Você está na página 1de 246

MARIO AUGUSTO POOL

Estampador
Mario Augusto Pool
MARIO AUGUSTO POOL
Preparo de Originais e Revisão
MAIARA ALVAREZ

Comunicação
ANIUSKA VAN HELDEN

Capa
EVELYN ARAÚJO

Projeto Gráfico e Diagramação


JORGE FABIANO MÉNDEZ

Apoio
TÔNIO CAETANO
ARTHUR MENEZES
GUILHERME ROVADOSCHI

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Pool, Mario Augusto


O estampador / Mario Augusto Pool. --
Porto Alegre, RS : Ed. do Autor, 2021.

ISBN 978-65-00-35319-8

1. Ficção brasileira 2. Juventude 3. Racismo


4. Relacionamentos I. Título.

21-90960 CDD-B869.3
Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura brasileira B869.3

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

1º edição
— Novembro 2021 —

Todos os direitos reservado ao autor


/escritormariopool
www.marioaugustopool.com.br
mapool86@gmail.com
(51) 99193.6016
Durante a minha infância, morei numa rua onde,
no seu início, existia uma grande e gigantesca fábrica
têxtil, fundada em 1873, com o nome de “Rheingantz
e Vater”, pioneira no setor da indústria têxtil no sul
do Brasil. Mais tarde, essa fábrica passou a se chamar
“União Fabril” e, por último, “Inca Têxtil”. Minhas
avós haviam trabalhado nesta grande indústria na sua
juventude e, no meu imaginário, o imponente prédio,
que sempre me atraiu, não só pela beleza das suas
linhas arquitetônicas, mas pelo tamanho que ocupava
em uma área nobre da cidade de Rio Grande, sempre
seria o local ideal para uma história de mistério.
Quando estava no 8º ano do ensino fundamental, num
passeio organizado pelo Colégio Santa Joana D’Arc,
onde eu estudava na época, pude entrar pela primeira
vez no interior da tecelagem. Foi um momento mágico
na minha vida e jamais vou esquecer aqueles espaços
imensos repletos de teares e de todas as máquinas que
agora posso mencionar neste livro. O clima da fábrica
Rheingantz, no meu modo de entender, contribuiu
muito para desenvolver histórias e criou um respeito ao
passado que até hoje carrego. Assim, deixo aqui minha
homenagem a todos que participaram da construção e
vida desta importante indústria gaúcha que tanto me
inspirou para criar “O Estampador”.
“Não há nada melhor que a adversidade. Cada derrota, cada
angústia, cada perda contém sua própria semente, sua própria
lição sobre como melhorar sua maneira de agir da próxima vez.”

Malcolm X
Para minha amada filha Helena, pelos seus
posicionamentos sociais coerentes, crítica fiel
e parceira intelectual de nossa família.
APRESENTAÇÃO
Uma cidade, no interior do sul do Brasil, repleta de mistérios
e maldições. Uma história que percorre um tempo longínquo de uma
família que se desenvolveu graças ao racismo estrutural, utilizando a
mão escravizada para o seu crescimento e apogeu.
No início, na praça principal da cidade Alfor, uma estátua do
tataravô escravagista, detona todo o desencadear de ações do jovem
Jorge Fornari para descobrir o maior mistério de sua família.
Na trama Jorginho, é acompanhado de um grupo de jovens,
que se tornam amigos e irão despertar nos leitores grande interesse
pela diversidade que apresentam em gênero, etnia, opção sexual, classe
social e econômica, educação e religiosidade. Os jovens vivem, em
poucas horas, o aprofundamento e questionamento das relações, dos
preconceitos, das experiências diferenciadas de mundo, da busca do seu
Eu mais profundo, quando encontram o medo, a sombra, a vergonha,
o desamor, a pobreza, a violência e se descortina o acolhimento, a
coragem, o afeto, a amizade, a troca e o respeito.
Um grande mistério se apresenta para ser revelado e somente
pela união desses jovens será possível desfazer a cortina de fumaça do
passado.
O Estampador é um livro que traz temas importantíssimos
para a cena literária, como a diversidade, o racismo, a homofobia,
o preconceito em vários formatos, a violência contra as mulheres, o
trabalho escravo e a manutenção do status quo para um segmento da
sociedade que, não importa o século que se viva no Brasil, continua se
mantendo nas posições de poder, muitas vezes às custas do trabalho
forçado e mal remunerado de outras populações.
Na história, o ano de 1920 pulsa nas mentes dos personagens.
O que será que aconteceu nessa data? Um mistério que se repete
atualmente e que insistimos em achar que é fruto de uma história
passada. Infelizmente, o nosso Brasil, assim como na ficção, tem muito
a esclarecer sobre as riquezas geracionais.
A fábrica, na cidade do tataravô de Jorginho, tinha vida própria
e era dona de seus mistérios. Afinal, quantas fábricas temos ainda
escondidas pelo interior do nosso país?
Mario Augusto Pool nos entrega “O Estampador” uma narração
fluída, em que desejamos a cada página desvendar o mistério central,
onde a trama dos jovens amigos nos faz acreditar que as novas gerações
não repetirão os estragos realizados pelas gerações passadas.
Aos leitores, só posso desejar uma boa leitura.

Lilian Rocha
Analista Clínica, Escritora, Poeta e Musicista
Índice

APRESENTAÇÃO...............................................................................................8
PRÓLOGO......................................................................................................... 12
01 – ALFOR....................................................................................................... 17
02 – REALIDADES........................................................................................... 24
03 – MOTIVOS.................................................................................................. 32
04 – PROTESTOS.............................................................................................. 39
05 – SOBREVIVENDO...................................................................................... 47
06 – UM CAMINHO.......................................................................................... 55
07 – A FÁBRICA................................................................................................ 63
08 – O CATIVO.................................................................................................. 69
09 – THOMAS................................................................................................... 75
10 – O PESADELO............................................................................................ 83
11 – UM SUSPIRO............................................................................................. 91
12 – NO ALOJAMENTO .................................................................................. 99
13 – UM PASSADO......................................................................................... 109
14 – REVELAÇÕES......................................................................................... 115
15 – A PESTE................................................................................................... 122
16 – PASSOS NO ESCRITÓRIO..................................................................... 136
17 – POLO........................................................................................................ 148
18 – O INVENTÁRIO...................................................................................... 160
19 – O CONFLITO........................................................................................... 174
20 – VINCENZO.............................................................................................. 186
21 – MADRUGADA........................................................................................ 199
22 – O ESTAMPADOR.................................................................................... 210
23 – O MISTÉRIO DE VINCENZO................................................................. 224
24 – UMA VOZ................................................................................................ 236
PRÓLOGO
O dia recém havia se posto, e as olheiras faziam parte de
cada rosto naquele lugar. Corações e mentes devastados pela rotina
e pelo barulho cortante da repetição. Os movimentos, mecanizados
e fabris, contrastavam com a prostração de semblantes sem
esperança e febris. Não havia escolha: essa era a vida que existia
para se viver.
Senhoras, senhores, moças e rapazes vestiam, logo cedo, um
uniforme puído, cinzento e desbotado e saíam rumo ao conhecido,
vagando como almas penadas em busca dos trocados do sustento
familiar. A jornada era pesada. Dezesseis, dezoito, vinte e, por
vezes, vinte e duas horas em sequência. Tecendo, entrelaçando e
repetindo tudo novamente. Tecendo, entrelaçando e repetindo tudo
novamente. Tecendo, entrelaçando e repetindo tudo novamente.
Como em uma marcha, os passos eram sistemáticos. Não
havia momento para erros ou distrações. Ao entrar na fábrica,
o que se enxergava era a escuridão. A falta de iluminação era o
menor dos problemas. Afinal, talvez, daquele escuro, nascesse
alguma esperança. As mesas contíguas eram a tônica do local.
Todos ficavam lado a lado, separados por baias fechadas até o teto,
deixando no ar uma impressão de estrebaria. Cavalos não devem
olhar para o lado. Trabalhadores não podem olhar para o futuro.

12 | O ESTAMPADOR
A dor de cada um era combustível ao tear. A idosa — que
deixou de sonhar no seu merecido descanso — apresentava o rosto
marcado pelo tempo. O jovem —que deixou de acreditar no mundo
multicolorido — trazia consigo as marcas de uma juventude ainda
não vivida. Os sentimentos se misturavam em meio ao perverso
esquema de trabalho: repetitivo, sistemático e inacabável. Sempre
havia uma nova peça para ser feita. Sempre havia uma hora a mais
de labuta.
O sistema era mecanizado, e, repetidamente, todos
aprendiam o ofício que fazia a cidade ser uma grande potência
têxtil. Não havia espaço para outro meio de vida. A cidade vivia
a tecelagem. Aplausos, palmas e agradecimentos eram recorrentes
para os homens ricos que transformaram o pequeno vilarejo em
uma pujança financeira — e que se tornaram, obviamente, ainda
mais ricos. Aos pobres, apenas a constante benevolência de um
trabalho pessimamente remunerado e sob todos os tipos de
exploração humana.
Aquela não era uma manhã igual à anterior. Havia um clima
diferente no ar. Pesado sempre era. O problema estava na presença
de uma figura mais temida do que respeitada: era o dia de vistoria
da fábrica e da visita de Albernaz. O homem, alto e trajando terno
de linho, bem portado e com uma agressividade no caminhar que
não condizia com sua vestimenta, andava por todo o perímetro da
fábrica. Detestava que lhe afrontassem ou que lhe dirigissem a
palavra. Não penetrava o olhar de nenhum funcionário, tratando
todos com a indiferença dos canalhas. Odiava qualquer tipo de
barulho que não fosse do ato de fiar e tecer. Exalava a rejeição de
uma vida vazia e sem motivações.

O ESTAMPADOR | 13
As mulheres, maioria absoluta na fábrica por conta de sua
dedicação voraz ao trabalho e seu capricho ao tear, deixavam seus
filhos pequenos deitados em pequenos caixotes aos seus pés, na parte
interna da baia. As crianças eram um organismo vivo da fábrica.
Aos seis anos de idade, Albernaz já considerava-os funcionários.
Tinham atribuições iguais aos veteranos do entrelaçamento. Não
havia tempo a perder. A cidade precisava crescer e havia trabalho
para todos. O êxito financeiro, entretanto, só chegava para os
bolsos de quem efetivamente mandava e desmandava nos rumos
da indústria.
Por causa da chuva que assolou a cidade na noite anterior,
o chão da fábrica estava especialmente úmido. As paredes e o teto
apresentavam sinais constantes de mofo. O lugar insalubre fazia
com que funcionários carregassem consigo bactérias e doenças
respiratórias que, dada a falta de tratamento, agiam de forma
fulminante. A rotatividade de trabalhadores na fábrica não se
devia por conta de demissões ou afastamentos. As mortes eram
uma rotina — e a substituição era rápida e prevista, sendo sempre
a próxima geração a assumir a função do finado. Filhos da dor e da
tecelagem, que surgiam e morriam aos montes.
Vincenzo, com seus dez anos, tossia repetidamente
enquanto sua mãe dava pequenos chutes no caixote, com o objetivo
de silenciar o barulho que rivalizava com as pisadas da botina de
Albernaz, andando de um lado para outro em busca de erros e
apontamentos. Ao se aproximar da mulher, Albernaz parou. Ouviu
repetidas vezes um choro agudo, mas abafado, entremeado com
uma tosse seca, mal curada.

14 | O ESTAMPADOR
Aos gritos, mandou a mãe pegar o caixote nas mãos e
entregar a ele. Ela fitou-o nos olhos, algo impensável aos outros
funcionários. Buchichos e comentários surgiram no ar, parando
a dança emudecida do trabalho rotineiro. Ele exigiu novamente.
Ela nada disse, apenas balançou a cabeça negativamente. Albernaz
entendeu que era o momento de demonstrar sua valentia e seu
poder. Ninguém passaria por cima de sua autoridade.
Albernaz não mediu esforços naquele momento. Empurrou
a mãe, com uma violência desproporcional e, com o pé, afastou o
caixote que estava embaixo da baia. Vincenzo estava encolhido
— era muito maior do que a pequena caixa, ainda assim, muito
menor do que deveria ser com sua idade. Ao emergir, passou a
tossir e chorar desesperadamente. As duas coisas se misturavam,
não sendo possível identificar onde a tosse entremeava o choro.
Albernaz removeu o menino da caixa enquanto a mãe implorava
que não o levasse. Não adiantou. Vincenzo se foi rumo à escuridão,
junto de Albernaz.
A mãe, sem forças, não se resignou. Voou em direção aos
dois, pulando em busca daquele que considerava seu bem maior.
Suas mãos focalizaram o pescoço de Albernaz, que rapidamente
se desvencilhou da mulher, dando um tapa em seu rosto e
humilhando-a em meio aos outros trabalhadores. No rosto da mãe,
escorriam lágrimas. No rosto de Albernaz, o sorriso mostrava os
dentes sujos e mal-ajambrados.
Albernaz, com o menino ao seu lado, foi em direção a uma
sala — ainda mais escura que o restante da fábrica. O local era uma
espécie de porão das máquinas de fiar lã. Entre uma aparelhagem
e outra, Albernaz buscou uma corrente e amarrou a criança junto
ao maquinário.

O ESTAMPADOR | 15
Acorrentado, o menino grita, demonstrando desespero. Se
debatendo de um lado para o outro, Vincenzo tenta se soltar — em
vão — do seu aprisionamento. Albernaz, diferentemente do comum
em sua personalidade, olha fundo nos olhos do pequeno rapaz. Sua
sensação é de vitória, de êxito, de contemplação.
A maldade não estaria completa enquanto Albernaz não
deixasse uma marca daquele momento único de prazer e agonia:
toma a mão de Vincenzo próxima à sua, como se fosse um carinho.
Separando um ferro em brasa que está próximo de si, marca a
palma da criança com uma letra P. Aperta fundo e regozija-se. O
grito de Vincenzo torna-se silêncio.

16 | O ESTAMPADOR
01 – ALFOR
Uma hora antes da sua vida virar de cabeça pra baixo, tal
como vivem os morcegos, eternamente pendurados em seu mundo
de escuridão, Jorginho queimava mais um baseado aos pés da
estátua de bronze do seu tataravô, um escravagista conhecido
pela alcunha de Comendador Alencar Fornari e que fundou Alfor
no final do século XIX. O tataravô bélico de Jorginho fora uma
figura polêmica, um sujeito que brigava até com o Imperador,
detestado por todos na mesma medida em que também era temido.
Quando não aguentou mais a resistência dos abolicionistas, decidiu
mudar de ares. Carregou toda a sua família, suas amantes, seus
escravizados e a sua fortuna, bem como a sua aura do mal, e fugiu
para bem longe, para o sul, fundando Alfor, uma cidade marcada
pelo sofrimento, pelo terror e pelo domínio de um senhor que, neste
caso, era ele próprio: o Comendador.
Foi neste cenário que a cidade se desenvolveu. As terras
eram boas para o cultivo do algodão e logo Alencar percebeu ali
uma oportunidade de inaugurar a primeira tecelagem do estado,
tudo ao custo de mortes e trabalho forçado.
Para a família Alencar, a consequência por tantos crimes
veio numa espécie de maldição que perdura até os dias de hoje. Os
filhos deram sequência ao legado do pai, o massacre dos negros
por anos se perpetuou. Com o final da escravatura, os negócios aos

O ESTAMPADOR | 17
poucos foram definhando e a tecelagem faliu. Anos de bandidagem
e exploração levaram à ruína financeira da família, que veio
recheada de desgraças contínuas: suicídios, traições, doenças
fulminantes, assassinatos e uma geração de párias sem ofício
definido para nada. Foi na última geração dos Alencar que nasceu
o pai de Jorginho, Antonio Alencar, outro impregnado pelo DNA
do bisavô e mascarado agora de prefeito da cidade.
Para Jorginho, seus dezenove anos de (in)existência serviam
apenas para demonstrar o seu repúdio e o seu desprezo por toda
essa dinastia. Fumar maconha bem debaixo dos pés do famoso
tataravô foi tudo o que lhe restou, fazia questão de expor para todos
no que havia se transformado o império dos Alencar.
No lado oposto da estátua do comendador, a silhueta de
uma mulher se projetava. O vulto estranho se movia, crescia e, aos
poucos, ia fazendo companhia às costas de Jorginho, sobrepondo-
se à sua sombra.
— Fumando pra esquecer ou pra lembrar o que não pôde
esquecer? — falou a mulher, como se fosse o próprio espírito do
comendador retornando do inferno.
— Opa! Não. Fumando só pra existir. Quer dar um tapa?
— respondeu Jorginho, surpreso com a voz que vinha do além
e estendendo a mão com o cigarro de maconha fumegante que
adocicava o ar.
— Não, cara, meus problemas já existem sem essa merda,
não preciso piorar as coisas — respondeu a voz da mulher, segura
no que dizia.
— Sorte sua — devolveu Jorginho.
— Sorte? O que tu entende por sorte?

18 | O ESTAMPADOR
— Sei lá, não ter que “viajar” todos os dias já é um sinal
de sorte.
— Se, pra ti, sorte se resume a isso, então eu dei muito
espaço pro azar, meus problemas estão bem além de queimar fumo
ou não.
— Não estou certo?
— Não. Tu tá errado. Mas pode ser sobre a minha existência
nesta cidade racista do caralho… — continuou falando enquanto
circulava pelo pedestal da estátua até confrontar Jorginho.
— Humm, você é negra, tá explicado.
— Explicado? Humm, ser negra é merecedora de explicação?
E tu, que é um branco? Provavelmente um branco filho da puta,
qual seria a explicação pra você?
— Opa, foi mal, desculpa, gata! Tô chapado e nunca brigo
com mulheres, só falei porque sei que faço parte da tua história e
de algumas paradas que aconteceram aqui. Qual o teu nome?
— Ana. E o teu?
— Jorge, vulgo Jorginho, “o maconheiro”. Prazer, Ana.
— Fica de boa, já vi gente pior — ela aliviou a conversa,
sentando-se ao lado de Jorginho.
— Faz o que da vida? Trabalha? — perguntou Jorginho
olhando para o lado e admirando a beleza de Ana.
— Trabalhar por aqui? Bah, meu, essa tua erva realmente
te protege do mundo real, né? — riu enquanto fitava ao longe e
mastigava um ramo de palha.
— Falei merda de novo?

O ESTAMPADOR | 19
— Falou. Essa cidade mal tem emprego pra branco, quanto
mais pra mulher e negra. Mas, se eu quiser alguma grana trampando,
talvez eu possa dar o rabo na noite de Alfor, aí tem vaga.
— Já deu?
— Engraçadinho! Não por dinheiro. Eu só estudo, e estudo
em escola pública fodida, faço EJA.
— Estuda na Comendador Alencar Fornari?
— E tem outra escola? — ela fitou Jorginho com os olhos
por cima de um óculos de sol de aros redondos, idênticos ao que
John Lennon usava.
— Tá certo, acho que não.
— Por sinal, aí está ele — Ana apontou para o alto com
o dedo. — O culpado de tudo, velho racista desgraçado. Hoje só
serve pra ser latrina de pombo.
A expressão saíra tão natural que afirmava a efígie do
comendador como a origem de todos os males da cidade, sem
falar no desprezo dos seus moradores. Jorginho não conseguiu se
segurar e começou a rir.
— Gostou da piadinha? — perguntou Ana, admirada com
a reação.
— Não é só isso, gata, o fodido aí de cima é o meu tataravô,
sei bem do que tu tá falando.
— Sério? Ou tá tirando onda com a minha cara?
— Verdade, de boa.
— O que tu tem a ver com o prefeito, então?
— Sou o filho dele.

20 | O ESTAMPADOR
Na hora em que Jorginho revelou a descendência, Ana
soltou um pequeno gemido, fechou os olhos e permaneceu assim
por alguns segundos. Ao abri-los, perguntou:
— Caralho, e agora? O que eu faço contigo? Te dou uma
porrada na cara ou tento outra coisa?
— Bah, gata, sei lá. Se quiser me bater pra se vingar das
putarias da minha família, fica à vontade, não vou rebater. A gente
é tudo fodido mesmo, posso até adivinhar o que você está sentindo.
— Não curto essa parada de “vingança”, penso em justiça,
isso sim.
— Como quiser, tô aqui parado mesmo, pode fazer justiça
do jeito que achar melhor.
— Deixa de ser cretino, guri, não sou nenhuma burra. Dá
pra ver pelo teu estado que tu não faz parte dessas paradas da tua
família, tu deve ser outra vítima deles.
— Bah! Já estamos nos entendendo, valeu — agradeceu
Jorginho irônico.
— Teu coroa é um baita filho da puta, tu sabe disso, né?
— Sei, gata, mas não sou como ele.
Jorginho percebeu que Ana começava a relaxar. Os
interrogatórios são um território esquisito: algumas vezes parte-se
para o ataque frontal; em outras, aproxima-se devagarzinho, com
simpatia, obtendo-se o desejado de modo furtivo. Estava ali um
bom motivo para que ele pudesse se aproximar de alguém com uma
história diferente da dele, mas também com uma porção de marcas,
angústias e coisas mal resolvidas acumuladas ao longo do tempo.
— Te incomoda ser negra?

O ESTAMPADOR | 21
— A mim? Não. Incomoda os outros — ela respondeu com
um sorriso sarcástico.
— Pois me incomoda muito ser desta família. Aos olhos
de todos sou um excluído porque uso drogas e não por ser um
Alencar Fornari. Quem me olha sabe muito bem o que quer ver. Me
condenam por fumar, mas em seguida me perdoam por ser branco
e rico.
— Opa, isso quer dizer que estou em vantagem ainda, pois
tenho apenas dois “problemas” para resolver: a minha cor e a minha
pobreza. Logo, isso me faz ser mais feliz do que você, tá certo?
— Não disse isso, mas não estamos muito longe um do
outro. Qual a vantagem de não ser drogada nesta cidade, quando se
é preta e pobre?
— Porra, tenho que concordar contigo, a hipocrisia e o
racismo estão impregnados até nas paredes deste lugar, nada vai
mudar isso. Talvez eu devesse fumar também, daí o enxoval estaria
completo: mulher, negra, pobre e drogada.
— É, gata, essa conversa só vai ficar pior e mais pra baixo
se continuarmos.
— Está bem, e o que a gente faz agora?
— Preciso caminhar um pouco, quero sair dessa — ele
disse, deixando transparecer um sorriso não só pelo efeito da erva,
mas também pela alegria de conhecer Ana. — Depois que fumo,
fico me odiando e detestando o efeito.
— Então por que fuma?
— Porque é a única coisa original em mim, e isso não
representa os Alencar.

22 | O ESTAMPADOR
— Protestinho medíocre esse teu. Um ator, um cenário, o
mesmo público, o mesmo texto. Porra, isso não melhora a tua vida
em nada.
— Talvez, mas me acalma. Vem! — levantou estendendo a
mão para Ana. — Vai ter protesto contra o meu pai hoje, não perco
isso por nada.
— Você vai se enfiar num protesto contra o prefeito, sendo
o filho dele? Acha que vai sobreviver?
— Talvez não. Como te falei, não brigo com mulheres, eu
só as amo! Mas com os homens é diferente, apanho, mas também
bato. Isso me anima e um dia talvez até me mate.
— Garoto… Tu é mais maluco do que eu imaginei, tu é
autodestrutivo.
— Isso aí, gata, e tu é muito linda, sabia?
— Sai fora, moleque, primeiro aprende a te limpar. Já sou
mulher feita.
Jorginho não conseguiu decifrar as intenções de Ana, mas
não queria perdê-la de vista, isso era uma certeza.

O ESTAMPADOR | 23
02 – REALIDADES
Pequenos grupos nas esquinas, camisetas de partidos
políticos no corpo, faixas enroladas e uma agitação anormal
mudavam o clima e o tom do centro da cidade de Alfor, normalmente
pacato. Deixavam-na com cara de cidade maior, onde aconteciam
movimentos importantes, tipo aqueles que viram notícias no jornal
da noite. Os grupos se entreolhavam. Em meio a sinais, sorrisos e
gestos, uma aglomeração ia se formando aqui, outra ali. Jorginho
e Ana eram observadores do rumo que as coisas estavam tomando,
com certa distância.
Havia um traço na personalidade do Jorginho que, por anos,
o levou a ter reflexos agressivos. Como havia confessado para a
nova amiga, ele gostava de uma boa briga. Às vezes, sentimentos
novos são mais fortes do que os próprios músculos, pensar na
proteção de Ana talvez fosse um desses casos.
Na esquina principal da praça ficava a confeitaria da cidade.
No campo de visão dos dois, podiam dali contar um grupo com
cerca de onze caras vestindo jeans e calças camufladas, tinham
carinha de abastados, mas bastante descuidados com a aparência.
Camisetas de partidos e símbolos anarquistas ostentavam a
ideologia. Havia algo estranho naquele grupo: todos usavam lenços
no pescoço, de diferentes cores e estampas, talvez roubados da

24 | O ESTAMPADOR
avó ou emprestados da mãe. Algo incomum para uma cidade onde
fazia trinta graus à sombra no verão. Outro detalhe que chamou
a atenção de Jorginho estava nas suas mochilas. Tinham as alças
muito esticadas, o que indicava que estavam pesadas.
Em muitas cidades do interior, receber o nome do seu
fundador era algo normal e motivo de orgulho, e, no sul do país,
isso era uma prática bem comum: Tenente Portela, Carlos Barbosa,
Frederico Westphalen e outros mais. Mas, estrategicamente pensado
pelo comendador Alencar Fornari, Alfor era uma combinação das
suas iniciais, o que deixava sua marca, mas não identificava sua
chegada naquela região para o resto do país.
A cidade era rural e pouco desenvolvida, vivia da
monocultura, meia dúzia de ricos fazendeiros para uma população
inteira de pobres. No passado, o ciclo do algodão tinha feito a
cidade crescer, ganhar um comércio, enriquecer os brancos e
sempre acachapar os negros. Hoje, a cultura da soja e da cana
de açúcar havia invadido as plantações com tecnologias e outros
recursos, escasseando de vez os empregos e acabando com o pouco
da distribuição de renda existente. A vida ali era margeada pela
lógica da escassez. A abundância, como de costume, estava na mão
de meia dúzia de famílias, incluindo a de Jorginho.
Já na política, cada prefeito que entrava roubava o que podia
e do jeito que conseguia, piorando ainda mais a situação econômica
da cidade. Seguindo a mesma regra, Antoninho não era diferente
dos seus antecessores, com a agravante de ter acusações por
práticas de trabalho escravo em suas fazendas, tradição herdada do
bisavô. O que o povo do protesto havia descoberto, com certeza, era
maracutaia, coisa séria e errada. A bomba estava prestes a explodir
aos pés de Ana e Jorginho.

