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IvUJLZ/lVJAJJL i

Este livro conta uma Mstórià absolutamente inédita


e tão fantástica que, se não existissem os documentos
eomprobatórios, passariaporficção. Trata-se da primeira
biografia de uma ex-escrava africana que viveu em Minas
Gerais e no Kio de Janeiro na prijcaeira metade do século
xvra. •; . : v... ~-j-
Rosa Egipcíaca, ao ser presa pela Inquisição de Lis-
boa, narrou detalhadamente sua vida, desde os 8 anos,
quando foi pilhada na Costa de Uidá (Nigéria) e vendida
como escravano Rio de Janeiro, njo ano do Senhor de 1725.
Deflorada por seu patrão, viveu como prostituta nas Mi-
nas por mais de uma década, ate que se manifestou seu
Espirito, convertendo-a em "Esposa da Santíssima Trin-
dade". Açoitada no Pelourinho de Mariana sob a acusação
de feitiçaria, foge para o Rio de Janeiro, onde funda o
Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, congregando
duas dezenas de "madalenas arrependidas", metade delas
negras e mulatas,
E proclamada "Flor do Rio de Janeiro" pelo alto clero,
suas relíquias são disputadas por numerosos devotos.
Suas visões, êxtases e profecias não ficam nada a dever à
das grandes santas barrocas.
Foi a primeira escritora negra na história afro-brasi-
leira. Acusada de falsa santidade e diabolismo, passou
longos anos nos Cárceres Secretos da Santa Inquisição.
O fim de sua vida fantástica continua um mistério:
santa ou embusteira, Rosa Egipcíaca foi a primeira "Es-
crava Anastácia" de nossa historia.

Uma Santa Africana no Brasil


% • •• èé è
Luiz Mott

Rosa Egipcíaca
Uma Santa Africana no Brasil
Copyright © 1993, Luiz Mott Stunário

Capa: projeto gráfico de Geysa Adnet e Felipe Taborda


Introdução 7 l
Foto da capa: Santa Efigênia, imagem do século XVIII da Igreja
do Rosário dos Pretos de Salvador. 1. Os Primeiros Anos no Cativeiro 13
As fotos publicadas neste livro e a da capa são de propriedade 2. Mulher da Vida em Minas Gerais 33
do Autor. • ' ,* s- f 3. Encontro com o Padre Xota-Diabos 49 •
Biblioteca Cenít&l 4. Visões e Atribulações de uma Enderaoniada 85
5. Acoites no Pelourinho de Mariana 101
1993E te§>. N° 2í&,£>.?ír,* 6. Prova de Fogo 127
Naíai, .'2:.iL.J.&.(~.. 7. Mudança de Nome: Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz 161
8. Viagem para o Litoral 179
9. No Rio de Janeiro em 1751 195
Impresso no Brasil 10. Sob a Orientação Espiritual dos Franciscanos 215
Printed in Brazil 11. Fundação do Recolhimento do Parto 255
12. As Primeiras Recolhidas 233
13. Visão dos Sagrados Corações 313
ISBN — 85 - 286 - 0171 - 4 14. Reflexos do Terremoto de Lisboa na América Portuguesa 335
15. Formação de Noviças 357
16. Expulsão do Recolhimento 379
17. A profecia do Dilúvio 405
18. A Vida no Sacro Colégio 425
Todos os direitos desta edição reservados à: 19. As Quatro Evangelistas e e Diabo 451
EDITORABERTRAND BRASIL SÁ 20. Rosa Mística 491
Avenida Rio Branco, 99 - 20a andar - Centro 21. Rituais de Adoração 531
20 040 - 004 - Rio de Janeiro - RJ 22. A Grande Viagem e Casamento com D. Sebastião 545
Tel.: (021) 263 2082 Telex: (21) 33798 Fax: (021) 263 6112 23. Prisão e Sumário no Auditório Eclesiástico
Avenida Paulista, 2073 - Conjunto Nacional do Rio de Janeiro 575
Horsa I - Conjuntos 1301 e 1302 - Cerqueira César 24. No Tribunal do Santo Ofício de Lisboa 625
01 311-SãoPaulo-SP 25. Julgamento do Padre Xota-Diabos 655
TeL: (011) 285 4941 Telex: (11) 37209 Fax: (011) 285 5409 / 852 8904 26. Um Processo Inconcluso 689
Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por
quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editor a. Epílogo 723
Atendemos pelo "Reembolso Postal. Bibliografia 733
Introdução

Durante três séculos e meio, mais de cinco milhões de africa-


nos foram arrancados de suas aldeias nativas e vendidos como gado
humano no Brasil. Destes, a quase-totalidade morreu sem deixar
nenhum registro de suas vidas: com seu. suor e sangue construíram
esta .nação, heróis e vítimas anónimas de nosso triste passado
escravista. Pequena porção dos africanos e seus descendentes,
contudo, mereceu da administração colonial algum tipo de registro
documental: atestados de desembarque nos portos, registros de
batizado, casamento e óbito; escrituras de compra, venda e hipoteca
de escravos; cartas de alforria, processos criminais, registro de
filiação em irmandades de cor, anúncios de negros fugidos nos .•*-"
jornais, etc. São dados ocasionais, instantâneos de vida, impossi- /y-'"
bilitando ao estudioso a reconstituição completa de uma totalidade <-
biográfica. Mesmo daqueles jwujMS_negros_e_negr.as._que..m,ais se ;
destacaram no período do cativeiro, como Zumbi dos Palmares, /
Chica da Silva, Chico Eei, José do Patrocínio — e da idolatrada f
Escrava Anastácia — muito pouco de certo se sabe sobre suas /
vidas, posto faltarem registros autênticos.
Tal lacuna documental evidencia-se ainda mais se a con-
frontarmos com o que ocorreu na América do Norte, onde já em
1845 o ex-escravo Frederic Douglas escrevia ele próprio sua
autobiografia e em 1861repetia amesmafaçanha aforraHarriet
Jacobs. Tais dados obrigam-nos a concluir o quão afastados
foram mantidos os negros na América Portuguesa dos segredos
da escrita, pois além de não dispormos de nenhuma autòhlogra-
fia, nem de biografias de escravos ou. forros vivendo no Brasil,
salvo erro, o mais antigo manuscrito autografado por um ex-es-

Vv<X A; -Cr\
Vj
cravo em nosso país data de 1752 — e traz'a assinatura de nossa provavelmente a mulher africana do século XVIII sobre a qual
biografada: ROSA MARIA EGIPCÍACA DA VERA CRUZ. se dispõe de maior número de informações biográficas. Ar.econs-
tituição minuciosa da vida desta_ex-escr_aya, e sobretudo de suas
visões, revelações celestiais e jmisticismo, tornou-se possível
graças à descoberta, na Torre do Tombo de Lisbõa,~de dois
Rosa Egipcíaca foi uma africana igual a milhões de outras processos inédrfõs"quê"íivemos á~enormlTãlegria de trazer àluz
mulheres que tiveram a desventura de ser capturadas e vendi- do dia apólTdõis séculos dê esquecimento. Rosã~e~seú'úT6'imo
das como gado humano no Novo Mundo: menina de 6 anos sofreu propriêfarío7õ Padre Francisco Gonçalves Lopes,, foram presos
o horror dantescb da travessia oceânica dentro do porão de um pela Santa Inquisição de Lisboa no ano de .1762, acusados de,
navio negreiro; foi batizada por ordem de seu primeiro proprie- heresia e falso misticismo. Estes dois processas de mais de 350 )
tário no Rio de Janeiro, no ano do Senhor de 1725, o mesmo que folhas, que incluem, duas longas confissões feitas pela ré'——a (
a deflorou, mal completara 14 anos; quando adulta, foi açoitada primeirano Auditório Eclesiástico do Rio de Janeiro, e a segunda
no pelourinho da vila de Mariana, nas Minas Gerais, e, como nos cárceres do Santo Ofício de Lisboa, reconstroem, ano a ano, •
suas irmãs de cor, deixourse.fascinar pelos tecidos coloridos e sua biografia e rev-elaçoes celestiais. Através deles e de uma
jóias doiradas do mundo dos brancos. Teria morrido anónima se preciosa coleção d1^ 55 cartas assinadas por Rosa Egipcíaca e por '
não tivesse caído nas garras da Santa Inquisição: destacou-se seu Capelão Exorcista, pudemos reconstituir a biografia desta
excepcionalmente de suas irmãs e irmãos de cor por uma série criatura fantástica, dotada de uma inteligência privilegiada e
de fenómenos sobrenaturais e peripécias biográficas. Foi repu- de um carisma tal, que chegou a merecer do Provincial dos
tada como portadora de poderes paranormais, amealhando nu- Franciscanos do Largo da Carioca o maravilhoso título de "A
meroso séquito de devotos não só entre o populacho, mas também Flor do Rio de Janeiro". Uma Rosa Negra, africana, ex-cativa e
nas entes, .a ponto de ser adorada de joelhos por sen ex-senhor ex-prostituta é nomeada pelo alto clero do Brasil como "a maior
e proclamada_ppr diversos sacerdotes europeus como a "nova santa do céu"! Santidade e veneração que o impiedoso tempo
Redentora do género humano". Foi não. apenas a primeira apagou completámente da memória nacional, tanto que até hoje
africana no Brasil, de que temos notícia, a conhecer os segredos nenhum autor sequer citou o nome e a existência desta deusa
da leitura, como também .provavelmente a primeira, escritora de ébano, personagem fantástica, verdadeira pérola negra da
negra de toda a história, pois chegou a reunir centenas de qual temos o orgulho e privilégio de resgatar a história, a um
páginas manuscritas de um edificante livro: Sagrada Teologia tempo gloriosa e sofrida. .
do Amor de Deus, Luz Brilhante das Almas Peregrinas, lastima- Antropólogo de formação, há duas décadas pesquisando os
velmente queimado às vésperas de sua detenção, mas do qual papéis velhos nos arquivos nacionais e estrangeiros, confesso
restaram algumas folhas, originais. Rosa .Egipcíaca é também que nunca encontrei criatura tão fascinante, com uma vida tão
excepcional por ter sido a única mulher de cor, ex-escrava e incrível e rocambolesca como a de Rosa Egipcíaca. Vida barroca
ex-prostituta, em todo o mundo cristão, a.fundar um "convento cheia de contrastes e contradições, posto ter conhecido tanto o
de recolhidas", o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, cuja desconforto das senzalas quanto os salões atapetados de dois
capela, reconstruída, existe, ainda hoje no centro comercial do palácios espiscopais; ter vivido como prostituta nas montanhas
R i o d e Janeiro. . . . . ' . . - • de Minas Gerais e, depois de convertida, transmutar-se em
Por tais motivos —• e muitos outros revelados nos trinta e fundl^ora V _fC^^ e
oito anos que viveu no Brasil — Rosa Egipcíaca da Vera Cruz é madalenas arrependidas; ter sido insultada* por uns como em-

l
busteira e possessa do demónio, enquanto muitos outros idola- e que em sua falta poderá ser substituída com resultados próxi-
travam-na, e às suas relíquias/ como sendo a própria esposa da mos pelo Requiem de Mozart. Se for possível visitar alguma de
Santíssima Trindade. Santa que rezava em latim, que sabia nossas igrejas setecentistas, detenha-se nos detalhes das escul-
cantar comoventes hinos litúrgicos, mas que não dispensava, turas, talhas doiradas e pinturas antigas, aparelhando-se assim
como boa africana da Costa dá Mina, seu inseparável cachimbo; para muito melhor vislumbrar as muitas revelações e êxtases
que em seus arroubos místicos pode perfeitamente ser equipa- de nossa mística africana.
rada às principais videntes canonizadas por Roma, mas que não
resistia, às vezes, à tentação de louvar seu Divino Esposo, Nosso
Senhor Jesus Cristo, dançando frenética ao ritmo do batuque.
Santa para muitos, embusteira par a outros, alienada mental
Entre a descoberta dos manuscritos de Rosa Egipcíaca
ou epiléptica como a maioria dos santos, místicos e visionários,
em 1983, e o retorno à Torre do Tombo, em 1987 — sempre com
Rosa Bgipcíaca foi uma mulher fascinante, contraditoriamente
o indispensável apoio do CNPq, gastamos mais de seis anos
megalomaníaca e humilde, ambiciosa e singela. Criatura "esprita- pesquisando e redigindo este trabalho. Como não encontramos
da" mas de carne e osso, e, mesmo que reconheçamos SUEIS imper-
publicações que tratassem em profundidade de diversos assun-
feições, alienação e até embustes, não há como não admirá-la.
tos relacionados à vida desta beata negra, fomos obrigados a
Através de sua vida prodigiosa, desfilam alguns aspectos
pesquisá-los, o que explica o elevado número de páginas deste
fundamentais de nossa sociedade antiga, às vezes confirmando o
livro e alguns "desvios" temáticos que certamente deliciarão os
ensinamento de nossos melhores estudiosos, outras obrigando-nos
estudiosos mais exigentes, mas talvez enfadem a quantos estão
a rever ou ampliar nossa compreensão das relações sociais dentro
interessados sobretudo nas aventuras e desventuras de Rosa
do escravismo colonial, os pressupostos de nossa religiosidade
Egipcíaca. Além da reconstituição de sua biografia, fizemos
popular, o papel repressor do Santo Ofício às diferentes manifes-
longas digressões sobre outros aspectos complementares à sua
tações do sincretismo.
vida, tais como sobre a etnia Courá ou Courana, à qualpertencia
Por se tratar de uma santa barroca; vivendo-num período
esta africana; sobre a atuação do Santo Ofício nos lugares onde
igualmente extravagante, não tivemos como escapar às influên-
viveu; sobre a instituição dos recolhimentos no Brasil colonial;
cias coevas, daí prevenirmos desde já o leitor para que se
sobre o culto aos Sagrados Corações, que tiveram em Rosa sua
prepare para ler um livro barroco — atribuindo a este termo
principal vidente e propagandista na América Portuguesa, etc.
seu sentido primitivo: "pérola irregular com altibaixos", segun- A fim de poupar os leitores mais apressados de tais desvios
do a definição de nosso melhor dicionarista daquela época, o subsidiários, houvemos por bem resgatar a prática barroca
carioca António Moraes Silva, também, ele próprio, vítima da editorial de subdividir o livro em abundantes capítulos, permi-
Inquisição, e que nos acompanhará ao longo destas páginas, tindo assim uma leitura seletiva da biografia de nossa Beata,
"traduzindo" termos e expressões barrocas encontrados na
documentação.
Neste sentido, tomamos a" liberdade de sugerir enfatica-
mente ao leitor que antes e durante a leitura desta obra, para
melhor imbuir-se do barroquisrnode nossabiografada e da época De todos os livros que publicamos, este foi não apenas o
em que viveu, procure ouvir os dois volumes do disco Mestres do que nos tomou mais tempo de pesquisa e redação, como o que
Barroco Mineiro, obra maravilhosa mas lastimavelmente rara mereceu o maior número de contribuições intelectuais, indica-
ções bibliográficas, pistas e ideias. Nossa mais cordial gratidão

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a todos os nossos colaboradores, especialmente a Adalgisa Ar an-
tes Campos, Ana Isabel da Cunha, Cândido da Costa e Silva,
Caio Boschi, Daniela Calainho, David Price, Fernando Rocha Os Primeiros Anos no Cativeiro
Perez, Henrique Osvaldo Fraga de Azevedo, Iraci dei Nero
Costa, João José Reis, Júlio Braga, Lana Lage, Laura de Mello
e Souza, Leila Algranti, Luciano Raposo Figueiredo, Luiz Carlos
Villalta, Maria Lúcia Mott, Mário Maestri Filho, Mary dei
Priore, Paulo Bonorino, Robert Howes,_ Roberto Albergaria, Dentre os milhares de africanos trazidos anualmente da
Renato Venâncio, Ronaldo Vainfas, Vittorino Regni, Vivaldo Costa da Mina para o-Brasil, nos inícios do século XVIII, calcu-
Costa Lima, Yeda Castro, Welber de Sousa Braga. Durante as la-se que no ano de 1725 devem ter sido desembarcados no Rio
pesquisas e transcrição dos documentos, Aroldo Assunção foi de Janeiro por volta de 5.700 cativos. E no meio dessa massa
meu braço direito; Carlita Chaves, minha fiel doméstica há mais humana— que por ano retirava da África, em direção à América
de uma década, esclareceu-me várias dúvidas com sua genuína Portuguesa, mais de 120 mil seres humanos reduzidos à condição
memória de neta de africanos; José Carlos Santos Silva colabo- de gado — exatamente no ano de 1725, chega ao porto do Rio
rou, com suas repetidas cobranças, para que este estudo não uma negrinha de 6 anos, que na pia batismal receberá o nome
demorasse ainda mais; Marcelo Ferreira de Cerqueira, meu de Rosa,
companheiro querido, com seu carinho e presença amiga, criou Nada sabemos sobre sua infância, família, aprisionamento
as condições emocionais para a realização desta obra. A todos, e travessia do Atlântico no navio negreiro. A única referência
minha eterna gratidão. Ofereço este livro a meus pais, Leone sobre seu passado africano é dada por ela mesma, aos 43 anos
Mott e Odette de Barros Mott e a minhas filhas Míua Tanabe de idade, quando foi presa no aljube por ordem do bispo do Rio
MotteTamíMott. de Janeiro, Dom António do Desterro. No "Auto de Perguntas
Feitas à Ré Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, Preta Forra",
Bahia de Todos os Santos, 2 de abril de 1991, ao ser indagada "pela sua.vida_e_ .mojio_dela_e_corno_a_passou,
na Festa de Santa Maria Egipcíaca. disse que ela é natural da Costa da Mina, de_.n^cjÚ3_c_qurana e
que veio para esta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em
idade de 6 anos..,". Noutra ocasião, quando interrogada pelos
Inquisidores de Lisboa, acrescentará mais um detalhe identifi-
cador de sua nacionalidade: disse ter nascido na "Costa de Judá,
nação courana".
Pouquíssimas informações encontramos nos livros a res-
peito da nação courana. Dentre as centenas de etnias africanas
trazida^ para o Novo Mundo nos três séculos de tráfico negreiro,
os nativos desta nação aparecem referidos nos documentos com
diferentes grafias: courá, cura, curamo, couramo, curano, cou-
xaina, courã, Içaram, e pelos compostos courá-mina, courano da
Costa da Mina, courã-baxé. Todos estes nomes provêm, com
certez a, de três importantes acidentes geográficos situados entre

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a Fortaleza de Ouidah (Judá ou Ajuda) e o Reino de Benin: o rio
Curamo, a lagoa e a ilha do mesmo nome. "É sem dúvida durante o trajeto da África para a Amé-
Se nos debruçarmos sobre os poucos mapas antigos da rica que a situação dos negros se revela mais horrível.
África relativos a esta região, podemos descobrir, bem próximo Reflita-se sobre a impressão cruel do negro diante da
à costa, ao sul do porto de Judá e ao norte do rio Benin, esses separação violenta de tudo que lhe é caro, sobre os efeitos
três pontos geográficos, assim como a pequena vila de Curamo, do mais profundo abatimento, ou a mais terrível exaltação
que na descrição do Eeino de Benin, de 1748, é dita como de espírito, unidos às privações do corpo e aos sofrimentos
situando-se a l O- léguas do rio Formoso, povo ação que tinha todo da viagem. Esses infelizes são amontoados num comparti-
seu espaço circundado por paliçada dupla, distante 13 léguas da mento cuj a altura raramente ultrapassa um metro e meio.
vila de Jábum. Revela a' mesma fonte que os couranos distin- Este cárcere ocupa todo o comprimento e a altura' do porão
guiam-se pela excelente qualidade e beleza dos tecidos que aí do navio. Aí são eles reunidos em número de 200 a 300. Os
faziam, sendo vendidos por altos preços na Costa do Ouro. escravos aí são amontoados de encontro às paredes do navio
Segando ensina Pierre Verger, grande estudioso e profundo e em torno do mastro. Aonde quer que haja lugar para uma
conhecedor desta região, os courá, inimigos do Rei do Daomé criatura humana e qualquer que seja a posição que se lhe
habitavam a lagoa de Curamo, nos arredores da atual cidade de faça tomar, aproveita-se. O mais das vezes as paredes com-
Lagos. Provavelmente foi numa das batalhas ou escaramuças portam, a meia altura, uma espécie de prateleira de madeira
entre essas etnias inimigas que nossa menina courá foi presa, sobre a qual j az uma segunda camada de corpos humanos.
vendida com outros cativos e despachada no porto de Judá em Todos, principalmente nos primeiros tempos da travessia,
direção ao Brasil. têm algemas nos pés e nas mãos e são presos uns aos outros
Nada sabemos sobre a parentela de Rosa: na sua confissão por uma comprida corrente. O calor ardente, a fúria das
em Lisboa declarou "não saber quem são seus pais". Diz o pintor tempestades e a alimentação a que não estão acostumados
Rugendas que "infelizmente, quando se vendem escravos, rara- — de feijão com carne salgada—, afalta d'água são as causas
mente se tomam em consideração os laços de parentesco. Arran- de grande mortalidade."
cados a seus pais, a seus filhos, seus irmãos, esses infortunados
explodem às vezes em gritos dolorosos". Em nenhum momento Cinquenta dias e cinquenta noites dentro deste inferno, da
de sua biografia Rosa faz qualquer menção à sua família africa- Costa da Mina ao Rio de Janeiro! "As crianças apinhavam-se na
na. Somente quando adulta é que construirá sujaj!família-espi=. primeirameiaponte, como arenquesnumbarril. Setinhamsono,
ritual", pois, além de se tornar comadre e madrinha, terá deze- caíam uns sobre os outros: representavam de 8 a 13% dos
nas de "filhas" em seu Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, carregamentos no século XVIII." Apesar de calcular-se de 15 a
além de muitas outras dezenas de "filhos espirituais" e devotos 20% a taxa de mortalidade dos negros durante a travessia, havia
no interior de Minas Gerais e na cidade do Rio de Janeiro. Terá ocasiões em que a mortandade era devastadora: em 1736, o
também diversos "pais espirituais", seus confessores, com os negreiro e familiar do Santo Ofício daBahia, João da Costa Lima,
quais manterá cordial e devota relação, filial. saiu da Costa da Mina, do porto de Jáquém, com um navio
A travessia do Atlântico dentro' do porão do navio negreiro carregado com mais de 800 escravos! Vindo com pouco manti-
deve ter sido uma experiência terrível para essa menina recém-es- mento e água reduzida, em poucos dias de navegação, morreram
cravizada: mais de 400 negros, cujos corpos foram sumariamente jogados
no mar. Tiveram de desembarcar na ilha dos Zambores para.
evitar a perda total da "mercadoria negra".

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Foram, certamente tais encantos primaveris e a impunida- insaciável Minas Gerais. Talvez fossem capitaneados por ines-
de dos abusos sexuais, que devem ter despertado a concupiscên- crupulosos ciganos, etnia muito afeita, na época escravista, ao
cia do Sr. Sousa de Azevedo, pois, conforme contou ela própria, tráfico inter-regional de gado humano e cavalar. Deve ter sido
"em companhia deste senhor esteve até a idade de 14 anos, o esta a segunda grande caminhada forçada na vida desta garota:
qual a deflorou e tratou com ela torpemente". a primeira, há uns nove anos passados, de sua aldeia tribal até
Malgrado os anátemas do clero contra a mancebia é a o porto de Judá; agora esta, atravessando as densas e úmidas
simples fornicação dos senhores com suas escravas, o que florestas serranas, ferindo seus pés descalços nos atalhos pedre-
aconteceu à nossa negrinha adolescente devia ser a regra para gosos das Minas. Geralmente quando transportados em grupos,
a maioria das cativas, neste período tão cruelmente marcado os escravos iam em fila indiana, tendo à frente e na retaguarda
pelo machismo e autoritarismo dos donos do poder. Como lembra os condutores montados a cavalo; iam amarrados coro. cordas ou
acertadamente Gilberto Freyre, "não há escravidão sem depra- correntes, chapéu de palha na cabeça, vestidos sumariamente,
vação sexual. É da essência mesma do regime". Se Rosinha os mais fortes carregando fardos e farnéis nas costas.
engravidou, abortou ou pariu, nada nos informa. O trajeto deve ter levado pelo menos dez ou doze dias de
Após oito anos de residência no Bio, em 1733 seu senhor viagem, seguindo o mesmo itinerário referido por Antonil no seu
"a vendeu para as Minas, a Dona Ana Garcês de Morais, que "Roteiro do Caminho Novo para as Minas" (1711). Partindo da
morava no Inficcionado". Rosa tinha então 14 anos. Novamente cidade do Rio de Janeiro por terra, com gente carregada e
a separação de' seus conhecidos, a ruptura da rotina de sua vida "marchando à paulista", isto é, "andando bem desde a madru-
de adolescente, a angústia e temor face ao desconhecido. Por gada até às 3 horas datarde, quando se arranchav ampara terem
mais fome que tenha passado desde que atingira a idade da tempo de descansar e buscar alguma caça, peixe, mel, palmito
razão, por mais pancadas, beliscões, palmatoadas ou mesmo ou outro qualquer mantimento", atravessavam a Baixada Flu-
chicotadas quetenharecebidonacasade seu senhor, certamente minense, transpunham a serra do Mar, cortando a seguir os rios
a menina-moça africana criara laços afetivos e de amizade com Paraíba e Paraibuna, sem falar nos incontáveis regatos e brejos
outros escravos, talvez com gente de sua mesma nação, de modo atravessados a vau. Nas encostas da Mantiqueira -—onde já
que provavelmente derramou muitas lágrimas ao se despedir dizia Antonil que um ditado popular garantia que "quempassou
do pequeno grupo de seus entes queridos. Jamais teria imagi- a serra Amantiqueira aí deixou dependurada ou sepultada a
nado que, passados vinte anos, haveria de voltar a esta mesma consciência..."— abasteciam-se no pouso de João Gomes (hoje
cidade já então como liberta, cercada de muitos louvores inclu- denominado Santos Dumont), cruzando então a íngreme e fria
sive do próprio superior dos franciscanos, que orgulhosamente serra, atingindo a famigerada Borda do Campo, onde abunda- •
dirá ser "Rosa a flor do Rio de Janeiro". vam roças de milho, abóbora e feijão e, para os mais abastados,
Por que seu senhor a vendeu, como se processou atransação frangos e leitões. Daí continuavam pelo arraial da Igreja Nova
comercial, como ocorreu a viagem da negrinha courá do litoral (Barbacena), passandopelaRessaca, entroncando-se aí apicada:
pára o interior das Gegai§^são_guest5es que_apenas podemos para a esquerda atingia-se o rio das Mortes, e a vila de São João
conjecturar, posto que(^_documentagáo é omissa^)O certo é que delRei; para a direita, passando Carandaí, Congonhas eltatiâia.
os mais de 500 km que separam o RioTFJãíõelroda comarca da chegava-se ao coração das Gerais, a bela e mui fiel Vila Rica.
vila do Carmo devem ter sido percorridos a pé pela infeliz No ano em que Rosa chega a esta Capitania—1733 —, as
escrava, provavelmente fazendo parte de um magote de cativos, Minas estavam no seu apogeu. "Vila Rica era, por situação da
dos muitos que nestes anos eram levados para a florescente e naturez a, cabeça de toda a América e, pela opulência das riquezas,

20 21
a pérola preciosa do Brasil." Rosa talvez tenha passado por Vila
Bica, quem sabe mesmo permanecido algum tempo presa junto "Para se suprirem os negros que continuamente morrem
com. outros cativos à espera de comprador, A paisagem natural, nas Minas, é preciso que entrem cada ano 6 mil negros ao
arquitetônica, e a composição social de Minas Gerais eram bem menos. Hoje as Minas teriam 150 mil pessoas — os negros
diversas da que a negrinha couraria se acostumara a ver quando seriam 100 mil. A maior parte das gentes são roceiros e
morava à beira-mar. mineiros. Os letrados que há nas Minas estão em Vila Rica
Eis como o jesuíta Antonil descrevia as Gerais logo no início 15, no Ribeirão do Carmo 9, no Sabará 8, no Rio das Mortes
da exploração aurífera: 4. Os médicos são emVilaRicaS, no Ribeirão um, no Sabará
2. Os cirurgiões serão 80, e as boticas talvez não sejam 30.
,,22
' "A sede insaciável do ouro estimulou a tantos â deixarem Ornais são oficiais mecânicos, mercadores e taverneiros.'
suas terras e meterem-se por caminhos tão ásperos como
são os das minas, que dificultes amente se poderá dar conta Aí chegando, Rosa vai morar na freguesia de Nossa Senho-
do número de pessoas que atualmente lá estão. Contudo, radolnficcionado. Este lugar, hoje commenos de 500 habitantes,
os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo era um arraial situado a 4 léguas ao norte da vila de Mariana,
tempo, e as correram todas, dizem que mais de 30 mil almas limítrofe ao sul com as minas de Catas Altas, ganhando esse
se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos curioso nome devido à maneira como o local foi "inficcionado"
ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendendo e com- por invasores sequiosos do abundante ouro que iniciakaen±e_aí
prando o que se há mister não só para a vida, mas para o se encontrou. Esta é uma das versões da origem deste topônimoT)
regalo, mais que nos portos do mar. tendo como seu defensor Diogo Vasconcelos em sua Historia
Cada ano vem nas frotas quantidade de portugueses e Antiga dos Minas Gerais. Para ele, ..
de estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades,
vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos "inficcionar o ribeiro se dizia quando flibusteiros o assal-
e pretos, e muitos índios,"de que os paulistas se servem. A tavam em tumulto, como ocorreu com a descoberta de
mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulhe- Salvador de FariaAlbernoz, onde a espantosa cópia de ouro
res, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, que se encontrava nas areias e cascalhes desse rio deslum-
seculares e clérigos e religiosos de diversos institutos, brou a baianos e novatos, levando-os a escalarem o desco-
berto e todo o leito do ribeirão, sem respeito às datas nem
muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa."
aos donatários, recebendo o lugar o nome de Inficciona-
do."23
As Gerais absorviam cada vez mais mão-de-obra escrava:
de 1715 a 1727, saem do Rio de Janeiro 26.006 cativos em direção O descobridor malfadado destas .minas, Albernoz, além de
às Minas,'uma média de 2.300 todos os anos. No ano em que minerador, era exímio na arte da medicina, sendo por isto
Rosa chega nesta região existiam ha capitania pouco mais de 96 acusado de práticas de feitiçaria, razão pela qual foi enviado
mil cativos, sendo que somente em Mariana residiam mais de preso para o Santo Ofício da Inquisição, morrendo contudo de
26 mil. Os brancos representavam nesta época aproximadamen-
peste no Rio de Janeiro antes de ser encarcerado. Foi o primeiro,
te um quarto da população mineira. Manoel Soares de Sequei-
de uma série de mais de dez nomes, entre eles, o de Rosa, a ser
ra, funcionário da Coroa, assim descrevia as Gerais no segundo
denunciado no Tribunal de Lisboa, todos moradores no arraial
quartel do século XVIII:
do Inficcionado.

22 23
•)



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s
e

m
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o
A rua principal do Inficcionado.

Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, matriz do Infic-


cionado, local onde Rosa recebeu o" segundo exorcismo.

24 25
Outra versão da origem, deste topónimo é dada pelo Cónego e companhia. Um ano depois deste episódio, em 1722, nasce
Raimundo Trindade, o principal historiador do catolicismo nas nosso literato, vivendo no arraial e na fazenda de seus pais os
Minas Gerais. Diz que "os paulistas lhe deram o nome Inficcid- primeiros anos de sua infância, sendo ainda b em menino quando
nado por lhe acharem muito trabalho e pouco ouro". Outra levaram-no para o Rio de Janeiro para estudar com os jesuítas,
asserção é divulgada pelo mais famoso nativo deste arraial, viajando para Lisboa aos 9 anos, onde primeiro estudou com os
nosso primeiro poeta épico, Frei José de Santa Rita Durão, que oratorianos, para aos 16 anos entrar na Ordem dos Cónegos
assim se referiu a seu torrão natal no Canto IV de O Caramuru: Regrantes de Santo Agostinho. Em 1756 recebe o grau de doutor
em Cânones pela Universidade de Coimbra, realizando viagens
Nem tu faltaste ali, Grão Pecicava, ilustradas pelaEspanha e Itália, onde conviveu com intelectuais
Guarido o carijó das áureas terras, do porte de Becharia e seu conterrâneo, BásíHo da Gama. -Foi
Tu que as folhetas de ouro te ornava grande colaborador de Pombal na justificação teológica da ex-
Nas margens do teu rio desenterras: pulsão dos jesuítas de Portugal e seus domínios, ficando contudo
Torrão que do seu ouro se nomeava mais famoso e conhecido pela posteridade como autor de O
Por criar do mais fino ao pé das serras Caramuru, primeiro poeta épico ater como inspiração umalenda
Mas que feito em fim baixo e mal prezado, brasílica e tratar nossos índios como heróis nacionais. Quando
O nome teve de ouro.inficcionado. Rosa chegou àFazendaCataEscura, residência dos progenitores
/' •' •' de Santa Rita Durão, nosso poeta há dois anos já se encontrava
Quer dizer, "inficcionado" seria o ouro que no início mani- no Reino. Dizem que nunca mais voltou a seu torrão natal.
festou elevado quilate, mas com o tempo demonstrou ser inferior: Segundo nos informa, o próprio cônego-poeta em sua bio-
"baixo e mal prezado". grafia, seu pai, Paulo Rodrigues Durão, era sargento-mor de
Tal lugarejo pertencia à comarca de Vila Rica, sendo milícias:urbanas, tendo nascido em Portugal, de família ordiná-
ria. Sua mãe, Ana Garcês de Morais, natural da Capitania de
l
sufragâneo da vila de Mariana — que é elevada à categoria
de'cidade^somente em~1745. Descoberto portanto por Salvador São Paulo, casou-se mais tarde;-em segundas núpcias com o
de Faria Albernoz, nos primeiros anos do século XVIII, logo secretário do governador de Goiás, Torne Inácio Mascarenhas.
se dirige para o arraial dó Inficcionado o português Paulo Ao chegar nas Minas, o Sr. Durão primeiro instalou-se em
Rodrigues Durão, futuro pai do famoso Frei Santa Rita Durão. Congonhas de Sabará, mudando-se depois para o Morro Verme-
Rosa foi comprada por D_orxa_AnaJ3#r_câs_jie_Mprais "que lho, mas, atraído pelo eldorado descoberto por Albernoz, mudou-
estava neste tempo amancebada com Paulo RodrigugsJDurão, e se definitivamente para o Inficcionado. Foi ele próprio quem
nesta mancebia continuou por anos, até que se casou com o construiu a matriz do arraial, dedicada a Nossa Senhora de
mesmo, tendo-a sempre no seu serviço". Observe-se a enorme Nazaré, um dos títulos mais venerados da Virgem Maria em
coincidência: Rosa foi escrava dá mãe de Santa Rita Durão, e Portugal: seu primeiro registro paroquial data de 1707, tendo
ela é quem nos informa que, quando nasceu nosso grande poeta sido inaugurada aos 28 de maio de 1729, dia de Santo Agostinho,
épico, sua mãe vivia "concubinada por portas adentro" com o Sr. conforme registro e relatório do vigário, Padre Lourenço António
Durão. Informação, aliás, que outras fontes manuscritas ratifi- Pereira. Tinha como filiais a partir desta data as igrejas de
cam, pois, em 1721, na devassa episcopal realizada neste lugar, Santana de Piracicaba, Santo António, do Gama e Bento Rodri-
compareceu à Mesa da Visita o Capitão Paulo Rodrigues Durão, gues.
denunciado de estar concubinado com "uma mulher desimpedi- Rosa deve ter ficado decepcionada com a insignificância do
da", sendo ordenado pelo visitadór que a expulsasse de sua casa

26 27
arraial onde morava sua nova proprietária, acostumada que
estava cora a movimentação humana e o desenvolvimento urba-
no do Rio de Janeiro. Boquiaberta deve ter ficado com a riqueza
arquitetônica de Vila Rica, com seus sobrados e várias igrejas
recém-construídas, tudo ainda brilhando e cheirando a novo.
Antes de chegar ao Inficcionado, passou obrigatoriamente por
Mariana, menorzinha do que Ouro Preto, mas também osten-
tando ricas construções assobradadas e imponentes igrejas,
comera de Nossa Senhora da Assunção (1711), Santana (1720),
Santo António, o primeiro templo a ser construído no então
arraial do Ribeirão do Carmo. De Mariana ao Inficcionado são
4 léguas de serraria e vales recortados por cursos d'água, e chão
vermelho-ferrugem forrado por pedras e cascalhes. Deslumbran-
tes quaresmeiras hoje colorem esta estrada de roxo;
O Infíccionado, ha verdade, não passava de um humilde
arraial de mineiros, encravado num vale cercado por altas
montanhas, um arruado que nunca abrigou sequer uma centena
de residências. No alto deummorrote à entrada do arraial, para
quem vinha de Catas Altas, estava a Fazenda Cata Preta, cuja
casa em ruínas tive ocasião de visitar em maio de 1987. Aí viveu
Rosa, dos 14 aos 32 anos, entre 1733 e 1751. Essa casa, a sede
da fazenda onde nasceu Santa Rita Durão, situa-se a 5 minutos
a pé do. centro do arraial. Provavelmente era a maior e. mais
suntuosa residência da freguesia: dois andares, uma dezena de
portas e grandes janelas, construída de pau-a-píque umaparte,
. Ruínas da casa da família deíFr.ei Santa Rita Durão, no Inficcionado, outra, com paredes de pedra. Da ampla varanda vê-se, a alguns
Minas Gerais, nó sítio Cata Escura, 'onde Rosa Egipcíaca viveu entre passos de.distância, uma construção menor, com alicerces tam-
1733-1745. ' ' ' - :- • • • ' . . ' bém em grandes pedras, talvez a cozinha ou o dormitório das
negras de dentro de casa. Ao pé da colina, um córrego de água
cristalina. Roças de mantimentos, cocheira de animais e depen-
dências de escravos deviam outrora circundar a .casa-grande
que, altaneira, avistava praticamente todo o arraial.
Da entrada deste povoado até seufinal, uma fileira de casas
voltadas para a "rua"—única artéria que corta o arraial de norte
a sul. No meio do arruado, numa elevação natural reforçada por
engenhoso muro de pedras, Paulo Rodrigues Durão, quatro anos
antes da chegada de Rosa, concluíra a construção da Matriz de

28
í li 29
Nossa Senhora de Nazaré, templo simples, com duas torres e Notas
frontão triangular, cujo adobe pintado de branco, com frisos,
portas e janelas de cor azul, constituía a principal peça arquite-
tônica desta freguesia de garimpeiros. Para quem vinha da í. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, tomo XXXIX, p.
465: Número de Nações de Escravos que Entraram pelo Porto do
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, o Inficcionado deve
Rio de Janeiro entre 1731-1735. In Goulart, Maurício. A Escra-
ter lembrado à adolescente Rosa, mais sua aldeia africana do vidão Africana no Brasil. S. Paulo: Alfa-Omega, 1975.
que as cidades dos brancos. 2. Agradeço particularmente aos professores Iraci dei Nero da Costa
O Capitão Durão — como era chamado — devia ser homem e Mário Maestri Filho as referências relativas à etnia courana.
abastado, pois além da Fazenda Cata Preta, onde nasceu seu 3. Verger, Pierre. Flux et Reflux de Ia Traite dês Nègres entre lê Golfe
falho poeta, possuía numerosa escravaria, constando que no ano d'e Benin et-Bahia de Todos os Santos, du XVIIème Siècle au~XIX
de 1720, na revolta de Vila Rica, chefiada por Felipe dos Santos, Siècle. Paris: Mouton, 1968. Carta da Guiné. Paris: Bonne, 1730.
levou do Inficcionado muitas dezenas de cativos seus para No livro de W. Bosman, A New andAccurateDescription oftke Coast
defender o Conde de Assumar. que a 16 de julho, frente a 2 mil ofGuinea (1721), encontramos a descrição de duas aldeias "corra",
homens, dominou a rebelião. Pai e filho sempre foram fiéis próximas ao Cabo MLzurado, "aldeias muito pobres, porém com
vassalos de Sua Majestade, primeiro de Dom João V, depois de habitantes hospitaleiros". Temos dúvida se se trata da mesma etnia
localizada às margens do rio Curamo. Sobre outros povos tribais
Dom José I. ,
cujos nomes têm semelhança com este grupo étnico, consulte-se G.
Apesar de sua importância social e riqueza, nem por isto a P. Murdock. África: Its People and their Culture History. N. York:
família onde Rosa foi morar destacava-se pelas virtudes: o mau McGraw-HiHBook,1959. ;
exemplo de uma moral relaxada vinha de sua própria dona, que, 4. Histoire Générale dês Voyages. Paris, 1748. -
apesar de desimpedida, "mantinha ilícita conversação continuada 5. Verger, P. Op. cit. Carte de Guinée, de Sanson d'Abeville (1656).
por tempo considerável" com o Capitão Durão. As Constituições 6. Rugendas, J. M. Viagem Pitoresca através do Brasil. S. Paulo:
Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), seguidas em toda a Martins-USP, 1972, p, 138.
Colónia, multavam os culpados em concubinato, da seguinte forma: l.Idem, ibidem, p. 136.
sendo ambos amásios solteiros, deviam pagar 800$000 réis; sendo 8, Mattoso, Kátia de Queiroz. Ser Escravo no Brasil. S. Paulo: Bra-
ambos ou algum deles casado, pagava cada um o valor de siliense, 1982, pp. 47-53.
9. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Lisboa: Autos Forenses dos
1:000$000. Na reincidência, a multa era duplicada ou triplicada.2
Familiares do Santo Ofício, Maço 3, n. 19. (Doravante abreviado
Por esta época, o mínimo que se pagava por um escravo nas Minas
para"ANTT") . '
era 20:000$000 — daí avaliarmos o quanto significavam tais 10. Coaracy, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de
multas eclesiásticas. Viver amancebado, ou manter ''tratos ilícitos", Janeiro: José Olympio, 1965, p. 501.
era comum nesta "frente pioneira", e o capitão do Inficcionado e 11. Rugendas, M. Op. cit., p, 138.
Dona Ana repetiam, simplesmente, o padrão dominante da 12. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Livro de Batizados de Brancos e
região. . - • • - . . . • Escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Candelária, ns. 3, 5 e 6.
13. Vide, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebis-
pado da Bahia (1707). S, Paulo: Tipografia 2 de Dezembro, 1853, §979
e ss.
14.-Forde, Daryll. The Yoruba-Speaking Peoples of South-Western Ni-
'r l géria. London, International African Institute, 1950.
15. Mott, MariaLúcia. A Criança Escrava na Literatura deViajantes.

30 31
Cadernos dePesquisa daFundação Carlos Chagas, n. 31, dezembro •2
1979, p. 64, opwd Schlichthorst, Cari. O Rio de Janeiro como é
(1825-1826). . . , , .
16. Em 1700, assim bravejava o jesuíta Benci contra os imorais escra- Mulher da Vida em Minas Gerais
vistas brasileiros: "Não é escândalo e o mais abominável aos olhos
de Deus amigar-se o senhor, com a sua escrava? E não é ainda muito
maior e mais abominável obrigá-la-à força a consentir neste pecado
'de seu senhor, è castigá-la quando repugna, e quer apartar-se desta
ofensa de Deus? Nenhum católico o há.de negar! Além da pena
Nas Minas Gerais, terra de aventuras e nomadismo, reple-
. eterna, ainda nesta vida merecem a morte temporal imposta pelo ta de jovens portugueses, paulistas, baianos, mamelucos e mur
Direito Comum/ e Lei-Particular do. Reino.-" Economia Cristã dos latos livres, todos sequiosos de rápido enriquecimento coro. a
Senhores no Governo dos Escravos. S..Páulo: Editora Grijalbo, 1977, descoberta de boas pepitas de ouro ou, posteriormente, de dia-
p. 121. Cf.. Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), a petição de mantes de bons quilates, ajialt.a-de- mulheres, esobretudo de
algumas- escravas pernambucanas contra seus senhores que as brancas, era dramática, provocando soluções de liberação sexual
forçavam à'mancebia, Códice 267 (1752), fl. 38-40. , . . ... e ^ãndé~frouxidão na moral tradicional. As mulheres eram bens
17.. Freja-e,.Gilberto. Casa Grande e Sensata. Recife: Companhia Edi- preciosíssimos, dada sua raridade: o próprio Capitão Durão
tora de Pernambuco, 1970, p. 341, possuía em suas minas e faisqueiras 77 escravos machos e
18. Antonil, João António. Cultura e Opulência do Brasil por suas tão-somente uma escrava fêmea!
Drogas e Minas (1711). S.- Paulo: Companhia Editora Nacional, "O grande resvaladouro da frágil virtude daquelas gentes
1972, pp. 287 e ss.
19. Machado, Simão F&rxeíra,:-Triunfo Eucarístico, Exemplar da Cris-
aventureiras é a geral mancebia em que vivem quase todos os
tandade Lusitana. Lisboa: Oficina da Música, 1734. .-•••• homens e mulheres disponíveis, inclusive sacerdotes", narra o
20. Antonil, J.A, Op. cit., p. 263, • -. • ... .-. .. historiador Carrato, um dos especialistas da vidareligiosa desta
21. Goulart, M. Op. cit., p. 129; Boxer, C. A Idade de Ouro do Brasil. região que hoje é símbolo da tradição familista, mas que, era
São Paulo: Companhia. Editora Nacional-, 1969; Mello. e Souza, seus primór.dios, lembrava mais Sodoma e Gomorra do que a
Laura. Desclassificados do Ouro. São Paulo: Graal, 1982. - Terra Santa: num total de 423 pessoas denunciadas em 8
22. Biblioteca Nacional de Lisboa, Manuscritos do.Brasil, n.. 9.860, 4, freguesias mineiras na Devassa de 1734, 95,2% das acusações
"Implicações da Capitação". . • • • . • • : • - . .. incidiam sobre dgsvios na moral sexual familiar, incluindo, além
23. Vasconcelos, D,-História Antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: da<mancebia))inúmeros. casos de incesto, bigamia, meretrício,
Itatiaia-MEC, 1974,2 v. . . alcgyiticêfrtratos e amizadisllicitas, etc.<3 próprio sacramento
24. Trindade, Raimundo. Instituições de Igrejas no Bispado de Maria-
do matrimónio era ousadamente questionado nesta terra de
na. Rio de Janeiro: MEC, 1945; Viegas, Arthur. O Poeta Santa Rita
Durão, Bruxelas: L'Edition d'Art, 1914. • ... •- , ' • • • • ; • . ' .-"
muitos templos mas de pouca virtude: até das pessoas de quem
25. -Trindade/Raimuiido. A Arquidiocese de Mariana. Belo -Horizonte: se deveria esperar maior piedade e exemplo edificante, escapam
•Imprensa Oficial, 1953, p. 57. ' -. ...... ^ ..-..- - ,._ impropérios blasfêmicos, como o de um familiar do Santo Ofício,
26. Viegas, A. O Poeta Santa Rita Durão. Bruxelas: L'Edition d'Art, Sr. Manuel Pereira, que desabafou certa feita: "Maldito seja o
: 1914,pp. 5-6.,r . : -.-.... • ••..'• • ' .... . - . . casamento, maldito quem o fez e eu que o fiz! O Santo Ofício que
27. Trindade, R. Op. cit., 1945, p. 121, . me queime já e os Demónios me tirem a alma do corpo, que quero
28. Vasconcelos, D. Op.cit,,p. 198.- • • '. . - ; ; .••••'-".•:: ir viver com eles, pois não me atrevo a-estar neste mundo!"
29. Constituições Primeiras do Arcebispado daBahia, §979'e ss-. Tudo por causa de suas infelicidades matrimoniais! .
Tendo já no Rio de Janeiro "tratado torpemente" com seu

32 33
senhor—isto é, mantido relações sexuais com o mesmo, vivendo O Arromba e outras modas da terra, causando em tudo
Rosa em casa de uma mulher amancebada, barregã do Capitão notório escândalo".
Durão, no meio de umajnultidâo de escravos machos_e_hpmens
livres seguio.sQS_dej3exo, empouco jempo a adolescente courana Oh têmpora! Oh mores!
Na própria freguesia de Nossa Senhora de Nazaré do
"cai najvida". Segundo suas próprias palavras, "se desonestava
vivendo como meretriz, tratando com qualquer homem secular Inficcionado vivera por volta de 1727 o JE?a.dr_eJ3altazar Pereira
que a procurava, em cuj a vida assim andou até o tempo que teve de Mendes, 35 anos, contumaz^sodomita^que se acusara, dentre
o Espírito Maligno". os^muitosparceiros, de ter pratieado-diversas vezes o nefando
Quer dizer, desde que chegou nas Minas, em 1733, até às .pecado com seu escravo Paulo Courano (a mesma nação da nossa
primeiras manifestações diabólicas e sua conversão, em 1748 -— biografada), "sendo agente e paciente, mais paciente", o mesmo
VX,portanto, por quinze anos seguidos —, Rosa Courana viverá consumando com o escravo Francisco, da nação ladano e com
jy como prostituta. Enquanto isto, o filho de Dona Ana e do Capitão outros mais mancebos, entre estudantes, criados, etc., "muitas
Durão, lá em Lisboa, já com votos professados, cantava o ofício yezes, não se lembra quantas..."
divino em louvor a Virgem Maria — lembrando-se vagamente .,-_-;,.... Irreligiosidade e devassidão andavam de mãos dadas: na
dos carijós e caramurus de seu Inficcionado natal, certamente vila de Sabará assistia um tal António de Araújo Aguiar, que
ignorando que parte de seu sustento provinha do comércio dissera publicamente que "Deus e o Diabo tinham o mesmo
venéreo de1 uma escrava de sua progenitora. poder, e que o Diabo era até melhor, porque dava e não tomava,
Consultando as inúmeras devassas religiosas desta época, ao .contrário de Deus". E acrescentou maldoso: "Se Deus tivesse
experimentado os deleites sensuais, náo os teria feito pecados..."
somos forçados a concluir que se de um lado as Minas Gerais
Apesar de branco, tal blasfemo tinha como apelido um nome
destacaram-se no cenário colonial pela grande pompa e esplen-
dor das cerimónias religiosas, proliferação e riqueza dos templos africano, "O Mandinga", sendo infamado de ser mandingueiro,
pois sua casa era muito frequentada por adivinhadores, curan-
e santaria barroca, na mesma intensidade, a imoralidade e
_deirps e agoureiros. Além disso tudo, dava alcouce em sua
prostituição vicejaram sôfregas e indomáveis, em todos os luga-
moradia para meretrizes, desonrando viúvas, deflorando donze-
res onde o ouro corria d.e aluvião e-os diamantes a granel. _Às_^
las e inquietando mulheres casadas. Um verdadeiro diabo!
ãg_cajrnnhajgamjiejnã.o.s-dadas,
Como noutras partes do Reino e da Colónia, também nas
Minas a ferfcigaria_e as práticas cabalísticas eram muito utiliza-
da Cachoeira, poucos anos antes da chegada de Rosa à região,
das com vistas a obter vantagens sexuais, confirmar enlaces
onde nas festas comemorativas do Espírito Santo,
- matrimoniais ou a conquistar amores rebeldes. EmMariana —
"andando um carro enramalhado pelo arraial, nele anda- - situada aproximadamente a meio dia de caminhada a pé de onde
vam o Padre Frei Loúrenço Ribeiro, de São Domingos, o vivia Rosa—• aparda forra Feliciana de Oliveira tinha o costume
Padre Frei Pedro António, religioso do Carmo, tocando de em todas as sextas-feiras atar sua escrava Maria, crioula,
viola publicamente de dia com outros seculares, onde an- com uma fita verde, deixando-a na varanda de sua casa, onde
davam também o Cónego "Angola e o Padre Manoel de lhe metia pela boca dois ossos de defunto enquanto fazia uma
Bastos, e traziam entre si, lio mesmo carro, uma Vicência, cruz no chão, mandando à escrava que andasse sempre para
crioula forra de Ouro Preto^ vestida de homem, cantando frente dizendo as seguintes palavras: "Joaquim, Joaquim, largue

34 35
mulher efilhos por mim!", e que a dita escrava, certa vez olhando "Os padres obrigavam as pessoas a se casar para não fazerem
para trás^ caíra no chão assombrada, como morta. má vida, mas ela tinha se casado com um marido muito mau e
Outra denúncia, chegada à Inquisição de Lisboa, foi feita bem faziam os negros da Costa da Mina, que não criam em Deus
pela parda Albina Maria, escrava de Dona Josefa Maria verdadeiramente!" ... ,
Soares, acusada de possuir uma caveira enterrada à porta da Também revoltada com a ineficácia da proteção celestial
rua, da qual tirara às vezes alguns pedacinhos, fazendo-os pó para seus desígnios libidinosos, a mulata Ana Jorge, moradora
e misturando-os na comida que mandava para seus amantes, nos Massus, judiava dos santos, metendo debaixo do colchão de
a fim de mante-los afeiçoados a ela. Da mesma forma, no dia sua cama uma imagem de Santo António e um Crucifixo, pois
de São João, tinha o costume de molhar umas orações fortes "já- quê não lhe fizeram o que pedira, que levassem socos e
dentro do vinho, passando-as pelo fogo e enterrando-as numa açoites". E na freguesia da Roça Grande, ò negro Pedro foi
cova, "para seus amásios lhe quererem bem". ° acusado de ter curado Paula Maria da Conceição, usando aguar-
Mais alguns exemplos recolhidos nos Arquivos da Torre do dente e certas ervas, "habilitando- a para que no mau trato de
Tombo hão de familiarizar o leitor com o clima de misticismo, meretriz em que vivia ganhasse muito de seus amásios". Mais
superstição e sensualidade reinantes nas Minas Gerais na época irreverente e imoral foi o mineiro João de Sousa Tavares,
em que nossa biografada aí viveu. morador nas faisqueiras de Paracatu, local de grande concen-
CaetanaMariade Oliveira, crioulaforradeMariana, "vivia tração de negros da etnia courá, que, além de duvidar da
vexada por, seu marido andar mal encaminhado com outras presença de Jesus Cristo na hóstia consagrada, dizia a quantos
mulheres e não fazer caso dela". Enciumada e mal-amada, quisessem ouvir que a maçã do paraíso "gradas partes pudendas
consultou várias vizinhas que lhe ensinaram os seguintes sor- de Eva, e que Deus proibira Adão de comê-la. ..." e, mais blasfemo
tilégios para garantir a fidelidade de seu indiferente consorte: ainda, quando broxava-lhe o membro viril desonesto, recitava
que cortasse uma parte de sua camisa onde caíra seu esperma galhofeiro o Evangelho: Etj inclinoto capite, emisit spiritum [sic] ,
e enfiasse-lhe uma conta de rosário com um alfinete, enterran- as mesmas palavras usadas por São João para descrever a morte
do-a no chão onde o marido tivesse urinado, e que raspasse a de Cristo na cruz: "E, inclinando a cabeça, entregou o espírito".
unha dos dedos grandes das mãos e pés, misturando este pó com Estes poucos exemplos de irreligiosidade e feitiçarias ou
a água que lavasse o sovaco e desse essa poção ao marido para práticas supersticiosas correntes nas Gerais cora intuito sexual
beber, passando também um ovo de galinha por entre as pernas dão-nos uma ideia aproximada da licenciosidade reinante nesta
e lhe desse de' comer. Remédio trabalhoso, mas, segundo a sociedade onde as gentes de cor representavam por volta de 75%
opinião de suas vizinhas, era tiro-e-queda! Ensinaram-lhe mais: dos xnoradores, populações provenientes de sociedades tribais
Dona Antonia da SilvaLeão mandou que ainfeliz esposamedisse com práticas sexuais bastante diversas da tradição familista
com um barbante a porta por onde saía seu marido, nele dando à imposição da moral catóh'caj3_gue,
13 nós e cingisse a imagem de Santo António com o mesmo naqualidade de gado humano a serviço do bel-prazer dos'br anpos
cordão, prendendo-o e tirando-lhe o Menino Jesus do braço, e o é demais donos do poder, constituíam fáciljpj)|ejffjiaj;oncupis-
metesse numa' caixa fechada, rezando 13 Padre-nossos e 13 cêncíã~clos máíã[7ortes. Faltando mulheres brancas, era com
Ave-marias pela alma de sua tia, por 13 dias seguidos. Desilu- as fêmeas de outras raças que os reinóis e seus descendentes
dida pelo insucesso de tais práticas, a esposa magoada acabou satisfaziam a libido:
perdendo a paciência, deixando escapar cabeluda blasfémia:
"Tolos são os que crêem nos santos!" E completou desaforada: "E por falar em pretas minas, estas merecem referência

36 37
especial: a negra mina é a amásia- mais procurada pelos
brancos. Se os negros da;,m.esma raça têm a tradição de cujo nome muda-se para Mariana quando de sua elevação a
serem mais resolutos, fortes e temerários, as mulheres são cidade, denuncia-se perante o Santo Oficio de Lisboa o Padre
altas, de porte gentil e ardentes no amor, inteligentes, Bernardo José de Matos, que, entre 1743 e 1745, por diversas
habilidosas, e, como depunha o Governador do Rio de vezes, mandava algumas mulheres meretrizes baterem no peito
Janeiro em 1730, não há mineiro que possa viver sem pedindo perdão a Deus, enquanto maliciosamente tocava-lhes
nenhuma negra mina, pois só com, elas têm fortuna.. ,"17 no busto. Disse mais o malandro sacerdote que, procurando certa
vez uma prostituta, esta recusou prestar-lhe serviços sexuais,
... Rosa Courana era da Costada Mina e, como suas patrícias, mas que alguns dias depois, vindo confessar-se consigo um
deve ter sido muito cobiçada no frescor de sua adolescência, quando sacerdote, dissera ter mantido relações íntimas com a mesma
instalou-se no arraial do Inficcionado. Já vimos Eosa confessar que mulher, causando irritação no confessor preterido, que vai à
porta da dita marafona e lhe diz: "Não dorme com clérigos,
"se desonestava vivendo como meretriz, tratando com qual- hem?!"18
quer homem secular que a procurava, em cuja vida assim ' De uma lista de 345 sacerdotes do Brasil denunciados no
andou até o tempo que teve o Espírito Maligno, o qual, antes século XVIII junto ao Santo Ofício pelo crime de "solicitação a
de se declarar, molestava muito a ela, porém ainda nesse atos torpes", utilizando o confessionário para seduzir por pala-
tempo cometia culpas de desonestidade, ainda que menos vras ou atos suas penitentes, 62 residiam na Capitania das
vezes do que antes, até que o Padre Francisco Gonçalves Minas, comprovando que também o clero mineiro seguia a
Lopes fez com os seus exorcismes se declarasse o tal Espírito, mesma licenciosidade dominante na sociedade global.
o que sucedeu haverá 14 anos pouco mais ou menos, e deste Muito tempo depois, em 1763, quando nossa Rosa já pas-
tempo para cá não cometeu mais culpa alguma dessa quali- sava dos 40 anos, perante os Inquisidores de Lisboa explicará
dade". : que foi por inspiração divina que largou sua vida de meretriz.
Eis seu depoimento: "Sentindo um peso no ombro direito, viu
Importante ressaltar de início a observação de Rosa-mere- um mancebo formoso, branco, com cabelo próprio louro e anela-
triz: que se desonestava somente com "homem secular", excluin- do, boca pequena, olhos grandes, vestido de azul celeste, com luz
do por conseguinte da lista de seus amantes, os clérigos e e resplendor, que lhe disse que, se quisesse seguir a Deus, não
religiosos, seguramente por temer transformar-se em mula- se enfeitasse mais, que o seguisse despida."
sem-cabeça — a metamorfose popularmente atribuída às almas A própria visionária explica o significado dessa ordenação
das amantes de sacerdotes — ou, simplesmente, para evitar a divina: como sua senhora Dona Ana não lhe dava as roupas e
condenação prevista no artigo 1.000 das Constituições Primeiras enfeites que queria, ela os conseguia como presentes "em prémio
do Arcebispado da Bahia, quê rezava assim: "À mulher que for de sua sensualidade". ^^-^.^ ''
convencida dê andar em. mau estado com clérigo, a pena haverá f Roupas,;énfeitesi jóia^)eram a grande ambição não apenas
de ser maior do que àquela que assim andar com pessoa leiga." da legendária Chica daTSuva — a exuberante amásia do contra-
Podia sofrer multa, prisão e até açoites. tador de diamantes, João Fernandes de Oliveira—mas de todas
Nem todas as prostitutas comportavam-se com tanto reca- as negras de norte a sul^da Colónia, deslumbradas com o brilho,
to perante os ministros da Igreja que, por sua vez, também nem esplendõr~e cõlôriao com que as mulheres brancas mais abasta-
sempre respeitavam a santidade.do estado celibatário a que djis se cobriam. Já em T709, paraimpedir os excessos da vaidade
estavam canonicamente obrigados. Na própria vila do Carmo, dessas 'Vénus de ébano", os oficiais da Câmara da Bahia faziam

38
39
uma petição a El-Rei denunciando ás solturas com que as nativa importante para milhares de negras e mulatas desejosas
escravas costumavam viver e trajar, "andando de noite incitando de escaparem ao .cativeiro. ,
com seus trajes lascivos aos homens". Solícito e moralista, o Em seu livro Desclassificados do Ouro, Laura de Mello e
piegas Dom João V determinou que , Souza, ao tratar dos "infratores e infrações", dedica algumas
páginas à análise da prostituição. Diz essa historiadora que
"como tem mostrado a experiência que dos trajes que usam
as escravas se seguem muitas ofensas contra Nosso Se- ; "nas Minas as prostitutas pulularam por todo o período que
nhor, vos ordeno que não consintais que as escravas usem, durou a atividade aurífera.Muitasparalásedirigiramnos
de nenhuma maneira, as sedas, nem de telas, nem de ouro, • primeiros tempos, como tantos outros, atraídas pelo ouro;
para que assim lhes tire a ocasião de poderem incitar para - houve também as que foram obrigadas a adotar este género
os pecados com os adornos custosos de que se vestem";.. de vida devido às difíceis condições de subsistência que a
:região oferecia".
Também os moralistas se preocupavam com tão delicada
questão: o jesuíta Benci, autor da Economia cristã dos senhores Mesmo depois de estabilizada a proporção entre os sexos,
no governo dos escravos (1700), já denunciara "ela continuou vicejando, tanto que em 1733 — exatamente no
ano,da chegada de Rosa nas Gerais — promulgou-se umbando
"o grande escândalo permitido pelos senhores, consentindo no Tijuco que condenava
que suas escravas saiam de casa a quaisquer horas de
desoras, ou sejam da noite ou do dia, sabendo que daí "os pecados públicos que com tanta soltura corriam desen-
provêm tantas ofensas a Deus! Oh! se pudessem falar as freadamente, pelo grande número de mulheres desonestas
ruas e becos das cidades e povoações do Brasil! Quantos que lá habitavam, com vida tão dissoluta e escandalosa,
pecados públicos, que encobre a noite, e não descobre o dia! que, não se contentando de andarem com cadeiras e ser-
E completa- o inaciano dando um recado às Donas: Ó- ^^^pentinas acompanhadas de escravos, se atrevem irreveren-
senhoras, que aprovais as galas das vossas servas, ganha- , ,tes a entrar na Casa de Deus com vestidos ricos e pomposos,
das com o pecado, e reprovais se as não querem ganhar por e totalmente alheios e impróprios de sua condição". 4
não ofender a Deus"?!,
4, Em VilaRica, a escrava do sacristão Diogo Pereira causava
Também Antonil observou que nas Minas "as mulatas e "escândalo por andar "bem tratada com saias de camelão e
fí ^chinelas", tal qual uma senhora, sendo por isto suspeita de ser
negras de mau viver viviam carregadas de cordões, brincos,
e> argolas de ouro, muito mais que as senhoras". " -mal procedida". Manuel Silva, morador no Campestre, fregue-
Tantos homens solteiros, pouquíssimas mulheres disponí- sia de Itaubira, era "público e escandaloso consentidor de que
veis, muito ouro e diamante correndo clandestinamente: o am- suas escravas fossem mal procedidas: uma delas chegava a
biente era de todo favorável ao comércio sexual. A quantidade ganhar umajgitaya^ e meia, de ouro toda semana vendendo seu
de_gfriganas e crioulas queem pouco tempo se alforriavam,
algumas chegando_aJpbss_úir..áYultadQ cábe.dal^p.assando ate à
• categoria de proprietárias de escravos, sugere-nos quão desen- cas a de .vários homens, l amassando dias e noites seguidos e, se
~volvido foi o negócio prostítucionàl na zona aurífera, uma alter- não lhe entregassem o salário diário, "as maiida que vâõ~ganhar
pelo melhor modo que puderem".25

40 41
Rosa não acusa sua patroa de tê-la induzido à prostituição,
nem de explorar-lhe os ganhos. Sendo esposa de um sargento de a de Magdala, a Egipcíaca e a Africana — apresentavam, além
milícias, mãe de seminarista em Lisboa, certamente teria escrú- do passado luxurioso, a coincidência de abandonarem a "vida
pulos e temor de envolver-se com este vil comércio libidinoso e alegre" exatamente nos anos em que lhes fugia a juventude.
vir a ser novamente denunciada nalguma devassa eclesiástica. Todas três eram balzaquianas, certamente começando a ter
Seu estado de "barregã" do português Durão já lhe dava motivos problemas com a diminuição da clientela devido à perda do
de inquietação, tanto que depois veio a casar-se sacramental- frescor e belezajuvenis, quando se entregaram ao Divino Esposo.
mente com o mesmo, conforme informação prestada pela escrava ("Virtude ou astúciaTTalvez ambas as coisas.
courana e referendada pelos historiadores. Estes T5~ãnos de meretrício —• dos 14 aos -29 — foram
Apesar de sentir-se "sumamente vexada pelos estímulos fundamentais na constituição da personalidade e desenvoltura
da sensualidade", aos 31 anos Rosa segue o conselho celestial social desta negra, que, na qualidade de mercadoria sexual, deve
recebido em visão: imitando São Francisco de Assis e Santa ter privado do relacionamento com centenas de homens de
Margarida de Cortona (século XIII), distribui entre os pobres diferentes raças e classes sociais — escravos, negros forros,
todo o ouro e vestidos que tinha adquirido com sua "vida lasciva". mestiços, brancos aventureiros, quiçá portugueses favorecidos
A partir desta data, por volta de Í75Õ, Rõs5~dêclara que seu pela sorte na mineração. Relacionamento sempre maxca,dojDela
corpo ficou "como morto à sensualidade, pois lhe parece que, violência machista, deboche, malanjLragem>_ç.Qnapflr,tan.dQjcerta-
ainda que dormisse com algum homem, não sentiria estímulos, mente elevado_consumo dejiguardente e altas doses de almíscar
sendo antigamente sumamente vexada deles". E acrescenta que, — ~ò: perfume mais usado pelas negras nos "tempos do Onça".
"deste tempo para cá, não cometeu mais culpa alguma desta Quiçá algumas paixões azaradas,__alguns abortos ou mesmo
qualidade". abandono de crias recém-nascidas -—comportajnento corriquei-
Tal qual Santa Maria Madalena, pecadora arrependida, ro nos tempos antigos, a~£ãl ponto praticado que, ainda no século
Rosa há de fundar quatro anos depois um recolhimento, também XIX, as câmaras municipais da Província da Bahia se viam
por inspiração- divina,: no qual- haveriam de- morar "mulheres obrigadas a estabelecer multas pecuniárias contra as mães que
pecadoras que nos confessionários diziam que tinham ofendido """abandonassem seus filhinhos pelas encruzilhadas desérticas.
a Deus por não terem casas para morar". Só que Santa Maria - ; - Muita dança, batuque, fandango: até o fim da vida, mesmo
Madalena foi ainda recais radical: segundo afiança o Padre vestida de freira, Rosa não resistirá à tentação de dançar. Nas
Minas, na época do Barroco, a dança fazia parte integrante do
Manuel Bernardes, na sua Nova Floresta (1706), após sua
conversão, a santa nunca mais olhou para homem algum. — culto divino, seja nas igrejas doiradas, nas procissões ou "triun-
Essa experiência de meretriz "tratando1 com qualquer ho- ^ fos", seja nas casas de culto de origem africana. Segundo J. F.
mem secular que a procurava" marcou profundamente" a vida Carrato, o batuque era a coqueluche da época, e Tomás António
futura e a mística desta africana, que, mais uma vez por indi- - Gonzaga imortalizou, em suas Cartas Chilenas, os gingados e
bamboleios dos parceiros neste baile descarado:
"V . cação celestial/vai incorporar a seu nome de batismo, o de Santa
(V , í Maria Egipcíaca, qatra^Brostituta-santa que, como Madalena,
Tr^Fola'o~ãmõt^'õs~Eõ5íêns pelo amor de CristoT Mais adiante
Fingindo a moça que levanta a saia
voltaremos à vida de Santa Egipcíaca e.suas correlações com à
E voando nas pontas dos dedinhos,
biografia da negra courana. Por ora, gostaríamos de. chamar a
Prega no macachaz, de quem mais gosta,
atenção do leitor para uma coincidência: essas três mulheres —
A lasciva embigada, abrindo os braços;

42
43
Então o macachaz, mexendo a bunda, poderia ter servido como prestação inicial na compra de sua
Pondo uma mão na testa, outra na ilharga, alforria. Encontramos um caso de duas escravas que gastaram
Ora dando alguns estalos com os dedos, dezessete anos entre a entrega da primeira parcela do valor de
Seguindo das violas o compasso, sua alforria e a obtenção definitiva de suas cartas de liberdade,28
Lhe diz — "eu pago, eu pago" — e, de repente, e. nesta mesma década em que Rosa se converte, na vizinha
Sobre a torpe michela atira o salto. freguesia-de São Caetano, duas africanas, entre centenas e
Ó dança venturosa! Tu entravas centenas, deixam em seus testamentos prova de polpudas rique-
Nas humildes choupanas, onde as negras, zas amealhadas ao longo de suas vidas: Maria do Ó, da mesma
Aonde ás vis mulatas, apertando etnia de nossa biografada, nação courana, além de ter comprado
Por baixo do bandulho a larga cinta, sua alforria pelo valor de 256 oitavas de ouro, legou para seu
Te honravam, c'os marotos e brejeiros, herdeiro, o marido, várias propriedades tanto na vila como na
Batendo sobre o chão o pé descalço. roça, cavalos, .gado vacum e 12 escravos; Maria da Costa, da
Agora já consegues ter entrada nação ardra (Porto Novo), possuía mais de 600 gramas de jóias
Nas casas mais honestas e palácios!27 lavradas em ouro, 2 conjuntos confeccionados em veludo e
sofisticado serviço de cama e mesa, incluindo talheres de prata,
A dança profana, com forte apelo erótico, alegrava as noites vasilhas de estanho e lençóis de Unho, determinando que, ao
da negrada, após horas seguidas bateando dentro d'água sob o morrer, tudo fosse vendido para pagar espórtulas de 2.100
olhar atento, mas nem, sempre infalível, de feitores e capatazes. missas destinadas ao descanso eterno de sua alma. Também
O ouro roubado com maestria, o diamante imperceptivelmente esta comprara sua própria liberdade, pagando 190 oitavas de
escondido nafcarapinhaj ou atrás de uma tinha, em vez de ouro pela alforria.
engordar abolsa-do-patrao^iapararji^as-taKerjxaSijaasmãos das Tudo leva a crer que o pecúlio de Rosa — roupas, jóias e
negras do tabuleiro, nos regaços^ajjxegEaa,de_!!yi.da_dissoluta" dinheiro -— representava soma inferior a seu valor de escrava
— ouro e pedras preciosas que aos 29 anos Rosa abandona, jovem e saudável: em 1754 um morador das Gerais, Manuel da
trocando todos os homens do mundo pelo "mancebo formoso, Silva, com residência no Campestre, arrecadava semanalmente
branco, louro, de boca pequena e olhos grandes, vestido de azul" uma oitava e meia de ouro com a exploração do meretrício de
— um verdadeiro Davi ;de .Miguel Angelo! — que lhe apareceu apenas uma escrava. Em três anos de comércio venéreo, esta
n a visão. • ...... '., . . . negra já teria rendido quantia superior ao preço da citada forra
Apesar de esta experiência dê mulher pública ter segura- dos vestidos de veludo. Portanto, como Rosa devia ter de entregar
mente contribuído de maneira indelével na socialização e urba- a sua.patroa a quase-totalidade de sua féria semanal, se guar-
nidade daquela negrinha recém-desvirginada pelo seu primeiro dasse para si um terço do que a prostituta do Campestre
senhor da freguesia da Candelária, tudo faz crer que o ouro, ganhava, seriam precisos oito anos para amealhar ouro suficien-
roupas e enfeites amealhados em sua vida lasciva não foram te para cobrir seu valor. Como certamente seu património era
suficientes para. adquirir .cabedal,que.bastasse para a compra -muito inferior às 190 oitavas de ouro que Maria da Costa pagou
de sua liberdade. A distribuição entre os pobres de seu pecúlio, por sua liberdade, talvez desencantada com a falta de perspec-
quando de sua conversão, no caso de ter realmente acontecido, tivas de através da prostituição conseguir sair do cativeiro, Rosa
foi sem dúvida gesto louvável na ótica da economia celestial, muda de estratégia: decide acumular dividendos no Reino dos
porém altamente insensato dentro da lógica do escravismo, pois Céus. Predestinada a se tornar do dia para a noite a nova

44 45
10. ANTT, Caderno do Promotor na 129, Mariana (7-4-1774).
Redentora do género humano, Rosa Egipcíaca da Vera Cruz já 11. ANTT, Caderno do Promotor n2 129, Mariana (3-7-1765).
nesta época não mais se preocupava cora as coisas terrenas, nem 12..ANTT, Caderno do Promotor na 129, Mariana (24-5-1770).
sequer com sua liberdade: vendeu seus bens e distribuiu-os aos 13. ANTT, Caderno do Promotor ns 129, Sabará (28-6-1775).
pobres porque tinha de imitar sua patrona do Egito. Afinal, o 14. Mott, Luiz. Acotundá: Raízes Setecentistas do Sineretismo Re-
Cristo não dissera que as riquezas deste mundo de nada valiam? ligioso Afro-Brasileiro, In Escravidão, Homossexualidade e De-
"Ajuntai riquezas no céu, onde a traça não rói e os ladrões não monologia. S. Paulo: ícone, 1988, pp. 87-118.
roubam, pois onde está teu tesouro aí está teu coração!" (Mateus, 15. ANTT, Caderno do Promotor n9 130 (1775).
6:20-21) 16. Mott, Luiz. O Ssxo Cativo: Alternativas Eróticas ,dos Africanos e
seus Descendentes no Brasil-Escravista. In O Sexo Proibido: Vir-
gens, Gays e Escravos nas Garras' da Inquisição. Campinas: Papi-
rus, 1988, pp. 17-74.
17. Carrato, J. F. Op. cit., pp. 11-12.
Notas 18. ANTT, Caderno dos Solicitantes n2 26, fl. 74 (1743-1745).
19.BibliotecaNacionaldeLisboa, Seção de Reservados, Códice n28.389,
"Registro dos Padres Processados por Solicitação e outros Crimes"
1. Arquivo Público Mineiro, Delegacia Fiscal, v. 39, apud Russel- (Século XVIII).
Wood, A. The Black Man ih Slavery. and Freedom in Colonial 20. ANTT, Manuscritos do Brasil, Livro"43 (23-9-1709).
Brasil. Pxford: MacMillan Press, 1982. 21. Benci, J. Op. cit., pp. 118-119.
2. Carrato, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras 22. Antonil, J. A. Op, cit., p. 304.
Coloniais, S. Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 9. 23. Costa, I. N. A Presença do Elemento Forro no Conjunto de Proprie-
3. Numa devassa realizada na comarca de Ilhéus, no sul da Bahia, tários de Escravos. Ciência e Cultura, julho 1980, n. 7.
em 1813, os desvios sexuais atingem 60,5% das acusações, real- 24. Souza, L. M. Op. cit., pp. 180-185.
çando tal cifra o quanto nas Minas Gerais era mais desbragada a 25. Idem, ibidem.
liberação sexual. Cf. Mott, Luiz. Os Pecados da Família na Bahia 26. Carrato, J. F. Op. cit., p. 99; Souza, L. M. Op, cit., p. 153.
de Todos os Santos, Salvador: Centro de Estudos Baianos, 1982. 27. Gonzaga, Tomás António. Cartas Chilenas. In: Lapa, Rodrigues
4. ANTT, Caderno do Promotor n2 129, Sabará (2-10-1768). ; Manoel, As Cartas Chilenas: Um Problema Histórico e Filológico
5. Costa, Iraci dei Nero/ Devassas em. Minas Gerais: do crime à (Edição Crítica). Rio de Janeiro, MEC, Instituto Nacional do Livro,
punição, Boletim do CEPEHIB, julho 1980, n. 3, pp. 3-7; A Vida 1958.
Quotidiana em Julgamento: Devassas em Minas Gerais. InMinas 28. Mott, Luiz. Cautelas de Alforria de Duas Escravas na Província do
Colonial: Economia e Sociedade. S. Paulo: Pioneira, 1982, pp. Pará, 1829-1846. Revista de Histórid,~USP, n. 95,1973, pp. 263-268.
55-77; Devassas em Minas Gerais: Observações sobre Casos de 29. Mott, Luiz, De Escravas a Sinhás. Mulherio, janeiro 1988, pp. 12-13.
Concubinato. InBarreto, A.. HistóriaEconômica: Ensaios. S;Pàulo: 30. Souza, L. M. Op. cit., p. 181.
6. Luria, F.V. & Costa, I.N. A Vida Quotidiana em Julgamento:
Devassas em Minas Gerais. Op. cit., p. 7.
-7 ; "Mott,—Luizr-Modelos"de- Santrda'de"p"âra "um ClercTDevãsso : A
Propósito das.Pinturas do Cabido de Mariana, 1760. Revista do
Departamento de História (UFMG), n. 9, 1989, pp. 96-120.
8. ANTT, Caderno do Promotor *h2 128, S. Miguel do Sabará (7-4-
1765).-.. . • • . • .•. • • „ • • • -r- . . •/ - ..:. • • ; • • -
9. ANTT; Caderno do Promotor nU29, Mariana (5-11-1775).

47
46
Encontro com o Padre Xofa-Diabos

Em numerosos episódios denunciados à Inquisição de Lis-


boa envolvendo os habitantes de Minas Gerais, o motivo que
levou grande número de moradores a procurarem feiticeiros,
seus calundus e mandingas foi o de padecerem de diferentes
tipos de enfermidades e incómodos. Ontem e hoje, as doenças
nareçem-ser_o_principal móvel dos quantos recorrem aos cultos
(afro-brasileiros. j
~~ N"as~Gerais, nos inícios do século XVIII, o panorama sani-
tário era assaz preocupante, pois, além da carência crónica de
alimentos e da adoção de dietas desequilibradas, o trabalho
contínuo dos mineradores dentro da água provocava um sem
número de doenças, que epidemicamente se alastravam pelos
arraiaia e f àisqueiras, facilitando o contágio pelas más condições
de alojamento e promiscuidade dominantes nessas frentes pio-
neiras de aventureiros ávidos de ouro. O primeiro médico a
exercer sua profissão em Vila Eica registrou-se na Câmara
Municipal somente em 1734: até então, eram os cirurgiões
práticos, muitos deles curandeiros de cor, que tratavam dos
enfermos, vários utiliz ando-se de mezinhas cab alísticas e rituais
heterodoxos, que por suspeição de esconderem pacto com o
J.. Demónio acabavam sendo denunciados ao Terrível Tribunal.

Segundo R. Boxer, entre as doenças mais comuns que
atacavam tanto brancos como pretos na região mineradóra,
estavam a disenteria bacilar—na época chamada "mal do bicho"
—, os vermes in"fêsfinã"i¥ê as moléstias venéreas. Os escravos
faiscadores eram mais • atacados pela pneumonia, pleurisia,
febres intermitentes, malárias e disenterias, sem falar-nos
reumatismos, artritismos, frieiras e demais achaques causados
pelo trabalho contínuo, debaixo de sol e chuva, dentro d'água.

49
Esta "Rol dos Escravos Inválidos de Sabará", de 1735, dá uma
Assim sendo, por volta de 1748, quando Rosa beirava os 30
ideia viva dos problemas de saúde desta região:
anos, -foi acometida de uma estranha doença que mudou com-
plefamente o rumo de sua triste vida de mulher alegre. Sua
. Miguel, uma perna a menos e decrépito
primeira manifestação foi corriqueira: uma sonolência incontro-
. Simão, mina, cego
lável. Quando ia àmissa, "lhe dava um sono tanto que o sacerdote
. João, mina, com. os pés inchados e pernas monstruosas
entrava no Cânon, até concluí-la. Porém atribuía tal a ser
. Lázaro, aleijado dos dois braços
moléstia natural". Diagnóstico bastante sensato — diga-se en
. João Carneiro, angola, um braço menor e enfermo
passant—, posto que a monotonia dos ofícios litúrgicos matinais,
. Domingos, angola, rosto comido (de lepra) e quebrado
rezados .em latim, devia funcionar como poderoso sonífero so-
. Cipriano, crioulo, pés monstruosos
bretudo para quem perdia noites de sono, o que devia acontecer
. Manoel, tísico
com frequência entre as mulheres do fandango das Minas Ge-
. Silvestre, cego.
rais. Com o tempo, porém, aparecem novos sintomas: "principiou
. Paulo, sem braço
a sentir em si uma dor que a bolia, e com ela caía no chão como
« Francisco, xará, dedos comidos e perna quebrada
morta, de que se lhe originou no.ventre um tumor". (Tumor,
. Pedro, hidrático e decrépito
segundo o dicionarista Morais, naquela época significava "in-
. Francisca, mina, pés inchados., não sai de casa
chação circunscrita em qualquer parte do corpo, aumento do
. Francisca, pernas inchadas, 50 anos." 5
volume de alguma parte do corpo".)
Como diagnosticar tal quadro mórbido? Tudo faz crer que
Tomando como amostra osrfégistros dêT5FíEõ~dlTVila Rica,) esta dor que agitava seu corpo e a jogava no chão provavelmente
entre 1799 e 1801, Iraci delNero C5s"tã"cõnstatou"que ásdoenças devia ser o que antigamente chamavam de gota coral, ou então
do aparelho digestivo eram responsáveis por 52,7% das mortes sintoma de mania, as duas principais "doenças dos nervos"
entre livres e cativos, seguidas das doenças infecciosas—21,6%, minuciosamente descritas pelo médico Dr. Simão Pinheiro Mo-
e das respiratórias — 6,6%. - -
rão em sua obra Os Abusos Médicos, escrita em Recife nos finais
Rosa Courana, vivendo de se desonestar com quem a do século XVII. No capítulo TV deste livro, "Da Epilepsia, a que
quisesse, devia estar, como as demais mulheres públicas, muito o Vulgo Chama Gota Coral", ensina o Dr. Morão que tal moléstia
exposta a todas essas enfermidades transmitidas por seus clien- "é um espasmo de todas as partes do corpo, não perpétuo mas
tes. Sobretudo às doenças sexualmente contagiosas, que na por intervalos, com ofensa de todos os sentidos-e do entendimen-
época eram chamadas de mal gáíico (sífilis), corrimento (blenor- to". Diz ocorrerem tais acidentes sobretudo nas ocasiões de lua
ragia), verrugas pudendas (condiloma), mula (gânglio venéreo), cheia, nas mudanças de tempo e nas horas das paixões. "Os
etc. A rica flora medicinal amplamente conhecida pelos carijós sinais que mostram o acidente que há de vir são: peso na cabeça,
desta região, assim como as mezinhas introduzidas pelos afri- zunido nos ouvidos, candeias diante dos olhos, sonos turbulen-
canos, davam conta de boa parte das muitas moléstias locais; tos, indigestões no estômago, amarelidão na cara, peso em todo
outras eram os doutores que as gur ay am.com remédios de
o corpo, vertigens." A manifestação do acidente leva o enfermo
boticas. Data desta época — 1707 — o famoso compêndio Notí-
"a cair em terra, padecerem as partes do corpo tremores ou
cias do que é o Achaque do Bicho, de autoria do Dr. Miguel Dias
movimentos convulsivos, rangerem os dentes, roncos no peito e
Pimenta, verdadeiro vade-mécurn de todo esculápio da América
nas tripas e sair nos cantos da boca uma porção de espuma, que
.Portuguesa.
é o sinal evidente de ser gota coral".

50 51
Quanto à mania, ensina o mesmo esculápio tratar-se de e da fraqueza extrema que nem a deixava respirar, a ponto
um acidente repentino, popularmente chamado de mal lunático
de nem água poder engolir, incapaz de mover os braços,
ou mal de lua, por suceder sobretudo na época do plenilúnio: "É
pés, mãos e cabeça, enfermidade que durou quase três anos.
a mania um delírio sem febre, com audácia e temeridade, e de
Aí começou a andar de gatinhas e só depois de meses foi
tal maneira que é necessário muitas vezes amarrar os doentes
novamente capaz de andar ereta. Hoje chamaríamos de
e prendê-los." Distingue-se do frenesi porque neste ocorre sem-
histeria tal enfermidade, apesar de, passados quatrocentos
pre a febre, e da melancolia porque as melancolias são afetadas
anos, tornar-se muito difícil diagnosticar com clareza uma
por temor e tristeza. Vários sinais da mania são os mesmos da
enfermidade, porque a concepção sobre os fenómenos mór-
gota coral: dor de cabeça, contínuas vigílias, imaginações i-epe-
bidos mudou tremendamente.
tidas, sonos turbulentos, temores e tremores, brilho nos olhos,
zunido nos ouvidos, luxúria, falar muito sem razão ou soturni- Que o leitor, no final do livro, julgue se acertamos o
dade. "Os sinais que mostram o acidente da mania são: delírios, diagnóstico que fizemos dos "acidentes" da Espiritada africana,
arremeterem a quem lhes assiste, serem iracundos e furiosos, pois serão numerosas as vezes que nossa beata vai manifestar
dizerem ridicularias e risos desordenados, inquietações, ficarem sintomatologia muito semelhante à que o velho Dr. Morão
tristes e horrendos no aspecto, amigos da soledade, muito cala- diagnosticou como sendo acidente repentino ou mania.
dos e lacrimosos."
Se doenças mais simples e de cura fácil eram outrora
Cona base na descrição de dezenas de outros acidentes atribuídas seja a castigo divino, seja a feitiços ou mau-olhado,
relatados pelas testemunhas que viram Rosa "cair como morta os ataques epilépticos e outras manifestações nervosas foram
no chão", tendemos a incluí-la mais no rol dos maníacos do que interpretadas desde Hipócrates e do Código de Hamurábi, até
dos epilépticos stricto sensu, pois nenhum dos que a viram, recentemente, como manifestação sobrenatural, quer das forças
estrebuchar, quando possuída pelo Espírito, afirmou que espu- do bem, quer dos espíritos malignos: eram doenças sagradas.
masse pela boca, sintoma que o Dr. Morão considera "evidente Pois tal foi a interpretação que Rosa deu à sua inchação
de ser gota coral". Por diversas vezes Rosa Negra refere-se a ter estomacal e perda de sentidos:
sentido peso no corpo antes de ser arrebatada às moradas
celestiais, ver "estrelinhas" que lhe ofuscavam a vista e suar frio "Andando desta sorte, atribuía ser moléstia natural; até
durante o delírio extásico.
que, indo à capela da Fazenda de Bento Rodrigues, na
Outros santos padeceram igualmente de estranhas enfer- freguesia dos Camargos, onde estava o Padre Francisco
midades, na época interpretadas ou como provações de Deus ou Gonçalves Lopes fazendo exorcismes e alguns vexados, ali
ciladas do Demónio, e que hoje em dia mereceram diagnóstico se declarou então o Espírito dela, e, desde esse dia, entrou
científico acurado. Santa Teresa dAvila foi uma delas, tendo declaradamente a vexá-la, dizendo que era Lúcifer."
certa feita uma crise tão aguda que por quatro dias seguidos
ficou inerte, como morta, a tal ponto que já lhe haviam aberto a Noutra versão de sua confissão, a possessa acrescenta
cova para ser enterrada. ._ alguns detalhes importantes deste momento crucial de sua vida:
provavelmente alguns dias depois desta primeira manifestação,
"Eis que Teresa despertou subitamente de seu estado indo o padre exorcista à freguesia do Inficcionado, de novo
de inconsciência, a língua dilacerada de tão mordida, a encontrou-se face a face a negra courana com o sacerdote que
garganta apertada em consequência de rxadahaver tomado tirava demónios, na bela Igreja de Nossa Senhora de Nazaré.
"Estando ela de joelhos ao tempo dos ditos .exorcismes, lhe

52 53
estalaram os ossos em seu corpo e caiu iio chão sem acordo de
si, e a gente que estava presente, levantando-a, a levaram para
casa em braços."
O citado Padre Francisco Gongalve.sJLop.eB-desenip'§5hará.
a partir deste encontro fortuito, papel fundamental na vida de
Rosa: será seu anjo da guarda. Este velho presbítero, então com
54 anos, lhe fará os primeiros exorcismes, será seu introdutor
no caminho da santidade, seu primeiro devoto e confessor. Será
também seu proprietário e lhe dará a carta de alforria. Mais
tarde, no Rio de Janeiro, há de ser o capelão do recolhimento da
Madre Rosa e o grande divulgador de seus poderes e predesti-
nação celestial.
A partir deste momento padre e possessa estarão irreme-;
diavelmente associados, sociedade na alegria e glória, e também
nas perseguições e infortúnios, união que será desfeita somente
nos cárceres inquisitoriais, 15 anos depois deste encontro no
povoado de Bento Rodrigues. Gomo São Pedro traindo Cristo,
também o velho sacerdote desprezará sua amizade a quem tanto
venerou, declarando aos Inquisidores que a "Santa Rosa Maria
Egipcíaca da Vera Cruz" não passava de uma embusteira.
Atente o leitor para a coincidência: o instituidor da primei-
ra capela mineira, no Ribeirão do Carmo (1696), ostentava
exatamente o mesmo nome do exorcista de~ Rosa -^ "Padre
Francisco Gonçalves Lopes, tendo sido em 1703 igualmente ele
quem fundou o primeiro templo no arraial de São Caetano,
freguesia onde quatro décadas depois seu homónimo — nascido
Capela de Bento Rodrigues, local onde Rosa teve sua primeira visão
em 1694 — será coadjutor do vigário. Em Mariana, portanto, a
ruaPadre Francisco Gonçalves Lopes, uma das que desembocam beatífica em 1748.
na praça da Catedral, homenageia não o nosso biografado, mas
o primeiro celebrante a pisar na região mineradora.
Mais adiante dedicaremos atenção especial aos três con-
fessores e diretores espirituais da ex-prostituta, ocasião em que
aprofundaremos a biografia deste seu primeiro pai espiritual.
Por hora, a fim de recriar o clima do encontro do exorcista com
a escrava endemoniada, e melhor entendermos a génese desta
relação humana e espiritual, convém antecipar alguns dados a

55
54
respeito deste personagem, réu do Processo n. 2.901 da Inquisi-
ção de Lisboa. transporta os feiticeiros de um lado para o outro equivale a
Padre Francisco Gonçalves Lopes era natural do Minho, ridicularizar a história evangélica". Não podemos imaginar a
nascido em 1694. Deve ter sido no ano de 1721 que o jovem existência de uma religião sem a presença aterradora do Espírito
sacerdote, atraído certamente pela fama do ouro, migra para as do Mal, o oposto de Deus, que personifica a bondade, compaixão
Minas, sendo nomeado coadjutor do vigário da freguesia de São e misericórdia. E desde que os homens passaram a_acreditar no
Caetano, pequeno arraial situado a 3 léguas de Mariana, no poder do_EspMtcT3^MJ[]^iv^^ espe-
caminho que leva a Ponte Nova, hoje com. menos de 600 mora- cialistas em controlar, acalmar e expulsar o Anjo das Trevas.
dores na sede municipal. "Sendo seus moradores pouco abasta- Na tradição júdãicorcristá Satanás~receBiu diversos nomes:
dos, tem contudo famosa matriz, bem paramentada com capelas Belzebu, Asmodeu, Lilith, Agrat, Baal, Azazel, Lúcifer, etc. E
e obras de talha dourada." quand(5~ttJírd:estss~ãnjc)s infernais fõmã conta do corpo de rana
Após nove anos de ministério, em 1730, transfere-se para pessoa, faz-se necessária a ação dos exorcismes a fim de libertar
São João dei Rei, a próspera sede da comarca do Rio das Mortes, esta infeliz criatura das garras do capeta. O próprio Jesus
talvez motivado pela maior riqueza de seus fregueses, que eram Cristo tirou uma legião de demónios do corpo de um energúmeno
obrigados a pagar anualmente aos sacerdotes polpudas "cpnhe- na cidade de Geraza (Marcos, 5:1-20), embora seus discípulos
cenças" por ocasião da confissão quaresma! e demais serviços não. tenham obtido o mesmo êxito no caso de um possesso
eclesiásticos. Por esta época já existiam em São João dei Rei "dominado por um espírito imundo que, onde quer que o apa-
dez igrejas: á Matriz de Nossa Senhora do Pilar (1711) e as filiais nhava, lançava-o por terra e ele espumava, rangia os dentes e
do Carmo, São Francisco (com a irmandade dos negros), Mercês, ficava endurecido" (Marcos, 9:18), um quadro típico de epilepsia,
Rosário, Santo António, Bom Jesus do Monte, São Caetano, segundo o parecer do citado Dr. Morão.
Senhor do Bonfim e São Gonçalo. Não há informação no processo A crença no diabo sempre foi tão forte na cristandade que
da Torre do Tombo em qual destas paróquias o clérigo minhoto até recentemente o ritual do batismo incluía o exorcismo do
—' então com 36 anos — era coadjutor. O certo é que, pelo visto, . fêcem^nã^cídQ, acreditando-se que, antes de sua primeira puri-
-"-além do trabalho rotineiro na sua igreja., celebrando missas, ficação com a água batismal e os santos óleos, a criancinha era
administrando os sacramentos e auxiliando nos demais atos de po^suídj,j^lgJ[rimiigo_de_Deus. "Botas para fora de tua alma o
piedade^ o Padre Francisco costumava percorrer outras fregue- '• demónio?", indagava o sacerdote quando batizava os africanos
sias e capelanias praticando importante ministério muito em catecúmenos — e uma das justificações teológicas da escraviza-
voga nos séculos passados: o exorcismo. Foi exatamente numa ção dos africanos era o pícTdesejo da igreja Católica^emjresgatar
dessas suas andanças pela comarca de Vila Rica, quando exor- anêgrãHãTdo cativeirpldo. JLJIãb.o.,. elevando tais pjagâosj_sublime
cizava no Inficcionado e nas capelas sufragâneas de Nossa condição de filhos de Deus e escravos dos senhores cristãos no
Senhora da Conceição dos Camargos e de São Bento, que mani- Novo' Mundo. Até hoje, todo aspirante ao sacerdócio recebe a
festou-se o Espírito de Rosa. Tão marcante era sua dedicação ao Ordem do Exorcismo, a terceira das quatro ordens menores;
ministério de expulsar demónios do corpo dos endiabrados, que sendo portanto outorgado a todo clérigo o poder de expulsar os
ganhara nas Gerais um apelido identificador: "o Xota-Diabos". demónios. Porém, apesar de autorizados teólogos e o próprio
"Deus deixaria de existir se não fosse o Demónio", dizia K. Papa confirmarem, que o Diabo existe mesmo, cada vez mais
Seligmann, um dos mais conceituados demonólogos modernos, a moderna teologia despersonifica o Anjo das Trevas e a incan-
e Jean Bodin, em 1558, afirmava que "duvidar que o Diabo descência das chamas do fogo do inferno, argumentando que "a
possessão demonológicá, apesar da promulgação da doutrina e

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57
['J;

f:Ȓ.
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preendidos em tais crimes de feitiçarias, sortilégios, adivi-
sinais correspondentes, nunca foi doutrina imposta à Igreja
nhação, astrologia e malefícios sejam degredados para o
Universal". Quanto à expulsão dos demónios, diz o chanceler
Reino de Angola pelo tempo de cinco a dez anos."
da Cúria Metropolitana de São Paulo, Monsenhor Albanez: "É
tão raro o exorcismo que eu não me lembro de nenhum caso nos Antigamente parece que Deus permitia com muito maior
últimos trinta anos. O que aparece são casos de auto-sugestão frequência que seu inimigo usasse e abusasse das criaturas
ou episódios que aparapsicologia explica".17 Na própria tradução humanas, daí a grande importância dos exorcismes na aquieta-
da Bíblia pelo Centro Bíblico Católico (Editora Ave Maria, 48
çáo dos vexados, energúmenos, possessos, endemordados, espi-
ed., 1985), o episódio acima transcrito, do jovem possuído pelo
ritados, etc. E nas Minas Gerais, onde os africanos e seus
"Espírito Imundo", agora tem no cabeçalho o título "O Jovem descendentes eram a maioria da população, gente ainda muito
Epiléptico", comprovando o quão desacreditado se acha Lúcifer mais ligada ao diabolismo e à crença de que as enfermidades
até por aqueles que o inventaram. Em seu livro Antes que os eram causadas pelos maus espíritos ou feitiços, os "xota-dia-
Demónios Voltem, o jesuíta Oscar Quevedo sustenta sem rodeios bos" negros e brancos, calunduzeiros ou clérigos eram persona-
que "todos os casos bíblicos e pós-bíblicos de possessão demonía- gens de primeiríssima importância ao lado dos sangradores,
1. 1. ca nada têm de sobrenaturais e podem ser tranquilamente cirurgiões, parteiras, rezadeiras de espinhela caída ou de que-
explicados pela parapsicologia." Por ter emitido tal opinião, branto.
è Roma obrigou o sacerdote racionalista a interromper suas pes-
quisas e publicações sobre tema tão controverso. É o Santo Ofício
"Estas Minas estão bastante enfestadas do Demónio..."
dizia magistralmente um tal Domingos Marinho, morador em
imperando ainda em pleno século XX. Vila Rica, que, padecendo de algumas enfermidades, após insu-
é Nos tempos inquisitoriais, entretanto, se até a leitura da
Bíblia na língua vernácula era condenada por suspeita de pro-
cesso com os remédios de botica, recorreu a uma curandeira, a
africana forra Maria Cardosa, que com unguentos, poções e
testantismo, duvidar., negar a existência ou fazer pacto com o benzeduras tratou de seus achaques.
Espírito Impuro era considerado grave heresia, se não merece- Tanto quanto o Demónio, nas Gerais abundavam os ende-
dora da fogueira, pelo menos de embaraçoso processo, anos de moniados: alguns com doenças misteriosas e desconhecidas, logo
encarceramento nas masmorras do Santo Ofício, talvez até diagnosticadas como diabólicas; outros com o próprio Capeta
tortura, sequestro dos beris, açoites nas vias públicas e degredo, tomando conta do corpo, agindo, falando e blasfemando como se
para a África, ou para as galés. Ainda em 1774, no ultimo fossem o Renegado. Foi para cuidar de um desses energúmenos
Regimento do Santo Ofício, Título XI, caps. I e H, de autoria do que o vigário da Matriz do Inficcionado, Padre Luiz Jaime de
Cardeal da Cunha, ensinava-se o seguinte: Magalhães, convidara nosso Padre Francisco para vir à sua
è "Depois que o Divino Triunfador das Potências Aéreas
igreja. O próprio exorcista em sua confissão no Santo Ofício, 13
anos depois, declara que, lá chegando, enquanto realizava os
Infernais, visitando o mundo corrompido e idólatra e re-
rituais do exorcismo num "maleficiado", Rosa Courana "caiu no
mindo nele com. seu Preciosíssimo Sangue o género huma-
chão fazendo diferentes visagens e muitos trejeitos com, o corpo,
no da culpa, deixou o Demónio quebrantado, preso e inibido
levantando-se e dizendo que era Lúcifer que a vexava e lhe
para ofender os homens... porquanto pode haver alguns
i causava grandes inchações que tinha na cara e ventre". Uma

t casos nos quais os referidos espíritos diabólicos, que nada


podem por si mesmos, possam atormentar as criaturas
. humanas, se Deus lho permitir... portanto, os réus com-
testemunha presente aos exorcismos disse que Rosa "fazia ges-
tos e movimentos que parecia o Demónio!"

