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2010
GUSTAVO SOLDATI REIS
2010
FICHA CATALOGRÁFICA
R277a Reis, Gustavo Soldati
Ambiguidade como inventividade : um estudo sobre o sincretismo
religioso na fronteira entre a antropologia e a teologia / Gustavo Soldati Reis
-- São Bernardo do Campo, 2010.
233fl.
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__________________________________________
_ Ao meu grande amigo Manoel Ribeiro de Moraes Jr. O seu companheirismo, lealdade e
incentivo sempre foram um referencial para mim. Foi muito bom partilhar parte da trajetória
do doutorado junto com você;
_ Aos meus caros irmãos, amigos e todos os colegas de docência teológica: vocês são a razão
de ser da qualidade de nosso trabalho e muito me apoiaram na trajetória do doutorado. Sem
vocês meu trabalho na Coordenação Acadêmica não teria sentido. Em especial agradeço ao
José Américo, José Augusto, Eugênio Quispe, Lilian Sarat, Kleiton Cerqueira e Givaldo
Matos pelas conversas amigas e atos de solidariedade. Obrigado também porque, em várias
ausências, vocês foram minha presença na dinâmica da Faculdade;
_ Aos meus queridos alunos e alunas. Agradeço a compreensão de todos vocês e por
partilharmos as trilhas saborosas do saber teológico nesses anos;
_ Ao grande amigo e irmão de fé Marcelo Moura da Silva. Sua presença continua sendo
fundamental como referencial de vida digna e ética para mim. Você me mostrou com sua
própria experiência que, mesmo com muitos compromissos e “pressões”, é possível trilhar
com competência o caminho do doutorado;
_ Aos meus mestres de ensino no programa de doutorado. Faço menção nominal a cada um
porque vocês acreditaram em mim e a tese reflete as múltiplas fronteiras do saber que me
educaram a trilhar: Prof. Etienne Higuet, Prof. Lauri Wirth; Profa. Sandra Duarte de Souza,
Prof. Leonildo Campos, Prof. James Farris; Prof. Paulo Nogueira e Prof. Jung Mo Sung;
_ Em particular, ao meu excelente orientador e professor, Dr. Etienne Alfred Higuet. Seu
suporte, dedicação e competência são um exemplo caro de como aproveitar a “fronteira de
saberes” e da vida. Muito obrigado pela paciência e apoio, principalmente em momentos em
que causei maiores apreensões;
_ Aos professores que participaram da Banca/Exame de Qualificação: Dr. Lauri Wirth e Dr.
Cláudio Ribeiro. Suas contribuições foram significativas para que pudesse pensar mais
coerentemente minha tese;
_ Ao professor Dr. Levi Marques Pereira e Dra. Graciela Chamorro, ambos da Universidade
Federal da Grande Dourados. Vocês me introduziram em reflexões significativas no campo da
etnologia indígena. Partilhar da presença de vocês é sempre algo prazeroso e significativo;
_ Por fim, mas da maior importância, aos meus interlocutores e interlocutoras indígenas na
Pesquisa. Com alguns tive breves momentos. Com outros, uma convivência mais prolongada.
Mas todos foram sujeitos imprescindíveis para a minha vida, como pesquisador e ser humano.
As amizades feitas perdurarão, porque são maiores que a pesquisa. Obrigado por me
acolherem em vários momentos e épocas diferentes sob a sombra de uma árvore, tomando um
bom tereré ou junto ao fogo que nos aquecia em noites frias. Em especial agradeço a dois
deles: Eder Vito e Jayson “Tato” Souza. Em momentos diferentes e em tempos comuns vocês
estiveram ao meu lado nesses últimos anos. Vocês são absolutamente imprescindíveis, por
razões que nossos corações conhecem. Amo vocês!
RESUMO
Essa tese é um estudo sobre o problema do sincretismo religioso, quando pensado no diálogo
entre a antropologia e a teologia. Para tanto, a pesquisa faz um exercício hermenêutico de
ressignificação do conceito, a partir das diversas teorias sobre o sincretismo e seus usos
antropológicos e teológicos, buscando subsídios no pensamento de Michel de Certeau e Paul
Tillich para tal ressignificação. Assim, a perspectiva certeauniana de uma reflexão
heterológica da cultura e a noção de “demônico” na teologia e filosofia do sentido de Tillich
fundamentam a percepção do sincretismo como uma teoria da mediação entre religião e
cultura. Isso significa que o sincretismo opera uma relação dialética com o seu pólo
denominado, nessa tese, de “diacretismo”, tornando a dinâmica cultural e religiosa um espaço
inventivo, posto que manifesta aspectos ambíguos de criações de sentido positivas
(experiência de aproximação sincrética) e criações de sentido distorcidas (experiência de
fragmentação “diacrética”), essência da relação com o sagrado, vivida culturalmente. A
cultura, entendida como espaço para a vivência do religioso, exprime-se em uma profunda
relação entre táticas e estratégias, denotando a ambigüidade anteriormente afirmada, quando
reconhece que os atores sociais em interação, mesmo que marcados por lugares próprios
estrategicamente estabelecidos, enquanto lugares de poder, não inibem a formação de ações
táticas que “subervertem” inventivamente esses mesmos lugares, dando a devida dinâmica
cultural. A tese analisa, também, como estudo de caso, as implicações dessa compreensão de
sincretismo para a interpretação da experiência religiosa de grupos de indígenas Guarani e
Kaiowá, na Terra Indígena de Dourados /MS, na fronteira entre tradição e tradução operada
pelos indígenas, a partir do Projeto da “Igreja Indígena Presbiteriana” (IIP), ressignificando
sua alteridade religiosa na interface com os múltiplos cristianismos presentes nas aldeias,
afirmando a possibilidade de um teko retã (“jeito de ser plural, múltiplo”) religioso, a partir
das relações sincréticas e diacréticas propostas.
ABSTRACT
This thesis is a study regarding the problem of religious syncretism, when it is considered in
the dialogue between anthropology and theology. For this purpose, the study employs a
hermeneutical exercise of conceptual resignification, based upon various theories about
syncretism and their anthropological and theological uses, seeking support in the thought of
Michel de Certeau and Paul Tillich for that resignification. Thus, the perspective of Certeau
regarding a heterological reflection of culture and the notion of “demonic” in theology and
philosophy of meaning of Tillich provide the basis for the perception of syncretism as a
theory of mediation between religion and culture. This means that syncretism operates in a
dialectical relation with its named pole, in this thesis, of “diacretism”, considering the cultural
and religious dynamic as an inventive space, a position that manifests ambiguous aspects of
the creation of positive meanings (experience of syncretistic approximation) and the creation
of distorted meanings (experience of “diacretistic” fragmentation), the essence of the relation
with the sacred, lived culturally. The culture, understood as space for the living of the
religious, expresses itself in a profound relation between tactics and strategies, denoting the
ambiguity previously affirmed, when it recognizes that the social actors in interaction, even
when marked by proper places strategically established, as places of power, do not inhibit the
formation of tactical actions that inventively “subvert” these same places, offering the rightful
cultural dynamic. The thesis analyses, also, as a case study, the implications of this
comprehension of syncretism for the interpretation of the religious experience of the Guarani
and Kaiowá native indigenous groups, on the indigenous land of Dourados, MS, on the
frontier between tradition and translation performed by the indigenous people, based on the
“Presbyterian Indigenous Church” Project (IIP), resignifying its alternative religiosity in the
interface with the multiple Christianities present in the villages, affirming the possibility of a
religious teko retã (“a way of being that is plural, multiple”), based on the syncretistic and
diacretistic relations that are proposed.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1: A “DANÇA” DAS METÁFORAS: PROBLEMATIZAÇÃO DO
SINCRETISMO RELIGIOSO NO SABER ANTROPOLÓGICO E TEOLÓGICO ..... 25
1.1. BREVE HISTÓRICO INTERPRETATIVO DA NOÇÃO DE SINCRETISMO ..... 31
1.2. PERCURSOS E PERCALÇOS DE UMA ANTROPOLOGIA DO SINCRETISMO
RELIGIOSO ............................................................................................................................. 39
1.3. PERCURSOS E PERCALÇOS TEOLÓGICOS SOBRE O SINCRETISMO
RELIGIOSO ............................................................................................................................. 50
1.3.1 Sincretismo e suas modalidades para a compreensão da experiência cristã:
perspectiva de Leonardo Boff................................................................................................... 51
1.3.2 Sincretismo para além da Inculturação do Evangelho: diálogo crítico entre Mário de
França Miranda e Antonio Magalhães...................................................................................... 53
1.3.3 Os “rastros” sincréticos de Deus na história: a contribuição de Afonso Maria Ligorio
Soares ................................................................................................................................... 55
CAPÍTULO 2: DO “INVENTIVO” E DO “DEMÔNICO”: O SINCRETISMO COMO
AFIRMAÇÃO DA AMBIGUIDADE ÚLTIMA DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ...... 60
2.1 SINCRETISMO E INVENÇÕES COTIDIANAS: TÁTICAS E ESTRATÉGIAS
CULTURAIS EM DIÁLOGO COM MICHEL DE CERTEAU ............................................. 65
2.1.1 Religião enquanto cultura “heteróloga” ..................................................................... 71
2.1.2 A Teologia enquanto discurso “heterológico” ........................................................... 78
2.1.3 Na fronteira das “Táticas” e “Estratégias” como configuradoras das relações
culturais ................................................................................................................................... 85
2.2 FRONTEIRAS DO SENTIDO: PAUL TILLICH E A INVENÇÃO DO
“DEMÔNICO” ......................................................................................................................... 93
2.2.1 Religião e Cultura: relações de mediação .................................................................. 99
2.2.2 Religião como criação “demônica” ......................................................................... 105
2.3 SINCRETISMO E DIACRETISMO: MEDIAÇÕES HERMENÊUTICAS PARA A
INVENÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E CULTURA.................................... 115
CAPÍTULO 3: SINCRETISMO E DIACRETISMO COMO CATEGORIAS
COMPREENSIVAS DAS RELAÇÕES ENTRE IGREJA, VIDA GUARANI E
KAIOWÁ NA TERRA INDÍGENA DE DOURADOS/MS .............................................. 125
3.1 UM CENÁRIO RELIGIOSAMENTE PLURAL: AS MÚLTIPLAS FRONTEIRAS
CRISTÃS NA TERRA INDÍGENA DE DOURADOS ......................................................... 133
3.1.1 Hermenêuticas da experiência religiosa Guarani e Kaiowá: uma aproximação sócio-
antropológica .......................................................................................................................... 138
3.1.1.1 Religião Guarani em Kurt Nimuendajú Unkel: uma negação do sincretismo? ... 138
3.1.1.2 Religião Guarani no pensamento de Egon Schaden: sincretismo como
“aculturação”? ........................................................................................................................ 141
3.1.1.3 Religião Guarani na fronteira de saberes de métodos antropológicos “sincréticos”
contemporâneos ...................................................................................................................... 144
3.1.2 A experiência religiosa indígena em chave teológica: breves apontamentos .......... 149
3.1.2.1 Sincretismo como Inculturação? Diálogos com Manuel Marzal ......................... 151
3.1.2.2 Sincretismo como inclusivismo? Diálogos com Graciela Chamorro .................. 154
3.1.3 Espaços e lugares da Igreja Indígena Presbiteriana: breve cenário da pluralidade
cristã na Terra Indígena de Dourados ..................................................................................... 160
3.2 RELAÇÕES SINCRÉTICAS E DIACRÉTICAS COMO INVENÇÃO DO TEKO
RETÃ RELIGIOSO ................................................................................................................ 172
3.2.1 Sincretismo e diacretismo religioso na fronteira das modalidades e mobilidades
sociais ................................................................................................................................. 176
3.2.2 Sincretismo e diacretismo religioso e suas fronteiras teológicas ............................. 187
CONCLUSÃO....................................................................................................................... 203
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 212
OBRAS CONSULTADAS ................................................................................................... 219
ANEXOS ............................................................................................................................... 229
12
INTRODUÇÃO
Outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos.
Essa tese é um estudo sobre o problema do sincretismo religioso que, em boa medida,
consiste em repensar radicalmente a construção das alteridades e do sentido que se dá à vida
em situações de contato cultural, mesmo quando se trata de repensar a própria cultura em suas
múltiplas fronteiras. Assim, o problema do sincretismo é uma hermenêutica do “outro” ou,
nos termos de Michel de Certeau, um discurso heterológico. Mas não do outro como projeção
de si mesmo apenas, em uma visão “especular” e reducionista, mas como espaço de diálogo e
crítica, como horizonte de novas possibilidades significativas. A epígrafe da introdução foi
extraída de um texto do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro intitulado “O
Mármore e a Murta: sobre a inconstância da alma selvagem”1 e faz referência às metáforas
utilizadas pelo Padre Antonio Vieira que, por sua vez, comparava os índios Tupinambás,
enquanto uma das “nações” indígenas do Brasil no século XVII, a uma planta chamada
“murta”. Diferentemente de outras nações que se pareciam mais com o “mármore”, os
indígenas recebiam a mensagem cristã até com facilidade, deixavam-se “moldar” suavemente
como a murta, mas que, ao menor afastamento do “jardineiro/missionário”, voltava-se a
“murta/indígena” a desfigurar-se, a retornar para a “barbárie” e o “paganismo”: “[...] o índio
mal-converso que, à primeira oportunidade, manda Deus, enxada e roupas ao diabo,
retornando feliz à selva, presa de um atavismo incurável. A inconstância é uma constante da
equação selvagem” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 187). Nesse sentido, a metáfora da
murta serve para situar as perspectivas em torno do problema do sincretismo religioso e
cultural. Em que aspecto? Parece que quanto mais os “jardineiros”/cientistas tentam podar a
“murta”/sincretismo, ao menor descuido, por exemplo, ao considerar a noção como
superficialmente analítica, ela retorna com muita força, ainda que nomeada de maneiras
diversas. Ainda assim, muitos analistas insistem em enxergar no termo “sincretismo” uma
degeneração, uma decomposição “indigesta” de elementos diferenciados e, até mesmo, a
mistura de vários sistemas epistemológicos. Assim como a murta volta a crescer “para todos
os lados”, o sincretismo está aí, como a “inconstância” que atravessa as constantes culturais e
religiosas, com os fatos dos muitos trânsitos, transversalidades e interfaces religiosas.
1
VIVEIROS DE CASTRO, E. O Mármore e a Murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: VIVEIROS
DE CASTRO, E. A Inconstância da Alma Selvagem, p. 183ss.
14
Uma dessas renúncias é a “[...] sincretizar as diferenças sobre a base de um suposto fundo
comum estável e, por isso, também renuncia (grifo nosso) à teleologia da unidade sem mais”2.
A pergunta seria se o sincretismo quer justamente isso: eliminar as diferenças, o que parece
eliminar sua própria condição de possibilidade. Mas há outros analistas, como o antropólogo
italiano Massimo Canevacci, que iguala completamente sincretismo e culturas, operando
quase que uma absolutização do conceito. Corre-se, assim, o risco de negar o que propõe, ou
seja, uma releitura da própria cultura vista em seus aspectos mais “superficiais”,
fragmentários, descentrados, longe das leituras identitárias e homogeneizadoras da cultura
feitas pela modernidade, mesmo que tardia3.
2
Cf. FORNET-BETANCOURT, F. Religião e Interculturalidade, p. 51.
3
Cf. CANEVACCI, M. Sincretismos: uma exploração das hibridações culturais, p. 13ss.
15
Na realidade, Pompa não quer negar as violentações seculares que os povos indígenas
sofreram na história. Mas quer, analiticamente, desconstruir um quadro que só existe na
“cabeça” de vários intérpretes quando tentam reler as comunidades indígenas como
mantenedoras de um patrimônio cultural incólume e puro, retratado, furtivamente, em
algumas análises antropológicas e teológicas. Afirma-se, com isso, que a experiência da
resistência deve também ser vista como um campo de “[...] estratégias de mediação, de
adaptação e reformulação de identidades, de construção de novas formações sociais e
culturais” (POMPA, 2003, p. 22). Esse exemplo foi posto porque as teorias sobre o
sincretismo religioso debateram-se e debatem-se, justamente, com a questão do “outro”, de
como projeta-se sobre este “outro” o “mito” de uma origem pura que antecederia qualquer
tentativa de mistura de tendências estranhas ao universo original/nativo. Mas também
algumas dessas teorias pensam o sincretismo como mistura de “tendências opostas” para
driblar os impositores de uma cultura/religião outra. Nessa perspectiva, Pierre Sanchis
apresenta, na citação seguinte, um bom resumo das tendências nas pesquisas atuais sobre o
sincretismo religioso. O referido antropólogo afirma:
Como se percebe na citação o assunto é complexo, uma vez que se insere no próprio
debate de constituição da noção de cultura que atravessa a construção moderna até as críticas
4
POMPA, C. Religião como Tradução, p. 22.
16
5
Para uma boa compreensão panorâmica acerca do desenvolvimento da antropologia, no seu específico discurso
etnográfico, ver CLIFFORD, J. Sobre a autoridade etnográfica. In: CLIFFORD, J. A Experiência
Etnográfica, p. 16-62. O prórprio Clifford afirma: “O desenvolvimento da ciência etnográfica não pode, em
última análise, ser compreendido em separado de um debate político-epistemológico mais geral sobre a escrita
e a representação da alteridade”. De fato o sincretismo, enquanto objeto de análise cultural, está inserido nessa
“escrita de representação da alteridade”.
6
A partir de agora, denominada pela sigla “TID” em todo o corpo do texto dessa Tese.
7
Denominada pela sigla “IIP” em todo o corpo do texto dessa Tese.
17
tão díspares e que não problematizaram especificamente a noção de sincretismo, mas que
guardam homologias no sentido de terem pensado a realidade na fronteira dos saberes e que,
cada um a seu modo, desenvolveu uma ampla hermenêutica das relações entre cultura e
religião. Mais do que isso: marcados por certa visão “mística” da experiência religiosa
expressavam, cada um em seu próprio método, a impossibilidade da linguagem captar
totalmente o sagrado, necessitando sempre de novas aproximações/mediações hermenêuticas.
Como um “outro” o sagrado, nesses dois autores, sempre é o horizonte de diálogo que nunca
se esgota em mediações culturais e históricas específicas. De certa forma o discurso dos dois
teóricos funda uma heterologia, ou seja, o “destino” da reflexão filosófica, teológica e
antropológica são os muitos “outros” que instalam diferenças como espaços de reflexão. São
pensadores de fronteira, de “mediações”, como sugere o título da tese.
Michel de Certeau, por exemplo, levou tão a sério essas perspectivas que fez delas a
essência de suas reflexões culturais. Conforme a afirmação de uma de suas principais
intérpretes, Luce Giard: “[...] nenhuma ação cultural ou política que seja inventiva e apoiada
no real pode nascer de uma deficiência do pensamento ou se alimentar do desprezo do
próximo”8. Certeau aposta que as dinâmicas culturais precisam ser olhadas pelas ações
“táticas” promovidas pelas multidões anônimas que marcam decisivamente o cotidiano,
mesmo que essas ações sejam circunscritas por “estratégias” que procuram dissimular ou até
coibir o protagonismo daqueles que, muitas vezes, são considerados “invisíveis”: “[...] é
preciso perguntar-se como uma combinatória de forças em competição ou em conflito
desenvolve uma (sic) grande número de táticas em espaços organizados, ao mesmo tempo,
por coerções e contratos”9. Assim, nessa relação de busca de afirmação da alteridade através
das táticas (materiais e simbólicas) em meio a lugares não próprios (as estratégias, também
materiais e simbólicas), o “ser humano ordinário” vai inventando a cultura cotidiana.
Por sua vez, Paul Tillich não desenvolveu análises culturais a modo de Certeau, uma
vez que tinha outras preocupações e interesses, bem como outros horizontes teóricos.
Todavia, Tillich dizia que não é possível “hipostatizar”10 demasiadamente a noção de religião.
Esta só é autenticamente vivida na mediação de formas culturais concretas, não porque
também seja cultura, mas porque ele entendia a religião como o horizonte de sentido mais
8
GIARD, L. A invenção do possível. In: CERTEAU, M. de. A Cultura no Plural, p. 9.
9
CERTEAU, M. de. A Cultura no Plural, p. 19.
10
O termo “hipóstase” vem do grego e pode significar “substância”, “essência”, “fundamento”. Todavia, aqui o
termo é tomado como metáfora para qualificar discursos e teorias que se abstraem excessivamente da
realidade, perdendo a referência histórica concreta ao cair em um grande “essencialismo”.
18
profundo de todas as expressões culturais. Mas toda experiência cultural lida com suas
limitações, não conseguindo expressar totalmente o sentido último da existência que, para
Tillich11, é o sentido religioso. Justamente porque a percepção do sentido religioso é
profundamente ambígua, ou seja, o ser humano participa, une-se, mas reage, distorce e afasta-
se de si mesmo e do próximo/outro quando lida com o sagrado: essência e mistério profundo
da experiência religiosa. Essas ambigüidades desdobram-se concretamente nas formas
culturais que passam, por sua vez, a serem marcadas por essas mesmas ambigüidades, em um
acento dialético. Surge, assim, o conceito de “demônico” em Tillich: um recurso teórico para
significar e interpretar o fato de que, na vivência religiosa, o ser humano vive uma relação de
criatividade, ora positiva, ora destrutiva, distorcida, mas não deixa de ser “criadora”, porque o
fundamento religioso, enquanto experiência de sentido (e não uma experiência objetivamente
empírica) exprime essa ambiguidade criadora. Se Certeau ajuda a entender como ocorre,
concretamente nas formas culturais, a experiência da inventividade criadora, Tillich ajuda a
entender como, na experiência de sentido religioso, há uma pulsão também inventiva e que,
portanto, é profundamente ambígua: criação e distorção. Trata-se de um princípio simbólico
de significação da realidade12.
Assim, o principal objetivo dessa tese consiste justamente nisso: no exercício teórico e
hermenêutico de ressignificação da noção de sincretismo, a partir dos conceitos anteriormente
introduzidos, de tal forma a desdobrar-se, em afirmações mais específicas, a hipótese central:
considerar o sincretismo como expressão “demônica” da cultura, ou seja, a radicalização da
experiência ambígua de inventividade criadora e distorcedora de sentidos, nos encontros
estabelecidos por múltiplas fronteiras religiosas. Daí a criação do neologismo, nessa tese, do
“diacretismo”, a fim de dar maior realismo a essas experiências “inventivas”: se o sincretismo
“une”, “combina”, cria positivamente novas possibilidades de rearranjos religiosos, o
diacretismo “desune”, “distorce”, “desagrega”, mas como criação também, mantendo a
necessária dinâmica cultural e religiosa. Todavia, a possibilidade de se repensar o sincretismo
precisa ganhar contornos mais concretos para que tenha maior validade na interpretação de
situações de contatos históricos e cotidianos. Por isso, as relações sincréticas e diacréticas
acontecem, com inspiração certeauniana, nas relações táticas e estratégias que os sujeitos
religiosos estabelecem para significar suas realidades culturais. Essas relações táticas e
estratégias são, de certa forma, outra maneira de nomear as relações sincréticas e diacréticas
11
O próprio Tillich afirma: “A religião, como tudo na vida, submete-se à lei da ambiguidade que é construtiva e
destrutiva ao mesmo tempo. A religião é santa e pecadora”. Cf. TILLICH, P. Teologia da Cultura, p. 104.
12
Cf. TILLICH, P. Filosofía de la Religión, p. 75
19
estabelecidas. No fundo, o percurso teórico desta tese procura lidar com o seguinte problema
central: o que significa o sincretismo e quais as implicações dessa noção, quando pensado
como categoria de mediação/fronteira, para interpretar situações de contato religioso que
envolve profundas ambigüidades e ressignificação do sentido das alteridades envolvidas?
13
Expressão em referência ao título do texto do antropólogo Pierre Sanchis. Cf. SANCHIS, P. As Tramas
Sincréticas da História. Sincretismo e modernidades no espaço luso-brasileiro. Revista Brasileira de Ciências
Sociais. São Paulo, n.28, p. 113-138. 1995.
21
Ainda que não tenha ocorrido o rigor metodológico das clássicas pesquisas de campo
etnográficas tentei, de certa forma, treinar o “olhar, ouvir e escrever” enquanto categorias
interpretativas a modo do que afirma o antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira.
Para esse autor, “Se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na
pesquisa empírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pensamento, uma
vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar” 16. Com isso, a necessária
15
O Estado de Mato Grosso do Sul é um dos maiores produtores de grãos do país, destacando-se o plantio de
soja. Nos últimos anos os investimentos na criação de Usinas de Álcool têm crescido bastante onde, inclusive,
muitos indígenas são levados para trabalhar em condiçõs, muitas vezes, precárias.
16
Cf. CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O trabalho do antropólogo, p. 31-2.
23
17
GONÇALVES DA SILVA, V. O Antropólogo e sua Magia, p. 27.
24
Nesse campo que são os textos, ainda que de fontes de “segunda mão”, muito aprendi
sobre as culturas Guarani e Kaiowá. Porém, se for levado em conta a afirmação de Clifford
Geertz de que somente o nativo pode fazer uma leitura “em primeira mão” de sua própria
cultura, penso que posso estar justificado18. Em seguida, o primeiro capítulo.
18
“[...] os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por
definição, somente um „nativo‟ faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura). Trata-se, portanto, de
ficções; ficções no sentido de que são „algo construído‟, „algo modelado‟ – o sentido original de fictio – não
que sejam falsas, não-fatuais ou apenas experimento de pensamento”. Cf. GEERTZ, C. A Interpretação das
Culturas, p. 26.
CAPÍTULO 1: A “DANÇA” DAS METÁFORAS: PROBLEMATIZAÇÃO
DO SINCRETISMO RELIGIOSO NO SABER ANTROPOLÓGICO E
TEOLÓGICO
Massimo Canevacci
As variáveis sincréticas são justamente o rastro que vai ficando ao longo do caminho da
autocomunicação de Deus na história.
19
Texto que pode ser encontrado na coletânea: GORT, Gerald D. et. al. (eds.). Dialogue and Syncretism. An
interdisciplinary approach. Grand Rapids/Amsterdam: Eerdmans/Rodopi, 1989.
27
Porém, essas dissonâncias e ambigüidades parecem ser típicas dos saberes das ciências
humanas em geral, principalmente em relação a seus conceitos clássicos como, por exemplo,
o termo “cultura” para a Antropologia e o próprio termo “Religião” para as Ciências que
levam esse nome. Cultura e Religião são noções profundamente polissêmicas. Porque o
sincretismo também não seria? Uma vez que, mesmo que se aplique o termo para fenômenos
especificamente religiosos, não deixam esses fenômenos de serem culturais. Um exemplo
disso é que algumas críticas feitas ao uso do termo “Cultura” são basicamente as mesmas
feitas em relação ao sincretismo. O antropólogo norte-americano Marshall Sahlins, por
exemplo, vai afirmar que existem as chamadas controvérsias morais e políticas em relação ao
uso antropológico do conceito de cultura “[...] porque marcaria diferenças de costume entre
povos e grupos, sobretudo quando, ao fazê-lo, visa populações subordinadas dentro de
regimes políticos opressivos”22. Ou seja, reminiscências da compreensão de que a formulação
do conceito de cultura ainda paga tributo ao seu transfundo de formação colonialista, mesmo
em tempos considerados pós-coloniais. Isso ocorre, de certa maneira, com a noção de
sincretismo. Basta lembrar que a história do uso do conceito na antropologia brasileira e,
quando usado na teologia, o foi para explicar as múltiplas conseqüências do contato
intercultural e de ressignificações religiosas entre as culturas e religiosidades “afro” com o
catolicismo ibérico, via de regra, em contextos de dominação cultural23. Daí a idéia do
sincretismo como “resistência” e “disfarce” das culturas dominadas frente às dominadoras e,
consequentemente, a acusação de se manter, com o termo “sincretismo”, uma ideologia que
acaba reforçando a própria lógica desta mesma dominação ou “[...] um meio ideológico de
vitimização” (SAHLINS, parte I, 1997). Com a crítica desta crítica, pois reduz a cultura (e o
22
Cf. SAHLINS, M. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um
“objeto” em via de extinção. Parte I. Mana. Rio de Janeiro, v.3, n.1, 1997.
23
Conforme o texto de Roger Bastide intitulado “Problems of Religious Syncretism”, In: LEOPOLD, A. &
JENSEN, J. Syncretism in Religion. A Reader, p. 113ss.
29
24
Cf. SOARES, A. M. L. No Espírito do Abbá, p. 208.
25
Isso não significa, necessariamente, que Sahlins e Geertz assumam o mesmo método antropológico. Aqui no
Brasil antropólogos como Roberto Cardoso de Oliveira falaram muito do “paradigma hermenêutico” nas
ciências antropológicas em obras, tais como, “Sobre o Pensamento Antropológico”, texto original de 1987.
Cardoso de Oliveira fala em quatro grandes paradigmas que moldaram o saber antropológico: o paradigma
racional-estruturalista; estrutural-funcionalista; culturalista e o hermenêutico. Veja-se em: CARDOSO DE
OLIVEIRA, R. Sobre o Pensamento Antropológico, p. 15ss.
30
canadense Roger Haight (só para ficar nesses exemplos)26. O mesmo pode ser dito das
compreensões sobre o sincretismo em Afonso Soares, tal como citado anteriormente.
Neste capítulo o principal objetivo, ainda que de forma mais panorâmica, será a
análise das polissemias da noção de sincretismo, como forma de situar o leitor e a leitora em
um quadro teórico referencial mais amplo que será melhor delimitado e aprofundado no
capítulo seguinte. Essa polissemia ocorre, primeiro, no discurso antropológico e,
posteriormente, no teológico, ainda que o sincretismo, em dadas reflexões desses saberes, não
seja assim nomeado. A hipótese de trabalho é a seguinte: mais do que tentar enquadrar o
sincretismo em um conceito de caráter o mais amplo possível, sem perder sua especificidade,
é necessário entender que o mesmo só consegue “sustentabilidade” epistemológica em um
“arco conceitual” ou em uma pluralidade de definições (cada uma, por sua vez, com sua
“polissemia”). Isso para dar conta de fenômenos muito complexos, atravessados por diversos
níveis, sentidos e transversalidades outras. No fundo, o que se pergunta mesmo e se
problematiza é: a que se refere o sincretismo? Até que ponto não se “prende” o termo a uma
só dada conotação em função da manutenção dos “objetos” culturais e religiosos a que
pretende explicar? Esse parece ser o desafio, tanto para a antropologia quanto para a teologia.
Assim, o percurso desse primeiro capítulo constitui-se em três seções amplas, mas não menos
reflexivas, em torno do estado atual da questão. Em uma primeira seção (1.1), esboça-se um
percurso interpretativo sobre a construção histórica da noção de sincretismo, justamente com
a preocupação de perguntar a que experiência cultural e religiosa o termo torna-se referente.
Nas duas seções seguintes a principal preocupação é “repertoriar” os percursos e percalços de
leituras sócio-antropológicas (1.2) e de leituras teológicas (1.3) acerca do problema do
sincretismo religioso, nos termos afirmados anteriormente. É preciso prosseguir.
26
Haight, por exemplo, define a Teologia como “[...] a interpretação da realidade à luz dos símbolos cristãos.
Em termos mais gerais, a teologia é uma disciplina que interpreta o todo da realidade – existência humana, a
sociedade, a história, o mundo e Deus – nos termos dos símbolos da fé cristã”. Cf. HAIGHT, R. Dinâmica da
Teologia, p. 238. Por sua vez, os símbolos são “[...] qualquer fragmento da realidade finita, qualquer coisa,
evento, pessoa, situação, conceito, proposição ou narrativa que medeie à consciência humana algo diverso de si
mesmo”, cf. Idem, Ibidem, p. 241. Haight reconhece sua dependência da teoria dos símbolos religiosos de
alguns outros teólogos, dentre os quais o próprio Tillich. Paul Tillich reforça esse aspecto da mediação de todo
símbolo que, por sua vez, consiste em qualquer elemento da realidade condicionada/cultural que expressa a
experiência de sentido incondicional da vida, captada pela fé. Tillich afirma: “O objeto da fé necessariamente
possui um caráter simbólico; quer dizer muito mais do que expressa. Seja que se creia em uma pedra sagrada
ou em um Espírito pessoal onipotente, a intenção da fé sempre transcende o objeto da fé”. Cf. TILLICH, P.
Filosofía da La Religión, p. 68. Para uma teoria dos símbolos religiosos em Tillich veja-se TILLICH, P.
Dinâmica da Fé, p. 30-35.
31
possíveis dissonâncias nos encontros religiosos e nas ambigüidades da própria religião (no
caso a cristã), estabelecem-se os conflitos. Tais conflitos entre poderes religiosos
“heterônimos” e a vivência mais “teônoma” da experiência cristã, onde essa heteronomia
“exorciza” o sentido “demônico” da própria fé cristã, em acento tillichiano, e o jogo de poder
inventivo de grupos cristãos ao estabelecer táticas “sincréticas” aos lugares próprios de poder
estabelecidos pelas estratégias das Igrejas dominantes, em estilo certeauniano29. A conotação
negativa vai alastrar-se, juntamente, com o expansionismo missionário e colonialista de
muitas igrejas cristãs para além das fronteiras européias. Isso torna o problema do sincretismo
mais complexo, pois entra em cena, agora, a radicalização do contato com um “outro”, ou
seja, com culturas religiosas que operam lógicas completamente diferentes (heterológicas) do
ocidente “cristão”. Esse problema perdurará até o século XX enquanto permanecer as
fronteiras colonialistas dos processos civilizatórios modernos e cristãos. Vale lembrar que a
nascente ciência antropológica na segunda metade do século XIX, muito influenciada pelo
pensamento evolucionista clássico tinha, nas narrativas missionárias, muito das suas fontes de
compreensão das outras culturas (principalmente não ocidentais). Essa herança colonialista
vai reforçar, em setores antropológicos e teológicos do século XX, uma ojeriza ao termo
sincretismo por enxergar no mesmo um discurso ideológico de manutenção da coabitação de
elementos cristãos, considerados símbolos de dominação, com elementos que denotam a
“pureza nativa” de outras experiências religiosas30. Nega-se o sincretismo em prol de uma
entidade pura chamada “cultura”: a beleza do morto.
haver toda uma investigação acerca das religiões antigas, principalmente as de corte helenista,
cultos orientais do antigo Império Romano, religiões de “mistério” e de rituais “extáticos”,
dentre outros. Em princípio, uma tentativa de reabilitação positiva do termo sincretismo ao
pontuar, com vigor, o aspecto da “mistura” de diversas fontes que caracterizam todos os
movimentos religiosos, principalmente no período de formação desses movimentos e nas
“lacunas” abertas pelas grandes religiões32. Essa última frase é importante porque houve uma
tendência de atrelar o sincretismo à descrição objetivista de movimentos “politeístas” ou
“polidemonistas”, para lembrar Gerardus van der Leeuw em seu clássico “Fenomenologia da
Religião”, publicado já no século XX, em 1933. Esse historiador da religião opera uma grande
contribuição ao desenvolver sistematicamente o aspecto sincrético de toda manifestação
religiosa, inclusive do Cristianismo. Todavia, o sincretismo é visto como uma espécie de
“estágio” dentro de um processo mais longo, onde o “homem religioso” (homo religiosus)
necessita reconfigurar seu universo de sentido diante de muitas variáveis/fontes. Assim, van
der Leeuw utiliza o conceito de “transposição”, ou seja, muda-se (“transpõe-se”) o
significado, mesmo que as formas culturais em contato mantenham-se constantes
(RUDOLPH, 2004, p. 71).