O ESTAMPADOR | 25
Na outra ponta da praça, distante do grupo das mochilas e
lenços coloridos, estava o grupo da terra, os colonos e os lavradores.
Esses pareciam mais organizados, vestiam camisetas de cor
vermelha doadas pelo movimento que os representavam. Nas mãos,
portavam as ferramentas de trabalho, que, nesse contexto, perdiam
um pouco essa característica e se transformavam em boas armas.
Facões, foices, gadanhas, enxadas, pás, machados; um verdadeiro
arsenal de “armas brancas”.
Mais ao centro da praça, no outro lado da rua, estava a
sede da prefeitura. Prédio imponente, de linhas clássicas, pintura
quase inexistente e com o aspecto descuidado. Por anos não havia
manutenção ali, mas a contabilidade da prefeitura apresentava um
balancete semestral que justificava as despesas do prefeito, gastos
em obras e manutenções fantasmas despendidas com o prédio.
Aos poucos, via-se também a guarda municipal, que acabava
por trabalhar como uma espécie de milícia do prefeito, saindo para
a rua e formando um cordão de isolamento na frente do edifício.
Controlavam a rua da prefeitura.
— Caraca, Jorginho, esse negócio aqui vai ferver, o que teu
pai fez dessa vez? — falou Ana, sorrindo e balançando a cabeça
pro novo amigo.
— Como tu mesmo já disse, Ana, ele é muito filho da puta,
não tem consciência, não tem noção do que faz. Pra ele, o que é
feito por um Fornari sempre vem em benefício da família, neste
caso, a família é ele e o próprio bolso.
— E a tua mãe, o que diz disso?
— Minha mãe não existe, é uma coitada. Acredita nele e
vive numa bolha. Não sabe sequer quanto custa o batom que usa.
Mas, mesmo assim, é meu único porto.

26 | O ESTAMPADOR
— Teu pai não ralou pra chegar aí, né? Tá na cara — ela
falou olhando fixo para o prédio da prefeitura.
— Tá brincando? Um cuzão, foi estudar na capital, teve vida
de playboy e, quando assumiu as terras da família, nunca mais se
preocupou em ter uma carreira ou outro trabalho. Fez da política
um trampolim pra se dar bem na vida, e, a partir daí, não havia mais
diferença entre o público e o privado. Na cabeça dele, tudo é uma
coisa só, desde que os benefícios cheguem à conta bancária dele.
A julgar pelo tamanho do protesto que se formava, duas
perguntas passavam pela cabeça de Jorginho. A primeira: o que
teria realmente acontecido de tão grave para juntar tanta gente de
grupos diferentes? Estava ficando claro que a organização de tudo
aquilo envolvia não somente a oposição política, pois havia ali
muita gente que não gostava do Antoninho por motivos pessoais e
outros talvez nem conhecessem o sujeito, mas o queriam fora.
A segunda pergunta, bem mais relevante que a primeira,
era: e se o que ele fez foi algo de muito grave? Acima até mesmo
dos padrões “Antoninho”, ou seja, mais consequências na família.
Jorginho passaria a fazer parte dessa conta, e também a sua mãe.
Por mais alienado que fosse, Jorginho não fazia o tipo “depois eu
penso nessa questão”, portanto, tinha que ter em mente um plano
que o protegesse e que desse alternativas pra que saísse dali. Pois
são nessas circunstâncias que, quando tudo explode e o mundo
vem abaixo, nem o cachorro do bandido é poupado. Muita gente o
conhecia.
Outro problema é que ele não costumava fugir das lutas e
brigava por aquilo que acreditava. Como havia dito para Ana uma
hora antes: “Meu pai é um filho da puta, mas eu não”.

O ESTAMPADOR | 27
— Acho que o movimento está aumentando — falou
Jorginho.
— Isso tá com cara de que não vai dar coisa boa.
— Concordo.
— Vamos ficar por aqui, é mais seguro.
— Seguro? Não quero segurança, Ana, quero participar.
— Ficou completamente maluco — censurou a amiga.
— Esse não vai ser o primeiro e nem o último protesto
contra a prefeitura que eu vou participar.
— Bem, dependendo do que descobriram sobre o teu pai,
talvez possa ser o último, sim.
— Que seja, então.
— Como você vai pra casa depois? Pensa.
— Casa? Que casa, Ana? Tô fora de casa faz quase um mês.
— Sério? Tá parando onde?
— Onde me aceitam, até num puteiro já dormi.
— Deve ter gostado desse pouso, né? — ironizou Ana.
— Nada, são minhas amigas. Tá vendo essa marquinha
aqui? — Jorge mostrou um hematoma roxo esverdeado em fase
final de cicatrização no lado direito do rosto.
— O que tem?
— Foi a porrada que levei do meu pai no último encontro,
o que acha?
— Caralho, chegaram a esse ponto…
— Sim.
— O que rolou?

28 | O ESTAMPADOR
— Peguei ele trepando lá na fazenda. Ninguém pode ir lá, e
eu fui, queria conversar com ele e tentar uma trégua.
— Bom, teu pai é um cretino, ter uma amante e trair a tua
mãe não seria uma surpresa pra ti. Por que brigar?
— Porque ele tava com um viado na cama, só isso.
— Cacete? Teu pai é gay?
— Acho que não, mas é um pervertido, quando bebe, sai
da linha.
— E isso te incomodou tanto?
— Não sei, mas fiquei irritado na hora, acertei aquela bixa
com o meu canivete, saiu furado, queria ter socado mais a cara do
puto, mas estava escuro e ele fugiu.
— Você se incomoda com isso, né?
— Com a traição do meu pai? Claro.
— Não, com a homosexualidade.
— Claro que não, eu não ligo.
— Não liga?
— Não.
— Mentira, isso te incomoda e muito.
— Que isso, gata? De onde tirou essa ideia? Recém a gente
se conheceu.
— De onde? Que tal… puto, viado! Qual outro termo?
Aquela bixa?
— Modo de falar.

O ESTAMPADOR | 29
— Ah, modo de falar! Então está tudo bem, que tal me chamar
de negra, macaca, crioula, mulata, morena, negrona, pretinha,
tição. Tudo modo de falar também. Cara, você é preconceituoso.
— Cala a boca, Ana, eu não sou racista!
— Viu? Resposta errada, começou mal, já ouviu falar em
racismo estrutural? Pois é tu nessa fila e nem desconfia. Todo
bêbado diz que não bebe.
— Que merda, tu tá pegando pesado.
— Meu amigo, não existe leveza pra tratar desse assunto,
foram séculos de porrada e sangue para conseguir estar viva aqui
na tua frente. E sem deixar de lado que tu tentou matar uma pessoa,
isso é muito sério, dá cadeia, sabia? Revela o caráter, às vezes.
— Tá bem, acho que tu tem razão, mas não me massacra tanto.
— Humm, já estamos melhorando. Cuidado, garoto, com o
que você fala sem pensar, porque é muito comum se esconder atrás
de um “eu não sou racista” dito sem verdade. Quando tu fuma a tua
maconha e acha que está tudo bem, nem percebe que já tá fazendo
parte de uma minoria. Nesse caso, te chamar de maconheiro, nóia,
drogado, viciado, pé de fumo, pode ser só um modo de falar, o
que acha?
— Tu é foda, hein, gata? Mas tô me acostumando e não
dou mais bola pro que falam. Além do mais, por causa das minhas
“paradas” aqui em Alfor, nunca tive aquela imagem de garoto
bacana de família rica; sou das festas, curto bebedeira, umas
paradas naturais, e muita mina. Vou até o fundo. Tenho certeza
que a minha fama de perdido vai me poupar de ser linchado hoje.

30 | O ESTAMPADOR
— Tá bem, se você acha que tem salvo conduto pra enfrentar
essa turma aí, vai lá e se junta a eles. Eu fico aqui por enquanto.
— Durona, hein! Pensando bem, eu vou dar uma segurada
por aqui contigo.
As palavras de Ana acertaram em cheio Jorginho, como se
alguém tivesse batido com um cabo de enxada no seu plexo solar.
Para Ana, não se fica de braços cruzados quando você ou quem
você gosta está sendo atacado, mesmo que inconscientemente.

O ESTAMPADOR | 31
03 – MOTIVOS
O céu azul e límpido em Alfor ia aos poucos se tornando
alaranjado e anunciando a chegada do final da tarde, a hora em que
todos os fantasmas gostam de organizar as suas farras. Cruzando
o rio Forquilha, no lado sul da cidade, ficava a ponte Intendente
Josué de Assunção, um amontoado de ferro e aço que ligava a
cidade aos campos. Nela havia uma velha placa em letras garrafais
anunciando o seguinte: PLANTANDO E BENEFICIANDO O
FUTURO. Talvez houvesse nisso um fundo de verdade à época da
instalação da placa, lá pelos idos de 1930, quando as fábricas locais
de tecelagem e produção têxtil ainda funcionavam a todo vapor.
Agora não. Alfor era um município que deveria ter sido o maior
da região, não fosse a decadência do setor têxtil na década de 1970
com a chegada das fibras sintéticas.
A primeira fábrica, a maior delas, e que pertencia ao
antepassado de Jorginho, já havia fechado em 1920, o que era um
mistério, pois essa foi a década em que o setor mais se desenvolveu
no Brasil. As demais sobreviveram até a década de 1970. Durante
a ditadura militar, a economia de Alfor deu para trás. O que fez o
município brilhar no cenário nacional no passado eram as vastas
plantações de algodão, a criação de ovelhas e as gigantescas
fábricas de tecelagem.

32 | O ESTAMPADOR
A crise levou famílias inteiras à falência, e muita gente só
se salvou por ter mudado a tempo o rumo dos seus negócios. Hoje,
tudo isso é apenas a lembrança de uma época de prosperidade
suplantada por canaviais, plantações de soja, ruínas das indústrias
do passado, e repleta de políticos tão enganosos quanto o slogan
que se lia na ponte que dava acesso à cidade. Apesar de tudo isso,
Jorginho queria ficar naquele lugar.
Os minutos se passavam e, de onde os dois estavam, podia-
se ver outra massa de pessoas aproximando-se da prefeitura, era o
grupo que representava Jorginho e Ana; tinha gente da faculdade,
da escola e de outras tribos. Os estudantes estavam tomando o seu
espaço, e a coisa toda agora ia ficar quente. Ana e Jorginho já
podiam se aproximar; o time deles entrava em campo. Jorginho
jogou fora a ponta do beck e se arrumou para ir em direção ao
povo. Olhou para Ana e sorriu.
— Sabe, gata, nem perguntei a tua idade.
— Isso importa?
— Não, mas tô te admirando.
— 22, querido, tenho 22 anos.
— Bah! Não parece.
— Tô com cara de velha, né?
— Não disse isso, pelo contrário, tá com cara de linda,
só isso.
— Moleque! Tu nem barba tem, te liga.
— É verdade, tenho 19, mas já sei me apaixonar e deixar
uma mulher fora de si.
— Não me tira! Tu já viu que eu não sou fácil.

O ESTAMPADOR | 33
— Talvez seja isso o que está me encantando, não vou
responder por mim até o fim dessa noite — ergueu levemente as
sobrancelhas para Ana, arrancado dela um sorriso involuntário.
— Vamos embora agitar um pouco, garoto, ver se passa essa
chapadeira toda, tu já tá falando bobagem.
Aos poucos, os grupos estavam se juntando em um só
movimento, e a multidão era grande e forte. Os dois conseguiam
agora ver o que estava escrito nas faixas e placas. Além do comum
“Fora Antoninho”, havia algo mais sério. Coisas do tipo: “ABAIXO
A ESCRAVIDÃO”, “ALENCAR FEITOR”, “MORTE A QUEM
ESCRAVIZA”. Eram os trabalhadores do canavial. Por anos, Jorge
ficou proibido de ir até a fazenda, e, se isso havia acontecido, era
porque algo estava errado e não podia ser visto, principalmente
pelo filho comunista e drogado, como o pai comumente o chamava.
E não era só pelas putarias do pai na fazenda, ter pego o pai com
um homem havia sido um fato isolado. Sentia que a raiva do pai
naquela noite tinha outro motivo.
Bastava somar tudo isso (as agruras, o complexo de
inferioridade, a falta de amor e prestígio na família) para se saber de
qual lado Jorginho se encontrava naquele protesto. Havia um lado
de tristeza e pena e outro de muita raiva, principalmente por saber
que tudo que o pai fazia era premeditado; dos negócios escusos
à traição conjugal. Antoninho planejava cada passo e executava.
E agora eram as denúncias de trabalho escravo na fazenda que
tiravam Jorginho do prumo.
— Vamos embora, gata! — falou em voz alta, puxando-a
pela mão.

34 | O ESTAMPADOR
Já quase chegando à praça, a única viatura da polícia militar
já estava no local. A tensão era grande, em todo lugar o povo se
agrupava. No paço municipal, um cordão de policiais municipais
se formava postado na frente de todos. Pelos lados e por trás, uma
tropa de choque com cassetetes, armas, fuzis e bombas de efeito
moral. Os ingredientes estavam presentes; faltava apenas um chef
para misturar tudo e causar uma grande baderna em Alfor.
A dupla correu para o grupo dos estudantes e ali se sentiram
mais protegidos. No empurra-empurra, Jorginho avistou um rosto
conhecido: era Tainá, uma amiga, outra enjeitada como ele. Óbvio
que ela estaria ali, a catarse da manifestação trazia alívio para os
que se viam como iguais.
Assim que viu Jorginho, sorriu e, ao mesmo tempo, franziu
a testa com um ar de preocupação. Ele sabia no que ela estava
pensando, mas, como diz o velho ditado: Quem está na chuva é pra
se molhar.
— Jorginho! — disse Tainá, com um misto de alegria e
espanto.
— E aí, minha linda, tranquila?
— Tranquila? Tu é maluco, Jorge! Essa porra toda é por
causa do teu pai e tu aqui de boa, como se viesse a passeio!
— Não dá nada, eu ando odiando o seu Antoninho; me bateu
e tô muito puto com ele.
— Como assim, te bateu?
— Não foi nada grave, um socão na cara. Doeu só aqui
dentro — disse batendo no peito.
— Tô sabendo.
— Essa aqui é a Ana, parceira do cacete.

O ESTAMPADOR | 35
— Oi, Ana, tudo bem?
— Tudo, já vi que pensamos igual, o sem noção aqui gosta
do perigo.
— Não dá nada, sem provocações desta vez, juro —
dissuadiu Jorginho beijando os dedos cruzados.
— Mas, mesmo assim, tu não tá seguro aqui, cara, a maioria
não sabe dos teus problemas com teu pai; pra eles, tu é o filho
delinquente, mas protegido.
— Tô sabendo, linda, mas preciso fazer alguma coisa,
senão vou explodir. Tô muito mal, e quebrar tudo aqui hoje vai me
fazer bem.
— Calma aí, moleque, tu acabou de dizer que não vai ter
provocações — ponderou Tainá.
— Menos, meu! Não estamos aqui pra quebrar nada! —
disse Ana, ponderando também.
— Teu pai é um tremendo corrupto, e agora descobriram um
crime lá na fazenda de vocês.
— Tô fora, Tainá, não sou criminoso e nem posso entrar
naquele lugar faz tempos.
— Não estou falando de ti, mas o que viram lá, se
comprovarem, isso vai levar o teu pai direto pra cadeia. Tem mais
de sessenta colonos vivendo e sendo tratados como escravos na
Fazenda Santa Isabel.
— Caralho! Tu tem certeza?
— Bah, onde tu tava? Alienado, né? Matou aula, saiu pra
fumar um e comer alguém e não sabe de nada!
— Opa! Só matou aula e fumou um — falou Ana.

36 | O ESTAMPADOR
— Bah, Tainá, me julgando? Me conta! Sério? Como
descobriram?
— Foi um piá que conseguiu fugir e chegou aqui na cidade
todo fodido. Tava desidratado, com febre, desnutrido e quase
morrendo.
— Porra! Esse cara não vale o ar que respira! Que filho da
puta! — Ana não se conteve.
— Pior! Pra azar dele, o menino caiu desmaiado no jardim
da casa dos Sampaio, aí tu já viu! — exclamou Tainá. — Na toca
do inimigo.
— E o cara, tá bem? — perguntou Jorginho, preocupado.
— Parece que sim, mas está no hospital. O delegado Aldair
conversou com ele e ficou sabendo de tudo, mas esse é outro que
não vale o que caga. Foi direto na prefeitura pra fazer acordo com
o Antoninho.
Saber com mais exatidão o motivo do protesto ia deixando
Jorginho com mais raiva do pai e também preocupado com a nova
amiga. Ana não era nada doce. Pelo pouco que falaram, sua história
de vida parecia ser bem complicada, com muitas injustiças e maus
tratos, inclusive da própria família. Estar naquele protesto era um
tônico pra que ela pudesse fazer justiça pelos outros, isso aliviava
a sua alma; não se podia esperar de uma jovem com esse histórico
alguma compaixão com racistas e escravagistas. Ficaram os três se
olhando por alguns segundos e logo perceberam que o que estava
por vir seria muito intenso, um caso de polícia em que a própria
polícia estava no lado errado.
— E agora, Tainá, o que tá rolando? — indagou Jorginho.

O ESTAMPADOR | 37
— Agora os Sampaio convocaram todo mundo, a viúva do
Hermelino Sampaio pediu a guarda provisória do menino e quer
todos na cadeia, o promotor está do lado dela. Vai ser foda, mas
talvez mude alguma coisa pra melhor dessa vez.
Jorginho percebeu então que era um momento especial,
precisava confirmar alguns pactos e agregar o pouco que lhe
sobrava de amigos verdadeiros em Alfor. Tainá talvez fosse uma
das últimas desse time, mas agora ele também tinha Ana. Não
teve dúvida, era aquele o momento que precisava para saber o que
ela realmente pensava sobre ele. Segurou-a pelos ombros e olhou
fundo nos seus olhos, em seguida perguntou o que tanto o estava
incomodando:
— Toda essa droga com meu pai tá batendo direto em mim;
por que tu ainda tá aqui comigo? — perguntou com o olhar fixo.
— Tá preocupado, né, moleque? Preocupado com o que eu
possa pensar de ti, mas já te falei isso há pouco. Tu é diferente, tu
sabe disso. Tenho certeza que já passamos por coisas parecidas,
nossas famílias não nos merecem, é isso o que eu penso.
Jorginho esfregou os olhos e sorriu. Tentou abraçá-la, mas
não foi correspondido, Ana ainda não estava pronta.

38 | O ESTAMPADOR
04 – PROTESTOS
O relógio marcava dezoito horas e os primeiros gritos
iniciavam. Ao ritmo de “Cadeia pro Antoninho”, os protestos
destoavam muito dos anteriores, quando se lia apenas “Fora
Antoninho”. Havia raiva. Desta vez, tudo poderia sair de controle,
virar um campo de batalha.
Dito e feito: do nada, alguém gritou e deu início a uma
correria. Os parceiros das calças camufladas se aproximaram, mas
agora com os seus lenços de pescoço envolvendo o nariz e a boca,
as mochilas estavam abertas. Como Jorginho já desconfiava, de
dentro delas tiraram algumas garrafas com combustível e buchas
de pano. Num gesto repentino, os coquetéis molotov foram jogados
contra a entrada principal da prefeitura. A guarda municipal
recuou e, entre chamas e estampidos de tiros de borracha, a
multidão avançou quebrando vidros e biombos que separavam
o átrio do salão principal da prefeitura. Do alto das escadarias
internas do prédio, um grupo de policiais atirava bombas de efeito
moral. Confusão geral: gritos, correria, pessoas caídas no chão,
pisoteamento e medo.
Jorginho puxou Ana por um dos braços para tentar tirá-la
dali, o protesto já havia saído do limite mínimo de segurança, dali
pra frente, sair ferido ou até morto seria algo provável, apenas uma
questão de tempo e permanência. Ana não se mexia, Jorge se virou

O ESTAMPADOR | 39
para ver o que acontecia, foi quando viu que, do outro lado, havia
um sujeito fazendo o mesmo, puxava Ana em sentido contrário ao
dele, e a pobre estava crucificada entre os dois.
De onde estava, Jorginho impulsionou e arqueou a perna
direita, estendeu o joelho para trás e chutou com força o peito do
sujeito engomadinho. O rapaz, com os olhos esbugalhados, foi
caindo aos poucos numa cena de câmera lenta. Ana se virou e
olhou para Jorginho com a mesma fisionomia de espanto, estava
incrédula. Jorginho percebeu então que tinha feito bobagem; tarde
demais, o cara foi ao chão de costas e largou a mão de Ana. Não
havia mais o que fazer.
— Tu tá maluco, Jorginho? — falou Ana aos berros. —
Que porra é essa que tu fez, cara? Eu conheço ele — continuou
indagando e massacrando o amigo com os olhos bem abertos e o
dedo enfiado na cara de Jorge.
— Foi mal! Só queria te proteger.
— Porra! A Tainá falou que o movimento era pacífico! Aí tu
vem e bate no meu amigo!
— Pô, gata, foi mal, foi mal! Ainda tô meio chapado.
— Gata o caralho, vê se cresce, meu!
Ana soltou a mão de Jorginho e correu em direção ao
engomadinho estatelado no chão. Se abaixou e socorreu o amigo.
Jorginho ficou quieto, parado, assistindo àquela cena.
— Oi, Polo, te machucou? — perguntou Ana, com o olhar
de meia culpa.
— Nada, não, Ana, só esse idiota que partiu pra cima do
nada. Tu conhece?

40 | O ESTAMPADOR
— Sim, é meu amigo, mas tá alterado, fica de boa com ele,
depois te explico.
— Merece umas porradas, isso sim.
— Ele não sabia que éramos amigos, estava me protegendo
e acabou te batendo — explicou.
O tumulto era geral e a pancadaria estava aumentando. Eles
não tinham muito tempo por ali; o jeito era correr e encontrar um
lugar pra se abrigar. Jorginho foi na direção do engomadinho e
estendeu a mão.
— Desculpa, cara! Não sabia que vocês se conheciam.
Pensei que tu fosse machucar a Ana.
Por alguns segundos, ficaram se olhando, até que o cara
estendeu o braço. Jorginho puxou-o com força e tirou-o do chão.
Ainda indignado e mexendo muito com a cabeça para os lados,
o cara tinha cabelo baixinho e desenhado, sobrancelha marcada,
corpo definido e banca de skater rico. Dava pra ver que era mais
forte do que Jorginho, roupa transada e boné bacana completavam
o estilo. Se espanou um pouco e veio com o verbo solto.
— Mano, agiu certo, viu! Porque eu ia encher essa tua
cara de porrada. Nunca mais encosta em mim, não curto apanhar,
geralmente sou eu quem bate.
Ana, que estava entre os dois, interveio rapidamente.
— Ok, ok! Vamos deixar essa testosterona toda dentro da
cueca, aqui ninguém bate em ninguém, vamos sair e esperar que
esta merda acalme.
Polo consentiu, mas antes de fazer o que a amiga havia
pedido, olhou para Jorginho e disse:
— Tu tem mais sorte do que juízo, viu, engomadinho!

O ESTAMPADOR | 41
“Engomadinho?”, pensou Jorginho, “Eu achando que ele era
o engomadinho, e o cara me saia com essa!”.
Protesto em cidade pequena tem as suas características.
Difere um pouco dos movimentos organizados na capital. Tudo
parece ser mais tosco, e os imitadores se valem do momento para
tentar se fantasiar de alguma coisa vista na TV, até porque boa
parte jamais havia protagonizado algum movimento de rua.
Naquela tarde em Alfor, a ideia de ser um black bloc do
interior incitava a turma do lenço no pescoço, mas isso só seria
possível se algumas coisas pudessem ser adaptadas. Com óleo
diesel roubado de algum trator e algumas garrafas descartadas,
foi possível fazer os coquetéis molotov, mas com o inconveniente
de que o explosivo caseiro, além de feder bastante, fazia muita
fumaça. Em pouco tempo, a praça inteira estava envolta numa
nuvem escura, pior que pneu queimado, ninguém mais sabia para
onde correr.
Além da gritaria histérica e da correria sem rumo, tudo
se misturava com os gritos dos militantes que pediam a morte do
Antoninho.
Jorginho queria proteger Ana. Saiu abraçado com ela. Polo
e Tainá procuravam também se afastar dali. Movida por um reflexo
de proteger o amigo, Ana teve uma daquelas atitudes que você faz
na hora do tumulto e da pressão, mas não pensa nas consequências.
No meio da rua, ela encontrou uma máscara, a representação de
Guy Fawkes no filme V de Vingança, caída no asfalto. Sem hesitar,
pegou o disfarce e enfiou na cara do amigo.
— Toma, Jorge, põe este negócio, assim ninguém te
reconhece.