*• 58
59

i.
Acostumado a tais diabruras, o padre Xota-Diabos começa
a exorcizar a escrava de Dona Ana. Vestido de sobrepeliz branca do-a com as relíquias dos santos, continuava o exorcista com
e estolaroxa, tendo numa das mãos o Rituais Romanum enoutra imprecações ainda mais fulminantes:
a cruz ou o hissope com água benta, em tom enérgico, às vezes
aos gritos, o exorcista recitava solene o Ritus exorcizandi obses- "Abjuro-te, serpente antiga, pelo julgamento dos vivos e
sos a daemonio. O povo aterrorizado sempre acorria a tais dos mortos, em nome de teu criador e do Criador do Mundo,
liturgias, e de joelhos, agarrando-se nos rosários e escapulários, daquele que tem o poder de te enviar para a Geena!
formava uma corrente pia e assustada contra o Espírito das Ordeno-te que saias imediatamente, com o teu furor, desta
pobre criatura de Deus, Rosa, que se refugia no seio da
Trevas. O texto do Rituale Romanum se encarregava de criar
Igreja. Esconjuro-te de novo, que saias-desta serva de Deus
um clima de pavor naquela turba composta de gente simples,
timorata e supersticiosa: que foi criada à imagem divina. Obedece rião a mim, mas
a Cristo! Que o corpo desta criatura te cause medo: sai,
"Quem quer que sejas —- gritava o sacerdote —, ordeno- violador da Lei, sai sedutor cheio de artimanhas e enganos.
te, Espírito Imundo, como aos teus companheiros, que Vàde retro, Satanás!"
obedeças a este servidor de Deus, em nome dos mistérios
Quem assistiu aos fUmes Madre Joana dos Anjos e O
da Encarnação, Paixão, Ressurreição e Ascensão de Nosso
Exorcista, ou presenciou cenas de possessão nos terreiros de
Senhor Jesus Cristo, & em nome do Espírito Santo, que
umbanda, nas seções espíritas, ou mesmo através da televisão,
digas o teu nome e indiques por um sinal qualquer o dia e
nos cultos das igrejas pentecostais, pode visualizar o dramatis-
a hora em que entraste neste corpo. Ordeno-te que me
mo e descarga de tensão que tais cerimónias macabras provocam
obedeças, a mim, Ministro indigno de Deus, e proíbo-te que
entre os presentes. As vezes o demónio é tão forte, que o feitiço
ofendas esta cria.tura, assim como aos presentes."
vira contra o feiticeiro-exor cista, e o próprio sacerdote não resiste
à sedução do Tinhoso. Ou então uma legião de demónios toma
Entre litanias e responsos, sacexdote^acólito-e-fíéis-f-azeBa——
uma corrente espiritual contra o Tentador, Enquanto isto, a cont'â~da~a"sseníbiéia~e-aí-a^grej-a-transform.a-se num pandemô-
criatura espiritada encena suas macaquices: se joga por terra, nio. No célebre episódio das possessas de Lodun (1634), onde
contorce o corpo todo, espuma, range os dentes —• ou fica inerte várias freir as ursulinas encarnaram vários capetas—Asmodeu,
no chão, fora de si. Aí ataca de novo o Xota-Diabos: Leviatã, Isacaron e seus sequazes —•, o exorcista-mor das reli-
giosas, PadreUrbain Grandier, acaba sendo acusado deterpacto
"Exorcizo-te, immundissimus spiriíusi Abjuro-te de to- com Satã, e ó queimado em praça pública perante uma multidão
dos os adversários fantasmas e legiões em nome de Nosso de mais de 6 mil curiosos. Quando atacadas pelo Rabudo, as
Senhor Jesus Cristo. Ouve e treme de pavor, Satã, inimigo freirinhas-demonopatas "davam gritos angustiosos, ataques
da fé, inimigo do género humano, mensageiro da morte, convulsivos, urravam como danadas e lobos enraivecidos ou
raiz de todos os males, ladrão da vida, opressor da justiça, bestas ferozes, A língua das energúmenas pendia fora da boca,
sedutor dos homens^ traidor de todas as nações, origem da ficavam em êxtase e catalepsia, dobravam o corpo para frente e
avareza, inventor da inveja, causa das discórdias e dores!" p ara trás convulsivamente".
Uma sessão completa de exorcismo, seguindoparí passu o
Enquanto fazia sinais da cruz na cabeça, ventre, peito e no Rituale Romanum, deve demorar por volta de duas horas.
coração da energúmena, aspergindo-a com água benta e benzen- Dezenas de minutos são gastos na leitura do Símbolo de Santo
Atanásio, uma espécie de Credo mais detalhado, onde domina

60
61
-—•_-:-„>-.—. .. ...

f a ideia de que fora da Igreja Católica não há possibilidade de


salvação — portanto, que não venha a energúmena tentar a
Jrt
ie
a
~^
^ alta' — conforme ela própria informa em uma de suas cartas que
,é fundação de outra igreja, pois todo cisma é obra do Diabo. o.
àhalis ar emos oportunamente — , negra retinta como os nativos
Segue-se a leitura.de vários Salmos de Davi, os de números 67, '{•'•• dá Nigéria, no chão, desgrenhada, molhada de água benta, o
7> • : :sangue a escorrer-lhe da fronte, a cara inchada, talvez os olhos
34, 30, 21, 3, 10, todos enfatizando, a força e o poder do Deus dos
JS
Exércitos. : . '"' esbugalhados e vermelhos como os dos negros nos vodus, "com
gestos e movimentos que parecia o demónio" — e mais ainda,
dizendo em voz saída das profundezas, grossa e tétrica como
f "Sai, Espírito Imundo!, continuaopresbitero.Osverm.es
te esperam! Sai, ímpio, sai celerado. O deserto é tua falam os espíritos imundos, que ela era o próprio Lúcifer! Cruz
é morada, a serpente tua habitação. E enquanto a endemo- Credo! Ave Maria! Vade retro, Satanás! Xocotô bérolól
Mais tarde confessará o exorcista que, levado "por zelo e
niada, flexuosa, praguejando, batendo com o crânio, expec-
f tora Satanás, os Pater Noster, os Gloria Patri e Salmos caridade cristã", a partir daí começou os trabalhos espirituais
é envolvem-na. Quando ela cai prostrada, salva, o triunfador com a negra vexada,

t grita: !Eis-te refeita, santa! Deixa de pecar para que te não


--— — - "fiando-se nas boas informações que deu o Padre António
f aconteçam outros desastres. Vai para casa e anuncia aos
Lopes, nesse tempo confessor e diretor espiritual, de Rosa
è teus as grandes coisas que Deus fez por ti e toda a sua
misericórdia."
/ •
após sua conversão, a respeito de sua vida e bons costumes,
e, por razão disto, se capacitounaais da verdade da vexação,
fê Como já vimos, nem sempre Rosa voltava a si após taisg
"acidentes" sobrenaturais. Ao menos numa das primeiras crises
fazendo-lhe mais três ou quatro exorcismes, dizendo ter
experimentado melhoras nas queixas que padecia".
3 ?

t demoníacas, teve de ser carregada para a casa de sua senhora,j


desacordada. Também pudera: acabava de passar por experiên- O depoimento favorável deste primeiro confessor de Rosa
f cia das mais doloridas _ , _ ^ _ - r - = - . obriga-nos a transferir sua. conversão de meretriz em mulher de

f prias palavras, além de sentir os ossos estalarem, "viu e sentiul «íi;?r~, -bons costumes para algum tempo antes dos exorcismes. Talvez
alguns anos mesmo antes de 1748, pois só assim teria conseguido

i
que do ar lhe deitaram um caldeirão de água fervendo, com o)
que caiu logo desacordada, e, quando se restituiu, se achouL •' . tão boas referências deste seu primeiro diretor espiritual. A
t lançando sangue da cabeça, que estava rachada e metida aos
pés de São Benedito".
menos que o Xota-Diabos estivesse blefando perante os Inquisi-
dores, inventando tal opinião como álibi dirimente de sua res-
ponsabilidade em aceitar- a santidade desta cativa da família
Talvez a abundante água benta que o exorcista lhe asper-
;—•--- Durão. Jánesta época dois outros personagens também vexados
gia, já semi-inconscientepelo ataque de nervos, associada àidéia
f de que este líquido abençoado espanta ou mesmo faz arder o
Chifrudo, tenha provocado na negra nigeriana a sensação tão
~™"~' Pelo Tentador aparecem coligados a Rosa: Leandra, crioula
natural de Pernambuco "que por caridade assistia Rosa", e um
tal de António Tavares "português branco que se dizia nascido
terrível de ser torturada com água fervente. Seus gritos, contor-
nas Ilhas", os quais acompanharão a espiritada até mesmo ao
ções, sobressaltos — convulsões frequentes nos médiuns quando
Rio de Janeiro. É provável terem sido este amigos — que com o
possuídos — refletiam a dor insuportável da água fervente, que
tempo tornar-se-ão seus devotos — as pessoas que prestaram
segundo disse "viu e sentiu", e, mais ainda, da rachadura em
assistência a Rosa, levando-a para casa, na ocasião em que
sua cabeça decorrente da violência com que deve ter se jogado
quebrou a cabeça. Dona Maria Teresa de Jesus, importante
ao chão. Este quadro devia ser horripilante: Rosa, uma mulher
personagem nesta história, pois foi, após a família Durão, pro-

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prietária de Rosa, informou terem sido esses três energúmenos de pneumct — isto é, ar, a mesma raiz da palavra moderna
que juntos solicitaram ao Padre Francisco que os exorcizasse na pneumático ou câmara-de-ar. Ainda no século passado a Igreja
Capela de São Sebastião — na comarca do Rio das Mortes. acatou a associação do vento à manifestação da divindade, tanto
Voltaremos à informante e a esta capela mais adiante. que Santa Bernadette (1844-1879), ao descrever a primeira
Após estes primeiros acidentes, declara a futura santa que, aparição de Nossa Senhora de Lourdes, diz que a Virgem fez-se
duas-vezes anunciar por "um pé-de-vento". 3 Entre nossos es-
"dali por diante, quando saía de casa para a igreja, logo na cravos trazidos da Costa da Mina, de onde provinha Rosa
rua sentia um, vento tão forte que lhe impedia os passos, e Egipcíaca, alguns importantes orixás, sobretudo a poderosa
com grande violência a fazia retroceder para trás e se bater senhora lansã, são identificados com o vento -— ou melhor, o
com o corpo em uma cruz, sendo em dias que não havia vento é a manifestação de tais espíritos. Encontramos mesmo
vento nem as mais pessoas o sentiam — e só por virtude outras africanas residentes nas Minas Gerais quejáhaviam sido
dos preceitos que punha o exorcista é que podia resistir ao denunciadas à autoridade eclesiástica exatamente por cultua-
dito vento e entrar na igreja." rem tal elemento etéreo: "Maria Canga inventava uma dança
de batuque, no meio da qual entrava a sair-lhe da cabeça uma
A partir de então os exorcismes farão parte do dia-a-dia coisa a que se chama vento, e entrava a adivinhar o que queria".
desta preta, e, dado o caráter público destes rituais e dos locais Oimportantedestanovam.anifestacãodoEspíritoemRosa
onde o Diabo a atacava, Rosa passará a ser vista e considerada é o fato de que cada vez mais ela vai exigir a atuação do exorcista,
como uma endemoniada: de mulher pública torna-se espiritada, criando uma relação diádica de dependência espiritual entre a
sendo outra agora a assistência que a circunda. vexada e o sacerdote que lhe põe preceitos, interação que per-
Ainda hoje existe no Inficcionado uma grande cruz, quase durará até a prisão de ambos pelo bispo do Rio de Janeiro. Por
defronte da Igreja de Nossa Senhora do Rosário — igreja cons- mais frequentes e numerosos que tenham sido os exorcismes,
truída posteriormente à presença de Rosa no arraial, mas que nunca Lúcifer abandonou o corpo desta excêntrica criatura. Ou
com certeza emjseu. lugar. primitivo_davia-existk^-uim-a-eapela— melhor — talvez o invefsof nunca a criatura deixou que seu
frequentada predominantemente pela população de cor —, si- espmto-famuiar fosse embora, pois, sem ele e suas diabruras,
tuada na saída sul da povoação. Como esta cruz de madeira, perderia Rosa o chamariz que lhe garantia tantos devotos em
muitos outros cruzeiros, alguns de pedra, sempre foram alvo de toda parte onde Lúcifer a vexava.
grande devoção nas Minas Gerais, associados muitas vezes ao As pessoas nas ruelas do Inficcionado deviam se admirar
culto das almas do purgatório. Teria sido nesta cruz que Rosa e se benzer quando o Espírito baixava na ex-meretriz de Dona
sentia os tais acidentes e ventanias? Ana, paralisando seus passos, impedindo-a de entrar na Matriz
O vento, muito antes de filósofos pré-socráticos elegerem- de Nossa Senhora de Nazaré, ouprojetando-afortemente contra
no como um dos elementos constitutivos da vida, foi apontado a Santa Cruz. Paralisada na porta do templo ou quiçá estrebu-
por outros povos como a própria manifestação da divindade, ou chando no chão, só com os preceitos do Xota-Diabos era vencida
um de seus atributos. Na tradição bíblica, o vento, o ar, o hálito a resistência do inimigo de Deus "e podia entrar na igreja".
são identificadores da força de Javé, daí o Altíssimo ter dito ao Mesmo lá dentro, o Coisa Ruim tornava a apoquentá-la: "nas
profeta Ezequiel: "...Vou fazer reentrar em vós o sopro da vida... missas que se diziam, tanto que se tocavam as campainhas do
Vem, espírito, dos quatro cantos do céu, sopra sobre esses mortos Sanctus, caía sem sentidos, até que, repetindo suas confissões
para que revivam" (Ezequiel, 37:5-10). O próprio Espírito Santo, e comunhões, se achou melhor da sobredita vexação".
a terceira pessoa da Trindade Santíssima, em grego é chamado

64 65
Graças aos efeitos salutares do sacramento da Penitência beneficiar as almas com variada gama de dons sobrenaturais:
e da Santa Eucaristia, o Pai das Trevas começou a civilizar-se. visões sensíveis ou corporais, visões imaginárias e visões inte-
A africana trocava as manifestações primitivas de possessão no lectuais. Os "toques divinos" por seu, turno incluem: vozes sobre-
estilo tribal, pelas demonopatias previstas pelo Rituais Roma- -naturais auriculares, imaginárias e intelectuais. Os "toques
num. Exu se transformava em Lúcifer . Por trás desta metamor- .visíveis" podem ser: estigmas ou chagas, levitação, eflúvios
fose de cunho europeizante, está o velho Padre Francisco, que luminosos ou odoríferos e abstinências prolongadas.
encontra em Rosa, Leandra e António Tavares um novo filão Deixemos um contemporâneo denossabeata, ofranciscano
para atrair outros energúmenos e curiosos pelas diversas cape- Frei Manoel da Cruz, autor do manuscrito <£Flor esta Espiritual",
las e igrejas da comarca de Sabará e pelo Rio das Mortes afora, conceituar cadaum destes fenómenos místicos, muitos dos quais
por onde missionava. E como ensinou o próprio Cristo, "o ope- serão citados nas próximas páginas deste livro.
rário é digno de seu salário" (Mateus, 10:10), certamente abolsa X:T-*B
do exorcista se enchia cada vez mais com as polpudas esmolas ~v - '• " . Raio: conhecimento divino que alumia a alma e passa
dos fiéis mineiros mais timoratos. depressa;
A santidade da negra courana crescia e se sofisticava dia- . Luz: qualidade intencional que sendo interior é espécie
a-dia, tanto que, passados três meses dos primeiros exorcismos, impressa;
. Voo de espírito: presteza veloz que leva a alma a Deus;
"estando ela na sua cama dormindo, ouviu um tropel (isto . Êxtase: quando a alma se vai, pouco apouco, alienando e
é, um tumulto de grande porção de gente a andar e se saindo de seus sentidos;
agitar). E acordando se achou de joelhos fora da cama. E . Rapto: quando de repente se arrebata a alma em Deus,
logo lhe disse uma voz: 'Louvado seja para sempre tão alheia de seus sentidos;
grande Senhor.' E, sem ela fazer movimento algum, se . Arroubamento: quando o ímpeto do espírito é tanto que
levantou o seu corpo de onde estava e caiu também de faz levantar o corpo da terra;
~~- . .Keveiação: conhecimento sobrenatural, que Deus comunica
a mesma e ela coisa de dois passos. E logo sentiu que de si a algumas almas, de coisas particulares, que sem luz
saía uma voz que não era a sua e respondeu: 'Para sempre sobrenatural se não podem alcançar;
sej a louvado tão grande Senhor.' Depois do que, a sobredita . Visão corpórea: quando se vê com os olhos corporais
voz, que ela perfeitamente ouviu, ainda que não soubesse alguma coisa que, sem particular luz e virtude divi-
de quem era, nem quem. a proferia, lhe recomendou que na, se não pode ver;
rezasse três Padre-nossos e três Ave-marias às Pessoas da « Visão imaginária: quando com imaginação se vêem
Santíssima Trindade e outros à Paixão de Nosso Senhor algumas coisas que com. forças naturais não fora
Jesus Cristo e cinco em.: reverência à Sagrada Família e possível alcançar;
sete às necessidades temporais e espirituais da Igreja, as . Visão intelectual: conhecimento secreto e alto que o
quais rezas ela ainda faz e fez sempre". entendimento alcança de alguns mistérios de Deus
que ele descobre à alma com mais luz que a sobre-
Rosa, como centenas de outras santas e bem- aventuradas natural ordinária e que lhe comunica a vj.são ábs-
i católicas, será agraciada com várias manifestações sobrenatu-
rais. Segundo \rm dos mais^respeitados especialistas neste as-
trativa. De todas as visões é a mais segura;

sunto tão delicado, o dominicano Garrigou-Lagrange, Deus pode

í 66 67
. Visão intuitiva: é ver Deus como ele é;
« Pasmo: também chamado suspensão, é ura divertimento grande expansão no Brasil Colonial, foi uma das muitas devoções
exterior dos sentidos por causa de veemente atenção quê?" forçada pela pesquisa histórica, a Igreja Católica hoje
interna; reconhece tratar-se de umalenda puerile sembase factual. Para
. Fundo da alma: o mais secreto de seu ser e operação; uma'ex-prostituta, a devoção às Onze Mil Virgens devia servir
. Santidade: graça habitual que se sujeita na substância como espécie de antídoto retroativo à vida dissoluta anterior à
da alma."27 conversão.
^ * Como aconteceu a muitos outros santos canonizados por
Roma, das vozes Kosa passou às visões. Quando pre.sapor ordem
Nossa negra convertida começou com vozes misteriosas —
do bispo do Rio de Janeiro, Dom António do Desterro —— ele
a manifestação mais chinfrim — mas há de chegar aos êxtases,
próprio, muito devoto da corte celestial, tanto que possuía ri-
às visões e mesmo a receber os sagrados estigmas, privilégio dos
•quíssima coleção de relíquias "autênticas" de todos os apóstolos,
mais notáveis dentro da hierarquia dos santos, tendo sido o
diá"Cruz de Cristo e do manto de Nossa Senhora [sic] — e,
seráfico São Francisco quem inaugurou a lista dos merecedores
de tão prodigiosa manifestação sobrenatural.
í: "sendo perguntada se tivera algumas visões sobrenaturais,
Observe-se que de início a escrava da família Durão não disse que, estando em casa de Pedro de Azevedo, na fre-
identifica de quem procedia tão estranha voz, embora suspei- guesia do Inficcionado, aonde também se achava a mulher
tasse que provinha do Céu, talvez de uma alma, ou de um anjo, deste, e falando todos sobre o Espírito dela ré, viu clara-
posto que pedia-lhe orações. Neste início de misticismo, seu mente a figura de iim coração de cor vermelha cheio de luz
imaginário, ainda limitado de cultura religiosa, começa a po- e cercado com uma coroa de penetrantes espinhos".
Í voar-se de miríades celestiais, tanto que
Pelo depoimento prestado na Relação Eclesiástica do Rio
"tornando a dita voz na noite posterior, precedendo todas de Janeiro, esta teria sido sua primeira visão. Alguns meses
as ditas palavras-e-oraçóes-que-forajn-referidaiST-lhreTreíiF depois, em .Lisboa, descreverá a visão do mancebo, loiro vestido
mendou que fosse devota dos Nove Coros dos Anjos, das
de azul—citada anteriormente — como tendo sido seu primeiro
Onze Mil Virgens e que rezasse sete Padre-nossos e outras
contacto visual com, o sobrenatural. Talvez esta última versão
tantas Ave-marias oferecidas às sete dores de Nossa Se-
seja mais correta, posto que a partir dela, ou melhor, por ordem
nhora por seus inimigos —• o que ela dali em diante rezou
sempre". deste mancebo, é que Rosa abandonou sua vida dissoluta, dis-
tribuindo tudo o que tinha entre os .pobres. Gesto que deve ter
sido alvo de muitos comentários em seu pequeno arraial, mar-
A corte celeste — tal qual JRosa deve ter visto pintada nos
cando na opinião pública a mudança radical da negra, de peca-
tetos de muitas igrejas mineiras, além da Santíssima Trindade,
dora em mulher virtuosa.
da Maria Virgem, dos 12 apóstolos, infinidade de mártires,
O interessante nessas visões iniciais, além da simbologia
doutores, virgens, santas viúvas, etc., etc. — comportava inu-
às vezes pueril e calcada fortemente nas estampas ou registos
meráveis anjos, arcanjos, serafins, querubins, tronos, potesta-
de santos que circulavam entre os cristãos de antanho, quer
des —• uma incontável constelação de bem-aventurados quase
como santinhos e verónicas, quer como quadros ou retábulos de
tão numerosos quanto as estrelas do céu. O culto às Onze Mil
parede, outro elemento digno de nota é que tais visões aconte-
Virgens companheiras de Santa Ursula, martirizadas por de- ceram muitas delas, ao lado de pessoas conhecidas, em locais
fenderem a castidade, estimulado sobretudo pelos jesuítas e com
corriqueiros. Por exemplo:

68 69
"Estando ela no quintal das casas em que morava, às 3
horas da tarde, viu ura globo de nuvens com uma meia-lua "na noite em que tomou a cadeia de Nossa Senhora [?]
no meio, do mesmo modo que se pinta nos pés de Nossa estando na sua casa às escuras, entrou nela uma luz e, sem
Senhora da Conceição, estando nesse tempo o céu sereno ela ver quem falava, ouviu uma voz que lhe disse: 'Aprende
e limpo." a rezar o Ofício de Nossa Senhora da Conceição e o de São
"...Disse mais, que, em diferentes ocasiões, estando as- José, e dize ao teu confessor que amanhãmande jejuar toda
sentada na escada das casas em que assistia, conversando - a gente a pão e água, que, sendo março, é a verdadeira
com quatro pessoas mais que ali se achavam, viu um ; sexta-feira em que o mundo foi remido' — e logo se calou a
mancebo muito formoso..." i- voz e se apagou a luz".
Só ela tinha o privilégio de distinguir todas as visões: os -."--;• Deus preparava, passo a passo, sua eleita negra, ensinan-
demais circundantes provavelmente ficavam admirados, alguns do-lhe o beabá da vida mística: primeiro a tal voz misteriosa lhe
descrentes, outros respeitosos, quando a negra era "raptada" mandara rezar aquela dezena de Padre-nossos e Ave-marias por
pelas belezas celestiais. várias intenções; agora exigia mais atenção, decorando o Ofício
Logo no início de sua conversão, o Padre Xota-Diabos não deNossa Senhora. Estaprece resume-se em sete hinos emlouvor
apoiou tais extravagâncias místicas, sobretudo a ideia de imitar a Maria Virgem, composto pelos meados do século XV e muito
Santa Margarida de Cortona, que, após vida de meretriz, distri- rezado por nossos antepassados.
buiu todos seus bens aos necessitados, seguindo Cristo na po-
breza: "Nas casas de família rezava-se o Ofício aos sábados, ao
entardecer, todos reunidos no quarto dos santos ou no
"disse-lhe o padre que deitasse fora semelhantes visões, oratório. Todas as atividades domésticas eramparalisadas
rezando o Credo. Porém, ela, confundida deste aconteci- e por coisa alguma se interrompia a oração, desde que era
mentoj^distribultl p~elã£f pessõãs"mãis~ltiécessítad.as o ouro saFído que Nossa Sênhòraficava de joelhos" e mãos postas,
que tinha e os vestidos de seu uso, adquirido tudo pela sem poder se levantar, enquanto não viessem completar o
culpa e ganhado com uma vida lasciva... B se confessou seu Ofício. Nas ocasiões de trovoada, enquanto um cobria
geralmente,ficando1,pela misericórdia de Deus tão arre- os espelhos e guardava as facas, os outros se encaminha-
pendida de seus pecados, que até à hora presente não vampara o nicho para entoar o Ofício, até que se amainasse
tornou.mais a cair em culpas graves, principalmente na da a tempestade. Nos engenhos, nas roças, nas casas de chão
sensualidade". batido, nas casas de telha-vã, cada qual onde estivesse,
quer batendo feijão, escolhendo fumo, acendendo o lume
A ex-mulher do fandango não deu ouvidos a seu diretor ou recolhendo a enxada, alteava a voz para alcançar a do
espiritual, e persistiu nas visões. Fazendo a "confissão geral" de companheiro mais próximo, formando um estranho coro de
toda sua vida passada, seguia o exemplo do apóstolo Paulo, ele louvores àMãe de Jesus. Em certas localidades, aindahoje,
também outrora inimigo de Cristo, enterrando com a absolvição há quem. se julgue possível presa do demónio, se por acaso
no confessionário o "homem velho" e renascendo para a nova não puder participar da reza do Ofício."
vida (Romanos, 6:6).
Disse mais a cativa visionária que, no mês de março de Tal é o depoimento da folclorista Hildegardes Viana, que
1748, - válido para a Bahia contemporânea — imaginemos quão mais

70 71
importante devia ser tal devoção há dois séculos passados, no. voz misteriosa revela a Rosa que "a verdadeira sexta-feira em
auge de sua expansão pelo mundo ibérico. que o mundo foi remido..." foi no dia 25 de março. Criado eu
dentro da religião católica, seminarista por oito anos seguidos,
Agora, lábios meus, dizei e anunciai confesso que a primeira vez que ouvi referência ao dia 25 de
Os grandes louvores da Virgem Mãe de Deus. março como a verdadeira data da morte de Cristo foi quando
Sede em meu favor, Virgem Soberana mudei-me para a Bahia, em 1979. Agora, ao escrever estas
Livrai-me do inimigo, com vosso valor. páginas, consulto rainha empregada, Carlita Chaves, 58 anos,
neta de africanos, moradora no Bogum. Explica-me com. convic-
fe Santa Maria, Rainha dos Céus, Mãe de Nosso Senhor Jesus' ção que, de fato, Nosso Senhor Jesus Cristo morreu no dia 25 de
Cristo, Senhora do Mundo, que nenhum pecador desamparais: março, "a data verdadeira da morte de Jesus, revelada pelos
t-' alcançai-me de vosso amado Filho o perdão de todos os meus - profetas, data marcada por Deus mesmo. A sexta-feira da Se-
pecados. mana Santa é marcada pelos padres, por isso todo ano varia seu
gli Sois lírio formoso, que cheiro respira
" dia e mês". Pode ser até que haja razão nesta crendice popular,
* revelada a Rosa e contada de geração em geração até chegar à
Entre os espinhos, da serpente a ira, minha velha informante: pode ser que os primeiros cristãos
Vós a quebrantastes com vosso poder "celebrassem a paixão de Cristo exatamente no dia em que seus
Os cegos errados, os alumiais. discípulos disseram haver ocorrido e, só mais tarde, cora a
Humildes oferecemos, a vós, Virgem pia, fixação do calendário litúrgico associado às diferentes festas
Estas orações, porque em nossa guia religiosas, que a Páscoa e a Paixão tenham passado a ser
Vades vós diante, e na agonia comemoradas em datas móveis. Como sucedeu nas Gerais em,
Vós nos animeis, ó doce Maria, amém.
1748, por ordem de Rosa Egipcíaca, ainda hoje muitos devotos
s na Bahia — e talvez por este Brasil afora— cumprem o jejum
..a,
« Desde- os-prim
«r "enYlembrança da morte do Salvador no dia 25 de março.
nhavano caminho místico, já delineam-se algumas devoções que
íír Na mesma visão onde se lhe ordenara que aprendesse o
com o tempo serão a locomotiva de sua espiritualidade crioula:
Ofício de Nossa Senhora, recebe a vidente a primeira ordem
o culto à Sagrada Família, ao Coração de Jesus, a Nossa Senhora
K dirigida a seu confessor: que mandasse jejuar o povo da casa
sob diversas denominações. Algumas vezes, era no momento em
ffi onde-vivia. "Comunicando ela o recado ao seu confessor, este
que recitava tais orações que se lhe abriam as portas do sobre-
S
u
natural: "Certa ocasião, estando no mesmo quintal das casas
onde morava no Inficcionado, rez ando o Ofício de Nossa.Senhora
disse ao dono da casa em que se achava, que mandasse jejuar à
^suafamília, semlhe dizer omotivo: só que erabomjejuar naquela
ir -sexta-feira."
pelas 5 horas da tarde, viu uma meia-lua e sobre ela uma imagem,
A partir daí, muitas vezes, Rosa transmitirá a seus confes-
de Nossa Senhora da Conceição com as mãos levantadas como
sores diversos recados divinos, invertendo os papéis da hierar-
se costuma debuxar..." Geralmente figura-se esta Madona pi-
-.t». sando a meia-lua e uma serpente. Quem sabe se a predileção
~quia espiritual, sendo ela, e não os sacerdotes, a intermediária
entre Deus e as criaturas. Já nesta época, março de 1748,
dos africanos por esta representação mariana não se explica por merecia tanta confiança do Padre Francisco, que, sem maiores
sua associação na mente dos negros com a serpente Oxumaré explicações, obrigou a um jejum extra toda a família onde se
do panteão gêge-nagô?
Observe o leitor um curioso detalhe da visão anterior: a

72 73
hospedava, jejum que o Coronel João Gonçalves Fraga cumpriu, Vara do recém-criado bispado de Mariana. A denúncia talvez
assim como todo seu grupo doméstico, escravos inclusive. tenha sido de que era embusteira ou tivesse algum pacto com o
Desde os primeiros passos de sua vida mística, avisionária diabo.
confia a seu diretor o conteúdo de seus colóquios espirituaisj É durante seu afastamento do Inficcionado, quando em
seguindo o conselho de um dos mais reputados mestres da companhia doPadre Francisco na propriedade do CoronelFraga,
teologia ascética: "Após a revelação, a alma verdadeiramente que se iniciam as visões há pouco referidas. Após a partida de
iluminada por Deus consultará sempre seu diretor ou outra seu protetor para São João dei Rei, os céus continuam a abrir
pessoa douta e discreta." suas portas para a pobre energúmena, cujo nome e má fama se
Apesar dos fortes laços que tinham-se criado entre o sacer- tornaram conhecidos do vigário da Vara e demais sacerdotes das
dote e a vexada, outros energúmenos clamavam pela acão redondezas, tanto que apobre convertida não encontra sacerdote
tranquilizadora doXota-Diabos, voltando então Padre Francisco algum, que aceite confessá-la. Os canais de comunicação entre o
para sua paróquia, no Rio das Mortes. Nesta época acontecerá clero, pelo visto, eram bastante eficientes.
o primeiro de urna série de atritos de Rosa com o clero, começando Fins de 1748: as visões de Rosa refletem a angústia de seu
aí também o primeiro questionamento oficial de suapseudo-san- coração, carente da paixão dos homens — seus antigos clientes
tidade. no meretrício — e agora privada do alívio das absolvições dos
Quando estivera no Inficcionado, o padre Xota-Diabos confessores e do respeito que lhe prestara seu querido protetor
hospedou-se na casa do vigário, o já citado Padre Luiz Jaime de e exorcista. Ao longo de toda sua vida, a santa courana aumen-
Magalhães. Ainda hoje lá encontra-se a casinha paroquial no tará verdadeira adoração pelos sacerdotes, seguindo-lhes os
oitão da Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, toda murada e passos, copiando-lhes as doutrinas, repreendendo os relapsos e
austera, como convinha aos ministros do altar. Talvez por imorais, rezando muito para que fossem virtuosos. Devoção,
ciúmes, ou mesmo por boa fé e zelo espiritual, Rosa revela ao diga-se depassagem, muito estimulada pela hierarquia católica,
sacerdote recém-chegado "alguns defeitos do vigário" que des- que, por breve do Papa Leão X (1513-1521), conferia 8.100 dias
gostaram, o visitante," Iévan3õ:crã~lnudar-se para a-casa do dê "indulgência a todo fiel que beijasse as franjas do hábito dos
também já citado Coronel João Gonçalves Fraga, a tuna légua franciscanos, o escapulário dos dominicanos e carmelitas ou o
do arraial. Irritado com. a escrava tagarela, o vigário ficou "com S2
cordão dos cónegos de Santo Agostinho.
muita má vontade dela, recusando-lhe a confissão". Recusa, A veneração quase idolátrica aos ministros do altar era
aliás, já prevista nas Constituições, que no §88 interditava a património de toda cristandade: no México, a "beata" Catarina
administração dos sacramentos às feiticeiras, meretrizes e pe- de San Juan, nos finais do século XVIII, prostrava-se de joelhos
cadores públicos. Como a conversão desta Madalena negra era para beijar as pegadas de todo sacerdote que passasse nas
coisa recente, e seus ataques diabólicos podiam prognosticar 33
imediações de sua choupana, Eis uma de suas visões deste
interferências satânicas, o vigário tinha respaldo canónico para período melancólico:
vingar-se da preta faladeira.
Desconsolada, sem poder ter acesso à confissão, cinco dias . "Estando ela nesta ocasião enferma e aflita, porque o tal
após este incidente, Rosa vai à procura de seu exorcista, dizen- Espírito Maligno que padecia lhe tirava a vontade de
do-se perseguida pelo Padre Jaime, que a insultava até "com comer, indo visitar uma gente sua conhecida que morava
nomes' afrontosos" — talvez, chamando-a de má mulher, puta distante, observou que, ao passar de um monte, se lhe
ou feiticeira — chegando a ponto de denunciá-la ao vigário da embaraçavam os passos e caía no chão, e quando em casa

74 75
rezava, tudo oferecia voltada para aquele monte; porém, o aJimentava-se com os dons de Deus — atitude na época inter-
seu confessor, o dito Padre Francisco Gonçalves Lopes, se pretada como sinal de santidade e da graça divina, hoje diag-
tinha retirado para o Rio das Mortes, e ela, ré, ficou descon- nosticada como anorexia nervosa, distúrbio psicológico clara-
solada porque não achava confessor que a quisesse ouvir. E mente identificador de desequilíbrio mental.
estando uma noite na sua cama, acordada, ouviu um tropel As saudades de seu padrinho-confessor revelam-se nesta
pela casa, e logo à sua cabeceira se principiou um cântico de próxima visão, a qual inclui um elemento novo: em seu crescente
diferentes vozes muito alegres e sonoras, que dizia: TSendita misticismo, anegra é milagrosamente transportada deumlugar
e louvada seja a Santíssima Trindade que, sendo pessoas três, pára outro, uma espécie de rapto ou bilocação espiritual que só
é só tima na verdade; e também seja louvado o altíssimo ocorre em santos da grandeza de Afonso Liguori (1696-1787),
mistério que na mais breve partícula se nos comunica íntegro; Francisco Xavier (1506-1552), António de Pádua (1195-1231) e
e também sej a louvada a puríssima Maria que nela encarnou do mulato Martinho deLima (1579-1639), todos canonizados por
o Verbo, sendo mãe e sendo filha — como filha vos pedimos, Roma. O estilo embolado desta e de muitas outras visões de Rosa
como mãe vos rogamos que vamos todos à glória cantar o Te exige do leitor contemporâneo às vezes duas leituras para sua
£'•
'r Deum Laudamus.' Isto se repetiu por três vezes cantando, perfeita compreensão. Culpa da visionária, do notário ou do
sem que ela, ré, visse de onde saíam aquelas vozes. E nas Barroco?
primeiras três noites seguintes veio uma delas pelo mesmo
modo ensinar-lhe a referida letra, e, no fim, deste tempo, ela "Em um dia pela manhã foi levada ela ré da sua, casa
a tinha decorado." para a igreja, em espírito, porque o corpo ficou em casa —
só com os sentidos de ouvir, porque os outros quatro
•'*
l' Rosa crescia rápido no conhecimento doutrinário: seu vo- acompanharam o espírito, e chegando aporta da igreja lhe
iÈ cabulário religioso e a desenvoltura com que tratava os mistérios perguntou uma voz se queria ouvir missa, que se ajoelhas-
.. teológicos são surpreendentes, sobretudo se levarmos em conta se. E, tocando-se a campainha a Sanctus, viu ela, ré,
o pouco- tempo desde que havia abandonado a vida de mulher descerem do teto da igreja muitos meninos nus, com suas
mundana. Se as negras minas eram reputadas como inteligen- bandas e velas na mão, cujas luzes eram de muitas e
tes, afáveis, rápidas na assimilação dos modos civilizados, as da diferentes cores, e postos sobre o altar em duas alas,
nação corá distinguem-se ainda mais pela capacidade de lide- apareceu logo um senhor crucificado em carnes, com coroa
rança e astúcia com que se apropriam de certos elementos-cha- de espinhos e só irmã chaga no lado, e levantando o sacer-
ves do mundo dos brancos, notadamente do universo religioso. dote a hóstia, lhe disse a ela, ré, a voz que costumava
Atentemos para a sofisticação teológica desta recém-convertida, falar-lhe, que entre ela e o cálice rezasse um Padre-nosso
há menos de 30 anos tirada do meio da floresta africana, ainda e uma Ave-maria e, no fim desta, à palavra Santa Maria,
I
I analfabeta, que discorre com propriedade sobre o mistério da
Santíssima Trindade, que, em vez de hóstia, usa o termo erudito
partícula, que sabe rezar o TeDeum e o Oficio deNossa Senhora!
acabou o sacerdote a missa e se foram apagando as luzes,
o que ela perfeitamente viu, pois os meninos que as tinham
iam desaparecendo e da mesma sorte a dita imagem.
"Oh! quão inefáveis são os desígnios de Deus!" . Depois do que o corpo dela que estava em casa se restituiu
Atente o leitor para um importante detalhe deste último aos quatro sentidos que lhe faltavam."
transe de nossa biografada: como ocorria com muitas outras
santas barrocas, também Rosaperdia o apetite quando sua alma Suas visões se tornam cada vez mais majestosas e resplan-
decentes: acreditamos que apropria configuração geográfica das

76 77
Minas, com suas intermináveis montanhas, vales profundos e mente batizado n.a mesma capela de São Sebastião, no Rio das
horizontes sem fim, favorecia as ilusões visionárias. Quando Mortes, onde Rosa e seus dois sequazes energúmenos faziam
estivemos na região deMariana, seguindo os mesmos itinerários pregações); São Caetano da Moeda, no distrito de Ouro Preto, e
percorridos pela mística africana, ficamos maravilhados com, a Sãa;Caetano de Mariana (hoje Monsenhor Horta), a freguesia
variação feérica das cores do céu ao pôr-do-sol. Mesmo sem onde o Padre Xota-Diabos foi primeiro coadjutor. É provável ter
prenunciar chuva, incontáveis coriscos e lampejos clareavam a sidoipor influência deste sacerdote que Rosa inclui São Caetano
noite, escura como breu, até que, gloriosa, através das nuvens, etíi seu devocionário, conhecendo até detalhes de sua santa vida,
surgiu uma meia-lua tão brilhante que mais parecia uma visão corno o de ter sido miraculosamente alimentado pelos anjos.
— a mesma figura sob a qual Rosa costumava ver representada Coincidentemente, no sincretismo religioso afro-brasileiro, so-
a imagem da Virgem da Conceição. As magníficas pinturas e bretudo nos candomblés de Angola, este santo está associado
talhas doiradas, que ano a ano iam se construindo na beata aos orixás do vento, Iroco, Katende e Loco: quem sabe se a
Minas Gerais, foram outro elemento que seguramente muito devoção de Rosa por este santo não sincretizava-se com os
influenciou o imaginário místico da ex-mulher do fandango. Só "acidentes" que tinha com o vento arr eb atador há pouco referido?
no teto da matriz do Pilar de São João dei Rei estão pintados 40 ~~ ;;--Jánestesprimórdios de vida mística, nossa vidente começa
á anjinhos, uns de corpo inteiro, outros apenas com um delicado a realçar as proféticas analogias de sua vida com a de outros
parzinho de asas brancas. Conao os vitrais das igrejas góticas da santos: primeiro com o italiano São Caetano, depois com Santa
Idade Média, as pinturas barrocas tinham a função pedagógica Egipcíaca, em breve com o próprio Cristo. Visões, vozes, revela-
de instruir os fiéis nos mistérios da fé, levando-se em conta a ções, raptos passaram então a fazer, parte integrante de seu'
predominância de analfabetos naqueles tempos pretéritos. dia-a-dia:
"Estando ela, ré, enferma e aflita, foi levada em espírito "Oito dias depois [da revelação anterior], andando ela
a uma terra que nunca viu, onde estava um formosíssimo com uma crioula [Leandra] varrendo a Igreja de São João

l
J_ T T

templo de tantariqueza e grandezu, como nunca víulQgum, .- jBatista, viu no centro da cruz um pombo branco, muito
nem pode explicar. B nele viu um sacerdote dizendo missa, .. fermoso, com os pés vermelhos, unhas e bico tão luzidios
o qual era de nunca vista formosura, e com ornamento tão -:< que pareciam de ferro, e o dito pombo lhe disse as palavras
precioso que o não sabe ela, ré, dizer. E tirando-se do altar seguintes: .'Haveis de aprender a ler e escrever, que quero
'• esse sacerdote, e chegando-se a ela, lhe disse nomeando-a

fe
fazer um ninho no teu peito.' E,, chamando ela pela crioula
pelo seu próprio nome, que ela havia de ser como Caetano, para que visse o dito pássaro, este desapareceu."
vivendo da Divina Providência e comer o pão espiritual
quotidiano que ele lhe desse. E, ditas essas palavras, tornou Não resta a menor dúvida de que o pombo branco com
a deitar-se na mesma cama em que estava." detalhes decorativos tão luzidios era o próprio Espírito Santo, a
terceira pessoa da Trindade Santíssima, que há 2 mil anos
São Caetano — festejado a 7 de agosto •—foi o fundador da passados fora visto pelos discípulos na cerimónia do batismo de
Ordem- dos Teatinos, tendo sido canonizado em 1671 por Cle- Jesus Cristo: "...o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre
mente X. Foi santo de enormepopularidade no Brasil Colonial: Ele em forma corpórea, como uma pomba, e veio do céu uma voz:
só nas Minas, no século XVIII, havia três vilas com seu nome: Tu és meu Filho bem amado, em ti ponho minha afeição" (Lucas,
São Caetano do Xopotó, na zona da Mata (cujo primeiro capelão 3:21-22).
foi o irmão de Tiradentes, Padre Domingos Xavier, coincidente- Nas Gerais, o culto ao Divino Espírito Santo sempre gozou

78 79

': ' •
de gr ande popularidade, estando a "pombiniia" representada em piando a dormir, acordou com o rumor de umas vozes que não
incontáveis altares-mores, sacrários e retábulos de suas igrejas. viu de quem eram". Aí se lhe revelou dos céus um longo cântico
Belíssima colecão desta terceira pessoa divina pode ser aprecia- onde vários membros da corte celeste desfilam à moda da
da no Museu de Arte Sacra de Mariana, sempre a "pombiniia" ladainha de todos os santos:
ostentando, como viu Rosa, o bico e os pés brilhantes geralmente
pintados de encarnado. As "Folias do Divino" perduram até hoje 'Vitória, vitória, Senhora Santana, que nas vossas santas
nas áreas mais tradicionais deste Estado, e o grande número de mãos está o nosso amparo; vitória, vitória, senhor São Joa-
municípios e povoados com nome tirado da raiz "divino" não tem quim, espero na morte o vosso socorro; vitória, vitória, Maria
paralelo nem, mesmo no Estado do Espírito Santo: Divinéia, Santíssima, pedi ao vosso amado Filho e ao vosso Eterno Pai
Divinópolis, Divinolândia, e mais as cidades de Divino das que vamos todos à glória cantar a'vitória; vitória, vitória,
Laranjeiras, Divino de Virgolândia e Divino Espírito Santo de Divino Espírito Santo, aluminai as nossas almas com a luz
Alterosa, acrescidos das seguintes vilas e cidades: Espírito Santo de vossa graça; vitória, vitória, Menino Jesus, vestido de
branco, defendei a vitória; vitória vitória, São João Batista,
.1 da Água Limpa, da Forquinha, da Mutuca, do Empoçado, do
Guaraná, dolndaiá, doltapecirica, doMar de Espanha, doMorro que no Rio Jordão deu vitória às almas; vitória, vitória, Nossa
Preto, do Piau, do Pomba, do Pontal, do Prata, do Quartel Geral, Senhora das Brotas, brotai as nossas almas e cobri com o
do Sapé dos Coqueiros, dos Cunquibus, dos Peixotos, dos Sertões vosso manto. Cujas palavras entoadas assim por essamusica
da Trombúca, etc. Um verdadeiro pombal divino! se lhe repetiram em três noites sucessivas imediatamente,
Do mesmo modo que na vida de Cristo, a aparição da ficando impressas tais palavras por cada vez no entendimento
terceira pessoa da Santíssima Trindade a Rosa é acompanhada dela, ré, com uma grande clareza e conhecimento."
de uma missão de vital importância: em ambos os casos, marca
o início da catequese e começo de uma nova vida de divulgação Conservamos a letra deste cântico; sua melodia foi para o
I.
• 3f
da Boa Nova. A negra courá tem_a^Mçõe.sj_aão_bas_ta_pregar, túmulo com Rosa: talvez imitasse as mesmas polifonias do
barroco mineiro, tais quais devia ter ouvido nas missas solenes
t& como Cristo fazia. Ela se dá conta que se aprender a ler terá a
chave dos mistérios divinos, poderá mergulhar na própria fonte nas muitas igrejas que frequentava. Além da simplicidade de
da revelação católica e por conta própria aprender orações, seu conteúdo, salta à vista a heterogeneidade da métrica deste
ladainhas e dogmas que até então só tinha acesso ex audito, hino, onde os muitos versos de pé-quebrado revelam ou que no
através do ouvido, quer nos sermões dominicais, quer nos con- céu faltavam bons poetas, ou que nossa ilusa tinha péssimo
selhos particulares que lhe davam os sacerdotes. Rosa cumprirá ouvido musical.
a determinação da "Divina Pombinha": aprenderá a ler e a Já nesta época a ex-mundana rezava de cor, além das
íí
S* escrever. Salvo erro, é a primeira escrava africana no Brasil a orações obrigatórias de todo católico—Padre-nosso, Ave-maria,
t*
S ser alfabetizada de que temos nojícia, pois_odocumento mais Salve-rainha, Credo e Glória Patri —, provavelmente algumas
r
g; antigõ7 até~entáo conKêcídõ, maguscrito_poir_uma_escrava> de em latim, como era costume de então, os Ofícios de Nossa
.li autoria da cativa Esperança. Garcia^ moradora no sertão do Senhora e São José, vários hinos sacros e estas duas novas
íl Piauí, é datado de 1770, enquanto que de Rosa possuímos orações reveladas quando dormia: Bendita e louvada seja a
algumas'carfãs aútografad.Sãjp_artir^de 1752.. Santíssima Trindade e Vitória, vitória. Eezando todas essas
preces de uma só vez, gastava mais de uma hora de oração.
m
Esta aparição e revelação do Divino deve ter ocorrido de
manhã, pois "na noite do mesmo dia, estando deitada e princi- Provindos de uma sociedade ágrafa na qual se enfatizava secu- •
larmente a memória, afim de se preservar a tradição oral, talvez o
80 81
I
:•
muitos africanos escravizados no Novo Mundo desdepequeninos
tivessem sido introduzidos nos exercícios de memorização, daí
terem conservado até nossos dias inúmeros relatos mitológicos
meditando no quinta]., dormindo em sua cama — detalhes que
revelam dispor de muito tempo ocioso para dedicar-se a exercí-
cios espirituais.
oriundos da velha África. *.^<*. Com
^/uxi± certeza
ceu-ueza Rosa
£ÍQS& devia igualmente
SabffT" rio f>nv <->= -mn-^J ' "• ~*
saber de cor os mandamentos da Lei de Deus e os da Igreja,
conhecimento comum a todo católico comungante.
Suas visões continuam, algumas repetindo temáticas já Notas
conhecidas:

"Disse mais que daí a dias, estando, numa tarde assen- Prooópio, Cândido. Kardecismo e Umbanda, S. Paulo: Pioneira,
tada no quintal das casas em que vivia, arezar pelas Horas 1961.
de Nossa Senhora, levantando a cabeça viu sobre a lua, RusselWood, Op. cif., p. 120.
que era quarto crescente, a imagem de Nossa Senhora da Boxer, C. A Idade de Ouro do Brasil. S. Paulo: Companhia Editora
Conceição vestida de azul, e, movendo-se de uma parte Nacional, 1969, p. 204.
para outra sobre a mesma lua, desapareceu. E ela ficou EusselWood. Op. cit., p. 118.
suspensa, sem saber o que significava aquela aparição." ANTT, Manuscritos do Brasil, Livro 2, fl. 219 (14-112-1735).
Costa, I. N. Vila Rica: População (1719-1826). S. Paulo: IPE-USP,
Até esta época, fíns de 1748, muitas vezes nossa visionária 1979.
dirá não entender o significado do que via, ou ignorar a proce- Santos Filho, Lycurgo. História Geral da Medicina Brasileira. S.
dência das tais vozes: "sem saber de onde lhe vinha este bene- Paulo: Huicitec-USP, 1977, p. 195.
Morão, Simão Pinheiro. Queixas Repetidas em Ecos dos Arrecifes
fício". Atacada pelo Diabo, mas também arrebatada aos céus por
de Pernambuco contra os Abusos Médicos que nas suas Capitanias
Deus, Rosa ficava em dúvida se tais maravilhas eram de fato se Observam tanto em Dano das Vidas de seus Habitantes. (168?)
obséquio divino, ou artim.anhardo^CoisãrKuõin. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1965.
Além destes relatos sobrenaturais, nada nos informa a 9. Nigg, Walter. Teresa de Ávila. São Paulo: Loyola, 1985, p. 38.
documentação a respeito do dia-a-dia desta escrava após a 10. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 2.901 (1763).
manifestação de seu Espírito. Refere-se, várias vezes, a estar 11. Vasconcelos, Diogo. Op. cit,, p. 180.
Rosa na casa do Coronel Fraga ou visitando outras pessoas 12. Carrato, J. F. Op. cit., pp. 57 e ss.
distantes das montanhas do Inficcionado. Como conseguiria 13. Mott, Luiz. Etnodemonologia: Aspectos da Vida Sexual do Diabo
licença de sua dona, Ana Garcês, para ausentar-se de sua casa? no Mundo Ibero-Americano. In: Escravidão, Homossexualidade e
Demonologia, op. cit., 1988, pp. 119-151.
Que tipo de trabalho se exigia da vexada desde que abandonara
14. Dattler, Frederico. O Mistério de Satanás. Diabo elnferno naBíblia
a vida leviana? Tudo nos leva a crer que a courana era uma e Literatura Universal. S. Paulo: Paulinas, 1977.
"escrava de ganho", que se alugava ora aqui, ora acolá, para 15. Kalverkamp, F. D. & Kopplenburg, F. B. Ação Pastoral perante o
serviços domésticos, obrigada a entregar certa quantia de seus Espiritism.o, Petrópolis: Vozes, 1961, pp. 178-185.
salários para sua proprietária, seja diária, seja semanalmente. 16. Lorenzatto, José. Parapsicologia e Religião. Alguns Aspectos da
Talvez já nesta época alguns de seus devotos lhe ajudassem com Mística à Luz da Ciência. São Paulo: Loyola, 1979, p. 122.
esmolas e doações que eram entregues por Rosa à mãe de Santa 17. Tabu e Sigilo Cercam Cultos das Igrejas que Praticam o Exorcismo.
Rita Durão. Não deixa de ser surpreendente, todavia, as muitas Folha de São'Paulo, 19 out. 1986.
vezes que a espiritada diz estar em orações, sentada na escada,

82
83
.a;

18. Evans Pritchard, E. E. Witchcraft, Oracles and Magic among the.


Azande. Oxford, 1937.
19. ANTT, Caderno do Promotor n2 126, fl. 413 (23-7-1763).
20. Mandrou, Robert. Magistrados e Feiticeiros na França do Século Visões e Atribulações de uma Endemoniada
XVII. São Paulo:' Perspectiva, 1979..
21. Oliveira, Xavier. Espiritismo e Loucura. Rio de Janeiro: Editora A.
Coelho Branco, 1931.
22. Rio, João. As Religiões no Rio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976.
23. Farmer, DavidHugh. The OxfordDictionary ofSaints, New York: No início de 1749, Rosa muda-se da comarca de Sabará
Oxford University Press, 1987. para a do Rio das Mortes, acompanhada da fiel amiga Leandra,
R:
fj 24. Bastida, Roger. As Religiões Africanas noBrasil. S. Paulo: Pioneira, crioula natural de Pernambuco "que a assistia por caridade".
1971.
Assistir, no século XVIII, segando ensina nosso companheiro
25. Figueiredo, Luciano, O Avesso da Memória: Estudo do Papel, constante, o dicionarista Morais, significava "estar presente
fí Participação e Condição Social da Mulher no Século XVIII Min eiró. fazendo corte a alguém, servindo, prestando socorro, ajudando
k São Paulo, s.d., p. 134 (Relatório Final).
e patrocinando". Embora nunca fique totalmente claro, na do-
26. Lagrange, Garrigou. Lês Trois Ages de Ia Vie Interieure. Paris:
Editions du Cerf, 1938. cumentação, os meandros mais íntimos da interação mantida
27. Biblioteca Nacional de Lisboa, Seção de Reservados, na 5.454, por nossa biografada com sua "assistente" pernambucana, tudo
Floresta Espiritual, manuscrito de Frei Manuel da Cruz, OFM nos leva a crer que5 embora ambas fossem "espiritadas", os
(Século XVIII). demónios e carisma da africana er ammais poderosos, servindo-a
28. Clerancé, L. SantaMargaridade Cartona. Salvador: TipografíaSão Leandra como uma espécie de ekédi, a saber, "moça ou mulher
Francisco, 1928. auxiliar das filhas de santo em transe, amparando-as para que
29. Viana, Hildegardes. O Ofício de Nossa Senhora. A Tarde, 1988. não caiam, enxugando-lhes o suor, levando-as à camarinha para
30. Cartilha da Doutrina Cristã, Lisboa (Século XIX). vestir a roupa de Orixá, etc". Pelos xangôs do Nordeste é
31. Arrese, M. B. Suma de Ia Vida-Espiritual7TiSo.a., 1974. chamada de iabá ou Uai.
32. Floresta Espiritual, op. cit.
33. Graxeda, Joseph. Compendio de Ia "Vida e Virtudes de Ia Venerable "Passado todo o referido — conta Rosa em sua confissão
Catharina de San Juan. México, 1692.
perante os Inquisidores, 14 anos mais tarde —, sendo no
34. Bell, Rundolph: Holy Anorexia. Chicago: The University of Chicago
Press, 1985. segundo ano de sua conversão, vendo que no lugar em que
35. Barbosa, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico-Geográfico se achava, no Inficcionado, não tinha confessor e que o povo
de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1971. a perseguia chamando-a feiticeira, e querendo se forrar
36. Mott, Luiz. Uma Escrava do Piauí Escreve uma Carta... In: Piauí devido à sua doença, se foi para o Rio das Mortes aonde
Colonial. Teresina: Secretaria de Cultura, 1985, pp. 103-108. assistia o Padre Francisco Gonçalves Lopes, para que este
a favorecesse e lhe tirasse esmolas com que comprasse um
moleque para dar à sua senhora Dona Ana, que era a
condição com que ela a forrava."

Se Rosa a esta altura já contava com admiradores e até


devotos, pelo visto, outras pessoas, além do vigário de seu
arraial, também desconfiavam de que seus "acidentes" e ataques

84
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ou eram fingimento, ou obra do demónio, daí chamarem-na de
Aryelos: embora ainda existam descendentes com sobrenome
feiticeira. Inúmeras são as pretas acusadas de feitiçaria que têm
igual residindo na região, nada souberam-me dizer sobre os
seus nomes arrolados nos Livros de Devassas do bispado de
fundadores desta parentela. Pedro Róis Arvelos residia com sua
Mariana, algumas culpabilizadas duplamente de praticarem mulher e filhos no distrito de Santa Rita, termo da vila de São
prostituição e também rituais macabros. A suspeita de associa- José do Rio das Mortes (hoje Tiradentes): possuía fazenda de
ção do Imundo com as mundanas percorre toda a história da engenho, capoeiras, matas virgens, gado e alguma escravaria.
cristandade, o mesmo ocorrendo nas perseguições aos sodomi- Devia ser um médio proprietário, dos muitos portugueses que
tas, acusados de terem pacto com os diabos íncubos ou súcubos.
no, primeiro quartel do setecentos fixou residência nas monta-
A má fama de feiticeira ou demonólatra acompanhará nossa nhas auríferas. Conta ele próprio que, indo certa, vez à capela
vidente até o fim de seus dias, embora seu nome nunca tivesse
l sido inscrito nos referidos Livros de Devassa de Minas.
Em São João dei Rei a negra courana reencontra seu padre
de São Sebastião do Rio Abaixo, filial da Matriz do Pilar, viu o
Padre Francisco fazendo exorcismes nos três energúmenos vin-
dos da comarca de Vila Rica. Foranestamesma capela, dois anos
protetor, .uma grande alegria para ambos. Sobretudo para a espi-
antes, que tivera lugar o batizado de Joaquim José da Silva
ritada, que, após meses sem conseguir o refrigério da penitência,
. Xavier (aos 12 de novembro de 1746), o futuro alferes Tiradentes.
teve a consolação de ouvir novamente as purificadoras palavras
"' Ficava a capela de São Sebastião a duas léguas e meia do centro
penitenciais: Ego te absolvo a peccaiis tuis, in namine Patr-is, et
da vila de São João dei Rei: em seu interior eram veneradas as
Filii et Spirttus Sancti,.. abrindo-lhe o caminho para receber "o
imagens de Nossa Senhora da Ajuda, Nossa Senhora do Carmo,
f* altíssimo mistério que na mais breve partícula se nos comunica
íategro" o próprio senhor do universo, Jesus Eucaristia. São José de Botas, São Francisco de Assis e a do orago, o mártir
Talvez para evitar murmurações das más-línguas ou com São Sebastião.
Foi nesta capela que o casal Arvelos, indo certo domingo à
medo das Constituições que vetavam aos sacerdotes acolher
missa, presenciou pela primeira vez Rosa, Leandra e António
mulheres jovens em suas casas, decide o Padre Francisco enviar
Tavares serem exorcizados. Diz o Sr. Arvelos que,
sua filha espiritual para a casa- de seu~sobrEhò e~cõmpadre7
Pedro Róis Arvelos, a três léguas da vila de São João dei Rei. "pondo-lhe o sacerdote preceitos, ouviu Rosa dizer que era
Este senhor, com quem ò Padre Francisco "tinha boa amizade", Lúcifer e que naquele corpo estavam sete espíritos malig-
será em pouco tempo o principal devoto da santa cor de ébano, nos, dizendo-lhes os nomes, os quais ele não lembra mais,
tão fanatizado há de ficar por sua santidade e predestinação, dizendo que era Lúcifer mandado para avisar ao povo das
que tomar-lhe-á algumas vezes a bênção de joelhos, beijando-lhe Minas que estava para vir um grande castigo que havia de
inclusive os negros pés, e não tibubeará em entregar, alguns abranger a distância de 80 e 10 léguas—e que as 10 léguas
anos mais tarde, quatro de suas filhas como intei-nas no reco- eram pelo quebramento dos 10 mandamentos da Lei de
lhimento que 'Madre Rosa" vai fundar na mesma cidade que a Deus. E logo a seguir começou Rosa a pregar doutrinas que
viu chegar menininha no porão de um tumbeiro algumas déca- a ele, testemunha, pareciam boas, e que o padre dizia a ele
das passadas. Esta permanência de Rosa na propriedade do que tudo era verdade o que diziam."
Arvelos criará laços fortíssimos' entre a negra e esta família
portuguesa, laços que somente o Terrível Tribunal conseguirá Um morador da região, José Alvares Pereira da Fonseca,
destruir.
conhecido do Padre Francisco desde 1743, contou que sobretudo
Poucas informações conseguimos amealhar sobre a família Rosa e Leandra— a quem chama de Leandra do Sacramento —-
eram exorcizadas nesta capela "quase todos os dias", e que,

86
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depois de acorrentado o Eabudo, as duas entoavam lindos hinos saltimbancos profissionais: "mandava que os endemoniados
à Virgem Maria, entre eles Ave Maris Stella e Glória das Vir-
mostrassem como haviam de ficar as pessoas que fossem casti-
gens. Sob o efeito dos exorcismes, Lúcifer se travestia em espírito
gadas, e os três se lançavam no chão, parecendo mortos, ficando
devoto, e as duas espiritadas 'pregavam dizendo que eram
de bruços". Às vezes os energúmenos davam livre vazão à sua
mandadas por Deus, e como as pessoas não criam nos pregado-
agressividade: "certa feita agarraram uma negra que estava na
res, que cressem nelas!" Nada de mais acordado com as Santas
mesa do Santíssimo eíaziam como se a queriam consumir — e
Escrituras, pois não fora o próprio Cristo quem dissera ter
a uma escrava do Sr. Arvelos, Leandra a acometeu fazendo
escolhido "os pequenos e humildes para confundir os grandes e
arremessos com os braços". Se não ia por bem, ia por mal!
doutos"?! Não deixa de ser surpreendente, todavia, que numa
Tais estripulias se repetiam não só na Capela de São
sociedade tão marcada pelo machismo e pela misoginia, duas
Sebastião, mas também na de Santa Rita, no perímetro da
mulheres, uma cativa africana e uma crioula, tomassem o lugar
fazenda dos Arvelos. Conta um morador da região, João Fernan-
privativo do sacerdote, tornando-se elas próprias pregadoras da
palavra de Deus. des da Costa, 62 anos, negociante, que nestas ocasiões "Rosa
l Para uma africana como Eosa, e mesmo para a pernambu-
fazia gestos e movimentos que parecia o Demónio", e certa vez,
ao findar uma missa, a negra se levantou de seu lugar, insul-
cana Leandra, com certeza já familiarizada com os xangôs
tando umas mulheres que conversavam, "causando tal pertur-
nordestinos, o título "Estrela do Mar", atribuído a Maria Virgem, bação, que algumas fugiram confusamente, perdendo brincos e
devia ser particularmente querido, dada a presença deste sím-
trastes de ouro". Rosa, desde que começou areceber os Espíritos,
bolo nos rituais de diversas religiões afro-brasileiras, tal qual se tornou-se useira em anunciar publicamente que certas pessoas
tornou do conhecimento público notadamente através da canção
não estavam preparadas para a comunhão, provocando emba-
imortalizada por Clara Nunes: "Estrela do Mar... é Maré
raçosas situações durante a distribuição da Santa Eucaristia.
Cheia..." Consultando o já citado Dicionári o de Cultos Afro-Bra- Outras vezes, nas capelas da comarca do Rio das Mortes, "dou-
sileiros encontramos curiosa associação entre a "Estrela Guia" trinava dizendo que sabia o estado das almas que saíam deste
-— falange de seres espirituais que vibram na linha de Yemanjá
mundo, as que se salvavam ou se condenavam". Vidente, a negra
— e Maria Madalena, "a chefe desta entidade". O sincretismo courana torna-se conhecedora também dos mistérios do Além,
adaptava-se como uma luva, sobretudo por tratar-se Rosa de privilégio que Nosso Senhor conferiu a poucos santos de sua
uma "madalena arrependida".
corte celeste.
Imaginemos o espanto e terror dos devotos, roceiros e Nem todos, porém, davam fé à santidade da espiritada:
mineradores em sua maior parte, livres e escravos, que enchiam
"Rosa demorou por espaço de um ano no sítio dos Arvelos,
a capela de São Sebastião, presenciando revelações tão assus-
sofrendo muitas perseguições do povo que a criminou de que era
tadoras de uma negra que dizia estar possuída por uma legião
feiticeira e fingia os acidentes que lhe davam, com o que caía no
de sete capetas, ameaçando com castigos terríveis toda a prós-
'chão". Conforme dissemos, após presenciarem os fantásticos
l • pera região aurífera!
exorcismes e serem recomendados pelo compadre Padre Fran-
HL-i. As sessões de exorcismo se seguiam semana após semana:
cisco, os Arvelos acolheram a negra espiritada em sua proprie-
"quase todos os dias, e em particular, o padre afiançava que a
dade, criando-se a partir desta convivência laços fortíssimos de
negra era mesmo serva de Deus e que tudo o que dizia era
•amizade e veneração entre esta família portuguesa, suas filhas
verdade". Nestes acidentes no Rio das Mortes, o Xota-Diabos
e filhos mineiros, a escravaria e a vizinhança, com a protegida
utiliza-se das estripulias destes três endiabrados como se fossem
do Xota-Diabos. Rosa devia ser pessoamuito sociável, simpática,

88 89

j;
de fácil convivência, quiçá serviçal, pois em todas as casas de dor deliciosa, um abrasamento..." As palavras são de Santa
famílias onde morou, tanto nas Minas como depois no Rio de Teresa, a doutora dos místicos do Ocidente, condecorada por
Janeiro, sempre encontrou boa acolhida de seus proprietários. Paulo VI em 1970 com o invejável título de "Doutora da Igreja
Alguns sucessos extraordinários :— além dos ataques e Universal".
doutrinas que maravilhosamente pregava — contribuíram de Rosa Courana ao ser arrebatada deve ter sentido esse
maneira decisiva para tornar Pedro Arvelos e sua família devo- mesmo abrasamento que deixou fora de si não apenas as Onze
tos de primeira linha desta Rosa Negra. Afirma o chefe do clã Mil Virgens martirizadas com Santa Úrsula de Colónia, como
que certa vez, observando-a orar em frente a um crucifixo, "vira também uma infinidade de outros visionários que trocaram o
que se abriram os braços e fora como arrebatada a unir suas amor dos homens pelo toque divino do Cordeiro de Deus. Talvez
mãos com as do crucificado, em cujapostura esteve algum tempo nossa santinha já nesta época conhecesse a. vida prodigiosa de
fazendo colóquios com Nosso Senhor, até que perdeu a fala Santa Lutgarde, a patrona da Bélgica (1182-1246), que num
ficando em um êxtase".
êxtase igual ao seu, ao beijar as chagas dos pés do Crucificado,
Muitos santos e santas, seguindo o exemplo de Cristo, que "Ele destacou seu braço da cruz, puxou sua serva pressionando-a
na Ascensão subiu aos céus, foram agraciados com. o dom da contra seu peito e colocou os lábios da santa na chaga sanguino-
levitação, "o alevantamento do corpo no espaço". Santa Verónica lenta de seu coração". Quiçá a hóspede da família Arvelos
Giuliani, capuchinha italiana contemporânea de nossa biogra- esperasse que algo igualmente fantástico lhe acontecesse: o
fada, chegou a ser miraculosamente elevada até a copa das Cristo permaneceu gélido como sempre, porém esse seu arreba-
árvores, enquanto São José Cupertino, franciscano canonizado tamento, apesar de não ostentar nada de excepcional, redundou
em 1767, foi o campeão desta categoria, tendo mais de 70 na consohdação da fé de seu anfitrião—pessoa por demais dada
levitações, chegando a levar consigo outras pessoas para o ar. a crendices e mistificações: a negra, era mesmo espiritada!
Santa Teresa d'Ávila também mereceu idêntico privilégio sobre- Outro sucesso ocorrido durante sua estada em São João
natural, permanecendo meiahora erguida a meio metro do solo. dei Rei muito reforçou a fé dos devotos na serva de Deus:
Acredite quem quiser! .
adoecendo em casa de um certo Simeão Ferreira de Carvalho,
O êxtase de Rosa presenciado pelo Sr, Arvelos não chegou deram falta, no oratório, da imagem do Menino Jesus. Após
a ser propriamente uma levitação: enquadra-se melhor na cate- buscarem-na por toda parte, foi miraculosamente encontrada
goria dos arrebatamentos, que, segundo o dicionarista Morais no peito de Rosa, que se achava deitada num leito. Viva Jesus!
equivale a "transportar-se em êxtase pela contemplação divina Milagres como este abundam na biografia dos santos, o
de maneira a perder o uso dos sentidos". mesmo tendo ocorrido com São Geraldo Magela (1726-1755),
A imagem do Crucificado, provavelmente em tamanho entre muitos outros. Alguns anos mais tarde, no recolhimento
natural, deveria estar dependurada na parede de alguma igreja que há de fundar, novamente a ex-prostituta será beneficiada
ou capela: Rosa, de joelhos, em oração profunda, de repente se pelo Menino Jesus, tornando-se então não só Mãe, mas também
atraca à cruz, unindo-se corpo a corpo com o Divino Esposo, Esposa do Divino Infante. Adorando-o sob variados títulos,
permanecendo neste íntimo colóquio até perder a fala. "Queren- certamente Rosa dava vazão a seus sentimentos maternais
do~arreb atar-me a alma, o Divino Esposo mandou-me cerrar as frustrados, posto não constai- na documentação qualquer alusão
portas da morada: perdi o fôlego, não pude absolutamente falar, a que tivesse alguma vez ela própria gerado um filho.
perdi os sentidos, esfriando-me as mãos e o corpo. O toque divino Após alguns meses de estada entre os Arvelos, começam a
produziu-me dor aguda, ao mesmo tempo saborosa e suave: uma surgir alguns problemas: seus frequentes "acidentes", quedas e

90 91
ataques provocavam a desconfiança nos estranhos, de que a do nas igrejas às pessoas que nelas estavam com menos
negra era, de duas uma: embusteira ou feiticeira. Daí ter sofrido decência e aos pecadores que eram públicos, para se emen-
as referidas "muitas perseguições". darem das suas culpas. E sempre continuou a repreender
São João dei Rei não tinha ainda quatro décadas de exis- e acometer algumas pessoas que estão nas igrejas com
tência quando Rosa aí chegou: possuía então por volta de 500 menor reverência, principalmente estando o Santíssimo
fogos, três igrejas, quatro capelas, três oratórios, uma cadeia, a exposto, porém quando isto sucede, a perturba o tal Demó-
casa da Câmara (que ostentava o pomposo nome de Paço do nio e a priva dos sentidos."
Conselho), e duas ruas principais: a Direita e a da Praioha. De
acordo com um morador contemporâneo a Rosa/o Sargento-mor Mais uma vez a ex-mulher da vida imita uma polémica
José Alvares de Oliveira, autor da "História do Distrito do Rio passagem da vida de Cristo: segue-lhe o exemplo quando expul-
das Mortes", datado de 1750, os sanjoanenses "são pessoas de sou violentamente os vendilhões da sinagoga, "não permitindo
tratamento grave, sem afetação, em tudo graves com civilida- que ninguém transportasse objeto algum pelo templo" (Marcos,
de". Saint-Hilaire, nos primórdios do século seguinte, dará 11:16). Um e outro —• o Nazareno e a Courana — pagaram caro
quadro ainda mais carrancudo desta população: "são pessoas por este zelo exagerado pela casa de Deus: afinal, quem outor-
muito reparadoras, grosseiras, sem educação, hostis aos foras- garapoderes a estamalucapara cuidar da disciplina e denunciar
teiros". Imagem tão diversa da cordialidade e mansidão dos os pecados alheios? Que moral tinha uma ex-mulher do fandan-
dois principais filhos de São João dei Rei do nosso século: go, para apontar os pecadores públicos?
Tancredo Neves e o cardeal Dom Lucas Moreira Neves. Nos Foi na Matriz de Nossa Senhora do Pilar que Rosa exacer-
séculos passados, talvez ainda estivessem muito presentes na bou a xenofobia dos sanjoanenses contra sua negra pessoa.
lembrança dos sanjoanenses os cruentos episódios da "guerra Também, escolhera local e momento impropriíssimos para "dar
dos Emboabas", daí a sisudez e gravidade com que se conduziam o santo". Em vez de encenar suas maluquices em capelas ou
tais moradores do Rio das Mortes. A presença na vila de uma oratórios mais humildes, escolheu logo "a maior e nobilíssima
africana, ex-mulher de ponta de rua, escrava, dada a frequentes matriz" da sede da comarca. Eis como o referido sargento-mor
ataques e maluquices, forasteira, devia causar inocultável mal- contemporâneo deste episódio descreveu este templo:
estar nos graves moradores da cabeça da comarca. Como Rosa
após sua conversão manifestou sempre grande atração pelos "O seu pavimento é guarnecido de perfeitas grades bem
templos e cerimónias litúrgicas, devia ir com frequência à sede torneadas, que formam o cruzeiro, e de duas coxias dentro
da vila, percorrendo as muitas capelas e igrejas como faziam as das quais ficam os altares todos. Tem dois púlpitos bem
beatas de antanho. Foi exatamenté numa dessas suas visitas à proporcionados, lugar a que têm subido famosíssimos en-
principal igreja local que aconteceu o clamoroso acidente causa- genhos e neste tempo sobe a ele nosso digníssimo vigário,
dor de sua prisão e início de sua via cruas. o Reverendo Dr. Matias António Salgado, licenciado em
Desde que o Malvado manifestou-se em seu corpo, a visio- Teologia, ilustre em Artes, b acharei formado em Cânones,
nária africana recebeu a excêntrica missão de ser a "zeladora vigário colado nesta matriz, oráculo dos púlpitos de Lisboa,
dos "templos". Eis o que podemos ler em sua confissão a este corifeu dos pregadores daquela Corte... Tem a matriz um
respeito: grande coro apanelado e com sua talha assentada sobre
três arcos abatidos que sustentam duae colunas e duas
"Lúcifer entrou declaradamente a vexá-la, repreend en- meias colunatas jónicas; cinge a igreja uma cimalha real
de ordem compósita e as suas paredes abraçam duas linhas

92 93
de ferrobem pintadas com pendurados de florões dourados.
A tudo isto cobrem a volta do teto da capela-mor e igreja
especiosas pinturas."

O Pilar era, sem sombra de dúvida, o maior, mais belo,


luxuoso e importante edifício de toda a comarca. Nos dias de
festa maior, o templo era pequeno para abrigar toda a nobreza,
*r clero e povo da vila e arredores. Nestas ocasiões, o ponto alto
T
das novenas, tríduos e missas solenes era o momento da homilia,
quando todas as atenções dos presentes voltavam-se para o
púlpito, onde o orador sacro arrebatava a atenção dos fiéis com
sermões ora eruditíssimos, entremeados de constantes citações
em latim, ou trocadilhos dos mais inusitados — como o célebre
."Sermão das Frutas do Brasil" (1702), de Frei António do Rosá-
rio, onde o sacro panegirista estabelece uma série de analogias
entre o abacaxi e Nossa Senhora! Ou então, apelando para o
emocionalismo, muitas vezes portava o pregador uma caveira
na mão enquanto anunciava o fim do mundo ou as terríveis
chamas do Inferno. O capuchinho Frei Tomás de Séstola tinha
o costume de pregar trazendo uma cor da no pescoço, uma grande
cruz nas costas, coroa de agudos espinhos na cabeça e na mão
uma caveira com coroa real, terminando os sermões se autofLa-
gelando. Apesar dos grandes dotes oratórios do Vigário do Pilar

i — o citado Padre Salgado —, vez por outra subiam aos púlpitos


deste templo pregadores visitantes, entre estes, franciscanos e

í
capuchinhos, que, apesar da proibição régia de estabelecerem
conventos naregiáo aurífera, nemporisso deixaram de percorrer
amiúde as Gerais, quer pregando -as Santas Missões, quer
fundando numerosas irmandades e ordens terceiras por diver-
sas vilas e povoados. E arrecadando boas patacas de ouro,
obviamente!
Já em 1733 o capuchinho Frei Jerônimo de Monte Reale
outorga o hábito da ordem franciscana concepcionista às religio-
Igrejá de Nossa Senhora do Pilar, em São João dei Rei, sas do Recolhimento de Macaúbas, o mais antigo instituto
onde no ano dê 1749 Eosa Egipcíaca, possuída pelo "Afecto" religioso feminino das Minas (1716); em 1743 instala-se em São
(demónio), interrompeu a pregação de um missionário capuchi- João dei Rei o Hospício da Terra Santa, destinado a arrecadar
nho, sendo levada para a cadeia por causa desta irreverência. esmolas para a manutenção do Santo Sepulcro e demais lugares

94 95


m
santificados onde viveu Nosso Senhor Jesus Cristo; emfevereiro em São João dei Rei, que a visionária, "quando via uma pessoa
de 1748, o Irmão Frei Vicente de São Bernardo, esmoler dos de vidairregularirpegarno Santo Cristo do altar, logo publicava
descalços, recebe da Câmara de São João dei Rei 30 oitavas de seus pecados ocultos, fazendo visagens que representavam a má
ouro; em abril, do mesmo ano é a vez de o missionário apostólico vida da pessoa". E completa: "por suas ficções e embustes fazia
l" Frei António do Extrema conceder favores e regalias aos irmãos capacitar a muita gente que seguia seus erros e a representava
li residentes na comarca do Rio das Mortes; em 1749, no mesmo por santa",
ano em que Rosa viveu em São João dei Rei, tem lugar a bênção Eis como-.o Padre Xota-Diabos descreveu este dramático
da primeira Capela de São Francisco de Assis, tomando posse a episódio: .
primeira Mesa Administrativa da Ordem Terceira Franciscana,
tendo como comissário o próprio vigário do Pilar, o Padre Matias "Primeiro advertia as pessoas que mostravam pouca
António Salgado; neste mesmo ano, os santos lugares de Jeru- veneração na igreja, e, se não obedeciam, avançava casti-
salém recebem da Câmara 12 oitavas de ouro. gando-as, até chegar ao ponto de rasgar-lhes a roupa, como
Talvez por ocasião destes dois eventos, ocorridos em 1749 aconteceu na Matriz de São João dei Rei, que pregando um
em São João dei Rei, tenha estado na vila o capuchinho Frei Luis barbadinho italiano, Frei Luis de Perúgia, morador no Rio
de Perúgia, que, como seus confrades de hábito, era muito de Janeiro, dizendo que os inimigos se perdoassem uns aos
requisitado pelos vigários & coadjutores das freguesias mineiras outros, senão seriam levados pelos demónios para o infer-
para pregar as Santas Missões, estratégia catequética muito no, aí Rosa. se levantou do lugar e disse em voz alta que ali
difundida por esta ordem religiosa, uma espécie de bombardeio estavam os demónios para levar para o inferno os que não
intensivo de religiosidade, onde os pecadores públicos eram queriam se perdoar. E caiu no chão como morta."
compulsivamente obrigados ao sacramento da Penitência, os
relapsos sacudidos de sua indiferença religiosa, os devotos for- Tal maluquice foi a gota d'água que as autoridades religio-
talecidos em suas práticas beatas. Muitos desses barbadinhos sas esperavam para cortar as asas desta ousada visionária.
italianos tinham-, antes de desembarcarem no Brasil, missiona- Pudera: emplenaMatriz do Pilar, com o templo cheio dafina-flor
do por longos anos no Reino do Congo e Angola, onde a Ordem da sociedade do Rio das Mortes, uma escrava africana tem a
possuía numerosas missões, daí a familiaridade destes frades ousadia de fazer apartes diabólicos ao pregador visitante, rou-
com a catequese da negr ada, tanto na África, quanto nas Minas, bando para si a atenção dos fiéis que, por direito, toda pertencia
onde a população de cor representava mais de três quartos dos aobarbadinho missionário. Oh céus! Assim também era demais.
seus moradores. Foi exatamente numa das pregações da "santa Caída no chão, a espiritada .deve ter obrigado o eloquente
missão" na Matriz do Pilar, que Rosa teve um de seus ataques. pregador a interromper sua homilia: os mais supersticiosos,
Aigreja devia estar apinhada de gente—do ouvidor à escravaria crendo ser o próprio Diabo quem falava, devem ter corrido de
— esta última, como era o costume tradicional, ocupando os perto dapossessa, causando burburinho no lugar sagrado. Aque-
últimos lugares do templo, permanecendo de joelhos ou de pé le não era o momento nem o local apropriado para realizar
atrás dos bancos, nos quais de um lado sentavam-se os brancos, exorcismes — e talvez o próprio Padre Salgado tivesse infor-
do outro, as brancas. mado ao pregador forâneo que a negra era dada a falsos aciden-
Quando Lúcifer apoderava-se da negra courana, obrigan- tes. Por isso, Rosa é sumariamente arrastada par a fora da igreja
do-a à missão de "zeladora dos templos", sua conduta tornava-se e trancafiada na Cadeia Pública. Aí "o Reverendo Dr. Vigário da
agressiva e anti-social: relatou o padre Filipe de Souza, morador Vara da comarca do Rio das Mortes mandou-a vir à sua presença
e lhe fez os exorcismes junto com outro sacerdote, e, depois disto,

96. 97
I
p
deu parte ao Exms Bispo de Mariana, que a mandou ir à sua
presença".
Visitando São João dei Rei em maio de 1987, após sair do
adro da Igreja do Pilar, procurei informar-me onde funcionava
a cadeia desta vila no ano de 1749, pois a atual "antiga cadeia"
Hilaire, que visitou a cadeia, descreve-a como prédio muito
baixo, de rés-do-chão. 'Vêem-se, segundo o hábito quase geral
em Minas Gerais, os presos nas grades das celas, conversando
com os transeuntes ou implorando caridade." A demora dê uma
semana entre a prisão e o despacho de Rosa deve ser explicada
adjunta à Ponte da Cadeia data. do tempo da Independência. certamente pela espera, por parte do vigário da vara de São João
Segundo informações gentilmente prestadas pelo emérito histo- dei Rei, de ordem do seu colega da comarca de Vila Rica, ou
riador sanjoanense, Professor Sebastião de Oliveira Cintra, mesmo do bispo de Mariana, autoridades eclesiásticas de onde
autor da obra Efemérides de São João dei Rei, é de 1737 a provinha a negra espiritada. Como desde há um ano o vigário
assinatura do contrato para a construção do prédio da cadeia, da Vara de Mariana j á tinha recebido queixas desta ex-mulher
constando de três enxovias fortes. Foi construída a menos de à-toa, ordenou que fosse transportada para a sede do bispado.
200 passos da matriz, na mesma calçada. Em 1741 "a câmara
resolve dar, anualmente, a quantia de seis oitavas de ouro, da
renda da cadeia, para a construção do património da Capela de
Nossa Senhora da Piedade e do Bom Despacho, que alguns Notas
devotos construíram em frente da cadeia, a fim de que os presos
pudessem assistir à missa aos domingos e dias santificados".
Até hoje conserva-se a dita capela; sua maravilhosa ima- 1. Cacciatore, Olga G. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros. Rio de
gem da Piedade foi transferida para o Museu de Arte Sacra, . Janeiro: Forense Universitária, 1977.
situado exatamente no mesmo local onde outrora existia a 2. Souza, L.M. Op. cit., 1982, p. 186.
cadeia. Foi com emoção qxie entrei neste edifício: uma casa térrea 3. Mott, Luiz. Etnodemonologia.,, Op. cit.
4. Cintra, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João dei Rei. Belo
com duas grandes portas nas extremidades e cinco janelões no
'. Horizonte: Imprensa Oficial, 1982, 2 v.
lugar onde antigamente deviam existir as referidas três enxo- SrBarreíros, E. Canabrava. As Vilas dei Rey e a Cidadania de Tira-
vias. Consultando o Dicionário Morais, somos informados de ~*dentes. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
que "enxovia é a parte do cárcere que fica rente com a rua, ou 6. Cacciatore, O. G. Op. cif., p. 116.
abaixo de seu nível, escura, úmida e pouco saudável". Talvez 7. Lorenzatto, José. Parapsicologia e Religião. S. Paulo: Loyola, 1979.
uma ou duas das enxovias ficassem, de fato, rentes com a rua, 8. Jonquet, P. Sainte Lutgarde. Bruxelas: Jette Editeur, 1907, p. 62.
posto que das grades os presos podiam assistir à missa do outro 9.; .Oliveira, José Alvares. História do Distrito do Eio das Mortes em 1750.
lado da mesma, no Paço de Nossa Senhora da Piedade. Talvez — Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, v. 54, pp.
uma das enxovias ficasse abaixo do nível da rua, faltando-lhe - -'372-391,1948.
luz solar e sobejando insalubridade. Não nos diz a documentação 10.. Saint-Hilaire, Auguste. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do
em qual dos cárceres Bosa foi trancafiada: o que sabemos com Brasil. São Paulo: Itatiaia-USP, 1974.
li! Primiero, Fidelis. Os Capuchinhos em Terra de Santa Cruz. São
certeza é que esteve presa por oito dias seguidos. Talvez tenha
Paulo: Livraria Martins, 1942, p. 123; Cintra, S.O. Op. cit.
tido tempo dê assistir,"da grade, a algum, ofício litúrgico, implo- 12. Cintra, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João dei Rei. Belo
rando, como os demais infelizes do aljube, que a Virgem da Horizonte: Imprensa Oficial, 1982, p. 160.
Piedade ou Nossa Senhora do Bom Despacho se apiedasse de
sua desgraça e despachasse rapidamente seu processo. Saint-

98 99
r"*

Açoifes no Pelourinho de Mariana

íf
De São João a Mariana são aproximadamente 24 léguas
-—• no mínimo quatro dias de caminhada a pé entre, morros e
desfiladeiros do Espinhaço. O caminho já era conhecido danegra
courana, pois passara pela mesma estrada quando viera há 16
anos do Rio de Janeiro, e no ano anterior à sua prisão percorrera
o mesmo "Caminho Velho" quando de Mariana partira em busca
de seu padrinho Xota-Diabos. Saindo de São João, caminhando
em média uma légua por hora, seis léguas por dia, após passar
por Lagoa Dourada, Carijós, Itaverava, Ouro Branco, Vila Rica,
Passagem, deve ter chegado em Mariana exausta com a cami-
V/) nhada a pé, suja de terra vermelha dos atalhos, os pés feridos
o nos pedregulhos. Deve ter ido algemada, com coleira de ferro no
Q pescoço, tal como era o costume de se transportarem prisioneiros
V de um aljube para outro, sempre vigiados por uma escolta de
O milicianos armados. Nesta época as Minas viviam em constantes
o
rJ ebulições de escravos, seja fugindo e organizando escondidos
quilombos, seja atacando transeuntes pelas estradas e picadas.
S
^
"Não se viam por todas as estradas da região senão cruzes que
a cada passo assinalavam as mortes e roubos nelas cometidos
por quadrilhas de negros e mulatos, destruindo e roubando
algumas fazendas consideráveis, com morte dos proprietários,
roubo e infâmia de suas famílias, mulheres e filhos." O temor i
V
do ataque de quilombolas ou assaltantes devia competir, na
mente da infeliz prisioneira, com a angústia do desconhecido,
pois certamente não tinha consciência do que poderia lhe acon-
tecer. Presa por ordem da maior autoridade eclesiástica da
comarca do Rio das Mortes — o vigário da Vara —, Rosa talvez
soubesse que nos arredores por onde morou em São João dei Rei,
assim como por algumas das vilas por onde passara, viviam
perigosos funcionários de outra temível instituição religiosa: os
familiares da Santa Inquisição.
ds Federal do Rio G. do Norte
101
i .J™
Deixemos Eosa mofando algum tempo no aljube de Maria-
na, enquanto fazemos um longo parêntesis para sumariamente Familiares do Santo Ofício Residentes emMbias Gerais
analisar a atuação da Inquisição nas Minas Gerais. Faltando
estudos sistemáticos sobre esta questão, somos forçados a apre- 1718 — 2
sentar apenas um panorama impressionista baseado em nossos 1727 ~ 1729 3
levantamentos na Torre do Tombo.
Não havendo Tribunal, do Santo Ofício no Brasil, duas 1730 — 1739 21
categorias de funcionários encarregavam-se de zelar pela fé e 1740 — 1749 35
bons costumes na América Portuguesa em. nome da Inquisição 1750.— 3.
de Lisboa: os comissários, sacerdotes geralmente doutorados em
Coimbra ou com outras titulações canónicas, que incumbiam-se Total 64
de denunciar e realizar inquirições e sumários contra os suspei-
tos; e os familiares, geralmente leigos, que, mediante compro- O aumento do número de comissários e familiares está em
vação da 'limpeza de sangue" e bons costumes, eram as pontas relação direta com o crescimento demográfico e económico da
de lança a serviço dos comissários, realizando as prisões ou mais i- ... região, pois quanto maior a densidade humana, mais oportuni-
diligências contra os faltosos. dades geralmente ocorrem de desvios na moral e ortodoxia
Descoberto o ouro em 1694, em 1709 a Metrópole cria a católicas, acrescido domaiorinteresseporparte dos inquisidores
Capitania de São Paulo e Minas Gerais, sendo de 1711 a criação L no sequestro dos bens de réus cheios de ouro, posto que o Santo
das três primeiras vilas mineiras: Ribeirão do Carmo, Vila Rica Ofício devia autofinanciar-se através da apropriação dos perten-
e Sabará'. Em 1713 é a vez da ereção do pelourinho em São João ces de'seus prisioneiros. Portanto, quando Rosa chegou nas
to dei Rei, e cinco anos depois, em 1718, já existiam quando menos Gerais, aí já existiam por volta de uma dezena de Familiares.
Entre sua conversão e "fuga" para o Rio de Janeiro (1748-1751),
dois familiares do Santo Ofício na região: João da Silva Guima-
rães e Oliveira, natural de Guimarães, "que vive de minerar com -talvez chegassem perto de uma centena. Muitos desses, em vez
seus escravos nas minas do Ouro Preto", e Manuel Dias de de irem jurar o Regimento de Familiar em Lisboa, preferiam
Araújo, natural de Monte'Alegre, capitão e vereador da Câmara receber a comenda das mãos de um comissário no Brasil, pro-
de São João dei Rei do Rio das Mortes. vavelmente no Rio de Janeiro, sendo 10 os oficiais habilitados
Com base nos processos de Habilitação do Santo Ofício em Minas entre 1718 e 1731 que assim procederam, 23 entre
arquivados na Torre do Tombo, localizamos os seguintes fami- 1734 e 1746, e 41, de 1747 a 1753,3 Acreditamos que poucos
liares vivendo nas Minas Gerais entre 1718-1753, cifra, aliás, foram os familiares desta região que se deslocarampara o Reino
que deve estar aquém, de seu número real: : • com este fim, pois, além dos gastos com a viagem, partir das
montanhas auríferas equivalia a deixar de descobrir o precioso
metal que abundante aflorava dos córregos e faisqueiras nestes
_meados do século XVIII: nas Minas, mais que noutras partes, o
tempo realmente valia ouro!
Ouro Preto, a maior concentração urbana das Gerais,
reunia também o maior número de familiares: 21, seguido por
São João dei Rei com 5, Sabará com 4 e Mariana com 3. Muito

102 103
JL
f
provavelmente estes números estão aquém da realidade, pois
não inchiem os oficiais cujos nomes começavam com letras desviantes da fé ou moral: de mais de quatro mil denúncias
posteriores a "M" — nomes que ainda não foram sistematizados registradas nas três inquisições do Reino contra sodomitas,
pelos arquivistas da Torre do Tombo. apenas 10% redundaram em prisão, sendo 30 os infelizes que
Se tomarmos como exemplo a vila de S ao João dei Rei, sede acabaram na fogueira pelo abominável pecado nefando de sodo-
da comarca do Rio das Mortes, veremos que, na mesma década mia; Se os inquisidores prendessem todos os delatados do Reino
em que Rosa viveu nesta região, provavelmente aí residiam e Ultramar, as prisões portuguesas não seriam suficientes para
quatro familiares: António Teixeira da Costa, José da Rocha abrigar tamanha população heterodoxa.
Antão, José Veloso Carmo e Manoel da Costa Gouveia. Este Fechamos o parêntesis relativo ao panorama inquisitorial
último exercia na época o cargo de capitão-mor da vila, tendo nas Minas pelos meados do século XVIII, e retornamos ao aljube
recebido sua carta e comenda de Familiar em 1743. onde a infeliz Rosa mofava à espera de que as autoridades
Quanto à presença de comissários, notários e qualificado- eclesiásticas do bispado de Mariana decidissem o que fazer com
l
res do Santo Ofício em Minas Gerais, localizamos um primeiro • esta negra ousada e pertinaz em fazer-se endemoniada.
comissário em 1733: Padre José Matias Gouveia, vigário de J. Lemos em seu processo que três dias depois de a prisioneira
Raposos do Sabará, seguido em 1739 pelo notário Padre João ter sido levada de São João para Mariana, preocupado, mas
Ferreira da Cruz, residente em Vila Rica. Desde 1748 exerce a cauteloso, o Padre Francisco, seu protetor, também parte para
comissaria,ein Mariana o Padre Geraldo José Abranches, futuro a sede do bispado, "ficando aquartelado no morro da Passagem,
titular a Visita do Santo Ofício do Grão-Pará, arcediago do a uma légua da cidade", a meio-caminho entre Vila Rica e
primeiro bispado mineiro; apartir de 1749 recebe a comenda de Mariana. "Aquartelado" deve ser entendido como sinónimo de
comissário o Padre Loureiiço José Queiroz Coimbra, vigário do "alojado", pois nem. Rosa nem o padre Xota-Diabos tinham
Sabará, todos portugueses natos, e cujos processos de habilita- sequazes suficientes, nem seriam temerários, de tentar libertar
ção encontram-se na Torre do Tombo. a negra do aljube onde estava trancafiada.
Portanto, embora os atos de feitiçaria, as blasfémias heré- - -"•-•' ^ Procuramos também em. Mariana onde seria a cadeia ern
ticas ou irreverentes, a suspeição de pacto com o demónio *" que Rosa esteve presa, posto que as enxovias existentes ao
constituíssem matéria pertencente ao conhecimento do Santo rés-do-chão da magnífica Casa da Câmara são posteriores a
Ofício, a não-interferência deste tribunal até agora na vida de 1784, concepção do Governador Luis da Cunha Menezes. Con-
Rosa deve ser explicada talvez por tratar-se de matéria consi- :_ sultando aqui e acolá as pessoas mais bem informadas sobre o
derada leve pelo casuísmo inquisitorial, que transferia para a passado desta "Altera Roma", como foi apelidada a decana das
alçada do bispo ou do vigário da Vara punir faltas menores cidades mineiras, consegui localizar o primitivo aljube de Ma-
envolvendo pessoas mais humildes, cujas condutas não chegas- riana onde esteve aprisionada nossa visionária: estava situado
sem a consubstanciar heresia oufeitiçariaformal. Temos notícia na travessa de São Francisco, na parte térrea do casarão onde
de muitas denúncias contramineiros inculpados em gravíssimas primeiramente viveu o bispo Dom Frei Manuel da Cruz, adjunto
blasfémias, desacatos graves contra as imagens sagradas, prá- aos fundos da Igreja de São Francisco. Aí funcionou pelo menos
tica de feitiçarias horripilantes, e nem por isto tais denúncias " o' aljube utilizado pela igreja, antes da construção do imponente
redundaram em ordem de prisão e processo contra os delinquen- "aljube dos padres", no rés-do-chão do cabido marianense, hoje
tes: a Inquisição estava muito mais preocupada com os hereges, abrigando o Museu de Arte Sacra.6 Tudo nos leva a crer que em
sobretudo com os judeus e cristãos-novos, do que com. os demais 1749, ano da prisão de nossa biografada, a casa térrea onde
funcionou a primeira câmara de Mariana, no morro de São

104'
105
•m*
§

P Gonçalo, não oferecia segurança para abrigar prisioneiros, daí


conjecturarmos que, debaixo do casarão que serviu para abrigar
• o recém-empossado bispo, funcionou por várias décadas o único
• aljube desta cidade. Como as demais prisões do Brasil-Colônia,
a insalubridade devia alquebrar a saúde, mesmo dos mais
resistentes, provocando, pela falta de luz e higiene, diversas
dermatoses nos infelizes prisioneiros, agravando os achaques
dos que já vinham debilitados com doenças crónicas, como era
o caso de Eosa, portadora de dolorido tumor no ventre e sujeita
a. frequentes ataques de tipo epileptóide.
Neste cárcere nossa preta tem a graça de merecer o consolo
celestial. Eis suas palavras:

"Estando fechada em. uma casinha do aljube, acordando


de manhã viu umreligioso franciscano que se representava
com 30 anos de idade, e que parecia muito pulcro, com. um
rolo aceso na mão e lhe disse que a queria exorcizar. E
estando ela, ré, sentindo no seu coração alegria de ver
aquela figura, lhe tornou a dizer que se chegasse para ele.
E indo com efeito essa mesma figura se aproximando para
P ela, chamou pela gente da casa onde estava, e desapareceu
*
IV:
aquela visão, estando as portas fechadas."

