismo religioso enquanto expressão “demônica” da cultura,
ou seja, o sincretismo radicaliza a ambigüidade das percepções e interpretações do sagrado e
da experiência religiosa, dentro de espaços culturais “inventados”, de sentido último da
existência, ao evocar tanto um potencial “destrutivo” quanto “criativo” dessas mesmas
expressões culturais. Essa dialética é que caracteriza, justamente, a experiência da
“demonicidade” no sentido tillichiano, ou seja, o sincretismo mantém uma permanente busca
de sentido (sem nunca deixá-lo totalmente transparente sob as condições da existência),
mesmo em meio a uma irrenunciável e sempre presente ambiguidade, em se tratando de
experiência religiosa. Assim, o conceito de demônico, em Tillich, tem uma conotação
profundamente religiosa. O cientista da religião Eduardo Rodrigues da Cruz, por exemplo, ao
enfatizar a centralidade da noção de “ambigüidade” no pensamento de Tillich afirma,
justamente, que o demônico é o correlato dessa ambigüidade em termos de experiência
religiosa65.

A partir disso o capítulo empreenderá um percurso teórico, a fim de mostrar que o


demônico pode muito bem ser visto como um conceito significativo para caracterizar as
múltiplas reinvenções religiosas que os sujeitos e atores religiosos (no caso proposto no

65
CRUZ, E. R. A Dupla Face, p. 134.
62

último capítulo, grupos indígenas Guarani e Kaiowá) operam em seu cotidiano66. E porquê
isso? Porque, justamente, essas “invenções cotidianas” (não seria demais dizer “as condições
sob a existência”, em terminologia tillichiana) é que se tornam a mediação para a vivência
demônica do religioso, o que significa, consequentemente, uma outra maneira de nomear esta
mesma cultura, conforme as contribuições de Michel de Certeau. Por mais que toda vivência
religiosa seja uma tentativa de encontrar múltiplos sentidos para a existência e, assim, ela é
“última” (na perspectiva tillichiana,) não é possível, por hipótese a ser discutida neste
capítulo, que ela não seja vivida em e a partir de “lugares culturais cirscunscritos”. No sentido
certeauniano esses “lugares são um conjunto de determinações que fixam seus limites”,
determinações muitas vezes não próprias daqueles que vivenciam esses lugares (sendo até
mesmo impostas), muito embora os atores sociais religiosos obtém “[...] benefício das
condições impostas para inventar sua própria liberdade, criar para si um espaço de
movimentação” (GIARD, 1995, p. 7)67. Surge, assim, a relação entre táticas e estratégias que
são construtos sociais e teóricos que implicam em relações de poder. As estratégias estariam
mais para os lugares circunscritos por muitas discursividades, enquanto as táticas acionam as
“escapadelas” dessas estratégias, mesmo que essas táticas corram o risco de fundar novas
estratégias, remetendo a uma ambigüidade irrenunciável.

Com isso, este segundo capítulo pretende apresentar, em sua parte final, o neologismo
“diacretismo” para enfatizar a radicalidade da ambigüidade da experiência religiosa e das
múltiplas fronteiras culturais proposta pelo sincretismo. Todavia, antes de introduzir o
“neologismo” supracitado, é importante apresentar o percurso metodológico deste capítulo da
tese. A partir dessa introdução geral, o capítulo conjuga-se basicamente em três seções: a
primeira, procura analisar o aporte da hermenêutica da cultura em Michel de Certeau. Desde
uma breve apresentação de sua trajetória biográfica e intelectual, passando pela compreensão
de “cultura”, “linguagem religiosa” e, também, pela própria interpretação da teologia, uma
vez que esses temas fundamentam a apresentação analítica dos conceitos já anunciados de

66
Nesse caso, enquanto conceito que representa significações, o demônico apresenta uma força metafórica
considerável. “Metáfora” aqui no sentido que Ricoeur empresta ao termo, ou seja, enquanto estrutura do
discurso a metáfora só faz sentido a partir de um processo de interpretação. Só assim ela pode “dizer algo novo
acerca da realidade”. A metáfora é a estrutura da linguagem, do dizer, por excelência, que reinventa as
relações de sentido. Assim, ela mantém-se “viva”, muito embora a expressão de um sentido já decrete,
paradoxalmente, a “morte” da metáfora, exigindo novas interpretações. Cf. RICOEUR, P. Teoria da
Interpretação, p. 62; 64.
67
Luce Giard, uma das principais intérpretes do pensamento de Michel de Certeau, sempre reforça que
interessava ao intelectual francês “[...] uma liberdade inventiva, produtora de mil pequenas astúcias”, na vida
dos seres humanos “ordinários e comuns”. Veja em GIARD, L. La búsqueda de Dios. In: CERTEAU, M. de.
La debilidad de creer, p. 14.
63

“táticas” e “estratégias” que fazem com que o cotidiano seja inventado pelos sujeitos sociais.
São justamente esses conceitos que ajudam a repensar a categoria de sincretismo, pois
aproxima essa categoria da maneira como os seres humanos concretamente operam seus
símbolos de fé nas situações do cotidiano. Essas perspectivas abrem um espaço promissor
para a interpretação dos vários “percursos de mediação” que os indígenas e as indígenas, por
exemplo, inventam em suas (des)apropriações cristãs na terra indígena de Dourados.

A segunda seção procura lançar uma ponte de diálogo em direção às contribuições da


“teologia da cultura” de Paul Tillich e sua filosofia da cultura e da linguagem religiosa. A
ênfase recairá, conforme já anunciado, na discussão em torno de seu conceito de “demônico”
que atravessa, sem exagero, todo o percurso de formação do pensamento desse teólogo, bem
como sua própria biografia. Este conceito ajuda a interpretar a característica simbólica de toda
a linguagem religiosa e, como símbolo, exacerba as implicações de uma leitura ambígua, na
relação com o sagrado, típicas de experiências religiosas vividas na liminaridade fronteiriça
do rearranjo dos múltiplos sentidos religiosos característicos, por hipótese, da realidade
tensiva da Terra Indígena de Dourados, tal como será mostrado no último capítulo. Por isso, a
perspectiva de mostrar as implicações promissoras desse conceito tillichiano para a própria
idéia do sincretismo.
Em uma última seção do capítulo há o objetivo, portanto, de postular uma teoria do
sincretismo religioso utilizando-se de seu “pólo dialético” chamado, conforme afirmado
anteriormente, de “diacretismo”. Por hipótese, se o (syn-)cretismo “une, combina” relações
culturais, experiências religiosas e símbolos de fé configuradores de sentido da existência, ao
mesmo tempo há a experiência da “desagregação”, de “separações”, ou seja, “(dia-)cretismo”.
Sincretismo e diacretismo formam a tentativa de representar, hermeneuticamente, as múltiplas
invenções cotidianas cheias da ambigüidade “demônica” que acompanha toda a experiência
religiosa enquanto experiência de sentidos últimos. Na realidade, é uma tentativa de
aproximar mais concisamente as idéias dos referenciais teóricos supracitados. Assim, procura-
se deixar claro que o problema a ser enfrentado neste capítulo consiste, justamente, no
seguinte: como pensar uma teoria do sincretismo religioso na situação epistemológica “de
fronteira” entre saberes (mais especificamente sociais, antropológicos e teológicos), onde o
que está em jogo é uma profunda questão de alteridade? Em outros termos: se o sincretismo
coloca a pergunta pela construção das imagens do “outro” em situações de “(des)pertenças”
religiosas, como interpretar esse mesmo sincretismo enquanto “percurso de mediação” não
64

somente descritivo, mas produtor de sentidos para o “outro” ou os “outros” que são o próprio
sentido a serem rearranjados nas configurações sincréticas? Eis as questões.
Michel de Certeau e Paul Tillich, pelo menos nas investigações que essa tese teve
acesso, não trouxeram para seus interesses teóricos, sejam antropológicos, filosóficos e
teológicos, discussões específicas em torno da categoria do sincretismo religioso, nem mesmo
como mera forma adjetivada para qualificar os encontros e “misturas” culturais e religiosas.
Muito embora Certeau celebrasse bastante a mélange (“mistura”) cultural brasileira, por
exemplo. Já Tillich, ao contrário de Certeau, não dedicou análises em sua teologia da cultura
para interpretar, por exemplo, expressões simbólicas de fé do incondicionado nas inter-
relações culturais dos povos ameríndios com as missões civilizadoras cristãs. Ainda que a
história das religiões, para além do Cristianismo, estivesse presente no pensamento de Tillich
desde muitos anos, mas que se tornou particularmente avivada nos últimos anos de sua vida e
produção intelectual68. Testemunha disso foi a organização e participação de Tillich no
Seminário sobre “História das Religiões e Teologia Sistemática”, já com setenta e oito anos
de idade (em 1964), juntamente com o fenomenólogo e historiador das religiões, o romeno
Mircea Eliade, na Universidade de Chicago, nos EUA. Como o próprio Eliade afirmava,
interessava à sensibilidade tillichiana a expressão teológica dos significados religiosos
(incondicionais) e humanos em expressões culturais, não somente judaicas e cristãs, mas em
experiências religiosas não cristãs também, como os diálogos que Tillich empreendeu com o
Budismo em suas viagens ao Japão69. Michel de Certeau, por ouro lado, aproximou-se um
pouco mais do tema da relação entre a dominação, muitas vezes imposta pelas missões cristãs,
aos povos ameríndios dos continentes americanos. Em sua obra “Heterologias: discurso sobre
o Outro” ele dedica um capítulo para analisar, justamente, os espaços e lugares criativos a
partir de onde os indígenas inventavam suas relações táticas que “driblavam” as ações
estratégicas dos grupos europeus colonizadores. O fato de afirmar que não há nesses autores a
presença explítica dos temas e conceitos trabalhados nessa tese, no caso o sincretismo e
correlatos, não significa, de form alguma, uma objeção de saída aos mesmos. Pelo contrário:
significa a possibilidade do exercício interpretativo dos espaços e inquietações abertas por
esses pensadores em contribuição para o crescimento da pesquisa, até mesmo em relação a
temas que nunca foram tocados diretamente por eles (sincretismo e povos indígenas no
Brasil). Nesse sentido, Michel de Certeau e Paul Tillich não pensaram somente na “fronteira”

68
Não somente como “fonte” para o seu pensamento teológico sistemático, mas como fonte e horizonte
hermenêutico de toda a sua teologia da cultura. Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, p. 54-5.
69
Cf. ELIADE, M. Paul Tillich y la historia de las religiones, p. 10. Introdução a texto de Paul Tillich
intitulado “El Futuro de las Religiones”.
65

mas, metaforicamente falando, eles mesmos convertem-se “nas fronteiras” em que é possível
colocar-se para o exercício hermenêutico que será realizado nas próximas páginas.

2.1 SINCRETISMO E INVENÇÕES COTIDIANAS: TÁTICAS E ESTRATÉGIAS


CULTURAIS EM DIÁLOGO COM MICHEL DE CERTEAU

Em maio de 1925 nasce, em Chambéry, região da Savóia, na França, Michel Jean


Emmanuel de la Barge de Certeau. Nesse ano o filósofo e teólogo Paul Tillich já encontrava-
se com seus trinta e oito anos, em uma fase de pleno amadurecimento de sua produção
intelectual, ainda em sua terra natal, a Alemanha. Basta lembrar que em 1925 Tillich já havia
produzido textos fundamentais (fruto de várias conferências) acerca de seu projeto de uma
filosofia e teologia da cultura, tais como: “Sobre a idéia de uma teologia da cultura” (1919);
“Estilo religioso e matéria religiosa nas artes plásticas” (1921); “O excesso do conceito de
religião na filosofia da religião” (1922); “A categoria do „sagrado‟ em Rudolf Otto” (1923),
dentre outros. Assim como o luterano Tillich, ordenado aos ofícios pastorais em 1912 e pastor
auxiliar em Berlim até 1914, Michel de Certeau também assumiu uma trajetória
profundamente religiosa ao “formalizar” esse percurso, com seu ingresso na Companhia de
Jesus em 1950, com o objetivo de tornar-se missionário na China (algo que não se
concretizou). Em 1956, aos trinta anos, Certeau é ordenado sacerdote jesuíta, nunca
abandonando a Companhia até sua morte, em 1986, aos sessenta anos, vítima de câncer. Uma
existência que encerrava-se, de certa forma prematura, vinte e um anos após o falecimento de
Paul Tillich.

A partir de 1964, Michel de Certeau passou a lecionar no programa de doutorado em


Teologia do Instituto Católico de Paris, muito embora sua tese de doutoramento tivesse sido
em Ciências das Religiões, obtido na Sorbonne, em 1960, ao versar sobre o itinerário místico
e religioso, no século XVI, do jesuíta francês Pierre Favre, um dos fundadores da Companhia
de Jesus junto com Ignácio de Loyola. Nessa época, um fato importante: a direção do Instituto
Católico “cobra” de Certeau uma produção mais “teológica” e requisitou a ele que
aproveitasse seus estudos sobre a história da mística (principalmente católica), centrada no
padre jesuíta Joseph Surin (que viveu no século XVII), acrescentando uma espécie de
“memorial” onde ele explicitasse suas concepções teológicas. O resultado foi a publicação,
em 1971, do texto “A ruptura instauradora ou o cristianismo na cultura contemporânea”. A
publicação aconteceu na revista francesa de cultura e teologia dos jesuítas intitulada “Études”.
66

O texto não agradou muito aos avaliadores (dentre os quais encontrava-se o teólogo francês
Claude Geffré), possivelmente por seu forte acento em uma epistemologia das ciências da
religião como crítica à teologia e à própria experiência cristã. Essa crítica se pergunta pela
própria condição de possibilidade da fé cristã na atualidade (pelo menos a realidade européia
dos anos sessenta do século passado). Isso fica claro na fala do próprio Certeau no início do
texto citado anteriormente (“A ruptura instauradora...”): “As convicções se relaxam, perdem
seu contorno [...] Ao Cristianismo se lhe assinala um lugar nessa população de “valores”
metamorfoseados [...] Antes inclusive de esclarecer a que crítica está submetida a religião [...]
há que descobrir em uma mutação social o que torna possível ditas análises [...]”70.

É possível perceber, nessa citação anterior, a figura de um intelectual “inquieto”,


sempre a caminho, sempre na “fronteira”: das experiências religiosas, culturais e sociais, dos
valores mutantes, das condições simbólicas e políticas de produção dos discursos, dos
“desvios” nas interfaces dos muitos saberes. Difícil é situar Certeau. Ao pertencer a muitos
lugares, escapa sempre para “não lugares” (existência mística?), justamente por estar em
trânsito entre a Teologia, a Filosofia, a História, a Sociologia, a Antropologia e a Psicanálise,
para ficar nesses saberes. Isso lembra a maneira como o próprio Tillich também qualificava
sua existência. O teólogo luterano dizia: “A vida na fronteira, em uma situação limite, está
cheia de tensão e movimento. Não é estática, senão que, antes melhor, vai e vem de maneira
constante” (TILLICH, 1976, p. 47). Pode-se aplicar esta “vida na fronteira” em relação a
Michel de Certeau também, como testemunha Luce Giard: “Lhe dava gosto recorrer ao campo
dos saberes, cotejar os métodos e comparar as técnicas, sempre sublinhando as rupturas de
nível, as incompatibilidades de princípios e a índole local dos resultados obtidos” (GIARD,
2006, p. 17). Essa concepção fronteiriça e também “desviante” vai ser importante para a
própria construção de uma teoria do sincretismo religioso, como será mostrado mais à frente
no capítulo.

Essas múltiplas fronteiras, como lugar de mediação para a reflexão, vão acentuar-se na
biografia certeauniana quando, nos anos 60 e 70 ele empreende, por questões profissionais,
viagens a vários países, principalmente aos dos continentes americanos, dentre os quais o
Brasil “[...] das mil mestiçagens” (GIARD, 2006, p. 11), a qual nutria um profundo apreço.

70
Cf. CERTEAU, M. de. La ruptura instauradora. In: CERTEAU, M. de. La debilidad de creer, p. 191. Para
um breve itinerário da biografia de Michel de Certeau veja-se o já citado texto de Luce Giard como prefácio ao
texto “La debilidad de creer”, intitulado “La búsqueda de Dios”, p. 7-25, além do texto de Fabio Josgrilberg
intitulado “Caminhos e pensamento”, primeiro capítulo da obra “Cotidiano e invenção: Os espaços de Michel
de Certeau”, p. 17-23. Em 1960, Michel de Certeau edita e publica o texto “Correspondência de Surin” e
consolida, assim, seus estudos sobre o pensamento místico.
67

Vale destacar, por exemplo, que em sua obra clássica “A Invenção do Cotidiano” (L`invention
du quotidien) , em seu primeiro volume intitulado “Artes de fazer” (Arts de faire), Certeau
reflete as “astúcias cotidianas” que fazem da chamada “cultura popular” não “apodrecer” na
sepultura folclorizante dos discursos de uma elite dominadora. Neste texto Certeau evoca seu
estudo interdisciplinar, fruto de um Seminário de Pesquisa realizado em Recife sobre a
linguagem ordinária de trabalhadores rurais, em torno da figura emblemática e carismática
(porque não mística?) de Frei Damião71. Fabio Josgrilberg lembra que Certeau foi um dos
primeiros intelectuais a levar para a França, em 1966, documentos comprobatórios dos atos de
torturas praticadas na ditadura brasileira, fato que acarretou dificuldades posteriores da
entrada de Certeau em terras brasileiras (JOSGRILBERG, 2005, p. 19). A partir dos fatos
marcantes de maio de 1968 na França, Michel de Certeau começa a articular com mais
profundidade os lugares de mediação por excelência de sua trajetória existencial e intelectual:
a mística, a cultura e o político. Primeiro, falemos da mística.

A experiência mística vai marcar a formação de Certeau, tanto no aspecto acadêmico,


principalmente quando o jesuíta tornou-se um dos maiores historiadores da mística cristã nos
séculos XVI a XVIII, onde o “corpus christianum”, na Europa, fragmentava-se
teologicamente e socialmente em muitas hermenêuticas dos símbolos de fé, quanto em sua
própria caminhada existencial e religiosa. Da mística, entendida também como uma
linguagem (dito e não dito) produtora de sentidos “desviantes” aos saberes (linguagem)
religiosos oficialmente estabelecidos, Certeau aprofunda a “pobreza do falar”, a
impossibilidade de se dizer uma verdade única, imutável. A verdade se faz sempre na
caminhada. Conforme afirma Josgrilberg em relação à influência da mística em Certeau:
“Existe uma negatividade implícita ao uso da linguagem, uma impossibilidade lógica dos
signos coincidirem com o real; haverá sempre aspectos da realidade que escapam ao sentido
produzido socialmente. Toda linguagem é marcada por um „outro‟ que lhe precede e escapa”
(JOSGRILBERG, 2005, p. 36). Assim, a mística fundará em Certeau uma autêntica
interlocutora para se repensar a alteridade, o que vai ter profundas implicações em sua leitura
teológica, uma vez que aquele que se nomeia por Deus não pode ser totalmente apreendido
por nossas linguagens. Essa representação simbólica do “Outro”/Divino sempre escapa às
articulações da linguagem, nunca sendo totalmente controlado, “desviando-se”, “[...] minando

71
Cf. CERTEAU, M. de A Invenção do Cotidiano. 1. Artes de fazer, p. 76-9. Sobre a crítica à chamada
“Cultura Popular”, enquanto invenção de uma elite acadêmica “letrada” que não leva em conta os muitos jogos
de táticas e estratégias ordinárias nessas “falas populares”, ver o clássico texto “A Beleza do Morto”, escrito
por Certeau em parceira com Dominique Julia e Jacques Revel, em 1970. Esse texto pode ser encontrado em
CERTEAU, M. de. A Cultura no Plural, p. 55-85.
68

nossas convicções, daí a necessidade de novas partidas a partir dos equilíbrios [instáveis]
adquiridos. Essa é a dinâmica espiritual, essa é a dinâmica do conhecimento”
(JOSGRILBERG, 2005, p. 47). É a caminhada mística. É possível pensar que Paul Tillich não
discordaria dessa perspectiva e que é plausível anunciar uma teoria do sincretismo e do
diacretismo religioso como a expressão radicalmente hermenêutica de pensar o “outro”,
sempre em termos dos “encontros e desencontros” dos símbolos de fé quando esse “outro”
exprime, parcialmente/fragmentariamente, o “eu mesmo” (fronteiras identitárias). Se há
sempre aspectos da realidade que escapam àquilo que Certeau chamou de “sintaxes
prescritas”, sempre preocupou a Certeau uma profunda reflexão sobre as dinâmicas culturais,
dinâmicas essas que sempre estiveram presentes em sua leitura historiográfica. Falemos agora
da inserção cultural.

As revoluções políticas e sociais que “sacudiram” diversos países em 1968 marcaram


profundamente a Michel de Certeau. Isso fez com que se tornasse um pensador muito sensível
à reflexão sobre as práticas culturais. É importante destacar, nesse contexto, a publicação, em
1974, da obra “A Cultura no Plural” (La Culture au Pluriel). Esta obra constitui-se em uma
“coletânea” de vários textos de Certeau produzidos no período de 1968 a 1973, período esse
que antecede os anos de 1974 a 1978 que, por sua vez, será o período que reunirá os estudos
que formarão a sua obra clássica “A Invenção do Cotidiano”, em 1980. Vale destacar que em
“A Cultura no Plural”, principalmente na parte III intitulada “Políticas Culturais” e na
conclusão chamada “Espaços e Práticas”, Certeau já fundamenta uma extensa discussão
sobre o conceito de “cultura” e a preocupação de encará-la em todo seu potencial tensivo e
inventivo que vai caracterizar seus estudos posteriores. Isso é perceptível na seguinte
afirmação:

[...] a cultura oscila mais essencialmente entre duas formas, das quais uma
sempre faz com que se esqueça da outra. De um lado, ela é aquilo que
“permanece”; do outro, aquilo que se inventa. [...] A cultura é uma noite
escura em que dormem as revoluções de há pouco, invisíveis, encerradas nas
práticas _, mas pirilampos, e por vezes grandes pássaros noturnos,
atravessam-na; aparecimentos e criações que delineiam a chance de um
outro dia (CERTEAU, 2005, p. 239)

Nessa citação evoca-se novamente a metáfora da “fronteira tensiva” para caracterizar a


cultura, ou melhor, culturas, já que ela só pode ser conjugada no plural: as fronteiras
ambíguas que marcam a tensão entre o permanente e a dinâmica da invenção, dinâmicas essas
69

que subvertem com certa “luminosidade” inventiva os espaços consolidados que, no final das
contas, correm o risco da imobilidade que não deixa enxergar novas possibilidades. Vai ser
justamente as práticas culturais cotidianas do “ser humano ordinário” os “vaga-lumes” que
irão iluminar e por em movimento essas imobilidades. Essa perspectiva vai dar o tom da obra
certeauniana. A metáfora do “outro dia”, na citação longa anterior, retoma a perspectiva da
alteridade afirmada na herança do pensamento místico. As práticas culturais em Certeau,
profundamente simbólicas, exigem isso: são práticas sempre do outro, do “outro” cotidiano
muitas vezes invisibilizado pelos discursos formais que monopolizam e encerram as
diferenças culturais em um reducionismo homogenizador. Do outro que é o “Herói comum.
Personagem disseminada. Caminhante inumerável” (CERTEAU, 2003, p. 57). Agora, o
político.

Essas perspectivas em torno de uma teoria da “alteridade cultural” estão, também,


intimamente relacionadas com o “político” em Michel de Certeau. O jesuíta francês não era
ligado a partido político, mas foi profundamente marcado pela esquerda francesa de seu
tempo e pela sensibilidade em relação aos movimentos sociais e revolucionários que
marcaram o contexto europeu e latino-americano dos anos sessenta e setenta do século
passado72. Para Michel de Certeau a análise da função social da cultura não pode estar
desvinculada do campo das suas possibilidades táticas e estratégias e da sua dimensão
política. Na realidade, a análise política da cultura e das políticas culturais implica, em
Certeau, na interpretação das organizações de poder que permeiam essas relações culturais.
Esse poder pode ser assim expresso: “[...] a política não garante a felicidade nem confere
significado às coisas. Ela cria ou recusa condições de possibilidade. Ela proíbe ou permite:
torna possível ou impossível” (CERTEAU, 2005, p. 13). Assim, Certeau debruça-se para
mostrar como a experiência cultural pode fender os poderes políticos através de possibilidades
inventivas (GIARD, 2005, p. 14). Essas condições de possibilidades e impossibilidades da

72
Essa perspectiva faz lembrar novamente a Paul Tillich que, próximo do socialismo do Partido Social
Democrata Alemão, após a Primeira Guerra Mundial, fez da reflexão política um aspecto decisivo em sua
filosofia da religião e teologia da cultura. A possibilidade de um “socialismo religioso” em Tillich evoca,
dentre outros aspectos, uma crítica às decisões políticas como formulações de poder, pois implica que a
política, enquanto uma das formas culturais pode ser “veículo” que expressa preocupações incondicionais
(religiosas) ou pode absolutizar-se destrutivamente (como aconteceu, por exemplo, com o Nacional Socialismo
de Hitler) como portadora única do incondicionado. Em Tillich a experiência política/cultural simboliza a
experiência com o sagrado, mas nunca se apossa totalmente desse grande “outro”, lembrando traços da
experiência mística e da alteridade. Para maiores matizações sobre o pensamento político e religioso em
Tillich, veja-se o texto de Jorge Pinheiro intitulado “Teologia e Política. Paul Tillich, Enrique Dussel e a
experiência brasileira”, fruto de sua tese de doutorado.
70

política, Certeau capta-as muito bem a partir de suas análises contextuais das políticas
culturais na Europa (e na França, em particular).

Fruto dessas análises é o relatório que Certeau produz sobre o Colóquio Internacional
de Arc-et-Senans preparatório para o encontro em Helsinque, de ministros da cultura, para
definir uma espécie de “política européia da cultura”, em 1972. Esse relatório vai ser um dos
textos base da já citada obra “A Cultura no Plural”, título este que já anuncia a posição de
Certeau em recusar a “[...] uniformidade que um poder administrativo gostaria de impor em
nome de um saber superior e do interesse comum” (GIARD, 2003, p. 13). Além disso,
Certeau participa de um projeto patrocinado pela Délégation Générale à la Recherche
Scientifique et Technique, órgão diretamente ligado ao ministério da cultura francês, com o
objetivo de mapear e analisar casos concretos das múltiplas faces culturais na França, a fim de
desenvolver políticas mais especificas e legítimas para esse país. A pesquisa tem o seu
relatório final em 1979 (começou em 74). Michel de Certeau deixa claro nessa pesquisa que
as políticas culturais devem centrar-se em modelos de análise que privilegiem a “multidão
anônima”. Essa “multidão” deixa de ser consumidora passiva dos bens culturais para tornar-se
“consumidora inventiva”, atores sociais ativos nas relações dinâmicas de múltiplas
experiências cotidianas que perfazem as “Artes do Fazer” (por exemplo, caminhar pelas ruas,
cozinhar, ler, assistir televisão, praticar esportes e outras “artes”). Fica claro que é encontra-se
nesse trabalho a base substancial de sua já citada clássica obra, “A Invenção do Cotidiano”.

Por fim, Luce Giard afirma que o “político” em Michel de Certeau sempre vai evocar
também uma “presença ausente” (massificação das experiências culturais) e uma “ausência
presente” (o inominável cotidiano) do outro, ou seja, as reflexões políticas de Certeau, ao
repensar os projetos de poder culturais, fazem sempre isso: uma reflexão sobre a alteridade
mesma, uma reflexão de volta ao “místico”, ou seja, uma presença que sempre escapa,
presença fugidia: “[...] por um lado, a relação com os outros, onde reconhece „o político‟. Por
outro, a relação com aquele que, por mais diferente que seja, permanece fora do alcance do
desejo, onde vem o „místico‟” (GIARD, 2006, p. 18). Essa articulação entre o místico e o
político funda a paixão irrenunciável pela alteridade em Certeau. Assim, fica mais fácil
compreender que não é exagero a afirmação feita, no capítulo anterior, de que todo o percurso
traçado pelas ciências sociais e a teologia, no que diz respeito à interpretação do sincretismo,
situou essa interpretação no campo das relações culturais enquanto das relações de poder (a
dimensão política). Situou, também, no campo de certa “mística” enquanto linguagem
71

configuradora e intérprete de sentido na construção das imagens de Deus e da revelação na


interface de múltiplas fronteiras simbólicas.

Esses aspectos introdutórios que expõem traços da biografia certeauniana, colocam o


“pano de fundo” para a articulação interpretativa dos conceitos centrais que servirão de base
para as implicações de uma teoria do sincretismo religioso, também em diálogo com o
pensamento de Paul Tillich, nas próximas seções. Isso significa: como a articulação de uma
hermenêutica da cultura em Michel de Certeau reinventa práticas cotidianas, notadamente
religiosas, o que implica também no repensar o próprio discurso teológico. Esse exercício
incidirá, no último capítulo, em possibilidades interpretativas do cotidiano religioso e de fé de
grupos indígenas Guarani e Kaiowá do Projeto envolvendo as Comunidades das Igrejas
Indígenas “Presbiterianas” da Terra Indígena de Dourados/MS.

2.1.1 Religião enquanto cultura “heteróloga”

Não é objetivo dessa tese apresentar um estudo exaustivo sobre Michel de Certeau
acerca de suas análises culturais e da experiência religiosa, mesmo porque esse autor
construiu seu itinerário na fronteira dialógica com vários marcos teóricos: da psicanálise, a
interface com Sigmund Freud e Jacques Lacan; da filosofia, a interface com Friedrich
Nietzsche, Martin Heidegger, Ludwig Wittgenstein, Georges Bataille, Maurice Blanchot,
Jacques Derrida e Emmanuel Lévinas; das ciências sociais, a interface com Michel Foucault,
Pierre Bourdieu, Clifford Geertz e Edward Said; da lingüística e semiótica, a interface com
Algirdas Greimas e Émile Benveniste; da teologia, a interface com a já citada mística de
Pierre Favre e Jean-Joseph Surin, além da influência mais contemporânea de Henri de Lubac,
só para ficar nesses exemplos por si só grandiosos. Tamanho entrecruzamento de métodos e
tendências não poupou a Certeau de críticas situadas no plano epistemológico de um certo
risco da perda da especificidade de seu próprio método e trabalho: nas obras do jesuíta francês
apareceria menos dele e mais dos outros (AHEARNE, 1995, p. 3). Todavia percebe-se, desde
já, que Certeau assumia não somente a “heterologia” como categoria analítica para suas
formulações teóricas, mas a “heterologia” era um empreendimento de vida, uma postura
interpretativa existencial sobre a realidade, uma “reflexão com e sobre o outro, o diferente”
(héteros). Testemunho disso é a afirmação de Fábio Josgrilberg: “Talvez seja uma das
características mais marcantes de Certeau essa disponibilidade para ouvir o outro, estar aberto
72

à surpresa de uma presença que manifesta [...]” (JOSGRILBERG, 2005, p. 22). De acordo
com Eduardo Gusmão de Quadros, Certeau sempre se esforçou por manter as tensões entre os
diversos regimes de conhecimento, caso contrário o diálogo não seria possível e o pensamento
tornaria-se refém de meros “empréstimos conceituais”. Ao transitar em diversos horizontes
teóricos, buscando manter certa independência entre os mesmos, Certeau viveu suas
ambigüidades: garantia o necessário espaço de autonomia para as críticas, mas angariava para
suas ideias certa desvalorização por parte dos espaços e consensos acadêmicos formais em
cada campo do saber73. Com a crise da legitimidade de grandes paradigmas teóricos e, após
sua morte, o interesse sobre os trabalhos de Michel de Certeau foram retomados nos anos 90
do século passado.

Luce Giard, por sua vez, ao enfocar esse “entrecruzamento de métodos” na formulação
de uma história cultural em Certeau, afirma que ele não o fazia por um “[...] ecletismo
cômodo ou [...] um sincretismo conciliador, mas porque desejava captar novamente cada
momento histórico na multiplicidade de seus componentes e a contradição de seus conflitos”
(GIARD, 2005, p. 8). Chama a atenção o uso do termo “sincretismo” nessa citação, onde há
uma típica tendência de “pacificar” o conceito como uma “união estável” de ideias e métodos,
algo que essa tese não concorda. Na realidade, é justamente a ênfase na “multiplicidade”, nas
“contradições e conflitos” da citação anterior, desde que não marcadas excessivamente pela
negatividade, é que se pode qualificar o sincretismo como construto das fronteiras dos
saberes. Nesse sentido, ao contrário do que afirma Giard, Certeau funda um pensamento
“sincrético”, justamente por ser heterológico.

Por falar em análises culturais, a ênfase em colocá-las como um discurso sobre a


“diferença” sem perder de vista as possibilidades conflitivas e criadoras no horizonte das
“fronteiras” dos saberes, é muito presente na atualidade. É possível lembrar aqui de autores e
autoras como Homi Bhabha, Boaventura de Souza Santos, Stuart Hall e Glória Anzaldúa
como exemplos dessa perspectiva (ou do próprio antropólogo Massimo Canevacci,
apresentado no capítulo anterior). Hall, por exemplo, qualifica os movimentos de trânsito
cultural nas sociedades globalizadas por “hibridismos e sincretismos” culturais ao celebrar a
força criativa de novas modalidades culturais nessas expressões. Para ele as identidades
culturais “híbridas e sincréticas” o são porque vivem na tensividade de “tradições” e
“traduções”: muitas identidades culturais se formam na transição entre diferentes tradições,

73
QUADROS, E. G. de. O triunfo da diferença: Michel de Certeau e a história do religioso. Estudos de
Religião, São Bernardo do Campo, ano XX, n. 3, p. 75; 77, dez. 2006.
73

sendo “[...] o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez
mais comuns num mundo globalizado”. Mas há também as traduções, ou seja, as formações
identitárias “[...] atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que
foram dispersadas para sempre de sua terra natal. [...] elas são obrigadas a negociar com as
novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas [...] e sem perder
completamente suas identidades”74. Essas pessoas e grupos são irremediavelmente traduzidas
(“transferidas”, “transportadas entre fronteiras”, conforme a etimologia do termo),
despedindo-se do sonho ou ilusão de uma identidade perdida ou de uma unificação em torno
de uma nova identidade a ser alcançada. São as “identidades diaspóricas”, outra metáfora
usada por Hall para qualificar esses processos.

É possível encarar o sincretismo nessa perspectiva, ou seja, entre a tensão


interpretativa na fronteira entre tradição e tradução, para a realidade da terra indígena de
Dourados hoje, como será mostrado no próximo capítulo. Essa terra indígena, por exemplo,
cercada pelo contexto urbano da cidade (que vive as tensões de uma modernidade tardia e
global, no dizer de Hall), onde os indígenas, particularmente os que experimentam as
múltiplas fronteiras religiosas cristãs, vivem em um cenário pluriétnico onde são chamados a
renegociarem cotidianamente seus universos simbólicos. Nos termos apresentados:
reinterpretam a tradição ao mesmo tempo em que vivem as traduções. Essa relação entre
tradição e tradução receberia a nomeação de “invenção” em Michel de Certeau.

Mas o fato é que esses estudos culturais pontuam o seguinte: para que se dê conta de
um “objeto” tão fluido como as “culturas híbridas ou sincréticas” é precisar equacionar um
método plural que sobreviva “na fronteira”, com todos os riscos envolvidos. Assim, esses
estudos, ainda que não o nomeiem explicitamente, “fundam” culturas heterólogas e fazem da
heterologia o espaço de reflexão analítica e interpretativa. É sempre o “outro”, o “diferente”,
invizibilizado, ausente e errante que está na pauta das preocupações. Nesse sentido, Michel de
Certeau antecipa questões que se tornaram centrais nas preocupações dos estudos culturais da
atualidade.

Voltemos, portanto, a Michel de Certeau. A heterologia força a concepção de culturas


plurais ou “no plural”, outra nomeação encontrada nos textos do intelectual francês.
Retomando a obra “A Invenção do Cotidiano”, percebe-se que a perspectiva de Certeau sobre

74
HALL, S. A identidade cultural na Pós-Modernidade, p. 88.
74

as manifestações culturais e, porque não, religiosas, privilegiam o olhar dos “consumidores


não passivos”, retomando críticas ao pensamento de Michel Foucault. Certeau afirma:

Este trabalho [A Invenção do Cotidiano] tem portanto por objetivo explicitar


as combinatórias de operações que compõem também (sem ser
exclusivamente) uma “cultura” e exumar os modelos de ação característicos
dos usuários, dos quais se esconde, sob o pudico nome de consumidores, o
estatuto de dominados (o que não quer dizer passivos ou dóceis). O cotidiano
se inventa com mil maneiras de caça não autorizada (CERTEAU, 2003, p.
38)

É importante perceber na citação anterior a metáfora da “exumação”, ou seja, a


percepção das culturas (sempre no plural), a partir de relações criativas cotidianas “mortas”
pelo aparato teórico e prático de estruturas dominadoras que “circunscrevem” as ações desses
sujeitos/consumidores em supostas passividades. Para Certeau a experiência cultural é
interpretada a partir de uma “hermenêutica da ressurreição” (a metáfora é proposital) sobre
“as combinatórias de operações” efetuadas pelos consumidores que, por sua vez, botam em
cena culturas sempre em movimento, inventadas. Esta aí a base de reflexão para a elaboração
de conceitos como “táticas e estratégicas” que serão apresentados um pouco mais à frente (na
subseção 2.1.3). Nesse sentido o “objeto” de estudos culturais é sempre “fugidio”, pois
constitui-se no “ser humano anônimo”, “herói comum”, “personagem disseminada”, um
“outro” que sempre assombra (CERTEAU, 2003, p. 57). Não que Certeau rejeite em seus
estudos culturais a linguagem performativa (e não somente informativa) dos aparatos
institucionais que disciplinam o que é ou não “cultural”. Mas rejeitava uma leitura “neutra” e
“universal” da noção de cultura. Essa leitura “neutra” operada, segundo ele, por muitas
políticas culturais e também por discursos científicos das “ciências humanas” era, na
realidade, o sintoma de uma sociedade que abstrai seus problemas das ações combinatórias
cotidianas onde eles realmente acontecem: “Acaba-se, portanto, por imaginar que a cultura
possua uma autonomia indiferenciada e flexível. Ela se caracteriza por um não-lugar onde
todos os investimentos são possíveis, onde pode circular o que quer que seja” (CERTEAU,
2005, p. 199).

Trata-se de uma questão de perspectiva: a mudança no olhar a partir de onde se capta e


se interpreta a cultura. Justamente isso: análises culturais, em qualquer campo das ciências
humanas, implicam, antes de tudo, na análise do “lugar” a partir do qual se produz a
linguagem sobre a cultura. Na própria noção de “lugar” encontra-se, em Certeau, o conjunto
75

de determinações que fixam os limites que circunscreve quem e como é possível falar da
cultura. Todo poder inventivo de viver e produzir dinâmicas culturais o é a partir desses
lugares circunscritos: uma dialética entre o rígido e o flexível, outra maneira de definir a
“cultura no plural”, tal como é possível perceber na afirmação: “Ora, as ações culturais
constituem movimentos. Elas inserem criações nas coerências legais e contratuais. Inscrevem
trajetórias, não indeterminadas, mas inesperadas, que alteram, corroem e mudam pouco a
pouco os equilíbrios das constelações sociais” (CERTEAU, 2005, p. 250). A questão é: quem
determina as permanências e inventividades, o rígido e o flexível? Depende do lugar
hermenêutico assumido para lançar o olhar. No caso de Certeau, o olhar deve ser feito a partir
de múltiplas mediações se a análise deve privilegiar as práticas anônimas dos sujeitos e atores
sociais cotidianos, caso contrário insistir-se-á em uma cultura no singular (ou “homológica”),
uma vez que fundada em “um singular do meio/mediação” (CERTEAU, 2005, p. 227).
Necessário é uma análise cultural “heterológica” fundada, por sua vez, em uma diferenciação
de mediações hermenêuticas ao procurar entender como os inventores e inventoras do
cotidiano fundam, eles e elas mesmas essas mediações, esses discursos ordinários sobre o
outro, o diferente.

As experiências religiosas e a pluralidade dos discursos e linguagens científicas que


carregam em seu “objeto” o termo “religião” devem ser vistas a partir dessa perspectiva
heteróloga. Todavia, a partir do contexto europeu (particularmente francês) onde Certeau
pensou a “experiência religiosa”, essa mesma experiência é vista como o “retorno de um
reprimido”, expressão cara a Certeau em sua epistemologia. O jesuíta francês pensa a religião
a partir de um forte espectro secularizante que, ao mesmo tempo em que alija a experiência
religiosa da vida social efetiva, transforma-a no grande “produto” objetificável e
racionalizável das chamadas ciências humanas. Isso instaura um equívoco e um problema. De
acordo com sua própria fala: “[...] o conteúdo religioso oculta as condições de sua produção; é
o significante de outra coisa daquilo que diz; é uma alegoria por decifrar, o disfarce de um
modo de produção que a análise científica se dá a tarefa de reconstituir” (CERTEAU, 2006, p.
200). Reconstitui, muitas vezes, isolando o religioso das vivências cotidianas, da inquietude
social e das exigências comunitárias que postam, a partir de suas práticas, de fato as condições
de sua produção. O religioso, nas mãos das ciências converte-se, muitas vezes, em “modelos
sócio-históricos ou mecanismos psicológicos” (CERTEAU, 2006, p. 201), “folclorizado” pela
76

erudição75. Assim, para as ciências humanas que se ocupam do “objeto” religioso e forma o
leque das “ciências da religião”, a experiência religiosa é até importante e central nas
“sociedades tradicionais” que, por sua vez, tinham a religião como estruturadora de sentido e
algo “dado/explicado” por essas mesmas sociedades. Agora não: o “explicado”, nas
sociedades secularizantes, torna-se aquilo que se deve “explicar” por mediação dessas
ciências.

Não é difícil perceber que em Certeau a experiência religiosa é uma experiência de


sentido, de significação da realidade, principalmente via linguagem simbólica, onde essa
linguagem transforma um “outro” em espaço profundamente sagrado/transcendente. Todavia,
diferentemente de Paul Tillich, por exemplo, não fica claro em Certeau se o sentido produzido
pela experiência religiosa expressa um sentido incondicional. Ao tratar da experiência
religiosa enquanto experiência cultural, a ênfase certeauniana parece recair mais naquilo que
Tillich chamava de expressões condicionadas do incondicionado, ou seja, as formas culturais.
Em outras palavras: na linha de uma leitura mais antropológica, a “substância” da religião
seriam as culturas, invertendo a máxima tillichiana76.

Para Michel de Certeau, no auge de seus escritos sobre cultura no fim dos anos 60 e
toda a década de 70 do século passado, a experiência religiosa e cristã, em particular, era lida
como uma profunda crise de sentido. Por “sentido”, Certeau deixa claro que se trata das
significações globais que os seres humanos (enquanto sujeitos e atores sociais) dão à sua
práxis, seu discurso ou situação (CERTEAU, 2006, p. 191). Nesse aspecto, marcado pela sua
perspectiva heterológica, não há mais referências seguras e privilegiadas. As afirmações de
sentido são um “resto”: o “resto” que constitui-se nos “outros”, em “[...] uma população de
„valores‟ metamorfoseados em legendas por nossas sociedades do espetáculo” (CERTEAU,
2006, p. 191). Esse “resto” torna-se o lugar possível para o próprio cristianismo e a teologia,
em particular, já que esse mesmo cristianismo, ao se perder enquanto referência privilegiada e
hegemônica acaba se reinventando na multidão dos “outros” possíveis. Essa situação e
espírito de época “metamorfoseante” faz com que as ciências da religião, na leitura
certeauniana, passem por profundas mudanças ao postular, a essas mesmas ciências, um
desafio: ou elas convertem-se nas ciências humanas que tem por objeto a “religião”
(sociologia, antropologia, psicologia, dentre outras) ou convertem-se na “[...] expressão

75
“A uma racionalização do saber parece corresponder uma folclorização das verdades de ontem”. Cf.
CERTEAU, M. de. La ruptura instauradora. In: CERTEAU, M. de. La debilidad de creer, p. 191.
76
Esses e outros conceitos tillichianos serão discutidos mais à frente, nesse mesmo capítulo, a partir da “seção
2.2”.
77

proliferante e metafórica de grandes interrogações contemporâneas que, fora de toda crença, e


a falta de uma linguagem apropriada, utilizam o repertório religioso para designar-se”
(CERTEAU, 2006, p. 255). Nessa última citação a “falta de uma linguagem apropriada” não
significa “falta de linguagem” ou “linguagem imprópria”, mas “linguagem inacabada” ao
abrir espaço, justamente, para um repertório “inventivo”, razão de ser das “utilizações”
afirmadas pelos seres humanos que vivenciam suas experiências religiosas: novamente a
religião passa a ser “metáfora”, linguagem do “desvio” para significar a realidade. Por isso,
não resta às ciências da religião senão, conforme Certeau, “[...] manifestar-se aqui na forma
de misturas interdisciplinares, de uma perturbação na objetividade técnica, e quase de uma
ferida nas disciplinas do saber” (CERTEAU, 2006, p. 256). Ou seja, se o “método” de uma
ciências da religião parece ficar muito fluído e impreciso em Certeau é porque ele quer focar
justamente isso: não se trata somente de interpretar o “outro”, o “diferente” (algo que as
demais ciências humanas já fazem), mas como fazer do héteros o próprio espaço a partir de
onde se pensa a experiência religiosa em suas múltiplas facetas.

Parece ser esse o sentido das “misturas interdisciplinares” na citação anterior. Se a


cultura é heretóloga não há porque ser diferente com a religião. Em outras palavras: se uma
das epígrafes desse capítulo afirma, nas palavras do próprio Certeau, que a cultura é uma
proliferação de invenções em espaços circunscritos, correlativamente o mesmo ocorre com a
religião. Com isso, é necessário construir um método em ciências da religião que dê conta
dessa “proliferação”. Assim, as ciências da religião tornam-se o lugar privilegiado de um
método heterológico enquanto exercício hermenêutico de compreensão de experiências
religiosas e culturais não menos heterológicas. O héteros aqui é “autorreferente”, no sentido
de apontar para o próprio “rosto” das ciências da religião e também referente ao próprio
“objeto” que é também difuso, plural e fronteiriço: os muitos outros que fundam as
experiências religiosas.

Esses argumentos aproximam-se bastante de toda a discussão empreendida no


primeiro capítulo acerca do sincretismo religioso. Enquanto fenômeno religioso
manifestamente cultural, os argumentos apresentados até aqui mostram que “heteróloga” é
outra nomeação interpretativa para o sincretismo, ou seja, o sincretismo, no âmago de sua
compreensão é a radicalização da heterologia em termos religiosos: não se trata somente de
descrever e interpretar os encontros e desencontros dos contatos interculturais, mas o que
significa pensar esses encontros e desencontros como o próprio espaço de mediação, como
pensar o sincretismo religioso enquanto metáfora das “misturas interdisciplinares” afirmadas
78

por Certeau. É justamente nas relações entre os conceitos de táticas e estratégias que é
encontrada uma, dentre outras possibilidades, de compreensão das ambigüidades culturais que
marcam os processos inventivos qualificadores das experiências religiosas, portanto,
heretológicas. Mas antes da análise da díade “estratégias-táticas”, serão apontados alguns
fragmentos da própria compreensão heterológica da teologia em Certeau, a fim de reforçar e
ampliar os argumentos aqui expostos. No momento, encerra-se essa subseção com a
afirmação do historiador Eduardo Quadros, referente ao pensamento heterológico de Certeau:
“[...] A abordagem epistêmica de Michel de Certeau fornece uma navalha afiada para o corte
das presunções simplificadoras e autoritárias; permite que se rompa com as suturas que
denegam a diferença. Sem ela, o Outro sequer será desejado” (QUADROS, 2006, p. 86)

2.1.2 A Teologia enquanto discurso “heterológico”

As influências teológicas em Certeau já foram anunciadas. Importa analisar um pouco


mais algumas dessas perspectivas com o objetivo de elucidar outros aspectos da compreensão
de uma cultura heterológica. Embora Certeau enfatize em alguns de seus textos a perda da
hegemonia das Igrejas cristãs como portadoras de um discurso de credibilidade que torne
crível, enquanto configurador de sentido, os símbolos de fé, isso não significa,
necessariamente, a derrocada do pensamento teológico cristão. Assim ocorre, pois sempre
haverá um deslocamento em curso, aonde a linguagem teológica vai além das instituições que
pretendem possuí-la de maneira absoluta77.

De acordo com François Dosse, um dos principais intérpretes e biógrafo do jesuíta


francês78, a formação teológica de Certeau começou cedo, aos dezenove anos de idade no
Seminário de Saint-Sulpice, em Issy-les-Moulineaux, na França, próximo do desfecho da
segunda guerra mundial em 1944. Em 1947 Michel de Certeau vai para Lyon continuar seus
estudos superiores com o objetivo de ingressar na “Companhia de Jesus” (ainda que tenha
interrompido os estudos filosóficos e teológicos em Saint-Sulpice no período de 1945 a 46, o
que lhe deu a oportunidade de estudar Letras na Universidade de Grenoble). Vai ser

77
Certeau amplia a questão: como não mais garante em seu interior o espaço social e cultural onde habita a
verdade, “[...] o corpo cristão já não tem identidade; fragmentado, disseminado, perdeu sua segurança e seu
poder de engendrar militâncias, tão somente em seu nome”. Cf. CERTEAU, M. de. La debilidad de creer. In:
CERTEAU, M. de. La debilidad de creer, p. 306.
78
A obra de Dosse que serve de base aqui é a tradução espanhola do texto Le marcheur Blessé, intitulada El
caminante Herido (“o caminhante ferido”).
79

justamente em Lyon que Certeau terá a sua formação teológica marcada por vários
professores jesuítas do Seminário de Fourvière, considerado um centro de renovação da
teologia católica na época, em um momento difícil do pós-guerra. Teólogos como Jean
Daniélou, Henri de Lubac e Hans Urs Von Balthasar marcaram essa instituição e época. Foi o
“segundo” período (de 1946-50), conforme afirma Rosino Gibellini, da chamada “nouvelle
théologie” (“nova teologia”), expressão utilizada para caracterizar a dita renovação teológica
do período, muito embora houvesse resistência dos teólogos de Lyon-Fourvière em aplicar a
si mesmos essa expressão. Talvez isso seja em parte explicável porque a expressão foi
utilizada pelo então comentador oficial dos atos do Vaticano, o teólogo Pietro Parente, para
qualificar, depreciativamente, essas “novas tendências” no cenário teológico católico como
tendências obscuras, que levavam a Igreja a flertar perigosamente com um pretenso
“relativismo modernista”79.

Vai ser justamente no teólogo Henri de Lubac (1896-1991) que Certeau encontrará
referências teológicas e existenciais que vão marcar profundamente sua vida. Certeau,
inclusive, vai nutrir profunda admiração e respeito por seu mestre até o fim de sua vida. Em
1949 Certeau ingressa formalmente na Companhia de Jesus após encerrar seus estudos
universitários em Lyon, em 1950, com o grau de licenciado em Teologia. De acordo com
Dosse, Michel de Certeau, assim como Henri de Lubac “[...] compartilham uma escrupulosa
preocupação pela história, assim como uma atenção particular às diversas reutilizações da
tradição no seio da modernidade” (DOSSE, 2003, p. 57). Além disso, Dosse afirma que muito
da compreensão em Michel de Certeau de uma linguagem da equivocidade, pluralista,
necessária para que a teologia cristã pudesse dialogar mais apropriadamente com o mundo
moderno (para outros saberes já se tratava da crise da modernidade), denota a influência de
Lubac (DOSSE, 2003, p. 58-9). Portanto, ressignificar o fazer teológico ao levar em conta as
categorias da historicidade e subjetividade, recuperando a dimensão social da Igreja, eram
desafios prementes para a época de formação teológica de Certeau. Henri de Lubac, nos anos
50, teve alguns de seus escritos condenados pelo Vaticano (por exemplo, o texto
“Sobrenatural”, de 1946) por, na leitura da Santa Sé, contribuir para que a substância católica

79
Cf. GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p. 168-9. A título informativo, o primeiro período da nouvelle
théologie estabeleceu-se em torno da escola de teologia em Le Saulchoir (inicialmente localizada na cidade
belga de Tournai), principalmente a partir de 1938 até 1945, deflagrada pelo texto do teólogo dominicano
Marie-Dominique Chenu intitulado “Le Saulchoir: uma escola de teologia” (1937). O texto, um pequeno
opúsculo, foi parar no Index Librorum Prohibitorum do Vaticano. Chenu perdeu sua direção e cátedra na
referida escola de teologia. Todavia, anos depois, foi reconduzido à comunhão plena da Igreja e tornou-se,
inclusive, um dos peritos do Concílio Vaticano II nos anos sessenta do século passado. Cf. Idem, ibidem, p.
165; 168.
80

da Igreja se tornasse refém do modernismo secularizante, contrariando o espírito da encíclica


Humani Generis, de 1950. De Lubac foi destituído de suas cátedras, seus textos retirados das
bibliotecas da Companhia de Jesus e ele foi forçado a viver uma experiência de profundo
isolamento e solidão em relação a muitos de seus pares conciliares80. Essas intempéries só
foram superadas, pouco a pouco, a partir da preparação para o Concílio Vaticano II, onde o
padre de Lubac, reintegrado à comunhão plena da Igreja tornou-se, inclusive, perito conciliar
e, mais tarde, assumiu o cardinalato em 1983.

É importante também frisar que o pensamento místico chega a Certeau por influência
de Henry de Lubac, principalmente através das obras deste intituladas Corpus Mysticum (de
1944), onde articula a relação entre Igreja e Eucaristia na Idade Média ao estabelecer uma
relação dialética entre a teologia simbólica patrística e o forte tomismo da escolástica clássica
e a obra, em quatro tomos, intitulada Exegese Medieval (os dois primeiros tomos de 1950, o
terceiro de 1960 e o último de 1964). Nesta última obra de Lubac põe em revisão a noção de
“Mistério” no exercício da interpretação das Escrituras Sagradas ao interpretar esse “mistério”
como paradoxo e incessante busca: busca pela expressão simbólica da palavra, sem nunca
alcançar e traduzir totalmente a plenitude do divino. Ecos dessa leitura vão marcar
profundamente os textos clássicos de Certeau sobre a Mística, tanto sua obra acerca de Pierre
Favre e sobre Jean-Joseph Surin, bem como o texto “A Fábula Mística” (La fable Mystique,
vol. 1: XVIe-XVIIe siècle), cujo segundo volume ficou incompleto por conta de seu
falecimento. Esses “ecos” podem ser percebidos, mais uma vez, na afirmação de Dosse: “Este
modo de ser místico é, segundo Certeau, sobretudo um modo de dizer, um estilo caracterizado
pela figura do paradoxo, a constatação de uma tensão que não se pode superar expressada
mediante oxímoros como: „noite luminosa‟, „noção confusa‟, „ferida feliz‟ para dizer o
indizível” (DOSSE, 2003, p. 60-1).