42 | O ESTAMPADOR
— O quê? Tu tá doida? Não curto isso — ele reclamou
afastando a máscara com uma das mãos.
— Quer morrer? Cara, tu vai ser linchado se te virem por
aqui, isso aqui tá fora de controle e, se mais gente souber que tu é
o filho do prefeito, tu tá fodido, meu!
— O quê? Fala sério! — exclamou Polo, mudando a
fisionomia de baby face para o modo bad boy. — Esse cara é filho
do Antoninho? E vocês andam com ele? Bah, meu, agora mesmo
é que tu vai apanhar, e vai ser de mim, seu palhaço cretino! Odeio
teu pai e tudo que ele me fez.
Polo partiu pra cima de Jorginho com o punho cerrado. Ana
saltou entre os dois e interveio mais uma vez.
— Porra, chega! Depois vocês resolvem isso, mas não aqui!
— exclamou com força. — Vamos sair desse lugar, dá pra ser?
— Falou, amiga, tô contigo — concordou Jorginho.
Em seguida, ele enfiou a máscara na cara e não questionou
mais, a fumaça estava sufocando. Todos precisavam sair dali.
Correram os quatro em direção à rua lateral da prefeitura;
era o lugar menos tumultuado e mais seguro. Passando pelo prédio,
puderam se abrigar na rua paralela à praça. Tudo estava fora de
controle, alguém poderia se machucar, era um local de guerra. Na
frente deles, surgia outro cara, bem no meio do caminho. Estava
catatônico, tinha um olhar ausente que não divisava nada, perdia-se
ao longe. Visivelmente transtornado, o cara estava em pé, imóvel.
Os quatro, sem entender o que era, pararam e aguardaram por
algum movimento do sujeito, ele poderia estar armado. Mas, para
a surpresa do grupo, o moleque foi aos poucos virando os olhos
para cima até ficar totalmente com a córnea branca. Em seguida,

O ESTAMPADOR | 43
foi caindo para trás e chegou ao chão, batendo com a cabeça na
calçada.
Os quatro se entreolharam. Ana saltou na frente para acudi-
lo. Segurando a cabeça do desmaiado, chamou os outros gritando.
— O cara desmaiou aqui! Alguém ajuda?
— Que merda foi essa? Quem é esse cara? — perguntou Polo.
— Sei lá. Só vi ele caindo. Ajuda aqui, levanta a cabeça
dele, Jorginho.
— Segura pelos braços que eu seguro pelas pernas. Vamos
tirar ele daqui — disse Polo.
Naquele primeiro momento, Jorginho se aproximou e
começou a rir da situação.
— O sujeito vem a um protesto pra desmaiar, que louco isso!
Por alguns instantes, se sentiu diferente daqueles quatro;
talvez pelo efeito inconsciente da máscara.
— É assalto! É assalto! — brincou Jorginho em pé, apontando
com o dedo para os três que estavam ajoelhados socorrendo o
estranho.
Polo e Ana começaram a arrastar o sujeito desmaiado para
fora do protesto, enquanto Jorginho continuava achando graça da
situação.
— Porra, Jorge, para de onda e vai até a prefeitura, pede
ajuda! O cara não tá respirando bem, vai lá, meu! — gritava Ana.
— Chama alguém aqui! Eles te conhecem, traz um carro.
— Eu tava brincando!
Percebendo que poderia ser sério, Jorginho saiu apressado
para o lado oposto do grupo, em direção à prefeitura. Um dos

44 | O ESTAMPADOR
lados do prédio ficava próximo da rua lateral, ele sabia de uma
entrada dos servidores onde havia sempre alguns seguranças que
o conheciam. Acelerou o passo e correu até a porta lateral. Porém,
um som estranho invadiu o tumulto.
Tiros foram disparados de dentro do salão da prefeitura,
já tomado por manifestantes. A correria foi geral. Aumentou a
gritaria e outro tumulto se iniciou. Uma onda humana correu para
fora do prédio. Os seguranças, também assustados, tiraram suas
pistolas do coldre e começaram a apontar para qualquer um que
viesse na sua direção. Mais pânico ainda, quem via uma arma na
frente corria e gritava mais alto.
Jorginho entrou correndo na porta lateral da prefeitura e se
deparou com um segurança de arma em punho.
— Vem comigo! Vem! Vem me ajudar! Preciso de ti, vem
depressa!
Mas Jorginho percebeu que o sujeito estava mais assustado
do que ele, continuava apontando a arma e cada vez ficava mais
tenso, com seu braço rígido na direção dele e dedo no gatilho.
— Cara, abaixa essa arma e vem aqui, porra!
Foi aí que se lembrou que ainda vestia a máscara.
— Puta que pariu!
Era tarde demais. Sentiu uma queimação forte no braço
esquerdo, quase perto do ombro. No exterior do músculo, algo
queimava, e logo veio uma dor ulcerante. Olhando para o segurança,
viu o seu rosto parado, assustado, olhos em estado de pânico. O
cara tremia da ponta do cano da arma ao dedão do pé. Imóvel,
demonstrava o despreparo e a dúvida sobre o que acabara de fazer.

O ESTAMPADOR | 45
— Caralho, meu! Tu atirou em mim?
Jorginho segurou o braço atingido com a mão esquerda,
girou o corpo em meia volta e correu para fora do prédio. Podia
sentir o sangue ainda quente fluindo entre os seus dedos. Não
pensava em outra coisa a não ser em voltar para Ana, Tainá e os
dois carinhas, não tinha mais alternativa, era estar com eles ou
ficar escondido em outro lugar.

46 | O ESTAMPADOR
05 – SOBREVIVENDO
Parte da consciência de Jorginho o recriminava pela
estupidez de partir para cima do segurança sem ter nenhuma
garantia. No entanto, outra parte, bem maior, já havia entrado no
modo sobrevivência. Mesmo em brigas aparentemente mais bobas,
seja em um bar ou em um jogo de futebol, a adrenalina de Jorginho
ia às alturas.
A cena começava a ficar trágica: o estudante desmaiado no
chão, de olhos fechados; Ana com cara de assustada; Tainá sem
saber muito bem o que fazer; Polo tentando acalmar as duas. Foi
então que Jorginho conseguiu se aproximar dos três, ensanguentado
e com muita dor. Polo viu o ferimento e ficou mais nervoso.
— Cara, o que foi isso? E esse sangue?
— É meu — respondeu Jorginho — Fui baleado.
— Fodeu! — falou Polo, suspirando fundo.
— Vamos sair daqui agora de qualquer jeito.
— Concordo — respondeu Ana, já levantando e ajudando a
arrastar o desmaiado.
O grupo, agora de cinco, foi se afastando da praça como
podia. Uns se apoiando nos outros e Polo com o cara desmaiado
em seus braços. Aos poucos, as quadras da prefeitura ficaram para

O ESTAMPADOR | 47
trás. Seguiram caminhando sem rumo certo, a prioridade era sair
da zona de conflito.
No caminho, perceberam algumas câmeras de segurança
pelo trajeto. Ninguém sabia a história que seria inventada para
justificar os tiros. Os cinco poderiam ser reconhecidos como os
baderneiros.
Fora do tumulto da praça, pararam para descansar e tentar
recobrar os sentidos do desmaiado, não dava mais para carregá-lo
nos braços.
— A gente precisa voltar lá. Eles não podem meter bala na
gente assim, ainda mais sem motivo — falou Ana.
— Cara, agora não dá. Ninguém viu quem atirou. E a gente
tem que tirar essa bala do braço do “primeiro-filho” aqui — falou
Polo rasgando um pedaço da camisa e improvisando um torniquete
para o braço de Jorginho.
— Primeiro-filho?
— Bom… se quiser, posso te chamar de primeira-dama —
ironizou Polo.
— Tá sangrando muito. Deixa eu ajudar, já fiz um
treinamento de primeiros socorros — rogou Ana.
— E quanto ao “Ken na caixa” aqui, qual será o nome dele?
— perguntou Tainá tentando acudir o desmaiado.
— Esse é o pior momento para apresentações. Mas é uma
boa pergunta, quem será o bonitinho aí? — perguntou Polo.
— O cara apagou, meu — falou Jorginho.
— E tu, primeiro-filho, teu nome é Jorginho ou é fake?

48 | O ESTAMPADOR
— Que tal me chamar de Jorge?
— De boa, velho, eu sou o Polo. Eu jurava que quem tomava
um tiro morria na hora. Pelo o que eu tô vendo, não é bem assim.
Filho do Antoninho não morre nem baleado! Era o que faltava na
família, um vampiro!
— Que porcaria de nome é Polo? Tipo Polo Aquático? —
provocou Jorginho.
— Polo é o apelido de Apolo, entendeu? O deus da juventude.
— Não acredito, velho, tu te acha um deus?
— Ainda não, sou trainee, tô quase lá.
— Bom, acho que, com essa compressa aqui, a gente
consegue te deixar estável por um tempo. Vamos te levar pra um
hospital — sugeriu Ana.
— Não, não. Melhor não — afirmou Jorginho. — Eu aguento.
Movimentando as pernas e os pés com pequenos impulsos, o
estudante desmaiado aos poucos foi recobrando os sentidos. Mexeu
a cabeça, abriu os olhos e foi observando todos os lados. Percebeu
que não estava sozinho, que já era noite e que se encontrava ainda
na rua, deitado na calçada e cercado de um bando de estranhos.
— Cristo, senhor meu, onde eu tô? Quem são vocês? O
Antoninho caiu?
A risada foi geral.
— Meu irmão, quem caiu foi tu. Desabou, sabe? Fala aí
teu nome.
— Thomas.
— Thomas? Porra, outro nomezinho do cacete ! Tu “tomas”
o que? — zoou Polo.

O ESTAMPADOR | 49
— Eu não lembro o que houve. Acho que tinha muita gente.
Eu sou asmático, começou a vir uma fumaça e aí deu problema.
— Tu quer dizer merda, né? — retrucou Ana
— Esse cara tomou um tiro? — falou Thomas olhando para
o braço de Jorginho. — Eu também tomei um tiro? Minha mãe vai
me matar se souber que eu tomei um tiro.
— Deixa de ser criança — falou Tainá dando um tapa na
mão de Thomas. — Não aconteceu nada. Tu só desmaiou. O único
que tá ferrado aqui é o Jorginho. Vamos pro hospital, então?
— Não ouviram o que eu disse? Eu não vou pra hospital
nenhum!
— Tá, e a gente vai fazer o que contigo? Te largar na rua?
— sugeriu Ana irritada.
— Olha, eu não sei quem são vocês, mas não é certo deixar
ele aqui, no meio do nada e ferido, isso não é cristão — falou
Thomas.
— Cristão? Que conversinha. Deixa esse babaca aí, já que
ele aparentemente tá vivo. Vamos voltar na prefeitura e ferrar o
imbecil desse prefeito. Deve ter sido ordem dele disparar na gente,
ou melhor, no próprio filho — sugeriu Polo.
Foi quando um celular tocou.
— Porra, é o meu celular, alguém pega aqui no meu bolso,
por favor? — pediu Jorginho.
***
— Eu tô bem, mãe. Tô bem. Tô ainda na escola, tenho
treino, claro. (…) Protesto? Nem sabia. (…) Deram tiro? Caramba!
Mas machucaram alguém? (…) Ah, um moleque mascarado. Black

50 | O ESTAMPADOR
bloc que se diz, né? Achei que não tinha isso aqui. (…) Tá bem.
Mais tarde te ligo. Te amo.
— Tá maluco? Por que você mentiu pra sua mãe? E tu é
filho do prefeito mesmo? — perguntou Thomas.
— Cara, já vi que você, além de bonitinho, é bem família,
né? Fico pensando o que tu fazia em um protesto. Eu não tenho
escolha. Vou ter que fugir — completou Jorginho.
— Tu não tá falando coisa com coisa — advertiu Ana.
— Pensa nos últimos instantes: tu tava em um protesto, acabou
batendo em um cara mais forte, sorte que era meu amigo, e ainda
tomou um tiro no braço. E agora tá falando em fugir?! Esse tiro
pegou na tua cabeça?
— Então deixa eu me apresentar pra quem ainda não sabe
quem eu sou: Jorginho Alencar, filho do...
— …prefeito! — completou Tainá.
— Bah, é filho dele mesmo — assentiu Thomas.
— Prefeito ladrão e pervertido — seguiu Polo.
— Como tu sabe que ele é um pervertido? — questionou
Jorginho.
— Deixa pra lá, qualquer coisa que eu falar mal do teu pai
pode ser uma possibilidade.
— Então não vai rolar voltar pra lá hoje, me deixem em
qualquer lugar. Eu me escondo e amanhã resolvo os meus problemas
com meu pai, com a família e o mundo, pode ser?
Passava das vinte horas e o grupo continuava caminhando,
iam ficando mais distantes do centro da cidade. Quietos, sem falar

O ESTAMPADOR | 51
muito, seguiam sem rumo. Em algum momento, o silêncio atiçou
a mente de Jorginho que involuntariamente começou a lembrar e
a pensar em tudo que havia acontecido naquela última hora. Qual
seria seu papel nisso tudo? O protesto, o desmaio, a briga, o tiro, o
filho do prefeito envolvido e baleado. Todos os ingredientes de uma
união improvável.
A luz do dia fora embora, agora era a vez da noite e das suas
incertezas. Durante a fuga, passaram por um bar, desses de tomar
cachaça em pé na beira do balcão. Ali tinha um rádio transmitindo
uma entrevista em que o prefeito, ensandecido e querendo se livrar
da responsabilidade dos tiros, incitava toda população contra
o grupo dos quatro baderneiros. Era assim que estavam ficando
conhecidos. Pararam por algum tempo e escutaram a entrevista
de ouvidos atentos no aparelho. O discurso era um tanto curioso e
inverídico, o prefeito desviava o assunto e incriminava-os, criando
uma nova interpretação dos fatos.
— A Prefeitura Municipal de Alfor não vai medir esforços
até encontrar os quatro arruaceiros que machucaram e sequestraram
um menino durante o infundado protesto realizado hoje à tarde.
Temos imagens que gravaram tudo e sabemos os perfis completos
de cada um dos baderneiros. São duas garotas, um clarinho e
um bombadinho. Além do pobre menino indefeso que foi visto
inconsciente sendo carregado pelos marginais. Vamos atrás deles
para apurar os fatos.
— Bombadinho? — interveio Polo.
— Estão chamando a gente de sequestradores e tu tá
preocupado que te chamaram de bombadinho?

52 | O ESTAMPADOR
— E eu? O pobre menino indefeso… O cara nem me conhece.
Que pai tu tem, hein?
— Só não entendi uma coisa ainda: o que tu tava fazendo
no protesto, Jorginho? Tava infiltrado desde o início pra ferrar a
gente? Só pode! — continuou Polo, olhando com desconfiança pra
Jorginho.
— Nada a ver, cara. Eu tô puto com o meu pai. Mas se vocês
estão pensando em descontar em mim as merdas que ele fez, acho
melhor eu ir embora. Não ando com gente que não me quer.
— Chega de palhaçada, Polo! — saltou Ana em defesa. —
Ninguém aqui vai sacanear ninguém e vamos ficar juntos. A gente
tá protestando por causa de um monte de injustiça, não vamos fazer
o mesmo entre nós. Isso é moral de cueca. Acho bom a gente saber
o motivo de toda esta confusão e não inverter as coisas.
— O lance todo foi por causa da história do trabalho escravo
na fazenda deles, uma família sem o amor de Cristo — completou
Thomas.
— Amor de Cristo? Que loucura isso, te respeitei —
ironizou Polo.
— A fazenda é do Antoninho, o cara aqui não tem nada a
ver com isso — defendeu Tainá.
— Foi por causa dessa merda toda que você ficou contra o
teu pai? — perguntou Polo.

O ESTAMPADOR | 53
— Eu nem sabia dessa parada de trabalho escravo. Tô
proibido de entrar lá. A última briga foi por causa da minha coroa,
uma traição suja. Ele errou com ela.
— Ah, sim, só errou com ela. Com os coitados que
trabalhavam quatorze horas por dia na fazenda dele sem receber
ele não errou, né? — provocou Polo.
Novamente o silêncio se fez no grupo.

54 | O ESTAMPADOR
06 – UM CAMINHO
Jorge pressentia que os acontecimentos do dia eram mais
um desses momentos onde ele deixava de ser o agente para se
transformar no efeito. Por qualquer perspectiva que tentasse olhar,
desde o momento que apagou seu cigarro e decidiu se juntar ao
povo do protesto, sabia que o controle da situação estava fora das
suas mãos. O filho do prefeito recapitulava o dia: conhecera uma
mulher mais velha que lhe encantara desde o primeiro momento;
por causa dela, conhecera um cara da sua idade, de presença e
mais bonito, mas que ainda não conseguia decifrar o que fazia ali
— e acreditava haver uma ligação entre eles, não eram estranhos;
encontrara sua melhor amiga, uma descendente indígena que não
tolerava injustiças; e, pra fechar a conta, o outro maluco, que
desmaiava e parecia viver em uma bolha diferente.
— Não sei quanto a vocês, mas eu já estou cansada de
caminhar — reclamou Ana.
— Estamos fora da cidade, daqui pra frente só tem lavoura
— explicou Tainá.
— Então chega de caminhar, né? Ninguém vai nos achar
aqui — falou Thomas.
— Cara, eu não vou voltar pra cidade, agradeço por me
acompanharem até aqui, se quiserem voltar, de boa, podem ir, eu
fico bem.

O ESTAMPADOR | 55
— Não vamos te deixar aqui neste fim de mundo com um
ferimento — se posicionou Ana. — A essas alturas a polícia já sabe
quem nós somos.
— Porra, mas que filho da puta esse prefeito, o cara é que
estava sendo acusado de um monte de porcaria e conseguiu fazer
com que a atenção caísse sobre nós. Ou seja, viramos os vilões e
ele, a justiça — lamentou Polo indignado, gesticulando muito.
— Bem vindo ao clã dos Alencar, dá pra entender o porquê
de eu não querer voltar pra casa?
— Família sem fé essa sua — completou Thomas.
— Já falei, meu, não sou igual a eles.
— Ok, mas a gente faz o que, então? — perguntou Ana.
— Eu vou continuar andando e procurar uma dessas casas
abandonadas de colono, está cheio delas aí pelos matos, só preciso
dormir um pouco pro meu braço curar.
— Mas e a bala? Você não pode ficar com uma bala dentro
do braço — falou Tainá.
— Que bala, Tainá? Não tem bala nenhuma, foi um tiro de
raspão, fez um rasgo, nada além disso.
— Então precisa de pontos!
— Talvez sim, mas que se foda. Parou de doer e de sangrar,
amanhã eu vejo isso.
— Não tô a fim de dormir fora, não curto mato — saltou
Thomas.
— Nem precisava falar. Está bem, moleque, acho que você
deveria voltar e livrar a cara da gente, é o único que não está
sendo procurado por ter feito coisa errada. Não ouviu no rádio?
Eles dizem que você é a vítima do sequestro. Volta lá e conta uma
56 | O ESTAMPADOR
história bem bacana livrando a gente — falou Jorginho com um
sorriso sarcástico.
— Está bem, quem vai comigo? — respondeu Thomas. —
Ana? Tainá? Polo?
Os olhares se revezavam. A cada fitada batia um
constrangimento em ter que dizer sim e abandonar Jorginho ferido
naquele lugar.
— Por Cristo! Ninguém volta comigo? — indignou-se
Thomas.
— Bah, moleque, não vou deixar as duas aqui com o Jorge
de braço machucado — argumentou Polo.
— Volta sozinho, Thomas, você não precisa se sacrificar, tu
é um cara de família, tua mãe já deve estar preocupada — observou
Tainá. — Você deve ser até menor, vai nos causar mais problemas
se ficar.
— Tenho vinte anos.
— Caraca, o piá é mais velho do que eu! Tem vinte anos e
rostinho de dezesseis. Bah, tô ficando descuidado — zombou Polo.
— Vai lá, Thomas, e te cuida no caminho — falou Ana.
— Vocês não estão em Cristo, não tô a fim de voltar sozinho.
— Caraca, véio, você é de igreja, mano? — indagou Polo.
— E daí, Polo, te incomoda isso? — questionou Tainá.
— Nada não, só falei.
— Onde vamos dormir esta noite? — perguntou Thomas.
— Sei lá, o Jorginho sabe mais sobre isso do que a gente —
comentou Ana.
— Onde, Jorginho? — salientou Thomas pela segunda vez.

O ESTAMPADOR | 57
— Tem um lugar aqui, não é muito perto, mas pouca gente
conhece, talvez quem é mais velho sabe. É seguro, ninguém vai nos
achar lá. Há alguns dias tava pensando em dar um giro por lá, isso
foi antes dessa confusão toda de hoje. Mas acho que vem a calhar.
Vocês topam?
— Uau! Aventurinha de escoteiro se aproximando, bem
burguês isso, hein? Eu topo! — falou Polo.
— E vocês, gurias, querem ir até lá?
— Gracinha, você, temos escolha? — debochou Tainá.
— E você, Thomas? Vai amarelar e voltar pra cidade?
— Vou dizer o quê? Perdido, Perdido e meio. Vou junto.
— Então vamos, temos uma boa caminhada.
***
Por dias Jorginho vinha sonhando que estava correndo
dentro de um prédio gigante e abandonado. Sonhava que estava
descalço e que os seus pés sangravam. No início pensou ser uma
das viagens dele, era comum fumar e dormir, quase uma rotina,
mas, passado o tempo, foi identificando o lugar e tudo tinha muito
a ver com o passado da sua família. O prédio dos seus sonhos era
o que havia restado da imensa fábrica têxtil do seu tataravô. Estava
abandonada há um século e era pra lá que Jorginho estava levando
o grupo.
Foram quase duas horas de caminhada no meio do nada,
eram estradinhas vicinais praticamente tomadas pela vegetação.
Quando o caminho terminava, logo iniciava uma trilha meio
apagada que corria pelo campo. Percorreram juntos o caminho,
atingindo a exaustão.
— Jorge, não aguento mais. Falta muito? — perguntou Ana.

58 | O ESTAMPADOR
— Não. Estamos quase chegando, está vendo aquele mato ali?
— O que tem?
— Aquilo tudo já foi plantação de algodão.
— Como você sabe?
— Porque tudo isso aqui é da minha família, estas terras
estão abandonadas há muitos anos. Ninguém sabe o que aconteceu
neste lugar ao certo, existe um segredo de família aqui, um assunto
proibido de se falar lá em casa.
— Opa! Agora gostei. Fala mais, adoro mistérios — pulou
Polo na frente da fila, indagando Jorginho enquanto caminhava à
frente e de costas para enxergar todos.
— Passando aquele mato, vocês vão poder ver o que estou
falando, nós já chegamos.
— O que tem lá, uma casa? — presumiu Ana.
— Um pouco mais do que isso — respondeu Jorginho.
Confiando no amigo, atravessaram o último obstáculo, uma
mata densa, até se depararem com algo bastante incomum para
aquele lugar.
— Isso aí, turma, vejam com os seus olhos, aí está o que
sobrou da Companhia Têxtil Alencar Fornari.
Na frente deles surgia o maior prédio já construído naquela
região, uma muralha feita de tijolos emoldurados por mais de três
centenas de janelas tão altas quanto um prédio de dois ou três
andares. Havia muros e paredes imensas cercando todo o complexo,
tomados por musgos, heras e vegetação centenária. Raízes e caules
competiam em um combate lento e eterno pelos espaços e fendas
abertos pelo tempo, era uma flora inteira fagocitando a construção.

O ESTAMPADOR | 59
Era possível observar as ruínas de uma grande chaminé
tombada, que ainda podia ser distinguida pelo terço que se mantinha
em pé. Sua base estava cravada ao lado do prédio principal e media
uns quinze metros de diâmetro, deixando à vista uma montanha de
entulhos e tijolos oriundos do desabamento daquele gigante que,
em outra vida, expeliu a fumaça de toda a produção gerada naquele
parque industrial.
Para eles, aquilo era fantástico e surreal, a escuridão da
noite e a penumbra de uma lua minguante deixavam aquele espaço
ainda maior, não se podia divisar o fim da construção, a invasão do
mato nas ruínas criava um aspecto sinistro.
— Meu Deus! Cristo crucificado! Que loucura. Olhem só
pra isso! — exclamou Thomas.
— Cacete, isso não é uma casa — completou Ana. — É
imenso.
— É um depósito abandonado? — especulou Polo.
— Não é nada disso! — interrompeu Jorginho. — Isto é
uma fábrica, uma fábrica têxtil, a maior que já foi construída neste
estado até hoje. Está aqui há muito tempo, ergueram antes da
abolição da escravatura.
— Caraca, meu! Como viemos parar aqui? — quis
entender Ana.
— Como falei, isso tudo aqui ainda é da família do meu pai,
meu tataravô foi quem construiu esse lugar. Essas paredes estão
cheias de sofrimento e de mistérios, alguma coisa aconteceu aí
dentro e virou um segredo de família. Mas isso foi enterrado com
a morte dele. Esse cara foi o pior de todos, o mais sanguinário dos

60 | O ESTAMPADOR
Fornari. Dizem que morreu doente, sangrando e com dor, nunca
souberam que doença era.
— Bem feito pra esse desgraçado! Racista tem que morrer
sentindo na pele — interrompeu Ana.
— O infeliz nunca contou pra ninguém o que fez aí dentro.
Meio mundo odeia este lugar. A fábrica fechou em 1920 e nunca
mais alguém quis entrar aqui, nem meu bisavô, nem meu avô e
muito menos o degenerado do meu pai.
— Legal, Jorginho, belo lugar pra nos trazer pra dormir,
conseguiu meter o pavor — falou Thomas com um olho arregalado
e se benzendo num sinal da cruz.
— Sei lá, Thomas — respondeu Jorginho olhando para o
prédio abandonado. — Este negócio vem me chamando há alguns
dias. Acredita em pressentimentos? Pois então, não fui eu quem
desejou vir, mas essa fábrica vem me chamando há tempos, pode
ter certeza — concluiu também fazendo um sinal da cruz.
— Valeu, camarada! Se queria dar um cagaço em todo mundo,
conseguiu, porra! Que historinha mais macabra — reclamou Polo.
— Mesmo com todo esse prédio gigante, a gente ainda tá no
meio do nada — falou Tainá assustada.
— Que merda! Alguém tá com bateria no celular? Fiz uns
vídeos do protesto e fiquei zerado — relatou Polo.
— Meu celular não tá pegando. Totalmente sem sinal. E o
teu, Jorge?
— Nada aqui também, Ana. Thomas?
— Adivinhem? Sem sinal.
— O meu também — completou Tainá.

O ESTAMPADOR | 61
— Ferrou. É isso? Sem telefone e bem em frente à fábrica da
família Adams — brincou Polo.
— A gente só precisa arrumar um lugar pra dormir e amanhã
voltamos, já é tarde, em poucas horas o dia amanhece.
— Sim, e como avisamos nossos pais? — apontou Thomas.
— Cara, você tem certeza que tem vinte anos mesmo? —
perguntou Jorginho.
— Eu não tenho ninguém pra avisar — falou Ana.
— Eu até teria, mas não preciso, tô de boa — explicou Tainá.
— Eu sou do mundo, sem explicações pra dar —
proclamou Polo.
— Neste caso, Thomas, só você é que está ferrado quanto a
isso — disse Ana.
— Minha velha vai me matar quando voltar pra casa.
— Ótimo, então não temos problemas, morrer pelas mãos da
mamãe não deve ser tão ruim assim — sorriu Polo mais uma vez.

