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PRESIDENTE DA REPÚBLICA ADAUTO NOVAES DAVI KOPENAWA YANOMAMI AILTON KRENAK FRANK LESTRINGANT

Fernando Henrique Cardoso CARLOS FREDERICO MARÉS JACQUES MEUNIER MÁRCIO SOUZA PHILIPPE DESCOLA
MINISTRO DA CULTURA
MICHAEL HECKENBERGER PATRICK MENGET JUAN CARLOS ESTENSSORO RONALDO
Francisco Weffort VAINFAS MANUELA CARNEIRO DA CUNHA JOHN MANUEL MONTEIRO CARLOS FAUSTO
SERGE GRUZINSKI PETER GOW PASCAL DIBIE LEYLA PERRONE-MOISÉS CARLOS
FUNDAÇÃO NACIONAL DE ARTE ALB~RTO RICARDO SÉRGIO CARDOSO ALCIR PÉCORA SERGIO PAULO ROUANET
Presidente Márcio Souza
Chefe de Gabinete Maria Regina S. Salles
OLGARIA MATOS MARILENA CHAUI JEAN-MICHEL REY MIGUEL ABENSOUR
DIVISÃO DE ESTUDOS E PESQUISAS
Coordenador Adauto Novaes
Assessores Ãlvaro Mendes, José Jacinto de Amaral e Alfredo Moreira
Secretário Raimundo Roma

Assessores especiais do Ministério da Cultura


Embaixador Wladimir do Amaral Murtinho
Maria Cecília Londres

Agradecimentos
Embaixador Laura Barbosa da Silva Moreira
Tarcísio de Lima F. F. Costa
Maria Lúcia Verdi I AOUTRA MARGEM DO OCIDENTE
Ricardo Ribenboim
Arnaldo Spinel

Lúcia Maria Glück de Camargo, Secretária de Estado da Cultura do Paraná Organização:


Celise Niero
ADAUTO NOVAES
Hermano Shigeru, Ricardo Bello e João Carnavos

Estes textos foram originalmente produzidos para o segundo dos quatro ciclos de confe-
rências Brasil 500 Anos- Experiência e Destino, organizado pelo Ministério da Cultura, através
da Divisão de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte, em novembro/dezembro de
1998, no Rio de Janeiro. Em São Paulo, o ciclo foi feito com o apoio do ltaú Cultural. Também foi
realizado em Salvador e em Curitiba (abril de 1999), através da Universidade Salvador-UNIFACS
e da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná; e em Goiânia, em maio de 1999, com o apoio da
Prefeitura de Goiânia.

MINC- FUNARTE
COMPANHIA DAS LETRAS
l I

Copyright © 1999 hy Os Autores


Capa:
Moema Cavalcantí
Preparação:
Carlos Alberto /nada

Revisão:
Beatriz de Freitas Moreira
A na Maria Barbosa
ÍNDICE

A outra margem do Ocidente - Adauto Novaes .............................. . 7


Dados Internacionais de Catalogação na Puhlicaçào (CIP) Descobrindo os brancos- Davi Kopenawa Yanomami ................. . 15
(Câmara Brasileira do Livro, SP. Brasil)
O eterno retorno do encontro- Ailton Krenak .............................. . 23
A Outra margem do ocidente I organização Adauto À espera do Outro- Frank Lestringant .......................................... . 33
Novaes.- São Paulo: Companhia das Letras. 1<)<-)9.
Da tirania à tolerância - Carlos Frederico Marés ............................. . 53
Vários autores Itinerário de uma criança normanda- Jacques Meunier.. ............ ... . 83
""' 85-7164-920-0
Teatro sem palavras- Márcio Souza............................................... 93
1. Brasil - História 2. Índios da América do Sul - A selvageria culta- Philippe Descola ............................................... 107
Brasil - História 3. Povos indígenas - Brasil 1. Novaes.
Adauto O enigma das grandes cidades - Michael Heckenberger .... ...... ....... 125
99-2856 cnn-980.41
Entre memória e história - Patrick Menget...................................... 153
Índtces para catálogo sistemático:
A política do espírito - Patrick Menget............................................ 167
1. Brasil Índios : História 980.41 O símio de Deus- Juan Carlos Estenssoro ...................................... 181
2. Índios : Brasil : História 980.41
Nossa Senhora, o fumo e a dança- Ronaldo Vainfas ...................... 201
Xamanismo e tradução- Manuela Carneiro da Cunha .................. 223
Armas e armadilhas -John Manuel Monteiro .................................... 23 7
Da inimizade: forma e simbolismo da guerra indígena- Carlos
Fausto ....................................................................................... 251
O Renascimento ameríndio - Serge Gruzinski ................................ 283
A geometria do corpo- Peter Gow .................................................. 299
O erotismo do Divino Marquês da Amazônia- Pascal Dibie .... ....... 317
1999 Essomericq, o venturoso carijó - Leyla Perrone-Moisés ................... 335
Todos os direitos desta edição reservados à A demarcação das terras e o futuro dos índios no Brasil - Carlos
EDITORA SCHWARCZ LTDA. Alberto Ricardo ......................................................................... 351
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 72 Variaçôes em torno da felicidade dos selvagens - Sérgio Cardoso ... 359
04532-002- São Paulo- sP
Cartas à segunda escolástica- Alcir Pécora ..................................... 373
Telefone: (011) 866-0801
Fax: (011) 866-0814 O mito do bom selvagem - Sergio Paulo Rouanet ........................... 41 7
e-mail: editora@companhiadasletras.com.hr Céu de capricórnio e tristeza do Brasil- Olgária Matos ................... 441
.
DESCOBRINDO OS BRANCOS