Todavia, a tensão vai marcar, paradoxalmente, a própria relação de Certeau com de


Lubac. Após ingressar de fato e de direito na Companhia de Jesus, em 1963, de Certeau se
abre, também, para um profundo diálogo com diversos campos do saber e com as múltiplas
expressões e movimentos culturais, principalmente em solo francês. A partir de 1964 Certeau
torna-se um dos fundadores, junto com Jacques Lacan, da Escola Freudiana de Paris,
inaugurando um período em seu percurso intelectual para além das fronteiras eclesiásticas. De
Lubac passa a criticar seu ex-aluno por “perda de foco” ao acusá-lo de distanciar-se dos

80
Cf. GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p. 182-3, citando o testemunho do teólogo Hans Urs von
Balthasar em sua obra “Ao padre Henri de Lubac”, de 1976, em homenagem a seus oitenta anos.
81

interesses mais prementes da Igreja e da Teologia. Em 1971, em sua obra “As igrejas
particulares na Igreja Universal”, de Lubac deixa muito claro suas discordâncias em relação
a Certeau. Henri de Lubac, no dizer de Dosse

[...] se faz então o defensor incondicional da autoridade contra os supostos


relaxamentos do vínculo hierárquico e as tentações de questionar o marco
instituído da Igreja. [...] Culpa diretamente a Michel de Certeau
considerando-o agora um opositor que põe em perigo a renovação espiritual
da Igreja. O famoso artigo “A ruptura instauradora” é profundamente
criticado por de Lubac “por ir profundamente contra seu pensamento”.
Mesmo assim Michel de Certeau procura manter-se muito cordial e
respeitoso (DOSSE, 2003, p. 61-2)

Mas as dissonâncias e ressentimentos só fazem aumentar, a ponto de Lubac qualificar


Certeau como um herege que tenta reabilitar a não menos “herética” visão joaquimita 81 da
história ao reduzir o tempo atual a uma espécie de “idade do espírito”, mas do “espírito
freudiano” e outros “espíritos de época secularizantes”. Fundado, supostamente, em um
“milenarismo” divorciado do evento fundante do Cristianismo que é a fé substancial em Jesus
Cristo, Henri de Lubac nutre que “[...] Michel de Certeau passa a tratar com trivialidade a
mensagem cristã e a atacar a instituição eclesiástica” (DOSSE, 2003, p. 63-4). Mesmo com
esses desagravos, principalmente depois que ingressou formalmente na Companhia de Jesus,
Certeau endereçava correspondências àquele que considerava um de seus mentores espirituais
a ponto de, em 1983, encaminhar ao padre de Lubac calorosas felicitações por sua nomeação
ao cardinalato. Mesmo assim, não obtinha mais interlocução com o antigo mestre. Poucos
meses antes de falecer Michel de Certeau tentou um último contato, via telefone, com de
Lubac. Porém, mais uma vez, não obteve nenhuma resposta (DOSSE, 2003, p. 64). Como se
pode observar, essa breve digressão sobre a formação teológica de Certeau mostra que o
mesmo experimentou, tal como em um itinerário místico, não somente elaborações teóricas,
mas a prática da vivência existencial de múltiplos paradoxos: viver na fronteira entre
estratégias e táticas inventivas de seu próprio cotidiano religioso em relação a vários “outros”
(Igreja, políticas culturais, pluralidades interétnicas), ao fundar “lugares e espaços” (outro par
de conceitos caros ao pensador francês) profundamente criativos, mas trágicos também, onde
encontrava várias vozes interlocutoras e profundos silêncios: uma heterologia e uma
heteropraxia.

81
Referente ao místico cristão Joaquim de Fiore, italiano que viveu na Calábria, nascido em 1132 e falecido em
1202. Foi abade cisterciense.
82

Esses “discursos sobre o outro/diferente”, na relação com a profundidade daquele que


radicaliza a experiência com o diferente/outro, que a tradição cristã nomeia por “Deus”, é
onde está a essência de compreensão da Teologia para Michel de Certeau. Igualmente, sua
visão da teologia não pode estar dissociada da sua compreensão acerca das ciências da
religião observada anteriormente.

Ao contrário de Paul Tillich e outras teólogas e teólogos contemporâneos seus, Michel


de Certeau não se dedicou a escrever textos específicos sobre teologia no sentido mais estrito
dessa afirmação, ou seja, a produção de textos onde analisa, hermeneuticamente, grandes
temas da dogmática acerca da legitimidade do discurso contemporâneo em torno de temas,
tais como: Jesus Cristo (Cristologia), Revelação, Graça, Espírito Santo (Pneumatologia) e
correlatos. Não há nada que se assemelhe a uma “Teologia Sistemática”, a modo tillichiano
ou a um “Curso Fundamental da Fé”, tal como seu colega católico Karl Rahner. Talvez seja
por isso e pelo fato de Certeau ter-se notabilizado em escritos em outras áreas do saber (como
a história e as ciências sociais) que fizeram com que o discurso teológico tenha sido um
“ilustre desconhecido” na afirmação desse intelectual francês. Muito embora Certeau se auto-
afirmava mais como historiador, é possível compreender que vários de seus analistas e
intérpretes tenham “reprimido” seu discurso teológico ao tornar a Teologia o “outro” a ser
silenciado (JOSGRILBERG, 2005, p. 46). Não foram muitos teólogos e teólogas que,
inclusive, lançaram mão dos excelentes estudos de Certeau sobre a história da mística cristã
para repensar o próprio método teológico. Talvez porque a mística subvertesse a pretensão de
uma linguagem mais tecnicista e objetivista nessa prática teológica. Mas Certeau reflete sua
compreensão da Teologia. Não a faz calar, ainda que seja um breve murmúrio.

Pode parecer algo relativamente comum hoje em dia mas, em 1973, em texto
intitulado “A Miséria da Teologia”, Certeau deixava bem claro que o fazer teológico é sempre
situado histórica e culturalmente. A Teologia precisa saber articular o que ele chama de opção
singular (no caso, a fé cristã) sobre questões gerais (sociais, econômicas, políticas e
culturais). Ser singular não significa, necessariamente, ser válida universalmente para todos e
as questões gerais, por sua vez, não podem converter-se na ideologia de um grupo particular,
uma vez que esses mesmos grupos não podem falar sobre o absoluto, o último, assumindo-se
como absolutos: “Esses discursos são múltiplos, e não redutíveis a um somente; construídos, e
não recebidos ou fixados por uma ortodoxia; [...] Nenhuma instituição particular se encontra
na situação “sacerdotal” de dizer a todos uma verdade de todos” (CERTEAU, 2006, p. 259).
A Teologia “diz”: é linguagem. Mas, por ser discurso sobre o outro e a partir do outro, o seu
83

trabalho tenderá a uma imagem sempre fragmentária. É sempre o risco de se pensar a teologia
a partir dos lugares sociais e culturais específicos. Assim foi com os diversos exemplos
citados por Certeau: a “Teologia da Cultura” nos EUA (referência a Tillich? A Niebuhr?
Talvez); a “Teologia Política” na Alemanha e a “Teologia da Libertação” no Peru e no Brasil
(CERTEAU, 2006, p. 260). Contudo, quando se pensa nas situações de onde se articula o
discurso teológico não se pode esquecer que a teologia, mesmo que orientada pela
compreensão do sentido da fé (ou das interrogações da existência cotidiana, no vocabulário
certeauniano), é elaborada a partir das relações táticas e estratégicas que serão apresentadas na
próxima subseção do capítulo. Ser um discurso heterológico é, antes de qualquer coisa, a
tomada de consciência e o exercício interpretativo sobre as várias situações, os vários lugares
outros diferenciais que delimitam a linguagem teológica.

Outrossim, será o discurso sobre o “outro”, que tanto marcou o empreendimento


histórico e social do jesuíta francês, que vai caracterizar a sua teologia também. Ao partir da
impossibilidade da linguagem para expressar o “divino”, “Deus” (em um sentido bem místico
é sempre o inominável), Michel de Certeau estabelece, como condição de legitimidade do
fazer teológico, o seguinte:

Com efeito, esta “tradição” revela que há uma relação necessária da opção
cristã com o que ela não é: seu “outro” sempre lhe faltou, e assim é como
confessa simultaneamente sua particularidade e sua fé em Deus.
Reconhecer-se como particular é reconhecer a existência do outro, sinal do
Deus “maior”. Assim, essa tradição representa uma tensão perpétua entre os
lugares particulares de onde fala e a história global, insuperável, nunca
terminada, que lhe significa o Deus do qual fala. Sem esta confrontação com
aquilo que nos chega da história cristã, e sem uma reinterpretação inventiva
porém rigorosa, uma linguagem de cristãos não seria cristã (CERTEAU,
2006, p. 262)

Embora um pouco extensa, essa citação é elucidativa. Primeiro: por “tradição”,


Certeau não capitaliza aqui o monopólio dos bens simbólicos cristãos encerrados na Igreja
enquanto instituição formal. Significa as possíveis relações de sentido que se estabelecem
entre a fé cristã com suas formas religiosas, políticas, culturais e intelectuais que expressam a
consciência de uma sociedade. Não seria demais dizer que se aproxima da “teologia da
cultura” tillichiana onde a Igreja não detém a hegemonia dos discursos sobre Deus e as
expressões plurais de fé. Segundo: o “objeto” da Teologia, que não é Deus diretamente, mas a
hermenêutica das relações “traditivas” afirmadas anteriormente, sempre escapa, como um
outro, um diferente, a essa mesma teologia. A linguagem teológica sempre fala a partir de sua
84

particularidade, mas tende a uma maior universalização, não porque válida ad aeternum,
perenemente, mas porque, ao “escapar”, abre espaço para a continuidade da caminhada, nunca
acabada. Terceiro, é inventiva: a teologia, do ponto de vista da linguagem, é metafórica,
figura de linguagem por excelência, em Certeau, para inventar e significar a realidade. Do
ponto de vista social e cotidiano, implica em interpretar como a vida de fé e as experiências
religiosas são criativamente vivenciadas, mesmo marcadas por circunscrições que podem,
inclusive, levar a experiências negativas e distorcidas. Há aqui algo importante: por ser
inventiva e metafórica a linguagem teológica e a linguagem da fé, vivida comunitariamente,
expressam-se através de percursos simbólicos. Conforme o próprio Certeau afirma em seu
polêmico texto “A ruptura instauradora”: “As linguagens da fé são simbólicas [...] Isto ocorre
com as funções que organizam o cristianismo. Nenhuma delas diz ou circunscreve a verdade,
senão que remetem umas às outras de uma maneira que nunca encerra o sentido [...] e não
enclausura um lugar senão no ato de permitir outro” (CERTEAU, 2006, p. 229)82.

Uma teologia heteróloga, ao ser inventiva, radicaliza essa experiência da ambigüidade.


Mas não somente isso: pensar o absoluto nomeado por “Deus”, enquanto tarefa teológica, só
tem sentido “[...] nas categorias próprias dos grupos religiosos” (CERTEAU, 2006, p. 258),
pressuposto caro às ciências antropológicas. Se assim não for, ela não será radicalmente um
“discurso sobre e a partir do outro”. Por isso o esforço certeauniano em pensar as relações
culturais e teológicas a partir dos códigos cotidianos de situações e grupos específicos. Ao
assumir o “outro”, assume-se os riscos desviantes de se falar em Deus e sobre Deus. Porém, a
impossibilidade de um discurso “estável” sobre o divino não é a confissão de um termo final
sem sentido. Pelo contrário: é a condição de possibilidade para novos discursos. É sempre
itinerário. Isso significa, na análise empreendida por Fábio Josgrilberg que, para Certeau, o
fazer teológico não encontra mais segurança em referências privilegiadas. A relação, o
encontro inventivo com os “outros” é que se torna o lugar/problema, ou seja, o lugar teológico
que permite falar de Deus (JOSGRILBERG, 2005, p. 42)83.

82
O que se aproxima, mais uma vez, de elaborações tillichianas anteriores ao próprio pensamento de Certeau, tal
como o texto de Tillich intitulado “Natureza da linguagem religiosa”, publicado em 1955 e, posteriormente,
aparecendo em seu clássico texto “Teologia da Cultura”, em 1959. Portanto, pelo menos, dezesseis anos antes
da “Ruptura Instauradora” de Certeau. Para Tillich, a linguagem religiosa só pode ser expressa por meio de
símbolos. No caso da teologia, a mesma não tem o poder para confiormar ou negar símbolos religiosos, mas
exercer uma hermenêutica sobre os símbolos de acordo com princípios e métodos próprios. Cf. TILLICH, P.
Teologia Sistemática, p. 246.
83
Aqui Josgrilberg segue Michel de Certeau em sua obra L‟étranger ou l‟union dans la Différence (“O
Estrangeiro ou a união na Diferença”), texto de 1969. Josgrilberg arremata, consolidando os argumentos
expostos nesse ponto na tese: “[...] o Outro, o qual está ausente, funda o discurso, mas este lhe escapa quando
se tenta articulá-lo narrativamente. O outro nunca é controlado, sempre se desvia, minando nossas convicções,
85

Essas concepções serão importantes para ajudar a repensar uma teologia do


sincretismo religioso, principalmente quando se pensa essa teologia como possibilidade
interpretativa das vivências múltiplas dos símbolos de fé de vários indígenas que se assumem
como cristãos e cristãs na TID. Justamente porque essa terra indígena, por ser hoje um espaço
pluriétnico e heterogêneo necessita, na compreensão desta tese, de uma leitura “heterológica”.
Por mais que se insista em uma pretensa redução abstrata da experiência religiosa desses
indígenas a uma face cristã “homológica”, esses mesmos indígenas constroem um campo de
alteridade muito complexo, onde a figura do “outro” é sempre a “sombra e a iluminação”
fronteiriça para a construção das relações identitárias. Porém, o que interessa mais no
pensamento de Certeau é justamente a dinâmica da “linguagem cultural”, ou seja, como os
lugares e espaços sociais, a partir de onde as ciências da religião e a teologia constroem seu
conhecimento, são estabelecidos inventivamente no jogo entre “táticas e estratégias”. É para
essa subseção que o texto, a seguir, encaminha-se.

2.1.3 Na fronteira das “Táticas” e “Estratégias” como configuradoras das relações culturais

Tanto nas análises de François Dosse (2003) quanto de Jeremy Ahearne (1995), a
compreensão das vivências culturais (e da religião também) em Michel de Certeau, sofreu
muitas mudanças a partir da experiência de maio de 1968 com as revoluções estudantis,
sindicais e trabalhistas em Paris, bem como em outras partes do mundo. Testemunha disso é o
texto certeauniano intitulado La Prise de Parole. Pour une nouvelle culture (“A Tomada da
Palavra. Por uma nova cultura”), publicado justamente em 68. Inspirado nos movimentos de
massa das “revoluções” citadas acima, a “nova cultura”, para Certeau, deve ser vista a partir
de uma miríade de “pedaços” (a expressão é de Ahearne) em que se transformou a própria
noção de “cultura”, enquanto grande narrativa construída pelas “economias escriturísticas”
das elites acadêmicas e políticas governamentais. Não só a cultura, mas seu correlato religioso
predominante no ocidente: o cristianismo. Interessa, agora, a Certeau, a “multidão anônima”,
o “ser humano itinerante e indecifrável”: sãos esses que compõem os pedaços que formam as
experiências culturais e religiosas, em particular. Não é uma massa passiva diante da vivência
e usos dos bens de consumo (materiais e, principalmente, simbólicos), postos em circulação

daí a necessidade de novas partidas a partir dos equilíbrios adquiridos. Essa é a dinâmica espiritual, essa é a
dinâmica do conhecimento” (2005, p. 47).
86

pelas instituições que regem essas mesmas lógicas de consumo. Há outras “lógicas” em
vigência, como as “heterológicas” discutidas anteriormente. Na perspectiva de Ahearne,
Certeau tende a conceber esses “outros” praticantes culturais como aquelas pessoas que
promovem viradas, “dribles” nos mecanismos de controle que fundam formas padronizadas
de pensamentos e ações que determinam os termos da existência. Assim, ele organiza suas
análises ao redor de um léxico teorético composto por termos, tais como: giros, desvios,
inversão, conversão, subversão, torção e, para não esquecer, invenção (AHEARNE, 1995, p.
159).

Não é difícil perceber que, seguindo Dosse (2003, p. 48), por mais que Certeau
coloque seu acento nas astúcias, pluralidade e inventividade dos modos de apropriação dos
atores sociais, a herança das críticas da Escola de Frankfurt sobre a “cultura/indústria” de
massa e suas formas de dominação impostas aos consumidores, está presente. De fato, a
ênfase de Certeau não elimina o reconhecimento desses “aparatos disciplinadores”. Porém, a
referência mais próxima sobre o papel e as relações de poder desses mesmos aparatos,
Certeau encontra em seu colega e amigo, o filósofo e cientista social Michel Foucault84. Em
Foucault encontra-se um estudo seminal sobre os processos e relações estratégicas, mas
faltaria uma atenção maior às relações táticas, se for utilizado o vocabulário certeauniano.
Todavia, a compreensão da relação entre estratégias e táticas depende da compreensão de que
a cultura, conforme afirmado, é “[...] o campo de uma luta multiforme entre o rígido e o
flexível” (CERTEAU, 2005, p. 235), é uma conjunção entre “lugares próprios” e “espaços
praticados”. Todos os analistas citados até agora no presente capítulo sobre o pensamento de
Certeau, abordam esses temas demonstrando a centralidade dos mesmos no pensamento do
jesuíta francês (AHEARNE, 1995; JOSGRILBERG, 2005; GIARD, 2003, 2005, 2006;
DOSSE, 2003).

As noções de lugares (lieux) próprios e espaços (espaces) praticados já aparecem no


texto “O lugar onde se discute a cultura”, de 1973, que faz parte da coletânea “A Cultura no

84
A obra de Michel de Certeau intitulada “Uma política da linguagem: a revolução Francesa e o patois” foi
publicada em 1975, ou seja, no mesmo ano em que Michel Foucault publicava “Vigiar e Punir”, obra essa
considerada a mais marcante escrita por Foucault, na compreensão certeauniana. Em “Uma política da
linguagem”, de Certeau analisa como a população francesa reinventava sua linguagem através do patois para
“desviar-se” das operações políticas administrativas da Assembléia Constituinte francesa, em seu projeto
“disciplinador” de criação de uma língua francesa universal, o que implicava em relegar o patois a uma língua
provinciana que remontava a tempos feudais (AHEARNE, 1995, p. 136-7; 143). Sobre a relação acerca do
lugar onde se discute a história e a cultura, comparando o pensamento de Foucault e Michel de Certeau, veja-se
RIBEIRO, Renilson R. Escritas da História Cultural: Michel Foucault e Michel de Certeau. In: Fronteiras,
Dourados, Universidade Federal da Grande Dourados, v. 9, n. 16, jan./jul. 2007.
87

Plural”, além da conclusão dessa coletânea intitulada “Espaços e Práticas”, de 1974, que
anuncia as bases de estudos posteriores que ficariam consagrados em “A Escrita da História”
(1975), “A Invenção do Cotidiano” (1980) e “A Fábula Mística” (1982). Essas bases podem
ser resumidas nas palavras de Giard:

Contra a análise pessimista de um domínio dos poderes que lograria impor a


todo o corpo social a marca da lei, através de uma “zonificação” permanente
dos indivíduos, mantinha [Certeau] o surgimento interior de uma liberdade
inventiva, produtora de mil pequenas astúcias, criadora de micro-poderes
cujo jogo sutil entre forças e contra-forças facilitava interstícios na ordem
social, abrindo assim minúsculos espaços de liberdade silenciosamente
aproveitados (GIARD, 2006, p. 14)

Essa citação só pode ser melhor compreendida no horizonte das críticas


epistemológicas que Certeau fazia aos operadores de uma lógica de poder midiática e
tecnocrática, retroalimentada por regimes políticos e econômicos, bem como as elites
acadêmicas. Esses transformavam o ser humano comum/cotidiano e suas “mil pequenas
astúcias” em refugos de resistência à lógica consumista e dominadora ou restos
“folclorizados” e “popularizados”, passivamente construídos por esses regimes de poder e
saber: “[...] porque a atividade científica e governamental é sempre elitista, ela depara com a
cultura silenciosa da multidão como um obstáculo, uma neutralização ou uma disfunção de
seus projetos” (CERTEAU, 2005, p. 240). Certeau não nega essas atividades/aparatos
controladores/disciplinadores. Não deprecia a atividade intelectual e acadêmica da qual ele
mesmo fazia parte. Queria chamar a atenção crítica, dentre outras coisas, para certo
“academicismo” que universalizava ficticiamente a cultura. Já foi afirmado nesse capítulo que
Certeau sempre pensa a cultura e a religião a partir de um lugar epistêmico e hermenêutico
“nosso”/próprio, não obstante (mas é a própria condição de possibilidade) nunca se poder
“[...] obliterar nem transpor a alteridade que mantém, diante e fora de nós, as experiências e
observações ancoradas alhures, em outros lugares” (CERTEAU, 2005, p. 222)85. Assim, no
mesmo local dessa citação anterior, Michel de Certeau define o “lugar próprio”, em um
primeiro momento, como sendo “[...] o conjunto de determinações que fixam seus limites em
um encontro de especialistas e que circunscrevem a quem e como lhes é possível falar quando
abordam a cultura entre si” (CERTEAU, 2005, p. 222). Essa definição é compreensível diante
da crítica certeauniana afirmada anteriormente. Em seus textos posteriores, principalmente em
“A Invenção do Cotidiano”, ele amplia o campo abarcado por essa definição de “lugar

85
Com “ecos” aqui de sua heterologia.
88

próprio”: passa a não ser somente o campo dos especialistas que definem a “cultura” (seus
múltiplos significados), mas os múltiplos espaços que são controlados por um conjunto de
operações estratégicas, estabelecidas sobre um desejo e sobre um conjunto desnivelado de
relações de poder, nas palavras interpretativas de Josgrilberg (2005, p. 23).

Porém, interessa a Certeau interpretar as “trajetórias” que atravessam esses lugares


próprios ao criar lugares outros que não são mais próprios, mas aquilo que Certeau chamou de
“espaços praticados”. De uma citação extraída de “A Invenção do Cotidiano”, pode-se
entender melhor essas relações:

No espaço tecnocraticamente construído, escrito e funcionalizado onde


circulam, as suas trajetórias [do ser humano ordinário] formam frases
imprevisíveis, “trilhas” em parte ilegíveis. Embora sejam compostas com os
vocabulários de línguas recebidas e continuem submetidas a sintaxes
prescritas, elas desenham as astúcias de interesses outros e de desejos que
não são nem determinados nem captados pelos sistemas onde se
desenvolvem (CERTEAU, 2003, p. 45)

Os sistemas culturais (sejam materiais ou simbólicos) sempre estão presentes “fixando


e impondo suas sintaxes”. Em outras palavras: os “lugares próprios” estabelecem certa
“rigidez”, estabilidade e permanência como estruturadores privilegiados dos quadros de
referência de sentido para a vida cotidiana das pessoas. Todavia, esses mesmos sistemas de
“sentido” (no caso dessa tese “sistemas religiosos”, por exemplo) não conseguem reprimir
totalmente as “astúcias de interesse” que caracterizam as “artes de fazer e agir”
configuradoras de espaços outros, ou seja, os espaços praticados. Esses “espaços praticados”
são o que configuram o campo de exercício da “inventividade do cotidiano”, mesmo que
dentro de “lugares próprios”, ou seja, o espaço sempre será um “lugar praticado” 86. Exemplos
bem singelos que o próprio Certeau proporciona são os seguintes: a rua, arquitetonicamente
instituída pelas políticas urbanísticas é um “lugar próprio”, mas alterado em “espaço
praticado” pelas inumeráveis trajetórias instituídas pelos transeuntes. A leitura, muitas vezes,

86
Nas palavras do próprio Certeau: “Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos
nas relações de coexistência. [...] Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma
indicação de estabilidade. [...] O espaço é um cruzamento de móveis [...] é o efeito produzido pelas operações
que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas
conflituais ou de proximidades contratuais. [...] Diversamente do lugar, não tem portanto nem a univocidade
nem a estabilidade de um „próprio‟”. Cf. CERTEAU, M. de. A Invenção do Cotidiano, p. 201-2.
89

inaugura um “espaço praticado” dentro de um lugar próprio constituído pelos sistemas de


signos lingüísticos: a escrita (CERTEAU, 2003, p. 202)87.

Quando foi pontuada no início dessa subseção a relação entre Foucault e Certeau o que
se afirmou é que, usando essa outra terminologia, em Foucault encontra-se uma densa e rica
análise dos “lugares próprios” mas não dos “espaços praticados”. Na compreensão do próprio
Michel de Certeau em sua análise de “Vigiar e Punir”, ainda que Foucault analise os
“aparatos silenciosos” que, nos bastidores do poder provocam um curto-circuito nas
“encenações institucionais”, instaurando uma “micro-física” do poder, a ênfase recai sempre
sobre os aparelhos disciplinadores e reguladores. Essas análises são fundamentais, mas é
preciso também se perguntar que procedimentos populares (também “microscópicos” e
cotidianos) “[...] jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não
ser para alterá-los” (CERTEAU, 2003, p. 41). Por isso que interpretar a dinâmica cultural e
religiosa privilegiando esse agir inventivo e a interpretação dos “espaços praticados”,
constitui-se em uma “antidisciplina” em Certeau (em alusão às análises “disciplinadoras”
foucaultianas).

Certamente que essas perspectivas geraram várias críticas ao jesuíta francês.


Josgrilberg (2005, p. 24-7) faz uma boa apresentação dessas interlocuções críticas. Exemplo
dessas críticas serão apresentadas mais à frente mas, para não perder a coerência dos
argumentos e afastar-se dos conceitos centrais que interessam, já é possível perguntar e
responder: como são construídos esses “lugares próprios” e “espaços praticados”? Através do
que Certeau chama de “estratégias” (stratégies) e “táticas” (tactiques).

A análise certeauniana pressupõe que todas as formas de relações culturais implicam


em relações de poder/força: poder/força para organizar os lugares e espaços produtores e
reguladores de sentido através de bens de consumo simbólicos. Nesse ponto aproxima-se
bastante de Foucault. Para esse aspecto, as estratégias seriam os cálculos, o tipo de relação de
força que se estabelece a partir do momento em que um “sujeito” ou “sistema” de querer e
poder pode ser isolado, ou seja, criador de um “lugar próprio”. O “próprio” das relações
estratégicas implica em três características de acordo com Certeau: 1. É fundado na vitória do
lugar sobre o tempo, ou seja, as estratégias geram uma independência em relação às múltiplas
variáveis circunstanciais; 2. Estabelece uma visão “panóptica” da realidade, ou seja, enquadra

87
Aliás, é na reflexão sobre a linguagem que Certeau vai encontrar um espaço profícuo para suas análises de
inventividades cotidianas.
90

os elementos “estranhos” ao lugar em termos de medição, controle, prevenção e antecipação;


3. Estabelece uma forma de poder que não é consequência do controle, mas a razão de ser do
mesmo. Um poder que transforma as equivocidades culturais e históricas em uma planificação
aparentemente unívoca (CERTEAU, 2003, p. 99-100). Assim, citando Certeau: “As
estratégias são portanto ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade
de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de
articular um conjunto de lugares físicos [acrescente-se: simbólicos] onde as forças se
distribuem” (CERTEAU, 2003, p. 102). Já as táticas são relações e cálculos que não contam
com um “lugar próprio”. Essas relações se instauram no campo do outro que muitas vezes lhe
é imposto, pois é o campo das relações de poder estratégicas.

As táticas, por sua vez, apropriam-se e utilizam-se das “falhas” que as relações de
poder estratégicas cometem em seu pretenso universalismo: é justamente aí que as táticas vão
“à caça”: “[...] cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia.”
(CERTEAU, 2003, p. 100-1). É justamente na arte das “táticas”, enquanto arte do “fraco”,
que se encontram as possibilidades de se inventar o cotidiano. Todavia, é importante salientar
que Certeau procura sempre manter a ambigüidade. Ao evocar relações de poder, a dinâmica
religiosa, por exemplo, com seus “idiomas simbólicos”, vive esses desníveis dentro de seus
lugares próprios, uma vez que as estratégias religiosas são cindidas por trajetórias táticas dos
múltiplos sujeitos e atores sociais religiosos88. Não há segurança, todavia, de que as táticas
não venham a se converter em novas estratégias: há uma permanente tensão, comprovada nas
próprias palavras de Certeau: “[...] A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso
deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha”
(CERTEAU, 2003, p. 100). Com isso, é possível concordar com Ahearne de que as noções de
estratégias e táticas não precisam ser necessariamente colocadas uma contra a outra como
forças opostas em um determinado lugar e espaço cultural: “[...] No entanto, como Certeau
apresenta-lhes, como conceitos eles possibilitam-nos discernir um número de movimentos
heterogêneos através de diferentes distribuições de poder” (AHEARNE, 1995, p. 163). Há
uma fronteira dialética em ato. As noções de heterogeneidade e diferenciação afirmadas por
Ahearne evocam a necessária reafirmação da “heterologia” no pensamento certeauniano. De
fato:

88
Em outros termos para caracterizar a ambiguidade: “O sistema onde circulam é demasiadamente amplo para
fixá-los em alguma parte, mas demasiadamente regulamentado para que possam escapar dele e exilar-se
alhures”. Cf. CERTEAU, M. de. A Invenção do Cotidiano, p. 104.
91

Produtores desconhecidos, poetas de seus negócios, inventores de trilhas nas


selvas da racionalidade funcionalista [...] Traçam “trajetórias
indeterminadas”, aparentemente desprovidas de sentido porque não são
coerentes com o espaço construído, escrito e pré-fabricado onde se
movimentam. São frases imprevisíveis num lugar ordenado pelas técnicas
organizadoras de sistemas. Embora tenham como material os vocabulários
das línguas recebidas [...] embora fiquem enquadradas por sintaxes
prescritas, essas “trilhas” continuam heterogêneas aos sistemas onde se
infiltram e onde esboçam as astúcias de interesses e de desejos diferentes.
Elas circulam, vão e vêm, saem da linha e derivam num relevo imposto,
ondulações espumantes de um mar que se insinua entre os rochedos e os
dédalos de uma ordem estabelecida (CERTEAU, 2003, p. 97)

Mesmo que não nomeie explicitamente, a relação ambígua entre estratégias e táticas é
o centro da citação anterior. Mesmo que haja lutas contra determinações muitas vezes
impostas, há sempre uma relação com um diferente, com um outro. Toda relação tática, seja
nas experiências religiosas ou não, evoca esse conflito com o “outro”, ou seja, as relações
estratégicas que não lhe são próprias. É um paradoxo: ainda que as estratégias possam evocar
relações também destrutivas, a dinâmica cultural flui e reflui nessa dialética, nessas
“fronteiras”: “[...] o limite funciona como fronteira que deixa aberta a porta do espaço a ser
controlado; a circunscrição de um espaço pressupõe a existência do Outro.” (JOSGRILBERG,
2005, p. 81). Michel de Certeau procura, a nosso ver, categorizar mais analiticamente a sua
própria noção de cultura “heteróloga” já apresentada. Certamente que essas perspectivas
atraíram várias críticas ao pensamento de Certeau, conforme afirmado anteriormente. Fica
claro que nas análises culturais empreendidas pelo cientista religioso e social francês, a
grande questão a ser investigada não é a produção simbólica e de sentido operada pelas
estruturas de poder, mas a prática dos “consumidores”, ou seja, como os sujeitos e atores
sociais cotidianos operam, em suas relações táticas, o capital simbólico que ora lhes é
proposto, ora lhes é imposto. Assim, uma das possíveis críticas ao pensamento certeauniano
afirmada é a seguinte: não há uma excessiva positividade nas relações táticas? Se elas também
estão relacionadas a um sistema de discursos hegemônicos (estratégicos), até que ponto as
táticas não são “reabsorvidas” por esses mesmos discursos, considerando que elas não
possuem um “lugar próprio”? Essa seria uma crítica levantada pelo crítico literário e cultural
John Frow mas que, segundo Josgrilberg, não se sustenta, porque torna as táticas uma mera
projeção das estratégias quando, na realidade, as táticas são processos inventivos e
92

performativos que, mesmo correndo o risco de fundarem novos lugares estratégicos, já são
outros lugares, outras situações e não uma mera reincorporação89.

Quem estuda os textos de Certeau percebe claramente inúmeros exemplos dessas


relações entre “lugares próprios”/estratégias e “espaços praticados”/táticas. Vários exemplos
extraídos do cotidiano e do uso metafórico da linguagem municiam o autor de “A Invenção do
Cotidiano”. Pontuemos novamente um exemplo extraído do campo da lingüística: ao pensar a
Retórica clássica, Certeau enfatiza o uso de figuras metonímicas e metafóricas como exemplo
de relações táticas instituídas no campo “estratégico” da gramática: “Enquanto a gramática
vigia pela “propriedade” dos termos, as alterações retóricas (desvios metafóricos,
condensações elípticas, miniaturizações metonímicas etc.) indicam o uso da língua por
locutores nas situações particulares de combates lingüísticos rituais ou efetivos” (CERTEAU,
2003, p. 103). Esse exemplo poderia ser ampliado para a experiência e a linguagem religiosa,
extremamente calcada no imaginário simbólico e nos desvios metafóricos. No caso da
construção dos espaços religiosos pelas missões cristãs na TID, como será mostrado no último
capítulo, em que medida essas missões (por exemplo, o projeto da Igreja Indígena
Presbiteriana) organizam um “lugar próprio”? Como constroem seu universo simbólico
“estratégico”? E como esse “universo” é seccionado por múltiplas fronteiras “táticas”
instauradas pelos próprios indígenas? Não seria demasiadamente simplista cair em uma leitura
dualista ao colocar o “mundo dos brancos” e suas instituições estratégicas (Fundação
Nacional do Índio e Missão Caiuá, por exemplo) como fundadoras de “lugares próprios” e os
indígenas como aqueles que promovem ações táticas? Se assim for, talvez rompe-se com a
dialética certeauniana. Mas o autor dessa tese inspira-se em Certeau: da mesma maneira como
o jesuíta francês “enxergou” nas manifestações das multidões de maio de 68 o “ser humano
ordinário”, é possível lançar um olhar hermenêutico para as comunidades Guarani e Kaiowá
da TID como o espaço profícuo de “multidões ordinárias” que reinventam o seu cotidiano
religioso. É possível qualificar essas invenções culturais, no campo religioso, como
“sincréticas”? As implicações desses conceitos certeaunianos para uma teoria do sincretismo
religioso serão abordadas à frente, na última seção desse capítulo. Mas antes, o percurso
hermenêutico deverá passar pelas compreensões da relação entre religião e cultura, no
específico conceito de “demônico”, no pensamento do teólogo Paul Tillich, a fim de

89
Cf. JOSGRILBERG, F. B. Cotidiano e Invenção, p. 25. O texto de Frow utilizado por Josgrilberg é Michel de
Certeau and the Practice of Representation In: Cultural Studies, v. 5, n. 1, 1991, p. 52-60.
93

relacionar esse conceito com o pensamento certeauniano e as devidas implicações para


repensar o sincretismo religioso.

2.2 FRONTEIRAS DO SENTIDO: PAUL TILLICH E A INVENÇÃO DO “DEMÔNICO”

Quando o teólogo e filósofo da religião Paul Johannes Oskar Tillich, nascido na


Alemanha em 1886 e falecido nos Estados Unidos da América em 196590, proferiu sua
importante palestra, em 1919, na Sociedade Kantianna de Berlim, intitulada “Sobre a idéia de
uma Teologia da Cultura” (Über die Idee einer Theologie der Kultur), as ciências
antropológicas estavam em franco desenvolvimento. Isso significa que, por essa época, a
antropologia ainda era uma “jovem ciência”, muito marcada pelas teorias evolucionistas e
difusionistas do século XIX, desde a época da publicação do clássico texto do antropólogo
inglês Edward Burnett Tylor intitulado “Cultura Primitiva” (Primitive Culture), em 1871,
“apenas” quinze anos antes do nascimento de Tillich. Assim, a vida de Tillich passa a correr
“em paralelo” com o desenvolvimento científico do saber antropológico.

A concepção de “cultura” em Tillich é profundamente dependente da noção da


“Kultur” alemã, típica das elites germânicas e do idealismo filosófico “romântico” do século
XIX, em oposição à noção da “Civilisation” francesa. Essa oposição tornou-se aguda desde o
século XVIII quando as classes intelectuais alemãs, alijadas das cortes aristocráticas que
utilizavam a língua francesa como sinônima de nobreza e status, apropriaram-se da expressão
Kultur para atacar as frivolidades e superficialidades da “civilisation” francófona e da própria
nobreza alemã. A Kultur passa a designar “[...] um processo de refinamento do
comportamento, enobrecimento do espírito, polidez dos gestos e costumes e, principalmente,
grandes realizações do espírito humano nas artes, no pensamento, na ciência, na organização
social, na técnica e na religião”91. Cultura, portanto, é ação criativa do “geist”, do espírito

90
Tillich nasceu na vila de Starzeddel, hoje território polonês. Faleceu na cidade americana de Chicago. Para
maiores detalhes biográficos ver MÜELLER, E. R. & BEIMS, R. W. (Orgs.). Fronteiras e Interfaces, p. 11-
39 e CALVANI, C. E. B. Teologia da Arte, p. 13-28.
91
Cf. CALVANI, C. E. B. Teologia e MPB, p. 42-3. Calvani tem por referência as análises de John Thompson
em Ideologia e cultura moderna e de Norbert Elias em seu clássico O Processo Civilizatório. Também
seguindo e citando literalmente as idéias de Elias, o antropólogo inglês Adam Kuper vai afirmar: “[...] Esse
termo [kultur] „refere-se essencialmente a fatos intelectuais, artísticos e religiosos‟, e a Alemanha geralmente
„traça uma clara linha divisória entre fatos dessa natureza e fatos políticos, econômicos e sociais‟. [...] Um
francês e ou um inglês podia dizer que era “civilizado” sem que tivesse realizado alguma coisa, mas para os
alemães todo indivíduo adquiria cultura por meio de um processo de educação e desenvolvimento espiritual”.
Cf. KUPER, A. Cultura. A visão dos antropólogos, p. 54.
94

humano, manifestado em diferentes “estilos” artísticos, musicais, políticos e científicos. De


certa forma essa compreensão permanece em Tillich até mesmo no terceiro volume de sua
“Teologia Sistemática” (Systematic Theology), publicada em 1963, apenas dois anos antes de
sua morte, quando ele afirma: “[...] Definimos a cultura como a autocriatividade da vida sob a
dimensão do espírito e a dividimos em theoria, em que a realidade é apreendida, e praxis, em
que a realidade é configurada” (TILLICH, 2005, p. 830). Essa “dimensão do espírito”, como
será visto mais à frente, abrirá espaço para a compreensão de religião, enquanto preocupação
incondicional, que fundamentará todos esses estilos culturais.

De fato, a percepção de cultura em Tillich, como bem notam os teólogos e cientistas


da religião Etienne Higuet e Carlos Eduardo Calvani, difere da epistemologia das ciências
etnológicas. Essas não estão atreladas exclusivamente à produção de interpretações de estilos
culturais típicos da tradição intelectual ocidental, bem como se esforçam para se colocar no
mesmo plano compreensivo/epistêmico das sociedades nativas que não obedecem
necessariamente as mesmas lógicas das elites ocidentais. Nesse sentido, a etnologia esforça-
se, mesmo com suas ambigüidades, a ser uma radical heterologia (para lembrar Certeau), pois
toma o “outro” (em suas produções materiais e simbólicas) não como o objeto de estudo, mas
como fronteira de mediação interlocutora para a compreensão da realidade. Essa perspectiva
marca a “breve e longa” marcha antropológica no século XX, principalmente como ciência
que privilegia o trabalho de campo e a interação direta e participante, desde seus rudimentos,
na primeira metade do século XX, com os antropólogos Franz Boas e Bronislaw Malinowski.
De acordo com Higuet:

Perante a discussão desenvolvida nas ciências sociais, em particular a


antropologia e a etnologia, o conceito tillichiano de culturas unificadas [pelo
fundamento religioso] e dotadas de um estilo próprio tornou-se
problemático: todas as culturas são fragmentárias e cheias de movimentos
contraditórios; as culturas e os elementos intraculturais interferem
continuamente entre si, pois não há culturas isoladas. Em vez de generalizar,
é preciso agora proceder de modo mais empírico, mais indutivo. Além disso,
para Tillich, a cultura da elite acaba excluindo a cultura popular, o folclore, a
cultura de massa, o kitsch (termo que ele usa no sentido pejorativo)92

É interessante notar que no período de 1919 a 1926, onde Tillich desenvolveu seu
percurso acadêmico e muito produtivo na Alemanha, especificamente ao lecionar nas

92
Cf. HIGUET, E. A. As relações entre religião e cultura no pensamento de Paul Tillich. In: Correlatio. São
Bernardo do Campo, v.7, n.14, 2008, p. 135. Disponível em: <http://www.metodista.br/revistas/revistas-
metodista/index.php/COR/article/view/1155/1165. Acesso em: 20 mar. 2009
95

Universidades de Berlim, Marburg e Dresden (onde ficou até 29), vão surgir análises
fundamentais sobre a relação entre religião e cultura. Os textos característicos desse período
focam, portanto, sua compreensão de religião na transversalidade com as formas e diversos
estilos culturais, principalmente na interface entre a Filosofia, a Teologia e suas análises do
socialismo religioso. Curiosamente foi um período muito profícuo para a antropologia
também, seja no contexto europeu (principalmente a Alemanha e a Inglaterra) e no contexto
norte-americano, para onde Tillich mudaria em 1933 devido à perseguição do regime
nacional-socialista da Alemanha hitlerista. Basta lembrar que o antropólogo alemão Franz
Boas, citado anteriormente, vai publicar, em período próximo, textos como “Os Métodos da
Etnologia”, de 1920; “Alguns problemas de metodologia nas Ciências Sociais”, de 1930 e
“Raça e Progresso”, de 1931. Nesses textos, Boas relativiza os determinismos culturais em
torno da percepção de que cada ser humano interpreta o mundo a partir da cultura particular
em que cresceu. Não existe “a” cultura no singular, base de onde partiria, via difusionismo
evolucionista, todas as demais culturas, mas culturas no plural. As idéias boasianas também
vão ter forte conotação política nos anos 30. Em “Raça e Progresso” a noção de “raça” sofre
uma desconstrução quando vista sob a superficialidade da cor da pele, formas da
cabeça/crânio e textura dos cabelos. Para Boas há uma enorme variabilidade genética mesmo
em populações mais “homogeneamente culturais”. Para o antropólogo alemão, é a cultura que
nos faz e não a biologia. Criticava, com isso, o que qualificava por “mito da pureza racial”.
Suas idéias, inclusive, vão influenciar as discussões posteriores sobre o sincretismo e,
também, o escritor e sociólogo brasileiro Gilberto Freyre em “Casa-grande e senzala”, obra
de 1933, onde Freyre, que foi aluno de Boas na Universidade de Colúmbia, nos EUA, discute
a noção de “mestiçagem” no contexto brasileiro93.. Esse “culturalismo” boasiano vai marcar,
decisivamente, todo o percurso das ciências antropológicas nos EUA no restante da primeira
metade do século XX e até posteriormente (anos 60), com nomes como Alfred Kroeber e
Clyde Kluckhohn. Justamente o período em que Tillich viverá nos Estados Unidos.

Franz Boas foi muito influenciado, ainda no século XIX, pelo médico alemão Rudolf
Virchow, de quem foi aluno. Virchow foi um importante político liberal e membro da
Sociedade de Antropologia de Berlim. Assim como seu colega Adolf Bastian, que viria a se
tornar o diretor do Museu de Etnologia de Berlim no ano de nascimento de Tillich, tanto um
como o outro sustentavam a idéia de que as culturas são “híbridas”. Isso significa que as
culturas não expressam identidades essenciais imutáveis, recorrendo a diversas fontes,

93
Cf. CASTRO, C. (Org.). Franz Boas. Antropologia Cultural, p. 14-20.
96

mantendo sua dinâmica em muitos processos de empréstimos e em constante mudança,


segundo a análise de Adam Kuper (2002, p. 34). O termo “hibridismo” utilizado por Kuper
para caracterizar o pensamento de Virchow e Bastian deve ser justificado como uma metáfora
extraída do próprio campo de conhecimento da biologia, campo esse originário dos estudos de
Virchow94.

Certamente Tillich forjou seu percurso acadêmico e intelectual em diálogo com outros
campos do conhecimento que não a etnologia. Isso pode ser, ainda que parcialmente
explicável, porque a etnologia, conforme afirmado anteriormente, ainda estava constituindo-
se enquanto ciência, com seus métodos próprios, no período de formação de Tillich. Além
disso, a própria biografia tillichiana levou-o mais para a fronteira entre a filosofia do sentido e
a teologia. Mesmo já em sua fase norte-americana, com a antropologia ganhando destaque nas
discussões acadêmicas e políticas, Tillich ocupou-se em tornar compreensível para si próprio
e para seus interlocutores suas ideias filosóficas e teológicas gestadas e pensadas dentro do
horizonte teórico alemão para o ethos da cultura inglesa norte-americana. Isso aconteceu
principalmente no período de 1933 a 48, período particularmente difícil para Tillich. Por
exemplo, segundo Enio Mueller, a dificuldade de Tillich com a língua inglesa, que
acompanhou todo o restante de sua vida, deu-se em três frentes: “Primeiro, para dominá-la.
Segundo, para adequar o seu pensamento a ela. Terceiro, para repensar o seu pensamento
neste novo meio [...]” (MUELLER, 2005, p. 30)95. Além disso, a partir de 1949, no contexto
“pós” segunda guerra mundial, Tillich entra em um período de maior estabilidade nos EUA,
tanto em termos de maior adaptabilidade à vida americana quanto em termos profissionais,
uma vez consolidado como professor no Union Theological Seminary, em Nova York, onde
aposentou-se em 1955 para, em seguida, assumir o trabalho de docência na Harvard
University, em Chicago, aposentando-se definitivamente em 1962. Como se vê, o pensar a
fronteira e na fronteira é, em Tillich, antecedido pelo próprio viver na fronteira (intelectual,
cultural e religiosa).

Nesse período a produção literária de Tillich foi muito profícua onde pode ser
destacada, justamente, a escrita de sua obra magna, a “Teologia Sistemática” (Systematic
Theology), cujo primeiro volume foi publicado em 1951 (o segundo em 1957 e o terceiro, já

94
O próprio Kuper utiliza o termo “sincréticas” para caracterizar os aspectos “instáveis”, “abertos” e
“imprevisíveis” na noção de “culturas” nesses estudiosos alemães. Cf. KUPER, A. Cultura. A visão dos
antropólogos, p. 35.
95
Nas palavras do próprio Tillich: “O espírito da lingua inglesa forçou-me a esclarecer inúmeras ambiguidades
do meu pensamento até então camufladas pela nebulosidade mística do alemão filosófico clássico”. Cf.
TILLICH, P. A Era Protestante, p. 12.
97

afirmado, em 63). Na realidade, conforme o cientista da religião Eduardo Cruz, a Sistemática


de Tillich é uma profunda releitura de vários textos produzidos anteriormente, inclusive de
seu período alemão, mas procurando construir, não sem ambigüidades, uma correlação de
respostas baseadas nos símbolos cristãos às perguntas que brotam de uma existência
paradoxal, no caso, a existência alimentada pelo pessimismo pós-guerra do contexto europeu
(Tillich só voltaria à Alemanha em 1948, 15 anos após deixar a terra natal) e certo otimismo
do american way of life do mesmo pós-guerra (CRUZ, 1995, p. 84). Assim, a Sistemática não
deixa de evocar as noções de ambigüidade entre religião e cultura, kairós, a polaridade entre
essência e existência e até a noção de “demônico”, conceitos esses herdados da fase alemã dos
anos 20. Além disso, soma-se agora a preocupação da fundamentação de uma leitura mais
densamente teológica da realidade, buscando a conciliação ontológica entre a revelação divina
e a existência humana, enquanto interrogação filosófica. Deus e o mundo (o ser humano e
suas estruturas sociais) não podem ser vistos em uma relação dualista, já que o símbolo do
divino aponta para a atualização essencial do humano que vive dentro das condições
limitadoras e ambíguas da existência finita: “As respostas implícitas no evento da revelação
só são significativas na medida em que estejam em correlação com questões que dizem
respeito à totalidade de nossa existência, com questões existenciais” (TILLICH, 2005, p. 76).
Mesmo que Tillich nunca tenha abandonado a necessária reflexão teológica pelo sentido da
existência dentro das formas culturais, a preocupação em reelaborar todo seu método
teológico, na fronteira filosófica entre essência e existência, afastou Tillich de maiores
aproximações com as ciências etnológicas, já pujantes na segunda metade do século XX nos
EUA.

Ao voltar a análise para os anos 20 do século passado, no contexto alemão, dentre os


diversos textos de Tillich produzidos nesse período encontra-se um texto nomeado
especificamente de “O Demônico” (Das Dämonisch), de 1926, muito embora o conceito de
“demônico” aparecesse bem elaborado no ano anterior, em 1925 (ano de nascimento de
Michel de Certeau), quando da publicação da obra “Filosofia da Religião”
(Religionsphilosophie). Nesse texto o demônico é interpretado como um dos elementos
essenciais da experiência religiosa em sua correlação com a noção de “divino”. Na percepção
fenomenológica do sagrado, o demônico é o pólo/dimensão negativa, de resistência,
paradoxalmente relacionado ao pólo/dimensão positiva, de união, na experiência religiosa,
representado pelo símbolo do divino. É essa dialética entre a ambigüidade positiva e negativa
que instaura o poder criativo e inventivo de toda a experiência religiosa. O próprio Tillich
98

afirmar: “O demoníaco (sic) é o santo (ou o sagrado) precedido por um sinal menos: o
antidivino sagrado [...] É uma abertura para o destrutivo, porém uma abertura que provém do
mesmo abismo que a abertura para a graça” (TILLICH, 1973, p. 74). Muito embora Eduardo
Cruz afirme que a noção de “demônico” em Tillich, ao longo de seu percurso intelectual,
caminha no sentido de um caráter acentuadamente negativo ao tornar-se quase sinônimo de
algo perverso e destrutivo, deixando em segundo plano a ambigüidade afirmada
anteriormente, principalmente no terceiro volume da “Teologia Sistemática” (CRUZ, 1995, p.
86).

Sempre pesa na análise do demônico os problemas de tradução do termo alemão


Dämonisch. Não foram poucas vezes que o termo foi traduzido por démoniaque no francês,
demoniac no inglês, demoníaco no espanhol (como na tradução feita da citação anterior do
texto Filosofia da Religião) e, finalmente, demoníaco no português. O problema, não é difícil
perceber, é que essas traduções associam o demônico a algo essencialmente negativo e
pejorativo que é, por sua vez, a figura religiosa do “demônio”. Isso acentua, inadvertidamente,
uma possível leitura dualista e de radical oposição entre Deus e o Diabo. Tillich mesmo já
expressava a preocupação com esse tipo de leitura dualista no texto sobre O Demônico,
quando aborda a relação desse conceito com a história das religiões procurando rechaçar,
ainda no texto da Filosofia da Religião, toda leitura excessivamente sobrenaturalista ou
idealista do referido conceito96. No prefácio à quinta edição brasileira da Teologia Sistemática
(publicada em 2005), é pontuada essa preocupação pelo teólogo Enio Mueller ao esclarecer o
uso substantivado e adjetivado, a partir do original “demonic”, do termo demônico, em
associação com seu caráter mais “positivo” e criativo, dissociando-o do termo “demoníaco”
com sua conotação exclusivamente negativa. Mesmo com essas complexidades, será
demonstrada, a partir de agora, a relevância e a profundidade desse conceito para o estudo
acerca do sincretismo religioso, justamente porque o conceito de demônico atravessa todo o
percurso das produções tillichianas, além de ter sido construído a partir da fronteira entre
religião e cultura. Essa “fronteira” é o espaço hermenêutico em que Tillich “reinventa” o
sentido do conceito ao aprofundar o aspecto da ambigüidade, algo importantíssimo quando se
quer interpretar os processos também inventivos e heterológicos da experiência do sentido
religioso da vida. É preciso, nas próximas subseções, aprofundar essas perspectivas.

96
No terceiro volume de sua Teologia Sistemática, ao comentar a relação entre o divino e o demônico como uma
das relações fundamentais para a compreensão da ambigüidade da religião, Tillich destaca que o termo
demônico foi, muitas vezes, usado e abusado na linguagem teológica, para designar forças antidivinas na vida
social e individual perdendo, com isso, o caráter de ambigüidade implicada na percepção do demônico. Cf.
TILLICH, P. Systematic Theology, Volume Three, p. 102.
99

2.2.1 Religião e Cultura: relações de mediação

Se na introdução do capítulo foi afirmado que Tillich procurou situar seu pensamento
“na fronteira”, é digno de nota que uma das fronteiras do pensamento que mais preocuparam
as reflexões tillichianas foi a estabelecida entre a religião e a cultura, dois termos
fundamentais também para as reflexões antropológicas e etnológicas. Etienne Higuet afirma
que a teologia (e também a filosofia) de Tillich é teologia da mediação
(Vermittlungstheologie), sendo essa sua questão central97. O próprio Tillich fala sobre a
mediação ao comentar a relação entre religião e cultura: “Através da experiência da
substancialidade religiosa característica da cultura, fui levado à fronteira da cultura e da
religião, da qual eu nunca tinha desertado. Para esta compreensão teorética minha filosofia da
religião é essencialmente dedicada”98. Nessa citação já começa a transparecer aquela que seria
uma das concepções centrais de Tillich que é, justamente, a compreensão da religião como o
fundamento, a substância de todas as formas e expressões culturais. Em sua leitura
antropológica e filosófica Tillich lê o ser humano como “ser da fronteira”, o que significa
também postular uma reflexão sobre a alteridade, ou seja, como construir a experiência do
sentido da existência nessa situação mediadora de fronteira. Novamente Tillich dirá: “Toda
pessoa se encontra nessa situação limite da fronteira de seu ser: Percebe o Outro situado para
além de si mesmo, e crê possível, uma vez que se desperte nele o desejo da potencialidade”
(TILLICH, 1976, p. 48). Não é demais dizer que, embora Tillich sempre tenha se esforçado
em sua leitura teológica e filosófica para pensar a unidade essencial do ser humano com o
sagrado/divino, nunca abandonou uma radical heterologia, um discurso sobre os “outros”
universos de sentido que se estabelece na existência concreta e ambígua. Se Michel de
Certeau pensa a heterologia focando mais as formas culturais, Tillich pensa a heterologia a
partir das experiências de sentido último da existência.