62 | O ESTAMPADOR
07 – A FÁBRICA
Os cinco olharam fixamente para a silhueta do prédio até
onde a visão podia alcançar naquela noite. Havia um clima soturno,
a fábrica adormecida, uma vastidão de paredes e janelas cercadas
pela escuridão e pelo tempo.
— Pessoal, vamos entrar. Eu tô com dor. Temos que
descansar — falou Jorginho.
— Eu tô com fome — reclamou Thomas.
— Ah! Então vamos entrar, com certeza lá dentro tem uma
farmácia e um Subway — debochou Polo.
— Deu, gente. Chega de ironia, Polo. Estamos juntos nessa,
e o cara tá com dor. E eu, com medo. Esse lugar me dá medo! —
concluiu Tainá um pouco irritada.
— Não temos nada a perder mesmo. Ou temos? — duvidou
Thomas.
— Pergunta pro Jorginho novamente — falou Polo olhando
pra todos.
Aquela pergunta do Thomas inquietou Jorginho. Para os
outros do grupo, era apenas um lugar abandonado com cara de
filme trash, mas para ele era o pior pedaço da história da sua
família e ele queria descobrir o que tinha acontecido naquele lugar.
Havia no ar um pressentimento ruim, que causava desconforto
principalmente nele.

O ESTAMPADOR | 63
Jorginho, olhando para cada uma das pessoas que tinha se
disposto a acompanhá-lo até ali, começou a analisar as relações que
se estabeleciam. Viu Polo como uma ameaça, agrediu ele por puro
instinto, mas agora o cara lhe parecia ser muito legal, até mesmo
engraçado. Thomas era o tipo nerd de igreja, talvez um alienado,
mas dava pra sentir que era uma alma pura, mimado, mas com
valores definidos. Tainá era a parceira de aula, outra enjeitada na
cidade e até então a sua melhor amiga. E agora a Ana, uma mulher
que havia mexido com ele, coisa do coração, de tesão, de cuidado,
de carinho. Então começou a surgir a dúvida se tinha o direito de
envolver todos naquilo, sabia que os segredos da fábrica pertenciam
somente ao passado dele, ainda que talvez pudessem afetar a todos.
Por um segundo, pensou que deveria estar ali sozinho.
Cruzando por uma brecha aberta na enorme porta de um
dos depósitos laterais da fábrica, e usando a lanterna dos celulares
que ainda tinham bateria, o grupo pôde entrar e ver o lugar pela
primeira vez.
Havia um cheiro peculiar no ar, ou melhor, um mau cheiro,
forte como urina de rato, camiseta suada e mofo de pão, tudo
junto. O odor tomou conta de todos, fazendo com que o reflexo de
torcer o nariz e de colocar uma das mãos na boca fosse unânime e
instantâneo.
Poucas coisas provocam mais sensações de déjá vu que os
cheiros fortes. Era mais ou menos o que estava acontecendo naquele
momento com Jorginho. Foi lançado ao passado recente, no dia em
que o pai o jogou numa clínica de reabilitação. Eram obrigados
a jogar futebol por muitas horas, todos os dias. No final de cada
partida, se reuniam quase vinte garotos no fedor dos vestiário após
os jogos, a caçamba da lavanderia transbordando de camisetas,

64 | O ESTAMPADOR
meias, shorts e suportes empapados de suor adolescente. O cheiro
era terrível, mas, se tratando de algo tão puro e inócuo quanto ao
jogo da clínica, era tolerável. O que não era o caso ali, onde o fedor
era agourento, sinistro.
— Puta merda. Que cheiro horrível! — Ana falou contorcendo
o nariz e levando a mão ao rosto.
— Deve ser bicho morto — concluiu Thomas.
— Cara, isto está fechado há muito tempo, você queria o
quê? Cheiro de rosas? — rebateu Polo.
— Olha o tamanho desse lugar! — exclamou Tainá, varrendo
com os olhos cada centímetro que a luz do celular podia iluminar.
— Caralho. É enorme. Quantas pessoas será que trabalharam
aqui? — perguntou Ana.
— Sei lá, milhares, talvez. Todos escravizados.
— Sinistro demais — completou Polo.
Por mais que a curiosidade do interior da fábrica chamasse a
atenção de todos, o braço de Jorginho ainda doía, precisavam fazer
alguma coisa. Exaustos, sentaram perto do portão da entrada da
fábrica e, com a ajuda dos celulares, pela primeira vez, Ana pôde
ver o ferimento de perto e avaliar.
— E aí, Ana, como está isso?
— Cara, a boa notícia: você não tem bala alojada mesmo.
Foi só de raspão.
— Ainda bem, e o sangramento?
— Esta é a má notícia — continuou Ana. — Ainda sangra
um pouco, mas, se eu tentar fazer um curativo melhor, vai parar em
pouco tempo. Pessoal, vejam se tem algum lugar que a gente possa
dormir. Tenho que cuidar da ferida no Jorginho.

O ESTAMPADOR | 65
— Isso aqui é muito…
— Velho. Muito velho — concluiu Polo para Thomas.
— Então não espere encontrar um edredom com cheirinho de
amaciante.
— E que máquinas são aquelas? — Thomas apontou o facho
de luz do celular para o centro do pavilhão.
— Cara! Isso são teares, teares enormes, essa fábrica era
uma tecelagem. Deve ter sido uma das primeiras, como disse o
Jorginho, aqui de Alfor — explicou Tainá.
— Mas são muitas, parece não ter fim.
— É, Thomas, devia ter uma multidão trabalhando aqui.
Os gigantescos salões da fábrica impressionavam pelo porte,
mas, ao mesmo tempo que encantavam, também assombravam,
o tempo havia parado por ali, tudo estava como fora deixado no
início do século XX: os teares, as fiadeiras, as grandes máquinas
de lavar a lã e o algodão, as esteiras de tela de aço que levavam o
algodão cru para as autoclaves de branqueamento, os espaços onde
os fios eram separados e os grandes tanques de tingimento dos fios
e dos tecidos, tudo em seus lugares de origem.
Nos grandes pavilhões, o cheiro ruim da entrada se dissipava
um pouco, e uma névoa de poeira pairava no ar. A ferrugem tomava
conta de todos os equipamentos, mas em alguns ainda se podia ver
a cor verde oliva original de cada máquina vinda da Inglaterra.
No chão haviam lugares secos e outros úmidos, poeira e
lama. A estrutura do teto, torneado em aço, se destacava como
uma obra prima do final do século XIX. Em muitos lugares as
telhas tinham desabado. Podia-se ver, entrando pelo buraco do teto,
a luz do luar em forma de facho, ressaltada pela poeira suspensa do
interior do lúgubre pavilhão.
66 | O ESTAMPADOR
Dezenas de portas e janelas adornavam as paredes da
fábrica. As janelas ficavam bem ao alto, impedindo que qualquer
trabalhador pudesse olhar para fora do prédio, o inverso também
acontecia. Caminhando lentamente, Thomas e Polo foram
vasculhando o interior daquele grande salão.
Iluminando os espaços com o celular de Polo, cada detalhe
do abandono e dos equipamentos ia se revelando aos olhos do grupo
improvável.
No instante seguinte, a visão de Thomas congelou, seu corpo
parou, a boca foi abrindo aos poucos num misto de espanto, medo e
falta de ar. Olhou lentamente para o lado, virando apenas a cabeça
e buscando chamar a atenção de Polo. Thomas foi apontando com
o seu braço e o dedo indicador sem poder pronunciar uma única
palavra, o ataque de asma veio de modo instantâneo.
— O que foi, Thomas? Tá passando mal de novo? —
perguntou Polo se aproximando do amigo e seguindo com o facho
de luz o dedo indicador do amigo.
— Caralho! Mas o que é isso? Meu Deus! — o grito se
espalhou e ecoou por todo o pavilhão. — Galera, corre aqui. Vocês
precisam ver uma coisa! Algo bizarro está acontecendo — Polo
soava ofegante e assustado como nunca o viram antes.
— Que gritaria é essa? — falou Ana olhando para Tainá e
Jorginho.
— Puta merda, devem estar em perigo ou aconteceu algo
sério — ponderou Tainá.
— Pedi pra que não se afastassem muito — reclamou
Jorginho.

O ESTAMPADOR | 67
Todos correram ao encontro dos dois de maneira apressada.
O visual sombrio eclipsou a realidade. Ao chegar, encontraram
Polo ajoelhado, ao lado dele estava uma criança, um menino,
acorrentado e aparentemente sem vida. Em pé, Thomas tentava se
acalmar e lutava contra a falta de ar.
— Cacete! O que é isso? É uma criança morta? Oh, meu
Deus! — Ana estava aflita e com lágrimas já escorrendo pelo rosto.
— Puta merda, quem fez isso? A gente vai ser acusado de
um sequestro e de uma morte também — Jorginho alarmou.
— Cara, minha mãe vai me matar! — Thomas soltou a voz
que estava presa para logo em seguida desmaiar pela segunda vez.
— Não pode ser! Isso é um crime — falou Tainá com a voz
embargada.
Segurando o pulso do menino e acomodando a cabeça dele
entre os seus joelhos, Polo olhou em direção aos amigos, balançou
a cabeça, levantou um dos braços chamando a atenção de todos e
sorriu.
— Galera, ele está vivo!

68 | O ESTAMPADOR
08 – O CATIVO
Poucas coisas poderiam assustar Jorginho. O último ano
havia sido turbulento, sua vida tinha virado de ponta cabeça; foi
internado à força, reprovou o ano, perdeu um namoro, foi agredido,
rompeu com o pai e agora era um foragido. Coisas que dividem
uma vida e que, dependendo das consequências, definem para
sempre o futuro.
Mas agora era diferente, ele estava dividindo o medo e a
confusão com os outros ali. E nada no mundo poderia tê-lo preparado
para o que viu. Uma criança jogada ao chão, descalça, com uma
roupa estranha, suja e acorrentada pelo tornozelo. Imediatamente
lhe veio à mente as imagens do pesadelo, os pés sangrando, a fuga
pelo interior da fábrica.
Ana, Tainá e Polo, estavam perplexos e assustados com a
cena do garoto, começaram a fazer perguntas ao mesmo tempo,
ansiosos para que Jorginho falasse algo que os tranquilizasse. Todos
olhavam pra ele como se a resposta para o acontecido tivesse que
sair da boca do filho do prefeito. Com uma sensação muito ruim de
impotência, Jorginho virou um menino, igual ao acorrentado, que
parecia não ter mais do que dez anos. E não conseguiu falar nada.
Polo correu e foi acudir Thomas. Ana e Tainá se jogaram
na direção da criança e Jorginho ficou ali, em pé, parado, olhando

O ESTAMPADOR | 69
para todos os lados e torcendo para que fosse mais um capítulo do
seu pesadelo.
— Porra, Thomas, de novo! — exclamou Polo socorrendo o
amigo caído no chão. — Acorda!
Passado o primeiro impacto da cena improvável, Jorginho
saiu dos seus pensamentos e se conectou com a realidade ao ouvir
a voz de Ana, que estava ajoelhada ao lado do menino, tentando
entender o seu estado de saúde.
— Que merda! Olha esta criança, Jorge? Quem será que
fez isso?
— Sei lá, Ana, como vou saber? Só espero que não seja
coisa do meu pai, aí sim que não vai ter perdão, eu mato esse cara,
juro. Como ele está?
— Nada bem, está quente, deve estar desidratado, precisamos
de água. Não parece machucado, mas não está bem, talvez doente.
Ele está desacordado, isso não é bom sinal.
— Caraca, gente! Olha o pé dele — Jorginho chamou a
atenção das amigas, segurando o tornozelo acorrentado do menino.
— Ele foi acorrentado e preso nesta máquina, que crueldade!
— Nem me fale, Jorge! Uma coisa é protestar na rua, sabendo
que estas coisas existem por aí, outra é ver de perto! Isso me deixa
com muita raiva, ele é apenas uma criança. Que filho da puta faria
uma coisa dessas? — falou Ana indignada e quase soluçando.
— Lembra do menino que foi encontrado no jardim dos
Sampaio? — perguntou Jorginho para Ana.
— Sim, o que tem ele?
— Será que este aqui não é mais um?

70 | O ESTAMPADOR
— Até pode ser, aquele garoto dos Sampaio fugiu da fazenda
do teu pai. Foi por causa dele que o dia de hoje começou. Mas este
aqui não teve a mesma sorte.
— Pode ter sido pego na fuga! E o desgraçado que o pegou
prendeu-o aqui, neste lugar abandonado — argumentou Tainá.
— Temos que tirar esta corrente e ajudar esta criança —
concluiu Ana preocupada.
— E como se faz isso? Você já viu o tamanho desse negócio?
Olha este grilhão no tornozelo! Tem um pino, não tem fechadura,
não tem chave! Impossível abrir! — atestou Jorginho.
— Sei lá, Jorge, vamos ter que dar um jeito. Vai lá e ajuda o
Polo com o Thomas e depois volta, vê se encontra água, você não
está ajudando muito, só está nos assustando, isso sim. Temos que
fazer alguma coisa, não dá pra ficar aqui parado, ele pode morrer!
— Nem pensa nisso! Não quero uma morte na minha vida
— falou Tainá.
Jorginho reagiu apenas com um suspiro pesado e permaneceu
em silêncio, olhando para o chão e se afastando na direção dos
outros amigos.
A criança tinha pele clara, vestia roupas estranhas e sujas,
uma camisa larga de algodão branco e calças do mesmo tipo, era
uma criança bonita, mas estava muito mal tratada. Isso assustava a
todos, pois quem o deixou ali preso certamente voltaria para buscá-
lo, a menos que a intenção do crime fosse muito pior e o garoto
tivesse sido deixado ali pra morrer.
Naquele momento, a cabeça de Jorginho tentava prever
o futuro, pensava em hipóteses para tudo, geralmente uma boa
e outra ruim. Só que, desta vez, eram três as hipóteses, e todas

O ESTAMPADOR | 71
ruins: a primeira era trágica, todos ficariam ali com o menino até
a chegada do responsável, poderiam se tornar reféns ou cadáveres;
na segunda hipótese, ninguém apareceria, o menino continuaria
acorrentado e todos seriam pegos e acusados de sequestro; e, na
pior das hipóteses, o garoto poderia morrer, e, além dos supostos
atos da manifestação, eles seriam condenados por assassinato e
sequestro de menor. “Cacete!”, falou Jorginho para si. “Será que,
no dia de hoje, ainda caberia mais alguma coisa? Isso tudo estava
acontecendo mesmo? Ou a parada lá na estátua do comendador
havia sido tão forte que tudo não passava de um super delírio?”.
— Thomas! Acorda, cara! Vamos!
— Cara! Que roubada — falou Jorginho aflito para Polo,
pensando no menino e em toda a situação.
— Pior, um acorrentado e esse aqui, de novo, desmaiado.
Putz, tudo errado.
— Cara, joga água neste sem noção, precisamos dele pra
nos ajudar — sugeriu Jorginho para Polo, que não hesitou: juntou a
primeira água de poça que viu e acordou o desmaiado.
— Porra! — gritou Thomas, engasgando e dando um salto.
Recobrou os sentidos e sentou no chão molhado. — O que é isso?
— Água! Isto é água — explicou Polo segurando em uma
das mãos uma lata velha e enferrujada que encontrou caída por ali.
— Que fedor, cara? Isso é água podre!
— Deve ser, ou pelo menos deve ter uns cem anos —
respondeu Polo com seu costumeiro sorriso irônico.
— Que nojo, Polo! Pra que fazer isso? Eu estava limpinho.
— Vamos lá, Thomas, chega dessa onda. Qualquer merda
um desmaio! — exclamou Jorginho um pouco irritado.

72 | O ESTAMPADOR
— Não posso ver ninguém morto, fico tonto.
— O carinha não está morto — afirmou Jorginho para o
ex-desmaiado.
— Não?
— Não. É uma criança, um garoto, e temos que tirá-lo daqui,
senão ele pode morrer, e daí a coisa vai feder pro nosso lado. Vem,
vem nos ajudar!
Sair dali com o garoto vivo era agora o objetivo de todos.
Precisavam saber da história dele, o que havia acontecido. Salvar
o menino cativo iria resolver os problemas de todos, em vez de
delinquentes, seriam vistos como heróis. Isso sim mudaria as coisas.
Mas a vida do menino estava acima de todas essas preocupações.
Os três correram em direção a Ana e Tainá. Mais uma
surpresa.
— Acordou? — perguntou Jorginho, com um meio sorriso.
— Sim, mas está delirando. Não fala coisa com coisa.
— Como assim, delirando? — perguntou Polo.
— Ele fala bem baixinho e repete sempre a mesma frase.
Não entendo o que ele fala — explicou Tainá com a cabeça do
garoto em seu colo.
— Chega aqui, Jorge, põe o ouvido perto dele e vê se entende
— sugeriu Ana.
De fato, o menino mal abria os olhos e ficava balbuciando
uma frase curta e sem muito sentido, mas era o melhor sinal de
vida que havia dado desde a chegada do grupo naquela fábrica.
— Pessoal, silêncio, por favor — pediu Jorginho encostando
o seu ouvido perto da boca do menino. — Estranho, ele fala uma
palavra só.

O ESTAMPADOR | 73
— Qual? — quis saber Thomas.
— Uma coisa tipo “estampador”.
— O que é isso?
— Sei lá, Polo. Deve ser alguém. Talvez o cara que prendeu
ele aqui.
— Precisamos tirá-lo daqui e levá-lo a um hospital. Ficar
delirando e falando sempre a mesma coisa não é legal. Já vi em
filmes, pode ser febre ou coisa pior.
— Pode ser, Thomas — saltou Tainá, tocando a testa e os
pulsos do menino.
— Alguém precisa ir buscar água pra ele, temos que dar água.
— Mas a água está podre! — exclamou Thomas contraindo
o nariz.
— Óbvio que não vai ser a água que a gente jogou em você.
Era de uma poça ali do chão, deve ter água boa em algum lugar
por aqui ou lá fora. Vem, lesado, vamos procurar — falou Polo
puxando o amigo pelo braço e indo para fora da fábrica em busca
de água potável.

74 | O ESTAMPADOR
09 – THOMAS
Lá fora a noite estava calma, era verão e havia uma lua pela
metade, era o suficiente para deixar a noite mais clara. Como em
qualquer lugar rural, os sons eram diferentes do barulho urbano.
Para os dois, aquilo era novo, o coaxar dos sapos, o som dos grilos
e de outros insetos podiam parecer ameaçadores. Thomas sentiu
vontade de voltar atrás e deixar Polo ir sozinho, mas este continuou
encorajando o amigo e lembrou que a missão era nobre, achar água
seria vital para a sobrevivência de todos, principalmente do garoto
acorrentado.
— O que foi, Thomas?— perguntou Polo se preocupando
com a incerteza do amigo.
— Não estou acostumado a ficar fora de casa, e nunca deixo
de avisar onde estou. Devem estar todos atrás de mim. A essas
alturas já sabem que fui visto com vocês e, se ouviram o noticiário,
vão acreditar no lance do sequestrado. Que merda isso!
— Fica de boa, Thomas, encara isso com uma aventura,
afinal de contas, você é o cara mais velho aqui depois da Ana.
Larga um pouco das preocupações da tua família. Faz as coisas
certas e sai inteiro daqui que eles vão te ver com outros olhos
quando você voltar.
— E você acha que tudo que fizemos até agora foi a coisa
certa? — indagou Thomas apertando as sobrancelhas.

O ESTAMPADOR | 75
— Acho que sim. Somos vítimas de um monte de mal
entendidos, isso tudo vai se esclarecer. Mas agora, meu irmão, a
missão é outra: encontrar água no meio deste mato todo — afirmou
Polo sorrindo.
— Que tal começar por ali? — apontou Thomas para uma
enorme plantação de cana nativa que crescia na lateral do muro
tombado, no lado sul da fábrica.
— Bah, meu brother, você é pior do que eu se tratando de
vida selvagem. Cara, aquilo ali é uma lavoura e pelo jeito também
está abandonada — afirmou Polo. — Não vai ter água sobrando,
temos que ir pra lá! — apontou para o outro lado.
A fábrica estava aos poucos sendo engolida por uma floresta,
com árvores altas e um mato de arbustos mais rasteiros que criavam
uma imagem sinistra em todo o seu entorno e impediam que o
prédio, mesmo gigante, pudesse ser visto de longe ou da estrada
mais próxima. O mato estava aos poucos engolindo as ruínas e
tudo mais que se encontrava por ali.
— Cara, não vou entrar lá! Vou morrer!
— Vamos! — Polo pegou a mão de Thomas e o puxou em
direção à floresta.
Cada um carregava nas mãos uma lata, velha e enferrujada,
mas eram os únicos recipientes que haviam encontrado. O lugar
estava tão abandonado que nem lixo urbano existia no seu entorno.
A missão estava dada, os dois embrenharam-se na mata em busca
de uma fonte de água limpa. Usando a luz do celular, percebiam
que o mato ia se fechando e a caminhada ficava mais lenta. Por um
bom tempo, seguiram pela borda da floresta que estava rente às
enormes paredes da fábrica. Ali algum tipo de lixo se acumulava,

76 | O ESTAMPADOR
mas era lixo industrial, os restos do passado da fábrica começavam
a surgir sob os olhos vidrados dos jovens.
No chão, velhas bobinas de madeira, onde eram enrolados
os tecidos, se acumulavam em pilhas enormes. Peças dos teares e
das máquinas, restos de obras e muita sujeira. Tudo se acomodava
ao longo daquele caminho inusitado por onde os dois iam pisando.
De repente, Polo escorregou e caiu sobre algumas placas de metal,
todas enferrujadas e jogadas ao chão. Eram placas de ferro, de
diversos tamanhos, resultados da manutenção nos teares e fiadeiras.
— Se machucou? — perguntou Thomas.
— Não, só escorreguei — respondeu Polo segurando uma
das placas.
— O que é isso?
— Nada, apenas ferro velho, eu acho. Veja! Devem
ser pedaços das máquinas, foram marcados por alguém, tem
números aqui.
— Vamos continuar, temos que achar essa água e voltar
logo — respondeu Thomas.
Graças àquele pequeno acidente, um instante de curiosidade
despertou nos dois a vontade de investigar um espaço que não
teriam visto caso Polo não houvesse caído sobre aquelas placas
enferrujadas.
Adiante do local do descarte, havia uma pequena trilha
apagada pelo mato, mas ainda com algumas pedras do antigo
calçamento à mostra. No final dela, entre alguns arbustos, erguia-
se mais uma parede da fábrica, uma construção vital para o seu
funcionamento: estavam na central de coleta e abastecimento
de água.

O ESTAMPADOR | 77
Havia ali um pavilhão com uma cobertura extensa, com
colunas de concreto e telhas de barro cobrindo o interior, estavam
intactas. No interior do espaço estavam alinhados, um atrás
do outro, enormes tanques de armazenamento de água, algibes
gigantescos feitos de pedra e que coletavam água da chuva e a água
de uma vertente da região. Fora do espaço, vindo do interior da
mata, ficava o córrego cuja nascente estava localizada mais acima.
Aquele veio de água corria eternamente. Era a fonte de
vida que precisavam. Uma água pura, de uma vertente, captada
por um conjunto de calhas que levavam o precioso líquido para os
gigantescos tanques, mantendo-os abastecidos, cheios e limpos por
um sistema de vazantes e vertedouros.
— Caralho, mano! Tú é foda, Thomas, olha essa água toda.
— A gente é... FODA! — exclamou Thomas pronunciando o
seu primeiro palavrão e esmurrando a água. Se sentindo vitorioso,
correu e abraçou Polo, erguendo o amigo do chão.
— Cara, isto aqui é um milagre, olha toda essa água! —
exclamou Thomas sorrindo e mergulhando os dois braços em um
dos tanques. — É demais!
— Vê se não desmaia de emoção, meu! Curti ver você
dizendo “foda”— brincou Polo, levando um banho do amigo em
resposta à zoação.
— Temos que levar a água pra eles, vamos encher as latas
— afirmou Thomas.
— Cara, você tem razão, mas antes temos que fazer uma
coisa! — sorriu para o amigo piscando o olho.
— Fazer o quê?

78 | O ESTAMPADOR
E, como se estivessem na praia mais deserta do mundo, os
dois deixaram todas as roupas de lado e mergulharam fundo no
maior dos tanques da central de abastecimento. A água fresca e
límpida aliviava as tensões, puderam nadar e se divertir por alguns
minutos. Um momento de felicidade invadiu o coração dos amigos
depois daquele dia duro e daquela madrugada que estava recém
começando.
— Cara, isso é demais. Era tudo que eu precisava pra relaxar
— falou Thomas.
— Cacete, que água boa — suspirou Polo mergulhando e
nadando no tanque que mais parecia uma grande piscina.
— Verdade, Polo, isso é da hora, e sem ninguém pra nos
espiar. Mas não podemos demorar, temos que voltar, eles precisam
da água.
— Eu sei, mas alguns minutinhos a mais não irão fazer
diferença.
— Concordo — assentiu Thomas mergulhando ao lado
do amigo.
— Thomas, me explica uma coisa — falou Polo chegando
perto do amigo e se prendendo na borda do tanque com os braços
para trás.
— Fala.
— O que você fazia lá no protesto?
— Ué? Fui protestar.
— Protestar? Mas você não tem cara de ativista, desculpa o
julgamento, mas te vejo como um boy, sabe? Um cara de boa com
a vida e que ainda é cuidado pela família, essas coisas… mesmo
tendo vinte anos.

O ESTAMPADOR | 79
Sorrindo, Thomas respondeu:
— É assim que você me vê? — devolveu a pergunta se
aproximando também de Polo e ficando ao seu lado, movimentando
as pernas e os pés por debaixo d ‘água.
— Estou errado?
— Mais ou menos, nem sempre tive uma vida de boy, fomos
bem pobres. Como é que vocês falam? Fodidos! Durante muito
tempo. Meu pai morreu cedo e minha mãe ficou com dois filhos
pra criar, eu e meu irmão.
— E daí, foi difícil?
— Muito, não tínhamos grana pra nada, minha mãe
trabalhava de diarista, fazia limpeza na casa de muita gente, e
eu vivia das sobras: sobra de comida, sobra de roupas, sobra de
material pra escola, sobra de brinquedos, quase tudo que eu tinha
vinha do desuso dos outros. Hoje eu sei o quanto a gente era pobre.
— Mas isso mudou, porque você não tem cara de pobre,
aquele seu tênis ali vale uma grana — continuou Polo.
— E pobre tem cara diferente dos outros humanos? —
perguntou Thomas tocando no ombro de Polo e olhando sério
pro amigo.
— Só uma expressão…
— Expressão meio preconceituosa, né?
— Tá certo, mas todo mundo acaba falando e na hora escapa.
— Tu não é todo mundo, tenho certeza que tu deve estar
cheio de galhos pra resolver na tua vida e já devia ter aprendido o
quanto a gente se machuca quando está excluído.
— Desculpa, ficou chateado, né?