32
“Grandes religiões” como consideradas as monoteístas: Cristianismo, Judaísmo e Islamismo, por exemplo.
RUDOLPH, K. Syncretism: From Theological Invective to a Concept in the Study of Religion. In: LEOPOLD,
A. & JENSEN, J. Syncretism in Religion: a Reader, p. 68.
35
Aqui no Brasil e no campo mais específico das relações interétnicas entre sociedades
indígenas e a sociedade nacional, marcaram época as releituras da própria idéia de aculturação
feita por Roberto Cardoso de Oliveira ao propor a noção de “fricção interétnica”34. Cardoso
de Oliveira pensa essa noção a partir da situação de profundas agressões que as populações
indígenas sofreram por conta do avanço avassalador da sociedade nacional sobre seus
territórios, nos anos 50 e 60, e certa ineficácia do aparelho de estado responsável pelas
políticas indigenistas no Brasil. Por mais que se celebre o poder reinterpretativo das
alteridades envolvidas em contextos de contato, esse contato, no caso indígena, é marcado por
33
Herskovits foi herdeiro do culturalismo antropológico, inclusive, foi aluno de Franz Boas na Universidade de
Colúmbia, nos EUA. Esse “culturalismo particularista” consistiu em uma forte reação ao “universalismo” das
“sobrevivências culturais” tão em voga nas leituras evolucionistas. Cf. CASTRO, C. (Org.). Franz Boas.
Antropologia Cultural, p. 7-24.
34
Principalmente em sua obra “O Índio e o Mundo dos Brancos”, cuja primeira edição data de 1963.
36
35
Para o crescimento das populações indígenas e os desafios daí decorrentes veja-se LEVY, M. S. F.
Perspectivas do crescimento das populações indígenas e os direitos constitucionais. Revista Brasileira de
Estudos de População. São Paulo, v.25, n.2, 2008.
37
36
Conforme afirma o historiador Serge Gruzinski: “[...] Tudo bem pesado, sincrético não seria, pois, o conjunto
do real? E isso tornaria tão geral o conceito de sincretismo que ele passaria a ser supérfluo”. In: GRUZINSKI,
S. O Pensamento Mestiço, p. 46.
38
tem como religião oficial, normativa, é resultado de um longo processo, no qual elementos
das diversas religiões populares foram crescendo em influência”37. Nesse aspecto o
sincretismo, atrelado a esses movimentos marginais e “populares” ou era rejeitado de saída ou
era necessário imprimir um esforço teológico imenso para que as “misturas” fossem mais
claras e coerentes. No campo protestante a dificuldade com a noção de sincretismo esbarrou
nas radicais separações entre a noção de revelação e religião. Essa, uma construção humana
imiscuída nos dilemas e ambigüidades culturais. Aquela, captada pela fé e depurada pela
Palavra de Deus, propiciava acesso seguro a esse mesmo Deus. O sincretismo passou a ser
visto como uma perigosa mistura da revelação com a história e a cultura 38. Certamente que
essa dicotomia já foi superada por algumas correntes teológicas. Muito embora essa dicotomia
permaneça muito viva em círculos cristãos, como nos projetos missionários de muitas Igrejas,
fora da realidade das discussões acadêmicas, contribuindo, assim, para certa estigmatização
dos processos sincréticos, ao mesmo tempo em que se observa uma “renovação”
fundamentalista de afirmação da superioridade da fé cristã frente a outras expressões
religiosas.
A esses problemas levantados por Magalhães é possível somar outro: a retomada, com
vigor, em vários setores teológicos contemporâneos, tanto católicos quanto protestantes, do
poder conotativo da linguagem teológica expresso essencialmente em símbolos, metáforas e
metonímias. Isso faz com que o discurso teológico rompa com as “assepsias” de um discurso
teológico monolítico que ainda procura cercear a multiforme expressão do divino. Todavia,
abre-se o risco para o caráter profundamente ambíguo da linguagem simbólica expressiva do
divino e do próprio ser humano, gerando discursos teológicos que terão que lidar com
contraditoriedades em ato, o que significa passar pelo tema do sincretismo como a
radicalização da ambigüidade dessas configurações simbólicas. A seu modo, é para isso que
Afonso Ligório chama a atenção no final de sua obra “Interfaces da Revelação”. Está aí o
sincretismo, em sua controversa história (porque a noção de sincretismo, se não fosse
controversa, não seria sincretismo) para mostrar que “[...] a percepção e a recepção simbólicas
têm no ser humano uma anterioridade ontológica. Antes de discorrer (conceito) já intuímos
algo (símbolo) [...] A viagem de um sistema simbólico a outro não se reduz a uma tradução
37
Cf. MAGALHÃES, A. C. de M. Sincretismo como tema de uma teologia ecumênica. Estudos de Religião.
São Bernardo do Campo, n.14, 1998, p. 55.
38
Magalhães resgata como modelo ilustrativo dessa radical separação entre revelação e religião (enquanto
processo histórico e cultural) a Teologia de Karl Barth, teólogo reformado que viveu em fins do século XIX e
no século XX. Karl Barth foi contemporâneo de Paul Tillich onde esse teólogo luterano já criticava a
dicotomia barthiana entre religião e revelação. Cf. Idem, ibidem, p.55ss.
39
conceitual”39. Essa argumentação parte de um teólogo e cientista da religião, mas bem pode
servir para o discurso antropológico, até porque a Teologia não deve abrir mão de seus
espaços culturais, caso contrário, nem haveria a possibilidade de se formular os horizontes
simbólicos, como diria Paul Tillich. De fato, a maneira de se projetar a discursividade define
o alcance da noção de sincretismo, seja para aqueles que rejeitam o termo, seja para aqueles
que o defendem. Todavia, parece que o não considerar a fundo as implicações da linguagem
simbólica e suas ambiguidades, essenciais para os estudos de religião, principalmente nas
situações de contato intercultural entre indígenas e não indígenas (enquanto estudo de caso), é
negar o espaço promissor de se pensar o sincretismo na fronteira e como fronteira do
pensamento. É, assim, ao retomar o texto de Michel de Certeau no início da seção, a principal
forma de matar o “sincretismo”, mesmo que se crie uma imagem conceitualmente bela do
mesmo. Nas próximas seções várias dessas questões retornarão de forma mais específica, o
que ajudará a delinear a compreensão do sincretismo em autores específicos, mostrando que a
“simbólica sincrética” constitui-se não a partir de uma só dada conotação, mas a um conjunto,
a “arcos” conceituais. Falemos, primeiro, da linguagem antropológica na próxima seção.
39
Cf. SOARES, A. M. L. Interfaces da Revelação, p. 233; 235.
40
Cumpre aqui, ainda, a extensão de uma palavra reflexiva sobre Massimo Canevacci.
Esse antropólogo pode ser considerado um leitor “pós-moderno” (ou “pós-paradigmático”,
para usar um termo presente nas palavras do próprio autor) das condições de produção das
etnografias, pressuposto fundamental para os saberes antropológicos. Isso porque ele opera
uma “desconstrução” do saber antropológico moderno ao considerar que essa mesma
modernidade insistiu em uma visão unitária, imobilista, de reproduções permanentes, firmezas
teóricas e grandes paradigmas estruturadores da realidade em relação ao seu objeto
privilegiado: a cultura. Propõe, assim, que as culturas sejam pensadas na sua fluidez,
desordenadas, instáveis, “sujas”, “irracionais”, no sentido de se oporem a tudo aquilo que é
“[...] racional e monológico do discurso iluminado” (CANEVACCI, 1996, p. 7). Como a
crítica é referente a uma modernidade iluminista, estamos diante de um antropólogo, de fato,
pós-moderno ou que recobra trajetórias (ainda que “diaspóricas”) na crise da modernidade?
Para Canevacci, no sincretismo encontra-se “[...] o fim da lamentação pela perda da origem,
da identidade fixa, da memória restauradora, que angustia a maioria dos cientistas sociais”
(CANEVACCI, 1996, p. 10). Nesse sentido, Canevacci vai instaurar aquilo que foi insinuado
na introdução deste capítulo: uma “metaforização” dos conceitos, porque a realidade cultural
não é mais aquilo que fazemos dela em termos de representação. O sincretismo passa a ser
40
Cf. FERRETTI, S. F. Sincretismo, Religião e Culturas Populares. In: Caminhos. Goiânia, v.2, n.1, 2004, p.
13. A obra de Parker que Ferretti faz menção é “Religião popular e modernização capitalista: outra lógica na
América Latina”, de 1996. Já a obra de Canevacci é “Sincretismos: uma exploração das hibridações
culturais”, de 1996.
41
CANEVACCI, M. Sincretismos: uma exploração das hibridações culturais, p. 14.
41
“glocal”42 e envolto em uma “dialética” própria. Própria, porque não repete uma dialética
típica da realidade que se preocupou muito mais com superações, nos ordenamentos de teses e
antíteses em busca de sínteses. Para Canevacci:
42
Neologismo criado por Canevacci para qualificar o que julga ser a atual fase do pensamento “pós-cultural” de
forte tensão “[...] descentrada e conflitual entre globalização e localização: ou seja, entre processos de
unificação cultural – um conjunto universal de fluxos universalizantes – e pressões antropofágicas „periféricas‟
que descontextualizam, remastigam, regeneram” Cf. CANEVACCI, M. Sincretismos: uma exploração das
hibridações culturais, p. 23.
43
Em referência ao antropólogo norte-americano Alfred Kroeber (1876-1960) que, na primeira metade do século
XX, rompeu com os puros determinismos biológicos como explicações para o comportamento humano. Por
mais que haja determinações biológicas, o ser humano é ser da cultura, é produtor de cultura. A cultura está
acima de qualquer outra experiência, determinando todas: ela é “super-orgânica”. Se tudo, culturalmente
falando é sincrético, é nesse sentido que caberia a pergunta se o sincretismo é esse “super-orgânico”.
44
CANCLINI, N. G. Noticias recientes sobre la hibridación. In: HOLANDA, H. B. de e RESENDE, B. (orgs.)
ArteLatina, p. 64. De forma mais detalhada conferir em CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas. São Paulo:
EDUSP, 1998.
42
45
Essa autora será um pouco mais comentada no capítulo 3.
43
caleidoscópio não impede os “giros” que formam as diferentes figurações: essa seria a
dinâmica cultural, multifacetada46.
Na citação de Mary está presente uma definição de cultura bem atual enquanto
“contraditoriedade em ato”. Por seu turno, o sincretismo seria a essência dinâmica dessa
contraditoriedade. Todavia, Mary não se furta a criticar certa tendência, estilo “canevacciano”
pós-moderno, de tomar essa contraditoriedade como algo dado e não sócio-culturalmente
construído. Isso implica em ser problematizado. Porém, Mary também não abre mão da força
significativa de outras metáforas para qualificar e descrever os fenômenos sincréticos, tais
como o já falado “hibridismo” e a idéia de “bricolagem”, tomada de sua releitura crítica da
antropologia estruturalista de Lévi-Strauss. Se é promissor tomar metáforas como
transferência de sentido de uma área de saber para outra48, é possível trazê-las para elucidar
aspectos culturais, desde que garantidas as condições sociais e históricas de produções dessas
metáforas e os problemas específicos que elas pretendem responder, sob pena de se
46
Agradeço a profa. Maria de Lourdes Alcântara por ter me recebido, no mês de maio de 2009, na sede da
Organização Não Governamental “AJI” (Ação de Jovens Indígenas de Dourados), na própria cidade de
Dourados, para uma produtiva conversa. Para maiores matizações sobre a relação entre hibridismo, sincretismo
e a noção bourdieuana, veja-se o artigo de Terry Rey intitulado Habitus et hibridité: une interpretation du
syncrétisme dans la religion afro-catholique d‟après Bourdieu (“Habitus e hibridade: uma interpretação do
sincretismo na religião afro-católica segundo Bourdieu”), de 2005.
47
Principalmente em suas obras Le bricolage africain des héros chrétiens (“A bricolagem africana dos heróis
cristãos”), de 2000 e Le défi du syncrétisme (“O desafio do Sincretismo”), de 1999. Até onde o autor dessa tese
saiba, salvo melhor juízo, não há obras de Mary traduzidas para o português.
48
Como a idéia de “bricolagem”, transferida do universo mecânico para o universo lingüístico e, posteriormente,
cultural.
44
A partir dessas perspectivas, Mary fala mais em um “sincretismo das formas” do que
em um “sincretismo material”. Por “forma” aqui Mary remete a Gestalttheorie, ou seja, as
formas de expressão dos significados culturais. Com isso, o sincretismo está mais relacionado
a categorias de entendimento expresso em formas simbólicas, ou seja, constitutivas de um
universo de sentido. Por “operar” no campo de uma interface simbólica, as experiências
religiosas que se entrecruzam estabelecem uma miríade de sentidos contraditórios o que gera,
por sua vez, uma permanente criação das categorias de entendimento para compreender a
realidade: “O trabalho sincrético enfrenta aqui o princípio da descontinuidade que controla a
definição mesma de sistemas simbólicos e de sua transformação” (MARY, 2010, p. 137).
Assim, o sincretismo pode ser elucidado ao transpor para essa categoria possibilidades de
sentidos de outros termos, fazendo esse “jogo metafórico” enquanto exercício de
entendimento. Nesse caso, entram em cena as categorias tanto de “bricolagem” como de
“hibridismo”, por exemplo, para interpretar “modalidades do sincretismo”. Essas categorias,
segundo o referido antropólogo, são abandonadas por analistas não por sua possível falta de
“peso analítico”, mas por estigmatização ideologicamente orientada contra o fato de que a
realidade é muito mais concreta em termos de interfaces e “violentações” de fronteiras. Para
Mary, na opinião dos analistas contrários a uma apropriação “indébita” de conceitos de outros
campos do saber, esconde-se uma banalização e a projeção de uma “monstruosidade” inerente
na idéia do híbrido, por exemplo. Todavia, para Mary (2005, p. 282), “[...] A ambigüidade do
cruzamento de fronteiras do produto híbrido transforma-se em recursos criativos que podem
49
Cf. MARY, A. Métissage and Bricolage in the Making off African Christian Identities. Social Compass.
[S.l.], v. 3, n. 52, p. 282-3.
50
Cf. MARY, A. Les anthropologues et la religion, p. 135.
45
nutrir produções de significado completamente novo [...]” nas análises dos processos
sincréticos culturais. Todavia, se a metáfora implica uma transposição de significados, porque
insistir no termo sincretismo? Parece não ficar clara essa questão em Mary ou, em outros
termos, ele acaba por consolidar o uso de outras categorias, como a de bricolagem, afirmada
anteriormente. A bricolagem torna-se uma modalidade de sincretismo. Mas que modalidade?
Em que sentido? Como um “bricoleur”, os atores sociais religiosos, em ações bem práticas no
processo sincrético, utiliza-se de fragmentos simbólicos religiosos oriundos de diversos
planos de sentido e recombinam esses fragmentos, de tal forma a montar um plano de sentido
estruturador da realidade. Não se trata da mistura ou a fusão indiferenciada de elementos, mas
a tentativa de compor uma imagem religiosa de sentido em meio a várias oposições e
contradições. Ao refletir sobre essas “modalidades metafóricas” que traduzem a polissemia do
sincretismo, Mary afirma:
51
FERRETTI, S. F. Repensando o Sincretismo, p. 87-93.
47
Talvez as “novas visões” a que Ferretti faz menção no final da citação esteja,
justamente, no poder conotativo da linguagem metafórica em criar estilos e modalidades de
sincretismo nas nomeações anteriores, conforme visto em Mary (bricolagem, hibridismo,
identidades caleidoscópicas, dentre outras). Mas nessa citação é possível entender a
dificuldade do tema. Sua polissemia pode mais esconder do que esclarecer. Certamente que
em sua antropologia Ferretti não descarta “tipologias” do sincretismo52 como recurso “ideal”
para a aproximação à realidade complexa e multifacetada do campo religioso brasileiro. O
exemplo que ele cita é ilustrativo: se considerar as interações entre expressões do candomblé
e o catolicismo (principalmente em suas vertentes “populares”), há um sincretismo de
paralelismo nas correlações entre orixás e santos católicos. Há sincretismo de convergência
entre idéias do candomblé africano e do catolicismo luso-brasileiro sobre “Deus”, os “santos”,
o sofrimento, dentre outros aspectos. Há sincretismo de fusão na observação de alguns rituais
(o batismo, por exemplo) praticados pelas pessoas que freqüentam o terreiro e a missa. Mas
há também a separação ou não-sincretismo na observância de outros rituais (como o
sacrifício de animais, por exemplo) (FERRETTI, 1995, p. 91-2). A tendência é que o processo
sincrético se desdobre a partir de um gradiente “zero” onde, hipoteticamente, não há
sincretismo e transita até o nível citado da convergência, o que implica na possibilidade dos
processos continuarem a depender do gradiente a ser mais acionado. Inclusive, Ferretti propõe
o seguinte quadro conceitual que apresenta as modalidades sincréticas em seus gradientes
(1995, p. 90):
Fusão Ligação
52
O teólogo Leonardo Boff já trabalhava com algumas tipologias do sincretismo religioso em seu texto “Igreja:
Carisma e Poder”. O referido teólogo fala em sincretismo de adição, acomodação, concordismo
(justaposição), mistura, tradução e refundição. Cf. BOFF, L. Igreja: Carisma e Poder, p. 158ss. Sobre Boff
falaremos na próxima seção desse mesmo capítulo.
48
Mas o que chama atenção no quadro acima é que todos os sentidos para o uso da
noção de sincretismo implicam, para fazer jus ao termo, em aspectos de aproximação e união.
Todavia, esses processos necessitam encontrar-se dialeticamente com seu oposto, que são os
processos que implicam em desagregações, separações e disjunções, qualificados nessa tese,
conforme o capítulo 2, pelo termo “diacretismo”. É importante também destacar o fato de
Ferretti insistir na não absolutização destes “tipos” de sincretismos. Com acento webberiano,
são “tipos ideais”, elaborado no plano das ideias e do sentido e não realidades puramente
empíricas e objetivamente observáveis com tão facilidade. Em outras palavras: deve-se ter o
cuidado de não enquadrar as interações religiosas em um só tipo ideal. Em relação ao terreiro
da “Casa das Minas”, por exemplo, Ferretti é taxativo em afirmar que em um mesmo espaço
(mesmo grupo de culto/rito) pode ser encontrado separações, paralelismos, misturas e
convergências. O fenômeno sincrético não se prende a um só dado sentido. Por isso, para
além do descritivismo positivista, é preciso uma tarefa hermenêutica. Assim, para Ferretti, o
sincretismo denota a expressão criativa da cultura brasileira, principalmente para os muitos
atores sociais que vivenciam este fenômeno. O sincretismo configura-se em ricas traduções
simbólicas que constroem as estruturas sócio-religiosas cotidianamente. O sincretismo não
53
A palavra Tekojara pode ser traduzida por “dono” do meu modo de ser, da minha conduta. Como nas
experiências religiosas tradicionais dos Guarani e Kaiowá há uma profunda humanização de toda a realidade
“natural”, cada elemento da natureza possui seu “Jara”, seu senhor, dono. Assim, as plantas, os animais, os
acidentes geográficos, todos tem um Jara. A cosmologia Guarani e Kaiowá tradicional implica em uma
constante negociação entre os Jara para a efetivação das reais condições sociais. Sobre a questão dos Jara
voltaremos no último capítulo. O Guaxirê é uma dança ritual, uma celebração importante na tradição de
conhecimento nativa dos Guarani e Kaiowá onde se rememora o “bom viver” legado pelos divinos.
49
54
Outros artigos de Sanchis também sobre o tema são: “Pra não dizer que não falei de sincretismo”. In:
Comunicações do ISER, 45, 1994, p. 4-11 e “As tramas sincréticas da história” In: Revista Brasileira de
Ciências Sociais, 28, 1995b, p. 123-38.
55
SANCHIS, P. Religiões, religião... Alguns problemas do sincretismo no campo religioso brasileiro. In:
SANCHIS, P. (org.) Fiéis e Cidadãos. Caminhos e percursos de Sincretismo no Brasil, p. 27.
50
Pieris, por exemplo, ao estudar as relações entre cristãos de “base”, a partir da experiência da
pobreza, e o Budismo, rejeita o termo “sincretismo” em prol da noção de “simbiose”, uma vez
que aquele aponta para uma “[...] mistura aleatória de religiões: algo como um coquetel que
muda o sabor de cada ingrediente sob a influência do outro”56. Mas há teólogos que, por outro
lado, passaram a celebrar o sincretismo como a própria essência dinâmica do Cristianismo, tal
como o teólogo brasileiro Leonardo Boff (principalmente a partir dos anos 70 do século
passado), que será discutido a seguir, e o teólogo espanhol Manuel Marzal, tal como será
mostrado no último capítulo. O principal objetivo, agora, é mostrar, por um lado, algumas
tentativas de afirmação do sincretismo como categoria interpretativa e outras, por outro lado,
de “disfarce” dessa mesma noção, colocada em função de outras categorias interpretativas
para a relação de encontro do Cristianismo com outras experiências religiosas.
56
PIERIS. A. Viver e Arriscar, p. 21.
57
Estas ideias já estavam postas na segunda metade da década de 70, no seguinte artigo: BOFF, L. Avaliação
teológico-crítica do Sincretismo. In: Revista de Cultura Vozes, n. 71, 1977, p. 53-68.
58
BOFF, L. Igreja: Carisma e Poder, p. 160-1.
52
1.3.2 Sincretismo para além da Inculturação do Evangelho: diálogo crítico entre Mário de
França Miranda e Antonio Magalhães
59
Cf. MAGALHÃES, A. C. de M. Sincretismo como tema de uma teologia ecumênica. In: Estudos de Religião,
n. 14, 1998, p. 49-70. MIRANDA, M. de F. Inculturação da fé e sincretismo religioso. In: MIRANDA, M. de
F. Inculturação da Fé. Uma abordagem teológica, p. 107-127.
60
Para uma discussão da relação entre inculturação e sincretismo, que foge ao propósito deste trabalho, remeto
novamente a SOARES, A. M. L. Interfaces da Revelação, p. 71-91.
54
possibilidade de se pensar o sincretismo neste sentido? Para Antonio Magalhães parece que
não. Vejamos.
Ao contrário de Miranda, Magalhães encara o sincretismo como “produto final” do
processo de inculturação. Assim, para Magalhães, a inculturação é sempre mediação,
caminho, uma forma de concreção da mensagem a partir de referenciais pertinentes à cultura
de um povo. Por isso que todo processo de inculturação, para esse teólogo e cientista da
religião, tem que respeitar as mediações simbólico-culturais existentes em um povo
(MAGALHÃES, 1998, p. 68). Certamente que o processo é dinâmico. O “produto final”
sincrético a qual Magalhães refere-se é sempre fugidio, nunca plenamente “controlado” por
missionários (ou qualquer outro agente religioso de mediação) e os receptores da nova
mensagem religiosa. Além de ser “fluído”, a dinamicidade sincrética aponta novos começos
para outros processos de sincretização e inculturação da fé, o que relativiza, por sua vez, esse
dualismo entre anunciantes e receptores.
Além disso, uma das diferenças marcantes entre os dois autores cotejados nesta
subseção é que, se para Miranda as discussões entre sincretismo e inculturação não devem
priorizar as mútuas transformações do encontro entre as religiões, conforme dito, é
exatamente aí que se insere o interesse maior de Magalhães. Para este autor, uma teologia do
sincretismo religioso, não dispensando necessariamente a riqueza da tradição, deve se
preocupar “[...] de que forma as expressões religiosas da atualidade repensam os conteúdos
clássicos e apresentam alternativas próprias para as mediações deste anúncio”
(MAGALHÃES, 1998, p. 69). Isso é assim porque, nas interações religiosas, no caso, do
cristianismo com outras religiões, os conteúdos de ambas vão sendo refeitos neste processo
sincrético de reelaboração da fé. Com isso, Magalhães conclui com sua tese que se contrapõe,
pelo menos em parte, a Miranda:
O sincretismo apresenta perspectivas que outras (sic) conceitos como
inculturação, teologia das religiões, contextualização etc. , não tiveram a
clareza de enfrentar. O cristianismo não somente transformou as formações
culturais, mas foi profundamente mudado pelas culturas dos povos e pela
sabedoria das religiões. A tarefa que se impõe ao pensamento teológico é
justamente de estabelecer um diálogo com esta mudança (MAGALHÃES,
1998, p. 70)
Longe de ser uma via de mão única, esta citação coloca o acento nas reciprocidades.
Para Magalhães, se os processos de inculturação levarem em conta as transformações
sincréticas, o cristianismo oportuniza transformações mais ricas e plenas. Não é que o
sincretismo necessariamente “destrói” as identidades religiosas, mas possibilita a
55
Um dos teólogos e cientista da religião brasileiro que mais tem trabalhado a noção de
sincretismo é Afonso Ligorio Soares que, inclusive, dedicou uma tese de doutorado sobre o
tema publicada com o título “Interfaces da Revelação. Pressupostos para uma teologia do
sincretismo religioso no Brasil”, no ano de 2003. Além disso, em texto mais recente
(publicado em 2008) intitulado “No espírito do Abbá. Fé, revelação e vivências plurais”,
Afonso Soares investiga, com o rigor analítico que qualifica suas obras, as implicações da
61
Para a noção de “inreligionação” ver TORRES QUEIRUGA, A. Do Terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p.
322-35. Também o artigo TORRES QUEIRUGA, A. Cristianismo y Religiones: “inreligionación” y
cristianismo assimétrico. Disponível em: http://www.servicioskoinonia.org/relat/241.htm. Acesso em: 17
mai. 2006.
56
noção de sincretismo para uma teologia cristã da revelação62. Nesse sentido, se a mensagem
cristã, baseada na autorevelação de Deus aos seres humanos, tem a pretensão à
universalidade, deve assumir os riscos das muitas assimetrias, fragmentações, percursos e
percalços da “recepção” dessa mesma revelação por parte do humano63. Inspirando-se nas
ideias do já citado teólogo Torres Queiruga, Soares reposiciona o sincretismo não como mera
etapa da “inculturação”, mas como a própria condição de uma vivência dos dados revelados.
O sincretismo, nesse caso, é a resposta humana, sempre provisória e finita, a autocomunicação
divina. Assim, Soares configura o que nomeia por “fé sincrética”. Essa expressão, segundo
ele:
[...] conjuga a origem mais profunda dessa resposta humana com seus
inevitáveis limites na expressão e na prática. Ela é absoluta quanto aos
valores fundamentais que estão em jogo na escolha aparentemente
contraditória dos significantes religiosos (dimensão fé); mas é relativa
quanto aos resultados efetivamente atingidos (dimensão ideológico-
sincrética). Pode-se falar, portanto, de fé sincrética para identificar o modo
mesmo de uma fé “concretizar-se”. De fato, não existe fé em estado puro; ela
se mostra na práxis (SOARES, 2008, p. 102-3)
62
Na realidade, retoma o grande tema de sua tese de doutorado. Já na introdução desse texto, Soares preocupa-se
em deixar bem claro que sua investigação preocupa-se com as implicações dogmáticas e pastorais de uma
análise da experiência do sincretismo religioso. Ele afirma: “Orienta-o [ou seja, a reproposição de uma questão
teológica fundamental] a convicção de que uma religião que se pretenda universal [no caso, o cristianismo] e
que fundamente sua argumentação na crença de que o absoluto de Deus concentra-se na relatividade de um ser
humano localizável no tempo e no espaço não pode, honestamente, desconsiderar teologicamente a análise dos
benefícios e limites do sincretismo”. Cf. SOARES, A. M. L. Interfaces da Revelação, p. 17.
63
“O cristianismo, por ser uma religião universalista, não pôde se subtrair ao sincretismo, já que chamou sobre si
a responsabilidade de conter, em princípio, toda a pluralidade encontrável no gênero humano”. Cf. SOARES,
A. M. L. No espírito do Abbá, p. 193. Essa citação, na realidade, vem corroborar a citação da nota anterior.
57
A partir dessas questões, Soares propõe uma “síntese” de sua compreensão acerca da
análise teológica do problema do sincretismo religioso. Em primeiro lugar, o sincretismo
constitui-se na dinâmica histórica da pluralidade das religiões em ato, ou seja, o “rastro” das
manifestações revelatórias de Deus e da resposta humana na história (SOARES, 2008, p.
195). Em segundo lugar, independente do juízo de valores que se possa fazer, principalmente
quando envolve a complexa relação entre a experiência de fé e os compromissos científicos, o
sincretismo parece ser uma “constante” em meio às “inconstâncias” culturais e deve, portanto,
ser analisado com a maior competência possível nas interfaces dos saberes. Nesse aspecto, é
importante ressaltar que, para Soares, o que se nomeia por sincretismo é, antes, uma prática
que antecede as escolhas teóricas e discursos ideológicos dos analistas: “Trata-se, em primeiro
lugar, de reconhecer o sincretismo de fato; só depois pode ter algum sentido a pergunta sobre
o que poderíamos aprender teologicamente desse dado real” (SOARES, 2008, p. 197). Mas
essa “realidade” do sincretismo como dado também não seria uma percepção orientada
ideologicamente? Fica a questão. Em terceiro lugar, o sincretismo é a fronteira, o limiar dos
encontros e possíveis diálogos inter-religiosos, desde que se reconheça a autonomia e a
capacidade de grupos originalmente não cristãos de “saborear”, a seu modo, o que julgam de
bom e verdadeiro nas tradições cristãs (SOARES, 2008, p. 201). Por fim, a necessária
hermenêutica teológica de compreender o tema da revelação sem desconsiderar a experiência
do sincretismo religioso. Nesse ponto, Soares não faz maiores diferenciações entre o uso do
64
Também em SOARES, A. M. L. Interfaces da Revelação, p. 246: “A diferença (não indiferente) é de trajeto,
ou seja, o ponto de vista de onde se observa ou de onde se participa da invenção religiosa popular. A
comunidade eclesial propõe-se a inculturar a mensagem evangélica; o povo responde, acolhendo
(inreligionando) a „novidade‟ de acordo com suas reais possibilidades contextuais (políticas, culturais etc.)”.
58
termo “hibridismo” do termo “sincretismo”, haja vista a afirmação de que a teologia deve
considerar que as experiências de “hibridismo religioso” fazem parte do desígnio divino de
autocomunicar-se à condição humana. A mensagem cristã “hibridiza-se” em múltiplas
metáforas que aprende de outras experiências religiosas, sem abrir mão de sua força
metafórica também. Parece que, nesse caso, o hibridismo seria uma modalidade do
sincretismo, para lembrar as ideias de Andre Mary. Compete ao teólogo ou teóloga e a(o)
cientista da religião identificar, justamente, as teologias subjacentes aos muitos “hibridismos
culturais”. A questão que sempre marcará uma possível “teologia do sincretismo religioso” é
a possibilidade de uma pessoa ou um grupo social viver, simultaneamente, mais de uma fé ou,
em outras palavras, como uma mesma fé pode suportar as mais diferentes concretizações
culturais (SOARES, 2008, p. 209-11). Daí que o sincretismo é o grande tema para o que
Soares chama de interfaith theology (teologia entre-as-fés), pois essa teologia parte do
pressuposto de que a revelação de Deus, se também é histórica, tem que assumir em seu
interior ambiguidades, erros e contradições que fazem parte da busca humana pela
compreensão da verdade (SOARES, 2008, p. 213). De fato, continua válida sua intuição de
base de que “[...] a autocomunicação divina já atuante nas várias tradições culturais antes,
contra ou mesmo apesar do contato com as comunidades cristãs [...]” (SOARES, 2008, p.
214) é o privilegiado “lugar teológico” em que os discursos interpretativos sobre a fé,
captados simbolicamente, devem fazer seu permanente exercício, na qual as ideias de Soares
são uma profícua contribuição.
Em síntese
É importante também frisar, por fim, o seguinte: mesmo que o discurso teológico
guarde preocupações epistemológicas diferentes da antropologia, no fundo tenta-se reabilitar a
noção de sincretismo, em perspectiva antropológica, não como etapa ou fase das produções
culturais, mas como o lado necessariamente fragmentário, ambíguo, o caminho sine qua non
(“sem o qual não é possível”) de falar das culturas e, do lado teológico, impossível falar da
dinâmica histórica da revelação divina. A teologia aqui entendida como hermenêutica dos
símbolos de fé subjacentes às formulações culturais. Por isso, tanto a teologia quanto a
antropologia, nas breves análises exemplificadoras neste capítulo, necessitam ressignificar a
noção de sincretismo ao apegar-se à sua força metafórica, pois só assim é possível significar
uma realidade tão complexa e cheia de variáveis como as culturas religiosas.
Basicamente é isso que se pretende fazer no próximo capítulo, uma vez que ao
aproximar as idéias de Michel de Certeau e Paul Tillich, tenta-se uma atitude hermenêutica de
articular uma perspectiva do sincretismo que conjugue também a experiência do absoluto, só
que vivido ambiguamente nas manifestações concretas da religião na dinâmica social e
cultural. É para onde o texto da tese caminha agora.
CAPÍTULO 2: DO “INVENTIVO” E DO “DEMÔNICO”: O
SINCRETISMO COMO AFIRMAÇÃO DA AMBIGUIDADE ÚLTIMA
DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Michel de Certeau
Paul Tillich
61
Nesse segundo capítulo será enfocado o “núcleo” teórico que fundamenta a presente
tese. A proposta consiste em um exercício interpretativo da categoria do sincretismo, a partir
das relações entre experiências culturais e religiosas que, por sua vez, fundamentam o diálogo
entre uma “antropologia da cultura e da linguagem religiosa” em Michel de Certeau e a
Teologia da Cultura em Paul Tillich. Essa discussão servirá de base hermenêutica para a
interpretação, no próximo capítulo, da experiência religiosa dos indígenas Guarani e Kaiowá
em torno do projeto da “Igreja Indígena Presbiteriana”, vivida no cenário das múltiplas
fronteiras religiosas (notadamente cristãs) na Terra Indígena do município de Dourados, no
específico estudo de caso proposto. O diálogo anunciado com o pensamento de Michel de
Certeau e Paul Tillich é realizado, a partir de agora, para fundamentar a hipótese/tese central
do trabalho: compreender o sincretismo religioso enquanto expressão “demônica” da cultura,
ou seja, o sincretismo radicaliza a ambigüidade das percepções e interpretações do sagrado e
da experiência religiosa, dentro de espaços culturais “inventados”, de sentido último da
existência, ao evocar tanto um potencial “destrutivo” quanto “criativo” dessas mesmas
expressões culturais. Essa dialética é que caracteriza, justamente, a experiência da
“demonicidade” no sentido tillichiano, ou seja, o sincretismo mantém uma permanente busca
de sentido (sem nunca deixá-lo totalmente transparente sob as condições da existência),
mesmo em meio a uma irrenunciável e sempre presente ambiguidade, em se tratando de
experiência religiosa. Assim, o conceito de demônico, em Tillich, tem uma conotação
profundamente religiosa. O cientista da religião Eduardo Rodrigues da Cruz, por exemplo, ao
enfatizar a centralidade da noção de “ambigüidade” no pensamento de Tillich afirma,
justamente, que o demônico é o correlato dessa ambigüidade em termos de experiência
religiosa65.
65
CRUZ, E. R. A Dupla Face, p. 134.