Davi Kopenawa Yanomami


com Brnce Albert
uma nova linguagem infinitamente mais rica; uma etnologia que, superan-
do esta oposição central em tomo da qual se edificou e afirmou nossa civi-
lização, transformar-se-ia ela mesma em um novo pensamento".
Por fim, qual o estado atual das sociedades indígenas? Ao lado dessa
interrogação, silenciada pelos poderes instituídos, um problema se põe Davi Kopenawa, nascido em 1956, vive na aldeia yanomami de
aos brasileiros. Os Watorild, situada ao pé da serra do Demini( "serra do Vento"), no estado do
Amazonas. Seu grupo de origem foi quase inteiramente aniquilado no alto
rio Toototobi (peno da fronteira venezuelana) por duas epidemias sucessi-
vas após contatos estabelecidos com o Serviço de Proteçào ao Índio (SPJ) e
? com a missão evangélica Novas Tribos do Brasil (NTB) ( 1959-60, gripe[?];
1967, sarampo). Criança, Davi Kopenawa perdeu, assim, a maior parle
dos membros de sua família. Em seguida sofreu, e depois rejeitou, o prose-
litismo dos missionários da NTB, abandonando na adolescência sua
região natalpara trabalhar na Fundação Nacional do Índio(Funaz) como
intérprete. No começo dos anos 80, fixou-se em Watoriki, ali se casando
com a filha do líder da comunidade, xamà renomado que o iniciou e, tra-
dicionalista convicto, permanece seu mentor. Ele é hoje a um só tempo chefe
do posto indígena Demini e um dos mais influentes xamàs de Watoriki.
A invasão de suas terras por cerca de 30 a 40 mil garimpeiros custou a
vida, entre 1987 e 1990, de mais de mil Yanomami no Brasil. Chocado
com essa tragédia que reavivou nele a lembrança das que dizimaram sua
família nos anos 60, Davi Kopenawa engajou-se em uma luta incansável
contra a destruição de seu povo e da floresta de sua terra. Graças a sua
experiência dos brancos e à firmeza intelectual que lhe confere o saber
xamanístico, tornou-se rapidamente o principal porta-voz da causa
yanomami, no Brasil e no mundo. Visitou, ao longo dos anos 80 e 90,
vários países da Europa e os Estados Unidos. Recebeu, depois de Chico
Mendes, o prêmio Globa/500 do Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente e, recentemente, a Ordem de Rio Branco ao grau de cavaleiro.

B.A.

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DOS ESPÍRITOS CANIBAIS crianças!", e tinha muito medo. Por que eles levaram aquelas crianças? Eu
me pergunto isso ainda hoje.
Há muito tempo, meus avós, que habitavam Mõramahi araopi, uma Quando aqueles estrangeiros entravam em nossa habitação, minha
casa situada muito longe, nas nascentes do rio Toototobi, iam às vezes visi- mãe me escondia debaixo de um grande cesto de cipó, no fundo de nos-
tar nas terras baixas outros Yanomami estabelecidos ao longo do rio Aracá. sa casa. Ela me dizia então: "Não tenha medo! Não diga uma palavra!", e
Foi lá que encontraram os primeiros brancos. Esses estrangeiros coleta- eu ficava assim, tremendo sob meu cesto, sem dizer nada. Eu me lembro,
vam fibra de palmeira piaçaba ao longo do rio.' Durante essas visitas nos- no entanto devia ser realmente muito pequeno, senão não teria cabido
sos mais velhos obtiveram seus primeiros facões. Eles me contaram isso debaixo daquele cesto! Minha mãe me escondia pois também temia que
muitas vezes quando eu era criança. Naquele tempo, eles só encontravam os brancos me levassem com eles, como tinham roubado aquelas crian-
brancos ao viajar muito longe de sua aldeia e não iam vê-los sem motivo, ças, da primeira vez. Era também para me acalmar, pois eu estava aterro-
simplesmente para visitá-los. Haviam visto suas ferramentas metálicas e as rizado e só parava de chorar quando estava escondido. Todos os bens dos
cobiçavam, pois possuíam apenas pedaços de metal que Omama deixa- brancos me assustavam também: tinha medo de seus motores, de suas
ra.' Era durante essas longas viagens que, de vez em quando, eles conse- lâmpadas elétricas, de seus sapatos, de seus óculos e de seus relógios.
guiam obter um facão ou mesmo um machado. Trabalhavam então em Tinha medo da fumaça de seus cigarros, do cheiro de sua gasolina. Tudo
suas plantações emprestando-os uns aos outros. Quando um tinha aberto me assustava, porque nunca vira nada de semelhante e ainda era peque-
sua plantação, passava-os a um outro e assim por diante. Eles empresta- no! Mas, quando seus aviões nos sobrevoavam, eu não era o único a ficar
vam também essas poucas ferramentas metálicas de uma aldeia a outra. assustado, os adultos também tinham medo; alguns chegavam mesmo a
Não era para procurar fósforos que iam ver os brancos tão longe, não: romper em soluços, e todo mundo fugia para a mata vizinha! Nós somos
tinham seus paus de cacaueiro para fazer fogo. Evidentemente, eles acha- habitantes da floresta, não conhecíamos os aviões e estávamos aterroriza-
vam as panelas de alumínio muito bonitas, mas tampouco era por isso que dos. Pensávamos que eram seres sobrenaturais voadores que iam cair
faziam aquelas viagens: também tinham vasilhas de terracota para cozi- sobre nós e queimar todos. Todos tínhamos muito medo de morrer! Eu me
nhar sua caça. Era realmente por seus facões e seus machados que iam lembro que também tinha medo das vozes que saíam dos rádios e da
visitar aqueles estrangeiros. explosão dos fuzis que matavam a caça. Perguntava-me o que todas aque-
Mas foi bem mais tarde, quando habitávamos Marakana, mais para las coisas que me pareciam sobrenaturais poderiam ser! Perguntava-me
o lado da foz do rio Toototobi, que os brancos visitaram nossa casa pela também por que aquelas pessoas tinham vindo até nossa casa.
primeira vez. Na época, nossos mais velhos estavam ainda todos vivos e Mais tarde, realmente comecei a crescer e a pensar direito, mas con-
éramos muito numerosos, eu me lembro. Eu era um menino, mas come- tinuei a me perguntar: "O que os brancos vêm fazer aqui? Por que abrem
çava a tomar consciência das coisas. Foi lá que comecei a crescer e desco- caminhos em nossa floresta?". Os mais velhos me respondiam: "Eles vêm
bri os brancos. Eu nunca os vira, não sabia nada deles. Nem mesmo sem dúvida visitar nossa terra para habitar aqui conosco mais tarde!". Mas
pensava que eles existissem. Quando os avistei, chorei de medo. Os adul- eles não compreendiam nada da língua dos brancos; foi por isso que os
tos já os haviam encontrado algumas vezes, mas eu, nunca! Pensei que deixaram penetrar em suas terras dessa maneira amistosa. Se tivessem
eram espíritos canibais e que iam nos devorar. Eu os achava muito feios, compreendido suas palavras, acho que os teriam expulsado. Aqueles
esbranquiçados e peludos. Eles eram tão diferentes que me aterrorizavam. brancos os enganaram com seus presentes. Deram-lhes machados, facões,
Além disso, não compreendia nenhuma de suas palavras emaranhadas. facas, tecidos. Disseram-lhes, para adormecer sua desconfiança: "Nós, os
Parecia que eles tinham uma língua de fantasmas. Eram pessoas da brancos, nunca os deixaremos desprovidos, lhes daremos muito de nos-
"Comissão".'Os mais velhos diziam que eles roubavam as crianças, que já sas mercadorias e vocês se tornarão nossos amigos!". Mas, pouco depois,
as haviam capturado e levado com eles quando tinham subido o rio Mapu- nossos parentes morreram quase todos em uma epidemia, depois em uma
laú, no passado." Era por isso também que eu tinha muito medo: estava outra. Mais tarde, muitos outros Yanomami novamente morreram quando
certo de que também iam me levar. Meus avós já haviam contado muitas a estrada entrou na floresta'e bem mais ainda quando os garimpeiros che-
vezes essa história, eu os ouvira dizer: "Sim, esses brancos são ladrões de garam ali com sua malária. Mas, dessa vez, eu tinha me tornado adulto e