80 | O ESTAMPADOR
— Nada, de boa, tu é boa parceria e já percebi que tá sempre
de bom humor. Isso vale muito pra mim.
— Você tem razão, minha vida não é nada fácil, meu. Mas
então, como você mudou a sua?
— A história é curta, a minha mãe entrou pra igreja e acabou
casando com o pastor.
— Caraca, véio, você é enteado do pastor da igreja dos
evangélicos?
— Pior que sim, o cara é muito palha.
— Mas ele tá ricão — completou Polo.
— Sim, com toda grana que o povo deixa naquela igreja não
tem como ser pobre.
— Não importa, né? O importante é que vocês ficaram
de boa.
— Bah, esse papo ia levar dias, cara. Pensa bem, o sujeito
que fala em nome de Cristo, da humildade, da pobreza, da caridade,
será que ele precisa ter tanta grana? Vou te dizer o que eu penso,
pois lá em casa não dá pra falar sobre isso: tem dinheiro que eu
acho que é justo e tem dinheiro que acho indecente, eu enquadro
ele no segundo grupo.
— Pode ser, acho que entendo o que você fala —
concordou Polo.
— Então é isso, segundo a tua teoria, a minha cara continua
a de pobre, só melhorou as minhas roupas e tudo ao que eu tenho
acesso, mas, até hoje, eu não conquistei nada.
— E isso é ruim?
— Tudo tem seu preço, minha mãe é apaixonada por ele e
completamente fanática pela igreja. Daí explica muitas coisas do
meu comportamento, coisas que eu nem sei se sou ou se quero
O ESTAMPADOR | 81
ser desse jeito. Ia adorar falar que nem vocês e poder dizer as
palavras que ouço e que me agradam, mesmo sendo palavrões.
Mas, pra harmonia da família, eu vivo o meu personagem todo o
dia, incluindo o culto de domingo, que eu odeio ir.
— Não curte ser assim?
— Nem um pouco, não sou alienado, preferia ser que nem
o Jorginho, viver segundo os meus princípios, mesmo que o preço
fosse mais alto.
— E por que não faz isso?
— Porque tenho medo da pobreza, me acostumei com a vida
boa, tenho meu irmão e minha mãe, não posso abandonar eles.
— Mas você já está com vinte anos, pensa, cara, vai chegar
a hora.
— Penso nisso todos os dias, mas, para um bom evangélico,
as coisas sempre seguem as orientações do pastor e da família.
— Como assim?
— Cara, pensa. Lá em casa todos vivem segundo a doutrina.
— E daí? — insistiu Polo.
— E daí? Olha, Polo, vou te revelar uma coisa que tu não vai
mais precisar perguntar nada.
— O que é?
— Tenho 20 anos e nunca transei, nunca beijei, nunca
toquei em ninguém. E tenho muito desejo de fazer qualquer coisa
com alguém que não seja o meu orgasmo solitário no banheiro.
Entendeu?

82 | O ESTAMPADOR
10 – O PESADELO
A madrugada avançava e, enquanto não surgia um plano
eficiente para libertar o menino, Jorginho ajudava Tainá e Ana
acomodando o garoto para que ficasse mais confortável. Fora
acorrentado entre uma fileira de teares, máquinas grandes feitas
de aço e fixadas ao chão por parafusos e porcas. Com um moletom,
Ana improvisou um travesseiro e esticou o corpo do garoto sobre
uma cama também improvisada. Usou restos de tecidos de lã
encontrados entre as máquinas de fiar, para evitar a umidade do
chão frio sobre as costas do menino. Coube a Jorginho analisar o
tornozelo.
De fato, era um grilhão usado para acorrentar escravizados,
nunca haviam visto um de perto. Pesado, de ferro fundido, tinha um
aro preso a uma corrente com elos também exagerados e fixados
na base de um tear que deveria pesar toneladas. O tornozelo e o pé
delicado do menino ficavam diminutos comparados ao tamanho e
ao peso do grosseiro instrumento de tortura. Ficaram imaginando
como fazer para romper aquilo, era praticamente impossível,
pensou Jorginho. Não tinham habilidade, força e nem ferramentas
adequadas. A bateria do celular iria logo acabar, e a escuridão
no pavilhão ia tomar conta, somente a luz da lua penetrava pelas
gigantescas janelas do pavilhão, mas não seria suficiente para que
pudessem se sentir em segurança. Uma fogueira seria o ideal.

O ESTAMPADOR | 83
— Ana! — chamou Jorginho.
— Sim, Jorge — respondeu mais tranquila e com os olhos
tristes.
— Aqueles dois estão demorando, vou buscar lenha ou
madeira pra fazer uma fogueira, o que você acha?
— Ia adorar — concordou.
— Vocês ficam bem sozinhas?
— Claro, Jorge. Vamos ficar aqui cuidando dele, e se
encontrar aqueles dois malucos, diga pra virem o mais depressa
que puderem, precisamos da água — completou Tainá ainda
preocupada.
Jorginho saiu devagar e aos poucos foi se conectando com o
lugar. Era um prédio colossal, indescritível, tinha a sua magnitude,
era impossível imaginar como fora construído no final do século
XIX naquele lugar tão distante de tudo, quase inóspito, e que,
mesmo abandonado por tantos anos, ainda era imponente: colunas
de metal, arcos torneados em aço, grandes portas e janelas com
vidros ainda translúcidos. Quantas histórias esta fábrica poderia
contar. Fora inaugurada com o sofrimento dos escravizados e, mais
tarde, entrou em uma época em que centenas de famílias operárias
de Alfor dependiam dela para o seu sustento.
Jorge estava cansado, o silêncio do lugar, embora tétrico, o
tranquilizava. Foi aos poucos juntando gravetos, lascas de madeira,
pedaços de caixas e tudo o que pudesse ajudar a queimar na
fogueira. Seus pés latejavam, tirou os tênis e as meias, amarrou um
cadarço no outro e passou no entorno do pescoço. Livrou as mãos
e continuou a coletar gravetos e lenhas; os gravetos ele guardava
dentro dos tênis, as lenhas, segurava com as duas mãos.

84 | O ESTAMPADOR
A fábrica era um labirinto de máquinas cercadas pelas
altas paredes. Muitos salões, alguns vazios, outros intactos. O
lugar cheirava a uma mistura de lã e tecidos apodrecido, óleo de
motor, o cheiro forte da ferrugem e outros aromas que criavam uma
atmosfera extremamente particular ao lugar. O cheiro era como
uma moldura para aqueles cenários de abandono e imensidão.
Umidade e escuridão, morcegos em vôo rasante, corujas no alto
das janelas e, junto aos pés descalços de Jorginho, um universo de
insetos, aranhas, formigas, baratas e outros bichos perambulando
com tranquilidade.
A bateria do celular estava chegando ao fim, era o momento
de voltar e ficar com as amigas, e ele já havia juntado madeira
suficiente para começar uma pequena fogueira, lembrou que depois
Polo e Thomas poderiam buscar mais.
Deu meia volta e teve mais uma surpresa, o caminho de
retorno parecia não ser o mesmo da vinda. Andou distraído na
coleta das lenhas e não memorizou por onde havia passado.
— Putz, acho que me perdi — falou em voz alta. — Nada de
pânico, Jorginho! — disse se encorajando.
Já havia passado por situação pior e, afinal de contas, não
estava em um deserto, e sim dentro de um prédio, mais cedo ou
mais tarde encontraria o caminho de volta.
Tentou fazer o percurso inverso, mas, sem a luz do celular,
era mais difícil. Além disso, estava descalço, por um bom tempo
ficou desviando das poças de água, da lama, do piso quebrado,
e não havia marcas do caminho feito antes. Teria que voltar com
tranquilidade, pisando com cautela e lembrando aos poucos por
onde viera. Mas aquele era um dia de coisas improváveis e, como

O ESTAMPADOR | 85
nos seus pesadelos, não demorou muito para começar a escutar
gritos.
Alguém chamava, pedia ajuda, gritava por socorro, o som
parecia vir de todos os lugares, ecoava pelos salões e replicava em
todas as paredes até chegar em seus ouvidos. Largou as madeiras e
saiu correndo, quanto mais alto escutava os pedidos de ajuda, mais
tentava se orientar, a voz ficava mais forte, era voz de mulher, era
a voz de Ana.
— Merda! — gritou. — O que tá acontecendo?
Apurou o passo, pisava agora sem enxergar, sentia que seus
pés espetavam, doíam, raspavam e batiam contra o piso irregular
e cheio de objetos caídos. Seus dedos chutavam placas de aço,
bobinas, pedaços de madeira, parafusos velhos largados pelo chão,
pregos e o que mais estivesse caído por ali. Não podia parar, Ana
precisava de ajuda. Aos poucos, a voz de Ana ia ficando mais perto,
correu o máximo que as suas pernas aguentavam, tinha que chegar
a tempo.
Cruzou por mais dois salões e, ao fundo, viu a grande porta
de entrada da fábrica. Estava chegando, já podia ver ao longe a
silhueta de Ana agachada. Agradeceu a Deus pela primeira vez
naquele dia, enfim chegou antes que a amiga pudesse pronunciar o
seu último grito de socorro.
— Ana! — gritou ofegante.
— Vem depressa, Jorge, acho que ele piorou!
Ao chegar perto, viu Ana paralisada olhando para baixo.
Seu rosto foi virando para o alto, procurando os olhos de Jorginho
com uma fisionomia de pavor.
— Jorge! O que aconteceu com você?

86 | O ESTAMPADOR
Ele custou a entender.
— Como assim? Foi você quem me chamou!
— Sim, mas olhe os seus pés.
Foi quando ele olhou para baixo e viu que seus pés sangravam,
estavam vermelhos de sangue e com muitos ferimentos que não
havia percebido. A pele dos dedos menores havia se rompido, havia
pequenos cortes entre eles. Na parte debaixo, cortes maiores na
sola do pé. Até então nada daquilo doía, mas, no instante que olhou,
também se apavorou. A dor foi forte e mal podia continuar pisando,
mas o maior pavor não vinha do estrago que ele havia feito em seus
pés ao correr no escuro, mas, sim, da materialização do pesadelo.
Como que isso podia acontecer?
— Ah, Ana, nada! Machuquei meus pés correndo, resolvi
tirar meus tênis, mais uma estupidez. Deixa pra lá, depois eu vejo
isso. O que está acontecendo? Você disse que ele piorou.
— Está mais agitado e continua repetindo pelo tal
estampador! Veja!
De fato, o menino dava sinais de querer falar algo que
realmente o incomodava. Repetia uma frase que pedia para
encontrar o estampador.
— O que será isso? Ele não para de pedir para encontrar esse
negócio. Como achar algo ou alguém que não sabemos o que é?
— Seja lá o que for, é importante pra ele e temos que ajudar,
mas antes precisamos tirar esta corrente — falou Tainá.
Naquele momento, Polo e Thomas, chegaram com as latas
de água, cabelos molhados, pés descalços e um sorriso no rosto.
— Por onde vocês andaram? — perguntou Ana indignada.
— Demoraram muito.

O ESTAMPADOR | 87
— Fica de boa, Ana, encontramos a água, veja! —
exclamou Polo.
— É isso, Ana! — continuou Thomas confirmando o êxito
da campanha.
— Foram longe, hein? — Jorginho questionou os dois.
— Nada, Jorge! Aqui nos fundos da fábrica encontramos
muita água, são vários tanques cheios de água limpa. Aproveitamos
pra tomar um banho e tirar o suor do corpo, nos perdemos um
pouco no tempo, ficou bem divertido o negócio por lá — concluiu
Polo ainda com aquela fisionomia de felicidade e piscando um olho
para Thomas.
— Porra, que consideração — resmungou Ana. — E nós
aqui tentando manter o garoto vivo, precisando da água!
— Toma aqui a água — Thomas entregou uma das latas
para a amiga.
De fato, a água parecia ser mágica, um remédio potente que
aos poucos fez com que o menino recuperasse as energias e os
sentidos.
Com um pano de algodão, Tainá lavou o rosto do menino,
seus braços, pés e mãos, quando percebeu uma marca horrível em
Vincenzo.
— Gente, olha isso aqui na mão dele! — chamou a
atenção Tainá.
— O que foi Tainá? — perguntou Ana.
— Olha essa marca, tem uma letra “P” marcada a fogo na
palma da mão do Vincenzo. Que crueldade — mostrando para
todos a terrível descoberta.

88 | O ESTAMPADOR
— Meu Deus quem faria uma coisa dessas com uma criança?
— perguntou Ana.
— Albernaz! — respondeu Tainá — que bandido.
A criança foi abrindo os olhos e piscando lentamente. Todos
estavam em volta, torcendo para que pudesse vê-los e dizer algo.
Sua história era importante e tirá-lo dali era, agora, a missão de
todos.
O menino abriu os olhos e se fixou em Jorge. Jorginho
pressentiu que havia entre eles alguma ligação, não sabia dizer o
que era, algo mais intenso, uma conexão que o aproximava muito
do garoto, que parecia estar aliviado por ter visto Jorginho ali, ao
seu lado. Tinha um rosto familiar. O pequeno sorriu, ficou olhando
por um tempo e depois voltou a dormir. Pela segunda vez naquele
dia, uma lágrima involuntária correu pelo rosto do filho do prefeito.
Teve uma sensação, uma emoção, algo estranho. No instante
seguinte, sentiu quando um dos amigos tocou em seu braço, era
Ana olhando pra ele. Sorrindo e também emocionada, falou:
— Jorge, vocês dois são idênticos. Parecem irmãos! —
confidenciou baixinho.
— Sério, Ana? Eu também senti algo diferente quando vi
esse garoto, é como se eu já o conhecesse. Cacete! O que está
acontecendo neste lugar?
Olhou para todos no mesmo instante em que enxugava
as lágrimas. Viu nos olhos dos seus amigos uma sensação boa e
ruim ao mesmo tempo. Cada vez mais a velha fábrica criava seus
mistérios e os envolvia. Mais uma hipótese passava pela cabeça
de Jorginho. A imagem do pai não saía da sua cabeça. Logo veio
o primeiro pensamento lógico: “E se este garoto for um filho
bastardo do Antoninho? Poderia ser meu irmão e poderia estar
O ESTAMPADOR | 89
preso neste lugar pra não ser encontrado”. Tudo o que Antoninho
não precisava naquele momento seria mais um escândalo. No
raciocínio de Jorginho, o moleque poderia ser filho dele com alguma
empregada da Fazenda Santa Isabel. Se isso viesse a ser noticiado
na cidade, iria acabar com a carreira política do Alencar, pois as
circunstâncias, no momento, eram criminosas. Mais dúvidas lhe
invadiram a mente. “Se isto for verdade, este garoto é meu irmão!
É meu sangue! Porra, não importa agora, temos que sair daqui”.
Mais uma vez sentiu o seu corpo ser cutucado com força.
— Jorge! — Estava sendo sacudido por Polo. — O que você
está pensando?
— A Ana tem razão! — sussurrou. — Precisamos retirar
a corrente desse garoto e sair daqui urgente. Estamos todos em
risco, ele já está melhor, mas não pode ficar neste lugar — concluiu
Jorginho.
— Ok, meu líder! Mas como faremos isso, você já viu a
grossura desta corrente? — questionou Polo.
— Sim, eu já vi, mas não importa, temos que tentar, afinal
de contas, isso aqui é uma fábrica. Vamos encontrar ferramentas e
outras coisas que possam ajudar a quebrar esses elos.

90 | O ESTAMPADOR
11 – UM SUSPIRO
Compartilhando o mesmo celular, Polo e Thomas
adentraram a fábrica rumo a outros pavilhões. Jorginho, com os
pés machucados, ficou por perto, vendo se encontrava alguma
coisa que pudesse ajudar a abrir o grilhão ou a arrebentar um dos
elos da corrente. Não demorou muito e encontrou uma pequena
barra de aço, parecida com uma chave de fenda, mas sem o cabo.
Polo e Thomas retornaram com algo parecido, pouco maior e no
formato de uma alavanca de comando ou uma haste de eixo de
motor. Juntaram as ferramentas e, usando o resto de bateria que
restava de um dos celulares, divagaram sobre o que poderia ser
feito e de como deveria ser quebrada aquela corrente.
— E aí, vamos tentar? — perguntou Polo com um olhar
de moleque segurando firme a barra de aço em uma das mãos e
batendo com a ponta na palma da outra mão.
— Temos que pensar, não podemos machucar o garoto —
Jorginho tomou o cuidado em falar.
— Acho que precisamos agir os três juntos — sugeriu Polo.
— E como faremos isso? — indagou Jorginho.
— Alguém segura firme o pé e o tornozelo dele, daí enfiamos
neste grilhão duas dessas barras e torcemos em direção contrária,
uma da outra. Vai ter que ceder.

O ESTAMPADOR | 91
— Pode ser.
— Mas teremos que fazer muita força? — indagou Thomas.
— Claro, meu! — afirmou Polo. — Por isso temos que
fazer isso juntos, cada um com uma barra e depois torcemos ao
mesmo tempo.
Estavam enfiando as barras de ferro dentro do grilhão
enquanto Thomas segurava o menino quando Ana saltou por cima
dos amigos.
— Vocês estão doidos? — gritou. — Querem esmagar o
tornozelo dele?
— Como assim, Ana? — perguntou Jorginho.
— Quanto mais apertarem esses negócios aí dentro, mais
irão apertar o tornozelo, se algo sair do controle, tá feito a desgraça.
É um menino, é fraquinho, olha como é fino! Se esse negócio
quebrar, vocês irão machucar ele, e muito.
— Podem quebrar o osso ou fazer um corte profundo. Imagina
uma hemorragia aqui! — exclamou Tainá também preocupada. —
Nem pensar, seus malucos! Podem imaginar outra coisa, mas não
vão colocar esses ferros aí não.
— Tudo bem, Ana, e você tem uma ideia melhor?
— Olha, Polo, que tal fazer isso longe da perna dele? Faz lá
na outra ponta da corrente, é mais seguro.
— Brilhante ideia! — debochou Polo. — Daí o carinha vai
sair por aí puxando uma corrente feito uma alma penada.
— Sim, é preferível — argumentou Ana mais uma vez. —
Pelo menos vai estar livre deste cativeiro — disse apontando para
a enorme máquina de fiar.

92 | O ESTAMPADOR
— Por isso que te amo! — exclamou Jorginho antes que
um dos dois dissesse mais uma impropriedade. — Você tem razão,
não podemos colocar o moleque em um risco maior. Peguem essas
barras e enfiem nos elos e não no grilhão. Quando estivermos fora
daqui, procuramos alguém que saiba tirar essa bosta do tornozelo
dele. Vamos lá!
E, de fato, Ana tinha razão: por pura falta de experiência,
os meninos estavam fazendo a coisa errada, o risco era alto. Se
afastaram do garoto e foram se concentrando no outro lado da
corrente. Enfiaram duas barras de aço em diagonal dentro do mesmo
elo e foram torcendo as barras e forçando para que rompesse. Por
maior que fosse o esforço de Jorginho e de Polo, os elos sequer se
deformavam. Eram muito grossos, fundidos uns nos outros, com
aquelas barras improvisadas não dava para quebrá-los de jeito
nenhum. Por um bom tempo tentaram até ficarem exaustos, as
mãos doíam e as barras começavam a entortar. Frustrados e tristes,
acabaram por desistir depois de muitas tentativas.
— Impossível! — exclamou Jorginho.
— Temos que pensar em outra coisa — sugeriu Polo.
— Mas aqui não tem muito mais o que fazer — completou
Thomas. Não temos energia e nem ferramentas melhores.
— Olha — iniciou Ana —, já que vocês não conseguiram,
então precisamos mudar os planos, mas ele não pode ficar preso
aqui. Vai acabar morrendo. Eu vou sair e chamar ajuda. Já é tarde
da noite, ninguém mais vai me reconhecer — concluiu com cara de
decidida.
— Não vai dar, Ana! — interviu Tainá. — Não podemos
arriscar. Se alguém for pego, não ficaremos sabendo, temos que
ficar juntos.
O ESTAMPADOR | 93
— Concordo com a Tainá — falou Polo. — Pra sair, temos
que ir os cinco juntos e o moleque. Não dá pra arriscar.
— Estamos arriscando a vida dele se não fizermos alguma
coisa rápida.
— Ei, ei, vejam aqui — Thomas gritou para todos e chamou
a atenção, o menino havia despertado e parecia bem, olhos abertos
e querendo sentar. Chamou por eles e pediu mais uma vez pelo
estampador.
— O carinha acordou, acho que ele está melhor.
Ele parecia ter acordado como não havia feito antes, tinha
um semblante bonito, seus olhos vasculhavam pelos cantos da
fábrica até chegarem no grupo. Pela primeira vez, o pequeno
acorrentado enxergava todos, e reafirmando o que Ana e Jorge já
haviam percebido, entre todos os olhares, foi com o de Jorginho
que ele se fixou e sorriu. Parecia que estava olhando para alguém
que conhecia, um amigo de tempos atrás. Da mesma forma,
Jorginho retribuiu o sorriso, e um sentimento de simpatia e afeto
foi crescendo. Era algo paternal.
Ana se aproximou e deu um abraço no menino.
— Oi, garoto! Você está bem? — perguntou sorrindo
e passando a mão no rosto do pequeno, que respondeu com um
balanço de cabeça afirmando que sim.
— Uau! Nosso mortinho acordou! Bacana! — exclamou Polo.
— E aí, cara, tudo bem? Eu sou o Jorge, e você? Qual
seu nome?
— Vincenzo — respondeu o menino olhando para todos e
lançando um pequeno sorriso de lábios fechados.

94 | O ESTAMPADOR
— Olá, Vincenzo, legal teu nome — elogiou Jorginho,
também passando a mão na cabeça do menino e expressando
alegria no rosto. — Essa é a Ana, essa é a Tainá, este aqui é o Polo
e aquele ali, o Thomas.
— Eu rezei e vocês vieram — completou Vincenzo lançando
um olhar misto de alegria e preocupação.
— Viemos, sim. Vamos te ajudar. A gente quer saber sobre
você — falou Ana. — Por que você está aqui desse jeito, preso com
essa corrente? Quem fez isso? Você tem pais?
— De boa, Ana — tranquilizou Tainá. — O Vincenzo vai
poder nos contar tudo, mas vamos devagar , ele recém acordou.
***
Jorge, Polo e Thomas saíram em busca da lenha que havia
se perdido e finalmente acenderam uma fogueira no centro do
acampamento improvisado.
— Vincenzo, quem prendeu você aqui? — Jorginho retomou
a conversa com o menino.
— O Albernaz.
— Albernaz? Quem é essa pessoa?
— Ele cuida da gente aqui na fábrica, é o capataz.
— Você conhece, Jorginho? — perguntou Tainá.
— Nunca ouvi falar, só se for empregado novo da fazenda.
— Você disse que ele cuida de vocês, mas acorrentar alguém
não é cuidar — interveio Ana.
— Eu fiz algo errado e ele me puniu, foi só isso — explicou
Vincenzo.
— Como assim, fez algo de errado? Ninguém pode castigar
ninguém, você é uma criança — se exaltou Tainá.

O ESTAMPADOR | 95
— Você e este Albernaz moram aqui na fábrica, neste lugar?
— perguntou Polo.
— Não, a gente trabalha aqui. Eu trabalho aqui e o Albernaz
também, mas moramos lá fora, nos alojamentos.
Como Vincenzo havia recobrado os sentidos havia muito
pouco tempo, o grupo resolveu não forçar muito a barra com
tantas explicações. Falando em voz baixa e à parte do grupo, Jorge
chamou Ana.
— Esse garoto tá confuso, Ana.
— Acho que não, Jorginho, nós é que estamos. Acabamos de
encontrar um flagrante de escravidão. Ele foi acorrentado pra ser
punido por algo que pensa ter feito errado. Que absurdo isso.
— Mas quem faria isso? Quem é esse Albernaz?
— Deve ser um sucateiro e que vive das peças que rouba
dessas máquinas. Tem muita gente fazendo assim, vende pra ferro
velho, Vincenzo deve fazer parte dos negócios dele — sugeriu Ana
olhando sério para Jorginho.
— E o que a gente faz?
— Vamos continuar cuidando dele, tentando tirar essa
corrente, e descobrir mais sobre este filho da puta do Albernaz.
O grupo passou a escutar e a perguntar uma coisa por
vez para Vincenzo. Em algum momento, teriam que enfrentar o
Albernaz para negociar a soltura do menino. Mas ainda faltava
entender mais. O que havia acontecido ali era um crime que
pretendiam denunciar, mas, para isso, precisavam ter uma maior
compreensão dos fatos. Logo lembraram dos delírios do menino.

96 | O ESTAMPADOR
— Vincenzo, você estava delirando antes de acordar, você
repetia uma frase e pedia por algo, você lembra o que era? —
perguntou Tainá.
— Não — respondeu Vincenzo com um olhar muito sincero.
— Você falava pra gente encontrar o estampador. O que é
isso? — perguntou Ana.
— O estampador P — falou fixando o olhar para o chão. —
É por causa dele que estou aqui. Eu fui descuidado.
— Como assim, descuidado? — perguntou Polo. — Você
fez algo errado para esse cara?
— Não — negou mais uma vez Vincenzo. — Estampador
não é uma pessoa.
— Então o que é? Que mistério! — exclamou Thomas.
— É uma ferramenta.
— Ferramenta? Você está aqui acorrentado, sendo punido
por causa de uma ferramenta? — perguntou Jorginho.
— Sim. Eu perdi um dos estampadores, o estampador P, e,
enquanto não aparecer, eu vou ficar preso aqui.
— Mas isso é um absurdo! — gritou Ana.
— O prefeito tratando como escravos os trabalhadores da
fazenda, o menino aqui acorrentado porque perdeu a bosta de uma
ferramenta! Porra, tá tudo errado — falou Thomas exaltado.
— Boa, Thomas, falou “bosta” e “porra”. Viu, você está
evoluindo — elogiou Polo.
— Mas, se você está aqui acorrentado, Vincenzo, como
poderá procurar o estampador? Quem irá fazer isso pra você? —
perguntou Tainá.