62
último capítulo, grupos indígenas Guarani e Kaiowá) operam em seu cotidiano66. E porquê
isso? Porque, justamente, essas “invenções cotidianas” (não seria demais dizer “as condições
sob a existência”, em terminologia tillichiana) é que se tornam a mediação para a vivência
demônica do religioso, o que significa, consequentemente, uma outra maneira de nomear esta
mesma cultura, conforme as contribuições de Michel de Certeau. Por mais que toda vivência
religiosa seja uma tentativa de encontrar múltiplos sentidos para a existência e, assim, ela é
“última” (na perspectiva tillichiana,) não é possível, por hipótese a ser discutida neste
capítulo, que ela não seja vivida em e a partir de “lugares culturais cirscunscritos”. No sentido
certeauniano esses “lugares são um conjunto de determinações que fixam seus limites”,
determinações muitas vezes não próprias daqueles que vivenciam esses lugares (sendo até
mesmo impostas), muito embora os atores sociais religiosos obtém “[...] benefício das
condições impostas para inventar sua própria liberdade, criar para si um espaço de
movimentação” (GIARD, 1995, p. 7)67. Surge, assim, a relação entre táticas e estratégias que
são construtos sociais e teóricos que implicam em relações de poder. As estratégias estariam
mais para os lugares circunscritos por muitas discursividades, enquanto as táticas acionam as
“escapadelas” dessas estratégias, mesmo que essas táticas corram o risco de fundar novas
estratégias, remetendo a uma ambigüidade irrenunciável.
Com isso, este segundo capítulo pretende apresentar, em sua parte final, o neologismo
“diacretismo” para enfatizar a radicalidade da ambigüidade da experiência religiosa e das
múltiplas fronteiras culturais proposta pelo sincretismo. Todavia, antes de introduzir o
“neologismo” supracitado, é importante apresentar o percurso metodológico deste capítulo da
tese. A partir dessa introdução geral, o capítulo conjuga-se basicamente em três seções: a
primeira, procura analisar o aporte da hermenêutica da cultura em Michel de Certeau. Desde
uma breve apresentação de sua trajetória biográfica e intelectual, passando pela compreensão
de “cultura”, “linguagem religiosa” e, também, pela própria interpretação da teologia, uma
vez que esses temas fundamentam a apresentação analítica dos conceitos já anunciados de
66
Nesse caso, enquanto conceito que representa significações, o demônico apresenta uma força metafórica
considerável. “Metáfora” aqui no sentido que Ricoeur empresta ao termo, ou seja, enquanto estrutura do
discurso a metáfora só faz sentido a partir de um processo de interpretação. Só assim ela pode “dizer algo novo
acerca da realidade”. A metáfora é a estrutura da linguagem, do dizer, por excelência, que reinventa as
relações de sentido. Assim, ela mantém-se “viva”, muito embora a expressão de um sentido já decrete,
paradoxalmente, a “morte” da metáfora, exigindo novas interpretações. Cf. RICOEUR, P. Teoria da
Interpretação, p. 62; 64.
67
Luce Giard, uma das principais intérpretes do pensamento de Michel de Certeau, sempre reforça que
interessava ao intelectual francês “[...] uma liberdade inventiva, produtora de mil pequenas astúcias”, na vida
dos seres humanos “ordinários e comuns”. Veja em GIARD, L. La búsqueda de Dios. In: CERTEAU, M. de.
La debilidad de creer, p. 14.
63
“táticas” e “estratégias” que fazem com que o cotidiano seja inventado pelos sujeitos sociais.
São justamente esses conceitos que ajudam a repensar a categoria de sincretismo, pois
aproxima essa categoria da maneira como os seres humanos concretamente operam seus
símbolos de fé nas situações do cotidiano. Essas perspectivas abrem um espaço promissor
para a interpretação dos vários “percursos de mediação” que os indígenas e as indígenas, por
exemplo, inventam em suas (des)apropriações cristãs na terra indígena de Dourados.
somente descritivo, mas produtor de sentidos para o “outro” ou os “outros” que são o próprio
sentido a serem rearranjados nas configurações sincréticas? Eis as questões.
Michel de Certeau e Paul Tillich, pelo menos nas investigações que essa tese teve
acesso, não trouxeram para seus interesses teóricos, sejam antropológicos, filosóficos e
teológicos, discussões específicas em torno da categoria do sincretismo religioso, nem mesmo
como mera forma adjetivada para qualificar os encontros e “misturas” culturais e religiosas.
Muito embora Certeau celebrasse bastante a mélange (“mistura”) cultural brasileira, por
exemplo. Já Tillich, ao contrário de Certeau, não dedicou análises em sua teologia da cultura
para interpretar, por exemplo, expressões simbólicas de fé do incondicionado nas inter-
relações culturais dos povos ameríndios com as missões civilizadoras cristãs. Ainda que a
história das religiões, para além do Cristianismo, estivesse presente no pensamento de Tillich
desde muitos anos, mas que se tornou particularmente avivada nos últimos anos de sua vida e
produção intelectual68. Testemunha disso foi a organização e participação de Tillich no
Seminário sobre “História das Religiões e Teologia Sistemática”, já com setenta e oito anos
de idade (em 1964), juntamente com o fenomenólogo e historiador das religiões, o romeno
Mircea Eliade, na Universidade de Chicago, nos EUA. Como o próprio Eliade afirmava,
interessava à sensibilidade tillichiana a expressão teológica dos significados religiosos
(incondicionais) e humanos em expressões culturais, não somente judaicas e cristãs, mas em
experiências religiosas não cristãs também, como os diálogos que Tillich empreendeu com o
Budismo em suas viagens ao Japão69. Michel de Certeau, por ouro lado, aproximou-se um
pouco mais do tema da relação entre a dominação, muitas vezes imposta pelas missões cristãs,
aos povos ameríndios dos continentes americanos. Em sua obra “Heterologias: discurso sobre
o Outro” ele dedica um capítulo para analisar, justamente, os espaços e lugares criativos a
partir de onde os indígenas inventavam suas relações táticas que “driblavam” as ações
estratégicas dos grupos europeus colonizadores. O fato de afirmar que não há nesses autores a
presença explítica dos temas e conceitos trabalhados nessa tese, no caso o sincretismo e
correlatos, não significa, de form alguma, uma objeção de saída aos mesmos. Pelo contrário:
significa a possibilidade do exercício interpretativo dos espaços e inquietações abertas por
esses pensadores em contribuição para o crescimento da pesquisa, até mesmo em relação a
temas que nunca foram tocados diretamente por eles (sincretismo e povos indígenas no
Brasil). Nesse sentido, Michel de Certeau e Paul Tillich não pensaram somente na “fronteira”
68
Não somente como “fonte” para o seu pensamento teológico sistemático, mas como fonte e horizonte
hermenêutico de toda a sua teologia da cultura. Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, p. 54-5.
69
Cf. ELIADE, M. Paul Tillich y la historia de las religiones, p. 10. Introdução a texto de Paul Tillich
intitulado “El Futuro de las Religiones”.
65
mas, metaforicamente falando, eles mesmos convertem-se “nas fronteiras” em que é possível
colocar-se para o exercício hermenêutico que será realizado nas próximas páginas.
O texto não agradou muito aos avaliadores (dentre os quais encontrava-se o teólogo francês
Claude Geffré), possivelmente por seu forte acento em uma epistemologia das ciências da
religião como crítica à teologia e à própria experiência cristã. Essa crítica se pergunta pela
própria condição de possibilidade da fé cristã na atualidade (pelo menos a realidade européia
dos anos sessenta do século passado). Isso fica claro na fala do próprio Certeau no início do
texto citado anteriormente (“A ruptura instauradora...”): “As convicções se relaxam, perdem
seu contorno [...] Ao Cristianismo se lhe assinala um lugar nessa população de “valores”
metamorfoseados [...] Antes inclusive de esclarecer a que crítica está submetida a religião [...]
há que descobrir em uma mutação social o que torna possível ditas análises [...]”70.
Essas múltiplas fronteiras, como lugar de mediação para a reflexão, vão acentuar-se na
biografia certeauniana quando, nos anos 60 e 70 ele empreende, por questões profissionais,
viagens a vários países, principalmente aos dos continentes americanos, dentre os quais o
Brasil “[...] das mil mestiçagens” (GIARD, 2006, p. 11), a qual nutria um profundo apreço.
70
Cf. CERTEAU, M. de. La ruptura instauradora. In: CERTEAU, M. de. La debilidad de creer, p. 191. Para
um breve itinerário da biografia de Michel de Certeau veja-se o já citado texto de Luce Giard como prefácio ao
texto “La debilidad de creer”, intitulado “La búsqueda de Dios”, p. 7-25, além do texto de Fabio Josgrilberg
intitulado “Caminhos e pensamento”, primeiro capítulo da obra “Cotidiano e invenção: Os espaços de Michel
de Certeau”, p. 17-23. Em 1960, Michel de Certeau edita e publica o texto “Correspondência de Surin” e
consolida, assim, seus estudos sobre o pensamento místico.
67
Vale destacar, por exemplo, que em sua obra clássica “A Invenção do Cotidiano” (L`invention
du quotidien) , em seu primeiro volume intitulado “Artes de fazer” (Arts de faire), Certeau
reflete as “astúcias cotidianas” que fazem da chamada “cultura popular” não “apodrecer” na
sepultura folclorizante dos discursos de uma elite dominadora. Neste texto Certeau evoca seu
estudo interdisciplinar, fruto de um Seminário de Pesquisa realizado em Recife sobre a
linguagem ordinária de trabalhadores rurais, em torno da figura emblemática e carismática
(porque não mística?) de Frei Damião71. Fabio Josgrilberg lembra que Certeau foi um dos
primeiros intelectuais a levar para a França, em 1966, documentos comprobatórios dos atos de
torturas praticadas na ditadura brasileira, fato que acarretou dificuldades posteriores da
entrada de Certeau em terras brasileiras (JOSGRILBERG, 2005, p. 19). A partir dos fatos
marcantes de maio de 1968 na França, Michel de Certeau começa a articular com mais
profundidade os lugares de mediação por excelência de sua trajetória existencial e intelectual:
a mística, a cultura e o político. Primeiro, falemos da mística.
71
Cf. CERTEAU, M. de A Invenção do Cotidiano. 1. Artes de fazer, p. 76-9. Sobre a crítica à chamada
“Cultura Popular”, enquanto invenção de uma elite acadêmica “letrada” que não leva em conta os muitos jogos
de táticas e estratégias ordinárias nessas “falas populares”, ver o clássico texto “A Beleza do Morto”, escrito
por Certeau em parceira com Dominique Julia e Jacques Revel, em 1970. Esse texto pode ser encontrado em
CERTEAU, M. de. A Cultura no Plural, p. 55-85.
68
nossas convicções, daí a necessidade de novas partidas a partir dos equilíbrios [instáveis]
adquiridos. Essa é a dinâmica espiritual, essa é a dinâmica do conhecimento”
(JOSGRILBERG, 2005, p. 47). É a caminhada mística. É possível pensar que Paul Tillich não
discordaria dessa perspectiva e que é plausível anunciar uma teoria do sincretismo e do
diacretismo religioso como a expressão radicalmente hermenêutica de pensar o “outro”,
sempre em termos dos “encontros e desencontros” dos símbolos de fé quando esse “outro”
exprime, parcialmente/fragmentariamente, o “eu mesmo” (fronteiras identitárias). Se há
sempre aspectos da realidade que escapam àquilo que Certeau chamou de “sintaxes
prescritas”, sempre preocupou a Certeau uma profunda reflexão sobre as dinâmicas culturais,
dinâmicas essas que sempre estiveram presentes em sua leitura historiográfica. Falemos agora
da inserção cultural.
[...] a cultura oscila mais essencialmente entre duas formas, das quais uma
sempre faz com que se esqueça da outra. De um lado, ela é aquilo que
“permanece”; do outro, aquilo que se inventa. [...] A cultura é uma noite
escura em que dormem as revoluções de há pouco, invisíveis, encerradas nas
práticas _, mas pirilampos, e por vezes grandes pássaros noturnos,
atravessam-na; aparecimentos e criações que delineiam a chance de um
outro dia (CERTEAU, 2005, p. 239)
que subvertem com certa “luminosidade” inventiva os espaços consolidados que, no final das
contas, correm o risco da imobilidade que não deixa enxergar novas possibilidades. Vai ser
justamente as práticas culturais cotidianas do “ser humano ordinário” os “vaga-lumes” que
irão iluminar e por em movimento essas imobilidades. Essa perspectiva vai dar o tom da obra
certeauniana. A metáfora do “outro dia”, na citação longa anterior, retoma a perspectiva da
alteridade afirmada na herança do pensamento místico. As práticas culturais em Certeau,
profundamente simbólicas, exigem isso: são práticas sempre do outro, do “outro” cotidiano
muitas vezes invisibilizado pelos discursos formais que monopolizam e encerram as
diferenças culturais em um reducionismo homogenizador. Do outro que é o “Herói comum.
Personagem disseminada. Caminhante inumerável” (CERTEAU, 2003, p. 57). Agora, o
político.
72
Essa perspectiva faz lembrar novamente a Paul Tillich que, próximo do socialismo do Partido Social
Democrata Alemão, após a Primeira Guerra Mundial, fez da reflexão política um aspecto decisivo em sua
filosofia da religião e teologia da cultura. A possibilidade de um “socialismo religioso” em Tillich evoca,
dentre outros aspectos, uma crítica às decisões políticas como formulações de poder, pois implica que a
política, enquanto uma das formas culturais pode ser “veículo” que expressa preocupações incondicionais
(religiosas) ou pode absolutizar-se destrutivamente (como aconteceu, por exemplo, com o Nacional Socialismo
de Hitler) como portadora única do incondicionado. Em Tillich a experiência política/cultural simboliza a
experiência com o sagrado, mas nunca se apossa totalmente desse grande “outro”, lembrando traços da
experiência mística e da alteridade. Para maiores matizações sobre o pensamento político e religioso em
Tillich, veja-se o texto de Jorge Pinheiro intitulado “Teologia e Política. Paul Tillich, Enrique Dussel e a
experiência brasileira”, fruto de sua tese de doutorado.
70
política, Certeau capta-as muito bem a partir de suas análises contextuais das políticas
culturais na Europa (e na França, em particular).
Fruto dessas análises é o relatório que Certeau produz sobre o Colóquio Internacional
de Arc-et-Senans preparatório para o encontro em Helsinque, de ministros da cultura, para
definir uma espécie de “política européia da cultura”, em 1972. Esse relatório vai ser um dos
textos base da já citada obra “A Cultura no Plural”, título este que já anuncia a posição de
Certeau em recusar a “[...] uniformidade que um poder administrativo gostaria de impor em
nome de um saber superior e do interesse comum” (GIARD, 2003, p. 13). Além disso,
Certeau participa de um projeto patrocinado pela Délégation Générale à la Recherche
Scientifique et Technique, órgão diretamente ligado ao ministério da cultura francês, com o
objetivo de mapear e analisar casos concretos das múltiplas faces culturais na França, a fim de
desenvolver políticas mais especificas e legítimas para esse país. A pesquisa tem o seu
relatório final em 1979 (começou em 74). Michel de Certeau deixa claro nessa pesquisa que
as políticas culturais devem centrar-se em modelos de análise que privilegiem a “multidão
anônima”. Essa “multidão” deixa de ser consumidora passiva dos bens culturais para tornar-se
“consumidora inventiva”, atores sociais ativos nas relações dinâmicas de múltiplas
experiências cotidianas que perfazem as “Artes do Fazer” (por exemplo, caminhar pelas ruas,
cozinhar, ler, assistir televisão, praticar esportes e outras “artes”). Fica claro que é encontra-se
nesse trabalho a base substancial de sua já citada clássica obra, “A Invenção do Cotidiano”.
Por fim, Luce Giard afirma que o “político” em Michel de Certeau sempre vai evocar
também uma “presença ausente” (massificação das experiências culturais) e uma “ausência
presente” (o inominável cotidiano) do outro, ou seja, as reflexões políticas de Certeau, ao
repensar os projetos de poder culturais, fazem sempre isso: uma reflexão sobre a alteridade
mesma, uma reflexão de volta ao “místico”, ou seja, uma presença que sempre escapa,
presença fugidia: “[...] por um lado, a relação com os outros, onde reconhece „o político‟. Por
outro, a relação com aquele que, por mais diferente que seja, permanece fora do alcance do
desejo, onde vem o „místico‟” (GIARD, 2006, p. 18). Essa articulação entre o místico e o
político funda a paixão irrenunciável pela alteridade em Certeau. Assim, fica mais fácil
compreender que não é exagero a afirmação feita, no capítulo anterior, de que todo o percurso
traçado pelas ciências sociais e a teologia, no que diz respeito à interpretação do sincretismo,
situou essa interpretação no campo das relações culturais enquanto das relações de poder (a
dimensão política). Situou, também, no campo de certa “mística” enquanto linguagem
71
Não é objetivo dessa tese apresentar um estudo exaustivo sobre Michel de Certeau
acerca de suas análises culturais e da experiência religiosa, mesmo porque esse autor
construiu seu itinerário na fronteira dialógica com vários marcos teóricos: da psicanálise, a
interface com Sigmund Freud e Jacques Lacan; da filosofia, a interface com Friedrich
Nietzsche, Martin Heidegger, Ludwig Wittgenstein, Georges Bataille, Maurice Blanchot,
Jacques Derrida e Emmanuel Lévinas; das ciências sociais, a interface com Michel Foucault,
Pierre Bourdieu, Clifford Geertz e Edward Said; da lingüística e semiótica, a interface com
Algirdas Greimas e Émile Benveniste; da teologia, a interface com a já citada mística de
Pierre Favre e Jean-Joseph Surin, além da influência mais contemporânea de Henri de Lubac,
só para ficar nesses exemplos por si só grandiosos. Tamanho entrecruzamento de métodos e
tendências não poupou a Certeau de críticas situadas no plano epistemológico de um certo
risco da perda da especificidade de seu próprio método e trabalho: nas obras do jesuíta francês
apareceria menos dele e mais dos outros (AHEARNE, 1995, p. 3). Todavia percebe-se, desde
já, que Certeau assumia não somente a “heterologia” como categoria analítica para suas
formulações teóricas, mas a “heterologia” era um empreendimento de vida, uma postura
interpretativa existencial sobre a realidade, uma “reflexão com e sobre o outro, o diferente”
(héteros). Testemunho disso é a afirmação de Fábio Josgrilberg: “Talvez seja uma das
características mais marcantes de Certeau essa disponibilidade para ouvir o outro, estar aberto
72
à surpresa de uma presença que manifesta [...]” (JOSGRILBERG, 2005, p. 22). De acordo
com Eduardo Gusmão de Quadros, Certeau sempre se esforçou por manter as tensões entre os
diversos regimes de conhecimento, caso contrário o diálogo não seria possível e o pensamento
tornaria-se refém de meros “empréstimos conceituais”. Ao transitar em diversos horizontes
teóricos, buscando manter certa independência entre os mesmos, Certeau viveu suas
ambigüidades: garantia o necessário espaço de autonomia para as críticas, mas angariava para
suas ideias certa desvalorização por parte dos espaços e consensos acadêmicos formais em
cada campo do saber73. Com a crise da legitimidade de grandes paradigmas teóricos e, após
sua morte, o interesse sobre os trabalhos de Michel de Certeau foram retomados nos anos 90
do século passado.
Luce Giard, por sua vez, ao enfocar esse “entrecruzamento de métodos” na formulação
de uma história cultural em Certeau, afirma que ele não o fazia por um “[...] ecletismo
cômodo ou [...] um sincretismo conciliador, mas porque desejava captar novamente cada
momento histórico na multiplicidade de seus componentes e a contradição de seus conflitos”
(GIARD, 2005, p. 8). Chama a atenção o uso do termo “sincretismo” nessa citação, onde há
uma típica tendência de “pacificar” o conceito como uma “união estável” de ideias e métodos,
algo que essa tese não concorda. Na realidade, é justamente a ênfase na “multiplicidade”, nas
“contradições e conflitos” da citação anterior, desde que não marcadas excessivamente pela
negatividade, é que se pode qualificar o sincretismo como construto das fronteiras dos
saberes. Nesse sentido, ao contrário do que afirma Giard, Certeau funda um pensamento
“sincrético”, justamente por ser heterológico.
73
QUADROS, E. G. de. O triunfo da diferença: Michel de Certeau e a história do religioso. Estudos de
Religião, São Bernardo do Campo, ano XX, n. 3, p. 75; 77, dez. 2006.
73
sendo “[...] o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez
mais comuns num mundo globalizado”. Mas há também as traduções, ou seja, as formações
identitárias “[...] atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que
foram dispersadas para sempre de sua terra natal. [...] elas são obrigadas a negociar com as
novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas [...] e sem perder
completamente suas identidades”74. Essas pessoas e grupos são irremediavelmente traduzidas
(“transferidas”, “transportadas entre fronteiras”, conforme a etimologia do termo),
despedindo-se do sonho ou ilusão de uma identidade perdida ou de uma unificação em torno
de uma nova identidade a ser alcançada. São as “identidades diaspóricas”, outra metáfora
usada por Hall para qualificar esses processos.
Mas o fato é que esses estudos culturais pontuam o seguinte: para que se dê conta de
um “objeto” tão fluido como as “culturas híbridas ou sincréticas” é precisar equacionar um
método plural que sobreviva “na fronteira”, com todos os riscos envolvidos. Assim, esses
estudos, ainda que não o nomeiem explicitamente, “fundam” culturas heterólogas e fazem da
heterologia o espaço de reflexão analítica e interpretativa. É sempre o “outro”, o “diferente”,
invizibilizado, ausente e errante que está na pauta das preocupações. Nesse sentido, Michel de
Certeau antecipa questões que se tornaram centrais nas preocupações dos estudos culturais da
atualidade.
74
HALL, S. A identidade cultural na Pós-Modernidade, p. 88.
74
de determinações que fixam os limites que circunscreve quem e como é possível falar da
cultura. Todo poder inventivo de viver e produzir dinâmicas culturais o é a partir desses
lugares circunscritos: uma dialética entre o rígido e o flexível, outra maneira de definir a
“cultura no plural”, tal como é possível perceber na afirmação: “Ora, as ações culturais
constituem movimentos. Elas inserem criações nas coerências legais e contratuais. Inscrevem
trajetórias, não indeterminadas, mas inesperadas, que alteram, corroem e mudam pouco a
pouco os equilíbrios das constelações sociais” (CERTEAU, 2005, p. 250). A questão é: quem
determina as permanências e inventividades, o rígido e o flexível? Depende do lugar
hermenêutico assumido para lançar o olhar. No caso de Certeau, o olhar deve ser feito a partir
de múltiplas mediações se a análise deve privilegiar as práticas anônimas dos sujeitos e atores
sociais cotidianos, caso contrário insistir-se-á em uma cultura no singular (ou “homológica”),
uma vez que fundada em “um singular do meio/mediação” (CERTEAU, 2005, p. 227).
Necessário é uma análise cultural “heterológica” fundada, por sua vez, em uma diferenciação
de mediações hermenêuticas ao procurar entender como os inventores e inventoras do
cotidiano fundam, eles e elas mesmas essas mediações, esses discursos ordinários sobre o
outro, o diferente.
erudição75. Assim, para as ciências humanas que se ocupam do “objeto” religioso e forma o
leque das “ciências da religião”, a experiência religiosa é até importante e central nas
“sociedades tradicionais” que, por sua vez, tinham a religião como estruturadora de sentido e
algo “dado/explicado” por essas mesmas sociedades. Agora não: o “explicado”, nas
sociedades secularizantes, torna-se aquilo que se deve “explicar” por mediação dessas
ciências.
Para Michel de Certeau, no auge de seus escritos sobre cultura no fim dos anos 60 e
toda a década de 70 do século passado, a experiência religiosa e cristã, em particular, era lida
como uma profunda crise de sentido. Por “sentido”, Certeau deixa claro que se trata das
significações globais que os seres humanos (enquanto sujeitos e atores sociais) dão à sua
práxis, seu discurso ou situação (CERTEAU, 2006, p. 191). Nesse aspecto, marcado pela sua
perspectiva heterológica, não há mais referências seguras e privilegiadas. As afirmações de
sentido são um “resto”: o “resto” que constitui-se nos “outros”, em “[...] uma população de
„valores‟ metamorfoseados em legendas por nossas sociedades do espetáculo” (CERTEAU,
2006, p. 191). Esse “resto” torna-se o lugar possível para o próprio cristianismo e a teologia,
em particular, já que esse mesmo cristianismo, ao se perder enquanto referência privilegiada e
hegemônica acaba se reinventando na multidão dos “outros” possíveis. Essa situação e
espírito de época “metamorfoseante” faz com que as ciências da religião, na leitura
certeauniana, passem por profundas mudanças ao postular, a essas mesmas ciências, um
desafio: ou elas convertem-se nas ciências humanas que tem por objeto a “religião”
(sociologia, antropologia, psicologia, dentre outras) ou convertem-se na “[...] expressão
75
“A uma racionalização do saber parece corresponder uma folclorização das verdades de ontem”. Cf.
CERTEAU, M. de. La ruptura instauradora. In: CERTEAU, M. de. La debilidad de creer, p. 191.
76
Esses e outros conceitos tillichianos serão discutidos mais à frente, nesse mesmo capítulo, a partir da “seção
2.2”.
77
por Certeau. É justamente nas relações entre os conceitos de táticas e estratégias que é
encontrada uma, dentre outras possibilidades, de compreensão das ambigüidades culturais que
marcam os processos inventivos qualificadores das experiências religiosas, portanto,
heretológicas. Mas antes da análise da díade “estratégias-táticas”, serão apontados alguns
fragmentos da própria compreensão heterológica da teologia em Certeau, a fim de reforçar e
ampliar os argumentos aqui expostos. No momento, encerra-se essa subseção com a
afirmação do historiador Eduardo Quadros, referente ao pensamento heterológico de Certeau:
“[...] A abordagem epistêmica de Michel de Certeau fornece uma navalha afiada para o corte
das presunções simplificadoras e autoritárias; permite que se rompa com as suturas que
denegam a diferença. Sem ela, o Outro sequer será desejado” (QUADROS, 2006, p. 86)
77
Certeau amplia a questão: como não mais garante em seu interior o espaço social e cultural onde habita a
verdade, “[...] o corpo cristão já não tem identidade; fragmentado, disseminado, perdeu sua segurança e seu
poder de engendrar militâncias, tão somente em seu nome”. Cf. CERTEAU, M. de. La debilidad de creer. In:
CERTEAU, M. de. La debilidad de creer, p. 306.
78
A obra de Dosse que serve de base aqui é a tradução espanhola do texto Le marcheur Blessé, intitulada El
caminante Herido (“o caminhante ferido”).
79
justamente em Lyon que Certeau terá a sua formação teológica marcada por vários
professores jesuítas do Seminário de Fourvière, considerado um centro de renovação da
teologia católica na época, em um momento difícil do pós-guerra. Teólogos como Jean
Daniélou, Henri de Lubac e Hans Urs Von Balthasar marcaram essa instituição e época. Foi o
“segundo” período (de 1946-50), conforme afirma Rosino Gibellini, da chamada “nouvelle
théologie” (“nova teologia”), expressão utilizada para caracterizar a dita renovação teológica
do período, muito embora houvesse resistência dos teólogos de Lyon-Fourvière em aplicar a
si mesmos essa expressão. Talvez isso seja em parte explicável porque a expressão foi
utilizada pelo então comentador oficial dos atos do Vaticano, o teólogo Pietro Parente, para
qualificar, depreciativamente, essas “novas tendências” no cenário teológico católico como
tendências obscuras, que levavam a Igreja a flertar perigosamente com um pretenso
“relativismo modernista”79.
Vai ser justamente no teólogo Henri de Lubac (1896-1991) que Certeau encontrará
referências teológicas e existenciais que vão marcar profundamente sua vida. Certeau,
inclusive, vai nutrir profunda admiração e respeito por seu mestre até o fim de sua vida. Em
1949 Certeau ingressa formalmente na Companhia de Jesus após encerrar seus estudos
universitários em Lyon, em 1950, com o grau de licenciado em Teologia. De acordo com
Dosse, Michel de Certeau, assim como Henri de Lubac “[...] compartilham uma escrupulosa
preocupação pela história, assim como uma atenção particular às diversas reutilizações da
tradição no seio da modernidade” (DOSSE, 2003, p. 57). Além disso, Dosse afirma que muito
da compreensão em Michel de Certeau de uma linguagem da equivocidade, pluralista,
necessária para que a teologia cristã pudesse dialogar mais apropriadamente com o mundo
moderno (para outros saberes já se tratava da crise da modernidade), denota a influência de
Lubac (DOSSE, 2003, p. 58-9). Portanto, ressignificar o fazer teológico ao levar em conta as
categorias da historicidade e subjetividade, recuperando a dimensão social da Igreja, eram
desafios prementes para a época de formação teológica de Certeau. Henri de Lubac, nos anos
50, teve alguns de seus escritos condenados pelo Vaticano (por exemplo, o texto
“Sobrenatural”, de 1946) por, na leitura da Santa Sé, contribuir para que a substância católica
79
Cf. GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p. 168-9. A título informativo, o primeiro período da nouvelle
théologie estabeleceu-se em torno da escola de teologia em Le Saulchoir (inicialmente localizada na cidade
belga de Tournai), principalmente a partir de 1938 até 1945, deflagrada pelo texto do teólogo dominicano
Marie-Dominique Chenu intitulado “Le Saulchoir: uma escola de teologia” (1937). O texto, um pequeno
opúsculo, foi parar no Index Librorum Prohibitorum do Vaticano. Chenu perdeu sua direção e cátedra na
referida escola de teologia. Todavia, anos depois, foi reconduzido à comunhão plena da Igreja e tornou-se,
inclusive, um dos peritos do Concílio Vaticano II nos anos sessenta do século passado. Cf. Idem, ibidem, p.
165; 168.
80
É importante também frisar que o pensamento místico chega a Certeau por influência
de Henry de Lubac, principalmente através das obras deste intituladas Corpus Mysticum (de
1944), onde articula a relação entre Igreja e Eucaristia na Idade Média ao estabelecer uma
relação dialética entre a teologia simbólica patrística e o forte tomismo da escolástica clássica
e a obra, em quatro tomos, intitulada Exegese Medieval (os dois primeiros tomos de 1950, o
terceiro de 1960 e o último de 1964). Nesta última obra de Lubac põe em revisão a noção de
“Mistério” no exercício da interpretação das Escrituras Sagradas ao interpretar esse “mistério”
como paradoxo e incessante busca: busca pela expressão simbólica da palavra, sem nunca
alcançar e traduzir totalmente a plenitude do divino. Ecos dessa leitura vão marcar
profundamente os textos clássicos de Certeau sobre a Mística, tanto sua obra acerca de Pierre
Favre e sobre Jean-Joseph Surin, bem como o texto “A Fábula Mística” (La fable Mystique,
vol. 1: XVIe-XVIIe siècle), cujo segundo volume ficou incompleto por conta de seu
falecimento. Esses “ecos” podem ser percebidos, mais uma vez, na afirmação de Dosse: “Este
modo de ser místico é, segundo Certeau, sobretudo um modo de dizer, um estilo caracterizado
pela figura do paradoxo, a constatação de uma tensão que não se pode superar expressada
mediante oxímoros como: „noite luminosa‟, „noção confusa‟, „ferida feliz‟ para dizer o
indizível” (DOSSE, 2003, p. 60-1).
80
Cf. GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p. 182-3, citando o testemunho do teólogo Hans Urs von
Balthasar em sua obra “Ao padre Henri de Lubac”, de 1976, em homenagem a seus oitenta anos.
81
interesses mais prementes da Igreja e da Teologia. Em 1971, em sua obra “As igrejas
particulares na Igreja Universal”, de Lubac deixa muito claro suas discordâncias em relação
a Certeau. Henri de Lubac, no dizer de Dosse
81
Referente ao místico cristão Joaquim de Fiore, italiano que viveu na Calábria, nascido em 1132 e falecido em
1202. Foi abade cisterciense.
82
Pode parecer algo relativamente comum hoje em dia mas, em 1973, em texto
intitulado “A Miséria da Teologia”, Certeau deixava bem claro que o fazer teológico é sempre
situado histórica e culturalmente. A Teologia precisa saber articular o que ele chama de opção
singular (no caso, a fé cristã) sobre questões gerais (sociais, econômicas, políticas e
culturais). Ser singular não significa, necessariamente, ser válida universalmente para todos e
as questões gerais, por sua vez, não podem converter-se na ideologia de um grupo particular,
uma vez que esses mesmos grupos não podem falar sobre o absoluto, o último, assumindo-se
como absolutos: “Esses discursos são múltiplos, e não redutíveis a um somente; construídos, e
não recebidos ou fixados por uma ortodoxia; [...] Nenhuma instituição particular se encontra
na situação “sacerdotal” de dizer a todos uma verdade de todos” (CERTEAU, 2006, p. 259).
A Teologia “diz”: é linguagem. Mas, por ser discurso sobre o outro e a partir do outro, o seu
83
trabalho tenderá a uma imagem sempre fragmentária. É sempre o risco de se pensar a teologia
a partir dos lugares sociais e culturais específicos. Assim foi com os diversos exemplos
citados por Certeau: a “Teologia da Cultura” nos EUA (referência a Tillich? A Niebuhr?
Talvez); a “Teologia Política” na Alemanha e a “Teologia da Libertação” no Peru e no Brasil
(CERTEAU, 2006, p. 260). Contudo, quando se pensa nas situações de onde se articula o
discurso teológico não se pode esquecer que a teologia, mesmo que orientada pela
compreensão do sentido da fé (ou das interrogações da existência cotidiana, no vocabulário
certeauniano), é elaborada a partir das relações táticas e estratégicas que serão apresentadas na
próxima subseção do capítulo. Ser um discurso heterológico é, antes de qualquer coisa, a
tomada de consciência e o exercício interpretativo sobre as várias situações, os vários lugares
outros diferenciais que delimitam a linguagem teológica.
Com efeito, esta “tradição” revela que há uma relação necessária da opção
cristã com o que ela não é: seu “outro” sempre lhe faltou, e assim é como
confessa simultaneamente sua particularidade e sua fé em Deus.
Reconhecer-se como particular é reconhecer a existência do outro, sinal do
Deus “maior”. Assim, essa tradição representa uma tensão perpétua entre os
lugares particulares de onde fala e a história global, insuperável, nunca
terminada, que lhe significa o Deus do qual fala. Sem esta confrontação com
aquilo que nos chega da história cristã, e sem uma reinterpretação inventiva
porém rigorosa, uma linguagem de cristãos não seria cristã (CERTEAU,
2006, p. 262)
particularidade, mas tende a uma maior universalização, não porque válida ad aeternum,
perenemente, mas porque, ao “escapar”, abre espaço para a continuidade da caminhada, nunca
acabada. Terceiro, é inventiva: a teologia, do ponto de vista da linguagem, é metafórica,
figura de linguagem por excelência, em Certeau, para inventar e significar a realidade. Do
ponto de vista social e cotidiano, implica em interpretar como a vida de fé e as experiências
religiosas são criativamente vivenciadas, mesmo marcadas por circunscrições que podem,
inclusive, levar a experiências negativas e distorcidas. Há aqui algo importante: por ser
inventiva e metafórica a linguagem teológica e a linguagem da fé, vivida comunitariamente,
expressam-se através de percursos simbólicos. Conforme o próprio Certeau afirma em seu
polêmico texto “A ruptura instauradora”: “As linguagens da fé são simbólicas [...] Isto ocorre
com as funções que organizam o cristianismo. Nenhuma delas diz ou circunscreve a verdade,
senão que remetem umas às outras de uma maneira que nunca encerra o sentido [...] e não
enclausura um lugar senão no ato de permitir outro” (CERTEAU, 2006, p. 229)82.