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pensava direito; sabia realmente o que os brancos queriam ao penetrar em procurar ouro, esqueceram sua amizade. Começaram a matar as gentes da
nossa terra. floresta que viviam perto deles.
Nos primeiros tempos, os seres humanos eram muito numerosos nes-
ta terra. É o que dizem nossos mais velhos. Não havia doenças perigosas,
DESCOBRIR O DESCOBRIMENTO sarampo, gripes, malária. Estávamos sozinhos, não havia garimpeiros para
queimar o ouro, fábricas para produzir ferro e gasolina, carros e aviões. A
Os brancos são engenhosos, têm muitas máquinas e mercadorias, floresta e os que a habitavam não estavam o tempo todo doentes. Foi ape-
mas não têm nenhuma sabedoria. Não pensam mais no que eram seus nas quando os brancos se tornaram muito numerosos que sua fumaça-epi-
ancestrais quando foram criados. Nos primeiros tempos, eles eram como demia xawara começou a aumentar e a se propagar por toda parte. Essa
nós, mas esqueceram todas as suas antigas palavras. Mais tarde, atravessa- coisa má se tornou muito poderosa e foi assim que as gentes da floresta
ram as águas e vieram em nossa direção. Depois, repetem que descobri- começaram a morrer. 8 Quando viviam sem os brancos nossos ancestrais
ram esta terra. Só compreendi isso quando comecei a compreender sua não tinham fábricas, caçavam e trabalhavam em suas plantações para fazer
língua. Mas nós, os habitantes da floresta, habitamos aqui há longuíssimo crescer seu alimento. Também não sujavam todos os rios como esses bran-
tempo, desde que Omama nos criou. No começo das coisas, aqui só havia cos que agora procuram ouro em nossas terras.
habitantes da floresta, seres humanos. 60s brancos clamam hoje: "Nós des- "Nós descobrimos estas terras! Possuímos os livros e, por isso, somos
cobrimos a terra do Brasil!". Isso não passa de uma mentira. Ela existe des- importantes!", dizem os brancos. Mas são apenas palavras de mentira. Eles
de sempre e Omama nos criou com ela. Nossos ancestrais a conheciam não fizeram mais que tomar as terras das gentes da floresta para se pôr a
desde sempre. Ela não foi descoberta pelos brancos! Muitos outros povos, devastá-las. Todas as terras foram criadas em uma única vez, as dos brancos
como os Makuxi, os Wapixana, os Waiwai, os Waimiri-Atroari, os Xavante, e as nossas, ao mesmo tempo que o céu. Tudo isso existe desde os primei-
os Kayapó e os Guarani ali viviam também. Mas, apesar disso, os brancos ros tempos, quando Omama nos fez existir. É por isso que não creio nes-
continuam a mentir para si mesmos pensando que descobriram esta terra! sas palavras de descobrir a terra do Brasil. Ela não estava vazia! Creio
Como se ela estivesse vazia! Como se os seres humanos não a habitassem que os brancos querem sempre se apoderar de nossa terra, é por isso que
desde os primeiros tempos! repetem essas palavras. São também as dos garimpeiros a propósito de
Os brancos foram criados em nossa floresta por Omama mas ele os nossa floresta: "Os Yanomami não habitavam aqui, eles vêm de outro
expulsou porque temia sua falta de sabedoria e porque eram perigosos lugar! Esta terra estava vazia, queremos trabalhar nela!". Mas eu, sou filho
para nós.- Ele lhes deu uma terra, muito longe daqui, pois queria nos pro- dos antigos Yanomami, habito a floresta onde viviam os meus desde que
teger de suas epidemias e de suas armas. Foi por isso que os afastou. Mas nasci e eu não digo a todos os brancos que a descobri! Ela sempre esteve
esses ancestrais dos brancos falaram a seus filhos dessa floresta e suas ali, antes de mim. Eu não digo: "Eu descobri esta terra porque meus olhos
palavras se propagaram por muito tempo. Eles se lembraram: "É verdade! caíram sobre ela, portanto a possuo!". Ela existe desde sempre, antes de
Havia lá, ao longe, uma outra terra muito bela!", e voltaram para nós. Na mim. Eu não digo: "Eu descobri o céu!". Também não clamo: "Eu desco-
margem desta terra do Brasil aonde eles chegaram viviam outros índios. bri os peixes, eu descobri a caça!". Eles sempre estiveram lá, desde os pri-
Esses brancos eram pouco numerosos e começaram a mentir: "Nós, os meiros tempos. Digo simplesmente que também os como, isso é tudo.
brancos, somos bons e generosos! Damos presentes e alimentos! Vamos
viver a seu lado nesta terra com vocês! Seremos seus amigos!". Era com
essas mesmas mentiras que tentavam nos enganar desde que também che- O POVO DAS MERCADORIAS
garam a nós. Depois dessas primeiras palavras de mentira eles foram
embora e falaram entre si. Depois voltaram muito numerosos. No come- Quando viajei para longe, vi a terra dos brancos, lá onde havia muito
ço, sem casa nesta terra, ainda mostravam amizade pelos índios. Tinham tempo viviam seus ancestrais. Visitei a terra que eles chamam Eropa. Era
visto a beleza desta floresta e queriam se estabelecer aqui. Mas desde que sua floresta, mas eles a desnudaram pouco a pouco cortando suas árvores
se instalaram realmente, desde que construíram suas habitações e abriram para construir suas casas. Eles fizeram muitos filhos, não pararam de
suas plantações, desde que começaram a criar gado e a cavar a terra para aumentar, e não havia mais floresta. Então, eles pararam de caçar, não