A lembrança-imagem do frade capuchinho pregando em . _JL Antiga cadeia de São João dei Rei (hoje Museu de Arte Sacra), onde
São João dei Rei devia conservar-se forte em seu inconsciente. Rosa Egipcíaca esteve presa em castigo por seu desacato ao Pregador na
Ao narrar este mesmo episódio aos inquisidores lisboetas, _Igreja,_de Nossa Senhora do Pilar , no ano de 1749.
dá uma versão levemente modificada, o que nos permite pensar
até numa segunda aparição na mesma cadeia: contou ter ouvido
'Soma voz que dizia: 'Dispõe-te para padecer pelo meu amor,
lembrando-te daquele amante coração com que me dispus a
padecer pelos filhos de Adão. E, calada a dita voz, ficou ela, ré,
entendendo pelas palavras o que lhe falava o Senhor".
Na manhã,do mesmo, dia Rosa. vai sofrer a maior, dor de
toda sua vida: "por sentença que teve sobre suas culpas, foi
levada em uma corrente ao pescoço para o lugar em que estava
umposte, aonde a ataram, e dois pretos lhe derammuitos açoites
para que dissesse que não era vexada".
Quer dizer: suas culpas — as que no ano anterior tinham

106 107
ra:
sido denunciadas pelo vigário do Infíccionado ao vigário da Vara
de Mariana e estas últimas relatadas pela autoridade eclesiás-
tica de São João dei Rei — foram julgadas e receberam sentença
de açoites em. praça pública, tal qual previam as Constituições
contra as pessoas inferiores incapacitadas do pagamento de
multas pecuniárias.
Por mais consolo antecipado que tenha recebido nas visões
do santo franciscano e do próprio Cristo, por maior abnegação
que existisse em seu angustiado coração de convertida para tudo
aguentar por amor do Crucificado, os açoites aplicados em seu
corpo devem ter sido tantos e tão insuportavelmente doloridos,
que "ficou, tão maltratada que ainda hoje — 15 anos depois! —
!í- se achalesadapartedireitado corpo". (Leso: ofendido por doença
II ou golpe, o mesmo que paralítico.)
A inaudita violência nos castigos contra a escravaria em
Minas Gerais tinha o respaldo da lei: os proprietários podiam
cortar a orelha dos fujões, marcar-lhes o rosto com ferro quente,
e até cortar-lhes o tendão do calcanhar chegou a ser praticado.
Em 1722, nesta mesma localidade onde Rosa foi açoitada, o juiz
de fora local dava conta a Dom João V que, para castigar uns
negros bandoleiros que haviam furtado um rico viajante, man-
dou açoitar os culpados no pelourinho por nove dias seguidos,
para servir de intimidação às gentes de cor. A dor dos acoites *
repetidos em cima de feridas sangradas na véspera é difícil de
ser imaginada por quem nunca foi flagelado até escorrer o *
sangue. \
Provavelmente foi neste mesmo pelourinho referido pelo
juiz de fora de Mariana que Rosa foi açoitada: também aí, outra s
dúvida, pois o atual pelourinho desta cidade, situado no meio da
praça defronte da Câmara e contíguo às igrejas de São Francisco •
0
e Nossa Senhora do Carmo, só deve ter sido implantado quando
dainauguração dareferida edilidade, no último quartel do século
XVIII, ou talvez, em data posterior
Fotografias dos fins da centúria passada mostram que na
praça da Sé existia um pelourinho, e apesar de considerarmos
lugar inadequado par a sangrar faltosos, bem defronte das portas
da catedral, talvez tenham escolhido exatamente o local mais
Igreja do Carmo, em Mariana, Minas Gerais.

108 109
central da cidade
cor.
Bestam ainda hoje de pé três grandes pelourinhos em
Minais Gerais: o de Vila Rica, o maior em circunferência, não
passa; de uma coluna estriada onde eram amarrados os réus; o
de SãoíJoão dei Rei segue mutatis mutandis o mesmo modelo do
de Mariana: uma base retangular de metro e meio de altura, em
cima-da qual está fincada uma coluna de pedra com os símbolos
da justiça ou da edilidade. O mais completo e.trabalhado é o de
Mariatía, certamente o exemplar mais bem conservado em todo
õTSràsil, posto que o Pelourinho de Salvador atualmente designa
apenas uma área no centro histórico, sem qualquer vestígio
_de_sta:coluna de torturas, e em Alcântara, onde ainda conserva-se
de pèroj último pelourinho do Maranhão, seu estado é precarís-

i•
» "~simo, corroída a pedra pela ação da maresia.
Se o atual pelourinho de Mariana é o mesmo em que Rosa
sofreu os açoites, ou cópia fiel do original, seu suplício deve ter
* se passado, conforme relato seu, após ter sido levada com uma
corrente 110 pescoço e atada num poste. .A^ corrente no pescoço,
do- aljube até o pelourinhq._tmha_rnuito mais função dehunTrIhar
'o deh^qúente-do_queJnapedir-sua-fag.a^sifvindo de lição para
. _o&curioses-qu'e-emrgrande~núrner^_a^orriam. para estas execu-
'^ coes.. O pelourinho de Mariana é o único que ainda conserva uma
—corrente com duas argolas onde deviam ser amarradas as mãos
dos .supliciados.

f*m*
_^ Com as mãos e o pescoço acorrentados a esta argola, tendo
-~as- costas e pernas nuas, talvez apenas um pedaço de pano
^escondesse as nádegas e partes pudendas da visionária.

Pelourinho de Mariana, onde Eosa foi açoitada em 1740. j "Amarrado o paciente ao poste do sofrimento, lida a
•sentença, dava-se o sinal ao homem do açoite. E logo, para
abafar os gritos do castigado, entravam os tambores a
»*M*n^~
--- rufar. E rufavam durante todo o tempo do castigo. Já a
multidão cercava o pequeno patíbulo. O ruído do tambor
servia de anúncio para o espetáculo gratuito. Vinha che-
- gando gente de toda a parte. . ."
"O bacalhau (chicote de relho para açoitar escravos)

110
111
comia o lombo do negro, a carne estufando, rasgando em Ninguém presenciou nada de anormal nesta tortura, a não
lanhos, abrindo sulcos profundos, mais parecendo biquei- ser a própria ré, que, alguns anos mais tarde, contava no Rio de
ras de sangue. O negro gemendo, bufando, estrebuchando, Janeiro que "fora açoitada por dois verdugos nas Minas Gerais,
chorando, apelando desesperadamente aos santos de sua mas assistiram-na dois anjos, igual sucedera com Nosso Senhor
predilecão por um milagre. Talvez chorando por dentro, o na sua paixão, querendo o mesmo Senhor que ela experimen-
pranto brotando no coração e escorrendo abundante na tasse as mesmas penas que ele".
alma. O braço do carrasco sobe e desce no lepo-lepo ritmado Rosa aguentou firme a. tortura: preferiu sofrer dezenas e
da surra. Os carrascos oficiais, aqueles que surravam os dezenas de lambadas a arrenegar seu Espírito, e declarar-se
escravos publicamente, eles mesmos se encarregavam de embusteira. "Estando quase morta,' lhe acudiu um homem que
l fabricar os chicotes a seu jeito, cómodos, equilibrados e a tinha conduzido do Rio da Mortes." Tudo nos leva a crer que
resistentes. O instrumento via de regra se constituía de esse segundo Simão Cirineu (o magnânimo devoto que ajudou
l
um cabo de madeira medindo um pé de comprimento, do Cristo a carregar sua cruz) foi o português Pedro Róis Arvelos,
3j qual saíam tiras de couro cru, às vezes retorcidas, às vezes em casa de quem nossa visionária hospedara-se durante os
enodadas, tiras que podiam somar até sete ou oito. Quanto primeiros meses de 1749. Não é de todo impossível que este
I; mais ressequido o couro, mais as tiras maltratavam as devoto e abnegado senhor tenhamesmo acompanhado, por conta
carnes do supliciado, e, sendo este o objetivo maior do própria, a milícia que trouxe Rosa de São João dei Rei para
castigo, tão logo começam as tiras a amolecer, embatidas Mariana, pois a, negra diz ter sido ele que a conduziu do Rio das
no sangue da vítima, o carrasco substitui o chicote usado Mortes.
l por outro que para tanto há um estoque deles à mão." O deplorável estado físico de Rosa após os açoites devia
l causar dó e piedade a qualquer ser humano, sobretudo àqueles
Não encontrei em nenhum documento ou livro referência seus devotos que a reputavam santa e viam neste castigo grave
a outra mulher chicoteada em praça pública: consultando os injustiça contra pessoa inocente e virtuosa. Suas costas e náde-
historiadores Kátia Mattoso, João Reis, Ronaldo Vainfas, entre tjssse..: gas deviam estar em carne viva, com profundos cortes provoca-
outros, tampouco lembravam-se de qualquer alusão a que es- dos pela chibata. Quanto sangue não terá perdido? Divulgamos
cravas fossem assim castigadas num pelourinho. alhures a notícia de uma escrava na Bahia que chegou a perder
Laura de Mello e Souza, contudo, encontrou num Livro de "meio pote de sangue" em decorrência dos mesmos açoites. O
f
111
Devassas da Cúria de Mariana (1767-1777) uma feiticeira negra
forra, Luzia Lopes, que "chegou a ser chicoteada por suas
certo é que Rosa, "estando quase morta", foi socorrida por seu
devoto protetor, o Sr. Arvelos, que levou-a da praça pública,
práticas escusas em Conceição do Mato Dentro", a mesma talvez da praça da Sé, onde devia estar prostrada numa poça de
localidade em que o Presidente Sarney, em 1988, foi venerar o sangue — sangue que comumente era disputado por cães esfo-
Santuário do Bom Jesus nas comemorações de seu bicentenário meados —, até o local onde sorrateiramente se aquartelara o
de fundação. Padre Francisco, na Passagem do arraial de Padre Faria, a uma
O suplício de Rosa deve ter atraído.muitos curiosos não só légua de Mariana. Pelo seu péssimo estado físico, Rosa deve ter
pelo insólito de seu sexo, como por conhecerem seus acidentes e sido transportada ou em carro de boi, ou numa rede, deitada de
maluquices místicas, alguns quiçá esperando presenciar fenó- bruços, tendo gasto quatro meses para convalescer-se deste cruel
menos sobrenaturais, seja por força divina, seja pelos poderes suplício. SeuJladcLdir_eit.o,._contud^J^cAXá,p,araj5ern.T3r,e leso, isto
. infernais. é, paralisado.

112 113
Mais tarde, num escrito dado a Dona Teresa Arvelos, Rosa
disse que "os cristãos da Comarca das Minas lhe tinham descar-
regado tantos golpes de bofetadas sobre seu rosto que não eram
menos rigorosas que as que deram em Jesus Cristo na presença
de Anás..." Pobre criatura, que pelo visto antes de ser açoitada
em praça pública, do mesmo modo como acontecera com. Cristo,
sofreu rigorosa sessão de pancadarias e bofetadas..
Dizem algumas testemunhas que o bispo Dom Manuel da
Cruz mandara-a açoitar "por julgar fingimento sua vexação": tal
decisão, conforme já antecipamos, respaldava-se nas Constitui-
ções do Arcebispado da Bahia, válidas para toda a Colónia, que
prescrevia penas corporais às pessoas plebeias suspeitas de
feitiçaria, enquanto os clérigos ou nobres envolvidos com diabo-
lismos deviam ser taxados com multas ou degredo (§896-898).
Quem era este bispo?
Fazia pouco tempo que Dom Frei Manuel da Cruz tinha
chegado em Mariana. Como tantos outros reinóis vivendo nas
Minas, também ele era natural do bispado do Porto, nascido em
1690, quatro anos mais velho, portanto, que o Padre Xota-Dia-
bos. Seus parentes, da Casa do Carvalhal, eram membros da
nobreza lusitana e,.tão logo é ordenado sacerdote, escolhem-no
mestre dos noviços do famoso convento de Alcobaça e abade do
Colégio de Coimbra. Em 1738 é nomeado sexto bispo de São Luís
do Maranhão, permanecendo na "cidade dos azulejos" até 1747,
quando parte por via terrestre para as Minas Gerais, para
instalar e tomar posse da novel prelazia de Mariana. No Mara- Retrato de D. Frei Manuel da Cruz, Bispo de
nhão deixou fama de bom prelado, realizando visitas pastorais, Mariana, o qual ordenou que Rosa Egipcíaca fosse
disciplinando o clero, ordenando 81 sacerdotes. A viagem demo- açoitada no Pelourinho, acusada de embusteira. (Ori-
rou 13 meses, durante os quais o intrépido prelado foi sangrado ginal no Museu de Arte Sacra de Mariana, Minas
seis vezes e teve dois gravíssimos acidentes fluviais, chegando Gerais.)
sua comitiva desfalcada de alguns participantes que faleceram,
entre o Piauí e Minas Gerais.
Outubro _de 1748j._toda-a. cidade,, comarca e, -por que não
dizer, toda a Capitania das Minas acotovelavam-se em Mariana
para homenagear seu primeiro pastor. Milhares de pessoas de
todas as cores e classes reúnem-se nas imediações da Catedral
de Nossa Senhora da Assunção para assistir ao "Áureo Trono

115
114
Episcopal", a representação litúrgica-teatral mais'grandiosa indelével o fausto de tal evento, sempre associando Mariana com
jamais ocorrida nesta cidade — só superada pelo "Triunfo Eu- Roma, ambas possuidoras de sete colinas em sua circunferência:
carístico" realizado em Vila Rica 1"5 anos antes—, coincidente-
mente, no mesmo ano da chegada de Rosa na região. O "Áureo Misteriosa cidade que adornada
Trono Episcopal" foi uma superprocissão em que o gosto barroco Aqueloutra imitais do céu descendo
aliado à riqueza aurífera deram asas aos mais exóticos arranjos Se aquela foi de Deus trono aclamada
a fim de transladar e homenagear o recém-chegado antístite, Vós de Maria o sois, se está dizendo
entronizando-o em sua catedral-basflica. Entre outros figuran- De luzes já não mais necessitada
tes deste cortejo, havia umaprofusão de pajens mulatos vestidos Que um novo sol em vós estamos vendo-...
com. muita seda, fitas multicoloridas, bordados de ouro e pedra-
ria que formavam extravagante séquito abrindo alas para dar DomFreiManuel, obviamente, é o novo sol das Minas: seus
passagem ao purpúreo bispo bernardino que vinha garbosamen- contemporâneos descrevem-no como homem "de muita modera-
te montado num cavalo branco coberto de damasco da mesma ção, prudência e acerto", sendo motivo de satisfação geral para
cor. Atrás do pastor, outro bando de mais 11 mulatinhos em todos. O Governador Gomes Freire de Andrade, homem de
!t idade juvenil, nus da cintura para cima, com espalhafatosas reconhecida piedade, caracterizou o cistersiense como sendo
tangas de plumas e cocares coloridos, onde não faltavam guizos, "cheio de bondade que lhe chega a ser prejudicial", chegando a
fitas e bugigangas, tudo acompanhado do som de tamboril, acusá-lo de ser "em demasia crédulo". Seu selo e armas episco-
flautas e pífanos "que, na grosseria natural dos gestos, excita- pais relativizam sua docilidade: escolheu como símbolo de seu
vam motivo de grande jocosidade". As ruas estavam cobertas episcopado uma serpente com a cauda na boca, certamente
com areia, espadana e flores. Entre as várias alegorias desta representando o ensinamento de Cristo quando disse a seus
solene procissão, havia um carro enfeitado, puxado a cavalos, discípulos que fossem "prudentes como as serpentes mas tam-
onde via-se um enorme coração do qual saíam vários fios de bém simples como as pombas" (Mateus, 10:16). A forma como
canotilho de prata com os dizeres: VirtusExíbit. Ànoite, grandes "mandou prender ignominiosamente com cordas e tormento de
luminárias demonstravam a opulência dos marianenses que não negros e mulatos" ao Padre João Álvares da Costa, em 1752,
economizaram gastos para, homenagear principescamente seu então vigário da Igreja de Mato Dentro, reforça nossa impressão
primeiro prelado. de que o melífluo Dom Manuel às vezes agia mais com humor
Além de vários cónegos e religiosos do Rio de Janeiro, todo viperino do que pombalino.
o clero e nobreza das Minas marcaram presença nas cerimónias. Também em Minas, como fizera no Maranhão, procurou
"Não havia pessoa de todos os estados e condição, ainda servil, moralizar o clero, aqui ainda mais devasso, ganancioso e irreli-
que não desejasse ver o bispo no seu trono e por isso, em todas gioso do que nas capitanias setentrionais: proibiu que os padres
as paróquias da recém-criada diocese, se fizeram novenas, algu- andassem à noite pelas ruas, punindo os que celebrassem missa
mas com tríduos de missas cantadas." Se só no morro de Santa- de chinelas ou sem a batina. Entre 1749 & 1764- — ano de sua
na, nos arredores de Mariana, calculava-se existirem por volta morte — ordenou 227 presbíteros, deixando boa parte de seus
de 5 mil cativos, imaginemos a quantidade de gente que desceu bens arrolados num testamento para serem usados em 2.900
à sede episcopal para admirar festa tão inusitada! Os homens missas por sua eterna paz, dando outro tanto de ouro para os
de letras colocaram toda sua erudição para saudar e deixar pobres e demais obras pias. Entre suas pastorais, introduziu e
estimulou com muitas indulgências a prática da oração mental,
novo exercício pio que será grande moda nesta centúria e que

116 117
desempenhará enorme influência na espiritualidade de Madre
Rosa Egipcíaca; introduziu nas Minas a devoção aos Sagrados saber o que tinha aquele monte. Logo porém que saiu de casa,
Corações de Jesus, Maria e José, exercendo da mesma forma viu diante de si. uma cruz que prosseguia o mesmo caminho, sem
influência indelével na mística de nossa biografada; estimulou ver quem a levava, a qual cruz era de pedra muito cristalina,
a devoção ao venerável Padre José de Anchieta, até hoje com alta, com uma toalha sobre os braços, e que desapareceu tanto
seu processo de canonização arrastando-se pela burocracia ro- que chegou perto do dito monte". Tal cruz serviu-lhe como uma
mana. Teve algumas disputas f amos as, com seu cabido, liderado espécie de estrela guia, como o cometa que orientou os Reis
pelo Arcediago Geraldo José Abranches (que alguns anos mais Magos na procura do presépio de Belém. Rosa imita Moisés,
tarde há de se reconciliar com o bispo), com alguns vigários quando irresistivelmente dirigiu-se ao Sinai. Contudo, ela não
afeitos às simonias, ou ainda com autoridades judiciárias que foi sozinha nesta peregrinação: fez-se acompanhar de outra
insistiam em entrar na seara eclesiástica. Foi grande amigo dos preta "que também tinha espírito maligno, chamada Joana, e
jesuítas, particularmente do Padre Gabriel Malagrida, o maior de Pedro Rodrigues Durão".
taumaturgo do Brasil setecentista, ambos grandes devotos do Pelo visto, a família Rodrigues Durão era composta de pelo
Coração de Jesus. Em seu recém-inaugurado Seminário de menos três irmãos, pois, além de Paulo Rodrigues Durão, o pai
Mariana, foram jesuítas os primeiros professores de Teologia. do literato agostiniano, encontramos no Arquivo da Cúria de
Foi, portanto, a menos de um ano de sua posse que Dom Mariana referência a José Rodrigues Durão, morador no Infic-
Frei Manuel da Cruz manda flagelar nossa negra espiritada. Já cionado, e agora Rosa nomeia Pedro Rodrigues Durão, seu
tinha dez anos de Brasil e, no Maranhão, aprendera que uma acompanhante na busca da "montanha sagrada". Talvez, se não
centena de açoites no lombo dos suspeitos de crimes religiosos, toda a família onde primeiro a visionária morou, pelo menos
ou desmascarava embustes, ou fazia calar os mais tagarelas. alguns membros, como este Pedro, fossem devotos da negra
Enganou-se, contudo, no caso de Rosa: tão logo recupera-se do courana, tanto que arriscaram-se • a acompanhá-la nos seus
tormento, mal cicatrizam-se as feridas, reinicia sua vidamística. delírios místicos poucos meses após ter sido publicamente cas-
Um detalhe merece contudo ser lembrado: como não ficava bem tigada por ordem da Igreja.
à Igreja de Cristo encarregar-se da aplicação de penas corporais Desaparecendo do céu a misteriosa'cruz, a vidente enten-
em delinquentes religiosos,\da mesma forma como os Inquisido- deu que era aquele o lugar predestinado que a magnetizava,
res entregavam seus condenados à justiça secular para serem tanto que ali "acharam uma pedra grande, com uma cruz nela
executados, também o bispo confiou nossa ré ao juiz de fora de lavrada, debaixo de cujos braços nascia uma fonte: "era uma
Mariana, dando-lhe a sentença dos açoites, mas encarregando cruz perfeita que não parecia obra da natureza", revelou a
este último dos detalhes do castigo. Portanto, foi a justiça civil, vidente.
Voltaram para casa admirados com a tal cruz esculpida na
por ordem da eclesiástica, que se responsabilizou de flagelar a
negra courana. Santa hipocrisia! pedra, pois embora a fonte já fosse conhecida do povo "a cruz
ninguém mais nunca tinha visto naquele lugar". Milagre, por-
Após restabelecer-se do suplício dos açoites, Rosa diz ter
tanto.
ficado intrigada em constatar um impulso incontrolável que a
Nesta época Rosa albergava-se em casa de uma fiel devota,
obrigava, sempre que rezava, a ter seu corpo voltado para um
Dona Escolástica, mulher de um tal Francisco da Motta. Na
alto morro distante quatro léguas da cidade de Mariana. Tão
noite seguinte a esta peregrinação, levantando-se
logo sentiu-se suficientemente forte, empreendeu um dia de
caminhada à procura daquele local, "por conservar o desejo de
"viuna cabeceira de sua camaumpainel de Nossa Senhora

118
119
num quadro redondo, que ali se não tinha posto, e dentro mesma noite Rosa ouvira uma alma gemer dizendo "que era de
dele estava a imagem de Nossa Senhora da Conceição com certa geração, não declinando o nome", e, no dia seguinte, a
as mãos levantadas, porém não parecia pintura nem ima- vidente arrecadoii esmola e mandou celebrar uma missa pela
gem, por que se lhe representou viva com carne e cabelos dita alma penada. O medo do purgatório e as aparições de almas
naturais, e, vendo ela isto, chamou a parda Ana, escrava eram verdadeira obsessão nos tempos era que a Igreja vivia de
da mesma Dona Escolástica para vir ver também. E, vindo vender bulas e indulgências capazes de sufragar os infelizes
esta, não viu coisa alguma. E desapareceu aquela visão. E chamuscados pelas labaredas "daquele lugar médio, entre o
logo ouviu uma voz que lhe disse: 'No morro do Fraga se paraíso e o inferno, que se chama purgatório, isto é, -um lugar
ha de fazer um suntuoso templo dedicado a Santana e a onde se é purificado dos pecados veniais e das penas devidas a
agua que corria (daquela fonte) há de ser medicina para estes pecados, lugar onde queima um fogo verdadeiro, corpóreo
todas as enfermidades."' —. e não unicamente metafórico —, que queima as almas sem
as consumir".
Em Lisboa, frente aos inquisidores, Rosa modificou leve- Ao menos em parte, contudo, a profecia revelada a Rosa
mente a mensagem recebida: a voz mandou-a "dizer ao Padre estava dando certo, pois "com efeito, com a tal água lavaram
Confessor que diga a João Gonçalves Fraga que, no lugar do alguns enfermos e tinha essa água tal virtude que dela se
monte em que se achou a cruz, quero uma ermida de Nossa afugentavam as pessoas vexadas e não podiam chegar-se ao
Senhora da Piedade e casa para irem curar os enfermos". Fica regatozinho da mesma água". Passaram, a partir daí, a chamar
a duvida: ou embaralhou as visões, ou foram dois desígnios tal água de "lágrimas de Nossa Senhora da Piedade". Salus
diversos, um templo para Santana, outro para a Piedade. Alguns infírmorum, ora pró nobis!
anos mais tarde, em 1767, nas vizinhanças de Caete, o carmelita Uma contingência de somenos importância impediu que
terceiro, António da SilvaBarcarena, construirá a 1.800 metros também Minas tivesse sua fonte milagrosa, como sucederá em
de altura a Ermida de Nossa Senhora da Piedade, ainda hoje Lourdes no século XIX após as visões de Santa Bernadette
famosa por suas romarias. A coincidência de duas pessoas, a Soubirous (1844-1879), tornando-se Tim dos principais centros
poucas léguas de distância, com espago de 15 anos entre um e de peregrinação da cristandade: "participando Rosa tal revela-
outro aspn-arem pelo mesmo projeto piedoso revela o quão ção a seu"confessor, o Padre Francisco, como o dito padre estava
popular era a devoção a Pietá nas montanhas de Minas nos diferente com o sobredito João Gonçalves Fraga, não lhe disse
primórdios de sua colonização: ainda hoje aí existem 13 vilas e o referido nem se fez o que a Senhora tinha mandado". Hoje o
cidades cujos nomes invocam a Piedade, a maior parte delas morro do Fraga só existe pela metade, pois uma voraz companhia
criada no setecentos. O culto a tal virgem, sempre representada de mineração já desbarrancou todo o seu topo. Visitando-o, na
com seu precioso fffiio morto no colo, ou de pé no oitão da cruz, estrada que leva do Inficcionado ao arraial de Bento Rodrigues,
traz invariavelmente estampado no peito rubro coração trespas- encontrei perto de um deli cioso riacho, no meio de outro morrote,
sado por sete punhais, representando as sete dores que Maria uma capelinha colonial, branca, com duas janelas e.uma porta
Santíssima sentiu durante sua vida terrena. Antes mesmo da azul. Perguntando a um caminhante que capela era aquela, "de
vulgarização nestas bandas do culto aos Sagrados Corações de Nossa Senhora da Piedade", me respondeu. "Louvado seja
Jesus eMaria, afigura do coração de Nossa Senhora trespassado Deus!", pensei contente, imaginando que talvez algum devoto
fazia parte do imaginário popular de toda a cristandade de Rosa tenha realizado seu vaticínio. Banhei-me no riacho com
Outro informante, morador em Mariana, dirá que nesta emoção igual à de um crente chegando a Lourdes. No arraial,

120 121
ninguém soube me contar a história desta capelinha. Nem Santana e a Sagrada Família serão sempre uma obsessão
sequer pude visitá-la, pois, temendo os frequentes roubos de no imaginário desta negrinha que perdeu todos os laços de
imagens antigas, os moradores mantêm-na fechada constante- parentesco aos 6 anos de idade, quando foi jogada no porão do
mente. Outra coincidência, esta não muito virtuosa: entre as navio negreiro que da Costa do Judá trouxe-a para a Baía da
denúncias registradas no "Caderno Novo do Promotor" da In- Guanabara. Papai do Céu, Mamãe do Céu, Vovó e Vovô do Céu
quisição de Lisboa, encontrei, outra vez, referência exatamente tornaram-se a família da africana: os santos, os anjos, o Divino
a este local da visão de Rosa, só que três décadas depois: "Diz Espírito Santo, seu clã e linhagem. Santana, suapredileção. Já
Manoel Furtado Rosa que na estrada do Inficcionado a Bento em São João dei Rei, nossa visionária, aproveitando-se da exis-
Rodrigues, numa picada, encontraram a Felipe de Moura com tência de um regato d'água que corria ao lado das casas do Padre
atos indecentes por trás com a sua própria mulher." E completa Xota-Diábos, em stm chácara do Rio Abaixo, portanto no mesmo
o abelhudo indiscreto ter apresentado tal denúncia "para desen- bairro rural onde viviam os Arvelos, chamou a esta água "Fonte
cargo de sua consciência". Que a Virgem da Piedade se apiede de Santana", profetizando que "seriaremédiouniversal com suas
de casal tão despudorado! águas para todas as doenças". Não há informação de curas
Além da devoção a Nossa Senhora da Piedade, outra operadas por sua intercessão.
constante na mística da visionária africana é o culto à avó de Por esta época, após a convalescença dos açoites, além. das
Cristo, Santana, a virtuosa esposa de São Joaquim e mestra de revelações relativas ao Morro do Fraga, Rosa continuará a ser
Maria Virgem. Por esta época a Senhora Santana gozava de atormentada pelo mesmo espírito, embora com menos estarda-
tanta veneração nas Gerais, que em seu nome se erigiram dez lhaço: evitará desassossegar os fiéis nas igrejas, pois fora este
igrejas e capelas somente entre 1736 e 1760.20 Em Mariana, zelo excessivo e intempestivo o causador de sua prisão e tormen-
desde 1712 existia a Capela de Santana do Morro, cuja festa se tos. "Gato escaldado tem medo de água fria", diz o brocardo
comemora até hoje aos 26 de julho. Desde 1725 levantou-se a popular. As cicatrizes dos açoites estavam sempre a lembrar-lhe
Igreja de Santana de Baixo, provavelmente visitada muitas os tormentos do pelourinho.
vezes por Rosa, posto que a negra será devotíssima da avó de
Cristo, divulgando inclusive um rosário inventado por ela pró- "Continuando nos acidentes e aflições que a oprimiam,
pria, em sua homenagem/ Talvez a decoração barroca desta como estes só se suspendiam com os preceitos da Igreja,
capela lhe tenha inspirado o visual rococó de uma de suas pediu ao dito seu confessor que lhos pusesse, o que ele
revelações já referida. Eis como o autor de Mariana e seus repugnou por se lhe ter acabado a licença, dizendo que,
Templos descreve este retábulo: ainda que tivesse de morrer, não lhos haveria de pôr,
porque todo o povo dizia que ela era uma fingida e não
"O altar-mor da Capela de Santana é cercado de ornatos verdadeira enferma."
caprichosos, anjos, serafins papudos e anêmicos, em dois .
nichos protegidos por dóceis. São Francisco de Paula, com Malgrado todo sacerdote ter recebido a Ordem do Exorcis-
_ hábito dourado, e São Francisco de Assis, com uma caveira mo, carecia já nesta época licença do Ordinário para o exercício
na mão esquerda, ladeiam a Virgem, que tem aos pés as deste ministério, concedido por tempo fixo e limitado, renovado
imagens de Santo António e São Joaquim. No centro, mediante exame do sacerdote por autoridade eclesiástica; daí a
.. imponente imagem de Santana com o livro aberto sobre os recusa do Padre Xota-Diabos em exorcizá-la com sua licença
, joelhos, na atitude de primeira das mestras." expirada. Na relação dos 435 sacerdotes existentes no bispado
de Mariana quando da posse de seu primeiro antístete em 1748,

122 123
constava o nome do Padre Francisco Gonçalves Lopes, seguido 9. Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis. Rio de
da observação "com. uso de ordens". Foi este, até o presente, o Janeiro: Athena, s/d., p. 461.
único documento que conseguimos localizar em Minas Gerais, 10. Goulart, Maurício. Da Palmatória ao Patíbulo. Rio de Janeiro:
relativamente a este sacerdote: nem nos livros paroqmais de Conquista, 1971, p. 86.
São Caetano, onde foi coadjutor) nem nos livros de devassas do 11. Souza, L. M. Op. cit., 1982, p. 185.
12. Mott, Luiz. Terror na Casa da Torre. In: Reis, João José. Escravidão
Arquivo de Maxiana, encontramos qualquer referência, a seu e a Invenção da Liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 17-32.
nome. Perguntamos nós: teria mesmo expirado sua licença de 13. Trindade, Raimundo. A. Arquidiocese de Mariana. Op. cit., 1953,
exorcista, ou, descrente e timorato, apresentara essa falsa des- 14. Áureo Trono Episcopal Colocado nas Minas do Ouro. Apud Ávila,
culpa para eximir-se de problemas com'Dom Frei Manuel da Afíbnso, Resíduos Seiscentistas em Minas. Belo Horizonte: Centro
Cruz? Ou então, tal informação não passaria de uma mentirinha de Estudos Mineiros, 1967.
conjunta do padre e da espiritada, imaginada como álibi para 15. Idem, ibidem, fl. XXVHI.
vender aos inquisidores uma imagem de obediência irrestrita 16. Arquivo Histórico Ultramarino, Minas Gerais, Caixa 111; ANTT,
do sacerdote às leis canónicas? Só Deus tem a resposta. Mesa de Consciência e Ordens, Maço 5 (1752).
17. Arquivo da Cúria de Mariana, Livro de Registro de Óbitos do
Inficcionado (Ú-26), (10-9-1742).
18. Couto, Padre Manoel José Gonçalves. Missão Abreviada para
Despertar os Descuidados, Converter os Pecadores e Sustentar o
Notas Fruto das Missões. 12 ed., Porto: Sebastião José Pereira, Editor,
1884.
19. ANNTT, Inquisição de Lisboa, Caderno do Nefando 21, nfi 1.4036
1. Mott, Luiz. A Escravatura no Brasil: A Propósito de uma Repre- (1781).
sentação aEl-Rei sobre aEscravaturanoBrasil. Revista do Instituto 20. Barbosa, W. A. Op. cit.
de Estudos Brasileiros, n. 14, pp. 127-136, 1973. 21. Vasconcelos, Salomão. Mariana e seus Templos, 1703-1797. Belo
2. Agradeço àhistoriadoraDanielaCalainho a indicação destes nomes Horizonte: Gráfica Q. Breyner, 1938.
de familiares do Santo Ofício deMinas Gerais, parte de suapesquisa
sobre este mesmo tema.
3. Mott, Luiz. A. Inquisição em Sergipe. Aracaju: Fundação Estadual
de Cultura, 1989, p. 60.
4. ANTT, Habilitações do Santo Ofício, Maços n2 30/577; 73/1350/
1/11; 7/114. Lapa, J. R. A. Livro da Visitação do Santo Ofício da
Inquisição ao Estado do Grão-Pará (1763-1769). Petrópolis: Vozes,
1978, pp. 39-61.
5. Mott, Luiz. Justitia et Misericórdia: A Inquisição Portuguesa e a
Repressão ao Nefando Pecado de Sodomia. Anais do 17S Congresso
Internacional de Ciências Históricas, Comissão de Demografia His-
tórica. Paris, 1990, pp.-243-258.
6. Vários autores. Mariana,' Arte para o Céu. Belo Horizonte: Ce-
mig/IBM, 1985. .
7. Mott, Luiz. "AEscravatura..." Op. cit.
8. 'Goulart, M. Op. cit., p. 190.

124 125
II
'li

6
Prova de Fogo

Abatida e desamparada pelos ministros do Altar que recu-


savam confessá-la, exatamente como acontecera 'no ano prece-
dente, quando seu padrinho voltara para o :Rio das Mortes, a
beata africana arquitetaplano ambicioso: quer ser recebida pelo
próprio bispo, pois acredita que o piedoso pastor, grande devoto,
como ela, dos Sacratíssimos Corações, vendo-a e ouvindo-a, se
convenceria de que sua má fama de embusteira não passava de
malévolo erro de interpretação. Errar é humano — e o erro no
julgamento de Cristo era o melhor exemplo a ser lembrado.
Na primeira confissão feita no Auditório Eclesiástico do
Rio de Janeiro, Rosa diz que, após estes sucessos, o bispo mandou
chamá-la em sua presença, ocasião em que a negra suplicou-lhe
"que se compadecesse do desamparo em que se achava, sem
sustento para o corpo nem para a alma, porque não havia quem
a socorresse e administrasse o sacramento da Penitência". Em
Lisboa, porém, dá outra versão e declara que elaprópriarecorreu
ao Padre Dr. Manuel Pinto "para lhe pôr os exorcismes de que
necessitava, a quem o bispo tinha incumbido a averiguação da
verdade",
O certo é que Rosa consegue sua primeira grande vitória:
o bispo concorda em fazê-la examinar por uma comissão de
peritos em satanismo. Não deixa de ser fantástico tal sucesso: a
persistência da escrava, recém-supliciada, ousando retornar à
mesma autoridade que, meses antes, a condenara, prova sua
segurança a respeito de serem seus ataques e acidentes reais e
causados pelas forças do mal. Ou então, a ex-mulher da rua
julgava-se totalmente capaz de impressionar os exorcistas-mo-
res do bispado, realizando umamise-en-scène dos diabos. Talvez,
a aparência humilde daquela negra, dias seguidos solicitando
audiência à porta do Palácio Episcopal, tenha tocado o coração
daquele confrade de São Bernardo, o "Doutor Melífluo", a quem

127
"ri?

i
a negra pedia socorro espiritual, pois padre algum queria rece- teu nome..." A energúmena já devia saber de cor boa parte dos
bê-la no confessionário. Os diversos retratos a óleo de Dom exorcismos, pois sempre estava se submetendo a eles quando
Manoel da Cruz, conservados em Marianaj mostram-no cora a em companhia do Padre Xota-Diabos. Diz ela que 'lhe repetiu a
mão direita em posição de abençoar, ou com um livro de preces dor e o acidente, com que caiu sem sentidos — e por isto não
entreaberto, sugerindo que de fato seus contemporâneos tinham sabe, nem ao depois lhe disseram o que sucedeu".
razão quando pintaram-no magnânimo, "cheio de bondade e em Como acontece até hoje nos terreiros de candomblé e
demasia crédulo". umbanda, quando o Orixá toma conta dos filhos de santo,
É oPadreXota-Diabos quemnos dá todos os detalhes deste ocorrem-lhe posteriormente uma espécie de amnésia que os
quiproquó satânico, cujo enredo não deixa nada a desejar às torna incapazes de se lembrar de seus atos, danças e palavras,
peripécias cinematográficas do best-seller O Exorcista. durante o tempo em que estiveram incorporados. Os epilépticos
Relata este informante que entre os presbíteros nomeados são igualmente incapaz es de reconstruir o que se passou enquan-
pelo bispo para esta diligência estavam o próprio vigário-geral to durou-lhes a crise, o mesmo ocorrendo com os energúmenos
e da vara de Ouro Preto, o Padre Amaro Gomes de Oliveira e o e demonopatas.
Padre Manuel Pinto Freyre, mestre de Moral e exorcista agre- Já descrevemos alhures outros ataques de Rosa: caía no
gado, o único de quem Rosa lembrava o nome. Talvez tenha sido chão com tremores pelo corpo, inchava-lhe o rosto, falava com
este quem dirigiu o cerimonial. Ao todo estavam presentes voz cavernosa imitando um espírito que praguejava das profun-
quatro sacerdotes, "os mais doutos e virtuosos". dezas do inferno. Um mineiro que presenciou tais diabolismos,
O local escolhido para os exorcismos foi a Igreja de São José Alvares Pereira da Fonseca, disse que certa feita não ousou
José. Os sacerdotes elegeram certamente este pequeno templo entrar na igreja, permanecendo na porta "com grande temor,
próximo à Igreja de Nossa Senhora das Mercês, em Vila Rica, por nunca ter visto semelhante coisa".
por se tratar de uma energúmena negra, de condição social Estes ataques convulsivos fizeram muitos doentes passar
desprezível, não merecendo que se lhe abrissem as portas de por endemoniados, e assim os descreve o psiquiatra Dr. Antoine
templo mais suntuoso. Nestelocal se reunia a Irmandade de São Porot: "As crises ou ataques mostram a brusquidão e as descar-
José dos Homens Pardos. gas rítmicas da epilepsia que consistem numa agitação .desor-
Paramentado com sobrepeliz e estola roxa, lá na frente do denada, tumultuosa, de contorções, repulsões e atitudes extra-
altar estava o exorcista aprovado pelo bispo, sendo auxiliado por vagantes. A crise se entremeia muitas vezes com agitação verbal,
mais três presbíteros "para testemunhas, e mais alguma gente gritos, risos, choros, lamentações e ataques."
que concorreu". Cerimónias deste tipo sempre causaram viva As muitas "visagens e trejeitos" praticados pela energúme-
curiosidade no populacho, invariavelmente faminto de pão e na causaram viva impressão nos sacerdotes, que provavelmente
circo. só tinham notícia da courana de ouvir falar, Declara o Padre
Solene, o exorcista inicia a leitura do Rituale Romanum: Francisco que, após os exames de praxe, "viram que era verda-
"Ne reminiscaris, Domine, delicia nostra, velparentum nostro- deira vexada". Rosa em sua confissão ratifica esta informação
rum, negue vindictam sumas depeccatis nostris..." ao contar que, depois dos acidentes, "ela se restituiu e os exor-
Rosa devia estar de joelhos, cabeça baixa, ouvindo as rezas cistas a animavam muito, dizendo-lhe que tivesse ânimo e os
e litanias do sacerdote que benzia seu corpo, aspergindo-a com encomendasse a Deus".
água santa, e tocando-lhe a cabeça com as franjas de sua estola: O'milagre começava a se realizar: de embusteira, Rosa se
"Quem quer que sejas; ordeno-te, Espírito Imundo, que digas o transforma em medianeira, sendo alvo de devoção até dos ilus-

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três sacerdotes que recomendam incluir seus nomes em suas Laudamus e certamente vários responsos da Missa. Não seria
orações. tão difícil a uma beata do século XVHI entender algumas frases
Temos dúvida se tal informação prestada pelo Padre Xota- em latim dos exorcismes. Na prova de língua, portanto, dava
Diabos e pela própria espiritada correspondeu mesmo à reali- para passar: não falava, mas entendia.
dade, ou se se tratava de tentativa de dourar a pílula para Manifestar força extraordinária era outro sintoma da pos-
engabelar os inquisidores. Tal suspeita se deve ao fato de terem, sessão. Neste particular a endemoniada convenceu até os mais
os exorcistas repetido os mesmos exames passados alguns dias. incrédulos. Sugeriu aos sacerdotes que "para ficar sem dúvida
De acordo comoRitualeRomanum e a tradição cristã, três alguma na verdade de seu Espírito" iria submeter-se à prova do
são as manifestações dos fenómenos diabólicos: as tentações, a fogo. Perante "inumerável povo que se ajuntou para ver o
obsessão e a possessão. A primeira, todos nós conhecemos por sucesso, Rosa lançou sua língua dois ou três dedos fora da boca
experiência própria: é quando a criatura sente desejos contrários yuatçtr • e; debaixo dela aplicaram uma vela acesa pelo tempo que se
ao ensinamento de Cristo, que podem ir desde os maus pensa- -*«!_-
rezasse uma Ladainha de Nossa Senhora, uma Salve-rainha e
mentos, até à deleitação consentida em planej ar atos pecamino- cinco Credos —• e durante todo esse tempo sua língua não
sos. O próprio Cristo foi tentado pelo Diabo (Mateus, 4:1). experimentou dano algum". Louvado seja Deus, aleluia, aleluia!
A obsessão é mais perigosa que a tentação: "o diabo fica Na hora de executar a prova do fogo, Eosa Courana só
como que assentado ao lado da vítima", embora sem tomar conta aceitou que fosse seu Padre Francisco quem segurasse a vela,
de seu corpo e atos. A possessão é o pior estágio: a criatura se recusando o empenho do vigário da vara em executar tal suplício
transforma em agente do Maligno, que impede o livre uso de comprobatório. Alegou que "Deus determinou que fosse o Padre
suas faculdades, falando e agindo pelos órgãos do paciente como Francisco o ministro daquela diligência".
se fosse um motor. No "estado de crise" o corpo do energúmeno Tive o cuidado de cronometrar o tempo que se gasta na
manifesta contracões, raiva, palavras blasfematórias e calúnia. recitação de uma Ladainha, Salve-rainha e cinco Credos: por
Quatro são os sinais de que alguém está realmente possuí- volta de cinco minutos. Portanto, nossa prodigiosa espiritada
do por Belzebu ou por algum ou todos os espíritos infernais: suportou a chama de uma vela queimando a parte inferior de
sua língua por 300 segundos! Um recorde a ser incluído no
• "falar língua estranha ou compreendê-la; Guinessl Fiz a experiência com um pedaço de bife cru, e o
• manifestar força que ultrapasse a capacidade natural; resultado foi chocante: após um segundo, uma fumaça negra
• descobrir coisas distantes ou ocultas; começou a se desprender da carne chamuscada; no segundo
• revelar comportamento agressivo, furor e blasfemar minuto, um cheiro de churrasco evoluiu no terceiro para nau-
contra objetos sacros, às vezes manifestando levitação.' seabunda catinga de carne queimada que invadiu toda a cozinha
e copa; ao quarto, pingos de sangue caíam da carne, por pouco
Rosa manifestou alguns desses espantosos sintomas, so- não apagando a chama da vela; no final dos cinco minutos, a
bretudo os dois primeiros. Uma testemunha dos exorcismes, o parte central do bife transformara-se numa sxiperfície de carvão,
já mencionado Sr. Fonseca, diz textualmente: "Ela não falava ressequido e esturricado. Lembrei-me então do versículo 16 do
latim, mas entendia". Convivendo com sacerdotes, frequentando Salmo XXI, geralmente associado à sede que Cristo padeceu em.
assiduamente as cerimónias sacras, a preta do Inficcionado seus estertores na Cruz: "Minha garganta está seca qual barro
certamente tinha ouvido, por muitas horas, a língua litúrgica, cozido; minha língua grudou no céu da boca; estou reduzido ao
sabendo inclusive rezar de cor a Ave Maris Stella, o Te Deum pó da morte."

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i-r-'ir.
l-S
l -m

Desde o século XVH, o teólogo Del Rio, muito lido e citado de entender latim, "manifestava força superior à capacidade
pelos inquisidores, observava que natural". Porém, como também sucedera com Cristo, que, mes-
mo fazendo prodigiosos mil agres e ressuscitando, nem por isto
"muitas feiticeiras aguentam os tormentos com grande deixou de ser perseguido, Rosa igualmente foi alvo de incom-
obstinação, munidas do remédio da taciturnidade, um preensão por parte de seus contemporâneos.
remédio composto do coração e de outros membros de uma Passado algum tempo, os emissários do bispo repetem os
criança batizada, assassinada cruel e violentamente, e mesmos rituais. A preta espiritada manifesta então certa inse-
depois reduzida a pó, o qual era espalhado sobre o corpo gurança, tanto que advertiu seu confessor, dizendo: "Ministro:
ou escondido secretamente, e dele recebiam a força e a não;vás assistir ao segundo exame e experiências que em. mim
virtude do silêncio.5 . . . se pretendem fazer, porquanto é este caviloso e contra a vontade
dé"Deus e só a fim de ficar mal a criatura e o Ministro. Poderiam
Talvez conhecedor desta cabalística poção, e acreditando prendê-lo se lá fosse." Esta frase, de redação trôpegapara o leitor
em seu poder é que alguns anos mais tarde, ao ser presa, Madre contemporâneo, que um escriba menos exigente no estilo foi,
Rosa será acusada por um tal Padre Vicente Ferreira Noronha, sem.' querer, excelente etnolinguista — reproduzindo às vezes
morador do Rio de Janeiro, de estar envolvida com feitiços ipsis verbis o que saiu da boca da energúmena —, pode ser
usando o corpo de uma criança seca — acusação que voltaremos explicada, de um lado pela construção sintáticabarroca, diversa
a examinar; oportunamente. da nossa, de outro, pelo discurso embolado da iletrada africana.
Diz o Xota-Diabos que, após a prova da vela, "ficaram todos Vale ainda transcrever os sinónimos que o Dicionário Morais
capacitados de que não era fingimento, e ele teve um argumento traz para o termo caviloso, pois a maioria de meus leitores,
certo de que era verdadeiramente vexada, acreditando nela". certamente, como eu, nunca ou pouquíssimas vezes empregou
Aprova do fogo tanto podia ser interpretada como sintoma tal verbete. Caviloso vem de cavilação,' isto é, razão falsa,
do poder de Satã, como também sinal de santidade: na mesma sofística, enganosa; astúcia para se induzir a erro ou a perigo;
época em que Rosa se submetia a este teste pirotécnico, no sul promessa dolosa. Cavilar pode ser igual a zombar sofisticamente
da Bahia, nosso já conhecido Padre Gabriel Malagrida, amigo e caviloso também significa ser capcioso. Enfim, algo realmente
particular deste mesmo bispo que a mandara examinar por a se temer sobretudo perante o exorcista agregado do bispado
peritos em diabolismo, numa ocasião "quando pregava sobre o deMariana, doutor em Cânones pela Universidade de Coimbra,
inferno e suas chamas, às vezes punha a mão sobre um círio membro do Cabido Diocesano, etc., etc.
aceso e, após tempo considerável, a retirava ilesa. Certa vez, em Rosa antevia uma tempestade se aproximando e opta por
Cairu, um incrédulo também pôs um dedo na chama, mas, com uma estratégia sensata: afasta seu protetor do alcance de seus
grande confusão sua, tirou-o rapidamente, tão queimado que até inimigos, garantindo assim sua retaguarda, pois, solto, poderia
esteve a pique de perder o braço". batalhar por sua libertação, caso viesse a ser novamente apri-
Como não há outras testemunhas que tenham confirmado sionada. Diz o Padre Francisco: "temendo ser preso, acreditou
o milagre do fogo, novamente aqui podemos conjecturar que a nela, como já acreditasse serem inspiradas por Deus todas as
prova da vela foi uma invencionice do Padre Francisco para palavras de Rosa". Refugiou-se então na casa do Alferes Fran-
justificar sua credulidade perante os inquisidores, pois, se de cisco da Motta, o marido de Dona Escolástica, a uma légua de
fato tal episódio realmente aconteceu, o mais correto seria que Mariana. Acompanhou-o Pedro Róis Arvelos, seu protetor, que
tanto os exorcistas quanto o público presente na Igreja de São
José tivessem dado crédito à injustiçada energúmena que, além

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a salvara do pelourinho apóa a sessãcrde açoites, e que "acredi- já citado Sr. Fonseca que não esteve presente a esta sessão, mas
tava nela".
dois dias depois ouviu os sacerdotes dizerem "ser tudo fingimen-
A documentação é contraditória quanto ao local onde rea-
to", nem por isso teve sua fé abalada, sobretudo ouvindo o clérigo
lizou-se o segundo exame da negra possessa. Segundo um mo-
Xota-Diabos afirmar que Rosa e sua colega Leandra eram mes-
rador das Minas naquela ocasião, o Padre Filipe de Sousa,
mo "possessas e muito boas servas de Deus".
lisboeta, então com 57 anos, esta sessão aconteceu na própria
Talvez confiados os sacerdotes em que, depois do segundo
Catedral de Mariana. Por ordem de Dom Manuel da Cruz,
exame e da fraca reação do Anjo das Trevas, a energúmena
levaram os sacerdotes mais doutos e virtuosos a energúmena
recolher-se-ia à sua vergonha, posto que fora oficialmente de-
para a Sé, "estando os cónegos no Coro com deprecações a Deus
clarada embusteira e apupada pela multidão como feiticeira,
para mostrar a verdade e desenganar ao povo que andava iluso
não castigaram novamente a escrava de Dona Ana Garcês,
com as ficções de Rosa. E se assentou que tudo era embuste e
mandando-a ir em paz para sua casa. Isto deve ter ocorrido pelos
fingimento". meados de 1750, ano que ficou marcado na memória de todos
Outros informantes relatam que o segundo exorcismo ofi- pelo falecimento de Dom João V, o Rei Beato, tendo sido decla-
cial foi realizado no mesmo local que o primeiro, na Igreja de rado luto geral nas Minas pelo bispo de Mariana.
São José. Somos inclinados a acatar esta segunda versão: con- "' De Mariana ao Inficcionado é uma longa caminhada de
sideramos honra demais para uma africana escrava merecer a quase um dia, por entre morros e capoeiras, subidas e descidas
presença de todo cabido diocesano na Catedral-Basílica, pois tais que não têm fim. Aqui e acolá belíssimas quaresmeiras na beira
cerimónias solenes implicavam despesas, pagando-se espórtu- dos riachos onde os faiscadores até hoje ainda arriscam a sorte
las extras para os cónegos, e gastando-se vela e incenso para a com a bateia na mão.
expulsão do Maligno. "Fazendo-lhe os exorcismes, não aconteceu "Recolhida para casa, cansada do caminho, se assentou a
mais do que uma leve perturbação no juízo que ela sentiu, pelo chorar." Pobre criatura! Sentindo dentro de si a força incontro-
que o inumerável povo se confirmou no conceito em que estava lável de Lúcifer e o coração cheio de amor pelo Divino Esposo,
do seu fingimento, não o fazendo assim o dito exorcista pelas ninguém acreditava nela, a não ser alguns poucos devotos.
experiências que tinha dito." Talvez atribuísse todas essas tribulações ao castigo divino por
A moderação de seus acidentes foi decisão errada, pois seus pecados da juventude. Se até ao justo Jó e a seu próprio
literalmente o feitiço virou contra a feiticeira: "o povo que estava
Filho Unigénito, Jesus Cristo, Javé permitiu que fossem tão
na capela começou a chamá-la de feiticeira". Se fosse na Idade castigados, quem diria as penas de que era merecedora pelos
Média, certamente tê-la-iam agarrado e feito justiça no ato, muitos anos que pecou contra, a castidade?! Sentada na beira da
queimando-a como bruxa. estrada, chorando, teve uma vis ao: "Dando-lhe sono, se viu logo
A grande Santa Teresa passou por vexame semelhante. em um campo muito grande, em espírito, e ali apareceu um
Em seu livro Castelo Interior, a mística contou que seus "aciden-
homem tão alto que dava com a cabeça nas nuvens, cabeça muito
tes" eram alvo de questionamento por parte dos fiéis. "Dizem
grande e alva, cara horrenda muito comprida, olhos e boca
uns aos outros: Ela quer passar por santa. Usa desses exageros disformes, muito vermelho, braços, pernas e pés de extraordi-
para enganar o mundo. São artifícios do Demónio. Ela traz nária grandeza, vestido de trapos muito sujos."
enganados os confessores!" Até São João, autor do Apocalipse, teria se apavorado com
Rosa saiu incólume destas provas, porém diminuído seu este gigantesco espantalho tão medonho e horripilante!
crédito por muitos que tinham-na por espiritada. Entretanto, o

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Ir"
í

"Com o temor desta figura, se deitou a fugir, e, ainda "estando com uma madorna que não era sono, porque
que ela corria quanto lhe era possível, sempre a figura a ç ; estava acordada, foi levada em espírito a uma igreja nova,
seguiu e, sem acelerar o passo, quando andava, lhe chegava não sabe em que sítio, onde viu um altar e um sacerdote
com o pé à saia, até que, chegando a uma árvore, dela se "'-revestido e assentado em. cima do mesmo, que lhe disse:
levantou um sacerdote com o qual ela se animou a pergun- 'Rosa, minha filha, tu hás de comer o pão cotidiano espiri-
tar à dita figura o que queria dela. E estanão lhe respondeu. tual e a pedido, da mão de Deus/ E dito o referido, fechou
E o sacerdote lhe disse que se animasse, que aquela figura o Evangelho e desapareceu da igreja o sacerdote, e ela se
era o mundo que a perseguia porque ela o tinha deixado. - restituiu aos seus sentidos."
E perguntando-lhe o sacerdote o que queria, respondeu-lhe
que buscava o seu Padre Francisco Gonçalves Lopes, e — Esta visão e revelação remete-nos à história de São Cae-
então se restituiu o corpo, que tinha ficado em casa, aos tano,'já anteriormente mencionada. Sucede porém que Rosa
seus sentidos, e não viu mais nada." situou-a, na primeira confissão que fez no Rio de Janeiro, muito
tempo antes de ser exorcizada na capela de São José. Decidimos
O apóstolo Paulo chama a vida mundana de o 'Velho reproduzi-la nesta segunda versão, pois nela patenteia-se, mais
homem", e, nesta visão de Rosa, o mundo e sua aversão aos uma vez, o quão importante era no imaginário desta africana a
servos de Deus assumem o espectro de um medonho gigante de figura dos sacerdotes, que sempre aparecem para salvá-la dos
cabelos brancos, sequioso de destruir os filhos da Luz, uma infortúnios, esclarecendo-lhe os mistérios, aconselhando-a nas
representação antropomórfica do terrível Leviatã que tanto tribulações. Esta visão reveste-se também de particular interes-
assustou o paciente Jó cinco séculos antes de Cristo (Jó, 41:10- se pelo fato de a mística descrever com precisão o seu estado de
25). Perante tais situações horripilantes, não resta ao crente semiconsciência anterior a tal revelação sobrenatural. Prova-
senão recorrer ao Altíssimo, conforme ensina o Salmo 90, oração velmente tais detalhes foram declarados a partir de perguntas
geralmente recitada pelos mais piedosos antes de realizar qual- específicas dos inquisidores, sempre ávidos em distinguir os
quer viagem: "...Deus te livrará do laço do caçador e da peste raptos celestiais dos embustes do Pai da Mentira. Novamente é
perniciosa. Não temerás os terrores noturnos, nem a flecha que ',1 o dicionaristaMorais quem nos ensina que madorna ou modorra
voa à luz do dia, nem o mal que grassa ao meio-dia. Caiam mil, "é um estado de sonolência em que caem certos doentes, menos
homens àtuaesquerda e dez mil à direita, e tunão serás atingido. pesado e perigoso que o letargo". Segundo Rosa, a visão não fora
Porque aos seus anjos ele mandou que te guardem em todos os sonho "porque estava acordada"—semi-acordada, par a ser mais
teus caminhos..." preciso.
Já por duas vezes o Altíssimo mandara um sacerdote Deus Nosso Senhor não escolhe hora nem situação para
consolar sua negra serva quando aperreada pela angústia e manifestar-se a seus eleitos: Maria Virgem rezava quando lhe
tirania de seus perseguidores. Era toda sua vida Rosa demons- apareceu o Anjo Gabriel; São José dormia quando em sonhos se
trará enorme respeito e veneração pelos ministros do Altar. lhe foi revelado que sua esposa Maria ficara grávida por obra do
Aliás, este era o termo que preferiapara referir-se ao seu querido Espírito Santo; São Paulo estava sobre um cavalo quando uma
Xota-Diabos: Ministro. luz resplandecente o cegou e uma voz celestial lhe questionou:
Passados três dias desde que a preta beata vira o gigante "Saulo, Saulo, por que me persegues?" (Atos dos Apóstolos, 9:4). •
.cabeçudo, Várias das visões de Rosa até aqui veladas ocorrer anã seja
à tardinha quando rezava no quintal ou nas escadas da casa,

136 137
-

seja na cama, na escuridão de seu quarto, ou ainda, nas.igrejas,


quando o Espírito lhe provocava algum acidente ou desmaio.
d Virgem. Maria e muitas outras relíquias que garantia serem
da
madein
77 Jerusalém, mas que ele próprio secretamente fabricava.
Todos esses flashes sobrenaturais tinham em, comum, o fato de A vários negros e negras, além de vender tais preciosidades
serem vistos ou percebidos tão-somente pela privilegiada afri-
A
divinas,
d prescreveu açoites e disciplinas para penitência de seus
cana, que ao voltar ao mundo dos mortais revelava as maravilhas pecados: só no preto Faustino aplicou 200 açoites de bacalhau,
do céu que só ela tinha o privilégio de conhecer. P
enquanto
e recitava oMiserere. São Sado-Masoch, ora pró nobis!
Nas Minas, a medicina de Galeno com suas teorias basea-
"Disse mais: que na noite seguinte ao sucedido, estando
das
d na oposição entre o frio e o calor e nos quatro humores devia
ela rezando o Credo, de joelhos, voltada para um Cristo
ter
t< poucos adeptos entre os milhares de negros e brancos que
crucificado, sem luz na casa, ouviu urna voz que saía de •1
faziam
fi mais fé nos exorcismes ou nas mandingas para evitar ou
mesma imagem e dizia: TBu sou o médico! Venho curar os 1
"J curarmos
9] achaques. Os pecados e a irreligiosidade seriam as
enfermos, mas hei de curar aos que guardarem o Regimen-
causas!
c de tantas doenças, daí a procura de remédios espirituais
to.' E ficando ela atemorizada com a dita voz, que era e"detseus ministros, posto que o próprio Cristo se apresentava
e
respeitosa, disse no seu interior: 'que cousa seria o Regi- ~ *•*!
coino médico.
c<
mento?' E logo a mesma voz repetiu que o Regimento era — Outras visões aconteceram por esta época, entre 1748 e
guardar os Dez Mandamentos. E a casa que estava alu- 1750, sem que era suas confissões a negra lunática especificasse
1
miada ao! proferir a dita voz tornou a ficar às escuras como ~ ~ onde e quando ocorreram.
~Ò]
estava.."
"Certa feita, estando ela ouvindo missa na Igreja de São
Várias vezes a negra courana retomará essa imagem, João Batista do Rio das Mortes, numa Quinta-feira Santa,
associando Jesus Cristo à cura dos enfermos. Noutra revelação aolevantar o sacerdote ahóstia, a viu toda negra. E, ficando
Nossa Senhora se apresentará como enfermeira: em seu imagi- assustada com isto, perguntou a uma sua companheira se
nário o céu era portanto, vrm grande hospital, onde a principal
"i- .tinha visto o mesmo. Respondendo-lhe que não, ficou ela
medicina era o próprio corpo de Cristo transubstanciado na
ais cuidadosa, pensando se seria descuido do sacerdote
hóstia consagrada. De acordo com os Evangelhos, em sua vida _ em consagrar alguma hóstia daquela cor. E, estando com
terrena Jesus curou muitos enfermos: cegos, aleijados, até uma
este pensamento, teve uma voz que lhe falava no entendi-
hemorroíssa, que bastou tocar na túnica do Nazareno para o " .r - _ mento, e lhe disse: 'O sacerdote consagrou a hóstia perfeita,
fluxo de sangue estancar-se. Nas Minas Gerais do século XVIII,
porém os pecados dos homens me têm eclipsado.' E mandou
as doenças e sua cura estavam intrinsecamente ligadas ao céu
'a mesma voz a ela, falando-lhe da mesma sorte no enten-
e ao inferno na mentalidade supersticiosa e mística da popula-
-~~dimento, com clareza e certeza, que em todos os dias, pela
ção, que, crédula e acrítica, acatava tudo que tivesse a áurea do
manhã, rezasse ela a oração seguinte: Verdadeiro Comis-
sobrenatural. Muitos foram os falsos profetas que exploraram !
sário, Eterno Deus Todo-Poderoso, concedei-me a vossa
esse rico filão da boa fé popular, como um tal de clérigo João _graça para que hoje, neste dia, possa ganhar todas as
Róis de Morais, de 21 anos, filho de um alfaiate de Miranda e indulgências que se concederem em Roma, em Jerusalém
morador em Ouro Preto. Preso em 1734, confessou ter percorrido e em Santiago de Galiza, seja em nome de Deus Padre,
as minas de Serro Frio e a comarca de Vila Rica vendendo Deus Filho e Deus Espírito Santo."
relíquias do Santo Lenho, verónicas de São Bento, uns papelotes
com um pozinho branco que dizia ser o verdadeiro leite em pó No século XVIII, uma das maiores obsessões dos católicos

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era garantir que suas almas fossem depois da morte, o mais Outra africana, Maria da Costa, nação ardra, moradora na
rapidamente possível, para o céu, permanecendo o menor tempo mesma freguesia, deixou encomendadas 100 missas a meia
no purgatório. O que é o purgatório? "B um lugar de sofrimento oitava de ouro pelo descanso de sua alma e mais 50 mil réis de
onde as almas dos justos expiam seus pecados antes de entrar esmola para um ofício dos mortos a ser realizado no Convento
no paraíso", diz o Catecismo, Neste lugar medonho, as almas de S anto António do Rio de Janeiro—coincidentemente o mesmo
penam primeiro a privação da felicidade de ver Deus e, segundo, local onde Rosa receberá orientação espiritual quando de sua
sofrem as labaredas de um fogo verdadeiro, semelhante ao das chegada àquela capitania.
profundezas do inferno, que as queima sem consumir. Para Tais exemplos servem par a ilustrar o quão importante era
evitar a permanência neste lugar horrendo, a Igreja instituiu as para os nossos antepassados obter sufrágios e indulgências que
indulgências, uma espécie de salvo-conduto que os fiéis podiam lhes garantissem, o eterno descanso na morada celeste; daí a
adquirir, através de certas práticas religiosas, ou doando esmo- grandeza e magnitude da oração que Rosa disse ter aprendido
las para a Igreja, sendo possível até mesmo aplicá-las em nesta última visão, através da qual se lhe assegurava receber
intenção de pessoas já falecidas. As missas de defunto em diariamente "todas as indulgências que se concederem emRoma,
intenção das almas foram dos principais meios que os fiéis em Jerusalém e em Santiago de Galiza", os santuários mais
utilizavam para garantir a redução do tempo da alma no pur- valorizados pelos fiéis, pelas incontáveis indulgências a eles
gatório, recurso piedoso, grandemente estimulado pela hierar- conferidos pelos Sumos Pontífices. Deus fazia grandes dons à
quia eclesiástica que obtinhapolpudas esmolas com a celebração sua serva, que sem sair da cama obtinha os mesmos privilégios
de tais atos litúrgicos. Do mesmo modo como hoje se garante o espirituais dos quais os romeiros só se beneficiavam após longa
futuro depositando-se na caderneta de poupança, nos séculos caminhada e muitos gastos para atingir aquelas cidades santas.
passados, todo cristão deixava expresso em seu testamento que Pouco a pouco, talvez pressionada pelos sacerdotes que
boa parte de seus bens devia ser aplicada na celebração de ouviram suas confissões no Rio de Janeiro e em Lisboa, a mística
avultado número de missas pelo repouso eterno de sua alma. africana dá os mínimos detalhes sobre as condições em que se
Vimos que Dom Frei Manuel da Cruz ordenou que em sua processaram seus contactos com o mundo extraterrestre. Tais
intenção fossemrezadas.2.900 missas após sua.morte; Dom João detalhes eram de crucial importância para os inquisidores dis-
V, o Fidelíssimo, pagou à preço de ouro a celebração de 700 mil tinguirem se tais raptos eram divinos, como os de Santa Teresa
missas com o mesmo fim; Nas Minas, muitas foram as ex-escra- dÁvila, tão bem descritos no Castelo Interior, ou eflúvios demo-
vas, enriquecidas com o comércio ou com a mineração, que níacos. Alhures a negra narrara estar numa madorna quando
deixaram em seus testamentos grandes somas para o sufrágio foi levada em espírito para o Além, sendo depois restituída aos
de suas almas. Eis apenas dois exemplos, já citados, do Arquivo sentidos. Noutra ocasião disse que "foi levada de sua casa para
da Cúria de Mariana, ambos contemporâneos a Rosa: a negra a igreja em espírito, ficando em casa só os sentidos de ouvir,
forra Maria do Ó, natural da Costa da Mina de nação courá, porque os outros quatro (visão, tato, palato e olfato) acompanha-
exigiu em seu testamento que ao morrer fosse amortalhada no ram o espírito". Agora conta que ouvira uma misteriosa voz "em
hábito de São-Francisco e que houvesse missa de corpo presente seu entendimento, com clareza e certeza". Todas essas sensações
oficiada por quatro sacerdotes, deixando uma oitava de ouro místicas são perfeitamente conhecidas e teorizadas pelos teólo-
para 50 missas que se lhe oferecessem na matriz da freguesia gos que estudaram os caminhos da vida interior — e mais
de São Caetano, onde era moradora, e mais 120 réis para cada adiante, quando Rosa manifestar outros sintomas ainda mais
uma das.840 missas a serem celebradas nas igrejas do Reino. sublimes, recorreremos aos mesmos teólogos para analisar tais

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mimos celestiais. Por hora merecem ser feitos dois reparos a festa de Corpus Christi, até hoje comemorada em toda catolici-
esta última visão: como muitas das futuras revelações, sobretu- dade comportentosaprocissão. No século seguinte, outro famoso
do no Rio de Janeiro, os céus abrirão suas portas à beata nos milagre da hóstia: Santa Juliana Falconieri, canonizada somen-
dias de grandes festas litúrgicas. Quinta-feira Santa, também te em 1737, grande devota da Eucaristia, estando em seu leito
chamada Quinta-feira Maior,' era um dos dias mais festivos da de morte, incapacitada de comungar, posto que vomitava sangue
catolicidade: sua missa era muito solene e, ao cantar-se o Glória, sem parar,
os sinos dentro e fora da igreja tocavam freneticamente, ficando
mudos até à meia-noite do Sábado Santo. "Deus então, para comprazer-se de sua serva, fez um,
milagre que ficou célebre nos anais da Eucaristia: rogou a
'Toucas passagens há, no ano eclesiástico, tão impres- - santa ao sacerdote que aproximasse de seu peito a Sagrada
sionantes e comovedoras para o coração do crente, quanto, .-•Forma, e todos os presentes puderam ver como a hóstia
esta missa, em que se mesclam alegria imensa e profunda :;. ficou primeiro grudada no peito de Juliana e logo desapa-
tristeza. Consagram-se aí duas hóstias grandes, das quais receu, como se se tivesse aberto uma porta para aquele
se conserva uma que depois da missa é levada procissio- t coração tão cheio de Cristo."
nalmente ao altar da exposição, ornado de flores e luzes." ._£_
No século XVII, durante o reinado de Filipe II, as beatas
Não poderia haver dia mais propício para uma visão euca- espanholas Madalena da Cruz e Maria da Visitação recebiam a
rística do que a Quinta-feira Maior, a única ocasião em que os comunhão miraculosamente, voando a sagrada partícula do
fiéis podem ver sobre o altar não apenas uma, mas duas grandes altar até à mesa da comunhão, repetindo a mesma façanha
partículas consagradas, o dia mesmo que se comemora a insti- ocorrida séculos antes com Santa Catarina de Siena. Várias
tuição deste inefável manjar angelical.. beatas e santos disseram, ter recebido o viático das mãos do
Rosa já tivera outra visão com a mesma partícula: próprio Cristo, ou dos Anjos, entre eles, Elizabeth von Reute
(1420), Domenica deli Paradiso (1553), Prudenciana Zagnoni
"por duas vezes ouvindo missa a diversos sacerdotes, ao •i -
(1608), Maria Francisca das Cinco Chagas (1857), etc, etc. Na
levantar a sagrada hóstia, a viu cheia de sangue e cercada -4- Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro podemos ainda
de luzes mui brilhantes. Outra ocasião viu a imagem de hoje admirar, no altar do Bom Sucesso, um belíssimo quadro ex
Cristo Senhor Nosso na sagrada hóstia,, derramando san- voto alusivo ao milagre aí ocorrido em 1639: "Estando o Senhor
gue das suas sacratíssimas chagas e um anjo comuns vasos exposto, foi vista por três veneráveis sacerdotes a imagem de
recebendo o mesmo sangue e tudo se lhe representou na Nossa Senhora na hóstia consagrada." Mais recentemente, a
circunferência da hóstia, representando-se esta de muito beata Maria de Araújo, a controvertida santinha protegida do
maior extensão.". Padre Cícero do Juazeiro, ao comungar, a hóstia consagrada se
enchia de escuro sangue, fato que o taumaturgo cearense pro-
Milagres associados às hóstias abundam na hagiografia clamou como sobrenatural. Entretanto, pesquisas levadas a cabo
católica: em 1263, o Padre Pedro de Praga, na cidade de Bolsena, por um sacerdote da mesma região comprovaram tratar-se não
duvidando do milagre da transubstanciação enquanto celebrava de milagre, mas de simplória farsa.13
o Santo Sacrifício da Missa, ao partir a hóstia, esta se transfor- Não há notícia de outra região do Brasil, como as Minas,
mou em carne viva, pingando abundante sangue no altar, epi- onde a Sagrada Eucaristiativesse tantos devotos. Para trasladar
sódio milagroso que inspirou o Papa Urbano IV a promulgar a Jesus Sacramentado da Igreja do Rosário para a Matriz do Pilar

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de Vila Eica, os mineiros realizaram em 1733 o célebre "Triunfo a todas as misérias espirituais. A alma que dignamente
Eucarístico", procissão tão solene "que não há lembrança que .comunga fica santificada com. toda a santidade de Jesus
visse o Brasil, nem. consta que se fizesse na América ato maior Cristo, fica unida e incorporada com Deus, ela fica com
de grandeza". Sobretudo a partir de meados do setecentos, Jesus e Jesus fica habitando nela."
quase todas as vilas e freguesias mineiras abrigavam irmanda-
des e confrarias do Santíssimo Sacramento: a de São João dei Se são tantas as graças advindas da comunhão piedosa,
Rei data de 1711, dois anos antes da elevação do arraial a Vila, aproximar-se do Pão dos Anjos em estado de pecado mortal
tendo existido nas Minas, no século XVIII, 43 irmandades redunda nas maiores desgraças. Já São Paulo previa: "quem
dedicadas a esta devoção. Vulgariza-se então grandemente a comer indignamente o corpo e sangue de Jesus Cristo, come e
devoção às "Bênçãos do Santíssimo Sacramento", onde riquíssi- bebe sua eterna condenação" (l Coríntios, 11:29). E o autor da
mas custódias e ostensórios, algumas tão pesadas que impossi- Missão Abreviada, livro dos mais divulgados entre os devotos
bilitavam o sacerdote de sustentá-las para a bênção aos fiéis, de antanho, completava: "Quem comunga indignamente comete
constituíam as jóias mais preciosas zelosamente conservadas maior crime do que os judeus que mataram Cristo."
nas Gerais. As famosas "capas de asperges", igualmente borda- Creio que o leitor há de entender melhor agora a fúria com
das com profusão de fios de ouro e pedraria preciosa, alfaia que Rosa atacava os pecadores públicos na mesa da comunhão,
indispensável emtais cerimónias, são o que de mais rico se teceu pois recebera como missão ser a "zeladora dos templos, sobretudo
em toda cristandade, tudo isto produzido com um só fim: dar quando o Santíssimo Sacramento estava exposto": proclamando
glória ao Santíssimo Sacramento. Deslumbrados com tanto os pecados dos hipócritas que aproximavam-se de tão augusto
ouro, profusão de velas acesas, incenso do mais puro, genuflexos mistério com a alma impura, Rosa simplesmente estava obede-
na maior contrição, os fiéis até hoje entoam devotos o hino cendo ao ensinamento oficial dalgrejae zelando para que o Autor
Tantum ergo Sacramentum, Veneremur Cernui, cujos dois pri- da vida não fosse insultado por almas inescrupulosas.'
meiros versos querem dizer: Este grande Sacramento, humilde- De acordo com as Constituições, a Santíssima e Augustís-
mente adoremos! sima Eucaristia representa o mais excelente e perfeito sacra-
Reflexo desta devoção é a quantidade de freguesias e vilas mento, devendo portanto os fiéis, para recebê-lo, cumprir rigo-
desta Capitania que adotaram-na como topónimo: Santíssimo rosamente as seguintes'condições: ser batizado, ter confessado
Sacramento da Barra do Jequitibá, Santíssimo Sacramento do e estar em estado de graça sem pecado mortal, estar em jejum
Taquaraçu, Sacramento do Ribeirão do Borá, etc. natural desde a meia-noite. Todo cristão, com mais de 14 anos
A veneração a Jesus Eucarístico reflete-se também no os meninos, e 12 anos as meninas, estava obrigado a comungar
extremo respeito com que nossos antepassados se aproximavam ao menos uma vez por ano, na Páscoa, sendo igualmente acon-
da mesa sagrada, só podendo comungar nos dias autorizados selhado receber Jesus-Hóstia nas seguintes situações: quando
pelo confessor, posto que não se recomendava então, como nos moribundo ou em perigo de morte, às vésperas de largas nave-
dias atuais, a comunhão diária. gações e antes das batalhas; as mulheres prenhes próximas do
parto e os condenados à morte à véspera da,execução. Aos
"Os fiéis que chegam a comungar dignamente saem da pecadores públicos proibia-se administrar a comunhão: exco-
sagrada comunhão como leões que respiram chamas de mungados, feiticeiros, mágicos, blasfemos, usurários, meretri-
fogo, fazendo-se terríveis a todo o inferno. Pela sagrada zes, inimigos públicos. Por determinação do Concílio de Trento
comunhão se reprimem todas as paixões e dá-sè remédio (1545-1553), só os sacerdotes podiam comungar sob as duas

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espécies — pão e vinho —, os fiéis recebendo apenas a hóstia, então recolhia-se cada qual para seu lugar, os homens de um
que devia ser feita com pura farinha de trigo e água. Os títulos lado, as mulheres cobertas com véu, do outro, e de joelhos, em
XXVII e XXVIII do Livro Primeiro das Constituições discorrem profundo recolhimento, rezavam-se os atos de agradecimento e
minuciosamente sobre os aspectos materiais do Sacramento do a'!tpiedosa inspiração" de Santo Inácio:
Altar: em que igrejas há de haver o sacrário, como deve ser,
quem deve guardar a chave do tabernáculo, assim como sobre a - "Alma de Cristo, santificai-me; corpo de Cristo, salvai-
fonna de administrar a Eucaristia. Naqueles tempos antigos, me; sangue de Cristo, inebriai-me; paixão de Cristo, con-
além de conservar consigo o recibo anual da "desobriga" do dever * fortai-me; ó bom Jesus, ouvi-me; dentro de vossas chagas,
pascal, todo cristão no ato mesmo da comunhão devia manter-se • escondei-me; não permitais que eu de vós me afaste; do
de joelhos, junto às grades do cruzeiro, enquanto o ministro 7" * inimigo maligno, defendei-me; na hora de minha morte,
confiava a cada. um, por sua vez, uma toalha branca, de bom. ^_ ~.-.chamai-me e mandai-me ir para vós, para que vos louve
tecido, para ser mantida diante do peito, a fim de evitar o ÍÇ~ -y.com os vossos santos por todos os séculos dos séculos,
sacrilégio de alguma partícula cair no chão. Hoje, a toalha foi -{' -'.amém!"'
substituída pela patena, pequeno pratinho que o acólito segura
debaixo do queixo dos comungantes. Ainda em 1762 foi motivo ._J v. Muitos foram os mineiros e devotos deste mundo de meu
de denúncia ao Santo Ofício o sacrilégio cometido pelo Padre Deus, tão atraídos e encantados pelo Mistério Eucarístico, que,
Luiz Cardoso Teixeira Magalhães, da Bahia, que dissera "Isto não contentes em adorar Jesus nos riquíssimos ostensórios, não-
não importa", quando um criouHnho lhe entregou uma hóstia _ satisfeitos em comungar o preciosíssimo corpo de Deus, queriam
que havia caído, na hora da comunhão. Só os diáconos e presbí- trazê-lo sempre fisicamente próximo do coração. Daí os constan-
teros podiam, sem sacrilégio, tocar no Santíssimo Sacramento. tes e sacrílegos roubos de hóstias consagradas e demais objetos
Ao oferecer ahóstia consagrada, o sacerdote dizia emlatim: onde Jesus-Pão, e seu preciosíssimo Sangue, estiveram presen-
"Ecce Agnua Dei, ecce qui tollitpeccata mundi." E logo imedia- tes, como os sanguíneos (espécie de guardanapo de tecido finís-
tamente, em vernáculo: .Sgf,; _ simo, que o sacerdote usava para limpar o cálice após consumir
o sangue de Cristo), as pedras d'ara (pedaço de mármore embu-
"Irmãos, este é o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, s tido no centro do altar, em cima da qual o sacerdote celebrava
tão verdadeira e realmente como está no céu: adorai-o, " os augustos mistérios), e até a, chave do sacrário e o óleo da
pedi-lhe devotamente vos perdoe vossos pecados pela mor- ~2J2 lâmpada do Santíssimo, utilizados supersticiosamente como
te e paixão que por nós padeceu e dizei comigo três vezes ' *- panaceia. Tais objetos, sobretudo as hóstias consagradas, peda-
batendo no peito: Senhor, eu não sou digno de que vós ™: ' cos do sanguíneo ou dapedrad'ara eram guardados empequenos
entreis em minha morada tão pecadora, mas dita a vossa "±~_. relicários de metal, ou nas cobiçadas bolsas de mandinga e
santa palavra minha alma será salva." -^ patuás, geralmente misturados com outros elementos cabalísti-
~ cos, de inspiração ibérica ou africana, e dependurados no pescoço
Só então o fiel recebia o preciosíssimo corpo de Deus, ___ _ junto a medalhas, escapulários e agnus-dei, reputados como a
devendo engolir a hóstia sem mastigá-la, evitando-se mesmo maior garantia e proteção contra tiro, facadas, flechas e demais
tocar-lhe os dentes. Aí tinha lugar uma devota prática há muito investidas dos inimigos.
abolida pelo ritual: o acóHto oferecia aos comungantes um vaso •j^s-1
Dezenas e dezenas de colonos do Brasil foram denunciados
de prata com água para cumprir o lavatório, devendo cada qual junto à Inquisição de Lisboa, alguns chegando a ser transporta-
tomar um trago a fim de engolir qualquer resíduo da hóstia. Só dos para os cárceres do Santo Ofício, inculpados deste abomina-

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vel sacrilégio: roubo de hóstias e demais objetos eucarísticos. últimos meses de prisão, recusava-se a vestir roupa, sendo
Um destes infelizes foi um contemporâneo e conterrâneo de trancafiado numa solitária por não permitir companheiros em
Rosa, como ela também, morador por certo tempo em São João sua cela. Quando gritava ou cantava alto à noite, era surrado
dei Rei, o nigeriano natural de Judá, José Francisco Pereira, de 'pelos guardas do Santo Ofício com grossas correias. Examinado
25 anos, escravo do Capitão-mor João Francisco Pedrosa, cons- seu processo pela Mesa Inquisitoriál, escreveram: "Após a pa-
trutor da ponte "que vai para a outra banda para as casas do ralisia, o r eu ficou com emb ar aço na perna e br aço e total loucura
reverendo vigário de São João dei Rei" e possuidor de 38 cativos «frenética, nascida da desesperação em que o pôs seu génio áspero
nas Gerais. Diz o negro que, morando no Rio das Mortes, meteu *& ardente, vendo-se preso e doente." Morreu quatro anos depois
uma. oração do Justo JuÍ2 Divinal debaixo da pedra d'ara de um de preso, no Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, a 10
altar, confeccionando com ela um patuá "para o livrar de ladrões de junho de 1762 — no mesmo ano em que Rosa e seu padre-
e inimigos". Se ficou protegido contra tiros e facadas, não -protetor chegam à Inquisição — terminando seu processo com
podemos saber; o certo, porém, é que foi ineficaz para defendê-lo o seguinte registro hospitalar: "Homem doido de que se ignora
das garras do Santo Ofício que, em Lisboa, o sentenciou com seu estado, pais, pátria e ocupação". Toda essa dor, tristeza e
açoites, hábito penitenciai perpétuo e cinco anos d© galés. ^tragédia familiar foram causadas simplesmente pela má orien-
Também das Minas foram enviados para a Inquisição de tação da piedade eucarística: Jesus-Hóstia deve ser adorado,
Lisboa dois irmãos envolvidos com um rocambolesco roubo de "comungado e agradecido humildemente. Tocar na hóstia, carre-
hóstias: Salvador Carvalho Serra e António Carvalho Serra •gá-la em patuá, redunda na condenação paiúina levada às
eram dois rapazes pardos, netos de uma escrava angolana que, ultimas consequências pelos Senhores Inquisidores. Tratar in-
certa feita, "conversando em Congonhas com várias pessoas "dignamente a comunhão equivale a buscar sua própria conde-
sobre relíquias, uma delas disse possuir uma que era melhor nação.
que o Santo Lenho": tratava-se de um conjunto de três hóstias Esta longa digressão sobre a Eucaristia teve como escopo
que um pintor roubará de dentro do sacrário e com as quais os familiarizar o leitor com o china de respeito, mistério, devoção,
irmãos beatos fizeram seus patuás. Não havia cristão, antiga- " "superstição e fanatismo com que os contemporâneos de nossa
mente, que não carregasse no pescoço qualquer bentinho, me- beata se relacionavam.com o Pão dos Anjos. Na Espanha qui-
dalha, rosário ou patuá'. Denunciados de terem hóstias consa- nhentista registra-se o episódio extremo da ilusa Madalena da
gradas em seus amuletos, foram detidos por ordem do pároco de Cruz que, ao ser presa pelo Santo Ofício de Toledo, constou em
Vila do Príncipe e, após exame do vigário geral da comarca, seu processo que, certafeita, "ao passar o Santíssimo Sacramen-
ficaram 15 meses presos até serem embarcados para Lisboa. Na to pela rua, abriu um buraco na parede com um ferro para que
Inquisição, o primeiro sacrílego confessou que, "ainda que sabia pudesse adorá-lo".22 E o próprio Dom Manuel da Cruz, o mesmo
ser grave pecado pegar nas partículas consagradas, ignorava bispo que mandara açoitar nossa espiritada, tinha em sua cama,
que trazê-las consigo fosse tão grave delito". Teve como sentença esculpidos na cabeceira, o cálice sagrado coroado com a Santa
abjurar seus erros no Auto de Fé, sendo degredado para Castro Eucaristia, envoltos em raios de luz, com dois anjos, compondo
Mearim, no Algarve, por dois anos. Seu irmão António, o mais opiedoso décor, emposição de adoração a este augusto mistério.
velho, teve destino melancólico: no cárcere sofreu um estupor, Esta cama encontra-se no Museu de Arte Sacra da Bahia, e foi
ficando paralítico, daí ter sido diagnosticado pelo.médico da com viva emoção que o autor destas páginas e a Dra. Laura de
Inquisição como "formalmente doido". Magérrimo, erapele sobre Mello e Souza, ambos admiradores do bispo de Mariana, desco-
osso, pois recusava-se a comer com medo de ser envenenado; nos brimos juntos o referido leito eucarístico.