82
O que se aproxima, mais uma vez, de elaborações tillichianas anteriores ao próprio pensamento de Certeau, tal
como o texto de Tillich intitulado “Natureza da linguagem religiosa”, publicado em 1955 e, posteriormente,
aparecendo em seu clássico texto “Teologia da Cultura”, em 1959. Portanto, pelo menos, dezesseis anos antes
da “Ruptura Instauradora” de Certeau. Para Tillich, a linguagem religiosa só pode ser expressa por meio de
símbolos. No caso da teologia, a mesma não tem o poder para confiormar ou negar símbolos religiosos, mas
exercer uma hermenêutica sobre os símbolos de acordo com princípios e métodos próprios. Cf. TILLICH, P.
Teologia Sistemática, p. 246.
83
Aqui Josgrilberg segue Michel de Certeau em sua obra L‟étranger ou l‟union dans la Différence (“O
Estrangeiro ou a união na Diferença”), texto de 1969. Josgrilberg arremata, consolidando os argumentos
expostos nesse ponto na tese: “[...] o Outro, o qual está ausente, funda o discurso, mas este lhe escapa quando
se tenta articulá-lo narrativamente. O outro nunca é controlado, sempre se desvia, minando nossas convicções,
85
2.1.3 Na fronteira das “Táticas” e “Estratégias” como configuradoras das relações culturais
Tanto nas análises de François Dosse (2003) quanto de Jeremy Ahearne (1995), a
compreensão das vivências culturais (e da religião também) em Michel de Certeau, sofreu
muitas mudanças a partir da experiência de maio de 1968 com as revoluções estudantis,
sindicais e trabalhistas em Paris, bem como em outras partes do mundo. Testemunha disso é o
texto certeauniano intitulado La Prise de Parole. Pour une nouvelle culture (“A Tomada da
Palavra. Por uma nova cultura”), publicado justamente em 68. Inspirado nos movimentos de
massa das “revoluções” citadas acima, a “nova cultura”, para Certeau, deve ser vista a partir
de uma miríade de “pedaços” (a expressão é de Ahearne) em que se transformou a própria
noção de “cultura”, enquanto grande narrativa construída pelas “economias escriturísticas”
das elites acadêmicas e políticas governamentais. Não só a cultura, mas seu correlato religioso
predominante no ocidente: o cristianismo. Interessa, agora, a Certeau, a “multidão anônima”,
o “ser humano itinerante e indecifrável”: sãos esses que compõem os pedaços que formam as
experiências culturais e religiosas, em particular. Não é uma massa passiva diante da vivência
e usos dos bens de consumo (materiais e, principalmente, simbólicos), postos em circulação
daí a necessidade de novas partidas a partir dos equilíbrios adquiridos. Essa é a dinâmica espiritual, essa é a
dinâmica do conhecimento” (2005, p. 47).
86
pelas instituições que regem essas mesmas lógicas de consumo. Há outras “lógicas” em
vigência, como as “heterológicas” discutidas anteriormente. Na perspectiva de Ahearne,
Certeau tende a conceber esses “outros” praticantes culturais como aquelas pessoas que
promovem viradas, “dribles” nos mecanismos de controle que fundam formas padronizadas
de pensamentos e ações que determinam os termos da existência. Assim, ele organiza suas
análises ao redor de um léxico teorético composto por termos, tais como: giros, desvios,
inversão, conversão, subversão, torção e, para não esquecer, invenção (AHEARNE, 1995, p.
159).
Não é difícil perceber que, seguindo Dosse (2003, p. 48), por mais que Certeau
coloque seu acento nas astúcias, pluralidade e inventividade dos modos de apropriação dos
atores sociais, a herança das críticas da Escola de Frankfurt sobre a “cultura/indústria” de
massa e suas formas de dominação impostas aos consumidores, está presente. De fato, a
ênfase de Certeau não elimina o reconhecimento desses “aparatos disciplinadores”. Porém, a
referência mais próxima sobre o papel e as relações de poder desses mesmos aparatos,
Certeau encontra em seu colega e amigo, o filósofo e cientista social Michel Foucault84. Em
Foucault encontra-se um estudo seminal sobre os processos e relações estratégicas, mas
faltaria uma atenção maior às relações táticas, se for utilizado o vocabulário certeauniano.
Todavia, a compreensão da relação entre estratégias e táticas depende da compreensão de que
a cultura, conforme afirmado, é “[...] o campo de uma luta multiforme entre o rígido e o
flexível” (CERTEAU, 2005, p. 235), é uma conjunção entre “lugares próprios” e “espaços
praticados”. Todos os analistas citados até agora no presente capítulo sobre o pensamento de
Certeau, abordam esses temas demonstrando a centralidade dos mesmos no pensamento do
jesuíta francês (AHEARNE, 1995; JOSGRILBERG, 2005; GIARD, 2003, 2005, 2006;
DOSSE, 2003).
84
A obra de Michel de Certeau intitulada “Uma política da linguagem: a revolução Francesa e o patois” foi
publicada em 1975, ou seja, no mesmo ano em que Michel Foucault publicava “Vigiar e Punir”, obra essa
considerada a mais marcante escrita por Foucault, na compreensão certeauniana. Em “Uma política da
linguagem”, de Certeau analisa como a população francesa reinventava sua linguagem através do patois para
“desviar-se” das operações políticas administrativas da Assembléia Constituinte francesa, em seu projeto
“disciplinador” de criação de uma língua francesa universal, o que implicava em relegar o patois a uma língua
provinciana que remontava a tempos feudais (AHEARNE, 1995, p. 136-7; 143). Sobre a relação acerca do
lugar onde se discute a história e a cultura, comparando o pensamento de Foucault e Michel de Certeau, veja-se
RIBEIRO, Renilson R. Escritas da História Cultural: Michel Foucault e Michel de Certeau. In: Fronteiras,
Dourados, Universidade Federal da Grande Dourados, v. 9, n. 16, jan./jul. 2007.
87
Plural”, além da conclusão dessa coletânea intitulada “Espaços e Práticas”, de 1974, que
anuncia as bases de estudos posteriores que ficariam consagrados em “A Escrita da História”
(1975), “A Invenção do Cotidiano” (1980) e “A Fábula Mística” (1982). Essas bases podem
ser resumidas nas palavras de Giard:
85
Com “ecos” aqui de sua heterologia.
88
próprio”: passa a não ser somente o campo dos especialistas que definem a “cultura” (seus
múltiplos significados), mas os múltiplos espaços que são controlados por um conjunto de
operações estratégicas, estabelecidas sobre um desejo e sobre um conjunto desnivelado de
relações de poder, nas palavras interpretativas de Josgrilberg (2005, p. 23).
86
Nas palavras do próprio Certeau: “Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos
nas relações de coexistência. [...] Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma
indicação de estabilidade. [...] O espaço é um cruzamento de móveis [...] é o efeito produzido pelas operações
que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas
conflituais ou de proximidades contratuais. [...] Diversamente do lugar, não tem portanto nem a univocidade
nem a estabilidade de um „próprio‟”. Cf. CERTEAU, M. de. A Invenção do Cotidiano, p. 201-2.
89
Quando foi pontuada no início dessa subseção a relação entre Foucault e Certeau o que
se afirmou é que, usando essa outra terminologia, em Foucault encontra-se uma densa e rica
análise dos “lugares próprios” mas não dos “espaços praticados”. Na compreensão do próprio
Michel de Certeau em sua análise de “Vigiar e Punir”, ainda que Foucault analise os
“aparatos silenciosos” que, nos bastidores do poder provocam um curto-circuito nas
“encenações institucionais”, instaurando uma “micro-física” do poder, a ênfase recai sempre
sobre os aparelhos disciplinadores e reguladores. Essas análises são fundamentais, mas é
preciso também se perguntar que procedimentos populares (também “microscópicos” e
cotidianos) “[...] jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não
ser para alterá-los” (CERTEAU, 2003, p. 41). Por isso que interpretar a dinâmica cultural e
religiosa privilegiando esse agir inventivo e a interpretação dos “espaços praticados”,
constitui-se em uma “antidisciplina” em Certeau (em alusão às análises “disciplinadoras”
foucaultianas).
87
Aliás, é na reflexão sobre a linguagem que Certeau vai encontrar um espaço profícuo para suas análises de
inventividades cotidianas.
90
As táticas, por sua vez, apropriam-se e utilizam-se das “falhas” que as relações de
poder estratégicas cometem em seu pretenso universalismo: é justamente aí que as táticas vão
“à caça”: “[...] cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia.”
(CERTEAU, 2003, p. 100-1). É justamente na arte das “táticas”, enquanto arte do “fraco”,
que se encontram as possibilidades de se inventar o cotidiano. Todavia, é importante salientar
que Certeau procura sempre manter a ambigüidade. Ao evocar relações de poder, a dinâmica
religiosa, por exemplo, com seus “idiomas simbólicos”, vive esses desníveis dentro de seus
lugares próprios, uma vez que as estratégias religiosas são cindidas por trajetórias táticas dos
múltiplos sujeitos e atores sociais religiosos88. Não há segurança, todavia, de que as táticas
não venham a se converter em novas estratégias: há uma permanente tensão, comprovada nas
próprias palavras de Certeau: “[...] A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso
deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha”
(CERTEAU, 2003, p. 100). Com isso, é possível concordar com Ahearne de que as noções de
estratégias e táticas não precisam ser necessariamente colocadas uma contra a outra como
forças opostas em um determinado lugar e espaço cultural: “[...] No entanto, como Certeau
apresenta-lhes, como conceitos eles possibilitam-nos discernir um número de movimentos
heterogêneos através de diferentes distribuições de poder” (AHEARNE, 1995, p. 163). Há
uma fronteira dialética em ato. As noções de heterogeneidade e diferenciação afirmadas por
Ahearne evocam a necessária reafirmação da “heterologia” no pensamento certeauniano. De
fato:
88
Em outros termos para caracterizar a ambiguidade: “O sistema onde circulam é demasiadamente amplo para
fixá-los em alguma parte, mas demasiadamente regulamentado para que possam escapar dele e exilar-se
alhures”. Cf. CERTEAU, M. de. A Invenção do Cotidiano, p. 104.
91
Mesmo que não nomeie explicitamente, a relação ambígua entre estratégias e táticas é
o centro da citação anterior. Mesmo que haja lutas contra determinações muitas vezes
impostas, há sempre uma relação com um diferente, com um outro. Toda relação tática, seja
nas experiências religiosas ou não, evoca esse conflito com o “outro”, ou seja, as relações
estratégicas que não lhe são próprias. É um paradoxo: ainda que as estratégias possam evocar
relações também destrutivas, a dinâmica cultural flui e reflui nessa dialética, nessas
“fronteiras”: “[...] o limite funciona como fronteira que deixa aberta a porta do espaço a ser
controlado; a circunscrição de um espaço pressupõe a existência do Outro.” (JOSGRILBERG,
2005, p. 81). Michel de Certeau procura, a nosso ver, categorizar mais analiticamente a sua
própria noção de cultura “heteróloga” já apresentada. Certamente que essas perspectivas
atraíram várias críticas ao pensamento de Certeau, conforme afirmado anteriormente. Fica
claro que nas análises culturais empreendidas pelo cientista religioso e social francês, a
grande questão a ser investigada não é a produção simbólica e de sentido operada pelas
estruturas de poder, mas a prática dos “consumidores”, ou seja, como os sujeitos e atores
sociais cotidianos operam, em suas relações táticas, o capital simbólico que ora lhes é
proposto, ora lhes é imposto. Assim, uma das possíveis críticas ao pensamento certeauniano
afirmada é a seguinte: não há uma excessiva positividade nas relações táticas? Se elas também
estão relacionadas a um sistema de discursos hegemônicos (estratégicos), até que ponto as
táticas não são “reabsorvidas” por esses mesmos discursos, considerando que elas não
possuem um “lugar próprio”? Essa seria uma crítica levantada pelo crítico literário e cultural
John Frow mas que, segundo Josgrilberg, não se sustenta, porque torna as táticas uma mera
projeção das estratégias quando, na realidade, as táticas são processos inventivos e
92
performativos que, mesmo correndo o risco de fundarem novos lugares estratégicos, já são
outros lugares, outras situações e não uma mera reincorporação89.
89
Cf. JOSGRILBERG, F. B. Cotidiano e Invenção, p. 25. O texto de Frow utilizado por Josgrilberg é Michel de
Certeau and the Practice of Representation In: Cultural Studies, v. 5, n. 1, 1991, p. 52-60.
93
90
Tillich nasceu na vila de Starzeddel, hoje território polonês. Faleceu na cidade americana de Chicago. Para
maiores detalhes biográficos ver MÜELLER, E. R. & BEIMS, R. W. (Orgs.). Fronteiras e Interfaces, p. 11-
39 e CALVANI, C. E. B. Teologia da Arte, p. 13-28.
91
Cf. CALVANI, C. E. B. Teologia e MPB, p. 42-3. Calvani tem por referência as análises de John Thompson
em Ideologia e cultura moderna e de Norbert Elias em seu clássico O Processo Civilizatório. Também
seguindo e citando literalmente as idéias de Elias, o antropólogo inglês Adam Kuper vai afirmar: “[...] Esse
termo [kultur] „refere-se essencialmente a fatos intelectuais, artísticos e religiosos‟, e a Alemanha geralmente
„traça uma clara linha divisória entre fatos dessa natureza e fatos políticos, econômicos e sociais‟. [...] Um
francês e ou um inglês podia dizer que era “civilizado” sem que tivesse realizado alguma coisa, mas para os
alemães todo indivíduo adquiria cultura por meio de um processo de educação e desenvolvimento espiritual”.
Cf. KUPER, A. Cultura. A visão dos antropólogos, p. 54.
94
É interessante notar que no período de 1919 a 1926, onde Tillich desenvolveu seu
percurso acadêmico e muito produtivo na Alemanha, especificamente ao lecionar nas
92
Cf. HIGUET, E. A. As relações entre religião e cultura no pensamento de Paul Tillich. In: Correlatio. São
Bernardo do Campo, v.7, n.14, 2008, p. 135. Disponível em: <http://www.metodista.br/revistas/revistas-
metodista/index.php/COR/article/view/1155/1165. Acesso em: 20 mar. 2009
95
Universidades de Berlim, Marburg e Dresden (onde ficou até 29), vão surgir análises
fundamentais sobre a relação entre religião e cultura. Os textos característicos desse período
focam, portanto, sua compreensão de religião na transversalidade com as formas e diversos
estilos culturais, principalmente na interface entre a Filosofia, a Teologia e suas análises do
socialismo religioso. Curiosamente foi um período muito profícuo para a antropologia
também, seja no contexto europeu (principalmente a Alemanha e a Inglaterra) e no contexto
norte-americano, para onde Tillich mudaria em 1933 devido à perseguição do regime
nacional-socialista da Alemanha hitlerista. Basta lembrar que o antropólogo alemão Franz
Boas, citado anteriormente, vai publicar, em período próximo, textos como “Os Métodos da
Etnologia”, de 1920; “Alguns problemas de metodologia nas Ciências Sociais”, de 1930 e
“Raça e Progresso”, de 1931. Nesses textos, Boas relativiza os determinismos culturais em
torno da percepção de que cada ser humano interpreta o mundo a partir da cultura particular
em que cresceu. Não existe “a” cultura no singular, base de onde partiria, via difusionismo
evolucionista, todas as demais culturas, mas culturas no plural. As idéias boasianas também
vão ter forte conotação política nos anos 30. Em “Raça e Progresso” a noção de “raça” sofre
uma desconstrução quando vista sob a superficialidade da cor da pele, formas da
cabeça/crânio e textura dos cabelos. Para Boas há uma enorme variabilidade genética mesmo
em populações mais “homogeneamente culturais”. Para o antropólogo alemão, é a cultura que
nos faz e não a biologia. Criticava, com isso, o que qualificava por “mito da pureza racial”.
Suas idéias, inclusive, vão influenciar as discussões posteriores sobre o sincretismo e,
também, o escritor e sociólogo brasileiro Gilberto Freyre em “Casa-grande e senzala”, obra
de 1933, onde Freyre, que foi aluno de Boas na Universidade de Colúmbia, nos EUA, discute
a noção de “mestiçagem” no contexto brasileiro93.. Esse “culturalismo” boasiano vai marcar,
decisivamente, todo o percurso das ciências antropológicas nos EUA no restante da primeira
metade do século XX e até posteriormente (anos 60), com nomes como Alfred Kroeber e
Clyde Kluckhohn. Justamente o período em que Tillich viverá nos Estados Unidos.
Franz Boas foi muito influenciado, ainda no século XIX, pelo médico alemão Rudolf
Virchow, de quem foi aluno. Virchow foi um importante político liberal e membro da
Sociedade de Antropologia de Berlim. Assim como seu colega Adolf Bastian, que viria a se
tornar o diretor do Museu de Etnologia de Berlim no ano de nascimento de Tillich, tanto um
como o outro sustentavam a idéia de que as culturas são “híbridas”. Isso significa que as
culturas não expressam identidades essenciais imutáveis, recorrendo a diversas fontes,
93
Cf. CASTRO, C. (Org.). Franz Boas. Antropologia Cultural, p. 14-20.
96
Certamente Tillich forjou seu percurso acadêmico e intelectual em diálogo com outros
campos do conhecimento que não a etnologia. Isso pode ser, ainda que parcialmente
explicável, porque a etnologia, conforme afirmado anteriormente, ainda estava constituindo-
se enquanto ciência, com seus métodos próprios, no período de formação de Tillich. Além
disso, a própria biografia tillichiana levou-o mais para a fronteira entre a filosofia do sentido e
a teologia. Mesmo já em sua fase norte-americana, com a antropologia ganhando destaque nas
discussões acadêmicas e políticas, Tillich ocupou-se em tornar compreensível para si próprio
e para seus interlocutores suas ideias filosóficas e teológicas gestadas e pensadas dentro do
horizonte teórico alemão para o ethos da cultura inglesa norte-americana. Isso aconteceu
principalmente no período de 1933 a 48, período particularmente difícil para Tillich. Por
exemplo, segundo Enio Mueller, a dificuldade de Tillich com a língua inglesa, que
acompanhou todo o restante de sua vida, deu-se em três frentes: “Primeiro, para dominá-la.
Segundo, para adequar o seu pensamento a ela. Terceiro, para repensar o seu pensamento
neste novo meio [...]” (MUELLER, 2005, p. 30)95. Além disso, a partir de 1949, no contexto
“pós” segunda guerra mundial, Tillich entra em um período de maior estabilidade nos EUA,
tanto em termos de maior adaptabilidade à vida americana quanto em termos profissionais,
uma vez consolidado como professor no Union Theological Seminary, em Nova York, onde
aposentou-se em 1955 para, em seguida, assumir o trabalho de docência na Harvard
University, em Chicago, aposentando-se definitivamente em 1962. Como se vê, o pensar a
fronteira e na fronteira é, em Tillich, antecedido pelo próprio viver na fronteira (intelectual,
cultural e religiosa).
Nesse período a produção literária de Tillich foi muito profícua onde pode ser
destacada, justamente, a escrita de sua obra magna, a “Teologia Sistemática” (Systematic
Theology), cujo primeiro volume foi publicado em 1951 (o segundo em 1957 e o terceiro, já
94
O próprio Kuper utiliza o termo “sincréticas” para caracterizar os aspectos “instáveis”, “abertos” e
“imprevisíveis” na noção de “culturas” nesses estudiosos alemães. Cf. KUPER, A. Cultura. A visão dos
antropólogos, p. 35.
95
Nas palavras do próprio Tillich: “O espírito da lingua inglesa forçou-me a esclarecer inúmeras ambiguidades
do meu pensamento até então camufladas pela nebulosidade mística do alemão filosófico clássico”. Cf.
TILLICH, P. A Era Protestante, p. 12.
97
afirmar: “O demoníaco (sic) é o santo (ou o sagrado) precedido por um sinal menos: o
antidivino sagrado [...] É uma abertura para o destrutivo, porém uma abertura que provém do
mesmo abismo que a abertura para a graça” (TILLICH, 1973, p. 74). Muito embora Eduardo
Cruz afirme que a noção de “demônico” em Tillich, ao longo de seu percurso intelectual,
caminha no sentido de um caráter acentuadamente negativo ao tornar-se quase sinônimo de
algo perverso e destrutivo, deixando em segundo plano a ambigüidade afirmada
anteriormente, principalmente no terceiro volume da “Teologia Sistemática” (CRUZ, 1995, p.
86).
96
No terceiro volume de sua Teologia Sistemática, ao comentar a relação entre o divino e o demônico como uma
das relações fundamentais para a compreensão da ambigüidade da religião, Tillich destaca que o termo
demônico foi, muitas vezes, usado e abusado na linguagem teológica, para designar forças antidivinas na vida
social e individual perdendo, com isso, o caráter de ambigüidade implicada na percepção do demônico. Cf.
TILLICH, P. Systematic Theology, Volume Three, p. 102.
99
Se na introdução do capítulo foi afirmado que Tillich procurou situar seu pensamento
“na fronteira”, é digno de nota que uma das fronteiras do pensamento que mais preocuparam
as reflexões tillichianas foi a estabelecida entre a religião e a cultura, dois termos
fundamentais também para as reflexões antropológicas e etnológicas. Etienne Higuet afirma
que a teologia (e também a filosofia) de Tillich é teologia da mediação
(Vermittlungstheologie), sendo essa sua questão central97. O próprio Tillich fala sobre a
mediação ao comentar a relação entre religião e cultura: “Através da experiência da
substancialidade religiosa característica da cultura, fui levado à fronteira da cultura e da
religião, da qual eu nunca tinha desertado. Para esta compreensão teorética minha filosofia da
religião é essencialmente dedicada”98. Nessa citação já começa a transparecer aquela que seria
uma das concepções centrais de Tillich que é, justamente, a compreensão da religião como o
fundamento, a substância de todas as formas e expressões culturais. Em sua leitura
antropológica e filosófica Tillich lê o ser humano como “ser da fronteira”, o que significa
também postular uma reflexão sobre a alteridade, ou seja, como construir a experiência do
sentido da existência nessa situação mediadora de fronteira. Novamente Tillich dirá: “Toda
pessoa se encontra nessa situação limite da fronteira de seu ser: Percebe o Outro situado para
além de si mesmo, e crê possível, uma vez que se desperte nele o desejo da potencialidade”
(TILLICH, 1976, p. 48). Não é demais dizer que, embora Tillich sempre tenha se esforçado
em sua leitura teológica e filosófica para pensar a unidade essencial do ser humano com o
sagrado/divino, nunca abandonou uma radical heterologia, um discurso sobre os “outros”
universos de sentido que se estabelece na existência concreta e ambígua. Se Michel de
Certeau pensa a heterologia focando mais as formas culturais, Tillich pensa a heterologia a
partir das experiências de sentido último da existência.
97
Cf. HIGUET, E. A. O método da Teologia Sistemática de Paul Tillich – A relação da razão e da revelação. In:
VV.AA. Paul Tillich. Trinta anos depois. Estudos de Religião. São Bernardo do Campo, ano X, n.10, 1995, p.
37.
98
Cf. TILLICH, P. The Interpretation of History. Disponível em: <http://www.religion-
online.org/showchapter.asp?title=377&C=46. Acesso em: 23 mai. 2008.
100
uma “Teologia da Cultura” (Theologie der Kultur), em 1919, com o citado texto “Sobre a
idéia de uma Teologia da Cultura”. Nesse texto a Teologia passa a ser a expressão normativa
da experiência religiosa e não o discurso descritivo e explicativo sobre objetos específicos
como “Deus”, “Jesus Cristo”, “Revelação”, “Igreja”, dentre outros 99. Porém, o que Tillich
caracteriza aqui como “religião” é a experiência do incondicionado (Unbedingt), ou seja,
compreendido metaforicamente como o “fundamento” (Grund) e o “abismo profundo” (Ab-
grund) da experiência de sentido (Sinn) da existência “espiritual” do humano100. Testemunho
esclarecedor desses conceitos é a seguinte citação de Higuet:
99
Em 1923 Tillich publicou o texto “O Sistema das Ciências segundo objetos e métodos” (System der
Wissenschaften nach Gegenständen und Methoden). Um dos principais objetivos deste texto é situar e
compreender a Teologia como “ciência do espírito” normativa da religião, ou seja, não uma ciência ao lado das
demais, mas aquela que interpreta a busca e manifestação da experiência do incondicionado em todas as
formas culturais (e as ciências que têm por objeto essas formas) condicionadas. Para maiores matizações sobre
esse texto de Tillich ver BEIMS, R. W. O Sistema das Ciências. In: MUELLER, E. R. & BEIMS, R. W. (orgs.)
Fronteiras e Interfaces, p. 99 ss.
100
Conforme o próprio Tillich afirma: “A religião é a orientação para o Incondicional”. In: TILLICH, P.
Filosofía de la Religión, p. 162. Para Tillich toda ação espiritual do ser humano é ação significativa. Sobre
isso Carlos Calvani vai afirmar: “Não significa que o Incondicional esteja relacionado à realidade da
existência, mas sim à realidade do sentido, do significado último e mais profundo, ou do „sentido do sentido‟, o
sentido último no qual se fundamenta todo sentido preliminar, imanente e formal de toda cultura”. Cf.
CALVANI, C. E. B. Teologia e MPB, p. 48.
101
Cf. HIGUET, E. A. As relações entre religião e cultura no pensamento de Paul Tillich. In: Correlatio. São
Bernardo do Campo, v.7, n.14, 2008, p. 129. Disponível em: <http://www.metodista.br/revistas/revistas-
metodista/index.php/COR/article/view/1155/1165. Acesso em: 20 mar. 2009
102
RICHARD, J. Introduction. In: TILLICH, P. La dimension religieuse de la culture, p. 21-2.
101
passa a ser toda e qualquer manifestação concreta do espírito humano, teórica (linguagem,
discurso) e prática (ações técnicas e transformadoras), que expressa o conteúdo substancial de
todas as coisas. Essas manifestações “formais” são os atos culturais. Tillich vai afirmar:
“Podemos, portanto, dizer: A substância ou significação capta-se mediante uma forma e se
expressa mediante um conteúdo. O conteúdo é acidental; a substância é essencial. Por sua vez,
a forma é o elemento mediador”103. Isso significa que é impossível compreender e significar a
experiência de sentido último, incondicional (portanto, religiosa) fora da experiência cultural,
muito embora as formas culturais jamais esgotem o processo de mediação compreensiva da
experiência religiosa. É esse o entendimento da ideia de “transcendência do sentido concreto”
afirmada na citação de Higuet anteriormente ou, na análise do teólogo Joe Marçal dos Santos,
o paradoxo da religião enquanto experiência do incondicionado que, como exigência de
sentido sempre presente, nunca se esgota nas ações e percepções culturais104.
Assim Tillich estabelece, principalmente em sua fase de produção alemã, a tese central
em relação à teologia e filosofia da cultura, tese essa que pode ser sintetizada da seguinte
maneira:
103
Cf. TILLICH, P. Sobre la idea de una Teología de la Cultura. In: TILLICH, P. Filosofía de la Religión, p.
167.
104
Cf. SANTOS, Joe M. G. dos. A Teologia da Cultura. In: MUELLER, E. R. e BEIMS, R. W. (Orgs.)
Fronteiras e Interfaces, p. 128. Tillich reafirma a dialética entre substância religiosa e formas culturais
também da seguinte maneira: “[...] a forma que nada forma é tão incompreensível como a substância sem
forma alguma”. Cf. TILLICH, P. Filosofía de la Religión, p. 165.
102
humano105. Vai ser justamente a ação hermenêutica como “decifradora” dos diversos estilos
culturais (principalmente sua dimensão simbólica) que revelará o conteúdo religioso em cada
esfera cultural. Mesmo que esse conteúdo não deixe jamais as condições históricas e culturais
de sua produção e significação, ao manter a constante tensão e ambigüidade que marca a
relação mediadora entre religião e cultura. Essa tensão que, paradoxalmente, imprimirá o
caráter criativo e inventivo da relação cultura/religião se expressa em relações de poder
“teônomas”. Tillich cria esse neologismo para marcar o estímulo às “autonomias” culturais,
desde que tornadas mediadoras para a expressividade e maior transparência do fundamento
religioso/incondicional que dá sentido último a essas mesmas práticas culturais106.
105
CF. TILLICH, P. Teología de la Cultura, p. 15-7. Esse texto compõe-se de uma série de artigos de Tillich
escrito nos anos 40 e 50. Sobre a noção de profundidade e incondicionalidade, Calvani vai afirmar:
“‟Profundidade‟ aqui é uma metáfora que aponta para o que há de mais fundamental, de incondicional na vida
espiritual dos seres humanos. Trata-se da preocupação última (Ultimate Concern, tradução do alemão was uns,
unbedingt Anghet) presente em todas as funções criativas do espírito humano”. Cf. CALVANI, C. E. B.
Teologia e MPB, p. 63.
106
A “teonomia” é a “lei” (nomós), expressão de uma racionalidade baseada no “teós”. Mas não se pode
entender “teós” aqui como um objeto chamado “Deus”, como se todas as coisas fossem subjugadas por um
poder supremo que suprime as liberdades e autonomias individuais e sociais. “Teós” aqui é justamente símbolo
para “divino” no sentido de transparência e atualização das potencialidades “espirituais” criativas do ser
humano na relação com o fundamento de sentido desse mesmo ser que, aí sim, se pode nomear simbolicamente
por “Deus”. Nada tão muito estranho para um teólogo cristão. A “autonomia” é a lei, a racionalidade de um
próprio no sentido da atualização citada anteriormente e não no sentido individualista de que cada um se torne
a lei de si próprio. A “heteronomia”, para Tillich, tem uma conotação negativa pois impõe uma
“lei/racionalidade” estranha, heteróclita ao universo de sentido que cada indivíduo e grupo humano cria, a
partir da alteridade autônoma significativa de cada um. Tillich mesmo, em sua Teologia Sistemática, afirma
que o Cristianismo (principalmente no período medieval), tornou-se um grande poder heterônomo que impôs
coordenadas de sentido estranhas às muitas formas culturais, ao não respeitar a autonomia dessas mesmas
formas e, portanto, torna difícil a expressão e compreensão de uma autêntica manifestação religiosa das
mesmas. Não é difícil perceber que muitas ações missionárias cristãs junto aos povos indígenas brasileiros,
ontem e hoje, expressam muito mais uma relação heterônoma entre religião e cultura do que propriamente
“teônoma”. Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, p. 97-9. Também é possível verificar essas relações em
TILLICH, P. Religião e Cultura Secular. In: TILLICH, P. A Era Protestante, p. 83-93. Esse último texto foi
publicado originalmente em 1948 e constitui-se em uma coletânea de artigos de diferentes épocas, inclusive
textos do período alemão. “Religião e Cultura Secular” foi publicado, originalmente, em 1946 nos EUA. Nesse
texto Tillich afirma: “A cultura teônoma expressa nas suas criações a preocupação suprema e o sentido
transcendental não como algo que lhe seja estranho, mas como seu próprio fundamento espiritual. „A religião é
a substância da cultura e a cultura, a forma da religião‟. Podemos dizer que esta frase define com precisão o
que entendemos por teonomia”, p. 83. “[...] essa frase [...]” na citação anterior é a retomada da tese central de
sua “Teologia da Cultura” do início dos anos 20 na Alemanha.
103
107
CRUZ, E. R. da. A Dupla Face, p. 107.
108
Para a compreensão do conceito de vida e ambiguidade no pensamento de Tillich, veja-se os seguintes textos
de Eduardo Rodrigues Cruz: “A vida e suas ambiguidades no sistema de Paul Tillich”, p. 83-95, publicado em
1995 no volume 10 da revista Estudos de Religião, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
da Universidade Metodista de São Paulo e o Capítulo 2 intitulado “A compreensão Teológica de Ambivalência
em Paul Tillich: Subsídios”, da obra A Dupla Face: Paul Tillich e a ciência moderna, p. 83-143. Na
realidade esse texto, ainda que publicado para o português em 2008, foi fruto da tese de doutoramento do prof.
Eduardo Cruz na segunda metade dos anos 80, nos EUA. Portanto, o artigo de 1995 é uma síntese do referido
capítulo dessa obra.
109
Nas palavras do próprio Tillich: “A autotranscendência da vida sob a dimensão do espírito só pode se
concretizar em realidades finitas que são transcendidas. Disto surge a dialética da autotranscendência, que
consiste no fato de que algo é transcendido e, ao mesmo tempo, não transcendido. Este algo deve ter existência
104
cultural é religiosa, essa mesma vida pode transcender-se, pode buscar o novo e experimentar
novas possibilidades criadoras, ainda que circunstanciadas por tensões e conflitos: “O sentido
não pode viver sem a fonte inesgotável de sentido para a qual aponta a religião” (TILLICH,
2005, p. 555). Por viver sob as condições da existência, a percepção, vivência e interpretação
da religião está marcada pela ambigüidade. Vai ser justamente com a noção de demônico que
Tillich definirá essa ambigüidade da religião. De fato, é uma noção muito importante para os
estudos de religião e, no horizonte dessa tese, promissora para se repensar a noção de
sincretismo.
Todo ato da vida deveria em si mesmo apontar para além de si, e nenhum ato
especificamente religioso deveria ser necessário. Mas, como em todos os
âmbitos da vida, a profanização no âmbito do espírito resiste à
autotranscendência. A profanização da religião a transforma num objeto
finito entre objetos finitos. A conseqüência é a presença de elementos
concreta, caso contrário nada haveria para ser transcendido; contudo, não deveria mais „estar aí‟, e sim ser
negado no ato de ser transcendido. Esta é exatamente a situação de todas as religiões na história. A religião
como autotranscendência da vida precisa das religiões e, concomitantemente, precisa negá-las”. Cf. TILLICH,
P. Teologia Sistemática, p. 555.
105
Não se nega, nessa citação anterior, a dimensão simbólica de significação das ações
criativas culturais. Sem elas não seria possível, conforme já afirmado, a expressão mediadora
da religião. Justamente porque a linguagem simbólica permite representar sem se igualar ao
representado (significante e significado), não diluindo a experiência de sentidos
incondicionais às formas condicionadas111. É justamente contrária a essa “diluição”
reducionista que a citação anterior de Higuet aponta. Todavia, os elementos profanizadores
sempre estarão presentes. A questão é o ponto, o teor em que a vivência do sagrado pode ser
percebida sem perder sua dimensão de ir além das dimensões profanas e condicionantes da
vida: trata-se da ambigüidade.
110
Cf. HIGUET, E. A. As relações entre religião e cultura no pensamento de Paul Tillich. In: Correlatio. São
Bernardo do Campo, v.7, n.14, 2008, p. 131-2. Disponível em: <http://www.metodista.br/revistas/revistas-
metodista/index.php/COR/article/view/1155/1165. Acesso em: 20 mar. 2009.