Lugar privilegiado na antropologia filosófica e teológica de Tillich, a mediação entre


religião e cultura passa a ganhar uma tonalidade muito forte a partir de sua formulação de

97
Cf. HIGUET, E. A. O método da Teologia Sistemática de Paul Tillich – A relação da razão e da revelação. In:
VV.AA. Paul Tillich. Trinta anos depois. Estudos de Religião. São Bernardo do Campo, ano X, n.10, 1995, p.
37.
98
Cf. TILLICH, P. The Interpretation of History. Disponível em: <http://www.religion-
online.org/showchapter.asp?title=377&C=46. Acesso em: 23 mai. 2008.
100

uma “Teologia da Cultura” (Theologie der Kultur), em 1919, com o citado texto “Sobre a
idéia de uma Teologia da Cultura”. Nesse texto a Teologia passa a ser a expressão normativa
da experiência religiosa e não o discurso descritivo e explicativo sobre objetos específicos
como “Deus”, “Jesus Cristo”, “Revelação”, “Igreja”, dentre outros 99. Porém, o que Tillich
caracteriza aqui como “religião” é a experiência do incondicionado (Unbedingt), ou seja,
compreendido metaforicamente como o “fundamento” (Grund) e o “abismo profundo” (Ab-
grund) da experiência de sentido (Sinn) da existência “espiritual” do humano100. Testemunho
esclarecedor desses conceitos é a seguinte citação de Higuet:

[...] Tillich dá a maior importância a uma concepção mais ampla da religião,


como orientação do espírito que se volta para o incondicionado. [...] O
espírito é essencialmente função, faculdade do sentido. A cada ação pode ser
atribuído um sentido concreto, mas este participa do contexto do sentido ou
universo do sentido. Tanto o sentido concreto quanto o universo de sentido
podem desabar, quando as nossas ações, o nosso mundo, a nossa própria
vida perdem o seu sentido. É lá que começamos a procurar um sentido
fundamental, incondicionado, como fundamento do sentido, capaz de
carregar o sentido concreto e o universo de sentido. Por outro lado, o sentido
incondicionado é também o abismo do sentido: ele sempre transcende o
sentido concreto e até o universo do sentido, no qual nunca se expressa
101
totalmente

Encontra-se em Tillich uma definição muito ampla de religião como experiência de


sentido incondicional e a cultura como o lugar de manifestação concreta dessa experiência de
sentido. Daí Tillich fazer a distinção filosófica entre a “substância” (Gehalt) e a “forma”
(Form) na relação referida. De acordo com Jean Richard102, a substância indica o sentido
“espiritual” profundo de todas as coisas, o teor de sentido incondicional das mesmas. A forma

99
Em 1923 Tillich publicou o texto “O Sistema das Ciências segundo objetos e métodos” (System der
Wissenschaften nach Gegenständen und Methoden). Um dos principais objetivos deste texto é situar e
compreender a Teologia como “ciência do espírito” normativa da religião, ou seja, não uma ciência ao lado das
demais, mas aquela que interpreta a busca e manifestação da experiência do incondicionado em todas as
formas culturais (e as ciências que têm por objeto essas formas) condicionadas. Para maiores matizações sobre
esse texto de Tillich ver BEIMS, R. W. O Sistema das Ciências. In: MUELLER, E. R. & BEIMS, R. W. (orgs.)
Fronteiras e Interfaces, p. 99 ss.
100
Conforme o próprio Tillich afirma: “A religião é a orientação para o Incondicional”. In: TILLICH, P.
Filosofía de la Religión, p. 162. Para Tillich toda ação espiritual do ser humano é ação significativa. Sobre
isso Carlos Calvani vai afirmar: “Não significa que o Incondicional esteja relacionado à realidade da
existência, mas sim à realidade do sentido, do significado último e mais profundo, ou do „sentido do sentido‟, o
sentido último no qual se fundamenta todo sentido preliminar, imanente e formal de toda cultura”. Cf.
CALVANI, C. E. B. Teologia e MPB, p. 48.
101
Cf. HIGUET, E. A. As relações entre religião e cultura no pensamento de Paul Tillich. In: Correlatio. São
Bernardo do Campo, v.7, n.14, 2008, p. 129. Disponível em: <http://www.metodista.br/revistas/revistas-
metodista/index.php/COR/article/view/1155/1165. Acesso em: 20 mar. 2009
102
RICHARD, J. Introduction. In: TILLICH, P. La dimension religieuse de la culture, p. 21-2.
101

passa a ser toda e qualquer manifestação concreta do espírito humano, teórica (linguagem,
discurso) e prática (ações técnicas e transformadoras), que expressa o conteúdo substancial de
todas as coisas. Essas manifestações “formais” são os atos culturais. Tillich vai afirmar:
“Podemos, portanto, dizer: A substância ou significação capta-se mediante uma forma e se
expressa mediante um conteúdo. O conteúdo é acidental; a substância é essencial. Por sua vez,
a forma é o elemento mediador”103. Isso significa que é impossível compreender e significar a
experiência de sentido último, incondicional (portanto, religiosa) fora da experiência cultural,
muito embora as formas culturais jamais esgotem o processo de mediação compreensiva da
experiência religiosa. É esse o entendimento da ideia de “transcendência do sentido concreto”
afirmada na citação de Higuet anteriormente ou, na análise do teólogo Joe Marçal dos Santos,
o paradoxo da religião enquanto experiência do incondicionado que, como exigência de
sentido sempre presente, nunca se esgota nas ações e percepções culturais104.

Assim Tillich estabelece, principalmente em sua fase de produção alemã, a tese central
em relação à teologia e filosofia da cultura, tese essa que pode ser sintetizada da seguinte
maneira:

A religião é a orientação para o Incondicional, e a cultura é a orientação para


as formas condicionadas e sua unidade. [...] toda ação cultural contém o
significado incondicionado; se baseia no fundamento do significado; e na
medida em que é uma ação significativa é, substancialmente, religiosa [...]
Desde o ponto de vista de sua forma, toda ação religiosa é, portanto, uma
ação cultural (TILLICH, 1973, p. 46)

Essas reflexões reaparecerão na coletânea de textos intitulada “Teologia da Cultura”


(Theology of Culture), de 1959, já na fase norte-americana do pensamento de Tillich. Nesse
texto, ao falar sobre a dimensão religiosa na vida espiritual do ser humano, Tillich afirma que
a religião não é uma dimensão da cultura ao lado de outras, mas a dimensão de profundidade
(voltando à metáfora do “abismo”) da mesma, ou seja, seu aspecto último e, retornando ao
termo, incondicional. Daí a caracterização da religião como preocupação última (ultimate
concern) que pode manifestar-se em todas as funções criativas (ou seja, culturais) do espírito

103
Cf. TILLICH, P. Sobre la idea de una Teología de la Cultura. In: TILLICH, P. Filosofía de la Religión, p.
167.
104
Cf. SANTOS, Joe M. G. dos. A Teologia da Cultura. In: MUELLER, E. R. e BEIMS, R. W. (Orgs.)
Fronteiras e Interfaces, p. 128. Tillich reafirma a dialética entre substância religiosa e formas culturais
também da seguinte maneira: “[...] a forma que nada forma é tão incompreensível como a substância sem
forma alguma”. Cf. TILLICH, P. Filosofía de la Religión, p. 165.
102

humano105. Vai ser justamente a ação hermenêutica como “decifradora” dos diversos estilos
culturais (principalmente sua dimensão simbólica) que revelará o conteúdo religioso em cada
esfera cultural. Mesmo que esse conteúdo não deixe jamais as condições históricas e culturais
de sua produção e significação, ao manter a constante tensão e ambigüidade que marca a
relação mediadora entre religião e cultura. Essa tensão que, paradoxalmente, imprimirá o
caráter criativo e inventivo da relação cultura/religião se expressa em relações de poder
“teônomas”. Tillich cria esse neologismo para marcar o estímulo às “autonomias” culturais,
desde que tornadas mediadoras para a expressividade e maior transparência do fundamento
religioso/incondicional que dá sentido último a essas mesmas práticas culturais106.

É muito importante perceber que, na trajetória biográfica e intelectual de Tillich,


principalmente próximo ao fim de sua carreira quando da publicação do terceiro volume da
“Sistemática” em 1963, as reflexões sobre a vida em profundos níveis de complexidade vão
marcar também essa relação hermenêutica entre religião e cultura. Na Sistemática,
combinando profundos aspectos ontológicos e existenciais, a vida é interpretada a partir de
sua profunda ambigüidade. Todos os processos vitais, sejam eles orgânicos e inorgânicos,
humanos ou não, combinam elementos criativos, vitalizadores, com elementos também

105
CF. TILLICH, P. Teología de la Cultura, p. 15-7. Esse texto compõe-se de uma série de artigos de Tillich
escrito nos anos 40 e 50. Sobre a noção de profundidade e incondicionalidade, Calvani vai afirmar:
“‟Profundidade‟ aqui é uma metáfora que aponta para o que há de mais fundamental, de incondicional na vida
espiritual dos seres humanos. Trata-se da preocupação última (Ultimate Concern, tradução do alemão was uns,
unbedingt Anghet) presente em todas as funções criativas do espírito humano”. Cf. CALVANI, C. E. B.
Teologia e MPB, p. 63.
106
A “teonomia” é a “lei” (nomós), expressão de uma racionalidade baseada no “teós”. Mas não se pode
entender “teós” aqui como um objeto chamado “Deus”, como se todas as coisas fossem subjugadas por um
poder supremo que suprime as liberdades e autonomias individuais e sociais. “Teós” aqui é justamente símbolo
para “divino” no sentido de transparência e atualização das potencialidades “espirituais” criativas do ser
humano na relação com o fundamento de sentido desse mesmo ser que, aí sim, se pode nomear simbolicamente
por “Deus”. Nada tão muito estranho para um teólogo cristão. A “autonomia” é a lei, a racionalidade de um
próprio no sentido da atualização citada anteriormente e não no sentido individualista de que cada um se torne
a lei de si próprio. A “heteronomia”, para Tillich, tem uma conotação negativa pois impõe uma
“lei/racionalidade” estranha, heteróclita ao universo de sentido que cada indivíduo e grupo humano cria, a
partir da alteridade autônoma significativa de cada um. Tillich mesmo, em sua Teologia Sistemática, afirma
que o Cristianismo (principalmente no período medieval), tornou-se um grande poder heterônomo que impôs
coordenadas de sentido estranhas às muitas formas culturais, ao não respeitar a autonomia dessas mesmas
formas e, portanto, torna difícil a expressão e compreensão de uma autêntica manifestação religiosa das
mesmas. Não é difícil perceber que muitas ações missionárias cristãs junto aos povos indígenas brasileiros,
ontem e hoje, expressam muito mais uma relação heterônoma entre religião e cultura do que propriamente
“teônoma”. Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, p. 97-9. Também é possível verificar essas relações em
TILLICH, P. Religião e Cultura Secular. In: TILLICH, P. A Era Protestante, p. 83-93. Esse último texto foi
publicado originalmente em 1948 e constitui-se em uma coletânea de artigos de diferentes épocas, inclusive
textos do período alemão. “Religião e Cultura Secular” foi publicado, originalmente, em 1946 nos EUA. Nesse
texto Tillich afirma: “A cultura teônoma expressa nas suas criações a preocupação suprema e o sentido
transcendental não como algo que lhe seja estranho, mas como seu próprio fundamento espiritual. „A religião é
a substância da cultura e a cultura, a forma da religião‟. Podemos dizer que esta frase define com precisão o
que entendemos por teonomia”, p. 83. “[...] essa frase [...]” na citação anterior é a retomada da tese central de
sua “Teologia da Cultura” do início dos anos 20 na Alemanha.
103

ameaçadores e destruidores. De acordo com Eduardo Cruz a concepção de vida, em Tillich,


sempre vai se expressar na mediação/fronteira entre aspectos essenciais e existenciais, uma
vez que essa fronteira expressa a função da vida em uma tríplice dimensão: auto-integração
(movimento para a centralização); auto-criação (movimento para o novo) e auto-
transcendência (movimento para além da vida finita)107. Não se tem a pretensão de
desenvolver aqui toda uma reflexão sobre a ideia de vida e suas ambigüidades no pensamento
de Tillich, até porque a noção de ambigüidade cobre várias conotações no pensamento
tillichiano, mas tão somente pontuar o necessário para a relação entre religião e cultura108.

A dimensão da autotranscendência da vida como leitura antropológica e ontológica


afirma o ser humano como ser da busca pela superação de sua finitude, de sua
fragmentariedade, em termos de determinação do sentido fundamental da existência. Assim, a
religião em Tillich passa a ser definida como essa experiência de autotranscendência sob a
dimensão do espírito, já que ela é a portadora do sentido incondicional. Todavia, esse
movimento nunca elimina totalmente as condições fragmentárias e condicionantes da
existência, expressa nas formas culturais, mantendo a permanente ambigüidade. Com isso,
todos os atos culturais, sejam eles expressos na linguagem/discurso e ações técnicas
transformadoras, sejam cognitivos e estéticos, sejam pessoais ou comunitários, estão
marcados, no processo de autotranscendência criativa da vida, pela ambigüidade. Isso faz com
que todo processo cultural, substanciado pela religião, apresente aspectos positivos e
negativos, simultaneamente implicados em todo processo de construção do sentido da vida.
Essa construção se faz na fronteira de experiências de grandeza e tragédia, santidade e
profanização, divino e demônico. De acordo com Cruz, ao analisar o percurso da noção de
ambigüidade na Sistemática de Tillich, o importante “[...] é o sentido que se atribui a todos os
processos da vida: em toda a vida existe a grandeza que é trágica, porque nenhuma síntese
obtida é definitiva, visto que toda síntese, no processo de consecução, se rende a um novo
passo no processo dialético” (CRUZ, 2008, p. 130)109. Porque o fundamento de toda a vida

107
CRUZ, E. R. da. A Dupla Face, p. 107.
108
Para a compreensão do conceito de vida e ambiguidade no pensamento de Tillich, veja-se os seguintes textos
de Eduardo Rodrigues Cruz: “A vida e suas ambiguidades no sistema de Paul Tillich”, p. 83-95, publicado em
1995 no volume 10 da revista Estudos de Religião, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
da Universidade Metodista de São Paulo e o Capítulo 2 intitulado “A compreensão Teológica de Ambivalência
em Paul Tillich: Subsídios”, da obra A Dupla Face: Paul Tillich e a ciência moderna, p. 83-143. Na
realidade esse texto, ainda que publicado para o português em 2008, foi fruto da tese de doutoramento do prof.
Eduardo Cruz na segunda metade dos anos 80, nos EUA. Portanto, o artigo de 1995 é uma síntese do referido
capítulo dessa obra.
109
Nas palavras do próprio Tillich: “A autotranscendência da vida sob a dimensão do espírito só pode se
concretizar em realidades finitas que são transcendidas. Disto surge a dialética da autotranscendência, que
consiste no fato de que algo é transcendido e, ao mesmo tempo, não transcendido. Este algo deve ter existência
104

cultural é religiosa, essa mesma vida pode transcender-se, pode buscar o novo e experimentar
novas possibilidades criadoras, ainda que circunstanciadas por tensões e conflitos: “O sentido
não pode viver sem a fonte inesgotável de sentido para a qual aponta a religião” (TILLICH,
2005, p. 555). Por viver sob as condições da existência, a percepção, vivência e interpretação
da religião está marcada pela ambigüidade. Vai ser justamente com a noção de demônico que
Tillich definirá essa ambigüidade da religião. De fato, é uma noção muito importante para os
estudos de religião e, no horizonte dessa tese, promissora para se repensar a noção de
sincretismo.

Porém, antes de abordar na próxima subseção a noção de demônico é importante


encerrar esta subseção com a primeira ambigüidade que marca a experiência religiosa: a
dialética entre o sagrado e o profano. Não foi sem motivo que uma das epígrafes desse
capítulo evoca justamente essa ambigüidade da religião: ao reinvindicar as respostas de
sentido para as ambigüidades da vida, ao transcender tensões e conflitos dessa vida, a religião
incorre no risco de tensões e conflitos mais profundos: é o preço do sentido, da transparência
e da atualização da existência. Isso significa que a religião expressa a possibilidade da
grandeza e dignidade da vida, de sua “santidade”, mas corre o risco de tornar essa mesma
vida, da qual é a substância, menos sagrada e mais profana. Tillich vai dizer que toda a análise
teológica, por exemplo, não pode descuidar dessa perspectiva (TILLICH, 2005, p. 555). O
“santo” ou “sagrado” aqui para Tillich é justamente a dimensão de profundidade, símbolo de
que as coisas são mais do que mostram sua própria aparência finita: um correlato da própria
idéia de religião. Assim, quando a religião é colocada como uma função cultural ao lado de
outras funções, perde sua dimensão de profundidade e ocorre um processo de “profanização”
da vida e do sagrado. De acordo com Higuet, ao analisar esse aspecto da ambigüidade da
religião em Tillich:

Todo ato da vida deveria em si mesmo apontar para além de si, e nenhum ato
especificamente religioso deveria ser necessário. Mas, como em todos os
âmbitos da vida, a profanização no âmbito do espírito resiste à
autotranscendência. A profanização da religião a transforma num objeto
finito entre objetos finitos. A conseqüência é a presença de elementos

concreta, caso contrário nada haveria para ser transcendido; contudo, não deveria mais „estar aí‟, e sim ser
negado no ato de ser transcendido. Esta é exatamente a situação de todas as religiões na história. A religião
como autotranscendência da vida precisa das religiões e, concomitantemente, precisa negá-las”. Cf. TILLICH,
P. Teologia Sistemática, p. 555.
105

profanizados em todo ato religioso. Deste modo, a religião é reduzida à


cultura e seus símbolos a simples resultados da criatividade cultural110

Não se nega, nessa citação anterior, a dimensão simbólica de significação das ações
criativas culturais. Sem elas não seria possível, conforme já afirmado, a expressão mediadora
da religião. Justamente porque a linguagem simbólica permite representar sem se igualar ao
representado (significante e significado), não diluindo a experiência de sentidos
incondicionais às formas condicionadas111. É justamente contrária a essa “diluição”
reducionista que a citação anterior de Higuet aponta. Todavia, os elementos profanizadores
sempre estarão presentes. A questão é o ponto, o teor em que a vivência do sagrado pode ser
percebida sem perder sua dimensão de ir além das dimensões profanas e condicionantes da
vida: trata-se da ambigüidade.

Outro aspecto da ambigüidade da religião apontado por Tillich é justamente a relação


entre o “divino” e o “demônico”. Mas a trajetória da “invenção” da noção de “demônico” em
Tillich é bem anterior às assumidas na sua obra Teologia Sistemática. Assim, após essas
noções fundamentais da fronteira entre religião e cultura chega-se à radicalização dessa
fronteira na ambigüidade do demônico, componente central para a compreensão da mediação
proposta.

2.2.2 Religião como criação “demônica”

Ao retomar algumas afirmações do final da seção “2.2” desse capítulo, é possível


perceber o seguinte: por mais que a noção de demônico perpasse toda a “Teologia
Sistemática” de Paul Tillich, nos mais de 10 anos em que os três volumes originais levaram

110
Cf. HIGUET, E. A. As relações entre religião e cultura no pensamento de Paul Tillich. In: Correlatio. São
Bernardo do Campo, v.7, n.14, 2008, p. 131-2. Disponível em: <http://www.metodista.br/revistas/revistas-
metodista/index.php/COR/article/view/1155/1165. Acesso em: 20 mar. 2009.
111
Para maiores detalhes sobre a noção de símbolo em Tillich, característica fundamental da linguagem
religiosa, veja-se: TILLICH, P. Teología de la Cultura, p. 56-65. Nesse texto Tillich afirma: “Os símbolos
religiosos assinalam simbolicamente (sic) aquilo que os transcende a todos. Não obstante, como símbolos que
são, participam do que indicam; tendem, certamente, a suprir na mente humana aquilo que indicam e a
converter-se em fundamentais por si mesmos”. Cf. Idem, ibidem, p. 59. Também em TILLICH, P. Dinâmica
da Fé, p. 30-9. Além disso, o texto de JOSGRILBERG, R. de S. A concepção de símbolo e religião em Freud,
Cassirer e Tillich. In: HIGUET, E. e MARASCHIN, J. (Eds.). A Forma da Religião. Leituras de Paul Tillich
no Brasil, p. 17-26.
106

para serem publicados, a construção deste conceito é bem anterior, uma vez que remonta a sua
fase alemã. De acordo com Carlos Calvani, a primeira menção do demônico em Tillich ocorre
em um artigo de 1923, intitulado “Os princípios fundamentais do Socialismo Religioso”
(Grundlinien des religiösen Sozialismus). Todavia, vai ser somente em 1925, na obra
“Filosofia da Religião”, que a noção começa a se impor na sua relevância hermenêutica para
a análise das relações entre religião e cultura112. Jean Richard também afirma a importância
do demônico em diversos escritos de Tillich na fase de produção de seu programa de filosofia
e teologia da cultura, nos anos de 1919 a 1926, onde o teólogo e filósofo teuto-americano
procurou pensar exaustivamente a mediação compreensiva entre o absoluto da religião e a
autonomia das formas culturais (RICHARD, 1990, p. 10).

No período citado anteriormente (terceira década do século vinte), pelo menos dois
textos específicos sobre o demônico são elaborados: o já citado texto de 1926 (“O
Demônico”) e, no mesmo ano, “O conceito de demônico e sua significação para a teologia
sistemática”. Na breve apresentação desses textos, Richard afirma o grande apreço de Tillich
aos mesmos. Em relação ao primeiro texto Tillich, sem abandonar as análises mediadoras
típicas de seu estilo, ou seja, as polaridades conceituais entre religião e cultura, Deus / Mundo,
sagrado e profano, “mergulha” na análise da experiência do sagrado enquanto fundamento
para a reflexão acerca da religião. A partir de uma leitura fenomenológica e filosófica, Tillich
passa a conceber o demônico como o símbolo radical para a essência ambígua do sagrado ao
cunhar os pólos “sagrado-divino” e “sagrado-demônico”. Assim, tanto as formulações
míticas das religiões quanto a estrutura psíquica e social dos seres humanos, em seu nível
mais íntimo, evocam a profundidade “demônica”, ou seja, “abissal”, “obscura”, ambígua,
sempre na busca pelo sentido da existência (RICHARD, 1990, p. 15). Importante frisar: não é
uma dimensão puramente positiva ou negativa, mas ambígua, da mediação. Com isso Tillich
procura mostrar como essa ambigüidade se desenvolve na história das religiões, encerrando o
texto com projeções mais existenciais sobre as forças demônicas do presente (no caso, o
período “entre guerras” da primeira metade do século XX).

Tillich afirma que o “lugar” do demônico é, essencialmente, a experiência espiritual


dos seres humanos. Mas é bom não esquecer que “espiritual” aqui diz respeito à experiência
de sentido e não a relação com “seres espirituais” chamados de “demônios”. Como marcado
por preocupações/sentidos incondicionais, a essência do demônico é religiosa. Isso significa,

112
CALVANI, C. E. B. Imagens do Diabo na MPB. In: HIGUET, E. e MARASCHIN, J. (Eds.). A Forma da
Religião. Leituras de Paul Tillich no Brasil, p. 166.
107

também, que a percepção do demônico passa pelas formas culturais, mas não se esgota nelas.
Ao expressar-se nas mediações culturais o demônico ganha dimensões sociais e
antropológicas, além de expressar-se nas estruturas individuais do ser humano. Mas seu
fundamento é a experiência do sentido (TILLICH, 1990, p. 130-4). Essas dimensões de
compreensão do demônico são retomadas no texto da relação desse conceito com a teologia
sistemática. Por se tratar da relação com o pensamento teológico, Tillich procura deixar claro
que a concepção do demônico não pode ser confundida com um mero apêndice às elaborações
sobre o pecado, a modo das dogmáticas tradicionais. Procura, assim, perceber as implicações
éticas e sociais da noção ambígua de demônico para todos os campos da Teologia, em
particular a cristologia e a eclesiologia (RICHARD, 1990, p. 16).

Ainda que por caminhos diferentes aos de Michel de Certeau, a importância da


influência do pensamento místico também está presente no pensamento de Tillich, justamente
na composição da noção de demônico. Tanto Calvani quanto Cruz pontuam a influência da
“mística teológica” de Jacob Böehme e da “mística filosófica” de Friedrich Schelling no
pensamento de Tillich113. Acrescente-se aqui a influência da própria noção de “sagrado”
tomada de Rudolf Otto e a noção teológica de um “Deus demoníaco” tomada do reformador
alemão Martin Lutero. Com isso, é importante desenvolver, ainda que brevemente, os
aspectos dessas influências que contribuíram para a “gênese inventiva” da noção de demônico
em Tillich.

Em relação a Otto, Tillich reinterpreta a noção de sagrado como experiência do


sentido captada fenomenologicamente na intuição de uma relação que instila desejo, atração,
“fascínio”, ao mesmo tempo em que evoca a ideia de repulsa, temor, resistência (É o aspecto
tremendum e fascinans do Sagrado). Não é possível somente objetificar e medir
empiricamente e racionalmente a relação com o sagrado. Existe um componente de
“irracionalidade” nessa relação. Só que o “irracional” não é o oposto a “racional”, mas é a
dimensão de profundidade, “obscuridade” frente aos aspectos mais “luminosos” e da

113
Jacob Böehme foi um místico cristão alemão que viveu entre os séculos XVI e XVII (1575-1624). Ao
filósofo alemão Schelling, Tillich dedicou duas teses doutorais: a primeira em filosofia, em 1910/11, na
Universidade de Breslau, ao abordar o tema “A Construção da História da Religião na Filosofia Positiva de
Schelling, seus Pressupostos e Princípios”. A segunda tese em Teologia, em 1912, na Universidade de Halle,
com o título: “Mística e Consciência de Culpa no Desenvolvimento Filosófico de Schelling”. Assim como
Certeau, Tillich também atuou como agente religioso formalmente ordenado. Nesses anos de estudo, Tillich foi
ordenado ao ministério pastoral na Igreja Luterana em 1912, após um período de vicariato na cidade de Nauen.
Foi pastor assistente em Berlin de 1912 a 14 ingressando, posteriormente, no quadro de capelães do exército
alemão ao servir na primeira guerra mundial (1914-1918) Cf. MUELLER, E. R. Paul Tillich: Vida e Obra. In:
MUELLER, E. R. e BEIMS, R. W. (eds.) Fronteiras e Interfaces, p. 11-39.
108

mediação objetiva da “racionalidade”. A essência do sagrado é paradoxal, é ambígua. O


próprio Rudolf Otto afirma: “Não somente inapreensível para as nossas categorias, não
somente incompreensível por sua dissimilitas (“dissimilitude”) que transtorna, deslumbra,
angustia e põe em perigo a razão, senão definido simultaneamente por atributos contrários,
que se excluem e contradizem”114. Nessa percepção do sagrado, enquanto experiência de
interpelações profundas, desperta o sentido da incondicionalidade. Tillich reconfigura essas
perspectivas ao atrelar o incondicional e “irracional” à idéia de substância religiosa e a
“racionalidade” da experiência com o sagrado com as formas culturais (CALVANI, 1998, p.
46-7).

Em relação a Lutero, por sua vez, Tillich o considerava o grande teólogo do


“paradoxo”. Em um acento místico Lutero enfatizava o indizível, a pequenez da condição
humana diante da grandeza de Deus, o finito anelando o infinito: aquele participando, ainda
que fragmentariamente, deste ou “apesar de”, em clara expressão da teologia da justificação
pela fé luterana: apesar do pecado e da culpa, o ser humano é aceito por Deus, mesmo que
esse mesmo humano resista a ele. As imagens ambíguas de Deus por parte de Lutero, na
leitura de Tillich, onde Deus expressava sua santidade e, ao mesmo tempo, ira, como sinal de
seu juízo, revela uma face “demoníaca” do divino. Na experiência religiosa, em relação ao
símbolo do divino, a santidade flerta com o pecado, a fé com a dúvida, a comunhão/união
com o afastamento e a dissolução, mantendo a paradoxalidade, o dizer e viver “Deus”, mesmo
que equivocadamente115.

Em Böehme e outros místicos, como Bernardo de Claraval e Mestre Eckhart, Tillich


encontra profunda fonte inspirativa. Enxerga neles uma profícua aliança entre exercício
crítico e intelectual com o exercício da experiencialidade, mais estética e extática. A partir de
Böehme, Tillich assume o símbolo do “abismo profundo” qualificador do divino. Todavia,

114
Cf. OTTO, R. Lo Santo, p. 43. Para maiores detalhamentos sobre a reflexão acerca do sagrado, em uma
perspectiva baseada mais na sociologia e filosofia francesa, o texto de CAILLOIS, R. L’home et le sacré, em
especial o Capítulo 2 intitulado “A Ambigüidade do Sagrado” (L‟Ambiguïté du Sacré), p. 41-76. Caillois
afirma que, no campo religioso, o ser humano opera, preferentemente, com uma estrutura cognitiva equivoca e
ambígua ao acentuar, na relação com o sagrado, as polaridades puro/impuro; santidade/profano;
coesão/dissolução.
115
Essas influências (de Otto e Lutero) são retomadas por Tillich em sua Teologia Sistemática, ao comentar a
relação entre Deus e a idéia de sagrado, quando afirma: “Os elementos demoníacos na doutrina de Lutero sobre
Deus, sua identificação ocasional da ira de Deus com Satanás, a imagem meio divina, meio demoníaca que nos
oferece a atuação de Deus na natureza e na história – tudo isso constitui a grandeza e o perigo da compreensão
luterana do sagrado. A experiência que ele descreve certamente é numinosa, tremenda e fascinante, mas não
está salvaguardada contra a distorção demoníaca nem contra o ressurgimento do impuro dentro do sagrado”.
Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, p. 225. Devo a localização dessa citação a CRUZ, E. R. da. A Dupla
Face, p. 133.
109

toda participação e lançar-se no divino implica no reconhecimento das nulidades e fraquezas,


da pequenez diante da grandeza do divino, das fragilidades diante da majestade do divino.
Assim, Böehme ajuda Tillich a elaborar também a característica paradoxal e ambígua do
sagrado: toda participação religiosa no sagrado, incondicionalmente impulsionado, implica
em resistências, inconstâncias e inseguranças. Eduardo Cruz, ao comentar a apropriação que
Tillich faz de Böehme, expandindo-a para interpretar a própria história das religiões
(característica dos dois textos de Tillich sobre o “demônico” citados anteriormente), afirma:
“[...] a presença simultânea do divino e do demônico no Sagrado, a passagem da essência para
a existência (“arrojar-se”) e o caráter criativo e destrutivo do demônico nas condições da
existência” (CRUZ, 2008, p. 135). Nessa citação fica clara a diferença que Tillich começa a
operar entre “sagrado” e “divino”. O “sagrado” é o horizonte de sentido, aquilo que interpela
o ser humano incondicionalmente, ou seja, a expressão do religioso. Todavia, conforme a
citação anterior, essa experiência de ser interpelado pelo incondicional acontece sob as
condições da existência, ou seja, ocorre em meio a várias ambigüidades. O “divino” passa a
ser o símbolo para a positividade, a união, a clareza da participação e unidade com o sagrado,
expressão de transparência para uma vida de sentido. Por sua vez entra em cena, exatamente
aí, o conceito de demônico para destacar a dimensão de obscuridade, de participação
distorcida no sagrado. Vai ser justamente o exercício dessa mediação, dessa dialética, que
Tillich vai caracterizar, por exemplo, suas reflexões sobre o demônico em sua “Filosofia da
Religião” em 1925. Porém, antes de voltar a esses aspectos, ajuda na compreensão do
demônico as percepções de Tillich acerca de Schelling.

Tillich enxerga em Schelling o precursor de intuições existencialistas, mesmo dentro


de perspectivas do idealismo da filosofia alemã do século XIX, ou seja, a reflexão sobre a
essência do ser, a unidade dos seres com seu fundamento essencial, intuído a partir da
consciência que o finito tem do infinito. Mas essa “identidade ontológica” debruça-se sobre os
processos diferenciadores da vida, a partir de onde desperta a intuição pela unidade. Todas as
coisas são percebidas fenomenicamente a partir da consciência de diferenciação entre o real e
o ideal, entre o finito e o infinito. Todo ser individual e social já é uma diferenciação
qualitativa da unidade absoluta, intuída como experiência de sentido. De acordo com Calvani
(1998, p. 29), Schelling passa a construir sua ontologia do sentido a partir das chamadas
“potências originais”: a primeira, o “não ser”, no sentido da substância pura, fundamento de
todas as coisas formais, poder de ser de tudo, uma vez que resiste a todas as formas
condicionadas. A segunda potência é a causa formal, “puro ser”, vontade autônoma e razão
110

prática de toda a vida que depende do fundamento que é a primeira potência. A terceira
potência é a dinâmica de união entre as duas anteriores, o “espírito”, a mente, o intelecto que,
animado pela intuição, se desdobra nas formas condicionais e diferenciadas. Tudo o que
existe passa a existir a partir da unidade dessas potências. A história passa a ser marcada por
uma radical ruptura entre os seres, diferenciados e separados do seu fundamento. A dinâmica
da reconciliação, da busca pela unidade essencial, sem negar as ambigüidades, embora nunca
conseguida nas condições da existência, recria a experiência do novo, de novos sentidos.
Tillich reinterpreta essa busca pela unidade em termos de participação no incondicional, o que
equivale a dizer, religiosa. Deriva daí que a experiência e a história religiosa é o fundamento
de toda a existência das formas, portanto, culturas. Teologicamente falando, o símbolo
“Deus” aponta para o “fundamento do ser”, o “Ser-em-si”, o “Deus além de Deus”, o “abismo
de sentido”. Simbólico porque “Deus” não “existe”, não é um ser ao lado de outros seres, pois
deixaria de ser o fundamento e passaria a ser um “ente”, uma “forma”. A linguagem,
edificada sobre as ambigüidades da existência, sempre falará do sagrado e do divino
fragmentariamente, sem adequar totalmente a “coisa ao objeto”. Falar do incondicional, de
fundamento do ser, é uma fala sempre incompleta. Nesse ponto enxergam-se, também, ecos
da tradição mística com a qual concordaria, pelo menos em parte, Michel de Certeau116.

É importante observar que na própria ideia tillichiana de “Deus” há uma ambigüidade:


Ela é, ao mesmo tempo, fundamento e abismo. Em que pese as críticas a essa ontologia
tillichiana e as suas apropriações de Schelling, o importante é destacar que, na própria
essência do sagrado radica a ambigüidade117. Tillich cria, a partir daí, a noção de demônico
para caracterizar essa ambigüidade na participação do sentido incondicional, ou seja, na
própria religião. Se as formas culturais são ambíguas é porque sua “substância religiosa” o é.
Aqui aparecem as bases da teoria sobre o demônico desenvolvida na obra “Filosofia da
Religião” e retomadas na obra “O Demônico”. Jean Richard (1990, p. 20) sintetiza a
compreensão desse conceito, no referido texto, ao afirmar: “O „Dämonisch‟ [Demônico]
significa, por outro lado, um princípio ambíguo, que comporta um elemento criador e um
elemento destruidor. Isto é, a face obscura do fundamento abissal [...] Poderíamos até dizer
que é a perversão do sagrado, o sagrado com um sinal negativo”. O demônico marca, assim,

116
“[...] a linguagem não mais exprime as coisas, não mais dá presenças e não mais é a transparência do mundo,
mas sim um lugar organizado que permite atividades. Ela não mais dá aquilo que ela diz: falta-lhe o ser”. Cf.
CERTEAU, M. de. A Cultura no Plural, p. 88.
117
Para uma crítica à ontologia tillichiana, calcada na ideia de “fundamento do ser”, a partir de uma filosofia
pós-moderna, ver o texto de MARASCHIN, J. C. Cristologia sem centro – o novo ser e o nada. In: HIGUET,
E. A. e MARASCHIN, J. C. (Eds.) A Forma da Religião, p. 213-23.
111

um tipo de relação essencial, um princípio que se estabelece entre a substância religiosa e as


formas culturais nas quais se expressa. E que tipo de princípio, mais especificamente, seria?
Um princípio “inventivo”, tanto na essência do sagrado e de sua expressão religiosa, quanto
na mediação com as formas culturais, ou seja, na busca e compreensão da unidade de sentido
e significação última da existência, a condição humana “inventa” espaços de sentido criativos
ou espaços distorcidos, até mesmo destrutivos. A questão que se impõe é: se as formas
culturais deixam transparecer criativamente o fundamento religioso ou se distorcem e resistem
à percepção desse fundamento. Nessa “fratura”, nessa “ruptura” instaura-se o demônico, uma
vez que provém da própria ambigüidade do sagrado, divino e demônico ao mesmo tempo.
Nas palavras do próprio Paul Tillich é possível compreender da seguinte maneira:

Na esfera do Santo em si delineia-se a polaridade do divino e do demônico


[...] O demônico é um impulso da matéria que resiste ao significado e que
assume a qualidade do Santo [...] É uma abertura para o destrutivo, porém
uma abertura que provém do mesmo abismo que a abertura para a graça. A
diferença, contudo, é esta: a graça atravessa a forma reconhecendo-a,
assumindo-a, ao mesmo tempo que afirmando a forma incondicional. O
demônico possui todas as formas de expressão que subsistem no sagrado,
porém as possui com a marca da oposição à forma incondicional e com uma
intenção destrutiva (TILLICH, 1973, p. 75)

...........................................................................................................................

As formas de vida, com a plenitude e os limites do seu ser, são o resultado


da competição de duas tendências. E a distorção demônica é o resultado do
isolamento e da irrupção disforme da vontade do infinito. O demônico é a
irrupção, contrária à forma, do fundamento criador das coisas (TILLICH,
1990, p. 129)

A primeira citação é do texto Filosofia da Religião. A segunda é do texto O


Demônico, que pertence à coletânea de textos intitulada La dimension religieuse de la culture.
Ambas mostram que Tillich encara a existência de todas as coisas e seu fundamento religioso,
em uma permanente fronteira de tensão criativa e destrutiva na construção/invenção do
universo de sentido que dá sustentabilidade individual e social dos processos culturais. Por
mais que esteja impregnado de intenções distorcidas o demônico, assim como o seu pólo
oposto com o qual se relaciona dialeticamente, simbolizado pelo divino, “flui” do mesmo
abismo de sentido, o sagrado, a substância religiosa. Se há na realidade a “[...] inevitável
mistura de bem e mal em todos os atos humanos” (TILLICH, 1992, p. 22), é porque essa
“mistura” provém da fonte inventiva inesgotável de sentido que é a religião, substância do
sagrado ou, em um acento cristão, a nomeação de “Deus Criador”. Nesse caso, é possível um
112

exercício interpretativo que permita afirmar que o sincretismo constitui-se em processos de


“interpenetrações” de sentidos religiosos diversos, uma vez que o próprio fundamento das
formas culturais sincréticas está permeado por essas interpenetrações de sentidos ambíguos.
Mais uma vez: essa “inventividade” cria aspectos de sentido (positivos), mas podem criar
aspectos sem sentido (negativos), mas que dependem da busca pelos sentidos últimos da
existência (pois essa existência, conforme afirmado, é uma mescla de elementos essenciais e
existenciais). Tillich exemplifica essas experiências “demônicas” em vários aspectos
culturais, por exemplo, com as artes e as muitas narrativas míticas ao longo da história das
religiões. Em muitas artes religiosas a imagem do sagrado aparece “demoniacamente
distorcida”, mas não deixa de ter como referente o sagrado. Em um exemplo apocalíptico e
cristão, o símbolo do “Anti-Cristo” como oposição, resistência e distorção, não deixa de
referenciar o “Cristo” (CALVANI, 1998, p. 60-1). Essas expressões culturais são formas que
manifestam a estrutura pessoal e social da condição humana, porque sua essência repousa na
ambigüidade religiosa do demônico.

É importante colocar para a discussão a compreensão de Eduardo Cruz sobre a


concepção do demônico em Tillich. Cruz afirma que na própria trajetória intelectual de
Tillich, na transição do contexto alemão para o norte-americano, o mesmo não conseguiu
“[...] controlar totalmente o conceito [do demônico]” (CRUZ, 1995, p. 94). Por que essa
afirmação? Porque para Cruz, a noção de demônico em Tillich foi abandonando sua raiz
ambígua, ou seja, de propor ser um conceito de “mediação” da fase alemã para, em seus
últimos escritos, como no último volume da Teologia Sistemática (na fase norte-americana),
ganhar um contorno acentuadamente negativo. Tornar-se-ia, assim, quase sinonímico a uma
“ideologia idolátrica” e também ao puro aspecto perverso do sagrado (CRUZ, 1995, p. 86;
2008, p. 134). De fato, na Teologia Sistemática, Tillich situa a ambiguidade do divino e do
demônico na compreensão de religião como autotranscendência criativa da vida. Como a vida
se movimenta nas ambigüidades concretas da existência, interessa a Tillich discutir agora não
somente a relação do demônico com a essência do sagrado, mas como esse demônico se
relaciona com as não menos ambíguas formas culturais em seus processos individuais e
sociais. Preocupa ao teólogo alemão a perspectiva de não negar a participação do demônico
na sublimidade do sagrado mas, como se trata de uma participação distorcida, incorre na
possibilidade de elevar toda forma cultural, limitada, ao status do fundamento incondicional,
absoluto, ilimitado (à substância religiosa): a isso Tillich qualificará como idolátrico e
reduzirá o demônico ao “demoníaco”: “[...] a elevação de um elemento da finitude à condição
113

de poder e sentido infinitos necessariamente provoca a reação de outros elementos de finitude,


que negam esta reivindicação ou a fazem para si próprios” (TILLICH, 2005, p. 560). Ele
ilustra isso da seguinte forma, em continuidade à citação anterior: “A auto-elevação
demoníaca de uma nação sobre todas as outras em nome de seu Deus ou de seu sistema de
valores produz a reação de outras nações em nome de seu Deus” (TILLICH, 2005, p. 560).
Eduardo Cruz utiliza o exemplo de Tillich da elevação “demônica” do Império Romano que, a
despeito de sua grandeza e dignidade, sucumbiu à idolatria de se autoabsolutizar, de se achar
como divino. Esse exemplo é, segundo Cruz, retomado no terceiro volume da Sistemática, em
1963, pois já era encontrado no texto “O Princípio Protestante e a Situação do Proletariado”,
de 1931, mas que foi republicado em 1948 na obra “A Era Protestante”. A diferença, segundo
Cruz, é que nesse texto o Império Romano apresenta a ambigüidade do demônico, sendo
criativo e destrutivo. Naquele texto, O império romano é encarado como essencialmente
negativo (CRUZ, 1995, p. 86).

Cruz não nega as dificuldades de tradução do termo “demonic” para caracterizar a


ambiguidade do termo “demônico” e a diferença para com seu lado puramente destrutivo
nomeado por “demoníaco”, conforme já afirmado no início dessa subseção. Cruz também
mostra que essa evolução para uma conotação mais negativa do termo na Sistemática reflete
os conflitos de época do período pós-segunda guerra mundial e o intenso processo de
secularização da cultura norte-americana, o que significava uma “perda” de sua substância
religiosa118. Mas o próprio Cruz denota certa incerteza na sua análise, pois ora afirma que o
conceito de demônico é “puramente negativo” na fase americana do pensamento de Tillich,
ora afirma que é “quase que exclusivamente associado à idolatria” (CRUZ, 1995, p. 86-7).
Esse “quase” indicaria, ainda, reminiscência da idéia de ambigüidade. Na perspectiva desta
tese, assume-se também que a noção da ambigüidade do demônico nunca abandonou o
pensamento tillichiano, sendo sempre um conceito de mediação, principalmente na relação
entre religião e cultura. Oscila, ora quando se quer enfatizar mais uma fenomenologia do
sagrado, a essência da religião, ora quando se enfatiza mais os aspectos culturais e suas
distorções na relação com o mesmo símbolo do sagrado. Até mesmo no terceiro volume da
Sistemática Tillich evoca o símbolo dos “daimones” nas antigas mitologias que, como seres
divinos e anti-divinos, tornam-se uma boa metáfora para caracterizar a consciência ambígua

118
“Com a perda de sua substância religiosa, a cultura se torna cada vez mais uma forma vazia. O sentido não
pode viver sem a fonte inesgotável de sentido para a qual aponta a religião”. Cf. TILLICH, P. Teologia
Sistemática, p. 555.
114

do demônico e sua participação (e não recusa), ainda que distorcida, na esfera do sagrado
(TILLICH, 2005, p. 559). No final das contas, o próprio Cruz afirma:

Em suma, é razoável argumentar que Tillich, pelo menos durante o período


germânico, caracteriza o demônico como ambíguo, e os demonismos do
presente alternadamente como demônicos e ambíguos. O demônico deve ser,
então, a dinâmica subjacente, criativa e destrutiva, implicada nas
ambigüidades da vida. É a “profundeza” da ambigüidade, por assim dizer.
Por isso os demonismos podem ser vistos como as realidades históricas
ambíguas, consideradas sob o seu aspecto transcendente, isto é, sob sua
possibilidade de auto-elevação (CRUZ, 2008, p. 137)

Essa citação longa sintetiza muito bem a perspectiva sobre o demônico,


principalmente o aspecto de ser um campo de mediação (por isso, ambíguo) de sentido,
quando se trata da experiência religiosa, em termos de aspectos criativos e destrutivos.
Conquanto não seja decisivo para o argumento, apenas é possível pensar que essa perspectiva
não esteja somente no Tillich germânico. Isso porque o caráter de interpretar os “demonismos
como realidades históricas ambíguas”, seja no nível da personalidade humana, seja no nível
das estruturas sociais, principalmente o aspecto da “auto-elevação” dessas realidades ao status
“demoníaco” da “divinização absoluta”, está muito presente na Sistemática. Além disso, na
própria preocupação de Tillich em traduzir textos seus do alemão para a fase norte-americana
(como testemunha a obra “A Era Protestante”) mostra, com isso, a necessidade de manter
essa leitura da ambigüidade em toda sua trajetória intelectual. Trata-se, pois, de não enxergar
um “abandono” do caráter ambíguo da noção de demônico em fases posteriores como parece
sugerir Cruz, mas do “preço” hermenêutico que se paga ao ressignificar um conceito tão
complexo para novas situações existenciais e históricas. A noção de “demônico” reflete a
própria ambigüidade e a vida “na fronteira” que caracterizou Tillich. É razoável pensar que
essa ambigüidade caracteriza o exercício teórico de seus intérpretes também. Mais plausível
ainda é perceber que a ideia de ambiguidade, tal como foi apresentado no primeiro capítulo,
também marcam a noção de sincretismo. Por falar em sincretismo, após esse já longo
percurso teórico, a última subseção desse capítulo postulará algumas implicações de possíveis
correlações hermenêuticas entre a noção de demônico tillichiana e a condição “heteróloga” da
cultura, proposta por Michel de Certeau, para se repensar e reinterpretar o sincretismo
religioso. Daí surgirá, agora, a noção de “diacretismo”.
115

2.3 SINCRETISMO E DIACRETISMO: MEDIAÇÕES HERMENÊUTICAS PARA A


INVENÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E CULTURA

A historiadora das religiões Anita Leopold, no prefácio da obra Syncretism in


Religion: A Reader (“Sincretismo na Religião: Uma Leitura”), ao comentar a potencialidade
criativa e transformadora das experiências sincréticas, afirma o seguinte: “Por isso é
importante preservar a categoria do sincretismo: continuar a discussão sobre muitas questões
relevantes concernentes à invenção humana e reinvenção da religião, cultura e identidade”119.
Ainda que não necessariamente no mesmo sentido de Leopold, o esforço teórico empreendido
nesse capítulo, até aqui, é promover um caminho de mediação interpretativo para, justamente,
pensar a noção de sincretismo religioso nos termos “inventivos” citados por Leopold. O
quadro teórico que “emoldura” essa noção está fundamentado nos principais conceitos
abordados até o presente momento: a compreensão das “formas” culturais que mantém a sua
dinâmica a partir da fronteira “certeauniana” entre táticas e estratégias, enquanto relações de
poder criadoras de sentido, relações essas animadas por uma vivência “demônica” da religião,
uma vez que a inventividade religiosa, enquanto expressão cultural, parte de uma profunda
mescla de criações e distorções de sentidos que dão conta de interpretar e significar a
realidade.

Os conceitos certeaunianos e tillichianos esboçados apresentam algo em comum:


quando se trata de pensar as vivências religiosas e sua linguagem própria, notadamente
simbólica, depara-se com os limites e a fragmentariedade dessa linguagem: sempre existirá
um “outro”, nunca plenamente alcançado, a interpelar e colocar em xeque as semelhanças e
diferenças. A experiência religiosa, ao ser tomada de forma ambígua/demônica e vivida nos
espaços culturais mediadores da existência, vai ser uma radical experiência de alteridade, uma
vez que o “outro” sempre vai ser um espaço fronteiriço que pode excluir, delimitar espaços de
sentido e pode incluir, “atravessar” com sentidos diferenciadores. O termo “sincretismo” não
pode esconder o que, na realidade, deve propor: a radicalização (de “radix”, ir fundo, na raiz),
na experiência de reconfiguração do sentido religioso da vida e das formas de significação
desse sentido, da interface das trajetórias de “encontros”, “junções”, “aproximações”,
“misturas”, “adaptações” ou outros termos correlatos, com os “desencontros”, “distorções”,
“rupturas”, “desvios” e termos correlatos que, paradoxalmente, também estruturam a

119
LEOPOLD, A. M. Preface. In: LEOPOLD, A. M. & JENSEN, J. S. (Eds.) Syncretism in Religion: A
Reader, p. x.
116

experiência do sentido religioso. Torna-se um processo contínuo em meio a muitas faces de


descontinuidade, elas próprias configuradoras da alteridade religiosa.

Quando faz, por exemplo, uma análise teológica do problema do sincretismo religioso,
a partir da noção de “revelação” (conforme apresentado no primeiro capítulo), o cientista da
religião Afonso Soares afirma que, sem querer livrar-se de polêmicas, o termo sincretismo
leva vantagem (se comparado, por exemplo, com “[...] sua prima bem-comportada
inculturação [...]”) por deixar claro realmente o problema: “A revelação de Deus comporta
claríssimas ambigüidades, erros e contradições que devem ser explicados como componentes
essenciais e não refugos circunstanciais do processo da autocomunicação divina à
humanidade” (SOARES, 2008, p. 93). Se é assim na relação divino-humano, porque não seria
entre os próprios seres humanos em suas experiências religiosas enquanto processos culturais?
É possível, como será mostrado no próximo capítulo, que a experiência Guarani e Kaiowá do
teko katu mostre e ensine isso: que o “bom modo de ser” e de proceder, sempre religioso,
implique em um caminho (tape) que comporta também profundas contradições, distorções e
crises (o tekoaku)120. Profundamente inventivo e demônico, como inventiva e “demônica”
parece ser uma boa metáfora para caracterizar as ações religiosas de grupos indígenas
pertencentes ao projeto da IIP na Terra Indígena de Dourados hoje. Portanto, essa tese propõe
ampliar a força metonímica e interpretativa do conceito de sincretismo com o seu pólo
nomeado de “diacretismo”. Se a noção de sincretismo pode ser definida, em síntese, como o
processo de invenção “demônica” da cultura, essa definição será, agora, desdobrada nos
conceitos trabalhados, de tal forma a acolher a noção de diacretismo afirmado anteriormente.

A compreensão de sincretismo exposta anteriormente, por depender de Tillich e


Certeau, comporta em refletir sobre ambigüidades. Não é tão novidade assim, a título de
exemplificação, reler a categoria do sincretismo atrelado à idéia de ambigüidade. Essa
releitura é muito típica em teólogos e teólogas por lidarem com as ambigüidades da
linguagem simbólica e a experiência do sentido na relação com o divino. Tillich é um
exemplo disso. Outro exemplo é a reflexão empreendida pelo historiador das religiões
Michael Pye. Com um acento fenomenológico Pye afirma que, se há uma experiência
religiosa enquanto produtora de sentido, mesmo que se pergunte por qual sentido seja, ele (o
sentido) só poderia ser encontrado através de outros sentidos. Para Pye, cada ser humano é

120
Segundo Graciela Chamorro o tekoaku é termo guarani que pode ser traduzido por “modo de ser quente”,
relacionado a estados de profundo alerta, crise e perigo. A gravidez, o nascimento, as doenças, os processos
iniciatórios indicam períodos de profunda preocupação e resguardo, exemplificando o tekoaku. Cf.
CHAMORRO, G. Terra Madura, p. 354. Teko katu é “o bom modo de ser, de agir”.
117

limitado em seu ser para “apreender” compreensivamente a revelação divina ou a verdade


última (ultimate truth, na expressão original), justamente por só percebê-la refratada em
termos de sua própria situação religiosa (o que não deixa de lembrar as teses de Afonso
Soares). Daí que Pye toma o termo ambigüidade, como palavra-chave, para caracterizar o
sincretismo como uma relação de produção de sentido entre elementos originalmente
estranhos à situação religiosa própria de cada um e elementos próprios a essa situação. Nas
próprias palavras do referido historiador: “Sincretismo, como a coexistência de elementos de
diversas origens interagindo ambiguamente”121. Todavia, essa “coexistência ambígua” de
elementos religiosos diversos é temporária. Assim, Pye também parte para uma “tipologia” do
fenômeno sincrético quando, nesse processo temporário acontece, primeiramente, uma
“assimilação” dos sentidos de elementos religiosos do outro. Em seguida, uma “fusão” de
elementos que tendem a um novo modelo coerente de significações e, por último, a
“dissolução” que aponta para novas possibilidades de contato de situações religiosas diversas.
A “coerência” estaria na capacidade de resoluções de conflitos de sentido entre as pessoas e
grupos envolvidos na situação religiosa de contato sincrético. Muito embora Pye, em seu
formalismo, não coloque a questão dos interesses que elegem os elementos selecionados pelos
grupos que entram na ambigüidade sincrética. A ambigüidade residiria nessa relação entre
“coerência”, de um lado, e “provisoriedade”, do outro122.