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p
iiifc
Í
Repetidas vezes a hóstia aparece no processo de nossa cabeças e dez chifres apareceu a São João em sua velhice.
biografada. Em. três visões distintas viu a Santa Partícula, seja Portanto, a lépida borboleta confrontada com a paquidérmica
derramando sangue e cercada de luzes brilhantes, seja eclipsada besta do Apocalipse faz-nos lembrar do pequenino Davi derru-
e enegrecida pelos pecados da humanidade; na intolerância bando o gigantesco Golias. Do mesmo modo como o altíssimo
mística com que descompunha os comungantes que julgava mistério da transubstanciação se esconde dentro da pequenina
impropriamente preparados para receber o augusto mistério; hóstia, assim também Deus pode usar uma borboletinha dan-
na revelação recebida nos primeiros tempos de sua conversão, çante ou uma negra espiritada para revelar sua Onipotência,
quando lhe é ensinado que este "altíssimo mistério se nos Não está escrito no Evangelho que os Céus escolheram os
comunica íntegro na mais breve partícula". Será, contudo, no pequenos e pobres para confundir os ricos e poderosos?!
Rio de Janeiro que a beata desenvolverá mais ainda seu misti- Provavelmente foi após estes episódios, j á convalescida dos
cismo eucarístico, recebendo todo estímulo dos franciscanospara açoites no pelourinho, de Mariana, que Rosa conseguirá sua
frequentar com maior assiduidade a mesa da comunhão. alforria. Há anos aspirava ser resgatada do cativeiro, seguindo
Se, por um lado, estas últimas visões das hóstias negras a^mesma trilha de milhares de negros e negras das Minas que
ou ensanguentadas revelam certa influência da escatologia alcançaram a emancipação. Como muito bem pondera um espe-
apocalíptica no imaginário da madalena courana, visões, aliás, cialista na história-deraográfiea regional, "a atividade minera-
i
perfeitamente de acordo com as que tiveram outros santos tória possibilitava aos escravos maior mobilidade social vis-à-vis
reconhecidos por Roma, por outro lado, notamos que alguns de às demais economias do Brasfl-Colônia. A forma como se reali-
seus delírios preternaturais são tão pueris quanto as historietas zava a exploração do ouro e diamantes possibilitava mais liber-
conservadas nos Evangelhos Apócrifos, que por sua inverossi- dade e iniciativa aos cativos". Segundo cálculos de Russel-
milhança foram considerados inautênticos pela Igreja Católica. "Wood, entre os anos 1735 e 1749, o número de forros em Minas
Eis um exemplo que surpreende não só pela tolice, como sobre- Gerais representava por volta de 1,4% das pessoas de origem
tudo pela conivência do Padre Xota-Diabos na legitimação da africana, subindo para 41,4% em 1786. Como no resto da
estultícia. Certa feita, 'quando hospedados em casa de Dona colónia, também aí as escravas, apesar de serem em número
• muito inferior aos cativos do sexo masculino, ultrapassavam os
i^k Escolástica, rezando o terço comunitariamente, de repente "apa-
receu uma borboleta fazendo várias visagens". Incontinenti, o homens na obtenção da alforria, numa proporção de duas escra-
Padre viu nas piruetas deste inseto o dedo de Deus e proclamou vas para um negro. Enquanto muitos cativos conseguiam, a
que era o Espírito Santo que aparecia graças à intercessão de liberdade como gratidão de seus senhores por terem, descoberto
Rosa. Aleluia, aleluia! Santa Borboleta, orapro nobis! quantidade avultada de ouro ou diamantes de bons quilates, as
b Conta a história sagrada que esta terceira pessoa da escravas via de regra obtinham sua liberdade, seja através da
f* Trindade Santíssima, também chamada de Paráclito, apareceu
aos apóstolos como múltiplas línguas de fogo (Atos, 2:3), a Cristo
prestação de serviços sexuais a seus proprietários, ou a clientes
eventuais, seja dedicando-se ao comércio de todo género de
em forma de pomba e, outras vezes, como vento impetuoso. mercadorias de primeira necessidade. Tentando controlar o
Travestido de frenética borboleta, é a primeira vez que tenho descaminho do ouro e pedras preciosas que das mãos dos negros
notícia, embora tal metamorfose não seja completamente con- faiscadores iam diretamente para as bolsas das negras do tabu-
traditória à tradição bíblica, onde o Diabo apareceu a nossos leiro, a Coroa promulgou uma série de bandos reprimindo o
primeiros pais em forma de serpente, uma baleia engoliu o comércio e andanças destas vendedeiras pela área de minera-
profeta Jonas por vários dias e um dragão vermelho de sete ção, da mesma forma como tolheu, através das Visitas Pasto-

150 151
rais, o exercício do comércio venéreo, 'outra fonte significativa há pouco citadas, e a cujos testamentos nos referimos, podemos
de acumulação de capital para muitas negras sequiosas de avaliar o valor de uma escrava adulta oscilando entre 190 e 256
comprar sua liberdade. oitavas de ouro—a variação devendo ser interpretada em função
Algumas tantas escravas recorriam a feitiços a fim, de da idade, aptidões ou habilidades profissionais, por razões im-
acelerar o processo de sua alforria, ou amansar a violência de ponderáveis, como a generosidade do senhor em subestimar o
senhores mais cruéis. Este episódio, ocorrido em Mariana, na preço de sua cativa, etc. Antonil, em sua lista de preços dos
freguesia dos Prados, revela muito a respeito do clima de sorti- escravos e cavalgaduras em Minas Gerais nos inícios deste
légios e feitiçarias dominante nas Gerais naqueles tempos: a mesmo século, indicava por uma negra ladina e cozinheira, 350
mulata Florência e seu irmão Simão; sabendo que seu senhor, oitavas; por um moleque, 120 oitavas, enquanto um boi custava
o alferes Domingos Róis Dantas, pretendia casar-se, enterraram 100, uma galinha ou uma boceta de marmelada 3 ou 4 oitavas.
dentro e fora de sua porta, secretamente, uma panela de feitiços Com a consolidação da economia mineira e maior regularização
"cheia de monstruosidades diabólicas". Passados cinco anos da das comunicações com o litoral, estes preços tenderam a baixar.
mandinga, nada de o alferes conseguir acertar casamento. Des- Uma missa valia de 2 oitavas a 120 réis, custando, em 1744, 20
coberto o feitiço, Florência é chamada à presença de seu senhor, oitavas de ouro a. confecção de uma corrente de ferro com 4
que lhe diz: colares e 4 algemas usados "para irem os presos criminosos que
se achavam na cadeia de São João dei Rei para o Rio de
'"Vem cá, porca feiticeira, para que tu enterraste esta *
porcada aqui em minha porta?' Disse ela: Vossa Mercê há
Janeiro".
Foi em sua primeira visão, em março de 1748, que Rosa •
de casar e eu ficar cativa toda minha vida? Ainda que eu
vá para o inferno, com os mesmos remédios hei de tirar a
recebeu a seguinte ordem divina:
*
vida!' Disse o alferes: Tira-me já isto daqui que eu já vou "se queria seguir a Deus, não se enfeitasse mais, que o
para a Casa [da Câmara] paratepassar a carta de alforria/ seguisse despida... e ela, confundida deste acontecimento,
Tirou a denunciada a panela e os feitiços e foi com ele para distribuiupelas pessoas mais necessitadas o ouro que tinha
ê
lhe passar a carta de alforria e, antes de se pôr o sol, estava e os vestidos de seu uso adquirido tudo pela culpa e ganhado
Florência com sua carta na inão. Tinha 15 para 16 anos. com uma vida lasciva, porque sua senhora não lhe dava
todos os enfeites que ela queria, e por isso os aceitava dos
*
Exercendo durante quinze anos "vida desonesta e mere- sujeitos com que se comunicava, em prémio da sua sensua-
triz", Rosa acumulou certo pecúlio, representado por roupas e lidade."
jóias, conforme declarou em sua confissão. Porque não utilizou
este capital para comprar sua alforria, não nos informa. O mais Já o Padre Antonil chamava a atenção do quanto nas Minas
provável é que fosse mulher gastadeira, que consumisse em as negras se afeiçoavam às jóias, roupas engalanadas e "mil
guloseimas, bugigangas e superfluidades o ouro obtido na alcova bugiarias de França". O cineasta Caca Diegues soube, com
ou pelos morros circundantes do Infíccionado. Quem sabe seus maestria, revelar este aspecto exuberante e espalhafatoso da
encantos fossem limitados, reduzidos os clientes e parcos os negra esposa do Contratador de Diamantes, a legendária Chica
rendimentos? Não deve ter sido a única mulher do fandango das da Silva, que para negar e desforrar-se de sua condição original
Minas que não enricou com o comércio lascivo. de cativa, excedia em luxo e ostentação às próprias brancas, com
Como já dissemos alhures, se tomarmos como parâmetro seus vestidos cheios de fitas e rendas, suas perucas multicolori-
o valor das duas negras minas, Maria do Ó e Maria da Costa, das, jóias em profusão, cadeirinhas e seges almofadadas com

152 153
tecidos de Holanda. O barroco das igrejas tinha sua contrapar- Jóias de Oxiro Valor em Oitavas de Ouro
tida nos figurinos, j óias e toucados dos habitantes endinheirados 61
2 cordões
da suntuosa Minas Gerais, capitania onde, nos meados de seu
primeiro século, todos pareciam repetir as proezas doiradas do l cruz 22
frígio Rei Midas. l anel de filigrana 9
Voltando aos testamentos das duas negras minas há pouco
6 pares de botões filigrana 15
citadas, ambas contemporâneas, quem sabe até conhecidas de
nossabeata, posto terem vivido todas em São Caetano, podemos l Espírito Santo 13
visualizar quão barroco eram os hábitos de consumo, e ostenta- braceletes, corais engravados 32
tórios os pertences destas deusas de ébano. A liberta Maria do
i Ó preferiu investir seu capital em bens imóveis e semoventes: 4 pares de brincos
possuía uma rocinha com rancho, bananal, datas de mineirar, l menino Jesus 5
outro rancho no arraial, uma morada de casas na sede da Total 157
freguesia de São Caetano, 2 cavalos selados, 2 novilhas, 4 tachos
de cobre, 12 escravos, sendo 7 machos. Devia ser um misto de í _
mineiradora e comerciante, pois era dona de "uma venda com Nos dias de festareligiosa, ou, quem sabe, ao receber algum
seus pesos de libra e mais preparos". Tantos tachos de cobre visitante mais ilustre em sua casa, ao qual servia o repasto em
sugerem dedicar-se também ao fabrico de marmeladas, indus- pratos de estanho, colheres de prata e toalhas de linho rendadas,
tria caseira muito comum aquém da Mantiqueira. Maria da Costa usaria ou sua "saia de veludo preto" ou o
Maria da Costa, a outra liberta mina bem-sucedida mate- "conjunto de veludo azul claro", nos pés calçados — privilégio
rialmente, de nação ardra, além de nove escravos e uma casa de dos livres — "um par de fivelas de sapato de prata", pertences
que guardava numa "caixa e baú de moscóvia". Tudo constante
telhas em São Caetano, possuía vários apetrechos domésticos
em seu testamento. Além de "trastes de casa", possuía também
permitindo-nos supor que mantinha uma sofisticada casa de
"toda roupa branca e quatro lençóis de linho" — usados prova-
pasto, ou algo do género, talvez uma das muitas casas de alcouce
velmente em situações especiatíssimas. Maria da Costa morreu
que, além de bebida e comida, ofereciam parceiras a quantos
solteira, deixando seuex-senhor, Belchior da Costa Soares, como
homens quisessem dançar o fandango. Deixou em seu testamen-
seu testamenteiro. Mandou celebrar 2 mil missas na cidade do
to um tacho de cobre de 14 libras, 6 pratos de estanho, 7 colheres
Porto, confiando, certamente, que no Reino tal liturgia ser-lhe-ia
de prata, um garfo, 6 toalhas de renda e 3 de linho. Esta africana
*
€ vivia com muita gala, e seu negro corpo era insuficiente para
mais eficaz. Devia sentir-se muito culpada para investir tanto
no descanso de sua alma: que descanse em paz! Requiescat in
carregar todas as suas jóias de ouro, compradas só Deus sabe
com que meios. Eis sua colecão de enfeites corporais: pace.
Tudo nos leva a crer que Rosa acumulou bem menor
quantidade de roupas e jóias do que sua contemporânea Maria
da Costa, cujo montante de seu ouro, 157 oitavas, não seria
suficiente sequer para comprar sua alforria, avaliada em 190
t oitavas. Apesar de todos seus bens terem provavelmente valor
inferior à sua raanumissão, Rosa teria podido utilizá-los como
é
154 155
parte do pagamento, ou guardado o ouro até completar o mon- físico em que ficou após os açoites, "quase morta" e com incurável
tante. Preferiu contudo seguir o conselho divino, mesmo deso- semiparalisia em seu lado direito. Temendo sua morte, talvez
bedecendo a seu padre confessor que, ouvindo seu relato, 'lhe Dona Ana tenha considerado mais seguro vender Rosa por um
disse que deitasse fora semelhantes visões". terço de seu valor, do que vir a perder todo seu capital. Foi
Passados alguns meses, talvez um ano, após seu gesto portanto um bom negócio para vendedores e compradores; me-
magnânimo, Rosa começa a investir de novo em sua libertação, lhor ainda para a cativa africana, que, após 25 anos de escravi-
só que agora utilizando estratégia mais virtuosa e tendo objeti- . dão, recupera sua liberdade. Liberdade relativa, diga-se a bem
vos também cristãos. Como emMariana e seus arredores "o povo da verdade, pois o que ocorreu foi uma troca de proprietários:
a perseguia chamando-a feiticeira", foi à procura de seuprotetor Dona Ana Durão recebeu o moleque e entregou Rosa ao Padre
no Rio das Mortes, "para que este a favorecesse e lhe tirasse Francisco e Sr. Arvelos, que a partir de então serão os proprie-
esmolas para se forrar". tários da negra courana. Tanto que nos dois processos, no do
"Por caridade" ou "por amor de Deus" são expressões que Padre e no da espiritada, Rosa é referida como "escrava que foi
frequentemente aparecem como justificativas da concessão da de Pedro Róis Arvelos e dele a comprou o Padre Francisco
liberdade nas cartas de alforria e há muitos exemplos de escravos "•' Gonçalves Lopes". Só alguns anos mais tarde, quando a courana
que conseguiram comover seus contemporâneos filantropos que transformou-se em Madre no Recolhimento de Nossa Senhora
individualmente ou em grupo dão alforria a seus protegidos. • do Parto, é que recebeu em mãos sua carta de alforria.
Apesar de continuar escrava, após ter sido comprada pelo
"E vendo o dito Padre Francisco e outras pessoas o seu devoto Arvelos, Rosa gozará de toda regalia como se fosse
vexame que o Espírito Maligno fazia a ela, entraram por livre. Era liberta de fato. Tanto que no Rio das Mortes "nesse
caridade a falar à dita sua Dona Ana para a libertar, o que tempo passava ela com o comer que o Padre lhe dava".
ela não quis, só dando-lhe pela liberdade da depoente um É nesta época, provavelmente retornando à fazenda dos
escravo, com o que entrou o Padre Francisco e Pedro Arvelos, que Rosa arquiteta seu plano de voltar ao Rio de Janeiro:
Rodrigues Arvelos a pedir suas esmolas e concorreram
também com as suas para comprarem um escravo que "pedindo ao Padre que não a desamparasse, porque sem a
deram à dita Dona Aha e liberou-a ela, depoente." sua companhia passaria as maiores necessidades e arris-
caria a salvação de sua alma, e que f azia um grande serviço
Noutra ocasião diz-nos Rosa que foi trocada por um mole- a Deus se a levasse para o Rio de Janeiro, onde acharia
que — o que permite-nos inferir que não tinha muito valor aos alívio para seus trabalhos, porque naquela cidade havia
olhos de sua proprietária, posto que Antonil dizia que uma negra pessoas doutas e religiosas que melhor poderiam conhecer
ladina valia três vezes mais do que ura moleque. Ou então, quem a verdade de seu espírito, pois nas Minas não poderia viver
sabe, Dona Ana subavaliara a negra espiritada também "por porque j á a tinham por velhaca e fingida." (Velhaca: pessoa
caridade", facilitando assim a emancipação dabeata. Diz o Padre enganadora, esperta, traiçoeira, patife, lasciva e devassa.)
Francisco que nesta empreitada contou com o auxílio de um tal
António deBarros, cidadão cuja identidade não é revelada neste Rosa viverano Rio de Janeiro dos 6 aos 14 anos, entre 1725
processo inquisitória!. Também não se declara com precisão em e 1733. Agora, com'32 anos, que lembranças teria conservado
que ano Rosa foi alforriada. Tudo nos leva a crer que fora da "cidade maravilhosa"? Passados 18 anos nas Gerais em sua
"liberada" após ter sido flagelada no pelourinho, e talvez seu época de maior pujança aurífera, o que teria levado esta africana
baixo preço tenha explicação exatamente pelo deplorável estado a desejar abandonar as Minas? Tudo nos leva a crer que a beata

is.
156, 157
espiritada e seu confessor buscaram o litoral a fim de escaparem 7. ANTT, IL, Processo n2 423 (1734).
do cerco policialesco das autoridades religiosas, atentas e preo- 8. Guillois, Abade Ambrósio, Explicação Histórica, Dogmática, Moral,
cupadas que estavam com os desatinos e estripulias que o Litúrgica e Canónica do Catecismo. Porto: Livraria Internacional,
Xota-Diabos e seus energúmenos andavam praticando pelas 1878, 444.'
9. Arquivo da Cúria de Mariana, Livro de Óbitos de São Caetano e
comarcas do Rio das Mortes e de Vila Rica. Esta ilação é
Inficcionado, U-32 (1750-1791),
confirmada pelo testemunho do Padre Filipe de Sousa, então 10. Keckeisen, D. Beda. Missal Quotidiano. Salvador: Editora do
morador na freguesia de São João dei Rei, que perante o Juízo Mosteiro de São Bento, 1954, p. 244.
Eclesiástico fluminense declarou: "capacitando-se o Padre Fran- 11. Leal, Juan. Ano Cristiano. Madri: Editora Excelsior, 1946, p. 572;
cisco que queriam tirar devassa contra o procedimento de Rosa, Lorenzato, José. Op. cit., 1979, pp. 193-199.
fugiram, das Minas para o Rio de Janeiro". Devassas que pode- 12. Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro:
riam ser acionadas tanto pelo bispo, quanto por ordem dos Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 93, v.
inquisidores, mas que na verdade nunca chegaram a consumar- 147, 1923, p. 225.
se, posto inexistir no Arquivo de Mariana qualquer documento 13. Feitosa, António. Falta um Defensor para o Padre Cícero. SãoPaulo:
relativo à nossa espiritada. Loyola, 1983.
14. Machado, Simão Ferreira. Triunfo Eucarístico. Exemplar da Cris-
Em São João dei Rei, encruzilhada do Caminho Novo onde
tandade Lusitana (l 734). In: Ávila, Affonso, Op. cit.
obrigatoriamente vinham passar milhares de andarilhos e via- IS.Boschi, Caio César. Os Leigos e o Poder. Irmandades Leigas e
geiros provenientes do litoral, as notícias da capitania vizinha Política Colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.
deviam chegar diariamente, de modo que o Xota-Diabos e sua 16. Couto, P. M. J. G. Op. cit., 1884, p. 116.
dirigida mantinham-se bem atualizados sobre a situação sócio- 17. ANTT, Caderno dos Solicitantes n2 1.221 (10-7-1762).
econômica do bispado limítrofe. O Sr. Arvelos, ele próprio, tinha 18. Cintra, S. O. Op. cit., 1982, p. 179.
algumas pendências judiciárias no foro do Rio de Janeiro, e tanto 19. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo ns 11.767.
ele quanto seu compadre sacerdote contavam com amigos lá 20. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 4.684 (1757-1761).
residentes que poderiam albergá-los nos primeiros dias, como ^21.,ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 1.078 (1762).
de fato sucedeu. 22. Imirizaldu, Jesus. Monjas y Beatas Embaucadoras. Madri: Editora
Nacional, 1977, p. 33.
23. Costa, Iraci dei Nero: A Presença do Elemento Forro no Conjunto
dos Proprietários de Escravos. Ciência e Cultura, 1982, n. 7, pp.
•- l 836-841.
Notas 24. Bussel Wood, A. Op. cit., 1982, p. 111.
25,, Mattoso, KatiaM. Q. Op. cit., 1982, p. 185; Costa, Iraci N. Op, cit.,
— -1978, p. 7.
1. Trindade, Raimundo. Op. cit., 1953, -26. Mott, Luiz, Subsídios à História do Pequeno Comércio no Brasil,
2. Lorenzatto, José. Op. cit. 1979, p. 119. Revista de História, v. 53, 1976, pp. 81-106.
3. Garigou-Lagrange. Op. cit., 1938, pp. 806-811. 27. ANTT, Caderno do Promotor na 130, 12 maio 1773.
4. Lorenzatto, José. Op. cit., 1979, p. 14. '28~ Antonil, J. A. Op. cit., 1972, p. 269.
5. Mury, Paul. Histoire de Gabriel Malagrida. Paris: Charles Douniol 29. Cintra, S. O. Op. cit., 1982, p. 271.
Editeur, 1865. 30. Mattoso, K. M. Q. Op. cit., 1982, p. 197; Expilly, Charles. Mulheres
6. DeÁvila, Teresa, Castelo Interior ou Moradas, Cotia: Editora Paulus, e Costumes do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1981, p. 135. " 1977.

158 159

r
- 7

Mudança de Nome:
Rosa Maria Egipcíaca, da Vera Cruz

Nos inícios de 1751 nossa biografada vai dar novo rumo à


sua negra vida:

<-" "dispondo-se para fazer a jornada para o Rio de Janeiro


;-; com o Padre Francisco Gonçalves Lopes, seu senhor, em
•• uma noite que estava dormindo, acordou-a uma voz que
- dizia: 'Segue-me!' E logo tornou a ouvir: 'ROSA MARIA
•• EGIPCÍACA DA VEEAJ3RUZ é o teu nome, segúe-me!' Coro.
o que ficou ela muito rendida, porque a dita voz saía do
Cristo Crucificado."
Esta alteração de nome merece toda nossa atenção, não só
pelo que representa simbolicamente, mas também, em seu sig-
nificado como estr atagema com vistas à^o_nstrugâoj.eiiunia nov.a
identidade. Chegando em terra desconhecida com nome diferen-
O
te^ j5eiiajniuafáçâljis_cjmde^ ou eclesiástica. o
Adotando nome tão pomposo e esdrúxulo, a africana certamente
confiava no poder mágico deste seu novo onomástico — quem
e
sabe um resquício da tradição de seus ancestrais nigerianos
cujos nomes rituais são sentenças ou augúrios revelados no dia
ã- do orukó, o dia do nome. Apresentando-se como Rosa Maria
í
Egipcíaca da Vera Cruz — quem estava até então acostumada
l Í a ser chamada simplesmente Rosa, ou Rosa Courana, ou ainda,
Rosa, escrava de Dona Ana, certamente contava causar viva
impressão nos interlocutores que jamais teriam se deparado com
uma negra tão importante, daí esperar que com a grandiloqúên-
cia de seupatronímico todos osespaços eportas abrir-se-lhe-iam,
sobr.e_tu.do-entra_"as^pess_Q_as doutas e religiosas que melhor
poderiam conhecer a verdade de seu Espírito".

161
Mudando seu nome, Rosa insere-se de cheio na tradição Foi contudo nas ordens religiosas femininas que mais se
judaico-cristã, na qual diversos personagens bíblicos e santos cultuou a adoção de longos sobrenomes de inspiração devota.
católicos praticaram, o mesmo ritual iniciático, muitas vezes Eis quatro exemplos retirados de algumas freiras escritoras de
seguindo determinação celestial., significando sempre a meta- livros piedosos, todas contemporâneas de Rosa, em mosteiros de
nóia — a mudança de vida, tal qual bem a descreve o Apóstolo Portugal: Soror Arcângela Maria da Assunção, Soror Josefa
J dos Gentios. Abrão se transforma em Abraão, Jacó em Israel, Maria da Madre de Deus, Soror Josef a Teres a do Monte Carmelo,
P Simáo em Pedro, Saulo em Paulo. Os Papas ainda hoje adotam Soror Maria Micaela do Santíssimo Sacramento. Nossa negra
o mesmo ritual: nos anos em que viveu Rosa, verbi gratia, o courana é areligiosa que ostentou o maior nome de que até agora
Cardeal Próspero Lambertini foi coroado com o nome de Bento tenho notícia: cinco apelativos — Rosa Maria Egipcíaca da Vera
XT7 (1740-1758), sendo substituído por Cai-lo Rezzonico, que na Cruz. Só mesmo às famílias reais permitia-se' tamanha prolixi-
Sede Pontifícia chamou-se ClementeXIII (1758-1769). Também dade onomástica, considerando que boa parte dos mortais de
nas ordens religiosas havia igual costume: na tomada de hábito, língua portuguesa, pertencentes às camadas mais humildes da
os noviços recebiam novo nome. Eu próprio, em 1963, quando sociedade, não possuía sequer um nome de família, só o primeiro
recebi a batina branca da Ordem de São Domingos, tive meu e único nome. Com as cabeças coroadas, contudo, a regra era
nome batismal Luiz mudado para "Frei Paulino". exagerar: Dona Maria I, contemporânea de Rosa, e como a
Nomen est omnenjá. dizia Cícero. CMaojpie_é-Q_de&t-iso ou africana, devotíssima dos Sagrados Corações, recebeu na pia
f augúrio^ da pessoa que o porta, e todas essas alterações de batismal oito nomes: Maria Francisca Isabel Josefa Antonia
&
"5 oiioiaásticj3_acrnia-descr-itas-queEern-.sirabolizar-.a mudança de Gertrudes Rita Joana; o povo porém preferiu chamá-la, simples-
£
destino com que os convertidos, noviços, papas e santos quiseram mente, e com razão, Maria, a Louca. Seu neto, nosso Dom Pedro
marcar suas "vidas, "enterrando o velho homem", como escreveu I, foi o campeão dos supernomeados: teve 16 nomes, enquanto
o fariseu convertido em apóstolo das gentes, Saulo-Paulo. Mu- Pedro II foi batizado apenas com 14.
dança e augúrio.._ap mesmo tempo vaticínio de nova conversão Algumas santas igualmente mudaram de nome por deter-
no caminho estreito da salvação. -minação divina: a xará de nossa espiritada, Santa Rosa de Lima
Alguns religiosos e religiosas mantinham o prenonife, mas (1586-1617), a primeira santa a ser canonizada nas Américas,
se lhes incorporava n m sobrenome retirado da história sagrada, na pia foi chamada Isabel de Flores y dei Oliva, mas, por ordem
da teologia ou da liturgia católica. Exemplifico com alguns expressa de Nosso Senhor e confirmação de Nossa Senhora,
franciscanos da Província do Rio de Janeiro, do mesmo convento passou a apresentar-se como Rosa de SantaMaria. Outrafreira
onde Rosa receberá orientação espiritual, e que se destacaram santa, Ana Maria Redi, carmelita descalça de Florença, contem-
pelas virtudes ou pelos dotes literários:.Frei Agostinho da Con- porânea de Rosa, numa visão ocorrida em 1765 recebeu seunome
ceição, Frei Caetano de Belém, Frei Cristóvão de Jesus Maria, "iniciático, Soror Teres a Margarida do Coração de Jesus, servin-
Frei Inácio de SantaRosa, FreiManuel do Desterro, Frei Miguel do-lhe este como programa de vida claustral, posto ser grande
de São Francisco, Frei Patrício de Santa Maria, etc. Os bispos devota e propagandista dos Sagrados Corações.
que Rosa teve a ventura —_ e desventura — de encontrar A adoção por parte de Rosa de nome tão pomposo e inusi-
pessoalmente também herdaram a mesma tradição conventual tado coloca-nos alguns problemas de história religiosa que nos
dos sobrenomes sacros ou hagiográficos: Dom Frei Manuel da transportam às areias davPalestina há mil e quinhentos anos
Cruz e Dom Frei António do Desterro; o primeiro, religioso da passados, época em que viveu sua nova padroeira, SantaMaria,
Ordem Cisterciense, o segundo, beneditino. Egipcíaca.

í 162 163
.•II *

Atribui-se a São Sofrônio (560-638), bispo de Damasco, a trouxe endureceram e me bastaram até o dia de hoje. Os
autoria da primeira biografia desta santa, que na versão da . • meus vestidos caíram em frangalhos e, durante os dezes-
Legenda Áurea, de Frei Jacob Verogine, dominicano (1260), . sete primeiros anos de minha vida solitária, tive de sofrer
reproduz sua vida através de palavras da própria biografada. - as tentações da carne, mas com a divina graça foram todas
Eis como Maria Egipcíaca narrou sua história: v. vencidas. Até aqui narrei a minha história."

"Nasci no Egito, e nos meus 12 anos, dirigi-me para Foi, portanto, após quarenta e sete anos de solitária peni-
Alexandria onde durante 17 anos me entreguei à pública tência da santa, no deserto palestino, que a Divina Providência
depravação, e a toda a gente -me prestava. E como alguns mandou Zózimo, eremita do Mosteiro de São João Batista, para
homens dessaterra se preparavam para fazerem a viagem as margens do Jordão. Ao santo monge, Maria Egipcíaca pareceu
de Jerusalém para irem adorar a Vera Cruz, eu pedi aos •uma visão diabólica: estava nua dos pés à cabeça, escondendo
marinheiros que os transportavam para me deixarem ir parte de seu enegrecido corpo queimado pelo sol, com sua branca
com eles. Quando me exigiram o frete da passagem, logo cabeleira de anciã de 76 anos de idade. Assustadíssimo, pensan-
lhes disse: 'Irmãos, nada tenho que vos dar, mas aqui está do sempre tratar-se de um dos diabos que tentara Cristo nestes
o meu corpo para pagamento da minha passagem.' Nestas mesmos desertos, Zózimo enfrentou a criatura, que, ao vê-lo,
condições me levaram e dispuseram-se do meu corpo para fugiu apavorada, e só após prolongadaperseguição e insistência,
se pagarem. Chegamos todos a Jerusalém e tendo-me dispôs-se a abrir seu coração e contar-lhe a história que acaba-
apresentado comessagente às portas daigrejapara adorar mos de transcrever. No final do relato, Zózimo não conteve as
a Vera Cruz, eu senti-me repelida por uma força invisível. lágrimas, emocionado e maravilhado com tão exemplar arrepen-
Tornei-me muitas vezes, debalde, até às portas da igreja, dimento. Acertaram outro colóquio para o próximo ano, para a
e sempre me sentia retida, ao passo que os demais entra- véspera da Quinta-feira Santa, dia da Instituição da Sagrada
vam desembaraçados. Então recolhi-me em mim mesma, Eucaristia, comprometendo-se o monge a ministrar-lhe a santa
e pensei que meus numerosos e imundos pecados eram a comunhão. Retira-se a anacoreta para o deserto, atravessando
causa de minha repulsão. Comecei a suspirar intimamen- duas vezes as águas do rio Jordão sem molhar os pés, por cima
te, a soltar lágrimas amargas e a castigai- o meu corpo com da torrente, repetindo o mesmo milagre de Jesus no Lago
as próprias mãos. Ao: reparar no ádito eu vi uma imagem Tiberíades, situado a poucos, dias de caminhada deste local.
da Bem-aventurada Maria Virgem e comecei então a ro- Passado o ano, Padre Zózimo volta ao mesmo lugar, encontrando
gar-lhe humildemente que meus pecados perdoasse e me a penitente que, com muita piedade e alabanças, recebe o Pão
permitisse entrarpara adorai- asanta cruz, e eulhe prometi dos Anjos. Marcam um terceiro encontro na próxima Semana
abandonar o mundo e para o futuro fazer voto de castidade. Santa. Retornando ao local aprazado, Zózimo vê um clarão —
Possuída de confiançana Virgem. Bendita, entrei desta vez era o corpo de Egipcíaca já sem vida. Querendo enterrá-la entre
sem obstáculo na igreja. Depois de ter adorado bem devo- lágrimas de tristeza, eis que vê surgir um leão ferocíssimo ao
tamente a Santa Cruz, um homem me deu três dinheiros, qual disse: "Esta santa me encarregou de a sepultar e eu não
com que comprei três pães. Ouvi então uma voz que me posso cavar a terra porque sou velho e não tenho aprestos. Cava
dizia: 'Se transpuseres o rio Jordão, tu serás salva.' Atra- pois a terra com as unhas, para que possamos sepultar o santo
vessei então o Jordão e vimpara este deserto, onde durante corpo." E o. leão começou desde logo a cavar e fez uma cova
quarenta e sete anos não vi viva alma; os três pães que suficiente, depois foi-se .embora, manso .como um cordeiro, e

164 165
Zózimo voltou para seu mosteiro glorificando a Deus. (Os leões hagiografia legendária com poucas chances de comprovação
gostavam particularmente dos eremitas antigamente: São Je- histórica. Santa Taís nem sequer chegou a ter seu nome incluído
rônimo [342-420] sempre é retratado com um leão ao lado, que no Martirológio Romano, e várias delas foram "cassadas" na
ficou seu bichinho de estimação em gratidão por ter-lhe arran- reformado calendário litúrgico empreendidopor Paulo VI. Prova
cado um espinho numa das patas. Desde qu.e o profeta Daniel da nebulosidade da vida de Santa Maria Egipcíãca é que não se
saiu incólume da cova dos leões, onde "um anjo de Deus fechou têm certeza nem em que século teria vivido: o dominicano
a boca destes animais e não lhe fizeram mal algum." [Daniel, Verogine diz que a santa penitente chegou ao deserto no ano de
6:23], o rei dos animais ficou submisso aos protegidos do Rei dos 280, sob o governo do Imperador Cláxidio; os eglandistas, aqueles
Reis.) incansáveis estudiosos jesuítas que a partir do século XVII se
Além das Marias de Magdala e do Egito, outras meretrizes propuseram como tarefarever e depurar a vida de todos os santos
arrependidas mereceram a devoção popular e a glória dos altares católicos, afirmaram ter sido em 421 o ano de sua morte — data
nos primeiros séculos do Cristianismo. A partir do século IV, o que o jesuíta Vizmanos contesta; para o escritor Cirilo de Esci-
símbolo de todas as "etairas"foa. Santa Taís> bela cortesã da Síria: tópolis, Egipcíãca foi levada aos céus por dois anjos no reinado
convertida pelo anacoreta Pafúncio dentro de seu próprio bordel, de Justino, em 520, sendo esta a versão aceita pelo Martirológio
ficou tão perturbada com a luz de Cristo que, em praça publica, Romano, que afestejano dia2 de abril, enquanto algreja oriental
queimou toda sua vil riqueza, passando o resto de sua vida em transfere sua comemoração para 9 do mesmo mês.
penitência, presa num cubículo. Outras beatas purgaram com Que caminhos teria seguido a lenda de Santa Maria Egip-
áspero ascetismo os desvarios de sua lasciva mocidade: Santa cíãca desde a Palestina até chegar às Minas Gerais, levando a
VPelágia da Síria,^bailarina das mais famosas do Oriente (devia negra Rosa a adotar-lhe o nome como patrona e sua vida como
ser exmá-a-narinterpretação da dança do ventre), arrependida, paradigma?
recebe o batismo em Jerusalém, distribui todas as suas jóias aos Desde o século VIjá se venera o túmulo desta santa "etaira",
pobres, traveste-se de homem, mud a o nome p ar a P el ágio epassa situado a, aproximadamente, 20 dias de caminhada do Rio
o resto de sua vida numa gruta no Monte das Oliveiras, até que Jordão deserto adentro, e São Sofrônio, monge no Egito e Pales-
ao morrer descobrem que o piedoso ermitão era mulher. Uma tina, depois Patriarca de Jerusalém, foi quem no século VII
versão sacra do mito de Diadorim, perpetuada por outras dan- primeiro escreveu-lhe a biografia, Vita Mariae Aegyptiae, circu-
çarinas convertidas em Santas: Marina, Margarida, Eufrosina lando pela cristandade em. versão latina e grega. Tanto quanto
e Eugenia, todas referidas no Dicionário dos Santos, de Donald Madalena, a penitente copta gozou de muita popularidade na
Attwater. Idade Média, penetrando profundamente no folclore cristão. Em
Santa Teoctista de Paros teve vida tão semelhante à de 1260 já corria pela Europa Ocidental a citada Legenda Áurea,
Maria Egipcíãca, que, segundo o jesuíta Francisco Vizmanos, sendo no século XIII o apogeu de sua devoção e divulgação. Na
autor da monografia Los Virgenes Cristianas de Ia Iglesia França, além do livro de Frei Jacob Voragine, O.P., foi composto
Primitiva, especialista nas pecadoras penitentes, "o anedotário um poema sacro a ela consagrado, assinado por Hildebert de
de sua vida se reduzia a um plágio literal, mudando-se táo-so- Lavardin; na Inglaterra, o bispo de Lincoln, Robert Grosseteste
mente certas circunstâncias de colorido local". Aliás, este pa- dedica-lhe outro poema, enquanto na Espanha aparece La Vida
dre-historiador é bastante realista ao salientar que todas as de Santa Maria Egipcíãca, o mais longo destes poemas religio-
vidas destas santas pecadoras foram "profusamente adornadas sos, com 1.451 versos, conservado no Arquivo do Escoriai, uma
pela fantasia novelesca", tratando-se na maioria dos casos de peça crucial no estudo da formação da língua castelhana. Em

166 167
Portugal já existia, a partir do século XTV, importante manus- Zózimo: jamais se viu uma mulher tão feiosa quanto a velha
crito — "Vida de Maria Egípcia" —, guardado na antiga biblio- penitente! Alguns pintores renascentistas tomaram-na igual-
teca do Mosteiro de Alcobaça, da Ordem Cisterciense, a mais mente como inspiração artística: Lorenzo de Credi, Tintoreto e
poderosa abadia de Portugal e onde funcionou a primeira escola Ribera, todos dando primeira plana à exuberante cabeleira da
pública do Reino.7 No século seguinte, Francisco Sá e Miranda ex-mulher pública.
(1495-1558), autor de importantes comédias e modernizador de ,.„:':• Suas supostas relíquias foram veneradas em templos de
nossa língua mater, compõe o poema AEgipcíaca S anta-Maria, Edma, Nápoles, Cremona e na Igreja de São Salvador de An-
conservado inédito até o século XIX quando Teófílo Braga o tuérpia. Não encontrei seu nome em nenhuma vila, capela ou,
trouxe à luz. No século XVII um companheiro de Santo Inácio freguesia de Portugal ou do Brasil, embora fosse a protetora da
de Loiola, o Padre Pedro de Ribadaneixa (1526-1611), escreve Irmandade da Guarda Real de Lisboa. Também na Espanha,
História das Vidas de Santa Maria Egipcíaca, Santa Taís e segundo o autor do livro Santoral Diabólico, não se conhece
Santa Teodora, cuja primeira edição em Portugal, traduzida nenhum povoado ou localidade que a tenha como patrona. Em
pelo oratoriano Diogo Vaz Carrilho, é de 1673, recebendo diver- Cachoeira, a segunda mais importante cidade histórica da Ba-
sas edições ao longo do século XVIII. Foi este folhetim, cujas 'hia,'junto ao altar-mor da Igreja da Ordem Terceira do Carmo,
primeiras 12 páginas são dedicadas à penitente do Jordão, que - - localizei um belíssimo quadro onde se lê: "Santa Maria Egipcía-
mais divulgou sua devoção na Lusitânia, trazendo estampada, _ ca."/com a figura de simpática jovem branca, pele cor-de-rosa,
na capa uma bela xilogravura na qual abundante cabeleira longa cabeleira castanho-claro, mostrando exuberantes seios
cobre, como urna túnica, o corpo desnudo da santa. _ - que mais evocam uma bela amazona de Rubens do que a
Além desta versão renascentista, a Biblioteca Lusitana, o -. - horripilante penitente pele-e-osso vista pelo eremita Zózimo e
principal guia da antiga literatura portuguesa, arrolamais duas realisticamente pintada pelo Mestre de Tebaida. Seios à mostra
vidas de Santa Egipcíaca escritas em nossa língua, de autoria nunca escandalizaram mesmo os mais piegas moralistas luso-
de Frei Eloi Ferreira e Frei Hilário de Lourinhã, ambos cister- _ brasileiros, sendo motivo de escárnio, por parte dos viajantes
cienses moradores no RealMosteiro de Alcobaça, provavelmente -^-^-estrangeiros, o pudor com que nossas donzelas e matronas
revisões setecentistas do manuscrito do século XTV. escondiam os tornozelos, mas deixavam bem à mostra, com
Quanto às representações iconográficas e estatutárias des- decotes ousadíssimos, parte de seus rechonchudos bustos. Afi-
ta penitente, por mais .que tenhamos pesquisado, dispomos de nal, se até a Virgem Maria, invocada sob o título de Nossa
pouquíssimas imagens e estampas a ela consagradas. Nariquís- . "Senhora do Leite, deixava à mostra seus sacratíssimos peitos,
sima "Coleção de Registros de Santos" da Biblioteca Nacional quando aleitava o Divino Infante, por que esconder o que Deus
de Lisboa só encontrei duas reproduções; na coleção da nossa -"não teve vergonha de em público mamar?
Biblioteca Nacional, organizada por Augusto Lima Jr., nenhum --= .. - Tive vaga notícia de que haveria uma imagem desta santa
santinho da anacoreta. Até hoje só vi uma imagem da santa: 1Z no Museu dos Aflitos, na cidade de Santo Amaro da Purificação.
uma escultura em madeira, de 60cm, do século XVIII, conser- Consultando dois especialistas em história do catolicismo bra-
vada no Museu da Ordem Terceira do Carmo de Salvador. „. sileiro, os professores Pedro Moacir Maia e Cândido da Costa e
Datam, contudo, do século XIII os belos vitrais de Bourges Silva, da Universidade Federal da Bahia, nenhum recordava-se
e Auxerre, onde a penitente é estampada em pose de oração; _ de ter visto sequer uma representação desta santa nó Brasil;
para o século XTV dispomos pelo menos da pintura do Mestre de apenas o último referiu-se a uma pintura cusquena vendida na
Tebaida, que retrata-a recebendo a comunhão das mãos de Bahia, por ele identificada como da santa copta. Nas Minas

168 169
Gerais, pesquisando inúmeras igrejas è museus, nada encontrei das vidas de outras penitentes orientais: como Madalena, tam-
desta penitente. bém a ex-escrava de Dona Ana foi possuída por sete demónios,
Não resta dúvida de que, apesar de o nome de Maria e como Taís, abrasada pelo amor de Deus, tomou a generosa
i Egipcíaca constar no calendário litúrgico, nunca teve grande resolução de desfazer-se "de tudo quanto tinha granjeado em
devoção no mundo luso-brasileiro, sendo Maria Madalena a seu torpe ofício", bens que foram avaliados em 300 libras de ouro,
preferida e quase exclusiva patrona das pecadoras arrependidas encerrando-se Santa Taís então nummosteiro de freiras. Tudo
presente no imaginário de nossos antepassados. Até a simples nos leva a crer que tais analogias, ou a maior parte delas ao
pronunciação do nome Egipcíaca constitui dificuldade para pes- menos, foram moldadas expostfacto, numa tenta.tiva inteligente
soas menos letradas, tanto que a própria Rosa assinava "Egy- de sacralizar pelo decalque a vida da espiritada na biografia das
ciaca", sem podermos afirmar se pronunciava seu nome com o santas penitentes. A inclusão em seu passado de trechos das
acento no "i" ou no primeiro "a", pois, embora o correto fosse a vidas de outras bem-aventuradas, como Taís e Madalena, revela
primeira forma, não é de todo improvável que preferisse a que o sincretismo hagiográfico, já nessa época, fazia parte da
segunda, "Egiciáca", tal qual ainda hoje ocorre na Bahia, por estratégia da ex-escrava para convencer as pessoas mais próxi-
exemplo, com o nome'Ciríaco, que popularmente é pronunciado mas da excelência e predestinação de sua santidade. No Rio de
^ "Ciriáco". Janeiro, conforme veremos a seguir, tal mecanismo será fre-
Confrontando a biografia da santa com a de Rosa, encon- quentemente acionado, aliás, como fartamente fizeram vários
' tramos entre ambas tantas recorrências e similitudes que pode- dos santos que hoje estão nos altares.
/ mós afirmar sem medo de erro que a negra courana conhecia Alguns versos do poema A Egipcíaca Santa Maria, de Sá
' ., perfeitamente a história de sua padroeira, e tal qual já aconte- e Miranda (século XVI), parecem ter sido encomendados para
cera com Santa Teoctista de Paros, no século X, cujo anedotário descrever aspectos da vida de nossa negra: a perda de sua
se reduzia a um plágio literal davidadapenitente copta, também virgindade, a devassidão de seus costumes, suas vaidades e
Rosa moldou^aripossu sua autobiografia à de sua patrona. Eiá piedosa, conversão ajoelhada aos pés do Padre Zózimo.
as principais semelhanças entre a vida de Rosa Maria Egipcíaca
da Vera Cruz com a de Santa Maria Egipcíaca: ambas nasceram Farei que da Egipcíaca bela
na África; entre 12 e 14 anos perderam a virgindade; viveram Leiam honradas e erradas
longos anos como mulheres públicas; sentiram as duas a mesma Que tomando exemplo nela
força sobrenatural que as impedia de entrar na casa de Deus; t, Sejam, para o céu guindadas
no momento da conversão fazem voto de castidade abandonando l Guiadas por esta estrela
a vida sensual; ambas manifestam grande devoção à Sagrada \a e aos ministros do altar. Outros detalhes reforçam \s similitudes entre a vida destas ma
De doze anos pouco mais
Idade inda tenra e verde
Engolfada em vícios tais
voltadas,,a.santa,.para_o. Oriente, a courana, para o Morro do Perdeu o que se se perde
Fraga; as duas foram agraciadas com visões de Maria Virgem J Nunca se cobrará mais
entremeadas de tentações do demónio; ambas abandonaram
suas roupas e enfeites para, despojadas, seguirem o Divino Não há canto que não a veja
Esposo. Dois detalhes da biografia de Rosa foram apropriados Não há homem que a não fale

170 171
Tudo quanto vê deseja • Já não era tão presado
Se lhe mandam que se cale Por se presar de sensual
Fala importuna e sobeja
B ate-lhe a enfermidade
Passatempos e deleites Às portas do coração
Busca para recrear-se Toca-lhe a necessidade
Jóias mil para enfeitar-se Ela a todos diz que não
Que quer com estes enfeites Senão à sensualidade
Fazer dos homens amar-se
No coração Deus lhe toca
Músicas, danças, saraus Lá do céu com sua mão
Tratar de noite de amores Que em toque desta feição
Favores e desfavores Faz que manifeste a boca
Se ela tinha vícios maus Que está aberto o coração
Isto lh'os fazia piores
Aberto desta mulher
' Era tão livre e devassa Aquele coração puro
Naquele vício infernal Acerta os olhos erguer
Que um só aceno a trespassa E vê o retrato puro
E com graça e liberal De quem Jesus quis nascer
A muitos^ se dá de gr aça
Como não se determina
Assim passa a triste vida Do que há de fazer não sabe
Quem teve tão triste sorte Quer a vontade divina
Porque a alma mais perdida Que uma voz serena e grave
E a que vive esquecida O que há de fazer lhe ensina
Do juízo, inferno e morte
E já que ofendeis aos céus
Mas se nos primeiros anos Com tão duro coração
Mundanos a perseguiam Peco-vos, padre e irmão
Depois que os anos corriam Que com a bênção de Deus
Ela seguia aos mundanos Me deite a vossa bênção...
Por que eles a não seguiam
Três são nossas hipóteses explicativas de como Rosa, es-
Como o viver estragado crava analfabeta, chegou ao conhecimento da biografia e conse-
Estraga o corpo mortal quente adoção de Santa Egipcíaca como sua estrela guia e irmã
Este fermoso animal gémea na vida espiritual:

172 173
i
. Através de informações pias prestadas pelo Padre Fran- madre regente; Santo. Antão, Santa Pelágia, etc. Não deixa de
cisco Gonçalves Lopes, seu primeiro confessor, o qual, perante ser sintomático, como disse há pouco, que as duas únicas repre-
os inquisidores, declarou ser homem de poucas luzes e reduzidos sentações por mim encontradas de Santa Egipcíaca estivessem
estudos teológicos, mal e mal conhecendo "seuBreviário e o Livro exàtamente em templos da Ordem do Carmo, a meu ver, a
dos Santos e seus Milagres". Certamente estava referindo-se ao principal divulgadora de sua devoção, ao menos no mundo
t Mós Sanctorum, a principal coletânea da. vida de santos, obra ibero-americano. Daí ser plausível que Rosa tenha conhecido,

£»*
que, segundo o bibliófilo Inocêncio Silva, teve oito edições em
língua portuguesa entre 1513 e 1741, e que reproduz a vida de
através dos frades carmelitanos, ávida de sua santa inspiradora.
" Chegados aoBrasilem 1580, nosfinais do séculoXVIIjáexistiam
Santa Maria Egipcíaca no dia 2 de abril. Aluno dos carmelitas aqui 246 religiosos desta ordem mariana, distribuindo-se em 12
em Braga, Padre Francisco talvez tenha tomado conhecimento casas professas. Nas Minas, embora fosse proibida a ereção de
da biografia desta santa através destes religiosos, grandes conventos, os religiosos sempre percorreram toda a região,
devotos da eremita do Jordão; dando assistência às numerosas irmandades e ordens terceiras,
, Através de Dom Frei Manuel da Cruz, primeiro Bispo de recolhendo esmolas ou pregando missões. A Virgem do Carmo
Mariana, que antes de vir para a América, fora mestre dos foiparticularmente venerada além da Mantiqueira, tanto que a
noviços na abadia cisterciense de Alcobaça, o mesmo mosteiro primeira capela ereta na região aurífera foi a ela consagrada
em cuja biblioteca conservava-se desde o século XIV a biografia (1698), assim como sua primeira freguesia, vila e cidade: Nossa
da santa'penitente e onde, no século XVIII, dois monges aí Senhora da Conceição do Ribeirão do Carmo, somente em 1745
residentes — Frei Hilário de Lourinhã e Frei Eloi Ferreira — mudando o topónimo para Leal Cidade de Mariana. Em 1732
autografaram novas biografias damesma eremita. Pode ser que, fundava-se em São João dei Rei a Igreja de Nossa Senhora do
além da introdução nas Minas do culto dos Sagrados Corações Carmo, sendo rara avilamineira setecentista onde não houvesse
de Jesus, Maria e José, o piedoso prelado bernardino tenha ao menos uma capela dedicada a tão querido título mariano. Sua
divulgado, através de sermões e novenários, a devoção à ex-pros- popularidade deve-se sobretudo à devoção aos poderosos "esca-
tituta de Alexandria, 'oferecendo-a como modelo de santidade pulários do Carmo", dois pedacinhos de lã marrom dependura-
para converter as muitas mulheres do fandango que nas pontas dos em cordão, trazidos um no peito e outro nas costas, que
das ruas e arraiais faziam de Mariana e Vila Rica diabólicos protegiam os portadores das tentações do Diabo e garantiam a
antros de perdição; • •. . . seus devotos a assistência de um sacerdote in extremis mortis.
. Através dos frades carmelitas, igualmente, Rosa pode ter Como dissemos, não havia colono antigamente que não carre-
recebido informações sobre a sua santa patronímica. A Ordem gasse qualquer proteção dependurada no pescoço, podendo ser
de Nossa Senhora do Monte Carmelo pretende ser a continua- uma medalhinha, escapulário do Carmo ou das Mercês, bolsa
dor a da tradição eremítica do Oriente, remontando sua fundação de mandinga, patuá, bula da cruzada, agnus dei, o rosário — ou
mítica aos tempos do Profeta Elias (875 a.C.). Sendo a Palestina todos juntos. O pintor setecentista José Joaquim da Rocha
o lugar de sua origem (o monte Carmelo situa-se próximo à atual retratou com perfeição o quão forte era a devoção a estes amu-
cidade de Haifa), coube aos carmelitanos a divulgação, 110 Oci- letos na época do barroco, mostrando num painel de Nossa
dente, apartir do século XII, do culto de diversos santos eremitas Senhora da Palma um anjo com uma espécie de cornucópia
orientais, como o próprio Santo Elias, patrono da província mística, de onde escapam bentinhos, rosários, escapulários e
carmelitana do Rio de Janeiro; Santo Eloi, cuja imagem será cruzinhas de variegadas cores e formatos. Prova da devoção

fe
cultuada na igreja do Recolhimento do Parto, onde Rosa será a dos mineiros pela Virgem do Carmo é que no Dicionário Histó-

174 175
.JL-
rico-Geográfico de Minas Gerais localizamos 14 vilas e cidades Jordão; Rosa irá para o Rio de Janeiro. Ambas seguindo a
com este nome, entre elas Nossa Senhora do Carmo daBagagem, inspiração divina à procura da perfeição espiritual, tendo como
da Escaramuça, das Luminárias, do Arraial Novo, do Càjuru, modelo e estrela guia a Vera Cruz.
do Campestre, do Campo Grande, do Frutal, dos Morrinhos, dos
Pains — quase todas datando do período que o ouro corria a
granel na Capitania. Para dar assistência às suas irmandades,
frequentemente os carmelitas percorriam a região, nem sempre Notas
contudo dando bons exemplos de virtude, como aconteceu com
Frei João de São José e Santa Teresa, que apesar de nome tão
piedoso e de pertencer à ala mais austera desta ordem — era 1. Cacciatore, Olga G. Op. cit., 1977.
carmelita descalço — nem por isso deixou de ser remetido preso 2. RuILa, Álvaro. Santa Rosa de Lima, Bari: Editione Pauline, 1977,
para o Rio de Janeiro, em, 1715, acusado de "apóstata e mal p. 20.
3. Saiote Therèse, Stanislaw. UnAngedu Carmél. Lyon:EditionVitte,
procedido". Na década de 1730, mais dois escândalos envolvem
, 1934, p. 81.
os carmelitas: em 1733, FreiLuis Coelho, do Carmo de SãoPaulo, 4. Vizmanos, Francisco. .Los Virgenes Cristíanas de Ia Iglesia Primi-
é acusado em Minas Gerais de ser "muito namorador e lascivo, tiva, Madri: Editora de los Autores Cristianos, 1949, p. 485.
cobiçando Domingas de tal, espreitando-a pela gelosia, gastando 5. Farmer, D. H. Op. cit., 1987, p. 293.
com mulheres as esmolas que lhe dão com santinhos..." Em T
6. Echos de VOrienk, t. IV, 1900-1901: 35-42; t. V: 15-17. o
1738, outro episódio pouco edificante, já citado alhures, envolve j 7. Manuscrito 266 publicado na Romania, tomo XI.
Frei Pedro António, religioso do Carmo, que tocava viola publi- 8. Sá e Miranda, Francisco. AEgipcíaca Santa Maria. Porto: Livraria
0
!l camente, acompanhado por um frade dominicano, um cónego e Chardron de Leio, 1913, 230 p. O
mais uma crioula forra vestida de homem, todos cantando 9. Consultei a edição de 1789, impressa na Oficina de Filipe da Silva
debochadamente uma canção que, pelo título Arromba, sugere e Azevedo, Lisboa.
que a pregação deste carmelita centrava-se mais na vida airosa 10. Atienza, Juan G. Santoral Diabólico. Ediciones M. Roca, 1988.
11. Ribadeira, Pedro. Histórias das Vidas de.SantaMaria Egipcíaca,
da santa prostituta do que em suas ásperas penitências. Em Santa Taís e Santa Teodora, Penitentes. Lisboa: Oficina de Felipe
1748 percorre as Minas o irmão Frei Vicente de São Bernardo, da Silva e Azevedo, 1789; Karras, Ruth Mazo. Holy Harlots: Pros-
esmoler descalço, recebendo da Câmara de São João dei Rei 30 titute Saints in Medieval Legend, Journal ofthe Hisiory ofSexua-
oitavas de ouro para seu convento mater. Conjecturamos que lity, v. l, n. l, julho 1990, pp. 3-32.
tenha sido da boca deste religioso que Rosa ouviu a história de 12. Hoornaert, Eduardo. Históriadalgr eja no BrasiZ.Petrópolis: Vozes,
Santa Maria Egipcíaca, pois foi no ano seguinte à sua passagem 1977, p. 217.
pelo Rio das Mortes que a negra adotou-a como padroeira. 13. Ott, Carlos. A Escola Baiana de Pintura. Salvador: MWM, 1982, p.
Não tenho certeza de quais destas três possibilidades 15.
influenciaram Ras^jaa_essoJha-de-seu-onoríiástico; o certo é que 14. Vasconcelos, D. Op. cit., 1974, p. 136.
a^partir. da,_ 175l,Jse._apEesentará_sfinrpre como Rosa Maria 15. Mott, Luiz. Modelos de Santidade para um Clero Devasso. Op. cit.
Egipeíaca-d-a-^era Cruz. 16. Costa, Iraci dei Nero. Op. cit., 1982, p. 7.
17. Cintra, S. O. Op. cit.
Imitando a santa do Egito após sua conversão, também
nossa negra vai empreender importante viagem, inicio de nova
fase em sua atribulada existência: a primeira atravessou o rio

176 177
l
3*
iil^K
8

Viagem para o Litoral

i» A viagem de Minas para oJRio_deJaneiro é das passagens

l
mais bem documentadas no(processo de Rosa, pois, além do
JJ_L€1_1.O UO.UO. UXJWl.UXJ.Ç<.l.J,L>el.t_J.Cl.O J.J.WÍ L»J. U^CJOOU U.C JLIWOCX, JJV^JLO, CXJ.CJJLJ. I-I-U

depoimento do Padre Xota-Diab~o"s~e-darprópria espiritada, duas


outras testemunhas acompanharam os viajantes Mantiqueira
abaixo.
Narra o sacerdote que sua filha espiritual implorara para
que se transferissem para o Rio de Janeiro, pois ficando nas
Minas "arriscaria a salvação de sua alma". De início resistiu à
ideia "pelos muitos gastos e trabalho da jornada", tanto que
*
Í aceitara o oferecimento de Francisco de Sousa, agregado à
família do Alferes Francisco Motta, para ir em seu lugar acom-
panhando a negra. Mudou, porém, de ideia, e, "por caridade,
alugou dois cavalos, um para a preta e outro para os trastes", e,
montado em seu cavalo próprio, começaram a viagem. Rosa tem
importante visão logo no início da caminhada:
•T:
"Estando mais o Padre esperando por Pedro Róis Arve-
los, que também os queria acompanhar e havia de trazer
P o dinheiro para os gastos da jornada, em um dia pela
manhã, que era o de São José, estando ela, ré, ainda na
fe cama, mas acordada, rezando a Nossa Senhora, ouviu com
i seus ouvidos uma voz clara e distinta que lhe dizia rezasse
uma Estação; e no fim dela se achou em um lugar junto de
umas casas que nunca viu, nem sabe em que parte fosse,
e aí se achou junto com o dito Padre na presença de um
homem venerando de barbas compridas mas muito espe-
cioso, o qual tinha uma varabranca na mão e com elabateu
na porta de suas casas, que apareceram no mesmo lugar.
E logo se abriram e saiu outro homem todo vestido de
branco, de formoso aspecto, ao qual disse o outro se tinha
cómodo naquela casa para ele, para o dito padre e para ela,

179
1

ré. E perguntando-lhe este que apareceu vestido de branco una homem de rosto venerando, barba branca comprida,
e mostrava ser o senhor das casas, quem ele era, respondeu com casaca de saragoça (pano grosseiro de lã escura), com
que era Deus Verdadeiro, que se retirava das Minas pelas uma vara muito delgada e cândida nas mãos. E batendo
culpas e ofensas que contra ele faziam os homens. E dito com esta mesma vara na porta de uma casa, que era a única
isto, desapareceu tudo e se achou ela, ré, na cama das casas que havia no dito lugar, acudiu um moço e, perguntando-
em que estava, no caminho das Minas para ir à cidade do lhe o que queria, respondeu o dito velho que queria agasa-
Rio de Janeiro." lho. E com a vara assinalou o lugar em que haviam de fazer m
Foi, portanto,'exatamente a 19 de março de 1751 que de
três camas, umapara ele e duas para ela, ré, e para o Padre
Francisco. E, perguntando-lhe mais o dito moço quem era,
m
São João dei Rei partiu esta pequena comitiva em três monta- lhe disse o velho que era Nosso Senhor que vinha fugido m
rias, provavelmente incorporando-se a uma caravana mais nu- das Minas, pelas muitas ofensas que lá lhe fizeram e que
merosa, das muitas que desciam para o litoral, posto que na vinha fugindo para o Rio de Janeiro para ver se achava
época eratemerário e por demais arriscado viajar isoladamente, quem lhe desse agasalho. E passado o referido, se achou
tantos eram os assaltantes e quilombolas que infestavam o outra vez assentada sobre a cama, e na casa em que tinha
Caminho Novo, ou o Velho. Devem ter escolhido esta data dormido, com alembrançaperfeita do que se tinhapassado,
exatamerite para colocar tão importante jornada sob a protecão e dali a tempos a referiu ao dito Padre Francisco que se
do pai putativo de Jesus Cristo, ele próprio acostumado a calou e não fez caso de tal narrativa."
proteger a Sagrada Família quando fugiam de Belém para o \
Egito devido à perseguição de Herodes (Mateus, 2:13). Segundo E clara a analogia entre Deus —- o velho barbudo vestido
o autor do Afio Cristiano, "a festa de São José é uma das mais de saragoça — e a própria vidente, ambos fugindo e dando as
doces para toda a alma devota e cristã", e até hoje há o costume costas à impiedade dos mineiros, ambos pedindo abrigo nas
de se semear, exatamerite neste dia, os grãos de milho cujas estalagens e pousadas do Caminho Novo. A imagem de Cristo,
espigas serão colhidas no dia de São João — 24 de junho —, travestido de caminhante maltrapilho, percorre há milénios o
sendo voz do povo que, havendo chuva no dia do plantio, estará imaginário cristão, tanto que, antigamente, um dos mais bene-
garantida a abundância da produção. São José mereceu parti- méritos atos de caridade cristã era acolher os peregrinos, sendo
cular carinho e devoção por parte de nossa africana •— seguindo a desobediência deste preceito — e não a sensualidade -— a
também neste particular o exemplo de Santa Teresa dÁvila, principal causa da suposta destruição de Sodoma e Gomorra, tal
modelo de pureza e abnegação ao Menino Deus. qual hoje interpretam os mais ilustres exegetas.
Na confissão feita aos inquisidores, a ré floreia um pouco Caminhando as montarias no máximo quatro léguas por
mais essa visão há pouco referida: " dia, em estradanão muito acidentada, otrajeto do Rio dasMortes
para o Litoral devia representar por volta de uma semana de
"Principiando a jornada, em dia de São José, pela ma- viagem, a cavalo: de São João dei Rei passava-se por Registro,
drugada, acordou-a uma voz que lhe dizia: 'Reza uma Borda do Campo, Rocinha, Sítio do Bispo, Sítio do Alcaide-mor
Estação — isto é, seis Padre-nossos, seis Ave-marias e seis e do Juiz de Fora, atravessando-se após o Sítio do Araújo as
Gloria Patri, em intenção das almas do purgatório.' E
obedecendo a ordem, rio último Padre-nosso, às palavras
corredeiras do Rio Paraibuna, passando a seguir pelos sítios e
pousadas de Dona Maria, Cavuru Açu e Mirim, Pau Grande,

'santificado seja o vosso nome', se achou em um campo Taquaruçu, Couto, tomando-se então a canoa rio abaixo até o •
aonde viu que também se achava o dito Padre Francisco e
m
180 181
Sítio do Pilar, e na maré alta, em, lancha, descia-se pelo rio ouvia continuamente o eco das vozes dos tropeiros e o
Aguaçu, entrando então na cidade de São Sebastião do Rio de ruído dos guizos da madrinha da tropa.
Janeiro. Serraria brava e abismos horripilantes ao cruzar a No dia em que cheguei em Paraibuna, o calor era tanto
interminável Mantiqueira, cerração espessa e úmida a entrar que apesar de irmos a passo, montados, o suor corria-me a
pelos ossos ao descer a serra, sol escaldante nas baixadas cheias grande. Passei uma noite muito má à margem, do Paraíba,
de brejo: eis o panorama sucessivo desta jornada. Deviam nossos no meio de cães e de porcos que rondavam minhas malas,
viajantes ir em marcha lenta para não desatar os "trastes": dando-me grande preocupação por minha bagagem. No dia
certamente dois baús ou canastras de couro atados em cada lado seguinte, de manhã, houve dificuldade em encontrar os
da montaria. Rosa e o Padre deviam carregar a tiracolo, cada animais...'
qual, seu embornal com a matalotagem e água para o refrigério.
Rosa Egipcíaca já caminhara por esta mesma estrada, no Do alto de seu cavalo alugado, confortavelmente instalada,
sentido litoral-interior, há 18 anos, e o Padre Francisco há 21, Rosa, agora com 32 anos, contemplava de privilegiada perspec-
quando chegou do Reino. A negra deve ter notado muita dife- tiva a mesma estrada que aos 14 anos percorreu a pé, peça
rença no trajeto, pois nestas duas décadas, o Caminho Novo anónima, num lote de .eacravos. Quem poderia imaginar que
tornara-se nossa principal estrada real, agora muito mais po- mina, já deflorada por seu pa-
voada e oferecendo melhores recursos para os andarilhos. Não trão, sem lenço nem. documento, desceria, mulher feita, a mesma
obstante, ainda na primeira metade do século seguinte, Saint- serra, agora forra, rezando e entendendo latim, nomeada pelos
Hilaire não há de poupar críticas acerbas à precariedade e falta J135 céus "zeladora jios_temp_ljo_s^,_ .i^itulada, .E°í_.°?dem também
de conforto das pousadas desta região. ,ít;-v£.i.v=.-.i-, - divina, de a nova Maria Egipcíaca da Vera Cruz?! Cumpria-se
a profecia do Salmo 125:
"O caminho de São João dei Rei ao Rio de Janeiro é
muito frequentado; entretanto são poucas as habitações Quando o Senhor reconduzia os cativos, estávamos
que se vêem nos campos margeantes, onde apenas no- sonhando...
tam-se traços de culturas. Imensas solidões fatigam os ...na ida caminhavam chorando, carregando as sementes,
olhos por sua monotonia. E inconcebível a falta de recur- na volta, cantando com alegria, carregando as espigas.
sos nesta estrada. Inutilmente procurei adquirir um
pouco de milho e não pude conseguir farinha, embora Tal qual acontecera com o povo eleito no seu êxodo para a
tivesse parado em um lugar onde as caravanas costuma- terra prometida, Deus permitiu ao Diabo que também tentasse
vam pousar. Logo após deixar Barbacena começá-se a sua serva. No deserto do Sinai o Demónio levou os judeus à
perceber a aproximação das florestas, com vales mais idolatria do bezerro de ouro; na Mantiqueira, Satanás atacou
profundos e tufos de matas mais numerosos. As longas em duas frentes: primeiro tentou matar sua espiritada precipi-
chuvas haviam arruinado inteiramente a estrada. Ani- tando-a nos abismos. Como não o conseguiu, pois Rosa tinha a
mais de carga haviam, morrido atolados na lama. Meu seu lado o protetor Xota-Diabos, o Cão apelou para aparte mais
tropeiro dirigiu preces à Virgem e a Santo António para fraca dos mortais: a carne, e por muito pouco não conseguiu seu
obter a graça de atravessar sem dificuldades as florestas. ' intento de levar Rosa ao pecado mortal contra a castidade.
As matas virgens têm. uma majestade que me causa Novamente, o poder do exorcista foi mais forte.
sempre profunda impressão: no silêncio dessas matas Um dos viaj antes que acompanhou a caravana de Rosa pelo

182 183
. Í.J '.3
Caminho Novo foi quem relatou o primeiro episódio. Caetano do século XIX, presenciou "uma filha de santo do terreiro do
Fernandes Pena tinha então 31 anos, era português natural de Gantois subir numa árvore muito alta, e, trançando as pernas
Nossa Senhora das Neves de Tomega, sabia ler e escrever. em torno de forte galho, começou a balançar-se como se fosse
Morava nas proximidades da Capela de São Sebastião, próximo um símio, lançando-se da árvore ilesa". Para os Orixás, tam-
à fazenda dos Arvelos. Conhecia o Padre Francisco Gonçalves bém, nada é impossível!
Lopes apenas de vista e de ouvir falar. Foi este informante quem Diz contudo o Padre Xota-Diabos que era o anjo das trevas
revelou, anos mais tarde, ao comissário do Santo Ofício do Rio que assim atacava sua dirigida: "na estrada o demónio a tomava
de Janeiro, que o exorcista da negra endemoniada "era chamado e a deitava do cavalo abaixo, ficando algum tempo sem acorde,
por antonomásia o Xota-Diabos". Disse mais: dando a ele muito trabalho para pôr-lhe preceitos".
O viageiro Caetano ficara tão impressionado com tais
"que em toda a viagem, a negra fazia suas visagens como diabruras, que 14 anos depois, em 1764, ainda se lembrava das
quem queria cair/proferindo palavras que ele não enten- palavras que o reverendo exorcista dizia do alto de sua montaria.
dia, e, ainda onde o caminho tinha risco, ela se punha firme Todas as vezes que o Padre via isto, logo imediatamente dizia
sobre o pé esquerdo e, deixando a rédea do cavalo, se punha para o Diabo: "Maldito! Se descompuseres a criatura, hei-te de
de forma que ia caindo toda de fora da sela; se fosse outra rezar à Senhora Santana tantos Credos, tantos Padre-nossos,
qualquer pessoa, naturalmente caia, sem dúvida." tantas Ave-marias, tantos Gloria Patri, terços e ladainhas à
í Senhora Santana, para te consumir' — aumentando cada vez o
Fazer malabarismos equestres à beira de precipícios era número das tais rezas. E completou: 'O padre rezava muitas
uma temeridade, mesmo para cavaleiros experimentados; ima- Salve-Rainhas e Santana Socorre-nos! E assim ia 1/4 de légua,
gine-se para uma cativa, que em toda sua vida devia ter pou- repetindo o mesmo várias vezes nos dias da viagem..'
quíssimas vezes montado num ginete! Caetano ficou deveras Na monotonia do toque-toque dos cavalos no passo lento
impressionado com as estripulias da africana, sobretudo ouvin- descendo a serra, debaixo do sol a pino, lá ia a caravana sono-
do o Padre dizer para outro viajante, Domingos Francisco Car- lenta, só despertada pelos frequentes acidentes e exorcismes do
neiro, quando embarcaram no Porto da Estrela, que "a negra Xota-Diabos, que, embora fugindo do figurino do Eitúale Roma-
Rosa tinha Nosso Senhor Sacramentado no seu peito e que era num, surtiam efeito na espiritada, que após tantas e tantas
comparada à Trindade Santíssima". Qualquer um concluiria dezenas de orações e litanias, sossegava finalmente o rabo na
convicto de que aquela exibição de equilíbrio equestre só podia montaria. Com o breviário em punho, o sacerdote devia rezar o
ser coisa sobrenatural, portanto, não tinha nada a ver com as Salmo 90, oportuníssimo para viagens tão atribuladas:
peripécias dos artistas dos circos de cavalinhos. Se Jesus Sacra-
mentado saltara do altar para a boca de vários santos e santas, "Quem mora sob a proteção do Altíssimo... não teme... o
se aprópriaMariaEgipcíacalevitaraduas vezespara atravessar mal que grassa ao meio-dia: caiam mil homens à tua
o rio Jordão, se São José Cupertino fora visto em. "prolongados esquerda e 10 mil à tua direita, e tu não serás atingido...
voos" por inúmeros devotos, por que duvidar da sobrenaturali- Porque a seus anjos o Altíssimo ordenou que te guardem
dade das macaquices da negra em cima do ginete? em todos os teus caminhos. Eles te sustentarão em suas
Se dermos crédito ao pioneiro dos estudos afro-brasileiros, mãos para que não tropeces em alguina pedra; sobre a
Nina Rodrigues, as acrobacias fantásticas são consideradas serpente e a víbora andarás, calcarás aos pés o leão e o
pelos povos animistas-fetichistas como sinais diacríticos da
incorporação dos espíritos dos ancestrais. Ele próprio, nos finais

184 185
Tf,
i.

dragão... Quando me invocares eu té" atenderei, na tribu- existir entre o padre e a negra mina além de mera relação
lação estarei contigo. exorcista/energúmena.
'• Apesar da obrigação dos padres seculares de manterem o
Apaziguado Satanás, à custa dos exorcismes e daproteção celibato canónico — diferente d.os religiosos que livremente
de Santana, avó de Cristo, eis que numa das noites desta viagem, optam pelo voto de castidade —, dispomos de enorme acervo
o Maligno arquiteta libidinosa cilada, revelando o quão astuta documental comprobatório do quão libidinosos eram muitos e
e capciosa tornava-se a inteligência da africana quando atacada muitos ministros do altar no Brasil Colonial. As Constituições
pelo Pai da Mentira. E o próprio Padre Francisco quem narra do Arcebispado da Bahia em muitos artigos tratam das interdi-
este sensual episódio, tendo ele na ocasião 57 anos e sua ex-es- ções e penalidades contra os clérigos imorais, prescrevendo, por
crava, 32. • . exemplo, que não tivessem em seu serviço doméstico mulher
com menos de 50 anos "nem outra alguma mulher de que haja
"Numa estalagem, dormindo em casas separadas, dei- ruim suspeita", mesmo que fosse serviçal de suas parentas
tado em sua cama, anegrapretendeupôr-se sobre ele, como próximas, proibindo-se também que ensinassem, às mulheres a
com efeito se pôs, pretendendo que a desonestasse, o que ler, cantar ou tanger instrumentos, ou que frequentassem os
ele percebeu pelas ações desonestas que fazia, mas, em-
brulhando-se com uma roupa, recusou-se, e ela, fingindo
estar vexada do Espírito, disse-lhe: *Ministro, por que não
m mosteiros de freiras (§484, 486). Severos castigos, como prisão,
degredo, multas e destituição das ordens sacras, pesavam contra
os clérigos culpados de crimes de bestialidade, molice, sodomia,
r
tens cópula com esta preta, pois já que muitos se metem '4 adultério, incesto, estupro e rapto (§961-978). O título XXIV do
f
no inferno por dizerem falsamente que andas com ela Livro V trata precipuamente "Dos Clérigos Amancebados", di-
amancebado, faze esses ditos verdadeiros, para que se não zendo: "indigna coisaénos clérigos o torpe estado de concubinato,
condenem.'" pois sendo pessoas dedicadas a Deus, é ainda maior neles a
obrigação de serem puros e castos e de vida e costumes mais
Por pouco o sacerdote não se deixava engabelar por enredo reformados". Sempre de acordo com as Constituições, primeiro
tão silogístico e pelas carícias tão sedutoras da liberta, como se um multava-se o presbítero infrator, que chegava até a perder todos
pecado mortal contra a castidade pudesse eximir os caluniadores os seus benefícios e rendimentos para sempre. A excomunhão
de suas culpas de murmuração. Calejado que estava o velho era outro recurso para os refratários e impenitentes; um mês no
exorcista com as artimanhas do Enganador—que às vezes chegou aljube para os que não tinham benefícios e, no caso de reinci-
a travestir-se de Jesus Crucificado para burlar alguns santos, dência, degredo para fora do bispado ou até para a África. "E
conforme sucedeu com um discípulo do Poverello de Assis —, sendo amanceb ado com filha espiritual, ser á castigado com mais
Padre Francisco "fez o sinal da cruz e mandou o Espírito embora graves penas."
e que se metesse no inferno". Já o mencionado Antonil chamava a atenção para a imo-
O Espírito de Rosa fornece-nos importante informação ralidade do clero regular e secular quando cruzava a Mantiquei-
neste episódio lúbrico: que havia murmuração nas Minas de que ra, e a historiadora Laura de Mello e Souza dedica um subca-
o padre e sua filha espiritual eram amancebados, Se dermos pítulo dos Desclassificados do Ouro aos padres infratores, onde
crédito aos ditados populares quando dizem: "onde há fumaça enumera todo tipo de incontinência ética e sexual entre os
há fogo" e que "o povo aumenta mas não inventa", ou ainda, "vox ministros do altar. Arrola uma meia dúzia de sacerdotes concu-
populi, vox Dei", somos levados à ilação de que não seria excesso binados, entre eles o Padre Felipe Teixeira Pinto, culpado em
de malícia de nossaparte conjecturar que algo mais íntimo devia

186 187
1730 por andar amancebado com Ana, escrava negra. No mes- cuja denúncia, enviada à Inquisição, foi escrita de seu próprio
mo ano em que Rosa andava por São João dei Rei, saiu denun- punho, no ano do Senhor de 1748:
ciado na Devassa de 1749 o Padre João C. de Mello, "concubinado
com a parda filha do Papudo". "Hido eu me confecar dia deano bom. com o pader João
À Inquisição não interessava a mancebia em geral, nem Carneiro, medice me queria mta eu lhe dice que sim. elleme
sequer envolvendo os tonsurados. Era porém de seu conheci- dice setinha na camarinha jinella. eu lhe dice que não. elle
mento e alçada o chamado "crime de solicitação ad turpia", me perguntou onde dormia, eu dice emcasa de minha irmã.
quando o sacerdote convidava, no confessionário, suas ou seus Em huma cestafera, a terceria da coresma me fui mecon-
penitentes para atos pecaminosos. No volumoso Repertório dos feçar com- o elle: medice que tinha hido em minha casa,
Solicitantes, só para o século XVIII encontramos 425 denúncias porque lhe não falei? eu dice que estavadoente. elle medice
contra padres namoradores nos confessionários do Brasil, dos que não cabia cê não mevisitava. eu olhei p* ele e rime.
quais 62 praticaram tais patifarias nas paróquias de Minas Perguntou cemefiava de algua mulata, eu lhe dice que não.
Gerais. Citarei a seguir alguns exemplos desta conduta imoral, Assinou: ANastácia Ma deiSus, vila de S. José." 3
contemporâneos a Rosa, a fim de que o leitor disponha de
suficientes elementos elucidativos para ajudar-nos a desvendar Sendo poucas as mulheres brancas nas Minas, era mais
mais adiante o que apenas esboçamos neste momento: afinal, o arriscado para os sacerdotes seduzi-las, posto serem muito
Padre Francisco e Rosa Egipcíaca foram ou não amantes? vigiadas por seus familiares, e suas eventuais denúncias aos
Em 1746, na vila de São José dei Rei (hoje Tiradentes), o comissários do Santo Ofício serem mais acreditadas, devido à
Vigário João Ferreira Ribeiro era acusado de ter "tratos ilícitos" sua condição de "raça limpa". Por isso, muitos sacerdotes, talvez
com a parda Violante Maria, e certa feita, recebendo em sua menos por preferência erótica e mais por tentação da facilidade
casa um bilhete da amante, desconfiou que era dirigido a um do acesso às mulheres "desclassificadas", dirigem para as con-
seu hóspede e não a si, ficando muito inquieto até que, mandando fessandas de cor, e sobretudo às escravas, suas investidas por-
à amante um recado através de um mulato de sua confiança no-ssacramentais.
para que ela viesse à igreja, desfez no confessionário sua dúvida Outro exemplo: o Padre João Nunes da Gama, capelão da
atroz, indo ambos para a alcovarender preitos à dp^sa do amor. freguesia de Nossa Senhora do Pilar, ao deparar-se, no secreto
No Morro de Santana, no perímetro urbano de Mariana, do confessionário dasmulheres, comMaria, negramina, escrava
ao confessar-se Vitória, donzela parda de 20 anos, ao Padre do sargento-mor, declarou-lhe "que queria ser seu filho e tomar
Paulo Mascarenhas Coutinho, que tivera um sonho com outro uns amores com ela, ao que a negra respondeu que nãc^a capaz
sacerdote, este lhe disse: "Tem-no antes comigo e não com ele!" de ser sua mãe, retrucando o padre: 'eu sempre tenho gosto de
E noutra ocasião lhe falou: "Pagas com ingratidão o amor que que você seja minha mãe. Você é bem capaz e sempre há de ser
lhe tenho?!" Tal declaração amatória se deu no dia da festa de minha mãe"'. A partir deste edipiano diálogo, viveram se deso-
Corpus Christi! Também em Mariana, outra sacrílega decla- nestando por espaço de dois anos, confessando-se a negra sempre
ração de amor proferida atrás das grades do confessionário: "O com seu próprio amante, tornando-se publicamente conhecida
Padre António Ribeiro disse à10Josefa Morais, mulher casada, como manceba do clérigo, até que o sargento-mor destruiu tão
que andava perdido por ela..." " sacro idílio, isolando sua escrava numa camarinha. Enciumado,
Mais outro episódio de paixão clerical, descrito pela don- o capelão mandava um seu moleque inspeciònar "se ela falava
.zèla, com suas próprias palavras de moça semi-alfabetizada, com algum homem", mostrando este caso o quanto um sacerdote
podia deixar-se envolver por uma paixão tão exótica e desigual,

188 189
comprovando que não só Minerva, mas também Eros ê cego, despertavam uns nos outros, fascinação luxuriosa da qual nem
corroborando mais uma vez a opinião abalizada do viajante os presbíteros donzelões estavam imunes. Paixão recíproca,
francês Charles Expilly, ele próprio grande entusiasta das ne- repetimos, pois também do lado das gentes de cor havia muita
gras minas, que declarou sem. rodeios: curiosidade, desejo e interesse em usufruir das intimidades
eróticas com os membros da "raça dominante".
"Essapredileção que parecerá certamente extravagante Rosa vivera sôfrega e libertina dos 14 aos 29 anos, entre-
às pessoas que nunca viveram nas colónias não se explica gando-se a qualquer homem secular que procurasse seus servi-
unicamente pela superioridade física das mulheres de cor. ços sexuais. Convertendo-se, diz ter abandonado ávida luxurio-
Isso resulta de uma outra causa, ainda mais essencialmen- sa, "não tornando mais a cair em culpas gra.ves de sensualidade,
te física, e que se refere a emanações particulares que tendo seu corpo como morto, porque lhe parece que, ainda que
exalam os poros dessas belas criaturas. Antes de tudo, o dormisse com algum homem, não sentiria estímulos, nem nunca
esplendor das suas linhas atrai-nos, e a gente se sente mais os teve, sendo até o tempo de sua conversão sumamente
ferida pelas flamas ardentes que lançam as suas pupilas. vexada deles".
O orgulho inutilmente tenta opor-se. Apesar dos vivos Tenho sérias dúvidas quanto à veracidade deste trecho da
protestos do sangue-azul, fica-se definitivamente seduzido, confissão de nossa ex-meretriz, pois, além do episódio ocorrido
quando elas marcham com um movimento intermitente na estalagem entre as Gerais e a cidade do Eio, um pouco mais
das ancas, cheias de misteriosas confidências, que nos adiante mostraremos outras situações em que fica patente que,
conduzem à perturbação dos sentidos. A atração nos domi- apesar de Rosa possuir forte espírito e força de vontade, sua
na; é necessário ceder. E então que a influência desse odor carne continuava fraca. Mais ainda: todos esses exemplos de
suigeneris age profundamente no adorador da forma. Um sacerdotes contemporâneos do Padre Francisco, que solicitaram
contacto passageiro produz, de ordinário, o aborrecimento. e se amancebaram, com negras minas, muitas delas escravas
Se o delírio se prolonga, a sorte do branco estará para como aEgipcíaca, vivendopelas pontas da rua como ela, permi-
lJ • sempre fixada: não lhe será mais permitido renunciar à tem-nos suspeitar que o padrej e sua negra viveram de fato
frequência das mulheres bronzeadas; ainda mais, desde- _ - f P ' ' A " /murjnúrj.o_de q u e eram aman-
nhará de queimar incenso aos pés das pálidas nativas... tes tinha sua razão de ser, A insistência com que a ex-prostituta
Há um axioma português que encerra a explicação natural relata sua angelical sexofobia após a conversão diverge, neste
do fenómeno de que se trata. Eis o texto da sentença: particular, com a experiência de sua patrona do Egito, que
'Aquele que sentiu duas vezes o cheiro acre, mas embria- confessou ter padecido nos dezessete primeiros anos de penitên-
gador da catinga da negra achará desde então muito de- cia "tantas batalhas e tentações porque o demónio lhe trazia à
senxabido o cheiro que exala apele da mulher branca/ Sem memória os deleites e gostos sensuais, os regalos, manjares e
querer rebaixar as mulheres de cor ao nível das sacerdoti- especialmente o vinho, as palavras amorosas e canções lascivas
sas do antigo continente, não será lícito notar que essas que costumava cantar para provocar os homens para que a
è produzem fisicamente efeitos análogos sobre o seumeio?" desejassem". Sem desmerecer a força de vontade das pecadoras
èi):
Abundantes foram os sacerdotes nas Minas e demais capi-
arrependidas, não estaria sendo por demais fantasioso supor
que tiveram algumas "recaídas". Afinal, errar é humano, e a
tanias do Novo Mundo que não resistiram ao feitiço das sacer- carne é sempre fraca...
dotisas de ébano... . Também de seu lado, o depoimento do Padre Xota-Diabos
Tal era o clima de fascínio recíproco que brancos e negras

í 190 191
p
J li
l M
$]!
is,; :'. solicitantes, parte do material de sua tese de doutoramento; Mott,
aos inquisidores, enfatizando sua repulsa à diabólica investida
erótica de sua ex-escrava, pode ser interpretado da mesma forma Luiz. Modelos de Santidade para um. Clero Devasso. Op. cif., 1989.
9. Biblioteca Nacional de Lisboa, Seção de Reservados, "Registro dos
como a sexofobia da africana: um inteligente artifício para Padres Processados por Solicitação e Outros Crimes", Códice n9
mostrar aos delegados do Santo Ofício que a. prolongada união 8.389 (século XVIII).
entre ambos, malgrado a murmuração popular, era virtuosa e 10. ANTT, Caderno dos Solicitantes na 26, fl. 139 (1746).
livre de qualquer suspeita de mundanismo. Preocupação, diga- 11. ANTT, Caderno dos Solicitantes n2 26, fl. 345 (1745).
se en possant, infundada, pois ao casuísmo inquisitória! era 12. ANTT, Caderno dos Solicitantes n2 26, fl. 358 (1748).
irrelevante se fossem ou não fornicários contumazes. Deixemos 13. Mott, Luiz. Modelos de Santidade para um Clero Devasso. Op. cit.,
a alcova e voltemos à estrada. . 1989, p. 109.
A aproximação do local de destino — Rio de Janeiro — 14. Expilly, Charles. Op. cit., 1977, p. 102.
causava sempre grande emoção nos viajantes após tantos dias 15. Ribadeira, Pedro. Op. cit., 1789, p. 17.
de cansativa viagem. 16. Saint-Hilaire, A. Op. cit., 1974, p. 125.

m
tt* t*

|! >•
"Chegado à parte mais alta da serra da Boa Vista,
reconheci — diz Saint-Hilaire — que seu nome era justo.
Por entre troncos das árvores, avistei um trecho da baía
II do Rio de Janeiro e algumas ilhas nela existentes, e apesar
de não distinguir a cidade junto ao Pão de Açúcar, reco-
nhecia sem dificuldade o ponto onde se achava situada.
Não pude, confesso, contemplá-la sem profunda emoção!"18
i Í

Notas

1. Kosnik, Anthony. A Sexualidade Humana. Novos Rumos do Pen-


samento Católico Americano. Petrópolis: Vozes, 1982,
2. Guimarães, Geraldo. O Caminho Novo. Revista do Instituto Histó-
rico e Geográfico dê São João dei Rei, n. 4, 1986, pp, 27-43.
3. Saint-Hilaire, A. Op. cit., 1974, pp. 115-125.
4. Rodrigues, Nina. O Animismo Fetichista dos Negr-os Baianos, Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, s.d., p. 109.
l _5...Granada, Frei Luiz. Senn,on contra los Escândalos de Ias Caídas
Publicas. In: Imirizaldu, Jesus. Op. cit., 1977, p. 261.
6. Souza, Laura M. Op. cit. 1982, p. 176.
7. Arquivo da Cúria de Mariana, Livro de Despesas (Z-l), (1749).
8. Agradeço a Lana Lage diversas informações referentes aos padres

192 193
••Et
?!