111
Para maiores detalhes sobre a noção de símbolo em Tillich, característica fundamental da linguagem
religiosa, veja-se: TILLICH, P. Teología de la Cultura, p. 56-65. Nesse texto Tillich afirma: “Os símbolos
religiosos assinalam simbolicamente (sic) aquilo que os transcende a todos. Não obstante, como símbolos que
são, participam do que indicam; tendem, certamente, a suprir na mente humana aquilo que indicam e a
converter-se em fundamentais por si mesmos”. Cf. Idem, ibidem, p. 59. Também em TILLICH, P. Dinâmica
da Fé, p. 30-9. Além disso, o texto de JOSGRILBERG, R. de S. A concepção de símbolo e religião em Freud,
Cassirer e Tillich. In: HIGUET, E. e MARASCHIN, J. (Eds.). A Forma da Religião. Leituras de Paul Tillich
no Brasil, p. 17-26.
106
para serem publicados, a construção deste conceito é bem anterior, uma vez que remonta a sua
fase alemã. De acordo com Carlos Calvani, a primeira menção do demônico em Tillich ocorre
em um artigo de 1923, intitulado “Os princípios fundamentais do Socialismo Religioso”
(Grundlinien des religiösen Sozialismus). Todavia, vai ser somente em 1925, na obra
“Filosofia da Religião”, que a noção começa a se impor na sua relevância hermenêutica para
a análise das relações entre religião e cultura112. Jean Richard também afirma a importância
do demônico em diversos escritos de Tillich na fase de produção de seu programa de filosofia
e teologia da cultura, nos anos de 1919 a 1926, onde o teólogo e filósofo teuto-americano
procurou pensar exaustivamente a mediação compreensiva entre o absoluto da religião e a
autonomia das formas culturais (RICHARD, 1990, p. 10).
No período citado anteriormente (terceira década do século vinte), pelo menos dois
textos específicos sobre o demônico são elaborados: o já citado texto de 1926 (“O
Demônico”) e, no mesmo ano, “O conceito de demônico e sua significação para a teologia
sistemática”. Na breve apresentação desses textos, Richard afirma o grande apreço de Tillich
aos mesmos. Em relação ao primeiro texto Tillich, sem abandonar as análises mediadoras
típicas de seu estilo, ou seja, as polaridades conceituais entre religião e cultura, Deus / Mundo,
sagrado e profano, “mergulha” na análise da experiência do sagrado enquanto fundamento
para a reflexão acerca da religião. A partir de uma leitura fenomenológica e filosófica, Tillich
passa a conceber o demônico como o símbolo radical para a essência ambígua do sagrado ao
cunhar os pólos “sagrado-divino” e “sagrado-demônico”. Assim, tanto as formulações
míticas das religiões quanto a estrutura psíquica e social dos seres humanos, em seu nível
mais íntimo, evocam a profundidade “demônica”, ou seja, “abissal”, “obscura”, ambígua,
sempre na busca pelo sentido da existência (RICHARD, 1990, p. 15). Importante frisar: não é
uma dimensão puramente positiva ou negativa, mas ambígua, da mediação. Com isso Tillich
procura mostrar como essa ambigüidade se desenvolve na história das religiões, encerrando o
texto com projeções mais existenciais sobre as forças demônicas do presente (no caso, o
período “entre guerras” da primeira metade do século XX).
112
CALVANI, C. E. B. Imagens do Diabo na MPB. In: HIGUET, E. e MARASCHIN, J. (Eds.). A Forma da
Religião. Leituras de Paul Tillich no Brasil, p. 166.
107
também, que a percepção do demônico passa pelas formas culturais, mas não se esgota nelas.
Ao expressar-se nas mediações culturais o demônico ganha dimensões sociais e
antropológicas, além de expressar-se nas estruturas individuais do ser humano. Mas seu
fundamento é a experiência do sentido (TILLICH, 1990, p. 130-4). Essas dimensões de
compreensão do demônico são retomadas no texto da relação desse conceito com a teologia
sistemática. Por se tratar da relação com o pensamento teológico, Tillich procura deixar claro
que a concepção do demônico não pode ser confundida com um mero apêndice às elaborações
sobre o pecado, a modo das dogmáticas tradicionais. Procura, assim, perceber as implicações
éticas e sociais da noção ambígua de demônico para todos os campos da Teologia, em
particular a cristologia e a eclesiologia (RICHARD, 1990, p. 16).
113
Jacob Böehme foi um místico cristão alemão que viveu entre os séculos XVI e XVII (1575-1624). Ao
filósofo alemão Schelling, Tillich dedicou duas teses doutorais: a primeira em filosofia, em 1910/11, na
Universidade de Breslau, ao abordar o tema “A Construção da História da Religião na Filosofia Positiva de
Schelling, seus Pressupostos e Princípios”. A segunda tese em Teologia, em 1912, na Universidade de Halle,
com o título: “Mística e Consciência de Culpa no Desenvolvimento Filosófico de Schelling”. Assim como
Certeau, Tillich também atuou como agente religioso formalmente ordenado. Nesses anos de estudo, Tillich foi
ordenado ao ministério pastoral na Igreja Luterana em 1912, após um período de vicariato na cidade de Nauen.
Foi pastor assistente em Berlin de 1912 a 14 ingressando, posteriormente, no quadro de capelães do exército
alemão ao servir na primeira guerra mundial (1914-1918) Cf. MUELLER, E. R. Paul Tillich: Vida e Obra. In:
MUELLER, E. R. e BEIMS, R. W. (eds.) Fronteiras e Interfaces, p. 11-39.
108
114
Cf. OTTO, R. Lo Santo, p. 43. Para maiores detalhamentos sobre a reflexão acerca do sagrado, em uma
perspectiva baseada mais na sociologia e filosofia francesa, o texto de CAILLOIS, R. L’home et le sacré, em
especial o Capítulo 2 intitulado “A Ambigüidade do Sagrado” (L‟Ambiguïté du Sacré), p. 41-76. Caillois
afirma que, no campo religioso, o ser humano opera, preferentemente, com uma estrutura cognitiva equivoca e
ambígua ao acentuar, na relação com o sagrado, as polaridades puro/impuro; santidade/profano;
coesão/dissolução.
115
Essas influências (de Otto e Lutero) são retomadas por Tillich em sua Teologia Sistemática, ao comentar a
relação entre Deus e a idéia de sagrado, quando afirma: “Os elementos demoníacos na doutrina de Lutero sobre
Deus, sua identificação ocasional da ira de Deus com Satanás, a imagem meio divina, meio demoníaca que nos
oferece a atuação de Deus na natureza e na história – tudo isso constitui a grandeza e o perigo da compreensão
luterana do sagrado. A experiência que ele descreve certamente é numinosa, tremenda e fascinante, mas não
está salvaguardada contra a distorção demoníaca nem contra o ressurgimento do impuro dentro do sagrado”.
Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, p. 225. Devo a localização dessa citação a CRUZ, E. R. da. A Dupla
Face, p. 133.
109
prática de toda a vida que depende do fundamento que é a primeira potência. A terceira
potência é a dinâmica de união entre as duas anteriores, o “espírito”, a mente, o intelecto que,
animado pela intuição, se desdobra nas formas condicionais e diferenciadas. Tudo o que
existe passa a existir a partir da unidade dessas potências. A história passa a ser marcada por
uma radical ruptura entre os seres, diferenciados e separados do seu fundamento. A dinâmica
da reconciliação, da busca pela unidade essencial, sem negar as ambigüidades, embora nunca
conseguida nas condições da existência, recria a experiência do novo, de novos sentidos.
Tillich reinterpreta essa busca pela unidade em termos de participação no incondicional, o que
equivale a dizer, religiosa. Deriva daí que a experiência e a história religiosa é o fundamento
de toda a existência das formas, portanto, culturas. Teologicamente falando, o símbolo
“Deus” aponta para o “fundamento do ser”, o “Ser-em-si”, o “Deus além de Deus”, o “abismo
de sentido”. Simbólico porque “Deus” não “existe”, não é um ser ao lado de outros seres, pois
deixaria de ser o fundamento e passaria a ser um “ente”, uma “forma”. A linguagem,
edificada sobre as ambigüidades da existência, sempre falará do sagrado e do divino
fragmentariamente, sem adequar totalmente a “coisa ao objeto”. Falar do incondicional, de
fundamento do ser, é uma fala sempre incompleta. Nesse ponto enxergam-se, também, ecos
da tradição mística com a qual concordaria, pelo menos em parte, Michel de Certeau116.
116
“[...] a linguagem não mais exprime as coisas, não mais dá presenças e não mais é a transparência do mundo,
mas sim um lugar organizado que permite atividades. Ela não mais dá aquilo que ela diz: falta-lhe o ser”. Cf.
CERTEAU, M. de. A Cultura no Plural, p. 88.
117
Para uma crítica à ontologia tillichiana, calcada na ideia de “fundamento do ser”, a partir de uma filosofia
pós-moderna, ver o texto de MARASCHIN, J. C. Cristologia sem centro – o novo ser e o nada. In: HIGUET,
E. A. e MARASCHIN, J. C. (Eds.) A Forma da Religião, p. 213-23.
111
...........................................................................................................................
118
“Com a perda de sua substância religiosa, a cultura se torna cada vez mais uma forma vazia. O sentido não
pode viver sem a fonte inesgotável de sentido para a qual aponta a religião”. Cf. TILLICH, P. Teologia
Sistemática, p. 555.
114
do demônico e sua participação (e não recusa), ainda que distorcida, na esfera do sagrado
(TILLICH, 2005, p. 559). No final das contas, o próprio Cruz afirma:
119
LEOPOLD, A. M. Preface. In: LEOPOLD, A. M. & JENSEN, J. S. (Eds.) Syncretism in Religion: A
Reader, p. x.
116
Quando faz, por exemplo, uma análise teológica do problema do sincretismo religioso,
a partir da noção de “revelação” (conforme apresentado no primeiro capítulo), o cientista da
religião Afonso Soares afirma que, sem querer livrar-se de polêmicas, o termo sincretismo
leva vantagem (se comparado, por exemplo, com “[...] sua prima bem-comportada
inculturação [...]”) por deixar claro realmente o problema: “A revelação de Deus comporta
claríssimas ambigüidades, erros e contradições que devem ser explicados como componentes
essenciais e não refugos circunstanciais do processo da autocomunicação divina à
humanidade” (SOARES, 2008, p. 93). Se é assim na relação divino-humano, porque não seria
entre os próprios seres humanos em suas experiências religiosas enquanto processos culturais?
É possível, como será mostrado no próximo capítulo, que a experiência Guarani e Kaiowá do
teko katu mostre e ensine isso: que o “bom modo de ser” e de proceder, sempre religioso,
implique em um caminho (tape) que comporta também profundas contradições, distorções e
crises (o tekoaku)120. Profundamente inventivo e demônico, como inventiva e “demônica”
parece ser uma boa metáfora para caracterizar as ações religiosas de grupos indígenas
pertencentes ao projeto da IIP na Terra Indígena de Dourados hoje. Portanto, essa tese propõe
ampliar a força metonímica e interpretativa do conceito de sincretismo com o seu pólo
nomeado de “diacretismo”. Se a noção de sincretismo pode ser definida, em síntese, como o
processo de invenção “demônica” da cultura, essa definição será, agora, desdobrada nos
conceitos trabalhados, de tal forma a acolher a noção de diacretismo afirmado anteriormente.
120
Segundo Graciela Chamorro o tekoaku é termo guarani que pode ser traduzido por “modo de ser quente”,
relacionado a estados de profundo alerta, crise e perigo. A gravidez, o nascimento, as doenças, os processos
iniciatórios indicam períodos de profunda preocupação e resguardo, exemplificando o tekoaku. Cf.
CHAMORRO, G. Terra Madura, p. 354. Teko katu é “o bom modo de ser, de agir”.
117
A tentativa de trazer as ideias de Michel de Certeau e Paul Tillich para o diálogo com
a noção de sincretismo é porque as idéias certeaunianas e tillichianas podem implicar-se
elucidativamente. Certeau pode ajudar a “mapear” com maior rigor analítico os aspectos
inventivos das formas culturais, alertando para o fato de que toda “preocupação última” pode
tornar-se uma “estratégia”, ou seja, em um poder religioso próprio corporificado em
discursos, sistemas ou instituições contrárias ao que afirma: negador dos poderes “táticos” que
deixam transparecer o sentido nas experiências culturais. É possível que Certeau insista que
toda preocupação incondicional, ou seja, religiosa, na realidade é também um construto
cultural. A não ser que, em sentido tillichiano, o homo inventivus certeauniano seja o grande
símbolo representativo do sentido incondicional. Talvez seja plausível essa leitura no
pensamento “místico” de Certeau, onde o divino só possa ser nomeado, ainda que
inconclusivamente, como o Deus criador, inventor. É possível pensar que Certeau ajude a dar
maior “realismo” às ações culturais (e sincréticas) humanas em sua cotidianeidade. É possível
121
Cf. PYE, M. Syncretism and Ambiguity. In: Syncretism in Religion, p. 66.
122
Idem, ibidem, p. 66-7.
118
também estabelecer que Tillich ajude, ainda que haja críticas à ideia de um “fundamento
religioso” a todas as culturas, a não perder de vista que as relações entre religião e cultura
(invenções sincréticas), estejam prenhes de elementos e ações criadoras, seja uma criação
positiva, seja uma criação distorcida. Assim, as relações culturais/religiosas estratégicas e
táticas só o são porque animadas pela experiência de sentido demônica, nos termos já
estabelecidos.
123
No campo antropológico as ideias hermenêuticas de Clifford Geertz com sua noção de religião como sistema
simbólico e as ideias de outro antropólogo norte-americano: Marshall Sahlins. Sahlins, com suas análises da
relação entre antropologia e história, afirma a necessidade de não se perder de vista a dimensão simbólica das
formas materiais, mas tomadas não em um purismo estruturalista e, sim, na dinâmica histórica de sentido que
cada grupo cultural opera: “[...] as chamadas causas materiais devem ser, enquanto tais, o produto de um
sistema simbólico cujo caráter cabe a nós investigar, pois sem a mediação desse esquema cultural nenhuma
relação adequada entre uma dada condição material e uma determinada forma cultural pode ser especificada.
As determinações gerais da práxis estão sujeitas às formulações específicas da cultura, isto é, de uma ordem
que goza, por suas propriedades de sistemas simbólicos, de uma autonomia fundamental”. Cf. SAHLINS, M.
Cultura e Razão Prática, p. 62-3. O texto de Geertz é o clássico “Interpretação das Culturas”.
119
125
Outros campos do saber, como a Crítica Literária, utiliza-se de amplas metáforas para caracterizar uma
hermenêutica dos métodos e estilos literários. Por exemplo: o crítico literário e ensaísta norte-americano
Harold Bloom, em sua clássica obra “A Angústia da Influência. Uma Teoria da Poesia” ao analisar, dentre
outras coisas, a formação da influência poética, na relação entre o “poeta forte” e seu precursor, afirma que
uma das dimensões dessa influência é a Daemonização, “[...] movimento para um Contra-Sublime
personalizado, em relação ao Sublime do precursor”. Cf. BLOOM, H. A Angústia da Influência, p. 65.
Bloom toma emprestado da filosofia neoplatônica a imagem do daemon (considerado um ser ambiguamente
mediador do divino e do humano) que entra no adepto para auxiliá-lo, como metáfora para qualificar a
presença do precursor no poeta forte: “O poder que faz de um homem um poeta é daemônico, porque é o poder
que distribui e divide [...] Os daemons criam quebrando”. Cf. Idem, ibidem, p. 148. Essa ideia de que o
“quebrar”, o distorcer é, também, uma forma de criação ou invenção, é particularmente interessante para
interpretar outras manifestações culturais, além da escrita poética. É provocador compreender o sincretismo e o
diacretismo como o permanente esforço de inventar novos sentidos religiosos “quebrando” outros sentidos.
121
cristãs. Com isso o “diabólico artifício” manifestado pelas freiras instaurava um “espaço
praticado” de relações táticas que, por sua vez, causava uma “fissura” no lugar próprio da
Igreja em seu estabelecimento da natureza da verdade (AHEARNE, 1995, p. 76-7).
enfatizar que esses múltiplos sentidos (ainda que se busque um pretenso “último sentido”)
afirmam o poder inventivo, no campo religioso, de recriar os espaços sociais e culturais. Se há
relações de poder que procuram anular as diferenças ao transformar os seres humanos
religiosos em meros consumidores/reprodutores dos bens simbólicos, as relações sincréticas e
diacréticas, volta-se a afirmar, estão mais para a arte das “táticas” que, muitas vezes, sem um
“próprio”, só tendo o lugar do “outro”, faz desse lugar o espaço inventivo das significações:
nutre-se de elementos simbólicos e religiosos outros para criar, unindo e diferenciando-se
(afirmando e distorcendo), o próprio espaço cultural qualificador de sentido. Por isso que
Certeau exemplificava, ao analisar a relação dos povos indígenas com as estratégias
colonizadoras dos povos hispânicos:
Em síntese
religiosa, está para um conjunto de táticas de reinvenção dos múltiplos sentidos religiosos.
Mas isso não significa idealizar essas táticas, pois elas têm como referente uma luta cotidiana
com as estruturas estratégicas. Assim, com a noção de sincretismo, não se pode perder de
vista que as experiências religiosas cotidianas são uma constante luta contra estruturas
hegemônicas que, tanto do ponto de vista antropológico quanto teológico, absolutizam os
símbolos de representação do sagrado a ponto de abolir a força metafórica de ressignificação
das experiências. As interfaces sincréticas, em suas táticas, são caminhos profundamente
ambíguos, pois a construção de novos significados implica na reconfiguração, assumindo
perdas e ganhos, distorções e, até mesmo, violentações. Por isso, a conjugação do sincretismo
com o conceito tillichiano de demônico para enfatizar essa radical ambigüidade, tal como
mostrado na segunda subseção do capítulo.
Manoel de Barros
Vivem em nós inúmeros; [...] Tenho mais almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo
126
A Missão Evangélica Caiuá foi criada em 1928 pelo reverendo norte-americano Albert Maxwell, fruto do
projeto civilizatório de um conjunto de Igrejas (não somente presbiterianas) norte-americanas. A Missão
cresceu muito nas décadas seguintes, consolidando-se como espaço não somente missionário e evangelizatório,
mas também com a criação de uma escola, oferecimento de serviços na área de saúde através de um Hospital
próprio e, hoje, o atual “centrinho” que cuida de crianças indígenas desnutridas e órfãs.
127
O ato formal/oficial de criação da IIP ocorreu em celebração religiosa (culto) realizada na Igreja sede da
Missão Caiuá, em Dourados, no ano de 2008, culto este onde o autor desta tese esteve presente. Nesse culto foi
formada a primeira diretoria da IIP, além da ordenação/consagração de quatro indígenas pastores que já
atuavam nos campos missionários em aldeias do sul de Mato Grosso do Sul: dois indígenas da etnia Kaiowá
(um atuando na TID e o outro na Terra Indígena de Amambai, próxima à cidade de mesmo nome, bem ao sul
do Mato Grosso do Sul), um da etnia Guarani e um da etnia Terena (esses dois últimos também atuam na TID).
Na realidade, o culto de formalização da IIP, que contou com lideranças não indígenas das Igrejas
Presbiteriana do Brasil e Presbiteriana Independente, foi a concretização de um projeto de décadas da Missão
Caiuá de regulamentar a posição de indígenas pastores como agentes religiosos autóctones.
127
128
Os povos chamados Guarani, no Brasil, apresentam-se nas três parcialidades citadas: Kaiowá (ou Pai-
Tavyterã, no Paraguai); Ñandeva (ou Guarani no Brasil e Chiripá no Paraguai) e os Mbyá. Há também os
Chiriguanos que vivem, principalmente, na Bolívia.
129
O termo “tronco” é utilizado pelos Terena para qualificar as redes de alianças sociais (políticas, matrimoniais
e religiosas), baseado na ascendência e ancestralidade, “[...] composto em sua maioria por parentes que
reconhecem entre si algum grau de consaguinidade”. Cf. PEREIRA, L. M. Os Terena de Buriti, p. 46-7.
Aliás, as relações entre Terena e Guarani na TID, tomando a experiência religiosa como fator de mediação,
ainda é um campo de pesquisa muito promissor a ser explorado, podendo servir para futuras pesquisas.
129
algumas relações interétnicas muito ambíguas que reflete, sem dúvida, na mediação dos
interesses e ações “eclesiásticas” dos grupos que formam a referida Congregação. Assim,
constitui-se em grande desafio pesquisar sobre a “movimentação” religiosa de parcialidades
indígenas em um contexto, por assim dizer, poliétnico (BARTH, 2000, p. 35ss). Isso significa
que, mesmo que os grupos Guarani e Kaiowá sofram processos miscigenatórios, mantém,
ainda, uma certa unidade biológica, compartilham valores culturais fundamentais, se auto-
definem e são definidos por outros grupos por categorias distintivas e, principalmente,
constituem-se “[...] um campo de comunicação e interação” (BARTH, 2000, p. 27). Isso
significa que a condição poliétnica da TID exprime relações sociais de “fronteira”, metáfora
também cara à epistemologia de Fredrik Barth, citado supra. No dizer do referido
antropólogo:
Pensar a religião na experiência Guarani e Kaiowá têm uma longa história etnográfica
e conta, mais recentemente, com análises teológicas promissoras, tais como as feitas por
Bartomeu Meliá (1989) e Graciela Chamorro (2008), muito embora essas análises levem
muito pouco em consideração a ajuda das teorias acerca do sincretismo religioso. Desde as
leituras de Egon Schaden mostrando que a religião é o “núcleo duro/invariável” de resistência
Guarani aos processos aculturativos, em seu clássico “Aspectos Fundamentais da Cultura
Guarani”, de 1974, até as análises atuais de Maria de Lourdes Alcântara em torno da noção
de “hibridismo cultural” (2007), passando pela religião enquanto estruturadora das relações
sociais na antropologia de Levi Pereira (2004), o assunto é denso e complexo. Mais ainda
quando propõe a repensar a reconfiguração das alteridades religiosas a partir das fronteiras
cristãs colocadas pelas missões homônimas, como o projeto da IIP, em relação a grupos
indígenas, eles próprios na fronteira “sincrética e diacrética” de recomposição das alteridades
afirmadas. Na realidade, impõe-se a questão central levantada por Carlos Fausto em artigo
onde analisa a atual religião Guarani, centrada na atuação xamânica, que operou um
progressivo “esquecimento” histórico do canibalismo e da vingança em prol da idéia de amor
e perdão, através dos contatos interétnicos com as várias faces do missionamento cristão:
como esses Guarani fizeram seu um discurso religioso que traz as marcas indeléveis de um
discurso do outro, “[...] como é possível não ser o mesmo e continuar a pensar-se como si
mesmo?”131, indaga-se o referido antropólogo. Observa-se o discurso heterológico na questão
levantada por Fausto, aspecto fundamental para o sincretismo e o diacretismo.
Mesmo que a presença missionária junto à população indígena de Dourados hoje seja
majoritariamente cristã, seria um equívoco pensar que esse “cristianismo nas aldeias” não
assuma muitas faces e características específicas, configurando um cenário “de fronteira”. Um
exemplo que já pode aqui ser mostrado, mesmo que não seja tema central desta tese: várias
análises antropológicas hoje, quando pensam a religião na TID e demais aldeias no cone sul
de Mato Grosso do Sul, focam suas análises na atuação das igrejas pentecostais e
neopentecostais que estão presentes nessas aldeias, de forma mais permanente, desde os anos
130
Nunca é demais lembrar que as fronteiras étnicas das quais as Congregações da IIP são profundas
representações, contam em seu quadro de membros/obreiros com um contigente de não-indígenas ainda
considerável, o que “adensa” e torna mais complexa as relações sociais e religiosas construídas.
131
Cf. FAUSTO, C. Se Deus fosse Jaguar: Canibalismo e Cristianismo entre os Guarani (Séculos XVI a XX).
In: MANA 11 (2) 385-418, 2005. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional/UFRJ. Aqui p. 401.
131
132
Em texto mais antigo (1997), em sua própria tese de doutorado, Brand colocava a atuação das Igrejas
neopentecostais ao lado da política de criação de reservas, somado à exploração do trabalho masculino
indígena nas usinas sucroalcooleiras da região, como um dos grandes fatores da perda do modo de reprodução
de vida tradicional, o modo de ser próprio Guarani (nãnde reko). Cf. BRAND, A. O Impacto da perda da
Terra sobra a Tradição Kaiowá/Guarani, p. 7. Isso parece sugerir uma desproporção comparativa entre
fatores, até porque é possível pensar que várias Igrejas (neo)pentecostais são símbolos para a ambigüidade da
religião ao lidarem com essas situações de conflito, não sendo meramente causa ou efeito puramente deletério.
Sobre a atuação xamânica dos pastores indígenas, esse tema voltará na parte final do capítulo.
132
133
Em termos teológicos Antonio Magalhães afirma que o “princípio pentecostal” muda o foco clássico da
teologia expressa nas instituições cristãs e na própria compreensão de missão da Igreja: de um eixo mais
cristológico-eclesiológico para um eixo mais pneumatológico-comunitário. Cf. MAGALHÃES, A. C. de M.
Uma Igreja com Teologia, p. 55ss.
133
como o “fogo doméstico” (che ypyky kuera) e a “família extensa” ou “parentela” (Te‟yi)134; na
segunda subseção (3.2.2) é apresentado alguns apontamentos de caráter mais teológico,
afirmando alguns topoi (“lugares”), tais como como as imagens xamânicas e de Jesus Cristo
como espaços hermenêuticos profundamente “demônicos”/inventivos de se viver o teko retã,
religiosamente falando.
Essas duas subseções serão antecedidas por uma primeira seção do capítulo (3.1),
onde será formulado um quadro geral mais introdutório acerca da situação religiosa atual na
TID e as várias tentativas de se compreender a experiência religiosa dos indígenas Guarani e
Kaiowá na literatura especializada vigente (já citados no início dessa introdução). É preciso
prosseguir.
A definição da TID como cenário poliétnico, tomada nos termos barthianos, tal como
apresentado na introdução do capítulo, é significativa. Contudo, por coerência de método e
das construções teóricas apresentadas, é promissor qualificar a TID nos termos certeaunianos
das relações heterológicas entre táticas e estratégias. De fato, ao considerar a afirmação da
historiadora Renata Girotto sobre a constituição da TID, enquanto reserva construida pelo
governo brasileiro através do antigo SPI135, critérios político-administrativos não levaram, na
devida conta, aspectos antropológicos para a demarcação dessa terra indígena, ou seja,
critérios baseados na territorialidade e na ocupação tradicional Guarani e Kaiowá. Assim,
principalmente após as duas primeiras décadas, a ocupação “[...] se fez de modo forçado, com
lentidão e muita resistência. A política de aldeamento compulsório intensificar-se-ia nas
décadas seguintes, com maior ênfase a partir da década de 1940, permeada pela violência”
(GIROTTO, 2008, p. 59). Essa política de reservas é um exemplo histórico de “ações
estratégicas”, de constituição de discursividades e práticas que estabeleceram um lugar
134
Essas “unidades sociológicas” tradicionais estão referenciadas nos estudos etnográficos de PEREIRA, L. M.
Imagens Kaiowá do sistema social e se entorno, que foi sua tese de doutorado em 2004 na Universidade de
São Paulo - USP. Não obstante existirem outras unidades sociológicas importantes na compreensão dos
Guarani e Kaiowá, centro de toda a descrição etnográfica do segundo capítulo da referida tese, as duas
unidades citadas são suficientes, para os propósitos dessa tese, para perceber as implicações das ambigüidades
sincréticas e diacréticas (portanto, “inventivas”, “demônicas”) no encontro com as Igrejas.
135
Sigla para “Serviço de Proteção ao Índio”, instituído em 1910, órgão que antecedeu a atual Fundação
Nacional do Índio – FUNAI criada, por sua vez, em 1967.
134
As “duas primeiras décadas” que abrem a citação de Girotto são em referência ao ano
de 1917 quando, por decreto-lei estadual do então estado de Mato Grosso, foi criada a reserva
de Dourados a partir do posto do SPI “Francisco Horta Barbosa”, com 3.600 ha, embora ainda
não demarcada. Essa demarcação só viria a ocorrer em 1965 com a titulação definitiva das
terras com 3475 ha. A referência de Girotto à “violência” foi porque, em 1941, o “Estado
Novo” do presidente Getúlio Vargas criou o programa das “CAN‟s” (Colônias Agrícolas
Nacionais) com a famosa “marcha” para o Centro-Oeste brasileiro, “[...] buscando incorporar
novas terras e aumentar a produção de alimentos e produtos primários necessários à
industrialização, a preços baixos”136. Esse programa gerou extensos loteamentos destinados a
colonos e fazendeiros forçando os indígenas a viverem dentro das reservas demarcadas, como
a própria TID, aumentando o contingente populacional nas mesmas137. Isso fez com que o
espaço territorial das reservas ficasse cada vez mais reduzido prejudicando, sobremaneira, a
vivência do modo de ser tradicional (ñande reko) Guarani e Kaiowá, uma vez que muitas
famílias extensas indígenas eram desagregadas e obrigadas a conviverem, em um espaço
reduzido, com outras famílias não menos desagregadas. Além disso, intensificou-se,
justamente, o conflito com colonos e fazendeiros pela posse de outras terras reivindicadas
pelos indígenas como seus tekoha tradicionais (MURA, 2006, p. 85)138.
136
De acordo com BRAND, A. O Impacto da perda da Terra sobra a Tradição Kaiowá/Guarani, p. 73.
137
Segundo informação do Reverendo presbiteriano Benjamim Bernardes, Diretor da Missão Evangélica Caiuá,
quando da criação da Missão em 1928 a área de reserva indígena em Dourados contava com,
aproximadamente, 300 indígenas envolvendo as etnias Guarani e Kaiowá. Esse número é praticamente o dobro
do apontado por Girotto, cujos dados estão baseados em antigos relatórios do SPI onde consta próximo de 175
indígenas (Kaiowá), na TID, em 1929. Somente em 1937 esse número subiu para 356 Kaiowá somados aos 16
Guarani e 109 Terena, totalizando 481 indígenas. Conferir em GIROTTO, R. L. A Política Indigenista do
Estado Republicano junto aos índios da reserva de Dourados e Panambizinho na área da Educação
Escolar (1929-1968), p. 83. Como se vê, a presença Terena em uma reserva pensada, inicialmente, para ser um
aldeamento Guarani e Kaiowá já ocorre há muito tempo, o que sempre gerou conflitos, refletidos, atualmente,
nas Igrejas também. Segundo dados da FUNAI recolhidos pelo Instituto Socioambiental (ISA), em 2003 a TID
contava com, aproximadamente, 9.146 indígenas em relação às três etnias: Guarani, Kaiowá e Terena. Cf.
RICARDO, B. & RICARDO, F. (eds.). Povos Indígenas no Brasil. 2001 / 2005, p. 783. Todavia, sempre foi
unanimidade entre os interlocutores que participaram da pesquisa que culminou nessa tese afirmarem cifras em
torno de 12, 13 mil indígenas, pelo menos, na TID atualmente. O fato é que, com os processos de reserva e
redução da posse das terras tradicionais, a população indígena na TID aumentou consideravelmente ao longo
da segunda metade do século XX.
138
Para detalhamentos históricos sobre a formação dos povos Guarani, desde o período colonial das Conquistas,
ver o clássico “El Guaraní Conquistado y Reducido”, de Bartomeu Meliá (3.ed., 1993), além de Graciela
Chamorro em “Terra Madura” (2008, p. 33-50) e Fábio Mura no capítulo 1 e 2 de sua tese de doutorado
intitulada “À Procura do Bom Viver” (2006, p. 36-73). Sobre a história dos Guarani e Kaiowá contemporâneos
na região sul do atual estado de Mato Grosso do Sul, novamente a tese de Mura nos capítulos 3 a 5 (p. 74-101)
e a já citada tese de Antonio Brand, especificamente o capítulo 2 (1997, p. 50-133).
135
Essa última frase, no final do parágrafo anterior, instaura outro problema para os
indígenas, do tipo geracional. Se muitas famílias de indígenas Guarani e Kaiowá, ao longo do
século XX e início do século XXI, foram expropriadas de suas terras tradicionais e encerradas
em reservas, como no caso de Dourados, várias gerações de indígenas, tais como alguns que
conversei ao longo da pesquisa, já nasceram na TID. Isso significa que vivem a ambigüidade
de assumir como um “próprio” uma terra e experiências religiosas que, segundo as gerações
mais antigas, não permite viver a plenitude do modo tradicional, baseado na tradição de
conhecimento e ancestralidade das gerações mais antigas. Vários indígenas passam a ser
criticados, notadamente os mais jovens, por assumirem o que os mais tradicionais,
principalmente os anciãos, chamam de “karai reko”, ou seja, o “jeito de ser” não índio, o do
136
A TID hoje conta com duas aldeias: Jaguapirú e Bororó142. A presença de indígenas
Kaiowá é majoritária, concentrando-se muito na aldeia Bororó, mas não exclusivamente. Os
Guarani também estão presentes nas duas aldeias, com um contingente maior na aldeia
Jaguapirú. Os Terena concentram-se maciçamente também na aldeia Jaguapirú. Essa aldeia
apresenta uma peculiaridade, revelando uma das ambigüidades dos processos demarcatórios
de terras indígenas: a rodovia “Pedro Palhano” (MS-156), hoje duplicada, que liga as cidades
de Dourados e Itaporã, cruza a aldeia no sentido norte-sul. Isso potencializa o contato das
populações indígenas com os não-indígenas, aproximando ainda mais a TID da cidade
homônima. Basta uma breve caminhada nos limites territoriais da “face sul” das aldeias para
avistar, a olho nu, os prédios do entorno da cidade de Dourados, aproximadamente 5 (cinco)
Km de distância dessas aldeias, ou seja, muito próximo. Isso potencializa também, em
específico, a presença de Igrejas das mais diferentes denominações nestas aldeias, o que torna
139
Um de meus principais interlocutores que, atualmente, preside o conselho diretor da “Igreja Indígena
Presbiteriana” e é missionário da mesma, ao tentar implantar uma Congregação na aldeia Kaiowá de Guyra
Rokã, próxima ao município de Caarapó, mais ao sul de Dourados ouviu, justamente, do líder/cacique da
aldeia, que é um cabeça de parentela: “Você é índio rapaz! Como fica trazendo essa religião do branco pra
cá? Principalmente você que é índio!” Todavia, posteriormente, o líder indígena permitiu que iniciasse um
trabalho missionário cristão com as crianças indígenas daquela aldeia. Hoje existe uma das Congregações do
projeto da IIP na referida aldeia, principalmente depois que a esposa Kaiowá dessa liderança “converteu-se” ao
processo missionário cristão.
140
O antropólogo Levi Pereira analisa esse problema ao destacar importantes ambigüidades, tais como a relação
entre “tradicional e crente”, na fronteira com o pentecostalismo. Conferir em PEREIRA, L. M. A Conversão
dos Kaiowá ao pentecostalismo: alguns aspectos da inovação cultural, 2004. Todavia, Pereira parece
reforçar a “bipolaridade” afirmada quando, o que parecer existir é, na realidade, uma experiência religiosa de
“fronteira” com contornos não definidos. Maria de Lourdes Alcântara também o faz, focando mais a
experiência de jovens indígenas nessas fronteiras religiosas. Cf. ALCÂNTARA, M. de L. B. Jovens indígenas
e lugares de pertencimentos, 2007.
141
Não é possível deixar de reconhecer aqui que o problema da demarcação das terras indígenas no sul de Mato
Grosso do Sul implica na reelaboração, por parte dos indígenas, de aspectos econômicos, sociais, ecológicos e
das relações políticas, mas que extrapolam o objetivo e objeto dessa tese.