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havia mais caça também. Depois, seus filhos puseram-se a fabricar merca- alimentam, não queremos fábricas, nem buracos na terra, nem rios sujos.
dorias e seu espírito começou a obscurecer-se por causa de todos esses Queremos que a floresta permaneça silenciosa, que o céu continue claro,
bens sobre os quais fixaram seu pensamento. Eles construíram casas de que a escuridão da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas.
pedra, para que não se deteriorassem. Continuaram a destruir a floresta, As terras dos brancos estão contaminadas, estão cobertas de uma fumaça-
dizendo-se: "Nós vamos nos tornar o povo das mercadorias! Vamos fabri- epidemia xawara que se estendeu muito alto no peito do céu. Essa fuma-
car muitas delas e dinheiro também! Assim, quando formos realmente ça se dirige para nós mas ainda não chega lá, pois o espírito celeste
muito numerosos, jamais seremos miseráveis!". Foi com esse pensamento Hutukarari a repele ainda sem descanso. Acima de nossa floresta o céu
que eles acabaram com sua floresta e sujaram seus rios( Agora, só bebem ainda é claro, pois não faz tanto tempo que os brancos se aproximaram
água "embrulhada", que precisam comprar. A água de verdade, a que de nós. Mas bem mais tarde, quando eu estiver morto, talvez essa fuma-
corre nos rios, já não é boa para beber. ça aumente a ponto de estender a escuridão sobre a terra e de apagar o
Nos primeiros tempos, os brancos viviam como nós na floresta e seus sol. Os brancos nunca pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é
ancestrais eram pouco numerosos. Omama transmitiu também a eles suas por isso que eles não têm medo. Seu pensamento está cheio de esqueci-
palavras, mas não o escutaram. Pensaram que eram mentiras e puseram- mento. Eles continuam a fixá-lo sem descanso em suas mercadorias,
se a procurar minerais e petróleo por toda parte, todas essas coisas peri- como se fossem suas namoradas.
gosas que Omama quisera ocultar sob a terra e a água porque seu calor é
perigoso. Mas os brancos as encontraram e pensaram fazer com elas fer- Tradução do francês de Maria Lucia Machado
ramentas, máquinas, carros e aviões. Eles se tornaram eufóricos e se dis-
seram: "Nós somos os únicos a ser tão engenhosos, só nós sabemos
realmente fabricar as mercadorias e as máquinas!". Foi nesse momento NOTAS
que eles perderam realmente toda sabedoria. Primeiro estragaram sua
própria terra antes de ir trabalhar nas dos outros para aumentar suas mer- (1) O rio Aracá é, como o rio Toototohi, um afluente do rio Demini, ele próprio tribu-
tário da margem esquerda do rio Negro.
cadorias sem parar. Nunca mais eles se disseram: "Se destruirmos a terra,
(2) Os antigos Yanomami possuíam fragmentos de facões e de machados muito gas-
será que seremos capazes de recriar uma outra?". tos, que obtinham por um complexo circuito de trocas interétnicas, mas cuja origem atri-
Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto. Algu- buíam a Omama, seu herói cultural.
mas cidades são belas, mas seu barulho não pára nunca. Eles correm por (3) Uma equipe da Comissão dos Limites (csm) subiu o rio Toototobi em 1958-9.
elas com carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Há muito (4) Alusão a uma primeira visita da CBDL ao rio Toototobi, em 1941.
(5) A BR-210 (Perimetral Norte), aberta em 1973-4 e abandonada em 1976, depois de
barulho e gente por toda parte. O espírito se torna obscuro e emaranha-
cortar duzentos quilômetros a sudeste do território yanomami.
do, não se pode mais pensar direito. É por isso que o pensamento dos (6) A autodesignação dos Yanomami- yanornae thepe- significa antes de tudo
brancos está cheio de vertigem e eles não compreendem nossas palavras. "seres humanos", e se aplica também aos outros índios, opondo-se aos animais, aos seres
Eles não fazem mais que dizer: "Estamos muito contentes de rodar e de sobrenaturais e, em certa medida, aos não-índios ( napepé).
voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os Yanomami são (7) Os brancos foram criados por Omama a partir do sangue de um grupo de ances-
mentirosos!". O pensamento desses brancos está obstruído, é por isso que trais Yanomami devorados por lontras e jacarés numa grande enchente provocada pela que-
bra de um resguardo menstrual.
eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até debai- (8) A expressão xawara wakixi("epidemia-fumaça") designa aqui a um só tempo as
xo de suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar. Eles epidemias e a poluição, às quais é atribuída a mesma origem: a fusão do ouro, dos metais
não temem cair no mundo subterrâneo. Porém, é assim. Se os "brancos- e dos carburantes extraídos da terra para produzir as mercadorias dos brancos e abastecer
espíritos-tatus-gigantes" [mineradoras) entram por toda parte sob a terra seus veículos.
para retirar os minérios, eles vão se perder e cair no mundo escuro e podre (9) O universo yanomami compõe-se de quatro níveis superpostos suspensos em um
"grande vazio''. O mundo subterrâneo foi formado pela queda do nível terrestre na aurora
dos ancestrais canibais. 9 dos tempos. É habitado pelos ancestrais Yanomami da primeira humanidade, que se torna-
Nós, nós queremos que a floresta permaneça como é, sempre. Que- ram monstros canibais (os aõpataripe).
remos viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíri-
tos xapiripe, a caça e os peixes. Cultivamos apenas as plantas que nos