No Rio de Janeiro em 1751

Entre visões celestiais, como a do ancião vestido de sara-


goça, tentações sensuais e importunações diabólicas enquanto
cavalgavam, arribam, o padre e sua negra, sãos e salvos, na
-muito heróica e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Igual a Nosso Senhor, vinham fugindo dos pecados das Minas
Gerais, para ver se achavam., à beira-mar, quem lhes desse
agasalho. Como todo forasteiro, tiveram como primeiro cuidado
M
procurar onde se hospedar. Contavam para tanto com alguns
.endereços de conhecidos e a proteção da Senhora Santana, que,
como toda avó, estava sempre atenta às necessidades de seus
.dependentes.
: Para quem. viveu quase duas décadas num arraial mineiro
com menos de mil almas, como era o Inficcionado, o Rio de
m
m Janeiro devia representar para o recém-chegadouma espécie de
visão preternatural, pois, de fato, era uma cidade maravilhosa.
'r* - TO primeiro comentário feito pelo Abade de Ia Caille quando
.visitou esta localidade, exatamente no mesmo ano em que Rosa
chegava à Baixada Fluminense (1751), foi: "O Rio de Janeiro é
m. uma cidade bastante considerável!" Para um, autor de várias
Cobras de geografia e astronomia, vindo de Paris, a observação

P•• aião deixa de ser significativa. Lendo a narrativa deste ilustrado


jviajante, temos a impressão de que ficara vivamente impressio-
jiado com a beleza arquitetônica desta cidade5 tanto que o
-adjetivo que mais repete ao descrever seus diferentes espaços
.urbanos éjoli.
Depois de S alvador, a capital da Colónia, que na época possuía
y
jyli
quase 7 mil fogos com 40.263 habitantes, era o Rio de Janeiro
nossa segunda e principal aglomeração populacional, tão grandio-
sa, que o citado geógrafo francês avaliou sua população em 50 mil
IP! almas, impressionado pelo burburinho humano que via nas ruas
e praças centrais da cidade. Parece ter superavaliado o número

I 195
real de seus moradores, pois, de acordo com recentes pesquisas iluminadas à noite enquanto o povo reunido rezava o rosário e
de demografia histórica, em. 1750 esta cidade devia contar com cantava louvores à Mãe de Deus. Face ao porto, chama de bela
pouco mais de 24 mil habitantes — neste cômputo incluídos os a praça ou "Largo do Carmo" — a sala de visitas da cidade —
escravos, distribuídos em 3.723 fogos —, subindo para 30 mil o também rotulando de belos a fonte e o aqueduto em arcos
número de seus moradores em 1760. romanos que abastecia de água a cidade. Relata o entusiasmado
Todos conhecemos a topografia acidentada e o dêcor para- visitante que eram abundantes as plantações situadas no vasto
disíaco da "cidade maravilhosa", que no século XVIII era ainda 'recôncavo fluminense, predominando nos pomares as laranjei-
muitíssimo mais exuberantemente tropical, chegando o mar até ras, os Limoeiros, bananeiras, pés de caju, goiabeiras, manguei-
•h: bem mais perto do centro histórico do que hoje. Três imponentes ras e lindos coqueirais. Chamou a atenção do abade a maneira
morros cercavam o centro urbano do Rio de Janeiro, sem falar •de trajar da população branca: cobriam-se com amplos mantos
no Pão de Açúcar, no Cara de Cão, no Outeiro da Glória e de ^é-gr andes chapéus de tecido que dificultavam aos transeuntes
Santa Teresa, situados na época fora do coração da urbe. O reconhecerem-se uns aos outros. Traje pouco adequado ao calor
principal e primeiro logradouro escolhido para fundar a povoa- tropical, convenhamos. Os oficiais da justiça e os doutores era
"\ i': ção foi o morro do Castelo, onde os jesuítas construíram em 1565 "teologia, direito ou medicina usavam como distintivo, os primei-
a Igreja de São Sebastião, patrono e defensor da cidade; em 1589 -•"— ros, uma vara branca, enquanto os letrados traziam ordinaria-
os monges beneditinos ocupam o morro do patriarca São Bento, mente óculos sobre o nariz. Os escravos em sua maioria vestiam
dando as encostas do Mosteiro para a Prainha; mais para o - apenas calção ou mesmo uma tanga sumária; raros os que se
interior daurbe, próximo àlagoadoBoqueirão, emcimadoLargo cobriam com camisa ou casaco. Quando livres, os negros e
da Carioca está o morro de Santo António, onde os franciscanos - mestiços vestiam-se como os brancos, tendo calçados nos pés. As
construíram em 1608 seu convento, ainda hoje sobranceiro mulheres usavam saia e camisa aberta no alto, abotoadas ou
dominando o acme do outeiro. Entre São Bento e o Castelo atacadas pela frente. Rarissimamente ousavam aparecer nas
situavam-se o principal porto da cidade, o Convento e Terreiro ruas; Diz o Abade que iam à missa às 3 ou 4 horas da manhã
do Carmo, a câmara e cadeia, a casa dos governadores, o paço, —-^âbs ;domingos e feriados. Poucas conseguiam licença de seus
opelourinho e aforca—estaúltimafincadanareferidaPrainha, "jnaridõs ou progenitores para irem rezar o rosário à noite
próximo à Igreja de São Francisco. nalguma das igrejas ou capelas. Quando saíam, um grande
A opinião dos estrangeiros que visitaram esta cidade nos manto de lã que lhes cobria a cabeça as fazia parecer carmelitas
meados do século XVTII vai dos mais rasgados elogios até ~. _ou ágostinianas. Nas ruas, os maridos estavam sempre à frente,
irascíveis impropérios. O citado Abade de Ia Caille dá-nos uma e as mulheres eram acompanhadas por escravas e domésticas.
visão de conjunto assaz favorável: diz que suas ruas eram -*- - - jq-og pOUCOS (jias que 0 abade-geógrafo passou no Rio,
bastante belas, a maior parte das casas bem construídas com =rí-presenciou uma cena deplorável que revela o quão misógina e
pedra e tijolos, ostentando portas e janelas cobertas com vene- __-repressora era a sociedade carioca nos meados do Século das
zianas, a maioria com dois andares, algumas até com três Luzes: uma das passageiras do navio em que viajava o abade
pavimentos, todas cobertas de telhas. As igrejas achou-as tam- ..resolveu conhecer a terra. Mal desembarcou, foi tão perseguida
bém bastante formosas, vastas, ainda que pouco elevadas; em- ê vaiada pelo populacho, sobretudo pelos negros e negras, que
bora quase todo o interior delas fosse esculpido com frisos de _teve"de, correndo, voltar para a embarcação. Escandalizou-se
ouro, eramporém muito escuras. Viunichos e oratórios em quase também o sacerdote com a vida debochada dos monges e ecle-
todas as encruzilhadas das ruas centrais, cujas lanternas eram siásticos do Brasil, reprovando-os pelos maus exemplos de des-

196 197
s
l1
regramento e superstição que praticavam. Reclamou contra os à cidade e foram finalmente expulsos graças à intervenção
gritos e lamentações dos penitentes que, às altas horas da noite, miraculosa da imagem de Santo António do Convento dos Fran-
percorriam em procissão as ruas da cidade, em exercícios pios ciscanos que, em reconhecimento pelo seu poderoso patrocínio,
de flagelação, carregando pesadas correntes que do pescoço se é elevado neste ano àpatente de Capitão de Infantaria. No século
arrastavam pelo chão; 'Várias vezes meu sono foi interrompido XVI São Sebastião protegera e liderara o exército cristão contra
por estas cadeias e gritos que soltavam, pedindo misericórdia". os tupinambá — agora, nos inícios do século XVIII, Santo
Completa sua narrativa dizendo que os assassinatos eram bas- António de Pádua capitaneia a vitória, daí o carinho com que os
tante comuns no Rio de Janeiro, ficando muitos delinquentes cariocas sempre trataram estes dois poderosos oragos.
impunes, pela distância onde eram julgados — na Bahia —, RefLetindo a opulência de porto exportador de ouro, a
coincidindo, contudo, sua estada neste porto com a chegada dos sociedade fluminense se torna a cada década mais complexa;
novos ministros que vinhamparafundar outra Casada Relação, comportando pequena elite mercantil e agrária predominante-
prenúncio da reforma dos costumes desta Capitania que, em mente branca, numeroso clero regular e secular, alguns milha-
"
» menos de duas décadas, há de se tornar a nova Capital do Brasil
Português.
res de oficiais mecânicos, em grande parte já miscigenados com
índios e africanos, umnxtmero menor de brancos e libertos pobres
li Outros autores pintaram quadro diametralmente diverso e numerosíssima escravaria proveniente sobretudo do Congo e
deste francês, como o comerciante inglês John Luccock, que nos Angola. Com o incremento da riqueza, grande número de judeus
* princípios do século XIX descreverá o Rio como "a mais imunda
associação humana vivendo soh a curva dos céus". Aliás, esta é
e cristãos-novos dirigem-separa este litoral, dezenas deles sendo
recambiados para os cárceres do Santo Ofício acusados de prá-
a impressão que nos transmite o autor do livro O Rio de Janeiro ticas judaizantes. No século XVIII o maior número de judeus
no Tempo dos Vice-Reis, Luiz Edmundo, que retrata esta cidade extradidatos do Brasil era proveniente não mais do Nordeste,

l
como "pohre, heata e suja", com. suas ruas lamacentas, valas de mas do Rio de Janeiro: entre 1703-1748, cerca de 192 moradores
esgoto ao lar livre cortando suas principais artérias, bandos de desta Capitania foram sentenciados por praticarem a Lei de
escravos sarnentos e seminus- recém-desembarcados dos tum- Moisés e ultrajarem o Catolicismo, entre eles o carioca e famoso
beiros a percorrer e emporcalhar as ruas e praças da cidade. escritor António José da Silva, o Judeu, queimado no Auto de
Tornado o Rio de Janeiro, nos inícios do século XVIII, porto Fé de 1739, realizado na Igreja de São Domingos em Lisboa.
obrigatório por onde entravam mercadorias e escravos para a Como para o resto da Colónia, a primeira metade do século
efervescente região aurífera, escoadouro dos metais e pedras XVIII representa para o Rio de Janeiro perído de intensa expan-
preciosas provenientes das Minas, conhecerá, nesta época, gran- são e institucionalização do Catolicismo, materializadas sobre-
de desenvolvimento económico, acabando por eclipsar a velha tudo na instalação de numerosas confrarias e construção de
Salvador e tornar-se, em 1763, a capital.e principal cidade do muitas igrejas, capelas e casas religiosas, tanto masculinas

i
d -J
Brasil. Já em 1676, a velha São Salvador recebia o primeiro
golpe à sua hegemonia nacional, quando Inocêncio XI eleva a
cidade de São Sebastião à sede do bispado das capitanias do Sul,
tomando posse efetivamente, em 1681, seu primeiro bispo, Dom
quanto femininas. Não esqueçamos que, de 1707 a 1750, ocupou
o trono português o fidelíssimo e magnânimo Dom João V, o mais
beato, supersticioso e galanteador dos soberanos lusitanos, que
em pagamento de uma promessa para que sua real esposa
José de Barros Alarcão. Em 1710-11, os cariocas padecem serís- parisse, construiu o esplendoroso e gigantesco Convento de

! sima calamidade, com ainvasão dos franceses capitaneados pelo


General Dugay-Trouin, que só decidiram interromper o saque
Mafra, criando o Patriarcado de Lisboa, cuja pompa cerimonial
equiparava-se à da Cúria Pontifícia, gastando fortunas incalcu-

198 199
f

**« -*
34 S
i
••'! •* laveis na celebração de 700 mil missas que foram pagas à custa
íi -;í do ouro proveniente das Minas Gerais. Nas colónias, esta pri-
Francisco na Prainha e São Pedro e Nossa Senho-
ra da Saúde;
meira metade do século é marcada pela mesma beatice, supers-
. 1742 — início das obras da nova catedral; reconstrução do
tição e fausto barroco, gozando o clero, cada vez mais, poder e
Hospício dos Barbadinhos do Desterro;
influência nos destinos da nação em geral e dos cidadãos em
. 1743 — inauguração da Ermida do Menino Deus;
particular.
No caso do Rio de Janeiro, é patente o grande crescimento . 1746 — construção da casa dos romeiros adjunta à Ermi-
da de Copacabana;
institucional do catolicismo neste período, que pode ser avaliado
por alguns fatos e construções arquitetônicas, tomando como . 1748 — doação das terras para a construção da Igreja de

i
Nossa Senhora da Lampadosa; conclusão das
ponto inicial o ano de 1700 e final o de 1917, quando os jesuítas
obras do Convento da Ajuda e dalgréja da Ordem
são expulsos da América Portuguesa:
Terceira Franciscana;
. 1749-— lançamento da primeira pedra da nova catedral;
. 1700 •— fundação da Irmandade de Nossa Senhora da
, 1750 — início das obras do Convento do Desterro e da
Conceição dos Homens Pardos*
Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores;
. 1705 — autorização real para a fundação do convento de
inauguração da clausura do Convento da Ajuda e
religiosas franciscanas; reconstrução dalgrejada
reconstrução de parte do Convento de Santo An-
Misericórdia;
tónio dos Franciscanos;
. 1709 — doação de terras para a construção de um cemi-
, 1751 — criação das freguesias de São José e Santa Rita;
tério para cativos ao sopé do morro de Santo
, 1752 — construção da Igreja de Santa Luzia e da Capela
António;
de Santana dos Barbadinhos;
«1714 — início da construção da Igreja de Nossa Se-
1753 — doação das terras para a construção da Igreja de
nhora da Glória, no outeiro;
São Jorge;
. 1720 — instalação dos capuchinhos italianos na Er-
1754 — início da construção do Recolhimento de Nossa
mida do Desterro;
Senhora do Parto;
. 1729 — compra da Capela do Rosário pela Irmandade da
1755 — início da construção da Igreja da Ordem Terceira
Conceição dos Pardos;
do Carmo;
. 1730 — início da construção do Hospício da Terra
1756 — fundação da Irmandade de São Francisco de Paula;
Santa dos Franciscanos;
1757 — início da construção da Igreja da Conceição do
. 1732 — restauração da Ermida de Nossa Senhora de
Cónego;
Copacabana;
1758 — fundação da Irmandade de Nossa Senhora Mãe
. 1735 — início da construção da Igreja de Nossa Senhora
dos Homens; construção dalgréja de São Gonçalo
da Conceição e da Boa Morte; inauguração da
Garcia; ereção da Capela de São Joaquim do
Igreja de Santana; transferência da catedralpara
Valongo;
a Igreja do Rosário dos Pretos;
1759 — eleição de Santana como padroeira principal do
. 1739 — fundação do Seminário São José;
Rio de Janeiro.
<. 1740 — fundação da Irmandade de Santa Efigênia e inau-
guração de sua igreja; fundação das igrejas de São

200
201
è Ao chegai-, portanto, no Rio de Janeiro, em 1751, a beata Cabeça, da Glória, duas da Imaculada Conceição, da Lampado-
f Rosa Egipcíaca da Vera Cruz encontrou nesta cidade uma sa, do Rosário, da Mãe dos Homens. (O viajante Daniel ELdder,
è riquíssima infra-estrutura religiosa, muito mais complexa e
diversificada do que a existente nas suas Minas Gerais. Para
em 1837, avaliará em mais de 50 o total das igrejas e capelas
existentes no centro e subúrbios do Rio de Janeiro.)
è quem buscava aperfeiçoar-se na via mística, aí encontrou um
prato cheio, tantos eram os conventos, mosteiros e ermidas onde
Nas ruas e esquinas, mais de 70 oratórios dedicados aos
mais populares oragos da corte celeste, muitos deles mandados
se rezava diariamente o Ofício Divino e outros exercícios espi- construir por estímulo do Padre Angelo Sequeira, "que com
rituais inexistentes além da Mantiqueira, onde por ordem régia grande espírito e zelo singular promoveu que em todos os cantos
proibia-se a instalação das ordens religiosas.. da cidade se edificassem oratórios a Nossa Senhora, belos e

« Era então prelado da. diocese o beneditino Dom António do


Desterro, cujo pontificado exerceu por vinte e oito anos seguidos,
dourados, onde se colocam as suas imagens,' diante dos quais
todas as noites se recitam as Ave-marias".
t» de 1745 a 1773. Mais adiante voltaremos a tratar deste bispo,
posto ter interferido pelo menos duas vezes na atividade religio-
Um total de 26 confr ardas reunia milhares de devotos, além
de duas Ordens Terceiras -— de São Francisco e de Nossa
sa de nossa africana: primeiro expulsando-a do recolhimento,
• depois ordenando sua prisão no aljube e envio para os cárceres
Senhora do Carmo —, sendo que só nesta última estavam
inscritos 3.397 confrades e confreiras. Viviam no centro desta
p mquisitoriais de Lisboa.
É através de um relatório, assinado por este mesmo prela-
cidade nada menos do que 380 religiosos conventuais, distribuí-
dos em 6 comunidades: no Mosteiro de São Bento, 69 monges;
fc do, datado de 29 de julho de 1752, conservado no Arquivo Secreto no Colégio dos Jesuítas, 80 professos; no Convento de Nossa
do Vaticano, que ficamos informados com precisão a respeito Senhora do Carmo, 83 carmelitas calçados; no Convento de
da infra-estrutura religiosa e eclesiástica da cidade de São Santo António, 80 frades menores; no Hospício do Desterro, 14
Sebastião do Rio de Janeiro. Segundo avaliação de Dom António capuchinhos e mais 4 franciscanos observantes que esmolavam
do Desterro, possuía esta cidade portuária um total de 24.374 pelo bispado, arrecadando para os Santos Lugares de Jerusalém,
"homens de comunhão", distribuídos em 3.703 famílias. Dispu- O clero secular — chamado na época de "presbíteros de São
nha então de quatro paróquias: a de São José, com 1.870 fogos Pedro" — devia ultrapassar a centena, pois só na Catedral
e 7.440 paroquianos, quê englobava 5 capelas finais e 6 confra- assistiam 30 sacerdotes, 12 na Santa Casa de Misericórdia e 14
rias; a paróquia da Catedral, com 1.350 famílias, 6.449 paro- na Candelária. Em síntese: para quem buscava aperfeiçoar-se
quianos, 4 capelas suff agâneas e 9 confrarias; a paróquia de no caminho da perfeição evangélica, havia mil e uma instituições
Santa Rita, com 4.930 fregueses, 5 capelas e 2 confrarias, e, religiosas de portas abertas para os contritos de coração.
finalmente, a maior de todas as freguesias urbanas, a de Nossa Chegando à cidaderde São Sebastião, diz o Padre Xota-
Senhora da Candelária, com 10.238 paroquianos, 1.295 famílias, Diabos que primeiro hospedam-se em casa de seu conhecido,
4 capelas e 4 confrarias. Portanto, à época em que RosaEgipcíaca António de Oliveira. Não devem ter encontrado dificuldade em
chega ao Rio de Janeiro, existiam aí 23 templos, entre igrejas, alojar-se, pois acolher um sacerdote em casa era uma grande
matrizes e capelas, a saber: São Sebastião do Castelo, Bom honra. São João Maria Vianei, o patrono do clero, costumava
Jesus, São Clemente, São Domingos, São Francisco da Prainha, dizer que, "depois de Deus, o Sacerdote é tudo!"
São Diogo, Santa Cruz dos Militares, São Pedro, São José, Santa Além disso, contava o Xota Diabos com um precioso trunfo:
Rita, sendo mais da metade dos templos dedicados a diferentes procurando construir nova rede de relações sociais, logo conduz
títulos de Nossa Senhora: da Candelária, de Copacabana, da sua dirigida Rosa Maria à casa de um velho amigo, o lisboeta

202 203
João Pedroso, informando que a preta "era serva de Deus, que Eclesiástico fluminense, 11 anos depois desta visão, a retirante
nela se ocultava um grande mistério, que nela falavam os anjos das Minas assim descreveu seu primeiro delírio místico aconte-
e santos e que tinha Lúcifer para a perturbar..." Quem não cido ao nível do mar: estava assistindo à missa, celebrada por
acolheria prenda tão preciosa em sua residência?! seuprotetor, o Padre Francisco Gonçalves Lopes, na dita igreja *
Beata como era, logo que Rosa chegou ao Rio, procurou seu da Lapa, quando
*
pasto espiritual. Em seu processo assim declarou: "Tanto que
cheguei ao Rio de Janeiro, fui à Nossa Senhora da Lapa, ao seu "ao levantar-se a SagradaHóstiaviunelaummenino muito
Seminário, e na Igreja dele me pus a ouvir missa". especioso, vestido de azul celeste, e na cabeça tinha uma
Coincidentemente, instalou-se junto a uma das igrejas tiara pontifícia mui rica, e na mão esquerda uma cruz
mais veneradas desta cidade, cujo prestígio advinha dos mila- pontifícia, e na direita um cetro, com cuja vista ficou ela,
grosos poderes da imagem de Nossa Senhora da Lapa, que aí se ré, fora dos seus sentidos, como amortecida, e caiu em terra,
venerava e que mereceu grande divulgação do já citado clérigo estando de joelhos, e assim esteve. Quando tornou a si, já
*
Angelo Sequeira — o mesmo que patrocinara a. construção de tinha acabado a missa, porém nesse tempo estava sem
oratórios, pelas ruas e vielas cariocas—, através de vários livros sentidos e como morta." *
entre os quais destaca-se a Pedra ímã da Novena da Milagro-
síssima Senhora da Lapa que se Venera nos seus Seminários do Rosa desenvolverá no Rio intensa e particular devoção ao
Rio de Janeiro,, editada em Lisboa em. 1755. Menino Jesus, seguindo neste particular o mesmo trilho de
Ainda hoje está de pé, no boémio bairro da Lapa, esta tantas outras santas e santos, sobretudo o lisboeta tornado
mesma igreja, e, através da aquarela de Thomas Ender (1817), taumaturgo de Pádua, Santo António, o campeão do culto ao
podemos constatar que sua fachada permanece inalterada desde Divino Infante. A iconoggiafia^edi(^da-ao5-piim£ÍrQS_aiios^da
í sua construção, faltando-lhe sempre uma das torres. Provavel- infânciajie Cristo é bastante rica, representando-o no presépio,
mente, esta primeira residência onde hospedaram-se o padre e no colo de sua virginal mãe — às vezes sugando seu impoluto
í 3T- a vexada ficava nas imediações deste templo, no caminho da seio ("Nossa Senhora do Leite") —, no altar da circuncisão, ou *
Ermida do Desterro, próximo à Lagoa do Boqueirão, lagoa que aos 12 anos, no templo entre os doutores, etc. Criancinha, Jesus *
9
mais tarde será drenada, dando lugar ao atual bairro da Lapa Menino é representado via de regra nu, às vezes enrolado em
em sua p arte baixa. Já naquela época lá estavam os gigantescos faixas, com túnicas brancas, ou ricamente bordadas em ouro e 9
Arcos da Carioca, inaugurados, no ano de 1750, pelo Governador pedras preciosas, como o célebre Menino Jesus de Praga, cujo
Gomes Freire de Andrade, que levavam água fresca do Morro guarda-roupa faz inveiaJLJB&is rica das criangasreaisrEm *
do Desterro para o-chafariz do Largo da Carioca, ao pé dos Portugal, o culto ao Divino Infante sempre gozou de grande voga,
franciscanos. A coincidência parece ter sido providencial: Rosa existindo em Lisboa dois grandes altares a ele dedicados: na
Egípcíaca terá sua primeira visão nesta cidade exatamente no Igreja do Loreto, na cidade alta, sob p título de Menino Jesus
distrito do Desterro — título da devoção a Nossa Senhora que, dos Atribulados, e na Igreja do Menino Deus, próxima ao Beco
desterrada de. Belém, com medo de Herodes, foge.para_o Egito}. do Funil, mandada construir pelo magnânimo Dom João V, em
a mesma terra onde nasceu a santa padroeira da ex-prostituta. 1711, em ação de graças pelo nascimento do príncipe herdeiro.
Nossa beata por certo considerava-se também uma desterrada, No Brasil, foram sobretudo os jesuítas os grandes propagandis-
posto ter fugido das Gerais para escapar às perseguições e tas desta pueril devoção, espalhando por muitas vilas e cidades
impiedade ali dominantes. Em sua confissão perante o Juízo do Novo Mundo confrarias do Menino Jesus.
Temos visto Jesus Menino representado com a coroa, man-

204 205
to e cetro reais, uma espécie de miniatura de como é venerado os demais fiéis não vissem, como ela, o Menino Jesus com. uma
na pose de Cristo Rei, às vezes segurando o globo terrestre na cruzinhá às costas entrar miraculosamente dentro da Hóstiaf
mão, outro símbolo de sua realeza. Com os símbolos papais —
arrebatando-lhe incontroláveis gritos: "Que lindo! Que lindo!"
a tiara, cruz e cetro pontifícios —, salvo erro, é uma invenção
caindo em seguida, sem sentidos, com o braço direito e o dedo
mística da negra courana. Percorrendo as igrejas do Velho Rio,
estendidos em riste, tão rijos e tesos, que só seu confessor
provavelmente Rosa deve ter ido, logo nos primeiros dias de sua
conseguia dobrá-los, assim ficando até o momento em que rece-
chegada, ao mosteiro dos beneditinos, onde, até hoje, podemos
bia Jesus Sacramentado da mão do sacerdote. Os êxtases da
observar, no meio de riquíssimas talhas em ouro, nada menos
Egipcíaca Courana neste início de vida na nova cidade serão
que oito santos beneditinos, entre papas e cardeais, todos iden- menos espalhafatosos: prudente, fugindo das justiças eclesiás-
tificados com cruz, tiara e capas pontifícias. Deve ter sido apartir ticas mineiras, não era de bom alvitre chamar muita atenção
destas imagens esculpidas na nave da igreja abacial de São sobre sua negra pessoa. Com o tempo, contudo, a tentação da
Bento que a vidente associou o Menino Jesus à parafernália grandiloqúência mística desbancará sua prudência.
papal. Se consultarmos abelíssima gravura que Leandro Joaquim
Mais uma vez, é no clímax do Santo Sacrifício da Missa, pintou nos finais do setecentos — onde se vê a Igreja da Lapa,
quando o sacerdote mostra Jesus Hóstia aos fiéis, que a vidente o aqueduto e a lagoa do Boqueirão — constatamos que este
"recebe o santo", vendo o Filho de Deus em sua glória pontifícia, subúrbio carioca, além. de ser ainda bastante rural em sua
caindo ipsó facto "como morta" no chão. Estando de joelhos a estrutura arquitetônica e composição demográfica, devia pos-
queda oferecia menos riscos ortopédicos, e já ia longe o tempo suir baixa densidade populacional, sendo vastas as áreas ocu-
em que esta energúmena, inexperiente, se jogava no chão des- padas por vegetação e numeroso o gado vacum e equino aí
cuidadosamente, como ocorrera numa de suas primeiras sessões estacionado. Inúmeras negras com trouxas de roupa na cabeça
de exorcismo, quebrando a cabeça debaixo da estátua de São sugerem que as águas debaixo dos Arcos da Carioca eram usadas
Benedito, na distante freguesia do Inficcionado. A emoção acu- pelas lavadeiras, vendo-se que ainda nesta época alguns tran-
mulada durante- a missa explode no instante da elevação do seuntes atravessavam esta lagoa a vau, ou no cangote de negros
Corpo de Cristo, e Rosa diz não se lembrar de mais nada, ficando brutamontes que, como São Cristóvão, faziam desta prestação
literalmente "sem sentidos", a mesma sensação experimentada de serviço seu ganha-pão. Portanto, não devia ser muito sofisti-
pelos místicos e epilépticos quando retornam ao mundo sensível. cada a população que frequentava a Igreja da Lapa onde Rosa
Que a doutora em êxtases beatíficos, Santa Teresa dÁvila, teve seu primeiro ataque místico. Em terra estranha era melhor
também ela devota do Menino Jesus, explique-nos melhor tal começar devagar, na periferia, conseguindo adeptos e devotos
fenómeno: "A alma virtuosa que Deus suspendeu totalmente o pouco a pouco, e, só depois de contar com o reconhecimento e
intelecto e os sentidos, deixando-a abobada a fim de lhe imprimir confiança pública, partir para o centro da cidade, local onde
a verdadeira sabedoria, durante o tempo que dura este estado, deviam estar as pessoas mais doutas e virtuosas que a negra
não vê, não ouve, nada entende". Ó doce sensação jamais esperava encontrar quando deixou as montanhas do Rio das
l experimentada pela maioria dos mortais! Houve ainda outras
místicas, ou pseudomísticas, como a espanhola Juana Ia Em-
bustera, presa pela Inquisição de Toledo em 1634-, que, no
Mortes.
Foi, portanto, na Igreja de Nossa Senhora da Lapa que
nossa liberta fez seus primeiros contactos nesta cidade, deixada
momento em que o sacerdote elevava a Sagrada Partícula, há duas décadas, quando aos 14 anos fora véndidaparà as Minas.
apontava para a mesma com grande alvoroço, admirada de que Neste templo,
l
206 207
"se encontrou com uma beata chamada Páscoa, e esta lhe
disse que para lhe governar o espírito a levaria ao seu
confessor. E indo ela falar com o mesmo, chamado Frei
Agostinho de São José, religioso franciscano do Convento
de Santo António, natural do Reino e morador no seu
convento, em que era provincial na sua religião, este com
muito gosto tomou conta dela para a dirigir." .

Há evidências comprobatórias de que os conventuais de


Santo António gozavam, há séculos, da reputação de serem bons
confessores de beatas e espiritadas, tanto que, já em 1660, a
embusteira Joana da Cruz, ao ser degredada pela Inquisição
1.
ff' •: lisboetapara o Eâo de Janeiro, declarou em carta escrita ao Santo
Ofício que havia tomado confessor neste convento franciscano.
Páscoa devia ser uma das muitas beatas "dadas à vida
ascética, espiritual, com grandes mostras de devoção, geralmen-
te vivendo em celibato e hábito de freira" (Dicionário Morais),
que frequentavam as igrejas do Rio. Rosa não alimentou ami-
zade particular com esta beata, pois em sua confissão declarou
que dela "não sabia mais confrontação", ou seja, nem de onde
era, nem onde morava. Páscoa deve ter presenciado um ataque
da negra recém-chegada das Minas, e, conhecedora dos méritos
de seu confessor franciscano, talvez sendo também ela própria
uma energúmena, receitou à espiritada que o tomasse como Numa destas casas, em frente à Igreja de Santa Rita, Rosa
governador de seu espírito rebelde. Egipcíaca viveu quando chegou ao Rio de Janeiro em 1751.
Em seu processo, o Padre Xota-Diabos dá outra versão para
esteepisódio: diz que foi seu primeiro anfitrião, António Oliveira,
quem procurou um confessor para Rosa, apresentando-a a Frei
Agostinho de São José. Talvez gozasse este frade de reconhecida
capacidade para apaziguar endemoniadas e orientá-las para o
bom caminho, sendo por isto seu nome duplamente lembrado,
pela beata Páscoa e pelo Sr. Oliveira. A primeira, solidária e
penalizada com 'a negra tão perseguida pelos acidentes diabóli-
cos; o segundo, .certamente desinquieto com as estripulias mís-
ticas de sua hóspede, que, quando atacada, devia provocar
grandes rebuliços em sua residência. Começa, portanto, a cum-
prir-se parte da profecia de sua última visão nas Minas Gerais:

208 209
o próprio superior geral da Província de Nossa Senhora da em seus nichos e que pessoalmente tive oportunidade de admi-
Conceição da Ordem, do Venerável Doutor Seráfico São Francis- rar. Dentre todas destaca-se a belíssima imagem de Santa Rita,
co do Rio de Janeiro aceitava, "com muito gosto", a ex-prostituta com rico esplendor de prata, palma e crucifixo em. cada uma das
como sua filha espiritual. Deus seja louvado! mãos. Possuía então mais de 40.000$000 réis em jóias, incluindo
Deve ter sido por esta época, após algumas semanas na três coroas de ouro representando seus três estados: solteira,
Lapa do Desterro, que a negra muda de residência, passando a casada e viúva. Outros santos dividiam espaço com a padroeira:
viver em casa de Dona Maria de Pinho, moradora defronte da Santo Agostinho, Santo André Avelino, o Divino Espírito Santo,
Igreja de Santa Rita, muito mais próximo do centro comercial e além das demais imagens geralmente existentes em todas as
administrativo do Rio de Janeiro, a meio-caminho entre a Igreja igrejas coloniais: Santo António, Santana, São Miguel Arcanjo,
da Candelária e o convento de seu confessor franciscano. São José. No pátio interno da igreja, adjunto à sacristia, existia
._ v A Igreja de Santa Rita — construída no primeiro quartel um poço cuja água era tida como muito milagrosa, procuradís-
"do século XVIII — tem em sua portada um medalhão cora a sima por seus devotos, para curar todo tipo de incómodos. No
figura da santa prótetora trazendo a data de 1728. É um templo mesmo ano de 1751 em que Rosa muda-se para a casa defronte
pequeno, de uma só torre, sito numa esquina da rua dos Ourives, à Igreja de Santa Rita, esta é elevada à condição de matriz da
defronte a uma pracinha onde, até quando J. Luccock visitou o freguesia, cujo território adentrava-se em, direção ao Campo de
Rio de Janeiro (1816), conservava-se" um "cruzeiro de mármore, Santana, nos limites da região suburbana.
depois substituído por um chafariz, hoje também desaparecido. Através de duas gravuras de Edward Hildebrand (1844)
O templo fora construído por iniciativa da família Nascentes podemos nos aproximar bem perto de corno deviam ser os
i* Pinto, abastados comerciantes, funcionando-anexo o primeiro
cemitério de pretos novos — os quê .morriam logo ao desembar-
arredores da Igreja de Santa Rita nos "tempos do Onça", a
mesma época em que nossa Rosa Negra percorria suas imedia-
.carem—, até que o Morgado do Lavradio mandou-o remover ções. Defronte da pracinha do templo havia um chafariz onde
p para o Valongo. Não muito distante da igreja estava a chácara
:~™dos beneditinos e o aljube-dos padres :—J prisão especial para os
dezenas de negros e negras se acotovelavam para pegar água.
Nos fundos da igreja, outro tanto de gente de cor, uns vendendo
eclesiásticos faltosos. Erá.na soleira de mármore desta igreja,. em barracas e tabuleiros, outros refestelados gostosamente no
• dedicada à santa das causas impossíveis, que os condenados à chão, dormindo à sombra do casario. Daporta da casa onde Rosa
forca vinham se ajoelhar par.a ouvir a última missa antes da morou, na época, dava para distinguir claramente as torres de
execução —• sendo Tiradentes o condenado mais famoso a cum- três igrejas — e certamente, ouvir-lhes o repique dos sinos —,
prir tal ritual, nos finais do século XVIII. A festa de Santa Rita uns toques significando que a Missa ia começar, outros que ali
de Cássia ainda é comemorada todos os anos, aos 22 de maio, se sufragava a alma dalgum defunto ou, então, que o Viático
havendo época, sobretudo a partir de 1759, em que toda a estava prestes apercorrer as ruas paraungir com os santos óleos
nobreza carioca aí se reunia para festejar o Divino Espírito um moribundo.
Santo, sendo então vigário colado o Padre João Correia de Nada sabemos sobre esta Dona Maria de Pinho (também
Araújo, o mesmo da época em. que Rosamudou-separa "defronte" chamada, nalgumas partes do processo, de Maria de Pina). Devia
do dito templo. Apesar de sua aparência de "capela de roça", ser viúva ou solteirona, quem sabe, beata como Páscoa, talvez
segundo expressão do ilustrado cronista carioca Dr. José Vieira também dirigida de Frei Agostinho. Como a maioria dos fogos
Fazenda, em seu interior existiam quase duas dezenas de ima- desta freguesia humilde, a casa de Dona Maria de Pinho devia
gens ricamente ornadas — várias delas ainda hoje conservadas ser humilde, porta e janela somente, quando muito porta e duas

210 211
janelas de frente, com extenso quintal nos fundos. Ainda hoje lá 1568-1930. Comunicação apresentada à Associação de Estudos
estão, defronte da Igreja SantaRita, umameia dúzia de casinhas Populacionais, s.d.
reformadas no século XIX, agora assobradadas, mas que certa- 4. Coaraqy, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de
mente reproduzem a mesma ocupação do solo do século anterior. Janeiro: José Olympio, 1965.
Numa destas moradias viveu Rosa, nos primeiros anos, até a 5. Luiz Edmundo. Op, cit., s.d., p. 12.
fundação do seu recolhimento. 6. Wiznitzer, Arnold. Os Judeus no Brasil Colonial. São Paulo: Pio-
Amoradia de DonaMaria de Pinho era casa virtuosa, tanto neira, 1966, pp. 127 e ss.
que, nas palavras do sacerdote,<fRosa ficou aí recolhida". Reco- 7. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata 769, Doe. 5 (1752).
8. Borba de Moraes, Rubens. Bibliografia Brasileira doPeríodo Colonial.
lher-se, segundo o dicionarista Morais, significa "encerrar-se no São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969, pp. 342 e ss.
mais interior da casa, sem conversações, saída, passeios e outras 9. De Ávila, Teresa. Castelo Interior, Op. cit., p. 101.
diversões". Talvez outras recolhidas compartilhassem do mesmo 10. Imirizaldu, J. Op. cit., 1977, p. 96.
espaço sob a direção desta senhora, prática, aliás, bastante 11. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 557 (22-8-1659).
corrente no Brasil Antigo. Nada dizem os documentos sobre sua 12. Fazenda, J.V. Antiqualhas do Rio de Janeiro, Op. cit., 1923, p. 120.
vida nesta moradia. Devia compartilhar os serviços domésticos,
embora sua condição de espiritada e predestinada à vida mística
certamente a liberasse dos afazeres materiais para dedicar-se
mais à contemplação e exercícios espirituais. Foi aí que a
ex-prostituta de Minas Gerais disse ter acontecido uma de suas
primeiras visões na freguesia de Santa Rita: "Uma noite a
acordaram estando ela dormindo, sem saber quem. E, acordan-
do, viu uma luz brilhante e um menino pequenino como recém-
nascido e disse a ela que louvasse o Santíssimo Sacramento. E
35 ; desapareceu tal visão." O imaginário místico da africana se
Hl
rejuvenesce no litoral: em vez de velhos carrancudos e ameaça-
dores, ou anciãos barbados, é o Deus Menino quem lhe comunica
agora as mensagens do Além.

Notas

1. Azevedo, Thales. Povoamento da Cidade do Salvador: Salvador:


-Editora Itapuã, 1969, p, 189. -
2, La Caille, Abbé Louis Nicolas de. Journal Historique du Voyage
Faitau CapdeBonne-Esperance. Paris: GuillynLibraire, 1763, pp.
- 122 e ss.
. 3. Lobo, Eulália. População e Estrutura Fundiária no Rio de Janeiro,

212 213
10

Sob a Orientação Espiritual


dos Franciscanos

Para Rosa ir da casa onde estava recolhida, no Largo de


Santa Rita, até ao Convento dos Franciscanos, onde vivia seu
novo confessor, bastava seguir alguns passos pela rua dos Ou-
rives, quebrar à rua do Curtume e, após mais ou menos 15
minutos de caminhada pela. rua .da. Vala (atual .Uruguaiana),
logo chegava ao Largo da Carioca. Como toda beata autêntica,
Rosa deviajr__contrita, cabisbaixa, rosário na_mão^-coberta da
cabeça aos pés com. aquelas capas referidas pelo Abade de Ia
Gaíile, que mal permitiam aos transeuntes distinguirj. cor e a
feição das camírIEããEeir'Hõ~chafariz da Carioca, inaugurado em
1723, que com suas 16 bicas abasteciaboa parte das residências
- do centro da cidade, Rosa devia passar ao largo, evitando a
balbúrdia dos muitos negros aguadeiros e lavadeiras acocoradas
no tanque anexo que aí faziam ponto, procurando não ouvir os
mesmos cantares provocativos, insultos e gracejos tão familia-
res, que faziam, a ex-prostituta lembrar-se dos muitos anos que
foi, nas Minas, mulher de ponta de rua. A cada maupensamento,
um sinal da cruz; a cada.tentação, uma Ave.-maria "que, rezada
com atenção e modéstia,, é p inimigo número um do Diabo,
pondo-o logo em fuga: é o martelo que o esmaga!"
Sã e salva dos embustes do Maligno, abeata courana subia
então o morro de Santo António por uma ladeira ao lado, onde
hoje encontra-se a escadaria que leva à igreja dos franciscanos.
Lindo pomar e horta cobriam a banda esquerda deste caminho.
A bela vista do adro desta igreja, descortinando a praia e dela
recebendo a refrescante brisa, contrastava com o burburinho,
calor e mau cheiro da vala que escoava da antiga lagoa existente
no sopé do convento franciscano, em direção à Prainha, não
muito longe do local onde estava armada a terrível forca. Deste

215
v: si

privilegiado mirante, tão belamente retratado por Nicolas-An-


toine Taunay, vislumbravam-se os telhados do casario até che-
gar à Igreja do Carmo e ao porto, sempre coalhado de embarca-
ções de variegado calado; à direita, o Morro do Castelo e, em seu
cocuruto, a Igreja de São Sebastião, em nível mais alto que o
mirante dos franciscanos.
Aí neste belvedere Rosa devia se refazer da caminhada,
secando com a brisa seu corpo suado, limpando a,poeira ou a
lama de seus pés calçados de liberta, antes de entrar no Santo
dos Santos. Os seguintes Salmos de Davi (121 e 83) parecem ter
sido encomendados especialmente para descrever seu estado de
espírito nestas ocasiões:
"Que alegria quando me vieram dizer: vamos subir à casa
do Senhor!... Como são amáveis as vossas moradas, Senhor
dos Exércitos! Minha alma desfalecida se consome suspiran-
dopelos átrios do Senhor. Meu coração e minha carne exultam
pelo Deus vivo... Um dia em vossos átrios vale mais que
milhares fora deles. Prefiro deter-me no limiar da casa de
meus Deus, a morar na casa dos pecadores!"
x Os pecadores estavam bem próximos, a mesma negrada
.*£._
sequiosa de prazeres sensuais, que entulhava o sopé do morro
de Santo António. A ex-meretriz agora só se ocupava em buscar
o divino Esposo. Seu corpo "estava morto porque lhe parece que,
Convento de Santo António, dos Frades Franciscanos, cujo se- ainda que dormisse com algum homem, não sentiria estímulos,
gundo andar foi edificado por Frei Agostinho de S. José, o qual foi o nem nunca mais os teve, sendo antigamente muito vexada
Diretor Espiritual deEosaBgipcíaca quando chegouno Rio de Janeiro. deles".
Este^convento ainda conserva a capela-original dos "Sagrados Cora- 4*~
.31.
Refeita da caminhada, a negra beata tocava então a sineta
ções", mandada construir segundo os moldes revelados à Santa Afri- do convento, solicitando ao irmão porteiro que anunciasse ao
cana numa visão beatífica. provincial que ela, Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, queria
ser atendida por Frei Agostinho.
Na deslumbrante e toda doirada igreja conventual, ficava
aguardando seu confessor, fazendo suas orações nos muitos
altares que ladeiam este maravilhoso templo barroco, o mais
antigo que ainda hoje se conserva na Cidade Maravilhosa._I:Jo
altar-mor, lá estava amilagrosaimagem de Santo Antônioíoragoj
da igreja e convento: '

216 217
Todos os grandes místicos católicos falam da dificuldade
"Escritos antigos e pessoas dignas de fé e a tradição de se escolher um bom diretor espiritual. São João da Cruz
constante confirmam que, ao esculpir-se a imagem de (1542-1591), o austero e piedoso orientador de Santa Teresa
Santo António, a cabeça ficara sempre de tamanho disfor- d5Avila, costumava dizer: "Escolheium entre mil", enquanto São
me em relação ao corpo, até que na portaria do convento Francisco de Salles (1567-1622), o místico confessor de Santa
apareceu miraculosamente a cabeça do santo que perfei- Joana de Chantal, era ainda mais exigente: "Eu digo, escolhei
tamente se uniu ao corpo, como obra fabricada por mãos um entre 10 mil, posto que o diretor deve ser cheio de caridade,
sobrenaturais." ciência e prudência, pois, faltando uma das partes, corre a alma
muito perigo, pois muitos diretores espirituais fazem muito mal
Através das grades de ferro do lado direito da nave, Rosa às almas.
podia espiar a maviosa Igreja da Ordem Terceira da Penitência, Mais adiante veremos quão numerosos foram os confesso-
concluída apenas três anos antes de sua volta a esta cidade. No res na Capitania do Rio de Janeiro que, abusando sacrilegamen-
teto, deslumbrantes painéis com a vida e milagres de vários te da tribuna sacramental, em vez de dirigirem suas penitentes
santos franciscanos, inclusive uma série com as visões de Santa para o caminho do arrependimento e salvação, usavam o recôn-
Clara, sempre tendo a custódia nas mãos. dito dos confessionários para solicitá-las a atos torpes, sendo por
Foi, portanto, após seis meses de permanência no Rio de tão execrando delito denunciados ao Santo Ofício.
Janeiro, quenossabeata começou areceber orientação sistemá- Preocupado com tal parábola revelada pelo crucifixo de
tica do provincial franciscano. Rosa, Frei Agostinho "lhe disse que, se soubesse que aquela voz
Como todo bom diretor de almas, falava dele, lhe daria outro confessor e que se humilhasse ao
Senhor rezando sempre o Credo".
"ensinou-lhe Frei Agostinho de São José vários exercícios Este último conselho era o melhor antídoto sugerido pelos
espirituais, que ela praticou, e passados dois meses, estan- exorcistas contra as ciladas do Demónio, que tinha o costume,
do ela, ré,, em oração,, ouviu uma voz que saía deum. Senhor muitas vezes, de se travestir de anjo, ou falar como se fosse o
Crucificado que trazia consigo e lhe disse: 'Dize ao teu próprio Cristo, mas que, no momento em que a alma vidente
confessor que nos confessionários se assentam duas castas rezava "Creio em Deus Pai Todo-poderoso...", o Pai da Mentira
de confessores: um revestido com. autoridade de Jesus revelava sua insídia, retirando-se incontinenti para o reino das
Cristo, e outro, de Satanás. Uns dirigem as almas para o trevas, geralmente deixando atrás de si repulsiva catinga de
céu, outros mandam-nas para o abismo.' Ficando ela, ré, enxofre queimado. Atéhojepode ser admiradonataesadeLutero
confusa e medrosa, deu parte do dito sucesso ao Padre." outro sinal diabólico: uma mancha negra, interpretada pelos
protestantes como decorrência da tinta derramada por Satanás
Bastaram oito semanas de orientação espiritualparanossa revoltado com os escritos denunciatórios do reformador do cris-
vidente sentir-se suficientemente à vontade e segurapara trans- tianismo,
mitir ao provincial dos franciscanos uma revelação do próprio A humildade do provincial dispondo-se a transferir a orien-
Senhor Crucificado: que nem todo confessor era necessariamen- tação desta sua nova filha a outro confessor mais virtuoso, caso
te representante de Cristo; portanto, subjacente à mensagem, a vidente "soubesse que aquela voz falava dele", incluindo-se,
estava o augúrio de que seu orientador se acautelasse para não portanto, no rol dos operários de Satanás, revela o quão fascinado
levá-la para as profundezas do inferno; antes, que se pautasse e confiante ficou o velho, franciscano com a santidade de Rosa:
pelo exemplo do Divino Mestre.

218 219
m
ou realmente a africana impressionava" pelas suas virtudes, na mão direita, uma enorme vela ou candeia com cinco palmos *
visões e revelações sobrenaturais, ou Frei Agostinho não passa- de altura, da qual lhe vem o nome: Virgem das Candeias ou da
va de um fradeco simplório, propenso a dar crédito fácil aos Candelária, devoção espanhola cuja festa ainda se celebra todo
delírios místicos e "acidentes" de suas orientandas. A evolução dia 2 de fevereiro — na Bahia —, associada, no sincretismo, a
dos fatos há de mostrar que ambas as hipóteses concorreram lemanjá, a deusa das águas.
para propalar a santidade da ex-escrava da mãe de Frei Santa Foi neste mesmo templo que a negrinha Rosa, conforme já
Rita Durão. O carisma de Rosa era forte; a ignorância e fanatis- vimos, por volta, de 1725, recém-chegada da Costa de Judá, foi
mo do clero — do seu primeiro exorcista, depois do provincial e lavada do pecado original, entrando, pelas águas do batismo, no
de outros sacerdotes — mais fortes ainda. grémio da Santa Madre Igreja Romana. Embora não tenhamos
Deve ter sido nestes primeiros meses de aprendizado espi- localizado nos Livros de Batismo da Candelária o registro de
ritual junto ao superior dos franciscanos que Rosa mística teve Rosa, chamou-nos a atenção o fato de que de 1725 até 1762,
sua terceira visão na cidade de São Sebastião: tanto suaperfor- portanto por mais de trinta anos, foi vigário deste templo var-
mance extática, como o conteúdo da mensagem revelada, repe- zeano o Padre Inácio Manuel da Costa Mascarenhas, o mesmo
tem experiências anteriormente sucedidas quando aindaresidia que deve ter batizado nossa negrinha e que continuava respon-
em Mariana. Eis sua narrativa: dendo pela matriz quando de sua visão em 1751. Deve ter sido
este o primeiro sacerdote de quem Rosa se aproximou, inaugu-
"Indo u±a dia à Igreja da Candelária e estando ouvindo rando uma lista de quase duas dezenas de padres, incluindo
missa no altar de Nossa Senhora do Rosário, quando o bispos e cónegos, com quem a africana manter á diálogo, excluin-
sacerdote principiou a dizer Sanctus, Sanctus., Sanctus, do-se deste número, outro tanto de aterradores sacerdotes, os
ela, ré, percebeu claramente uma voz que dizia: 'Eu sou O
inquisidores, que em Lisboa, por anos seguidos, hão de devassar
médico e minha Santíssima Mãe é enfermeira.3 E conti- toda a vida passada da nativa courana.
nuando a missa, ao levantar-se a Sagrada Hóstia, tornou Outro detalhe digno de nota é que se tomarmos como •
a mesma voz repetindo o mesmo, com o que ficou ela, ré, O
referência estas duas datas, a do batizado e a da primeira
atónita, pedindo a Nossa Senhora, se era enfermeira, que revelação ocorrida na Candelária, notaremos que durante tal
tratasse da alma dela e dos demais pecadores/' período aí foram batizadas com maior frequência pessoas de cor
e escravos, do que brancos: em 1725 foram registrados no livro
A Igreja de Nossa Senhora da Candelária, local desta visão de batismo 169 brancos para um total de 275 escravos e demais
eucarístico-hospitalar, ocupa um lugar todo especial tanto na categorias de gente de cor, enquanto que, em 1751, foram 168
história do Rio de Janeiro como na vida de nossa vidente. Foi a registros de brancos para 249 de escravos. Devemos entender e
segunda freguesia a ser criada nesta cidade, provavelmente interpretar a predominância de batizandos de cor na Igreja de
pelos anos de 1634. Em 1723, quando da edição da obra Santuá- Nossa Senhora da Candelária, por ser a única freguesia alter-
rio Mariano, informa seu autor, Frei Agostinho de Santa Maria, nativa do Rio de Janeiro além da Sé, especializando-se a Cate-
que se tratava do mais venerado santuário da cidade, situado dral no atendimento de clientela mais diferenciada, enquanto a
no coração dela, tendo servido como Sé episcopal. Possuía então Candelária se ocupava do populacho, inclusive da numerosa
muitos e ricos retábulos doirados, onde diversas confrarias escravaria que ano a ano crescia às vésperas da elevação dest.a
homenageavam seus oragos. No altar-mor, bela imagem da cidade em Capital da América Portuguesa.
santa padroeira, em roca (armação de madeira revestida com Esta visão no altar de Nossa Senhora do Rosário, na Igreja
rica túnica 'branca), com o Menino Jesus no braço esquerdo e,

220 221
$T
9
do, dada a proximidade de onde residia. O populosobairro Saúde,
• da Candelária, repete a mesma temática de outra, revelação
acontecida há dois anos: apresentando-se como médico, Deus em São Paulo, refere-se igualmente à mesma devoção. A ação
• mandava aos mineiros que guardassem os Dez Mandamentos. da Virgem como enfermeira percorre toda a história cristã, seja
curando os enfermos com suas fontes milagrosas, como em

ííi-J
No Rio, Jesus não dá maiores explicações, nem indica a. medicina
adequada; como nos Evangelhos, Cristo dissera: "os sãos não Lourdes, seja dando bom sucesso às mulheres paridas que a
invocam sob os títulos de Nossa Senhora do Parto, do Ó ou da
precisam de médico, mas sim os enfermos" (Mateus, 9:12; Mar-
cos, 2:17; Lucas, 5:31); portanto, o diagnóstico estava implícito Boa Hora. Coincidentemente, o recolhimento que Rosa fundar á
y na mensagem. Os cariocas também precisavam curar-se de suas
doenças espirituais. De lambugem, o Bom Pastor introduz im-
será dedicado à Virgem do Parto, uma das mais queridas devo-
ções das mulheres casadas naqueles tempos pré-màlthusianos,
il
li portante ingrediente para a saúde espiritual dos cristãos: "mi- onde a gravidez era a triste e inevitável herança deixada por
T,-;™
nha santíssima mãe é a enfermeira". A reação de Rosa não Evá a suas filhas neste vale de lágrimas.
poderia ser mais acertada: pede à enfermeira, e não ao médico, Nove meses após sua partida do Rio das Mortes, o Padre
í

que trate de sua alma e dos demais pecadores. Antecede-se, Xota-Diábos escreve à família Arvelos dando notícia de como
portanto, à moderna corrente da teologia mariológica, que so- -~-~ií-f^~^~-r 'í—~ iam as coisas ao nível do mar. Ao todo encontramos na Torre do
mente no século atual atribuirá oficialmente à Mãe de Deus o Tombo um total de 55 cartas, sendo 26 de Rosa, 22 assinadas
papel fundamental no caminho salvífico como "Medianeira de pelo Padre Francisco e 7 atribuídas às duas filhas da família
todas as graças". O lema tão grato aos marianistas, ad Jesum Arvelos. Tivemos a alegria de encontrar tais documentos so-
per Mariam tem em nossa negra visionária uma versão mais mente na segunda vez que pesquisamos os arquivos da Inquisi-
científica: "ao médico através da enfermeira", considerando que ção lisboeta, enriquecendo sobremaneira a árdua tarefa de
umpedido deMaria equivale aumaordemparaseu divino Filho. reconstituir a biografia dos dois protagonistas deste livro. Mui-
Mais astuta, a negra vai interferir na vontade divina através de tas destas cartas são de dificílima leitura, oferecendo também
canais ainda mais seguros: acionará todos os laços familiares sérios problemas na identificação dos autores. Os biógrafos de
que deram origem ao'Verbo Encarnado. Como veremos mais Santa Teresa d'Avila tiveram, muito maior sorte, pois a refor-
adiante, sua grande devoção a Santana e São Joaquim, pais de madora do Carmelo deixou mais de 400 epístolas, "as quais são
Maria Santíssima e avós do Menino Jesus, foi sua estratégia por assim dizer a melodia que acompanha sua biografia".
para, através de toda a parentela divina, conseguir do Divino Talvez o Padre Francisco tenha mandado anteriormente
Esposo tudo de que necessitava. Rosa será grande devota e a outras cartas que se extraviaram, pois consideramos haver
maior propagandista no Novo Mundo da devoção à família espaço de tempo demasiado longo de silêncio, para quem man-
extensa de Deus, tema que voltaremos a tratar quando das visões tinha laços tão sólidos de amizade e compadrio. Da coleção de
dos cinco corações. 48 cartas trocadas entre o Padre Francisco e Rosa com a família
"Nossa Senhora Enfermeira" não consta no hagiológio Arvelos, esta é a que traz data mais recuada: 15 de dezembro de
mariano, mas outras denominações referem-se a esta mesma 1751. Nela vemos que nossa beata ia de vento em popa no
-função sanitária de Maria: em sua ladainha, a Mãe de Jesus é caminho da santidade e reconhecimento social:
invocada como "saúde dos enfermos" e cultuada sob o título de
Nossa Senhora dos Remédios e Virgem da Saúde. No próprio "Senhor Compadre Pedro Rodrigues Arvelos:
território da freguesia de Santa Rita havia a Capela de Nossa Que o senhor Menino Jesus, Nossa Senhoz*a de Brotas
Senhora da Saúde, templo que certamente Rosa deve ter visita- e a Sagrada Família aumentem a fé, esperança e caridade

222 223
era todos. Me recomende Vossa Mercê muito a Leandra e meiro, foi sustentada pelo Padre Francisco; agora, pelos frades
que não se esqueça de mira, que eu me não esqueço dela. do opulento Convento de Santo António. O zelo com que a
Ao escrever esta carta Rosinha não estava presente: ela mimam, impedindo até que aceitasse os convites de seus novos
anda sempre suspirando por Vossas Mercês e por sua devotos, demonstra que os frades menores encamparam, rapida-
companheira Leandra e pelo pobre António Tavares. As- mente a dirigida do "Provincial Velho", como costumeiramente
seguro que vocês têm em Rosa uma boa oradora,.pois cada • era chamado Frei Agostinho de São José. Ficaram deveras
vez mais cresce no amor de Deus e lhes asseguro, pelo impressionados com suas palavras inspiradas, mortificações
mesmo Deus, que afortunados são aqueles que a têm. extremadas e estrita obediência às ordens de seu diretor espiri-
favorecido, e Vossas Mercês são os escolhidos dosbens dela, tual -— homem de reconhecido poder em lidar com pessoas
e nesta América suponho que não há pessoa mais rica do espiritadas.
que ela. Rosa comunga todas as terças, sextas e domingos
e também dias de festas e santos, ainda que sejam juntos,
Por que teria o provincial dos frades menores aceito "com
muito gosto" ser o guia d'alma desta africana ex-prostituta? Por
m
porque assim lhe determina o seu confessor, o provincial que teriam os franciscanos assumido o sustento material de Rosa
de Santo António. Todos os religiosos lhe tratam nas e zelosamente impediam que oixtros devotos tentassem desviá-la |
palmas [da mão] e lhe fazem muitos carinhos e muitos do Convento de Santo António, dizendo aos que a queriam em \a companh
mimos e me dizem ser aflor desta cidade e lhe dão de comer
e sabem muito bem quem ela é. Tenho fé que na boca dela E a própria beata quem conta, em carta datada dos primei-
muitas vezes fala o Espírito Santo, de que faz admiradas ros meses dê 1752, enviada à Família Arvelos: "Estou muito bem
muitas pessoas nesta cidade, que a querem em sua com- aceita na Igreja de Santo António, do Provincial Velho, homem
panhia. Mas eu não a deixo ir para onde a querem, nem os virtuoso e justo, frequentando o Sacramento três vezes na
padres consentem e dizem: 'largue a mão dela!' Ela se semana. Mais tempo houvera eu cá estar nestas partes! Frei
mortifica muito com cilícios e disciplinas e tanto fogo tem Agostinho me quer muito e mais todos os religiosos desta sagrada
no amor de Jesus, que, se anão impedisse, j á teria acabado Companhia." • . - . - . .
a vida, mas ela não sai do preceito que põem os seus padres Considerando- a importância fundamental que vai desem-
espirituais. ' penhar a Ordem Franeiscana na vida de Rosa, quer na figura
O Compadre muito .obrigado, de Frei Agostinho, o diretor espiritual que introduzi-la-á nos
Padre Francisco Gonçalves Lopes. patamares;superiores da vida mística, estimulando-a na funda-
-i-
ção do Recolhimento do Parto, quer fornecendo-lhe espaço para
P.S. Esta não mostre a ninguém, só ao Padre João Ferreira." seus transes e revelações, muitas delas ocorridas na igreja do
mesmo convento, cremos ser de interesse do leitor penetrar
O Padre Xota-Diabos foi o primeiro e principal propagan- claustro adentro do convento dos franciscanos do Rio de Janeiro,
dista da santidade da negra courana, e nesta sua primeira carta, conhecendo um pouco de sua história, misticismo e escândalos,
como fará em muitas outras, não poupa elogios à sua beata — ingredientes aliás que refletem de maneira cristalina o clima de
elevada agora pelos franciscanos à privilegiadíssima condição fanatismo religioso do nosso período barroco. Rosa é uma típica
de "Flor do Rio de Janeiro", tratada pelos mesmos frades nas mística franciscàna, igual a muitas outras embusteiras da mes-
palmas da mão e deles recebendo seu próprio sustento material. ma ordem, processadas pela Inquisição tanto em Portugal quan-
Desde que alforriada, Rosa viveu às expensas sacerdotais: pri- to na Espanha.

224 225
"Aprouve à Providência Divina distinguir a Ordem. Fran- extremamente popular e simplório de sua espiritualidade, esti-
ciscana, escolhendo filhos seus para primeiros porta-bandeiras mulando certas devoções, consideradas depois pelo Papado como
do Evangelho no Brasil: um grupo de oito missionários vinha
suspeitas ou mesmo supersticiosas, divulgando o culto a certos
com Pedro Álvares Cabral, quando este descobriu a terra que
santos e suas relíquias cuja historicidade hoje é questionada
denominou de Vera Cruz. O estabelecimento definitivo da
pela própria Sagrada Congregação dos Ritos. Não devemos nos
Ordem dos Frades Menores no Brasil se dá em. 1585, com a
esquecer de que foi com o poverello de Assis que se inaugurou
fundação do convento de Olinda, dois anos depois sendo iniciadas
na. Igrej a um dos capítulos mais polémicos — e sangrentos — de
as obras do convento franciscano em Salvador, na, Bahia. Em
sua história mística: em 1224, em seu retiro no Monte Alverne,
1591 abrem casa no Espírito Santo, e já em 1592 as autoridades
nomeio deumêxtasebeatífico, às vésperas da festa da Exaltação
do Rio de Janeiro faziam doação de um terreno para construção
da Santa Cruz, chegou São Francisco à máxima união com
de uma casa conventual cujas obras têm início somente em 1607,
Cristo, recebendo em seu corpo a impressão das cinco chagas e
estando entre os quatro fundadores Frei Vicente do Salvador, o
tornando-se assim uma verdadeira relíquiaviva. Mais chocante
autor da primeira História do Brasil. Nos primórdios residiram
ainda do que os sagrados estigmas, é a dúbia figura que feriu o
os frades na Capela de Santa Luzia, próxima à orla, optando
coração, mãos e pés do fundador da Ordem dos Frades Menores:
depois por construir seu convento em local, mais seguro e recua-
do, no morro que já era dedicado ao segundo mais famoso santo "rezando as orações da manhã, de repente viu São Fran-
da ordem de São Francisco: o milagroso Santo António. Foi o cisco um ser que era ao mesmo tempo um homem e um
próprio Mem de Sá quem assinou a escritura de doação aos serafim. Tinha os braços estendidos e os pés juntos, e seu
frades menores, que incluía o outeiro, seu sopé, pedreiras e águas corpo estava fixo numa cruz. Duas asas se alçavam sobre
que nele se achavam. Comprometeu-se a Câmara do Rio de a cabeça; outras duas se estendiam como para voar e outras
Janeiro a abrir uma rua reta, de 30 palmos de largura, que duas cobriam o corpo. A cara era de uma beleza superior à
pusesse este convento em contacto com o mar, sendo tal rua da terra, embora tivesse marcas de sofrimento."
depois denominada de São José —• a mesma rua onde século e
meio após será construído o recolhimento do qual Rosa há de ser Maravilhosa reprodução desta cena, o "Cristo alado de São
a "Abelha Mestra". Francisco" com deslumbrante esplendor, pode ser vista no altar-
Inaugurado em 1615, já em 1619 instalava-se no Convento mor da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, repetindo-se
de Santo António a Ordem Terceira Franciscana, também cha- no forro do mesmo templo impressionante pintura da estigma-
mM"a~OM'êTn~TeTceira--d:sr-Penitência, cuja belíssima igreja, tização do patriarca seráfico.
adjunta à moradia dos frades, só foi concluída no primeiro ano Seguindo as mesmas pegadas de São Francisco, muitos
do século XVIII. Com o correr dos anos, tal convento tornou-se santos, sobretudo santas, dirão igualmente ter recebido as cha-
a principal casa da circunscrição sul da Ordem Franciscana, aí gas de Cristo, inclusive nossa negra courana — salvo erro, a
residindo desde 1677 o. primeiro custódio e o prelado maior da única africana de que se tem conhecimento de ter merecido
província da Imaculada Conceição. Três séculos antes de Roma tamanha deferência celestial. Segundo levantamento do Dr.
decretar ser dogma de fé que.Maria Virgem fora concebida sem Imbert-Gourbeyère, da Faculdade de Medicina de Clerrnond,
pecado original, os fcanciscanos cariocas já colocavam sob a dos 312 casos de estigmatizados que descobriu na hagiografia
.proteção da Imaculada Conceição sua província meridional. Os católica, 102 pertenciam à Ordem Franciscana—31,7%—, cifra
, filhos de São Francisco sempre se destacaram pelo caráter que por si só revela aforça do exemplo místico do Doutor Seráfico,

226
227
fundando a escola dos chagásicos e servindo de modelo para seus entre os pobres do planalto piratiningano. Certa feita um pau-
correligionários. lista foi pedir suas orações para recuperar um seu escravo há
No Brasil, sobretudo na época em que os milagres ainda pouco fugido; mal virou as costas, encontrou o fugitivo. Como
aconteciam corriqueiramente, centenas de franciscanos distin- agradecimento por tão caridosa graça, mandou o negro fiar
guiram-se pela santidade e muitos eram venerados pelos seus incontáveis arrobas de algodão para os frades. Inúmeros são os
contemporâneos como poderosos milagreiros. O leitor interes- santos franciscanos nesta época que tomara claramente opartido
sado em delírios místicos ocorridos em nosso país de antanho dos senhores, executando o desumano papel de "capitães-do-
encontrará exemplos, os mais incríveis e fantásticos, sobretudo mato". Seu maior milagre, contudo, foi recuperar a vista de
em dois autores: Frei António de SantaMaria Jaboatão, Crónica uma menina cega, curando também muitos enfermos de graves
dos Frades Menores da Província do Brasil (1761), obra comu- doenças, entre eles um recifense atacado da terrível "bicha", a
mente chamada de Orbe Seráfico, e nos diversos livros de Frei mortíferapeste que dizimou incontáveis moradores do Nordeste,
Apolinário da Conceição, morador do Convento do Bio de Janeiro nos anos de 1685 a 16863 o qual, comendo apenas um pedacinho
e cronista de sua ordem, entre eles: Epítome do que em Breve de pão dado pelo beato franciscano, imediatamente recuperou a
Suma Contém esta Província de Nossa Senhora da Conceição saúde. Outro religioso da mesma ordem apontado como santo
da Cidade do Rio de Janeiro (17'30), Pequenos na Terra, Grandes foi Frei Gregório da Conceição (+1704): primeiro tinha sido
no Céu (1732) e ClaustroFranciscano Ereto noDomínio da Coroa soldado, lutando nas guerras contra os holandeses. Convertido,
Portuguesa (1740). tomou o hábito de irmão leigo no mesmo convento do Kio de
Embora até agora nenhum religioso franciscano do Brasil Janeiro, passando contudo o resto da vida em duras penitências
tenha sido canonizado oficialmente, "avultado é o número dos no convento de Santos, nunca deixando de castigar seu corpo
que, abaixo do Cruzeiro do Sul, se guindaram a um grau elevado com cruéis cilícios e flagelações. Possuía o dom da profecia,
de virtude e no seu tempo-foram aclamados santos". Entre eles, prognosticando o futuro de muitos devotos que o consultavam.
citarei apenas três nomes constantes na 6bi:a.Brasileiros Heróis Certa vez recebeu um boi muito bravio como esmola para seu
da .Fe:10 Frei Francisco de Santo António (+1695), chamado "o convento: "chamou-o em nome de Santo António, e o boi veio
Pretinho", irmão leigo, natural de Pernambuco, notável pela mansamente e sem relutância seguir para o convento". Chegou
humildade e pelas muitas horas que de joelhos ficava em oração. aressuscitarumacriancinhano Convento de São Paulo e, graças
Certa vez, contam seus biógrafos, o frade sacristão viu a seu patrocínio, os pescadores de Santos fizeram grandiosa
pescaria num dia em que o mar não estava para peixe, e, em
"que a imagem do Menino Jesus se desprendera miraculo- gratidão, deram-lhe dois cestos cheios para seus confrades.
samente dos braços da Santíssima Virgem e fora colocar-se Na casa franciscana do Rio de Janeiro, hortus minorum
nas mãos do servo de Deus. Depois, acariciado com santa fertilis, o jardim dos frades menores ornados com a santidade
ternura por Frei Francisco, lá voltava para os braços da também foi bastante fértil, produzindo aí mimosas flores de
Divina Mãe o seu Bendito Filho". virtude. Entre os servos de Deus que neste convento morreram
com odor de santidade, o cronista da ordem, FreiBasílio Rower
Trata-se de uma versão crioula do milagre de São Benedito, destaca notadamente quatro frades: Frei António de Jesus
como ele, também negro e irmão leigo num convento da Calábria. (+1680), encontrado, após longa vida ascética, morto, de joelhos,
Outro destacado pelas virtudes foi Frei José^ "o Santinho" com as mãos levantadas para os céus em adoração; Frei Estêvão
(+1686), porteiro do convento do Largo São Francisco de São de Jesus (+1687), enfermeiro do convento, que curava tanto com
Paulo: tinha hábito de distribuir comida de seu próprio prato

228 229
as poções de botica como com fantásticos milagres: quando
morreu, suas relíquias foram tão disputadas que tiveram os
frades de colocar-lhe um segundo hábito, sendo assim mesmo
enterrado com a batina pelos joelhos; Frei Cristóvão da Concei-
ção (+1704), que distinguiu-se pela penitência: comia apenas
uma vez por dia, jogando água sobre seu alimento par a tirar-lhe
• o sabor, e flagelava-se todas as noites, deixando no chão uma
poça de sangue. Quando morreu, também suas relíquias foram

í
disputadíssimas a bofetões pelos muitos devotos. Foi contudo
FreiFabiano de Cristo o mais santo e popular dos servos de Deus
do convento do Rio de Janeiro, merecendo suabiografia a atenção
de vários autores, cujo processo de beatificação inclui uma
relação de 1.925 milagres "confirmados". A veneração de Frei
Fabiano "perdura até hoje [1937] e cresce cada vez mais. E raro
o dia em que não chegue ao convento uma comunicação de graças
obtidas, como é rara a hora do dia em que não se encontrem
devotos diante da urna que encerra seus ossos". Para manter
acesa a chama de sua memória e na esperança de vê-lo reconhe-
cido como santo também por Roma, os franciscanos distribuem
ainda hoje santinhos com uma gravura antiga deste frade, onde
f» se lê uma oração pedindo graças por seu intermédio, e, no final
do texto, um importante lembrete: "Aos devotos de Frei Fabiano
pede-se o obséquio de comunicar as graças por ele alcançadas
ao Revma Padre Superior do Convento de Santo António do Rio
de Janeiro." Possuo dois destes santinhos: um de 1938, com o

l
Imprimatur do arcebispo de São Paulo; o outro, impresso na
década de 80, traz uma pintura moderna, rejuvenescida e em-
belezada do servo de Deus. Tive oportunidade de visitar sua
• Frei Fabiano de Cristo, religioso tumba no claustro do dito convento: parece ter diminuído sua
franciscano, santamente falecido no Rio popularidade, pois nenhum devoto encontrei nos momentos em

f
de Janeiro, no Convento de Santo Antó- que admirava seu ossuário.
nio, aos 17 de outubro de 1747. Morto em 1747, já no ano seguinte o cronista da Ordem, o
citado Frei Apolinário da Conceição, mandava imprimir em
Lisboa sua vida, obras e milagres: Eco Sonoro da Clamorosa Voz
que deu a Cidade do Rio de Janeiro no dia 18 de outubro de 1747,
na Saudosa Despedida do Irmão Frei Fabiano de Cristo. Certa-
mente seus confrades de hábito esperavam que se repetisse a

230 231
r.
mesma façanlia de São Francisco, reconhecido como santo pelo
ò corpo conservava-se flexível, os olhos sem névoa, os dedos
Papa Gregório IX, em tempo recorde: apenas dois anos após sua
estalando como qualquer vivo quando se lhes destroncavam.
morte. O pobrezinho Frei Fabiano teve ventura menor, pois até
Feito um pequeno talho em seu braço, à noite, para se testar
hoje Eoma nem sequer reconhece-o como venerável:
também se a corrente sanguínea dava mostras de vida, na
Nascido em 1676, na Comarca de Guimarães, encontramos
manhã seguinte o braço ainda sangrava, diferentemente do que
Fabiano na vila de Parati, aos 28 anos, como muitos outros
ocorre com o comum dos mortais. Ao amanhecer do outro dia,
reinóis, dedicando-se ao comércio de fazendas se.cas. Aí sucede
"principiou clamorosa voz do devoto povo do Rio de Janeiro a
crucial viravolta ern sua vida: vendo seu sócio comercial ser
proclamar: vamos ver o santo que morreu em Santo António!
assassinado, "sentiu grande comoção em sua alma: começou a Todos queremos ver e beijar seus pés! Tal foi p concurso do povo,
desprezar a opulência deste mundo e, despido, pobre e obediente, que a cidade parecia estar na maior e mais plausível festa". A
propôs servir a Cristo no estado religioso". Em 1704 recebeu o aglomeração dos devotos e curiosos foi tamanha, que por pouco
hábito de irmão leigo no Convento de São Bernardo, em Angra não arrombaram as portas do convento, obrigando os frades a
dos Reis, passando em seguida para a cidade do Rio de Janeiro. transferir seu caixão e velório para a igreja conventual — o
Sua piedade era exemplar: estragava sempre o sabor das comi- mesmo templo onde Rosa há de ter diversas visões e onde se
das, acrescentando-lhes água, cinza ou sal ern demasia; nunca
confessará com o provincial desta ordem.
comia peixe nem bebia vinho; carne, nem pensar; trazia ásperos
Nos séculos passados, quando milagres, aparições e santos
cilícios a. vida toda; dormia poucas horas por noite, sempre
faziam parte integrante do dia-a-dia da comunidade, até mesmo
flagelando-se copiosamente antes de repousar; ajudava muitas
o populacho sabia reconhecer alguns sinais de santidade no
missas diariamente. Era grande devoto das almas do purgatório
cadáver dos falecidos: manter o coi-po flexível e incorrupto além
e praticante da oração mental, tendo fundado, ainda quando
do tempo usual, sangrar quando cortado, exalar perfumes,
estava em Parati, uma confraria dedicada às almas sofredoras.
estalar as juntas dos dedos. Todos esses sinais fantásticos foram
Profetizou a morte de vários religiosos distantes e, para cada
presenciados no franzino corpo do santo enfermeiro.
óbito de um confrade, rezava 800 Padre-nossos e outro tanto de
Na tarde seguinte de seu passamento, o próprio bispo, Dom
Ave-marias. Na qualidade de enfermeiro de seu convento, du-
António do Desterro, subiu o morro de Santo António para de
rante quarenta e um anos de vida religiosa, fez incontáveis
visu presenciar o "exame de flexibilidade" no corpo do servo de
curas, muitas delas reconhecidas como miraculosas. Entre os
Deus. Lá j á estava desconsolado o Governador e toda sua guarda,
beneficiados de seus poderes curativos celestiais encontrava-se
além de destacadas autoridades civis e militares. Não era para
nadamenos que o governador do Rio de Janeiro, o piedoso Gomes
menos: nunca esta cidade tivera um santo tão agraciado pelo
Freire de Andrade, que por quatorze anos privou do conheci-
poder divino! Uma equipe de médicos e cirurgiões procedeu à
mento e intimidade deste santo varão.
vistoria: no local infeccionado das chagas do cilício (ventre), e no
Se em vida Fabiano foi agraciado com formidáveis poderes fétido tumor que Frei Fabiano tinha numa das pernas, em vez
divinais, no dia de suamorte e após a mesma, os céus brindaram de mau cheiro e pus "exalava sangue líquido e cheiroso como
os cariocas com abundantíssimos milagres ainda mais edifican- bálsamo odorífero que os exímios doutores constataram como
tes e fantásticos. Logo ao passar .desta vida para a melhor, sobrenaturais, assim também como o rubicundo e aprazível
começaram os prodígios: quanto mais passavam as horas, mais rosto, reconhecendo por verdadeiro o que a voz do povo publicava
ficavam róseos seus lábios e faces, "sendo antes macilentos". como maravilha de Deus em seu servo". Convencido da sobre-
;Fazia já trinta e tantas horas que exalara seu último suspiro, e naturalidade de tais sinais, o bispo beneditino, ele próprio

232 233
-uSC-

grande colecionador de relíquias e cujo riquíssimo acervo, o ao ataúde do santinho, disse compungido: "Façam hoje do Go-
maior das Américas, pode ainda hoje ser admirado no Mosteiro vernador o que quiserem! Não atendendo neste dia mais que
• de São Bento, "mandou tirar um pedaço do hábito de Frei
Fabiano, tocou na chaga ensanguentada" e recolheu-se para seu
honrar com obséquios ao servo de Deus a quem se reconhecia
obrigado". Governador ultrapopulista, não há como negar!
palácio. Antes, porém, deixou por escrito o seguinte registro: Depois de sepultado ocorreram novos e marcantes prodí-
gios: de sua campa exalou tão delicioso e inebriante perfume que
"Atesto que, esfregando as antigas e asquerosas chagas o claustro do convento ficou tomado de bom. cheiro dias seguidos,
de Frei Fabiano com um retalho do hábito do mesmo servo repetindo aí o mesmo milagre ocorrido com. vários outros santos
de Deus e molhando-o no mesmo sangue, reparamos depois biografados pelos bolandistas, de cujos corpos evaporou odor de
que o tal pedaço do hábito lançava de si um cheiro mui flores: o português São João de Deus (+1550), cujo perfume foi'
suave que recreava o olfato, mostrando cor natural e os sentido até vinte anos depois de sua morte; São Vicente de Paula
olhos cristalinos como se ele estivesse vivo." (+1660), setenta e sete anos após, e São João Câncio (+1473),
cento e trinta anos. Acredite quem quiser!
O piegas governador, descrito por seus biógrafos como Tamanha era a crença na santidade deste frade que, na
exemplar no zelo religioso, castidade, justiça e amor dos povos, noite seguinte ao enterro, um dos muitos escravos deste convento
também nãç perdeu oportunidade de aumentar o número de franciscano, ao rezar o terço, lembrou-se de oferecer um Pai-nos-
seus fetiches sacros: "beijou os pés do santo homem e levou so em intenção da alma de Frei Fabiano. "A isto reclamaram os
algumas relíquias". Eis seu depoimento: mais negros, impugnando o oferecimento, dizendo: Pedi outra
tenção, porque o Santo está no céu e não lhe são necessárias
"Certifico e atesto que o frade morreu de hidropisia, e orações." Glória Jesus! Louvado seja Deus que escreve direito
as chagas que tinha estavam rosadas e naturais, vertendo por linh as tort as eusaaboca dos pobres e humildes par a revelar
sangue líquido. Tinha as mãos, braços e mais partes do seus inefáveis mistérios! Voxpopuli, voxDei...
corpo flexíveis, as cores do rosto como se estivera vivo, o Entre seus milagres post mortem, registrados meticulosa-
que tudo me pareceu e às maispessoas presentes ser efeitos mente no "Instrumento Judicial e Autêntico dos Privilégios e
l sobrenaturais e prodigiosos." Maravilhas que Deus tem obrado por Intercessão de seu Servo
de Deus", cito alguns, escolhidos aleatoriamente—sempre tendo
f
Retirando-se o bispo, o povo dançou e rolou em seus arrou- como objetivo familiarizar o leitor com o clima de misticismo e
II" bos devocionais. Os franciscanos tiveram de recobrir com três devoção acrítica, reinantes no Brasil, na época em que Rosa foi
novos hábitos sucessivos o corpo do santinho enfermeiro, tama- acolhida pelos franciscanos como "a Flor do Rio de Janeiro".
nha a avidez de todos em cortar-lhe retalhos como relíquia. Registram, estas crónicas que o capelão da Igreja de Nossa
Vários de seus cordões e capelos foram piedosamente surrupia- Senhora dos Pretos, o Padre Pedro Nolasco, declarou sob jura-
f, dos, não sobrando sequer um fio de cabelo de sua cabeça, havendo
mesmo um devoto mais guloso, que arrancou disputadíssima,
mento que havia oito dias, fugira-lhe um seu escravo crioulo,
Narciso, assim pedindo ao servo de Deus: "Se o meu escravo que
f relíquia do corpo do servo de Deus: tirou-lhe um dedo do pé! anda fugido, lá onde está, serve a Deus, não permitais que ine
Na hora do cortejo fúnebre — da Igreja de Santo António apareça. Se porém O ofende, sede servido de que brevemente me
para o cemitério no interior do claustro — o Governador Gomes venha para casa." Chegando à sua residência, encontrou-o es-
• Freire de Andrade, ao ver-se empurrado pelo tropel do povo, que, pontaneamente retornado, sendo que nas outras fugas vinha
choroso, rezava o De profundis, disputando um lugar próximo

234 235
manietado. Frei Fabiano, como vários outros santos francisca- na época a conduta pouco ortodoxa e o fanatismo de seus
nos do Brasil, apesar de também ter exercido a repulsiva função confrades dos séculos passados. Diz o escritor:
de "capitão-do-mato", era muito venerado pela negrada, confor-
me patenteia-se através de vários depoimentos de devotos de "Era sintoma característico do tempo colonial o profano
cor registrados no "Instrumento Judicial". Apreta Catarina, por andar de mistura com o sacro. Haja vista as célebres festas
exemplo, escrava de Dona Caetana Maria da Conceição, estava do Divino Espírito Santo rios impérios da Lapa, de Mata-
com retenção de urina por dias seguidos, sem. remédio que a Porcos e Santana, e os mascarados e outras mundanidades
aliviasse. Tinha até sido sacramentada, esperando a morte, nas procissões que o bispo Dom António de Guadalupe
quando ministraram-lhe um pouco de água da moringa perten- (1725-1740) proibiu severamente."17
cente ao servo de Deus. "Em 1/4 de hora conseguiu melhoras,
urinando copiosamente." Manuel de Sousa Lobo, residente na Mundanidades que não eram apanágio do Rio de Janeiro,
rua da Ópera, estava tísico e à beira da morte. O licenciado pois no vizinho bispado de São Paulo o profano às vezes chegou
Boaventura de Deus Lopes trouxe ao doente <cum lenço rubricado a sobrepujar o sagrado nas festas religiosas, como bem mostrou
com o salgue da chaga da perna de Frei Fabiano", cingindo o a historiadora Mary dei Priore, no magnífico trabalho "Deus dá
ventre do enfermo com. tal relíquia; em pouco tempo ficou licença ao Diabo: a contravenção nas festas religiosas e igrejas
completamente são e salvo, dando polpuda esmola para o con- paulistas no século XVIII". Monsenhor Pizarro, o mais arguto
vento em agradecimento. historiador da Igreja Carioca, refere-se igualmente em suas
Numerosos são os registros de curas de sezões, flatos, Memórias Históricas do Rio de Janeiro (1820) à devassa irreli-
retenções de urina, pedras vesicais, prisão de ventre, todas giosidade observada nos templos cariocas, havendo no Arquivo
obtidas graças à intercessão do santo enfermeiro, colocando-se da Cúria deste bispado um escabroso livro todo ele dedicado aos
um retalho de seu hábito num copo d'água, segurando-se em seu "delitos do clero", onde estão registradas ações as mais chocan-
caj ado ou mesmo aplicando tais relíquias no corpo dos enfermos, tes, até agressões físicas com objetos sagrados, perpetrados
inclusive em suas partes íntimas. dentro do próprio espaço sagrado, envolvendo sacerdotes. Tive
Por anos seguidos os frades deste convento brindaram os . este manuscrito em minhas mãos: hoje, infelizmente, encontra-
devotos que subiam o morro de Santo António com um frasqui- se fora do acesso dos pesquisadores, censura abominável de
nho da água da moringa pertencente ao santo enfermeiro, cujos quantos querem esconder o sol com a peneira...
efeitos curativos só equiparavam-se às "Lágrimas da Piedade",
a fonte curativa que Rosa encontrou no morro do Fraga, no "Tempo de muita ignorância, como de muito pouca reli-
caminho do Inficcionado paraMariana. gião; tempo em que o homem se confessa todos os dias, reza
Além de todos esses santos religiosos, dos quais Frei Fa- o terço quase de hora em hora, e vive a pecar de 5 em 5
biano de Cristo foi o mais celebrado, destacou-se também o minutos...
Convento dos Frades Menores do Rio de Janeiro como local O movimento de entrada e saída nos templos é sempre
privilegiado-onde se celebravam as -mais devotas e barrocas extraordinário. Não vai ninguém à rua sem penetrar, no
cerimónias do devocionário popular. O próprio cronista da or- mínimo, a nave de uma igrej a, para tomar águabenta, para
dem, o impoluto Frei Basílio Rower, é quem. chama a atenção fazer sua prece, para afet ar uma religião que, no fundo,
para o grande sincretismo dominante na religião católica de mal professa. As damas de sociedade, quando começam
antanho, diluindo nalicenciosidade e superstição generalizadas pelo fim do século a deixar a clausura da casa colonial, indo
às igrejas no bioco das serpentinas e cadeirinhas, não

236 237
saltam dos seus veículos aporta, mas rio interior das naves "Estigmatização de São Francisco", onde se mostrava este santo
ou sacristias, levando consigo os seus micos de estimação, ajoelhado diante de cruz tão gigantesca, que ultrapassava a
os seus tapetes, as suas esteiras ou almofadas com que altura do segundo pavimento das casas por onde passava. "Doze
forram as anfractuosidades dos lajedos, nelas se acomo- homens robustos tornavam-se precisos para, com esforço, car-
dando. Por ocasião das cerimónias da Semana Santa ou de regar esta almanjarra, honra disputada entre os irmãos tercei-
outras cerimónias mais prolongadas, os escravos trazem, ros que no dia seguinte exibiam aos conhecidos, com orgulho, os
em samburás de palha, viandas, pão, farinha, doce e outras ombros machucados e chagados." Profusão de crianças traves-
gulodices. tidas de anjos com asas de penas de pato e magotes de meninos,
Corne-se regaladamente, limpando com estudada ele-
vestidos com hábito de capucho ou representando os apóstolos,
gância os dedos nos lenços molhados em água de Córdoba, misturavam-se com autoflageladores encapuzados, oferecendo
entre conversinhas e risotas amáveis, de pé, de cócoras, macabro "èspetáculo aos fiéis: No frenesi de que se achavam
deitado. Alguns cochilam, outros meditam, muitos pensam tomados,
em negócios, em amores, era. vinganças. Há ainda quem
cabeceie e cochile, e mesmo quem durma e sonhe. "cada um procurava exceder o vizinho no rigor com que
Quando o sol lá fora esbraseia, a nave, que devia ter a lacerava as próprias carnes ou as alheias, em demoníaca
frescura de um pátio e a doçura de uma sombra amiga, sob competição. Sangrentos, aos gritos, aos saltos, ululando, a
o fulgor de1 centenas de tochas que crepitam, arde, sufoca, estimular-se mutuamente em torvelinho macabro à luz
queima. A atmosfera pesa, impregnada da estranha fra- fumarenta dos archotes, os penitentes ofereciam um èspe-
grância de corolas e incenso, olor suave ao qual, entretanto, táculo dantesco aos olhos dilatados da multidão que em
insolitamente se mistura o mau cheiro que vem das frin- torno do préstito alucinante, meio contaminada por aquele
chas do solo, das paredes e dos lugares onde repousam, delírio, bradava e clamava, incitando-os ainda mais, apon-
sepultados, os defuntos, muitos deles mal entrados na tando a dedo os mais ensanguentados e os que mais se
morte, ainda no prefácio do drama pungente da decompo- destacavam pelo furor. Èspetáculo de histeria coletiva."
• - ,,20 .
siçao... •,
Tal era o clima de exacerbação religiosa dominante quando
Se nos templos o clima era de feira, nas procissões a turba Rosa chega ao Rio de Janeiro: o Rei piegas dava o exemplo
galhofava como se estivesse numa quermesse, quiçá mesmo patrocinando canonizações de santos esquecidos pelos devotos,
numa tourada. Ou então, em vez de risos, namoricos e apalpa- como ocorreu com a italiana Santa Margarida de Cortona; o
delas, predominava nestes cortejos sacros o mais barroco e bispo e o governador disputavam avidamente relíquias do santo
sanguinolento melodrama. De todas as muitas procissões que frade milagreiro; penitentes flageladores percorriam as ruas do
anualmente se realizavam na cidade de São Sebastião, a mais centro não apenas nas procissões das Cinzas e do Senhor dos
concorrida e aparatosa era a Procissão das Cinzas, na quarta- Passos, como também nas altas horas da madrugada, pertur-
feira subsequente ao.carnaval. Instituída em 1647 pelos tercei- bando com seus piedosos lamúrios e correntes o sono do citado
ros da Ordem de São Francisco, de cujo templo partia, este Abade de Ia Caille. Irmandades, confrarias e capelas são eretas
cortejo percorria as principais ruas do centro, fazendo prolonga- umas atrás das outras, homenageando toda a corte celeste: o
das estações nas maiores igrejas da cidade. Era composta de 20 Menino Jesus, sua virgem genitora, seu pai putativo, sua pode-
andores ricamente ornados, destacando-se contudo o andor da rosa avó, seu virtuoso avô e até sua bisavó materna, Santa

238 239
Emerenciana, cuja milagrosa e rica imagem, ainda lá está num menos que 1.590 grandes velas acesas nos altares — "velas
nicho destacado na igreja dos Carmelitas cariocas. grandes", ratifica o arguto observador — imaginemos as despe-
Rosa surge neste sacro décor como se fosse a andorinha da sas faraónicas destinadas ao culto, no século anterior, quando
rArca, de Noé: aos olhos do provincial dos franciscanos e de seus partia do próprio Monarca, Dom João V, a iniciativa de tornar
correligionários, a, negra iluminada representava o que estava o culto religioso tão pomposo e grandiloqúente como o praticado
faltando nesta cidade tão carente, até hoje, do sobrenatural. A na capital do Papado. Portanto, ter um santo ou santa em casa,
América Espanhola já tinha-encontrado sua pérola preciosa: a seja vivo, seja no além, era a garantia de multidões de devotos
°(dominicana Rosa tfé~Lima fora reconhecida santa por Roma a pedir graças e milagres, enchendo com boas moedas de ouro e
l desde 1671. A Divina Providência, tão justa e magnânima com. prata os cofres, que, abundantes, estavam espalhados pelo
/ as ordens religiosas, escolhia agora os franciscanos da América templo, desde sua entrada, passando por todos os altares late-
( Portuguesapara revelar ao mundo a sua "Flor do Rio de Janeiro" rais, até ao genuflexório, ao pé do altar-mor. Dai o vivo interesse
\^— Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz. despertado por Rosa Egipcíaca nos frades menores, naquela
Comõ7 deade princípios de 1752, o Padre Francisco Gonçal- quadra, endividados com as reformas do Convento de Santo
ves Lopes voltara às Minas, posto que viera ao Rio de Janeiro António, certamente contando commenores espórtulas dosíiéis,
tão-somente com a intenção de acompanhar Rosa na sua fuga alguns já esquecidos das virtudes sobrenaturais do santinho
das justiças eclesiásticas, a partir de 1752 a visionária courana enfermeiro, morto na década anterior. Valia a pena investirna
ficará sob tutela integral do "Provincial Velho", que se torna o negra beata, não só para que viesse a servir comgmodelo de
responsável não só por sua vida espiritual, como também por santid^d^p_ara_as_gentes__de_cqr dp_J5rasil — a maioria da
seu sustento material. população daArnéiicj^Pgifeguesa— -cornoJaraMm..^&fiobietudo.
Ter uma santa em casa era honra das mais cobiçadas e para tornar-se o centro de atracão de futuras romarias que
vantajosas para quantos dependiam materialmente da fé e
caridade do povo cristão. Há vários episódios na história da
Igreja, também no Brasil. onde_os_cgrpos de devotos que morre-
Acreditamos ser este o momento adequado para tecer
algumas considerações a respeito da santidade negra, pois Rosa
^
rarncomfkma de santidade foram ayidagiente disputados por Courana deve ter provocado na imaginação dos frades menores
diferentes Igrejas ou agremias.Q.es religiosas. No próprio Rio de do Rio de janeiro a viva esperança de que pudesse tornar-se a
Janeiro, em 1748, ao falecer Irmã Francisca de Jesus Maria, versão moderna, brasileira, de Santa Efigênia, único modelo de
irmã carnal da fundadora do Convento de Santa Teresa, santidade feminina da cor de ébano que, com a escr avaria daqui,.
só tinha de semelhança a cor da pele, pois em vida pertencera à
"osterceirosfranciscanos, cientes das maravilhas queDeus nobrezanúbia, terminando seus dias num mosteiro carmelitano
obrava no corpo da Irmã Francisca, vieram buscar o cadá- — realidade muito distante do comum dos africanos e crioulos
ver para sepultá-lo na igreja da ordem, alegando ser ela do Brasil escravista. Se desse certo, Rosa Egipcíaca tinha tudo
terceira franciscana. Soror Jacinta, sua irmã, sendo con- para torn^r^s.e_tno.delo..universalLdps cativos dê~todo o mundo
tr-ária, não quis. privar-se de tal tesouro, sepultando-o católico colonial, pois, como a maior parte dos escravos, viven-
mesmo com o hábito de carmelita na Capela do Menino ciara os terrores dè^fntumb^lrõT^ofrêrá^vióIênciydos açoites
Jesus."24 . . e ábus.o,.aexual^jn.asj_ arrependida, se convertera em mulher
virtuosa, ^praticante de um sem-número de sacrifícios e exercí-
Se j á no século XIX o viaj ante inglês R. Walsh contou, na cios espirituaisTT^xatàmente do que a padralhada carecia para
Igrej a de Santo António dos franciscanos do Rio de Janeiro, nada

240 241.
S

oferecer como modelo aos milhares e milhares de descendentes fogo em seu convento — milagrosamente-salv-o-por_sua interces-
de(Cam\ daí a "raça" camita, que, após tantos séculos de são —, tornando-se, a partir daí(patrona dos bombeiros/)
evangelização, insistia em praticar as gentilidades de seus ante- As imagens de ambos os santos eram alvo de grande
passados africanos. veneração no convento dos (carmelitas de Lisboa, sendo estes
Seguindo sua vocação universalista, ajgreja. Católica des- frades certamente os introdutores de sua devoção na América
de sêus_primórdios elevou à glória do_s altares alguns poucos PortuguesaTCuriosa é atlêíãlHãaa orientação dada pelo citado
representantes da raça negra, começando na Idade Média a autor carmelitano de como se devia pintar ou esculpir a figura
veneEarjJBfdngTgis magõj]5ppresepjLo^SâoBaltazar, geralmen- de Santo Elesbão — onde alguns traços de seu fenótipo africano
te caracterizado com traços negróides, representando o conti- são mantidos, enquanto outros "embranquecidos."
a.ent_e_afriganp, muito embora não"Tiaj.a_jaalquerjm.encão nas
Sagradas Escrituras quantc^ao nome ou à cor dos três seguidores "Santo Elesbão deve ser pintado ou esculpido da seguin- _
da estrela de Belém. " ' ~~ te forma: preto na cor do rosto e das mãos, que são as partes
Ç TTõmurTdoiuso-brasileiro, quatro foram os negros a receber do corpo que se lhe divisam nuas; cabelo revolto, à seme- O
\r veneração entre os bem-aventurados: Santo Elesbão, lhança daquele com que se ornam as cabeças dos homens
Santa Efígênia, São Benedito e Santo António de Categeró. É de sua cor; as feições parecidas às dos europeus, nariz
t sobre estes personagens que nos ocuparemos a seguir.
afilado, forma gentil,
. „—_ „___.
idade de varão,
*-£~- ~ —'—- ~-~— "'• ~—~
1
cercilho de religioso,
~-•*•~* -•• — • - — —. -É,, .,_._.__,.,.,i i,,. ....