O ESTAMPADOR | 97
— Os meus amigos estão procurando.
— Como assim, amigos? Tem mais gente aqui com você?
— falou Polo.
— Tem, os que trabalham comigo. Devem estar dormindo
agora, mas, pela manhã, tenho certeza que irão encontrar o meu
estampador. Acho que desmaiei, estava com muita fome e fiquei
tonto, tinha frio e medo, rezei muito e tudo ficou escuro, mas deu
certo. Vocês vieram!
Incrédulos, os cinco amigos ficaram calados, apenas
se olharam tentando entender as palavras de Vincenzo. Com as
revelações do menino, os mistérios da fábrica começaram a
aumentar. Quem seria o Albernaz? Seja lá como fosse, estavam em
maioria, mas, desarmados, de nada adiantaria um bando de mãos
vazias diante de uma arma.
E ainda não haviam resolvido nenhum dos problemas do
grupo. Continuavam escondidos e foragidos, Vincenzo estava
acorrentado e, em algum lugar por ali, outros meninos deviam estar
alojados ou presos, sob o jugo do Albernaz, que provavelmente
retornaria pela manhã.
O quadro ia se formando. Entre pinceladas e novas cenas,
surgia a cor de mais um desafio, um objeto desconhecido perdido
naquele universo escuro. E que era a fiança pela soltura do Vincenzo.
Enquanto isso, os pesadelos de Jorginho iam se materializando.

98 | O ESTAMPADOR
12 – NO ALOJAMENTO
Sob a luz da fogueira, todos se reuniram ao entorno de
Vincenzo, naquele acampamento onde as barracas haviam sido
substituídas pelo enorme pavilhão de fiar, com o seu pé direito
imenso e a cobertura centenária feita com aço, madeira e telhas de
barro. Tudo fluía lentamente como a fumaça que passava por entre
os caixilhos de cada uma das telhas. O que deveriam ser sacos
de dormir eram um ninho gigante, construído com os restos de
lã crua, todos coletados de um funil de distribuição das esteiras,
o qual levava os flocos de algodão para o tingimento ou para a
lavagem. Deitaram-se no grande ninho e esticaram os músculos e
ossos, aquele era o primeiro descanso do dia.
Ana sentou ao lado de Vincenzo, sempre atenta ao menino
e demonstrando a sua preocupação. Pediu que Jorginho deitasse à
sua frente e colocasse seus pés no seu colo. Com muita paciência,
limpou-os com o que restara da água de uma das latas. Aquilo
fora um alívio, o estrago havia sido grande e nem mesmo Jorginho
havia percebido os machucados que havia feito, a adrenalina do
momento fora o melhor anestésico.
— Dói? — perguntou Ana limpando um dos ferimentos.
— Sim, ainda dói. Devo ter perdido metade dos meus dedos
— falou Jorge.

O ESTAMPADOR | 99
— Não é pra tanto. Mas você cortou quase todos eles e a
parte de baixo está bem machucada. Sorte que não quebrou nada
— concluiu levantando o pé, já limpo, e olhando a favor da luz que
vinha da fogueira.
— E quanto ao Vincenzo? — perguntou Jorginho olhando
pra Ana. — O que você achou da história dele? Não falou nada
sobre sua família, não sabemos se tem parentes. Sem contar essa
relação maluca com esse Albernaz, é muito estranho tudo isso,
você não acha?
— Acho. Mas também penso que esse menino é vítima de
abuso.
— Como assim?
— Esse Albernaz é um filho da puta que deve se aproveitar
do Vincenzo e explora ele como mão de obra. O coitadinho não tem
ideia sequer de onde está.
— Será?
— Pensa, Jorge, ele disse que trabalha aqui na fábrica. Esse
lugar está morto há décadas, ninguém mais vem aqui, isso significa
que os dois saquearam o que restou e devem vender a sucata em
algum ferro velho.
— Sim, só pode ser isso — concluiu Jorginho, contorcendo
e comprimindo os lábios a cada investida de Ana no seu pé.
— Mas ele também falou que existem outros amigos, só
podem ser meninos na mesma situação dele, explorados pelo
Albernaz. Muito louco isso!
— Sim.
— Ano passado fui obrigada a ler um livro chamado
Oliver Twist.

100 | O ESTAMPADOR
— Bah, amiga, não conheço, leio pouco.
— Imaginei, mas enfim, é de um autor inglês.
— E o que tem esse Oliver?
— Era uma história parecida, Oliver achava que era órfão.
Ficou na rua por um tempo até que um cara, um velho que também
explorava meninos, pegou ele e o colocou pra roubar nas ruas. Mas
ele não fazia isso sozinho, tinha um bando de garotos que, como
ele, obedecia a este velho em troca de proteção.
— E você acha que o Vincenzo tem uma história parecida?
Esse Oliver se dá bem no final ou é uma tragédia onde todo mundo
se fode?
— Não. Ele se dá bem, descobre que a mãe está viva e é
muito rica, fica de boa no final do livro.
— E se o Vincenzo for ricão? Dá pra gente ganhar uma
recompensa se salvar ele.
— Que isso, Jorginho? Nós aqui falando de bandidagem, de
corrupção, e você pensando em ganhar grana com a liberdade do
garoto? Pensa no teu pai! Pensa no tal do Albernaz! — falou Ana
muito indignada, jogando o pé de Jorginho pro lado, fazendo com
que batesse o calcanhar no chão.
— Ai! Tá maluca? Isso dói! Eu tava de brincadeira, gata!
— Brincadeira? É assim que tudo começa.
— Mas, vendo pelo lado do seu livro, o garoto tinha uma
gangue, e Vincenzo também falou que tem outros amigos e que estão
procurando o estampador pra ele, onde esses caras estão agora?
— Você não ouviu ele dizer que estão dormindo no
alojamento? Ele está aqui porque foi acorrentado, está sendo punido
pelo otário do Albernaz, senão estaria lá com eles também.

O ESTAMPADOR | 101
— Temos que ver isso de perto. Se os carinhas estão aqui na
fábrica dormindo, devem estar precisando de ajuda também.
— E você está pensando em fazer o quê?
— Eu vou lá agora, temos que encontrar esses amigos do
Vincenzo.
— Mas está escuro, não temos mais celulares com energia
— ponderou Ana.
— A gente faz tochas, tem tudo aqui pra fazer isso.
Jorginho acordou Polo e Thomas e foram às compras. A
fábrica, para certas coisas, era o lugar perfeito. Com centenas de
máquinas paradas e abandonadas, havia um sortimento de peças
que poderiam arrancar e usar como cabo de tocha. Os restos de
algodão e lã, mesmo apodrecidos pelo tempo, eram o enchimento
perfeito para fazer um pavio. Já a graxa e o resto de óleo que
ficavam entre os caixilhos e engrenagens dos teares serviriam
como combustível e dariam uma chama duradoura e com boa
luminosidade. Em poucos minutos, tinham nas mãos três tochas
resistentes, encostaram-nas na fogueira e lá estava a melhor fonte
de iluminação digna do século XIX. Se sentiram orgulhosos.
— Vamos lá, gente! Ana, vocês vão ficar bem aqui sozinhas?
— perguntou Jorginho receoso.
— Vai lá, Jorge. Desvenda essa história. Deixa que eu e
a Tainá cuidamos do Vincenzo, estamos bem — respondeu Ana
sorrindo.
— Aí, malucos! Vamos embora, temos que descobrir onde
fica esse tal alojamento.
E assim foram para mais uma investida no interior da
fábrica, em fila, com as tochas e com o cuidado de olhar para

102 | O ESTAMPADOR
todos os cantos, algum sinal do alojamento deveria surgir, era uma
questão de tempo. No primeiro momento caminhavam em silêncio,
ouvir também era importante, o lugar era imenso e, à noite, muitos
animais poderiam estar por ali se abrigando. Escutavam apenas os
próprios passos e eventualmente o roncar dos estômagos que há
muitas horas não eram alimentados. Os caminhos pelos corredores
e salões da fábrica eram sinistros, não somente pela vastidão e
pela altura dos tetos, mas pelo abandono. Goteiras, chão úmido e
muita desordem faziam aumentar a atenção sobre onde pisar. Além
disso, não havia sinalização de nada, para descobrir em que lugar
estavam, tinham que entrar em cada sala e adivinhar. As palavras
de Vincenzo davam a entender que o alojamento ficava no lado de
fora do prédio, deveria ser em uma área externa e com acesso a
algum daqueles corredores que ligavam os salões da fábrica.
Foram caminhando cada vez mais para o interior dos
pavilhões. Eram outras salas, haviam teares para tecidos, para
tapetes, fiadeiras de lã e de algodão, uma quantidade enorme de
máquinas que não parecia ter fim. Entre os pés, cruzavam ratos;
pelas cabeças, em vôos rasantes, morcegos; e, na caça desses
dois, estavam os mochos, mais conhecidos como corujas, vivendo
tranquilas em seus ninhos no alto e repletas de tanta comida lá
embaixo.
Saindo da sala de fiar, encontraram um acesso em forma
de corredor, era mais largo que os demais e possuía, no chão, uma
espécie de ladrilho em tons de xadrez, as paredes eram forradas
de madeira há muito corroída pelos cupins. Entre os buracos do
revestimento, placas de jacarandá e mogno apodrecidas, via-se
as estruturas de madeira que sustentavam o conjunto e o fundo
de tijolos que constituíam as grossas paredes. O corredor era

O ESTAMPADOR | 103
sustentado por arcos e abóbadas, em algumas, ainda suspensas,
estavam os restos do que seriam antigos candelabros de cristal e
bronze. Na metade superior das paredes havia sido aplicado um
fino papel de parede em tons de amarelo ouro com flores de lis
branca, criando um padrão de luxo para o ambiente, mas restavam
apenas pedaços desse revestimento muito corroído e manchado de
verde, resultado de musgos que se esparramavam e desciam desde
os arcos até o rodapé de cada parede.
Entre os vãos dos arcos do corredor haviam marcos que
eram a abertura para salas, tanto para a esquerda como para a
direita. Inúmeras delas davam acesso àquela galeria. Os marcos não
possuíam mais as suas devidas portas: as que não estavam caídas e
desmontadas pelo tempo tinham sido arrancadas por saqueadores,
os saques naquele lugar vinham sustentando quem tivesse coragem
ao longo dos anos.
Entraram em todas as salas na busca do alojamento até que
chegaram no lugar que abrigara os escritórios da administração
da fábrica. Por todos os lados haviam mesas e armários velhos,
arquivos e escrivaninhas, e muita mobília como cadeiras, sofás e
poltronas.
— Cara! — despertou Polo. — Esse lugar é da hora, ou
melhor, era! Olha quanta coisa de rico tinha por aqui. E tá tudo
fodido agora, que desperdício.
— É por isso que eu acho a história do Vincenzo muito
maluca — falou Jorginho.
— E se esse garoto estiver mentindo? — questionou Thomas.
— Não temos como saber, a menos que a gente continue a
investigar — respondeu Polo.

104 | O ESTAMPADOR
— Eu acho que ele fala a verdade, é uma criança, está
abandonada e com medo, não vai mentir — afirmou Jorge. — Só
que está muito confuso, algumas coisas não fecham direito com a
história dele.
— Como assim? — indagou Thomas.
— Ele não falou nada sobre a família dele, se tem pai ou
não. Por que está sozinho neste lugar? Também não contou como
foi cair nas mãos desse Albernaz — ponderou Polo.
— Pois é — continuou Jorginho —, alguma coisa não me
cheira bem nessa história.
Chegaram ao final do grande corredor onde uma porta,
bem menor do que as portas das salas dos escritórios, selava o
final daquele espaço. Com uma das mãos, Jorginho tentou abri-la
segurando firme a maçaneta, girando-a para a esquerda e puxando-a
para fora. Com resistência e alguma dificuldade, a porta, velha e
corroída, foi aos poucos cedendo e deu acesso a um pátio muito
grande, com muitas ramagens, cercado de arcos que formavam
uma varanda em todo o entorno, com paredes pintadas de amarelo
queimado e, no piso, o mesmo padrão de cerâmicas xadrez nas
cores preto, verde, branco e vermelho.
Abrigadas por essas varandas e arcos haviam outras portas,
que estavam semi-abertas. Sob o marco de cada uma das portas
havia uma placa branca com letras azuis, feitas de louça ágata, com
a palavra “alojamento” seguida de um número. Eram mais de vinte
portas.
— Parece coisa de filme trash, macabro demais! —
exclamou Polo.

O ESTAMPADOR | 105
— Não importa — disse Jorginho. — Temos que entrar aí e
ver se os carinhas que o Vincenzo falou existem mesmo.
— Podem ter certeza que ninguém vem neste lugar há muito
tempo — concluiu Polo.
— Vamos lá, temos que ver de perto isso.
Em cada dormitório haviam fileiras de camas de ferro com
estrados de tela e colchões de palha apodrecidos e completamente
deteriorados pelo tempo. Eram quartos grandes onde as camas,
enfileiradas em ambas as paredes, uma de frente para a outra,
davam o tom de um hospital abandonado ou de caserna de quartel.
Entre cada cama, um bidê de um só gaveta. Polo tinha razão, o
lugar era macabro, dava um frio na espinha. A sujeira era tanta
que, a cada passo, era possível tropeçar em restos de colchões,
pedaços do assoalho e outros tipos de lixo e os sempre presentes
insetos e ratos.
Chegando ao final daquele quarto, na parede do fundo
havia uma porta que indicava o banheiro. Entraram e viram que
também estavam diante de uma grande sala, com pé direito alto e
com uma dezena de cabines sem portas. Era um local com pouca
estrutura e muito simples. O trio passou pelos vinte dormitórios e
todos estavam iguais: abandonados, sem vida, sem luz e mudos.
Ninguém estava mais ali para contar a história daquele lugar, os
últimos ocupantes daqueles leitos haviam deixado o lugar havia
mais de um século.
— E agora, manés? O que fazemos? — retrucou Polo. —
Isso aqui tá vazio, o Vincenzo tá doidão.

106 | O ESTAMPADOR
— Pior! Acho que ele não está nada bem, deve ter sofrido
muito pra estar viajando nessas história toda. O lugar está
abandonado mesmo — completou Thomas.
— Sei não — exclamou Jorginho. — Ainda há muita coisa
sem respostas por aqui. Esse negócio está ficando cada vez mais
misterioso. Se o lugar está tão abandonado assim, como que
o Vincenzo apareceu por aqui? E o pior, onde está o cara que
acorrentou ele, o Albernaz? Temos que descobrir. Esse cara tem
que aparecer.
— Sim, Jorge — concordou Polo —, mas não temos mais
o que fazer aqui. Ninguém dorme nesses quartos há séculos. E o
carinha afirmou que os amigos dele estariam dormindo por aqui.
— Cara, temos que continuar investigando, esta fábrica é
gigante! Se a gente não continuar procurando, não teremos como
explicar algumas coisas, o dia vai chegar e ainda vamos continuar
nessa confusão e com um garoto acorrentado. Isso só vai dar merda
— insistiu Jorginho.
— Tem certeza de que você quer saber ainda mais sobre este
lugar? Eu acho que devemos esquecer essa história toda e voltar
pra casa — comentou Thomas.
— Temos que continuar tentando — afirmou Jorginho.
— Bem, Jorge — continuou Polo —, acho que temos que
nos dividir: eu sigo com o Thomas investigando a fábrica e você
volta pra Ana e Tainá e vê se pode ajudar o Vincenzo de algum
jeito. Diz pra ele que não encontramos os amigos dele.
— Por que eu tenho que seguir com você? — saltou Thomas.
— Porque já estamos acostumados a andar neste lugar —
explicou Polo.

O ESTAMPADOR | 107
— Acostumados? Eu não estou acostumado bosta nenhuma!
Por sinal, detesto andar no escuro, principalmente neste lugar sujo
e cheio de bichos e outras coisas que se movem e que eu nem sei
o nome.
— Humm, gostei! Primeiro: parabéns por conseguir
pronunciar naturalmente mais um palavrão, isso me deixa feliz.
Segundo: não fode, Thomas! — retrucou Polo. — Deixa de
ser cagão.
— Enquanto vocês brigam, eu vou ver a Ana e a Tainá,
espero vocês voltarem com alguma novidade. Se acharem alguma
ferramenta que sirva pra quebrar aquela corrente, tragam, por
favor. Vou torcer por vocês.
— De boa, Jorginho, vamos ficar bem — concluiu Polo.

108 | O ESTAMPADOR
13 – UM PASSADO
Sob o calor e a luz da fogueira, Tainá descansava confortando
Vincenzo no seu colo, a fragilidade do menino era evidente, parecia
ser de papel, seus movimentos eram lentos e seu olhar sempre
meigo. Jorginho foi se aproximando e encontrou os dois dormindo,
pareciam dois irmãos abraçados, e, se não fosse pela corrente, seria
uma cena de pura felicidade.
Os movimentos de Jorginho fizeram com que Ana acordasse.
Dos seus lábios saiu um leve sorriso, a presença dele também lhe
trazia algum tipo de segurança. Olhar para Ana e ler o seu sorriso
significava muito para Jorge. Muito do que ele gostaria de ser estava
em Ana. Ela voltou a dormir enquanto Tainá também despertava
com a chegada do amigo.
— Oi, como vocês estão?
— Oi, Jorge. Estamos bem, o Vincenzo ainda está fraco.
Ele, às vezes, parece que não está aqui, parece que não existe, é
muito estranho. Quando vejo, ele respira fundo e acorda e segue
sobrevivendo.
— Pobre menino. Deve ter sofrido muito.
— Temos que dar um jeito nisso, Jorge. Antes do amanhecer,
temos que sair daqui e levar Vincenzo para fora, ele não vai aguentar
ficar aqui mais um dia.

O ESTAMPADOR | 109
— Sim, mas precisamos também descobrir mais sobre este
lugar. Achamos os dormitórios, mas não havia ninguém lá.
— E se os amigos do Vincenzo estiverem em outro lugar?
— cogitou Tainá.
— Até poderia — respondeu Jorginho. — O Polo e o Thomas
seguiram na busca, mas não tenho esperança que irão achar alguma
coisa por aqui, esse negócio foi esquecido há muito tempo.
— Se é assim, não temos o que fazer. Senta aí e descansa —
pediu Tainá convidando o amigo a se juntar ao grupo.
— Que dia, hein? Só surpresas, nunca vivi tanto em um só
momento.
— Quem diria, né? Você, um dos caras mais populares da
cidade, envolvido com protestos e sequestros! — rimou sorrindo.
— Bah, linda! Você fala isso achando que a minha vida é
muito maneira, tranquila, cheia de riqueza e outras sacanagens.
— E não é, Jorginho? Pelo menos você faz questão de
mostrar que leva certas vantagens!
— Pior que não, a maior parte é fake! Sou bem triste, pra
não dizer infeliz. Já pensei em morrer, e não foram poucas as vezes.
— Credo, Jorginho, que merda é essa? Você nunca me
falou disso.
— Você acha que me internaram por causa da droga?
— É o que todo mundo fala na cidade.
— Nada disso, essa foi a melhor desculpa que arrumaram
na época.
— E você quer falar sobre isso?

110 | O ESTAMPADOR
— Não tenho o que esconder, algumas coisas me
envergonham, outras não. Quando faço merda, eu assumo e pronto,
mas não vou deixar de falar o que penso. Ser filho do prefeito e ser
rico tem seu preço, isso só entortou a minha vida, sinto que sou
como um vidro, existo, mas nem todos me enxergam.
— Pra mim isso é surpresa, sempre te achei um cara seguro.
O cara das festas, das brigas, o cara que desafiava todo mundo.
Que vidro é esse?
— Geralmente todos me olham como aquele que deu errado.
Acabo sendo o que os outros querem que eu seja.
— E aí você assumiu o personagem — interrompeu Tainá.
— Pode ser, todos veem as facilidades da minha vida, a
grana pro fumo e pro cigarro, a bebida que o dinheiro também
compra e outras porcarias que só fodem a minha vida. Mesmo
assim, virei ídolo pra alguns.
— Tu sabe que nem todos pensam assim, e os que gostam de
ti de verdade não compram essa farsa — atestou Tainá.
— Sim, as famílias me odeiam. Ninguém quer seus filhos ao
lado de um cara como eu. No final de tudo, acabo sendo comparado
com o meu pai, e é tudo o que eu não quero.
— Isso mexe contigo, né?
— Demais. Por que o filho seria diferente do pai? A história
dos Fornari só se repete.
— Parece que você morre de medo dessa comparação.
— Tenho pavor! Acho que eu não sou isso, mas também
não sei quem sou. Guardo ainda umas histórias que ficaram na
lembrança da minha família e que meu avô me contou, e elas
falavam de gente boa, que lutou muito pra sobreviver e conquistar

O ESTAMPADOR | 111
alguma coisa, mas, pra isso, tiveram que sair daqui e romper com
o ciclo, foram os únicos bons nessa história toda.
— E você não faz coisas boas?
— Eu sou um desastre ambulante, não consigo ver nada de
bom em mim.
— É, teu vidro não está te deixando te enxergar. Desde que
nos encontramos hoje, eu só vi você fazer coisas legais. Pensando
nos outros e sendo um cara de moral, com a cabeça no lugar. Acho
que tu já superou a história da tua família.
— Tu é minha amiga, fala isso pra dar apoio.
— Eu não minto, Jorge.
— Pelo que sei, na minha família, todos nasceram uns pra
sacanear os outros. Nunca ouvi uma história de que fossem bons
para as pessoas, tirando aqueles que foram embora e que eu nem
sei quem são. Muita ganância e crimes, uma fixação por ter poder e
subjugar qualquer um. Só o fato de gostarem de escravizar pessoas
já mostra o desvio de todos. Nesta família já se nasce racista, meu
medo é ficar igual um dia.
— Sem chance, Jorge. É só não repetir, sempre dá pra romper
com um ciclo ruim, acho que tu já fez isso e tá pagando o preço
pela tua decisão, pelo teu caráter. Tua família teve a chance dela,
você vai ter que saber romper com isso e encontrar a tua chance. E,
pelo jeito que tu tá amarrado pela Ana… — salientou Tainá com o
rosto dourado pela luz da fogueira.
— Tu percebeu?
— Tá na cara, né?

112 | O ESTAMPADOR
Com um certo constrangimento, Jorginho olhou para Tainá,
esticou os seus dois braços com os punhos fechados na direção
da amiga e virou em seguida os antebraços para que ela visse as
marcas em seu pulso.
— O que é isso?
— A verdade. Esse foi o motivo da minha internação. Não
usei drogas pra ficar de boa, e não foi por causa delas que me
internaram, usei pra ter coragem.
— Que horror, Jorge! — reprovou Tainá, triste e emocionada.
— Nunca imaginei.
— É, nem eu, mas tentei. E não foi fácil. Durante todo o
tempo, eu sabia o que estava fazendo e queria ir até o fim. Isso não
tem explicação. É muito louco.
— Por isso ficou tanto tempo desaparecido, longe de mim
e de todos.
— É, e agora estou aqui, de volta, mas parece que nada
melhorou, voltei pra casa e encontrei minha mãe deprimida e triste,
meu pai o mesmo canalha, agora acusado de escravizar pessoas, e
nós aqui, procurados, perdidos, famintos, sujos e sem poder dar um
passo à frente pra ajudar esse garoto que sequer sabemos de onde
veio. E que pode até ser meu meio-irmão. Quer mais?

O ESTAMPADOR | 113
— Sei que tá difícil, mas, mesmo assim, não justifica tirar a
vida. Foi além da conta, sabe disso, né?
— Sei. Claro que sei.
Jorginho baixou o rosto, enxugou os olhos e sentou ao lado
da amiga, ganhando um abraço que dizia muito.

114 | O ESTAMPADOR
14 – REVELAÇÕES
— Cara, não tem mais nada depois deste pavilhão, veja
aquela porta, dá pra rua, só tem mato lá! — suplicava Thomas
tentado convencer Polo a voltar para o acampamento.
— Thomas, deixa de ser frouxo, meu. Nem parece homem.
— Pior, acho que deixei de ser.
— Você tem dúvida, meu príncipe? — zombou Polo mais
uma vez.
— Pois é, isso tá me incomodando, sabia? — surpreendeu
Thomas.
— O que tá te incomodando?
— Queria falar sobre o que rolou há pouco lá nos tanques de
água — falou Thomas olhando sério para o amigo.
— Não foi nada sério. Você não curtiu? — perguntou Polo
com o olhar baixo.
— Não se trata disso, só que eu não sei direito o que fiz, não
paro de pensar.
— Esquece, meu amigo, foi só uma brotheragem.
— Brotheragem? Eu devia ter parado, mas não — lamentou
Thomas.