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O ETERNO RETORNO DO ENCONTRO

Ailton Krenak

Essa capacidade de projetar e de construir uma interferência na


natureza é uma maravilhosa novidade que o Ocidente trouxe para cá;
mas ela desloca a natureza e quem vive em harmonia com a natureza
para um outro lugar que éfora do Brasil, que é na periferia do Brasil. Uma
outra margem é uma outra margem do Ocidente mesmo, é uma outra
margem onde cabe a idéia do Ocidente, cabe a idéia de progresso, cabe a
idéia de desenvolvimento.

Quando fui convidado a participar desta série de conferências e a


falar sobre o cantata entre as nossas culturas, entre os nossos povos, achei
que seria uma boa oportunidade para reportar algumas das narrativas anti-
gas de muitas das nossas tradições, das diferentes tribos que vivem hoje
nesta região da América que identificamos como o Brasil mas que, natu-
ralmente, bem antes de identificarmos como essa região geográfica do
Brasil, já vinha fazendo história. Os registras dessa memória, dessa histó-
ria, estão tomados de falas, de narrativas em aproximadamente quinhen-
tas línguas diferentes, só daqui da América do Sul. Essas narrativas são
narrativas que datam dos séculos X\!11, XVIII, na língua de alguns povos que
nem existem mais. Desde o século >..'VIII, já eram escritas em alemão, inglês,
e distribuídas na Europa, narrativas muito importantes falando da criação
do mundo, falando dos eventos que deram origem aos sítios sagrados,
onde cada um dos nossos povos antigos viveu na Antiguidade e continua
vivendo ainda hoje. Fico admirado de reconhecermos que em mais de qui-
nhentas línguas e durante aproximadamente trezentos a quatrocentos
anos são divulgados textos, como o texto muito importante que tem o títu-
lo de Xilã Balã. O Xilã Balã é um texto sagrado, que tem tanta importância