Sintomaticamente, o principal livro em nossa língua dedi- coroa de sacerdote, hábito de carmelita, estará com a mão
cado aos dois primeiros destes santos foi assinado pelo carioca direita cravando uma Iança/n^p3ito_d.e_um_^ei_branco
(Dunaan), estando este submetido de meicHcorpo ao pé
FreiJoséPereiradeSantana(1696-1759),carmelitaobservante,
doutor em teologia, qualificador do Santo Ofício, provincial e esquerdo do santo que o pisa, terá diadema aberto sobre
cronista geral de sua província de Portugal.. Seu livro traz cabelo anelado, rosto trigueiro, melancólico e feio, atado
,,26
bombástico título: Dous Atlantes da Etiópia: Santo Elesbão, com cadeia de ouro no pescoço e mãos.'
Imperador 47a da Abissínia; Advogado dos Perigos do Mar, e
SantaEfigênia, Princesa daN.úbia, Advogada dos Incêndios dos De todos os santos de cor, São Benedito foi sempre o mais
Edifícios, Ambos nn.rm.elifas (Lisboa, 1735). • u querido no Brasil de antanho, sempre representado com seu
hábito marrom de irmão leigo franciscano, tendo nas mãos o
Segundo este autor, Elesbão foi o 47S neto do Rei Salomão
e da Rainha de Sabã, reinando no século VI e destacando-se Menino Jesus protegido por alva toalha de linho/E na^obraMor
pelos seguintes títulos: "acérrimo vingador do sangue dos már- Pêrêgrmapor Preta: Vidã^do Beato Benedito deFiladelfo (Lisboa,
tires, inocente homicida do ímpio Rei Dunaan, príncipe cristia- 1744), de autoria de nosso já conhecido Frei Apolinário da
Conceição, o mesmo biógrafo do santinho enfermeiro do Rio de
níssimo, vitorioso no mar e triunfante na terra, flagelo dos
judeus, açoite dos hereges, varão fiel, vencedor dos inimigos de Janeiro, Frei Fabiano de Cristo, que fomos pinçar alguns dados
sobre a vida do primeiro santo negro_oficialmente canonizado
Cristo, zelador da Igreja Católica". Currículo de fazer inveja até
porJRoma— antes dele os outros pretos foram santificados pela
aSadamHussein.,.- - -;- - -- — - . •:
tradiçáojpopular, sem. merecergrn processos regulares. Benedito
Santa Efigênia, por seu turno, viveu nos tempos imediata-
viveu na SicíHã","lio século XVI, filho de escravos etíopes. Muito
mente após a ascensão de Cristo, sendo batizada pelo evange-
piedoso, entrou para o convento franciscano comcrifmão leigo,
lista São Mateus quando missionava no Reino da -Núbia. Ao
posto provir de raça infecta ipso facto excluída do presbiterato.
entrar para o Carmelo, umreiímpio, inimigo de sua nação, ateou
Entre ae.us_prodígios- .consta ter^êcèb~iaõ^õ" auxíIicTclos anjos

242 243
quando.trabalhava na cozinha do convento, ter multiplicado os testável de santidade peculiar apenas aos santos mais gradua-
peixes para alimentar seus confrades, fazer nascer cinco laran- dos da corte celeste. Não coadunando tanta santidade com o
jas no jardim dó claustro, ressuscitar dois meninos, etc., etc. status de cativo, logo seus devotos outorgaram-lhe a alforria,
Morto em 1587, já em 1612 possuíam os franciscanos do Largo passando boa parte de sua vida mortificando-se numa caverna
da Carioca uma sua imagem, que, segundo documento firmado distante do povoado. Depois de morto, os prodígios atribuídos à
pelo bispo, nesta ocasião, teria realizado portentoso milagre, sua intercessão redobraram, sendo beatificado já em 1589.
salvando um crioulinho de dois anos, mortalmente engasgado A divulgação do culto a est_eg_.qnatr_o_princip.ais santos
com aespinha de umpeixe. Seu culto logo se espalhou pelo Brasil negros no Brasil escray^te_fo_liniciatixa.dos_carjne.litas e fran-
afora, possuindo imagens e altares também em Vila Bica, Recife, ciscanos, correspondendo à preocupação crescente da igreja no
Salvador e Espírito Santo. Sua beatificação oficial se deu em pastoreio' espiríínisrdas genTés~crè~còF — o maior contingente
1743, sendo então sua imagem colocada solenemente na Igreja dem^g7afiS0TÍa~ATÊa"éricã"PõfEuguisa. Embora já no século XVII
do Rosário dos Pretos do Rio de Janeiro, o mesmo templo que a o Padre António Vieira denunciasse em diversos sermões a via
partir de 1735 funciona como sede do bispado fluminense. Foi crucis que era ser escravo no Brasil, é sobretudo no Setecentos
aos pés da imagem de-São Benedito que a escrava Rosa lascou que o clero demonstrará maior cuidado com os descendentes do
a cabeça, na igreja do Inficcionado, quando de sua segunda legendário Prestes João. Esta atenção manifesta-se não só entre
sessão de exorcismos. Era muito comum, ouvir-se, pelas ruas e osinacianosAntonileBenci, que responsabilizavam os senhores
estradas, esmoleres cantarem este refrão: "São Benedito, meu pela vida espiritual de sua escravaria, mas constituiu igualmen-
lindo amor, dai-me sorte, de vossa cor..."2 Embora Frei Apoli- te preocupação assídua de Frei Agostinho de Santa Maria, que
nário da Conceição garanta que o culto ao santo pretinho tinha no seu célebre Santuário Mariano (1722), ao arrolar todas as
--V como escopo provocar nos brancos humildade e nos pretos imagens de Nossa Senhora existentes nos bispados da Bahia e
c" emulação, nem sempre tal ocorria, pois no ano de 1762, na do Rio de Janeiro, inúmeras vezes refere-se à devoção que os
freguesia de Cairu, no sul da Bahia, o lavrador Alexandre "pretinhos" manifestavam a diferentes títulos marianos: "Como
Fonseca, homem branco, foi delatado ao Santo Ofício por insulto os pretinhos sempre andam carregados com a cruz de seu
à fé católica: durante as celebrações da festa de São Benedito, trabalho, abrançando-a com paciência, agradarão muito à Se-
irritado com os louvores prestados a um santo de cor e feições nhora da Salvação e a seu Filho Santíssimo." E portanto neste')
idênticas ás de seus escravos, deu um tiro de bacamarte na contexto de valorização, p_or_p_arte_d.a_jg]cejaj de modelos dei
bandeira do santinho, dizendo — "o que faz este pretinho à vista santidade mais acessíveis e próxLmos_das_gentea_de cor, que!
de Deus e de todo o mundo?!", realizando tal insulto, segundo surge como por ihspíraçaci d"a_Divina Providência, no Rio de
quem o denunciou, "com desprezo, opróbrio e irreverência".28 Janeiro, este mimo enviado p^o^j;éus, RQg£LMSÉíaJEgipcíaca
O último santo negro venerado no Brasil, à época de nossa ,da3£era_Cruz- Certamente o provincial dos franciscanos espera-/
beata africana, também vestia o mesmo hábito de São Francisco varepetir com abeata recém-chegada das Minas Gerais o mesmo
e hoje tornou-se muito mais popular do que antigamente: Santo ; elogio atribuído a seu irmão de cor, Benedito de Filadelfo:
6 António de Noto ou de Categeró. Nascido em 1490 no vale de i
«O Noto, na Sicília, morreu na mesma localidade em. 1550. Benefi- i "Flores brancas nascem nas quatro partes do mundo,
ciado por Deus com poderes sobrenaturais, o simples beijar de porém de cor propriamente negra, nem por milagre em todo
suas mãos curava a quantos padeciam de variegadas enfermi- o universo se achará uma só. No Jardim da Igreja a Divina
dades, ostentando maravilhoso brilho e resplendor, sinal incon- Graça — que na fecundidade não conhece limites —, ador-
p + '?**](.
'" i-i 244 7ms
nando-o com tuna flor ião singular e' peregrina em todo desconhecida por nossos historiadores, que, segundo suas pró-
rigor negra, formoseia com. ela o terrealparaíso da seráfica prias revelações, costumava receber inúmeros ósculos e ample-
religião. .."31
xos do próprio Deus Pai.32 Outro sacerdote, Frei José do Espírito
Santo, também preso pelo mesmo Tribunal, dedicou toda sua
'Rosa. Egipcíaca, Flor do Rio de Janeiro, ora pró nobisl
vida à fabricação de santas, até que aos 70 anos de idade, apesar
Deslocando agora a análise para a perspectiva individual,
da invejável p atente de qualificador do Santo Ofício, foi proces-
constatamos que, para o orientador espiritual debeata oubeato,
sado pelo mesmo delito e confessou que há 32 anos dirigia as
ter filhos reputados como santos representava a certeza de duas
almas de muitas mulheres seculares e religiosas, apelidando a
coroas: tornar-se f arnoso assustas da santidade de seus dirigidos cada uma com nomes mitológicos, como Filotea, Benjamim,
' e garantir um bom lugar nacorte celeste graças ãTintercessão Aurora, Capela, Fénix, reputando-as por virtuosas e ilustradas,
de seus bena-aventurados_disd!puios. Todas as gr,ançles_s antas escrevendo suas vidas e confissões diárias, suas visões e dons
catóHcastiyeramatrás de si um devotado—p-adre- orientador,
celestiais. Visões, diga-se enpassant, que causaram riso e re-
vários deles ãcompanhando-as na glória dos altares. Dentre
provação por parte dos inquisidores, como a representação que
muitos outros, lembramos de Sáo Vicente de Paula, São Fran-
teve uma de suas beatas, vendo o Menino Jesus "tremendo de
cisco de Sales e São João da Cruz, que foram respectivamente
frio pela indiferença dos cristãos", ou como a de Filotea, sua filha
os confessores de Santa Luiza de Marillac, Santa Francisca de
espiritual por vinte e oito anos seguidos, possuidora de virtudes
Chantal e SantaTeresadAvua. Várias foramigualmentenossas em graus heróicos e que constantemente era transportada, em
beatas luso-brasileiras cujos diretores d'alma muito se empe- êxtases místicos, para o seio do Pai Eterno e, igual às demais
nharam na publicidade de suas vidas e virtudes: Dom Sebastião dirigidas, era frequentemente visitada pelo Menino Jesus, sem-
Monteiro da Vide, o autor das monumentais Constituições Pri- pre ávido em mamar nos seus peitos... Neste curioso processo
meiras do Arcebispado daBahia (1707), publicou era Roma anos de Frei José do Espírito Santo podemos folhear vários "livros"
depois a História da Vida e Morte de Madre Victória da Encar- manuscritos pelo frade, morador no Convento da Graça: o Livro
nação, Religiosa Professa do Convento de Santa Clara do Des- de Benjamim acompanha dia a dia, de 1717 a 1720, a evolução
terro da Cidade da Bahia (1720). Em 1747, no mesmo ano em espiritual de uma donzela saloia dos arredores de Lisboa, com-
que Rosa tinha sua primeira visão beatífica, editava-se em parando-a em virtude à Santa Angela, uma das fundadoras da
Lisboa Ocidental a obra Olivença Ilustrada pela- Vida e Morte
Ordem das Ursulinas. Dois outros "livros" manuscritos por este
da Grande Serva de Deus, Maria da Cruz, Filha da Terceira
frade trazem títulos mais pomposos: Retiro da Esposa de Deus,
Ordem Seráfica, de autoria de Frei Jerônimo de Belém. Para
onde ensina os degraus da humildade, e Escada de Nove De-
alguns sacerdotes, ter orientandas com sintomas de santidade
graus, "por onde o Divino Amor levanta as almas ao estado da
e escrever-lhes suas vidas veneráveis era verdadeira obsessão:
perfeição". O castigo dado a estes devotos mistificadores era
FreiMazeu de São Francisco, porteiro do Convento dos Frades
geralmente a suspensão de suas ordens sacras, proibição de
Menores de Lisboa, tinha 62 anos quando foi preso pela Santa
confessar e orientar penitentes, às vezes reclusão num dos
Inquisição, acusado de ter exagerado nos supostos milagres da
conventos mais afastados da sua ordem religiosa.
donzela Maria de Jesus, moradora no Nordeste do Brasil na 'Frei Agostinho de São Jose7"b, franciscano orientador de
segunda metade do século XVII. Em seu processo de mais de Rosa, õ~fTrWmTTM4£elho" comojsra^chamado, seguirá a mesma
700 páginas, podemos apreciar várias versões, corrigidas e tradição etentação de milhares de outros confessores na história
ampliadas, da biografia desta serva de Deus completamente do catolicismo, estimulando sua dirigida não só a entrar na

246 247
delicada via do misticismo, como a deixar por escrito suas visões
e revelações celestiais. Foi logo após a mensagem recebida de
"Nossa Senhora Enfermeira", em fins de 1751, que Rosa Egip-
cíaca inaugura novafase emsuavida espiritual. Eis como narrou
ela própria este crucial episódio, quando ouvida no Juízo Ecle-
siástico do Rio de Janeiro: "Estando nesta cidade em. casa de
Maria de Pina, moradora defronte da Igreja de S anta Rita, ouviu Ú act Ofâl nd.
uma voz que lhe dizia que aprendesse a ler e escrever, a qual
voz tinha já ouvido por duas vezes nas Minas, porque só sabia
v
ler letra redonda." Perante os inquisidores, em Lisboa, deu
versão ligeiramente modificada:

"Em uma ocasião, ao acabar de comungar, sentiu no


interior uma voz que lhe disse que havia de aprender a ler
s.
t*sr
e escrever, que o Espírito Santo lhe daria uma pena florida
que havia de fazer um livro que se chamasse Sagrada
Teologia do Amor de Deus Luz Brilhante das Almas Pere-
grinas. E dando parte ao dito confessor do que ouvira, este
lhe disse que era necessário fazer o que se lhe mandava,, e
que queria ver a pena que se lhe prometia. E tomando
mestre para o referido efeito, a ensinou por ano e meio."

Já nas Minas o Espírito Santo por duas vezes mandara à


africana que aprendesse os segredos da leitura, pois queria Assinaturas originais de Rosa Maria Egipcíaca
"fazer um ninho no seu peito". Rosa diz que já nesta época sabia da Vera Cruz: a primeira, em sua confissão no Audi-
ler "escrita redonda", isto é, letra de imprensa, embora não tório Eclesiástico no Rio de Janeiro, em 1762; a se-
soubesse ainda escrever e entender letra "de mão". gunda, datada de 1764, encontra-se em seu processo
Lastimavelmente, das centenas de páginas manuscritas perante os inquisidores no Tribunal do Santo Ofício
por Rosa, sobreviveram apenas uma carta, datada de 15 de de Lisboa. A involução de sua caligrafia reflete, cer-
novembro de 1752, dirigida^a seu_ex-senhor Pedro Rodrigues tamente, a angústia e desagregação da personalidade
Arvelos e duas páginas de uma visão, ocorrida em abril de 1756, da prisioneira.
cujo conteúdo analisaremos oportunamente. A carta de 1752 é
redigida hápouco mais de um ano em que a negra mina começara
a aprender a escrever. Ao longo das 124 folhas de seu processo,
e das 23 cartas que ditou no Rio de Janeiro, encontramos 7 vezes
sua assinatura. Só nesta carta de 1752 escreveu seu nome
completo: ROZAMARIAEGYCÍACADAVERA CRUZ, Ao ser presa
nesta cidade, em 1762, no processo abreviou seunome para Roza

248 249
Maria Egcíaca, e as cinco vezes que assinou o treslado de suas "Meu Snr. P. RoizArvelos
confissões no Santo Ofício de^Lisboa firmou tão-somente Roza Estas faço pa saber da saúde de VMcê aql. estimarei seja
Ma. perfeita em comp§ de minha Snr8 Ma Thereza de Jesus e
Conforme podemos deduzir a partir de sua escritura, Rosa de minhas Snrâs mossas todas e de toda a mais obrigação
nunca chegou a dominar satisfatoriamente os segredos do alfa- de Casa, desejando que lhe asista aquella feliz saúde e em
beto: possuía caligrafia irregular e infantil, tendo de fazer pautas compâ do Snr. Menino Ds. da Prociunculla. A minha q me
a lápis, no papel, para não escrever torto. Até assinando seu asiste, como hé do agrado de Ds, he boa e offereço ao Ds.
nome, perdia o prumo, escrevendo Rosa no alto, e Maria mais por ter visso de "VMcê e de minha Snra. Esta faço só pordar
abaixo. Foi a lis^.etaJVtaria--5!eresa-do-SaGr-aiaen.tQ>_a_j^gente a VMcê o gosto dever as minhas letras pa VMcê se rir hu
doJEtg^pJhirQento-do-P-ar-to,-q.uem-ensirLQqi-a-jdde_nte a escrever, bucadinho e mais toda a casa. VMcê me mandou dizer q lá
e, de jktD.r^á_inuita^js.eDaelhança entre- -a. caHgr_afía^também não faltavão novidades, mas q não fiava do papel não, pois
primitiva, da portuguesa e a de suajaunua^carecendoàgualmen- eu rezeio saber que pa comêdar a Ds os negócios tãm
te. ajnestr.a pautar_a_lápis as folhas, emjjue escrevia a fim de importantes não se desconfia do papel, ao sim podeme
manteria.linha reta..Malgrado o ano e meio de aprendizado, diz VMcê mandar dizer se ha q desconfia de mim q novidades
o Padre Xota-Diabos que, "apesar de ter mestre, Rosa nunca são; pois me ofereço pa pedir aos Servos de Ds q peção q Ds
pôde conseguir aprender e mal sabia escrever, dizendo que porisso uns no sacrificio da Missa, outros naoração mental,
também Nossa Senhora aprendera a escrever sem mestre". pâ a Ds ponha os olhos depiedade nesses negócios, a meu
!* Afirmação baseada certamente nalguma fonte apócrifa, quem Snr. Pé. Fran00' Giz* Lopes, se ovir q bote abenção a esta
i* sabe, no livro da Soror Venerável Maria de Jesus, franciscana,
Maria Santíssima, Mística Cidade de Deus, editado em 1668,
sua escrava q não lhe escreve porq já vejo q as minhas
letras não tem efficacia no amor de Deus pâ com elle, por
onde se descreve, com os mais imaginativos e fictícios detalhes, isso antão já deixo as cousas correr por conta de Ds, se ovir
toda a vida de Nossa Senhora, obra sem nenhum respaldo deilhe minhas lembrças, e não posso emcarecer as saud
bíblico, pois os Evangelhos muito pouco informam sobre a bio- q delle tenho mais Ds se lember de nois todos e VMcê me
grafia da mãe de Jesus. A irmã leiga Ana de São Bartolomeu, dará tambe mtas sadades a minha Srâ e as Sras. mossas e
secretária de Santa Teresa dÁvila, mereceu melhores atenções minha companheira e ao Snr. Ant2 Tavares; diga a todos q
celestiais, pois, sendo analfabeta, tão logo foi escolhida pela em commendem o negocio a Ds e não se esqueção de mim
santa carmelita para ocupar o cargo de escriba, "desde o mo- q eu nãome esqueço deles: com isto não serve demais.
mento de sua nomeação soube subitamente escrever".34 Ds g e' a VMcê ms. annos.
O certo é que, apesar'da feia caligrafia, escrevendo certa- Pvio de Janro' Novidades que encomende o Reino de França
mentejbem devagar ecom estilo rústico, a africana já em fins a Ds p8 q a heresia não dure nelle mt2 tempo, porq segundo
de 1752, portanto, há menos de um ano da alfabetização, conse- as novas, o Rei está do seu Pallácio e os hereges estãm
gue redigir uma carta de seu próprio punho. Transcrevemo-la governando e asim será grande perda de nos christãos veren
m com a mesma ortografia e pontuação, inclusive com as abrevia- ultr ajarremse as imagens de Maria S antisima ainda o mesmo
* ções tão comuns nos séculos passados: Santisimo Sacram °' no Sacrário e asim peção a Ds por isto.
[R2 de Janra, em 15 de Nov0™' de 1752 anos.
Desta sua escrava q mta lhe ama e quer.
Roza Maria Egyciaca da Vera Cruz."

250 251
Talvez Rosa tenha primeiro ditado a carta para sua mestra Notas
e escriba Maria Teresa, e, a partir deste primeiro escrito, copiou
o texto com sua própria mão. Como já dissemos, Maria Teresa
também escrevia mal, com muitos erros de concordância, e 1. Monfort, São Luiz Maria G. Tratado da Verdadeira Devoção à
mesmo de caligrafia, por exemplo, colocando letras maiúsculas Santíssima Virgem (1718). Petrópolis: Vozes, 1961, p. 239.
no meio das palavras, os mesmos erros também cometidos pela 2. Pizarro e Araújo, Monsenhor José de Souza. Memórias Históricas
ex-escrava dos Arvelos. A forma irónica com que Rosa se refere do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1820, p. 194.
ao seu escrito, depreciando-o, confirma a afirmação do Padre 3. Arrese, M.B. Op. cit., 1974, p. 226.
4. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 14.316.
., Francisco, de que "mal sabia escrever". MalgT^do-ajcusíicidade
5. Rower, Frei Basílio. A Ordem Franciscana no Brasil. Petrópolis:
de sua caligrafia e estilo, não .deixajie ser fantástico que uma Editora Vozes, 1947, p. 26; O Convento de Santo António do Rio de
africana,_como 33 anos, ex-escrava, aprenda a escrever. Salvo Janeiro, s. ed. Rio de Janeiro, 1937.
erro, esta carta, de 1752, é o manuscrito mais antigo de autoria 6. Gobry, Ivan. São Francisco de Assis e o Espírito Franciscano. Rio
dejumjL^ricananolB'r^rs'Íl~de~qu:e~se tem conhrecimento. de Janeiro: Agir, 1959. .
Rosa, ,a partir desta .dafca^-fcornar^se-ágrande escritora. 7. Leal, Juan. Op. cit., 1946, p. 861.
Recebeu o sinal verde de Frei Agostinho, seu diretor espiritual 8. Lorenzatto, José. Op. cit., 1987, p. 23.
nos primeiros cinco anos de Rio de Janeiro, o qual "dizia que 9. Rower, Basílio. Op. cit., 1947, p. 165.
Rosa tinha cheiros de santidade e que escrevesse todos os 10. Altenfelder Silva, Manoel. Brasileiros Heivis da Fé. São Paulo:
sucessos que sentisse a respeito dos favores do céu". Mesmo sem Escolas Profissionais Salesianas, 1928; Pires, Cónego Heliodoro,
nunca ter recebido aprometida "pena florida" daTerceiraPessoa Temas de História Eclesiástica do Brasil. São Paulo, s. ed., 1946.
11. Mott, Luiz. A Inquisição em Sergipe. Op, cit., 1988, p. 66.
da Santíssima Trindade, o velho franciscano alimentou a ima-
12. Rower, B. Op. cit., 1937.
ginação mística de sua filha espiritual, e ela tão seriamente 13. Idem, ibidem, p. 108.
dedicou-se a esta tarefa, que alguns anos mais tarde dirá dela 14. Pizarro e Araújo. Op. cit., 1820, tomo V.
o Padre Xota-Diabos: "Rosa, vive escrevendo e nem tem tempo 15. Fazenda, J. V. Op. cit., 1921, v. 143, p. 89.
de rezar — tudo permltldo_por seu pai espiritual" (Carta de 13 16. Conceição, FreiApolinário..Eco Sonoro da Clamorosa Voz que Deu
de janeiro de 1757 ao Sr. •Arvelos). Dedlcaremosum futuro a Cidade do Rio de Janeiro no Dia 18 de Outubro de 1.747, na
caníiaiLo_ao^_e^jrlto^jte.olQgic.os-da visionária. Saudosa Despedida do Irmão Frei Fabiana de Cristo. Lisboa: Ofi-
Observe o leitor que já nesta primeira carta, há pouco mais cina Inácio Róis, 1748, p. 29.
de um ano e meio sob a orientação espiritual do provincial francis- 17. Rower, B. Op. cit., 1937, p. 64.
cano, nossa beata já se refere à oração mental, prática mística de 18. Vainfas, Ronaldo (org.). História e Sexualidade no Brasil. Rio de
que também nos ocuparemos mais adiante. Observe ainda a Janeiro: Graal, 1988, pp. 89-106.
preocupação tão curiosa da africana pela integridade do Rei Luiz 19. Pizarro e Araújo. Op. cit., 1820, v, IV, p. 18.
20. Luiz Edmundo. Op. cit., s. d., pp. 76-78.
XV e da fé católica na França, certamente tendo ouvido dos 21. Coaracy, Vivaldo, Op. cit., 1965, p. 323,
franciscanos do Convento de Santo António a informação de que 22. Idem, ibidem, p. 332.
nos últimos anos os protestantes franceses aumentavam seu poder, 23. Chérancé, Léopold, Santa Margarida de Cartona. Salvador: Tipo-
cometendo até mesmo desacatos aos templos católicos. grafia de São Francisco, 1928, p. 174.
24. São José, Frei Nicolau. Vida da Serva de Deus Madre Jacinta de
São José. Rio de Janeiro: Est. deArtes Gráficas C.Mendes Jr., 1935,
p, 86.

252 253
25.Apud Carrato, J. F. Op. cit., 1968, p. 49, ' - 11
26. Santana, Frei José de Santana. Op. cit., 1735, p. 332.
27. Frei Odulfo, OFM. São Benedito, o Preto, e seu Culto no Brasil.
Revista Eclesiástica Brasileira, 1941,1, IV, 824-831.
Fundação do Recolhimento do Parto
28. Mott, Luiz. A Inquisição em Ilhéus, Revista FESPI, ano VI, n. 10,
jul. 1987/ dez. 1988, pp. 73-83; Silva, D. Francisco de Paula. Vida
de São Benedito. Bahia: Tipografia de S. Francisco, 1929.
29. Guastella, Salvatore. Santo António de Categeró. São Paulo: Edi- Aprender os segredos da escrita abriu novos horizontes
ções Paulinas, 1986.
para a negra Rosa, levando-se em conta que provinha de uma
30. Santa Maria, Frei Agostinho de. Santuário Mariano e Historiadas
sociedade ágrafa, sendo igru.aJm.ente analfabeta a quase-totali-
Imagens Milag7'osas de Nossa Senhora. Lisboa: Oficina de António
Pedrozo Galram, 1722, pp. 61-63. dade de seus contemporâneos no Perío_do Colonial. A partir do
31. Conceição, FreiApoKnário..KorPere,grinaj3O7' Preta. Vidado Beato momento em que se alfabetizou, encontrou enorme prazer, uma
Benedito deFiladelfo,LeigoFranciscano daSicília. Lisboa: Oficina verdadeira compulsão em botar no papel suas visões7de~vaneios
António de Sousa e Silva, 1744. e.prõí|cia.s. E foi exatamente numa distas ocasiões, emmeados
32. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 753 (9-12-1701). de 1752, quando narrava suas impressões místicas, que ocor-
33. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo na 8.215 (26-8-1720). reu-lhe importante sucesso:
34. Nigg, Walter. Op. cit., 1985, p. 69.
"Emuma ocasião em que ela escrevia sobre a Ave-maria,
nas palavras 'Santa Maria', se lhe suspendeu o braço da
pena, e, levando os olhos a um quadro da Senhora da
Piedade, saiu do mesmo uma voz que dizia: 'Mandai pedir
uma esmola nas Minas ao Padre João Ferreira para com-
prar uma casa e morardes junto com as pecadoras que
dizem ofender a Deus porque não têm uma casa para
morarem.' E dando parte do referido ao seu confessor, este
lhe disse que escrevesse ao dito padre, porque se ele desse
a esmola, era certo que a voz era da Senhora e que, se não
desse, era engano."

Também aqui dispomos de versão diversa nalguns detalhes:

"Estando a escrever aAve-maria, ao chegarnaspalavras


'rogai por, nós pecadores', sentiu um impulso grande no
braço da mão que tinha a pena, e lhe suspenderam com
violência e com. a mesma violência lhe viraram, o rosto para
um quadro de Nossa Senhora da Piedade que estava na
mesma casa, e desta Senhora lhe saíram vozes que diziam
escrevesse ao Padre João Ferreira de Carvalho, morador

254 255
nas Minas do Rio das Mortes, para que lhe mandasse •uma da Piedade, teve seu rosto incontrolavelmente arrebatado para
esmola para comprar umas casas em que ela ré morasse a pintura, sentindo um grande impulso que, com violência,
com as pecadoras que nos confessionários diziam tinham suspendeu e manteve imóvel no ar sua mão e braço — arreba-
ofendido a. Deus por não terem casas para morar, com o tamento que durou o espaço de 6 Credos (aproximadamente 2
que ficou ela suspensa e entrou arezar o Credo, e, acabado, minutos). Como este fenómeno — sua paralisação extática —
lhe veio danaesma Senhora outra voz, que repetisse o Credo permanecesse após rezai- o Símbolo da Fé, afastando portanto
e assim lhe mandou tanto que acabava, de sorte que rezou qualquer suspeita de que fosse obra do Tinhoso, certificou-se de
esta oração seis vezes, e sempre com o braço suspenso, será que o fenómeno era celestial "sem ter disto dúvida". Frei Agos-
o poder levantar, e lhe tornou a mesma Senhora a dizer tinho foi mais prudente: se o padre do Rio das Mortes doasse a
que escrevesse ao padre e lhe dissesse o que ela tinha prometida esmola, então se tratava mesmo "da voz da Senhora;
mandado, e que desse também parte disto a seu confessor, se não, era engano".
com cujas palavras ficou ela ré certificada de que era a Até agora, mais de uma dezena de padres já tiveram seus
mesma Senhora a que falava, e sem ter disto dúvida. Aí nomes registrados nesta história: Padre Francisco Gonçalves
lhe pediu que deixasse ficar o seu braço no seu ser natural, Lopes, exorcista e senhor de Rosa; Padre Luiz Jaime de Maga-
e assim logo sucedeu, e foi dar parte ao dito seu confessor, lhães, vigário do Inficcionado; Padre Matias António Salgado,
o qual lhe disse que escrevesse ao Padre João Ferreira da vigário da Matriz de São João dei Rei na ocasião em que a
mesma sorte que a Senhora lhe mandava. E como ela, ré espiritada aparteou o sermão de Frei Luiz de Perúgia; Padre
depoente, não sabia ainda bem escrever, rogou a José Filipe de Souza, morador namesma freguesia e testemunha das
Gomes, que era seu mestre que a ensinava a ler, que inconveniências da demonopata; os Padres Amaro G-omes de
escrevesse a carta, que com efeito escreveu, e mandou para Oliveira e Manuel Pinto Freire, que a exorcizaram em Mariana;
as Minas ao mesmo padre.'' (-> , Frei Agostinho de São José, seu novo orientador no Rio de
- Janeiro, etc., etc. Outra dezena de sacerdotes aparecerá ainda
Teve, portanto, Rosadois mestres): ajácitadaMaria Teresa ao longo destas páginas, personagens basilares na biografia da
do Sacramento, futura regeSEè~do~Rêcolhiniento do Parto, e este visionária. Como já dissemos, Rosa "adorava" os clérigos, vene-
José Gomes, cuja documentação não fornece outros detalhes rando-os como verdadeiros representantes de Deus na terra,
sobre sua pessoa. Ensinou-a por ano e meio, confiando depois à porteiros das moradas celestes e medianeiros indispensáveis na
citada regente a tarefa alfabetizadora. Alfabetização piedosa, obtenção do perdão dos pecados e do pão dos anjos, a Sagrada
diga-se de passagem, que utilizava-se de orações, como a Ave- Eucaristia.
maria, como tema para exercícios de caligrafia. Rosa Egipcíaca teve o dom de impressionar vivamente
Na história bíblica e na hagiografia católica, muitas vezes alguns sacerdotes, tornando-se objeto de piedosa veneração por
há registro de manifestações físicas nos mortais como sintoma parte dêsíês rronisírõs do Altar. Além do Xota-Díãbos e do
da interferência, divina: São Paulo foi lançado do cavalo e ficou provincial dos frades menores do Elo de Janeiro, mais dois
cego por três dias após ouvir a voz celestial (Atos, 9:4-9); Santa sacerdotes incluíram-se no séquito dos devotos da negra mina:
Maria Egipcíaca, quando ainda prostituta,, "ao chegar à porta o capuchinho Frei João Batista da Capo Fiume, de quem trata-
do templo da Santa Cruz em Jerusalém, de nenhum modo podia remos mais adiante, e este recém-citado Padre João Ferreira de
entrar, porque parecia que a detinham e lhe faziam resistência Carvalho, aquemNossaSenhoramandouque desse uma esmola
para que não entrasse". Rosa, ao ouvir a voz saindo do quadro

256 257
para comprar uma casa onde fossem recolhidas as madalenas Senhor Sacramentado no seu peito e era comparada à Santíssi-
arrependidas. Quem era este sacerdote? ma Trindade".
Quando o bispo Dom Frei Manuel da Cruz tomou posse da Malgrado tanta devoção —verdadeira idolatria —•, o Padre
diocese de Mariana, em 1748, o Padre João Ferreira de Carvalho Ferreira custou a atender o pedido de ajuda para a construção
er aura dos 435 presbíteros residentes nas Minas Gerais, referido do recolhimento:
no rol clerical como "em uso das ordens", isto é, atuando no
ministério sacerdotal. Vivia em São João dei Rei, cura da Igreja "escrevendo por três vezes ao dito padre, respondeu a ela
de São João Batista, o mesmo templo que Rosa, no início de sua ré que era um clérigo pobre e que, se ela cuidava que tinha
conversão, e sua companheira Leandra costumavam varrer e riquezas, se enganava. Tornou-lhe a escrever dizendo que
onde, numa visão, o Divino Espírito Santo lhe ordenara que não sabia se tinha ou não cabedais, e que só fazia o que lhe
aprendesse os segredos da escrita. No Arquivo da Cúria de mandava Nossa Senhora da Piedade, e que, se ela fosse
Mariana encontramos o processo De Genere et Moribus de -um servida, ]h.e moveria o coração para que ele desse aquela
seminarista homónimo, ordenado quando opadre amigo de Rosa e.sxnola, a qual a não queria ela na sua mão, .e que a
jáhaviafalecido. Este padre fora confessor de Rosa, "fazendo-lhe remetesse a Frei Agostinho de São José, seu confessor. E
várias vezes os exorcismes, sendo seu devoto, porquanto, tendo passado algum tempo, na terceira vez que pedia a dita
contradição de algumas pessoas, que diziam não era ela vexada esmola, o padre lhe respondeu que visto Nossa Senhora o
do Demónio, sempre o Padre João Ferreira a defendeu que o era, escolher para a dita esmola, sendo sacerdote indigno, lhe
e por isto era reputado por alguns como homem mentecapto e mandaria 4 vinténs, e com efeito, dali a 3 anos, remeteu ao
ignorante". (Segundo o dicionarista Morais, "mentecapto signi- seu confessor 4mil cruzados de esmolas, com o que o mesmo
fica pessoa com falta de entendimento, louco, idiota, tolo".) frade, vendo aquele efeito, se capacitou de que a voz tinha
Como Rosa, também este clérigo era dado a visões beatífi- sido da Senhora".
cas, porém, em menor grau. Certa feita revelara ao patriarca da
família Arvelos ter visto na hóstia consagrada uma circunferên- A fundação do recolhimento tinha, portanto, o aval divino
cia vermelha, e noutra ocasião uma sombra dentro dela — e um sacerdote das Minas como patrocinador.
provavelmente a mesma visão já referida por Rosa, só que mais Entre a promessa de ajuda financeira por parte do Padre
realística, pois, em vez de auréola encarnada, ela declarou tê-la Ferreira Carvalho e afundação do recolhimento, portanto, entre
visto "toda cheia de sangue". Padre Ferreira era grande devoto meados de 1752 e agosto de 1754, data da bênção da pedra
da negra courana. Um tal de Domingos Francisco Carvalho, que inaugural do mesmo, pouca coisa informam os documentos a
conheceu a ambos quando residentes no Rio das Mortes, conta respeito de nossa biografada. Dividia ela seu tempo entre o
ter ouvido este padre dizer que Rosa "parecia ser uma santa", aprendizado da leitura e escrita e em frequentar seu orientador
convicção adquirida provavelmente quando daquele episódio do espiritual, além dos muitos exercícios pios, missas solenes,
exorcismo com a prova do fogo, pois "este padre punha a vela vias-sacras, procissões, tríduos e novenas, que consumiam, vá-
debaixo da língua de Rosa, por muito tempo, não a queimando rias horas diárias das beatas barrocas.
nem a molestando, persuadindo-se assim de sua santidade". Foi
qualificado pelo Sr. Arvelos como sendo "o maior sectário da "A todas as horas do dia o som dos sinos e mesmo, às
santidade da negra", proclamando que a mesma "tinha Nosso vezes, a detonação de foguetes anunciam a celebração de
alguma solenidade religiosa. Procissões enchem as ruas do
centro do Rio de Janeiro, sobretudo após o pôr-do-sol. Em

258 259
todas as esquinas, em nichos envidraçados, vêem-se ima- ou ditou. Muitos a desejam em sua casa. Ela cá vive cora
gens da Virgem Maria, a quem os transeuntes nunca mais sossego, vai à missa e se confessa com muito sossego
deixam de testemunhar veneração." a cada vez mais. Deus lhe está fazendo favores conhecidos
a muitos e ela tudo oferece a Deus pelos benfeitores e
E através de cinco cartas de Rosa e de duas do. Padre inimigos. Quanto mais padece, mais se alegra."
Francisco, todas dirigidas a seus compadres Arvelos de São João
dei Rei, que podemos pinçar algumas informações e aconteci- A fé deste clérigo na santidade e predestinação da africana
mentos ocorridos entre 1752 e 1754. Já transcrevemos a primei- aumenta dia a dia, e certamente por esta época já estava ciente
ra carta do Padre Xota-Diabos, datada de 15 de dezembro de da correspondência que ela mantinha com seu amigo de São João
1751, onde relatava os primeiros contactos de Rosa quando dei Rei, o Padre Ferreira, sabendo também da promessa de
recém-chegados no Rio de Janeiro. Em sua segunda missiva, de Nossa Senhora da próxima fundação do recolhimento, daí dizer
29 de junho do ano seguinte, dia de São Pedro, o sacerdote, então que "tudo há de ser certo" o quanto Rosinha profetizava. Não
com 58 anos, começa informando estar melhor de uma grande seríamos temerários em suspeitar que ele próprio, o Padre
enfermidade e livre de perigo, porém "ainda com minhas queixas Xota-Diabos, como eminência parda que foi na construção da
causadas das almorreimas". Virtuoso, interpreta as muitas santidade de sua dirigida, tivesse direta ou indiretamente su-
doenças que o afligem como "provas de Deus para sua paciência". gerido a fundação do tal recolhimento, e indicado seu amigo e
Declara agora ver-se bem descansado "porque tenho quem trate colega de sacerdócio, o Padre Ferreira, como futuro mecenas
da criatura com todo o bom trato de comer e de vestir, um bom desta instituição nascente. Para ele, a boa. acolhida com que
amigo que muito lhe quer em sua casa". Tudo nos leva a crer ambos eram premiados nesta cidade podia ser interpretada
que este bom amigo era Frei Agostinho, e a casa acolhedora, o como aval divino, tanto que oferece-se ao Sr, Arvelos, dizendo:
Convento de Santo António. Diz, outrossim, que "me governo "Se Vossa Mercê precisar algo nesta cidade, mande! Inclusive
com a esmola das missas que não me faltam, Deus seja louvado!" com o Sr. Bispo, que é muito meu camarada para tudo o que
A espórtula de uma missa oscilava na época de 200 a 320 réis, quero. Vejo que me quer bem: e todos os bens e tudo isto atribuo
o suficiente para se comprar uma arroba de farinha de mandioca à Divina Providência e à Criatura", a sua Rosinha.
ou aproximadamente 4 kg de carne de sertão, quer dizer, com a Além de privar da camaradagem do Dom António do Des-
esmola de duas ou três missas, podiam-se adquirir alimentos terro, ambos minhotos e da mesma idade, o Padre Francisco
para uma pessoapassarummês inteiro. Celebrando diariamen- criou nestes primeiros meses à beira-mar importantes redes
te, o sacerdote podia levantar de 6$000 a 9$600 réis por mês, sociais: conta ser o confessor de um licenciado da Justiça e amigo
sem falar em outros rendimentos cobrados pelos demais ofícios de Manuel.da Silva Braga, "homem muito rico e muito meu
litúrgicos, como batizados, casamentos, enterros, etc. O Xota- amigo", residente à rua dos Pescadores, em cujo endereço diz
Diabos não podia reclamar de passar dificuldades de subsistên- ser melhor enviar as próximas correspondências advindas das
cia, pois, mesmo sem receber a côngrua destinada aos capelães Minas.
e vigários, tinha com o que viver nestes meses que passou na Deve ter sido em outubro de 1752 que o Padre Francisco
cidade de São Sebastião. resolveu voltar para a Capitania das Gerais: viera para o Rio de
Ainda nesta mesma carta, tece o sacerdote alguns comen- Janeiro com a intenção de livrar sua dirigida da intolerância e
tários relativos à sua ex-escrava: perseguição das autoridades eclesiásticas da diocese de Minas.
Entregue Rosa nas boas e acolhedoras mãos do provincial dos
"Tenho fé que tudo há de ser certo o quanto Rosinha diz

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frades menores, urgia que retornasse à sua casa e freguesia, louvado seja Deus que me tirou desta terra que tanta
pois já vivia na terra do ouro há vinte e um anos, julgando-se confusão causava aos moradores. Assim mesmo houvera
certamente velho demais para começar vida nova em terra de ser. Também o Cristo foi perseguido. Queira Deus que
estranha. Aproveitando a viagem de tão querido portador, Rosa seja para sua salvação tanta crueldade."
dita uma carta a seus amigos do Rio das Mortes, sendo o escriba
provavelmente o seu primeiro mestre, José Gomes, que revela, Rosa conservava frescas na lembrança as humilhações e
além de boaredação, estilo razoavelmente erudito, até afrance- violências que sofrera em Minas Gerais: as feias cicatrizes nas
sando o sobrenome de seu destinatário para "Anvers", em vez costas e seu lado direito lesado pelas chicotadas não deixavam-
de Arvelos, como era o correto. Nesta missiva, após as saudações na esquecer tanta crueldade, daí bendizer o dom de Deus tiran-
e invocações à proteção celeste, Rosa diz que '"rainha saxj.de é do-a daquela terra que não soube distinguir e reconhecer os
boa, inda que com a costumada moléstia que não me larga". grandes desígnios que a Providência lhe tinha destinado.
Refere-se, claramente, às vexações do Malvado, "moléstia" bem O final da carta é todo dedicado a rememorar seus entes
conhecida dos Arvelos desde quando a viram pela primeira vez queridos que ficaram além da Mantiqueira. Abandonada agora
estrebuchar na Capela de Santa Rita, no Rio das Mortes. "Tivera pelo seuprotetor e amigo inseparávelnestes últimos quatro anos
vontade de ir matar as saudades, acompanhando o padre para de tribulação, o Padre Xota-Diábos, o sentimentalismo da afri-
as Minas — diz a negra — mas não foi esta a vontade de Deus." cana dilacera-lhe o coração:
De fato, teria sido uma temeridade voltar à cova dos leões,
sobretudo considerando os novos desígnios celestiais que a "Tenho muita saudade de minha mãe e companheira
predestinavam a ser a mais fragrante flor do Rio de Janeiro. [Leandra], que não sei quando me hei de encontrar com
Revela então, feliz da vida, sua alegria espiritual nesta cidade: ela. Só sei que Deus me afastou dela por meus pecados e
incapacidade; que ela não cesse de pedir a Deus por mim.
"Estou muito bem aceita no Convento de Santo António, Que o Padre José Fernandes não se esqueça do ajuste que
do Provincial Velho, cujo mandato terminou este ano, fizemos. Lembranças ao companheiro António Tavares e
homem virtuoso e justo. Frequento os sacramentos três principalmente a Leandra Maria do Sacramento. Adeus!
vezes na semana, porque estes moradores de Santa Rita Adeus, adeus! Meu padre lá vai. Tratem bem dele!"
murmuravam quando eufreqúentava o sacramento de oito
em oito dias; agora, para avivar a fé dos escolhidos, fre- A terceira carta, datada de 15 de novembro de 1752, dia de
quento na terça, na sexta e no domingo, e quando são dois Santo Alberto Magno, é aúnicamissivamanuscritapelaprópria
dias festivos, frequento junto, sem haver quem murmure vidente, carta que já transcrevemos alhures, e onde Rosa, há
desta ação, porque o confessor é douto e prudente. Mais pouco mais de um mês sozinha, sem o seu Padre Francisco,
tempo houvera eu cá estar nestas partes! E Frei Agostinho lastima sua ausência: "Não posso encarecer as saudades que
me quer muito e mais todos os religiosos desta sagrada dele tenho!" Por duas vezes, neste escrito, ela pede a seus devotos
companhia. Agora vejo que é certo: quando estava naquela de São João dei Rei que "encomendem o negócio a Deus" —
boa cidade [Mariana?] e que dizia Santo António houvera certamente referindo-se à fundação do recolhimento, o "negócio"
de ser meu exorcismador, e que na Igreja tinha homens mais importante na vida desta, conversa, desde que tivera a visão
doutos, como Santo Agostinho —- e logo achei certo que o da Ave-maria.
•' meu padre espiritual tem o nome de Agostinho! Bendito e A quarta carta de Egipcíaca traz a data de 31 de janeiro de
1753: é amais longa de suas epístolas, duas folhas inteiras, com

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letra miúda, escrita por sua mestra Maria Teresa. Tudo nos leva separados pela serra daMantiqueira, amuitos dias de caminha-
a crer que por esta época ambas moravam no recolhimento de da no lombo de animal. Não é para menos que seu pensamento
Dona Maria de Pinho, e deve ter sido sempre aí, na sala deste viva nas Minas, onde, malgrado a ingratidão de seus inimigos,
beatério, que a negra ditava suas cartas e visões à portuguesa. a africana criara fortes laços de amizade e parentesco ritual,
Como nas demais missivas, uma dezena das linhas iniciais é tendo afilhados, compadres e muitos devotos e filhos espirituais.
dedicada a orações, votos de saúde física e espiritual, augúrios Em toda carta, repete as saudades e lembranças a. seus amigos
e pedidos de proteção celeste aos destinatários: "Que o Senhor mineiros: Leandra, António Tavares, os padres seus devotos,
Menino Jesus da Porciúncula [devoção divulgada por São Fran- António Alvares Maciel, Dona Escolástica, etc. Esta carta é
cisco de Assis], que Nossa Senhora das Brotas, a Sagrada particularmente informativa sobre o estado d'alma e situação
Família aumentem a, fé, esperança e caridade de todos!" A existencial da convertida nestes dois primeiros anos de Rio de
introdução'desta nova denominação do Deus Infante revela a Janeiro — seu progresso espiritual e ideal de vida são maravi-
influência de Frei Agostinho, que, como todo franciscano, espa- lhosos:
lhava tal devoção tão cara ao fundador e membros da ordem
seráfica. Nesta carta Rosa refere-se a j á ter mandado "uma carta "Cá fico pensando que Nosso Senhor e Nossa Senhora,
feita por sua letra" e que, malgrado a lentidão dos portadores, emboraricos, viveram pobres, e eu alegro-me em tudo: com
certamente dqvia ter chegado ao Rio das Mortes, posto que os trabalhos me alegro, com a pobreza me alegro, e assim,
despachada há 50 dias. Diz ter enviado outra carta ao Padre no meu ver, sou tão rica porque nada me falta! Quando
Ferreira Carvalho, assim como j á ter escrito a Frei Agostinho e estoumais necessitada, estou mais rica; quando estou mais
ao Padre Francisco, documentos que lastimavelmente se perde- atormentada, estou mais favorecida! Então já posso me
ram. Provavelmente tratava nestas cartas da fundação do reco- gabar, com ajuda de suaDivinaMisericórdia, pois escolheu
lhimento, pois Rosa enfatiza que "o Padre Francisco lesse com para mina um religioso no Convento de São Francisco que
atenção e observe o que nela diz, pelo amor de Deus! porque sei não tenho língua com que explicar o amor com que me ama,
que é proveito para sua alma". Reclama da falta de notícias e porque reparte comigo tanto da riqueza espiritual e tem-
respostas a seus escritos: poral, que nada me falta! Se houver dez dias de festas
contínuas, em comparação, todos dez dias hei de frequentar
"Parece-me que é certo aquele ditado: quemnão aparece, o Divino Sacramento, e vejam Vossas Mercês então que
esquece... Eu, por vossas mercês, posso dizer isto, vossas riqueza é esta minha, sendo eu uma criatura frágil, em tudo
mercês por mina, não! Não há hora em minhas fracas pobre, em tudo vil, que me confiando ver estas grandezas!"
orações e limitadas obras que de Vossas Mercês me não
lembre, e se eu andaratanto como o meu pensamento anda, E concluiparafraseando a Primeira Epístola aos Coríntios:
sempre estaria lá junto com Vossas Mercês!" "Deus escolhe as pessoas mais pequenas para confusão dos
maiores..." Compare-se com o texto de São Paulo: "Deus escolheu
Pobre negrinha! Primeiro apartada de sua tribo, natal os fracos do mundo para confundir os fortes" (I Cor. 1:27).
ainda menina; adolescente, é arrancada da casa onde a criavam Em menos de dois anos de orientação espiritual, a vexada
e vendida para as Minas Gerais; após quase vinte anos no africana revela estar instruída não só em Teologia e nas Sagra-
Inficcionado, tem de fugir às pressas para o Rio de Janeiro, com das Escrituras, como também sobre ávida dos santos:
medo das justiças eclesiásticas; agora, após quatro anos de
convívio diuturno com o bondoso Padre Xota-Diabos, ei-los "Não se admirem de Deus ter-me escolhido, sendo cria-

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turatãobruta. Deus escolheu grandes pecadores, como São mil cruzados, conforme mandara a Mãe de Deus. Num outro
Pedro que o negou três vezes, São Paulo que perseguiu sua documento consta ter sido 550 mil réis o valor enviado pelo
cristandade, Santo Agostinho que fez muitos livros contra benfeitor mineiro. Tratava-se de quantia assaz significativa,
a Santíssima Trindade, Santa Maria Madalena que foi pois, por esta mesma época, o rendimento anual da Igreja de
grande pecadora, Santa Maria Egipcíaca que foi mulher Nossa Senhora da Conceição do Mato Dentro atingia por volta
lasciva! Não que eu seja igual a eles, mas confio nos divinos de 6 mil cruzados.
favores e que o Demónio está debaixo dos pés de todos os
infernos! Pois a glória acidental de Deus é uma glória que "Assim, emposse dotal dinheiro e outras muitas esmolas
ele estima sobre a glória essencial de um pecador arrepen- que concorreram, determinou Frei Agostinho de São José
dido..." ela, ré, que sefizesseum.recolhimentopara as ditas pessoas
que tinham vida lasciva e diziam que ofendiam a Deus
Quão inefáveis são, e incompreensíveis, os desígnios do porque não tinham casa para morar, e com efeito, no ano
Senhor, que coloca na boca de uma negra, há poucas décadas de 1754, juntou uma grande soma e se principiou o dito
retirada das selvas africanas, palavras e conceitos tão edifican- recolhimento junto à Igreja de Nossa Senhora do Parto no
tes e de tamanha profundidade teológica! Cumprem-se as escri- Rio de Janeiro."
turas: "Bendito sois, Pai, Senhor dos Céus e .da Terra, que
escondestes estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelastes Este é o momento de introduzir o leitor num. outro capítulo
aos pequeninos" (Mateus, 11:25). A sofisticação mística da ex- de nossa história religiosa, imprescindível para a compreensão
prostituta inclui conceitos extraídos da Suma Teológica de Santo destes fatos: a fundação dos recolhimentos no Brasil Colonial.
Tomás de Aquino, como esta distinção entre "glória acidental e Semelhantes, na estrutura interna, aos conventos e mos-
glória essencial", só compreensível aos- iniciados na teologia teiros de freiras, que se recolhiam do mundo para dedicar-se à
escolástica. Certamente Rosa ouvira tais distinções, seja de seu vida religiosa, nos recolhimentos as internas não faziam profis-
confessor franciscano, seja nalgum sermão. são ou votos religiosos, como as freiras regulares, embora vives-
Tranquila na sua nova vida, regalada frequentemente com sem também sob regime de reclusão, total ou parcial, depend-
o banquete eucarístico, apoiada e venerada por pessoas de endo da instituição. Enquanto nos conventos, mosteiros e aba-
destaque, acreditada e muito .amada pelo seu novo orientador dias predominavam as virgens e donzelas, excepcionalmente
espiritualj Rosa viverá entre 1752 e 1754 o auge de sua felicida- aceitando-se viúvas honestas, desde os primórdios da cristan-
de. Vivendo como recolhida em. casa de Dona Maria de Pinho, dade os recolhimentos foram procurados por mulheres convert-
sua vida era assistir à missa e cerimónias litúrgicas, quer na idas, muitas buscando, na vida comunitária e reclusa, a peni-
vizinhalgreja de SantaRita, de Santo António ou da Candelária, tência, o amparo e a negação do errado passado. Santa Maria
dedicando o tempo que lhe restava, em casa, a escrever ou ditar Madalena é considerada pela hagiografia como a fundadora do
cartas e visões que frequentemente lhe ocorriam. primeiro recolhimento de arrependidas: após milagrosa traves-
Voltemos-então, ao .final daquela:visão, em que Nossa Se- sia do Mediterrâneo, numa barca sem leme que da Palestina
nhora da Piedade inspirou à alfabetizanda Rosa, no ato de ancorou no sul da França, fundou com. suas companheiras de
escrever a saudação angélica, para que fundasse uma casa para viagem, nas cavernas da Sainte-Baume, o primeiro eremitério
convertidas. Corria o ano de 1754 quando o benfeitor desta obra, de mulheres da Europa. Em Portugal, ermitoas e beatas reu-
ó Padre João Ferreira Carvalho, envia os "4 vinténs", ou seja, 4 niam-se em pequenas comunidades isoladas do mundo, desde a.
Idade Média, sendo contudo, apenas no século XVI, fundadas as

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primeiras casas pias deste género: a Casa da Piedade das capitanias, diversas vezes os colonos manifestaram vivo interes-
Penitentes, o Recolhimento de Santa Marta (1569), o Recolhi- se na fundação destas casas pias, seja para enclausurar donze-
mento da Natividade ou de Santa Madalena (1587), o Recolhi- las, seja para reformar mulheres de vida errada. Segundo Frei
mento de Nossa Senhora do Amparo (1598), o de São Pedro de António de Santa Maria Jaboatão, data de 1644 o primeiro
Alcântara (1594). Nosfínais do séculoXVII, em Coimbra erige-se pedido dos residentes de Salvador para a fundação de um
o Recolhimento do Anjo. Em 1704 é a vez da criação da Casa Pia "mosteiro de religiosas" nesta cidade, autorizado somente em
de Nossa Senhora da Encarnação e Carmo, no lugar de Rilha- 1665 pelo Rei e em 1669 pelo Papa, chegando, porém, as quatro
folles em Lisboa, e, em 1746, a do Outeiro da Saúde, em. Coimbra. primeiras fundadoras do Convento do Desterro da Bahia, em
Na colónia indiana de Goa, nos finais do século XVI, são fundados 1677, provenientes do Mosteiro das Clarissas de Évora, tendo
os Recolhimentos de S anta Maria Madalena e de Nossa Senhora como abadessa a Madre Margarida da Coluna. Após dez anos
da Serra ou do Monte.2 Na América Espanhola, data de 1526 a de ereto, o Convento do Desterro completava as vagas de sua
construção do primeiro recolhimento de mulheres, na Hha de clausura: 50 religiosas de véu preto, embora fosse muito maior
São Domingos. o número das candidatas ao noviciado, ou melhor, o número das
Segundo nosso principal estudioso da vida religiosa femi- famílias que desejavam enclausurar suas filhas, seja por não
nina, Riolando Azzi, no Brasil, os primeiros ensaios de criação encontrarem no Brasil cônjuges à sua altura, seja p ar a excluí-las
de recolhimentos de tipo conventual aparecem no século XVI, do rol dos herdeiros, evitando assim dividir o património familiar.
quando o Padre Manuel da Nóbrega, da Companhia de Jesus, Ainda nos finais do século XVH conhecemos duas tentati-
demonstrou intenção de organizar "casas de recolhimento como vas frustradas de fundação conventual e a existência de outras
de freiras para abrigar meninas indígenas". É contudo em duas casas religiosas femininas que conseguem sobreviver por
Olinda onde se funda nossa primeira casa de recolhidas, já algumas décadas: em São Paulo, em 1685, seus moradores
funcionando em 1576 e referida no Livro das Denunciações de constróem o Recolhimento de S anta Teresa, destinado às filhas
Pernambuco em 1593 como Recolhimento de Maria Rosa. da elite local, passando a convento carmelitano somente em
Segunda Azzi, sob o termo recolhimento existiram quatro 1748; em 1687 é a vez da viúva Dona Cecília Barbalho, que
tipos de instituições diversas, destinando-se à educação de recolheu-se com três filhas e duas meninas nobres numa casinha
meninas; à reabilitação de madalenas arrependidas; à observa- adrede construída ao lado da Ermida da Ajuda, na cidade do Rio
ção por piedosas mulheres; sem votos, das regras das ordens de Janeiro. Chegando a licença régia para a ereção de um
terceiras e, finalmente, uma espécie de convento com votos convento no mesmo local em 1705, as obras só foram concluídas
particulares e clausura, mas sem autorização real. Como se sabe, em 1748 e enclausuradas as primeiras clarissas, vindas do
até o Império, qualquer fundação de casa religiosa conventual, Desterro da Bahia, em 1750. Também no século XVII, nesta
até mesmo os recolhimentos sem votos, carecia, para seu fun- mesma cidade, há notícia de que em 1695 a Câmara tinha
cionamento, de autorização da Mesa de Consciência e Ordens. deliberado "a ereção, contígua à Igreja de Santa Rita, de um
Havendo, desde o início da colonização e ao longo dos recolhimento para 30 órfãs e mulheres pobres, onde viveriam
primeiros séculos de nossa história, grande falta de mulheres em clausura até tomarem seu estado, tendo o beneplácito do
brancas no Brasil, não interessava à Coroa o enclausuramento bispo, por quem deviam ser dirigidas". Além da casa da já citada
religioso das filhas da terra, daí as dificuldades que sempre Dona Maria de Pinho, onde viveu Rosa Egipcíaca com outras
foram impostas para a institucionalização da vida religiosa recolhidas, sita em frente da dita igreja, não temos notícia da
feminina na Terra de Santa Cruz. Não obstante/nas principais existência de outra instituição congénere nesta freguesia, o que

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nos permite duvidar se de fato aquele recolhimento de 1695 a regra das ursulinas (também chamadas de jesuitinas), projeto
chegou a ser ereto. Ainda em. fins deste mesmo século, os que não teve o aval real.
agostinianos descalços daBahia, apoiados pelo Padre Alexandre E na cidade de Salvador, capital da América Portuguesa,
de Gusmão, solicitaram permissão para fundar outro recolhi- sede do único arcebispado do período colonial, onde foram cons-
mento na Bahia, mas o projeto não foi adiante. truídos o maior número de conventos e recolhimentos femininos:
No século XVIII, quando a sociedade brasileira apresenta- além do primeiro mosteiro das clarissas do Brasil, o Desterro
va maior equilíbrio demográfico e a Igreja atingia o apogeu de (1677), no século XVIII são eretas mais seis casas pias congéne-
sua riqueza e poderio, malgrado as restrições da Metrópole, uma res, existindo pela época mais oito conventos masculinos só no
dezena de conventos e recolhimentos são fundados de norte a perímetro urbano. Em 1725 concluem-se as obras do Recolhi-
sul do país. mento da Santa Casa da Misericórdia, onde, além de donzelas
Em 1716, em Minas Gerais, o ermitão alagoano Felix da filhas dos irmãos benfeitores, enclausuravam tambémmulheres
Costa funda, no lugar deMacaúbas, um recolhimento, recebendo casadas "por ausência ou discórdias com seus maridos". 6 Já em
para tanto provisão do bispo do Rio de Janeiro. Doze moças 1723 fundara-se o Recolhimento do Senhor Bom Jesus dos
inauguram esta casa pia, das quais sete eram irmãs e sobrinhas Perdões das beatas da Ordem Franciscana, contando com 35
do ermitão. Em 1725 somam-se em 32 as recolhidas e em 1743 "recolhidas exemplares". Ainda nas primeiras décadas deste
conclui-se a construção do novo edifício, seguindo as enclausu- século, funcionou em Salvador o Recolhimento do Santíssimo
radas a mesma regra das franciscanas concepcionistas, tal qual Nome de Jesus, embora desativado em 1755. Em. 1735 é a vez
lhes conferiu o capuchinho Frei Jerônimo do Monte Real quando da inauguração do Convento das Ursulinas de Nossa Senhora
aí esteve em 1733, no mesmo ano em que nossa Rosa chegava das Mercês, o primeiro mosteiro brasileiro desta ordem, fundado
nas Minas Gerais.10 De 1744 a 1749 foi regente neste Recolhi- por Santa Angela de Mérici em 1535: na Bahia teve em 50 o
mento das Macaúbas a Irmã Rosa do Coração de Jesus e Santo número máximo permitido de profess as. D ata de 17 3 8 o início
António, sendo que em 1757 solicitam as recolhidas, a El-Rei, das obras do segundo mosteiro das ursulinas de Salvador,
autorização para ampliação das instalações, abrigando então 63 chamado Convento do Santíssimo Coração de Jesus da Soledade,
mulheres mira muros.' O amontoado das recolhidas era tanto, localizado no Sítio do Queimado, nos subúrbios desta cidade.1
que quatro religiosas chegavam a compartilhar uma única cela, Seu fundador foi o controvertidojesuítaitaliano, oPadre Gabriel
"algumas dormindo juntas umas com as outras na mesma Malagrida (1689-1761), o maior taumaturgo da América Lusi-
cama", prática, aliás, proibida desde os tempos de Santo tana, queimado pela Inquisição, acusado de heresia, blasfémia
Agostinho, a fim de afastar dos beatérios o perigo do "mais torpe, e abuso da palavra de Deus. Chegando no Maranhão em 1721,
sujo e desonesto pecado": a homossexualidade! o Padre Malagrida percorreu o Norte e o Nordeste, sempre
Ainda nas Minas Gerais, nas chamadas Minas do Fanado, pregando as santas missões, fazendo penitências públicas e
a três léguas de Araçuaí, Isabel Maria Guimarães funda, em inúrneros milagres, como o já citado da vela que não lhe quei-
1734, a Casa de Oração do Vale das Lágrimas, abrigando as mava a mão, e aquele outro que tornou sua barba repentina-
filhas dos mineiros quando estes ausentavam-se da Capitania. mente branca, graças à interferência de uma alma do purgató-
Alguns anos após a ereçãò do primeiro bispado mineiro em rio. Grande devoto do Coração de Jesus, por onde passava
Mariana, Dom Manuel da Cruz tentou instalar em Vila Rica instituía seu culto. Ao chegar em Salvador, em 1736, logo erigiu
"um convento das Gloriosas Onze Mil Virgens", que devia seguir uma confraria do Sagrado Coração na Capela do Bom Jesus, e,
em 1739, funda o citado Convento do Santíssimo Coração de

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Jesus da Soledade, graças às esmolas de muitos fiéis e aproteção suas tentativas de fundar recolhimento para moças 110 Pará não
do Vice-Rei, Conde de Galveas, aprovado por Provisão de Dora foram adiante, esbarrando-se com ama vontade do bispo dioce-
João V em 1741, passando à categoria de convento de religiosas sano.26 r

em 1751, por breve de Bento XTV. Em 1764 possuía 81 celas, E, pois, neste contexto histórico, pipocando novas fundaçõ-
sendo servido por 35 escravas. Em 1744 é fundado, junto à es de recolhimentos e casas pias de norte a sul da Colónia, que
Capela da Lapa, o Convento de Nossa Senhora da Conceição da Rosa Egipcíaca acabava de receber de Nossa Senhora a missão
Lapa, tornado célebre pelo heroísmo de sua abadessa, Madre de pedir ao seu ex-exorci§J^,J?^d£e_J_O-ãoJJerT^ira. Carvalho, que
Joana Angélica. Segundo o Professor Vilhena, nos finais do desse uma j3Sjr±olaJtDara que_^e,jizess.e,iinn^reçplhiinento para
século XVIII aí viviam 21 religiosas "a quem eram permitidas jridalasgffi^
12 servas, regendo-se pela regra franciscana concepcionista". porque~não tinham casa^pâra mgr.ar]im"t_EsJLa_yisâo ocorreu,
A última casa pia a ser ereta em Salvador neste século foi o conforme já dissemos, em fins de 1751 ou princípios de 1752 —
Recolhimento de São Raimundo: em 1755 lançou-lhe a pedra na mesma quadra em que outras instituições femininas congé-
inaugural o Conde dos Arcos, tendo autorização para abrigar neres eram fundadas no Nordeste brasileiro.
"20 mulheres convertidas que querem largar o mundo e viver Como teria se originado na cabeça de Rosa a ideia desta
com honestidade, por cuja sustentação têm bastantes proprie- fundação? Embora já existissem em Minas Gerais os Recolhi-
dades. E sujeito à disposição dos Exmos. Governadores Capitães mentos de Macaúbas e do Vale das Lágrimas quando nossa
Generais, que muitas vezes se servem dele como cadeia política vidente lá residia, por situarem-se a, muitas dezenas de léguas
em que mandam recolher algumas mulheres dissolutas..." do Inficcionado, tudo nos leva a crer que jamais Rosa tenha
De acordo com o "Mapa Geral de Todos os Conventos de visitado tais casas de oração. Foi, portanto, no Rio de Janeiro
Religiosos e Religiosas da Cidade da Bahia", de 1775, Salvador que, pela primeira vez, teve oportunidade de entrar em contacto
abrigava 4 conventos de freiras e 3 recolhimentos, perfazendo com tais instituições. Conforme há pouco relatamos, ao chegar
um total de 186 religiosas professas, 24 educandas seculares, Rosa nesta cidade, em 1751, fazia apenas um ano que inaugu-
67 recolhidas seculares, 23 hóspedes e agregadas, 97 servas rara-se o Convento da Ajuda, situado a meio-caminho entre o
forras, 35 escravas da comunidade, 423 escravas e escravos Convento dos Tranciscanos e a Igreja da Lapa do Desterro, no
particulares (!), população que representava 6% a mais do que mesmo local onde hoje encontra-se a Cinelândia. Rosa, beata
a abrigada nos conventos e mosteiros masculinos. como era, certamente deve ter visitado a igreja do Convento da
Ainda no Nordeste existiram mais alguns recolhimentos: Ajuda, quem sabe chegando inclusive a falar com alguma reli-
o mesmo Padre Malagrida, incansável propagandista do Sagra- giosa, no parlatório ou na portaria, como gostavam de fazer as
do Coração, funda em Igaraçu, na Capitania de Pernambuco, o pessoas piedosas nos séculos de antanho, que procuravam as
Recolhimento do Coração de Jesus (1744), e era São Luís do enclausuradas para pedir que incluíssem seus nomes em suas
Maranhão, onde lecionou diversas disciplinas no seminário orações. Além do Convento da Ajuda, existia no Rio de Janeiro,
jesuítico, erige em 1752 o Recolhimento das Ursulinas do Cora- desde 1742, um pequenino recolhimento na Chácara da Bica,
ção de Jesus,"qu'e-em anexomantinhaum educandário onde logo nas encostas do Morro do Desterro, onde viviam duas irmãs,
na sua inauguração assistiam 13 donzelas. Apesar de o alvará Jacinta de São José e Francisca de Jesus Maria, recolhimento
real de 2 de março de 1751 ter autorizado o Padre Gabriel que tornou-se o embrião do primeiro convento carmelitano do
Malagrida a abrir livremente casas pias pelo Brasil afora, "onde Brasil. Adjunto à humilde capela dedicada ao Menino Deus, este
se criasse a mocidade com bons costumes, educação e doutrina", eremitério revelara-se pequeno para abrigar as novas candida-

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tas, tanto que, sob aproteção inicial de Dom, Antomo do Desterro materiais de se afastarem do mundo imundo. Talvez, vendo as
e sobretudo do piedoso Governador Gomes Freire de Andrade, freirinhas do Desterro, tenha-se entusiasmado ainda mais com
aos 24 de junho de 1750, procedeu-se ao lançamento da primeira a ideia de também transformar-se numa esposa do Bem-Amado;
pedra do futuro Convento de Santa Teresa, sito no mesmo Morro porém, devido à sua baixa condição de negra e ex-meretriz —
do Desterro, um pouco mais acima de onde se iniciavam os Arcos predicados inaceitáveis num convento de virgens donzelas, pu-
da Lapa, ambas as construções devidas ao empenho do gover- ras no sangue e nos costumes —, a solução seria inventar uma
nador Conde de Bobadela. As obras do convento avançavam, instituição específica para mulheres de sua mesma igualha.
devagar, tanto que, após um ano, no dia de São João, de 1751, "E com efeito, no ano de 1754, juntou uma grande soma e
fez-se a transferência das religiosas da Chácara da Bica para se principiou o dito recolhimento junto àIgrjpjylsJ£assa_SenhQr_a
um convento provisório, na antiga residência dos capuchinhos .doJParto."
do Desterro. Esta mudança foi alvo de solene liturgia: Esta é a versão de Rosa, idealizadora e primeira escolhida
por Maria Santíssima para a referida fundação. A historiografia
"Aí esperavam-nas o Exnio. .Sr. Bispo e o General Gomes oficial., contudo, além de omitir o nome danegra africana, dá versão
Freire de Andrade, o principal benfeitor desta fundação. Na diferente desta fundação. A verdade, contudo, está com Rosa.
mesma manhã o prelado esteve demoradamente conversan- Na obra Templos Históricos do Rio de Janeiro lemos que,
do com as religiosas, mandando-lhes que se houvessem como em 1742, Dom, António do Desterro resolveu construir o dito
recolhidas e clausuradas na nova residência, e aí tivessem o recolhimento ao lado da Capela do Parto. Como o referido bispo
noviciado enquanto se ia acabando o convento. só chegou a esta diocese em 1745, cai por terra tal afirmação.
Baseando-se na volumosa obra de Monsenhor Pizarro, tanto
Rosa já estava há três meses no Rio, morando exatamente Vieira Fazenda, autor das Antiqualhas e Memórias do Rio de
no Desterro, quando Madre Jacinta de São José e suas compa- Janeiro, quanto Vivaldo Coaracy e outros autores que se ocupa-
nheiras são transferidas para este convento provisório. Nada ram da história desta cidade, informam que fora através da
mais provável que nossa beata courana, que jamais vira freira doação testamentária de um tal Estevão Dias de Oliveira, morto
alguma em sua vida, fosse espiar, com o mais povo, tão insólito este sim, em 1742, no valor de 40 mil cruzados, que o citado
espetáculo: uma dezena de moçoilas, todas vestidas de hábito bispo, 10 anos mais tarde, dera início às obras. Nenhuma
marrom, a mesma indumentária de uma de suas devoções referência à doação dos 4 mil cruzados ao Padre João Ferreira
prediletas — Nossa Senhora do Monte Carmelo. Carvalho, nem à influência de Rosa e Frei Agostinho na crista-
Morando aqui e acolá, sempre às custas do favor e da lização desta ideia. Em documento existente no Instituto Histó-
caridade alheia, quando Rosarecolheu-se na casa de DonaMaria rico e Geográfico Brasileiro, sito hoje nas imediações da Igreja
de Pinho, defronte da Igreja de Santa Rita, teve oportunidade da Lapa do Desterro, encontramos uma carta de Dom António,
de experimentar um pouco da disciplina, horários e modus de 21 de julho de 1756, onde justifica a fundação desta casapara
vivendi de um recolhimento particular. Talvez já nessa época, mulheres:
PJS£0írj^49 igrejas, conventos e logradouros públicos desta
cidade, a Egipcíaca das Minas Gerais tivesse encontrado outras "Entre os grandes males que não tenho acudido com
mulheres arrependidas do mesmo passado desvairado que, como oportuno remédio, por me não ser possível, tem o primeiro
ela, enfrentavam iguais dificuldades e discriminações; daí idea- lugar a.continuaçã"o do pecado destas depravadas mulheres
lizar a fundação de uma casa pia para quantas alegavam per- de que abunda sobremaneira esta terra. As visitais ordiná-
manecer no pecado por não terem lugar decente, nem condições

274 275
lias não as corrigem, porque alegam, a pobreza para conti- tantes ordens religiosas: beneditinos, franciscanos e jesuítas
nuarem nesta vida, por não terem condições de subsistir." que, no morro do Castelo, eram vizinhos da igreja mater de São
Sebastião. Ao sopé destas elevações, na então chamada várzea,
Narra então o prelado o caso recente de -0111 marido reinol situam-se igrej as de menor grandeza, como a Candelária, Santa
que, ultrajado pelo adultério de sua esposa, matou-a e a seu Rita, Santa Luzia, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário e
amante, crime que poderia ter sido evitado, caso houvesse uma a Ermida do Parto. O terreno plano situado entre o Castelo e os
casa onde pudessem recolher-se também as casadas que dessem dois morros (São Bento e Santo António) tinha o nome de Várzea
mau passo "e que quisessem livrar-se dos maridos". Pede então de Nossa Senhora, denominação advinda da pequena capela
ao Rei licença para fundar um recolhimento adjunto à Ermida mariana, berço do recolhimento cuja história estamos resgatando.
do Parto, contando já com 12 recolhidas "com honestidade e Ensina Vieira Fazenda que data de 1589 a construção
virtude". inicial desta capela, tendo sido, primeiro, moradia dos Monges
A^ nosso ver, a omissão donome de Rosa Egjpcíaca_como de São Bento e, depois, dos carmelitas, antes que se transferis-
fundadora deste recoISmentosélieve por duplo preconceito: por sem definitivamente para seus conventos onde até hoje se
tratar-se de uma negra e, soBretuHõ",'pc5FT:er sido píèsa pela conservam. Com a mudança destes frades da Várzea de Nossa
^^ro .^Inquisição, considerando que o estigma ae um penitenciado pelo Senhora, a capelinha, também chamada de Nossa Senhora da
' Expectação, ficou em relativo abandono, até que um certo mu-
"'"° não interessando às regentes, sucessoras da, desafortunada lato, João Fernandes, natural da Ilha da Madeira, resolveu
L , %fuTfd^õr^7'rn^nter~7Íva-m:em:ói-ra~táo vergonhosa. Conjectura- restaurá-la a fim de abrigar uma imagem da mesma Senhora
3 mós que foi exatamente após a visão na qual Nossa Senhora da que trouxera de Portuga].. Comprou alguns chãos de terra com-
Piedade ordenou a Rosa que escrevesse a seu antigo exorcista preendidos entre as antigas ruas dos Ourives, de São Francisco,
l J nas Minas, pedindo esmola para esta fundação, que Frei Agos- da Cadeia, de São José e do Largo da Carioca, e no local onde
tinho de São José deve ter-se dirigido ao bispo, oferecendo-lhe hoje está a rua da Assembleia e a de São José, em frente ao
ko - os 4 mil cruzados vindos do Rio das Mortes, sugerindo a dita caminho de Nossa Senhora da Ajuda, levantou a nova capela.
^ fundação. Como amitrajá dispunha de avultada soma destinada Corria então o ano do Senhor de 1653. Eis como o autor do
ao mesmo fim, 40 mil cruzados deixados em testamento por um Santuário Mariano, Frei Agostinho de Santa Maria, baseado
devoto, empenhando-se agora o próprio provincial dos francis- em manuscritos de Frei Miguel de São Francisco, descreve esta
canos na concretização do projeto, pressionado certamente pela capela, tal qual a viu no primeiro quartel do século XVIII:
existência incómoda de muitas madalenas arrependidas a en-
tulharem a cidade, inclusive as igrejas-e capelas conventuais, "Damesma casa e santuário de Nossa Senhora da Ajuda,
decide-se Dom António do Desterro a realizar tal fundação. correumarua, que vaipara a cidade, todapovoada de casas
Exatamente como ocorreu com a maioria das demais casas nobres e sempre frequentada de pretos e brancos. Os pretos
religiosas no Brasil Colonial, aproveitou-se uma capela secun- vão e vêm a buscar e a trazer água da Carioca, que é uma
dária, já existente, para em seu anexo construir as instalações ribeira que desce da serra, de excelente água. E no fim
da nova casa pia. O local escolhido foi a Capela de Nossa Senhora desta rua, entrando no corpo da cidade, se vê a Casa e
do Parto. . Santuário de Nossa Senhora do. Parto, aonde se venera
No Rio Antigo, os três principais morros do perímetro uma milagrosa imagem da Soberana Bainha dos Anjos,
urbano eram coroados pelas igrejas e conventos das mais impor- com muita grande devoção, mais principalmente das mu-

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lheres, que a buscam continuamente e lhe fazem novenas
e romarias para que. lhes conceda em seus partos muito
felizes sucessos, e a Senhora lhos concede, como continua-
mente o estão experimentando. E os homens, que são bem
casados, têm, também muita devoção com a Senhora, para
que às suas mulher es dê bom sucesso e p ar a que os conserve
em uma grande paz. Hoje se vê este Santuário da Senhora
do Parto reedificado de pedra e cal, e com muito maior culto,
por se haver passado a ele a Irmandade dos Clérigos de
São Pedro, que é irmandade nobilíssima e tem provedor e
tumba particular, em que levam à sepultura os clérigos,
que não são irmãos da Misericórdia. Esta Casa fundou
pelos anos de 1653 João Fernandes, mulato e natural da
Ilha da Madeira. Erarico emuito devoto de Nossa Senhora,
e assim lhe dedicou esta casa, pela grande devoção que
tinha à Senhora. E esta santíssima imagem de roca e de
vestidos está !com as mãos levantadas; a sua estatura
parece que não chega a quatro palmos. Com esta santíssi-
ma imagem têm maior e particular devoção todos aqueles
moradores circunvizinhos, porque lhe cantam em todos os
sábados a sua ladainha, com muita devoção, e a Salve-Rai-
nha, aonde concorrem muitos. Tem ermitão que pede es-
molas para"os gastos de seu culto e fábrica.
i
~_~ , Nossa Senhora do-Pa^t&r-ou-doJiomJParto, também cha-
I mada da Expectação ou Nossa Senhora do Ó, é cultuada na
J Península Ibérica desde a Idade Média, sendo atribuída a Santo
J Ildefonso (século VII) a instituição de sua devoção, cuiaimagem Nossa Senhora do Parto: imagem que se venera
| é sempre representada-cosa-o-^ventr-e—avolumada,, típico das atualmente na capela construída no mesmo local onde
l parturientes. Teve grande devoção no Brasil, sobretudo no existiu o EecoIMmento fundado por Rosa Egipcíaca. Pro-
século XVII, quando na Sé da Bahia, em 1633, "por diligência vavelmente trata-se da imagem original do século XVH.
das casadas", foi entronizada sua bela imagem de madeira
estofada, numaltarprivilegiado.de-nossaigrejamaíer. Sua festa'
era comemorada'aos 18 de dezembro, sendo muito comum,
quando umajmtlher.gr ávida tinha maiores dificuldades na hora
de "descansar", émprestar-se o manto da mesma Senhora, que,
colocado sobrèTã barriga da aflita devota, logo terminavam seus

278 279
nn

apertos, alcançando então a desejada "boa hora". EmSãoPaulo utilidade para o leitor conhecer alguns dados biográficos deste
e Maceió também tinha seus altares. eminente antístite.
Construída portanto em 1653, na Várzea de Nossa Senho- Ilustre desde o nascimento, pois descendia de fidalgos da
ra, a Ermida do Parto, em 1699 abriga a Irmandade de Nossa cidade de Viana do Lima, da família de Reimão Malheiro, nasceu
Senhora das Mercês, dos homens pardos e pretos, sendo que em 1694, coincidentemente, a poucas léguas e no mesmo ano em
alguns anos antes, em 1693, os irmãos de Nossa Senhora do que vinha ao mundo nosso conhecido Padre Xota-Diabos. Teve
Rosário dos Pretos em vão já haviam tentado transferir-se da Dom António 17 irmãos. Em 1711 fez votos na Ordem de São
Sé do Castelo para o mesmo templo, sendo impedidos pelos Bento, recebendo o doutorado em Coimbra, logo ,em seguida
mestiços. A devoção, por conseguinte, das gentes de cor do Rio sendo eleito abade no Mosteiro dá Estrela. Aos 44 anos é
de Janeiro por esta capela tem sido uma constante na sua longa nomeado bispo de Angola, tendo nessa ocasião aportado no
historia, sendo descendentes de africanos seu fundador, a pri- Brasil, quando em 1740 dirigia-se para São Paulo de Luanda,
meira irmandade que aí se instalou e a Egipcíaca courana que, onde permaneceu por seis anos à testa daquela diocese. Com a
com uma dezena de pretas e mulatas, ocuparão em breve essas vacância do bispado do Rio de Janeiro, é nomeado, em 1745, o
instalações. sexto titular desta cidade, tomando posse no primeiro dia do ano
Como já nos informara Frei Agostinho de Santa Maria, de 1747. Gomes Freire de Andrade, o beato governador das
também funcionou neste templo a Irmandade dos Clérigos de capitanias do Rio de Janeiro, S ao Paulo e Minas Gerais, o mesmo
São Pedro, entre 1705-1732, sendo nesta época, à custa dos devoto das relíquias do santinho Frei Fabiano de Cristo, benfei-
endinheirados presbíteros seculares desta confr ária, reedificada tor de Madre Jacinta de São José na fundação do Carrnelo de
a primitiva construção. Tudo feito com o aval do bispo de então, Santa Teresa e descrito por Monsenhor Pizarro como possuidoz-
Dom Frei Francisco de São Jerônimo e a dotação de 200$000 de excelsas virtudes — como desinteresse, castidade e justiça,
réis que um tal Padre José Carvalho Dias legara para a dita amor dos povos e zelo pela religião —, foi quem capitaneou a
reforma. Outras irmandades igualmente utilizaram esta igreja recepção do novo bispo, mandando inclusive imprimir o opúsculo
para suas cerimónias litúrgicas: a de São José dos Barbeiros, a Apolíneo Feudo da Magnífica e Pomposa Entrada do Exmo. e
de Santa Cecília dos Músicos e de Santo Elói dos Ourives. Foi Revmo. Dom Frei António do Desterro Malheiro, Meritíssimo
nr* J

por esta época, mais exatamente em 1719, que o cristão-novo Bispo do Rio de Janeiro, onde, através de sonetos, com forte
Felipe Mendes Leite vendeu sua morada de casas sita à rua de inspiração na mitologia grega, saúda as virtudes do novo prela-
Nossa Senhora do Parto, imóvel que foi sequestrado pelo Santo do. Também o juiz de fora e provedor dos degredos desta cidade
Ofício, quando de sua prisão. Rosa, portanto, será a segundo de São Sebastião, Dr. Luiz António Rosado da Cunha, usou sua
moradora desta fatídica rua a cair nas malhas do monstro erudiçãopararegistrar os faustos com que o pontífice foi recebido
inquisitória!. em sua novel diocese: mandou imprimir em Lisboa aRelação da
Dom António do Desterro, o bispo beneditino de maior Entrada que Fez Dom António do Desterro Malheiro, Bispo do
importância no Rio de Janeiro setecentista, governou a diocese Rio de Janeiro, em 1a de Janeiro de 1747. Através desta obra
de 1745 a 1773, sendo portanto o responsável não só pela tomamos conhecimento das festividades com que os cariocas
fundação do recolhimento de Rosa, como também por sua prisão homenagearam o prelado vindo de Angola, valendo deter-nos
e envio para a Inquisição de Lisboa. Pelo tanto que representou sumariamente na sua descrição, pois este barroco espetáculo
na fundação deste recolhimento, assim como pelo seu significado ajuda-nos a perceber o clima de respeito e devoção dispensados
como corolário sacro deste período barroco, acreditamos ser de pela nobreza, clero e povo às suas autoridades eclesiásticas.