A tentativa de trazer as ideias de Michel de Certeau e Paul Tillich para o diálogo com
a noção de sincretismo é porque as idéias certeaunianas e tillichianas podem implicar-se
elucidativamente. Certeau pode ajudar a “mapear” com maior rigor analítico os aspectos
inventivos das formas culturais, alertando para o fato de que toda “preocupação última” pode
tornar-se uma “estratégia”, ou seja, em um poder religioso próprio corporificado em
discursos, sistemas ou instituições contrárias ao que afirma: negador dos poderes “táticos” que
deixam transparecer o sentido nas experiências culturais. É possível que Certeau insista que
toda preocupação incondicional, ou seja, religiosa, na realidade é também um construto
cultural. A não ser que, em sentido tillichiano, o homo inventivus certeauniano seja o grande
símbolo representativo do sentido incondicional. Talvez seja plausível essa leitura no
pensamento “místico” de Certeau, onde o divino só possa ser nomeado, ainda que
inconclusivamente, como o Deus criador, inventor. É possível pensar que Certeau ajude a dar
maior “realismo” às ações culturais (e sincréticas) humanas em sua cotidianeidade. É possível

121
Cf. PYE, M. Syncretism and Ambiguity. In: Syncretism in Religion, p. 66.
122
Idem, ibidem, p. 66-7.
118

também estabelecer que Tillich ajude, ainda que haja críticas à ideia de um “fundamento
religioso” a todas as culturas, a não perder de vista que as relações entre religião e cultura
(invenções sincréticas), estejam prenhes de elementos e ações criadoras, seja uma criação
positiva, seja uma criação distorcida. Assim, as relações culturais/religiosas estratégicas e
táticas só o são porque animadas pela experiência de sentido demônica, nos termos já
estabelecidos.

De acordo com o afirmado na introdução do primeiro capítulo, as análises


antropológicas e teológicas, cada uma a seu modo, estão atentas à produção da cultura como
um universo de sentido. Portanto a cultura e, em particular a religião, são também profundas
expressões simbólicas123. Como tais, prestam-se a profundas ambiguidades e, assim, as
linguagens antropológicas e teológicas passam a ser marcadas pela equivocidade.

Quando se afirma que a noção de sincretismo é uma expressão demônica da cultura,


isso pode significar, em acento tillichiano, pelo menos três coisas: 1. Que o sincretismo é um
constante processo de acentuação da ambigüidade do sagrado. Se as muitas expressões
significativas do divino entram em um processo de intensas ressignificações, dificilmente as
interações sincréticas ocorreriam se o sagrado nomeado fosse visto fora da ambigüidade, fora
da mediação. Talvez esse seja um dos grandes problemas de boa parte da teologia cristã, pelo
menos das teologias que ainda informam muitas ações missionárias aos povos indígenas:
reconhecer que seu Deus não apresenta um caráter ambíguo. Portanto, quanto mais as
experiências religiosas acentuarem o caráter de ambigüidade e de fronteira na construção das
imagens dos seus seres divinos através da mediação de rituais, crenças, narrativas míticas
(seja na tradição oral ou na escrita), mais favorece as experiências sincréticas. 2. É impossível
perceber os fenômenos sincréticos fora das formas culturais. Não cabe pensar o sincretismo
“hipostatizando” demasiadamente a noção. Somente através das invenções/criações cotidianas
é possível perceber a manifestação do sagrado na complexidade das múltiplas fronteiras
sincréticas. 3. O sincretismo é um espaço de mediação para o exercício tensivo de aspectos

123
No campo antropológico as ideias hermenêuticas de Clifford Geertz com sua noção de religião como sistema
simbólico e as ideias de outro antropólogo norte-americano: Marshall Sahlins. Sahlins, com suas análises da
relação entre antropologia e história, afirma a necessidade de não se perder de vista a dimensão simbólica das
formas materiais, mas tomadas não em um purismo estruturalista e, sim, na dinâmica histórica de sentido que
cada grupo cultural opera: “[...] as chamadas causas materiais devem ser, enquanto tais, o produto de um
sistema simbólico cujo caráter cabe a nós investigar, pois sem a mediação desse esquema cultural nenhuma
relação adequada entre uma dada condição material e uma determinada forma cultural pode ser especificada.
As determinações gerais da práxis estão sujeitas às formulações específicas da cultura, isto é, de uma ordem
que goza, por suas propriedades de sistemas simbólicos, de uma autonomia fundamental”. Cf. SAHLINS, M.
Cultura e Razão Prática, p. 62-3. O texto de Geertz é o clássico “Interpretação das Culturas”.
119

criativos/inventivos em termos de sentido religioso. A inventividade necessita do elemento


criativo para não sofrer reificações e meras reproduções. Todavia, à experiência da
inventividade sincrética correspondem, “incondicionalmente”, aspectos de criação afirmativas
e destrutivas/distorcidas. Se não fosse assim, as experiências sincréticas no campo religioso
dificilmente surgiriam em contextos concretos de violentações e crises, muito embora elas
possam surgir justamente para dar conta, com múltiplos sentidos, ao sem sentido que esses
contextos, muitas vezes, impõem. Afonso Soares (2008, p. 198) está correto quando afirma
que “[...] seria ingênuo desconsiderar que muito das práticas sincréticas vividas por nossa
gente é fruto da maneira violenta com que o cristianismo se impôs, dentro e fora da Europa”.
Está aí a história indígena no Brasil como memória viva dessa afirmação. Está aí a existência
das múltiplas fronteiras cristãs sincréticas na TID, considerada uma das mais violentas do
país, como memória histórica atual.

Em relação ao ponto “3” do parágrafo anterior, esses aspectos afirmativos e


destrutivos que correspondem à ordem cultural inventiva e à essência da experiência religiosa,
podem ser nomeados com o seu correlato, proposto nessa tese, de “diacretismo”. A polaridade
sincretismo/diacretismo, etimologicamente falando, pode ter inspiração em diversas fontes
teóricas: seja na crítica literária e até mesmo antropológica, no uso dos pares “sincronia” e
“diacronia”, seja nos estudos de linguagem poética e religiosa com os pares “sim-bólico” e
“dia-bólico”124. Essa pesquisa não encontrou na literatura vigente o uso do termo
“diacretismo” especificamente para nomear a fronteira dialética do sincretismo. Se a história
do termo sincretismo comporta a “união das diferenças”, ela também deve comportar a
“diferença das uniões”, uma vez que cada grupo étnico e religioso define, no exercício de sua
alteridade, os aspectos significativos que entram no encontro sincrético e os aspectos que não
entram nesse encontro, promovendo, assim, desencontros. Se o sincretismo “une”, “combina”,
o “diacretismo” separa, até mesmo correndo o risco da “torção” e “distorção”, mas necessário
para manter a dinâmica inventiva e demônica, principalmente quando o que está em jogo, na
experiência religiosa, são os símbolos de fé configuradores de sentidos fundamentais da
existência. Se comparado primeiro com as ideias de Tillich é possível dizer, em tese, que a
experiência religiosa implica, por sua natureza ambígua, em mediações culturais sincréticas e
124
Os prefixos gregos “syn-“ e “dia-“ apontam para uma relação dialética “juntiva” e “disjuntiva”. Este indica o
“movimento” de separação, fragmentação. Aquele o “movimento” de aproximação, união. Se o “ser como os
cretenses” (synkretismós) implica, histórica e poeticamente, na união em meio às diferenças, é porque não se
pode prescindir das fronteiras étnicas dos grupos formadores de Creta. Assim, a “união dos cretenses” implica
no reconhecimento, também, de um movimento de “diferenciação / separação” dos cretenses, “diakretismós”,
configurador da dinâmica histórica desses povos e metáfora para a ressignificação de outras manifestações
sincréticas.
120

diacréticas, mediações culturais que implicam na criação de sentidos que estimulam a


aproximação e união (aspectos afirmativos), mas na dissolução diacrética de sentidos outros
(aspectos “distorcidos”). Nesse caso, toda relação entre significante e significado na
interpretação da linguagem (simbólica) religiosa expressiva do sagrado, irá implicar em
aspectos sincréticos e diacréticos. Assim, o demônico pode tornar-se uma boa metáfora
interpretativa dessas relações de mediação/fronteira estabelecidas.

É sabido que Tillich utilizou-se, conforme afirmado na subseção anterior (2.2.2), da


noção de demônico para interpretar as ambigüidades da religião em diversas formas culturais,
tais como a arquitetura, as artes, a música e a ciência125. Michel de Certeau não utilizou um
conceito parecido como o de demônico, mas descobriu nos “demonismos” ao longo de seus
estudos sobre a história da mística, uma poderosa referência para a construção de sua
percepção heteróloga da cultura. Exemplo disso é seu texto publicado em 1970 intitulado La
Posssession de Loudun (“A possessão de Loudun”) onde analisa, a partir de uma perspectiva
interdisciplinar (na fronteira entre psicanálise, sociologia, teologia e história) as experiências
de “possessões demoníacas” das freiras do recém criado (naquela época) convento das
“Ursulinas”, em 1632, na cidade francesa de Loudun. Certeau mostra como o “estado de
possessão” das freiras só podia ser compreendido a partir de um conjunto de fatores, onde
essas freiras reagiram “violentamente”, expondo estados de consciência e comportamentos
alterados, em resposta a um contexto não menos em crise e cheio de rupturas: Loudun vivia as
tensões entre católicos e protestantes no início do século XVII, a presença dos discursos
repressivos de ordem sexual vivida pelas freiras, o tormento imposto pelo discurso de padres e
confessores que qualificavam as experiências das freiras como profundas distorções heréticas,
sobrenaturais e metafísicas, causadas por demônios, dentre outros aspectos. Certeau mostra
como o discurso da Igreja instaurava um “lugar próprio”, uma “estratégia” de dominação em
uma época que a Igreja Católica via sua hegemonia ameaçada por outras práticas religiosas

125
Outros campos do saber, como a Crítica Literária, utiliza-se de amplas metáforas para caracterizar uma
hermenêutica dos métodos e estilos literários. Por exemplo: o crítico literário e ensaísta norte-americano
Harold Bloom, em sua clássica obra “A Angústia da Influência. Uma Teoria da Poesia” ao analisar, dentre
outras coisas, a formação da influência poética, na relação entre o “poeta forte” e seu precursor, afirma que
uma das dimensões dessa influência é a Daemonização, “[...] movimento para um Contra-Sublime
personalizado, em relação ao Sublime do precursor”. Cf. BLOOM, H. A Angústia da Influência, p. 65.
Bloom toma emprestado da filosofia neoplatônica a imagem do daemon (considerado um ser ambiguamente
mediador do divino e do humano) que entra no adepto para auxiliá-lo, como metáfora para qualificar a
presença do precursor no poeta forte: “O poder que faz de um homem um poeta é daemônico, porque é o poder
que distribui e divide [...] Os daemons criam quebrando”. Cf. Idem, ibidem, p. 148. Essa ideia de que o
“quebrar”, o distorcer é, também, uma forma de criação ou invenção, é particularmente interessante para
interpretar outras manifestações culturais, além da escrita poética. É provocador compreender o sincretismo e o
diacretismo como o permanente esforço de inventar novos sentidos religiosos “quebrando” outros sentidos.
121

cristãs. Com isso o “diabólico artifício” manifestado pelas freiras instaurava um “espaço
praticado” de relações táticas que, por sua vez, causava uma “fissura” no lugar próprio da
Igreja em seu estabelecimento da natureza da verdade (AHEARNE, 1995, p. 76-7).

A experiência da “possessão demoníaca”, no caso estudado por Certeau, instaura um


complexo quadro heterológico, uma vez que leva o “possesso” a uma experiência religiosa de
conflito com os “outros”, ou seja, com os múltiplos processos pessoais, cognitivos e sociais
de diferenciação da realidade. O “possesso” vive a radical tensão e cisão do “si mesmo” como
“outro” ao criar alteridades alternativas para “escapar”, taticamente, das imposições e
pressões que lhe são colocadas por estruturas hegemônicas. Isso ocorre não sem rupturas,
angústias e crises, marcando momentos de profundas distorções, mas não abrindo mão das
criações das possibilidades de novos sentidos. Em uma leitura tillichiana, a “possessão”
certeauniana, ainda que corra o risco dos efeitos deletérios “demoníacos”, estaria mais para
uma experiência da ambigüidade demônica. Isso é um bom exemplo para qualificar que, com
a relação sincretismo e diacretismo, coloca-se sempre o difícil problema da escuta do outro,
do diferente. O sincretismo e o diacretismo são recursos teóricos que radicalizam a
heterologia, uma vez que a preocupação primeira é que esses termos deem conta de responder
o seguinte: no “conflito de interpretações” que se instaura na invenção dos sentidos religiosos
nos contatos interétnicos e culturais, é preciso descrever e interpretar as dimensões e ações
culturais concretas dos sujeitos e atores sociais que exprimem esse poder inventivo, ora
criador de sentidos, ora distorcedor dos sentidos, ou seja, demônico. Assim, o sincretismo e o
diacretismo estão mais para as táticas de invenção do cotidiano religioso, mas sem prescindir
das estratégias que consolidam esse mesmo cotidiano. Falemos um pouco mais sobre esse
aspecto.

No desdobramento da definição da relação entre sincretismo e diacretismo, a relação


dialética entre os mesmos e sua força heterológica não se reduz à dissecação pura de um
processo cognitivo e pessoal, haja vista que ocorre no plano da produção da significação do
sentido da existência. Mas servem também como categorias interpretativas de relações sociais
dentro das formas culturais concretas. Até mesmo Tillich, em sua leitura “essencialista” do
demônico, embora não negue que o mesmo se realiza no “espírito” (e isso para ele significava
uma afirmação “cultural”), desdobrava-se em forças demônicas sociais (TILLICH, 1990, p.
133). É nesse específico que se pode nomear as relações sincréticas e diacréticas como
correlatas às relações “táticas e estratégicas” certeaunianas. Sincretismo e diacretismo como
fronteira/mediação entre as ambigüidades de expressão do sentido religioso da vida querem
122

enfatizar que esses múltiplos sentidos (ainda que se busque um pretenso “último sentido”)
afirmam o poder inventivo, no campo religioso, de recriar os espaços sociais e culturais. Se há
relações de poder que procuram anular as diferenças ao transformar os seres humanos
religiosos em meros consumidores/reprodutores dos bens simbólicos, as relações sincréticas e
diacréticas, volta-se a afirmar, estão mais para a arte das “táticas” que, muitas vezes, sem um
“próprio”, só tendo o lugar do “outro”, faz desse lugar o espaço inventivo das significações:
nutre-se de elementos simbólicos e religiosos outros para criar, unindo e diferenciando-se
(afirmando e distorcendo), o próprio espaço cultural qualificador de sentido. Por isso que
Certeau exemplificava, ao analisar a relação dos povos indígenas com as estratégias
colonizadoras dos povos hispânicos:

[...] submetidos e mesmo consentindo na dominação, muitas vezes esses


indígenas faziam das ações rituais, representações ou leis que lhe eram
impostas outra coisa que não aquela que o conquistador julgava obter por
elas. [...] seu modo de usar a ordem dominante exercia o seu poder, que não
tinham meios para recusar; a esse poder escapavam sem deixá-lo
(CERTEAU, 2003, p. 39-40)

As relações sincréticas e diacréticas problematizam, justamente, esse “escapar sem


deixar” da citação longa anterior. Em tese, esse problema pode ser estendido para vários
estudos de caso no campo religioso brasileiro. Por ser um “percurso de mediação”, as relações
sincréticas e diacréticas, com a ajuda do aporte teórico de Certeau e Tillich, não criam a ilusão
de um sincretismo puramente deletério nem idealisticamente “misturado”. Além disso, não
nega que a produção de sentido religioso está envolta nas contradições criativas e
distorcedoras quando se vivencia a religião em ato. Assim, encaminha-se o último capítulo
logo a seguir. Trata-se de um exercício hermenêutico de revisitar algumas experiências
religiosas de indígenas Guarani e Kaiowá na Terra Indígena de Dourados, nas múltiplas
fronteiras estabelecidas por diversas congregações cristãs do projeto da “Igreja Indígena
Presbiteriana”. A perspectiva é perguntar como esses indígenas reconfiguram sua identidade
religiosa em meio a um contexto profundamente heterólogo, buscando auxílio na etnografia
desses grupos a fim de obter perspectivas para se perceber os movimentos sincréticos e
diacréticos afirmados.
123

Em síntese

O presente capítulo consistiu em um exercício de formalização de uma teoria do


sincretismo religioso. O conceito de demônico, tomado do pensamento de Paul Tillich, e as
noções de táticas e estratégias configuradas da invenção do cotidiano, de acordo com Michel
de Certeau, foram o “lugar hermenêutico” para se repensar a compreensão do sincretismo. A
partir dessas análises propôs-se a noção de diacretismo religioso como pólo dialético do
sincretismo. De fato, a eleição dos conceitos tillichianos e certeaunianos é justificada pelas
ricas possibilidades de correlações entre a ideia de cultura e religião trabalhada por esses
autores, correlação essa onde a experiência sincrética ocorre. A construção cultural dos
percursos sincréticos e diacréticos ocorrme, quando os sujeitos e atores sociais religiosos
buscam compreender o sentido da sua própria experiência de fé e crenças, bem como de
desejos e necessidades, não somente quando se vêem em contexto de pluralidade e intenso
“trânsito” religioso, mas em contextos que forcem a pensar uma existência de sentido
atravessada por várias “fronteiras” simbólicas que representam múltiplos sentidos, sentidos
esses, em várias situações, contraditórios.

Não basta reconhecer as fronteiras religiosas ou descrevê-las: importa interpretá-las


levando em consideração a própria fronteira como constitutiva da alteridade construída. Com
isso, as noções de Tillich e Certeau são noções de fronteira. Foi mostrado, na primeira
subseção do capítulo, como o uso das concepções de táticas e estratégias interpreta a dinâmica
cotidiana como um jogo de poderes e negociações, tanto no plano das Instituições sociais
quanto no plano das instâncias cotidianas diversas, acerca do capital simbólico que significa,
que dá sentido às ações, no caso, as religiosas. Certeau parte sua análise do reconhecimento
de instituições e experiências hegemônicas que constroem um lugar próprio “estratégico”, ou
seja, que reforça as fronteiras de identidades religiosas no sentido de delimitar espaços e
discursos, a fim de assumir o controle desses mesmos discursos. Todavia, Certeau passa a
enfatizar como os agentes religiosos, no dia-a-dia, criam ações “táticas” que atravessam essas
fronteiras delimitadoras, táticas essas ordinárias, uma vez que se “misturam” nos interstícios
do cotidiano. Assim, a significação e a operação da realidade é “subvertida” por essas
práticas, inventando esse mesmo cotidiano. Consequentemente, as fronteiras de sentido
deixam de serem delimitadoras e exclusivas para transformarem-se em caminhos, em
interfaces de construção de identidades religiosas. O sincretismo, em termos de experiência
124

religiosa, está para um conjunto de táticas de reinvenção dos múltiplos sentidos religiosos.
Mas isso não significa idealizar essas táticas, pois elas têm como referente uma luta cotidiana
com as estruturas estratégicas. Assim, com a noção de sincretismo, não se pode perder de
vista que as experiências religiosas cotidianas são uma constante luta contra estruturas
hegemônicas que, tanto do ponto de vista antropológico quanto teológico, absolutizam os
símbolos de representação do sagrado a ponto de abolir a força metafórica de ressignificação
das experiências. As interfaces sincréticas, em suas táticas, são caminhos profundamente
ambíguos, pois a construção de novos significados implica na reconfiguração, assumindo
perdas e ganhos, distorções e, até mesmo, violentações. Por isso, a conjugação do sincretismo
com o conceito tillichiano de demônico para enfatizar essa radical ambigüidade, tal como
mostrado na segunda subseção do capítulo.

As táticas e estratégias culturais colocam o ethos social de um grupo em uma


ambigüidade inventiva tamanha, posto que impulsionada por seu “fundamento” demônico.
Isso significa que táticas e estratégias culturais são criações e distorções de sentido na forma
cultural, uma vez que os símbolos culturais que significam as experiências religiosas são
caracterizados por sua polissemia e ambigüidade. A “substancialidade” religiosa das
interfaces sincréticas, por ser demônica, é uma constante interconexão entre criação e
distorção dos sentidos atribuídos e de suas manifestações culturais. Por isso que emerge, na
análise interpretativa, a noção de diacretismo. Essa noção implica na dimensão mais
“equívoca”, “desviante” ou “distorcida”, para usar uma expressão mais tillichiana. Se a ênfase
nos estudos de sincretismo religioso recai sobre as descrições e interpretações das
modalidades de junções e aproximações do campo simbólico, a ênfase deve, também,
contemplar a dinâmica das disjunções, separações e distorções como performativas das
dinâmicas religiosas. Além disso, quando se fala em diacretismo religioso, aponta-se para o
fato de encarar a possibilidade de que a efetiva distorção em termos de significação da
experiência religiosa é, também, uma forma de criação, de proposição, de invenção de
sentidos. A questão é até que ponto uma criação que cria “distorcendo”, deixa de ser uma
tática de afirmação cultural e acaba criando novas formas de estratégias que “pacificam” e
reduzem a riqueza dos símbolos religiosos a afirmações de fronteiras de sentido unívocas o
que, como conseqüência, faria com que as experiências religiosas perdessem seu vigor
sincrético e diacrético. Nesse sentido que foi proposto o exercício hermenêutico da última
subseção do capítulo. A seguir, o último capítulo da tese.
CAPÍTULO 3: SINCRETISMO E DIACRETISMO COMO
CATEGORIAS COMPREENSIVAS DAS RELAÇÕES ENTRE IGREJA,
VIDA GUARANI E KAIOWÁ NA TERRA INDÍGENA DE
DOURADOS/MS

Tudo o que não invento é falso

Manoel de Barros

Vivem em nós inúmeros; [...] Tenho mais almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo

Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa


126

Sincretismo, Diacretismo e experiências religiosas indígenas: uma introdução


ao Capítulo

O presente capítulo, último dessa tese, aborda, especificamente, a construção de uma


“hermenêutica da mediação”, em torno da noção de sincretismo, tal como discutida no final
do capítulo anterior, a fim de construir um discurso compreensivo das vivências religiosas de
grupos indígenas Guarani e Kaiowá na Terra Indígena de Dourados. Em outros termos,
analisar como estes grupos constroem sua alteridade religiosa, nas múltiplas fronteiras cristãs,
no espaço das aldeias na referida Terra Indígena. Todavia, falar de indígenas Guarani e
Kaiowá e de “múltiplas fronteiras” religiosas (ainda que especificado no Cristianismo) na
TID, pressupõe um campo de investigações ainda muito amplo e complexo, necessitando de
maior delimitação.

Principalmente no último ano de pesquisa do doutorado (em 2009), a inserção no


campo “cresceu” em torno de interlocutores e interlocutoras indígenas que, em sua maioria,
apresentam algo em comum: vivem suas “fronteiras” religiosas passando, ora mais
persistentemente ora mais efemeramente, por Congregações religiosas que compõem o
Projeto da “Igreja Indígena Presbiteriana”, doravante denominada aqui simplesmente pela
sigla “IIP”. Essas Congregações, não obstante terem surgido direta ou indiretamente como
resultado dos esforços missionários de projeção evangelizatória e social da “Missão
Evangélica Presbiteriana Caiuá”126, guardam especificidades e complexidades que tornam
cada uma dessas Congregações um “universo” de produção de sentido religioso bem peculiar.
Ainda que o ato formal de criação da IIP tenha história recente127, várias das Congregações
que a formam têm uma história mais antiga como, por exemplo, a Primeira Congregação

126
A Missão Evangélica Caiuá foi criada em 1928 pelo reverendo norte-americano Albert Maxwell, fruto do
projeto civilizatório de um conjunto de Igrejas (não somente presbiterianas) norte-americanas. A Missão
cresceu muito nas décadas seguintes, consolidando-se como espaço não somente missionário e evangelizatório,
mas também com a criação de uma escola, oferecimento de serviços na área de saúde através de um Hospital
próprio e, hoje, o atual “centrinho” que cuida de crianças indígenas desnutridas e órfãs.
127
O ato formal/oficial de criação da IIP ocorreu em celebração religiosa (culto) realizada na Igreja sede da
Missão Caiuá, em Dourados, no ano de 2008, culto este onde o autor desta tese esteve presente. Nesse culto foi
formada a primeira diretoria da IIP, além da ordenação/consagração de quatro indígenas pastores que já
atuavam nos campos missionários em aldeias do sul de Mato Grosso do Sul: dois indígenas da etnia Kaiowá
(um atuando na TID e o outro na Terra Indígena de Amambai, próxima à cidade de mesmo nome, bem ao sul
do Mato Grosso do Sul), um da etnia Guarani e um da etnia Terena (esses dois últimos também atuam na TID).
Na realidade, o culto de formalização da IIP, que contou com lideranças não indígenas das Igrejas
Presbiteriana do Brasil e Presbiteriana Independente, foi a concretização de um projeto de décadas da Missão
Caiuá de regulamentar a posição de indígenas pastores como agentes religiosos autóctones.
127

Presbiteriana, fundada em 1968, dentro da aldeia Jaguapirú, considerada o templo evangélico


mais antigo ainda em atividade na TID.

As transformações históricas e religiosas pelas quais passam estas Congregações ainda


são um vasto espaço de reflexão acadêmica a ser explorado. Não é objeto específico desta tese
avaliar esta “vastidão” mas focar, como instrumento auxiliar, as narrativas orais de vida de
indígenas que apontam consideráveis tendências significativas na compreensão da vida
religiosa, nas fronteiras com os múltiplos cristianismos existentes hoje na TID. Esses
indígenas, nas nomeadas relações sincréticas e diacréticas, funcionam como um bom
“percurso de mediação”, nos termos descritos pela antropóloga Paula Montero, ou seja, como
“[...] jogo das relações [sociais e simbólicas] e processos de construção de sentido nas
„interações realmente efetuadas‟ entre missionários e índios determinados” (MONTERO,
2006, p. 23). Isso é importante porque, como se trata da construção de fronteiras de sentido
entre experiências cristãs e povos indígenas o aspecto missionário está muito presente,
principalmente quando as próprias lideranças indígenas das Congregações da IIP se
autocompreendem como missionários e missionárias, a seu modo.

É importante deixar claro, desde já, o seguinte aspecto: quando se afirma as


“narrativas orais de vida” dos indígenas a que o autor da tese teve contato no processo da
pesquisa como “instrumento auxiliar”, não significa tomar o termo “auxiliar” de menor
importância ou mera complementaridade. Significa que esse capítulo, assim como os demais
da tese, continua com o objetivo primeiro, enquanto eswforço teórico, de ressignificar
analiticamente as mediações/fronteiras entre religião e cultura, tomando por base as
discussões anteriores sobre o sincretismo. Em seguida, procura-se perceber as potencialidades
e fragilidades dessa noção de sincretismo em situações concretas de contato interétnico e
religioso, muito promissores para os estudos de religião. Ainda que a fundamentação primeira
desse último capítulo não seja exclusivamente etnográfica, fruto de um exaustivo trabalho de
campo do autor da tese, a própria compreensão das relações sociais e religiosas que informam
a vida dos indígenas Guarani e Kaiowá contemporâneos está amplamente baseada em estudos
teóricos e etnográficos já realizados, tais como os de Egon Schaden (1974); Bartomeu Meliá,
Friedl e Georg Grünberg (1976); Antonio Brand (1997); Levi Pereira (2004); Maria de
Lourdes Alcântara (2007) e Graciela Chamorro (2008), só para ficar nesses nomes
referenciais.
128

É importante destacar também que as parcialidades Guarani, focadas neste último


capítulo, são tanto os Nãndeva quanto os Kaiowá, maioria na TID, excluindo-se os da
parcialidade Mbyá, muito mais presentes no Paraguai e na Argentina sendo que, no Brasil,
encontram-se mais na região sul e sudeste. A maioria dos Nãndeva que tive contato na TID
não se autodenomina dessa forma, mas como Ava (“Gente, humano”)-Guarani ou,
simplesmente, Guarani. Como eles mesmos me diziam: “Sou Guarani-Guarani... Guarani
mesmo!”. Muito embora, na TID, a maioria étnica seja dos Kaiowá. Além disso, na TID existe
um contingente considerável de indígenas da etnia Terena, não fazendo parte das
parcialidades Guarani. Deve-se levar em conta também que, devido à proximidade com o
entorno urbano da cidade de Dourados, a presença de não indígenas dentro das aldeias é uma
constante. Isso gera um cenário pluriétnico, extremamente complexo, onde as alianças entre
diferentes fronteiras étnicas são feitas e refeitas com certa frequência. Alguns de meus
interlocutores na pesquisa são indígenas filhas e filhas de mãe Guarani e pai Terena, cenário
hoje muito comum, principalmente na aldeia Jaguapirú, uma das aldeias da TID onde
prevalece a maior parte da população Terena em contato com os Guarani. Vale destacar,
também, uma “mestiçagem” considerável, termo esse usado, com reservas, pelos indígenas,
para qualificar aqueles e aquelas nascidas das relações entre indígenas e não-indígenas.

Por força de delimitação do “objeto” de estudo, em relação à complexidade étnica na


TID afirmada anteriormente, além do fato de que os principais interlocutores que me
inseriram no campo e construíram a pesquisa junto comigo são Guarani e Kaiowá, o recorte
recai nessas parcialidades128. Mas é importante reconhecer que vários indígenas que compõem
o projeto da IIP mostram essa face de múltiplas fronteiras étnicas. Mesmo que não seja objeto
desta tese, vale a pena citar um brevíssimo exemplo dessa multiplicidade étnica nas
Congregações: a “Primeira Congregação Presbiteriana”, citada anteriormente, possui uma
liderança fortemente centrada no “tronco familiar” dos Souza129. Com isso, a liderança
indígena da Congregação, hoje, está a cargo de um reverendo indígena Terena que é, por sua
vez, casado com uma indígena Guarani. Ainda que a presença Terena seja forte nessa
Congregação, ela possui vários Guarani como membros. Isso propicia o estabelecimento de

128
Os povos chamados Guarani, no Brasil, apresentam-se nas três parcialidades citadas: Kaiowá (ou Pai-
Tavyterã, no Paraguai); Ñandeva (ou Guarani no Brasil e Chiripá no Paraguai) e os Mbyá. Há também os
Chiriguanos que vivem, principalmente, na Bolívia.
129
O termo “tronco” é utilizado pelos Terena para qualificar as redes de alianças sociais (políticas, matrimoniais
e religiosas), baseado na ascendência e ancestralidade, “[...] composto em sua maioria por parentes que
reconhecem entre si algum grau de consaguinidade”. Cf. PEREIRA, L. M. Os Terena de Buriti, p. 46-7.
Aliás, as relações entre Terena e Guarani na TID, tomando a experiência religiosa como fator de mediação,
ainda é um campo de pesquisa muito promissor a ser explorado, podendo servir para futuras pesquisas.
129

algumas relações interétnicas muito ambíguas que reflete, sem dúvida, na mediação dos
interesses e ações “eclesiásticas” dos grupos que formam a referida Congregação. Assim,
constitui-se em grande desafio pesquisar sobre a “movimentação” religiosa de parcialidades
indígenas em um contexto, por assim dizer, poliétnico (BARTH, 2000, p. 35ss). Isso significa
que, mesmo que os grupos Guarani e Kaiowá sofram processos miscigenatórios, mantém,
ainda, uma certa unidade biológica, compartilham valores culturais fundamentais, se auto-
definem e são definidos por outros grupos por categorias distintivas e, principalmente,
constituem-se “[...] um campo de comunicação e interação” (BARTH, 2000, p. 27). Isso
significa que a condição poliétnica da TID exprime relações sociais de “fronteira”, metáfora
também cara à epistemologia de Fredrik Barth, citado supra. No dizer do referido
antropólogo:

Ainda que o surgimento e a persistência desses sistemas [poliétnicos]


pareçam depender de relativa estabilidade das características culturais
associadas aos grupos étnicos – ou seja, grande rigidez nas fronteiras de
interação – daí não decorre que haja rigidez semelhante no que diz respeito
aos padrões de recrutamento dos grupos étnicos ou de atribuição de
pertencimento a eles: ao contrário, as relações interétnicas que observamos
freqüentemente envolvem diversos processos que ocasionam mudanças nas
identidades individuais e grupais e, conseqüentemente, modificam os outros
fatores demográficos presentes na situação. Exemplos de fronteiras étnicas
estáveis e persistentes que, todavia, são atravessadas por fluxos de pessoas
são bem mais comuns do que a literatura etnográfica nos levaria a acreditar
(BARTH, 2000, p. 43)

Em que pese a crítica de Barth ao discurso antropológico em mais descrever o


“conteúdo cultural” delimitado pelas fronteiras étnicas do que interpretar o papel das próprias
fronteiras nas mediações interétnicas, o importante é justamente isso: não se nega as
permanências, mas essas são “atravessadas” por novas relações identitárias. Ao pensar a
experiência religiosa a partir dessa perspectiva, não é fácil caracterizá-la na situação de
fronteira que constitui a TID. Mas parece ser razoável que essas perspectivas se aproximam
de uma leitura heterológica da cultura, na fronteira entre o rígido e o flexível, para lembrar a
definição de cultura de Certeau. Até mesmo de perspectivas teológicas é plausível aproximar
essa leitura: ao lembrar Tillich, mais uma vez, para que uma teologia dê conta do cenário de
fronteiras poliétnicas afirmado anteriormente é preciso uma atitude compreensiva de que a
religião, ao expressar preocupações fundamentais, não é somente o conteúdo delimitado pelas
fronteiras étnicas, mas ela mesma é a própria fronteira a ser investigada, em sua ambigüidade.
Retomando Barth, as próprias Congregações que compõem o projeto da IIP, pelo menos
130

aquelas com maior pluralidade étnica em seus quadros130, constituem-se em “fronteiras


poliétnicas” tal como descrito pela citação longa anteriormente.

Pensar a religião na experiência Guarani e Kaiowá têm uma longa história etnográfica
e conta, mais recentemente, com análises teológicas promissoras, tais como as feitas por
Bartomeu Meliá (1989) e Graciela Chamorro (2008), muito embora essas análises levem
muito pouco em consideração a ajuda das teorias acerca do sincretismo religioso. Desde as
leituras de Egon Schaden mostrando que a religião é o “núcleo duro/invariável” de resistência
Guarani aos processos aculturativos, em seu clássico “Aspectos Fundamentais da Cultura
Guarani”, de 1974, até as análises atuais de Maria de Lourdes Alcântara em torno da noção
de “hibridismo cultural” (2007), passando pela religião enquanto estruturadora das relações
sociais na antropologia de Levi Pereira (2004), o assunto é denso e complexo. Mais ainda
quando propõe a repensar a reconfiguração das alteridades religiosas a partir das fronteiras
cristãs colocadas pelas missões homônimas, como o projeto da IIP, em relação a grupos
indígenas, eles próprios na fronteira “sincrética e diacrética” de recomposição das alteridades
afirmadas. Na realidade, impõe-se a questão central levantada por Carlos Fausto em artigo
onde analisa a atual religião Guarani, centrada na atuação xamânica, que operou um
progressivo “esquecimento” histórico do canibalismo e da vingança em prol da idéia de amor
e perdão, através dos contatos interétnicos com as várias faces do missionamento cristão:
como esses Guarani fizeram seu um discurso religioso que traz as marcas indeléveis de um
discurso do outro, “[...] como é possível não ser o mesmo e continuar a pensar-se como si
mesmo?”131, indaga-se o referido antropólogo. Observa-se o discurso heterológico na questão
levantada por Fausto, aspecto fundamental para o sincretismo e o diacretismo.

Mesmo que a presença missionária junto à população indígena de Dourados hoje seja
majoritariamente cristã, seria um equívoco pensar que esse “cristianismo nas aldeias” não
assuma muitas faces e características específicas, configurando um cenário “de fronteira”. Um
exemplo que já pode aqui ser mostrado, mesmo que não seja tema central desta tese: várias
análises antropológicas hoje, quando pensam a religião na TID e demais aldeias no cone sul
de Mato Grosso do Sul, focam suas análises na atuação das igrejas pentecostais e
neopentecostais que estão presentes nessas aldeias, de forma mais permanente, desde os anos

130
Nunca é demais lembrar que as fronteiras étnicas das quais as Congregações da IIP são profundas
representações, contam em seu quadro de membros/obreiros com um contigente de não-indígenas ainda
considerável, o que “adensa” e torna mais complexa as relações sociais e religiosas construídas.
131
Cf. FAUSTO, C. Se Deus fosse Jaguar: Canibalismo e Cristianismo entre os Guarani (Séculos XVI a XX).
In: MANA 11 (2) 385-418, 2005. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional/UFRJ. Aqui p. 401.
131

70 do século passado. Segundo o historiador Antonio Brand e a antropóloga Katya Vietta


(2004, p. 259ss), o crescimento progressivo dessas igrejas foi diretamente proporcional ao
impacto do confinamento compulsório sofrido pelos grupos Guarani e Kaiowá que perderam
ou tiveram radicalmente transformadas, segundo critérios não-nativos, as terras de ocupação
tradicional (denominadas tekoha). Esse crescente confinamento, ao diminuir radicalmente as
condições sociais, ecológicas e culturais de reprodução da religião tradicional, esvaziou o
papel dos ñanderu (xamãs/rezadores tradicionais), vazio esse que foi ocupado pela figura do
pastor (neo)pentecostal, considerado uma espécie de novo ñanderu/rezador: “[...] os pastores,
de alguma forma, recompõem os vínculos com o sobrenatural, na medida que recriam os
rituais, incluindo os de cura, exercem o papel de conselheiros, fornecendo elementos que
permitem restabelecer a ordem [...]” (BRAND & VIETTA, 2004, p. 252-3). É possível
interpretar esse discurso a partir de uma forma de “sincretismo como paralelismo”, para
lembrar a tipologia de Leonardo Boff e Sergio Ferretti mostrada no primeiro capítulo, uma
vez que é estabelecida uma homologia funcional entre o pastor cristão e o rezador tradicional,
sem que um seja reduzido ao outro.

Todavia, não é a questão de correr o risco de negar os reais efeitos deletérios do


confinamento estrangulador a que esses povos foram submetidos, mas corre-se o risco de
olhar para a dinâmica religiosa da vida dos indígenas pelo aspecto exclusivo de “perdas” e as
igrejas (neo)pentecostais como o último “suspiro dos oprimidos” indígenas. Essa leitura pode
coibir a alteridade criadora e inventiva dos indígenas considerados, por sua vez, uma “massa
consumidora” de bens simbólicos já estabelecidos “por um próprio” não-indígena (em
conformidade com Certeau)132, “próprio” esse com suas ações estratégicas que bem podem
ser representados por agentes indigenistas públicos (como a FUNAI – Fundação Nacional do
Índio), privados, setores do missionamento não-indígena e, até mesmo, determinados
discursos detentores do saber antropológico. Além disso, não leva em consideração que o
(neo)pentecostalismo vai além de sua expressão institucional em Igrejas específicas.
Constitui-se em um modo, uma tendência de se relacionar com o sagrado que perpassa
diversas Igrejas (formas culturais) que, inclusive, não são nomeadas especificamente de

132
Em texto mais antigo (1997), em sua própria tese de doutorado, Brand colocava a atuação das Igrejas
neopentecostais ao lado da política de criação de reservas, somado à exploração do trabalho masculino
indígena nas usinas sucroalcooleiras da região, como um dos grandes fatores da perda do modo de reprodução
de vida tradicional, o modo de ser próprio Guarani (nãnde reko). Cf. BRAND, A. O Impacto da perda da
Terra sobra a Tradição Kaiowá/Guarani, p. 7. Isso parece sugerir uma desproporção comparativa entre
fatores, até porque é possível pensar que várias Igrejas (neo)pentecostais são símbolos para a ambigüidade da
religião ao lidarem com essas situações de conflito, não sendo meramente causa ou efeito puramente deletério.
Sobre a atuação xamânica dos pastores indígenas, esse tema voltará na parte final do capítulo.
132

(neo)pentecostais, como o caso de algumas das Congregações da IIP. Isso radicaliza a


experiência de se viver a religião e a própria experiência de fé “na fronteira”133.

Ao posicionar essas discussões introdutórias, o principal objetivo deste último capítulo


da tese é analisar possíveis relações “sincréticas e diacréticas” como configuradoras de
espaços culturais e, porque não dizer, teológicos, que coloca em primeiro plano a alteridade
indígena, no recorte já especificado anteriormente em seu poder de invenção da experiência
religiosa. Este objetivo surge de questões específicas que, de certa forma, já começaram a ser
delineadas nessa introdução e podem assim ser reformuladas: como a experiência religiosa,
enquanto configuradora de sentido, é interpretada pelos indígenas Guarani e Kaiowá da TID,
quando um número significativo deles vivem essas experiências em situação de “fronteira”,
de permanente “mediação” com os múltiplos cristianismos, simbolizado pela presença das
Igrejas, tal como as comunidades que fazem parte da IIP? Como reelaboram sua identidade
étnica/religiosa (indígenas/cristãs) em um contexto de expressões “demônicas” em que se
tornou a própria TID, ou seja, complexamente marcada por espaços inventivos de criação e
desagregação do sentido religioso da vida? Claro que ao utilizar termos como “demônico” e
“relações sincréticas e diacréticas”, sempre há o risco da projeção de categorias analíticas
heteróclitas ao universo lingüístico e social dos indígenas Guarani e Kaiowá. Mesmo assim, a
hipótese a ser desenvolvida e desdobrada em teses, nesse capítulo, é que os conceitos e a
definição de sincretismo proposta no capítulo anterior é suficientemente compreensiva para
fundamentar um quadro de ambigüidades inventivas, tanto no plano das relações sociais,
quanto no plano da reelaboração de sentido social e teológico radicalizando a experiência do
teko retã, ou seja, “as várias maneiras de viver”, ou o “jeito plural/múltiplo de se viver” as
experiências de fé em situação de fronteiras de sentido, tentando diminuir o risco afirmado
anteriormente. É justamente esse “jeito plural de se viver” que é tornado bem agudo na TID
como conseqüência de profundas relações sincréticas e diacréticas, relações que serão
interpretadas, ainda que não exaustivamente, em duas subseções da segunda subseção (3.2) do
capítulo: a primeira (3.2.1), a partir de dados etnológicos, mostra que a presença das Igrejas
referidas, com seus múltiplos discursos e práticas, instauram um elemento heterológico nas
unidades de relações sociais tradicionais dos indígenas Guarani e Kaiowá, unidades essas tais

133
Em termos teológicos Antonio Magalhães afirma que o “princípio pentecostal” muda o foco clássico da
teologia expressa nas instituições cristãs e na própria compreensão de missão da Igreja: de um eixo mais
cristológico-eclesiológico para um eixo mais pneumatológico-comunitário. Cf. MAGALHÃES, A. C. de M.
Uma Igreja com Teologia, p. 55ss.
133

como o “fogo doméstico” (che ypyky kuera) e a “família extensa” ou “parentela” (Te‟yi)134; na
segunda subseção (3.2.2) é apresentado alguns apontamentos de caráter mais teológico,
afirmando alguns topoi (“lugares”), tais como como as imagens xamânicas e de Jesus Cristo
como espaços hermenêuticos profundamente “demônicos”/inventivos de se viver o teko retã,
religiosamente falando.

Essas duas subseções serão antecedidas por uma primeira seção do capítulo (3.1),
onde será formulado um quadro geral mais introdutório acerca da situação religiosa atual na
TID e as várias tentativas de se compreender a experiência religiosa dos indígenas Guarani e
Kaiowá na literatura especializada vigente (já citados no início dessa introdução). É preciso
prosseguir.

3.1 UM CENÁRIO RELIGIOSAMENTE PLURAL: AS MÚLTIPLAS FRONTEIRAS


CRISTÃS NA TERRA INDÍGENA DE DOURADOS

A definição da TID como cenário poliétnico, tomada nos termos barthianos, tal como
apresentado na introdução do capítulo, é significativa. Contudo, por coerência de método e
das construções teóricas apresentadas, é promissor qualificar a TID nos termos certeaunianos
das relações heterológicas entre táticas e estratégias. De fato, ao considerar a afirmação da
historiadora Renata Girotto sobre a constituição da TID, enquanto reserva construida pelo
governo brasileiro através do antigo SPI135, critérios político-administrativos não levaram, na
devida conta, aspectos antropológicos para a demarcação dessa terra indígena, ou seja,
critérios baseados na territorialidade e na ocupação tradicional Guarani e Kaiowá. Assim,
principalmente após as duas primeiras décadas, a ocupação “[...] se fez de modo forçado, com
lentidão e muita resistência. A política de aldeamento compulsório intensificar-se-ia nas
décadas seguintes, com maior ênfase a partir da década de 1940, permeada pela violência”
(GIROTTO, 2008, p. 59). Essa política de reservas é um exemplo histórico de “ações
estratégicas”, de constituição de discursividades e práticas que estabeleceram um lugar

134
Essas “unidades sociológicas” tradicionais estão referenciadas nos estudos etnográficos de PEREIRA, L. M.
Imagens Kaiowá do sistema social e se entorno, que foi sua tese de doutorado em 2004 na Universidade de
São Paulo - USP. Não obstante existirem outras unidades sociológicas importantes na compreensão dos
Guarani e Kaiowá, centro de toda a descrição etnográfica do segundo capítulo da referida tese, as duas
unidades citadas são suficientes, para os propósitos dessa tese, para perceber as implicações das ambigüidades
sincréticas e diacréticas (portanto, “inventivas”, “demônicas”) no encontro com as Igrejas.
135
Sigla para “Serviço de Proteção ao Índio”, instituído em 1910, órgão que antecedeu a atual Fundação
Nacional do Índio – FUNAI criada, por sua vez, em 1967.
134

“próprio” hegemônico alheio às demandas nativas dos indígenas, no acento certeauniano


afirmado no início desse parágrafo.

As “duas primeiras décadas” que abrem a citação de Girotto são em referência ao ano
de 1917 quando, por decreto-lei estadual do então estado de Mato Grosso, foi criada a reserva
de Dourados a partir do posto do SPI “Francisco Horta Barbosa”, com 3.600 ha, embora ainda
não demarcada. Essa demarcação só viria a ocorrer em 1965 com a titulação definitiva das
terras com 3475 ha. A referência de Girotto à “violência” foi porque, em 1941, o “Estado
Novo” do presidente Getúlio Vargas criou o programa das “CAN‟s” (Colônias Agrícolas
Nacionais) com a famosa “marcha” para o Centro-Oeste brasileiro, “[...] buscando incorporar
novas terras e aumentar a produção de alimentos e produtos primários necessários à
industrialização, a preços baixos”136. Esse programa gerou extensos loteamentos destinados a
colonos e fazendeiros forçando os indígenas a viverem dentro das reservas demarcadas, como
a própria TID, aumentando o contingente populacional nas mesmas137. Isso fez com que o
espaço territorial das reservas ficasse cada vez mais reduzido prejudicando, sobremaneira, a
vivência do modo de ser tradicional (ñande reko) Guarani e Kaiowá, uma vez que muitas
famílias extensas indígenas eram desagregadas e obrigadas a conviverem, em um espaço
reduzido, com outras famílias não menos desagregadas. Além disso, intensificou-se,
justamente, o conflito com colonos e fazendeiros pela posse de outras terras reivindicadas
pelos indígenas como seus tekoha tradicionais (MURA, 2006, p. 85)138.

136
De acordo com BRAND, A. O Impacto da perda da Terra sobra a Tradição Kaiowá/Guarani, p. 73.
137
Segundo informação do Reverendo presbiteriano Benjamim Bernardes, Diretor da Missão Evangélica Caiuá,
quando da criação da Missão em 1928 a área de reserva indígena em Dourados contava com,
aproximadamente, 300 indígenas envolvendo as etnias Guarani e Kaiowá. Esse número é praticamente o dobro
do apontado por Girotto, cujos dados estão baseados em antigos relatórios do SPI onde consta próximo de 175
indígenas (Kaiowá), na TID, em 1929. Somente em 1937 esse número subiu para 356 Kaiowá somados aos 16
Guarani e 109 Terena, totalizando 481 indígenas. Conferir em GIROTTO, R. L. A Política Indigenista do
Estado Republicano junto aos índios da reserva de Dourados e Panambizinho na área da Educação
Escolar (1929-1968), p. 83. Como se vê, a presença Terena em uma reserva pensada, inicialmente, para ser um
aldeamento Guarani e Kaiowá já ocorre há muito tempo, o que sempre gerou conflitos, refletidos, atualmente,
nas Igrejas também. Segundo dados da FUNAI recolhidos pelo Instituto Socioambiental (ISA), em 2003 a TID
contava com, aproximadamente, 9.146 indígenas em relação às três etnias: Guarani, Kaiowá e Terena. Cf.
RICARDO, B. & RICARDO, F. (eds.). Povos Indígenas no Brasil. 2001 / 2005, p. 783. Todavia, sempre foi
unanimidade entre os interlocutores que participaram da pesquisa que culminou nessa tese afirmarem cifras em
torno de 12, 13 mil indígenas, pelo menos, na TID atualmente. O fato é que, com os processos de reserva e
redução da posse das terras tradicionais, a população indígena na TID aumentou consideravelmente ao longo
da segunda metade do século XX.
138
Para detalhamentos históricos sobre a formação dos povos Guarani, desde o período colonial das Conquistas,
ver o clássico “El Guaraní Conquistado y Reducido”, de Bartomeu Meliá (3.ed., 1993), além de Graciela
Chamorro em “Terra Madura” (2008, p. 33-50) e Fábio Mura no capítulo 1 e 2 de sua tese de doutorado
intitulada “À Procura do Bom Viver” (2006, p. 36-73). Sobre a história dos Guarani e Kaiowá contemporâneos
na região sul do atual estado de Mato Grosso do Sul, novamente a tese de Mura nos capítulos 3 a 5 (p. 74-101)
e a já citada tese de Antonio Brand, especificamente o capítulo 2 (1997, p. 50-133).
135

Percebe-se, ainda de uma maneira breve, que as ações missionárias e a paulatina


presença das igrejas cristãs na TID encontraram uma história cheia de tensões e
ambiguidades, onde os indígenas Guarani e Kaiowá tiveram que articular suas ações táticas
de reconfiguração de sentido de vida dentro de “lugares próprios” instituídos por instituições e
grupos de poder. Esses grupos, através de ações estratégicas, procuraram circunscrever a uma
lógica outra a experiência de grupos mais fragilizados, no caso, os indígenas. Parece que as
políticas compulsórias de criação de reservas indígenas e dos programas desenvolvimentistas
do expansionismo agrícola, em diversos momentos dos governos brasileiros, fez desse mesmo
governo, nas palavras de Michel de Certeau, “[...] suscetível de ser circunscrito como algo
próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos e
ameaças [...] Gesto cartesiano, quem sabe: circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado
pelos poderes invisíveis do Outro” (2003, p. 99). Esse “outro” pode referenciar as práticas
indígenas que, ao encontrarem com práticas religiosas plurais também outras (no caso,
cristãs), em um espaço territorial também “outro” que, muitas vezes, foi imposto, instaura a
possibilidade da pluralidade e criatividade “tática”: “[...] por uma arte da indeterminação [...]
tira daí efeitos imprevisíveis” (CERTEAU, 2003, p. 93). Imprevisíveis porque, na experiência
religiosa, mesmo que haja uma manifestação heterônoma de formas culturais sobre as práticas
autônomas indígenas, para lembrar a terminologia de Tillich, há uma ambigüidade
“demônica” na vivência desses mesmos indígenas de se fazerem outros, mesmo continuando
como si mesmos. Assim, vivem o preço da ambigüidade (criação e destruição do sentido) na
vivência de múltiplas fronteiras cristãs com suas experiências religiosas tradicionais, ainda
que em uma terra indígena que, para muitos, não é considerada sua terra tradicional (tekoha).

Essa última frase, no final do parágrafo anterior, instaura outro problema para os
indígenas, do tipo geracional. Se muitas famílias de indígenas Guarani e Kaiowá, ao longo do
século XX e início do século XXI, foram expropriadas de suas terras tradicionais e encerradas
em reservas, como no caso de Dourados, várias gerações de indígenas, tais como alguns que
conversei ao longo da pesquisa, já nasceram na TID. Isso significa que vivem a ambigüidade
de assumir como um “próprio” uma terra e experiências religiosas que, segundo as gerações
mais antigas, não permite viver a plenitude do modo tradicional, baseado na tradição de
conhecimento e ancestralidade das gerações mais antigas. Vários indígenas passam a ser
criticados, notadamente os mais jovens, por assumirem o que os mais tradicionais,
principalmente os anciãos, chamam de “karai reko”, ou seja, o “jeito de ser” não índio, o do
136

“branco”, por exemplo139. Inclusive a “religião do branco”: o cristianismo. Mas esses


“cristianismos” passam a ser ressignificados ao modo próprio desses indígenas, fazendo sua
uma religião aparentemente imprópria140.

Portanto, as relações sincréticas e diacréticas estabelecidas no campo religioso não


podem desconsiderar, na análise, que a vivência religiosa dos indígenas Guarani e Kaiowá é
uma constante invenção simbólica141 (nesse sentido, demônica) em espaços territoriais
profundamente heterológicos, radicalizando a experiência de viver a religião “na fronteira”.