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-
para os Maya quanto os textos sagrados da cult~r~ do Ocide~t~, co~o a e estabelecer uma convivência mais verdadeira entre nós. Os fatos e a his-
Bíblia ou o Alcorão. São textos que fundam a trad1çao e a memona- utero tória recente dos últimos quinhentos anos têm indicado que o tempo desse
da cultura que cada uma dessas antigas tradições tem do ser social, da his- encontro entre as nossas culturas é um tempo que acontece e se repete
tória, do mundo, da realidade circundante, e a minha admiração é que es- todo dia. Não houve um encontro entre as culturas dos povos do Ocidente
ses textos maravilhosos já tenham sido divulgados há tanto tempo, e e a cultura do continente americano numa data e num tempo demarcado
mesmo assim a maioria das pessoas continue ignorando essas fontes de que pudéssemos chamar de 1500 ou de 1800. Estamos convivendo com
nossa história antiga. esse contato desde sempre. Se pensarmos que há quinhentos anos algu-
Como essa história do contato entre os brancos e os povos antigos mas canoas apartaram aqui na nossa praia, chegando com os primeiros
daqui desta parte do planeta tem se dado? Como temos nos relacionado viajantes, com os primeiros colonizadores, esses mesmos viajantes, eles
ao longo desses quase quinhentos anos? É diferente para cada uma das estão chegando hoje às cabeceiras dos altos rios lá na Amazônia. De vez
nossas tribos o tempo e a própria noção desse contato? em quando a televisão ou o jornal mostram uma frente de expedição
Em cada uma dessas narrativas antigas já havia profecias sobre a vin- entrando em contato com um povo que ninguém conhece, como recen-
da, a chegada dos brancos. Assim, algumas dessas narrativas, que datam temente fizeram sobrevoando de helicóptero a aldeia dos Jamináwa, um
de 2, 3, 4 mil anos atrás, já falavam da vinda desse outro nosso irmão, sem- povo que vive na cabeceira do rio Jordão, lá na fronteira com o Peru, no
pre identificando ele como alguém que saiu do nosso convívio e nós não estado do Acre. Os Jamináwa nào foram ainda abordados, continuam
sabíamos mais onde estava. Ele foi para muito longe e ficou vivendo por perambulando pelas florestas do alto rio Juruá, nos lugares aonde os bran-
muitas e muitas gerações longe da gente. Ele aprendeu outras tecnologias, cos estão chegando somente agora!
desenvolveu outras linguagens e aprendeu a se organizar de maneira dife- Poderíamos afirmar, então, que para os Jamináwa 1500 ainda não
rente de nós. E nas narrativas antigas ele aparecia de novo como um sujei- aconteceu. Se eles conseguirem atravessar aquelas fronteiras, subirem a
to que estava voltando para casa, mas não se sabia mais o que ele pensava, serra do divisor e virarem do lado de lá do Peru, o 1500 pode acontecer só
nem o que ele estava buscando. E apesar de ele ser sempre anunciado lá pelo 2010. Então eu queria partilhar com vocês essa noção de que o con-
como nosso visitante, que estaria voltando para casa, estaria vindo de tato entre as nossas culturas diferentes se dá todo dia. No amplo evento da
novo, não sabíamos mais exatamente o que ele estava querendo. E isso história do Brasil o contato entre a cultura ocidental e as diferentes cultu-
ficou presente em todas essas narrativas, sempre nos lembrando a profe- ras das nossas tribos acontece todo ano, acontece todo dia, e em alguns
cia ou a ameaça da vinda dos brancos como, ao mesmo tempo, a promes- casos se repete, com gente que encontrou os brancos, aqui no litoral,
sa de ligar, de reencontrar esse nosso irmão antigo. Tanto nos textos mais duzentos anos atrás, foram para dentro do Brasil, se refugiaram e só
antigos, nas narrativas que foram registradas, como na fala de hoje dos encontraram os brancos de novo agora, nas décadas de 30, 40, 50 ou mes-
nossos parentes na aldeia, sempre quando os velhos vão falar eles come- mo na década de 90. Essa grande movimentação no tempo e também na
çam as narrativas deles nos lembrando, seja na língua do meu povo, onde geografia de nosso território e de nosso povo expressa uma maneira pró-
nós vamos chamar o branco de Kraí, ou na língua dos nossos outros pria das nossas tribos de estar aqui neste lugar.
parentes, como os Yanomami, que chamam os brancos de Nape. E tanto
os Kraí como os Nape sempre aparecem nas nossas narrativas marcando
um lugar de oposição constante no mundo inteiro, não só aqui neste lugar TERRITÓRIOS TRADICIONAIS
da América, mas no mundo inteiro, mostrando a diferença e apontando
aspectos fundadores da identidade própria de cada uma das nossas tradi- O território tradicional do meu povo vai do litoral do Espírito Santo
ções, das nossas culturas, nos mostrando a necessidade de cada um de nós até entrar nas serras mineiras, entre o vale do rio Doce e o São Mateus.
reconhecer a diferença que existe, diferença original, de que cada povo, Mesmo que hoje só tenhamos uma reserva pequena no médio rio Doce,
cada tradição e cada cultura é portadora, é herdeira. Só quando conseguir- quando penso no território do meu povo, não penso naquela reserva de
mos reconhecer essa diferença não como defeito, nem como oposição, 4 mil hectares, mas num território onde a nossa história, os contos e as nar-
mas como diferença da natureza própria de cada cultura e de cada povo, rativas do meu povo vão acendendo luzes nas montanhas, nos vales,
só assim poderemos avançar um pouco o nosso reconhecimento do outro nomeando os lugares e identificando na nossa herança ancestral o funda-

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mento da nossa tradição. Esse fundamento da tradição, assim como o tem- pronunciar, não contar o que estava pensando, porque ele tinha o poder
po do contato, não é um mandamento ou uma lei que a gente segue, nos de fazer acontecer as coisas que pensava e pronunciava. Então, Jo-í subiu
reportando ao passado, ele é vivo como é viva a cultura, ele é vivo como num pé de açaí e ficou lá em cima da palmeira, bem alto, e olhou longe,
é dinâmica e viva qualquer sociedade humana. É isso que nos dá a possi- quanto mais longe ele podia olhar, e o irmão dele viu que ele ia dizer algu-
bilidade de sermos contemporâneos, uns dos outros, quando algumas das ma coisa perigosa, então Hi-pí falou: "Olha, lá muito longe está vindo um
nossas famílias ainda acendem o fogo friccionando uma varinha no terrei- povo, são os brancos, eles estão vindo para cá e estão vindo para acabar
ro da casa ou dentro de casa, ou um caçador, se deslocando na floresta e com a gente". O irmão dele ficou apavorado porque ele falou isso e disse:
"Olha, você não podia ter falado isso, agora que você falou isso você aca-
fazendo o seu fogo assim- auto-sustentável.
bou de criar os brancos, eles vão existir, pode demorar muito tempo, mas
eles vão chegar aqui na nossa praia". E, depois que ele já tinha anuncia-
Essa simultaneidade que temos tido a oportunidade de viver é uma do, não tinha como desfazer essa profecia. Assim as narrativas antigas, de
riqueza muito especial e um dos maiores tesouros que temos. O professor mais de quinhentas falas ou idiomas diferentes, só aqui nessa região da
Darcy Ribeiro costumava dizer que a maior herança que o Brasil recebeu América do Sul, onde está o Brasil, Peru, Bolívia, Equador, Venezuela, nos
dos índios não foi propriamente o território, mas a experiência de viver em lembram que os nossos antigos já sabiam desse contato anunciado.
sociedade, a nossa engenharia social. A capacidade de viver junto sem se Os Tikuna têm suas aldeias parte no Brasil e outra na vizinha Colômbia.
matar, reconhecendo a territorialidade um do outro como elemento funda- Os Guarani partilham o território dessas fronteiras do sul entre Paraguai,
dor também da sua identidade, da sua cultura e do seu sentido de humani- Argentina, Bolívia. Em todos esses lugares, áreas de colónia espanhola,
dade. Esse entendimento de que somos povos que temos esse património áreas de colónia portuguesa, inglesas, os nossos parentes sempre reconhe-
e essa riqueza tem sido o principal motivo e a principal razão de eu me ceram na chegada do branco o retorno de um irmão que foi embora há
dedicar cada vez mais a conhecer a minha cultura, conhecer a tradição do muito tempo, e que indo embora se retirou também no sentido de huma-
meu povo e reconhecer também na diversidade das nossas culturas o que nidade, que nós estávamos construindo. Ele é um sujeito que aprendeu
ilumina a cada época o nosso horizonte e a nossa capacidade como socie- muita coisa longe de casa, esqueceu muitas vezes de onde ele é, e tem difi-
dades humanas de ir melhorando, pois se tem uma coisa que todo mundo culdade de saber para onde está indo.
quer é melhorar. Os índios, os brancos, os negros e todas as cores de gente Por isso que os nossos velhos dizem: "Você não pode se esquecer de
onde você é e nem de onde você veio, porque assim você sabe quem você
e culturas no mundo anseiam por melhorar.
é e para onde você vai". Isso não é importante só para a pessoa do indiví-
duo, é importante para o coletivo, é importante para uma comunidade
humana saber quem ela é, saber para onde ela está indo. Depois os bran-
O CONTA TO ANUNCIADO
cos chegaram aqui em grandes quantidades, eles trouxeram também jun-
Na história do povo Tikuna, que vive no rio Solimôes, na fronteira to com eles outros povos, daí vêm os pretos, por exemplo. Os brancos
com a Colômbia, temos dois irmãos gêmeos, que são os heróis fundado- vieram para cá porque queriam, os pretos eles trouxeram na marra. Talvez
res desta tradição, que estavam lá na Antiguidade, na fundação do mun- só agora, ?o século xx, é que alguns pretos tenham vindo da América para
do, quando ainda estavam sendo criadas as montanhas, os rios, a floresta, cá ou da Africa para cá por livre e espontânea vontade. Mais foi um movi-
que nós aproveitamos até hoje ... Quando esses dojs irmãos da tradição do mento imenso. Imagine que movimento fantástico que aconteceu nos últi-
povo Tikuna, que se chamam Hi-pí- o mais velho ou o que saiu primei- mos três, quatro séculos, trazendo milhares e milhares de pessoas de
ro- e Jo-í- seu companheiro de aventuras na criação do mundo tiku- outras culturas para cá. Então meu povo Krenak, assim como nossos
na -, quando eles ainda estavam andando na terra e criando os lugares, outros parentes das outras naçôes, nós temos recebido a cada ano esses
eles iam andando juntos, e quando o Jo-í tinha uma idéia e expressava essa povos que vêm para cá, vendo eles chegarem no nosso terreiro. Nós vimos
idéia, as coisas iam se fazendo, surgindo da sua vontade. O irmão mais chegar os pretos, os brancos, os árabes, os italianos, os japoneses. Nós
velho dele vigiava, para ele não ter idéias muito perigosas, e quando per- vimos chegar todos esses povos e todas essas culturas. Somos testemu-
cebia que ele estava tendo alguma idéia esquisita, falava com ele para não nhas da chegada dos outros aqui, os que vêm com antiguidade, e mesmo