142
Faz parte também da TID a aldeia de Panambizinho localizada na área contígua ao distrito de Dourados
chamado Panambi que fica, aproximadamentre, a 18 Km da cidade de Dourados. Trata-se de uma terra
indígena de presença majoritária de Kaiowá, descontínua às aldeias de Dourados e que não entra nas
preocupações dessa tese.
137
mais complexo e intenso o trânsito religioso e a reconfiguração dos contatos interétnicos ou,
da maneira como está nomeado nesta tese, das fronteiras sincréticas e diacréticas.
Em seguida, três subseções serão focadas nesse capítulo: uma primeira e uma segunda
que irão “mapear” a leitura interpretativa da experiência cultural Guarani e Kaiowá em textos
referenciais da etnologia e também da teologia, desnudam um pouco as fronteiras de
mediação em relação à compreensão do que essa própria literatura chamou de a experiência
estruturante dos Guarani: sua religião. Em seguida, em uma terceira subseção, um breve
mapeamento e impressões hermenêuticas das múltiplas fronteiras cristãs presentes, hoje, na
TID, com destaque, a partir das fontes orais da pesquisa de campo para o estudo de caso aqui
proposto, ou seja, o projeto da IIP.
138
A compreensão sobre o tema da “religião” Guarani conta com uma vasta produção
bibliográfica, principalmente porque esses grupos indígenas constituem-se um dos mais
estudados pela literatura antropológica específica. Marco inicial para esses estudos é o
clássico “As Lendas da Destruição e Criação do Mundo como fundamentos da Religião dos
Apapocúva-Guarani” (Die Sagen von der Erschaffung und Vernichtung der Welt als
Grundlagen der Religion der Apapocúva-Guarani), de Curt `Nimuendajú` Unkel, texto
original de 1914. De fato, esse texto é considerado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de
Castro aquele que funda a moderna etnologia Guarani, tendo influenciado sobremaneira
grandes estudos posteriores, tais como os de Alfred Métraux, Egon Schaden, o casal Clastres
(Hélène e Pierre), o casal Grünberg (Friedl e Georg) e, porque não, os maiores guaraniólogos
paraguaios: Léon Cadogan e Bartomeu Meliá143.
143
Cf. VIVEIROS DE CASTRO, E. Nimuendaju e os Guarani. In: NIMUENDAJÚ UNKEL, C. As Lendas da
Destruição e Criação do Mundo..., p. xxvii.
144
Os Apapocúva (“Homens dos arcos compridos”,) segundo informa o próprio Nimuendaju, eram originários da
região do extremo sul do atual estado de Mato Grosso do Sul. Dispersaram-se, por conta do profetismo
migratório, em busca da “Terra sem Males”, por diversas regiões. À época, início da segunda década do século
XX, Nimuendajú testemunhava: “O número de Apapocúva monta hoje a seiscentas e cinquenta cabeças. Deste
total, duzentas estão no Iguatemi em Mato Grosso; outros tantos, ao lado dos Oguauíva e de alguns Kayguá, na
reserva do Araribá em são Paulo; cerca de cem no rio das Cinzas, no Paraná; uns setenta no Potrero Guaçu em
Mato Grosso e uns quarenta na foz do Ivahy no Paraná”. Cf. NIMUENDAJÚ UNKEL, C. As Lendas da
Destruição e Criação do Mundo..., p. 15.
139
145
Nimuendajú inicia o capítulo 3 de seu texto, especificamente sobre a religião Guarani, afirmando: “Se neste
capítulo vejo-me ocasionalmente obrigado a falar em “cristãos”, não estou com isso me referindo aos poucos
missionários que vieram ter com os índios, mas àquela classe do povo brasileiro com quem os Guarani mantém
um contato quase exclusivo. Essa gente afirma de si ser cristã; por isso, assim a chamarei. A estúpida
presunção religiosa destes cristãos chega a tal ponto, que só reconhecem como seres humanos seus
140
O que não foge ao escopo desta tesa é a seguinte pontuação: nessa perspectiva,
dificilmente Nimuendajú caracterizaria a religião Guarani como sincrética. Primeiro, porque
as próprias teorias e a terminologia “sincretismo” eram muito exíguas na ainda em formação
antropologia brasileira do início do século XX. Mais ainda, pelos motivos apresentados
anteriormente, porque Nimuendaju não admitiria que elementos heteróclitos e, principalmente
cristãos, por serem olhados a partir de seus efeitos deletérios, pudessem manter uma
“coexistência sincrética” com a religião nativa. Quando muito, se pudesse fazer uma releitura
retroativa, hipoteticamente Nimuendajú leria o sincretismo como uma “máscara colonial”
(conforme o primeiro capítulo) para “disfarçar” a religião tradicional e resistir ao poder da
conquista. É o que parece sugerir, em uma fina ironia, quando afirma: “[...] quando o visitante
espirra [o cristão], ele [o Guarani] diz: “Deus lhe ajude!”; antes de cada frase ele [o Guarani]
exclama: “Nossa Senhora”!; de tal forma que, envergonhada, a visita é obrigada enfim a
reconhecer que estes animais desgraçados têm feito progressos notáveis no tornar-se gente”
(UNKEL, 1987, p. 28). Percebe-se, também, a crítica de Nimuendajú à leitura fortemente
evolucionista ainda muito presente em análises históricas e antropológicas de seu tempo.
correligionários, considerando o assassinato de um índio pagão tão pouco criminoso quanto a matança de um
animal” Cf. NIMUENDAJÚ UNKEL, C. As Lendas da Criação e Destruição do Mundo..., p. 27.
141
Certamente que não há espaço nessa tese para rediscutir todos os clássicos da
etnologia Guarani. Até porque isso contaria com as profundas limitações do autor da tese.
Todavia, na composição do quadro hermenêutico proposto, o nome de Egon Schaden torna-se
também referência, justamente porque representa a compreensão da religião Guarani a partir
da noção clássica da “aculturação”, auge das discussões etnológicas no Brasil entre os anos 50
e 70. Testemunha disso é o seu clássico “Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani”, cuja
primeira edição consta de 1954146 e, dez anos depois (1964), a publicação do texto
“Aculturação Indígena”, cujo subtítulo já denuncia seu método: “Ensaio sobre fatores e
tendências da mudança cultural de tribos índias em contato com o mundo dos brancos”.
Neste último texto ele dedica um capítulo inteiro à aculturação religiosa dos Guarani, ao
retomar aspectos já trabalhados no primeiro texto (“Aspectos Fundamentais...”). A religião,
enquanto um aspecto da cultura, torna-se “o” aspecto a partir do momento que se apresenta
como a estrutura onde verifica-se a maior resistência dos povos Guarani ao intenso processo
de “destribalização” a que foram submetidos, destribalização essa geradora de uma grande
desestabilização do ethos social tradicional desses povos indígenas.
146
Para compor sua análise em “Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani”, dentre outros locais, Schaden fez
incursões de campo, como ele mesmo testemunha, na região sul de Mato Grosso (hoje, Mato Grosso do Sul),
no período de 1949 a 1951. Visitou aldeias nas localidades de Panambi, Amambai, Taquapiri e, principalmente
Dourados onde, afirma, ficou o maior tempo ininterruptamente: cerca de um mês. Nessa época Schaden
contabilizava cerca de 548 indígenas na reserva de Dourados. Destacava a depopulação indígena nessa reserva
por conta de doenças, tais como a tuberculose, além da influência crescente do Cristianismo sobre os Ñandeva
e Kaiowá através, principalmente, da ação catequética da “Missão Protestante” (no caso, a “Missão Evangélica
Caiuá”). Cf. SCHADEN, E. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani, p. 9. Como se vê, passados quase
60 anos, o processo de “depopulação” indígena foi revertido e não há problemas mais tão significativos com a
tuberculose. As ações missionárias cristãs aumentaram para além das ações da Missão Caiuá.
142
no contato cultural; 2. relação de “dupla face”: ao mesmo tempo que se perde elementos da
cultura, por um lado, ganha-se na permanência e reforço de elementos essenciais, por outro,
responsáveis pelo núcleo de resistência ao processo aculturativo, ainda que o preço a ser pago
pela resistência seja um longo processo de reinterpretação, por parte dos indígenas, de
elementos da cultura exógena (no caso, a cristã). Essa “reinterpretação” faz da aculturação, no
campo religioso, um processo mais lento (quando comparado a outros campos da cultura, tais
como a economia, ecologia, arquitetura material, dentre outros). Assim, Schaden postula
algumas “fases” nesse processo aculturativo: 1. Integrativa, onde é aceito elementos religiosos
estranhos (cristãos) mas sem o “conteúdo religioso” original, em função do atendimento de
necessidades mais imediatas, principalmente no campo da saúde e da economia; 2. Através de
analogias de forma, aceitam-se elementos religiosos heteróclitos mas reinterpretados nos
termos do sistema religioso indígena; 3. Decisivamente, o sistema religioso tradicional é
reconfigurado pela predominância de elementos religiosos a ele integrados (SCHADEN,
1969, p. 116-7; 1974, p. 145-6). Esta última fase, a da “reconfiguração”, segundo Schaden, é
mais observada em grupos indígenas que passaram e passam por um prolongado e intenso
processo de contato cultural com a sociedade nacional não-indígena.
Caso seja possível falar de “sincretismo” nessa proposta aculturativa, seria esse
sincretismo, quando muito, uma fase dentro do processo aculturativo mais amplo. Todavia,
uma fase nomeada por tipologias descritivas conforme o momento empiricamente observado:
assimilação, paralelismo de formas e uma acomodação147. Sobraria um indígena aculturado
que, no final das contas, parece não dar conta das reais ambigüidades e do protagonismo
inventivo desses mesmos indígenas, atrelados a um processo interpretativo que, no final, não
depende deles, mas das condições impostas pela religião cristã, no caso.
147
Em 1968, 14 anos após o texto de Schaden (“Aspectos Fundamentais...”), vem à lume o texto clássico do
antropólogo e educador Darci Ribeiro, “Os Índios e a Civilização”. Mesmo que proponha a noção de
“transfiguração étnica” para interpretar os processos de integração dos povos indígenas à sociedade nacional,
Ribeiro faz uma análise crítica do problema da aculturação, ainda em voga em sua época. Ribeiro critica o
perigo de levar os processos aculturativos a desembocar em uma total assimilação do indígena à sociedade
nacional. Mesmo que se possa falar em aculturação, e por mais intenso que seja o processo de “ruptura do
ethos tribal”, há uma capacidade transfigurativa, ou seja, uma permanência dos grupos indígenas como
entidade étnica. Em Ribeiro não se pode falar da estrutura religiosa como o maior foco de resistência às
transformações sociais, uma vez que não é somente a identidade religiosa que define a identidade étnica de um
grupo, mesmo de indígenas fortemente centrados na estrutura religiosa como os Guarani. Para Ribeiro, o
indígena, nos processos aculturativos, deixa de ser indígena em várias dimensões que constroem a identidade
étnica. Por isso, prefere falar de “acomodações sucessivas” no processo de transfiguração, onde o indígena
continua indígena, não mais como indígena tribal, mas como “indígena genérico” e “indígena nacional”. Cf.
RIBEIRO, D. Os Índios e a Civilização, p. 475ss. Darci Ribeiro não tematizou a categoria do sincretismo,
embora em “O Povo Brasileiro” (primeira edição de 1995), use o termo em um sentido adjetivado para
qualificar positivamente a dinâmica diferenciadora da etnia nacional em relação às suas matrizes formadoras,
“[...] singularizada pela redefinição de traços culturais dela oriundos”. Cf. RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro, p.
17.
143
148
Vale lembrar que o período histórico abordado por Schaden, em relação à reserva de Dourados, comporta os
processos de desagregação social causado pelas frentes de expansão agrícola nacional, tal como afirmado na
seção 3.1. deste capítulo.
144
Porém, esse tipo de leitura ainda aguarda maiores matizações e reflexões quando se
pensa a religião/religiões Guarani e Kaiowá, principalmente em contextos onde dificilmente
se percebe identidades calcadas em “binarismos” e, sim, identidades construídas a partir e
com a experiência fragmentária de muitos “outros”, como no caso da TID. Vale à pena
lembrar aqui as palavras do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro quando afirma que o
“outro” nunca é um espelho, mas um destino150. Michel de Certeau, provavelmente, pensaria
da mesma forma.
149
Como exemplo, a leitura “pós-colonial” dos estudos culturais de Homi K. Bhabha que têm influenciado a
antropologia das “etnias de fronteira”. Para Bhabha, “O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com
„o novo‟ que não seja parte do continuun de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato
insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente
estético; ela renova o passado, refigurando-o como um „entre-lugar‟ contingente, que inova e interrompe a
atuação do presente. O „ passado-presente‟ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver”. Cf.
BHABHA, H. K. O Local da Cultura, p. 27. Já há uma menção a alguns teóricos do chamado “Estudos
Culturais” na subseção 2.1.1. do segundo capítulo desta tese.
150
Cf. VIVEIROS DE CASTRO, E. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In:
VIVEIROS DE CASTRO, E. A Inconstância da Alma Selvagem, p. 220. Devo a localização dessa citação a
ALCÂNTARA, M. de L. B. Jovens Indígenas e lugares de pertencimentos, p. 29.
151
Para o tema do suicídio entre os indígenas Kaiowá nas aldeias do cone sul do Mato Grosso do Sul, no início
dos anos 90 do século passado, não restrito aos jovens, veja-se o importante texto da historiadora Marina
Wenceslau intitulado “O Índio Kayowá: Suicídio pelo Tekowá” (1994), fruto de sua tese de doutorado.
145
convivência intensa com a cidade, esses jovens negociam, o tempo todo, suas identidades [...]
Vivendo o in between como um local em que novas estratégias de negociação cultural estão
sendo forjadas” (ALCÂNTARA, 2007, p. 72-3). Por viverem in between os jovens indígenas,
ao relerem especificamente suas experiências religiosas, vão concebê-las, segundo Alcântara,
entre/na fronteira híbrida formada por fragmentos cristãos e indígenas 152. De certa forma
Alcântara é devedora dos grandes clássicos da etnologia Guarani que apresentam a religião
como o grande elemento estruturador da vida social desses mesmos povos Guarani. Essa
autora chega a afirmar que a religião é o fato social total (em um acento maussiano), ou seja,
permeia toda a cultura Guarani, tornando-se “[...] elemento fundamental de diálogo cultural
que determina a concepção de alteridade” (ALCÂNTARA, 2007, p. 29).
A partir dessas críticas não fica difícil entender que a noção de sincretismo, para
analisar os contatos interreligiosos entre os indígenas Guarani e Kaiowá atuais, não aparece
nos textos de Brand e Vietta. Não aparece porque o sincretismo acaba tomando um acento
negativo, uma vez que relaciona-se à “valorização” de elementos estranhos ao universo
Guarani e Kaiowá “misturados” com o que restou de elementos nativos, quando o interesse é
“recuperar”, na realidade, esses elementos para valorizar uma suposta identidade perdida. Isso
até leva Brand e Vietta a reconhecer que as missões cristãs, sejam pentecostais ou não,
contribuem para recompor o universo de sentido perdido, mas o fazem superficialmente
(BRAND & VIETTA, 2004, p. 262).
2004, p. 16-7). Ao enfatizar a compreensão das relações sociais a partir das próprias
categorias nativas, Pereira traz para o primeiro plano (no capítulo 4 de sua tese), o papel da
religião na composição dessas relações sociais. A religião passa a ser vista como o grande
sistema estruturador das relações sociais, justamente porque a cosmologia Kaiowá é
profundamente uma “antropologia”. Isso significa a capacidade de humanizar todos os
espaços também “naturais”. Assim, todos os seres da natureza são também “humanos” e as
relações que acontecem na realidade “espiritual” são relações profundamente humanizadas,
socializadas, evidenciando complexas relações sociais que tornam-se referência para o bom
modo de se viver (o “teko porã”). Nesse caso o assento da análise posto no xamanismo torna-
se recorrente em Pereira, justamente porque esse agente religioso (o xamã/rezador) conhece
toda a “cartografia” celestial, todos os caminhos entre o mundo humano dos humanos e o
mundo “humano” da natureza e das divindades, podendo fazer as devidas correlações de
sustentabilidade social que define a identidade tradicional do grupo (PEREIRA, 2004, p. 241).
Em conversas realizadas no final do ano de 2007 com o autor desta tese, Pereira
retomava a discussão sobre o sincretismo religioso como categoria analítica para tentar
compreender a experiência religiosa dos indígenas Guarani e Kaiowá na TID. Enfatizava a
noção de “caos” para caracterizar a TID ao postular a hipótese de que o sincretismo poderia,
na realidade, ser a confissão radical do “sem sentido” na busca de sentido religioso em meio
ao caos afirmado. Todavia, Pereira enfatizava muito, como ponto de partida teórico, as
compreensões de sincretismo oriunda dos anos 70, especificamente atreladas às idéias de
aculturação indígena postuladas por Schaden. Assim, postulava que o sincretismo também
poderia ser visto como um foco de resistência aos processos aculturativos, onde o assumir
traços da experiência cristã, “misturadas” com a cosmologia tradicional, estava em função da
resistência afirmada. Todavia, deixava a questão em aberto.
Ao fazer esse breve percurso teórico sobre como algumas leituras etnológicas lançam
seu olhar interpretativo sobra o tema da religião Guarani, procurou-se uma aproximação
dessas mesmas leituras para com a questão do sincretismo religioso. Em seguida, na
continuidade das discussões teóricas que iniciam este capítulo, haverá o exercício de
construção de outro breve percurso: o teológico.
153
Dois estudos antropológicos de Pereira para subsidiar tecnicamente o processo de demarcação de terras
indígenas no sul de Mato Grosso do Sul foram publicados: O primeiro, a já citada obra “Os Terena de Buriti”.
A segunda, especificamente sobre uma comunidade Kaiowá, texto produzido conjuntamente com o historiador
e arqueólogo Jorge Eremites, intitulada “Ñande Ru Marangatu: laudo antropológico e histórico sobre uma
terra Kaiowá, na fronteira do Brasil com o Paraguai, município de Antônio João, Mato Grosso do Sul”.
Ambos os textos foram publicados em 2009 pela editora da Universidade Federal da Grande Dourados -
UFGD, onde os autores são professores titulares.
149
154
Pompa toma este termo de Serge Gruzinski em sua obra “La pensée métisse” (“O Pensamento Mestiço”), de
1999.
155
Citação essa que já aparece na Introdução da Tese.
150
156
Para maiores informações biográficas e da produção intelectual de Marzal conferir no site:
<http://www.webpages.ull.es/users/fradive/confe/marzal>. Acesso: 20 de abr. 2006.
157
MARZAL, M. A Religião Quéchua Sul-Andina Peruana. In: MARZAL, M. (org.). O Rosto Índio de Deus,
p. 198.
152
A partir dessas idéias é possível levantar algumas questões para a análise. Estaria
Marzal sugerindo que o sincretismo é uma “repaginação” do conteúdo cristão frente a novas
formas culturais indígenas? Não seria isto mais inculturação do que sincretismo propriamente
158
Não há o objetivo de fazer amplas discussões sobre o tema da Inculturação nesta tese. É possível remeter a
três textos que podem ser úteis: SUESS, P. (org.). Culturas e Evangelização, 1991; SUESS, P. Evangelizar a
partir dos projetos históricos dos outros. Ensaio de Missiologia, 1995; FORNET-BETANCOURT, R.
Religião e interculturalidade, 2007. Fornet-Betancourt, por exemplo, reconhece a importância do conceito de
inculturação para a própria renovação da Teologia em “[...] universalizar a fé cristã de maneira culturalmente
diferenciada”, mas torna-se muito crítico a esse conceito por ainda enxergar no mesmo uma ação interventora
do Cristianismo nas culturas onde “[...] essas são mais objetos de transformação que como sujeitos em
igualdade de condições e direitos de interação”. Cf. FORNET-BETANCOURT, R. Religião e
Interculturalidade, p. 40; 42.
153
dito? Poderíamos imaginar que esta compreensão de sincretismo aproxima-se do exposto pelo
teólogo Antonio Magalhães, uma vez que esse autor afirma o sincretismo como o “produto
final” de um processo de anúncio numa mediação cultural específica (o que caracterizaria a
inculturação). Mas este produto final gera novos “começos”, novos processos, nunca
acabados159. Ainda mais que esse sincretismo foge do controle, tanto do missionário, quanto
do receptor da mensagem: “[...] Deste confronto/diálogo surge uma reelaboração da
mensagem cristã a partir de mudanças, não somente nas suas formas, mas também nos seus
conteúdos”160. A possível crítica elaborada é: a alteridade indígena se justifica nos processos
de inculturação somente na capacidade que os mesmos têm de entenderem a fé cristã dentro
de seu universo simbólico, pois é o cristianismo, no final das contas, que toma a iniciativa e
inicia o movimento, não tendo maiores preocupações com o fato de que o próprio cristianismo
é afetado e reelaborado pelas religiosidades indígenas. Haveria ainda, no pensamento de
Marzal, um sacrifício de sua “dialética sincrética” no altar do dualismo sujeito (igreja e
missionários cristãos) versus objeto (religiões e culturas indígenas não cristãs)? Haveria ainda
resquícios de pensamento dicotômico entre religião cristã e cultura que coloca, por sua vez, o
Evangelho como uma realidade que chega “de fora” da própria cultura?161 São análises
perspectivas que ajudam a entender melhor que tipo de método teológico Marzal constroi.
De toda forma é salutar destacar que Marzal se esforça para trazer para a discussão
epistemológica e prática/teológica a noção de sincretismo entre as culturas indígenas e o
cristianismo. Não se deve diminuir esse mérito, principalmente porque não são muitos que
procuram fazer esse diálogo específico. Mas é importante insistir que o cristianismo que
encontra as culturas indígenas são vários, ou seja, cristianismos. O inverso também se
verifica: quando os muitos catolicismos e protestantismos encontram os Quéchuas ou
qualquer outra cultura indígena sul-americana, não é possível que já encontrem estes
indígenas elaborando seus “sincretismos e diacretismos” nos seus processos religiosos e
culturais? E as “faces cristãs” que encontram estas culturas indígenas não chegam, pelo
menos em parte, “sincretizadas e diacretizadas”? As relações sincréticas e diacréticas não se
reduzem à interação e/ou “produto final” entre dois sistemas religiosos que, antes do contato,
159
Para as ideias de Magalhães acerca da interpretação teológica do sincretismo religioso ver o primeiro capítulo
desta tese em sua seção 1.3.
160
MAGALHÃES, A. C. de M. Sincretismo como tema de uma teologia ecumênica. In: Estudos de Religião.
São Bernardo do Campo: UMESP, ano XII, n. 14, julho de 1998, p. 68.
161
Seria sintomático que em sua obra “O sincretismo iberoamericano” após, na terceira parte, trabalhar com o
sincretismo religioso em perspectiva antropológica, Marzal chega ao ponto teológico que realmente parece lhe
interessar, na última parte da obra, que é a discussão da inculturação da fé no nível das crenças, ritos,
organização e conduta ética das religiosidades por ele analisadas: comunidades andinas, mayas e afro-
brasileiras. Estaria o sincretismo visto em função ou preparação para o advento da inculturação?
154
eram estanques e “monolíticos”. Quem sabe as relações sincréticas e diacréticas, para resgatar
questões do primeiro capítulo, tornam-se metáforas, na ordem do discurso significativo, para
traduzir condições humanas religiosas em movimento que, desde sempre, enxergaram-se
múltiplas. Conquanto tenha sua valia, Marzal não deixa de estar situado em “quadros
tipológicos” que caracterizam o fenômeno sincrético, bem comum em análises
antropológicas. Para cobrir a complexidade e especificidade das interações religiosas, nomeia-
se o sincretismo de “paralelismo”, “justaposição”, “síntese”, “adição”, “fusão”, “bricolagem”,
“marronização”, “hibridação” e outros conceitos dentro desta “dança das metáforas”
(conforme o primeiro capítulo da tese), algumas destas metáforas utilizadas por Marzal.
Muito embora essas metáforas podem traduzir, também, as disjunções e rupturas típicas do
que se nomeia por diacretismo. Esses tipos são importantes, afinal, na citação do antropólogo
Sergio Ferreti:
Embora, para o autor desta tese, haja dificuldades com essa idéia de “síntese
integradora” em se tratando de sincretismo, é plausível utilizar os conceitos acima para
caracterizar a complexidade das interações de “conteúdos (e não apenas formas) de diversas
origens” que expressam profundas ressemantizações de sentido, de acordo com o que afirma
Ferretti.
162
FERRETTI, S. F. Sincretismo Afro-Brasileiro e Resistência Cultural. In: CAROSO, C. & BACELAR, J.
(orgs.). Faces da Tradição Afro-Brasileira. Religiosidade, Sincretismo, Anti-Sincretismo, Reafricanização,
Práticas Terapêuticas, Etnobotânica e Comida, p. 114.
155
Assim, traçando analogias temáticas com a teologia cristã, Chamorro vai construindo
seu exercício dialógico. Porém, é preciso perguntar “qual” teologia Guarani da palavra ela faz
referência. A resposta possível está relacionada com as experiências de fé míticas e ritualizada
das diversas parcialidades Guarani, nomeadamente: Kaiowá, M‟byá e Ñandeva. Certamente
que a “teologia da palavra” é um importante fio condutor para a compreensão das diversas
experiências religiosas destes grupos Guarani. Todavia, mesmo sendo Guarani, é preciso
pensar nas muitas especificidades que estes povos guardam hoje e em contextos amplamente
diferenciados, principalmente após séculos de enfrentamentos coloniais. Assim, é necessário
ser mais problematizado a possibilidade do paradigma da “sistematização teológica” aplicado
às interpretações que estes indígenas têm de sua relação com o sagrado a quem eles devotam
suas relações de sentido. Por exemplo: ao pensar, principalmente, nos tipos de teologias que
podem surgir do encontro entre os Guarani e Kaiowá e os pentecostais atualmente
(principalmente porque são grupos muito disseminados e fragmentários dentro da TID), é
possível pensar que estas aproximações ocorrem, também, porque as interpretações dos dados
de fé “revelados” são fugidios, cheios de equivocidades, escapando a certos enquadramentos
sistematizadores.
Sem dúvida que, na reflexão sobre o “outro” na citação, Chamorro tenta, de forma
importante, resguardar sua alteridade e riqueza própria. O que ela chama de atitude
“paralelista” ou “pluralista” é o reconhecimento teológico de que todas as religiões conduzem
ao absoluto165. Cada uma das experiências religiosas é plenamente dotada de condições
salvíficas sem a chancela cristã. Isso vale para as experiências religiosas indígenas. Ao citar o
teólogo indiano Michael Amaladoss em seu texto intitulado “O pluralismo das religiões e o
significado de Cristo”, Chamorro afirma que todas as religiões são “teocêntricas” (incluindo
as indígenas). Nessa perspectiva o absoluto é nomeado pelo “theós”. Ainda que este termo
possa ter caráter mais vago, o que não é o caso das nomeações das divindades indígenas, não
parece aqui surgir certa “nostalgia” das nomeações sagradas de corte mais cristão? E o
sincretismo e diacretismo, conseguem lidar bem com os “centrismos”? É possível ilustrar a
linha de pensamento afirmada com o seguinte raciocínio da própria autora: partindo do fato de
que a “teologia guarani” é uma profunda reflexão sobre a vida e sobre o ser humano na sua
significação divina166, o que parece muito correto e desafiador, a “palavra” guarani, o dizer
como existência-evento/acontecimento é:
Parece que esse esforço de “integração das divindades” seja menos dos indígenas e
mais do discurso teológico em questão construído pela referida teóloga. Amparando-se em
Paul Tillich ela vai afirmar que “Deus” é o nome que damos a tudo aquilo que nos preocupa
de forma última, incondicional. Assim, uma afirmação é teológica se coloca a pergunta
165
Pelo menos enquanto experiência de sentido e não “absoluto”, necessariamente, enquanto “ser”, como uma
“substância hipostatizada” da realidade.
166
Há uma inspiração marcante aqui nas ideias de Bartomeu Meliá quando este afirma: “Não seria cada guarani,
no estado atual em que o vemos se desenvolver religiosamente, uma „consciência de divindade‟, verdadeiros
„homens-deuses‟?”. Cf. MELIÀ, B. A experiência religiosa Guarani. In: MARZAL, M. (org.). O Rosto Índio
de Deus, p. 334.
158
decisiva sobre nossa existência. Logo, os nomes das divindades indígenas são “metáforas”
que tentam representar (Tillich diria „simbolizar‟) o fundamento, a substância, o incondicional
que se “esconde” atrás das formas culturais. Chamorro afirma, também, que as divindades
indígenas não perdem sua identidade própria para uma divindade exclusivista, pois elas estão,
metaforicamente, em uma relação “pericorética”, interativa, a modo da teologia das relações
trinitárias de Jürgen Moltmann167. Conquanto deva haver o reconhecimento, de forma muito
significativa, da linguagem metafórica como expressão das vivências religiosas indígenas,
Chamorro tem todo o direito de partir destes referenciais teológicos cristãos. Mas a questão é
a seguinte: é possível que ela, no final das contas, retorna para uma proposta inclusivista, pois
termina atestando as teologias guarani segundo paradigmas teológicos cristãos? É o que
parece quando, à pergunta “que teologia?” ela se ampara, além dos teólogos citados
anteriormente (Tillich e Moltmann), em Leonardo Boff, Karl Rahner e Rosemary Ruther.
Assim, a pergunta que poderia ser feita a Chamorro é: até que ponto esses teólogos e teólogas
vão além de um inclusivismo se estão centrados no evento Cristo? No plano da construção do
discurso a fim de interpretar as experiências religiosas, quem inclui quem? Novamente a
questão da alteridade é posta em relevo.
Por outro lado, na análise é possível perceber que Chamorro tem uma leitura muito
implicada pelas causas indígenas, suas lutas e possibilidades, a ponto de enxergar na teologia
guarani as “chaves hermenêuticas” esquecidas (os “elos perdidos”) por uma teologia cristã
que, nas suas prisões dogmáticas, fechou portas “[...] pela intolerância e por um certo tipo de
teologia que fortaleceu um cristianismo autocompreendido como organização eclesiástica
monocultural e agressiva” (CHAMORRO, 1998)168. É certo que esse tipo de cristianismo
opressor jamais se colocará em uma autêntica escuta e participação para com a riqueza
167
Para o teólogo alemão Jürgen Moltmann a pericórese, termo grego que pode ser traduzido por
“interprenetração”, “envolvimento recíproco”, caracteriza as relações trinitárias entre o Pai, o Filho e o Espírito
Santo, bem como as relações desse Deus trinitário com toda a sua Criação. Procurando superar leituras
subordinacionistas e modalistas da Trindade que tem, por sua vez, como ponto de partida a unicidade
metafísica de Deus, Moltmann parte da idéia de diversidade como constitutiva da divindade. Todavia, para não
recair em uma leitura “triteísta” da divindade, o que macularia a leitura monoteísta do Cristianismo, Moltmann
afirma que a diversidade não elimina a unidade essencial entre as pessoas da Trindade mantida pelo vínculo do
amor. De acordo com o próprio teólogo: “Nós seguimos a teologia joanina e aceitamos a pericórese recíproca
do Pai e do Filho e do Espírito como imagem original de todas as relações na criação e na salvação que
correspondam à relação divina (Jo 17,21). [...] Consequentemente, também não entendemos a relação do Deus
uno e trino para com a criação do seu amor como sendo uma relação unilateral de domínio, mas, com vistas à
riqueza desse amor eterno, como uma relação de comunhão polilocal e assim então também recíproca.” Cf.
MOLTMANN, J. Deus na Criação. Doutrina Ecológica da Criação, p. 368.
168
O que pode (e não necessariamente deve) engendrar uma utopia sem fundamento, pois pode mascarar os
conflitos, muitas vezes violentadores a que esses grupos indígenas foram submetidos. A não ser que sejam
analisadas mais detidamente as táticas e estratégias indígenas que os levam a construir essas chaves
hermenêuticas diante de grupos hegemônicos como os cristãos.
159
religiosa dos povos Guarani. Também é digno de nota o esforço da referida teóloga em
destaque para mostrar que não é somente a religião Guarani que se enriquece com o
Cristianismo, mas o contrário também se verifica. Todavia, será que não há o risco oposto, ou
seja, que a alteridade teológica cristã fique “tutelada” pela teologia Guarani? Em outras
palavras: o cristianismo somente recuperará o que aparentemente lhe é próprio se passar pela
“depuração” da teologia indígena? Não se insiste ainda em uma dicotomia entre teologia
cristã e Guarani? O sincretismo e o diacretismo não são uma possibilidade epistemológica de
superar essa dicotomia, de ressignificar esses aspectos? Claro que toda produção teológica
depende, também, das condições históricas e políticas de sua produção. Nesse sentido mais
concreto e prático não é possível pensar uma teologia cristã, qualquer que seja, “tutelada” por
“teologias Guarani”, uma vez que, historicamente, o Cristianismo, em relação às religiões
indígenas, sempre foi hegemônico e dominante. O que se quer dizer com a crítica posta, em
outras palavras, é o seguinte: nos termos de uma hermenêutica teológica, o cristianismo
somente recuperará o que aparentemente lhe é próprio (experiência do respeito, do diálogo, da
reciprocidade e solidariedade) se passar pela “depuração” de uma teologia indígena? É
preciso ficar mais claro quando propostas inclusivistas e “paralelas” significam horizontes de
diálogo interpretativo ou se convertem em uma mea culpa por séculos de dominação
religiosa.
É importante concordar parcialmente com Chamorro quando ela afirma que, nos
vários séculos de colonização cristã frente aos povos indígenas Guarani, somente estes
últimos estavam interessados no diálogo. A concordância é parcial porque é possível enxergar
que várias comunidades Guarani, seja no período colonial, sejam em períodos considerados
“pós-coloniais”, também não estiveram interessadas nesse diálogo. Todavia, este
“desinteresse” não deve ser visto de forma necessariamente depreciativa das comunidades
indígenas, pois pode muito bem traduzir criativas reações a muitas imposições a que essas
mesmas comunidades foram submetidas. Chamorro enfatiza bastante certa “positividade” da
religião Guarani que “nubla” um pouco as ambigüidades religiosas destes povos. Assim, em
uma raríssima menção ao termo, ela afirma que é necessário que o cristianismo reconheça e
assuma as “práticas sincréticas que estão na sua própria origem”, a fim de que se estabeleça o
diálogo (CHAMORRO, 1998, p. 198). A pergunta direta é: somente o cristianismo deve
reconhecer seu “fundamento” e práticas sincréticas? E a religião Guarani, não deve ser
enxergada nessa perspectiva sincrética também? Chamorro não desenvolve esse aspecto,
muito embora reconheça o sincretismo nas origens da formação do Cristianismo, o que não é
160
pouca coisa, ainda que não extraia maiores implicações dessa afirmação. É possível que
estimule essa tarefa em seus leitores e leitoras. Reconhecer uma “originalidade sincrética”
(acrescentaria, diacrética) implica, por exemplo, no reconhecimento de que os múltiplos
contatos interculturais e religiosos se fazem muito mais que no reconhecimento das diferenças
de alteridade, mas de uma “alteridade das diferenças”, de que a experiência religiosa é, em
seu âmago, uma privilegiada testemunha.