O ESTAMPADOR | 115
— Acho que tu não devia te culpar, às vezes é difícil, tu
deve estar pensando na tua família religiosa. Quando falou que
tinha vontade, eu pensei o quanto podia ser legal ficar contigo.
— Não foi só um beijo — corrigiu Thomas.
— Bem, o resto foi instinto, te deu tesão, tu teve desejo e
não reprimiu. Coisa de homem.
— Tu é gay? — inquiriu Thomas com um olhar fixo no
amigo, que o encarou surpreso com a pergunta direta.
— Acho que não tenho mais como negar, né? Pelo menos
pra ti.
— E por que não falou antes?
— Olha, Thomas, já tenho problemas demais com relação
a isso, levantar essa bandeira agora só ia atrapalhar tudo na
minha vida.
— Alguém da turma sabe?
— A Ana sabe, me conhece desde pequeno.
— E o que você pensa sobre o que fizemos? Eu não fiquei
legal com isso. Nunca imaginei que teria coragem. Nem com as
gurias eu consigo ser tão espontâneo.
— Não sei o que dizer pra que tu esqueça isso tudo. Já
estou me sentindo culpado. Não imaginei essa tua reação, talvez tu
quisesse viver isso de outra forma, acho que fiz merda, né?
— Não é isso. Eu não falei que não curti, tanto que não
evitei. Mas eu não senti nada por você além do momento. Não te
culpa, tu tem razão, eu tive desejo, só que agora minha cabeça

116 | O ESTAMPADOR
tá me cobrando. Desculpa, mas fiquei com vergonha — revelou
Thomas.
— Bah, cara, eu é que estou morrendo de vergonha agora,
podia ter me controlado e acabei me comportando como um
qualquer.
— Acho que também não é pra tanto, não diz assim. Foi
bom, já te falei que eu curti. Só acho que não vai rolar mais, vamos
ser amigos, podemos pular essa parte.
— Se isso resolve pra ti, eu concordo, tu tá sendo muito
legal, sabia? Cabeça boa, Thomas, eu podia ter estragado tudo.
— Vou sobreviver, tu também, é gente fina, tô aprendendo
a me soltar contigo, vai ser bom ter um amigo viadinho pra me
ensinar — brincou Thomas.
— Olha o preconceito! — sorriu Polo. — Viadinho, mas
bate, e bate forte — disse rindo e mostrando o bíceps contraído.
— Tá bem. Vamos lá, você tem mais coragem que eu, não
curto esse negócio de entrar em mato à noite — justificou Thomas
puxando o amigo pelo braço e se encorajando para seguir em frente.
Adiante do pavilhão do alojamento seguia-se um pátio com
os restos de máquinas e ferro velho amontoados, tudo esparramado
pelo chão. Daquele ponto em diante podia-se ver o final do terreno
da fábrica. Era delimitado por um muro feito de tijolos e rebocado
até o alto com cimento, não havia mais pintura, somente resquícios
de tinta amarela. Do alto do muro havia colunas de ferro que, no
passado, sustentavam telas e grades de arames que ainda podiam
ser vistas pelos restos desses objetos antigos, caídos sobre a velha
parede. A luz das tochas não permitia mostrar detalhes, era tênue

O ESTAMPADOR | 117
e não tinha alcance. Coisas menores e encobertas pelo mato se
transformavam em armadilhas. Por algumas vezes tropeçaram
e bateram com os pés e as pernas em pedaços de ferro velho, o
perigo de fazer um ferimento era constante. Chegando perto do
muro, começaram a ver a silhueta de um portão pequeno, de cor
escura, vermelho queimado, era de ferro e também estava bastante
destruído pelo tempo. Não havia mais a fechadura ou qualquer tipo
de trava, estava semiaberto.
— Pra onde vai dar isso? — questionou Thomas.
— Cara, acho que é a saída dos fundos da fábrica, olha
lá em cima — apontou Polo. — Só tem árvores, é a continuação
daquele mato que passamos. Não deve ter mais nada depois —
afirmou Polo.
— Ótimo, então podemos voltar! — retrucou Thomas com
firmeza.
— Tá louco, meu. Voltar nada! Agora que estamos aqui,
vamos ver o que tem, vai que os amigos do Vincenzo estejam
aí fora.
— Porra, Polo! Dá pra parar com isso? Cada vez que
encontramos alguma coisa, temos que ver o que é? Caralho! Isso
nunca vai ter fim?
— Mais um palavrão, e dos bons! Tá evoluindo, garoto.
Lamento, Thomas, fodido, fodido e meio! Esse é o espírito da
investigação. Se chegamos até aqui, temos que ver onde vai dar,
sim. Vem! Me ajuda a empurrar esse portão, está aberto, mas ficou
emperrado com o tempo.

118 | O ESTAMPADOR
Saindo pelo portão, os dois se deparam com a floresta de
árvores também antigas, altas, de troncos rugosos e que poderiam
ser tão velhas quanto a própria fábrica. Andando juntos, faziam
render a luz das tochas.
Era apenas uma floresta. Aos poucos, um caminho coberto
de pequenos pedregulhos foi se mostrando. Era estreito e bastante
coberto por arbustos menores que nasciam por debaixo das árvores,
mas, mesmo assim, a pequena trilha podia ser vista e indicava ir
para algum lugar no interior do mato.
— Tá vendo isso? — apontou Polo.
— Uma estradinha.
— Sim, se tem uma trilha aqui, é porque leva a algum lugar.
— Já sei que tu vai querer ver onde vai dar.
— Cada vez gosto mais de ti — brincou Polo.
A trilha, mesmo que camuflada pelos arbustos, se destacava
do resto do terreno, eram cascalhos mais claros do que o mato e
a cor escura do terreno da floresta. Também era bastante estreita,
caminhar por ali somente em fila. Polo na frente e Thomas em
seguida. Não demorou muito e os passos do primeiro foram
diminuindo, Polo percebeu que alguma coisa havia mudado, a
largura estava aumentando, as árvores haviam ficado mais para o
fundo e, ao redor delas, havia um grande espaço, estavam bem no
meio de uma clareira.
— Veja só esse negócio. Alguém fez isso aqui, com certeza.
Bem escondido pelas árvores, nunca iríamos achar. Tem muita
pedra aí no chão, cuidado.
— Polo! — chamou Thomas imóvel, ajoelhado no meio da
clareira, segurando em uma das mãos a sua tocha e, com a outra,
limpando uma das inúmeras pedras esparramadas por todo o campo.

O ESTAMPADOR | 119
— O que foi, Thomas?
— Você viu onde estamos? Viu o que são essas pedras? —
perguntou com o rosto gélido e olhos arregalados como uma coruja
caçando à noite.
Polo ergueu a sua tocha e a clareira foi aos poucos revelando
o que eram as pequenas pedras retangulares no chão. Lápides.
Uma a uma, foram surgindo com a luz das tochas até revelarem um
cemitério inteiro. Pequeno, mas com muitos túmulos, todos ocultos
pelo pasto da clareira naquele interior da floresta.
— Puta que pariu! É um cemitério, Thomas! Que irado,
meu! Temos que ir contar pros outros.
— Irado? Cara, você é um doente! Já é de madrugada e acha
irado estar no meio de um cemitério, tu perdeu a noção.
— Não sou supersticioso.
— Polo, olha aqui estas lápides! — chamou a atenção do
amigo enquanto continuava limpando as pedras com a mão.
— O que tem aí?
— Olha a data!
— 1902 / 1919, e daí?
— Ele morreu com dezessete anos!
— E daí, Thomas? Quantos carinhas morrem com essa
idade. Naquela época morriam muito mais — justificou Polo.
— Veja nos outros túmulos, então!
— O que tem? Não estou entendendo o que tu quer dizer.
Fala logo!
— Cara! Presta atenção, olha as datas — insistiu Thomas.

120 | O ESTAMPADOR
— 1919…, 1919…, 1919…, 1919…, 1919… Santa senhora do
cacete, véio! Todo mundo morreu em 1919!
— Entendeu agora?
— Sinistro, meu!
— Morreram tantos que nem deu tempo de enterrar em um
lugar melhor, enterraram os coitados aqui, que ganharam estas
lápides de cimento — finalizou Thomas fazendo o sinal da cruz.
— Que sinistro, meu. Algo muito macabro aconteceu aqui.
— Todos morreram no mesmo ano, provavelmente no
mesmo momento.
— Você quer dizer que esses carinhas morreram todos
juntos?
— Pode ser! Alguma coisa matou todos — opinou Thomas.
— Mais um mistério deste lugar, Jorginho tem razão.
— Acho que já vimos bastante, não tem mais nada pra
nós aqui.
— Tem razão, vamos dar o fora daqui, temos que contar
pro Jorge e pras gurias, esse negócio todo tá ficando cada vez mais
sinistro.

O ESTAMPADOR | 121
15 – A PESTE
A noite era de lua cheia em Alfor, as tochas de Thomas
e Polo se apagaram e o caminho de volta já era conhecido, mas
o mistério dos enterrados no cemitério da fábrica enchiam a
cabeça dos dois de dúvidas e medos. Ao contrário da cabeça, seus
estômagos estavam vazios, a fome estava presente, o cansaço e a
falta de energia desaceleravam.
— O que você acha que aconteceu aqui em 1919?
— Não sei, Thomas — respondeu Polo. Pode ter sido uma
doença, faz muito tempo isso. Naquela época não devia ter remédios
pra tudo, houveram muitas pestes que mataram as pessoas aos
montes.
— Mas que peste foi? — insistiu Thomas.
— Não sei, Thomas. Sei lá, uma gripe forte, uma peste
bubônica. Coisa assim.
— Peste bubônica? O que é isso?
— Uma doença que vem dos ratos e mata gente —
concluiu Polo.
— Puxa! E nós fomos até lá? Entramos naqueles quartos
imundos, cheios de ratos? Tu ainda me levou até o cemitério onde
os carinhas morreram de peste que vem dos ratos? Cacete, Polo!
Quer nos matar?

122 | O ESTAMPADOR
— Ei, ei, ei! Calma aí, maluco! Sem crise! Eu não afirmei
que foi disso que eles morreram, apenas pensei. E, se foi, já passou
tanto tempo que não tem mais perigo.
— Um monte de pessoas morreu! Não tô a fim de pegar
peste dos ratos — resmungou Thomas.
— Eles podem ter sido mortos por alguém. Tipo uma
chacina, sabe?
— Legal, Polo, tá a fim de me apavorar mesmo. Quer dizer
que mataram os caras, tipo bum! fuzilados na cabeça. O que mais
você sugere?
— Se foi isso, já se passaram muitos anos, o assassino
também já morreu.
— Será? Olha o garoto acorrentado.
— É, ainda tem muita coisa aqui sem explicação. Lembra
que Jorginho falou que havia um segredo de família e ninguém
sabia o que era?
— Lembro, parece que morreu com o tataravô dele.
— Então, só o Jorginho vai poder nos ajudar a descobrir isso.
— Mas nem ele sabe o que é — afirmou Thomas.
— Por isso é segredo.
— Ou seja, só notícia ruim pra contar.
— Agora, se quer notícia boa, olha aquilo ali — Polo parou
chamando a atenção do amigo e apontando para o alto.
— Caraca! Uma árvore cheia de maçãs! — exclamou Thomas
com o rosto transformado e olhos brilhando.
— Não são maçãs, é algo melhor ainda, são pêssegos.
— Pêssegos, por aqui?

O ESTAMPADOR | 123
— Bem, isso não importa, o que vale é que estamos a salvo
da fome.
— Eu também tô morrendo de fome. Vamos colher e levar
pros outros, caraca, achamos a nossa janta!
Usando as camisas como cesto, os dois encheram o máximo
que puderam carregar e dali partiram para o interior da fábrica.
— Polo! — chamou Thomas, percebendo algo estranho
no amigo.
— O que foi?
— Tem sangue na sua perna.
— Sangue?
— Sim, você está com um machucado sangrando.
— Merda! Pensei que isso já havia sarado.
— O que é este machucado no teu corpo? — indagou Thomas
ao ver que, além do ferimento na coxa, haviam alguns hematomas.
— Nada não, Thomas, andei caindo e me machuquei, só isso.
— Caiu quando? Parece coisa de briga.
— Esquece, meu! Tô te dizendo que eu caí e me machuquei
já faz alguns dias. Não dói mais, devo ter batido e voltou a sangrar.
— Ok, vamos voltar, a Ana pode fazer um curativo.
***
No interior da fábrica, Jorge, Ana e Tainá torciam para que
os amigos encontrassem algo com o qual pudessem não só explicar
o que estava acontecendo por ali, como também ajudar a tirar
Vincenzo daquela corrente.
— Sabe, Jorginho, deve haver uma razão pra tudo isso estar
acontecendo, não sei se acredito em destino, mas, em um instante,

124 | O ESTAMPADOR
os nossos problemas se tornaram insignificantes perto do que está
acontecendo com este menino — disse Ana.
— É, também pensei nisso, esse é o mais improvável
dos encontros, todo mundo aqui tem um monte de coisas mal
resolvidas e de galhos pra tentar entender e, de uma hora pra outra,
nada importa. E, pra piorar, não temos sequer a competência pra
arrebentar uma corrente e ajudar quem importa agora, o Vincenzo.
— Vocês pensam assim? — ponderou Tainá se aproximando
do fogo e olhando para os dois amigos. — Será que os nossos
problemas deixaram de existir?
— Claro que não — afirmou Jorginho fitando a amiga. —
Mas o dele, neste momento, é o mais importante.
— Na aldeia dos meus avós, quando um conflito surge e isso
envolve muitas pessoas, sempre dizem que o principal problema
não é o que está ali. Eles acreditam que esses eventos aparecem
para resolver os conflitos menores, aqueles que cada um possui e
nunca dá conta. Ninguém percebe, mas, pra resolver o problema
maior, os menores, aqueles pessoais pelo qual sofremos e nos
vitimizamos, ganham uma oportunidade de serem confrontados e
resolvidos. No final, tudo dá certo e o benefício acaba sendo bem
mais significativo, todo mundo sai ganhando. Acho que é isso que
tá acontecendo aqui.
— Bonito isso, Tainá, acho que faz sentido. Todo mundo
está acostumado a olhar pro seu umbigo e desejar que alguém
resolva as coisas pra gente. Talvez o Vincenzo tenha vindo pra
mudar algumas coisas — concordou Ana.
— Até entendo — disse Jorginho —, mas lá fora continua
tudo igual, quando a gente sair daqui, os meus problemas vão estar
lá fora me esperando.
O ESTAMPADOR | 125
— Com certeza. Mas o Jorginho que vai sair daqui talvez
seja outro, vai depender de ti. Quem sabe esse outro Jorge mude as
coisas e consiga resolver o que até agora sequer tentou? — provocou
Tainá com sorriso no rosto.
— Tu acha?
— Tenho certeza.
A madrugada chegava e os problemas continuavam. Sem
entender muito a sequência dos fatos, o grupo sabia que as coisas
ainda não estavam fáceis para eles, o problema gerado pela
manifestação na prefeitura só os levara a um outro ainda maior.
Havia uma consciência sobre a gravidade do que se apresentava
dentro daquela fábrica, os seus desdobramentos não importavam
muito desde que conseguissem retirar o menino dali, com vida e a
salvo de quem o colocara naquela situação. Jorginho pensava em
todos, o sentimento de responsabilidade sob os demais era presente.
O mistério daquele lugar e como ele havia os envolvido não saía da
sua cabeça. Começava a sentir falta da droga, fumar traria a calma
que ele tanto precisava, era o que sempre fazia quando queria
resolver seus galhos, mas o momento era outro, calar e refletir era
fundamental, precisava ser ele mesmo e liderar.
— E aqueles dois, estão demorando novamente.
— Isso tudo aqui é grande e desconhecido e, à noite, tudo
fica ainda pior, né, Jorge? — ponderou Tainá.
— Tenho medo que esses moleques se metam em algum
acidente, tudo aqui parece ser perigoso.
— Eles são espertos, meio imaturos, mas sabem se cuidar,
até água já encontraram, quem sabe não nos surpreendem de novo.

126 | O ESTAMPADOR
— Pois é, Ana, só que eu daria tudo pra sair daqui e tirar
esse garoto dessa situação.
— Vamos conseguir, tenho esse pressentimento —
encorajou Tainá.
— Por que tudo isso aqui foi abandonado? — interveio Ana.
— Esse é o segredo que te falei. Ninguém sabe, meu pai
nem era nascido quando a fábrica fechou. Na cidade, nem os mais
velhos dizem alguma coisa sobre esse lugar.
— Teu pai sabe?
— Se sabe, não fala, e se não fala, é porque não deve ser
coisa boa.
— É muita coincidência aparecer dois casos de escravidão
e maus tratos no mesmo dia. E tudo envolvendo a tua família, na
verdade, o teu pai.
— Tu não imagina o quanto isso me deixa mal, nem sei o
que sinto, se é raiva, medo, vontade de detonar tudo… Parece que
a gente só tem coisa ruim pra contar. Se esse garoto foi castigado
pela mão do meu pai, isso vai ser o fim de tudo, não vou perdoar,
vai ser foda.
— É, um dia a vida nos cobra tomar decisões, acho que tu
tá perto de uma.
— Com certeza, Tainá — suspirou Jorginho.
Do fundo escuro e quase infinito do pavilhão sobressaiu um
barulho de coisas caindo e gente tropeçando.
— Puta que pariu, que merda! Quem deixou essa pedra no
caminho? — gritou Thomas.
— Quem está aí?

O ESTAMPADOR | 127
— Somos nós, Jorginho.
— Porra, meu, vocês demoraram de novo, tava bom o
passeio?
— Quando tu souber o que achamos lá atrás, essa fala vai
perder o sentido — alegou Polo.
— O que aconteceu? Tropecei nesta pedra e fodi meu pé,
isso sim — resmungou Thomas.
— Não é uma pedra, é um balde? — Jorginho iluminou com
uma tocha, indo em direção aos dois.
— Balde?
— Sim, olha!
— Está cheio de cimento endurecido, por isso parece uma
pedra — explicou Polo.
— Gente mais maluca! Encher um balde de cimento, isso
dói pra cacete.
— O que é isso? Frutinhas? — perguntou Jorginho.
— É, essa é a parte boa da exploração. Encontramos um pé
cheio de pêssegos.
— Cacete, mano, isso é um banquete! Vamos levar pras
gurias.
— E o meu pé? Quem vai cuidar?
— Alguém te dá um beijinho e passa — falou Polo sorrindo.
Pêssegos maduros, uma fruta suculenta e saborosa, aquilo
era um manjar. Naquelas circunstâncias, qualquer desavisado que
passasse por ali e visse a cena diria que um grupo de escoteiros
vivia o seu melhor momento num acampamento. Mas a realidade
era outra.

128 | O ESTAMPADOR
— Bah, que fome que eu tava, muito bom essa frutinha.
— Tem muito mais lá no pé, Jorginho, podemos viver disso
por dias — prometeu Polo.
— Nem fodendo eu ficaria aqui mais um dia, esse lugar tá
mexendo demais comigo.
— Isso a gente não sabe, se não conseguirmos tirar o
Vincenzo da corrente, vamos ficar aqui até alguém vir nos ajudar
— ponderou Ana.
— Então já sabemos o que fazer assim que o dia nascer,
alguém vai ter que ir em busca de ajuda.
— Tá certo, Tainá, cada vez isso fica mais claro pra mim —
concordou Ana mastigando um pêssego e limpando a boca com a
manga do moletom.
— Até onde vocês foram?
— Então, Jorginho, se você acha que este lugar aqui é
macabro, pode ter certeza que tem muito mais história do que tu
possas imaginar.
— O que tu tá dizendo, Polo?
— Nós encontramos uma floresta e, no meio dela, um
cemitério.
— Caraca, cemitério de verdade?
— Não, de mentira, fizeram só pra decorar a floresta.
— Porra, meu, tu não consegue falar nada sério?
— Mas olha a tua pergunta, seu mané. Claro que de verdade,
está cheio de túmulos, todos têm nomes e números nas lápides.
— E isso é legal?

O ESTAMPADOR | 129
— Como assim, Tainá? Óbvio que ninguém deve saber desse
cemitério, se nem dessa fábrica gigante as pessoas falam, quanto
mais de um cemitério nos fundos dela.
— Ok, Jorge, mas naquela época devia ser comum enterrar
as pessoas em qualquer lugar, isso aqui é o fim do mundo —
explicou Thomas.
— A questão aqui não é onde enterraram, mas do que
morreram.
— Como assim, Polo?
— O lugar é macabro, e todos morreram no mesmo momento.
— Mesmo momento?
— Sim, algo aconteceu em 1919, foi o ano em que eles
morreram.
— Jorginho, não foi o ano que tu disse que a fábrica fechou?
— lembrou Ana.
— Não, foi no ano seguinte.
— Então tá aí o segredo da família, a fábrica não faliu, foi
fechada com a morte de todos.
— Se foi isso, então é só o começo do mistério. São muitos
túmulos?
— Algumas dezenas. Tem muita gente morta lá, Jorginho,
e, pelas datas que estão naquelas lápides, a maioria eram crianças.
— Crianças? — se espantou Ana.
— Isso aí, jovens e crianças — completou Polo.
— Nós precisamos descobrir o que houve, isso pode explicar
muita coisa, até mesmo o fato do Vincenzo estar aqui.

130 | O ESTAMPADOR
— O Polo disse que eles morreram da doença dos ratos —
afirmou Thomas.
— Doença dos ratos? — perguntou Jorge.
— Sim, como é mesmo o nome, Polo?
— Peraí, eu não disse que foi isso, eu falei que naquela
época tinha muitas pestes e que não havia remédio pra tudo, pode
ter sido uma peste bubônica.
— Improvável, a peste bubônica tem controle, ainda mais
num lugar que tinha recursos. E se foram mortos? Uma chacina?
— Olha, Jorginho, se foi isso, então a tua família é de
genocidas.
— Boa lembrança, Polo, bem adequado dizer isso pro
Jorginho numa hora dessas — repreendeu Tainá.
— Foi mal, mas foi ele quem falou em chacina.
— Droga, sem celular não dá pra pesquisar. A gente não tem
Google.
— Boa, Thomas! Não temos Google, mas tem os arquivos
lá da administração da fábrica, tem que ter alguma coisa escrita
naqueles armários — lembrou Polo.
— Ah, não, eu não volto lá — reclamou Thomas com olhos
esbugalhados.
— Temos que ir pra descobrir.
— Vamos nós, Jorginho, eles ficam aqui com a Tainá e o
Vincenzo, precisam descansar e pensar num jeito de quebrar essa
corrente — propôs Ana.
— Tá certo, preciso enfaixar meus pés e calçar meus tênis
ou vou ficar sem eles por muito tempo.
***

O ESTAMPADOR | 131
— Como ele está, Tainá?
— Não dá pra dizer, Polo, tem momentos que ele parece
estar longe, acorda, olha pra gente e não diz nada, depois volta a
dormir.
— E o que a gente faz?
— Nada, só esperar por um milagre.
— Não acredito nisso.
— Nem eu, mas acredito no bem. Ninguém pode sofrer
assim por tanto tempo, alguma coisa vai ter que acontecer.
— Neste caso, o milagre somos nós.
— Não sei mais o que pensar, pede ao Thomas pra pensar
em algo.
— Ele sabe tanto quanto nós, acho que não rola nada vindo
daquela cabeça.
— Ouvi meu nome?
— Sim, a Tainá acha que tu podia continuar pensando em
algo pra tirar o Vincenzo daqui.
— Não faço outra coisa desde que encontrei ele. Não quero
passar mais uma noite neste lugar. Mas também não sei o que fazer,
não temos ferramentas.
— Mas em algum lugar deve ter, óbvio. Essa fábrica deve
ter uma oficina, sei lá, um lugar onde arrumavam as coisas, só
temos que achar — cogitou Polo.
— Porra, Polo, tô exausto e tu também, já andamos por
quase tudo.
— Que isso, meu, não vimos um décimo deste lugar, é
enorme demais.

132 | O ESTAMPADOR
— O Polo tem razão, Thomas. Quanto mais a gente fizer
algo, as chances do Vincenzo sair vivo daqui aumentam.
— Pelo amor de Cristo, desse jeito o Vincenzo vai sair vivo
e eu, num saco de defunto.
— Tu é sempre dramático assim?
— Não, sou realista. Isso tudo aqui é um pesadelo.
— Se é um pesadelo pra ti, é pra todo mundo, ou tu acha que
a gente tá adorando isso tudo?
— Tainá, tu até agora não arredou o pé daqui, é fácil falar
quando não se sabe. É um lugar cheio de ratos, pestes, baldes com
cimento no chão e milhares de insetos que podem te matar com
uma só picada e…
— Tá bem, tá bem. Não me tira pra covarde, fica tu aqui
com o Vincenzo e eu vou procurar esse lugar com o Polo.
— Eu?
— Quem mais?
— Eu não vou saber o que fazer se esse moleque acordar, ou
pior, se morrer nas minhas mãos — argumentou Thomas.
— E o que tu sugere?
— Sei lá, Polo, esperar até que alguém nos tire daqui.
— Muito bem, e se quem vier aqui forem os mesmos que
acorrentaram o garoto? Acho bom tu me dizer que sabe lutar.
— Vocês só pensam em coisas ruins.
— Nós? O único desesperado aqui é tu. Só pensa em desgraça
maior do que esta em que a gente tá metido — disse Tainá.
— Sagradas escrituras do cacete, por que saí de casa hoje?

O ESTAMPADOR | 133
— Boa! Viu como tu tá evoluindo? Já tá misturando palavras
divinas e profanas. Vamos lá, cara, temos mais uma missão aqui.
— Que inferno isso — Thomas reagiu ao chamado de Polo
com os braços cruzados e a cabeça pro alto.
Sobre uma coisa Thomas estava certo: se nada acontecesse
nas próximas horas, teriam mesmo que contar com a ajuda de
fora, aquilo tudo estava longe de terminar. Mas o risco da dúvida
imperava, nada ali era amigável e eles faziam o máximo que as
suas experiências de vida podiam ajudar.
Duas duplas se preparavam pra sair. Jorginho, com os pés
enfaixados e usando seu tênis, ainda sentia as dores dos cortes.
Ana preparava duas tochas, refazendo as que haviam se apagado.
Thomas e Polo, ainda sentados, devoravam todos os pêssegos que
podiam na precaução de não passar fome na nova incursão.
— E aí, tá pronta?
— Nunca se está pronta pra ir ao desconhecido, mas sei da
importância disso pra ti. Sou parceira e tô curiosa também.
— Valeu, gata, fico te devendo essa.
— Tu não me deve nada, Jorginho, quem deve alguma coisa
aqui é o teu pai e a história da tua família, esses, sim, precisam
explicar muita coisa.
— Lembra quando falei pra vocês que essa fábrica me
chamava? Lembra dos meus sonhos? Pois então, eu estou com a
mesma sensação. Seja o que for que está lá dentro, talvez seja essa
a chance de eu descobrir.
— Então, meu amigo, vamos embora terminar com essa
dúvida pra sempre.

134 | O ESTAMPADOR
— Bora!
No mesmo instante, Polo e Thomas surgiram também com
tochas e prontos para sair.
— Ei, vocês não vão ficar com a Tainá?
— O nosso gênio evangélico aqui teve uma outra boa ideia.
— Peraí, eu não dei ideia nenhuma, você é que não para de
querer me ferrar com essas saídas — resmungou Thomas.
— Não entendi — falou Jorginho. — Aonde vão?
— Vamos procurar a oficina da fábrica, com certeza tem
que ter uma e, se isso for verdade, deve estar cheia de ferramentas.
— Boa, mas por onde andamos não tinha nada disso, vocês
viram, né?
— Ótimo, isso tem seu lado bom, não precisamos passar por
lá novamente, vamos pro outro lado.
— Neste caso, temos que marcar a volta, não podemos deixar
Tainá sozinha aqui sem que ela fique tranquila — sugeriu Thomas.
— Como fazemos? — perguntou Polo.
— A Ana e o Thomas têm relógio, marcamos a volta pra
daqui uma hora em ponto, quem chegar primeiro fica com a Tainá
e aguarda os outros — propôs Jorge.