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os cientistas e os pesquisadores brancos admitem que sejam de 6 mil, 8 mil bém no espaço, para ceder lugar a essa idéia de civilização e essa idéia do
anos. Nós não podemos ficar olhando essa história do contato como se Brasil como um projeto, como alguém planeja Brasília lá no Centro-Oeste,
fosse um evento português. O encontro com as nossas culturas, ele trans- vai e faz.
cende a essa cronologia do descobrimento da América, ou das circunave- Essa capacidade de projetar e de construir uma interferência na natu-
gações, é muito mais antigo. Reconhecer isso nos enriquece muito mais e reza, ela é uma maravilhosa novidade que o Ocidente trouxe para cá, mas
nos dá a oportunidade de ir afinando, apurando o reconhecimento entre ela desloca a natureza e quem vive em harmonia com a natureza para um
essas diferentes culturas e "formas de ver e estar no mundo" que deram outro lugar, que é fora do Brasil, que é na periferia do Brasil. Uma outra
fundação a esta nação brasileira, que não pode ser um acampamento, margem, é uma outra margem do Ocidente mesmo, é uma outra margem
deve ser uma nação que reconhece a diversidade cultural, que reconhece onde cabe a idéia do Ocidente, cabe a idéia de progresso, cabe a idéia de
206 línguas que ainda são faladas aqui, além do português. Então para- desenvolvimento. A idéia mais comum que existe é que o desenvolvimen-
béns, vocês vêm de um lugar onde tem gente falando duzentos e tantos to e o progresso chegaram naquelas canoas que a portaram no litoral e que
idiomas, inclusive na língua borum, que é a fala do meu povo, é uma rique-
aqui estava a natureza e a selva, e naturalmente os selvagens. Essa idéia
za nós chegarmos ao final do século xx ainda podendo tocar, compartir
continua sendo a idéia que inspira todo o relacionamento do Brasil com
um elemento fundador da nossa cultura e reconhecer como riqueza, como
as sociedades tradicionais daqui, continua; então, mais do que um esfor-
património. O encontro e o contato entre as nossas culturas e os nossos
ço pessoal de conta to com o Outro, nós precisamos influenciar de manei-
povos, ele nem começou ainda e às vezes parece que ele já terminou.
ra decisiva a política pública do Estado brasileiro.
Quando a data de 1500 é vista como marco, as pessoas podem achar que
deviam demarcar esse tempo e comemorar ou debaterem de uma manei- Esses gestos de aproximação e de reconhecimento, eles podem se
ra demarcada de tempo o evento de nossos encontros. Os nossos encon- expressar também numa abertura efetiva e maior dos lugares na mídia, nas
tros, eles ocorrem todos os dias e vão continuar acontecendo, eu tenho universidades, nos centros de estudo, nos investimentos e também no
certeza, até o terceiro milênio, e quem sabe além desse horizonte. Nós acesso das nossas famílias e do nosso povo àquilo que é bom e àquilo que
estamos tendo a oportunidade de reconhecer isso, de reconhecer que é considerado conquista da cultura brasileira, da cultura nacional. Se con-
existe um roteiro de um encontro que se dá sempre, nos dá sempre a opor- tinuarmos sendo vistos como os que estão para serem descobertos e vir-
tunidade de reconhecer o Outro, de reconhecer na diversidade e na rique- mos também as cidades e os grandes centros e as tecnologias que são
za da cultura de cada um de nossos povos o verdadeiro património que desenvolvidas somente como alguma coisa que nos ameaça e que nos
nós temos, depois vêm os outros recursos, o território, as florestas, os rios, exclui, o encontro continua sendo protelado. Tem um esforço comum que
as riquezas naturais, as nossas tecnologias e a nossa capacidade de articu- nós podemos fazer que é o de difundir mais essa visão de que tem impor-
lar desenvolvimento, respeito pela natureza e principalmente educação tância sim a nossa história, que tem importância sim esse nosso encontro,
para a liberdade. e o que cada um desses povos traz de herança, de riqueza na sua tradição,
Hoje nós temos a vantagem de tantos estudos antropológicos sobre tem importância, sim.
cada uma das nossas tribos, esquadrinhadas por centenas de antropólo- Quase não existe literatura indígena publicada no Brasil. Até parece
gos que estudam desde as cerimônias de adoção de nome até sistemas de que a única língua no Brasil é o português e aquela escrita que existe é a
parentesco, educação, arquitetura, conhecimento sobre botânica. Esses escrita feita pelos brancos. É muito importante garantir o lugar da diversi-
estudos deveriam nos ajudar a entender melhor a diversidade, conhecer dade, e isso significa assegurar que mesmo uma pequena tribo ou uma
um pouco mais dessa diversidade e tornar mais possível esse contato. Me pequena aldeia guarani, que está aqui, perto de vocês, no Rio de Janeiro,
parece que esse contato verdadeiro, ele exige alguma coisa além da von- na serra do Mar, tenha a mesma oportunidade de ocupar esses espaços
ta&~ pessoal, exige mesmo um esforço da cultura, que é um esforço de culturais, fazendo exposição da sua arte, mostrando sua criação e pensa-
ampliação e de iluminação de ambientes da nossa cultura comum que ain- mento, mesmo que essa arte, essa criação e esse pensamento não coinci-
da ocultam a importância que o Outro tem, que ainda ocultam a importân- dam com a sua idéia de obra de arte contemporânea, de obra de arte
cia dos antigos moradores daqui, os donos naturais deste território. A acabada, diante da sua visão estética, porque senão você vai achar bonito
maneira que essa gente antiga viveu aqui foi deslocada no tempo e tam- só o que você faz ou o que você enxerga. Nosso encontro - ele pode