Para finalizar, parece que o sincretismo (se mais descritivo, como em Marzal, se mais
“adjetivado”, como em Chamorro), nessa breve “amostragem” teórica nesta subseção, não
encontra maior espaço em uma antropologia e teologia da religião indígena. Nesses autores a
categoria de sincretismo possui autonomia epistemológica, no máximo, para subsidiar o que
realmente interessa: referendar processos de inculturação da fé (Marzal) ou como
“preparação” para uma atitude de “incluir” temas clássicos da teologia cristã como referência
última para o diálogo com a tradição Guarani (Chamorro). Um ñande reko (que significa
“jeito de ser”) Guarani “sincrético”, pelo menos hoje, pode até ser pressuposto por este autor
e autora, mas será “superado” por análises que rejeitam o sincretismo como categoria
epistêmica própria, em função das categorias classicamente consagradas (inclusivismo e
pluralismo), do ponto de vista teológico. Após essas discusões teóricas, encaminha-se a
última subseção da primeira seção do referido capítulo: uma apresentação panorâmica do
estudo de caso que informa a parte final dessa tese: o contexto vivencial do projeto da IIP.
3.1.3 Espaços e lugares da Igreja Indígena Presbiteriana: breve cenário da pluralidade cristã
na Terra Indígena de Dourados
169
Em uma perspectiva etnográfica é interessante fazer um estudo, dentro de uma antropologia das missões
cristãs, como os indígenas ressignificam os termos “crente” e “irmão”, segundo a lógica dos termos de
parentesco próprios ao seu universo cultural tradicional. O que há aqui é a apropriação, em ato, de novos
termos de parentesco na ordem de discurso desses indígenas. Assim, todas as relações dentro da família
extensa, principalmente com o cabeça de parentela, passam por novas compreensões quando a idéia de
“crente” e “irmão” torrna-se um dos critérios para definir o papel das lideranças envolvidas.
170
O termo guarani Tapeporã pode significar “Caminho bonito, belo”.
171
O encontro com o Reverendo Benjamim Bernardes ocorreu no primeiro semestre de 2010. O pastor indígena
Ângelo Massi pertencia à denominação Batista. Mas seu trabalho era independente, ou seja, sem o apoio
formal das Juntas Missionárias da referida denominação. Ainda hoje há parentes do pastor Ângelo que residem
na aldeia Jaguapirú, em Dourados.
162
172
Thomaz de Almeida menciona os trabalhos do Conselho Indigenista Missionário - CIMI, pertencente à Igreja
Católica, que possui uma sede regional na cidade de Dourados e a já citada “Missão Tapeporã”. Cf. THOMAZ
DE ALMEIDA, R. F. Do desenvolvimento comunitário à mobilização política..., p. 32.
173
Em referência ao texto e expressão do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, não obstante o sentido dado
por Viveiros de Castro, como metáfora para a sua teoria do “perspectivismo ameríndio”, foge à conotação dada
por Thomaz de Almeida.
163
A partir dessas reflexões é importante voltar a análise, agora, para a presença mais
específica das várias faces cristãs na TID. Ao comparar os dados de campo de Alcântara
(2007) e Chamorro (2009) com os do auto dessa tese oriundos de várias inserções na TID ao
longo do processo da pesquisa, é possível delinear quadros demonstrativos da presença da
pluralidade cristã dentro das duas aldeias, Jaguapirú e Bororó174. Ao observar esses quadros é
possível constatar algumas características e tendências importantes. Vejamos:
174
Veja-se, no Anexo, os quadros 1 e 2. Sobre a relação dessas Igrejas nos quadros em anexo, agradeço aos
indígenas Jayson Souza e Nilcimar Cabrera por me disponibilizarem esse trabalho de levantamento das Igrejas,
164
A. A maior parte das Igrejas são de tradições pentecostais. Essas tradições mostram
alguma variabilidade de Igrejas independentes das mais diferentes nomenclaturas,
embora com certa prevalência da Igreja Pentecostal “Deus é Amor”;
D. Vários nomes de Igrejas repetem-se. Isso ocorre, principalmente, com a Igreja “Deus é
Amor”. Em conversas com interlocutores indígenas é possível constatar que algumas
dessas Igrejas já é fruto do trabalho de outras Igrejas existentes dentro da aldeia, não
sendo uma implantação necessariamente exógena ao limite territorial da TID. Isso será
observado com mais detalhes em relação, especificamente, a algumas Congregações
da IIP que nasceram como projeto autóctone, por exemplo, a “Congregação Hebrom”.
De fato, algumas dessas Congregações, embora tenham sido incorporadas ao projeto
da IIP não surgiram, necessariamente, a partir do referido projeto;
a partir do trabalho desenvolvido por eles e outros indígenas na Ong “Ação de Jovens Indígenas de Dourados –
AJI”. Isso possibilitou comparar com os meus próprios dados de pesquisa coletados por mim no campo. Fica o
registro.
165
E. Observa-se que grande parte das Igrejas já conta com templo próprio, embora algumas
delas ainda “acontecem” dentro das casas das principais famílias extensas que
formaram a referida Igreja. Na realidade, esse é um dado empírico importante que é
constatado na observação de campo. Várias Igrejas que possuem, atualmente, templo
próprio, esse mesmo templo normalmente está localizado no lote de terra de uma das
famílias extensas que fazem parte da Igreja. Nesse sentido, não é incomum ouvir de
vários indígenas, inclusive da liderança da Igreja indígena, algumas falas do tipo: “Na
Igreja/Congregação „tal‟ está a família „tal‟ [...] Eles é que começaram o trabalho
daquela Congregação...”;
F. A distribuição espacial/territorial das igrejas na TID mostra certo equilíbrio, com uma
ligeira vantagem para a aldeia Jaguapirú em relação ao Bororó. Isso pode ser
explicado por alguns fatores, tais como: a maior proximidade da aldeia Jaguapirú com
a cidade de Dourados através da rodovia estadual que a corta, como já mencionado.
Isso facilita o trânsito de pessoas e lideranças religiosas não-indígenas no interior da
aldeia. Além disso, há a presença de uma maior “mestiçagem” entre indígenas e não
indígenas reconfigurando as unidades básicas de relações sociais, como o fogo
doméstico, por exemplo175. Tanto é assim que boa parte das Igrejas da aldeia
Jaguapirú nasceram como fruto da ação de lideranças não-indígenas vindas da cidade
(ainda que com a parceria direta de indígenas), ao contrário da aldeia Bororó, onde
encontramos várias igrejas autóctones, ou seja, que nasceram de lideranças
propriamente indígenas;
175
Conforme será melhor explicado na próxima subseção desse capítulo (3.2.1).
166
em Kaiowá eram “entremeadas” por falas em português. Isso significa que não havia
somente uma tradução simultânea, mas uma dupla discursividade linguística.
176
Cf. VIVEIROS DE CASTRO, E. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In:
VIVEIROS DE CASTRO, E. A Inconstância da Alma Selvagem, p. 187.
167
uma religião, mas se “é religião”, no sentido de reproduzir o bom modo de viver de acordo
com a memória simbólica e paradigmática dos antepassados, de acordo com as “boas
palavras” como cerne da Teologia Guarani, para lembrar toda a tradição que vai desde
Cadogan até Chamorro. O termo “marangatu”, consagrado na literatura etnográfica como o
“modo de ser religioso” (em Meliá, por exemplo), na realidade pode expressar a ideia de
“viver sem fim”, “eternamente”, “plenamente”. De fato, como me explicou um indígena
Kaiowá acerca do significado da expressão “Tengatuí Marangatu”, nome dado a uma das
principais escolas que existe na aldeia Jaguapirú: “lugar onde se educa/aprende - Tengatuí
sem fim, plenamente – Marangatu”. Ou seja, o “bom e correto jeito de viver” (no Guarani,
teko porã) atualiza-se e renova-se no teko marangatu177.
Outro aspecto que pode ser percebido nos quadros demonstrativos de presença das
igrejas é a possibilidade de ver nessas igrejas o entrecruzamento de várias fronteiras étnicas.
Graciela Chamorro (2009) procura, em seu levantamento estatístico e empírico sobre a
presença de Igrejas na TID, relacionar essas Igrejas com a questão das etnias presentes na
mesma TID. Essa autora afirma que a Missão Caiuá (nos termos dessa tese, as igrejas que
compõem o projeto da IIP) é orientada para os povos Guarani e Kaiowá. Todavia, em suas
Igrejas, há muitos Terena. Já as igrejas pentecostais tem uma presença Kaiowá maciça. Mas a
autora trabalha apenas a título informativo, nesse caso, não extrai daí maiores implicações.
Esse fato pode ser parcialmente compreendido se for levado em consideração que as ações da
Missão Caiuá, historicamente, iniciaram-se em fins dos anos 20 do século passado, onde a
presença Guarani e Kaiowá era (e continua sendo) majoritária na região sul de Mato Grosso
do Sul (à época, Mato Grosso), com pouquíssimos Terena. Assim, é compreensível o porquê a
Missão Caiuá ter focado seus esforços em relação às etnias Guarani e Kaiowá, algo que foi
mudando, ao longo das décadas seguintes, com o aumento de outras etnias no sul
matogrossense, como os Terena. A afirmação de que nas Igrejas Pentecostais há uma
presença Kaiowá maciça deve ser relativa a que Igrejas pentecostais se faz referência e se
estão presentes nas aldeias Jaguapirú ou Bororó. Nessa aldeia procede a afirmação. Mas
naquela, há várias Igrejas pentecostais com presença maciça tanto de Guarani quanto de
Kaiowá, sem excluir a presença Terena que, embora não seja majoritária, não pode ser
desprezada. Além disso, há que se levar em consideração que alguns troncos/famílias Terena
177
Bartomeu Meliá atrela à noção de teko marangatu uma constituição fundamentalmente religiosa implicado
“[...] pelas crenças e práticas [...], com seus ritos e objetos sagrados. Na conceitualização pai o teko marangatu
é a reprodução, a imitação, o reflexo do modo de ser dos deuses” Cf. MELIÁ, B. et.al. Etnografía guarani del
Paraguay contemporâneo, p. 125. Assim, usa-se muito o termo marangatu como equivalente ao termo
ocidental/latino “religião”.
168
que vieram para a região de Dourados nos anos 60 e 70 do século passado, já vieram com uma
experiência de forte contato com o missionarismo cristão protestante, principalmente aquelas
famílias que vieram da região dos municípios de Miranda e Aquidauana, na região Centro-
Oeste do Estado. Desde o início do século XX com a ação da Missão Inland South American
Mission Union – ISAMU e, a partir de 1972, com a ação da União das Igrejas Evangélicas da
América do Sul – UNIEDAS. Assim, alguns troncos Terena contribuíram para a formação de
algumas Congregações que, posteriormente, foram assumidas pelo projeto da IIP da Missão
Caiuá na aldeia Jaguapirú, por exemplo178.
178
Para saber mais sobre a relação dos Terena com o missionamento cristão, particularmente o projeto da
UNIEDAS ver MOURA, N. dos S. P. & ZORZATO, O. O Processo de apropriação do Protestantismo Norte-
Americano pelos Terena através da Uniedas. In: WRIGHT, R. (org.). Transformando os Deuses..., p. 303-
339.
169
Assim, ao contrário do que afirma boa parte da literatura etnográfica sobre o assunto,
mais do que falar em “crescimento” de Igrejas, melhor será falar de maior mobilidade,
movimento dos indígenas que circulam criando, criam igrejas/congregações circulando
através das “criações e destruições” das redes de aliança entre as famílias extensas. Está aí um
possível exemplo de que essa “mobilidade”, essa “circulação”, é uma ação tática que resta aos
indígenas para viverem em lugares próprios (Igrejas, em vários momentos, com um idioma
hermético e indecifrável no discurso, terem que conviver com membros de outras famílias que
não são as suas, dentre outros) que lhes colocam estratégias prescritas, para lembrar Michel de
Certeau179. Ainda que essa mobilidade irá levá-los a outras circunscrições estratégicas,
todavia é justamente isso que mantém a perspectiva de sentido, pelo menos a busca por ele,
em um contexto muito fragmentado e recheado de problemas de ordem econômica, política e
religiosa onde impera o risco da perda de sentidos existenciais fundamentais. Na linguagem
tillichiana, seria a perda da substância religiosa da vida.
179
Com linguagem hermética e “indecifável” aqui, refiro-me a alguns discursos teológicos, em seu poder de
doutrinação, comum à missão Caiuá, consequentemente, presente em algumas de suas Congregações. Ao
perguntar a alguns de meus interlocutores e interlocutoras indígenas o que havia de “Presbiteriano” na Igreja
Indígena, vários respondiam com muita dificuldade: “há muito pouco”. Claro que essa resposta deles estava
relacionada à percepção de uma identidade religiosa presbiteriana que passava pela identificação de algumas
doutrinas teológicas fundamentais que definem esse grupo protestante, por exemplo, a questão da soberania e
predestinação divina. Como disse um interlocutor indígena: “[...] esperar que um indígena Kaiowá,
principalmente aquele criado na tradição, entenda a doutrina, é muito complicado. Dizer para um Kaiowá o
que é predestinação, ele não vai entender não. Ele até pode dizer que entende, mas não entende não. Olha só...
ele, às vezes, não entende nem o português direito, quanto mais algumas doutrinas...”.
170
atribui às igrejas pentecostais uma teologia do “misticismo”, muito “mágica” que, segundo
ele, é bem afeita à conduta dos indígenas, principalmente dos Kaiowá. Ele afirma: “Esse
costume de mistificar tudo, de acreditar que todos os componentes da vida, natural e
humano, são “deuses”, a experiência do imediatismo da cura, favorece as Igrejas
pentecostais junto aos indígenas”. É possível ir além desse argumento, retornando ao tema da
“teologia da palavra” como elemento central para esses grupos indígenas ou, como diz Meliá
“[...] para o guarani a palavra é tudo. E tudo para ele é palavra” (MELIÁ, 1989, p. 306), que
em várias Igrejas, não somente pentecostais, a concretização das palavras por parte dos
interlocutores indígenas é fundamental. Não se fala aqui somente das palavras dos pastores
que curam e que abençoam. Em vários cultos que o autor dessa tese participou, pode-se
assistir, em algumas Congregações da IIP, que sempre os indígenas que dirigiam os cultos
separavam um tempo para os testemunhos: assim, indígenas iam à frente (dos mais diferentes
gêneros e idades) para expressar a “boa palavra” de um livramento, da recuperação familiar e
do sentido de vida, da libertação dos vícios, do agradecimento por uma benção alcançada, por
exemplo, um trabalho, dentre outros aspectos. Mas não somente falavam: cânticos, como
forma de testemunhos, além de orações elaboradas ou simples murmúrios quase inaudíveis,
eram outras mediações da “palavra” concretizar-se. A “Palavra” era profundamente
ritualizada e escapava de toda tentativa de “formalização”. De fato, a palavra Guarani ritualiza
todo o cotidiano da qual as Igrejas fazem parte. Sem isso, é possível arriscar a dizer, nem as
experiências pentecostais de cura, nem as experiências de livramento de possessão por
espíritos malignos teriam muita eficácia, até porque essas últimas experiências citadas são
também experiências de ritualização da palavra, de criação, mas também de “distorção” (em
relação aos discursos formais) de sentidos outros para criar, enfim, novos espaços de sentido.
Ao ouvirem essas palavras em ato, os indígenas criam um código de confiabilidade
“testemunhal” e reinventam seus sentidos e esperanças. Diria que, mais do que mistificadora
(na fala do interlocutor não-indígena), a palavra Guarani e Kaiowá torna-se profundamente
“mística”, porque ela instaura a possibilidade do diálogo profundo com a alteridade, com o
outro que, parecendo distante, se faz próximo.
necessária da própria razão de ser da Missão: de que ninguém melhor do que o próprio
indígena para falar do Evangelho para seus “patrícios”180. Assim, a Missão Caiuá cresceu ao
elaborar e executar estratégias para, com o tempo, criar condições para uma maior autonomia
para os indígenas liderarem as próprias comunidades/congregações. Por outro lado, não é tão
raro ouvir o testemunho de algumas das lideranças indígenas autóctones afirmarem que a
criação da Igreja Indígena partiu dos próprios indígenas, não sendo uma preocupação da
Missão Caiuá.
180
Termo muito comum que os indígenas utilizam para referir-se a outro indígena.
172
181
De onde sairam fomados, com instrução básica em Bíblia e Teologia, vários líderes indígenas que atuam nas
Igrejas da IIP, dentro das aldeias do cone sul de Mato Grosso do Sul.
173
182
Conforme será visto na próxima subseção do capítulo.
174
[...] A formação do xamã não é algo que diz respeito tão somente à
aprendizagem de conhecimentos e técnicas por parte do neófito. Este
processo coloca em jogo toda uma gama de fatores emocionais e de natureza
onírica, a relação entre mestre e aprendiz apresentando características
psicológicas peculiares (MURA, 2006, p. 305)
O outro exemplo, que poderia ser multiplicado pelas várias narrativas semelhantes que
o autor dessa tese ouviu durante a pesquisa, vem de um jovem indígena Guarani de 23 anos
que já freqüentou igrejas da IIP e, hoje, está na “Pentecostal Indígena de Jesus”. Tem amplo
contato com instituições da sociedade nacional e, mesmo criado na TID já não recebeu a
tradição de conhecimento nativa. Inclusive, não domina o idioma Guarani, fato que não é
incomum entre jovens na TID, o que desfavorece a uma compreensão mais profunda das
experiências religiosas tradicionais. Este indígena busca, portanto, outros códigos de sentido,
não necessariamente teológico e/ou da significação de pertença a uma Igreja, uma vez que
evoca justificativas mais sociais, mas profundamente existenciais. Ele afirma: “No meio de
tanta violência, drogas e bebida na aldeia hoje, o jovem fica perdido. Não encontra mais
183
Kuarahy ou Kuara é expressão Kaiowá e Guarani para o “Sol” ou, de forma mais qualificadora, “aquele que
ilumina”. Assim, Pa`i Kuarahy pode significar “nosso irmão mais velho”, “aquele que nos guia”, primeiro
filho do divino maior: Ñanderuvusu (que pode significar “nosso grande Deus”). Para os mitos de origem
Guarani ver CLASTRES, P. A Fala Sagrada: Mitos e Contos dos Índios Guarani. Campinas: Papirus, 1990.
175
acolhida entre os da tradição [diga-se: mais velhos] e não é aceito na cidade por causa do
preconceito. Não tem lugar. Vai para igreja porque lá se sente bem. Sente que lá as pessoas
gostam dele e encontra apoio para as suas crises”. Assim, a Igreja passa a ser a tentativa de
composição de “um lugar” de sentido em meio a “não lugares” que expressam o sem sentido.
Todavia, algumas Igrejas também passam a expressar esse “não-lugar” (onde algumas
Congregações da IIP não estão imunes a isso), dando a dinâmica configuradora do quadro
plural cristão na TID hoje. Na leitura do jovem indígena, a mudança de Igrejas ocorre quando
a comunidade anterior não acessa essa experiência do acolhimento diante das crises, mesmo
que o indígena tenha que renegociar compreensões de fé e conhecimento “teológico”
adquirido em outras comunidades. Em termos mais tradicionais, quando a Igreja apresenta
dificuldades, no caso da experiência Guarani, de tornar-se a nova “família extensa”, a nova
“parentela” do sujeito indígena. Todavia, isso provoca uma série de outras dificuldades,
tornando o movimento de trânsito religioso uma inconstante (posto que cheia de
ambigüidades) constante.
Quando se fala em “sincretismo”, essa palavra parece ser uma categoria estranha ao
pensamento indígena Guarani e Kaiowá184. Quando, várias vezes, havia a tentativa de traduzir
o termo para os diversos interlocutores indígenas, tendo por referência a simples ideia de
“união” e “mistura” de elementos de tradições religiosas diferentes, percebia-se certo
desconforto e rejeição ao termo o que, convenhamos, não é uma prerrogativa somente
indígena. Todavia, quando começava a dialogar sobre possíveis modalidades ou “tipos” dessa
“mistura” ou “união” o tom da compreensão variava, senão para uma aceitação (ou rejeição)
imediata, mas para a reflexão crítica das possibilidades e impossibilidades dos encontros e
desencontros entre experiências religiosas, no caso, tradições indígenas e cristianismos. Isso
significa que os interlocutores indígenas também construíram o seu conhecimento ao assunto
abordado nessa tese, ao partilharem um pouco de suas compreensões e ambigüidades de seu
próprio teko retã religioso. Assim, pareceu desafiador ao autor dessa tese, em um primeiro
momento, utilizar a categoria nativa Guarani do teko retã como termo afim à noção de
sincretismo. O teko retã pode ser traduzido por “um jeito próprio de ser plural, variável” e
que não se aplica somente a questões religiosas. Mas como essa categoria não especifica que
tipo de pluralidade está em jogo e o autor dessa tese não possui a competência etnográfica
necessária para compreender as implicações epistemológicas dessa expressão (haja vista que
também não é o objetivo dessa tese), aqui o teko retã, no título dessa subseção, é tomado em
um sentido meramente adjetivado para qualificar a riqueza de expressar a vida indígena de
maneira diversificada e plural, a partir de onde as categorias de sincretismo e diacretismo
convertem-se em chaves hermenêuticas para a compreensão dessa pluralidade. Próximo
passo: subseções.
184
Quando se fala nas Congregações da IIP não se pode desconsiderar que, em que pese a pluralidade dessas
Congregações, não deixa de existir todo um lastro do missionarismo cristão tradicional para o qual há muito
desconforto em relação ao tema do sincretismo. Isso ocorre, justamente, porque os protestantismos de missão,
em seus discursos oficiais, ainda consideram práticas sincréticas como corruptoras da sã doutrina e da boa
conduta cristã revelada por Deus em sua Palavra. Essa dificuldade já foi apontada no primeiro capítulo.
177
na presença das Igrejas da IIP na TID, parece haver uma constatação sócio-antropológica
corroborada, tanto na literatura etnográfica quanto nas narrativas de diversos interlocutores da
pesquisa (indígenas e não-indígenas), que pode assim ser formulada: as Igrejas são
constituídas e destituídas (criação e destruição) pelas relações de aliança estabelecidas pelas
famílias extensas Guarani e Kaiowá185. Aqui começa uma análise mais detalhada desse tema
que já foi levantado na subseção “3.1.3” desse capítulo: um dos aspectos culturais que chama
a atenção desde as primeiras incursões na TID é a criação de Igrejas nos lotes de terra
contíguos, ou seja, ao lado de casas de uma dada família onde, em boa parte dos casos, o
“chefe de família” (no âmbito do fogo doméstico) ou o “cabeça de parentela” da família
extensa, tornava-se a liderança da Igreja. Aliás, o Reverendo Benjamim Bernardes, da Missão
Caiuá, afirmou-me ser essa uma das grandes dificuldades que o projeto da “Igreja Indígena”
enfrenta para o seu crescimento: o fato de que, em uma mesma Congregação, há a presença de
famílias étnicas diferentes (Terena, Guarani e Kaiowá) que “disputam” a liderança da
comunidade, uma vez que as etnias diferenciam na percepção, inclusive, do chamado
“governo eclesiástico”. Se não bastassem as diferenças étnicas de proposição de diferenciação
social, há uma diferença na percepção da condução da Igreja o que instaura uma constante
reflexão e ação a partir do outro (heterologia). É importante voltar a frisar: sempre que
conversava com lideranças de Congregaçãos da IIP era muito comum ouvir: “A Congregação
„tal‟ é da famìlia „x‟, na outra Congregação predomina a famìlia „y‟...”, ressignificando o que
é ser “Igreja” a partir das categorias de pensamento próprias das culturas indígenas.
Assim, é importante deixar claro o que constitui o espaço social do “fogo doméstico” e
da “família extensa” para as etnias Guarani e Kaiowá, como análise antropológica importante
que subsidia as interpretações aqui propostas. Um bom estudo sobre essas unidades de
relações sociais pode ser encontrado na tese de Levi Pereira (2004, p. 44-152). Dentre as
unidades sociais “nativas” enumeradas por Pereira é possível destacar o “fogo doméstico”
(che ypyky kuera) e a “parentela” (Te‟yi)186.
185
Essa perspectiva pode ser estendida para as igrejas que não fazem parte da IIP, como as pentecostais por
exemplo. Etnicamente, os Terena agem dessa forma, muito embora as unidades sociais que compõem a
identidade étnica dos Terena difira dos Guarani e Kaiowá. Todavia, é muito comum ouvir na TID que a Igreja
é de “fulano de tal”, da “família tal”, conforme já afirmado nesse capítulo. Maria de Lourdes Alcântara,
quando analisa a presença das Igrejas na TID, afirma claramente: “[...] Geralmente são freqüentadas pelas
famílias extensas”. Cf. ALCÂNTARA, M. de L. B. Jovens indígenas e lugares de pertencimento, p. 125.
186
A expressão che ypyky kuera pode significar “meus descendentes diretos”. Tem uma referência também
religiosa aos “antepassados” (ypy kuera) míticos, além de ypy poder significar “proximidade”, “intimidade”. Já
Te‟yi pode significar “minha parentela”, “família extensa” e correlatos. O antropólogo Fabio Mura prefere,
justamente, o termo “família extensa”. Cf. MURA, F. A procura do bom viver..., 2006, p. 123. Pereira lembra
que Meliá e o casal Grünberg chamam a atenção para o fato de que Te‟yi pode significar “minha religião”, pois
178
[...] a expressão che ypyky kuera retém os dois sentidos do termo ypy
[“proximidade” e “origem”], referindo-se aos ascendentes diretos, com os
quais se compartilham os alimentos, a residência e os afazeres do dia-a-dia, e
denota também proximidade, intimidade e fraternidade, ponto focal da
descendência e da ascendência. É uma instituição próxima daquela descrita
pelos antropólogos como família nuclear, mas é necessário apreendê-la
dentro do campo problemático das instituições sociais kaiowá, dando
especial atenção para sua composição e operacionalidade. Por esse motivo, é
preferível utilizar o termo na língua guarani ou traduzi-lo como „fogo
doméstico‟, já que enfoca a comensalidade e a força atrativa do calor do
fogo, que aquece as pessoas em sua convivência íntima e contínua. Em certo
sentido, é uma noção próxima a nossa idéia de lar, cuja origem lingüística se
remete à lareira, enfatizando a força atrativa e protetora do fogo
(PEREIRA, 2004, p. 56)
normalmente os parentes estão aliançados em torno de um “cabeça de parentela” e a uma liderança religiosa.
Cf. PEREIRA, L. M. Imagens Kaiowá do Sistema Social e seu Entorno, p. 56.
179
Pereira (2004, p. 89), fundamental para a dinâmica da vida da parentela é a figura do hi‟u, ou
seja o “cabeça de parentela”. Cabe a esse “cabeça”, normalmente uma liderança política
respaldada por uma liderança religiosa, combinar diversos fatores que promovam a coesão
dos grupos formadores das parentelas. Alguns desses fatores são o parentesco cognático,
alianças matrimoniais, alianças políticas e alianças religiosas (PEREIRA, 2004, p. 96). Sobre
essa questão das alianças religiosas, especificamente, Pereira afirma que os cabeças de
parentela, mesmo que não sejam líderes religiosos, criam seus laços de afinidade em torno
dessas figuras representativas. O referido antropólogo, nesse ponto, reforça determinadas
homologias entre a figura do xamã/rezador e dos pastores187. Afirma, nesse ponto, que mesmo
os cabeças de parentelas “crentes” que lideram igrejas podem, por sua vez, compor alianças
com rezadores (colocando-se na fronteira religiosa com o tradicional), a fim de buscar
prestígio junto a outros setores da sociedade envolvente que lidam com a “cultura indígena”,
ao mesmo tempo em que criam alianças com pastores a fim de garantir a coesão de sua
parentela ao observarem que vários fogos fazem parte de igrejas, importante no cenário da
TID hoje. Manter a coesão, principalmente dentro de situações de tensão e conflitos, “[...]
exige a produção de um discurso capaz de apaziguar e demover os conflitos e atritos que
permanentemente afluem na convivência cotidiana. A produção de tal discurso é mais eficaz
quando aliada a elementos da religião, mobilizando disposições e conteúdos ético-morais”
(PEREIRA, 2004, p. 104). Do “cabeça de parentela” e da família extensa sob sua
responsabilidade, espera-se o “bom falar”, de tal forma a expressar a solidariedade e as regras
do bom viver da comunidade.
187
Conforme já afirmado Pereira foca, principalmente, os pastores indígenas pentecostais. Sobre essas
homologias, o antropólogo afirma: “[...] A importância da forma organizacional da parentela está presente
mesmo em situações de mudanças culturais intensas, como no caso da conversão ao pentecostalismo: os
Kaiowá pentecostais consideram que a conversão não implica na dissolução de sua identidade étnica,
continuam sendo Kaiowá "crente", porque permanecem vivendo e se relacionando na parentela enquanto
Kaiowá, forma de existência humana por excelência. Aliás, para alguns líderes pentecostais, os processos de
transformação comportamentais envolvidos no ato de conversão resgatam atribuições inerentes à estruturação
da parentela, como a atribuição de dar e receber conselho, fundamentais para a integridade e reprodução dessa
unidade sociológica. Em outras palavras, parece que a manutenção das formas básicas de estruturação social na
parentela permite e alimenta-se da mudança cultural” Cf. PEREIRA, L. M. Imagens Kaiowá do Sistema
Social e seu Entorno, p. 119. È possível estender esse raciocínio para algumas Congregações da IIP.
180
188
A expressão Tekoha tornou-se central nos estudos guaraníticos, principalmente após as análises de Bartomeu
Meliá. “Teko” é expressão que designa o modo de ser próprio (valores éticos, morais e religiosos) que
expressam a condição nativa de ser e de proceder Guarani e Kaiowá. “ha” é o sufixo nominador indicativo da
ação que realiza e onde se realiza. Por isso que Tekoha é, muitas vezes, traduzido na literatura etnográfica
como o território tradicional dos indígenas Guarani, pois só aí eles podem viver seu autêntico “teko”. Todavia,
Pereira defende a tese que o Tekoha não se limita a um território, mas como “[...] uma rede de relações
político-religiosas, comportando grande dinamismo em termos do número e da forma de articulação das
parentelas que entram na sua composição, tendendo a assumir uma configuração flexível e variada em termos
populacionais”. Cf. PEREIRA, L. M. Imagens Kaiowá do Sistema Social e seu Entorno, p. 121. O Tekoha
agregaria várias Te‟yi, ou seja, famílias extensas. Por isso que se o historiador Antonio Brand (1997) afirma
que sem tekoha não há teko, Pereira inverte a relação dizendo que sem teko não há tekoha.
189
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro extrai dessa perspectiva profundas implicações teóricas para uma
antropologia da filosofia indígena do ser. Para Viveiros de Castro (2002, p. 345ss) os grupos indígenas das
terras baixas sul-americanas, incluindo os Guarani, operam uma “naturalização” da vida, quando as sociedades
não-indígenas ocidentais operam a já conhecida “culturalização”. Se o natural é sinônimo de “inato” e a cultura
o flexível, o aprendido, para as sociedades indígenas o “natural” é o aprendido, posto que aí encontra-se o
social. De um “multiculturalismo” para um “multinaturalismo”. Todos os seres da natureza se vêem como
humanos também, a seu modo. Para as sociedades indígenas, no princípio do tempo mítico sempre esteve
presente o humano. Não o “animal” que evoluiu. Em essência é isso que diz o conceito elaborado por Viveiros
de Castro de “perspectivismo ameríndio”. Cf. VIVEIROS DE CASTRO, E. Perspectivismo e Multinaturalismo
na América Indígena. In: VIVEIROS DE CASTRO, E. A Inconstância da Alma Selvagem, p. 345ss.
182
teológicas que mantive com um de meus interlocutores indígenas, estimulado por viver na
fronteira de suas reelaborações culturais e de sentido de fé, afirmava que a teologia da
encarnação de Jesus era mais importante para a compreensão dos indígenas Guarani e
Kaiowá do que a clássica teologia da redenção (morte expiatória como preço pago pelos
pecados da humanidade). Isso porque a encarnação, segundo esse interlocutor indígena,
poderia ser interpretada justamente como símbolo para o caminho de humanização do divino
para que nós, seres humanos, possamos construir nossos caminhos de divinização, o que, na
perspectiva indígena, é o caminho autenticamente humano. Em relação a temas teológicos
serão tratados na próxima subseção.
tradicionalmente indígena gerou um debate entre as lideranças da IIP. A partir daí a “Primeira
Congregação” (citada no início do capítulo), principalmente através de um tronco Terena
representativo na Igreja, também criou uma casa tradicional indígena no pátio, nos fundos da
Igreja, oferecendo para ser a sede da IIP. Isso implica em retomar a questão de que as Igrejas,
a seu modo, reconfiguram as alianças e relações de poder a partir das etnias e suas famílias
extensas em torno de “fogos” representativos. Todavia, não se trata somente disso: ao tentar
estabelecer uma relação “sincrética” entre tradição e tradução cristã, buscando pontos
homológicos, o indígena Guarani vivencia, em seu papel de liderança, a ambigüidade
diacrética, pois implica na possibilidade de romper, desvencilhar-se de alguns elementos
institucionais negociáveis que, segundo ele, impediriam a efetivação de uma igreja, de fato,
indígena.
progressiva autonomia aos indígenas na condução das próprias Congregações. Várias dessas
Congregações, por sua vez, surgiram não por ação direta do projeto missionário da Missão,
mas fruto de famílias que saíam de uma Congregação e abriam outras, compondo novas redes
de aliança (ñandéva?) para a afirmação da identidade (oréva?) daquela parentela. Assim,
algumas Congregações, mesmo que contadas como participantes do projeto da IIP não são
fruto das ações da Missão Caiuá, a ponto de não perceberem-se atreladas às estratégias da
Missão. Essas ações são interpretadas, dentro da semântica cristã, por muitos indígenas, como
“desvio” e “divisão”. Como dizia um indígena Guarani, líder de uma das Congregações da
IIP, ao explicar uma das possíveis causas do crescimento de Igrejas dentro das aldeias:
“Cresce porque divide. Dentro da igreja tem famílias rivais, se desentendem, acaba saindo e
formando outra igreja”.
Digno de nota que esse mesmo interlocutor sempre enfatizou certo despreparo do
“conhecimento bíblico” por parte das lideranças indígenas como um dos fatores para as
“divisões”, mas pouco apontou questões teológicas específicas para qualificar essa falta de
“conhecimento bíblico”. É possível enxergar aí um aspecto importante a ser considerado na
avaliação das igrejas como campo de mediação plural para a ressignificação religiosa dos
indígenas: na realidade, ao interpretar a fala do indígena, não se trata somente de uma “falta”
de conhecimento bíblico, mas do tipo de conhecimento que entra no jogo “sincrético e
diacrético” da permanente busca de compreensão do sentido religioso “último” (para lembrar
Tillich), a partir do código simbólico e teológico do Cristianismo. Isso não é nada simples
para muitos indígenas Guarani e Kaiowá na TID, mesmo naquelas Congregações onde há um
número considerável de indígenas que dominam a língua portuguesa e atuam nas aldeias
como professores, enfermeiros, assistentes sociais e outros postos/funções que exigem um
constante contato com a sociedade não indígena190. O que se quer afirmar aqui, em tese, é o
seguinte: o quadro plural das Igrejas é um “mosaico vivo” da tentativa de transitar nas
múltiplas fronteiras de “tradução” da mensagem de fé, onde a linguagem simbólica é
190
Para exemplificar: uma indígena Kaiowá que atua em uma das Igrejas da IIP na TID, relatou-me que é muito
difícil para o indígena entender discursos pastorais que não respeitem a língua nativa. Ela acha que, mesmo que
não se pregue na língua nativa que, pelo menos, haja um esforço dos pastores de adequarem melhor seu
vocabulário à semântica indígena. Talvez o esforço da IIP em manter pastores nativos, autóctones, diminua um
pouco esses problemas. Essa indígena conta que sua avó, considerada uma “feiticeira” (termo muito pejorativo
para os indígenas, relacionado a práticas sempre ruins ou demoníacas, na semântica cristã) por indígenas
convertidos ao missionarismo cristão freqüentou, durante muito tempo, Igrejas da Missão Caiuá: “[...] mas ela
não entendia nada que os pastores falavam. Ela ia no culto por causa das músicas, porque ela gostava muito
de cantar, principalmente porque era rezadora. Mas saía da Igreja e continuava fazendo seus rezas”. Diga-se
de passagem que, não obstante ou por reconhecimento, as ações cristãs missionárias encontram nos cânticos
um poderoso instrumento de eficácia evangelizatória.