A TID hoje conta com duas aldeias: Jaguapirú e Bororó142. A presença de indígenas
Kaiowá é majoritária, concentrando-se muito na aldeia Bororó, mas não exclusivamente. Os
Guarani também estão presentes nas duas aldeias, com um contingente maior na aldeia
Jaguapirú. Os Terena concentram-se maciçamente também na aldeia Jaguapirú. Essa aldeia
apresenta uma peculiaridade, revelando uma das ambigüidades dos processos demarcatórios
de terras indígenas: a rodovia “Pedro Palhano” (MS-156), hoje duplicada, que liga as cidades
de Dourados e Itaporã, cruza a aldeia no sentido norte-sul. Isso potencializa o contato das
populações indígenas com os não-indígenas, aproximando ainda mais a TID da cidade
homônima. Basta uma breve caminhada nos limites territoriais da “face sul” das aldeias para
avistar, a olho nu, os prédios do entorno da cidade de Dourados, aproximadamente 5 (cinco)
Km de distância dessas aldeias, ou seja, muito próximo. Isso potencializa também, em
específico, a presença de Igrejas das mais diferentes denominações nestas aldeias, o que torna

139
Um de meus principais interlocutores que, atualmente, preside o conselho diretor da “Igreja Indígena
Presbiteriana” e é missionário da mesma, ao tentar implantar uma Congregação na aldeia Kaiowá de Guyra
Rokã, próxima ao município de Caarapó, mais ao sul de Dourados ouviu, justamente, do líder/cacique da
aldeia, que é um cabeça de parentela: “Você é índio rapaz! Como fica trazendo essa religião do branco pra
cá? Principalmente você que é índio!” Todavia, posteriormente, o líder indígena permitiu que iniciasse um
trabalho missionário cristão com as crianças indígenas daquela aldeia. Hoje existe uma das Congregações do
projeto da IIP na referida aldeia, principalmente depois que a esposa Kaiowá dessa liderança “converteu-se” ao
processo missionário cristão.
140
O antropólogo Levi Pereira analisa esse problema ao destacar importantes ambigüidades, tais como a relação
entre “tradicional e crente”, na fronteira com o pentecostalismo. Conferir em PEREIRA, L. M. A Conversão
dos Kaiowá ao pentecostalismo: alguns aspectos da inovação cultural, 2004. Todavia, Pereira parece
reforçar a “bipolaridade” afirmada quando, o que parecer existir é, na realidade, uma experiência religiosa de
“fronteira” com contornos não definidos. Maria de Lourdes Alcântara também o faz, focando mais a
experiência de jovens indígenas nessas fronteiras religiosas. Cf. ALCÂNTARA, M. de L. B. Jovens indígenas
e lugares de pertencimentos, 2007.
141
Não é possível deixar de reconhecer aqui que o problema da demarcação das terras indígenas no sul de Mato
Grosso do Sul implica na reelaboração, por parte dos indígenas, de aspectos econômicos, sociais, ecológicos e
das relações políticas, mas que extrapolam o objetivo e objeto dessa tese.
142
Faz parte também da TID a aldeia de Panambizinho localizada na área contígua ao distrito de Dourados
chamado Panambi que fica, aproximadamentre, a 18 Km da cidade de Dourados. Trata-se de uma terra
indígena de presença majoritária de Kaiowá, descontínua às aldeias de Dourados e que não entra nas
preocupações dessa tese.
137

mais complexo e intenso o trânsito religioso e a reconfiguração dos contatos interétnicos ou,
da maneira como está nomeado nesta tese, das fronteiras sincréticas e diacréticas.

Figura 1 Imagem aérea da Terra Indígena de Dourados

Fonte: (Google Images)

Em seguida, três subseções serão focadas nesse capítulo: uma primeira e uma segunda
que irão “mapear” a leitura interpretativa da experiência cultural Guarani e Kaiowá em textos
referenciais da etnologia e também da teologia, desnudam um pouco as fronteiras de
mediação em relação à compreensão do que essa própria literatura chamou de a experiência
estruturante dos Guarani: sua religião. Em seguida, em uma terceira subseção, um breve
mapeamento e impressões hermenêuticas das múltiplas fronteiras cristãs presentes, hoje, na
TID, com destaque, a partir das fontes orais da pesquisa de campo para o estudo de caso aqui
proposto, ou seja, o projeto da IIP.
138

3.1.1 Hermenêuticas da experiência religiosa Guarani e Kaiowá: uma aproximação sócio-


antropológica

A compreensão sobre o tema da “religião” Guarani conta com uma vasta produção
bibliográfica, principalmente porque esses grupos indígenas constituem-se um dos mais
estudados pela literatura antropológica específica. Marco inicial para esses estudos é o
clássico “As Lendas da Destruição e Criação do Mundo como fundamentos da Religião dos
Apapocúva-Guarani” (Die Sagen von der Erschaffung und Vernichtung der Welt als
Grundlagen der Religion der Apapocúva-Guarani), de Curt `Nimuendajú` Unkel, texto
original de 1914. De fato, esse texto é considerado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de
Castro aquele que funda a moderna etnologia Guarani, tendo influenciado sobremaneira
grandes estudos posteriores, tais como os de Alfred Métraux, Egon Schaden, o casal Clastres
(Hélène e Pierre), o casal Grünberg (Friedl e Georg) e, porque não, os maiores guaraniólogos
paraguaios: Léon Cadogan e Bartomeu Meliá143.

3.1.1.1 Religião Guarani em Kurt Nimuendajú Unkel: uma negação do sincretismo?

De fato, a religião Guarani, no grupo vivenciado e analisado por Nimuendajú144, é uma


experiência marcada por uma relação tensiva, mas profundamente criativa, entre o que se
chama de “Cataclismologia” e “Cosmologia”. O quê isso significa? Na essência do que se
chama de “religião Guarani” correlaciona-se uma dualidade que, ao reconhecer as vicissitudes
da finitude humana, potencializadas por elementos destruidores desde o período da conquista,
no século XVI, anela-se, por outro lado, pela superação dessa condição. Os mitos religiosos,
cantados e contados, enfatizam a própria dualidade na dimensão pessoal do indígena. Essa
“dualidade” se expressa, primeiramente, pela “palavra-alma” ayvucué (que significa “o sopro
brotado da boca/corpo”), nominação (“substância” concreta) que “vem” do mundo divino pela

143
Cf. VIVEIROS DE CASTRO, E. Nimuendaju e os Guarani. In: NIMUENDAJÚ UNKEL, C. As Lendas da
Destruição e Criação do Mundo..., p. xxvii.
144
Os Apapocúva (“Homens dos arcos compridos”,) segundo informa o próprio Nimuendaju, eram originários da
região do extremo sul do atual estado de Mato Grosso do Sul. Dispersaram-se, por conta do profetismo
migratório, em busca da “Terra sem Males”, por diversas regiões. À época, início da segunda década do século
XX, Nimuendajú testemunhava: “O número de Apapocúva monta hoje a seiscentas e cinquenta cabeças. Deste
total, duzentas estão no Iguatemi em Mato Grosso; outros tantos, ao lado dos Oguauíva e de alguns Kayguá, na
reserva do Araribá em são Paulo; cerca de cem no rio das Cinzas, no Paraná; uns setenta no Potrero Guaçu em
Mato Grosso e uns quarenta na foz do Ivahy no Paraná”. Cf. NIMUENDAJÚ UNKEL, C. As Lendas da
Destruição e Criação do Mundo..., p. 15.
139

intermediação do pajé/rezador, alma essa que toma “assento” na criança, quando do


nascimento, através de um complexo ritual que denota as disposições boas e serenas do
comportamento. Em segundo lugar, há a expressão simultânea da “palavra-alma” acyiguá
(que significa “vivaz, vigoroso”). Esta última constitui a “alma animal”, responsável por
comportamentos mais “desagregadores” e até violentos (NIMUENDAJÚ UNKEL, 1987, p.
33-4). Nimuendajú lembra-nos que o ayvucué sempre estará relacionado a algo bom, positivo,
mas isso não significa que o acyiguá seja inteiramente negativo. Estaria para um princípio
mais ambíguo. Arrisca-se a dizer: “demônico”. Muito embora a conotação fortemente
abstrata, atrelada à experiência de sentidos incondicionais em Tillich não esteja presente nas
elaborações Guarani, muito mais concretas, expressando-se em tradições e comportamentos
cotidianos. Todavia, é possível estabelecer a comparação para reforçar o aspecto da
ambigüidade da religião. Além disso, essa compreensão antropológica desdobra-se em todo o
quadro social e cósmico da religião Guarani, fundando uma vida que procura transformar as
experiências negativas e desagregadoras (todo o complexo cataclísmico), em experiências de
ordenação dessa mesma vida (o complexo cosmológico), permanentemente buscada,
inacabada, mas na esperança da plenitude, da divinização, simbolizada pela busca da “Terra
sem Mal” (Ivý marãey). Seria essa uma “preocupação incondicional”? A pergunta ressoa,
mesmo que não possa ser totalmente respondida. Mas o importante, nesse paralelo com as
ideias tillichianas é destacar que, assim como a expressão demônica do sagrado, a religião
Guarani se expressa nas condições culturais concretas.

É muito importante compreender que a noção do “profetismo Guarani” em torno da


polaridade criação e destruição e a meta “escatológica” da “terra sem males”, serão heranças
fundamentais de Nimuendajú para toda a etnologia Guarani posterior. Importante também
destacar que Nimuendajú tem uma leitura histórica, em vários momentos, muito desalentadora
e pessimista pois, à sua época, viveu as contradições, miserabilidades e expropriações em ato
que os Povos Guarani experimentaram no Brasil das primeiras décadas do século XX. Nesse
sentido Nimuendajú tem uma leitura profundamente adversa ao Cristianismo. Inclusive, toma
esse termo (Cristianismo) como metáfora para caracterizar a sociedade “branca”, não-
indígena, dizimadora da condição indígena nativa145. As missões cristãs seriam, para

145
Nimuendajú inicia o capítulo 3 de seu texto, especificamente sobre a religião Guarani, afirmando: “Se neste
capítulo vejo-me ocasionalmente obrigado a falar em “cristãos”, não estou com isso me referindo aos poucos
missionários que vieram ter com os índios, mas àquela classe do povo brasileiro com quem os Guarani mantém
um contato quase exclusivo. Essa gente afirma de si ser cristã; por isso, assim a chamarei. A estúpida
presunção religiosa destes cristãos chega a tal ponto, que só reconhecem como seres humanos seus
140

Nimuendajú, um poderoso fator de coerção, usurpação e degeneração das experiências


culturais tradicionais dos povos indígenas. Por isso, a sua ênfase em manter viva a “memória
narrativa” tradicional, nativa, a partir da religião, mesmo no já diminuto povo Guarani. Ao
recontar os mitos e ritos tradicionais, herança que deixará para os guaraniólogos posteriores,
“exorciza” os efeitos deletérios do contato interétnico com a “sociedade cristã”. Não é sem
motivo que se esforça para mostrar que o complexo “profético” Guarani e a migração para o
horizonte simbólico da “Terra sem Males” não é uma reelaboração a partir de influências
cristãs, mas elemento inerente à própria tradição religiosa nativa dos Guarani. Esse tema vai
dominar boa parte da etnologia Guarani posterior, por exemplo, em Hèlené Clastres em seu
clássico “Terra sem Mal: o profetismo Tupi-Guarani”, de 1974, mas que foge ao escopo desta
tese.

O que não foge ao escopo desta tesa é a seguinte pontuação: nessa perspectiva,
dificilmente Nimuendajú caracterizaria a religião Guarani como sincrética. Primeiro, porque
as próprias teorias e a terminologia “sincretismo” eram muito exíguas na ainda em formação
antropologia brasileira do início do século XX. Mais ainda, pelos motivos apresentados
anteriormente, porque Nimuendaju não admitiria que elementos heteróclitos e, principalmente
cristãos, por serem olhados a partir de seus efeitos deletérios, pudessem manter uma
“coexistência sincrética” com a religião nativa. Quando muito, se pudesse fazer uma releitura
retroativa, hipoteticamente Nimuendajú leria o sincretismo como uma “máscara colonial”
(conforme o primeiro capítulo) para “disfarçar” a religião tradicional e resistir ao poder da
conquista. É o que parece sugerir, em uma fina ironia, quando afirma: “[...] quando o visitante
espirra [o cristão], ele [o Guarani] diz: “Deus lhe ajude!”; antes de cada frase ele [o Guarani]
exclama: “Nossa Senhora”!; de tal forma que, envergonhada, a visita é obrigada enfim a
reconhecer que estes animais desgraçados têm feito progressos notáveis no tornar-se gente”
(UNKEL, 1987, p. 28). Percebe-se, também, a crítica de Nimuendajú à leitura fortemente
evolucionista ainda muito presente em análises históricas e antropológicas de seu tempo.

correligionários, considerando o assassinato de um índio pagão tão pouco criminoso quanto a matança de um
animal” Cf. NIMUENDAJÚ UNKEL, C. As Lendas da Criação e Destruição do Mundo..., p. 27.
141

3.1.1.2 Religião Guarani no pensamento de Egon Schaden: sincretismo como “aculturação”?

Certamente que não há espaço nessa tese para rediscutir todos os clássicos da
etnologia Guarani. Até porque isso contaria com as profundas limitações do autor da tese.
Todavia, na composição do quadro hermenêutico proposto, o nome de Egon Schaden torna-se
também referência, justamente porque representa a compreensão da religião Guarani a partir
da noção clássica da “aculturação”, auge das discussões etnológicas no Brasil entre os anos 50
e 70. Testemunha disso é o seu clássico “Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani”, cuja
primeira edição consta de 1954146 e, dez anos depois (1964), a publicação do texto
“Aculturação Indígena”, cujo subtítulo já denuncia seu método: “Ensaio sobre fatores e
tendências da mudança cultural de tribos índias em contato com o mundo dos brancos”.
Neste último texto ele dedica um capítulo inteiro à aculturação religiosa dos Guarani, ao
retomar aspectos já trabalhados no primeiro texto (“Aspectos Fundamentais...”). A religião,
enquanto um aspecto da cultura, torna-se “o” aspecto a partir do momento que se apresenta
como a estrutura onde verifica-se a maior resistência dos povos Guarani ao intenso processo
de “destribalização” a que foram submetidos, destribalização essa geradora de uma grande
desestabilização do ethos social tradicional desses povos indígenas.

Todo processo aculturativo, de acordo com Schaden, surge dessa desorganização


social no contato cultural, provocando necessariamente mudanças, principalmente na cultura
que sofre a descaracterização, por não ser a cultura hegemônica (no caso, a indígena). Com
isso, Schaden reconhece a intensa influência cristã nos povos Guarani, mas especifica as
implicações e as modalidades da mudança cultural ocasionada por essas influências. Ele
afirma: “[...] a religião guarani, sofrendo profundas influências cristãs, assimilou durante
longo período os elementos estranhos de maneira não a obliterar, mas a acentuar ao extremo
certos valores centrais da própria doutrina primitiva, reinterpretando ensinamentos do
Cristianismo segundo o espírito desta” (SCHADEN, 1969, p. 105). É possível perceber, nessa
citação, algumas perspectivas centrais da teoria da aculturação: 1. pressuposição da influência

146
Para compor sua análise em “Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani”, dentre outros locais, Schaden fez
incursões de campo, como ele mesmo testemunha, na região sul de Mato Grosso (hoje, Mato Grosso do Sul),
no período de 1949 a 1951. Visitou aldeias nas localidades de Panambi, Amambai, Taquapiri e, principalmente
Dourados onde, afirma, ficou o maior tempo ininterruptamente: cerca de um mês. Nessa época Schaden
contabilizava cerca de 548 indígenas na reserva de Dourados. Destacava a depopulação indígena nessa reserva
por conta de doenças, tais como a tuberculose, além da influência crescente do Cristianismo sobre os Ñandeva
e Kaiowá através, principalmente, da ação catequética da “Missão Protestante” (no caso, a “Missão Evangélica
Caiuá”). Cf. SCHADEN, E. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani, p. 9. Como se vê, passados quase
60 anos, o processo de “depopulação” indígena foi revertido e não há problemas mais tão significativos com a
tuberculose. As ações missionárias cristãs aumentaram para além das ações da Missão Caiuá.
142

no contato cultural; 2. relação de “dupla face”: ao mesmo tempo que se perde elementos da
cultura, por um lado, ganha-se na permanência e reforço de elementos essenciais, por outro,
responsáveis pelo núcleo de resistência ao processo aculturativo, ainda que o preço a ser pago
pela resistência seja um longo processo de reinterpretação, por parte dos indígenas, de
elementos da cultura exógena (no caso, a cristã). Essa “reinterpretação” faz da aculturação, no
campo religioso, um processo mais lento (quando comparado a outros campos da cultura, tais
como a economia, ecologia, arquitetura material, dentre outros). Assim, Schaden postula
algumas “fases” nesse processo aculturativo: 1. Integrativa, onde é aceito elementos religiosos
estranhos (cristãos) mas sem o “conteúdo religioso” original, em função do atendimento de
necessidades mais imediatas, principalmente no campo da saúde e da economia; 2. Através de
analogias de forma, aceitam-se elementos religiosos heteróclitos mas reinterpretados nos
termos do sistema religioso indígena; 3. Decisivamente, o sistema religioso tradicional é
reconfigurado pela predominância de elementos religiosos a ele integrados (SCHADEN,
1969, p. 116-7; 1974, p. 145-6). Esta última fase, a da “reconfiguração”, segundo Schaden, é
mais observada em grupos indígenas que passaram e passam por um prolongado e intenso
processo de contato cultural com a sociedade nacional não-indígena.

Caso seja possível falar de “sincretismo” nessa proposta aculturativa, seria esse
sincretismo, quando muito, uma fase dentro do processo aculturativo mais amplo. Todavia,
uma fase nomeada por tipologias descritivas conforme o momento empiricamente observado:
assimilação, paralelismo de formas e uma acomodação147. Sobraria um indígena aculturado
que, no final das contas, parece não dar conta das reais ambigüidades e do protagonismo
inventivo desses mesmos indígenas, atrelados a um processo interpretativo que, no final, não
depende deles, mas das condições impostas pela religião cristã, no caso.
147
Em 1968, 14 anos após o texto de Schaden (“Aspectos Fundamentais...”), vem à lume o texto clássico do
antropólogo e educador Darci Ribeiro, “Os Índios e a Civilização”. Mesmo que proponha a noção de
“transfiguração étnica” para interpretar os processos de integração dos povos indígenas à sociedade nacional,
Ribeiro faz uma análise crítica do problema da aculturação, ainda em voga em sua época. Ribeiro critica o
perigo de levar os processos aculturativos a desembocar em uma total assimilação do indígena à sociedade
nacional. Mesmo que se possa falar em aculturação, e por mais intenso que seja o processo de “ruptura do
ethos tribal”, há uma capacidade transfigurativa, ou seja, uma permanência dos grupos indígenas como
entidade étnica. Em Ribeiro não se pode falar da estrutura religiosa como o maior foco de resistência às
transformações sociais, uma vez que não é somente a identidade religiosa que define a identidade étnica de um
grupo, mesmo de indígenas fortemente centrados na estrutura religiosa como os Guarani. Para Ribeiro, o
indígena, nos processos aculturativos, deixa de ser indígena em várias dimensões que constroem a identidade
étnica. Por isso, prefere falar de “acomodações sucessivas” no processo de transfiguração, onde o indígena
continua indígena, não mais como indígena tribal, mas como “indígena genérico” e “indígena nacional”. Cf.
RIBEIRO, D. Os Índios e a Civilização, p. 475ss. Darci Ribeiro não tematizou a categoria do sincretismo,
embora em “O Povo Brasileiro” (primeira edição de 1995), use o termo em um sentido adjetivado para
qualificar positivamente a dinâmica diferenciadora da etnia nacional em relação às suas matrizes formadoras,
“[...] singularizada pela redefinição de traços culturais dela oriundos”. Cf. RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro, p.
17.
143

De fato, a antropóloga Paula Montero enfatiza que as teorias de aculturação, da qual


Schaden é herdeiro, ainda partia de uma forte crítica colonialista da qual a Igreja e,
consequentemente, as ações missionárias cristãs, era o braço religioso da dominação e da total
descaracterização das culturas nativas indígenas148. Nesse caso, os protagonismos culturais
dos atores sociais em jogo ficavam em segundo plano ao privilegiar o par
“dominação/resistência” onde a resistência, em função da dominação, era vista em seu caráter
mais passivo (MONTERO, 2006, p. 37). Não se trata de analisar o ponto de vista do
missionarismo cristão e o ponto de vista da religião Guarani, por exemplo, ou o que
permanece de genuinamente indígena em meio à religião cristã, insistindo nos binarismos,
muitas vezes dualistas. Na realidade, passam a existir novos “pontos-de-vista” na situação de
mediação, de contato intercultural, em zonas de fronteira. Retomando as palavras da referida
antropóloga:

Trata-se, pois, não tanto de observar o encontro de duas sociedades e/ou


culturas distintas (e desiguais) e os efeitos de uma sobra a outra, mas de
compreender como agentes em interação acessam alguns de seus códigos
próprios ou se apropriam de alguns dos códigos alheios para significar. [...]
Propomos que a produção de códigos compartilhados seria a resultante, no
plano das significações ou das configurações culturais, de estratégias mais
ou menos calculadas dos agentes em interação para fazer valer seus
interesses, cujos valores só podem ser descritos culturalmente
(MONTERO, 2006, p. 51; 62)

Possivelmente, no contexto da TID, quando se pensa a relação de mediação cultural e


religiosa entre indígenas e igrejas cristãs, como no caso das Congregações da IIP e até mesmo
de comunidades pentecostais, essas congregações e comunidades são configuradas,
historicamente, de forma fragmentária, inventivas. Agregam, pois, elementos simbólicos ao
universo de sentido dos indígenas, a partir da iniciativa de apropriação e desapropriação dos
próprios indígenas, protagonistas dessas comunidades. Não é sem motivo que a antropologia
contemporânea reabilita termos como o próprio sincretismo, bricolagem, hibridismos, alguns
dos quais, ainda que timidamente, assumidos pelo discurso teológico (tal como visto no
primeiro capítulo). Essas noções, por sua vez e cada uma a seu modo, não desejam reificar um
possível “ser sincrético” ou “híbrido”, mas problematizar campos religiosos e culturais de
sentido que “[...] enfatiza a análise das relações transversais, laterais e descentradas no intuito
de superar a idéia de um mundo composto de identidades isoladas e captar as interconexões e

148
Vale lembrar que o período histórico abordado por Schaden, em relação à reserva de Dourados, comporta os
processos de desagregação social causado pelas frentes de expansão agrícola nacional, tal como afirmado na
seção 3.1. deste capítulo.
144

descontinuidades operantes no jogo dessas relações transculturais” (MONTERO, 2006, p. 38-


9). Poderia ser dito, em consonância com a citação anterior, relações sincréticas e diacréticas,
tais como nomeadas nesta tese. Típica leitura do que Montero qualifica por uma antropologia
“pós-colonial”, muito em voga desde os anos 90 do século passado149.

Porém, esse tipo de leitura ainda aguarda maiores matizações e reflexões quando se
pensa a religião/religiões Guarani e Kaiowá, principalmente em contextos onde dificilmente
se percebe identidades calcadas em “binarismos” e, sim, identidades construídas a partir e
com a experiência fragmentária de muitos “outros”, como no caso da TID. Vale à pena
lembrar aqui as palavras do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro quando afirma que o
“outro” nunca é um espelho, mas um destino150. Michel de Certeau, provavelmente, pensaria
da mesma forma.

3.1.1.3 Religião Guarani na fronteira de saberes de métodos antropológicos “sincréticos”


contemporâneos

Uma das tentativas recentes, no sentido de repensar experiências culturais e religiosas


dos Guarani contemporâneos em situação “de fronteira”, é a da antropóloga e socióloga
Maria de Lourdes Alcântara (2007). Essa autora foca seus estudos no problema do suicídio
entre jovens indígenas Guarani na TID. Alcântara enxerga nesses jovens um espaço de
mediação por excelência, posto que a categoria de relações sociais nomeada por “jovem”
instaura um elemento novo nas unidades sociais tradicionais dos grupos Guarani e Kaiowá,
além de serem justamente esses jovens o espaço de vivências ambíguas profundas na TID
hoje, constatado, empiricamente, que a experiência dos suicídios os afeta em maior escala151:
“[...] marcados, por um lado, pela discriminação dos não-índios e, por outro, por uma

149
Como exemplo, a leitura “pós-colonial” dos estudos culturais de Homi K. Bhabha que têm influenciado a
antropologia das “etnias de fronteira”. Para Bhabha, “O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com
„o novo‟ que não seja parte do continuun de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato
insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente
estético; ela renova o passado, refigurando-o como um „entre-lugar‟ contingente, que inova e interrompe a
atuação do presente. O „ passado-presente‟ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver”. Cf.
BHABHA, H. K. O Local da Cultura, p. 27. Já há uma menção a alguns teóricos do chamado “Estudos
Culturais” na subseção 2.1.1. do segundo capítulo desta tese.
150
Cf. VIVEIROS DE CASTRO, E. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In:
VIVEIROS DE CASTRO, E. A Inconstância da Alma Selvagem, p. 220. Devo a localização dessa citação a
ALCÂNTARA, M. de L. B. Jovens Indígenas e lugares de pertencimentos, p. 29.
151
Para o tema do suicídio entre os indígenas Kaiowá nas aldeias do cone sul do Mato Grosso do Sul, no início
dos anos 90 do século passado, não restrito aos jovens, veja-se o importante texto da historiadora Marina
Wenceslau intitulado “O Índio Kayowá: Suicídio pelo Tekowá” (1994), fruto de sua tese de doutorado.
145

convivência intensa com a cidade, esses jovens negociam, o tempo todo, suas identidades [...]
Vivendo o in between como um local em que novas estratégias de negociação cultural estão
sendo forjadas” (ALCÂNTARA, 2007, p. 72-3). Por viverem in between os jovens indígenas,
ao relerem especificamente suas experiências religiosas, vão concebê-las, segundo Alcântara,
entre/na fronteira híbrida formada por fragmentos cristãos e indígenas 152. De certa forma
Alcântara é devedora dos grandes clássicos da etnologia Guarani que apresentam a religião
como o grande elemento estruturador da vida social desses mesmos povos Guarani. Essa
autora chega a afirmar que a religião é o fato social total (em um acento maussiano), ou seja,
permeia toda a cultura Guarani, tornando-se “[...] elemento fundamental de diálogo cultural
que determina a concepção de alteridade” (ALCÂNTARA, 2007, p. 29).

Ao passar em revista a literatura antropológica específica sobre a religião Guarani e


Kaiowá, no contexto das aldeias do cone sul de Mato Grosso do Sul, Alcântara foca suas
análises na produção contemporânea do historiador Antonio Brand, da antropóloga Katya
Vietta e do antropólogo Levi Marques Pereira. Em relação a Brand e Vietta, Alcântara situa a
sua crítica, embora não use o termo, colocando os dois autores como reabilitadores de uma
certa leitura “aculturada” dos indígenas: nesse caso as igrejas cristãs dentro das aldeias
procuram dar respostas às crises estabelecidas pela perda da terra e o modo de ser tradicional
dos indígenas: “[...] A ênfase no conceito de tradição tem a intenção de apresentar as perdas
culturais pelas quais essa etnia vem passando, conseqüência da desestruturação moral que
sofrem no processo de perda de suas terras” (ALCÂNTARA, 2007, p. 31). Em que pese a
importância da posse da terra como elemento estruturador da identidade Guarani e Kaiowá,
Alcântara afirma que esse não é o único elemento a ser considerado e que, na experiência de
vários indígenas atuais (principalmente os jovens com quem dialoga), outros elementos
estruturantes entram nas renegociações simbólicas. Talvez seja possível argumentar que em
Brand e Vietta a “Terra Tradicional” (Tekoha), e não a Religião, seria o fato social total. Isso
significa que sem a Tekoha não é possível viver a religião “autêntica”, tradicional. São
diferenças de perspectivas. Mas isso não significa que os indígenas atuais não possam
reinventar sua “tradicionalidade” a partir das múltiplas fronteiras de variáveis simbólicas. A
própria idéia, já colocada pelo autor dessa tese na introdução do capítulo, retorna agora: as
152
“O estar na passagem, ou estar „no entre‟, neste caso, pode ser um processo de construção identitária de difícil
negociação, pois as estruturas estão sendo elaboradas por meio dos fragmentos das antigas e do aparecimento
de novas concepções de mundo”. Um exemplo do in between Alcântara encontra, conforme afirmado, na idéia
de “jovem”. Esse indígena “jovem”, por estar na fronteira entre uma velha e nova classificação social, haja
vista que denota o lugar daqueles e daquelas que deveriam se casar. Como não se casam mais cedo,
permanecem, para os mais velhos, em um “não-lugar”. Cf. ALCÂNTARA, M. de L. B. Jovens Indígenas e
lugares de pertencimentos, p. 102.
146

possíveis homologias, por exemplo, entre a família extensa tradicional e as Igrejas


(principalmente as pentecostais) e entre os rezadores tradicionais e os pastores, colocando o
segundo elemento da relação como o substituto do primeiro, perdido pela experiência
histórica do confinamento dos indígenas nas reservas pode desconsiderar as heterologias entre
esses sistemas sociais. De fato, pode reafirmar a busca por uma estrutura social nativa e
“pura” que ruma, inexoravelmente, para a total desagregação. Com isso Alcântara recoloca o
grave risco de todo método antropológico que, ao tentar falar do outro indígena, acaba falando
mais de si mesmo: “[...] Pergunto-me até que ponto nós antropólogos não estamos tentando
reinventar uma tradição a qual é distante deles e cujo método utilizado é buscar informantes
que reiteram nossos propósitos” (ALCÂNTARA, 2007, p. 33). Ao que parece, a referida
antropóloga não se coloca, em tese, acima desse risco.

A partir dessas críticas não fica difícil entender que a noção de sincretismo, para
analisar os contatos interreligiosos entre os indígenas Guarani e Kaiowá atuais, não aparece
nos textos de Brand e Vietta. Não aparece porque o sincretismo acaba tomando um acento
negativo, uma vez que relaciona-se à “valorização” de elementos estranhos ao universo
Guarani e Kaiowá “misturados” com o que restou de elementos nativos, quando o interesse é
“recuperar”, na realidade, esses elementos para valorizar uma suposta identidade perdida. Isso
até leva Brand e Vietta a reconhecer que as missões cristãs, sejam pentecostais ou não,
contribuem para recompor o universo de sentido perdido, mas o fazem superficialmente
(BRAND & VIETTA, 2004, p. 262).

O antropólogo Levi Marques Pereira, em sua tese de doutorado intitulada “Imagens


Kaiowá do sistema social e seu entorno”, de 2004, em que pese as profundas transformações
ocorridas nos espaços de vivência tradicional dos indígenas referidos, devido ao processo de
“confinamento” (no sentido que Brand dá ao termo) em reservas demarcadas pela política
indigenista nacional, parte do pressuposto de que, ainda assim, há uma continuidade histórica
e cultural entre o modelo sócio-cosmológico (leia-se: “religião”) tradicional e a realidade
atual. Essa continuidade, segundo o antropólogo, é referendada pela construção e vivência
atuais de categorias sociais próprias à tradicionalidade dos Kaiowá, categorias essas criadas
por eles mesmos. Nesse caso, Pereira produz uma análise antropológica referencial, pois faz o
esforço de se colocar no mesmo “plano epistemológico” de produção de sentido dos
indígenas. Pereira também reconhece que, muitas vezes, o próprio indígena Kaiowá reelabora
criticamente suas categorias tradicionais na fronteira com os espaços institucionais do Estado
Brasileiro ao procurar novos sentidos para situações até então não vivenciadas (PEREIRA,
147

2004, p. 16-7). Ao enfatizar a compreensão das relações sociais a partir das próprias
categorias nativas, Pereira traz para o primeiro plano (no capítulo 4 de sua tese), o papel da
religião na composição dessas relações sociais. A religião passa a ser vista como o grande
sistema estruturador das relações sociais, justamente porque a cosmologia Kaiowá é
profundamente uma “antropologia”. Isso significa a capacidade de humanizar todos os
espaços também “naturais”. Assim, todos os seres da natureza são também “humanos” e as
relações que acontecem na realidade “espiritual” são relações profundamente humanizadas,
socializadas, evidenciando complexas relações sociais que tornam-se referência para o bom
modo de se viver (o “teko porã”). Nesse caso o assento da análise posto no xamanismo torna-
se recorrente em Pereira, justamente porque esse agente religioso (o xamã/rezador) conhece
toda a “cartografia” celestial, todos os caminhos entre o mundo humano dos humanos e o
mundo “humano” da natureza e das divindades, podendo fazer as devidas correlações de
sustentabilidade social que define a identidade tradicional do grupo (PEREIRA, 2004, p. 241).

Na análise dos encontros e desencontros religiosos entre a tradição e o “novo”, Pereira


rejeita toda tentativa de assimilação dos indígenas Kaiowá a elementos religiosos outros,
principalmente cristãos. Há, no máximo, em sua análise, uma “acomodação” no contato
intercultural, mas sempre em função de, alguma forma, não perder a possibilidade de
revivenciar o ymã guarê (que significa “o modo de vida tradicional, pleno, referenciado ao
tempo mítico dos antepassados”), única forma dos Kaiowá, em sua autocompreensão, darem
conta do caos social em que vivem nas situações de reserva na atualidade. Na análise que
Alcântara faz de Pereira, como o referido antropólogo não pode desvencilhar-se do
reconhecimento de que, para muitos indígenas hoje, é extremamente difícil a vivência dos
valores tidos por tradicionais, a busca por práticas religiosas que não as traditivas (buscadas
nas igrejas cristãs, por exemplo) levam-nos, em alguma medida, a deixar de ser Kaiowá.
Contudo, não tratar-se-ia de reinventar uma tradicionalidade outra? Mais “híbrida”, no dizer
de Alcântara? (ALCÂNTARA, 2007, p. 35). Todavia, Alcântara não pode desconsiderar que
o trabalho de Pereira não está referenciado somente nos dados de campo da TID, ao contrário
dela, e que o mesmo está indelevelmente marcado por suas profundas experiências
etnográficas, como perito antropológico, para emissão de laudos técnicos sobre terras
indígenas Kaiowá tradicionais. Isso não deixa de postular uma relação ambígua com o próprio
método antropológico: se, por um lado, subsidia Pereira com dados etnográficos inestimáveis
pela profunda inserção no campo, por outro tende a levá-lo à priorização da busca por
elementos cosmológicos tradicionais, criando dificuldades para compreender a religião como
148

campo de mediação em situações de múltiplas fronteiras de sentido como no caso da TID153.


Nesse caso, embora estudem os indígenas Guarani e Kaiowá, ambos os autores o fazem sob
perspectivas territoriais, históricas e geracionais diferenciadas. Assim, ao afirmar que o
método antropológico de Pereira está “preso” ao seu “objeto”, que são os indígenas Kaiowá
mais tradicionais, a crítica também poderia voltar-se para Alcântara: outro “objeto” (os jovens
indígenas) definiria uma outra “prisão” ao método. Melhor será olhar complementarmente
essas leituras.

Em conversas realizadas no final do ano de 2007 com o autor desta tese, Pereira
retomava a discussão sobre o sincretismo religioso como categoria analítica para tentar
compreender a experiência religiosa dos indígenas Guarani e Kaiowá na TID. Enfatizava a
noção de “caos” para caracterizar a TID ao postular a hipótese de que o sincretismo poderia,
na realidade, ser a confissão radical do “sem sentido” na busca de sentido religioso em meio
ao caos afirmado. Todavia, Pereira enfatizava muito, como ponto de partida teórico, as
compreensões de sincretismo oriunda dos anos 70, especificamente atreladas às idéias de
aculturação indígena postuladas por Schaden. Assim, postulava que o sincretismo também
poderia ser visto como um foco de resistência aos processos aculturativos, onde o assumir
traços da experiência cristã, “misturadas” com a cosmologia tradicional, estava em função da
resistência afirmada. Todavia, deixava a questão em aberto.

Ao fazer esse breve percurso teórico sobre como algumas leituras etnológicas lançam
seu olhar interpretativo sobra o tema da religião Guarani, procurou-se uma aproximação
dessas mesmas leituras para com a questão do sincretismo religioso. Em seguida, na
continuidade das discussões teóricas que iniciam este capítulo, haverá o exercício de
construção de outro breve percurso: o teológico.

153
Dois estudos antropológicos de Pereira para subsidiar tecnicamente o processo de demarcação de terras
indígenas no sul de Mato Grosso do Sul foram publicados: O primeiro, a já citada obra “Os Terena de Buriti”.
A segunda, especificamente sobre uma comunidade Kaiowá, texto produzido conjuntamente com o historiador
e arqueólogo Jorge Eremites, intitulada “Ñande Ru Marangatu: laudo antropológico e histórico sobre uma
terra Kaiowá, na fronteira do Brasil com o Paraguai, município de Antônio João, Mato Grosso do Sul”.
Ambos os textos foram publicados em 2009 pela editora da Universidade Federal da Grande Dourados -
UFGD, onde os autores são professores titulares.
149

3.1.2 A experiência religiosa indígena em chave teológica: breves apontamentos

Antes de entrar em aspectos mais teológicos da análise proposta e em continuidade às


discussões anteriores, é importante retomar aspectos da análise da socióloga Cristina Pompa
apontada na Introdução dessa tese. Pompa, conforme afirmado, investiga o contato entre os
índios Tupinambás e Tapuias com o projeto missionário católico no Brasil colonial. A
socióloga procura superar “lugares-comuns” nas análises que estão presentes tanto na
literatura antropológica quanto histórica (acrescente-se: teológicas). Em primeiro lugar ela
rejeita o paradigma do contato/conquista, seja do lado da “perda”, seja do lado da
“resistência” que reforça um dualismo estigmatizador dos povos indígenas originários como
vítimas dos processos de colonização ou como heróris da resistência de suas culturas. Em
segundo, é cada vez menos crível a sustentação de “identidades puras originárias” dos
indígenas que teria sido corrompido pelo “projeto civilizatório” dos religiosos “brancos” e
conquistadores. Entra em cena hoje o que Pompa chama de “lógica mestiça”154, onde a
resistência dos povos indígenas frente aos enquadramentos a que foram submetidos, “não se
dá apenas em termos de revolta, mas também de estratégias de mediação, de adaptação e
reformulação de identidades, de construção de novas formações sociais e culturais” (POMPA,
2003, p. 22)155. Portanto, no encontro colonial, o que está em jogo é a construção do sentido
do “Outro”, da maneira como as alteridades envolvidas se reconstroem dentro de uma
“linguagem simbólica negociada”. Comparativamente, é importante pensar como as
populações indígenas Guarani e Kaiowá hoje, na TID, reelaboram, a partir de suas próprias
representações culturais, os muitos sistemas simbólicos cristãos que interagem com eles, da
forma como tomaram e transformaram para si o que se apresentava como outro. Volta, com
força, a questão da alteridade ou a heterologia já afirmada, questão central para as relações
sincréticas e diacréticas, principalmente em contextos de novas formas de “colonização” que
desafiam esses grupos indígenas.

Especificamente, onde posicionar o discurso teológico nessas


fronteiras/representações interpretativas das experiências religiosas indígenas? No que diz
respeito ao tema do sincretismo religioso indígena, boa parte ainda dos antropólogos e
teólogos parecem dar as mãos em um ponto: um certo ato de rejeição ao termo. Seja de forma

154
Pompa toma este termo de Serge Gruzinski em sua obra “La pensée métisse” (“O Pensamento Mestiço”), de
1999.
155
Citação essa que já aparece na Introdução da Tese.
150

direta, ao atrelar à noção de sincretismo a idéia adjetivada de uma “mistura” confusa de


crenças, com perda das identidades envolvidas, seja de forma indireta, substituindo o termo
por outros, tais como: acomodação, assimilação, tradução e justaposição de “universos”
simbólicos. No caso da teologia, em particular, o termo inculturação e inclusivismo ainda têm
proeminência, não obstante os esforços para se repensar o problema do sincretismo, em chave
teológica, conforme apresentado no primeiro capítulo. Quando se aproxima a questão do
sincretismo, enquanto categoria analítica de mediação para a compreensão da experiência
religiosa indígena (Guarani ou não), as perspectivas ainda estão um tanto quanto escassas.
Para ficar em um exemplo: o teólogo chileno Diego Irarrázaval não problematiza a noção de
sincretismo em sua “teologia ameríndia”, mas a vê como uma possibilidade “bem fecunda”
para analisar relações sincréticas entre vivências de revelação e salvação por parte de
indígenas cristãos. Ele pontua: “[...] Na relação com Deus existe um tecido de fibras culturais
que se entrelaçam. Embora possa ser interpretado mal, não há “uma” concepção “nitidamente
andina” de Deus. O imaginário sobre a divindade é plural, com vários tipos de sincretismo, e
está marcado por muitos fatores” (IRARRÁZAVAL, 2007, p. 47). De fato, percebe-se que
Irarrázaval valoriza o aspecto “sincrético”, embora o tome como algo pressuposto e
adjetivado, uma vez que não apresenta maiores matizações epistemológicas sobre os
processos históricos de constituição do sincretismo nas religiões do amerindianismo andino.

Nessa subseção deste capítulo, a título de análise exemplificadora, serão apresentadas


algumas percepções teológicas da relação entre cultura e religião indígena no pensamento de
Manuel Marzal e Graciela Chamorro. O teólogo e antropólogo Manuel Marzal elegeu as
culturas indígenas andinas, principalmente os Quéchuas peruanos, como enredo principal de
sua trajetória acadêmica e pastoral. A escolha de Marzal, para os propósitos argumentativos
aqui expostos, é que ele utiliza explicitamente o termo “sincretismo” para compreender as
muitas interações que as comunidades ameríndias andinas estabeleceram com o cristianismo,
notadamente o católico. Por sua vez, tendo como fonte e, ao mesmo tempo, aprofundando
aspectos intuídos pelo antropólogo e teólogo jesuíta Bartomeu Meliá, a historiadora e teóloga
Graciela Chamorro especializou-se, em sua biografia intelectual, em viver e pensar, histórica
e teologicamente, as lutas e realizações dos povos Guarani aqui no Brasil, inclusive na região
de Dourados, onde reside atualmente. Muito embora Chamorro não problematize a noção de
sincretismo.
151

3.1.2.1 Sincretismo como Inculturação? Diálogos com Manuel Marzal

O teólogo jesuíta e antropólogo Manuel Marzal, nascido na Espanha, radicou-se no


Peru desde início dos anos 50 do século passado. Foi, durante 35 anos, professor da Faculdade
de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Lima. Destacou-se como membro
do comitê acadêmico da “Enciclopédia Iberoamericana de Religiões”. Têm, dentre suas
principais obras, os seguintes textos: “História da antropologia indigenista: México e Peru”
(1981), “O Sincretismo Iberoamericano” (1985) e “Terra Encantada. Tratado de
antropologia religiosa da América Latina” (2002). Além disso, organizou a conhecida obra
“O Rosto Índio de Deus” (1988), onde contribui com o artigo “A Religião Quéchua Sul-
Andina Peruana”, texto este que é, na realidade, uma síntese de aspectos da obra “O
Sincretismo Iberoamericano”156.

Marzal assume abertamente o que ele chama de “cristianismo sincrético indígena”


para caracterizar as experiências religiosas sul-americanas. Na análise da religiosidade
Quéchua peruana, após o contato com o cristianismo, houve, segundo ele, um progressivo
processo de “sincretização”. Nesse processo, elementos e estruturas religiosas (crenças, ritos,
formas de organização e normas éticas) das duas religiões em contato (no caso, as expressões
“nativas” Quéchuas e, sobretudo, o cristianismo católico) se dialetizaram formando uma
“nova expressão religiosa”157. Para esse autor, quando duas religiões entram em contato,
podem ocorrer, pelo menos, três experiências: 1. Uma síntese, onde elementos das religiões
em contato se fundem perfeitamente criando uma nova religião; 2. Uma justaposição, onde os
elementos religiosos em contato simplesmente se superpõem e ambas conservam suas
identidades originais; e 3. Um sincretismo que, não sendo fusão, é a ascensão de uma nova
religião com elementos formativos das duas anteriores que entraram em contato. Assim, o
processo indica que certos elementos que interagem dialeticamente na “nova religião
sincrética” podem desaparecer por completo ou sintetizar-se com similares da outra religião
ou, por outro lado, são reinterpretados, assumindo um novo significado. Marzal afirma que
isso não ocorreu somente com a religião Quéchua, mas também com a religiosidade Aimara
boliviana e os Guarani paraguaios e brasileiros, por exemplo (MARZAL, 1988, p. 175-9).

156
Para maiores informações biográficas e da produção intelectual de Marzal conferir no site:
<http://www.webpages.ull.es/users/fradive/confe/marzal>. Acesso: 20 de abr. 2006.
157
MARZAL, M. A Religião Quéchua Sul-Andina Peruana. In: MARZAL, M. (org.). O Rosto Índio de Deus,
p. 198.
152

É importante ressaltar que os contatos entre os Quéchuas e os projetos missionários


católicos não aconteceram de forma contínua e homogênea. No século XIX houve, segundo
Marzal, uma espécie de “vazio” católico na cultura Quéchua após os séculos anteriores de
contato. Assim, os líderes religiosos autóctones tiveram que recorrer à sua tradição religiosa
original para redefinir “seu cristianismo”: “[...] Esta liberdade, que não tiveram em sua
primeira evangelização, veio quando os referidos povos indígenas já haviam sido
fundamentalmente cristianizados e assim o resultado não foi a restauração radical das
religiões indígenas originais, mas antes a „indianização‟ do cristianismo” (MARZAL, 1989, p.
30). Esse fato é fundamental para a análise de Marzal, uma vez que é a partir daí que se
instaurou definitivamente o processo sincrético já afirmado, ou seja, este “cristianismo índio”
seria, se a análise estiver correta, a “nova religião” sincrética que surge das interações
culturais. Isso encaminha Marzal à conclusão que o “rosto índio” de Deus não se dá tanto
através da inculturação promovida pelos missionários, mas pelo sincretismo operado pelos
indígenas, “[...] para tornarem mais compreensível a mensagem cristã recebida e para
conservarem certos traços religiosos autóctones duradouros” (MARZAL, 1989, p. 30).
Todavia, antes de pensar que Marzal prefere a categoria de sincretismo em detrimento do
clássico conceito de inculturação do Evangelho, é preciso entender que o sincretismo é o
caminho inverso ou o outro “lado da moeda” dos processos de inculturação da fé. De forma
direta, se é possível entender a inculturação da fé, nas palavras de Marzal, como o esforço
sistemático e consciente dos evangelizadores para traduzir a mensagem universal do
Evangelho para as categorias culturais da sociedade evangelizada, o sincretismo mudaria de
perspectiva: é o processo, através do qual, os evangelizados (os indígenas, no caso) procuram
reter seus próprios traços religiosos enquanto não se opuseram aos cristãos e revestir os traços
cristãos aceitos com as categorias religiosas autóctones, conforme afirmado na citação direta
anterior158.

A partir dessas idéias é possível levantar algumas questões para a análise. Estaria
Marzal sugerindo que o sincretismo é uma “repaginação” do conteúdo cristão frente a novas
formas culturais indígenas? Não seria isto mais inculturação do que sincretismo propriamente
158
Não há o objetivo de fazer amplas discussões sobre o tema da Inculturação nesta tese. É possível remeter a
três textos que podem ser úteis: SUESS, P. (org.). Culturas e Evangelização, 1991; SUESS, P. Evangelizar a
partir dos projetos históricos dos outros. Ensaio de Missiologia, 1995; FORNET-BETANCOURT, R.
Religião e interculturalidade, 2007. Fornet-Betancourt, por exemplo, reconhece a importância do conceito de
inculturação para a própria renovação da Teologia em “[...] universalizar a fé cristã de maneira culturalmente
diferenciada”, mas torna-se muito crítico a esse conceito por ainda enxergar no mesmo uma ação interventora
do Cristianismo nas culturas onde “[...] essas são mais objetos de transformação que como sujeitos em
igualdade de condições e direitos de interação”. Cf. FORNET-BETANCOURT, R. Religião e
Interculturalidade, p. 40; 42.
153

dito? Poderíamos imaginar que esta compreensão de sincretismo aproxima-se do exposto pelo
teólogo Antonio Magalhães, uma vez que esse autor afirma o sincretismo como o “produto
final” de um processo de anúncio numa mediação cultural específica (o que caracterizaria a
inculturação). Mas este produto final gera novos “começos”, novos processos, nunca
acabados159. Ainda mais que esse sincretismo foge do controle, tanto do missionário, quanto
do receptor da mensagem: “[...] Deste confronto/diálogo surge uma reelaboração da
mensagem cristã a partir de mudanças, não somente nas suas formas, mas também nos seus
conteúdos”160. A possível crítica elaborada é: a alteridade indígena se justifica nos processos
de inculturação somente na capacidade que os mesmos têm de entenderem a fé cristã dentro
de seu universo simbólico, pois é o cristianismo, no final das contas, que toma a iniciativa e
inicia o movimento, não tendo maiores preocupações com o fato de que o próprio cristianismo
é afetado e reelaborado pelas religiosidades indígenas. Haveria ainda, no pensamento de
Marzal, um sacrifício de sua “dialética sincrética” no altar do dualismo sujeito (igreja e
missionários cristãos) versus objeto (religiões e culturas indígenas não cristãs)? Haveria ainda
resquícios de pensamento dicotômico entre religião cristã e cultura que coloca, por sua vez, o
Evangelho como uma realidade que chega “de fora” da própria cultura?161 São análises
perspectivas que ajudam a entender melhor que tipo de método teológico Marzal constroi.

De toda forma é salutar destacar que Marzal se esforça para trazer para a discussão
epistemológica e prática/teológica a noção de sincretismo entre as culturas indígenas e o
cristianismo. Não se deve diminuir esse mérito, principalmente porque não são muitos que
procuram fazer esse diálogo específico. Mas é importante insistir que o cristianismo que
encontra as culturas indígenas são vários, ou seja, cristianismos. O inverso também se
verifica: quando os muitos catolicismos e protestantismos encontram os Quéchuas ou
qualquer outra cultura indígena sul-americana, não é possível que já encontrem estes
indígenas elaborando seus “sincretismos e diacretismos” nos seus processos religiosos e
culturais? E as “faces cristãs” que encontram estas culturas indígenas não chegam, pelo
menos em parte, “sincretizadas e diacretizadas”? As relações sincréticas e diacréticas não se
reduzem à interação e/ou “produto final” entre dois sistemas religiosos que, antes do contato,
159
Para as ideias de Magalhães acerca da interpretação teológica do sincretismo religioso ver o primeiro capítulo
desta tese em sua seção 1.3.
160
MAGALHÃES, A. C. de M. Sincretismo como tema de uma teologia ecumênica. In: Estudos de Religião.
São Bernardo do Campo: UMESP, ano XII, n. 14, julho de 1998, p. 68.
161
Seria sintomático que em sua obra “O sincretismo iberoamericano” após, na terceira parte, trabalhar com o
sincretismo religioso em perspectiva antropológica, Marzal chega ao ponto teológico que realmente parece lhe
interessar, na última parte da obra, que é a discussão da inculturação da fé no nível das crenças, ritos,
organização e conduta ética das religiosidades por ele analisadas: comunidades andinas, mayas e afro-
brasileiras. Estaria o sincretismo visto em função ou preparação para o advento da inculturação?
154

eram estanques e “monolíticos”. Quem sabe as relações sincréticas e diacréticas, para resgatar
questões do primeiro capítulo, tornam-se metáforas, na ordem do discurso significativo, para
traduzir condições humanas religiosas em movimento que, desde sempre, enxergaram-se
múltiplas. Conquanto tenha sua valia, Marzal não deixa de estar situado em “quadros
tipológicos” que caracterizam o fenômeno sincrético, bem comum em análises
antropológicas. Para cobrir a complexidade e especificidade das interações religiosas, nomeia-
se o sincretismo de “paralelismo”, “justaposição”, “síntese”, “adição”, “fusão”, “bricolagem”,
“marronização”, “hibridação” e outros conceitos dentro desta “dança das metáforas”
(conforme o primeiro capítulo da tese), algumas destas metáforas utilizadas por Marzal.
Muito embora essas metáforas podem traduzir, também, as disjunções e rupturas típicas do
que se nomeia por diacretismo. Esses tipos são importantes, afinal, na citação do antropólogo
Sergio Ferreti:

O sincretismo pode ser visto como característica do fenômeno religioso.


Isto não implica desmerecer nenhuma religião, mas em constatar que, como
os demais elementos de uma cultura, a religião constitui uma síntese
integradora englobando conteúdo de diversas origens. Tal fato não diminui
mas engrandece o domínio da religião, como ponto de encontro e de
convergência entre tradições distintas162

Embora, para o autor desta tese, haja dificuldades com essa idéia de “síntese
integradora” em se tratando de sincretismo, é plausível utilizar os conceitos acima para
caracterizar a complexidade das interações de “conteúdos (e não apenas formas) de diversas
origens” que expressam profundas ressemantizações de sentido, de acordo com o que afirma
Ferretti.

3.1.2.2 Sincretismo como inclusivismo? Diálogos com Graciela Chamorro

A historiadora e teóloga paraguaia Candida Graciela Chamorro Argüello, residente há


muitos anos no Brasil, intercalado por um período em que trabalhou na Alemanha (na
Universidade de Hamburgo), têm longa experiência de convívio e pesquisa com comunidades

162
FERRETTI, S. F. Sincretismo Afro-Brasileiro e Resistência Cultural. In: CAROSO, C. & BACELAR, J.
(orgs.). Faces da Tradição Afro-Brasileira. Religiosidade, Sincretismo, Anti-Sincretismo, Reafricanização,
Práticas Terapêuticas, Etnobotânica e Comida, p. 114.
155

indígenas Guarani163, mais especificamente com as comunidades Kaiowá e Ñandeva do Mato


Grosso do Sul e os Chiripá e M‟byá do Rio Grande do Sul. Foi o contato de vários anos com
esses grupos, suas narrativas religiosas e expressões de espiritualidade, que ela procurou
analisar teologicamente em sua tese doutoral intitulada “Papa tapia rete marangatu: que
nossos corpos tenham sempre algo bom para contar”, publicada com o título: “A
Espiritualidade Guarani: Uma Teologia Ameríndia da Palavra” (1998). Antes disso, sua
dissertação de Mestrado em História foi publicada com o título “Kurusu ñe‟ëngatu [A boa
palavra da cruz]: Palavras que la historia no podrìa olvidar” (1995). Mais recentemente a
autora fez uma releitura de sua tese na obra “Terra Madura. Yvy Araguyje: Fundamento da
Palavra Guarani” (2008).