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Chegando ao Rio de Janeiro, a l2 de dezembro de 1746, Dom preciosa coleção encontram-se na Biblioteca Nacional do Rio de
António hospedou-se primeiro no Mosteiro de São Bento, entre Janeiro, enquanto as próprias relíquias e seus ricos relicários
seus irmãos de hábito. No dia 11 foi homenageado com a apre- podem ser, até hoje, admirados na Capela de Nossa Senhora da
sentação da óperaFelinto Exaltado, estando presentes à sessão Conceição, construída às suas expensas no interior do Mosteiro
as principais autoridades civis, militares e eclesiásticas, que de São Bento. Durante seu governo, intensificou a devoção ao
muito aplaudiram "a excelente música e o muito brilho". Para a Santíssimo Sacramento através da instituição do lausperene,
solenidade de sua posse, foram construídos 7 arcos de madeira, sobretudo durante a Quaresma, consistindo tal cerimónia na
a partir da ladeira de São Bento, tendo 80 palmos de altura e adoração ininterrupta da Eucaristia, exposta quarenta e oito
40 de largura (mais de 16 metros do chão ao topo!), arcos horas seguidas, por fiéis que se sucediam, aos grupos, percor-
revestidos com sedas, galões de prata, flores, è até louça da índia, rendo as principais igrejas centrais da cidade^
"cujo guarnecimento lustroso realçava aluzida soldadesca". Tais Dentre suas preocupações pastorais, cuidou com especial
arcos, "sete maravilhas", distribuíam-se pelo caminho, até a Sé, carinho do fortalecimento da vida religiosa feminina em seu
então funcionando no Rosário, sendo o novo pastor acompanhado território, tanto que logo após sua chegada nesta cidade foram
por grande multidão e orquestra retumbante. enclausuradas as clarissas na Ajuda, lançada a primeira pedra
Dom António do Desterro é qualificado por Monsenhor do Convento de Santa Teresa, eretos o Recolhimento de Nossa
Pizarro como possuidor de "zelo vigilantíssimo, generoso em Senhora do Parto e o Recolhimento de Itaipu, em 1764, na
premiar os beneméritos, pouco severo em castigar os delinquen- freguesia de São Sebastião.
tes, porque como pai e menos como juiz deu mais lugar à Nem todos os seus contemporâneos, contudo, têm amesma
misericórdia que à justiça". Foi exemplar no modo de vida. opinião sobre as virtudes de Dom António. Segundo o jesuíta
Dizem seus contemporâneos que nunca abandonou o hábito e a José Caeiro, o principal cronista da expulsão dos inacianos do
tonsura da sua Ordem Beneditina, sendo responsável por im- Brasil, este prelado beneditino, entre outras imperfeições,
portantes realizações na sua diocese. Durante seu governo foram
reconstruídas as igrejas da Ajuda e da Ordem Terceira dos "instituíra em Palácio um negócio muito rendoso aonde
Franciscanos; iniciadas as obras do convento do Desterro e acudiam os vigários que queriam melhorar de posto no
inaugurada a clausura de Nossa Nossa Senhora da Ajuda; governo das almas; sendo bispo de Angola, costumava
criadas as freguesias de São José e Santa Rita; construídas as comprar grande número de escravos para serem, comlucro
igrejas de Santa Luzia, da Ordem Terceira do Carmo, da Con- seu, enviados ao Brasil; apossou-se, por vil fraude, da
ceição do Cónego e de São Gonçalo Garcia, além de restaurar a fazenda de uma viúva; morava numa quinta onde não
torre da Catedral e presenteá-la com preciosas alfaias. Pastor corava de, por suas mãos, vender as hortaliças, frutas,
zeloso, visitou as freguesias do recôncavo em 1754, pregando galinhas e outras coisas do amanho dela."
edificantemente nas quaresmas de 1756 e 1757. Grande devoto
das sagradas relíquias dos santos, possuía, uma centena de E conclui seu rol de denúncias: "Calo, de propósito, outras
pedacinhos de ossos, cabelos e outros despojos dos mais impor- não menos feias."
tantes luminares da corte celeste, inclusive de todos os apóstolos, Eis como Rosa descreve, em seu depoimento ao Juízo
dos principais mártires, do Santo Lenho onde Cristo morreu, de Eclesiástico do Rio de Janeiro, a fundação de "seu"recolhimento:
sua cruel coroa de espinhos e uma lasquinha da coluna onde o
"Mandou então o Padre João Ferreira Carvalho certa
Redentor foi açoitado. Os "atestados de autenticidade" [sic] desta
quantia de dinheiro a Frei Agostinho, o qual disse a ela,

282 283
depoente, que era melhor com este dinheiro principiar um Desterro participara de uma dessas cerimónias, o início das
recolhimento, aproveitando-se da Igreja de Nossa Senhora obras do Convento de Santa Teresa:
do Parto e casas dela, e que pediria ao senhor bispo, e não
deixariam de concorrer alguns devotos mais para esta obra "aos 24 de junho de 1750, às 3 horas da tarde, procedeu o
pia, o que assim sucedeu e se principiou o recolhimento." senhor bispo à bênção solene e ao lançamento da primeira
*
pedra do dito convento. Ao ato imponentissimo acharam-se
Não deve ter sido difícil obter a autorização de Dom Antó- presentes, além do Exmo. Governador, o Senado da Câma- *
nio, pois todas as circunstâncias favoreciam a concretização ra por ele convidado, as pessoas principais da cidade,
deste sonho. Nesta ocasião provavelmente Frei Agostinho deve numeroso povo e a Madre Jacinta com suas companheiras
ter falado à Sua Eminência sobre as virtudes de sua dirigida radiantes de santo júbilo. Para dar maior brilho à soleni- l»
Rosa e, quem sabe, sugerido o nome do Padre Francisco Gonçal- dade, Gomes Freire de Andrade mandoti formar grande 9
ves Lopes, então nas Minas, para ser o capelão da nova casa. parada no morro do Desterro, a qual deu numerosas salvas
Gomo alrmandade dasMercês erazeladoradaErmidadoParto, de regozijo na hora do ato.
primeiro obteve o bispo autorização expressa da Mesa Diretora
da mesma para a dita fundação, iniciando-se então as obras. Eis alguns versinhos com que o pregador desta solenidade,
Manda então Fr ei Agostinho que o próprio ermitão do Parto Frei Manuel de Nossa Senhora do Monte Carmelo, brindou os
vá às Minas entregar uma carta, em mãos, ao Padre Xota-Dia- presentes:
bos, que, segundo uma testemunha, andava na época na serra
do Ibitiruna (Rio das Mortes), ajustando para tornar-se capelão Esta pedra que vemos sepultada
de uma nova ermida. Seu plano, portanto, era permanecer na Por vossa pia mão com sacro auspício
região. Nesta carta, o frade dizia "por ser do agrado de Deus Para Deus é eterno sacrifício
tornar-se o capelão do novo recolhimento onde já haviam algu- Para vós é estátua respeitada
mas recolhidas e Rosa por Mestra..." que viesse tomar posse do Nessa pedra imortal, sagrada e pura
cargo. O mesmo ermitão diz também ter levado recado verbal Dará o mundo a ler a vossa história...
do bispo para que "fosse reger-o dito recolhirnento". Como era o
costume, certamente ao retornar para o litoral o dito ermitão As solenidades do lançamento da primeira pedra do Reco-
deve ter trazido boas oitavas de ouro que os devotos mineiros lhimento do Parto pouco deixaram a desejar, se comparadas com
ofereceram para sua ermida. as do Carmelo. O cronista deste episódio foi o próprio Padre
Volta então o Padre Francisco para o Rio de Janeiro, a Francisco, seu primeiro capelão, que em carta datada de 5 de
tempo de assistir ao lançamento da primeira pedra da nova setembro de 1754, 20 dias após este evento, descrevia a seus . *
fundação.
compadres de Minas os inícios gloriosos do recolhimento de sua
ex-escrava. Começa por dizer que
*
Como já vimos, ao lado da igrejinha do Parto havia uma
pequena casa onde vivia o ermitão, carecendo porém, de amplia-
*
ção para transformar-se embeatério. Mais do que hoje em dia, "a oferta do Padre João Ferreira foi muito bem aceita pela
Santíssima Trindade, tanto que no dia da Assunção de
no século XVIII parece ter havido grande gosto, moda e pompa
Nossa Senhora se botou a primeira pedra do recolhimento,
nas ocasiões de lançamento da pedra fundamental das constru-
a que assistiram ao botar dela o governador e todos os
ções civis ou eclesiásticas. Há pouco tempo Dom António do
religiosos de Santo António, dos barbônios [capuchinhos],

284 285
do Carmo, de São Bento e da Companhia de Jesus, e a Joaquim e Santana, por ordem, de Frei Agostinho, após
melhor parte dos cónegos da Sé. Pelo bispo estar doente, outra visão de Rosa."
veio o chantre da Sé. Pregou Frei João Batista, dos barbô-
nioSj que fez grande sermãOj que hei de remeter a. Vossa Repito: tornaremos a este assunto mais adiante, com mais
Mercê para ver o grande mistério que nele contém. Assina vagar.
se fez tudo com a grandezabem aceitapor todos os homens Lançada a primeira pedra, iniciam-se as obras.
bons. O Sr. Bispo está com, grande ânimo, de que se faça Vinte dias depois desta solenidade, na mesma carta há
tudo com a grandeza que for necessária, pois os Sagrados pouco referida, dá o Padre Francisco outras informações sobre
Corações são muito ricos, a quem é dedicado o Recolhimento a evolução do projeto: diz que o bispo tem nela gasto muito
com. Nossa Senhora do'Parto." dinheiro "por querer fazer uma obra real, e mais do que real,
porque os donos são muito ricos". Obviamente, referia-se aos
Se faltaram nesta inauguração os soldados do governador, Sagrados Corações. Diz mais: que Dom António "comprou 7
sobejaram os clérigos, pois estavam presentes "todos os religio- moradas de casas, fora a que já tinha a Senhora, e quer fazer
sos" das principais ordens e cabido diocesano — mais de uma por hora 11 celas. Por agora são só 7 recolhidas, por não haver
centena de sacerdotes portanto. O dia não podia ter sido mais cómodos".
lindo: o da gloriosa subida de Maria Santíssima aos céus. Salve Segundo Vieira Fazenda, o principal historiador deste
Maria! / recolhimento, e em cujas anotações todos os demais estudiosos
Repare o leitor um. detalhe significativo: diz este padre que se basearam, mediante autorização da Irmandade das Mercês,
o recolhimento é dedicado aos "Sagrados Corações". Situa-se, grandes alterações foram realizadas no primitivo templo e em
portanto, às vésperas do lançamento desta pedra fundamental sua casa anexa: alargou-se a igreja pelo lado direito e deitou-se
a visão mais importante de nossa mística negra — a revelação abaixo a frente do templo para correr com o recolhimento pela
dos Sagrados Corações. No momento limitamo-nos a situar aqui frente do corpo da mesma igreja, a fim de que as recolhidas
esta visão — no segundo semestre de 1754 — pois, dada sua melhor assistissem aos atos religiosos. Além destas alterações,
enorme complexidade e importância no desdobramento da vida mudou-se a porta principal para o lado da rua do Parto, e, para
mística de Madre Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, a prin- que a irmandade das Mercês não perdesse o direito que tinha à
cipal vidente e propagandista no Brasil desta devoção tão cara sua primitiva igreja, passou-se-lhe urna provisão obrigando-se
ao catolicismo, deixaremos para entrar nas artérias e profunde- a Mitra, a todo e qualquer momento, a conservar-lhe o direito
zas do culto cordícola num. capítulo vindouro. de posse, inclusive a recolocar a porta principal do templo na
Tinha razão o Padre Xota-Diabos em declarar que o Reco- rua dos Ourives, caso a irmandade assim o exigisse; Tudo
lhimento do Parto pertencia aos Sagrados Corações. Rosa lhe registrado no Cartório do Tabelião António Teixeira de Carva-
contara que, lho.41
Enquanto executavam-se as obras, utilizou-se provisoria-
"ouvindo missa na Igreja de Santo António, vira no altar mente a casa já existente ao lado da ermida para abrigar as
os três corações, de Jesus^ Maria e José, e namesma ocasião primeiras recolhidas: 7, segundo Padre Francisco, o capelão; 12
lhe disse Nosso Senhor que era do seu agrado 'que se de acordo com aja citada carta do bispo aEl-Rei, datada de 1756,
fabricasse um recolhimento em louvor dos três corações', na qual informava ter mandado recolher tais raulheres
tanto que naprimeirapedra do recolhimento se esculpiram
os três corações e, mais tarde, mais outros dois, de São "de quem, por seguras informações, tinha a certeza de que

286 287
verdadeiramente se querem livrar da recordação das suas ' réis representavam soma bastante considerável, capaz de com-
culpas, em uma casa contígua à igreja de Nossa Senhora prar por volta de duzentos escravos ou pagar a côngrua de 60
do Parto, onde se acham 12 vivendo com grande recolhi- sacerdotes por um. ano inteiro de ministério. Se o Recolhimento
mento, honestidade e virtude, dando com o seu bom exem- da Luz custou 13 mil cruzados, podemos imaginar a grandeza e
plo, que edifica, um gran.de estímulo, porque outras muitas riqueza da casa de Nossa Senhora do Parto, que dispôs de mais
pretendem fazer-lhe companhia, mas não podem ser admi- de 44 mil cruzados para sua instalação!
tidas por ser a casa pequena e sem cómodos para mais, e Tudo nos leva a crer que a inauguração oficial deste reco-
vivem de esmolas, saindo para a confissão com o hábito de lhimento ocorreu aos 7 de outubro de 1757, festa de Nossa
terceiras". Senhora do Rosário, dia em que cinco donzelas tomaram o hábito
de noviças e toda a comunidade foi transferida para a clausura
Parece ter sido como este o início de outros recolhimentos
coloniais, pois também em São Paulo, no Recolhimento de Nossa
do novo edifício! Destarte, por 3 anos, de 7 a 12 recolhidas
viveram no "consistório" e casa anexa à dita igreja, aguardando''
m
Senhora da Conceição da Divina Providência, fundado por Soror a conclusão das obras. •
HelenaMaria do Espírito Santo e FreiAntonio Santana Galvão,
as primeiras religiosas foram instaladasnos estreitos corredores
0
da Capela de Nossa Senhora da Luz, onde "se formaram as celas,
para morada daquela pobre comunidade, ficando elas totalmen- Notas
te desacomodadas, sendo os corredores de poucos palmos de
largo e as celas igualmente".
m
Com os 40 TH i l cruzados deixados em testamento por Este- 1. La Caille. Op. cif., 1763, pp. 122 e ss.
2. Pires, Camião. História de Portugal. Barcelos: Portucalense Edito-
o
vão Dias de Oliveira, mais os 4 mil do Padre Carvalho, e ainda
contando com "piedosa esmola de algumas pessoas ricas que ra, 1937, v. V, pp. 467 e ss.; Boxer, C. R. A Mulher na Expansão
contribuíram com grossas, esmolas", tinha razão o Xota-Diabos Ultramarina Ibérica. Lisboa: Livros Horizonte, 1977, p. 87.
3. Azzi, Riolando. Beatas e Penitentes: Uma Forma de Vida Religiosa
em considerar o recolhimento de Rosa como "obra real", pois tal
no Brasil Antigo. Revista Grande Sinal (RJ), 1976.
valor, mais de 44 mil cruzados, equivalia a 12:200$000 (doze
4. Azzi, Riolando. A Vida Religiosa Feminina no Brasil Colonial. A
contos e duzentos mil réis), uma pequena fortuna! Por exemplo: Vida Religiosa no Brasil. Enfoques Históricos. São Paulo: Edições
um escravo ou escrava regular valia no Bio de Janeiro, nesta Paulinas, 1983, p. 30.
época, entre 50 e 70 mil réis; a Chácara da Bica, onde Madre 5. Jaboatão, Frei António de Santa Maria. Orbe Seráfico Novo Brasí-
Jacinta recolheu-se primeiramente com sua irmã em 1742, foi lico. Lisboa: Oficina de António Vicente da Silva, 1761.
paga pelo Conde de Bobadela com2:100$000 réis; a ermida que 6. Nascimento, Ana A. V. O Convento do Desterro daBahia. Salvador:
Dom António do Desterro mandou construir em honra de São Editora Gráfica Indústria e Comunicação Ltda., 1973.
Francisco de Sales custou 1:685$536 réis; o Recolhimento de 7. Coaracy, Vivaldo. Op. cit,, 1965, p. 223,
Nossa. Senhora da Luz, há pouco referido, em São Paulo, com 22 8. Fazenda, J. V. Op.. cit., tomo 88, v. 140, 1951, p. 445.
celas, teve seu valor total calculado em 13 mil cruzados; a 9. Soeiro, Susan. The Femiriine Orders in Colonial Brazil. In: Lavin,
Assuncion (org.). Latin American Wòmen. Historical Perspectives.
côngrua dos sacerdotes (salário anual) nos meados do século
Westport: Greenwood Press, 1978.
XVIII oscilava entre 150 e 200$000 réis, valendo uma missa, 10. Barbosa, W. A. Op. cit., 1971, p. 271.
conforme já dissemos, de 200 a 320 réis. Portanto, 12:200$000

288 289
11. Arquivo Histórico Ultramarino, Caixa 111, "Requerimento das posa Entrada do Exmo. e Revmo. Dom Frei António do Desterro
Recolhidas de Macaúbas", Minas Gerais. Malheiro, Meritíssimo Bispo do Rio de Janeiro (1-1-1747).
12. Carrato, J. F. As Minas Gerais e os Primórdios do Caraça. São 36. Cunha, Luis António Rosado. Relação da Entrada que fez Dom
Paulo: Companhia Nacional, 1963, p. 105. António do Desterro Malheiro, Bispo do Rio de Janeiro, em ls de
13. Brown, Judith C. Aios Impuros. A Vida de uma Freira Lésbica na Janeiro de 1747. Rio de Janeiro: Oficina de António Isidoro Fonseca,
Itália Renascentista. São Paulo: Brasiliense, 1987. 1747.
14. Azzi, Riolando. Op. cit.,1983, p. 42. 37. Pizarro e Araújo. Op. cit., 1820, p. 29.
15. Boschi, Caio C. Op. cit., 1986, p. 84, nota 33. 38. Caeiro, José. Jesuítas do Brasil e da índia. Século XVIII, na
16. Vilhena, Luis dos Santos. A Bahia no Século XVIII. Salvador: Perseguição do Marquês de Pombal. Bahia: Escola Tipográfica
Editora Itapuã, 1969, pp. 442-449. Salesiana, 1936, p. 219.
17. Aazi, Riolando. Op. cit., 1983, p. 32. • 39. São José, Frei Nicolau. Op. cit, 1935, p. 94.
18. Vilhena, L. S. Op. cit., 1969, p. 450. 40. Sá, Manuel Tavares Serqueira. Júbilos da América. Exaltação a
19.RecopilaçãoMemorial daFundação do Convento daSoledade, Livro Gomes Freire de Andrade, Governador e Capitão General das Ca-
Manuscrito do Arquivo do Convento, Salvador. pitanias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Lisboa:
20. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Pro- Oficina de Manuel Alvares Solano, 1754, p. 205.
cesso n2 8.064. 41. Fazenda, J. V. Op. cit, 1921, pp. 448-449.
21. Mury, P. Op. cit., 1865, p. 94. 42. Galvão, Frei António Santana. Escritos Espirituais (1766-1803).
22. Arquivo Histórico Ultramarino. "Relação dos Mosteiros de Religio- São Paulo: Museu de Arte Sacra, 1980, p. 29.
sas da Bahia", Carta de D. Manuel de Santa Inês (30-6-1764), EGA
Does. n2 6.555, 128, 1.133, 1.609, 2.010.
23. Vilhena, L. S. Op. cit., 1969, p. 450.
24. Vilhena, L. S. Op. cit., 1969, pp. 451-452.
25. Nascimento, Ana A. V. A Postura Escravocrata no Convento de
Religiosas. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 1990, p. 10.
26. Leite, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, v. III, pp. 124-226.
27. São José, FreiNicolau. Op. cit., 1935, p. 94.
28. Idem, ibidem, p. 95. ;
29. Maurício, António. Templos Históricos do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Gráfica Laemmert, s.d., p. 131.
30. Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Lata 117, n. 18 (1756).
31. Santa Maria, Frei Agostinho. Santuário Mariano e História das
Imagens Milagrosas de Nossa Senhora. Bispado do Rio de Janeiro
e todas as Ilhas. Lisboa: Oficina de António Parozo Galram, 1723,
pp. 20-21.
32. S.anta Maria, Frei. Agostinho. Op. cit, 1722, pp. 37-38.
33. Fazenda, J. V. Op. cit, 1921, pp. 448-449.
34. Novinski, Anita. Inventário de Bens Confiscados a Cristãos Novos.
. Lisboa: Imprensa Nacional, 1977, p. 102,
35. Andrade, Gomes Freire (of.). Ápolíneo Feudo da Magnífica e Pom-

290 291
12

As Primeiras Recolhidas

Tarefa das mais difíceis é tentar reconstituir como eram,


as instalações do recolhimento de Rosa, pois a documentação é
omissa a este respeito. Tendo sido demolido b velho edifício em
1906, para alargamento da rua da Assembleia, e construindo a
Mitra em seu lugar, majestoso arranha-céu, onde hoje, nos
últimos andares, vive uma comunidade jesuítica, não restou
qualquer planta que nos informe sobre como era seu espaço
interno. Dispomos contudo de algumas gravuras que o retrata-
ram após sua primeira reforma, emT789, quando um incêndio
destruiu seu interior e telhado no dia 23 de agosto deste mesmo
ano. Pelas duas pintufãs"~ã óleo do João Francisco Muzzi,
equivocadamente atribuídas a Joaquim Leandro, assim como
pelas litografias do Ludwig & Briggs, publicadas no Ostensor
Brazileiro (1845-1846), podemos vislumbrar como era este recolhi-
mento, três décadas após sua fundação.
Um grande casarão emformaretangular, com dois andares
acima do térreo, duas fileiras de 17 janelas no primeiro piso e
oito~nb segundo. Uma grande porta de duas bandas no meio do
edifício, tudo voltado para a rua dos Ouvires. Do lado da atual'
rua da Assembleia, mais cinco grandes janelas em cada andar.
Neste maciço conjunto arquitetônico, olhando-se pelo exterior,
não é possível distinguir o espaço ocupado pela igreja, embora
uma segunda porta, voltada para a rua de São José, sugira que
por aí se entrava na nave do templo.
Er a um edifício avantajado, o mais imponente e grandioso
em suas imediações, podendo facilmente ser distinguido no
conjunto do casario por quem olhasse em direção ao mar situan-
do-se no mirante do convento dos franciscanos do Largo da
Carioca. Um belo quadro de Taunay, conservado no Museu de
Belas Artes do Rio de Janeiro, pintado exatamente do alto do
referido mirante, mostra o Recolhimento do Parto pelas bandas

293
Incêndio do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto (1789). Feliz e pronta reedifícacão da igreja e todo o antigo Reco-
(Original existente no Museu Cúria Arquidiocese do Rio de Janeiro.) lhimento de Nossa Senhora do Parto, iniciadano dia 25 de agosto
de 1789 e concluída em 8 de dezembro do mesmo ano.

294 295
do fundo, do lado oposto ao que o Mestre Muzzi o representou inferioridade e a localidade destinada às recolhidas ou
nos finais do século XVIII. senhoras reclusas, por detrás de cujas grades estas parti-
Devia possuir mais de 40 metros de fachada e aproxima- cipam do serviço divino, baixo e pesado."4
damente uns 25 metros de altura. As estreitas janelas do térreo,
gradeadas, que ficavam a quase 3 metros do solo, e os janelões Tudo nos sugere que, ao transferirem-se as primeiras sete
do primeiro piso, a aproximadamente 8 ou 10 metros do chão, mulheres para o recolhimento, só havia o térreo e o primeiro
ofereciam clausura segura e isolamento garantido das recolhi- andar, ficando no rés-do-chão o coro gradeado com rótulas de
das ante o mundo exterior. Tudo muito semelhante, na estrutura ferro e cortinas espessas, só abertas quando as recolhidas assis-
arquitetônica, como na ferragem das janelas e.postigos, ao que tiam aos ofícios sacros, recebendo a comunhão através de uma
ainda hoje pode ser observado no Recolhimento de São Raimun- portinhola existente no meio do gradeado, igual ao que se pode
do, construído no mesmo ano e com a mesma finalidade que o observar no Convento de Santa Teresa, a 30 minutos de cami-
Parto, na cidade de Salvador, a cuja paróquia coincidentemente nhada deste local. No térreo, além do coro, deviam ficar a
pertence o autor destas linhas. cozinha, o refeitório, corredor e claustro, talvez pequeno jardim,
Quem. entrava na antiga igreja via logo à direita três áreas de serviço e sanitários,, se é que existiam. No andar de
pavimentos: um térreo, frouxamente iluminado pôr três meza- cima estavam, as celas, o coro gradeado, de onde podiam assistir
ninos, guarnecidos de grades de ferros, atrás dos quais as aos atos litúrgicos sem serem vistas pelo público de dentro da
recolhidas assistiam às funções religiosas, No primeiro e segun- igreja, talvez alguma sala maior onde realizavam em comuni-
do andares, abriam-se par a a igreja dois coros, apresentando em dade alguns trabalhos, reuniões, etc. Diz o Padre Francisco, o
toda sua extensão grades de madeira ou rótulas. primeiro capelão desta casa, em carta de 5 de setembro de 1754,
O escritor carioca Joaquim Manuel de Macedo, no seu que o bispo tencionava fazer por ora 11 celas, sendo 7 as
célebre Passeio pela Cidade, do Rio de Janeiro, datado de 1862, recolhidas, só não aceitando mais postulantes "por não haver
assim descreve esta igreja: • . ' cómodos".
Data fundamental na história dessa instituição é o dia 18
"A Capela do Parto têm duas faces. Uma que se levanta de novembro, quando o bispo nomeia, através de portaria, a
na extrema da rua dos Ourives, com edifício de três pavi- primeira regente deste recolhimento, documento que encontra-
mentos e cinco janelas; outra, que se estende em direção à mos no Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, dos poucos que, além
rua do Parto, que é rasgada por duas portas, uma abrin- do processo de Rosa, guardado na Torre do Tombo de Lisboa,
do-se para o corpo da igreja e outra com grades para a descrevem os primeiros anos desta associação.
sacristia. O aspecto exterior da capela é triste e sem
majestade. "Dom Frei António do Desterro, por mercê de Deus e da
Santa Sé, Bispo do Rio de Janeiro, do Conselho de Sua
No começo do século XIX, o inglês John Luccock assim vira Majestade Fidelíssima, etc. Porquanto tenho dado princí-
esta construção: pio ao recolhimento das convertidas na Igreja de Nossa
Senhora do Parto e nele se acham já algumas vivendo por
"Na ponta do Recolhimento do Parto, no fim da rua dos nossa ordem abstraídas do século e livres da comunicação
Ourives, já r.a rua de São José, fica a capela, que em geral popular, exercitando-se nas virtudes em mostras de que
é bem freqúe.atada, porém mal iluminada e escassamente irão em aumento e crescerão em número em havendo
ornamentada. O altar não se distingue senão pela sua princípio de uma pequena comunidade em que necessária-

296 297
mente deve haver uma superiora a quem as demais obe- Sacramento, natural de Lisboa, da freguesia do Santíssimo
deçam para o bom regímen e união da comunidade; por- Sacramento, donde tirou o sobrenome. Tinha 28 anos quando
tanto, por termos toda informação da capacidade e direção escolhidapara o cargo. Vivia em casa de sua irmã, que era casada
de Maria Teresa do Sacramento, e que concorrem nela os comxrm "requerente de causas", Manuel Barbosa, originário de
requisitos necessários para o referido emprego, houvemos Guimarães. Seu pai, João Pedroso, era amigo do Padre Xota-
por bem. elegê-la e nomeá-la regente do recolhimento e lhe Diabos, tanto que em 1751, quando este sacerdote chegou ao Rio
encarregamos o seu bom regímen, confiados de que terá a de Janeiro, levou sua negra espiritada para a casa do mesmo,
sua obrigação com aquele zelo e diligência que da eleita, "dizendo que era uma grande serva de Deus, que nela se ocultava
esperamos p ar a o exercício da maior perfeição das virtudes um grande mistério e que nela falavam os anjos e santos, mas
e costumes, e mandamos a todas que se achem no recolhi- que vinha um tal Lúcifer para impedir e atrapalhar".
mento e forem admitidas, venerem e reconheçam a dita Talvez Maria Teresa fosse •uma beata dirigida por Frei
Maria Teresa do Sacramento por sua regente superiora, Agostinho, pois, além de ensinar a africana a escrever, era quem
obedecendo-lhe e cumprindo em tudo o que lhes mandar anotava suas revelações e fazia-lhe as cartas, daí algumas
para perpétua conservação do mesmo, maior glória e honra testemunhas chamarem-na de "secretária de Rosa". Suspeita-
de Deus e consolação nossa.3 mos que tenha sido o mesmo frade quem sugeriu seu nome ao
bispo para reger a nova fundação, considerando reunir "os
Rosa nunca foi oficialmente regente doJParto. Negra, ex- requisitos necessários e capacidade para a direção". Pusilânime
prostituta, tropegimente alfabetizada, vexada por espírito irre- e vaidosa, Maria Teresa com o tempo vai considerar-se injuriada
qu1reto7irã~o"õifeTeTda~ã^^5ndÍç5es mínimas para merecer nomea- por darem à"Madre" Rosa o respeito e obediência que por ordem
ção_£or_p_arte dcTblspo. Não obstante recair em outra beata a. episcopal só a ela pertenciam, criando uma danosa trama de
direção oficial desta casa recém-fundada, segredava o capelão enredos e calúnias que levarão à expulsão da visionária do
do recolhimento a seu compadre Arvelos: "Nada se faz sem a próprio recolhimento que os céus lhe incumbiram de fundar.
ordem da regente, e o que ela diz, se faz, sem pôr em dúvida, e Outra lusitana, filha do mesmo João Pedroso, também
VossaMercêbem sabe quem.é aregente... VossaMercê e o Padre fez-se recolhida no Parto: Ana Joaquina do Sacramento, ao
João Ferreira e todos os mais têm nela uma grande protetora. ingressar na vida religiosa, teve seu sobrenome substituído de
Por hora não posso dizer mais nada." Sacramento para São José; tinha 24 anos. Tanto Rosa quanto
No papel, e à vista do Bispo, Maria Teresa do Sacramento seu padre capelão terão importante presença na vida espiritual
era aregente; na prática, contudo, era a .negra quem mandava, dessa família, ora revelando a situação de seus finados parentes,
tanto que a partir desta época passa a ser chamada por todos ora profetizando o futuro de seus membros. Todos eram devotos
de madre: Madre Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz. Tinha, incondicionais da africana, cujo espírito tiveram oportunidade
então, 36 anos. de ver se manifestar por diversas vezes quando a hospedaram
Pouco nos dizem os documentos sobre suas primeiras recém-chegada das Minas Gerais.
companheiras. Assim mesmo,.pinçando aqui e acolá, consegui- Mais duas português as, só que naturais dos Açores, dallha
mos reconstituir fragmentos identificadores destas mulheres, do Faial: Ana Maria de Jesus, moradora da rua Nova de São
faltando contudo para a maior parte delas informação sobre a Francisco, contava 18 anos quando entrou no recolhimento.
data em. que abandonaram o mundo para recolher-se. . Disse ter vindo pequenina para o Brasil. Seu primeiro contacto
• A primeira regente, como vimos, foi Maria Teresa do com Rosa foi marcado pela violência: num dia da Ascensão,

298 299
provavelmente em 1754, estando a portuguesinha em conversa São José, natural da freguesia de São Gonçalo, viúva, 41 anos,
frívola com uma vizinha dentro da Igreja de Santo António, também cozinheira, da comunidade, e Ana Clara Maria dos
avançou a negra espiritada contra ela, possuída então pelo Anjos, cuja aparência deixou algumas testemunhas em dúvida
Espírito Zelador dos Templos, e "arrancando violentamente o se era mesmo mulata ou negra.
cordão de irmã terceira de São Francisco que ela trazia, deu-lhe As pretas eram. em número de 7: Ana do Santíssimo
pancadas que lhe feriram a cabeça nas grades da igreja". Cer- Coração de Jesus, natural de VilaRica, do arraial do Padre Faria,
tamente Ana, Maria tomou a violência como castigo celeste tinha 25 anos, sabendo ler e escrever; Ana do Santíssimo Coração
contra sua conduta irreverente, tanto que decidiu-se por entrar de Maria, conhecida no mundo como "AnaBela", crioula nascida
para a mesma casa de oração onde a africana reinava soberana. na Ilha do Bom Jesus, no recôncavo do Rio de Janeiro, 28 anos;
Teresa de Jesus provinha da mesma ilha e tinha os mesmos Maria Antonia do Coração de São Joaquim, Maria Rosa do
18 anos quando se recolheu. Analfabeta, foi uma das cozinheiras Coração de São José, Maria Joaquina do Coração de Santo
do Parto, exercendo tal função por 4 anos seguidos. Agostinho e Justa de Brito, sobre cujas identidades nada infor-
Das brasileiras brancas que primeiramente entraram nes- mam os documentos, além de especificar em que tinham a mesma
ta instituição temos as seguintes informações: Joana Maria do cor negra de Madre Rosa Egipcíaca. Pelo visto, com exceção da
Rosário, 33 anos, nascida e batizada na freguesia de Campo fundadora, que era natural da costa africana, todas as demais
Grande, morou primeiro na rua da Prainha e depois "viveujunto eram já crioulas, nascidas quer nas Minas, quer no Rio de
com Rosa quando esteve no consistório da Igreja do Parto, antes Janeiro.
de fazer-se o recolhimento". Ficando doente e entrevada, voltou A heterogeneidade social, racial e etária das ocupantes do
para sua casa sem ter-se recolhido no novo edifício. recolhimento sempre foi a tónica desta comunidade, talvez o
Também carioca era Francisca Xavier dos Serafins, bati- mesmo ocorrendo em outras instituições congéneres do Brasil
zada na Sé do Rio de Janeiro. Tinha 33 anos quando entrou na Colonial. Nos conventos reais, como no do Desterro da Bahia,
comunidade de Rosa. no de Santa Teresa e no da Ajuda do Rio de Janeiro, a 'limpeza
Sobre as recolhidas Maria do Rosário e Luciana Maria de de sangue" era uma das condições essenciais para a aceitação
Jesus só sabemos que ambas eram brancas, sendo de Pernam- de noviças, havendo mesmo casos de brasileiras levemente
buco a derradeira. Quatro recolhidas, ingressas a partir de 1757, amestiçadas que, tendo sido recusadas nos conventos daqui,
eram irmãs entre si: Faustina,- Francisca Tomásia, Maria Ja- foram aceitas como enclausuradas nos do Reino. Nos recolhi-
cinta e Genoveva, todas quatro filhas de Pedro Rodrigues Arve- mentos, contudo, parece que sempre houve maior tolerância
los, ex-dono de Rosa, compadre seu e do Padre Xota-Diabos. para as mestiças. Já em Portugal, no século XVI, a negra
Sobre estas moças trataremos mais adiante, dada a condição de Violante da Conceição, amiga pessoal da Rainha Dona Catarina,
parentesco ritual existente entre aquela família e a negra cou- deixara sua fortuna para a fundação do Recolhimento de San-
rana. tana, aceitando-se aí mulheres de tez escura, o mesmo ocorrendo
Ao todo viviam, portanto, no Recolhimento do Parto, 12 em Goa, onde não só no Recolhimento de SantaMariaMadalena,
recolhidas brancas, entre-cariocasrlusitanas e mineiras. Nove quanto no Real Convento de Nossa Senhora do Monte, era
religiosas eram de cor, sendo três mulatas: Leandra Maria do marcante a presença de filhas de indianos, muçulmanos e mes-
Sacramento, a já referida principal amiga e companheira de mo de africanos. Como o Recolhimento de Nossa Senhora do
Rosa, natural de Pernambuco e, como ela, exorcizada pelo Padre Parto, contudo, não há semelhante no império lusitano, pois, ao
Francisco desde os tempos do Rio das Mortes; Páscoa Maria de menos em sua fundação e nos 10 primeiros anos de sua existên-

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cia, as mulheres de cor representavam quase a metade das esposas, como às esposas de maus maridos, e também às
reclusas: 12 brancas e 10 negras e mestiças amulatadas. moças solteiras, filhas de pais enfezados, cabeçudos e
Se na origem desta casa pia seu, objetivo era abrigar prepotentes. B astava um marido tirano querer livrar-se da
mulheres arrependidas, ou "convertidas", como a elas se referia esposa, paralogo interná-lano Parto. Não haviabriga entre
o bispo, na portaria de nomeação da primeira regente, desde seu marido e mulher que não arrefecesse imediatamente ao
início, contado, donzelas e viúvas honestas, inclusive mulheres pronunciar das terríveis palavras: 'Olha o Recolhimento
casadas virtuosas, também aí encontraram espaço p ar a fugirem do Parto!' O próprio incêndio desta casa, em 1789, foi
do mundo. Além de Rosa, que viveu lascivamente dos 14 aos 29 atribuído, na época, à vingança de uma recolhida revoltada
anos, também a preta Ana Bela, antes de converter-se em irmã com sua indesejada reclusã.o."
Ana do Coração de Maria, é apontada pelo Comissário do Santo
Ofício, Frei Bernardo de Vasconcelos, carmelita, como "bem. Não é difícil imaginarmos quão problemática e atribulada
conhecida pelas suas escândalos as dissoluções...", pró vavelmen- devia ser a convivência, dentro desta instituição fechada, de
te mulher da vida, como tinha sido nossa biografada. Só destas mulheres e moças provenientes de classes sociais, nichos cultu-
duas há referência explícita ao passadopecaminoso. Das demais, rais e com idades tão desencontradas. Beatas empedernidas
ao menos seis delas eram filhas de famíha, donzelas; as restan- solteironas, lado a lado com madalenas há pouco saídas dos
tes, solteironas, beatas ou, quem sabe, mulheres que deram um lupanares; donzelas enclausuradas à força compartilhando o
mau passo na vida, sem contudo poderem ser enquadradas na mesmo dormitório e espaços coletivos com ex-escravas criadas
laia das dissolutas Rosa e Ana Bela. Sobre esta questão ensina na promiscuidade das senzalas; brancas cristãs-velhas, de "san-
o historiador Vieira Fazenda: "Esse recolhimento serviria não gue puro", sentando-se na mesma mesa do refeitório com afri-
só parareceber mulheres convertidas, como também as casadas, canas e crioulas de primeira geração. O Parto foi, na sua origem,
a que estivesse obrigado a acudir, ou. para as livrar da morte, uma típica Babel, e com o correr dos anos tornar-se-á um
ou para seus maridos as livrarem de que continuem em ofendê- pandemônio de fazer inveja ao Apocalipse.
los."3 Apropria Egipcíaca, em carta provavelmente escrita em Rosa não devia caber em si de alegria com a fundação do
1760, dirá a este propósito: fDizem os Santíssimos Corações que recolhimento: além de ter garantido um lugar para viver e
o Senhor tinha feito este rècolloimento para mulheres publica- dormir, comida na mesa na hora certa, tinha espaço e tempo
nas, para depois fazê-las almas justas, mas, faltando estas, para para seus voos místicos. Mais ainda: era amada e respeitada por
donzelas honestas." Da mesma forma como ocorreu com o Reco- uma dezena de mulheres, brancas e negras, que a tratavam por
lhimento São Raimundo, naBahia, fundado um ano após o Parto, Madre e a veneravam como a preferida do Divino Mestre e
em 1755, com o tempo ambos vão se tornar uma espécie de prisão Esposa da Santíssima Trindade. Em carta de 16 de setembro de
feminina, onde maridos tiranos enclausuravam suas mulheres 1755, dia de São Cipriano, Madre Egipcíaca revela que o reco-
ou filhas, seja para eles próprios viverem com mais licença, seja lhimento representava uma poderosa arma na guerra contra o
para castigá-las pelos excessos de liberdade, verdadeiros ou não. Espírito Maligno. Eis suas palavras:
Tornou-se assim o.Recolhimento-do~ Parto, como o de São Rai-
mundo, uma terrível ameaça contra o belo sexo, passando a "Já vêm em campo os Santíssimos Corações, com o
significar, no dizer de Joaquim Manuel de Macedo, estandarte do seu divino braço aberto, afugentando os
nossos inimigos contrários da nossa alma, que são o mundo,
• "uma espécie de cadeia que fazia medo, não só às más o diabo, a carne e seus sequazes incrédulos, pois já está
posta a primeira pedra da fundação do recolhimento no dia

302 303
da Assunção de Nossa Senhora. Creio que está a pedra vos onde poderia estar guardado foi achado. Encontramos ou-
posta na porta do inferno, na cabeça de todos os demónios! trossim estatutos de outros recolhimentos e conventos de reli-
Que Jesus seja o fogo, © Maria a pólvora para quebrantar giosas contemporâneos ao Parto, permitindo-nos supor que nos-
nossos corações de pedra!" sas recolhidas deviam organizar seu dia e suas vidas por ditames
semelhantes. Para familiarizar-nos com o universo destas ins-
É nesta carta que a ex-escrava dos Arvelos manifesta pela tituições femininas, vejamos sumariamente como funcionavam,
primeira vez debicado desejo: convida a filha de seu ex-senhor, de acordo com os estatutos, os recolhimentos de Macaúbas, de
Maria Faustina, a se tornar "esposa do Menino Jesus no Reco- Nossa Senhora da Glória e da Ajuda.
lhimento dos Santíssimos Corações", Desde cedo Rosa percebe Supomos que o mais provável é ter o Recolhimento do Parto
que melhor seria que sua casa não se limitasse em abrigar seguido a orientação dos franciscanos na escolha de sua disci-
"publicanas" e negras como ela: quer também donzelas, brancas, plina interna, pois, além de Frei Agostinho de São José, o já
quer as filhas de seu ex-senhor, todas sob sua tutela e direção. nosso conhecido diretor espiritual de Rosa entre 1751 e 1758,
O zelo espiritual e a ambição destabeatanâo conheciam limites: que se autoproclamou "fundador do recolhimento", outros fran-
tinha esperança e convicção de que o Recolhimento, do Parto ciscanos continuaram a dar assistência espiritual às recolhidas,
transformar-se-ia no principal convento real do Império Portu- anos seguidos, dada a proximidade entre o Convento de Santo
guês. Daí querer diversificar racialmente as componentes desta António e esta casa recoleta. Os próprios franciscanos observa-
comunidade mística. vam, no Rio de Janeiro, o seguinte horário diário:
Como viviam as recolhidas nestes primeiros anos após a,
fundação do Parto? Também aqui, infelizmente, a documentação 4h Levantar
deixa a desej ar. Há poucas referências sobre a existência de uma 5h Ofício Divino e Missa Conventual
Regra escrita que governasse a comunidade. Rosa, em carta de 7h Classes
12 de setembro de 1780, dirigida à sua ex-patroa Dona Maria llh Jantar
Teresa Arvelos, diz que "nosoO esía."aito manda que as religiosas 14h Classes
que forem rebeldes, que se metam no cárcere e se penitenciem..." 17h Ofício Divino
E completarespaldando-se na tradição monástica: "Pergunte ao 19h Ceia
meu compadre [Pedro Arvelos] como é que se faz nas Ordens 21h Ofício Divino, Oração Mental, repouso. °
Terceiras quando algum irmão tem rebelião de espírito." Em
outra missiva, destinada à mesma família, de 5 de fevereiro de No Recolhimento das Macaúbas, em Minas Gerais, era
1762, escreve assim: "Nosso instatuto [sic] são os três votos: seguida a regra franciscana desde 1733, levantando-se também
pobreza voluntária, obediência inteira e castidade perpétua". E as religiosas às 4 horas da manhã, iniciando suas orações
diz ainda: "Os livros espirituais por onde me governo e dirijo matutinas com o Bendito ao Santíssimo Sacramento e à Imacu-
estão cheios de espirituais lições de como devem as mestras e lada Conceição:
mestres de Espírito ligar as almas com Deus, livrando- as de todo
trato familiar do século, fazendo que tenham só os espíritos Bendita seja a luz do dia, bendito seja quem a cria
recolhidos em Deus, sem distrações..." . .. . O Filho da Virgem Maria, o Santo deste dia.
Se algum dia o recolhimento de Rosa chegou a ter estatuto Vamos à Prima louvar a Deus e a sua Mãe Santíssima.
escrito, infelizmente este se perdeu, pois em nenhum dos arqui- Cobri-nos com vosso manto, Esposa do Espírito Santo!

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instituição de donzelas: o confessor devia ser de idade madura
Os estatutos do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória, e conhecida probidade, exercendo a capelania da igreja e admi-
sito no lugar da Boa Vista, em Recife, apesar de ser destinado nistração dos sacramentos, recebendo 120$000 réis por ano,
a donzelas brancas, com. mais de 16 anos, provenientes de boas tendo como obrigações dizer missa diariamente—sendo cantada
famílias, dá-nos uma ideia de como funcionavam tais institui- nos dias de festa solene —, ouvir confissão, administrar os
ções no Brasil colonial. Eis seu horário diário: sacramentos, pregar aos domingos e autorizar a entrada de
serviçais no recolhimento para as obras necessárias. Quanto à
5h Despertar regente, também requeria-se ter idade madura "trabalhando
5:30h Coro: "após o sinal da cruz e adoração do Santís- com caridade para que todas fiquem unidas em. um só espírito,
simo Sacramento, dirão o hino do Espírito Santo, não permitindo que as súditas façam a Deus promessas ou votos
leitura dos pontos da meditação e um quarto de inconsiderados, repreendendo sempre em particular como boa
hora de oração mental" mãe". Constavam ainda alguns encarregados dos ofícios exte-
6h Oficio Parvo de Nossa Senhora e volta para a cela riores: sacristão, serventes para compras, hortelão, procurador
8h Missa e Ofício Divino para cuidar das rendas e o médico.
9h Empregos e ocupações Dom António do Desterro, o bispo fundador do Recolhimen-
12h Jantar e recreio "onde falarão umas com as outras to do Parto, quando do enclausuramento das franciscanas no
de cousas agradáveis e santamente alegres, com Convento de Nossa Senhora da Ajuda, em 1750, também baixou
muitapaz e cortesia, nunca jamais dirão palavras portaria especificando, nos vários detalhes, como deviam viver
incivis, nem de murmuração" •• tais religiosas. Embora se trate de um convento de votos solenes,
14h Ofício Divino e trabalho em princípio mais rigoroso e estrito, por se tratar de uma "regra
18h Rosário e Ladainha de Nossa Senhora carioca" e da mesma década em que o Recolhimento do Parto foi
19h Ceia e meia hora de recreio, "acompanhando a. instituído, certamente muitos destes detalhes foram, incorpora-
seguir a regente cada recolhida à porta de sua dos aos estatutos de nossas recoletas; daí o interesse em sua
cela para ocupar o tempo com orações e exames divulgação.
de consciência" Começam as "Regras das Freiras da Ajuda" determinando
21h Toque de recolher que não se aceitassem na clausura meninas com menos de 12
22:15h Apagar as luzes anos, nem. mulheres muito velhas, pelos inconvenientes.resul-
tantes dessas idades. Que o hábito das religiosas fosse uma
O governo interior das recolhidas era confiado a um padre túnica com escapulário branco e manto azul, com a Virgem Nossa
espiritual ou confessor, que devia morar perto do recolhimento Senhora da Ajuda bordada no ombro esquerdo, cingindo-se a
e "tomar a si o cuidado de confessar, dirigir e encaminhar para cintura com uma corda de linho àmodafranciscana, cobrindo-se
a virtude as pessoas que habitarem dentro dele". A regente, a cabeça das noviças com uma toalha branca de linho, e as
eleita- pelo bispo, devia ter toda a superioridade no governo da professas com véu preto, escondendo-se atesta, face e garganta
casa, secundada pela vigária do coro, procuradora, porteira, com pano branco. Os cabelos deviam ser sempre cortados. Nos
sacristã, rodeira, enfermeira, despenseira, refeitoreira, todas pés, podiam escolher: alpargatas, calçado ou pantufas. O dormi-
nomeadas pela regente. Os estatutos do Recolhimento da Glória tório era comum: "durmam todas com seus hábitos vestidas,
especificam ainda as qualidades dos principais dirigentes desta cingidas com cordões, estando unia lâmpada acesa. Que cada

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uma durma só em sua cama". Preocupação puritana documen- do a leitura das constituições religiosas ou dos livros sacros. A
tada desde os tempos de Santo Agostinho (século V) e ratificada recreação não deviaultrapassar duas horas por dia, obedecendo
pelos padres da Igreja, prevenindo a tentação das amizades à orientação dos Santos Padres, que proibiam fossem proferidas
carnais entre as religiosas, sendo que já no Concílio de Paris "palavras de murmuração, leviandades ou frases picantes, proi-
(1212) é oficialmente proibido a duas freiras dormirem na bindo-se falar de gerações e de suas terras, vetando-se as porfias
mesma cama, certamente p ar a evitar que a homossexualidade, e contendas. Caso houvesse desobediência, que se prive a reli-
popularmente chamada de 'Vicio dos clérigos", tambémpassasse giosa de umahora de recreação, fazendo adoração ao Santíssimo
a ser rotulada de "vício das freiras"... Sacramento no altar".
Eis o horário do Convento da Ajuda, situado então a menos Em outra portaria, Dom António Malheiro trata da disci-
de 15 minutos de caminhada do Recolhimento do Parto: plina e circunspecção que as enclausuradas deviam ter no
contacto entre si e com o mundo exterior: que as noviças ficassem
5h I^vantar(entreaPáscoaeafestadaSantaCruz, às6h) proibidas de falar com seus pais durante o Advento e Quaresma,
Oração mental, Oficio divino e trabalho nas oficinas que se interditassem os bailes e descantes no convento "por
9h Missa conventual, em seguida permanecem as serem totalmente alheios ao estado religioso e serem ocasiões
religiosas na "casa de lavor" de ruínas espirituais"; que a porteira fosse vigilante com a porta
lOh Exame de consciência (meia hora) do mosteiro, não abrindo as duas bandas anão ser para o general
llh Jantar e graças a Deus no coro até 12:30h da capitania ou pessoas de primeira classe, médicos, cirurgiões
12:30h Silêncio até 14h e confessores.
14h Ofício Divino Tais regras de recolhimentos e conventos de freiras do
15:45h Recreação século XVIII permitem-nos vislumbrar como funcionaria o Re-
17:30h Oração no coro colhimento de Nossa Senhora do Parto, cujo estatuto devia
18;30h Ceia e recreação repetir, mutatis mutandis, os mesmos princípios organizacio-
21:15h Exame de consciência • nais das demais casas religiosas. Talvez com um pouco mais de
22h Recolher improvisação e menor rigor nos horários e disciplina, dada a
inexperiência da regente oficial, Maria Teresa do Sacramento,
Quanto aos exercícios espirituais, deviam as enclausura- então com 28 anos, e a heterogeneidade das mulheres e donzelas
das tomar disciplina todas as sextas-feiras, flagelando-se em aí reclusas. Conseguimos levantar os nomes das primeiras
comunidade durante o tempo do salmo Miserere; na Semana ocupantes de alguns cargos desta comunidade: como dirigentes,
Santa, nos seus três dias mais solenes, a flagelação devia ter conforme acabamos de referir, além da regente Maria Teresa,
seu tempo triplicado, durando todo o período em que se cantava lá estava o Padre Francisco Gonçalves Lopes, capelão e confessor
o mesmo Salmo 50, tudo oferecido "para aumento da Santa Fé das recoletas, o qualpossuíaresidência adjunta ao recolhimento,
Católica, por El-Rei, pelas almas, pelos aflitos, cativos e por celebrando diariamente a Santa Missa no altar-mor da dita
quantos estavam empeçado mortal". Só aprelada ou o confessor igreja. Um ermitão, o Irmão João das Barbas, fazia os serviços
podiam autorizar disciplinas ou penitências extraordinárias, de sacristão externo, também esmolando embenefício desta casa
devendo as religiosas comungar todos os domingos e festas santa. Em vez de hortelão e servente para compras, o próprio
solenes, fazendo 15 minutos de atos de agradecimento após a capelão possuía um escravo, o cabraBrás, sugerindo a documen-
eucaristia. Np refeitório deviam permanecer em silêncio, ouvin- tação que vez por outra contratavam outros cativos, como alu-

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gados, para serviços extras dentro do edifício. Em 21 de novem- decotadas. Como, porém, o incêndio ocorreu à noite, talvez os
bro de 1754 o bispo nomeia dois procuradores para "requerer e saiões brancos das ditas mulheres fossem roupa de dormir, pois
alegar toda a justiça que se oferecer em qualquer causa perten- Rosa declarou certa feita que dormia "com túnica e saia branca
cente ao recolhimento das convertidas e abstraídas do século, de estopa". Para as cerimónias no coro, no refeitório e nos demais
administrando as obras e fazendo todo o dispêndio necessário: atos comunitários, as recolhidas deviam vestir o hábito marrom,
Miguel Róis Batalha e Manoel Costa Cardoso".16 Da cozinha do cingindo a cintura com o cordão branco, tendo a cabeça coberta
recolhimento ocupavam-se as irmãs Páscoa Maria e Teresa de com véu branco e provavelmente o rosário dependurado ao lado
Jesus. Certamente deviam outras enclausuradas ocupar as da cintura.
funções de porteira, sacristã, refeitoreira, etc., embora os docu- Deixemos esta dezena de mulheres e moças em seu reco-
mentos não registrem seus nomes. Na hierarquia interna desta lhimento, rezando o Ofício de Nossa Senhora, ladainhas e nove-
comunidade, embora a regente fosse por direito a autoridade nas, cuidando dos afazeres materiais, aprendendo devagarinho
máxima, cabendo-lhe inclusive a nomeação das demais recolhi- como viver piedosamente em comunidade, e voltemos a Rosa
das para ocupar os cargos previstos para seu funcionamento, na Egipcíaca, cujas visões beatíficas se tornam cada vez mais
prática, como veremos, as coisas se passavam diferentemente: espantosas, desde que transferiu-se para o litoral e começou a
Rosa era amadre superiora, e quatro de suas mais devotas filhas frequentar o convento dos franciscanos.
comandavam este pequeno rebanho recolhido na Várzea de
Nossa Senhora!
Sendo um franciscano o .fundador desta casa e contando
tais mulheres com a orientação constante dos frades menores Notas
do Convento de Santo António, sito a 10 minutos de caminhada
um local do outro, nada mais possível que, como Rosa, também
as demais recolhidas usassem o hábito marrom da Ordem 1. "Fatal e rápido incêndio que reduziu a cinzas, a 23-1-1789 todo o
Seráfica. Nenhum documento informa cabalmente como era o antigo Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, salvando-se ilesa
hábito dessas beatas. Dom António diz, apenas, que ao saírem entre as chamas a milagrosa imagem da mesma Senhora" e "Feliz
na rua, quando ainda estavam vivendo no consistório, antes do e pronta reedificarão da Igreja e todo o Recolhimento de Nossa
Senhora do Parto, começada a 25-8-1789 e concluída a 8-12 do
término das obras do novo prédio, para irem confessar-se, usa-
mesmo ano", Fundação Raimundo Otoni de Castro Maia, Rio de
vam íchábito de terceiras" — quer dizer, terceiras franciscanas. Janeiro. Duas reproduções destas telas, atribuídas a JoaquimLean-
Uma testemunha declarou textualmente que Rosa andava de dro, encontram-se no Museu da Arquidiocese do Rio de Janeiro.
"burel de capucho", isto é, hábito franciscano. Parece que dentro 2. Anónimo. Nossa Senhora do Parto e sualgreja. Rio de Janeiro, s.ed.,
da clausura algumas recolhidas vestiam longos vestidos bran- 1938, p. 4.
cos, pois é assim que dez delas foram retratadas por Muzzi, 3. Macedo, Joaquim Manuel. Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro.
quando às pressas abandonavam o edifício do Parto por ocasião Rio de Janeiro: Tipografia Imparcial, 1862, 2 v.
do-citado incêndio de- 1789: .sete delas, contudo, na mesma 4. Luccock, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais
pintura, aparecem vestidas comoburelmarrom de franciscanas. do Brasil Itatiaia-USP, 1975, pp. 47-48.
Algumas negras aparecem também estampadas no quadro, 5. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro
. certamente escravas do recolhimento ou de alguma das internas, II, "Registro de uma Portaria de 18-11-1755, para Regente do
trazendo estas saiões escuros, algumas com blusas vermelhas Recolhimento do Parto", fl. 57.
6. Russel Wood, A. Op. dt., 1982, p. 70.

310 311
7. Boxer, C. Op. cit., 1977, p. 89. 13
8. Fazenda, J. V. Op. cit., 1921, p. 449.
9. Macedo, J. M. Op. cit., 1862, 2 ed., 1942, pp. 289-333; Dunlop, C. J. Visão dos Sagrados Corações
Rio Antigo, Rio de Janeiro, s.ed., 1958, p. 46.
10. Rower, Basflio. Op. cit., 1937.
11. Sousa, D. Joaquim Silvério. Sítios e Personagens. S. Paulo: Tipo-
grafia S alesiana, 1937, p. 303.
12.Azeredo Coutmho, D. José J. C. J3sta.tu.tos do Recolhimento deNossa Foi logo após a revelação de Nossa Senhora Jjxgambmdo-a
Senhora da Glória, deBoa Vista-de Pernambuco. Lisboa: Tipografia de_fur^dar,oj:ecolhimento. que Eosa t,em_um.a_série de visões de
da Academia de Ciências, 1798. crucial importância, para sua vida mística. Estamos na Páscoa
13. Curb, Rosemary & Manahan, Nancy. Lesbian Nuns: Breaking
de 1754: indo à Igreja de Santo António, seu local predileto de
Silence. New York: Warner Books, 1985.
orações e raptos beatíficos, após confessar-se
14. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro I,
fl. 22 (1750-1751). m
15. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro I,
fl. 20 (16-11-1750).
"se pôs a ouvir missa no altar de Nossa Senhora da Con-
ceição, e tanto que o sacerdote disse Sanctus, Sanctus,
*
16. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro Sanctus, beijou ela, ré, o chão e, levantando-se, viu. p nicho
II, fl. 57 (21-11-175?). em que estava Nossa Senhora coberto como com espelho,
mas muito luzido e claro, trémulo assim como de águas
cristalinas quando neles reverbera o sol, e, no meio disto,
viu três corações, um cercado com uma coisa verde como
coroa de espinhos e, em cima, uma chama como que lançava
fogo, no meio do qual estava uma cruz pequena; e do lado
direito deste coração estava outro, atravessado com uma
espada, que o passava de parte aparte, e, ao lado esquerdo,
outro coração também atravessado com uma flor, E todos
estes corações eram de cor sanguínea e se moviam juntos
com a mesma ordem dentro daquele cristal onde estiveram
até o sacerdote consumir a sagrada hóstia, e então desa-
pareceram. E teve ela, ré, com uma certeza que se lhe pôs
no entendimento, de que o coração do meio era de Jesus, o m
da parte direita de Maria, o da esquerda de José, e que era
a Trindade na Terra, cuja visita assim da mesma sorte se
m
lhe repetiu na missapor três dias oumais, do que deuparte
ao seu confessor. E estando ela mesma, depoente., contem-
plando uma vez neste prodígio, se lhe disse no entendimen-
to que estes Sagrados Corações queriam casa para assisti-
rem na Terra".

312 313
Já nas Minas esta africana tivera uma outra visão onde se
lhe apareceu o Sagrado Coração: no Inficcionado, uma de suas
primeiras manifestações espirituais foi ver no céu, claramente,
umafigura de "um coração de cor vermelha, cheio de luz, cercado
com uma coroa de penetrantes espinhos", recebendo emMariana
a revelação de que "se preparasse para sofrer por Jesus Cristo,
lembrando-se do Amante Coração com que o mesmo Senhor se
dispôs a padecer pelos filhos de Adão".
As visões do Sagrado Coração de Jesus remontam, à Idade
Média. Já no século XIII, a beneditina Santa Gertrudes Magna,
intrigada com o silêncio dos santos que a precederam não
divulgando tal culto, recebeu do Cristo esta resposta: "Deus
reservou revelar os segredos de seu coração mais tarde, em
tempos de grande tibieza espiritual, guardando estas maravi-
lhas para atear a chama da caridade quando ela revelasse luz
fraca e perigo de se extinguir."
Embora'desde o tempo de São Cipriano (século III), Santo
Ambrósio (século IV), Santo Agostinho e São Gregório (século
V), o coração de Cristo Crucificado, trespassado pelalança, fosse
representado como símbolo dalgrejae de seus santos, batizados
pela água e alguns pelo sangue do martírio, tema aliás retomado
na Idade Média por São Bernardo, Santo Tomás de Aquino, São
Bóaventura, Santa Gertrudes e Santa Catarina de Sena, entre
muitos outros, foi através das espetaculares visões de Santa
Margarida Maria Alacoque, no século XVII, que o culto ao
Sagrado Coração alcançouseu apogeu e expansão em toda Igreja Imagem dos "Sagrados Corações", original manda-
Universal, inserindo-se Rosaperfeitamenteno rol dos luminares do esculpir por D. Frei Manuel da Cruz, 'a primeira
desta espiritualidade. representação deste culto no Brasil, e que serviu de
Margarida Maria, nascida na Borgôndia, em 1647, entrou inspiração para Rosa Egipcíaca elaborar a devoção aos
para o Mosteiro das Visitacionistas de Paray-le-Monial em 1671. "Corações da Sagrada Família". (Museu de Arte Sacra,
Tal congregação, fundada em 1610 por São Francisco de Salles Mariana, Minas Gerais)
e Santa Joana de Chantal, já tinha em seu brasão um coração
atravessado por duas setas e rodeado por uma coroa de espinhos.
Foi contudo em 1673, diante do Santíssimo Sacramento, no dia
da festa de São João Evangelista, que Santa Margarida Maria,
então com. 26 anos, mereceu o privilégio de adentrar no peito do
Deus Homem, descobrindo os segredos de seu Sagrado Coração,

314 315

"todo radioso e mais brilhante que o sol e transparente como um
cristal", ostentando setas semelhantes aos símbolos de sua
de Jesus, do agostiniano Frei Manuel da Ascensão; e em 1749,
novamente Frei Francisco Brandão assina outra obra: Escola

agremiação religiosa. Numa segunda visão, ocorrida após ter do Coração de Jesus. m
ficado sessenta dias com febre alta, Soeur Marguerite Marie viu Tal listagem está longe de ser exaustiva e, com ela preten-
de novo o coração de Cristo, agora numa fornalha cheia de demos realçar o quanto esta nova devoção atraiu a atenção de
chamas, 'lançando seus raios ardentíssimos como sol brilhante escritores, místicos e religiosos de todas ordens e do povo em 9
de luz". Apesar da forte oposição de muitos teólogos e bispos e geral. No Brasil, conquanto já nos finais do século XVII o jesuíta
da resistência de diversos papas, a devoção ao Coração de Jesus Conrado Pfeil incluísse numa carta a outro confrade a expressão
se alastra pela ci-istandade: 8 anos após a morte desta serva de "Coração Santíssimo de Jesus", foi outro jesuíta, já nosso bem
Deus, em 1698, a Confraria do Sagrado Coração já contava com conhecido, o Padre Gabriel Malagrida, quem,'a justo título, deve
13 mU sócios; em 1719 o arcebispo de Lyon autoriza sua festa ser proclamado como o maior divulgador desta barroca devoção
em todas as igrejas da diocese; em 1728, no convento das na Terra de Santa Cruz. Foi ele quem instituiu, em Salvador,
franciscanas de Sacavam, nos arredores de Lisboa, se festeja em 1736, nossa primeira Confraria do Coração de Jesus, sita na *
pela primeira vez em Portugal tal devoção, datando de 1731 o Capela do Bom Jesus, fundando, em 1739, o primeiro convento *
primeiro livro publicado em português sobre esta novidade dedicado a tal orago: o Mosteiro das Ursulinas do Santíssimo
devocional: Coração de Jesus Comunicado aos Corações dos Coração de Jesus da Soledade, repetindo o mesmo título em *
O
Fiéis. Dá-se Notícia de uma Prodigiosa Visão em que Cristo 1744, na vila de Igaraçu, Pernambuco, no Recolhimento do 9
Manifestou-se à Venerável Madre Margarida Maria Alacoque, Coração de Jesus, e em 1752, em São Luís do Maranhão, no
Religiosa da Ordem da Visitação de Santa Maria — o Culto de Convento das Ursulinas do Coração de Jesus. Por pouco Rosa
seu Santíssimo Coração. Trata-se de Muitas Excelências suas; não encontrou este devoto sacerdote cordícola em Minas Gerais,
Regras para sua Confraria; Devoções Utilíssimas; uma Devota pois, ao chegar em Mariana seu primeiro prelado, Dom Frei
Novena e, no Fim, uma Sumária Notícia da Portentosa Vida Manuel da Cruz, escreveu este piedoso pastor ao Padre Mala-
Daquela Serva de Deus, Escrito por Frei Jerônimo de Belém, grida que viesse pregar missões em sua novel diocese, não
Franciscano do Algarve. , consumando-se, porém, seu desiderato pelas muitas viagens
Dois anos depois, outra obra, assinada esta pelo Padre missionárias que o jesuíta italiano fazia pelo Brasil afora. Este
Manuel Consciência, introduz emnossa antiga metrópole o culto bispo, Dom Manuel da Cruz, disputa com o Padre Malagrida a
aos três corações: Aljava de Sagrados .Aios, os Santíssimos preeminência na divulgação deste culto; chegando em Mariana,
Corações dos Soberanos Senhores Jesus, Maria e José (1733); no logo quis instituir sua devoção, mandando esculpir um coração
ano seguinte, Frei Francisco Brandão, agostiniano, publica sua em madeira, circundado por coroa de espinhos e rodeado por um
Devoção do Santíssimo Coração de Jesus (1734); em 1736 é a esplendor em chamas, apoiado sobre a cabeça de um querubim.
vez de Frei José de Nossa Senhora, OFM, que manda imprimir Tão insólito objeto encontra-se exposto no Museu de Arte Sacra
seu Sermão Panegírico do Coração de Jesus, Manifesto no de Mariana. Essa novidade devocional provocou repulsa dos
Santíssimo Sacramento no seu Dia Oitavo; em 1740, outro cónegos capitulares, que sub-repticiamente retiram a imagem
Sermão do Santíssimo Coração de Jesus Pregado no Dia do do altar, escondendo-a no quarto de despejos da catedral maria-
Batista, Estando o Santíssimo Exposto no Convento de São nense. Acharam que este novo culto não merecia a veneração
Francisco deXabregas, de autoria de Frei Pedro da Encarnação, pública. Resoluto, Dom Manuel introduz em 1752 novaimagem,
íranciscano; em 1746 é a vez do Sermão do Santíssimo Coração agora não mais apenas um único, mas três corações lado a lado,

316 317
Jesus-Maria-José, que, colocados numa 'espécie de custódia descrição das visões de Santa Margarida Maria, aparições ocor-
ardente, ganham lugar no altar da catedral, O cabido desta vez ridas na França há 80 anos passados, e que desde 1731 eram
não teve como reagir, e a devoção instituiu-se pelas Minas descritas em português no livrinho do capucho Frei Jerônimo de
Gerais: fundam-se irmandades dos Sagrados Corações em Vila Belém. Com certeza os franciscanos do Rio de Janeiro possuíam
Rica e no lugar da Passagem, sendo ereta em 1760 a primeira tal opúsculo e outros do género em sua biblioteca, pois temos
capela que deu origem à cidade de Três Corações, celebrizada notícias de que, já em 174-2, no sertão do Piauí, um sacerdote
neste século por ser a terra natal do mais famoso descendente secular, o Padre FranciscoXavier Rosa, conservava emseupoder
de africanos do Brasil contemporâneo: Pele. O Coração de Jesus Comunicado aos Corações dos Fiéis, com-
A primeira visão cordícola de Rosa ocorreu por volta de provando a rapidez como esta obra se expandiu pelo Brasil afora
1750, quando Dom Frei Manuel da Cruz, há mais de um ano, logo após sua publicação.
tomaraposse de sua diocese. Jáfazia vinte anos que emPortugal A descrição da fornalha ardente e do brilho indescritível
venerava-se o Sagrado Coração, existindo desde 1752, no Rio de com que a Egipcíaca pinta tal aparição repete as mesmas
Janeiro, uma confraria a ele dedicada. Portanto, pode ter sido imagens da vidente de Paray-le-Monial, constando inclusive o
através das pregações devotas destebispo que a escrava courana detalhe da pequena cruz sobre a. aorta do Coração de Cristo. O
tenha ouvido falar pela primeira vez no Coração de Cristo; é imaginário místico da africana, contudo, é ainda mais barroco
possível mesmo que tenha visto- alguma estampa ou aquela do que o da visitacionista francesa: não apenas Cristo, mas toda
polêmicaimagèmintroduzidanaSédeMarianaerecusadapelos a Trindade na Terra brindam-na cora. a intimidade de seus
cónegos. Foi nesta mesma igreja que, em 1750, esta negra fora preciosos corações.
examinada por uma junta de exorcistas, os mesmos cónegos que Conforme relatamos, as primeiras videntes deste inefável
esconderam tal escultura. Será contudo no Rio de Janeiro, em mistério, as santas Lutgarda, Gertrudes, Catarina de Sena,
1754, que Rosa Egipcíaca vai incorporar-se no séquito de Mala- Margarida Maria, viram tão-somente o Coração de Jesus, cora-
grida e de DomManuel da Cruz, tornando-se a principal vidente ção isolado, separado do corpo, rodeado de esplendores cristali-
e propagandista deste excelso culto: Rosa é nossa Margarida nos e chamas ardentes. Foi somente mais tarde, já no século
Maria afro-brasileira. XVIII, que novas visionárias dirão ter visto, além do coração de
Acompanhemos a evolução de suas visões: nas Minas, a Jesus, o coração de Maria. E certo que São João Eudes (1601-
ex-meretriz vira tão-somenté um coração vermelho cheio de luz 1680), já à época de Margarida Maria, fundara a "Sociedade do
e cercado com uma coroa de penetrantes espinhos. No Rio serão Coração da Mãe Admirável", sendo considerado pelos historia-
inicialmente três corações envoltos em uma auréola que brilhava dores como "pai, doutor e apóstolo do culto litúrgico dos Sagrados
como sol, fogo e cristal refletidos num espelho. Atente o leitor Corações". Contudo, a devoção ao Imaculado Coração de Maria
que, nos séculos passados, quando a luz artificial mais brilhante só mais tardiamente se espalharápelalgrejaUniversal, estando
era a chama de uma vela, o reflexo do sol incandescente 'espe- sempre atrelado ao culto primeiro: o Cor Christi. Em Portugal,
lhado em águas cristalinas, "reverberando" (isto é, brilhando, já em 1731 o jesuíta Hipólito Mor eira publica A Devoção e Culto
resplandecendo), representava o máximo de luz e brilho imagi- ao Sagrado Coração de Maria, e em, 1747, Alexandre António
náveis pelos cidadãos no "século das luzes". Portanto, o brilho de Lima, grande poeta lisboeta, edita Novena do Santíssimo
que Rosa viu circundando os corações representava a luminosi- Coração de Jesus, na qual se inclui o Obséquio do Precioso
dade mais ofuscante que os sentidos podiam perceber. Coração de Maria Santíssima Nossa Senhora.
•< Provavelmente já nesta época a visionária tinha ouvido a O culto aos três corações, Jesus-Maria-José, salvo erro, teve

318 319
sua primeira divulgação em língua portuguesa em 1733, através dobrar a má vontade do frade porteiro deste convento, que
da já citada obra Aljava dos Sagrados Atos, os Santíssimos • levou-me ao corredor do dormitório, no' primeiro andar, ao
Corações Soberanos Senhores Jesus, Maria e José, de autoria do abrir-se a porta da dita capela, deparei-me exatamente com a
Padre Manuel Consciência, seguida em 1738 pela Saudação
Angélica aos Santíssimos Corações de Jesus, Maria e José,
representação fidelíssima desta barroca visão da nossa biogra-
fada. Lá estava, guardada há mais de duzentos e trinta anos,
m
*

assinada pelo Padre Bernardo Fernandes Gaioso. um segredo que só agora temos a alegria de divulgar, e que só
Enquanto o Padre Malagrida propagava no Brasil tão-so- eu tinha conhecimento: a inspiradora desta rica capela, única
mente o culto ao coração de Jesus, Dom Manuel da Cruz reve- no Brasil, quiçá no mundo, foi nada menos que .nossa negra
la-se apaixonado pelos três corações, sendo portanto ele quem
primeiro divulgou tal devoção entre nós, a partir de 1752. Dois
africana, na sua época considerada pelos mesmos frades ocu-
p antes deste convento como a "Flor do Rio de Janeiro", mas que, m
anos depois, no Bio de Janeiro, RosaEgipcíaca torna-se a grande
mensageira dos soberanos corações, que, em visão há pouco
anos depois, caiu em desgraça, sendo presa pela Inquisição de
Lisboa e tendo sua memória apagada, até agora, de qualquer
o
relatada, "se lhe disse no entendimento que estes corações lembrança.
queriam casa para assistirem na Terra". A foto em. preto e branco de Vieira, reproduzida em 1937
Esta visão ocorreu no dia da Páscoa "e se lhe repetiu na no citado livro de Frei Basílio Rower, e a fotografia que fiz, em
missa por três dias ou mais, do que deu parte ao seu confessor, 1985, a cores, coincidem exatamente com a descrição existente
e ele, Frei Agostinho, cuidou em fabricar três corações com a nos manuscritos da Torre do Tombo: Frei Agostinho mandara
semelhança do que ela via, e os colocou em uma capela". Esta fabricar a escultura dos três corações igualzinho como sua filha
mesma informação é corroborada pelo capelão do recolhimento, espiritual descrevera tê-los visto aos pés do altar de Nossa
que acrescenta: Senhora da Conceição, também ela ainda hoje conservada na
igreja ílo convento.
"Enquanto fazia oração no altar de Nossa' Senhora da Sobre um altar recostado na parede, no meio do mesmo,'
Conceição, apareceram a Rosa, na mesma Senhora, três um rico resplendor de madeira ostenta, formando um triângulo,
corações, e teve inteligência dada por Deus que eram os os três corações: no lado direito, traspassado por uma seta, o de
corações de Jesus, Maria e José, pois estavam com as São José, saindo-lhe da aorta um lírio branco; no lado esquerdo,
insígnias: um com a coroa de espinhos e com uma cruz em o lado do coração, está o de Maria, também vermelho, cravado
cima; o outro atravessado com uma espada, e o outro com com uma espada de ouro, encimado por uma rosa; no vértice
uma seta. E, com a aprovação do bispo, fundou Frei Agos- deste imaginário triângulo, o coração'de Cristo, circundado por
tinho uma capela dos três corações no dormitório do Con-
*
uma coroa verde de espinhos, tendo em cima uma cruzinha
vento de Santo António." . doirada. *
Tal representação não poderia ser mais barroca: as asas
Diz Frei Basílio Rower, autor de O Convento de Santo de um querubim rechonchudo servem de base para o ostensório,
António do Rio de Janeiro (1937), que no seu claustro, no século sendo secundado por dois roliços serafins que, com suas mãozi-
XVIII, existiam cinco capelas; do Menino Jesus da Porciúncula, nhas, suspendem uma auréola de nuvens onde mais meia dúzia
de Nossa Senhora das Dores, do Ecce Homo, de São Joaquim e de querubins prestam reverente culto à "Trindade na Terra".
dos Três Corações. Nada mais informam os tratados a respeito Dentro desta auréola de nuvens, sobre o coração de Cristo, vê-se
desta capela conventual. o Divino Espírito Santo, dardejando setas de luz. No topo desta
Imagine o leitor minha emoção quando, após conseguir

320 321
representação fantástica, lá está o velho Deus Pai, barbudo e
com vasta cabeleira, tendo na mão o globo terrestre. Corno se
não bastassem tantas divindades reunidas numa única peça
sacra, no ápice do altar outro resplendor, com a mesma auréola
etérea e mais outros três corações com os mesmos símbolos, só
que ausentes as figuras aladas.
Nas primeiras décadas após as revelações feitas a Soeur
Marguerite Marie Alacoque, Roma titubeou em aprovar oficial-
mente tal devoção, receando que, com o tempo, outras partes do
corpo de Jesus se tornassem igualmente objeto de veneração.
Bento XIV (1740-1758) reprovava a devoção ao Coração de Jesus,
alegando a ilegitimidade desta festa, sua novidade, origem
suspeita fundada em visão particular de uma mulher e não
provada, assim como pelas consequências perigosas e erróneas
que dela poderiam seguir.
Malgrado estes justos e poderosos argumentos, em 1765,
Clemente XIII oficialmente aprova o culto cordícola, certamente
levando em conta sua incontrolável expansão por toda cristan-
dade. Aprova, porém, apenas e exclusivamente, a veneração aos
sagrados corações de Jesus e Maria, proibindo cultuar outros
corações.
Ao tempo em que Rosa teve estas visões, a Santa Sé
tolerava- a devoção cordícola, sem tê-la contudo oficializado.
Portanto, se até bispos, como o de Mariana, há pouco referido,
e teólogos, como os citados Padre Consciência e Padre Gaioso
propagavam a veneração aos três corações, incluindo o de São
José, não causou espécie ao bispo do Rio de Janeiro autorizar o
ex-provincial dos franciscanos que iniciasse no seu convento
carioca o culto à "Trindade na Terra". Talvez Frei Agostinho
tenha até relatado ao bispo Dom António a visão de sua dirigida,
ficando ambos admirados com. a semelhança e recorrência entre
o que ela vira e as visões da beata francesa, sem falar dos então
recentes escritos teológicos e litúrgicos sobre esta nova devoção.
Dom António do Desterro, malgrado sua p articular amizade com
Detalhe da capela dos Sagrados Corações no Con- o Marquês de Pombal, ambos declarados inimigos dos jesuítas
vento de Santo António do Rio de Janeiro, que reproduz e defensores do novo catecismo dos jansenistas de Montpellier,
a visão tida por Rosa Egipcíaca em 1754. todos opositores ferrenhos das devoções' sentimentalistas de

322 323
cunho passional, como era o culto aos Sagrados Corações, não de todas as suas revelações celestiais. O leitor ou leitora, inte-
obstante tais antecedentes o velho bispo revelava-se ele próprio ressado em aprofundar tal questão, consultará com proveito o
devoto cordícola. Data de sua chegada nesta diocese a constru- livro de Frei Francisco da Conceição, OFM, Diretor Místico
ção, na Igreja de São José, da primeira Irmandade do Coração Instruído ou Breve Resumo da Mística Teológica para Instrução
de Jesus no Rio de Janeiro, antes de 1752; numa Pastoral dos Diretores que Carecerem da Necessária, e Principalmente
dirigida às religiosas da Ajuda, posterior a 1761, implorava o dos Párocos que de Justiça e Obrigação do Ministério Devem Ser
antístite, "pelo Coração Santíssimo de Nosso Senhor Jesus e Saber Ser Diretores (1789).
Cristo e pelo Coração Puríssimo de Maria Santíssima", que as O próprio Dom António do Desterro, naja citada portaria
freiras se mantivessem fiéis ao cumprimento de sua santa d'e instituição da clausura das freiras da Ajuda, em 1750, às
regra, demonstrando ser discípulo de Santa Gertrudes no folhas 22, advertia:
devocionário, ambos pertencentes à Ordem do Patriarca São
Bento. "Mandamos estreitamente a todas as religiosas, pelo
C Os Sagrados Corações tornaram-se, nesses meados do mérito da santa obediência, que nas visitas canónicas, ou
l século XVIII, a grande moda devocional, irmanando bispos e fora delas, quando ocorrer, dêem parte de qualquer espírito
i beatas de toda a cristandade. MadreRosa Egipcíaca tornar-se-á particular que em alguma religiosa houver, como revéla-
^ sua principal propagandista entre nós. .. coes, visões, êxtases e arrebatamentos ou de outra maneira
/ Vimos/1 que esta sua última viagem mística ocorreu na • . fora dos comuns e ordinários caminhos, comunicando ao
VPáscoa, por volta de março-abril de 1754. prelado ou aos padres visitadores."

"Passados alguns dias, estando ela, ré, ouvindo missa Obediente, mas ansiosa, Rosa relata esta nova visão cujos
no dito altar de Nossa Senhora da Conceição, se lhe tornou corações formavam agora verdadeira constelação: seis ao todo.
a apresentar a mesma visão, porém com mais corações, Frei Agostinho
porque, além daqueles três, viu mais outros três: um da _
parte do que lhe dizia ser de Maria Santíssima, e abaixo "lhe manda então que pedisse a Deus lhe declarasse de
deste, no meio do qual estava uma chama ardendo, e da quem eram aqueles três corações que acresceram, ao que
outra parte, por baixo do de São José, estava outro coração obedeceu ela, ré, e, confessando-se, pôs-se em oração, pe-
atravessado de uma flor roxa, e por baixo de todos estes, dindo aquilo a Deusj porém se lhe não disse coisa alguma,
estava outro que não tinha divisa alguma, do que deuparte do que deu também parte ao mesmo seu confessor, que
ao dito seu confessor." tornou a mandar-lhe instasse a Deus que declarasse isto,
o que ela fez e teve uma voz no entendimento que lhe disse:
Dirigida prudente, Rosa sempre corria a transmitir tudo De que te admiras deveres os corações? O coração que tinha
que via ou ouvia, mercê dos céus, a seu pai espiritual: a depen- a chamano meio era o de Santana; o que estava atravessado
dência das santas e visionárias face a seus confessores era um com a flor roxa era o de São Joaquim, e sobre o último, lhe
dos fundamentos da ascese mística e recurso inteligentemente disse tal voz, que lhe não importasse o saber de quem era,
imposto por frades e presbíteros para não perder o controle total porque podia ser ou do Papa, ou de El-Rei Dom José, ou do
e supervisão de suas dirigidas. Também na igreja, as mulheres, seu confessor Frei Agostinho, ou o dela, depoente".
mesmo as esposas do Divino Mestre, deviam estar sujeitas ao
varão, submetendo a seus pais espirituais a aprovação ou não E conclui amisteriosavoz dando-lhe ura pito: "'Não queiras

324 325
saber mais do que eu te queria dizer!' Com o que ela, ré, ficou Santana e São Joaquim serem representados por uma chama e
aterrorizada, pedindo perdão a Deus de sua curiosidade." por uma flor roxa, respectivamente, é novidade inventada pela
A São João Evangelista, o discípulo que Jesus amava, o beata negra, posto que nem sequer o ex-provincial dos frades
Divino Mestre permitiu que naúltima ceiaficasse gostosamente menores solucionara tal charada. Na lista dos emblemas dos
recostado no seu imaculado peito; a Santa Margarida Maria santos, tal qualrevela o Dictionary ofSainís, de Donald Attwater
abriu a chaga do lado e revelou-lhe seu sagrado Coração; São (1965), não há referência a tais símbolos, nem tampouco no
João Eudes recebe a graça de contemplar o brilho dos divinos Oxford Dictionary ofSaints. Mistério!
corações de Jesus e Maria; Madre Rosa Egipcíaca é de todos a ;- Quanto ao sexto coração, situado na b ase deste conjunto,
mais afortunada: viu os sagrados corações não só da "Trindade desprovido de símbolos identificadores, os céus deixaram-no em
na Terra", mas de toda a Sagrada Família — Jesus, Maria sua aberto, conforme fora revelado à vidente: poderia ser o do
mãe, seu pai José, sua avó Ana e seu avô Joaquim. Soberano Pontífice, na época Bento XIV; o do Rei Dom José I; o
Diz o Padre Xota-Diabos que tais visões ocorreram às de seu frade confessor, ou o dela própria. Deus não tinha ainda
vésperas de se lançar a primeira pedra do recolhimento, e que, "decidido a quem premiar, e considerou impertinente tal curio-
nesta mesma pedra fundamental, "Frei Agostinho mandou es- sidade. "Quão grandes e impenetráveis são vossos juízos, Se-
culpir os três corações, e mais dois", tudo conforme a visão que nhor! Por isso as almas grosseiras caíram no erro!" (Livro da
a Madre Fundadora recebera dos céus. Destarte, o Parto passou Sabedoria, 17:1)
a ser a primeira casa pia não só do Rio de Janeiro, mas do Refietimos longamente sobre as motivações conscientes ou
universo, a ter como patronos os cinco corações: Jesus, Maria, inconscientes que teriam levado nossa beata a inventar o culto
José, Santana e São Joaquim. Em nossas pesquisas cordícolas, aos corações da S agrada Família. Inicialmente suspeitamos que
não encontramos outra referência a esta devoção quíntupla. Rosinha, a desafortunada menina africana, roubada por cruéis
Desde a Idade Média cultua-se o coração de Santo Agostinho caçadores de gado humano e separada de sua família tribal,
(daí uma das recolhidas desta comunidade ter sido chamada jogada num tumbeiro e criada como escrava em casas alheias,
Irmã Maria Joaquina do Coração de Santo Agostinho), e Santa teria se apegado à S agrada Família copio erzats, uma substitui-
Catarina Labouré, ern 1830, disse ter visto em três dias seguidos ção compensadora de sua infeliz orfandade. Mais ainda: prove-
o coração de São Vicente'de Paulo, branco, anunciando a paz; niente de uma sociedade tribal fortemente marcada pela matri-
vermelho claro, para renovar a caridade, e vermelho escuro linearidade, cuj a função organizativa da família matricentral se
"referindo-se à mudança de governo na França..." Quanto aos redefinirá, ampliando-se, na diáspora no Novo Mundo, Rosa
cinco corações, é invenção devocional de nossa visionária africa- teria então encontrado na Sagrada Família., pela descendência
na. Também é sua a identificação de alguns símbolos com certos matrilinear, a reprodução na esfera celestial do seu'protótipo
desses santos, tanto que nem. seu confessor soube decifrar o familiar jamais realizado na esfera terrestre. Com o tempo,
segredo desta segunda visão. Os corações de Maria e de Cristo, nossa vidente ampliará suas veleidades místicas: dirá ser ela
trespassados respectivamente por uma espada e pela coroa de própria, ora a esposa da Santíssima Trindade, ora filha de São
espinhos, são símbolos antiquíssimos da iconografia cristã. São Joaquim e Santana, irmã, portanto da Virgem Maria, e, como
José também sempre foi identificado com o ramo de lírio branco, ela, também mãe do Menino Jesus. Por hora é importante
pois, segundo a tradição dos evangelhos apócrifos, seu bastão atentar para sua devoção aos avós de Cristo. Não há indicação,
teria florido como garantia celestial de que sua esposa Maria na história da Igreja, de outra referência de culto aos corações
tinha engravidado por intermédio do Espírito Santo. Quanto a de Santana e São Joaquim. Até que ponto, indagamos inicial-

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mente, não seria também, esta uma influência da ideologia dirigida em pouco tempo exigiria que se cultuasse nova galáxia
parental africana, repetindo e refl.etin.do Rosa, no seu panteão de sagrados corações. Barreira, diga-se de passagem, que parece
místico, a mesma importância que na maioria das tribos da ter sido inspirada pelo Além, pois, por aquela mesma ocasião,
África Ocidental se dá à família extensa e ao avunculado? Esta
é uma pista que deixo aos antropólogos e etno-historiadores "estando Rosa no recolhimento com dez companheiras
africanistas aprofundar. Embora sem descartar as influências mais, e querendo com as mesmas fazer uma novena aos
africanas na sua invenção de culto aos corações dos avós de ditos corações, por mais diligência que fez para rezar as
Cristo, cumpre informar que foi exatamente nas primeiras estações, sempre a voz e o seu interior se inclinavam para
décadas do século XVIII que se aviva no ocidente cristão, y proferir o Miserere, até que, vencida esta inclinação, se
compris a América Portuguesa, a devoção a Santana e a São deixou levar dela, e logo no seuinterior sentiu que se rezava
Joaquim. A vidente cour anã se insere de cheio dentro da corrente o Miserere até o fim, sem que ela o soubesse".
mística do barroco latino, não apenas ibérico, mas latino mesmo,
pois foi através dos capuchinhos e franciscanos italianos que se No ano seguinte, 1755,
espalha mundo afora a devoção à avó de Cristo, cabendo igual-
mente a um. italiano jesuíta papel primordial na expansão do "quando ela, ré, está já com algumas recolhidas nas casas
culto cordícola em nossa terra, o já citado Padre Malagrida, ele da Igreja do Parto, estando fazendo a oração mental,
próprio devotíssimo de Santana e autor de uma biografia desta chegando àquele ponto em que se faz o Ato de Fé, crendo-se
santa matrona. Portanto, Madre Rosa Egipcíaca revela-se típica que se está na presença de Deus, prostrando-se todas e ela,
iluminada deste século barroco, inaugurando o culto aos cora- ré, viu uma iluminação muito clara no entendimento com
ções dos cinco membros da Sagrada Família, e divulgando, entre que viu distintamente e lhe figurou uma árvore muito
seus devotos de Minas e do Rio, a devoção privilegiada à avó de grossa de cor branca com folhas miúdas, por uma parte
Jesus, inventando inclusive um rosário especialmente a ela verdes e pela outra brancas, em cuja árvore estavam os
dedicado, conforme veremos mais adiante. Considerando a im- cinco corações que ela, depoente, tinha visto na missa, e
portância que Santana desempenhou na espiritualidade de em cima desta árvore estava uma figura coberta com um
nossa beata e no imaginário de nossos antepassados, transferi- véu branco, mas muito rico e luzido, que a encobria, e
mos para o capítulo dedicado à mística de Rosa a análise e andava pela tal árvore tocando nesses corações, e no fim
interpretação desta devoção, cujo significado sociológico para a dela estava aquele sexto coração que se lhe representou a
história da família brasileira não foi até agora explorado. ela, ré, no altar de Nossa Senhora na Igreja de Santo
Observe-se, contudo, que, malgrado ter Frei Agostinho António, porém com a diferença de que, nesta ocasião e nas
mandado esculpir os cinco corações na pedra angular do Reco- mais em que viu, não tinha divisa alguma, porém desta vez
lhimento do Parto, limitou-se, na capela que mandou construir se lhe representou no pé daquela árvore e estava com três
no corredor do dormitório de seu convento, aos corações da cravos nele pregados, e com uma seta trespassado, e deste
"Trindade na Terra". Se o culto aos três já era novidade, seria coração brotava aquela árvore em que estavam os cinco
temerário colocar no retábulo do altar uma constelação de cinco corações".
corações, demonstrando destarte a insegurança do frade em
adotar tal inovação devocional publicamente. Fez bem em assim Quando presa pelo Santo Ofício, em Lisboa, a vidente dá
-proceder, pois, se não pusesse freio nos devaneios místicos, sua versão um pouco diversa desta revelação, situando-a noutro

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ambiente, o que nos sugere que tenham sido dois êxtases dife- mais importante árvore da tradição cristã — além do Santo
rentes. Lenho onde o pecado de nossos primeiros pais foi lavado com o
sangue de Cristo — é a árvore de Jessé, que mostra no chão,
"Disse mais, que era um dia, em 1755, estando ela, ré, servindo de base, o velho Jessé, o pai de Davi, e dele brotando
em oração diante de um oratório que tinha na cela do dito
os antepassados dafamOiadeMariae José, até chegar em Cristo,
recolhimento, viu uma árvore branca e sobre ela um vulto saudado desde a Idade Média como "Fios de rodice Jesse",
como de menino de seis meses,, coberto com, um pano Rosa encurtou a genealogia divina: deste coração incógnito
branco, muito cândido, e, nos ramos da mesma, cinco brotavam os sagrados corações dos avós, pais e o próprio coração
corações e um abaixo nos pés, com os quais o dito vulto de Jesus. Coração privilegiado este, pois, além de fazer brotar e
brincava ficando muito mais cândido quando os largava da ' sustentar a família extensa de Jesus Cristo, ostentava os sím-
mão e se punha em cima de um deles, que era grande, com bolos de sua paixão, os três cravos e a seta. Aliás, como é sabido,
coroa de espinhos." foi São Luiz, Rei de França (1214-1270), quem trouxe para a
Sainte-Chapelle, entre outras relíquias, os cravos usados na
A árvore, figura tão rica de significados simbólicos na crucificação do Messias; daí sua imagem muitas vezes ser rep-
história humana, resgatada inclusive pela moderna psicologia resentada segurando um coração perfurado pelos três cravos, o
através do teste de Koch, gozou sempre de lugar destacado na mesmo símbolo utilizado também por São Paulo da Cruz (1694-
mitologiabíbh'ca, desde que o Criador plantouno meio do paraíso 1775) no hábito da OrdemPassionista. Como terceiro francisca-
terrestre "a árvore da vida e da ciência do bem e do mal" (Gên. no que era, provavelmente Rosa devia ter visto a imagem do
2:9).Também alguns profetas hebreus, comoDaniel, igualmente
santo Rei na capela da Ordem Franciscana da Penitência,
a Rosa, deportado de sua terra natal, utilizaram a mesma
adjunta ao templo de Santo António, daí incluir mais este
simbologia vegetal: 'Tais eram as visões do meu espírito que
símbolo iconográfico na sua constelação cordícola. Tal visão
tive em sonhos: Eu via uma árvore de alto porte. Esta árvore
causou profundaimpressão nabeata africana: "Esta vista trouxe
cresceu, era vigorosa. O cimo tocava o céu, era avistada até nos
ela firmemente na lembrança, com clareza de entendimento, por
confins da terra. A folhagem, era bela, e seus abundantes frutos
três dias e três noites, de tal sorte que sempre lhe parecia que
forneciam a todos o que comer" (Dan. 4:7-9).
a estava vendo, e neste tempo foi dar parte disto ao seu confes-
Rosa descreve mais árvores em suas visões, embora esta
sor." Quem sabe não teriaRosa visto alguma estampa do coração
última seja das mais prenhes de simbologia, pois, esta é a. árvore
de Jesus de autoria do famoso gravador Joaquim Carneiro da
dos Sagrados Corações, cuja raiz brota exatamente daquele
Silva, que viveu no Rio de Janeiro de 1739 a 1756, e que em sua
sexto misterioso coração que poderia ser do Papa, do Rei, de seu coleção iconográfica incluem-se os sagrados corações cercados
confessor ou dela própria. Essa imagem, uma árvore carregada
com.os símbolos da paixão?
de frutos místicos, foi muito cara à iconografia cristã, existindo Frei Agostinho tinha se entusiasmado com as duas visões
inclusive sua representação na entrada do Mosteiro de São anteriores, mandando inclusive esculpir napedra e no ostensório
Bento do Rio de Janeiro, local certamente visitado diversas vezes os sacros corações. Agora, contudo, reage negativamente contra
por nossa beata. John Luccock, que admirou esta pintura na esta nova ilusão: deu-se conta de que algo estava errado, pois,
primeira década do oitocentos, diz que representava "a árvore se o sexto coração era de um mortal, mesmo que fosse o do Papa,
da vida, redonda e frondosa, com raízes sólidas, tronco vigoroso não era possível, dentro da lógica divina, que os corações da
e galhos cobertos de folhagem. Contém a um tempo flores e sagrada família brotassem de um. coração pecador. De Maria
frutos, mostrando um monge sentado no meio de uma flor". A

330 331
Santíssimaj concebida imaculada, virgem mantida antes, du- Notas
rante e depois do parto, sim, tanto que é saudada com o hino
"Flor da raiz de Jessé", mas de nenhum outro mortal seria
possível atribuir tal geração cordícola, muito menos de humanos 1. Bougaud, E. Histoire de Ia Bienheureuse Marguerite-Marie Alaco-
pertencentes a genealogias contemporâneas a Dom José I, que. Paris: Poussiegue, 1880, p. 239.
No seu íntimo, Rosa não tinha dúvida, e somente por 2. Vekemans, Rober. Cor Christi. Bogotá: Instituto Internacional dei
Corazon de Jesus, 1980.
humildade, ou melhor, por cautela, não proclamava claramente 3. Alacoque, Margarida Maria. Autobiografia. São Paulo: Edições
o que era óbvio: aquele incógnito coração era o dela própria, Loyola, 1985, p. 42.
escolhida por Jesus para ser sua nova mãe e futura redentora 4. Abrancb.es, Padre J. S. O Coração de Jesus. Lisboa: Tipografia do
da humanidade. O que para ela era pacífico, posto receber tal Anuário Comercial, 1907.
privilégio divino não por seus merecimentos, mas por livre 5. Leite, Padre Serafim. Op. cit., 1943, v. IV, p. 242.
escolha, de Deus — para o padre Xota-Diabos, uma verdade 6. Trindade, Monsenhor Raimundo. Op. cit., 1953.
inquestionável; para Frei Agostinho, menos crédulo, era uma 7. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 8.059 (1742).
tentação diabólica, tanto que, ouvindo esta última revelação, "a 8. Georges, R. P. SaintJean Eudes. Paris: Bdition LetbieHeux, 1936,
mandou para a igreja de seu convento e ali lhe fez fazer a pp. 237-277.
protestação de fé, e a exorcizou, pondo muitos preceitos ao 9. Marcniniszyn, Frei Albano. Convento de Santo António do Rio de
Janeiro. Separata da Revista VidaFranciscana, n, 48, anoLII, 1982,
demónio para que, se aquilo era ilusão sua, a desvanecesse, e pp. 8-9.
lhe disse que não desse ascensão ao que via". Por esta época, 10. Anónimo, Do Coração de Jesus. Lisboa: Oficina António Róis Ga-
Rosa perdera já o controle sobre seu imaginário, tanto que lhardo, 1802.
"sempre se lhe conservava no entendimento aquela visão muito 11. Pires, Cónego Heliodoro. Uma Teologia Jansenista no Brasil. Re-
clara e só se ocultou passados três dias e três noites, e nunca vista Eclesiástica Brasileira, v. 8,1948, pp. 327-340.
mais lhe apareceram os tais corações". Segundo declarou uma 12. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro II
sua devota, Maria Tecla de Jesus, "o sexto coração era de uma (1761-1779), fl. 5.
criatura arrependida"— abom entendedor, meiapalavrabasta! 13. Bastide, Roger, Lês Ameriques Noires. Paris: Payot, 1967.
Não obstante tal declaração final, o certo é que por diversas 14. Kocn, K. The Tree Test. New York: Grune, 1952.
vezes os sagrados corações vão interferir na vida desta recolhida, 15. Luccock, J. Op. cit., 1975, p. 45.
que a partir de 1754 torna-se arauta e comandante-chefe de uma 16. Biblioteca Nacional de Lisboa, Colecão de Registros de Santos,
cruzada cujo objetivo era preparar a vinda destes riquíssimos Seção de Iconografia,
visitantes: "já. em campo vêm os santíssimos corações, com o
estandarte de seu divino braço aberto, afugentando os nossos
inimigos contrários à alma", dizia em carta de 16 de setembro
de 1755, pouco depois, portanto, da referida visão arbórea.