185
vazio grande. Aí ele chega na Igreja, vê todo mundo cantando, dizendo que Deus se importa
com ele e ele vai ficando...”. Assim “Deus”, longe de ser o onipotente soberano que, do céu,
tudo controla, passa a ser renomeado pelo “fogo” que aconchega e que aproxima. Nisso
residiria a potência do divino e, quem sabe, a necessária ressemantização que se espera de
ações missionárias mais compreensíveis, sem desconsiderar que toda ressemantização implica
no risco da distorção que é própria da construção de novos sentidos. Seria o risco do
demônico na essência do sincretismo e do diacretismo religioso.
Por outro lado, não se pode esquecer que as Igrejas são formadas, também, por
famílias extensas. A chegada de pessoas e outras famílias que não pertencem a determinada
parentela consolidada dentro de uma dada Congregação levantam a possibilidade de
desagregações e separações, exigindo da liderança uma capacidade de perceber sentidos em
meio a essas relações “diacréticas”, uma vez que, mesmo correndo o risco da distorção,
participa da possibilidade de criação (novos sentidos). Principalmente porque várias dessas
pessoas e famílias já passaram por outras Igrejas, trazendo consigo um mosaico de condutas e
até de visões teológicas diferenciadas, por exemplo: um indígena atuante em uma das
Congregações da IIP na aldeia Bororó relatou-me em uma das conversas: “Aqui na Igreja
chega muita gente e família pedindo cura para o filho. Eu não sou pentecostal, mas não tem
problema de pôr a mão na cabeça e orar pedindo que Deus cura. E cura mesmo! Mas eu não
vou ficar incentivando isso porque o índio tem que entender que não pode querer só o
milagre, tem que querer Deus, tem que converter, mudar de vida”. Não obstante o referido
indígena tecer certa crítica aos pentecostais, o mesmo opera uma ação “tática” de apropriação
de um discurso e prática que não lhe é próprio, fazendo desse discurso “seu” para ressignificar
o espaço social da Igreja pois, como atuando próximo à liderança da Congregação , vive na
linha tênue/fronteiriça entre pessoas que pertencem a práticas e costumes diferenciados. Este
indígena “converte-se” em um agente de mediação. Certamente que não se trata de um
processo simples, pois a fala do indígena indica ressignificar sua própria compreensão da
realidade divina: mesmo que Deus cure, as imagens do divino delimitam códigos sociais
definidores da identidade das Igrejas. Assim, o cuidado com o “Deus curador” como forma de
marcar a diferenciação com outras comunidades cristãs (no caso, as pentecostais). Une e
rompe ao mesmo tempo: sincretismo e diacretismo construidos, em ato, em discursos
profundamente heterológicos porque, como agentes de mediação, os indígenas vivem nas
fronteiras de vários “outros”. Esses exemplos interpretativos poderiam multiplicar. Porém,
outro aspecto importante para perceber as mobilidades sincréticas e diacréticas que
187
dinamizam a vida das Congregações da IIP é a afirmação que encontrei, tanto nas palavras do
diretor da Missão Caiuá, quanto em lideranças indígenas de algumas dessas congregações. Ao
apontar outras dificuldades para uma maior unidade das Congregações em torno do projeto da
IIP, o referido diretor afirmou certo distanciamento geográfico e étnico entre as Congregações
e a necessidade de ter uma presença maior das lideranças circulando por essas mesmas
Congregações. É justamente nesse “distanciamento” (territorial e simbólico) que essas
Congregações criam sua própria vida cheia de ambiguidades. Por mais que a Missão Caiuá
funde um “lugar próprio” com suas discursividades “estratégicas” (por exemplo, a formação
teológica presbiteriana no Instituto Bíblico da Missão) e as Congregações se vêem nesse
próprio, o “distanciamento” afirmado anteriormente instaura uma “relação tática”. Isso
significa que cada liderança, cada parentela ou até mesmo cada “fogo doméstico”192 inventa
sua maneira peculiar de ser Igreja ao procurar uma maior mobilidade sincrética e diacrética
em terras indígenas cuja mobilidade tradicional, pela política de demarcação de reservas, foi
severamente afetada. Assim, pois, as igrejas são campos de mediação de recomposição das
unidades de relações sociais tradicionais (exemplificadas no fogo e na parentela), mas não se
igualam a nenhuma delas: converte-se em um compósito ambíguo, pois as igrejas são espaços
sincréticos e diacréticos que radicalizam essa própria ambigüidade na construção da alteridade
social desses indígenas193.
No último capítulo de sua obra intitulada “Terra Madura” (2008), a teóloga Graciela
Chamorro desenvolve uma séria reflexão que pode ser nomeada por “heterológica”, sem
192
Algumas Congregações são tão pequenas, atualmente, que os membros da mesma se restringem quase aos
membros do fogo. Quando muito, a uma única parentela. Esse é um dado que não está restrito às Congregações
da IIP, mas a outras Igrejas, como algumas Pentecostais.
193
Se, por um lado, as Igrejas simbolizam a releitura do espaço social de solidariedade e proximidade grupal do
fogo e da parentela, por outro, ao estarem atreladas aos discursos típicos do missionarismo cristão protestante,
as igrejas pregam uma “atomização” individualista ao enfatizar a conversão do indivíduo, ainda que,
paradoxalmente, o discurso pregue a validez universal (para todos) dessa eficácia da conversão.
188
Ao levar em conta as discussões anteriores, é possível afirmar que o teko retã, ou seja,
a possibilidade de um “jeito de ser plural”, em termos religiosos, para os Guarani e Kaiowá
que vivenciam as fronteiras das Congregações da IIP, passa por profundos rearranjos também
teológicos, ainda que nem sempre fáceis de compreender a partir das falas e testemunhos
desses indígenas. Um exemplo simples disso é que, ao longo da pesquisa, perguntei para
vários interlocutores e interlocutoras, em que consistia a expressão “Indígena” e a
“Presbiteriana” na sigla da IIP. Sobre a questão “Indígena”, via de regra, a resposta passava,
desde simplesmente dizer que significava ter Igrejas com pastores/lideranças indígenas, a
respostas que enfatizavam a retomada da consciência de uma vida cristã que respeitasse e
dialogasse mais com elementos nativos e tradicionais da cultura indígena. Em alguns casos
189
Deus, nos púlpitos e demais instãncias de ensino das Congregações da IIP. Aqui, nesse
exemplo, há fatores históricos diversos para o não envolvimento das missões cristãs
evangélicas com a questão da luta pela terra, inclusive com argumentos teológicos, mas que
foge dos objetivos dessa tese. Além disso, há que se perguntar em quais quadros de referência
teológica certos indígenas estão baseando-se para construir essas leituras bíblicas que, por sua
vez, enfatizam a importância da terra para o seu modo de viver indígena e cristão. Esse tema
abriria, inclusive, novas portas de pesquisa histórica, antropológica e teológica196.
central na tradição de conhecimento indígena, sendo ele quem tem a legitimidade para avaliar
moral e eticamente os saberes que circulam e estão à disposição dos índios” (MURA, 2006, p.
304). Levi Pereira parece ir na mesma direção avaliativa ao afirmar que a conduta xamânica é
referencial para o estabelecimento das relações sociais entre os indígenas (especialmente os
Kaiowá), pois é aquele que transita, operando todo o conhecimento, entre o mundo social dos
humanos e dos divinos. O xamã é aquele que dialoga e negocia constantemente com os jara (
cujo significado é “senhores”, “donos”) de cada ser198. Ao utilizar uma metáfora bem presente
nessa tese, pode-se afirmar que ao rezador/xamã compete a criação de espaços de
mediação/fronteira, entre humano/humano e humano/divino. Ele é o ser da mediação e, como
toda mediação, ocorre no espaço inventivo da ambigüidade. Mas, quando é preciso pensar o
princípio “xamânico” no contexto das múltiplas fronteiras das Congregações da IIP a situação
fica mais complexa porque, em muitos casos, pelo menos para um interlocutor menos afeito
ao contato com esses indígenas, a leitura que eles (os cristãos indígenas) fazem das práticas
xamânicas pode soar muito pejorativa. Essa leitura pejorativa ocorre, em parte, por conta de
determinada educação teológica que os agentes religiosos receberam das ações missionárias,
educação essa centrada em uma visão monoteísta exclusivista onde as chaves da salvação
repousam, unicamente, em Jesus Cristo como mediador entre Deus e os seres humanos
maculados pelo pecado. O discurso do xamanismo enquanto mediação pode, perigosamente
(na visão do missionarismo tradicional), questionar essa exclusividade da mediação em Jesus.
Nesse caso a releitura do xamanismo não seria interpretada em sua ambiguidade demônica,
mas no sentido essencialmente negativo mesmo, ou seja, “demoníaco”. Mas há outros
caminhos interpretativos.
198
Cf. PEREIRA, L. M. Imagens Kaiowá do Sistema Social e seu Entorno, p. 370ss.
192
199
Bebida fermentada à base de milho branco, tida como um dos elementos religiosos fundamentais na tradição
religiosa nativa, uma vez que potencializa os estados de êxtase religioso e uma percepção “onírica” mais clara
do caminho (tape) a ser seguido, orientado pelas divindades e indicado pelo xamã. Hoje em dia é bem mais
difícil encontrar o milho branco na TID, tendo sido substituído por outros tipos de milho e até mesmo pela
mandioca, além de entrarem elementos típicos da economia industrializada da sociedade nacional envolvente,
como as citadas bebidas alcoólicas.
193
tem que buscar fora”, diz ela200. Outro indígena Guarani, líder de uma das Congregações da
IIP dizia-me, em sua interpretação, que o rezador tradicional também pode falar com Deus,
que ele foi importante quando conseguia reunir todas as famílias em torno dele para mostrar
os “caminhos corretos”. Mas nas aldeias de Dourados, prossegue ele, com a entrada do
branco e a “mistura” de várias etnias, o rezador caiu em descrédito porque ele não consegue
mais articular, “levantar” uma parentela em torno da qual exercita sua liderança, o que
demonstra uma percepção antropológica muito refinada na análise desse indígena. Ele diz: “Aí
entrou as Igrejas, que são muito mais rápidas e eficientes, porque não estão presas a toda
tradição de conhecimento de uma parentela específica. Todo mundo é aceito. É só ir no culto,
cantar, levantar a mão, pedir, que Deus aceita e cura”, arremata.
200
Principalmente esse “fora” refere-se ao Paraguai, país vizinho que faz fronteira com o cone sul de Mato
Grosso do Sul, especificamente em algumas aldeias nessa região de fronteira.
194
pergunta o que os fiéis fazem com esses “bens” (foco de interesse das análises certeaunianas).
O xamã tradicional sempre foi, a seu modo, mais um caminho de mediação e não de posse
plena das divindades. Mesmo que se deva estabelecer “homologias”, é possível, em tese,
afirmar que os pastores, junto com os demais participantes das comunidades, reinventam um
jeito demônico de se relacionar com o divino. Ainda que se corra o risco de projetar para os
indígenas categorias que não são próprias do seu universo de sentido, é possível também dizer
que a figura do xamã e, até mesmo, do “cabeça de parentela” evocam, em suas atitudes
religiosas, um grande potencial demônico, uma vez que se vêem na fronteira constante de, a
partir de suas palavras e ações, criarem ambiguamente, ou seja, afirmativamente e
distorcidamente, os códigos simbólicos que configuram sentido à vida. Mas é justamente
nessa ambigüidade que reside o potencial de se criar discursos táticos que atravessam,
transversalmente, as estratégias discursivas consolidadas201. De fato, no testemunho dos
indígenas sobre as ações xamânicas, se há a compreensão da distorção dessas mesmas ações,
inclusive geradoras de violência, não se deixa de afirmar que o “princípio xamãnico” de
mediação com o divino ainda existe e, se bem “operado”, pode continuar a dar os devidos
acessos a Deus. O risco da ambiguidade permanece.
201
Todo discurso científico, segundo de Certeau, instaura um “lugar próprio” estratégico a partir de onde regula
outras tradições de conhecimento. Não é diferente, essa vontade de poder, com a antropologia e a teologia.
Interessante que, em conversas com alguns interlocutores indígenas professores e universitários, em dado
momento da conversa perguntava a mim mesmo se eles expressavam mais a sua opinião ou projetavam as
idéias de conhecidos antropólogos e antropólogas que atuam na região de Dourados. Mas, não deixa de ser o
jogo das negociações simbólicas e apropriações de discursos outros.
195
status de Ñanderuvusú, termo utilizado pelos Guarani para caracterizar o “Deus maior” na
cosmologia tradicional, aquele que habita o yvaga (que pode ser traduzido por “céu”). O
Deus, nesse caso, torna-se uma divindade de “difícil acesso” diretamente. Por isso, necessita
de mediações. Mas habitar esse céu é a caminhada última dos Guarani e Kaiowá. Nas
narrativas míticas surge o filho “mais velho” de Ñanderuvusú, um dos gêmeos, Kuarahy ou
Pa‟i Kuara (o “sol”), que também pode ser denominado de Ñanderyke‟y (que pode significar,
sugestivamente, “nosso irmão mais velho”). É justamente essa divindade que ficou
encarregada de cuidar da terra (yvy) e de conduzir os seres humanos, em um constante
processo de negociação com os “jara”, ou seja, os donos de cada humano, pelo caminho
(tape) ao céu. Esse caminho encontra muitas vicissitudes. Assim, o “nosso irmão mais velho,
o sol”, nos “ilumina” até Nãnderuvusú ou Ñandejára (expressão que significa “nosso dono”,
“nosso senhor”), como costumam dizer os Kaiowá202. Esse indígena relatou-me que o “sol” é
ressignificado como a “lanterna” (o que seria a “ponta da lança flamejante” em uma
linguagem mais tradicional) que ilumina os nossos caminhos. Assim, Pa‟i Kuara nos mostra,
iluminando, o caminho para “Deus”.
Esse indígena continua a sua narrativa e afirma que, se houver uma maior relação entre
Jesus e Pa‟i Kuara os indígenas, principalmente os Kaiowá, vão compreender a mensagem
melhor e, assim, não associá-lo diretamente com Ñanderuvusú. Como esse indígena lida com
constantes processos de tradução e ensino da Bíblia em sua Congregação da IIP, afirmou-me,
por exemplo, que traduz o texto do Evangelho de João, capítulo 14, verso 6, não como Jesus
“sendo” o caminho, mas como aquele que “aponta”, que mostra o caminho para o Pai. Não
somente aponta, mas caminha junto. No processo de diálogo, afirmei para ele: “Mas isso pode
dar uma outra interpretação teológica de Jesus”. E ele respondeu: “Sim. Mas essa
interpretação não pode ser bíblica também?” Devo confessar que concordei com ele. Mas, o
que se quer com esse exemplo? O fato é que esse tipo de interpretação causa certa “distorção”
em relação à maioria dos discursos “oficiais” e dogmáticos que defendem uma “substância
divina” de Jesus, no sentido essencialista e metafísico clássico. O símbolo do “caminho”
deixa de ser símbolo para se converter em uma ontologia descritiva da essência de Jesus. Ao
promover certo “esvaziamento” dessa “metafísica”, a interpretação de Jesus como aquele que
“aponta” o caminho descortina outras possibilidades de leitura: assim como Pa‟i Kuara
assume as vicissitudes de ser um ser da mediação, Jesus também se torna esse ser mediador
202
Normalmente os missionários, sejam indígenas ou não, usam a expressão Ñandejára para qualificar o próprio
Deus, “nosso Senhor”, o que, de forma equivalente, é usado frequente para referenciar Jesus Cristo.
196
entre o divino e humano. Cada um a seu modo. Mas essas categorias filosóficas e teológicas
não habitam o imaginário religioso do referido indígena. A preocupação dele torna-se
eminentemente prática. Como educador de uma Congregação da IIP onde vários indígenas se
comunicam em Kaiowá, esse mesmo indígena “encarna” o papel da mediação teológica de
sentido. Tal mediação é profundamente demônica: ao mesmo tempo em que ele não nega a
importância da Bíblia e de Jesus como configuradores de sua experiência religiosa de fé e de
sentido, reconhece que precisa ressemantizar o discurso teológico para que seja melhor
compreendido por sua Congregação. Só que ele o faz com a consciência de que suas releituras
podem causar problemas junto aos assentimentos formais e tradicionais das imagens de Jesus.
É um processo significativamente inventivo, uma vez que instaura novas possibilidades de
sentido, ao mesmo tempo em que corre-se o risco de distorções e perdas de sentido, ou seja,
demônico. O indígena vive as tensões sincréticas e diacréticas na fronteira dos espaços de
negociação estabelecidos. Assim, a experiência demônica ora afirma a descoberta de novos
espaços interpretativos perante a Igreja Indígena, ao mesmo tempo em que rompe com outros
espaços que também são importantes para esse mesmo indígena: ele instaura táticas, mesmo
sabendo que corre risco de sanções estratégicas.
Essa releitura “cristológica” no diálogo com a religião Guarani é bem feita por
Graciela Chamorro (2008, p. 220ss). Para essa teóloga não há no imaginário religioso
Guarani tradicional a figura de um salvador que “morre pelos pecados da humanidade”. Isso
lembra a indagação feita a mim por um indígena Kaiowá certa vez: “Ele [Jesus] precisa
morrer para ser meu salvador?” Chamorro também compara Jesus a Pa‟i Kuara, ou seja,
tanto um como outro passam a ser “exemplares” para que cada ser humano e todos os demais
seres (que também são humanos, a seu modo) possam bem caminhar rumo à plenitude. Jesus
torna-se, assim, nosso “irmão mais velho”. Se ele conseguiu encontrar o caminho, porque seus
companheiros e companheiras de caminhada não conseguiriam? E assim, toda sorte de
problemas e sofrimentos vividos na TID hoje são ressignificados como próprios da
ambigüidade da caminhada para a “divinização” da vida. Além disso, Chamorro, preocupada
em estabelecer pontos de semelhança para o diálogo entre Cristianismo e culturas indígenas
recupera, justamente, a teologia da “divinização” (no grego, theosis) em lugar da teologia da
morte expiatória de Cristo, clássica no Ocidente cristão, como melhor possibilitadora do
diálogo (CHAMORRO, 2008, p. 221). Mas e as heterologias, as diferenciações, a relação
ambígua entre sincretismo e diacretismo? Ao voltar para a conversa com o indígena citado
anteriormente perguntava-o, mais uma vez: “Mas, na estória original, [narrativa mítica
197
Assim, esse indígena continuou elaborando suas reflexões teológicas: “Mesmo que Jesus
desça, encarne, ele faz com o propósito de ficar junto de nós para “levantar” a gente. Afinal,
para levantar tem que estar abaixado né?
203
LEWIS, I. Êxtase Religioso, p. 63-4.
199
Por fim, vários indígenas que participam do projeto da IIP em seu cotidiano, vão
realizando os seus “jogos” sincréticos e diacréticos não por descapricho teológico, mas por
uma profunda experiência de reorganização do sentido da vida religiosa e da conseqüente
manutenção das relações sociais. É essa relação sincrética e diacrética que une e separa as
hermenêuticas teológicas, que são hermenêuticas de sentido, com as hermenêuticas sociais, o
que favorece a composição de um quadro exemplificador que dinamiza um possível teko reta,
ou seja, um modo de ser religioso múltiplo e diferentemente plural.
Em síntese
Certamente que para vários indígenas Guarani e Kaiowá que vivem em contexto de
pluralidade religiosa como é a TID hoje, o “trânsito” religioso está presente e consiste em
uma permanente tarefa epistemológica para as Ciências da Religião interpretar esse
fenômeno. Mas o “trânsito” não deve ser acomodado e “pacificado” por alguns conceitos que,
no final das contas, não destacam o protagonismo dos indígenas e as complexas ambigüidades
envolvidas nesse trânsito. Além disso, pensa-se o contato entre grupos indígenas e missões
cristãs como duas “identidades” consolidadas onde uma (no caso, os indígenas) resiste e
reelabora, no máximo, aquilo que lhe é permitido pelas identidades hegemônicas (no caso, as
missões cristãs). No fundo, algumas epistemologias das ciências humanas e aqui, sem maiores
considerações, pode-se incluir a teologia, parecem reforçar que aos indígenas se lhes assinala
certo poder interpretativo e de produção de sentido, desde que as chaves hermenêuticas sejam
dadas pelos missionamentos: essas chaves seriam a aculturação, a inculturação, o pluralismo,
dentre outros. Claro que o sincretismo e o diacretismo têm suas limitações epistêmicas, bem
como suas modalidades, tais como o hibridismo, bricolagem, dentre outros. Mas pelo menos
esses deixam a possibilidade dos próprios sujeitos e atores sociais indígenas reelaborarem
suas chves hermenêuticas, uma vez que focam mais a perspectiva da mediação, da construção
das identidades na situação de fronteiras religiosas ou, nos termos desse capítulo, a fronteira
como próprio lugar de produção de sentido e conhecimento.
indígenas. Esses “desvios” no campo de interpretação dos símbolos religiosos que expressam
o sentido da existência são também novas criações. Há uma coabitação (junções,
aproximações, “misturas”), cheia de ambigüidades, na compreensão de diversas imagens do
que significa ser Igreja expressa, também, nos diversos discursos teológicos dos indígenas, tal
como exemplificado na compreensão do xamanismo/reza aplicado à própria figura de Jesus e
aos pastores indígenas. É ambígua porque a imagem cultivada da Igreja e de Jesus Cristo não
abre mão totalmente das formalizações dogmáticas característica das estratégias missionárias,
mas distorce-se, desviam-se dessas imagens criando outras, como um Jesus que, para além
das tipologias tradicionais aplicadas a ele pela dogmática como profeta, sacerdote e Rei, é
também um grande “rezador”, porque constrói e “destrói” múltiplos sentidos religiosos,
criando o caminho tático da reivenção sincrética e diacrética da existência cotidiana. A seguir,
as considerações finais.
203
CONCLUSÃO
Nelson Rodrigues
204
Em certa medida, essa foi a preocupação de toda essa tese. Todavia, em relação aos
estudos acerca do problema do sincretismo religioso, quando se procura “pensar o outro”,
ainda parte-se do viés de estabelecimentos de homologias na questão das alteridades
envolvidas nos contatos religiosos. Isso é importante, pois não se pode negar que nos contatos
religiosos, principalmente em situações de conflito, busca-se “zonas de conforto”,
semelhanças, para a afirmação de uma situação de contato o menos traumática possível. Mas
a história é pródiga em relatar que o conhecimento “do outro” implica no estabelecimento de
profundas heterologias também pois, se o encontro sincrético realmente quer acrescentar, é
preciso que se faça do diferente o espaço para o crescimento e o aprendizado. Mesmo que
Michel de Certeau, por exemplo, insista na percepção de uma cultura e religião heteróloga, o
faz, primeiramente, como crítica metódica a certos estudos culturais que transformam o seu
pretenso objeto, justamente nisso: um objeto. Assim, enquanto “objeto”, a cultura é
“pacificada” como um outro que se torna em mera projeção daquele que fala sobre ela. A
reflexão sobre o “diferente” não exclui o que é próprio. Prova disso é a definição clássica de
cultura dada por de Certeau e afirmada nessa tese: um espaço de inventividades mas em
lugares circunscritos. Assim, entre homologias e heterologias, é estabelecida um campo de
mediação, uma fronteira onde brota as relações sincréticas e diacréticas. De certa forma,
trazer Paul Tillich para o diálogo foi, justamente, a motivação por encontrar uma reflexão
sobre a religião onde fosse possível estabelecer essa perspectiva de fronteira. Em Tillich
percebe-se que viver a experiência religiosa implica em questões decisivas da vida. O
problema é que nem sempre essa “decisividade” está transparente, translúcida. Depende da
maneira, do tipo de relação que se estabelece o sentido religioso da vida com as formas
culturais concretas em que se expressa. Assim, a relação entre religião e cultura é sempre
204
VIVEIROS DE CASTRO, E. O Nativo Relativo. In: MANA 8 (1), p. 113-148, 2002.
205
marcada pelo signo da ambigüidade, pois o ser humano, quando “joga” sobre o tabuleiro das
experiências fundamentais da vida, corre um risco maior de viver na fronteira entre
possibilidades e impossibilidades, erros e acertos, constâncias e inconstâncias, avanços e
recuos, criação e distorção (ainda que seja uma forma de criação): o “jogo” da dimensão
“demônica” como metáfora para a radicalização de nossas ambigüidades. Foi justamente no
horizonte da correlação dessas perspectivas que ensaiamos repensar o sincretismo religioso, a
partir de um transfundo antropológico, mas com implicações também teológicas. Nessas
considerações finais, que “de finis”205 só tem o texto mesmo, posto que as reflexões
continuam, é importante fazer uma breve releitura retrospectiva das principais questões e
resultados, bem como uma leitura prospectiva, pois também é importante apontar algumas
fragilidades e perspectivas de continuidade nesse campo de pesquisa.
A tese não furtou-se a discutir alguns aspectos do debate atual, tanto antropológico
quanto teológico, em torno da noção de sincretismo, como forma de situar o problema. Essa
foi a principal preocupação do primeiro capítulo. Nesse debate percebe-se, por parte das
ciências antropológicas, um reposicionamento do conceito, de tal forma a depurá-lo de toda
herança “colonialista” que projetava sobre a noção de sincretismo uma “união” ou “mistura”
de elementos religiosos, até então incompatíveis, com o fim de criar uma ideologia de
afirmação ora da sobrevivência da religião dominada, ora do poder “aculturativo” da religião
dominadora: as díades “pureza e mistura”, “degradação e coesão”, “resistência e dominação”,
era o que realmente interessava discutir e que poderia ser revista com a noção de sincretismo
que, a princípio, por tratar-se de “misturas”, superaria possíveis dicotomias. Com as
perspectivas mais hermenêuticas do saber antropológico e da ênfase nas culturas enquanto
sistemas simbólicos, procurou-se elaborar uma visão mais “positiva” da noção de sincretismo
como capacidade culturativa de reinterpretação de significados nos encontros dos muitos
significantes culturais. Com a reposição da própria noção de cultura, principalmente em
contextos de estudos “pós-coloniais”, o sincretismo passa a ser celebrado como a
quintessência de processos culturais fluidos, fugidios e fragmentários, visto como crítica, em
um acento mais “pós-moderno”, a uma visão muito “paradigmática” e centralizadora da
própria cultura. Assim, o sincretismo deixa de ser visto como um processo ou fase dentro de
processos de transformação e dinâmicas culturais mais amplos para se transformar na própria
cultura.
205
Do latim defineri, de finis, literalmente “pôr um fim”, “encerrar”.
206
Um aspecto central do primeiro capítulo foi mostrar que, mais do que viver em épocas
de intenso trânsito religioso, passa-se a construir um intenso trânsito de noções oriundas de
diversos campos do saber, convertidas em metáforas, para que se dê conta de interpretar
realidades tão complexas que se interfaceiam constantemente: daí a ideia de reposicionar o
sincretismo em suas modalidades tais como “hibridismo”, “diáspora”, “bricolagem”, dentre
outros.
Todavia, algo que chama a atenção na literatura especializada, é que ainda permanece
uma certa tendência em enxergar o sincretismo em seus aspectos mais “positivos”. Embora
pressuponha-se que todo contato interreligioso vai carregar ambiguidades por conta dos
sentidos diferentes que se “chocam”, talvez seja possível pensar que essa ambiguidade não
deva somente ser pressuposta, mas devidamente problematizada. Essa foi a perspectiva do
207
segundo capítulo da tese ao trazer para o debate as contribuições de Michel de Certeau e Paul
Tillich. A compreensão de inventividades culturais de Certeau, na relação entre táticas e
estratégias, aponta para o fato de como os sujeitos e atores religiosos em ato reconfiguram seu
universo de sentido social ao estarem circundados por lógicas e discursos que não lhe são
próprios ( a noção de “estratégias” certeaunianas), mas que conseguem se movimentar por
práticas táticas ao fazerem seus um discurso outro. É a compreensão heterológica da própria
dinâmica cultural, compreensão essa que o próprio Certeau experimentou em sua vida. Essa
dinâmica bem pode caracterizar, também, o sincretismo: nesse caso a radicalização, em
termos religiosos, de criar um novo repertório inventivo em meio a circunscrições que a
própria experiência religiosa, principalmente em suas formas mais institucionalizadas, coloca
(muitas vezes impõe). Assim, em correspondência a essa hermenêutica das práticas sociais,
buscou-se na hermenêutica da experiência do sentido, no conceito de demônico de Paul
Tillich uma correlação importante, haja vista que a religião não é só um processo social, mas
implica em dimensões profundas da existência humana, inclusive ao assumir aspectos
também irracionais e de “sem sentido”. Daí a noção de demônico em Tillich para configurar a
ambigüidade radical da experiência religiosa. Isso significa que na vivência com o sagrado ou
com tudo aquilo que nos interpela decisivamente (de forma última, incondicional), vivemos a
tensão da criatividade afirmativa e de uma “criatividade” distorcida. Essa é a essência do
demônico que, tomada “emprestada” como metáfora para qualificar o sincretismo, ajuda a
elaborar, também, a noção correlata de “diacretismo”. É basicamente isso que foi construído
no segundo capítulo. A preocupação, portanto, é não perder de vista os elementos de
ambiguidade em toda relação sincrética que, em nossa análise, é a grande “tentação”, tanto em
termos antropológicos quanto em termos teológicos. Com isso a busca de sintonia com o
diacretismo para marcar as rupturas, desníveis e distorções implicadas em todo ato religioso
criador e inventivo, seja no nível da significação simbólica do sentido das crenças e fé, seja no
nível da recomposição dos espaços e relações sociais, como nos processos de ritualização
desses espaços considerados sagrados.
descobrir sem lugar próprio, sem identidade”206. Vernant não faz uma apologia do “sem
sentido”. O ficar sem identidade, na realidade, é fruto do atravessar as fronteiras culturais
materiais e, principalmente, simbólicas. Não para superar essas fronteiras, mas para conhecê-
las melhor, como constitutivas da própria identidade que se faz na alteridade: perde-se, mas
ganha-se, em paradoxos constantes. Eis aí a perspectiva sobre o demônico em Tillich e sua
relevância para o tema dessa tesa. Assim, a justificativa de definir o sincretismo e o
diacretismo como expressão demônica (ambigüidade da produção de sentidos religiosos) das
formas culturais, formas essas não menos paradoxais em seus jogos táticos e estratégicos em
conformidade com Michel de Certeau.
A partir dessas construções teóricas, a tese chegou a seu último capítulo a fim de
analisar as possibilidades e problemas da afirmação de que a presença das igrejas na TID
hoje, em particular as que compõem o Projeto da IIP, são a conseqüência concreta e em ato
das relações sincréticas e diacréticas afirmadas no capítulo anterior. A abordagem focou
grupos Guarani e Kaiowá, especificamente. Justamente essas relações abrem a possibilidade
da efetivação de um atual “jeito de ser religiosamente plural” (um teko retã?) que se apóia
profundamente, do ponto de vista etnográfico, na recomposição e decomposição sincrética e
diacrética das unidades de relações sociais fundamentais dos indígenas Guarani e Kaiowá (no
caso, o “fogo doméstico” e a “parentela”), quando se instaura esse elemento social chamado
“Igreja/Congregação”. Além disso, não se pode desconsiderar as ressignificações teológicas
que os indígenas tem que fazer, tal como o capítulo exemplificou nas ações xamânicas e
“jesuânicas”, ressignificações essas também sincréticas e diacréticas, a fim de darem conta
das várias ambigüidades instauradas em situação de fronteiras religiosas diversas postas pela
interface com os missionamentos contemporâneos.
206
VERNANT, J.-P. A Travessia das Fronteiras, p. 197.
209
indígenas e missões cristãs, ainda o faz pelo viés das teorias da inculturação do Evangelho.
Nesse sentido, paira sobre a noção de sincretismo, no que diz respeito a interpretar os contatos
afirmados, certa desconfiança por reforçar, paradoxalmente, ainda uma herança colonialista e,
consequentemente, uma hegemonia cristã desrespeitosa para com as tradições indígenas
tradicionais. No máximo o sincretismo é “tolerado” epistemologicamente, pois é,
majoritariamente, uma etapa (a ser superada) pelos outros conceitos citados anteriormente.
Ao pontuar essas questões, é importante fazer uma breve leitura crítica do texto
produzido. Não é fácil, mesmo em uma tese, não somente propor uma teoria do sincretismo
religioso, mas tentar “aplicar” essa teoria em um estudo de caso específico. É uma força do
texto, mas também corre o risco de ser sua fraqueza. Isso permite perceber algumas
dificuldades e possíveis lacunas. São elas: 1. A necessidade de deixar mais explícita as
relações entre os conceitos certeaunianos e tillichianos, muito embora a relação de uma
hermenêutica das práticas culturais (Michel de Certeau) e de uma hermenêutica do sentido
religioso (Paul Tillich) estabelecem bons princípios de correlação, abrindo possibilidades para
aprofundamentos futuros. 2. A necessidade de investigar mais os próprios estudos sobre o
sincretismo religioso, de tal forma a perceber os aspectos de maior ambigüidade nas teorias
propostas. 3. O caráter ainda ensaístico do último capítulo. Permanece a necessidade de
aprofundar e ampliar os exemplos de efetivação, em casos empíricos, das ditas relações
sincréticas e diacréticas, tanto em termos etnológicos quanto em termos teológicos.
campo e “estudo de casos”. Três temas que valem à pena perseguir em estudos futuros:
primeiro, estudar possíveis relações interétnicas e as implicações sincréticas e diacréticas
entre os Guarani e Terena, uma vez que esses também compõem consideravelmente várias
Igrejas na TID hoje. Segundo, a história religiosa da Missão Caiuá e do Projeto da Igreja
Indígena Presbiteriana ainda aguardam um estudo mais detalhado, do qual essa tese foi um
ponto de partida. Por fim, a problematização da categoria tradicional do teko retã, o “jeito de
ser plural, múltiplo” dos Guarani e Kaiowá, aplicada às questões de religião, como campo de
mediação entre a etnologia indígena e as ciências da religião.
São novos horizontes. Perspectivas onde essa tese deu os seus passos. Termino esse
texto com uma menção aos meus interlocutores e interlocutoras indígenas: foram e ainda
serão meus autênticos percursos de mediação para o conhecimento. Não foram somente meus
acompanhantes ou me apontavam a porta de acesso a outros indígenas. Eram a própria porta,
a própria fronteira a ser trilhada.
212
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ANEXOS
Quadro 1
Quadro 2
(Missão)