Em sua “Teologia Ameríndia da Palavra”, o próprio título “denuncia” seu objetivo: ao


partir da premissa de que a cultura e, em particular, a religião Guarani está centrada no
conceito-existência „palavra‟, a autora, em seu texto, pretende “descrever, a partir das
categorias indígenas e através da linguagem teológica, a experiência religiosa dos grupos
guarani e de considerar, com base na já mencionada preponderância da palavra nesses grupos,
a possibilidade de um diálogo entre religião indígena e cristã” (CHAMORRO, 1998, p. 22).
Eleger a categoria da Palavra como eixo de pesquisa não é novidade em se tratando das
comunidades Guarani. Essa perspectiva já se encontra amplamente presente em estudos
clássicos da cultura Guarani, tais como o texto “Ayvú rapytá [Fundamento da palavra ou
palavra fundamental]: textos míticos de los Mbyá-Guaranì del Guairá”, de León Cadogan e
os textos de Bartomeu Meliá164, autores estes que Chamorro não esconde seu tributo. Assim, a
novidade posta por essa teóloga é, justamente, tentar “sistematizar” o campo semântico em
torno dos muitos significados da “Palavra” Guarani, ou seja, entendê-la em seus aspectos
163
Segundo a própria autora, os primeiros contatos com indígenas no Brasil ocorreram nos idos de 1983 com as
comunidades Kaiowá da região de Dourados, MS. O envolvimento posterior com o CIMI (Conselho
Indigenista Missionário) e o GTME (Grupo de Trabalho Missionário Evangélico) aprofundaram as
perspectivas pastorais, teológicas e antropológicas da autora. Cf. CHAMORRO, G. A Espiritualidade
Guarani, p. 13-5. Ver também CHAMORRO, G. Terra Madura, p. 20-1.
164
Tais como “A Experiência Religiosa Guarani” In: MARZAL, M. (Org.). O Rosto Índio de Deus, 1988, “El
Guarani: experiencia religiosa”, 1991, e seu clássico, já citado, “El guarani conquistado y reducido; ensayos
de etnohistoria”, 1986. O próprio Meliá reconhece sua profunda dívida para com Cadogan onde, em entrevista
“auto-biográfica”, afirma: “Para mim ele [Cadogan] era uma pessoa muito respeitável e grande, um grande
pesquisador.[...] Acho que é justo dizer que houve entre nós uma espécie de simpatia, amor à primeira vista!”
[...] Deste modo estes pesquisadores [referindo-se também a Kurt Nimuendajú] puderam desvendar o
fundamento da cultura guarani, que é a religião. Além disso, as obras menores de Cadogan tratam de outros
temas que também são muito importantes porque contém dados valiosos. Mas a grande experiência ficou
registrada no Ayvu Rapytá, de 1954. Hoje é um clássico da literatura e da antropologia do século xx”. Cf.
MALINOWSKI, M. I. & BATISTA, S. Bartomeu Meliá: Jesuíta, Lingüista e Antropólogo. Os Guarani
como compromisso de vida. Disponível em
<http://calvados.cesl.ufpr.br/ojs2/index.php/campos/article/viewFile/1641/1383> Acesso em: 14 de abril de
2006.
156

profético, mítico-cosmológico e sacramental (Palavra ritualizada), em diálogo com a


revelação de Deus em seus temas já classicamente conhecidos: profecia, teo-antropologia,
criação, pecado, soteriologia e liturgia. Assim, na análise teológica da interação entre teologia
Guarani e teologia Cristã a autora afirma:

“Palavra” é o fundamento dos seres, a unidade vital, como pneuma e ruah na


linguagem do Novo e do Antigo Testamentos. Aplicada aos seres humanos,
“palavra” é análoga aos termos hebraico e grego nephesh e psychê, que
designam o indivíduo integralmente. Os seres humanos se entendem como
palavra divina sonhada e encarnada. A palavra é, assim, um tecido divino,
comum entre os humanos e as divindades. Mas a palavra é também a energia
básica (o murmúrio) que origina todos os seres. A irmã ou esposa interior, a
alma. Ela é a categoria que dá conta de explicar como se trama o modo de ser
indígena, nas diversas instâncias da existência e qual é a experiência que os
Guarani fazem do sagrado (CHAMORRO, 1998, p. 195)

Assim, traçando analogias temáticas com a teologia cristã, Chamorro vai construindo
seu exercício dialógico. Porém, é preciso perguntar “qual” teologia Guarani da palavra ela faz
referência. A resposta possível está relacionada com as experiências de fé míticas e ritualizada
das diversas parcialidades Guarani, nomeadamente: Kaiowá, M‟byá e Ñandeva. Certamente
que a “teologia da palavra” é um importante fio condutor para a compreensão das diversas
experiências religiosas destes grupos Guarani. Todavia, mesmo sendo Guarani, é preciso
pensar nas muitas especificidades que estes povos guardam hoje e em contextos amplamente
diferenciados, principalmente após séculos de enfrentamentos coloniais. Assim, é necessário
ser mais problematizado a possibilidade do paradigma da “sistematização teológica” aplicado
às interpretações que estes indígenas têm de sua relação com o sagrado a quem eles devotam
suas relações de sentido. Por exemplo: ao pensar, principalmente, nos tipos de teologias que
podem surgir do encontro entre os Guarani e Kaiowá e os pentecostais atualmente
(principalmente porque são grupos muito disseminados e fragmentários dentro da TID), é
possível pensar que estas aproximações ocorrem, também, porque as interpretações dos dados
de fé “revelados” são fugidios, cheios de equivocidades, escapando a certos enquadramentos
sistematizadores.

Se é possível e pertinente fazer a pergunta pela “teologia indígena”, há também a


pergunta por qual teologia cristã entra no diálogo com essa teologia indígena. Nesse sentido,
Chamorro responde:

[...] Partindo de uma prática antropológica que procura compreender o outro


nas próprias categorias nas quais o outro se entende, eu não poderia me
157

aproximar teologicamente dos Guarani apenas pelo caminho inclusivista.


Também _ ou principalmente _ teria que fazê-lo pelo paralelismo. Nesse
sentido, a religião indígena é vista como algo cuja plenitude não depende de
uma confirmação que o cristianismo lhe possa conceder (CHAMORRO,
1998)

Sem dúvida que, na reflexão sobre o “outro” na citação, Chamorro tenta, de forma
importante, resguardar sua alteridade e riqueza própria. O que ela chama de atitude
“paralelista” ou “pluralista” é o reconhecimento teológico de que todas as religiões conduzem
ao absoluto165. Cada uma das experiências religiosas é plenamente dotada de condições
salvíficas sem a chancela cristã. Isso vale para as experiências religiosas indígenas. Ao citar o
teólogo indiano Michael Amaladoss em seu texto intitulado “O pluralismo das religiões e o
significado de Cristo”, Chamorro afirma que todas as religiões são “teocêntricas” (incluindo
as indígenas). Nessa perspectiva o absoluto é nomeado pelo “theós”. Ainda que este termo
possa ter caráter mais vago, o que não é o caso das nomeações das divindades indígenas, não
parece aqui surgir certa “nostalgia” das nomeações sagradas de corte mais cristão? E o
sincretismo e diacretismo, conseguem lidar bem com os “centrismos”? É possível ilustrar a
linha de pensamento afirmada com o seguinte raciocínio da própria autora: partindo do fato de
que a “teologia guarani” é uma profunda reflexão sobre a vida e sobre o ser humano na sua
significação divina166, o que parece muito correto e desafiador, a “palavra” guarani, o dizer
como existência-evento/acontecimento é:

[...] ao mesmo tempo, metafórica e abstrata e, também, concreta e real [...]


Nesse sentido, a profusão de divindades e espíritos tanto poderia ser um
recurso da „cosmogonia metafórica que personifica as formas do dizer‟
quanto um resultado da coabitação do religioso com o social. O esforço dos
indígenas por integrar suas divindades em um único sistema nos sugere que
sua teologia seja do tipo monoteísta inclusivo (CHAMORRO, 1998)

Parece que esse esforço de “integração das divindades” seja menos dos indígenas e
mais do discurso teológico em questão construído pela referida teóloga. Amparando-se em
Paul Tillich ela vai afirmar que “Deus” é o nome que damos a tudo aquilo que nos preocupa
de forma última, incondicional. Assim, uma afirmação é teológica se coloca a pergunta

165
Pelo menos enquanto experiência de sentido e não “absoluto”, necessariamente, enquanto “ser”, como uma
“substância hipostatizada” da realidade.
166
Há uma inspiração marcante aqui nas ideias de Bartomeu Meliá quando este afirma: “Não seria cada guarani,
no estado atual em que o vemos se desenvolver religiosamente, uma „consciência de divindade‟, verdadeiros
„homens-deuses‟?”. Cf. MELIÀ, B. A experiência religiosa Guarani. In: MARZAL, M. (org.). O Rosto Índio
de Deus, p. 334.
158

decisiva sobre nossa existência. Logo, os nomes das divindades indígenas são “metáforas”
que tentam representar (Tillich diria „simbolizar‟) o fundamento, a substância, o incondicional
que se “esconde” atrás das formas culturais. Chamorro afirma, também, que as divindades
indígenas não perdem sua identidade própria para uma divindade exclusivista, pois elas estão,
metaforicamente, em uma relação “pericorética”, interativa, a modo da teologia das relações
trinitárias de Jürgen Moltmann167. Conquanto deva haver o reconhecimento, de forma muito
significativa, da linguagem metafórica como expressão das vivências religiosas indígenas,
Chamorro tem todo o direito de partir destes referenciais teológicos cristãos. Mas a questão é
a seguinte: é possível que ela, no final das contas, retorna para uma proposta inclusivista, pois
termina atestando as teologias guarani segundo paradigmas teológicos cristãos? É o que
parece quando, à pergunta “que teologia?” ela se ampara, além dos teólogos citados
anteriormente (Tillich e Moltmann), em Leonardo Boff, Karl Rahner e Rosemary Ruther.
Assim, a pergunta que poderia ser feita a Chamorro é: até que ponto esses teólogos e teólogas
vão além de um inclusivismo se estão centrados no evento Cristo? No plano da construção do
discurso a fim de interpretar as experiências religiosas, quem inclui quem? Novamente a
questão da alteridade é posta em relevo.

Por outro lado, na análise é possível perceber que Chamorro tem uma leitura muito
implicada pelas causas indígenas, suas lutas e possibilidades, a ponto de enxergar na teologia
guarani as “chaves hermenêuticas” esquecidas (os “elos perdidos”) por uma teologia cristã
que, nas suas prisões dogmáticas, fechou portas “[...] pela intolerância e por um certo tipo de
teologia que fortaleceu um cristianismo autocompreendido como organização eclesiástica
monocultural e agressiva” (CHAMORRO, 1998)168. É certo que esse tipo de cristianismo
opressor jamais se colocará em uma autêntica escuta e participação para com a riqueza

167
Para o teólogo alemão Jürgen Moltmann a pericórese, termo grego que pode ser traduzido por
“interprenetração”, “envolvimento recíproco”, caracteriza as relações trinitárias entre o Pai, o Filho e o Espírito
Santo, bem como as relações desse Deus trinitário com toda a sua Criação. Procurando superar leituras
subordinacionistas e modalistas da Trindade que tem, por sua vez, como ponto de partida a unicidade
metafísica de Deus, Moltmann parte da idéia de diversidade como constitutiva da divindade. Todavia, para não
recair em uma leitura “triteísta” da divindade, o que macularia a leitura monoteísta do Cristianismo, Moltmann
afirma que a diversidade não elimina a unidade essencial entre as pessoas da Trindade mantida pelo vínculo do
amor. De acordo com o próprio teólogo: “Nós seguimos a teologia joanina e aceitamos a pericórese recíproca
do Pai e do Filho e do Espírito como imagem original de todas as relações na criação e na salvação que
correspondam à relação divina (Jo 17,21). [...] Consequentemente, também não entendemos a relação do Deus
uno e trino para com a criação do seu amor como sendo uma relação unilateral de domínio, mas, com vistas à
riqueza desse amor eterno, como uma relação de comunhão polilocal e assim então também recíproca.” Cf.
MOLTMANN, J. Deus na Criação. Doutrina Ecológica da Criação, p. 368.
168
O que pode (e não necessariamente deve) engendrar uma utopia sem fundamento, pois pode mascarar os
conflitos, muitas vezes violentadores a que esses grupos indígenas foram submetidos. A não ser que sejam
analisadas mais detidamente as táticas e estratégias indígenas que os levam a construir essas chaves
hermenêuticas diante de grupos hegemônicos como os cristãos.
159

religiosa dos povos Guarani. Também é digno de nota o esforço da referida teóloga em
destaque para mostrar que não é somente a religião Guarani que se enriquece com o
Cristianismo, mas o contrário também se verifica. Todavia, será que não há o risco oposto, ou
seja, que a alteridade teológica cristã fique “tutelada” pela teologia Guarani? Em outras
palavras: o cristianismo somente recuperará o que aparentemente lhe é próprio se passar pela
“depuração” da teologia indígena? Não se insiste ainda em uma dicotomia entre teologia
cristã e Guarani? O sincretismo e o diacretismo não são uma possibilidade epistemológica de
superar essa dicotomia, de ressignificar esses aspectos? Claro que toda produção teológica
depende, também, das condições históricas e políticas de sua produção. Nesse sentido mais
concreto e prático não é possível pensar uma teologia cristã, qualquer que seja, “tutelada” por
“teologias Guarani”, uma vez que, historicamente, o Cristianismo, em relação às religiões
indígenas, sempre foi hegemônico e dominante. O que se quer dizer com a crítica posta, em
outras palavras, é o seguinte: nos termos de uma hermenêutica teológica, o cristianismo
somente recuperará o que aparentemente lhe é próprio (experiência do respeito, do diálogo, da
reciprocidade e solidariedade) se passar pela “depuração” de uma teologia indígena? É
preciso ficar mais claro quando propostas inclusivistas e “paralelas” significam horizontes de
diálogo interpretativo ou se convertem em uma mea culpa por séculos de dominação
religiosa.

É importante concordar parcialmente com Chamorro quando ela afirma que, nos
vários séculos de colonização cristã frente aos povos indígenas Guarani, somente estes
últimos estavam interessados no diálogo. A concordância é parcial porque é possível enxergar
que várias comunidades Guarani, seja no período colonial, sejam em períodos considerados
“pós-coloniais”, também não estiveram interessadas nesse diálogo. Todavia, este
“desinteresse” não deve ser visto de forma necessariamente depreciativa das comunidades
indígenas, pois pode muito bem traduzir criativas reações a muitas imposições a que essas
mesmas comunidades foram submetidas. Chamorro enfatiza bastante certa “positividade” da
religião Guarani que “nubla” um pouco as ambigüidades religiosas destes povos. Assim, em
uma raríssima menção ao termo, ela afirma que é necessário que o cristianismo reconheça e
assuma as “práticas sincréticas que estão na sua própria origem”, a fim de que se estabeleça o
diálogo (CHAMORRO, 1998, p. 198). A pergunta direta é: somente o cristianismo deve
reconhecer seu “fundamento” e práticas sincréticas? E a religião Guarani, não deve ser
enxergada nessa perspectiva sincrética também? Chamorro não desenvolve esse aspecto,
muito embora reconheça o sincretismo nas origens da formação do Cristianismo, o que não é
160

pouca coisa, ainda que não extraia maiores implicações dessa afirmação. É possível que
estimule essa tarefa em seus leitores e leitoras. Reconhecer uma “originalidade sincrética”
(acrescentaria, diacrética) implica, por exemplo, no reconhecimento de que os múltiplos
contatos interculturais e religiosos se fazem muito mais que no reconhecimento das diferenças
de alteridade, mas de uma “alteridade das diferenças”, de que a experiência religiosa é, em
seu âmago, uma privilegiada testemunha.

Para finalizar, parece que o sincretismo (se mais descritivo, como em Marzal, se mais
“adjetivado”, como em Chamorro), nessa breve “amostragem” teórica nesta subseção, não
encontra maior espaço em uma antropologia e teologia da religião indígena. Nesses autores a
categoria de sincretismo possui autonomia epistemológica, no máximo, para subsidiar o que
realmente interessa: referendar processos de inculturação da fé (Marzal) ou como
“preparação” para uma atitude de “incluir” temas clássicos da teologia cristã como referência
última para o diálogo com a tradição Guarani (Chamorro). Um ñande reko (que significa
“jeito de ser”) Guarani “sincrético”, pelo menos hoje, pode até ser pressuposto por este autor
e autora, mas será “superado” por análises que rejeitam o sincretismo como categoria
epistêmica própria, em função das categorias classicamente consagradas (inclusivismo e
pluralismo), do ponto de vista teológico. Após essas discusões teóricas, encaminha-se a
última subseção da primeira seção do referido capítulo: uma apresentação panorâmica do
estudo de caso que informa a parte final dessa tese: o contexto vivencial do projeto da IIP.

3.1.3 Espaços e lugares da Igreja Indígena Presbiteriana: breve cenário da pluralidade cristã
na Terra Indígena de Dourados

Após as discussões anteriores sobre interpretações antropológicas e teológicas acerca


da experiência religiosa indígena Guarani é necessário, agora, delinear o quadro mais
específico da situação da presença das Igrejas cristãs na TID na atualidade. Em especial,
“mapear” a mobilidade das comunidades que compõem o projeto da IIP como dimensão
importante para compreender as relações sincréticas e diacréticas formuladas pelos indígenas
Guarani e Kaiowá, enquanto lugar de mediação das configurações religiosas. Praticamente
todos os estudos que focam a etnografia dos Guarani e Kaiowá na TID passam pela tentativa
de pontuar as ações de agentes religiosos heteróclitos (não tradicionais) a esses mesmos
indígenas mas que, de fato, compõem o campo de interação de sentido vivido por eles
161

(THOMAZ DE ALMEIDA, 2001, p. 32-9; BRAND e VIETTA, 2004, p. 227ss; PEREIRA,


2004, p. 278ss.; ALCÂNTARA, 2007, p. 114ss.; CHAMORRO, 2009, p. 1-8).

Os antropólogos Roberto Cardoso de Oliveira e Egon Schaden, em suas incursões nos


anos 50 do século XX na TID para pesquisarem sobre os Terena e Guarani, respectivamente,
mencionavam as relações que os indígenas estabeleciam com a “Missão Evangélica Caiuá”,
de tradição protestante. Tanto um como outro enfatizavam as benfeitorias sociais,
principalmente na área de saúde operacionalizada pela Missão que, no campo religioso,
instituía um novo código social, os chamados indígenas “crentes”, ou seja, convertidos à
lógica do missionarismo cristão implantado pela referida Missão. Essa auto-percepção como
“crente” levava os indígenas a renegociarem as próprias fronteiras étnicas, uma vez que um
Terena, por exemplo, passava a reconhecer um Kaiowá como “irmão na fé” ou “irmão em
Cristo”, ao mesmo tempo em que desqualificava um outro indígena da mesma etnia por não
ser “crente”. Começava a imperar certo “faccionalismo religioso”, no dizer de Cardoso de
Oliveira (1976, p. 87)169. Schaden, possivelmente em função da afirmação da religião
tradicional como núcleo de resistência da identidade étnica, afirmava que os indígenas
assistiam “a reuniões de culto protestante que ali se realizam” [em referência à Igreja da
Missão] mas que, mesmo assim, não deixavam de participar da maioria “das festas religiosas
tradicionais” (SCHADEN, 1969, p. 129). Não se pode esquecer que, por essa época, a
presença religiosa da Missão Evangélica Caiuá, dentro da TID, ainda era diminuta. O
reverendo presbiteriano Benjamim Bernardes, que dirige a Missão Caiuá desde 1985,
informou-me que, nessa época (início da segunda metade do século XX), a Missão possuía
apenas 4 Congregações dentro da TID e que, além delas, apenas mais dois trabalhos
protestantes que iniciaram vários anos depois: a Missão “Tapeporã”170 (desde 1971), da Igreja
Metodista, na Aldeia Bororó e a Congregação em torno da família extensa do pastor Ângelo
Massi, já falecido, na aldeia Jaguapirú, Congregação essa que já não existe mais171. Portanto,
ainda não se verificava as múltiplas tendências em termos e presença de Igrejas nas duas

169
Em uma perspectiva etnográfica é interessante fazer um estudo, dentro de uma antropologia das missões
cristãs, como os indígenas ressignificam os termos “crente” e “irmão”, segundo a lógica dos termos de
parentesco próprios ao seu universo cultural tradicional. O que há aqui é a apropriação, em ato, de novos
termos de parentesco na ordem de discurso desses indígenas. Assim, todas as relações dentro da família
extensa, principalmente com o cabeça de parentela, passam por novas compreensões quando a idéia de
“crente” e “irmão” torrna-se um dos critérios para definir o papel das lideranças envolvidas.
170
O termo guarani Tapeporã pode significar “Caminho bonito, belo”.
171
O encontro com o Reverendo Benjamim Bernardes ocorreu no primeiro semestre de 2010. O pastor indígena
Ângelo Massi pertencia à denominação Batista. Mas seu trabalho era independente, ou seja, sem o apoio
formal das Juntas Missionárias da referida denominação. Ainda hoje há parentes do pastor Ângelo que residem
na aldeia Jaguapirú, em Dourados.
162

aldeias de Dourados como se verifica hoje, muito embora as comunidades pentecostais


começassem a marcar presença na TID desde fins dos anos 70, mas também de forma
diminuta (BRAND e VIETTA, 2004, p. 241).

Ao verificar a literatura mais contemporânea, como a referendada pelo antropólogo


Rubem Thomaz de Almeida (2001), o mesmo faz uma breve análise do trabalho desenvolvido
por diversas agências religiosas na TID, além da Missão Caiuá172. A esta (referente à Missão
Caiuá), juntamente com as perspectivas da “Missão Alemã” (Deutsch Indiaaner Pioneer
Mission), Thomaz de Almeida qualifica como missões representantes “[...] de uma estratégia
fundamentalista tradicional e uma forma clássica de relacionar-se com os indígenas, calcando
sua ação junto aos índios no proselitismo e na fé cristã, eminentemente assistencialista”
(THOMAZ DE ALMEIDA, 2001, p. 35). Em que pese a possível leitura teológica
fundamentalista da vida e da relação com as culturas não cristãs que possam informar as ações
da Missão Caiuá, Thomaz de Almeida tenta, a seu modo, desqualificar o trabalho religioso
dessa agência missionária ao reafirmar a „inconstância da alma selvagem”173. Isso significa,
para esse antropólogo que, de um momento para o outro o “índio crente” deixa de sê-lo,
desnorteando as ações missionárias “[...] de sorte que se observa permanente reciclagem em
grande parte dos „convertidos‟”, ou seja, ocorrendo muitos “casos de reversão”, voltando aos
seus hábitos e costumes (THOMAZ DE ALMEIDA, 2001, p. 37; 38). Talvez desqualifique,
também, a alteridade indígena porque insiste que a “reversão” é um retorno para as práticas
tradicionais. Não necessariamente. Todavia, ainda que seja, o “retorno” já não é o mesmo
caminho, pois instaura lógicas e interesses outros.

Na realidade esse “retorno” é um caminho de mediação profundamente ambíguo,


merecendo ser interpretado conforme as heterologias propostas por Certeau, por exemplo. O
ser ou não ser “crente” pode implicar em condutas “táticas” que rearrajam o universo de
sentido indígena quando se vê na situação de habitar um espaço estratégico que ainda não lhe
é próprio. Não que se queira negar as “reversões” ou os “desvios”, pois o autor dessa tese
ouviu vários interlocutores indígenas afirmarem o seguinte: “Aqui na aldeia tem muito índio
desviado, que não fica firme na Igreja!”. Os “desvios” acentuam-se quanto maiores forem as
fronteiras e a multiplicidade de tendências cristãs dentro das aldeias. Cabe aqui a percepção

172
Thomaz de Almeida menciona os trabalhos do Conselho Indigenista Missionário - CIMI, pertencente à Igreja
Católica, que possui uma sede regional na cidade de Dourados e a já citada “Missão Tapeporã”. Cf. THOMAZ
DE ALMEIDA, R. F. Do desenvolvimento comunitário à mobilização política..., p. 32.
173
Em referência ao texto e expressão do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, não obstante o sentido dado
por Viveiros de Castro, como metáfora para a sua teoria do “perspectivismo ameríndio”, foge à conotação dada
por Thomaz de Almeida.
163

certeauniana de que essa experiência da “reversão” e do “desvio” implica que os indígenas


Guarani e Kaiowá vivem sua experiência religiosa “[...] por um lado, as lentidões, as
latências, os atrasos que se acumulam na espessura das mentalidades, certezas e ritualizações
sociais [...] Por outro, as irrupções, os desvios, todas essas margens de uma inventividade
[...]” (CERTEAU, 2005, p. 239). De fato, a expressão “desviado”, na fala de vários indígenas
cristãos, tem uma conotação negativa no sentido de expressar um juízo moral sobre as
experiências religiosas do outro. Nesse caso o “desviado” é aquele que saiu da Igreja e
retomou, principalmente, para uma “vida de pecado” (principalmente atrelado a usos e
costumes de algumas práticas como beber e fumar). Mas o “sair da Igreja”, no contexto da
multplicidade de Igrejas na TID, pode significar a caminhada por várias outras Igrejas. Nesse
caso os “desvios”, para vários indígenas, indica, paradoxalmente, o encontrar outros
caminhos, inclusive o caminho de volta, seja para a Igreja de origem, seja para tradições que
não sejam cristãs. Embora nunca se volta da mesma forma. Assim, o “desviado” pode ser o
“reverso” do qual fala Thomaz de Almeida. Ao instaurar esses “múltiplos caminhos”, a
experiência do “desviar-se” acaba estruturando, de certa forma, as práticas sincréticas e
diacréticas. Do ponto de vista mais antropológico, a categoria “desviado” instaura novos
termos de parentesco dentro das relações religiosas instituídas. Não é possível falar do
“desviado” sem a referência ao ser “crente” e “irmão”. Nesse caso o “desviado” é o “não-
crente”, o “não-irmão”, o que, dentro das relações de parentesco estruturadoras de várias
Igrejas, indica a possibilidade de fragmentação e perda de redes de alianças, principalmente se
o “desviado” for um cabeça de parentela. O que pude constatar no campo de pesquisa é que
dificilmente um único indígena se “desvia”. Em boa medida, sua família extensa (ou parte
dela), “desvia-se” junto. Isso torna a relação entre os indígenas nas Igrejas mais complexas,
levando-os a redes de negociações de bens simbólicos muito cotidianamente, a fim de
recompor as redes de alianças estabelecidas.

A partir dessas reflexões é importante voltar a análise, agora, para a presença mais
específica das várias faces cristãs na TID. Ao comparar os dados de campo de Alcântara
(2007) e Chamorro (2009) com os do auto dessa tese oriundos de várias inserções na TID ao
longo do processo da pesquisa, é possível delinear quadros demonstrativos da presença da
pluralidade cristã dentro das duas aldeias, Jaguapirú e Bororó174. Ao observar esses quadros é
possível constatar algumas características e tendências importantes. Vejamos:

174
Veja-se, no Anexo, os quadros 1 e 2. Sobre a relação dessas Igrejas nos quadros em anexo, agradeço aos
indígenas Jayson Souza e Nilcimar Cabrera por me disponibilizarem esse trabalho de levantamento das Igrejas,
164

A. A maior parte das Igrejas são de tradições pentecostais. Essas tradições mostram
alguma variabilidade de Igrejas independentes das mais diferentes nomenclaturas,
embora com certa prevalência da Igreja Pentecostal “Deus é Amor”;

B. Excetuando-se a Missão Metodista “Tapeporã” e o Centro Católico “Nossa Senhora de


Guadalupe”, as Igrejas não atrelam aos seus nomes nenhuma referência explícita a
uma língua indígena nativa. No máximo, agregam o qualificativo “indígena” ao nome
da Igreja, por exemplo, “Assembléia de Deus Indígena” e “Igreja Pentecostal Indígena
de Jesus”. Aliás, essa última é considerada uma igreja “autóctone”, ou seja, criada
especificamente na TID conforme fui informado por um dos pastores da etnia Terena,
que é um dos fundadores dessa Igreja;

C. Os nomes de Igrejas/Congregações “rachuradas” nos quadros em anexo indicam,


justamente, aquelas que compõem o projeto da “Igreja Indígena Presbiteriana” (IIP),
foco principal desse capítulo. Elas não deixam de mostrar a caminhada da Missão
Evangélica Caiuá, uma vez que são o “braço” evangelizador dessa Missão dentro das
aldeias. Note-se que nenhuma delas ainda agrega explicitamente o nome de “Igreja
Indígena”, possivelmente porque a presença dessas Congregações, com seus nomes, é
anterior à formalização desse projeto que, conforme dito, ocorreu em 2008. Importante
destacar que elas são em número de 15 (quinze), o que representa quase ¼ (um quarto)
do total das igrejas listadas que é, por sua vez, de 64 (sessenta e quatro). Embora seja
minoritário, é um número que não pode ser desprezado;

D. Vários nomes de Igrejas repetem-se. Isso ocorre, principalmente, com a Igreja “Deus é
Amor”. Em conversas com interlocutores indígenas é possível constatar que algumas
dessas Igrejas já é fruto do trabalho de outras Igrejas existentes dentro da aldeia, não
sendo uma implantação necessariamente exógena ao limite territorial da TID. Isso será
observado com mais detalhes em relação, especificamente, a algumas Congregações
da IIP que nasceram como projeto autóctone, por exemplo, a “Congregação Hebrom”.
De fato, algumas dessas Congregações, embora tenham sido incorporadas ao projeto
da IIP não surgiram, necessariamente, a partir do referido projeto;

a partir do trabalho desenvolvido por eles e outros indígenas na Ong “Ação de Jovens Indígenas de Dourados –
AJI”. Isso possibilitou comparar com os meus próprios dados de pesquisa coletados por mim no campo. Fica o
registro.
165

E. Observa-se que grande parte das Igrejas já conta com templo próprio, embora algumas
delas ainda “acontecem” dentro das casas das principais famílias extensas que
formaram a referida Igreja. Na realidade, esse é um dado empírico importante que é
constatado na observação de campo. Várias Igrejas que possuem, atualmente, templo
próprio, esse mesmo templo normalmente está localizado no lote de terra de uma das
famílias extensas que fazem parte da Igreja. Nesse sentido, não é incomum ouvir de
vários indígenas, inclusive da liderança da Igreja indígena, algumas falas do tipo: “Na
Igreja/Congregação „tal‟ está a família „tal‟ [...] Eles é que começaram o trabalho
daquela Congregação...”;

F. A distribuição espacial/territorial das igrejas na TID mostra certo equilíbrio, com uma
ligeira vantagem para a aldeia Jaguapirú em relação ao Bororó. Isso pode ser
explicado por alguns fatores, tais como: a maior proximidade da aldeia Jaguapirú com
a cidade de Dourados através da rodovia estadual que a corta, como já mencionado.
Isso facilita o trânsito de pessoas e lideranças religiosas não-indígenas no interior da
aldeia. Além disso, há a presença de uma maior “mestiçagem” entre indígenas e não
indígenas reconfigurando as unidades básicas de relações sociais, como o fogo
doméstico, por exemplo175. Tanto é assim que boa parte das Igrejas da aldeia
Jaguapirú nasceram como fruto da ação de lideranças não-indígenas vindas da cidade
(ainda que com a parceria direta de indígenas), ao contrário da aldeia Bororó, onde
encontramos várias igrejas autóctones, ou seja, que nasceram de lideranças
propriamente indígenas;

G. Percebe-se que, em relação às Congregações que formam a IIP, a maior parte


concentra-se na aldeia Jaguapirú. Por outro lado, a necessidade de criar mais
Congregações no Bororó estimula o quadro de formação de lideranças indígenas que,
inclusive, dominem o idioma Kaiowá, muito presente nessa última aldeia mencionada.
Aliás, o autor dessa tese participou de vários cultos em algumas dessas Congregações,
fruto da pesquisa. Em uma dessas Congregações, situada na aldeia Bororó, quando da
presença de pessoas (indígenas ou não) que não dominavam o idioma Kaiowá, a
liderança da Igreja promovia ações bilíngües: tanto os professores e professoras
indígenas na chamada “Escola Bíblica Dominical” (herança ainda presente em várias
denominações protestantes), bem como nas próprias celebrações nos cultos, as falas

175
Conforme será melhor explicado na próxima subseção desse capítulo (3.2.1).
166

em Kaiowá eram “entremeadas” por falas em português. Isso significa que não havia
somente uma tradução simultânea, mas uma dupla discursividade linguística.

Outras características poderiam ser enumeradas. Nesse caso, a pesquisa de campo é


sempre aberta, crescendo a partir de outros interesses de pesquisa. Todavia, é importante fazer
menção dos dados de outras pesquisadoras que procuraram “mapear” essa presença das
Igrejas cristãs na TID. Uma dessas pesquisadoras é a já citada Maria de Lourdes Alcântara
(2007, p. 115): ao pesquisar em um universo de 6.847 indígenas na TID (o que corresponde
em torno de 50% da população atual) os resultados apontam que 24,32% dos indígenas se
declararam católicos; 24,36% não responderam e 19,79% declararam ser pentecostais. Mesmo
com a TID contando com poucos espaços formais de presença católica em suas aldeias, o
número não é desprezível. Ainda assim a autora não destaca isso em sua análise. Pelo
contrário: afirma que as Igrejas que mais crescem são as pentecostais e que a prevalência
dentro da TID são, justamente, as Igrejas da “Missão Caiuá”, o que parece ir de encontro com
os dados anteriores apresentados em uma leitura comparativa. Todavia, números podem mais
“esconder” do que revelar. Números referentes à participação na “reza tradicional” não
aparecem na pesquisa de Alcântara. Estariam eles nos 24,36% que não responderam? Quantos
entrevistados declararam possíveis duplas ou triplas pertenças a comunidades diferentes, dado
sempre presente nas conversas com vários interlocutores promovidas por essa pesquisa? Pelo
menos, essa seria uma pergunta importante (ainda que não feita diretamente), se há o interesse
pela questão sobre o tema do sincretismo religioso o que, de fato, não é o foco de Alcântara.
Reforçando essa questão, em conversas com diversos líderes de Igrejas do projeto da IIP e
indígenas pertencentes a outras igrejas, a afirmação de uma mobilidade entre diversos
indígenas Guarani e Kaiowá, “perambulando” em várias comunidades/Congregações, se faz
presente: parece que a constante é uma “inconstante”176.

Do ponto de vista antropológico esse tipo de levantamento estatístico suscita


problemas: muitos indígenas Guarani e Kaiowá, principalmente aqueles que apresentam uma
experiência de vida onde construíram sua identidade na tradição de conhecimento nativa,
perguntas do tipo “você têm uma religião?” ou “você freqüenta alguma Igreja?” podem ser de
difícil compreensão. Não se têm uma religião quando a percepção do teko marangatu evoca a
ideia de que toda a dinâmica da vida cotidiana, toda a relação entre os seres humanos (e “não-
humanos”), em toda instância social, é espaço de vivência com os divinos. Assim, não se tem

176
Cf. VIVEIROS DE CASTRO, E. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In:
VIVEIROS DE CASTRO, E. A Inconstância da Alma Selvagem, p. 187.
167

uma religião, mas se “é religião”, no sentido de reproduzir o bom modo de viver de acordo
com a memória simbólica e paradigmática dos antepassados, de acordo com as “boas
palavras” como cerne da Teologia Guarani, para lembrar toda a tradição que vai desde
Cadogan até Chamorro. O termo “marangatu”, consagrado na literatura etnográfica como o
“modo de ser religioso” (em Meliá, por exemplo), na realidade pode expressar a ideia de
“viver sem fim”, “eternamente”, “plenamente”. De fato, como me explicou um indígena
Kaiowá acerca do significado da expressão “Tengatuí Marangatu”, nome dado a uma das
principais escolas que existe na aldeia Jaguapirú: “lugar onde se educa/aprende - Tengatuí
sem fim, plenamente – Marangatu”. Ou seja, o “bom e correto jeito de viver” (no Guarani,
teko porã) atualiza-se e renova-se no teko marangatu177.

Outro aspecto que pode ser percebido nos quadros demonstrativos de presença das
igrejas é a possibilidade de ver nessas igrejas o entrecruzamento de várias fronteiras étnicas.
Graciela Chamorro (2009) procura, em seu levantamento estatístico e empírico sobre a
presença de Igrejas na TID, relacionar essas Igrejas com a questão das etnias presentes na
mesma TID. Essa autora afirma que a Missão Caiuá (nos termos dessa tese, as igrejas que
compõem o projeto da IIP) é orientada para os povos Guarani e Kaiowá. Todavia, em suas
Igrejas, há muitos Terena. Já as igrejas pentecostais tem uma presença Kaiowá maciça. Mas a
autora trabalha apenas a título informativo, nesse caso, não extrai daí maiores implicações.
Esse fato pode ser parcialmente compreendido se for levado em consideração que as ações da
Missão Caiuá, historicamente, iniciaram-se em fins dos anos 20 do século passado, onde a
presença Guarani e Kaiowá era (e continua sendo) majoritária na região sul de Mato Grosso
do Sul (à época, Mato Grosso), com pouquíssimos Terena. Assim, é compreensível o porquê a
Missão Caiuá ter focado seus esforços em relação às etnias Guarani e Kaiowá, algo que foi
mudando, ao longo das décadas seguintes, com o aumento de outras etnias no sul
matogrossense, como os Terena. A afirmação de que nas Igrejas Pentecostais há uma
presença Kaiowá maciça deve ser relativa a que Igrejas pentecostais se faz referência e se
estão presentes nas aldeias Jaguapirú ou Bororó. Nessa aldeia procede a afirmação. Mas
naquela, há várias Igrejas pentecostais com presença maciça tanto de Guarani quanto de
Kaiowá, sem excluir a presença Terena que, embora não seja majoritária, não pode ser
desprezada. Além disso, há que se levar em consideração que alguns troncos/famílias Terena

177
Bartomeu Meliá atrela à noção de teko marangatu uma constituição fundamentalmente religiosa implicado
“[...] pelas crenças e práticas [...], com seus ritos e objetos sagrados. Na conceitualização pai o teko marangatu
é a reprodução, a imitação, o reflexo do modo de ser dos deuses” Cf. MELIÁ, B. et.al. Etnografía guarani del
Paraguay contemporâneo, p. 125. Assim, usa-se muito o termo marangatu como equivalente ao termo
ocidental/latino “religião”.
168

que vieram para a região de Dourados nos anos 60 e 70 do século passado, já vieram com uma
experiência de forte contato com o missionarismo cristão protestante, principalmente aquelas
famílias que vieram da região dos municípios de Miranda e Aquidauana, na região Centro-
Oeste do Estado. Desde o início do século XX com a ação da Missão Inland South American
Mission Union – ISAMU e, a partir de 1972, com a ação da União das Igrejas Evangélicas da
América do Sul – UNIEDAS. Assim, alguns troncos Terena contribuíram para a formação de
algumas Congregações que, posteriormente, foram assumidas pelo projeto da IIP da Missão
Caiuá na aldeia Jaguapirú, por exemplo178.

Retornando à enumeração das características da presença de Igrejas cristãs na TID e


percebendo, justamente, algumas implicações étnicas, o nome de várias Igrejas da IIP pode
mais esconder do que esclarescer. Apesar de serem Congregações da Igreja Presbiteriana, elas
podem muito bem conduzir seus caminhos, liderados pelos pastores indígenas a perspectivas,
por exemplo, mais “avivamentalistas/carismáticas” e pentecostais. Assim, enquanto
movimento/princípio, o pentecostalismo pode estar mais presente nas aldeias do que o nome
de Igrejas específicas pode sugerir, intensificando as relações sincréticas e diacréticas
afirmadas, uma vez que o modo como os indígenas se apropriam e se desapropriam de
sentidos religiosos acaba variando e aumentando bastante nessa perspectiva de relações.
Todavia, é preciso relativizar o pretenso crescimento das Igrejas dentro da TID, seja das
Congregações da IIP seja, principalmente, as das igrejas pentecostais. Ao continuar a análise
do quadro demonstrativo das Igrejas, em anexo, essa análise mostra que algumas Igrejas
funcionam nas casas de famílias indígenas e que a maioria já possui templo próprio, conforme
afirmado. Todavia, possuir templo próprio não significa, necessariamente, um total
rompimento com a família extensa principal na Igreja, na casa de tal família onde tudo
começou. De fato, para um observador de campo mais atento, é possível perceber que várias
das igrejas pentecostais (mas talvez a maioria dentro das aldeias) não contam com um número
grande de adeptos que se mantém em uma dada comunidade religiosa. As igrejas não crescem
“para dentro”, mas “para fora”, através de processos de união de famílias extensas que
possuíam Igrejas separadas, além das divisões e os “desvios”, já mencionados, nessas mesmas
comunidades. O antropólogo Levi Pereira, em sua análise, justamente da presença de igrejas
Pentecostais junto aos Kaiowá do sul de Mato Grosso do Sul, faz uma afirmação importante:

178
Para saber mais sobre a relação dos Terena com o missionamento cristão, particularmente o projeto da
UNIEDAS ver MOURA, N. dos S. P. & ZORZATO, O. O Processo de apropriação do Protestantismo Norte-
Americano pelos Terena através da Uniedas. In: WRIGHT, R. (org.). Transformando os Deuses..., p. 303-
339.
169

A idéia de a crença “servir” [a crença na palavra de Deus, na Bíblia] é,


também, bastante significativa: ela serve quando é eficiente como um
sistema de idéias e práticas que ajuda a ordenar a vida pessoal e as relações
sociais no âmbito de um círculo de pessoas que se consideram parte
constitutiva de um grupo social, a partir de padrões definidos de inclusão e
exclusão. Nesse sentido, o funcionamento de uma congregação pentecostal
kaiowá, independente da denominação a qual esteja filiada, é muito
semelhante ao grupo de parentela, que também se organiza em torno de um
líder religioso (PEREIRA, 2004, p. 289)

Assim, ao contrário do que afirma boa parte da literatura etnográfica sobre o assunto,
mais do que falar em “crescimento” de Igrejas, melhor será falar de maior mobilidade,
movimento dos indígenas que circulam criando, criam igrejas/congregações circulando
através das “criações e destruições” das redes de aliança entre as famílias extensas. Está aí um
possível exemplo de que essa “mobilidade”, essa “circulação”, é uma ação tática que resta aos
indígenas para viverem em lugares próprios (Igrejas, em vários momentos, com um idioma
hermético e indecifrável no discurso, terem que conviver com membros de outras famílias que
não são as suas, dentre outros) que lhes colocam estratégias prescritas, para lembrar Michel de
Certeau179. Ainda que essa mobilidade irá levá-los a outras circunscrições estratégicas,
todavia é justamente isso que mantém a perspectiva de sentido, pelo menos a busca por ele,
em um contexto muito fragmentado e recheado de problemas de ordem econômica, política e
religiosa onde impera o risco da perda de sentidos existenciais fundamentais. Na linguagem
tillichiana, seria a perda da substância religiosa da vida.

Em conversas com um de meus interlocutores não-indígenas, mas com ideias


partilhadas por indígenas lideres de algumas Congregações da IIP, o mesmo afirmou-me
aspectos mais religiosos e teológicos para caracterizar um possível crescimento, nas aldeias de
Dourados, das Igrejas pentecostais e daquelas que, mesmo não nomeadas assim, se
autocompreendem como tais. Em que pese o que esse interlocutor chama de “fatores
culturais”, como o fato das Igrejas estarem atreladas às atividades das famílias extensas, ele

179
Com linguagem hermética e “indecifável” aqui, refiro-me a alguns discursos teológicos, em seu poder de
doutrinação, comum à missão Caiuá, consequentemente, presente em algumas de suas Congregações. Ao
perguntar a alguns de meus interlocutores e interlocutoras indígenas o que havia de “Presbiteriano” na Igreja
Indígena, vários respondiam com muita dificuldade: “há muito pouco”. Claro que essa resposta deles estava
relacionada à percepção de uma identidade religiosa presbiteriana que passava pela identificação de algumas
doutrinas teológicas fundamentais que definem esse grupo protestante, por exemplo, a questão da soberania e
predestinação divina. Como disse um interlocutor indígena: “[...] esperar que um indígena Kaiowá,
principalmente aquele criado na tradição, entenda a doutrina, é muito complicado. Dizer para um Kaiowá o
que é predestinação, ele não vai entender não. Ele até pode dizer que entende, mas não entende não. Olha só...
ele, às vezes, não entende nem o português direito, quanto mais algumas doutrinas...”.
170

atribui às igrejas pentecostais uma teologia do “misticismo”, muito “mágica” que, segundo
ele, é bem afeita à conduta dos indígenas, principalmente dos Kaiowá. Ele afirma: “Esse
costume de mistificar tudo, de acreditar que todos os componentes da vida, natural e
humano, são “deuses”, a experiência do imediatismo da cura, favorece as Igrejas
pentecostais junto aos indígenas”. É possível ir além desse argumento, retornando ao tema da
“teologia da palavra” como elemento central para esses grupos indígenas ou, como diz Meliá
“[...] para o guarani a palavra é tudo. E tudo para ele é palavra” (MELIÁ, 1989, p. 306), que
em várias Igrejas, não somente pentecostais, a concretização das palavras por parte dos
interlocutores indígenas é fundamental. Não se fala aqui somente das palavras dos pastores
que curam e que abençoam. Em vários cultos que o autor dessa tese participou, pode-se
assistir, em algumas Congregações da IIP, que sempre os indígenas que dirigiam os cultos
separavam um tempo para os testemunhos: assim, indígenas iam à frente (dos mais diferentes
gêneros e idades) para expressar a “boa palavra” de um livramento, da recuperação familiar e
do sentido de vida, da libertação dos vícios, do agradecimento por uma benção alcançada, por
exemplo, um trabalho, dentre outros aspectos. Mas não somente falavam: cânticos, como
forma de testemunhos, além de orações elaboradas ou simples murmúrios quase inaudíveis,
eram outras mediações da “palavra” concretizar-se. A “Palavra” era profundamente
ritualizada e escapava de toda tentativa de “formalização”. De fato, a palavra Guarani ritualiza
todo o cotidiano da qual as Igrejas fazem parte. Sem isso, é possível arriscar a dizer, nem as
experiências pentecostais de cura, nem as experiências de livramento de possessão por
espíritos malignos teriam muita eficácia, até porque essas últimas experiências citadas são
também experiências de ritualização da palavra, de criação, mas também de “distorção” (em
relação aos discursos formais) de sentidos outros para criar, enfim, novos espaços de sentido.
Ao ouvirem essas palavras em ato, os indígenas criam um código de confiabilidade
“testemunhal” e reinventam seus sentidos e esperanças. Diria que, mais do que mistificadora
(na fala do interlocutor não-indígena), a palavra Guarani e Kaiowá torna-se profundamente
“mística”, porque ela instaura a possibilidade do diálogo profundo com a alteridade, com o
outro que, parecendo distante, se faz próximo.

Justamente em todo esse contexto plural, atravessado por ações “sincréticas e


diacréticas”, de criações e distorções de sentido e de práticas sociais, que surgem as
Congregações da IIP como fronteiras atravessadas por outras fronteiras religiosas, levando
essas Igrejas a uma experiência de profundas ambigüidades. Na leitura “oficial”, ou seja,
aquela proposta pela liderança da Missão Caiuá, o projeto da IIP surgiu como conseqüência
171

necessária da própria razão de ser da Missão: de que ninguém melhor do que o próprio
indígena para falar do Evangelho para seus “patrícios”180. Assim, a Missão Caiuá cresceu ao
elaborar e executar estratégias para, com o tempo, criar condições para uma maior autonomia
para os indígenas liderarem as próprias comunidades/congregações. Por outro lado, não é tão
raro ouvir o testemunho de algumas das lideranças indígenas autóctones afirmarem que a
criação da Igreja Indígena partiu dos próprios indígenas, não sendo uma preocupação da
Missão Caiuá.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que reivindicam maior autonomia na condução


política e religiosa das Congregações, essas lideranças indígenas cobram a continuidade nas
relações com a Missão Caiuá, principalmente no que diz respeito ao investimento financeiro
de sustentabilidade dos “obreiros” indígenas. Há sempre uma tensão social entre os indígenas
quererem o controle “eclesiástico” da comunidade mas, ao mesmo tempo, continuar tendo os
benefícios econômicos e materiais oriundos da Missão. No meio disso, há aquelas lideranças
das Congregações que, na visão deles, querem retomar uma Igreja culturalmente indígena ao
estabelecer relações “sincréticas e diacréticas” nas fronteiras de um “indigenismo cristão”, a
modo deles. São essas tramas ambíguas que estabelecem relações de poder táticas e
estratégicas e, porque não dizer, demônicas, uma vez que ao partir de uma mesma “forma
cultural” institucionalizada (a Missão Caiuá) é estabelecida uma relação de sentido ora
afirmativa, ora desviante, distorcida, com essa mesma forma. Novamente: sincretismo e
diacretismo em ato. Portanto, nesse breve mapeamento dos espaços e lugares da presença das
Igrejas na TID, surgem as Congregações da IIP como espaço mediador privilegiado para
analisar essas presenças e que ainda aguarda demandas por estudos mais aprofundados, cuja
última seção da tese, a partir da teoria elaborada sobre as noções de sincretismo e diacretismo
construídas na última seção do capítulo anterior, quer ser apenas uma porta de entrada
reflexiva. É preciso ir em frente.

180
Termo muito comum que os indígenas utilizam para referir-se a outro indígena.
172

3.2 RELAÇÕES SINCRÉTICAS E DIACRÉTICAS COMO INVENÇÃO DO TEKO


RETÃ RELIGIOSO

O quadro plural da presença cristã dentro da TID atualmente, conforme delineado na


seção anterior, pode ser analisado como um conjunto de espaços mediadores onde os
indígenas Guarani e Kaiowá ressignificam, cotidianamente, suas relações sociais e suas
experiências de sentido religioso. É dessa forma que se deve pensar, em particular, a presença
das Congregações da IIP. Ao retomar mais decisivamente o diálogo proposto entre a teoria
certeauniana e a noção de “demônico” de Paul Tillich, tal como analisadas no capítulo
anterior para a confecção da relação entre sincretismo e diacretismo, é possível afirmar que a
vivência religiosa de vários indígenas que pertencem às Congregações citadas utilizam essa
pertença e possíveis “despertenças”, posto que “transitam” em outras
comunidades/congregações, para compor sua alteridade religiosa plural em face dos
cristianismos. Essa “composição” é possível enquanto relações sincréticas e diacréticas, ou
seja, a relação com as igrejas estabelece uma “nova” estrutura social onde o indígena
apresenta dificuldades em tomar a igreja como um “lugar próprio”, negociando estratégias
que lhe são impostas, ao mesmo tempo em que criam ações táticas que “driblam” essas
estratégias. Essa relação é a dinâmica cultural inventiva, inclusive, de formação de novas
comunidades/igrejas, uma vez que a “substância” da experiência de sentido fundamental, ou
seja, religioso, evoca uma ambigüidade radical que perpassa essa dinâmica cultural com
inventividades criadoras e distorcedoras, a modo da noção do demônico. Por mais que as
Igrejas da IIP façam parte de um projeto mais amplo da Missão Evangélica Caiuá, por mais
que essas Igrejas tenham um estatuto próprio e, em tese, deveriam refletir a teologia ensinada
no Instituto Bíblico “Felipe Landes” em torno dos preceitos básicos do presbiterianismo181,
várias dessas Congregações possuem uma dinâmica plural própria onde a presença indígena
nas mesmas instaura muitas outras influências, inclusive, “estranha” aos propósitos oficiais da
Missão Caiuá. Um exemplo dessa afirmação é a já citada influência pentecostal em algumas
dessas Congregações, tais como: experiências religiosas mais imediatas com o divino através
do êxtase e transe religioso, principalmente através das orações, e a “liturgia” da palavra
testemunhada dos fiéis mais do que a palavra “racionalizada” das pregações de púlpito. Nesse
caso, já não há mais a mera oposição entre religião tradicional e popular versus religião
oficial, uma vez que as próprias missões cristãs debatem-se com suas contradições. Outro

181
De onde sairam fomados, com instrução básica em Bíblia e Teologia, vários líderes indígenas que atuam nas
Igrejas da IIP, dentro das aldeias do cone sul de Mato Grosso do Sul.
173

exemplo ocorre no campo da vivência do chamado governo e administração da Igreja. É


totalmente compreensível que, por herença da Missão Caiuá, por seu lastro presbiteriano, haja
uma implantação do governo da Igreja mais focada na idéia de presbitérios e concílios a quem
essas Congregações da IIP são submetidas. Todavia, devido às distâncias entre diversas
Congregações e a sede da Missão e um quadro de obreiros oficialmente estabelecidos pela
própria Missão ainda insuficiente para atender as demandas de várias dessas Congregações,
faz com que as mesmas “inventem” modelos próprios de administração e governo das
Congregações, até mesmo tornando-as mais autônomas, do ponto de vista litíurgico e
teológico, do que gostaria a Missão, além de refletir mais a própria forma de liderança
tradicional dos grupos étnicos majoritários que compõem essas Congregações. As Igrejas da
IIP são um exemplo disso.

A vida cotidiana nessas Congregações leva os indígenas a reelaborarem os vínculos


sociais e religiosos, muitas vezes rompido, por conta da desagregação do modo de vida
tradicional. Porém, as Igrejas, muitas vezes, não se tornam o espaço de agregação ao,
paradoxalmente, não comporem novos espaços que valorizem a vida em comunidade
simbolizada pelo “fogo doméstico” e pela “família extensa”182. São relações profundamente
ambíguas. Do ponto de vista teológico, o esforço daqueles e daquelas que viveram a tradição
de conhecimento nativa de traduzirem esse conhecimento para categorias cristãs e, as
gerações mais jovens, que não foram criadas tão fortemente nessa tradição de conhecimento,
vivem suas ressignificações entre as muitas propostas cristãs. Isso coloca a possibilidade de
uma compreensão demônica do sentido religioso da vida, puma vez que instaura nas
interpretações indígenas a constante “luta” entre o criativo e o destrutivo, a percepção de que
a construção de imagens representativas do divino implica na “destruição” ou distorção de
outras imagens e compreensões. Como essa experiência de sentido é vivida na fronteira social
e cultural que são essas igrejas e nas “fronteiras” entre Igrejas, o processo de ressignificação,
que implica na inserção ou no risco da rejeição social, é feito com tensões.

É importante acrescentar mais dois exemplos introdutórios em relação ao que está


sendo afirmado: o primeiro, tomado de um homem Kaiowá de 51 anos, participante do
projeto da IIP, afirma a sua experiência de conversão ao Cristianismo aos 25 anos. Antes de
sua conversão passou um bom tempo como “aprendiz” (yvyraija – “o que aprende”) de um

182
Conforme será visto na próxima subseção do capítulo.
174

ñanderu (xamã/rezador), o que configou um processo muito lento e complexo de inserção na


tradição de conhecimento nativa, bem refletida nas palavras do antropólogo Fabio Mura:

[...] A formação do xamã não é algo que diz respeito tão somente à
aprendizagem de conhecimentos e técnicas por parte do neófito. Este
processo coloca em jogo toda uma gama de fatores emocionais e de natureza
onírica, a relação entre mestre e aprendiz apresentando características
psicológicas peculiares (MURA, 2006, p. 305)

A partir dessa citação lembro-me, justamente, das várias experiências oníricas


(referente aos sonhos) que o referido indígena me relatou, inclusive, interpreta sua experiência
de conversão ao Cristianismo tendo como mediação o “universo” onírico, quando afirmou:
“[...] um homem, que parecia um indígena, me falou: “O que está esperando? Porque sofre?
Vem me seguir!”[...] eu acho que pode ter sido Jesus mesmo”. Esse indígena, hoje, apresenta
uma leitura muito ambígua da função dos rezadores/xamãs, talvez por experimentar o papel
tanto de aprendiz de rezador que foi um dia, como o de pastor/obreiro que exerce hoje. Se,
por um lado, afirma que os rezadores fazem mais mal do que bem, por outro lado utiliza
categorias nativas da tradição de conhecimento religioso Kaiowá aprendida, como narrativas
míticas de origem do “herói civilizador”, chamado de Pa‟i Kuarahy183, em seu processo de
leitura e interpretação da Bíblia no idioma Kaiowá. Como veremos mais à frente, isso terá
implicações teológicas para esse indígena na própria compreensão tradicional de Jesus Cristo,
tal como vivida nas Igrejas, o que leva esse indígena a uma constante negociação de sentido.