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Q!

começar agora, pode começar daqui a um ano, daqui a dez anos, e ele aquela paisagem linda é dessa mãe que ficou com saudade do filho que
ocorre todo o tempo. saiu para a guerra e que nào voltou, então ficou chorando por ele. Os Ainu
Pierre Clastres, depois de conviver um pouco com os nossos paren- estão lá em Hokaido há mais ou menos uns oitocentos anos, talvez mais
tes Nhandevá e M'biá, concluiu que somos sociedades que naturalmente um pouco, porque eles foram tendo que subir lá para cima, que é o lugar
nos organizamos de uma maneira contra o Estado; não tem nenhuma ideo- mais gelado, liberando aqueles territórios cá de baixo para a formação des-
logia nisso, somos contra naturalmente, assim como o vento vai fazendo ses povos que vieram subindo. O Japão agora no final do século xx é uma
o caminho dele, assim como a água do rio faz o seu caminho, nós natural- das nações mais tecnológicas, digamos assim, do mundo, mas eles não
mente fazemos um caminho que não afirma essas instituições como fun- puderam negar a existência dos Ainu, eles negaram isso até agora. Na
damentais para a nossa saúde, educação e felicidade. década de 70 alguns Ainu conseguiram chegar à comissão da ONU que tra-
Desde os primeiros administradores da Colônia que chegaram aqui, ta desses assuntos e apresentaram uma questão para o governo do Japão:
a única coisa que esse poder do Estado fez foi demarcar sesmarias, entre- querem reconhecimento e respeito pela sua identidade e cultura. Qui-
gar glebas para senhores feudais, capitães, implantar pátios e colégios nhentos anos não é nada.
como este daqui de São Paulo, fortes como aquele lá de Itanhaém. Nossa
esperança é que o desenvolvimento das nossas relaçôes ainda possa nos
ajudar a ir criando formas de representação, formas de cooperação, for-
mas de gerenciamento das relações entre nossas sociedades, onde essas
instituições se tornem mais educadas, é uma questão de educação. Se o
progresso não é partilhado por todo mundo, se o desenvolvimento não
enriqueceu e não propiciou o acesso à qualidade de vida e ao bem-estar
para todo mundo, então que progresso é esse? Parece que nós tínhamos
muito mais progresso e muito mais desenvolvimento quando a gente
podia beber na água de todos os rios daqui, que podíamos respirar todos
os ares daqui e que, como diz o Caetano, alguém que estava lá na praia
podia estender a mão e pegar um caju.
Tem uma música do Caetano, tem uma poesia dele que fala disso, o
nativo levanta o braço e pega um caju. As pessoas estão preferindo em
nome do progresso instalar aquelas casas com aquelas placas luminosas e
distribuir Coca-Cola na praia.

À MARGEM NO ORIENTE

No norte do Japão tem uma ilha que se chama Hokaido, lá vive o povo
Ainu, tem um porto nessa ilha que se chama Nibutani, é uma palavra ainu
que dá nome para esse lugar, assim como aquela montanha bonita lá em
Tóquio, no Japão, o monte Fuji, também reporta uma história muito anti-
ga do povo Ainu, uma história muito bonita, de uma mãe que ficou senta-
da esperando o filho que foi para a guerra e que não retornava, passou o
inverno, passaram as estações do ano e ela ficou cantando, esperando o fi-
lho voltar e o filho demorava demais, então ela chorava de saudade do
filho; as lágrimas dela foram formando aquela montanha e o lago, e toda

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