332 333
• t ,

' ;

14
Reflexos do Terremoto de Lisboa
na América Portuguesa

Uma catástrofe meteorológica ocorrida' a dois meses de


caravela do Brasil teve consequências cruciais não só na vida de
Eosà Egipcíaca, como de toda a América Portuguesa. Kefiro-me
ao terremoto de Lisboa. Deixemos por uns tempos a América
Portuguesa, e vejamos o que sucedia na capital do Reino.
Na manhã de 1a de novembro de 1755, dia de Todos os
Santos, toda a gente de Lisboa se acotovelava dentro das igrej as,
dia de missa obrigatória e dos mais festivos do calendário
litúrgico. No intróito da missa, o celebrante rezava: "Alegremo-
.. C<LEÍ;.:.^La_
nos todos no Senhor festejando este dia em honra de todos os
santos; por sua solenidade se regozijam os anjos e glorificam o
Filho de Deus." À Epístola, temerosos, os fiéis ouviam o capítulo
sétimo do Apocalipse: "Naqueles dias, eu, João, vi outro anjo que
subia do Oriente tendo ria mão o selo de Deus vivo e clamando
em alta voz aos quatro anjos, dizendo: 'Não façais mal à. terra,
nem ao mar, nem às árvores/" Desobedientes à ordem divina,
neste dia, l2 de novembro de 1755, os anjos que volateavam sobre
Lisboa agiram como demónios:

"De repente, a terra bruscamente moveu-se. Os mari-


nheiros que estavam no estuário do Tejo viram Lisboa com
os seus palácios, as suas torres, as suas flechas, as suas
cúpulas, mover-se como uma seara agitadapelo vento. Nas
ruas, as parelhas, os telheiros, as bancas voltaram-se de
1 pernas ao ar. As pessoas eram atiradas para o chão. Nas
casas, partiam-se os candeeiros, caíam os móveis, as pare-
des rachavam, os tetos se abatiam. E nas igrejas, os púlpi-
tos cediam sob o peso dos órgãos despedaçados, os vitrais
estilhaçavam-se, os portões de grades abatiam. Do solo

335
estalado esfuziavam feixes de vapor e enxofre. Durante equidade suprema senão luto e tormento? Em Lisboa du-
seis minutos, a cidade oscilou nos seus alicerces, dilacerou- plicavam-se os delitos: estava cheia de delícias e obsceni-
se e vacilou. Lá fora a multidão não conseguia dispersar, dades, roubos, violências, soberba, ambição, por isto lhe
prisioneira do entulho quebloqueava as ruas. Subitamente foram também duplicados os castigos. Oh! Babilónia de
levantou-se um vento furioso que agitou os turbilhões de Portugal! Quantas vezes se avisou a Misericórdia Divina
poeira acre, dobrou e avivou as chamas. As pessoas corre- nos clamores do púlpito e dos confessionários! Bem pouco
ram para o Tejo: o mar de Palha, ainda há pouco tão liso e tempo há que uma alma profética anunciou e te deu o aviso
calmo, parecia ferver como chumbo derretido. Transborda- [dos castigos] no Convento do Louriçal... E tu não quiseste
va, lançava os barcos contra os marcos de pedra do Terreiro crer a uma serva de Deus, que em tudo se informava com
do Paço, subia e assaltava as ruas baixas. Depois pareceu a sua divina vontade. Duas coisas são para se notar nas
aspirado por um sorvedouro gigantesco que lhe secava as relações do terremoto: uma, que não ficasse templo nem
margens, e esta estranha ressaca punha a descoberto os tribunal inteiro, outra, que não caísse nenhuma casa da-
fundos de vasa infecta, um betume onde gorgolejavam, quela rua que antes se chamava das meretrizes. E possível,
espessos turbilhões e derramavam fatos sulfurosos, lín- Senhor, que se compadeça a vossa justiça de uns lupanares
guas de uma chama azulada. Os barcos chocavam-se uns tão sórdidos e que se irrite contra aqueles edifícios que se
contra os outros e rebentavam como nozes. Este sorvedouro instituíram para vosso louvor e para o governo público,
negro, aberto como uma chaga infecta, foi visível durante ficando em pé as casas da dissolução e do escândalo? Não
um instante que ninguém pôde contar, tal era seu fasci- foram as lascívias de Lisboa as primeiras que se repre-
nante horror. Mas já a água, erguida com. um prolongado sentaram à vossa cólerapara se lhe fuhnin ar o raio? Quanto
sibilo de asfixia, voltava a cair e rebentar na mesma vaga mais me dilato neste pensamento, mais me confunde e pode
gigantesca. Avançou com a velocidade dum cavalo a galope, aqui menos a consideração que o assombro."
rebentou os cais, minou as fachadas, rolou na sua torrente,
de destroços afogados, vindo cobrir com a sua espuma o Tal sinistro, e a contraditória irradiação da destruição,
Rossio onde tudo estava em chamas." poupando os templos do pecado e arrasando os da virtude, serviu
de inspiração até ao agnóstico Voltaire, que, em seu pouco
Lisboa se tornara o Apocalipse. conhecido Poème sur lê Desastre de Lisbonne, ou Examen de cet
Quarenta mil mortos! O terremoto foi tão forte, que fez-se Axiome: ToutestBien, mais uma vez descarta o dogma da Divina
sentir até na Suíça. Como se disse na época, "o que não ruiu, Providência: "Comment concevoir un Dieu, Ia bonté même, qui
ardeu", pois um incêndio devorador destruiu o que sobrara de . prodigua sés biens à sés enfants qu'il aime, et qui versa sur eux
pé. O Padre Francisco Pina de Mello, em sermão pregado na lês maux àpleines mains1?"
Capela do Hospital Real de Monte Mor, O Velho, no ano seguinte O terrível sismo de Lisboa dividiu os espíritos^^tigando a
a este sinistro comparava Lisboa à Babilónia, e, como todos, imaginação dos jnjsticos. De início, o próprio Rei Dom José I
estava perplexo e atónito com a violência do castigo divino que, interpretou essa desgraça como a maioria da população^castigo
aos olhos dos-mortais, mostrava-se ilógico: divino! Tanto que na primeira carta que el-Rei enviou a todos
os governadores da América, datada de 11 de fevereiro de 1756,
"Erapreciso que avingança correspondesse à culpa, pois portanto cem dias após a destruição da capital do Reino, dizia:
assim procede a justiça de Deus, e como Lisboa se jactava "Havendo a Onipotência Divina avisado a estes reinos no dia l9
de suas mesmas dissoluções, o que podia esperar-se da

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de novembro de 1755 com um terremoto tão funesto que em 5 reserva e suspeita pelo poderoso primeiro ministro de Dom José
minutos de tempo arruinou templos, palácios, tribunais, alfân- I, o Marquês de Pombal. Malagrida assina logo em 1756 o
degas e a maior parte dos edifícios de Lisboa, perecendo um opúsculo Juízo da Verdadeira Causa do Terremoto que Padeceu
grande número de pessoas de todos os estados..." Comunica a a Corte de Lisboa, obra que, embora contando com as devidas
todos os fiéis vassalos que, além do grande sentimento, louvem licenças do Rei e do Santo Ofício, causou a maior irritação no
àDivindade "por ter suspendido o castigo com quepuderater-iios racionalista marquês, que desterrou o velho jesuíta para Setú-
aniquilado", em tempo que pede subsídios aos colonos para a bal, a 82 km da Corte, em castigo por acusar sua nova política
reedificação da capital do Reino. de modernização do Reino como a principal responsável pelo
~~ "Vários ésctrtoreT3j~3ac'ros e leigos, dão suas interpretações terrível castigo divinal.
para este terrível sismo, considerado pelos estudiosos como dos Quando el-Rei oficiou aos governadores do Brasil o trágico
piores que se tem notícia na história humana. Frei Francisco de cataclismo, essa aterradora notícia já tinha se espalhado pela
Santo Alberto, OFM, no opúsculo Estragos do Terremoto (1757), Colónia, tanto que aos 20 de março de 1756, Rosa escrevia ao
analisa as causas naturais e mor ais deste acidente; João António Rio das Mortes dizendo:
Bezerra e Lima, na Declamação Sagrada na Ruína de Lisboa
(1757), detém-se mais na interpretação religiosa deste fenóme- "Eu bem vejo e ouço aquela trombeta divina que pelas
no. Dentre esses autores, destacou-se uma filha espiritual do Minas andava, umas vezes tocando, outras falando. Já vai
Padre Gabriel Malagrida, Irmã Mariana Inácia de São Miguel, chegando agora a nova e se cumprir a Profecia: o Rio das
religiosa franciscana do Convento de Santana de Lisboa, então Mortes e Mariana serão castigados pelo Visitador! O Reino
com 50 anos de idade. Na Torre do Tombo localizamos as oitenta de Portugal, que é nossa cabeça, já está castigado, e a
folhas de seu manuscrito: "Vozes da verdade que manifestam batalha vai da Turquia até Lisboa e às partes da América."
aos portugueses os motivos do terremoto que destruiu sua corte,
declarando-lhes os meios mais convincentes e sólidos que se E completa citando uma das lições de seu confessor: "Como
devem tomar para a sua reedificação, escrito pelo vil instrumen- diz Frei Agostinho, quando vires as barbas de teu vizinho arder,
to da mais indigna criatura, a Madre Soror Joana Maria Angé- bota as tuas de molho! Que tenhamos o santo temor de não
lica Medugis, religiosa professa da Ordem Seráfica, dedicados suceder aqui na América o mesmo que na corte!"
à Rainha dos Anjos em sua Conceição Imaculada". Três dias depois desta carta, certamente para aproveitar
Discípula do Padre Malagrida, essa freirinha capucha, o mesmo portador, o PadreXota-Diabos escreve à mesma família
dizendo-se inspirada por São João Batista, atribuiu a ruína de Arvelos descrevendo o clima, de pavor criado pelo terremoto na
Lisboa à ambição de seus moradores, especialmente ao comércio população do Rio de Janeiro:
com os estrangeiros, "pestilento veneno", culpando também o
luxo, sobretudo das mulheres, que atiçaram a ira divina, dei- "Nesta cidade está toda a gente com muito susto, temen-
xando de usar os antigos mantos que as cobriam, cabendo do o castigo. Se fizeram muitas procissões, preces e peni-
também às óperas e bailes ter provocado o terrível chicote de tências. Os sinais do castigo já têm. aparecido de noite e de
Deus.6 dia. O castigo é certo e se Deus não ouvir alguns justos...
O manuscrito desta freira seguia a mesma inspiração de O Rio das Mortes e as Gerais estão muito ameaçados do
seu pai espiritual, o cordícola Malagrida, amigo e protegido de grande castigo, com certeza certa do que foi em Lisboa. Até
Dora João V.e de Dona Mariana de Áustria, mas olhado com o Rei e todas as pessoas reais estão abarracados no campo
porque em Lisboa só ficou ruína. Isto tudo pelos nossos

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pecados. E nós, muito mais, pelos avisos que já temos tido nossas, a ira de Deus, e pela intercessão de todos os santos,
de Deus, Esta hora é de penitência e não de regalo. Depois suspenda qualquer castigo que pelos nossos tão execrandos
não me digam que eu os enganei!" e abomináveis pecados nos queria dar."
De fato, tanto nas Minas, quanto no Rio e nas demais Neste mesmo ano, 1756, mais três cartas de Rosa e do
capitanias, o pavor tomou conta dos colonos. Passageiros chega- capelão do recolhimento fornecem informações sobre o clima de
dos recentemente do Reino, testemunhas da tragédia sísmica, tensão e as atividades desenvolvidas por ambos na instalação
davam notícia pormenorizada da desolação em que ficou a bela do Parto.
Lisboa. Dentre os brasileiros que sofreram o terremoto estava "Não há nada de bom que não venha de. Deus!", escrevia o
nossa já conhecida Madre Jacinta de São José, a carioca funda- Padre Francisco, a 1a de junho de 1756, afiançando que, "se não
dora do Convento Carmelita de Santa Teresa, que, sã e salva, houver reforma nas vidas, há de haver muitos castigos, e não
retornou ao Rio de Janeiro aos 17 de abril de 1756, sábado de há de tardar muito tempo. Estejamos como quem. está com a
Aleluia. Os bispos foram os primeiros a mobilizar os fiéis para ovelhanamãoparadar contas a Deus!" E completa: "Não escrevo
aplacar a ira divina e inspirar sincero arrependimento nos mais aos amigos porque não tenho tempo. Não me deixam
pecadores. De Mariana escrevia Dom Manuel da Cruz a seu nenhum instante descansar, nem de noite, assistindo doentes,
amigo Malagrida, botando mais fogo na fogueira: "O terremoto porque nesta cidade há muitos que os médicos os não conhecem
ajusto castigo de Deus, sobretudo por causa das dissipações da e assim vão morrendo sem saber de quê. E com esta lida, sempre
Corte!' Baixando três pastorais, a partir de 22 de fevereiro de ando doente." O Xota-Diabos com certeza referia-se aos doentes
1756, mobilizou seus diocesanos para que, através de preces do espírito, os endiabrados ou sofredores de encosto do maligno.
públicas e privadas, pedissem aos Céus que tratassem a Terra Em outras cartas, confirmará que até nas altas horas da ma-
mais com misericórdia do que com justiça, imitando todos os drugada era chamado para enxotar o Coisa Ruim, tarefa árdua
súditos a família real que fazia exercícios espirituais em peni- e por demais esgotante para um velho de 62 anos, agravado de
tência pela "Babilónia de vícios" em que se tinha transformado diversos achaques. Humilde, conclui a carta dizendo: "se Deus
o Reino. por misericórdia não me perdoar, temo o inferno. Deus nos
No Rio de Janeiro, Dom António do Desterro, através de defenda e guarde!"
Edital, ordena a realização, de procissões e preces públicas Por que um sacerdote devotado dia e noite ao serviço dos
durante três dias seguidos, em todas as igrejas da cidade, necessitados, exímio na difícil arte de expulsar Lúcifer, confes-
concedendo quarenta dias de indulgências a quem delas parti- sava temer o inferno, caso Deus não o perdoasse? Que pecados
cipasse, cerimónias que se repetiram anos seguidos, sempre a ocultos teria cometido, que o deixavam tão inseguro? Em outra
l2 de novembro, data da fatídica catástrofe. Eis suas palavras: carta, dois meses passados, novamente o Padre Francisco re-
lembra as sequelas do terremoto: "a espada da justiça está
"Estando próxima a lembrança do dia em que Nosso embainhada e, depois dela, há ainda cinco anos de prazo, se não
Senhor, desembainhando a espada de sua divina justiça, houver reforma. Em tudo seja o Senhor servido".
descarregou o golpe sobre Lisboa, cabeça do Reino, lançan- Rosa, por seu turno, sempre utilizando a Regente Maria
do-a por terra com aquele lamentável terremoto que todos Teresa como escriba, assim se expressava:
souberam, e de cujos estragos funestos só a lembrança nos
, faz ainda tremer e recear que volte também sobre nós "Que os sagrados Corações de Jesus, Maria, José, San-
aquela mesma espada... que com repetidas deprecaçÕes tana e São Joaquim sejam conosco! Eu vou passando como

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Deus quer. Deus mandou o seu Menino para nos salvar e demónio, a voz lhe disse que também com Deus se fazia
se fez homem, daí nada lhe será dificultoso afugentar estes pacto, e logo lhe ensinou o modo como era, e se contém nas
três bichos [o mundo, o diabo e a carne] de sua fazenda [o seguintes palavras: "Eu, como criatura remida com o san-
recolhimento]. Cobro confiança com os divinos auxílios de gue de meu Senhor Jesus Cristo, vos entrego a minha alma
meu Senhor." com suas três potências, e o meu corpo com seus cinco
sentidos, minha vida e meus desejos e afetos, minha fé e
Repete então o mesmo recado já anunciado em carta do esperança, minha vontade para que nela se cumpra a de
ano anterior: que não só Faustina Maria, a segunda filha do meu Senhor Jesus Cristo. Enquanto viva for neste mundo,
casa], Arvelos, mas também Francisca Tomásia do Sacramento, não quero outros amores mais que o de meu Deus, para
a mais caçula, eram chamadas por Frei Agostinho para ingres- que a minha alma expire e respire em vós. Livrai-me do
sarem no Recolhimento do Parto. Demónio e de todas as suas tragédias. Amém.' Esta prática
Particularmente rico para Rosa em visões beatíficas foi o lhe ficou impressa na memória, e foi logo participar ao dito
ano de 1756. O generalizado terror causado pelo terremoto de seu padre para que ele lhe permitisse fazer o pacto que a
Lisboa e o medo da cólera divina devem, ter atiçado sua imagi- dita voz lhe pedia. E o mesmo padre, para experimentar a
nação delirante. Em seus depoimentos prestados na Câmara verdade do sucesso, tomando a estola a exorcismou dizendo
Eclesiástica do Rio de Janeiro, ratificados posteriormente em que, se a voz, sem embargo do exorcismo, tornasse a falar,
Lisboa, encontramos referência a alucinações ocorridas nas era verdadeira, e que ele, padre, como ela, ré, faria o dito
seguintes festas litúrgicas: pacto. E, como a voz continuasse, o padre capacitou [ser
verdade], ainda que não ouvia, e só por ela, ré, lho dizer. E
. 28 de maio: Ascensão de Jesus Cristo ambos fizeram o pacto na forma referida, tomando por
. 6 de agosto: Transfiguração do Senhor testemunha Nossa Senhora e os mais santos".
. 12 de agosto: Santa Clara de Assis
. 4 de setembro: Santa Rosa de Viterbo Pelo visto, além de Rosa, outras beatas brasileiras, no
, 6 de outubro: São Pedro de Alcântara século XVIII, também vincularam seuitinerário místico através
de pactos espirituais. A fundadora do Recolhimento de Nossa
Aprimeira destas revelações ocorreuno dia em que a Santa Senhora da Luz, de São Paulo, onde funciona atualmente o
Madre Igreja comemora a subida de Cristo aos céus, quarenta Museu de Arte Sacra da avenida Tiradentes, manuscreveuuma
dias após sua ressurreição. Foi no dia 28 de maio. Disse Rosa "cédula irrevogável", onde declarava: "de todo coração, de minha
que própria e livre vontade, dou por meu Deus, ao padre confessor
Frei António de Santana, todos os atos das virtudes interiorea
"em várias ocasiões em que comungava, sentia a hóstia e todo o fruto interior e união de minha alma com Deus, neste
como fogo que lhe queimava a boca, especialmente no dia dia de São Miguel de 1772". Por sua vez, o confessor agraciado
da Ascensão do Senhor, quando, recebendo amesma hóstia, com tão inefáveis dons, repetia o mesmo pacto, prometendo à
lhe parecia uma brasa, deixando-lhe a garganta e boca IrmãHelena do Espírito Santo, "minhafilha espiritual, lembrar-
escaldadas, como ela, ré, mostrou ao seu confessor. E, me dela no Santo Sacrifício da Missa até a minha morte". Já
estando na hora da oração deste dia, ouviu uma voz no em pleno século XX, nosso mais forte candidato à canonização,
entendimento ou no coração que lhe dizia que fizessem um o Padre João Batista Réus, jesuíta residente no Rio Grande do
pacto. È, repugnando ela, ré, por entender ser coisa do

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Sul, retoma esta tradição ascética, redigindo o seguinte pacto: de água-benta e o latinório dos exorcismes, consentiram, no
"Cada pulsação de meu coração, cada respiração, todo movimen- contrato. O texto do pacto revela os progressos da cultura
to mínimo da vista ou de outra parte do corpo, sirvam para vos teológica da africana, que já sabe classificar as três potências da
louvar, meu Redentor Jesus Cristo..." alma, que, segundo o Doutor Angélico, Sajito Tomás de Aquino,
A sofisticação teológica e a criatividade mística de nossa são o entendimento, a vontade e a memória. Sabe também que
convertida crescem dia-a-dia. Como Santa Margarida Maria e o corpo ostenta cinco sentidos e já conhece as virtudes teologais
outros santos, também Rosa sentirá dentro de si fagulhas do — fé, esperança e caridade. O convívio anos afio com sacerdotes,
fogo divino, queimando-a, ao receber a sagrada eucaristia. Os a orientação espiritual quase diária com seu "Provincial Velho",
primeiros discípulos de Cristo receberam o Espírito Santo no os milhares de sermões ouvidos em Minas Gerais e na cidade de
dia de Pentescostes sob a forma de línguas de fogo; a negra São Sebastião, as leituras devocionais ouvidas no coro do reco-
courana ficará com sua língua e entranhas incendiadas pelas lhimento, os livros de mestres espirituais pelos quais disse, em
hóstia divina, sentindo a mesma serísação de quando, para carta já citada, que se orientava, tudo armazenado no entendi-
provar ser realmente espiritada, nas Gerais, suportara por cinco mento e memória da recolhida aflorava quando a luz divina
minutos a chama de uma vela sob sua língua. Também trilhando arrebatava-apelos domínios do inconsciente. A cultura, erudição
o mesmo caminho místico de outros bem-aventurados, Rosa e memória religiosas da ex-escrava são fantásticas!
Egipcíaca, em vez de realizar o casamento místico com o Divino Passados pouco mais de dois meses, outra visão, cuja
Esposo, tal qual fizeram. Santa Catarina de Sena, Verónica semelhança com a anterior permite-nos suspeitar que Rosa se
Giuliani, Rosa de Lima, entre muitas outras, será agraciada com confundira nas datas e nos detalhes ao confessar no Rio e em
o pacto. De início a visionária suspeitou tratar-se de uma cilada Lisboa, passados dois anos entre a primeira e a segunda sessão
a mais do Tentador, pois naquela época, muitas pessoas acredi- de perguntas. Esta revelação, segundo depôs no Juízo Eclesiás-
tavam que, fazendo "pacto com o demónio", conseguiriam suces- tico ordenado por Dom António do Desterro, teria ocorrido no
so em suas vidas. Nos arquivos da Inquisição são conservados dia em que a Igreja comemora a Transfiguração do Senhor.
vários exemplares destes documentos diabólicos, e, para que o Conforme ensinam os Evangelhos, foi no Monte Tabor, a 602
leitor sinta melhor o espanto de nossa visionária, transcrevemos metros acima do vale de Nazaré, que Cristo, perante seus quatro
o texto de um destes pactos satânicos: discípulos mais íntimos, se transfigurou: "seurosto brilhou como
o sol, suas vestes tornaram-se resplandecentes de brancura. E
"Por este documento, por mim feito e assinado, digo eu, eis que apareceram Moisés e Elias, conversando com Ele... E
Geraldo Nobre Ferreira, que é verdade que darei o que me ' umanuvemluminosa os envolveu, fazendo-se ouvir uma voz que
pedir o Diabo, se me quiser servir, com a condição de que dizia: Eis o meu filho muito amado, em quem pus toda minha
hoje há de estar em meu poder, pronto para me servir com afeição: ouvi-o!" (Mateus, 17:2-3,5)
que eu quiser e ir buscar o que eu lhe pedir, e há de andar Foi neste dia tão prenhe de sobrenaturalidade que,
em figura de um negro por toda a parte, e isto há de ser
até o jantar, quando ele há de v i r . " . , . . . "indo Rosa para a Igreja de Santo António e não havendo
pessoa alguma no caminho, ouviu junto de si uma voz que
Escusado dizer que o Diabo não apareceu. lhe disse: 'Adeus, amiga, companheira! Dás-me avidapara
Tanto Rosa quanto seu confessor duvidaram, do insólito eu viver em ti e tu em mim, para eu participar destas tuas
pedido ouvido na revelação, mas, como a misteriosa voz, só infâmias e tu participares dos frutos de minha sagrada
ouvida péla negra, insistisse na ideia, mesmo após o chuvisco

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"\.
morte e paixão.5 Ficou ela, ré, toda perturbada e assustada para a vida muitos mortos, dom especioso que com o tempo
e, chegando defronte de uma cruz, repetiu a dita voz o ser-lhe-á ainda aumentado. Perante tamanha grandeza mística,
mesmo, e por todo o caminho ouvia a dita voz, que também qualquer confessor prudente teria agido como o velho francisca-
lhe pediu a vida para dar a muitos mortos e para fazer no: essa troca parecia mais coisa do Maligno do que de Deus,
justiça a muitos réus de delitos. Chegando à igreja, para pois só a Jesus foi conferido o poder de resgatar os mortos do
se defender da dita voz, a que não dava assenso, aspergiu poder das trevas e guindá-los para o reino da luz: ao descer aos
água henta sobre si, e, comunicando o referido a seu infernos, o Ressuscitado libertou quantos penavam sob o poder
confessor, este lhe disse que era o Demónio que a tentava, de Satanás. Com este contrato d'alma, a beata africana repete
e, pedindo a estola, a exorcismou; porém, acabado o exor- a façanha do Filho de Deus. Feitos os exorcismes, em vez de
cismo, tornou a sobredita voz a repetir as mesmas palavras calar-se a revelação, repetiu as mesmas palavras, caindo a
acima referidas, e ela, ré, posta de joelhos com o dito seu visionária desacordada enquanto pedia a proteção da Rainha
confessor, e, rez ando S alve-Rainhas, uma ladainha a Nossa dos Anjos. Restabelecendo-se, foi informada por Frei Agostinho
Senhora para que lhe inspirasse que voz era aquela que que tinham selado um "contrato espiritual", incluindo o nome
.lhe fazia a dita petição, às palavras, 'nos mostrai Jesus', um do outro em todas as orações que doravante fizessem.
caiu ela com desacordo, e restituindo-se se achou em que Embora tal contrato tenha sido ornais solene, a vidente j á tinha
o dito padre seu confessor lhe disse que fizesse um contrato firmado semelhante intercâmbio de orações com outros devotos:
espiritual, que era participarem um do outro nas orações com o Padre José Ferreira Carvalho, com o seu Padre Xota-Dia-
que cada um fizesse, obedecendo àquela voz no que pedia". "bos, com seu companheiro António Tavares lá do Rio dasMortes,
tendo em várias de suas cartas lembrado a tais compadres o
Também no Rio nossa africana carregava o estigma de ser compromisso assumido.
feiticeira. Endemoniada, falsa ou verdadeira, disto, sim, po- Mal transcorre uma semana desta revelação, a 12 de
diam-na chamar. De feiticeira, contudo, nada podia incriminá- agosto, dia de Santa Clara, fundadora com São Francisco da
la, pois nenhuma testemunha referiu tê-la visto fazer qualquer Ordem das Irmãs Menores, outro colóquio espiritual transporta
sortilégio que disso pudesse inculpá-laformalouindiretamente. Rosa para o Além:
Talvez por ser negra e endiabrada, os cariocas logo a identifica-
ram com as artes diabólicas, afinal, no imaginário popular, negra "estando ela, depoente, no Recolhimento do Parto, a horas
é a cor do Diabo. Associação, diga-se de passagem, que nem -
da madrugada, estando ainda na cama, mas acordada e
mesmo isentava seu diretor espiritual, que por mais de uma vez, .56 com perfeita advertência, viu uma luz junto dela e ouviu
como ocorreu há pouco, suspeitou que as revelações que Rosa uma voz que dizia-lhe, desse ela, depoente, a sua vontade
lhe confiava podiam perfeitamente ser artimanhas do Manhoso. e que também se lhe daria a sua, sem declarar a tal voz de
Nesta visão, o mais importante a realçar são os dois contratos quem era. E logo ela entrou a rezar o Credo e fazer a
espirituais firmados entre a beata e Cristo, e entre ela e seu protestação de fé, mas a mesma voz insistindo nessa pre-
confessor. Madre Egipcíaca, como o apóstolo Paulo, poderá dizer tensão. Levantou então a ré e foi fazer oração no seu
após este dia da Transfiguração que "não sou eu quem vive, mas oratório, aonde lhe tornou a repetir a mesma coisa aquela
é o Cristo que vive em mim" (Epístola aos Gaiatas, 2:20), pois voz, com o que foi ela, depoente, dar parte a seu confessor,
trocou sua vida com a de Cristo, "para eu viver em. ti e tu em o qual a fez confessar, e, ao depois disto fazer, outra vez
mim". Mais ainda: doando sua alma a Jesus, Rosa resgatava rezou a protestação de fé, e, não obstante isto, a importu-

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liava aquela voz mesma pedindo-lhe da mesma sorte que penetrar nas intimidad.es do seu coração. No dia de Santa Rosa
lhe desse ela, ré, a sua vontade, até que o seu confessor fez de Viterbo,
com que ela oferecesse a Deus a sua vontade, resignada-
mente, para tudo o que o mesmo Senhor quisesse, implo- "de madrugada, estando acordada dentro de sua cela, no
rando o patrocínio de Nossa Senhora e de Santo António, Recolhimento do Parto, e querendo ela, ré, pôr-se em
para que Deus lhe recebesse a vontade, que sacrificava. E oração, e não tendo luz na sua casa, nem as mais compa-
com isto cessou aquela voz". nheiras nas suas celas, viu entrar por uma fresta uma luz
que parecia do sol, e dentro dela uma cruz muito grossa e
Muitos santos e santas, antes e depois deste episódio, comprida, com madeiro redondo e vermelho, e,- sem ver
seguiram igual convite do Divino Mestre, consagrando-lhe cor- quem a trazia, bateu na porta de sua cela e logo uma voz m

po, alma e vontade. Santa Margarida Maria, a mais respeitada


das videntes do Coração de Jesus, em cuja vida mística certa-
perceptivelmente lhe disse: 'Ajuda-me a levar minha cruz,'
Ela, com grande temor, lhe respondeu e disse que não

mente Rosa se inspirou, fez por escrito com seu próprio sangue queria cruz porque não queria trabalhos e entrou a dizer
vários atos de consagração a Nosso Senhor, elaborando uma o Credo. Tornando a dizer a voz as mesmas palavras e que
fórmula em 1686 que até hoje continua sendo divulgada, nos também queria visitar outra sua companheira, chamada
manuais de piedade. Eis seu texto: Páscoa, que estava muito doente. E desapareceu a dita
visão. E levantando-se ela, depoente, foi-se confessar e dar
"Consagração ao Coração de Jesus: Eu vos dou. e consa- parte disto a Frei Agostinho. Principiando a ouvir missa,
gro, ó Sagrado Coração de Jesus, minha pessoa e minha viuno ar, suspensa, aquela mesma cruz e, pela continuação
vida, minhas ações, penas e sofrimentos, para não querer da missa, foi descendo essa cruz até que se pôs junto dela,
mais servir de nenhuma parte de meu ser, senão para vos depoente, quando o sacerdote levantou a sagrada hóstia,
louvar, honrar e glorificar. Esta é minha vontade irrevo- continuando a mesma voz a dizer que o ajudasse a levar a
gável. Qnero fazer consistir toda minha felicidade e toda a sua cruz, do que tornou a dar parte ao seu confessor, que
minha glória em viver e morrer como vossa escrava. lhe disse consentisse ela no que a voz lhe pedia, oferecen-
Amém."^4 do-se para levar tal cruz, o que repugnou ela, depoente,
dizendo não podia porque era muito grande. E sobre isto
A semelhança entre este "ato de consagração" e o "pacto" lhe respondeu o mesmo seu confessor que se sujeitasse a
de Rosa salta à vista, malgrado quase um século separar um do sustentar essa cruz que ele a, ajudaria e levariam ambos.
outro. Tudo nos leva a crer, como mostraremos logo a seguir, No que conviu, oferecendo-se a isso, e tanto que o fez, veio
que Rosa conhecia e se inspirava na biografia de Santa Marga- a dita cruz correndo com grande força e caiu sobre seu
rida Maria de Alacoque, imitando-lhe a espiritualidade. ombro esquerdo, que com o peso-da mesma caiu por terra
Já lá se iam quase dez anos que a ex-prostituta obedecera desacordada e desde então ficou sempre, em todos os dias
à vontade de Deus distribuindo seus bens, amealhados no de festividades solenes da igreja, sentindo sobre o ombro o
pecado, para os pobres. Jesus exigia-lhe agora algo mais: além dito peso, especialmente na Semana Santa, em que não
dos pertences materiais, queria sua própria vontade, tornando- pode estar senão deitada, pelo peso que sente naquela
se, com tal entrega, literalmente, escrava do Senhor. parte. Estando suprimida sem poder mover-se, e assim
Ainda em 1756, no dia 4 de setembro, outro mimo do Divino . esteve um pouco de tempo até que se lhe aliviou aquele
Mestre faz. de Rosa a primeira negra a quem Jesus permitiu

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peso e se levantou, cuja cruz lhe tornou a aparecer na diversasvezes afigura deste mimoso animal, seja de pé no Monte
sagrada hóstia quando o sacerdote a levantou em uma Sião, seja travestido em espantosa figura, "imolado sobre um
missa no altar de Nossa Senhora do Parto, estando na trono, com sete chifres e sete olhos" (Apocalipse, 5:6).
mesma hóstia a figura de um cordeiro branco". Os carneirinhos sempre encantaram as santas mulheres:
Santa Inês, martirizada ainda adolescente nos primeiros anos
Estamos convencidos de que por esta época Rosa Egipcíaca do cristianismo, é representada sempre com um cordeirinho no
andava lendo O Coração de Jesus Comunicado aos Corações dos. braçp^sínib.olo-de-sua^-ir-ginalp-Ur.ez.a;.n.oJBr.asil,-a-servadeDeus,
Fiéis (1733), onde Frei Jerônimo de Belém, da mesma ordem Madre Helena, fundadora do Recolhinxent.Q-de-N-ossa Senhora
que seu confessor, resumia "a portentosa vida da venerável daTLuz- de-São-P-aTalor-teve-uma-vi-são-onde-o Divino Esposo
Madre Margarida Maria". As semelhanças entre os fenómenos aparecia cercado de muitas ovelhas que tentavam subir-lhe o
místicos ocorridos com estas duas beatas são notórias. Eis como corpo pelos braços e ombros. Então o Senhor disse à sua serva:
a monja francesa descreveu sua visão da Santa Cruz: "Eis aqui minhas ovelhas que procuram um aprisco para se
abrigarem e não encontram, pois não quereis subministrar-lhes,
"Durante um desmaio, as três pessoas da Santíssima fundando um convento, conforme minha vontade..." Dois belos
Trindade apareceram-me e me fizeram sentir grandes quadros do século XVIII representam esta visão e podem ser
consolações. Apareceu-me o Pai Eterno apresentando- admirados no citado recolhimento paulistano.
me uma grossíssima cruz, toda coberta de espinhos, com Seis anos antes de Rosa transferir-se para o Rio de Janeiro,
todos os instrumentos da paixão, e me disse: 'Toma, a fundadora do Convento de Santa Teresa desta cidade, Madre
minha filha, faço-te o mesmo presente que fiz a meu muito Jacinta de São José, também fora agraciada não só com. a visão,
amado Filho/"í5 mas ainda, com os afagos do carneirinho místico. Deixemos que
seu biógrafo e confessor, Frei João dos Santos, descreva tão
Digna de destaque nesta visão de Rosa é a solidariedade delicado milagre:
de seu velho confessor em auxiliar a visionária a carregar.sua
cruz, ratificando mais uma vez a fé que depositava na predesti- "Numa festa de São João Batista, descendo o morro do
nação sobrenatural de sua dirigida. Se outros virtuosos confes- Desterro, viu a seus pés cordeirinho misterioso, muito
sores, como o Beato La Colombière, fizeram, fé nas revelações de bonito e cândido, como a neve. Jubilosa, a serva de Deus
suas orientandas, Frei Agostinho imitava-lhes o exemplo. Santa lhe disse: oh quanto te amo! Saltou-lhe então o cordeirinho
Ingenuidade, orapro nobisl ao ombro e começou a afagá-la. Vendo que se lhe metia no
Novamente aqui Rosa tem visões no momento em que o peito, queria acariciá-lo e cobri-lo com sua capa, mas ele
sacerdote levanta a hóstia consagrada. Só que agora, em vez de sumiu inteiramente. De noite, estando na cela, sentada;
bolas.de fogo ou sangue pingando, viu na circunferência de tornou a aparecer-lhe o cordeirinho, saindo-lhe do peito e
Jesus-Hóstiaum cordeirinho, o símbolo do próprio Cristo, nosso deitando-se a dormir em seu regaço. Pondo-se ela a afagá-
Cordeiro Pascal. Percorrendo as igrejas em Minas e no Rio, Rosa lo, acordou e, saltando, se lhe pôs nos braços. Nisto ficou
deparou-se inúmeras veizes com gravuras e esculturas do cor- Jacinta arrebatada em êxtase e viu sair-lhe do coração o
deirinho branco, quase sempre estampado nas portas dos taber- Menino Jesus, Cordeiro Imaculado."
náculos ou nos tímpanos dos altares. Em cada missa e ladainha
que rezava, repetia várias vezes oÂgnusDei, Cordeiro de Deus. Viva Jesus!
Também o- evangelista João, autor do Apocalipse, vira por

350 351
As últimas visões de Rosa, em 1756, ocorreram três meses guardado neste mundo para um alto fim. de sua providên-
após a festa da Transfiguração: cia. E, acabada a ditaprática, lhe disse que se fosse embora,
o que ela fez, recolhendo-se para casa muito atemorizada".
"Estando ela, ré, deitada em sua cama, pelas três horas
danoite', sentiu que a acordavam, abanando-a. E com pleno Justitia et Misericórdia era o lema não só da Santa Inqui-
conhecimento do que se dizia, ouviu uma voz que lhe disse . . sição, como um dos pressupostos cruciais do pensamento reli-
que fosse devota de São Pedro de Alcântara, e lhe rezasse • gioso cristão em relação a Deus nosso Senhor: se o Ohipotente
um Padre-nosso e uma Ave-maria e lhe pedisse que fosse agisse apenas como Justo Juiz, o mundo já estaria arrasado. É
seu confessor na vida e na morte. No mesmo dia, dando através de sua paciência como Pai Misericordioso que a Divina
conta ao dito Frei Agostinho do referido, lhe disse que . Providência impede que a espada de São Miguel esmague os
aquele dia era o dainvocação do mesmo santo, e lhe aprovou ingratos filhos de Eva. Dando a Madre Rosa a potência da
a devoção que a voz lhe tinha recomendado." misericórdia, os céus equiparavam-na à Maria Santíssima, sau-
dada na Sàlve-Rainha com o título de Mater Misericórdias. De
São Pedro de Alcântara (1499-1562) tem. sua festa celebra- fato, grandes eram, os desígnios que Deus planejava para a
da no dia 19 de outubro. Foi dos maiores místicos da Península ex-escrava de Dona Ana do Inficcionado!
*
Ibérica, estimulando inclusive Santa Teresa d'Avila na reforma Algumas visões ou revelações incluem certas imagens ou
da Ordem Carmelitana. Autor do Tratado da Oração e Medita- diálogos cujo significado não podemos decifrar, talvez prejudi-
ção, fez grandes missões em Portugal, onde deixou muitos cados pela má redação dos notários encarregados de reproduzir
devotos. Poucos santos igualaram-no na penitência: nunca pro- as rocambolescas declarações da africana. Várias delas, contudo,
vou vinho, dormia apenas uma hora e meia por noite, andava terminam, com a indicação, por parte da depoente, de que ficara
descalço e sem chapéu, mesmo no inverno. Quando rezava, dava "muito atemorizada" com o visto ou ouvido. Temor virtuoso, pois,
tais gritos que aterrorizava os que ouviam-no. Foi visto várias como ensinam as Escrituras, "o temor de Deus é o início da
vezes levitando nos ares quando celebrava a Missa, saindo-lhe sabedoria" (Provérbios, 1:7). Temor também que seus delírios
dos olhos raios resplandecentes como o sol. Tinha o dom de fossem comédias do Capeta, sempre ávido em enganar e desviar
desvendar pensamentos ocultos e especados escondidos por seus os fiéis do caminho da salvação.
confessantes.18 Canonizado em 1669, teve seu culto populariza- Como filha obediente de seu pai espiritual, Madre Egipcía-
-do no Brasil sobretudo no século XIX, quando nosso segundo ca só fazia e acreditava no que Frei Agostinho lhe autorizava,
Imperador foi batizado com o nome e sobrenome deste tauma- pois, como ensinou a grande mestra d'alma, Santa Teresa,
turgo franciscano. "sempre que o Senhor me mandava alguma coisa na oração, se
Após esta visão, ao voltar Rosa para casa, o confessor me dizia outra, eu me tornava ao Senhor a dizer que
obedecesse ao confessor". É sempre o sacerdote quem tem a
"passando por um presépio que fica no adro da igreja de últimapalavrano tocante às revelações, devendo-se a visionária
Santo António, ficou imóvel e logo lhe perguntou uma voz: acatar sua palavra, mesmo que o Todo-Poderoso tenha mandado
'Quantas almas nasceram no dia em que ela nasceu?' diversamente. A palavra e o julgamento do sacerdote, nestes
Fazendo-lhe mais diferentes perguntas a que ela respon- casos, valem mais do que as próprias palavras de Deus.
dia. E lhe disse a dita voz que tinha duas potências: uma Rosa era duplamente controlada: por seu confessor fran-
de misericórdia e outra de justiça, que a ela, ré, lhe concedia ciscano e pelo capelão do recolhimento, o Padre Xota-Diabos,
uma, mas lhe negava a outra, de justiça, e que ambas tinha

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que há oito anos ciceroneava a negra, primeiro como energúme- Notas
na, depois como sua escrava, agora, como liberta travestida em
"Madre Regente" da casa pia onde ele ministrava os sacramentos.
Aos 28 de dezembro de 1756, portanto, dois meses após á. 1. Ghantal, Suzanne. A Vida Quotidiana em Portugal no Tempo do
última visão de São Pedro de Alcântara, o capelão escreve a seu Terremoto. Lisboa: Edição Livros do Brasil, s.d., pp. 20-22.
sobrinho e afilhado Arvelos. Como em quase todas as cartas, 2. Mello, Francisco Pina. Juízo sobre o Terremoto, Coimbra: Oficina
começa com piedosas saudações aos santíssimos corações e a de António Simões Ferreira, 1756.
outros santos de seu devocionârio. Em seguida, reclama da 3. Voltaire, François Marie Arouet. Poèmes, Paris, 1756, p. 179.
saúde: "fiquei doente de reumatismo maligno e juntamente 4. Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, Caixa 59 (11-2-
erisipela em ambas as pernas". Diz que, apesar de convalescente, 1756). . • .
muito lhe custava sair para a rua devido à dor nas pernas. 5. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo na 15.953.
6. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n9 7.141 (1761).
Também o velho frei Agostinho andava adoentado das pernas . 7. Malagrida, Padre Gabriel. Juízo da Verdadeira Causa do Terremoto
—• doença de anciãos europeus alquebrados pelas intempéries e que Padeceu a Corte de Lisboa. Lisboa: Oficina de Manuel Soares,
endemias tropicais. Mesmo doente, 1756; Santo Alberto, Frei Francisco. Estragos do Terremoto, Lisboa:
Oficina S. Bento de Xabregas, 1757; Bezerra e Lima, João António.
"tenho sido muito perseguido com a impertinência dos Declamação Sagrada na Ruína de Lisboa. Lisboa: Oficina Patriar-
enfermos, mas Deus assim o permite. Agora entendo as cal de Francisco Luiz Ameno, 1757.
coisas que estão acontecendo, pois já se vai mostrando, mas 8. São José, FreiNicolau. Op. cit., 1935, p, 107.
não posso explicar o mistério, porquanto Deus não quer, e 9. Trindade, R. Op. cit., 1953, p. 120.
só Deus o quer mostrar oculto até ser o tempo em que todos 10. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Livro de Registro de Portarias,
ficarão com os olhos abertos. Só alguns religiosos do Con- Livro H, fl. 55.
vento de Santo António e o Senhor Bispo (por serem bons 11. Galvão, Frei António S. Op. cit., 1980, p. 7.
e sábios) lhe deu mercê de mostrar-lhes aquelas coisas",.. 12. Baumann, Padre Ferdinando. Padre Réus: Um Apóstolo do Coração
de Jesus. São Leopoldo, 1987, p. 180,"
13. ANTT, Inquisição de Coimbra, Processo n2 8.018 (11-3-1720).
Sem dúvida o tal mistério tão enigmaticamente referido
14. Agostinho, Frei José. A Grande Promessa. Petropólis: Vozes, 1983,
pelo missivista era a revelação dos. cinco corações, prenúncio de p. 26.
novos castigos semelhantes ou piores aos sofridospelos lisboetas 15. Alacoque, Margarida Maria. Op. cit., 1985, p. 46.
no ano anterior. Portanto, só poucos eleitos tcbons e sábios" 16. Sor Miryam. Vida do Venerável Servo de Deus Frei António de
estavam inteirados destes desígnios cujo epicentro era o sexto Santana Galvão. São Paulo, Tipografia Cupolo, 1936, p. 36.
coração daquela árvore mística: Madre Rosa Maria Egipcíaca 17. São José, Frei Nicolau. Op. cit., 1935, p. 77.
da Vera Cruz, a "Rosinha" do Padre Francisco. 18,Fios Sanctorum. Lisboa, 1870, v. 12, p. 103.
1 Nesta mesma carta diz este padre que a própria vidente 19. D'Ávila, Teresa. Obras Completas. Aveiro: Edições Carmelo, 1978,
"ia escrever contando sobre este mistério, mas seus olhos ficaram Livro II, Capítulo 26, p. 5.
tão cheios de lágrimas que não pôde escrever". Termina lem-
brando da pouca devoção tributada ao Menino Jesus e à Nossa
Senhora da Piedade, intercedendo que Santana e sua Filha
Maria Santíssima protejam a todos nós.

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15
Formação das Noviças

1757 é um ano muito importante para o Recolhimento dos


Santíssimos-Corações e de Nossa Senhora do Parto, pois marca
não só a transferência das beatas das casas anexas àigrejapara
dentro da clausura da nova fundação, como a tomada de hábito
das primeiras noviças, tornando-se esta casa pia não apenas
reforrnatórin^de.jaiu]hBr^_s _erradas. corno também, celeiro de
virgens impolutas, solteiras_ou casadoiras.
Uma carta, provavelmente da lavra da regente Maria
Teresa, datada de 8 de janeiro de 1757, dá o clima de como viviam
as pessoas no Rio de Janeiro nesta época, ainda assustadas com
o terremoto, assim como demonstrando a crescente veneração
que dedicavam à beata negra, "nossa Protetora":

"A notícia que mando é que cá anda muita justiça, e está


despejando todo o inferno para destruir a cristandade.
Alembre-se Vossa Mercê do que aconteceu em Lisboa no
dia de Todos os Santos. A execução deve vir quando não
sei. Nem que o povo torne a negar, ela há de vir. Rogue a
Deus que conserve a nossa Protetora, que sem ela, se não
fosse ela, j á tínhamos padecido a ruína, por que por ela todo
o bem ao mundo se f ar á. Só sei que Deus está par a castigar."

E termina mandando um recado de Rosa para "meu irmão


Pedro Róis Arvelos: "Que a Virgem Maria o queira guiar,'pois
ela o mandou chamar como pomba debaixo de seu muito grande
pombal. Sua irmã e serva, Rosa."
Passa-se um mês. A 11 de fevereiro, nova carta de Madre
Rosa para os Arvelos. Desculpa-se da demora em escrever,
alegando: "Quem é escrava [dos Santíssimos Corações] não pode
satisfazer o seu apetite como deseja. Por mim, escreveria todos
os dias, mas tenho muitos afazeres. Meu Divino Menino me diz,

357
quando estou com as criaturas, que é tempo furtado." Comenta sempre o nome um do outro em todas as suas orações. Tendo-lhe
então sobre a vinda de Faustiiia Arvelos para seu recolhimento: morrido um irmão, este deixou em sua companhia uma filha
que a jovem "não se envergonhe de vir para nossa companhia, natural nascida de uma escrava, Maria Antonia, "moça que
pois o Senhor não se envergonhou de estar na cruz, nu, despido sempre repudiou ser casada". Conseguiu então José Alvares que
no meio de dois ladrões". Diz ainda que Frei Agostinho ficou seu amigo padre garantisse um lugar no novo recolhimento para
contente com a decisão de recolherem a mocinha, e manda que sua sobrinha, fazendo parte da comitiva que, emmeados de 1757,
enviem também. Francisca, pois "os Santíssimos Corações que- desceu para o litoral fluminense. Numa carta do ano anterior,
rem-nas como vítimas", e que fosse logo, pois, quando se mudas- Rosa já tinha dito: "se a moça das Minas [Maria Antonia], que
sem, para o recolhimento, as novas ingressas teriam, de trazer quer vir, for sincera, e não fingida, que venha, pois j á há licença
dote, exceto as convertidas, pois Rosa sabia que os Arvelos não para as recolher. Se a minha companheira Leandra quiser se
teriam condições de colocar as filhas num convento de freiras, recolher a esta Arca, já pode vir". O próprio capelão do recolhi-
onde o dote exigido era altíssimo. mento demonstrava certo interesse na reclusão de Leandra,
No mês seguinte, a 13 de março de 1757, outra carta do embora ponderasse, desde outubro de 1756, que,
capelão Francisco, ratificando a ordem do Senhor Bispo, e do
'Trovincial Velho", para que Faustina viesse prontamente tòr- "se Leandra tiver tempo, pode vir, pois por muito tempo
nar-se "recolhida do Coração de Jesus". E completa: "Rosa vive espero por ela e por António Tavares. Leandra pode estar
escrevendo1 e nem tempo tem de rezar, tudo permitido por seu onde estão as recolhidas, se ela quiser [abandonar] os
pai espiritual. Ela já não é desse mundo! É o Menino Jesus que negócios do mundo, pois ainda é mulher de negócios [que]
domina ela." com muita pretensão o Demónio lhe introduz. Se disto se
Todo esse empenho em trazer das Minas as donzelas da ofender, pior será para ela, pois quem não é humilde, não
família Arvelos pode ser interpretado como o desejo, por parte segue a Deus".
dos fundadores, de "purificar" o Recolhimento do Parto, contra-
balançando com virgens e castas moçoilas a esmagadora pre- Que negócios seriam esses? A documentação não informa.
sença de mulheres extraídas do meretrício. Pedro Róis Arvelos e José Alvares Pereira passaram três
Deve ter sido pelo inês de junho de 1757 que chegam ao semanas no Rio de Janeiro, desenfadando-se da caminhada e
Rio de Janeiro, vindas dó Rio das Mortes, as novas recolhidas. certamente aproveitando pararealizar alguns negócios na prin-
Na caravana que desceu a Mantiqueira vieram: o Sr. Arvelos, cipal cidade portuária da Colónia.
suas filhas Faustina Maria de Jesus, 15 anos, e Francisca O depoimento do tio de Maria Antonia não poderia ser mais
Tomásia do Sacramento, com 9 para 10 anos; a pretinha Maria favorável à nova fundação: "No dito recolhimento estivemos
Àntonia, seu tio José Alvares, amigo e fiel devoto de Rosa, e vinte dias, com. muito gosto, por vermos o muito que naquela
finalmente a amiga do coração de Rosa, Leandra, mulata de casa se louvava a Deus e a sua Santíssima Mãe." Diz que, "com
Pernambuco que desde 1749 vivia com os Arvelos em sua as que chegaram, eram .17 as recolhidas". O pequeno rebanho
propriedade de Santa Rita. crescia em número e dava sinais de santidade.
Esta Maria Antonia era sobrinha do português José Alva- Poucos dias após regressarem para as Minas, Madre Rosa
res Pereira, 60 anos, morador na freguesia do Pilar de São João dá notícia aos Arvelos sobre as recém-chegadas, informando a
dei Rei. Amigo íntimo do Padre Xota-Diabos, devoto incondicio- respeito dama vontade deFaustina, internada contra seu desejo,
nal de Rosa, eraum dos que fizerampacto com abeata de incluir que resistia tenazmente às suas superioras:

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notícia sobre Francisca Tomásia, a caçula dos Arvelos, que com
"Faustina confessou-se na véspera do Corpo de Deus, 10 anos incompletos parece ter, esta pobre menininha, se adap-
mas fez confissão nula, porque, em vez de entregar-se aos tado à nova vida sem maiores resistências, sobretudo tendo o
Santíssimos Corações, tinha em seu coração desobediência
e rebeldia de vontade, ficando toda negra como tição,
amparo da irmã mais velha como substituta de sua mãe Maria m
causando grande admiração a quem. a viu, pois ela consi-
Teresa de Jesus, na época com 35 anos.
É através de outra carta do Padre Francisco, de 26 de
*
derava vil a casa do recolhimento e conservava em. seu outubro deste mesmo ano do Senhor de 1757, que ternos notícia
coração ódio a seus pais por a terem trazido para cá: é o. da primeira tomada de hábito no Recolhimento dos Santíssimos
mesmo pecado de Lúcifer. Como ela não escreve nada disto Corações B de Nossa Senhora do Parto.
a Vossa Mercê, nem pede perdão, é. sinal, de que ainda está O dia escolhido não podia ter sido melhor: 7 de outubro,
pertinaz." festa de Nossa Senhora do Rosário, incontestavelmente, a mais
querida de todas as devoções de brancos e pretos no Brasil
Não obstante tal situação, informa a madre que Faustina
Colonial.
preparava-se para fazer uma confissão geral, prática comum Na Igreja do Parto, diante do altar, lá estavam cinco
aconselhada a quem entrava para o convento, declarando, de postulantes: Faustina, Francisca Tomásia, a pretinha Maria
uma só vez, todos os pecados do presente e passado, inclusive os Antonia e mais duas moças cujos nomes e cores desconhecemos.
já previamente absolvidos. Após ter assinado esta carta, Rosa Após as ladainhas, sermão e outras orações, retiraram-se as
acrescenta umposí-scripíum. dizendo ter visto a mensagem que mocinhas para a sacristia, onde foram substituídos seus trajes
Faustina escrevera para os pais, onde declarava sua enorme seculares, provavelmente vestidos brancos, cortados os cabelos,
saudade, sobretudo da irmã que ficou nas Minas, dizendo que cobrindo-se então com o véu e hábito marrom de terceiras
"não podia tirar o sentido do mundo, dando a entender que ama franciscanas. Prostradas no chão, de braços abertos, as novas
mais a ela que a Deus". Pobre Faustina, a mineirinha de 15 anos recolhidas pedem a proteção do Espírito Santo, enquanto a
que tanto vai sofrer longe dos seus, enclausurada contra sua comunidade cantava o Veni Sancte Spiritus:
vontade, obrigada a viver lado a lado com mulheres completa-
mente diferentes de si na classe, idade e costumes. 'Vinde Santo Espírito, emiti um raio da celeste luz:
Padre Francisco, compadre dos Arvelos, manda-lhes notí- Ao sujo lavai, ao seco regai, curai o doente,
cias mais tranquilizadoras. Logo no segundo dia de julho escreve: Envergai o rígido, aquecei o frígido, conduzi o errante.,."
"Faustina antes quer morrer do que sair desta casa..." obvia-
mente, "uma mentirinha, pois a resistência que manifestou ao Celebrada a missa por Frei Agostinho, dizem os documen-
vir para o Rio de Janeiro, o desagrado, talvez até o choro e manha tos ter conferido este, ao capelão Padre Francisco, o privilégio
com que deve ter se despedido de seu velho pai quando este de dar a comunhão às noviças, que em procissão foram encami-
retornou para o Rio das Mortes, comprovam que Rosa estava nhadas à clausura. Fechada aporta, a chave é confiada à Regente
sendo mais verdadeira do que o capelão, ao revelar a repulsa Maria Teresa, que a carregará doravante sempre dependurada
desta mocinha em tornar-se recolhida. Nesta mesma carta diz no cordão franciscano que lhe cinge a cintura. Tem início, então,
ainda o Padre Francisco: "Quando umarecolhidatermam defeito, a vida reclusa no novo recolhimento.
logo é corrigido, porque Deus não quer nesta casa santa coisa Cerimónia comovente, solenizada pela presença de "todos
alguma que não seja sua. Devem Vossas Mercês dar graças a os religiosos de autoridade" do vizinho Convento de Santo An-
Deus de ter escolhido suas duas filhas para esposas." Nenhuma tónio, embora estando muito aquém das tomadas de hábito e

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profissões solenes dos conventos reais, onde não faltavam eru- Enquanto as recolhidas engatinhavam no caminho da
ditos oradores que chegavam a ter seus sermões impressos, como perfeição, aprendendo o be-a-bá da vida mística, Rosa avançava
o de autoria de Frei Inácio de Jesus Maria, carmelita, que a todo galope, escrevendo páginas e páginas de suas visões quase
assinou o Sermão no dia de São Francisco, naprofissão da Soror diárias.
Maria de Santa Rosa, do Convento de Santa Clara do Desterro No segundo semestre deste mesmo ano, 1757, Madre Egip-
da Bahia, publicado em Lisboa em 1697, ou, ainda, a Oblação cíaca tem quando menos três importantes revelações beatíficas:
Métrica à Abadessa do Convento da Castanheira, de autoria do a primeira ocorreu na noite de 8 de julho, festa de Santa Isabel,
carioca Manuel José Cherem (1753). Rainha de Portugal (1271-1336), como Rosa, também fundadora
Informa o capelão que, a partir deste dia, as recolhidas de uma casa pia de mulheres, o Mosteiro das Clarissas de
passaram a se confessar e areceber a eucaristia atrás das grades, Coimbra.
através de uma portinhola fechada também por dentro, e que
tão somente o médico-cirurgião, quando necessário, tinha entra- "Estando ela, ré, rezando em sua cela, viu junto de si um
da em seu interior. Padre Francisco diz ainda que vulto da altura de um côvado e meio [um metro], vestido
de branco, bem figurado. Com te.mor, rezou dois Credos.
"Nada lhes falta: têm cozinha, refeitório... Faustina Então lhe disse o dito vulto, com voz que percebia com os
andou uns dias doente mas tem só sentimento de servir a ouvidos corpóreos, que rezasse mais um Credo. Entre
Deus e não descura da obediência à mãe Rosa. Esta casa outras perguntas e respostas, lhe pediu o dito vulto que lhe
é reservada para esposas de Jesus Cristo. Rosa não tem desse ela, depoente, o seu coração como anel por prenda do
tempo par a nada, nempara dizer umaAve-maria: sua vida seu desposório, e que lhe daria o seu, porque, no consórcio
é escrever o que Deus permite. Posso afirmar com jura- que as criaturas faziam, costumavam prendar-se recipro-
mento que Deus disse que toda pessoa que concorrer para camente, porém ela, ré, insistiu que não dava o coração
sustento de suas esposas alcançará a bênção do Padre sem tomar obediência ao seu confessor, a quem logo parti-
Eterno." , . cipou o referido. E ele lhe disse que Deus costumava pedir
os corações dos pecadores e que lho desse juntamente com
Termina dizendo quê Faustina não tem licença de escrever o seu, pois também queria acabar como verdadeiro religio-
a ninguém: "é a regra das;noyiças!", recomendando que disses- so. E indo ela, ré, ouvir missa na Capela da Rainha Santa
sem a ela que, antes de enviar-lhes as cartas, que as mostrasse Isabel, ao levantar a hóstia, lhe falou a mesma santa,
para suas superioras, "para não escrever nada que não seja do repreendendo-a que sendo cadáver ressuscitado, por que
agrado de Deus". Em curto post-scriptum dá a. mesma ordem não [acreditava]? E para que tinha Deus neste mundo?
repetida em muitas outras cartas: que não mostrassem esta Cujas palavras se intimidou ela tanto, que, além das
carta a ninguém, só à comadre Arvelos, ao Padre João Ferreira lágrimas, sentiu outros efeitos naturais e próprios da fra-
Carvalho e a José Alvares. Este receio e cautela, como veremos gilidade de sua natureza. Disse mais que, na noite do
mais adiante, comprometem em parte a honestidade, boa fé e referido dia, estando ela, ré, em oração, tornou a dita voz
credibilidade deste sacerdote e de sua espiritada, pois certamen- a pedir-lhe o seu coração, e respondendo ela: o dito, dito e
te temiam que a divulgação dos supostos prodígios e discutíveis o dado, dado, e desapareceu a visão."
poderes de Madre Rosa chegasse ao conhecimento do Santo
-Ofício e viesse a prejudicá-los, aliás, como vai ocorrer em poucos Não faltam exemplos na história católica de santos que
anos. trocaram seus corações com o do Cristo: as santas Catarina, de

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Siena e de Ricci, Santa Lutgarda, Santa Gertrudes, Beata Ave-marias, lhe tornou a dizer que avisasse às filhas da
Dorotéia, São Miguel de Sanctis, o Venerável JoãoBatistaReus, cidade do Rio de Janeiro que tinha vindo fazer uma casa
jesuíta alemão falecido no Rio Grande do Sul com odores de na sua terra para as recolher do dilúvio da culpa de que
santidade e cujoprocesso de beatificação acha-se em andamento. todas zombavam, mas que, no dia do Juízo, havia de vir
Eis como S anta Margarida Maria descreve em sua autobiografia assentado no teatro de seu amor julgar a elas, e às filhas
como se deu sua troca de corações: de outras cidades. E logo ela, ré, se achou em um campo
junto do qual estava um monte altíssimo, e sobre ele a
"Estava diante do Santíssimo Sacramento: encontrava- Senhora da Piedade em carne, com o Senhor. Morto nos
me tão fortemente possuída pela presença divina que me braços também em corpo e carnes, e estavam muitos santos
esqueci de mim mesma. Entreguei-me, então, ao Divino na sua mesma figura, em carne, uns com báculos pastorais
Esposo. Ele me disse: 'O meu divino coração está abrasado e mitras na cabeça, outros com estolas brancas, e outros
de amor p ar a com os homens, e em particular par a contigo.' que as tinham roxas, outros vermelhas, outros verdes, e
Pediu, então, o meu coração. Eu roguei-lhe que o tomasse, outros azuis. E muita gente mais, vestidos uns em vestias,
o que ele fez, e o colocou em seu admirável coração e tirou outros com casacas e outros de capotes. E não conheceu
o seu coração, como chama viva, e o recolocou no lugar de pessoa nenhuma. E à Senhora disse àquela multidão: Ite
onde tinha tirado."1 maledicti — Ide malditos —, que até agora fui Mãe de
l . misericórdia, e agora o sou de justiça.' E cadauxn dos santos
Rosa descreve com menor brilho literário essa mesma troca referia o que tinha passado para ganhar o céu. E São
mística. Em seu negro peito, desde o dia 8 de julho de 1757, Franscisco de Assis, que também estava no mesmo monte,
pulsava o próprio coração de Jesus. Maravilha das maravilhas: e o viu ela, depoente, com a divisa das chagas, e disse o
Deus Nosso Senhor confirmava o Sermão do Glorioso Lusitano mesmo santo: Ide, malditosFE cadaxim dos santos acabava
Santo António, pregado no Convento do Rio de Janeiro a 13 de a prática mostrando à gente as poucas obras que faziam
junho de 1674, por Frei Agostinho da Conceição, OFM, ao 'por eles, da mesma sorte que a Senhora, dizendo: 'Ite
afirmar que o mesmo Senhor "escolheu particularmente Portu-
gal [e suas Colónias] para seu império e sua morada na Terra".
maledicti/JÍZ, cobrindo-se o dito monte com '011.1 véu preto,
se achou cada pessoa dos que ali estavam, com meia folha
o
O coração de Jesus vivo e flamejante batia agora no peito da de papel nas mãos, escrita de letras muito grandes, grossas
"Flor do Rio de Janeiro".
Nesta mesma noite, ó noite verdadeiramente ditosa,
e negras, que não sabe o que diziam, e só ela, ré, tinha um *
quarto do mesmo papel muito branco. E logo desapareceu
aquela visão, e, restituída aos sentidos de seu corpo, achou
"estando ela, ré, em oração mental junto com as recolhidas, que se tinha passado uma hora naquelas visões, e se achou
vendo-se o ponto do Juízo, para meditar nele, caiu ela, no mesmo coro do recolhimento. Querendo perguntar às
depoente, no chão e se achou não sabe em que paragem foi, companheiras se se tinha acabado a oração, lhe disse uma
nem será neste mundo, ou no outro, aonde a mesma voz voz: 'Adeus, fica-te, embora eu me vou embora/ E pergun-
lhe tomou uma estreita conta de todos os seus pecados, tando ela, ré, quem falava, tornou a dizer a dita voz que ia
í referindo-lhe miudamente todos os pensamentos, palavras
e obras de que ela se achava ré, e dos benefícios que lhe
para o céu, revestido das asas do merecimento da Paixão
de Jesus Cristo, depositar-se no seu cofre. E neste tempo
tinhafeito da criação, daredenção, da vocação, dos auxílios saiu junto delaumfacho de fogo e, ao tempo, que ia subindo,
e graças que tinha-lhe feito e, calando-se por espaço de três.

364 365
foi ela, ré, perdendo os sentidos e estava amortecida, de
sorte que, aplicando-se-lhe fumaças e espíritos, nada sen- "Uma noite Rosa lançou-se no chão do coro como morta,
tia, e assim esteve por espaço de quatro horas, no fim das por muito tempo, e o padre começou a fazer muitas excla-
quais sentiu três apertos no seu interior e logo se restituiu, mações junto dela, dizendo que Nosso Senhortirava aquela
e as mais recolhidas lhe contaram que, no tempo do desa- prenda do mundo, que era p ara castigá-lo, e, levantando-se
cordo, dizia ela, ré, à Senhora: 'O meu coração já veio, viva depois Rosa, disse ter estado num campo onde se via uma
o amor de Deus!' E dando ela, depoente, parte ao dito padre imensidade de almas com seus papéis na mão, com muitos
seu confessor da referida visão do Juízo, o padre lhe disse borrões."
que se confessasse e comungasse e pedisse ao Senhor que
inspirasse que campo era aquele. E fazendo ela assim, E contou então detalhadamente a mesma visão há pouco
estando nessa súplica, ouviu uma voz que lhe disse que relatada. Lado a lado coxa os santos maiorais da corte celeste, a
aquele campo se .tinha comprado com o dinheiro que se negra era a única dos mortais a ter a folha de sua vida perfeita-
tinha vendido o mais justo homem que houve no mundo. mente impoluta, sem borrões, "branca como a neve"; daí ter sido
Que aquele campo havia de vir a julgar e se chamava escolhida por Deus para voltar ao mundo, ressuscitada, e cum-
Campo de Josaphat, como a Igreja ensinava". prir missão crucial neste vale de lágrimas.
Rosa diz ter ficado particularmente atemorizada após este
O dia ,8 de julho de 1757, festa da Rainha Santa Isabel de arrebatamento místico. Também, não era para menos, pois a
Portugal, foi sem dúvida dos mais ricos de sobrenaturalidade visão do Juízo Final, tal qual descreviam os manuais de piedade,
em toda a história sacra do Rio de Janeiro, quiçá do Brasil. Do era a situação mais terrível e assustadora que um mortal podia
dia para a noite, Madre Rosa Maria teve duas importantíssimas imaginar.
visões: a troca dos corações, através da qual Deus escolheu o
negro peito de sua serva para aqui fazer a morada, e o Juízo "Considera, pecador, que no instante em que atua alma
Final, através do-qual a ex-escrava ganha o passaporte para a se apartar do teu corpo, há de comparecer perante o tribu-
glória celeste. Neste dia, Rosa recebe ainda maravilhosos sinais nal de Jesus Cristo para ser julgada. Que confusão e que

5 da santidade: viu um "vulto bem figurado" de aproximadamente


um metro de altura, certamente o Menino Jesus; ouviu a voz de
Deus saindo da hóstia consagrada; permaneceu em êxtase bea-
tífico por mais de quatro horas seguidas, e, para corolário de
horror será o teu, pecador, se quando compareceres em
juízo ainda estiveres em pecado mortal? Oh! quão grande
será o teu susto e assombro quando os teus olhos pela
primeira vez se encontrarem com aquela divina face em

l tantos prodígios, irradiou de seu corpo um facho de fogo —


privilégio só conferido por Deus a poucos eleitos, como ao profeta
Eliseu e a Santo António do Categeró.
Essas quatro horas em que Rosa passou desacordada par-
que descarregaste tantas e tão grandes bofetadas, isto
todas as vezes que cometias as culpas?... Como poderás
suportar a face de um Deus irado contra ti, se um Santo
Jó, sendo inocente, antes queria esconder-se no fundo do
ticipando do Juízo_ Finalforam.interpretadas por ela própria e inferno, do que aparecer em juízo? O juiz quê há de julgar-te
pelo Padre Francisco como tendo morrido, passado pelo julga- é um Deus Onipotente, um Deus por ti ofendido e maltra-
mento e, por graça especiosíssima de Deus, ressuscitado. Faus- tado, por ti desprezado e até crucificado. Oh! quanto Ele
tina Arvelos foi uma das recolhidas que estavam presentes estará irritado contra ti, pecador! Os seus divinos olhos
quando deste acidente, tèndo-o assim descrito: estarão lançando faíscas de fogo contra ti. As suas mãos

estarão cheias de raio contra ti. O seu semblante estará
í:
366 367
cintilando furor contra ti. Só a sua vista irada é bastante com. inúmeros poderes extraordinários, venerada como mil.agro-
para reduzir-te a cinzas. E quanto mais se aumentará o sã, profetisa e vidente, não só pelas demais recolhidas,j?omp por
• teu susto, e crescerá a tua aflição, quando o. Juiz Supremo ic_ejjIoj;e_s_e._pj^^ se-
te pedir estreita conta de toda atua vida, e te for mostrando culares-tanto nas Minas quanto na cidade de São Sebastião, a
todo o horror dos teus pecados, em que tantas vezes tens negra courana, além de inspirar sua fundação, é a regente
caído?! Que será então de ti, pecador, quando te vires nesses plenipotenciária desta casa pia, cujo próprio nome forapor Deus
apertos os mais terríveis? Os demónios acusando todas as a ela revelado: Recolhimento dos Santíssimos Corações. As
tuas malvadezas; o Anjo da tua guarda confirmando estas próprias recoletas diziam assim: "Rosa é a fundadora e Mestra
acusações; Maria Santíssima apresentando o seu coração
rasgado por esses punhais dos teus pecados, que sobre ela
do Recolhimento, e esses títulos foram dados pelo próprio Deus."
B como ela já dissera certa vez: "o dito, dito; o dado, dado!" m
descarregaste; seu filho Jesus Cristo, o mesmo Juiz, cober-
to de chagas, também te estará mostrando o sangue, ainda
Para manter a paz e concórdia nesta dúzia e meia de
mulheres e moças, tão díspares na idade, origem social e expe-
0
escorrendo das feridas que há pouco agravaste com as tuas riência de vida, onde meninas impúberes repartiam o espaço
culpas... Lá o processo são as tuas culpas, a sentença é sem com negras recém-egressas do meretrício, a obediência cega e
apelação, a pena é um inferno de fogo o mais devorante, total às ordens e desejos da Mestra e Fundadora tornou-se a
são tormentos eternos.' Não há lá companheiros, nem ad- primeira regra do funcionamento dêista còmura3ã3e7 Regra,
vogados em teu favor, ninguém lá responderá por ti, nin- aliás, comum^as associações religiosas, tanto que até hoje pode-
guém falará por ti, porque o tempo das misericórdias de mos ler, no frontão do coro do Convento de Nossa Senhora da
todo se acabou para ti. Então conhecerás, pecador, a gra- Lapa, onde viveu a baiana, Joana Angélica, as seguintes instru-
vidade dos teus crimes, e o seu grande número, e não ções/^Ohedecer^raj e, Trabalhar", sempre aparecendo a obe-
poderás desculpá-los, ou negá-los..." diência em primenxTlugarT

Que Deus nos livre deste momento terrível: Dies irae, dies
Dentre todas as recolhidas, parece ter sido exatamente
Faustina Arvelos quem mais tenazmente resistiu a curvar-se
0
illa, calamitatis et misericíe\s um pouco de lado as visões de nossa santa e perante a autoridade daquela que alguns anos antes, em casa 0
de seus pais, não passava de uma escrava africana endiabrada. 0
adentremo-nos no Recolhimento do Parto, para ver como viviam, "A rebeldia foi o que fechou as portas do céu e abriu a porta do
quais^jss problemas, angústias e alegrias compartilhadas por inferno", diziaRosa, numa carta enviada ao Rio dasMortes, onde
estas 17/aulheres afastadas_do mundo para seguir em comuni- pedia aos pais da rebelde noviça que a ajudassem, através de
dade o ideal religioso proposto pelo Divino Mestre. Embora pela conselhos, "a domar suas filhas e metê-las debaixo do jugo da
portaria do bispo, datada de 18 de novembro de 1755, a Irmã obediência, porque não sou eu que as domo, é a Virgem Nossa 0
MariaTeresado Sacramento, então com31 anos, fosse aregente, Senhora do Parto e seu Santíssimo Filho: eu sou só instrumento 0
devendo ser venerada e reconhecida como a superiora, "obede- do Senhor e da Senhora".
li.. cendo-lhe e cumprindo em tudo o que mandar", eraRosa, dejato, Não nos admiremos da dureza dos termos "jugo", "domar"
5 quem liderava a comunidade, mandando e desmandando a seu — usados hoje mais para o trato dos animais do que para os
li bel-prazer,_qu melhor, conforme os ditames celestiais. .Oito anos humanos. O próprio Cristo já dissera que "meu jugo é suave",
mais velha que a Regente, muito mais experimentada na vida apesar de os mestres da vida espiritual terem endurecido tal
mundana e espiritual, dotada de personalidade forte e agraciada suavidade com uma série de condicionamentos disciplinares que

368 369
.—•Í

í
•íl
tornaram a ascese uma verdadeira via crucis. O mesmo Senhor estatuto manda que as religiosas que forem rebeldes, que se
também dissera: "se alguém quer vir após mim, renegue-se a si metam no cárcere e se penitenciem."
mesmo, tome cada dia sua cruz e siga-me" (Lucas 9:23). Estaria falando figurativamente, ou também no Parto,
Sobretudo para_guem entra na. vida religiosa, domar a como nos demais conventos de freiras e frades, existiria de fato
vontade era_o_pr.imeiro passo. Obeãire perinãê~ãc~caãàver, isto 'uma ceíãfortè onde eram encarceradas as mais recalcitrantes?
é, obedecer como um cadáver, é um dos lemas atribuídos à 'êlõrigõFHãs penitências aí praticadas, como veremos a seguir,
Companhia de Jesus, e, no Espelho de Disciplina para Criação tudo nos leva a responder afirmativamente.
das Noviços e Novos Professos, Frei Manuel da Cruz, OFM, já Outros artifícios nem sempre tão piedosos eram igualmen-
em 1735 ensinava: "Há de se deixar o homem velho e revestir-se te acionados para domar a liberdade ou rebeldia das enclausu-
do novo. Se a cera não amolece, não recebe a forma, assim radas. Mal receberam o hábito, contam as duas irmãs Arvelos
também, o homem não se dobra à forma da virtude se não for que, "passados alguns dias, reuniu o Padre Francisco a comuni-
humilhado por humildade de toda a dureza da soberba e contra- dade dizendo que, comungando muitas das irmãs, se viram três
-rVt dição." E termina com. o seguinte conselho aos que entram no com as almas negras como carvão, e que cada uma olhasse para
jj- noviciado: "Nunca julguem a sentença dos superiores. Se por- si". E, em outra ocasião, "pegou Rosa uma caveira e a pôs nas
,' ventura alguma coisa grave ou impossível lhes é mandada, mãos de Faustina e na de outras duas recolhidas, dizendo que
o recebam com. toda mansidão." eram aquelas as três almas negras". Tal caveira diziam ter
Também S ao Bento (480-547), o patriarca da vida monácal pertencido a um terceiro franciscano que, segundo a vidente,
no Ocidente, na sua famosa Regra, no capítulo V, ao tratar da teria sido condenado ao inferno—o que tornava a correção ainda
obediência assim ensinou: "O primeiro grau da humildade é a mais macabra e alegórica. O longo depoimento de uma das
obediência sem tardança", nialn^^íó~quê7t'ãõ~Tõgò o religioso acusadas de sacrílega, Irmã Teresa Maria de Jesus, 21 anos,
re"cêba umã~Órde:ní superior, imediatamente deve abandonar a natural da Ilha do Faial, revela vivamente as estratégias utili-
vontade própria, largar o que tem entre as mãos, deixando por zadas por Rosa, pelo capelão e demais recolhidas mais antigas
acabar o que se estava fazendo. E conclui: "Se o discípulo e fiéis à madre, a fim, de, pelo tejÇTOr^suhjugar as mais_re.sM^as
obedecer de má vontade-, e murmurar, não já de boca, mas 'tr ^independentes. Primeiro impingia-se nas recém-enclausura-
tão-somente no seu coração, ainda que faça o que lhe mandam, das toda uma devoção compulsória à negra regente: "após o terço,
já não será aceite a Deus^ que lhe vê o coração murmurar." pedia-se no coro que se rezasse uma estação (cinco Padre-nossos
Obediência total, como a do próprio Cristo, -que, segundo as e cinco Ave-marias) ao Santíssimo Sacramento e se ofereciapelos
palavras de São Paulo, "foi obediente até a morte, e morte de irmãos vivos e defuntos, religiosos do seráfico São Francisco,
cruz!" (Epístola aos Filipenses, 2:8). depositada no tesouro riquíssimo do coração de Rosa Maria
Rosa, ao exigir obediência total das recolhidas, notadamen- Egipcíaca da Vera Cruz". Oração ensinada por ela própria e
te das noviças, pautava-se pela tradição conventual, autoritária repetida todas as noites antes do toque de recolher. Conta mais
^humilhante. Eis suas palavras: "Os livros espirituais por onde esta freirinha portuguesa que, estando certa feita na cozinha,
eu me governo e dirijo- estão cheios de-espirituais lições de como às 5 horas, ouviu no teto um grande estrondo, e, correndo para
devem as mestras e mestres de espírito ligar as almas a Deus, cima, achou no coro duas recolhidas com uma vela acesa na mão,
livrando-as de todo trato familiar do século, fazendo que tenham que de joelhos ouviam o capelão dizer que, se alguma falasse
para fora o que_s^passava_dentrodorecolhim.ento, "seriam como
só os espíritos recolhidos em Deus, sem distrações." E mais '•Í- velas apagadas", causando tal advertência, grande medo na
adiante, completa, justificando o rigor de sua conduta: "Nosso

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cozinheira. Disse mais que, confessandb-se com. o mesmo padre "e que a obedecesse, porque o que mandava era do agrado de
no dia da Assunção, ficou cheia de escrúpulos de não ter revelado Deus". Para quebrar-lhe a resistência e orgulho, a negra do
uma circunstância grave de um pecado, voltando a confessá-lo Coração de Maria mandava que a cozinheira beijasse os pés de
passados alguns dias. Chamou-a então em particular a Irmã Madre Egipcíaca, pois assim ganhava muitas indulgências.
Ana do Santíssimo Coração de Maria — uma das mais fiéis Tamanha lavagem, cerebral causou os efeitos esperados,
discípulas de Rosa, preta como ela, igualmente egressa do pois a amedrontada freirinha, "atónita e atormentada", começou
meretrício — e começoti a revelar-lhe vários episódios de sua a ter visões, ou melhor, alucinações. Relata que
vida e vizinhança, inclusive que roupas usava antigamente,
dizendo-lhe também que escondera um pecado grave, comun- ... "certa vez, na cozinha, viu três figuras horríveis assentadas
gando sacrilegicamente, o que de fato aconteceu, poisj "naquele sobre uma caixa, que tinham, a representação de homens *
muito altos e de espantoso aspecto. Ficou assombrada. •
dia, tivera uma espécie de desmaio em que esteve adormecida, 0
e a dita irmã disse que vira-a cercada de demónios e a alma preta Pouco depois desapareceram. A seguir lhe davam uns
como carvão", apontando como solução ir confessar-se aos pés . assobios horrorosos nos ouvidos e viu suspensos no ar dois
de Mãe Rosa, ensinando-lhe como declarar suas faltas. Voltando
para a cozinha, novamente ficou aterrorizada por outro grande
ramos de flores, e, estando neste tempo ansiada, rompeu
em vozes, a que acudiram as irmãs que a acharam ansiada
m
*

estrondo e gritos espantosos vindos do coro, aparecendo então a e assim ficou por muito tempo padecendo aflições e dores
dita irmã do Coração de Maria e, 'lhe pegando com os dentes grandes que diziam que era o demónio, e Rosa dizia que
em um dos braços, assim a levou para cima", onde estavam o era o demónio de uma irmã que tinha se confessado e
capelão, Rosa e outras recolhidas. Aí Madre Egipcíaca começou descido para ela".
a chorar, dizendo querer um remédio para uma de suas filhas.
Cheia de temor, Teresa Maria, em particular, ajoelhou-se aos O ritual de(aniquilamento doego da pobre noviça compor-
pés da negra, abrindo sem reservas seu coração, recebendo tou verdadeiras sessoisUe asquerosa tortura:
absolvição "em nome da Santíssima Trindade", tendo sido enca-
"No dormitório debaixo, estando a comunidade reunida,
minhada em seguida ao Padre Francisco para ser absolvida
pegou a Irmã Ana do Coração de Maria um prato com
sacramentalmente. Este sacerdote despacha-a mais uma vez
escarro de todas as recolhidas e o lançou sobre a cabeça
para os pés da negra, mandando-a "obedecer em tudo, porque
dela, testemunha, e aparava o que caía com o mesmo prato,
Rosa é a fonte da graça".
a qual bebia a mesma irmã e tornava a vomitar no dito
Pobre portuguesinha, emigrada dos Açores e obrigada a
prato e lançá-lo por cima da cabeça dela testemunha,
sujeitar-se aos caprichos de uma congregação de negras espiri-
enquanto Rosa falava algumas palavras. Aí foram-se des-
tadas cujo poder e santidade eram afiançados por um velho
vanecendo aquelas duvidas e capacitou-se que tudo de Rosa
capelão minhoto! TeresaMaria obedeceu, mas os escrúpulos não
parecia certo."
cessaram aí, tanto que, perseguida novamente por Irmã Ana do
Coração de Maria, sempre "atónita", foi confessar-se outra vez Este ritual, tão nojento dentro da ótica ocidental, sugere-
com o Xota-Diabos, e estava tão atormentada e com grande ânsia nos duas interpretações: podia sei* um exercício de correçâo
que não conseguiu articular palavra alguma, destravando-se- exemplar destinado a quebrar a vontade da noviça sacrílega e
lhe, porém, a língua quando abriu o coração perante Mãe Rosa, descrente, que, sendo obrigada a suportar um banho fétido de
que lhe disse que sua incredulidade tinha escandalizado a Deus escarr^s7^preiidiã~lTb.urniI3ã3.e pelo exemplojlaJÇrmã Aha do

372 373
Coração de Maria, que bebia e regorgitava aquela poção repug- recoleta. Por trás deste culto, verdadeira idolatria, lá estava
nante. Ou então, como veremos mais adiante, jjuem. sabe tal sempre o Padre Francisco Gonçalves Lopes, que, através de
cerjniôma^epjroduriTrggjSRIãlmente um antigoritual da reli- cartas, sermões e no confessionário, estimulava que todos se
.iò^.9. .4OS .Qrjj^§§»-9L.-B.orJ.. atravéj3-do..qual. .soprando a saliva na entregassem como filhos devotos à Mãe Rosa, à sua Rosinha.
cab?£a .40s.iniçiadQs^transmite-se p_oxé à pessoa. O certo é que Para a comadre Arvelos, sugeria em carta de 7 de outubro de
tal ritual produziu ps efeitos esperados. 1758:
Alem destas cerimónias e intimidações, certos exercícios
espirituais praticados pela comunidade contribuíam na constru- "Ofereça à sua Mãe Rosa suas filhas, e peça que as tome
ção de uma nova personalidade nas recolhidas do Coração de por filhas. Todas as orações e atos meritórios que fizer,
Jesus. As meditações, chamadas na época de oração mental, sejam oferecidos por Rosa a Deus, e então tudo irá como
funcionavam como porta de entrada no universo sobrenatural. Ele quer! Se sua filha Genoveva se oferecesse como filha
Eis o impressionante relato desta mesma freirinha que, na de nossa Rosa Egipcíaca da Vera Cruz, já o Demónio não
cozinha, era atormentada por barulhos e assovios infernais, há de ter poder nela, porque sei. decerto que quem for filho
visitas de duendes apavorantes e que na oração mental, em de Rosa se não há de perder. Mais não posso falar, mas o
comunidade, encontrou o lenitivo para todos esses incómodos: tempo mostrará que até os mortos hão de mostrar as
grandezas dela e deste recolhimento. Que Rosa lhe dê
"Apartir daí, começou ater algumas locuções sobretudo Jesus, pois Jesus é de Rosa, e o que ela quer, quer Jesus!
na oração mental, sempre aparecendo-lhe vozes que diziam Todos os que forem de Rosa são de Jesus e assim todos os
das virtudes de Rosa, inclusive aparecendo-lhe Santa Te- que forem de padecer e ter cruz, assim o levem com valor
resa, confirmando que lhe desse crédito. Rosa sempre até o Calvário. Se Vossa Mercê cá viesse, saberia as gran-
aparecia na oração mental, sem poder pensar em outra dezas desta Santa Casa, e que pessoas há nela, e de quem
coisa senão na santidade de Rosa, de modo que, após a é Rosa. Faça tudo o que Rosa mandar Vossa Mercê obrar!
leitura do ponto que se devia meditar, se esquecia este E que Deus nos assista;"
totalmente, e todo o tempo da meditação se lhe apresentava
no entendimento a. Rosa, umas vezes vestida com aparatos A própria espiritada encarregava-se de incrementar entre
riquíssimos, outras vezes cercada de luzes e coroada pelos seus amigos o culto à sua pessoa. Numa carta de três folhas, de
anjos, e assim sucedia tanto que se recolhia interiormente 28 de setembro de 1758, manuscrita pela Regente Maria Teresa,
para fazer aquela devoção, de sorte que nem o Rosário de e assinada pela visionária megalomaníaca, assim dizia a seu
Nossa Senhora podia rezar com advertência e'sossego. E ex-senhor:
assim andou algum ano e meio e até que adoeceu e com a
moléstia se lhe foi tirando aquilo do sentido, pois, como ela "Meu querido filho e senhor. Chamo-o de filho, não por
deixou de dar parte do que passava interiormente a Rosa glória de meu coração, senão, por glória do coração de meu
e ao Padre JTran cisco, não obstante persuadi-la estes por Senhor Jesus Cristo e Vossa Mercê me chama de Mãe pelos
muitas vezes, a que lhes desse parte, mas ela se desculpava merecimentos de suas chagas santíssimas. Perguntando
com a tal moléstia." eu ao Senhor se antes todos não eram seus filhos, respon-
deu-me que sim, mas que, pelos pecados que exercitavam,
A santidade, poder sobrenatural e predestinação de Madre nos corações, ficaram longe desta graça, e aqueles que
Rosa tornàram-se uma doentia obsessão dentro desta casa contritos e arrependidos me procurassem por Mãe, que

.- 374 375

j "_•
B!

Perpétua Solenidade, Rio de Celestiais Delícias, Santuário


permitia fazê-los bem-aventurados na glória de seu cora-
de Deus, Terrestre Paraíso, Vinha do Amado, Zona da
ção. E desde esta hora que me fez esta promessa para cá,
Celeste Pureza... Não é para menos que muitos católicos
é tal o fervor e impulso que sente o meu coração e desejo
no Brasil antigo tenham sido denunciados ao Santo Oficio
ardente de ir para esse mundo todo, se me fora possível,
de Lisboa, por terem blasfemado dizendo que 'a vida de
dizer aos maiores pecadores do mundo todo que me tomas-
casado era melhor do que a de religioso'.
sem por Mãe e eu lhes permitia, de parte de Deus, fazer *
«
com eles uma eterna aliança do amor de Jesus, Maria, José,
Santana e São Joaquim para assim, todos, lhe formarmos
uma coroa de glória." *
Notas
Nesta mesma carta, Madre Egipcíaca informa a quantas
andavam as meninas Arvelos e sua fundação:
1. Alacoque, Margarida Maria. Op. cit., 1985, p, 42.
2. Couto, Padre Manoel J. G-. Op. cit., 1884, pp. 72 e ss.
"Minha casa, onde estão os Sagrados Corações, está 3. Regra do Glorioso Patriarca São Bento. Mosteiro de Singeverga:
sempre sendo atacada pelo Demónio, que tem nos homens Edições Ora et Labora, 1951, pp. 17-18.
seus alcoviteiros e mensageiros. Parabéns ao Sr. Arvelos 4. Azevedo, D. Joaquim. Breve Notícia das Ordens Religiosas, Lisboa:
e sua esposa por terem aqui na casa de Deus dois soldados Oficina Simão Tadeu Ferreira, 1790, pp. 383 e ss.
como estrelas do céu, como duas flores do jardim de meu 5. Vaiiifas, Eonaldo. Trópico dos Pecados. Eio de Janeiro: Campus,
coração—que é arnesma coisa que dizer que são do Coração 1990.
de Jesus. Todos que não derem ouvido aos Demónios e
continuarem na fé, e terem a mim por Mãe, permanecendo
nesta verdade, terão a glória, porque esta é a casa da
verdade e sala do desengano. Quanto a mim, estou muito
contente com este pequeno rebanho do Senhor, soldados
em campanha." . •

Chamando seu recolhimento de "casa da verdade e sala do


desengano" nossa santinha insere-se na tradição encomiástica
iniciada por São Paulo, que situa a vida religiosa no ápice do
patamar do caminho para p céu. Eis como, no "Alfabeto dos
Louvores à Vida Religiosa", composto por um certo Monge
Cartuxo, texto do século XVIII, é referido o espaço conventual:

"Arca de..Deus, Banho das Almas, Casa da Sabedoria,


Deserto de Sião, Escola de Cristo, Fornalha do Espírito
Santo, Horto de Delícias, Jardim Perpétuo, Lavatório de
Ovelhas Mais Contritas, Margarida Preciosa, Navio 'do
Instituidor, Oficina de Virtudes, Porta do Céu, Quinta de
m
376
377

m
16

Expulsão do Recolhimento

Não apenas o Padre Francisco, Frei Agostinho, as recolhi-


das e uma dezena de moradores nas Minas Gerais conheciam e
acreditavamjias.yirtudeSj-saíHtidade-e-predestinação-desta ne-
gra que se dizia possuidora do Coragão de Deus. Muitas pessoas
também na cidade do Rio de Janeiro tinham sentido a fragrância
He_sua pretematuxaKdadej-e0nfirmando o dito de seu confessor:
Ç^Rosa tem odor de santidade/!)
Várias testemunhas arroladas em seu processo confirmam
queMadreRosa eramuito conhecidana cidade de São Sebastião.
Morando defronte da Igreja de Santa Rita por mais de dois anos,
Rosa fez muitos conhecidos e devotos, residentes nesta mesma
área, tendo amigos com casas à rua dos Pescadores (hoje Barão
de Inhaúma), àPrainba, à rua da Viola (Teófilo Otoni), à rua da
Cadeia (Assembleia), às ruas Nova de São Francisco, da Alfân-
dega e do Rosário. Um destes mor adores, o Padre Filipe de Sousa,
57 anos, lisboeta, residente então à rua dos Pescadores, criticava
a crendice popular na espiritada, dizendo que, "por suas flccões
e embustes, fazia capacitar a muita gente que seguia os seus
erros e arepresentavapor santa". Conhecendo-a desde os tempos
de Mariana, acusava também o Padre Xota-Diabos de ser "ni-
miamente crédulo em seus embustes, respeitando-a por pessoa
de gran.de virtude". Alguns destes moradores tornaram-se seus
devotos por presenciarem suas diabruras quando possessa pelo
Espírito Zelador dos Templos: falando grosso com voz cavernosa,
caindo desacordada no chão, sempre com o rosário na mão
rezando aos pés dos santos e altares, comungando várias vezes
por semana, vestida de franciscana, avançando brutalmente
contra os irreverentes nos ofícios divinos. Todo este comporta-
mento virtuoso e místico, além do apoio que recebia dos padres
e até do bispo, contribuíam para que mais e mais pessoas a
reputassem como santa. Sua fama corria de boca em boca:

379
Feliciano Joaquim de Sousa, 40 anos, carioca da freguesia da e pretos, leigos e até religiosos. Era certamente a primeira vez
Conceição, administrador do sabão, declarou ter conhecido mui- que se via, no Rio de Janeiro, uma negra vestida de terceira
to bem a africana "que era tratada nesta cidade porQVIadre Rosa"J franciscana andando pelas ruas, hábito idêntico ao da imagem
Contou que, quando vexada, fazia visagens estranhas e que fofa da Rainha Santa Isabel, em cujos pés esta negra mina há pouco
o soldado Francisco Xavier, morador na rua do Hospício dos estrebuchara num de seus raptos místicos. Dois episódios ocor-
Capuchos, quem lhe dissera que "Rosa era criatura de vida ridos no segundo semestre de 1758 tornarão ainda mais pesada
inculpável, pois fazia rigorosas penitências e padecia muitos a cruz, que Rosa disse ter recebido, numa visão, redundando em
vexames do Demónio, que falava em pontos da fé com muita sua trágica expulsão do recolhimento, esta mesma "casa santa"
inteligência, delicadeza e acerto, que escrevia matérias teológi- que com tanto entusiasmo e apoio celestial fundara.
cas com suma profundidade, que tinha muitos e frequentes Este versinho de seu ex-patrão, Frei José de Santa Rita
raptos e êxtases, que neles se participavam mistérios altíssimos Durão, parece ter sido composto para descrever o episódio sobre
e coisas grandes que se haviam de ver paira o futuro". Mais ainda, o qual trataremos a seguir, muito embora a protagonista seja
ao referir-se aseurecolhimento, assegurou que "as outras ordens Catarina de Paraguaçu:
religiosas do Rio de Janeiro em comparação com as recolhidas
do Parto eram como corvos à vista das pombas..." Amava nela o peito valoroso e o génio
Com certeza a imagem fora proposital: o recolhimento dócil que a fé consente,
liderado péla negra travestia-se em abrigo de pombinhas bran- Amor que ocasionou, como é costume
cas, enquanto os tradicionais conventos de frades e freiras, Em algumas, inveja, e noutras ciúme,
Todas à bela dama aborrecendo,
*

ocupados tão-somente por cristãos-velhos que provassem ter
"sangue puro, sem mistura de negro, mulato, mouro ou judeu", Conspiram feras, em tirar-lhe a vida. *'
nas palavras do citado devoto, eram rebaixados e denegridos à
Repetindo também neste detalhe ávida de Cristo, Rosa há
reles condição de urubus...
de ser traída exatamente por duas pessoas de sua intimidade:
Mais de uma dezena de devotos do Rio de Janeiro, admi-
pfSoèiro, por (Maria Teresa do Sacramento, sua secretária,
radores do inigualável curriculum vitae de Rosa Egipcíaca, têm
escriba e regente, e,~5ipõís7 por seu q"UeTido confessor, Frej^
seus nomes arrolados nos processos da santa e de seu exorcista:
Agostinho de São José. Deixemos que a própria delatada nos
os oito membros da família de João Pedroso, velho lisboeta, j ..y..
conte como ocorreu tal episódio, cuja data deve situar-se entre
morador à rua do Rosário, cujas duas filhas, Maria Teresa do
agosto e setembro de 1758, pouco antes do falecimento de seu
Sacramento e Ana Joaquina, viveram recolhidas no Parto, a
orientador espiritual e pouco depois da visão do Juízo Final.
primeira, como regente; o negociante Domingos Lopes da Cunha;
Trata-se de uma visão profética cujos enigmas são decifrados
João Fernandes da Costa, 62 anos, morador à travessa da
pela mesma voz misteriosa que desde os tempos do Inficcionado a
Alfândega; Dona Maria Tecla de Jesus, em casa de quem Rosa
também hospedou-se, logo que chegou nesta cidade; etc,, etc. acompanha.
Sua crescente popularidade, dentro e fora do recolhimento, "Estando em oração, viu diante de si um novelo de linhas
causava inveja, màl^estar e revolta em. muitas pessoas inconfor- de quatro quinas, das quais saíam quatro línguas de fogo.
madas em ver uma reles africana, alforriada há pouco do cati-
Querendo ela fugir daquela visão, lhe disse uma voz: 'o que
veiro, prostituta, também há pouco afastada do lupanar, rece-
vês, naquele novelo de linhas, é o coração de teu padre
bendo provas de tanto respeito e veneração por parte de brancos
confessor atado com aquelas linhas que são enredos, injus-

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