O outro exemplo, que poderia ser multiplicado pelas várias narrativas semelhantes que
o autor dessa tese ouviu durante a pesquisa, vem de um jovem indígena Guarani de 23 anos
que já freqüentou igrejas da IIP e, hoje, está na “Pentecostal Indígena de Jesus”. Tem amplo
contato com instituições da sociedade nacional e, mesmo criado na TID já não recebeu a
tradição de conhecimento nativa. Inclusive, não domina o idioma Guarani, fato que não é
incomum entre jovens na TID, o que desfavorece a uma compreensão mais profunda das
experiências religiosas tradicionais. Este indígena busca, portanto, outros códigos de sentido,
não necessariamente teológico e/ou da significação de pertença a uma Igreja, uma vez que
evoca justificativas mais sociais, mas profundamente existenciais. Ele afirma: “No meio de
tanta violência, drogas e bebida na aldeia hoje, o jovem fica perdido. Não encontra mais

183
Kuarahy ou Kuara é expressão Kaiowá e Guarani para o “Sol” ou, de forma mais qualificadora, “aquele que
ilumina”. Assim, Pa`i Kuarahy pode significar “nosso irmão mais velho”, “aquele que nos guia”, primeiro
filho do divino maior: Ñanderuvusu (que pode significar “nosso grande Deus”). Para os mitos de origem
Guarani ver CLASTRES, P. A Fala Sagrada: Mitos e Contos dos Índios Guarani. Campinas: Papirus, 1990.
175

acolhida entre os da tradição [diga-se: mais velhos] e não é aceito na cidade por causa do
preconceito. Não tem lugar. Vai para igreja porque lá se sente bem. Sente que lá as pessoas
gostam dele e encontra apoio para as suas crises”. Assim, a Igreja passa a ser a tentativa de
composição de “um lugar” de sentido em meio a “não lugares” que expressam o sem sentido.
Todavia, algumas Igrejas também passam a expressar esse “não-lugar” (onde algumas
Congregações da IIP não estão imunes a isso), dando a dinâmica configuradora do quadro
plural cristão na TID hoje. Na leitura do jovem indígena, a mudança de Igrejas ocorre quando
a comunidade anterior não acessa essa experiência do acolhimento diante das crises, mesmo
que o indígena tenha que renegociar compreensões de fé e conhecimento “teológico”
adquirido em outras comunidades. Em termos mais tradicionais, quando a Igreja apresenta
dificuldades, no caso da experiência Guarani, de tornar-se a nova “família extensa”, a nova
“parentela” do sujeito indígena. Todavia, isso provoca uma série de outras dificuldades,
tornando o movimento de trânsito religioso uma inconstante (posto que cheia de
ambigüidades) constante.

As narrativas exemplificadoras podem ser multiplicadas, mas ajudam a começar a


entender os processos sincréticos (tentativas de aproximação e recomposição das fronteiras
sociais e de sentido religioso na interface de vários elementos simbólicos heterológicos) e
diacréticos (experiência da desagregação, ruptura da interface de uma “simbólica
heteróloga”) que “inventam demonicamente” as culturas. As duas subseções a seguir
procurarão detalhar as implicações de uma análise hermenêutica nos termos da definição de
sincretismo apresentada no final do capítulo anterior. O foco é a experiência de sentido
religioso com sua dimensão teológica, bem como as configurações sociais e culturais que as
igrejas da IIP estabelecem, a partir de onde vivencia-se a referida experiência religiosa no
estabelecimento de outras “tradições” de conhecimento. Digno de nota que o exercício
hermenêutico proposto não é nada fácil por interfacear instâncias de saber com seus métodos
próprios (no caso a antropologia e a teologia) e por não, simplesmente, aplicar uma dada
teoria do sincretismo, mas uma teoria construída com seus limites e possibilidades tal como
mostrado no capítulo anterior. Além disso, não é fácil interpretar processos sincréticos
“tradicionais” (ou seja, através das ideias de adição, fusão, justaposição e paralelismo de
elementos religiosos de tradições diferentes) explicitados em igrejas cristãs indígenas da IIP.
Eles ocorrem mais como experiência de sentido (campo simbólico), do que no objetivismo de
práticas e elementos de crenças e rituais, por exemplo.
176

Quando se fala em “sincretismo”, essa palavra parece ser uma categoria estranha ao
pensamento indígena Guarani e Kaiowá184. Quando, várias vezes, havia a tentativa de traduzir
o termo para os diversos interlocutores indígenas, tendo por referência a simples ideia de
“união” e “mistura” de elementos de tradições religiosas diferentes, percebia-se certo
desconforto e rejeição ao termo o que, convenhamos, não é uma prerrogativa somente
indígena. Todavia, quando começava a dialogar sobre possíveis modalidades ou “tipos” dessa
“mistura” ou “união” o tom da compreensão variava, senão para uma aceitação (ou rejeição)
imediata, mas para a reflexão crítica das possibilidades e impossibilidades dos encontros e
desencontros entre experiências religiosas, no caso, tradições indígenas e cristianismos. Isso
significa que os interlocutores indígenas também construíram o seu conhecimento ao assunto
abordado nessa tese, ao partilharem um pouco de suas compreensões e ambigüidades de seu
próprio teko retã religioso. Assim, pareceu desafiador ao autor dessa tese, em um primeiro
momento, utilizar a categoria nativa Guarani do teko retã como termo afim à noção de
sincretismo. O teko retã pode ser traduzido por “um jeito próprio de ser plural, variável” e
que não se aplica somente a questões religiosas. Mas como essa categoria não especifica que
tipo de pluralidade está em jogo e o autor dessa tese não possui a competência etnográfica
necessária para compreender as implicações epistemológicas dessa expressão (haja vista que
também não é o objetivo dessa tese), aqui o teko retã, no título dessa subseção, é tomado em
um sentido meramente adjetivado para qualificar a riqueza de expressar a vida indígena de
maneira diversificada e plural, a partir de onde as categorias de sincretismo e diacretismo
convertem-se em chaves hermenêuticas para a compreensão dessa pluralidade. Próximo
passo: subseções.

3.2.1 Sincretismo e diacretismo religioso na fronteira das modalidades e mobilidades sociais

O principal objetivo dessa subseção é mostrar em que sentido as Igrejas podem


constituir-se em espaços de ressignificação sincrética e diacrética, ou seja, as Igrejas
constituidas por indígenas são construídas nas fronteiras da tradição e da “tradução” das
representações das relações sociais, através de mediações culturais concretas. Quando se fala

184
Quando se fala nas Congregações da IIP não se pode desconsiderar que, em que pese a pluralidade dessas
Congregações, não deixa de existir todo um lastro do missionarismo cristão tradicional para o qual há muito
desconforto em relação ao tema do sincretismo. Isso ocorre, justamente, porque os protestantismos de missão,
em seus discursos oficiais, ainda consideram práticas sincréticas como corruptoras da sã doutrina e da boa
conduta cristã revelada por Deus em sua Palavra. Essa dificuldade já foi apontada no primeiro capítulo.
177

na presença das Igrejas da IIP na TID, parece haver uma constatação sócio-antropológica
corroborada, tanto na literatura etnográfica quanto nas narrativas de diversos interlocutores da
pesquisa (indígenas e não-indígenas), que pode assim ser formulada: as Igrejas são
constituídas e destituídas (criação e destruição) pelas relações de aliança estabelecidas pelas
famílias extensas Guarani e Kaiowá185. Aqui começa uma análise mais detalhada desse tema
que já foi levantado na subseção “3.1.3” desse capítulo: um dos aspectos culturais que chama
a atenção desde as primeiras incursões na TID é a criação de Igrejas nos lotes de terra
contíguos, ou seja, ao lado de casas de uma dada família onde, em boa parte dos casos, o
“chefe de família” (no âmbito do fogo doméstico) ou o “cabeça de parentela” da família
extensa, tornava-se a liderança da Igreja. Aliás, o Reverendo Benjamim Bernardes, da Missão
Caiuá, afirmou-me ser essa uma das grandes dificuldades que o projeto da “Igreja Indígena”
enfrenta para o seu crescimento: o fato de que, em uma mesma Congregação, há a presença de
famílias étnicas diferentes (Terena, Guarani e Kaiowá) que “disputam” a liderança da
comunidade, uma vez que as etnias diferenciam na percepção, inclusive, do chamado
“governo eclesiástico”. Se não bastassem as diferenças étnicas de proposição de diferenciação
social, há uma diferença na percepção da condução da Igreja o que instaura uma constante
reflexão e ação a partir do outro (heterologia). É importante voltar a frisar: sempre que
conversava com lideranças de Congregaçãos da IIP era muito comum ouvir: “A Congregação
„tal‟ é da famìlia „x‟, na outra Congregação predomina a famìlia „y‟...”, ressignificando o que
é ser “Igreja” a partir das categorias de pensamento próprias das culturas indígenas.

Assim, é importante deixar claro o que constitui o espaço social do “fogo doméstico” e
da “família extensa” para as etnias Guarani e Kaiowá, como análise antropológica importante
que subsidia as interpretações aqui propostas. Um bom estudo sobre essas unidades de
relações sociais pode ser encontrado na tese de Levi Pereira (2004, p. 44-152). Dentre as
unidades sociais “nativas” enumeradas por Pereira é possível destacar o “fogo doméstico”
(che ypyky kuera) e a “parentela” (Te‟yi)186.

185
Essa perspectiva pode ser estendida para as igrejas que não fazem parte da IIP, como as pentecostais por
exemplo. Etnicamente, os Terena agem dessa forma, muito embora as unidades sociais que compõem a
identidade étnica dos Terena difira dos Guarani e Kaiowá. Todavia, é muito comum ouvir na TID que a Igreja
é de “fulano de tal”, da “família tal”, conforme já afirmado nesse capítulo. Maria de Lourdes Alcântara,
quando analisa a presença das Igrejas na TID, afirma claramente: “[...] Geralmente são freqüentadas pelas
famílias extensas”. Cf. ALCÂNTARA, M. de L. B. Jovens indígenas e lugares de pertencimento, p. 125.
186
A expressão che ypyky kuera pode significar “meus descendentes diretos”. Tem uma referência também
religiosa aos “antepassados” (ypy kuera) míticos, além de ypy poder significar “proximidade”, “intimidade”. Já
Te‟yi pode significar “minha parentela”, “família extensa” e correlatos. O antropólogo Fabio Mura prefere,
justamente, o termo “família extensa”. Cf. MURA, F. A procura do bom viver..., 2006, p. 123. Pereira lembra
que Meliá e o casal Grünberg chamam a atenção para o fato de que Te‟yi pode significar “minha religião”, pois
178

Primeiramente, sobre o “fogo doméstico”, assim é definido:

[...] a expressão che ypyky kuera retém os dois sentidos do termo ypy
[“proximidade” e “origem”], referindo-se aos ascendentes diretos, com os
quais se compartilham os alimentos, a residência e os afazeres do dia-a-dia, e
denota também proximidade, intimidade e fraternidade, ponto focal da
descendência e da ascendência. É uma instituição próxima daquela descrita
pelos antropólogos como família nuclear, mas é necessário apreendê-la
dentro do campo problemático das instituições sociais kaiowá, dando
especial atenção para sua composição e operacionalidade. Por esse motivo, é
preferível utilizar o termo na língua guarani ou traduzi-lo como „fogo
doméstico‟, já que enfoca a comensalidade e a força atrativa do calor do
fogo, que aquece as pessoas em sua convivência íntima e contínua. Em certo
sentido, é uma noção próxima a nossa idéia de lar, cuja origem lingüística se
remete à lareira, enfatizando a força atrativa e protetora do fogo
(PEREIRA, 2004, p. 56)

Assim, conforme a citação, o “fogo doméstico” é um símbolo para a expressão da


estrutura social mais “cara” ao projeto de vivência solidária e de sustentação da base de
sentido de vida comunitária Guarani e Kaiowá. Testemunhos de interlocutores indígenas
pertencentes a IIP enfatizam que é no fogo doméstico que se compartilha toda a tradição de
conhecimento primária do grupo, todos os processos educativos e todas as discussões em
torno dos desafios do cotidiano. Isso significa que, muitas vezes, é no “fogo” a concretização
do espaço primeiro de socialização religiosa do indígena, congregando, basicamente, marido e
mulher, filhos, avós e netos. Ao tecer uma crítica à estrutura e disposição “espacial” das
Igrejas (incluindo as Igrejas da IIP), uma indígena Kaiowá, que trabalha em uma das
Congregações da IIP na TID, dizia-me: “[...] É difícil para o índio, muitas vezes, ficar na
Igreja porque tá todo mundo enfileirado, olhando um para o pescoço do outro na hora do
culto e ninguém participa mais ativamente. A Igreja tinha que fazer seu culto igual ao fogo,
todo mundo sentado, conversando e falando de Deus uns para os outros, tomando tereré ou
mate”. Voltaremos a essa narrativa mais a frente. No momento, o importante é perceber,
segundo Pereira, que fazer parte de um fogo doméstico é essencial para o processo de
socialização dos indígenas.

Em segundo lugar, em relação à noção de “parentela” (Te‟yi, ou “família extensa”),


grosso modo, é a estrutura social que congrega grupos de fogos, ligados por redes de alianças
de consaguinidade, mas também por alianças políticas, econômicas e religiosas. Segundo

normalmente os parentes estão aliançados em torno de um “cabeça de parentela” e a uma liderança religiosa.
Cf. PEREIRA, L. M. Imagens Kaiowá do Sistema Social e seu Entorno, p. 56.
179

Pereira (2004, p. 89), fundamental para a dinâmica da vida da parentela é a figura do hi‟u, ou
seja o “cabeça de parentela”. Cabe a esse “cabeça”, normalmente uma liderança política
respaldada por uma liderança religiosa, combinar diversos fatores que promovam a coesão
dos grupos formadores das parentelas. Alguns desses fatores são o parentesco cognático,
alianças matrimoniais, alianças políticas e alianças religiosas (PEREIRA, 2004, p. 96). Sobre
essa questão das alianças religiosas, especificamente, Pereira afirma que os cabeças de
parentela, mesmo que não sejam líderes religiosos, criam seus laços de afinidade em torno
dessas figuras representativas. O referido antropólogo, nesse ponto, reforça determinadas
homologias entre a figura do xamã/rezador e dos pastores187. Afirma, nesse ponto, que mesmo
os cabeças de parentelas “crentes” que lideram igrejas podem, por sua vez, compor alianças
com rezadores (colocando-se na fronteira religiosa com o tradicional), a fim de buscar
prestígio junto a outros setores da sociedade envolvente que lidam com a “cultura indígena”,
ao mesmo tempo em que criam alianças com pastores a fim de garantir a coesão de sua
parentela ao observarem que vários fogos fazem parte de igrejas, importante no cenário da
TID hoje. Manter a coesão, principalmente dentro de situações de tensão e conflitos, “[...]
exige a produção de um discurso capaz de apaziguar e demover os conflitos e atritos que
permanentemente afluem na convivência cotidiana. A produção de tal discurso é mais eficaz
quando aliada a elementos da religião, mobilizando disposições e conteúdos ético-morais”
(PEREIRA, 2004, p. 104). Do “cabeça de parentela” e da família extensa sob sua
responsabilidade, espera-se o “bom falar”, de tal forma a expressar a solidariedade e as regras
do bom viver da comunidade.

As tentativas de estabelecimento de homologias entre as estruturas nativas sociais


tradicionais com novas formas de estruturas organizadoras da vida social e religiosa são
comuns na literatura antropológica e, até, na teológica. Para usar um termo central nessa tese,
procura-se estabelecer relações sincréticas, enquanto paralelismo, entre as funções dos
pastores e demais lideranças religiosas (como os rezadores) com o “cabeça de parentela”.

187
Conforme já afirmado Pereira foca, principalmente, os pastores indígenas pentecostais. Sobre essas
homologias, o antropólogo afirma: “[...] A importância da forma organizacional da parentela está presente
mesmo em situações de mudanças culturais intensas, como no caso da conversão ao pentecostalismo: os
Kaiowá pentecostais consideram que a conversão não implica na dissolução de sua identidade étnica,
continuam sendo Kaiowá "crente", porque permanecem vivendo e se relacionando na parentela enquanto
Kaiowá, forma de existência humana por excelência. Aliás, para alguns líderes pentecostais, os processos de
transformação comportamentais envolvidos no ato de conversão resgatam atribuições inerentes à estruturação
da parentela, como a atribuição de dar e receber conselho, fundamentais para a integridade e reprodução dessa
unidade sociológica. Em outras palavras, parece que a manutenção das formas básicas de estruturação social na
parentela permite e alimenta-se da mudança cultural” Cf. PEREIRA, L. M. Imagens Kaiowá do Sistema
Social e seu Entorno, p. 119. È possível estender esse raciocínio para algumas Congregações da IIP.
180

Mantém-se o significado último da estrutura social (sentido de aliança e solidariedade),


mesmo que se mude a forma dessa mesma estrutura. Todavia, esse tipo de análise não pode
esconder as heterologias, uma intensa vivência ambígua e inventiva. Há que se estabelecer
perspectivas “diacréticas” também. Isso significa que não se pode negar também que, por
parte das lideranças indígenas cristãs, não somente dos pastores pentecostais, há fortes críticas
aos rezadores, inclusive por pastores indígenas da IIP que, por sua vez, não deixam de criticar
os pentecostais, mesmo que isso custe romper algumas alianças.

Todavia, antes de continuar a análise das exemplificações dessas relações sincréticas


e diacréticas, é importante salientar que os Guarani e Kaiowá apresentam, em sua própria
estrutura lingüística, a nomeação reflexiva para a sua própria compreensão das relações de
alteridade, de como compreendem a si mesmos na relação com os outros representados
concretamente por muitas instâncias: os outros indígenas (do mesmo fogo ou parentela, ou
não; da mesma etnia ou não) e a sociedade não-indígena com suas instituições (FUNAI,
Escolas, postos de saúde, as Igrejas e a própria dinâmica periférica da cidade de Dourados).
Levi Pereira (2004, p. 135) nomeia essas categorias epistemológicas pelos termos Kaiowá
“ore” e “pavêm”. Graciela Chamorro (2008, p. 50-3), de forma semelhante, indica essas
categorias por “oréva” e “ñandéva”. Mais do que categorias “estanques”, são profundos
princípios de construção das relações sociais, de como os Guarani e Kaiowá constroem suas
identidades e suas diferenciações. Ambosos termos indicam o pronome da primeira pessoa do
plural, o “nós”. Oréva indica o “nós” exclusivo ao denotar tudo aquilo que é comum à família
extensa e, mais especificamente, ao fogo, excluindo os outros, o interlocutor. Ñandéva é o
“nós” inclusivo, trazendo para si o universo de sentido do interlocutor. No oréva ocorre a
experiência de conformidade aos “outros” que são os mesmos, mas com o intuito de fortalecer
a identidade do grupo e firmar os laços de solidariedade. Não significa deixar de ser um
próprio. Mas, paradoxalmente, reforçado em contextos de forte contato interétnico, ativa-se o
princípio ñandéva a fim de incluir o “outro”, fazendo “seu” um mundo de sentido não próprio,
originalmente, principalmente para compor novas alianças e compreender o rompimento de
outras. Conforme sintetiza Chamorro:

Com as expressões oréva e ñandéva estamos diante de dois tipos de


consciência de si orientados pelo princípio da identidade, uma mais fechada
e exclusiva; outra mais aberta e inclusiva. [...] Em ambas as atitudes, os
indígenas reconhecem a existência de uma outra sociedade “na” ou „à
margem da” qual eles vivem, e diante da qual eles precisam se afirmar e se
distinguir (CHAMORRO, 2008, p. 52)
181

Afirmação e distinção. Não somente o princípio da identidade mas da diferenciação


também, uma vez que o discurso e o comportamento em relação ao outro implica
ambiguamente o discurso sobre si próprio. Chamorro (2008, p. 52), inclusive, compara o
oréva ao “rígido” e o ñandéva ao “flexível”. Isso lembra a própria definição de cultura dada
por Michel de Certeau já afirmada nessa tese: o espaço inventivo entre o rígido e o flexível.
Pereira tem uma compreensão do princípio ore/oréva muito próximo de Chamorro. Elabora
suas análises a partir do princípio pavêm das contribuições de Meliá e Grünberg & Grünberg
(1976), extendendo à construção da identidade religiosa. Ao recolher testemunhos de
rezadores na TID, Pereira afirma que o pavêm implica no princípio de ampliação dos
horizontes de relações sociais, tendo como referência o símbolo do tekoha pavêm188. O tekoha
pavêm implica em uma referência profundamente religiosa, pois procura “traduzir” para as
relações sociais e culturais a dinâmica social vivida pelos divinos e demais seres “espirituais”.
Isso é muito importante: a experiência religiosa tradicional Guarani e Kaiowá
humaniza/socializa o “natural”. Os deuses só são deuses porque, paradoxalmente, radicalizam
o “humano”, tanto em suas fragilidades quanto em suas potencialidades. Testemunha disso é a
afirmação de Chamorro: “[...] Os povos indígenas, [...] não estabelecem uma diferença
essencial entre o divino e o cosmo. [...] Não, os indígenas apreendem o mundo como um ser
social e mantêm com ele uma relação social, dotando os objetos e os outros seres de
predicados que, na tradição ocidental, foram reservados exclusivamente aos humanos”
(CHAMORRO, 2008, p. 194)189. Essa é uma das razões pelas quais, em várias conversas

188
A expressão Tekoha tornou-se central nos estudos guaraníticos, principalmente após as análises de Bartomeu
Meliá. “Teko” é expressão que designa o modo de ser próprio (valores éticos, morais e religiosos) que
expressam a condição nativa de ser e de proceder Guarani e Kaiowá. “ha” é o sufixo nominador indicativo da
ação que realiza e onde se realiza. Por isso que Tekoha é, muitas vezes, traduzido na literatura etnográfica
como o território tradicional dos indígenas Guarani, pois só aí eles podem viver seu autêntico “teko”. Todavia,
Pereira defende a tese que o Tekoha não se limita a um território, mas como “[...] uma rede de relações
político-religiosas, comportando grande dinamismo em termos do número e da forma de articulação das
parentelas que entram na sua composição, tendendo a assumir uma configuração flexível e variada em termos
populacionais”. Cf. PEREIRA, L. M. Imagens Kaiowá do Sistema Social e seu Entorno, p. 121. O Tekoha
agregaria várias Te‟yi, ou seja, famílias extensas. Por isso que se o historiador Antonio Brand (1997) afirma
que sem tekoha não há teko, Pereira inverte a relação dizendo que sem teko não há tekoha.
189
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro extrai dessa perspectiva profundas implicações teóricas para uma
antropologia da filosofia indígena do ser. Para Viveiros de Castro (2002, p. 345ss) os grupos indígenas das
terras baixas sul-americanas, incluindo os Guarani, operam uma “naturalização” da vida, quando as sociedades
não-indígenas ocidentais operam a já conhecida “culturalização”. Se o natural é sinônimo de “inato” e a cultura
o flexível, o aprendido, para as sociedades indígenas o “natural” é o aprendido, posto que aí encontra-se o
social. De um “multiculturalismo” para um “multinaturalismo”. Todos os seres da natureza se vêem como
humanos também, a seu modo. Para as sociedades indígenas, no princípio do tempo mítico sempre esteve
presente o humano. Não o “animal” que evoluiu. Em essência é isso que diz o conceito elaborado por Viveiros
de Castro de “perspectivismo ameríndio”. Cf. VIVEIROS DE CASTRO, E. Perspectivismo e Multinaturalismo
na América Indígena. In: VIVEIROS DE CASTRO, E. A Inconstância da Alma Selvagem, p. 345ss.
182

teológicas que mantive com um de meus interlocutores indígenas, estimulado por viver na
fronteira de suas reelaborações culturais e de sentido de fé, afirmava que a teologia da
encarnação de Jesus era mais importante para a compreensão dos indígenas Guarani e
Kaiowá do que a clássica teologia da redenção (morte expiatória como preço pago pelos
pecados da humanidade). Isso porque a encarnação, segundo esse interlocutor indígena,
poderia ser interpretada justamente como símbolo para o caminho de humanização do divino
para que nós, seres humanos, possamos construir nossos caminhos de divinização, o que, na
perspectiva indígena, é o caminho autenticamente humano. Em relação a temas teológicos
serão tratados na próxima subseção.

Voltando a perspectivas mais etnológicas, é importante compreender como ocorrem as


múltiplas pertenças e “despertenças” dos indígenas em relação às várias igrejas da IIP na TID.
Essas Igrejas instauram novos espaços de mobilidade e de construção das alteridades
religiosas dos indígenas em torno das unidades tradicionais, tais como o fogo doméstico e a
parentela. Assim, um exemplo de possíveis relações sincréticas e diacréticas nos termos
apresentados está no projeto de criação de uma Congregação “sede” da IIP, discussão essa
trabalhada pela direção da IIP no período final de escrita da tese (2009 e 2010). Essa
Congregação proposta como “sede” aparece, inclusive, no quadro estatístico da presença de
Igrejas na TID nos anexos. Na realidade, a estrutura arquitetônica dessa Congregação tenta
reproduzir uma óga jekutu, ou seja, expressão que designa a antiga “casa comunal” tradicional
dos Guarani e Kaiowá que congregava diversas parentelas, em torno de um líder religioso,
delimitando o espaço simbólico de um tekoha. A idéia do indígena Guarani ao propor e
executar a construção dessa óga (“casa”, “habitação”) é tentar, segundo ele, resgatar
elementos da tradição dos antepassados que podem ser significativos para um diálogo com o
cristianismo que ele professa, além de poder qualificar, de fato, uma Igreja como sendo
“indígena”. A óga/congregação está no lote de terras contíguas à sua casa e suscitou
discussões junto ao conselho diretor das igrejas da IIP. Isso aconteceu principalmente quando,
no chamado culto de inauguração da óga, a liderança da Congregação convidou uma Ñande
Sy (que significa “nossa mãe”) da aldeia Bororó, ou seja, uma rezadora tradicional para
demarcar o respeito pela alteridade. Segundo esse interlocutor indígena, mesmo que seja
necessário o respeito pelo trabalho junto à “Missão Caiuá”, não se pode deixar de exercer a
consciência crítica, na visão de alguns indígenas que se colocam em situação de fronteira, o
fato de que essa Instituição, em seu processo missionário, fundou Congregações centradas
mais no jeito de ser do branco. Essa atitude do culto inaugural com uma face mais
183

tradicionalmente indígena gerou um debate entre as lideranças da IIP. A partir daí a “Primeira
Congregação” (citada no início do capítulo), principalmente através de um tronco Terena
representativo na Igreja, também criou uma casa tradicional indígena no pátio, nos fundos da
Igreja, oferecendo para ser a sede da IIP. Isso implica em retomar a questão de que as Igrejas,
a seu modo, reconfiguram as alianças e relações de poder a partir das etnias e suas famílias
extensas em torno de “fogos” representativos. Todavia, não se trata somente disso: ao tentar
estabelecer uma relação “sincrética” entre tradição e tradução cristã, buscando pontos
homológicos, o indígena Guarani vivencia, em seu papel de liderança, a ambigüidade
diacrética, pois implica na possibilidade de romper, desvencilhar-se de alguns elementos
institucionais negociáveis que, segundo ele, impediriam a efetivação de uma igreja, de fato,
indígena.

Quando se fala em “Projeto da Igreja Indígena Presbiteriana”, certamente que


perguntar-se pelo que há de “presbiteriano” nesse Projeto é importante. Mas, em se tratando
de povos indígenas, tão ou mais importante é perguntar-se pelo que há de “indígena” nesse
projeto. Essa segunda pergunta apareceu mais contundentemente na fala dos interlocutores da
pesquisa. De fato, ao partir da percepção anunciada na seção “2.3”, no final do segundo
capítulo da tese, de que o termo “sincretismo” enquanto aproximação, junção e interface de
chaves simbólicas de universos religiosos diferentes para a configuração do sentido, não pode
abrir mão de seu correlato “diacretismo”, uma vez que a construção de sentidos implica na
experiência de desencontros e distorções. Assim, no exemplo dado anteriormente, a
reelaboração da Congregação enquanto uma óga jekutu coloca os indígenas em uma dupla
fronteira: na fronteira de dissolução de sentidos tradicionais do ser Igreja, a modo das
tradições do missionarismo protestante, e a ressignificação do ser Igreja a partir de um
símbolo cultural próprio das tradições nativas, caso da óga jekutu. Em segundo, na fronteira
da compreensão das Igrejas como permanente espaços de exercício da ambigüidade, uma vez
que sincretiza-se e diacretiza-se termos de parentesco tradicionais como o “fogo doméstico”,
com termos oriundos do universo cristão missionário, tais como “grupo de crentes”, “irmãos
em Cristo”, “presbitério”, dentre outros. O diacretismo aqui é para reforçar o fato de que, os
sincretismos vividos evocam constantes negociações frente a relações de poder, tal como
exemplificado pela afirmação de determinadas etnias nas lideranças das Congregações da IIP.

Toda Congregação da IIP, ao tentar ressemantizar a Igreja, vive esse “desvencilhar-se”


permanecendo, ainda que de forma tensa. Isso pode ser percebido da seguinte forma: para o
discurso próprio da Missão Caiuá o projeto da IIP sempre foi pensado para dar uma
184

progressiva autonomia aos indígenas na condução das próprias Congregações. Várias dessas
Congregações, por sua vez, surgiram não por ação direta do projeto missionário da Missão,
mas fruto de famílias que saíam de uma Congregação e abriam outras, compondo novas redes
de aliança (ñandéva?) para a afirmação da identidade (oréva?) daquela parentela. Assim,
algumas Congregações, mesmo que contadas como participantes do projeto da IIP não são
fruto das ações da Missão Caiuá, a ponto de não perceberem-se atreladas às estratégias da
Missão. Essas ações são interpretadas, dentro da semântica cristã, por muitos indígenas, como
“desvio” e “divisão”. Como dizia um indígena Guarani, líder de uma das Congregações da
IIP, ao explicar uma das possíveis causas do crescimento de Igrejas dentro das aldeias:
“Cresce porque divide. Dentro da igreja tem famílias rivais, se desentendem, acaba saindo e
formando outra igreja”.

Digno de nota que esse mesmo interlocutor sempre enfatizou certo despreparo do
“conhecimento bíblico” por parte das lideranças indígenas como um dos fatores para as
“divisões”, mas pouco apontou questões teológicas específicas para qualificar essa falta de
“conhecimento bíblico”. É possível enxergar aí um aspecto importante a ser considerado na
avaliação das igrejas como campo de mediação plural para a ressignificação religiosa dos
indígenas: na realidade, ao interpretar a fala do indígena, não se trata somente de uma “falta”
de conhecimento bíblico, mas do tipo de conhecimento que entra no jogo “sincrético e
diacrético” da permanente busca de compreensão do sentido religioso “último” (para lembrar
Tillich), a partir do código simbólico e teológico do Cristianismo. Isso não é nada simples
para muitos indígenas Guarani e Kaiowá na TID, mesmo naquelas Congregações onde há um
número considerável de indígenas que dominam a língua portuguesa e atuam nas aldeias
como professores, enfermeiros, assistentes sociais e outros postos/funções que exigem um
constante contato com a sociedade não indígena190. O que se quer afirmar aqui, em tese, é o
seguinte: o quadro plural das Igrejas é um “mosaico vivo” da tentativa de transitar nas
múltiplas fronteiras de “tradução” da mensagem de fé, onde a linguagem simbólica é

190
Para exemplificar: uma indígena Kaiowá que atua em uma das Igrejas da IIP na TID, relatou-me que é muito
difícil para o indígena entender discursos pastorais que não respeitem a língua nativa. Ela acha que, mesmo que
não se pregue na língua nativa que, pelo menos, haja um esforço dos pastores de adequarem melhor seu
vocabulário à semântica indígena. Talvez o esforço da IIP em manter pastores nativos, autóctones, diminua um
pouco esses problemas. Essa indígena conta que sua avó, considerada uma “feiticeira” (termo muito pejorativo
para os indígenas, relacionado a práticas sempre ruins ou demoníacas, na semântica cristã) por indígenas
convertidos ao missionarismo cristão freqüentou, durante muito tempo, Igrejas da Missão Caiuá: “[...] mas ela
não entendia nada que os pastores falavam. Ela ia no culto por causa das músicas, porque ela gostava muito
de cantar, principalmente porque era rezadora. Mas saía da Igreja e continuava fazendo seus rezas”. Diga-se
de passagem que, não obstante ou por reconhecimento, as ações cristãs missionárias encontram nos cânticos
um poderoso instrumento de eficácia evangelizatória.
185

negociada constantemente entre interpretações que afirmam o ser indígena e, ao mesmo


tempo, o quadro referencial que sustenta a Igreja, mas também interpretações que “distorcem”
o que formalmente se estabelece como normativo em dada Congregação. Assim, o “desvio”
pode ser interpretado ambiguamente como uma “tática” discursiva e comportamental para que
o indígena, muitas vezes invizibilizado pelo preconceito (essa “estratégia” hegemônica
imposta, ainda, pela sociedade não-indígena), possa encontrar um espaço praticado mais
propício à invenção de sua fé e crenças, mesmo delimitado por estratégias de cada igreja.

Voltemos à questão das possíveis homologias entre as Igrejas e as unidades de


relações sociais como o “fogo doméstico” e a “família extensa”, marcadas pela fronteira de
alteridade entre oréva e ñandéva. É possível enfatizar que as Igrejas não somente reproduzem
um modelo de tradição “perdida” pelos múltiplos contatos interculturais, seja o do fogo, seja a
da parentela. A tese é que, do ponto de vista sócio-antropológico, os indígenas compreendem
a Igreja como uma forma mediadora entre essas unidades de relações sociais. Isso significa
que, na fala de vários interlocutores indígenas, as Igrejas operam uma relação “sincrética” ao
assumir elementos do cotidiano de vida do “fogo doméstico” ao inventar um novo espaço que
propicia a retomada da vida de solidariedade, de proximidade e de senso de pertença a um
grupo. Isso é importante porque a TID hoje, por conta do intenso contato com o entorno
urbano, vivencia aquilo que Tillich chama de luta contra os poderes “heterônomos” da vida191.
Isso significa a presença concreta de instituições que encarnam discursos e práticas que
desagregam a estrutura da vida social e da existência de sentido de muitos indígenas, gerando
um contexto de violência “material” e simbólica considerável. A igreja, em tese, recomporia
um discurso de “união” das desagregações, onde uma nova tradição de conhecimento poderia
ser ensinada no dia-a-dia, não somente pela liderança, mas pelos demais membros da
comunidade. Isso fica claro no testemunho de um jovem indígena Guarani ao analisar a
situação de jovens, como ele, nas aldeias de Dourados hoje. Ele afirma: “O jovem indígena
vai para a igreja porque muitos estão abandonados. Não tem esperança no futuro. Estão aí,
muitos solteiros, não constituíram família ainda, são desprezados pelos seus parentes e não
são aceitos na cidade. Começam a beber, a usar drogas, experimentam uma solidão e um
191
Poderes esses que “estruturam” a vida individual e social das pessoas a partir de códigos, regras e bens
simbólicos estranhos ao universo de sentido cultural do grupo. Essa “lei diferente/estranha” (heterônomos)
pode ser posta de forma coercitiva, impositiva, seja de forma ostensiva ou muito sutilmente. No caso indígena,
alguns projetos governamentais de sustentabilidade ecológica, de agricultura, de pedagogias escolares, seja via
FUNAI ou de Organizações não-governamentais, não respeitaram os códigos culturais nativos e a tradição de
conhecimento dos povos indígenas. No caso dessa tese, todo projeto missionário que não respeita e não dialoga
com a tradição de conhecimento dos povos indígenas, impondo-lhes uma lógica hegemônica não-indígena,
com suas epistemologias que subalternizam o conhecimento nativo, pode ser considerado, a título de exemplo,
um poder heterônomo.
186

vazio grande. Aí ele chega na Igreja, vê todo mundo cantando, dizendo que Deus se importa
com ele e ele vai ficando...”. Assim “Deus”, longe de ser o onipotente soberano que, do céu,
tudo controla, passa a ser renomeado pelo “fogo” que aconchega e que aproxima. Nisso
residiria a potência do divino e, quem sabe, a necessária ressemantização que se espera de
ações missionárias mais compreensíveis, sem desconsiderar que toda ressemantização implica
no risco da distorção que é própria da construção de novos sentidos. Seria o risco do
demônico na essência do sincretismo e do diacretismo religioso.

Por outro lado, não se pode esquecer que as Igrejas são formadas, também, por
famílias extensas. A chegada de pessoas e outras famílias que não pertencem a determinada
parentela consolidada dentro de uma dada Congregação levantam a possibilidade de
desagregações e separações, exigindo da liderança uma capacidade de perceber sentidos em
meio a essas relações “diacréticas”, uma vez que, mesmo correndo o risco da distorção,
participa da possibilidade de criação (novos sentidos). Principalmente porque várias dessas
pessoas e famílias já passaram por outras Igrejas, trazendo consigo um mosaico de condutas e
até de visões teológicas diferenciadas, por exemplo: um indígena atuante em uma das
Congregações da IIP na aldeia Bororó relatou-me em uma das conversas: “Aqui na Igreja
chega muita gente e família pedindo cura para o filho. Eu não sou pentecostal, mas não tem
problema de pôr a mão na cabeça e orar pedindo que Deus cura. E cura mesmo! Mas eu não
vou ficar incentivando isso porque o índio tem que entender que não pode querer só o
milagre, tem que querer Deus, tem que converter, mudar de vida”. Não obstante o referido
indígena tecer certa crítica aos pentecostais, o mesmo opera uma ação “tática” de apropriação
de um discurso e prática que não lhe é próprio, fazendo desse discurso “seu” para ressignificar
o espaço social da Igreja pois, como atuando próximo à liderança da Congregação , vive na
linha tênue/fronteiriça entre pessoas que pertencem a práticas e costumes diferenciados. Este
indígena “converte-se” em um agente de mediação. Certamente que não se trata de um
processo simples, pois a fala do indígena indica ressignificar sua própria compreensão da
realidade divina: mesmo que Deus cure, as imagens do divino delimitam códigos sociais
definidores da identidade das Igrejas. Assim, o cuidado com o “Deus curador” como forma de
marcar a diferenciação com outras comunidades cristãs (no caso, as pentecostais). Une e
rompe ao mesmo tempo: sincretismo e diacretismo construidos, em ato, em discursos
profundamente heterológicos porque, como agentes de mediação, os indígenas vivem nas
fronteiras de vários “outros”. Esses exemplos interpretativos poderiam multiplicar. Porém,
outro aspecto importante para perceber as mobilidades sincréticas e diacréticas que
187

dinamizam a vida das Congregações da IIP é a afirmação que encontrei, tanto nas palavras do
diretor da Missão Caiuá, quanto em lideranças indígenas de algumas dessas congregações. Ao
apontar outras dificuldades para uma maior unidade das Congregações em torno do projeto da
IIP, o referido diretor afirmou certo distanciamento geográfico e étnico entre as Congregações
e a necessidade de ter uma presença maior das lideranças circulando por essas mesmas
Congregações. É justamente nesse “distanciamento” (territorial e simbólico) que essas
Congregações criam sua própria vida cheia de ambiguidades. Por mais que a Missão Caiuá
funde um “lugar próprio” com suas discursividades “estratégicas” (por exemplo, a formação
teológica presbiteriana no Instituto Bíblico da Missão) e as Congregações se vêem nesse
próprio, o “distanciamento” afirmado anteriormente instaura uma “relação tática”. Isso
significa que cada liderança, cada parentela ou até mesmo cada “fogo doméstico”192 inventa
sua maneira peculiar de ser Igreja ao procurar uma maior mobilidade sincrética e diacrética
em terras indígenas cuja mobilidade tradicional, pela política de demarcação de reservas, foi
severamente afetada. Assim, pois, as igrejas são campos de mediação de recomposição das
unidades de relações sociais tradicionais (exemplificadas no fogo e na parentela), mas não se
igualam a nenhuma delas: converte-se em um compósito ambíguo, pois as igrejas são espaços
sincréticos e diacréticos que radicalizam essa própria ambigüidade na construção da alteridade
social desses indígenas193.

Após essas análises hermenêuticas mais sociais e antropológicas, a próxima e última


subseção do capítulo tentará pontuar algumas implicações mais teológicas dessas relações
sincréticas e diacréticas, apoiada na literatura e nas narrativas dos indígenas, onde aparecerá
uma reflexão mais específica sobre a dimensão “demônica” das ditas relações.

3.2.2 Sincretismo e diacretismo religioso e suas fronteiras teológicas

No último capítulo de sua obra intitulada “Terra Madura” (2008), a teóloga Graciela
Chamorro desenvolve uma séria reflexão que pode ser nomeada por “heterológica”, sem

192
Algumas Congregações são tão pequenas, atualmente, que os membros da mesma se restringem quase aos
membros do fogo. Quando muito, a uma única parentela. Esse é um dado que não está restrito às Congregações
da IIP, mas a outras Igrejas, como algumas Pentecostais.
193
Se, por um lado, as Igrejas simbolizam a releitura do espaço social de solidariedade e proximidade grupal do
fogo e da parentela, por outro, ao estarem atreladas aos discursos típicos do missionarismo cristão protestante,
as igrejas pregam uma “atomização” individualista ao enfatizar a conversão do indivíduo, ainda que,
paradoxalmente, o discurso pregue a validez universal (para todos) dessa eficácia da conversão.
188

desconsiderar o respeito às identidades próprias dos indígenas Guarani (e povos indígenas


mais amplamente). Ela escreve sobre a complexa relação de alteridade, de compreensão do
“outro” que a teologia pode estabelecer com esses indígenas. Evoca a importância de uma
teologia mais “intercultural” e aberta ao diálogo “inter-religioso”, como expressão desta
“interculturalidade” ao afirmar: “[...] o que se chama de „outro‟ não está em oposição ao
„próprio‟, não é um „não-eu‟, mas uma dimensão do „eu‟. Da mesma forma, o „outro‟ não é
um objeto ao qual um super „eu‟ assina o lugar que deve ocupar, mas um sujeito que
compartilha essa posição com outros atores sociais” (CHAMORRO, 2008, p. 300).
Dificilmente, se esse princípio dialógico não for mantido, será enxergado que as
ambigüidades e dilemas culturais e religiosos que as parcelas das comunidades indígenas
Guarani e Kaiowá na TID vivenciam hoje, em suas Igrejas e demais espaços religiosos,
podem expressar suas preocupações fundamentais (religiosas, no dizer de Tillich). A teologia
precisa preparar-se para as implicações de uma ambigüidade demônica, ambiguidade essa que
orienta a experiência de sentido nas dinâmicas culturais concretas. Bem lembra o cientista da
religião Afonso Soares (2008, p. 192) que, se o sincretismo é a revelação de Deus em ato, ou
seja, “[...] aquilo que vai acontecendo quando se processa paulatinamente, entre avanços e
retrocessos, luzes e penumbra, nosso mergulho no Mistério”, torna-se frutífero pensar o
sincretismo a partir de seu “abismo” diacrético também. Isso ajuda a mostrar que a
experiência religiosa, também para os indígenas, comporta profundas idiossincrasias e
rupturas que, longe de ser um efeito deletério das “misturas sincréticas” que eles operam são,
na realidade, a própria essência inventiva da experiência religiosa demônica, sem a qual será
impossível perceber de forma mais translúcida, ainda que fragmentariamente, o sentido último
da existência.

Ao levar em conta as discussões anteriores, é possível afirmar que o teko retã, ou seja,
a possibilidade de um “jeito de ser plural”, em termos religiosos, para os Guarani e Kaiowá
que vivenciam as fronteiras das Congregações da IIP, passa por profundos rearranjos também
teológicos, ainda que nem sempre fáceis de compreender a partir das falas e testemunhos
desses indígenas. Um exemplo simples disso é que, ao longo da pesquisa, perguntei para
vários interlocutores e interlocutoras, em que consistia a expressão “Indígena” e a
“Presbiteriana” na sigla da IIP. Sobre a questão “Indígena”, via de regra, a resposta passava,
desde simplesmente dizer que significava ter Igrejas com pastores/lideranças indígenas, a
respostas que enfatizavam a retomada da consciência de uma vida cristã que respeitasse e
dialogasse mais com elementos nativos e tradicionais da cultura indígena. Em alguns casos
189

percebia-se que não se tratava apenas da “retomada” de consciência, mas do estabelecimento


de uma consciência ainda não estabelecida. Em relação ao que ela tinha de “presbiteriana”,
retomando esse assunto já abordado na subseção anterior, a quase unanimidade das respostas
foi: nada (ou quase nada). Os indígenas e as indígenas me diziam que, se ser “presbiteriano”
significa crer em teologias clássicas como as da predestinação, a confissão da inerrância plena
das Escrituras Sagradas ou, em aspectos mais eclesiológicos, seguir um modelo de governo da
Igreja centrado na representatividade “presbiteral” de um grupo, existe pouco de
presbiteriano, pelo menos em algumas Congregações da IIP. “Predestinação, soberania de
Deus, o índio não entende essas coisas não. E vou dizer mais: não está muito ligado nisso
não”, dizia-me outra jovem Kaiowá de uma das Congregações. Até mesmo alguns líderes
indígenas do próprio projeto da IIP, com inserções no Instituto Bíblico da Missão Caiuá194,
expunham suas dificuldades ao dizerem que é muito difícil para vários indígenas
compreenderem a teologia ensinada no Instituto, uma vez que vários dos alunos indígenas tem
pouca compreensão da língua portuguesa, além de terem que conviver com outras etnias. Um
desses líderes indígenas me dizia: “Como é que eles vão entender o que é „inerrância‟ se mal
conseguem ler a Bíblia?”

Assim, os indígenas reelaboram suas imagens teológicas do divino a partir das


experiências cotidianas, da práxis da fé como resposta ao vários dilemas e problemas que
enfrentam nas aldeias hoje, passando por outros caminhos de mediação que não tão somente
as doutrinas dogmáticas estabelecidas. Mas até mesmo para aqueles que lêem e conseguem
compreender o texto bíblico, há ressemantizações extremamente “sincréticas e diacréticas”:
se, por um lado, afirmam a centralidade do texto bíblico para a vida, por outro acentuam
interpretações muito díspares, “distorcidas”, “desviantes” em relação ao que a Igreja/Missão
estabelece oficialmente195. Um exemplo é a busca, por alguns indígenas, de relerem textos
bíblicos, principalmente de tradições proféticas, sobre a importância da posse da terra
tradicional para a vivência de suas perspectivas cristãs. Em conversas com uma indígena
Kaiowá a mesma me dizia da quase ausência total das discussões sobre processos fundiários e
posse das terras tradicionais e sua relação com a autêntica vida indígena, segundo ela dada por
194
Esse Instituto apresentou seu primeiro diretor indígena a aproximadamente 30 (trinta) anos após a sua criação.
195
Levi Pereira, por exemplo, ao analisar, do ponto de vista sócio-antropológico, as ressemantizações que os
indígenas Kaiowá operam nas Igrejas pentecostais dentro das aldeias, afirma que a hierarquia das lideranças
não-indígenas das Igrejas tem pouco controle dos processos hermenêuticos de tradução que os indígenas fazem
em suas pregações. Isso ocorre porque essas lideranças não-indígenas freqüentam pouco o culto nas aldeias,
pouco dominam a língua e os pregadores Kaiowá evitam determinadas interpretações na presença dos líderes
não-indígenas (PEREIRA, 2004, p. 286). Novamente poderia ser um exemplo, em sentido certeauniano, de
como os indígenas fazem de “um lugar próprio”, um “espaço praticado” mobilizado por táticas discursivas e
comportamentais em meio às estratégias estabelecidas.
190

Deus, nos púlpitos e demais instãncias de ensino das Congregações da IIP. Aqui, nesse
exemplo, há fatores históricos diversos para o não envolvimento das missões cristãs
evangélicas com a questão da luta pela terra, inclusive com argumentos teológicos, mas que
foge dos objetivos dessa tese. Além disso, há que se perguntar em quais quadros de referência
teológica certos indígenas estão baseando-se para construir essas leituras bíblicas que, por sua
vez, enfatizam a importância da terra para o seu modo de viver indígena e cristão. Esse tema
abriria, inclusive, novas portas de pesquisa histórica, antropológica e teológica196.

A partir dessas discussões, a fim de detalhar mais o exercício hermenêutico de


possíveis leituras teológicas sincréticas e diacréticas, tomemos o tema da reflexão sobre Jesus
Cristo (tradicionalmente nomeado na teologia por “Cristologia”) e as práticas do xamanismo.
Nessas “releituras” teológicas feitas na interlocução de campo com os indígenas, sejam
textuais, sejam orais, a figura de Jesus Cristo e a relação com o xamanismo (seja o tradicional,
seja o ressemantizado pelos pastores indígenas), surgem como temas representativos no
imaginário religioso dos indígenas que transitam nas Congregações da IIP. É possível afirmar,
em tese, que o xamã/rezador adquire, na sua relação com o sagrado, uma feição demônica
que, grosso modo, pode ser aplicado como chave interpretativa das imagens que os indígenas
fazem de Jesus e dos pastores, anunciadores da mensagem desse mesmo Jesus.

Um bom estudo sobre a tradição de conhecimento e a experiência religiosa em torno


da figura do rezador (xamã) Guarani e Kaiowá pode ser encontrada em Pereira (“Imagens
Kaiowá do Sistema Social...”, 2004, p. 365-81) e Mura (2006, p. 303-26). Em termos mais
teológicos, Chamorro (2008, p. 220-29) apresenta boas intuições sobre a soteriologia197 cristã
e a religião Guarani, retomando perspectivas em torno da figura de Jesus Cristo. A presença
do rezador ou rezadora sempre foi central para a educação religiosa dos indígenas Guarani e
Kaiowá. Isso equivale a dizer que, em torno da figura xamânica gira toda a responsabilidade,
sempre compartilhada, de promover as regras do bom viver, na mediação com toda a
cosmologia que promove as estruturas de sentido desses indígenas. De fato, como afirma
Mura, os xamãs são os únicos sujeitos que “[...] podem viajar por todas as dimensões e partes
do Cosmo, dialogando e interagindo com os seres que as povoam. O xamã é, portanto, figura
196
Apenas algumas impressões, já que não constitui tema dessa tese. A presença de alguns indígenas líderes da
IIP em Organizações Não Governamentais, em cursos superiores, principalmente na área de ciências humanas
nas Faculdades e Universidades de Dourados, o contato com outras agências missionárias que procuram fazer a
ligação entre pastoral, teologia e questões fundiárias, como o Conselho Indigenista Missionário – CIMI,
poderiam explicar o interesse por novas leituras bíblicas para além das fronteiras teológicas postas pela Missão
Evangélica Caiuá.
197
Termo clássico na tradição teológica que significa, grosso modo, o estudo, a reflexão acerca da salvação
(sotería, no grego) nas várias perspectivas cristãs.
191

central na tradição de conhecimento indígena, sendo ele quem tem a legitimidade para avaliar
moral e eticamente os saberes que circulam e estão à disposição dos índios” (MURA, 2006, p.
304). Levi Pereira parece ir na mesma direção avaliativa ao afirmar que a conduta xamânica é
referencial para o estabelecimento das relações sociais entre os indígenas (especialmente os
Kaiowá), pois é aquele que transita, operando todo o conhecimento, entre o mundo social dos
humanos e dos divinos. O xamã é aquele que dialoga e negocia constantemente com os jara (
cujo significado é “senhores”, “donos”) de cada ser198. Ao utilizar uma metáfora bem presente
nessa tese, pode-se afirmar que ao rezador/xamã compete a criação de espaços de
mediação/fronteira, entre humano/humano e humano/divino. Ele é o ser da mediação e, como
toda mediação, ocorre no espaço inventivo da ambigüidade. Mas, quando é preciso pensar o
princípio “xamânico” no contexto das múltiplas fronteiras das Congregações da IIP a situação
fica mais complexa porque, em muitos casos, pelo menos para um interlocutor menos afeito
ao contato com esses indígenas, a leitura que eles (os cristãos indígenas) fazem das práticas
xamânicas pode soar muito pejorativa. Essa leitura pejorativa ocorre, em parte, por conta de
determinada educação teológica que os agentes religiosos receberam das ações missionárias,
educação essa centrada em uma visão monoteísta exclusivista onde as chaves da salvação
repousam, unicamente, em Jesus Cristo como mediador entre Deus e os seres humanos
maculados pelo pecado. O discurso do xamanismo enquanto mediação pode, perigosamente
(na visão do missionarismo tradicional), questionar essa exclusividade da mediação em Jesus.
Nesse caso a releitura do xamanismo não seria interpretada em sua ambiguidade demônica,
mas no sentido essencialmente negativo mesmo, ou seja, “demoníaco”. Mas há outros
caminhos interpretativos.

De fato, está muito presente na literatura antropológica, e o autor dessa tese


testemunhou vários relatos sobre isso, o registro de uma visão negativa e desqualificadora das
práticas xamânicas tradicionais por parte dos indígenas cristãos, independente se freqüentam
as Congregações da IIP ou não. É possível encontrar nos indígenas pentecostais, por exemplo,
um “ataque” mais incisivo, a ponto de “demonizar” as práticas xamânicas tradicionais. Já não
era incomum na TID ouvir alguns pastores indígenas pentecostais referirem-se ao mbaraka,
instrumento musical e ritual dos Guarani e Kaiowá muito utilizado nas rezas tradicionais,
feito da cabaça (semelhante a um “chocalho”), como sendo o “testículo” do próprio diabo. Por
outro lado, nas interlocuções com indígenas da IIP, o que se percebe não é necessariamente
uma desqualificação do que chamo aqui de “princípio xamânico” e, sim, de determinados

198
Cf. PEREIRA, L. M. Imagens Kaiowá do Sistema Social e seu Entorno, p. 370ss.
192

comportamentos de algumas pessoas que se intitulam rezadores. Via de regra, as críticas a


rezadores na TID (diga-se de passagem, que essa crítica não vem somente dos indígenas
cristãos) é que vários desses rezadores assumiram os efeitos deletérios do karai reko, ou seja,
“o modo de ser”, o “estilo de vida do não-índio, do branco”. Assim, as festas religiosas
tradicionais, os rituais específicos que envolvem os cânticos e as rezas xamânicas são
regrados, atualmente, também com bebida alcoólica, principalmente a cachaça ou “pinga”.
Um indígena Kaiowá que participa ativamente em uma das Congregações da IIP, membro de
uma família extensa bem tradicional na TID, vive a experiência de ser um dos poucos de sua
família a converter-se ao Cristianismo através da ação da Missã Caiuá. O seu pai ainda é o
“cabeça de parentela” e possui uma ogá (casa tradicional) onde, segundo ele, na maioria dos
finais de semana os membros da família extensa se reúnem para festas e rituais xamânicos.
Perguntado se ele ainda freqüentava esses momentos, ele disse mais ou menos o seguinte:
“Evito ir, porque o pessoal se reúne, vai na cidade comprar pinga, mistura com a
“chicha”199, mistura também com muita música barulhenta, aí o pessoal fica bêbado e pode
ter problema”. Assim, passa a ocorrer, no cotidiano, a associação desses momentos com a
experiência da violência, muito presente nas aldeias hoje. De fato, o referido interlocutor
indígena não discorreu sobre maiores “censuras teológicas” e doutrinárias, mas tão somente as
questões envolvendo a violência. Porém, nunca é demais lembrar que certos usos e costumes
atrelados a hábitos dietéticos, tal como o consumo de bebida alcoólica, mesmo que não tenha
como consequência atos de briga e violência, ainda é utilizado por setores mais conservadores
do missionarismo cristão como marcador identitário de pertença a uma vida cristã considerada
autêntica, uma forma de diferenciar-se dos “não crentes”.

Da mesma maneira uma senhora indígena Guarani, que já frequentou congregações


pentecostais e agora está na IIP, narrava como, antigamente, os rezadores “realmente falavam
com Deus”. Ela mesma narra como Deus curou sua irmã de uma enfermidade mortal devido
às práticas xamânicas tradicionais. Mas complementa, em consonância com o testemunho do
indígena anterior, ao afirmar que hoje o rezador deixou Deus e só quer saber de beber e
fumar. Declara, ainda, que na TID não há mais rezadores “como antigamente”. “Se precisar,

199
Bebida fermentada à base de milho branco, tida como um dos elementos religiosos fundamentais na tradição
religiosa nativa, uma vez que potencializa os estados de êxtase religioso e uma percepção “onírica” mais clara
do caminho (tape) a ser seguido, orientado pelas divindades e indicado pelo xamã. Hoje em dia é bem mais
difícil encontrar o milho branco na TID, tendo sido substituído por outros tipos de milho e até mesmo pela
mandioca, além de entrarem elementos típicos da economia industrializada da sociedade nacional envolvente,
como as citadas bebidas alcoólicas.
193

tem que buscar fora”, diz ela200. Outro indígena Guarani, líder de uma das Congregações da
IIP dizia-me, em sua interpretação, que o rezador tradicional também pode falar com Deus,
que ele foi importante quando conseguia reunir todas as famílias em torno dele para mostrar
os “caminhos corretos”. Mas nas aldeias de Dourados, prossegue ele, com a entrada do
branco e a “mistura” de várias etnias, o rezador caiu em descrédito porque ele não consegue
mais articular, “levantar” uma parentela em torno da qual exercita sua liderança, o que
demonstra uma percepção antropológica muito refinada na análise desse indígena. Ele diz: “Aí
entrou as Igrejas, que são muito mais rápidas e eficientes, porque não estão presas a toda
tradição de conhecimento de uma parentela específica. Todo mundo é aceito. É só ir no culto,
cantar, levantar a mão, pedir, que Deus aceita e cura”, arremata.

O que se percebe nessas narrativas, nessas interpretações, certa permanência, inclusive


no imaginário dos indígenas cristãos, de uma tradição xamânica de construção dos caminhos
necessários de acesso ao sagrado. Mas não se trata, na visão dessa tese, somente de mudanças
de significantes, mas mantendo-se o significado, ou seja, os indígenas cristãos vão à Igreja tão
somente porque encontram na figura pastoral o novo “arquétipo/modelo” do xamã/ ñanderu,
tal como afirmam Brand e Vietta (2004, p. 252-3):

[...] mesmo utilizando caminhos diversos aos ñanderu, os pastores, de


alguma forma, recompõem os vínculos com o sobrenaural, na medida em
que recriam os rituais, incluindo os de cura, exercem o papel de
conselheiros, fornecendo os elementos que permitem restabelecer a ordem
do ponto de vista emocional. A igreja, ainda, oferece um novo referencial
para recompor a unidade e a coesão da família extensa. Esta, contudo,
amplia-se, na medida em que agrega os “irmãos” de fé

Não é possível desconsiderar as conjunções sincréticas entre o xamã/rezador e a figura


pastoral na citação anterior. De fato, já foi afirmado que ela está presente nas falas indígenas.
Isso poderia apressar uma leitura de certo “sincretismo” entre essas figuras. Mas há
disjunções diacréticas que não aparecem na citação anteriormente referenciada. Na subseção
anterior nesse capítulo (3.2.1), se a Igreja recompõe uma nova unidade social, conforme
afirmado ela, a Igreja, ao “agregar os novos irmãos de fé” promove, também, rupturas, cisões.
O “novo referencial” nunca foi um ponto tão pacífico assim para os indígenas: estão aí as
várias Igrejas para atestar isso. Além disso, a citação toma a figura do pastor como ator social
que se apossa do sagrado como um bem simbólico e o “distribui” para os fiéis, mas não se

200
Principalmente esse “fora” refere-se ao Paraguai, país vizinho que faz fronteira com o cone sul de Mato
Grosso do Sul, especificamente em algumas aldeias nessa região de fronteira.
194

pergunta o que os fiéis fazem com esses “bens” (foco de interesse das análises certeaunianas).
O xamã tradicional sempre foi, a seu modo, mais um caminho de mediação e não de posse
plena das divindades. Mesmo que se deva estabelecer “homologias”, é possível, em tese,
afirmar que os pastores, junto com os demais participantes das comunidades, reinventam um
jeito demônico de se relacionar com o divino. Ainda que se corra o risco de projetar para os
indígenas categorias que não são próprias do seu universo de sentido, é possível também dizer
que a figura do xamã e, até mesmo, do “cabeça de parentela” evocam, em suas atitudes
religiosas, um grande potencial demônico, uma vez que se vêem na fronteira constante de, a
partir de suas palavras e ações, criarem ambiguamente, ou seja, afirmativamente e
distorcidamente, os códigos simbólicos que configuram sentido à vida. Mas é justamente
nessa ambigüidade que reside o potencial de se criar discursos táticos que atravessam,
transversalmente, as estratégias discursivas consolidadas201. De fato, no testemunho dos
indígenas sobre as ações xamânicas, se há a compreensão da distorção dessas mesmas ações,
inclusive geradoras de violência, não se deixa de afirmar que o “princípio xamãnico” de
mediação com o divino ainda existe e, se bem “operado”, pode continuar a dar os devidos
acessos a Deus. O risco da ambiguidade permanece.

Diga-se, de passagem, que a citação de Brand e Vietta anteriormente foca as


experiências indígenas com as Igrejas pentecostais. Muito embora várias Congregações do
projeto da IIP orientem seu cotidiano por movimentos pentecostais, mesmo que não sejam
nomeadas como tais. Todavia, não se pode desconsiderar o lastro “cristológico” que ainda
marca várias dessas Congregações da IIP por conta das ações e discursos teológicos da
Missão Caiuá. Para ilustrar como podem ocorrer possíveis invenções “demônicas” no
discurso sobre Jesus Cristo trago a fala, novamente, do indígena Kaiowá que já foi aprendiz
de rezador e que atua em uma das Congregações da IIP na TID. Em várias conversas que
tivemos ele me afirmou que, para o indígena, principalmente o Kaiowá que não domina o
português, é muito difícil compreender que Jesus é “Deus”, ou seja, ser divino supremo.
Pensar, inclusive, em Jesus como a segunda pessoa da Trindade santa torna-se muito mais
complicado. Nos processos de evangelização e de tradução dos símbolos religiosos e
teológicos, e a Missão Caiuá não foi exceção a essa regra, foi muito comum atribuir a Jesus o

201
Todo discurso científico, segundo de Certeau, instaura um “lugar próprio” estratégico a partir de onde regula
outras tradições de conhecimento. Não é diferente, essa vontade de poder, com a antropologia e a teologia.
Interessante que, em conversas com alguns interlocutores indígenas professores e universitários, em dado
momento da conversa perguntava a mim mesmo se eles expressavam mais a sua opinião ou projetavam as
idéias de conhecidos antropólogos e antropólogas que atuam na região de Dourados. Mas, não deixa de ser o
jogo das negociações simbólicas e apropriações de discursos outros.
195

status de Ñanderuvusú, termo utilizado pelos Guarani para caracterizar o “Deus maior” na
cosmologia tradicional, aquele que habita o yvaga (que pode ser traduzido por “céu”). O
Deus, nesse caso, torna-se uma divindade de “difícil acesso” diretamente. Por isso, necessita
de mediações. Mas habitar esse céu é a caminhada última dos Guarani e Kaiowá. Nas
narrativas míticas surge o filho “mais velho” de Ñanderuvusú, um dos gêmeos, Kuarahy ou
Pa‟i Kuara (o “sol”), que também pode ser denominado de Ñanderyke‟y (que pode significar,
sugestivamente, “nosso irmão mais velho”). É justamente essa divindade que ficou
encarregada de cuidar da terra (yvy) e de conduzir os seres humanos, em um constante
processo de negociação com os “jara”, ou seja, os donos de cada humano, pelo caminho
(tape) ao céu. Esse caminho encontra muitas vicissitudes. Assim, o “nosso irmão mais velho,
o sol”, nos “ilumina” até Nãnderuvusú ou Ñandejára (expressão que significa “nosso dono”,
“nosso senhor”), como costumam dizer os Kaiowá202. Esse indígena relatou-me que o “sol” é
ressignificado como a “lanterna” (o que seria a “ponta da lança flamejante” em uma
linguagem mais tradicional) que ilumina os nossos caminhos. Assim, Pa‟i Kuara nos mostra,
iluminando, o caminho para “Deus”.

Esse indígena continua a sua narrativa e afirma que, se houver uma maior relação entre
Jesus e Pa‟i Kuara os indígenas, principalmente os Kaiowá, vão compreender a mensagem
melhor e, assim, não associá-lo diretamente com Ñanderuvusú. Como esse indígena lida com
constantes processos de tradução e ensino da Bíblia em sua Congregação da IIP, afirmou-me,
por exemplo, que traduz o texto do Evangelho de João, capítulo 14, verso 6, não como Jesus
“sendo” o caminho, mas como aquele que “aponta”, que mostra o caminho para o Pai. Não
somente aponta, mas caminha junto. No processo de diálogo, afirmei para ele: “Mas isso pode
dar uma outra interpretação teológica de Jesus”. E ele respondeu: “Sim. Mas essa
interpretação não pode ser bíblica também?” Devo confessar que concordei com ele. Mas, o
que se quer com esse exemplo? O fato é que esse tipo de interpretação causa certa “distorção”
em relação à maioria dos discursos “oficiais” e dogmáticos que defendem uma “substância
divina” de Jesus, no sentido essencialista e metafísico clássico. O símbolo do “caminho”
deixa de ser símbolo para se converter em uma ontologia descritiva da essência de Jesus. Ao
promover certo “esvaziamento” dessa “metafísica”, a interpretação de Jesus como aquele que
“aponta” o caminho descortina outras possibilidades de leitura: assim como Pa‟i Kuara
assume as vicissitudes de ser um ser da mediação, Jesus também se torna esse ser mediador

202
Normalmente os missionários, sejam indígenas ou não, usam a expressão Ñandejára para qualificar o próprio
Deus, “nosso Senhor”, o que, de forma equivalente, é usado frequente para referenciar Jesus Cristo.
196

entre o divino e humano. Cada um a seu modo. Mas essas categorias filosóficas e teológicas
não habitam o imaginário religioso do referido indígena. A preocupação dele torna-se
eminentemente prática. Como educador de uma Congregação da IIP onde vários indígenas se
comunicam em Kaiowá, esse mesmo indígena “encarna” o papel da mediação teológica de
sentido. Tal mediação é profundamente demônica: ao mesmo tempo em que ele não nega a
importância da Bíblia e de Jesus como configuradores de sua experiência religiosa de fé e de
sentido, reconhece que precisa ressemantizar o discurso teológico para que seja melhor
compreendido por sua Congregação. Só que ele o faz com a consciência de que suas releituras
podem causar problemas junto aos assentimentos formais e tradicionais das imagens de Jesus.
É um processo significativamente inventivo, uma vez que instaura novas possibilidades de
sentido, ao mesmo tempo em que corre-se o risco de distorções e perdas de sentido, ou seja,
demônico. O indígena vive as tensões sincréticas e diacréticas na fronteira dos espaços de
negociação estabelecidos. Assim, a experiência demônica ora afirma a descoberta de novos
espaços interpretativos perante a Igreja Indígena, ao mesmo tempo em que rompe com outros
espaços que também são importantes para esse mesmo indígena: ele instaura táticas, mesmo
sabendo que corre risco de sanções estratégicas.

Essa releitura “cristológica” no diálogo com a religião Guarani é bem feita por
Graciela Chamorro (2008, p. 220ss). Para essa teóloga não há no imaginário religioso
Guarani tradicional a figura de um salvador que “morre pelos pecados da humanidade”. Isso
lembra a indagação feita a mim por um indígena Kaiowá certa vez: “Ele [Jesus] precisa
morrer para ser meu salvador?” Chamorro também compara Jesus a Pa‟i Kuara, ou seja,
tanto um como outro passam a ser “exemplares” para que cada ser humano e todos os demais
seres (que também são humanos, a seu modo) possam bem caminhar rumo à plenitude. Jesus
torna-se, assim, nosso “irmão mais velho”. Se ele conseguiu encontrar o caminho, porque seus
companheiros e companheiras de caminhada não conseguiriam? E assim, toda sorte de
problemas e sofrimentos vividos na TID hoje são ressignificados como próprios da
ambigüidade da caminhada para a “divinização” da vida. Além disso, Chamorro, preocupada
em estabelecer pontos de semelhança para o diálogo entre Cristianismo e culturas indígenas
recupera, justamente, a teologia da “divinização” (no grego, theosis) em lugar da teologia da
morte expiatória de Cristo, clássica no Ocidente cristão, como melhor possibilitadora do
diálogo (CHAMORRO, 2008, p. 221). Mas e as heterologias, as diferenciações, a relação
ambígua entre sincretismo e diacretismo? Ao voltar para a conversa com o indígena citado
anteriormente perguntava-o, mais uma vez: “Mas, na estória original, [narrativa mítica
197

tradicional] Pa‟i Kuara desobedecia Ñanderuvusú também, matava, lutava, fazia


armadilhas...” Como fica Jesus nessa estória? E o indígena respondeu: “Ah, mas não são
exatamente iguais. Cada um do seu jeito. O que importa é que Jesus é também „Ñandejára‟,
nosso dono, nosso senhor. É ele que afasta os outros tekojara que são maus e violentos, que
querem nos afastar do caminho certo!” Ou seja, Jesus pode ser, ao mesmo tempo “Deus
maior” e “nosso irmão maior”. Tentativa de manter um equilíbrio tenso entre leituras
diferentes ao apropriar-se de universos simbólicos religiosos distintos? Basta dizer que como
indígena cristão já está “aculturado” e que, por isso, tornou-se menos indígena? Não se pode
esquecer que ele é um “agente de mediação” e que reformula constantemente seus
pressupostos: afirma, une, aproxima tendências, mas rompe, “distorce”, destrói outros
sentidos. O que parece ilógico para nós, não o é para ele em suas relações sincréticas e
diacréticas, uma vez que essas relações procuram estar atentas a essas falas indígenas como
construtos de sua realidade.

Nesse sentido, caberia a interpretação da figura de Jesus como um xamã/ñanderu?


Essa interpretação é uma possibilidade de rearranjo sincrético e diacrético? De toda forma, a
aproximação das imagensa de Jesus à experiência xamanânica poderia abrir novos horizontes
de compreensão teológica. Todavia é importante reconhecer que, dificilmente, em poucos
contatos, se ouvirá um indígena que pertence a uma Congregação da IIP fazer tal tipo de
relação, uma vez que isso poderia colocar Jesus num nível “demasiadamente humano” para os
padrões tradicionais da compreensão de sua divindade. Todavia, isso não impede que os
indígenas reinventem suas tradições cristãs (essas, por sua vez, já são tradições ressignificadas
para eles) e as outras tradições que vão assumindo. É possível retornar, então, à fala do
indígena Guarani sobre uma “Cristologia da Encarnação” ser mais afeita aos indígenas, pelo
menos os que assumem experiências cristãs das Congregações da IIP. A princípio, a
encarnação como o movimento representativo do divino assumindo o humano pode soar
estranho aos indígenas, quando esses indígenas querem o movimento oposto, ou seja,
“tornarem-se deuses”. Ouvi de um indígena Kaiowá, membro de uma das Congregações da
IIP, a seguinte afirmação “Não entendo porque Deus tem que vir até nós. Nós é que temos que
ir para ele!” Nesse aspecto, a figura do xamã e até mesmo do cabeça de parentela, consiste
em articular palavras e ações que efetivam o “erguer-se”, o “levantar”. Do xamã espera-se que
ele promova o levantar do grupo para divinizar-se, para encontrar o bom caminho das
divindades. Do cabeça de parentela espera-se que ele “levante” seu grupo com boas palavras e
ações que estimulem a reciprocidade e a solidariedade, reproduzindo o mundo dos divinos.
198

Assim, esse indígena continuou elaborando suas reflexões teológicas: “Mesmo que Jesus
desça, encarne, ele faz com o propósito de ficar junto de nós para “levantar” a gente. Afinal,
para levantar tem que estar abaixado né?

Mesmo que não nomeie explicitamente, o referido indígena, em nossa interpretação,


estabelece relações sincréticas e diacréticas em suas reelaborações teológicas. No caso aqui,
“cristológicas”. Esse indígena não chega ao ponto de chamar Jesus de xamã/rezador, mas
retoma a idéia de Jesus como nosso grande irmão que se coloca ao nosso lado para “levantar”,
bela metáfora para a solidariedade e recomposição de experiências de sentido e laços de
sociabilidade diante de estados de profunda fragilização, como acontece com muitas famílias
indígenas pertencentes às Igrejas na TID. Não é sem motivo que os indígenas Guarani e
Kaiowá respeitam muito aquelas lideranças que articulam a capacidade de “levantar”
parentelas e até as próprias igrejas, recompondo a experiência da solidariedade. Mas essa
experiência é ambígua. Ao mesmo tempo em que se levanta, corre-se o risco de incorrer em
atos e afirmações teológicas “destrutivas”, que fazem despertar sentidos outros que, inclusive,
escapam do controle do cabeça de parentela e do xamã, principalmente quando se lida
diretamente com os Jara ou, numa linguagem mais cristã afeita aos pastores indígenas, com o
mundo dos espíritos, almas e “demônios”. Há que se ter muito cuidado no falar. O levantar
implica na possibilidade de “desabamentos” de sentido, ou seja, em uma relação
profundamente demônica. Por isso, o universo religioso dos indígenas cristãos é
ressemantizado porque o princípio xamânico constrói e destrói, uma vez que radicaliza o
encontro com o “outro” a partir de onde se repensa a própria experiência de fé.

De acordo com o antropólogo Ioan Lewis, o xamã é um “mestre de espíritos”. No caso


Guarani e Kaiowá alguém que sabe “negociar”, constantemente, com os Jara, por exemplo.
Assim, em que pese a leitura influenciada por uma psicologia dos estados de êxtase individual
e coletivo, Lewis afirma que o xamã não é somente alguém que é possuído por espíritos, mas
alguém que “possui” os espíritos. Com isso, Lewis fala de um xamanismo “controlado”, ou
seja, “Alguns, [...] se graduarão a ponto de se tornarem controladores de espíritos e, uma vez
“dominando” essas forças de maneira controlada, serão xamãs propriamente ditos”203. Para
alguns pastores indígenas da IIP, ainda que não apliquem a categoria de rezadores a si
próprios e a Jesus, não deixam de evocar o “princípio xamanânico” de “controle de espíritos”:
ao “transitarem”, através das palavras cantadas, testemunhadas, murmuradas e dentro das

203
LEWIS, I. Êxtase Religioso, p. 63-4.
199

regras de homilia, no chamado “mundo espiritual”, os pastores indígenas procuram encontrar


as palavras certas de consolo, acolhimento, perdão, cura, dentre outros valores que
recompõem o sentido da existência. O mundo povoado pelos seres espirituais, mesmo que na
semântica cristã receba nomes como “demônios”, “espíritos imundos”, “anjos”, dentre outros,
é um mundo de construção de relações sociais. Nesse caso, Jesus converte-se no maior
rezador, em seu sentido exemplar, uma vez que é evocado o nome dele, justamente, para
“controlar” esse universo de relações sociais. Os pastores indígenas negociam com seu grande
Jara, ou seja, seu grande “dono”, “senhor exemplar”, Jesus, a fim de poderem, eles próprios
“negociarem” e “controlarem” os outros Jara. O rezador/xamã seria um “cabeça de parentela”
quando percebe que sua parentela se refere e se extende, também, a esses “outros espirituais”.
Jesus consegue controlar e “levantar” esse mundo de sentido. De tal forma, os pastores, como
pertencentes a ele, reproduzem esse “levantamento”, esse controle na realidade social. Assim,
há apropriações de códigos simbólicos tradicionais e nativos que sincretizam-se com
concepções teológicas cristãs, ressignificando as imagens cristológicas: mais vale esse Jesus
que se “levanta” de sua humanidade para apontar o caminho ao divino, do que o Jesus Cristo
da dogmática que se rebaixa a partir de sua divindade para assumir a humanidade.

Porém, o princípio xamânico, uma vez que repousa na ambiguidade do demônico,


deve ser lido na perspectiva das relações diacréticas. Se há o “controle”, se os pastores são
bem sucedidos em suas “negociações de sentido”, há o risco do “descontrole”, de serem mal
sucedidos. O sincretismo operado é interpretado por outras lideranças indígenas, por membros
de suas próprias Congregações e por setores da direção da Missão Caiuá, a partir de
contradições muito grandes: não há um controle total sobre as intepretações das palavras
discursadas e as ações que provocam. A ruptura com alguma família extensa na Congregação
pode ser interpretada, pelos indígenas, ora como incapacidade da liderança de bem fazer a
gestão das relações sociais, ora como forma de afirmação de controle “eclesiástico” por parte
dessas mesmas lideranças, frente aos diversos discursos teológicos e suas práticas adquiridas
nos mútliplos contatos entre as diferentes Igrejas nas aldeias. Assim, não é fácil interpretar
quando a apropriação de determinado discurso teológico e suas conseqüentes imagens sobre
Deus e Jesus reforçam estratégias ou colocam táticas que distorcem essas estratégias.
Possivelmente, se há algo que é reforçado é a permanente experiência da ambigüidade: nas
relações sincréticas e diacréticas que os indígenas da IIP produzem, as “distorções” de sentido
não deixam de serem criações de sentido, em que pese o risco da perda de sentidos. O que se
espera é que, na luta pela construção da alteridade, essa “perda” de sentido não seja
200

permanente, mas “negociável”, a fim de encontrar novos sentidos, novas perspectivas e


manter a dinâmica cultural entendida como caminhos de mediação para a invenção
permamente da realidade cotidiana.

Por fim, vários indígenas que participam do projeto da IIP em seu cotidiano, vão
realizando os seus “jogos” sincréticos e diacréticos não por descapricho teológico, mas por
uma profunda experiência de reorganização do sentido da vida religiosa e da conseqüente
manutenção das relações sociais. É essa relação sincrética e diacrética que une e separa as
hermenêuticas teológicas, que são hermenêuticas de sentido, com as hermenêuticas sociais, o
que favorece a composição de um quadro exemplificador que dinamiza um possível teko reta,
ou seja, um modo de ser religioso múltiplo e diferentemente plural.

Em síntese

O presente capítulo consistiu, em dupla perspectiva (antropológica e teológica), em


um ensaio interpretativo dos possíveis significados das fronteiras de contato entre missões
cristãs e povos indígenas, à luz das teorias do sincretismo religioso apresentadas nos capítulos
anteriores. Especificamente, o capítulo mostrou, em sua primeira parte, que a antropologia da
religião e do referido contato já superou conceitos como aculturação e simples acomodação.
Muito embora a categoria do sincretismo religioso ainda seja pouco utilizada por esse mesmo
discurso antropológico que, atualmente, trabalha com modalidades de contato expressa pelas
categorias de hibridação, mediação de fronteiras, duplas e triplas pertenças religiosas, dentre
outros. Na teologia, o uso do termo sincretismo para interpretar as reelaborações de fé que
ocorrem devido ao contato ainda é pouco utilizado. Embora a teologia se abra para um maior
diálogo com a antropologia, termos como inculturação e pluralismo, no rastro de uma teologia
do diálogo interreligioso, ainda são os termos analíticos preferidos. Na segunda parte do
capítulo a tese ensaiou outro caminho ao privilegiar mais a noção de fronteira como mediação
e “gestão” das ambigüidades, sempre presentes quando se aciona a conjugação de diferentes
campos simbólicos religiosos em suas interfaces. Daí o uso da categoria de sincretismo e seu
par dialético diacretismo para interpretar, como estudo de caso, as múltiplas fronteiras de
sentido na vivência do Projeto da IIP na TID. Na realidade o exercício consistiu na
interpretação dessas múltiplas fronteiras, ou seja, como os Guarani e Kaiowá do referido
201

projeto constroem culturalmente sua alteridade religiosa, a partir da noção de sincretismo e


diacretismo construídas no capítulo anterior. A partir de uma apresentação interpretativa sobre
a presença de igrejas cristãs e, em particular, das Congregações da IIP, o capítulo chegou na
análise antropológica e teológica da reconfiguração sincrética operada pela presença dessas
Congregações e a reconfiguração dos discursos teológicos, principalmente em relação ao que
se pode nomear, provisoriamente, de uma “cristologia do xamanismo”.

Certamente que para vários indígenas Guarani e Kaiowá que vivem em contexto de
pluralidade religiosa como é a TID hoje, o “trânsito” religioso está presente e consiste em
uma permanente tarefa epistemológica para as Ciências da Religião interpretar esse
fenômeno. Mas o “trânsito” não deve ser acomodado e “pacificado” por alguns conceitos que,
no final das contas, não destacam o protagonismo dos indígenas e as complexas ambigüidades
envolvidas nesse trânsito. Além disso, pensa-se o contato entre grupos indígenas e missões
cristãs como duas “identidades” consolidadas onde uma (no caso, os indígenas) resiste e
reelabora, no máximo, aquilo que lhe é permitido pelas identidades hegemônicas (no caso, as
missões cristãs). No fundo, algumas epistemologias das ciências humanas e aqui, sem maiores
considerações, pode-se incluir a teologia, parecem reforçar que aos indígenas se lhes assinala
certo poder interpretativo e de produção de sentido, desde que as chaves hermenêuticas sejam
dadas pelos missionamentos: essas chaves seriam a aculturação, a inculturação, o pluralismo,
dentre outros. Claro que o sincretismo e o diacretismo têm suas limitações epistêmicas, bem
como suas modalidades, tais como o hibridismo, bricolagem, dentre outros. Mas pelo menos
esses deixam a possibilidade dos próprios sujeitos e atores sociais indígenas reelaborarem
suas chves hermenêuticas, uma vez que focam mais a perspectiva da mediação, da construção
das identidades na situação de fronteiras religiosas ou, nos termos desse capítulo, a fronteira
como próprio lugar de produção de sentido e conhecimento.

Quando os indígenas Guarani e Kaiowá da IIP realizam suas operações sincréticas e


diacréticas há o reconhecimento dos difíceis processos de reinvenção de sua organização
social e relações de parentesco, uma vez que a idéia de igreja/congregação instaura uma nova
estrutural social e um novo campo semântico quando eles, em um acento mais teológico,
reelaboram sua própria “eclesiologia”. Assim, várias Congregações da IIP, por se colocarem
em situação de fronteira, de mediação para reelaboração das alteridades religiosas, convertem-
se em “táticas demônicas” ao criar desvios, “distorções” interpretativas que criam sentidos
outros que, muitas vezes, escapam ao assentimento formal das estratégias de missionamento
propostas ou, até mesmo, imposto por outros grupos indígenas e, principalmente, pelos não
202

indígenas. Esses “desvios” no campo de interpretação dos símbolos religiosos que expressam
o sentido da existência são também novas criações. Há uma coabitação (junções,
aproximações, “misturas”), cheia de ambigüidades, na compreensão de diversas imagens do
que significa ser Igreja expressa, também, nos diversos discursos teológicos dos indígenas, tal
como exemplificado na compreensão do xamanismo/reza aplicado à própria figura de Jesus e
aos pastores indígenas. É ambígua porque a imagem cultivada da Igreja e de Jesus Cristo não
abre mão totalmente das formalizações dogmáticas característica das estratégias missionárias,
mas distorce-se, desviam-se dessas imagens criando outras, como um Jesus que, para além
das tipologias tradicionais aplicadas a ele pela dogmática como profeta, sacerdote e Rei, é
também um grande “rezador”, porque constrói e “destrói” múltiplos sentidos religiosos,
criando o caminho tático da reivenção sincrética e diacrética da existência cotidiana. A seguir,
as considerações finais.
203

CONCLUSÃO

“O ser humano, tal como o imaginamos, não existe”

Nelson Rodrigues
204

A epígrafe utilizada no início dessa conclusão, de Nelson Rodrigues, foi extraída de


um artigo do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro intitulado “O Nativo Relativo”. Na
realidade, é a própria epígrafe do referido artigo onde o intelectual brasileiro discute, com
profundidade, o próprio método do saber antropológico204. Em essência, a antropologia
sempre deverá descrever e interpretar o problema do sentido na (re)configuração do “outro”.
Já o antropólogo Sérgio Ferretti, justamente, vai afirmar que o “[...] estudo do sincretismo
religioso leva-nos a refletir, assim, sobre diversos problemas relacionados com o
conhecimento do outro” (FERRETTI, 1995, p. 39).

Em certa medida, essa foi a preocupação de toda essa tese. Todavia, em relação aos
estudos acerca do problema do sincretismo religioso, quando se procura “pensar o outro”,
ainda parte-se do viés de estabelecimentos de homologias na questão das alteridades
envolvidas nos contatos religiosos. Isso é importante, pois não se pode negar que nos contatos
religiosos, principalmente em situações de conflito, busca-se “zonas de conforto”,
semelhanças, para a afirmação de uma situação de contato o menos traumática possível. Mas
a história é pródiga em relatar que o conhecimento “do outro” implica no estabelecimento de
profundas heterologias também pois, se o encontro sincrético realmente quer acrescentar, é
preciso que se faça do diferente o espaço para o crescimento e o aprendizado. Mesmo que
Michel de Certeau, por exemplo, insista na percepção de uma cultura e religião heteróloga, o
faz, primeiramente, como crítica metódica a certos estudos culturais que transformam o seu
pretenso objeto, justamente nisso: um objeto. Assim, enquanto “objeto”, a cultura é
“pacificada” como um outro que se torna em mera projeção daquele que fala sobre ela. A
reflexão sobre o “diferente” não exclui o que é próprio. Prova disso é a definição clássica de
cultura dada por de Certeau e afirmada nessa tese: um espaço de inventividades mas em
lugares circunscritos. Assim, entre homologias e heterologias, é estabelecida um campo de
mediação, uma fronteira onde brota as relações sincréticas e diacréticas. De certa forma,
trazer Paul Tillich para o diálogo foi, justamente, a motivação por encontrar uma reflexão
sobre a religião onde fosse possível estabelecer essa perspectiva de fronteira. Em Tillich
percebe-se que viver a experiência religiosa implica em questões decisivas da vida. O
problema é que nem sempre essa “decisividade” está transparente, translúcida. Depende da
maneira, do tipo de relação que se estabelece o sentido religioso da vida com as formas
culturais concretas em que se expressa. Assim, a relação entre religião e cultura é sempre

204
VIVEIROS DE CASTRO, E. O Nativo Relativo. In: MANA 8 (1), p. 113-148, 2002.
205

marcada pelo signo da ambigüidade, pois o ser humano, quando “joga” sobre o tabuleiro das
experiências fundamentais da vida, corre um risco maior de viver na fronteira entre
possibilidades e impossibilidades, erros e acertos, constâncias e inconstâncias, avanços e
recuos, criação e distorção (ainda que seja uma forma de criação): o “jogo” da dimensão
“demônica” como metáfora para a radicalização de nossas ambigüidades. Foi justamente no
horizonte da correlação dessas perspectivas que ensaiamos repensar o sincretismo religioso, a
partir de um transfundo antropológico, mas com implicações também teológicas. Nessas
considerações finais, que “de finis”205 só tem o texto mesmo, posto que as reflexões
continuam, é importante fazer uma breve releitura retrospectiva das principais questões e
resultados, bem como uma leitura prospectiva, pois também é importante apontar algumas
fragilidades e perspectivas de continuidade nesse campo de pesquisa.

A tese não furtou-se a discutir alguns aspectos do debate atual, tanto antropológico
quanto teológico, em torno da noção de sincretismo, como forma de situar o problema. Essa
foi a principal preocupação do primeiro capítulo. Nesse debate percebe-se, por parte das
ciências antropológicas, um reposicionamento do conceito, de tal forma a depurá-lo de toda
herança “colonialista” que projetava sobre a noção de sincretismo uma “união” ou “mistura”
de elementos religiosos, até então incompatíveis, com o fim de criar uma ideologia de
afirmação ora da sobrevivência da religião dominada, ora do poder “aculturativo” da religião
dominadora: as díades “pureza e mistura”, “degradação e coesão”, “resistência e dominação”,
era o que realmente interessava discutir e que poderia ser revista com a noção de sincretismo
que, a princípio, por tratar-se de “misturas”, superaria possíveis dicotomias. Com as
perspectivas mais hermenêuticas do saber antropológico e da ênfase nas culturas enquanto
sistemas simbólicos, procurou-se elaborar uma visão mais “positiva” da noção de sincretismo
como capacidade culturativa de reinterpretação de significados nos encontros dos muitos
significantes culturais. Com a reposição da própria noção de cultura, principalmente em
contextos de estudos “pós-coloniais”, o sincretismo passa a ser celebrado como a
quintessência de processos culturais fluidos, fugidios e fragmentários, visto como crítica, em
um acento mais “pós-moderno”, a uma visão muito “paradigmática” e centralizadora da
própria cultura. Assim, o sincretismo deixa de ser visto como um processo ou fase dentro de
processos de transformação e dinâmicas culturais mais amplos para se transformar na própria
cultura.

205
Do latim defineri, de finis, literalmente “pôr um fim”, “encerrar”.
206

Um aspecto central do primeiro capítulo foi mostrar que, mais do que viver em épocas
de intenso trânsito religioso, passa-se a construir um intenso trânsito de noções oriundas de
diversos campos do saber, convertidas em metáforas, para que se dê conta de interpretar
realidades tão complexas que se interfaceiam constantemente: daí a ideia de reposicionar o
sincretismo em suas modalidades tais como “hibridismo”, “diáspora”, “bricolagem”, dentre
outros.

A Teologia também debate-se com a noção de sincretismo a seu modo, ou seja, a


interpretação da inevitabilidade da revelação de Deus e sua “encarnação” nas culturas levou a
Teologia cristã a operacionalizar conceitos como “contextualização” do Evangelho,
“inculturação” da fé e pluralismo religioso para interpretar o encontro cristão com culturas
outras, muitas vezes concebendo o cristianismo como uma “entidade” que chegava de fora
das realidades culturais. O sincretismo, quando muito, era tolerado como refugo desse
encontro. Em tempos de ecumenismo e de teologias do pluralismo religioso, teólogos e
teólogas tentam reposicionar a noção de sincretismo, ora encarando-o como a inevitável fase
dentro de um processo mais amplo (como o da inculturação), ora avançando na discussão
como sendo a própria condição de possibilidade da revelação de Deus. O debate ainda
promete novos capítulos. Mas o primeiro capítulo (não do debate, mas da tese) procurou
mostrar, ainda que suscintamente, que a luta para enquadrar o sincretismo em uma só dada
conotação é inglória. Seria o equivalente a um reducionismo crasso dos processos culturais e
religiosos, em particular. Assim , o sincretismo, ao contrário do que possa parecer, ganha na
sua força metafórica de transferência de significados para dar conta de interpretar
entrecruzamentos e interfaces religiosas cada vez mais complexas e intensas na atualidade.
Com isso a perspectiva de encarar o sincretismo, principalmente do ponto de vista do campo
semântico, como a produção de sentido operada pelos sujeitos e atores sociais em situação de
vivência em fronteiras religiosas, o que exige do/a analista a criação do que se chamou no
primeiro capítulo de um “arco conceitual” que engloba várias metáforas que traduzem os
diversos sentidos, em diversas modalidades, do entrecruzamento de significados promovido
pela interface dos múltiplos símbolos religiosos.

Todavia, algo que chama a atenção na literatura especializada, é que ainda permanece
uma certa tendência em enxergar o sincretismo em seus aspectos mais “positivos”. Embora
pressuponha-se que todo contato interreligioso vai carregar ambiguidades por conta dos
sentidos diferentes que se “chocam”, talvez seja possível pensar que essa ambiguidade não
deva somente ser pressuposta, mas devidamente problematizada. Essa foi a perspectiva do
207

segundo capítulo da tese ao trazer para o debate as contribuições de Michel de Certeau e Paul
Tillich. A compreensão de inventividades culturais de Certeau, na relação entre táticas e
estratégias, aponta para o fato de como os sujeitos e atores religiosos em ato reconfiguram seu
universo de sentido social ao estarem circundados por lógicas e discursos que não lhe são
próprios ( a noção de “estratégias” certeaunianas), mas que conseguem se movimentar por
práticas táticas ao fazerem seus um discurso outro. É a compreensão heterológica da própria
dinâmica cultural, compreensão essa que o próprio Certeau experimentou em sua vida. Essa
dinâmica bem pode caracterizar, também, o sincretismo: nesse caso a radicalização, em
termos religiosos, de criar um novo repertório inventivo em meio a circunscrições que a
própria experiência religiosa, principalmente em suas formas mais institucionalizadas, coloca
(muitas vezes impõe). Assim, em correspondência a essa hermenêutica das práticas sociais,
buscou-se na hermenêutica da experiência do sentido, no conceito de demônico de Paul
Tillich uma correlação importante, haja vista que a religião não é só um processo social, mas
implica em dimensões profundas da existência humana, inclusive ao assumir aspectos
também irracionais e de “sem sentido”. Daí a noção de demônico em Tillich para configurar a
ambigüidade radical da experiência religiosa. Isso significa que na vivência com o sagrado ou
com tudo aquilo que nos interpela decisivamente (de forma última, incondicional), vivemos a
tensão da criatividade afirmativa e de uma “criatividade” distorcida. Essa é a essência do
demônico que, tomada “emprestada” como metáfora para qualificar o sincretismo, ajuda a
elaborar, também, a noção correlata de “diacretismo”. É basicamente isso que foi construído
no segundo capítulo. A preocupação, portanto, é não perder de vista os elementos de
ambiguidade em toda relação sincrética que, em nossa análise, é a grande “tentação”, tanto em
termos antropológicos quanto em termos teológicos. Com isso a busca de sintonia com o
diacretismo para marcar as rupturas, desníveis e distorções implicadas em todo ato religioso
criador e inventivo, seja no nível da significação simbólica do sentido das crenças e fé, seja no
nível da recomposição dos espaços e relações sociais, como nos processos de ritualização
desses espaços considerados sagrados.

As “tramas hermenêuticas” do segundo capítulo foram nessa direção: não somente


replicar definições sobre sincretismo, mas tentar propor uma definição que fosse mais afeita à
realidade, com seus dilemas de criação e perda de sentido religioso da vida. Cabe aqui citar o
historiador Jean-Pierre Vernant: “[...] transpor uma fronteira é deixar o espaço íntimo e
familiar onde se está em seu lugar para penetrar num horizonte diferente, um espaço
estrangeiro, desconhecido, em que se arrisca, confrontado com o que é diferente, a se
208

descobrir sem lugar próprio, sem identidade”206. Vernant não faz uma apologia do “sem
sentido”. O ficar sem identidade, na realidade, é fruto do atravessar as fronteiras culturais
materiais e, principalmente, simbólicas. Não para superar essas fronteiras, mas para conhecê-
las melhor, como constitutivas da própria identidade que se faz na alteridade: perde-se, mas
ganha-se, em paradoxos constantes. Eis aí a perspectiva sobre o demônico em Tillich e sua
relevância para o tema dessa tesa. Assim, a justificativa de definir o sincretismo e o
diacretismo como expressão demônica (ambigüidade da produção de sentidos religiosos) das
formas culturais, formas essas não menos paradoxais em seus jogos táticos e estratégicos em
conformidade com Michel de Certeau.

A partir dessas construções teóricas, a tese chegou a seu último capítulo a fim de
analisar as possibilidades e problemas da afirmação de que a presença das igrejas na TID
hoje, em particular as que compõem o Projeto da IIP, são a conseqüência concreta e em ato
das relações sincréticas e diacréticas afirmadas no capítulo anterior. A abordagem focou
grupos Guarani e Kaiowá, especificamente. Justamente essas relações abrem a possibilidade
da efetivação de um atual “jeito de ser religiosamente plural” (um teko retã?) que se apóia
profundamente, do ponto de vista etnográfico, na recomposição e decomposição sincrética e
diacrética das unidades de relações sociais fundamentais dos indígenas Guarani e Kaiowá (no
caso, o “fogo doméstico” e a “parentela”), quando se instaura esse elemento social chamado
“Igreja/Congregação”. Além disso, não se pode desconsiderar as ressignificações teológicas
que os indígenas tem que fazer, tal como o capítulo exemplificou nas ações xamânicas e
“jesuânicas”, ressignificações essas também sincréticas e diacréticas, a fim de darem conta
das várias ambigüidades instauradas em situação de fronteiras religiosas diversas postas pela
interface com os missionamentos contemporâneos.

O capítulo terceiro apresentou uma análise panorâmica da interpretação antropológica


do contato intercultural entre povos indígenas e missões cristãs. Via de regra, com a
superação do paradigma “aculturativo”, categorias que, aparentemente, não carregam tanto
peso ideológico da herança colonialista, tais como “adaptação” e “hibridismos” são mais
utilizados para interpretar os múltiplos contatos religiosos. Isso parece favorecer mais o
protagonismo indígena ao não relegá-los como vítimas ou mártires dos efeitos deletérios das
missões cristãs. A Teologia, por seu lado, em que pese o avanço para uma interpretação
teológica do pluralismo religioso, quando trata de interpretar a interação entre povos

206
VERNANT, J.-P. A Travessia das Fronteiras, p. 197.
209

indígenas e missões cristãs, ainda o faz pelo viés das teorias da inculturação do Evangelho.
Nesse sentido, paira sobre a noção de sincretismo, no que diz respeito a interpretar os contatos
afirmados, certa desconfiança por reforçar, paradoxalmente, ainda uma herança colonialista e,
consequentemente, uma hegemonia cristã desrespeitosa para com as tradições indígenas
tradicionais. No máximo o sincretismo é “tolerado” epistemologicamente, pois é,
majoritariamente, uma etapa (a ser superada) pelos outros conceitos citados anteriormente.

Em seguida, a partir dos dados etnográficos, sejam consolidados na literatura


especializada, sejam buscados na interlocução com os indígenas na pesquisa de campo, o
capítulo apresentou, ainda que brevemente, um panorama que se revelou muito plural,
particularmente em termos da experiência religiosa cristã, na TID, marcada pela presença de
várias Igrejas/Congregações que se mantém pelo trânsito dos indígenas entre elas: não
somente o trânsito considerado individualmente, mas coletivamente, já que a maioria das
Congregações da IIP, por exemplo, são formadas por famílias extensas e suas redes de
alianças. Assim, vários indígenas, líderes ou não das Congregações da IIP, a fim de darem
conta dos múltiplos sentidos do que significa a experiência de fé cristã, a partir de sua
condição étnica própria, reelaboram vários símbolos religiosos para compreender o lugar
dessa organização social chamada igreja em meio à tradição nativa. Há um sincretismo e
diacretismo em ato, uma vez que aproxima-se, conjuga-se aspectos traditivos das unidades
sociológicas fundamentais com a concepção de igreja herdada das ações estratéticas do
missionamento cristão. Mas justamente esse sincretismo e diacretismo funda táticas,
construção de caminhos alternativos, de fundação de Congregações amparadas nas invenções
e distorções demônicas de sentidos outros, principalmente para justificar a recomposição das
famílias extensas em torno das quais essas Igrejas são construídas. Nunca é demais lembrar
que, ao levar em consideração o que afirma Tillich, a concepção teológica da Igreja,
manifestação cultural da “comunidade espiritual” guarda, substancialmente, uma ambiguidade
demônica: toda comunidade que se diz “Igreja” se constroi no paradoxo entre essência e
existência, entre a criação e efetivação da graça e as distorções na caminhada da existência.

Certamente que os discursos teológicos são recriados a fim de justificarem as


múltiplas fronteiras que perpassam essas Congregações. No caso apresentado, o tema da
Cristologia, onde os indígenas sincretizam e diacretizam as construções formais e dogmáticas
acerca de Jesus como o Cristo, com a visão mais tradicional de Jesus como um autêntico
“rezador/xamã”, exemplar para as práticas dos próprios líderes pastores. Assim, esses mesmos
líderes pastorais reinventam, “demonicamente”, uma das funções básicas da reza tradicional:
210

a de se manterem como permanentes caminhantes/interlocutores entre o mundo social dos


humanos e dos “não-humanos” (seres espirituais). Assim, vários líderes e membros das
Congregações têm que lidar com a negociação de sentidos novos e agenciar o risco da
distorção de outros sentidos, pois isso garante-lhes a legitimidade perante a
comunidade/Congregação. Se há ainda um forte discurso contra a figura do rezador
tradicional, como forma de marcar fronteiras identitárias cristãs, ao mesmo tempo não se
nega, necessariamente, o que se nomeou no capítulo por “princípio xamanânico”, sincretizado
e diacretizado pelos indígenas religiosos das Congregações da IIP.

Ao pontuar essas questões, é importante fazer uma breve leitura crítica do texto
produzido. Não é fácil, mesmo em uma tese, não somente propor uma teoria do sincretismo
religioso, mas tentar “aplicar” essa teoria em um estudo de caso específico. É uma força do
texto, mas também corre o risco de ser sua fraqueza. Isso permite perceber algumas
dificuldades e possíveis lacunas. São elas: 1. A necessidade de deixar mais explícita as
relações entre os conceitos certeaunianos e tillichianos, muito embora a relação de uma
hermenêutica das práticas culturais (Michel de Certeau) e de uma hermenêutica do sentido
religioso (Paul Tillich) estabelecem bons princípios de correlação, abrindo possibilidades para
aprofundamentos futuros. 2. A necessidade de investigar mais os próprios estudos sobre o
sincretismo religioso, de tal forma a perceber os aspectos de maior ambigüidade nas teorias
propostas. 3. O caráter ainda ensaístico do último capítulo. Permanece a necessidade de
aprofundar e ampliar os exemplos de efetivação, em casos empíricos, das ditas relações
sincréticas e diacréticas, tanto em termos etnológicos quanto em termos teológicos.

Mas essas dificuldades só servem para estimular a continuidade das pesquisas.


Possibilidades não faltam. Algumas delas: 1. A definição das relações sincréticas e diacréticas
são suficientemente formais para serem trabalhadas em outros universos de interações
religiosas que não os encontros e desencontros entre sociedades indígenas e cristianismos. De
fato, há outras experiências religiosas presentes nas aldeias da TID que não são cristãs, como
o Candomblé. Pesquisar as interações sincréticas e diacréticas entre as tradições de
conhecimento nativo Guarani e Kaiowá e religiões de matriz africana, seria outro bom campo
para o exercício. 2. A possibilidade de aprofundar as pontes de diálogo entre a teologia e a
antropologia, principalmente porque, embora leve o adjetivo “da cultura”, a teologia
tillichiana, por exemplo, pouco dialogou com esse campo do saber mais etnológico. A tese
quis também ser uma contribuição nesse sentido. 3. A configuração poliétnica e plural em
termos religiosos na TID hoje, abre amplo espaço para novos laboratórios de pesquisa de
211

campo e “estudo de casos”. Três temas que valem à pena perseguir em estudos futuros:
primeiro, estudar possíveis relações interétnicas e as implicações sincréticas e diacréticas
entre os Guarani e Terena, uma vez que esses também compõem consideravelmente várias
Igrejas na TID hoje. Segundo, a história religiosa da Missão Caiuá e do Projeto da Igreja
Indígena Presbiteriana ainda aguardam um estudo mais detalhado, do qual essa tese foi um
ponto de partida. Por fim, a problematização da categoria tradicional do teko retã, o “jeito de
ser plural, múltiplo” dos Guarani e Kaiowá, aplicada às questões de religião, como campo de
mediação entre a etnologia indígena e as ciências da religião.

São novos horizontes. Perspectivas onde essa tese deu os seus passos. Termino esse
texto com uma menção aos meus interlocutores e interlocutoras indígenas: foram e ainda
serão meus autênticos percursos de mediação para o conhecimento. Não foram somente meus
acompanhantes ou me apontavam a porta de acesso a outros indígenas. Eram a própria porta,
a própria fronteira a ser trilhada.
212

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ANEXOS

Quadro 1

Relação de Igrejas na aldeia Jaguapirú na TID

Nome da Igreja Tradição/Denominação Tipo de Templo

Evangélica Pentecostal Estrela Pentecostal Alvenaria, templo próprio


do Amanhã

Pentecostal Jesus é a Luz Pentecostal Alvenaria, casa da família

Pentecostal Alicerce de Fogo Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Adventista do 7° dia Evangélica Alvenaria, casa da família

Igreja Pentecostal Indígena de Pentecostal Alvenaria, templo próprio


Jesus (Sede)

Congregação Monte Sião Protestante Alvenaria, templo próprio


(Missão)

Igreja Pentecostal Evangelho Pentecostal Madeira, templo Próprio


de Jesus Cristo para o Mundo

Congregação Cristã do Brasil Evangélica Madeira, templo próprio

Pentecostal Indígena de Jesus Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Pentecostal de Jesus Cristo Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Pentecostal Cantares de Pentecostal Alvenaria, templo próprio


Salomão
230

Pentecostal Estrela da manhã Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Congregação Betel (Missão) Protestante Alvenaria, templo próprio

Primeira Congregação Protestante Madeira, templo próprio


Presbiteriana (Missão)

Congregação Jardim de Protestante Alvenaria, templo próprio


Jerusalém (Missão)

Pentecostal Estrela da Manhã Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Segunda Congregação Protestante Alvenaria, templo próprio


Ebenezer (Missão)

Evangélica Missão Brasa Viva Evangélica Alvenaria, casa da família

Congregação Hebrom Protestante Alvenaria, templo próprio


(Missão)

Presbiteriana Indígena Protestante Sapê, templo próprio


(Missão)

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio


(Sede)

Pentecostal Indígena de Jesus Pentecostal Madeira, templo próprio

Congregação do “Sardinha” Protestante Alvenaria, templo próprio


(Missão)

Centro de Formação Católico Católica Alvenaria, templo próprio

Pentecostal União da Família Pentecostal Alvenaria, templo próprio


de Jesus

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Evangélica Pentecostal Nova Pentecostal Madeira, templo próprio


Jerusalém Indígena

Pentecostal “Jesus é a Luz” Pentecostal Alvenaria, templo próprio


(Sede)
231

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, casa da família

Primeira Congregação Protestante Alvenaria, templo próprio


Presbiteriana (Missão) –
Igreja sede da Missão Caiuá:
situada no limite externo da
aldeia

Primeira Congregação Protestante Alvenaria, templo próprio


Maranata (Missão)

Assembléia de Deus Indigena Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Quadro 2

Relação de Igrejas na aldeia Bororó na TID

Nome da Igreja Tradição/Denominação Tipo de Templo

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Metodista e Centro de Protestante Alvenaria, templo próprio


Capacitação “Tapeporã”

Evangélica Caiuá (Missão) Protestante Alvenaria, templo próprio

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Pentecostal de Jesus Cristo Pentecostal Madeira, casa da família

Arca do Conserto Pentecostal Madeira, casa da família

Avivamento Pentecostal “O Pentecostal Madeira, casa da família


Senhor é nossa Justiça”

Missionária Avivamento de Pentecostal Alvenaria, casa da família


Jerusalém

Primeira Congregação Protestante Madeira, templo próprio


232

(Missão)

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Pentecostal Deus É Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Congregação “Farinha Seca” Protestante Alvenaria, templo próprio


(Missão)

Igreja Católica “Nossa Católica Alvenaria, templo próprio


Senhora de Guadalupe”

Pentecostal Arca do Concerto Pentecostal Madeira, templo próprio

Pentecostal “Palavra de Cristo Pentecostal Alvenaria, casa da família


para o Brasil”

Pentecostal Estrela da manhã Pentecostal Alvenaria, casa da família

Evangélica “Missão Brasa Evangélica Alvenaria, templo próprio


Viva”

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Presbiteriana do Último Pentecostal Alvenaria, templo próprio


Tempo

Evangélica Pentecostal Pentecostal Alvenaria, templo próprio


Indígena

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Missão da Primeira Igreja Evangélica Alvenaria, casa da família


Batista

Pentecostal de Jesus Cristo Pentecostal Madeira, templo próprio

Congregação Presbiteriana Protestante Madeira, templo próprio


(Missão)

Pentecostal Deus é Amor Pentecostal Alvenaria, templo próprio

Evangélica Pentecostal Pentecostal Alvenaria, templo próprio


“Último Tempo”
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Congregação Peniel Evangélica Alvenaria, templo próprio

Congregação (Missão) Protestante Alvenaria, casa da família

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