O ESTAMPADOR | 135
16 – PASSOS NO ESCRITÓRIO
A na fez uma careta, mas manteve o foco. Passou a alça de
uma pequena bolsa que carregava no ombro e acomodou ela como
se fosse uma capanga em sua cintura, carregava ali um isqueiro
do Jorginho e dois pêssegos. Certificou-se que estava bem para a
jornada de ida e volta de uma hora. Antes de acender a sua tocha,
embebeu a parte coberta por lã e estopa na graxa que conseguiu
extrair das engrenagens dos teares. Foi quando se deu conta que
precisaria garantir água. Ela olhou para todos os lados e não viu
nada que pudesse usar como um cantil. Não havia plásticos de
espécie alguma naquele lugar, os objetos mais apropriados eram
latas, a maioria enferrujadas.
Ana olhou os arredores com mais atenção. E percebeu que,
ao entrar naquele lugar, no entorno da porta principal, havia uma
grande quantidade de bambu que crescera ao longo de quase um
século. Foi quando se lembrou de um programa de TV que ensinava
a fazer um cantil com bambu. Sem muito tempo a perder, perguntou
a Jorginho sobre como cortar um pedaço, o amigo logo apresentou
a solução.
— Mas isso é um canivete. Olha a grossura deste bambu —
questionou já no lado de fora da fábrica, frente a uma verdadeira
floresta daquela gramínea.

136 | O ESTAMPADOR
— De boa, Ana, ele tem muito fio e tem esta parte com
serrinha. Se você tiver paciência, eu consigo cortar um pedaço
pra nós.
Logo uma lembrança funesta passou pela cabeça de Ana.
— Foi com este canivete que você…?
— Que eu furei o viad…
— Olha o que tu vai dizer! — ela corrigiu antes mesmo que
ele pudesse terminar a ofensa.
— Foi mal, quis dizer o carinha que meu pai comeu.
— Te regula, Jorginho, tu nem sabe quem é esse pobre
coitado. Vindo do teu pai, pode ter certeza que é outra vítima.
Acho que tu vai ter que resolver isso e se desculpar com ele, seja
lá quem for.
— É, tu tem razão, eu podia ter matado o cara e agora ia
estar preso.
— Bingo! Um momento de lucidez nesta parte da tua história
— concordou Ana.
Em alguns minutos, Jorginho conseguiu cortar uma seção
do bambu, era um corte tosco, mas tinham agora um recipiente
seguro para levar água. Fez mais um furo no topo de um dos
lados e pronto! Era só colocar água dentro e levar, sem que se
preocupassem com a sede.
Da mesma forma, Polo e Thomas fizeram um outro cantil
improvisado com os mesmos troncos de bambu. De tocha em punho
e prontas para partir, as duplas tinham destinos diferentes, mas
as missões eram importantes, lutavam pela sobrevivência e pela
verdade.

O ESTAMPADOR | 137
Mesmo acompanhada, Ana sentia medo daquele lugar. Ela
se esforçou para se controlar. Ela começou a se sentir num filme
de terror no qual um psicopata saltaria a qualquer momento em
seu pescoço saindo por de trás de uma das tantas colunas escuras
e sombrias daquele lugar. Angustiada com a ideia de se perder
de Jorginho, Ana grudou ao lado do amigo e por vezes segurou a
sua mão.
Eles caminharam por três minutos tentando identificar a
direção correta, mas não sabiam dizer se estavam chegando mais
perto ou se distanciando da sala da administração da fábrica.
Mesmo tendo passado por ela antes, Jorginho não tinha a garantia
de estar indo pro lado certo.
— Ana, cada vez que tu segura a minha mão, sinto que tu tá
tremendo, tu tá com medo?
— Sim, também tenho as minhas fraquezas, não tenho
nenhum pressentimento bom com este lugar.
— Bah, gata, eu estou aqui contigo, fica de boa. Tu tá assim
porque é noite e tudo aqui mete medo, mas ela está abandonada há
mais de cem anos, não tem perigo nenhum.
— Eu sei que tu me protege, mas diz isso também pro
bandido que prendeu o Vincenzo.
Ao longe eles escutavam ainda as vozes de Thomas e Polo
se distanciando. Caminhavam na direção oposta, tudo ficava mais
difícil, qualquer ajuda seria impossível e os dois teriam que se virar
sozinhos.
— Quer voltar? Eu sigo daqui sozinho.
— Nada disso, quem está fodido aqui ainda é tu, pelo teu
olhar e pelo jeito que tu manca de vez em quando, dá pra ver que
teus pés estão te matando.

138 | O ESTAMPADOR
— Vou ficar bem, nada que um repouso não recupere, até lá,
vou detonar eles mais um pouquinho.
— Ainda masoquista, meu querido. Te admiro.
A luz de uma tocha não é nada confiável, em um momento
você tem uma luz que ilumina tudo ao redor, no segundo seguinte,
basta que uma corrente de ar faça o menor vento e a chama
enfraquece e te deixa quase que na escuridão. Tudo o que aquelas
tochas podiam fazer era iluminar o lugar por onde os dois pisavam.
Passo a passo e sem poder caminhar mais depressa, os ambientes
sinistros da fábrica iam se apresentando pra Ana.
Atravessar o grande salão dos teares e fiadeiras no escuro
demorava. Por vezes, o ruído de animais que corriam entre os
escombros, assustados com a presença dos estranhos, assustava os
dois mais do que o próprio animal. Atravessando os pavilhões um
após o outro, Jorginho percebeu algo familiar, ou melhor, algo que
já havia visto antes, uma vez que nada ali parecia ser familiar.
Sob seus pés, um piso de ladrilhos xadrez surgia entre as sujeiras
do chão.
— Olha aqui, Ana, acho que estamos perto, lembro
deste chão.
— Mal enxergo o caminho.
— Deve ser por aqui, sim, tem uns arcos ali adiante e depois
uma sala grande, vem atrás de mim.
Por alguns minutos, os dois puderam se atentar aos detalhes
do espaço, aquela ala era bem diferente dos demais pavilhões, e a
memória de Jorginho confirmava que estavam no lugar certo. A
fraca luz das tochas iluminava o corredor com os arcos que davam
acesso à administração da fábrica, poucos metros à frente.

O ESTAMPADOR | 139
— Chegamos, Ana, é por aqui, foi onde estivemos quando
fomos procurar os dormitórios. Olha, aquela porta dá acesso ao
escritório.
Apontou a porta para Ana e sorriu, seu coração batia
acelerado, apostava que uma parte do mistério dos Fornari estaria
escondido ali e cabia a ele desvendar o que tanto incomodou por
séculos a sanidade da sua família.
— Caramba, Jorginho, quanto desperdício, olha essas
coisas todas destruídas — comentou Ana espantada com o estado
de degradação daqueles móveis, paredes e outros objetos corroídos
pelo tempo.
— Pensa bem, Ana, tem o lado bom de tudo isso, essa fábrica
foi fechada às pressas, nada foi retirado daqui, se alguém saqueou
a fábrica nestes anos todos, não se interessava por documentos.
Então, se eles existem, com certeza devem ainda estar aqui, só
precisamos encontrar.
— E você sabe o que está procurando?
— Não tenho a menor ideia, só sei que temos pouco tempo
e precisamos encontrar algo que faça sentido e responda as coisas
que ainda não sabemos.
— Então vamos lá, por onde começar?
— Existe uma sala ali que está cheia de armários e arquivos,
só pode ser lá.
No interior da sala, os móveis de escritório do século
XIX se desmanchavam e amontoavam-se entre coisas corroídas
pelo tempo e muita sujeira acumulada no chão. Havia cadeiras e
muitas escrivaninhas. Por trás delas, armários fechados e arquivos,
alguns abertos, outros ainda chaveados. Pareciam intactos, tal qual

140 | O ESTAMPADOR
ficaram no dia em que tudo aquilo foi abandonado. Os móveis eram
de madeira, mas madeira boa, feitas para durar muito tempo, por
mais que a aparência fosse ruim, a maior parte daqueles objetos
havia resistido, as chances de encontrar algum documento eram
boas, mas o tempo não estava a favor de Jorginho e Ana.
— E então, meu amigo, por onde se começa?
— Sei lá, Ana, tem tanta coisa aqui, não dá pra escolher,
vamos começar a abrir tudo e ver o que tem dentro.
— E os armários que estão fechados?
— Simples, gata, é só abrir.
— Como?
Inclinando a cabeça para o lado e dando um sorriso
simpático de lábio fechado para Ana, Jorginho rodopiou em um
só pé e, com a outra perna, chutou com força a porta de um dos
armários do escritório. Como se fosse uma placa de isopor, a porta
cedeu, quebrando ao meio e expondo todo o conteúdo que tinha lá
dentro. Ana o observou de forma inquisidora.
— Humm, machão, hein?
— Só diversão — ele respondeu entre risos.
— Então vai se divertir com todos os outros, eu prefiro ver
o que tem dentro.
E, daquele jeito, as portas foram se abrindo e os registros
confinados por um século começaram a surgir diante dos dois.
Papéis mofados, pastas com grande quantidade de documentos
e uma história inteira registrada ali. Muita coisa estava perdida,
ou não dava para ler ou sequer segurar, outras pareciam ter sido
editadas dias atrás. Era pura sorte e, a cada armário que iam
abrindo, as surpresas também iam surgindo.

O ESTAMPADOR | 141
— Tem coisa que nem dá mais pra ler, estão apagados ou
manchados pelo tempo.
— Temos que tentar, já vi que tem muito papel de coisas que
são do negócio da fábrica, mas nada que fale nos funcionários —
disse Ana.
— Precisamos ver alguma coisa que fale neles ou sobre o
que aconteceu em 1919.
— Tá difícil, e com essa luz de tocha ainda, pior.
— Tem aquele arquivo ali, está aberto, esse não vou precisar
arrombar.
Abrindo o velho arquivo de madeira com quatro gavetas
grandes, Jorginho se deparou com uma pilha de jornais velhos.
— Só tem jornal — resmungou.
— Sério?
— Sim, não adianta pra nada.
— Errado, meu amigo, isso pode dizer muito.
— Como?
— Que tal saber sobre o que acontecia aqui naquela época.
— Humm, boa, não pensei nisso.
Em minutos os dois estavam sentados ao chão com pilhas do
jornal Correio do Povo.
— Temos que ler tudo? — perguntou Jorginho.
— Acho melhor separar por data, vamos pegar os últimos.
Olha este aqui, é de 1920. E tem mais.
E assim foram passando o olho nas manchetes de cada
jornal, muitos estavam se decompondo e, ao tentar folhear, se
desmanchavam entre os dedos de Ana e Jorginho.

142 | O ESTAMPADOR
— Não tem nada aqui, Ana. Isso é desanimador.
— Temos que continuar, Jorginho, nosso tempo está
terminando.
— Ok, vamos pra 1919.
Mais uma vez as notícias não deixavam nenhuma pista,
falavam de fatos da capital e pouca coisa do interior.
— Nada?
— Aqui nada.
— 1918?
— Vamos lá.
E assim seguiram, já sem muitas esperanças de encontrar algo.
— Aqui tem uma notícia diferente — anunciou Ana.
— O que fala?
— Gripe espanhola. Já ouviu falar?
— Não, isso foi sério?
— Sim, matou muita gente no mundo todo.
— Quando foi isso? Aqui se fala de casos no Brasil, e em
Porto Alegre e Rio Grande. Foi uma pandemia?
— Sim, parece que muita gente morreu.
— Será que foi isso que aconteceu aqui? — perguntou
Jorginho.
— É uma pista, vamos pegar todos os jornais por volta
dessa data.
— Olha, tem esse aqui, mas a coluna está em branco.
— Em branco? Isso não é comum em jornais — explicou Ana.

O ESTAMPADOR | 143
— Tem um texto aqui neste outro jornal, é de 29 de outubro,
olha o que diz:
Editorial: Pedimos que o Governo do Estado tome medidas
emergenciais para tentar debelar a epidemia. Pedimos, anteontem,
que, como medida preventiva, fossem desinfetados os hotéis, casas
de pensão, casas de cômodos, enfim, todas as casas de habitação
coletiva. Essa providência ainda não foi tomada. É necessário
também que essas desinfecções se estendam aos casebres que
abundam na cidade, a começar pelo Areal da Baronesa, onde todas
as epidemias encontram campo franco para o seu desenvolvimento.
Parece que a Administração Municipal faz garbo em não atender
às reclamações do público e manter suja a cidade. Na época que
atravessamos não é possível tolerar tal coisa. É possível que o
número de funcionários da Diretoria de Higiene seja exíguo para o
momento atual. Se assim for, cumpre ao governo contratar médicos
e demais funcionários para atender ao excesso de serviço.
— Cacete, o jornal estava denunciando a falta de tratamento
— indicou Jorge.
— Essa gripe espanhola deve ter feito um grande estrago.
E, se chegou nesta fábrica, pode ter certeza que foi isso que matou
todos aqueles garotos.
— E por que não diz mais nada? Esse último jornal de
novembro está apenas com o título: “A influenza hespanhola”, e as
colunas estão em branco.
— Isso deve ser censura, Jorginho, a nota de setembro metia
pau no governo, com certeza esses caras não fizeram nada ou muito
pouco pra conter essa pandemia.
E, de fato, a interpretação de Ana estava correta, pouco
se podia fazer no Brasil daquele ano, a saúde era péssima e os
144 | O ESTAMPADOR
atendimentos nos hospitais eram muito precários. A fim de conter
a epidemia, o presidente do Estado do Rio Grande do Sul, Borges
de Medeiros, dividiu a capital em 25 quarteirões sanitários e criou,
em 30 de outubro, o Comissariado de Abastecimento e Socorros
Alimentícios. Surgiram também postos de socorro provisórios em
algumas escolas, e as associações civis e militares ofereceram as
suas sedes para serem transformadas em hospitais.
Em novembro, a epidemia atingiu o seu ápice e o governo
emitiu uma circular determinando censura às publicações
referentes à Influenza, como forma de evitar um clima de pânico
e alarmismo. O Correio do Povo, sob censura, pois apontava os
erros governamentais no combate à epidemia, em protesto, decidiu
publicar colunas em branco, sem nenhum texto, o que indicava aos
seus leitores que estava sob intervenção.
— Não havia vacina naquela época, então o tratamento
devia ser péssimo, as pessoas morriam e pronto.
— E se isso chegou até aqui, está na cara que também não
podiam fazer nada, todo mundo morreu e ninguém ficou sabendo.
— Isso aí! Faz sentido pra mim. Está aí o segredo da tua
família, todos os funcionários do teu tataravô morreram e foram
enterrados nos fundos da fábrica, naquele cemitério escondido
no mato.
— Não pode ser só isso — falou Jorginho com um olho
baixo e passando as duas mãos no rosto suado.
— Mas o que mais poderia ser?
— Pensa bem, Ana, esse negócio da gripe atingiu todo
mundo, o planeta todo estava infectado, morrer aqui ou ali era uma
coisa normal, ninguém daria bola pra isso, dizer que as pessoas

O ESTAMPADOR | 145
daqui morreram de gripe espanhola seria uma notícia normal
naquela época. Tem algo mais sério nisso tudo.
— Mas o que seria, Jorginho?
— Não sei, mas vou descobrir.
— Como?
— Temos que ver os registros dos empregados, tem que
existir alguma coisa que fale deles.
— Só temos meia hora, depois precisamos voltar.
— Então me ajuda, vamos continuar.
Ana acompanhava Jorginho pelo interior do escritório,
observando ao redor. Ele caminhava determinado, mas um pouco
contrariado com os fatos do jornal. Para ele, o segredo de família
não era a gripe ter matado as pessoas, mas havia uma hipótese que
começava a se formar em sua cabeça, isso o incomodava bastante.
— Lembrei de uma coisa que vi num filme antigo —
falou Ana.
— E o que é?
— Livros! Livros de registro. Naquela época tudo era
registrado em livros, não havia outra forma. Nesse filme, o cara
escrevia e anotava tudo em livros de capa preta.
— Boa, vamos ver se aqui acontecia o mesmo.
E, abrindo todas as gavetas que encontraram pela frente,
os dois foram juntando em um monte cada livro de registro que
encontravam, não eram muitos, mas eles realmente existiam.
— O que diz nesse? — perguntou Jorge.

146 | O ESTAMPADOR
— São compras e números, acho que são livros da
contabilidade.
— Esse aqui também é da contabilidade e esse aqui parece
ser um livro de coisas que a fábrica importava, olha! Fala aqui de
máquinas vinda do porto de Rio Grande.
— Porto? Então a gripe pode ter vindo por lá.
— Faz sentido.
— Ei, Jorginho, acho que encontrei algo, olha este.
— Cacete, mulher! Você achou um registro com nomes! —
sorriu Jorginho se acomodando ao lado da amiga e lendo a página
inicial. — É o livro dos escravos!

O ESTAMPADOR | 147
17 – POLO
— Vai ficar sem camisa?
— Sim, tá quente e posso ter que usar a camisa pra outras
coisas — respondeu Polo.
— Humm, e os mosquitos?
— O que tem eles?
— Vão te comer inteiro.
— Se forem carnívoros, tipo canibal ou um animal selvagem
como um tigre, sim. Mas se forem só mosquitos, vão apenas
me picar.
— Você entendeu, seu mané.
— Bora, temos que achar essa oficina.
— Vai na frente. Quem inventou essa foi você, Polo.
— Imagina se eu não fosse gay, o que mais tu iria esperar
de mim.
— Isso não faz de ti menos homem, só não quero correr o
risco de ser atacado sem ter a chance de poder fugir.
— Então vamos por aquele lado — disse apontando para a
ala norte da fábrica, uma série de pavilhões ainda não explorados.
Havia uma brisa que soprava suavemente e invadia os
espaços pelas aberturas das janelas agora inexistentes, trazendo
uma infinidade de odores. Aquilo refrescava a noite de verão,
148 | O ESTAMPADOR
parecia penetrar nos corpos deles, revitalizando-os, deixando-os
mais fortes. O cheiro da mata, das árvores, misturado ao cheiro
ocre presente na fábrica, era uma experiência sensorial completa
que os envolvia. Informações impossíveis de serem decodificadas
ao mesmo tempo.
— Polo, tu sabe pra onde tá indo?
— Óbvio que não, Thomas, por isso se chama exploração, ir
onde não se conhece.
— E qual a chance da gente morrer aqui?
— É bem maior do que quando tu tá deitado no teu quarto
de luxo.
— Que bom, muito animador isso.
— Olha ali, tem uma porta no final deste pavilhão —
apontou Polo.
— Fim da linha, está fechada.
— Errado! Início de tudo, vem! Me ajuda a abrir.
— Cacete, tu não vai parar mesmo.
— Ilumina aqui, Thomas, tem um cadeado e temos que
quebrar ele. Não dá pra arrombar a porta, é muito grande. Está
vendo aquele ferro ali no chão, me traz aqui.
— É pra iluminar ou pegar o ferro?
— Bah, meu! Que boa vontade, traz aqui o ferro que eu
ilumino com a minha tocha.
Polo enfiou a ponta da barra de ferro na aldrava do cadeado
e foi girando para um dos lados. Mesmo envelhecidas pelo tempo,
as ferragens pareciam não querer ceder, estavam maleáveis,
entortavam, mas não quebravam. Era uma manobra difícil, ainda
mais com uma das mãos segurando a tocha. Por vezes, Polo fez

O ESTAMPADOR | 149
força e continuou torcendo, até que o elo quebrou jogando o jovem
no chão e fazendo com que a barra caísse em cima do ferimento
em sua coxa.
— Ai, que merda! Puta que pariu! — gritou caído, segurando
a parte superior da coxa e sentindo uma dor lacerante.
— Cuidado, Polo, que droga, olha o teu machucado. Tu
tá bem?
— Não tô, não, mas vou ficar. Me deixa aqui no chão, tá
doendo muito, que merda.
— Deixa eu olhar, tem sangue saindo daí.
A barra atingiu o corte do machucado que já estava
cicatrizando, o ferimento abriu e o sangue voltou a sair, não dava
para conter as lágrimas diante da dor que Polo sentia.
— Porra, Polo, isso pode piorar, que tal a gente voltar?
— Nem pensar, isso logo vai passar, só preciso me acalmar,
pega a minha camisa e amarra na volta, aperta bem, isso deve
resolver.
— Acho isso uma loucura, tu precisa de um bom curativo,
ou pontos.
— Se não fiz pontos no dia, não vai ser agora que vou fazer
isso — falou irritado.
Alguns minutos se passaram até que a agonia desaparecesse
e a dor aliviasse. Conseguiu sentar com as pernas flexionadas e
repousou a cabeça sobre os joelhos. Por alguns instantes, ficou
pensativo, apenas respirava. Sentiu a mão de Thomas sobre os seus
cabelos, levantou a cabeça e viu o amigo sorrindo pra ele.
— E aí, melhorou?
— Acho que sim, a dor diminuiu.
150 | O ESTAMPADOR
Sentando ao lado de Polo, Thomas fez um carinho no braço
do amigo e puxou uma conversa.
— Será que agora tu vai poder me contar o que aconteceu?
— Tá falando do que, mané?
— Do que seria, Polo? Deste machucado, tu tem hematomas
na barriga e nas costas, isso foi soco, sem dúvida alguma, e esse
furo na coxa, que só pode ter acontecido na mesma briga.
— Briga? Que briga, Thomas, não viaja.
— Tá bem, se tudo que eu disse não é verdade, então tem aí
um bom motivo pra tu me contar o que foi isso.
— Já vi que tu vai torrar o saco com isso e não vai me deixar
enquanto eu não falar.
— Exato.
— Vai me prometer que não vai contar nada disso pra
ninguém, bico fechado.
— Prometo.
— Eu fui atacado, me acertaram.
— Foi uma briga de rua?
— Não, antes fosse, daí a vítima não seria eu.
— Quem fez isso?
— O Jorginho.
— O quê? Como assim?
— Era eu o cara que estava com o filho da puta do pai dele.
— Meus Deus do céu! Pelo coração de Cristo! Que merda,
não tinha como eu imaginar isso.
— Entendeu porque não posso falar sobre isso? O destino é
foda, foi me juntar justo com o cara que me furou com uma faca.

O ESTAMPADOR | 151
— De boa, Polo, acho que tu deveria conversar com ele
sobre isso.
— Tá louco, mané! Um dos dois vai sair morto, só que,
desta vez, não vai ser eu. Não mexe nesse vespeiro, isso só vai dar
coisa ruim.
— Como ele não te reconheceu?
— Tava escuro, foi no quarto do Antoninho, eu tava com o
capuz do moletom. Na hora eu não sabia o que fazer, quando vi,
aquele doido invadiu o quarto e veio pra cima. Me acertou umas
porradas e depois deu um golpe com a faca, acertou a minha coxa.
Podia ter sido pior, eu corri pelo quarto e me joguei janela afora.
— Caraca, mas o que tu tava fazendo lá? Tu é esses caras
de programa?
— Vai te foder, Thomas, eu sou gay, mas não sou um vadio,
foi quase um estupro.
— Como quase um estupro? Não existe isso, se tu não
consentiu, então foi um estupro.
— Mais ou menos.
— Porra, isso tá ficando pior, vai conseguir me explicar?
— Tá bem, seu evangélico de bosta, eu vou te contar, mas tu
fica com essa boca fechada, ninguém precisa saber disso.
— Prometo — respondeu Thomas beijando os dois dedos
indicadores em cruz.
— A casa que eu moro com a minha mãe e o meu irmão é
de aluguel, e o dono é o prefeito.
— Ok, e daí?

152 | O ESTAMPADOR
— E daí que as paradas lá em casa estão bem difíceis, a
grana não tá dando pra tudo e minha mãe parou de pagar o aluguel
há alguns meses. Eu não sabia disso, senão tinha dado um jeito.
— Entendi, e tu foi lá pra pagar o Antoninho.
— Pagar com o quê? Eu também não tenho esse dinheiro.
— Meu Deus! Não me diz que tu foi propor pro Antoninho
pagar com…
— Cara! Se tu continuar esta frase, eu juro que, mesmo
gostando de ti, eu vou esmurrar essa tua carinha de Ken na caixa e
aliviar toda a raiva que eu sinto.
— Eu não quis te ofender, mas tu não tá explicando as coisas.
— Que tal conter a tua ansiedade? Naquela tarde apareceu
um capanga do Antoninho lá em casa dizendo que a gente tinha
uma semana pra sair dali ou pagar o que estava devendo.
— E tu resolveu ir falar com ele.
— Claro, eu menti pro cara dizendo que queria levar o
dinheiro pessoalmente. Então ele me colocou na caminhonete e
saiu da cidade. Me levou até a Fazenda Santa Isabel, onde estava o
Antoninho.
— E daí?
— Ele ficou surpreso em me ver, perguntou sobre o dinheiro,
e eu disse que a gente não tinha, mas que eu podia me oferecer para
trabalhar pra ele em troca dos aluguéis.
— E ele não quis?
— Não, ele é muito filha da puta, ficamos discutindo por
quase meia hora sem chance nenhuma de eu persuadir ele. Eu tava

O ESTAMPADOR | 153
insistindo muito, foi quando ele parou e disse que talvez tivesse
alguma coisa que eu poderia fazer, pensei que eu tinha convencido
ele. Mas, na verdade, não era isso, foi uma armadilha, ele disse pra
eu segui-lo e me levou pra um quarto, o quarto dele.
— E daí ele te agarrou?
— Mais ou menos, ele foi bem direto e mandou eu abaixar
minhas calças, eu logo entendi, até pensei que valia a pena, era
muita grana. Ele chegou perto de mim e começou a passar a mão.
No início, eu não queria, não estava a fim, mas, pra mim, isso
não era novidade, o Antoninho ia ser mais um na minha lista dos
escrotos que me deram. Só que, do nada, ele me deu um tapa e me
jogou na cama me empurrando pelos ombros, depois o filha da puta
me virou de bruços e mandou eu calar a boca. Ameaçou minha
mãe e meu irmão e disse que ia matar os dois e que eu nunca ia
encontrar os corpos.
— Caralho, o cara é muito bandido.
— Bem, Thomas, o resto eu não preciso te contar, quando
o Jorginho entrou no quarto, eu tava sendo fodido pelo pai dele,
foi isso.
— Nossa… Tu foi violentado… — Thomas levou alguns
segundos absorvendo a informação. — Ainda assim, acho que
tu tem que contar tudo pro Jorginho, tenho certeza que ele vai
entender.
— Tá louco, Thomas? Tu não abre esse bico! Só vai piorar as
coisas, eu até passei a curtir o Jorginho e acho que, depois do que
aconteceu hoje, ele também está me levando de boa. Mas isso ele
não vai tolerar, tenho certeza. E vai dar merda, eu tenho medo de
como isso tudo possa terminar. Pensa que eu tenho a minha mãe e
o meu irmão morando na casa deles.

154 | O ESTAMPADOR
— Tá bem, acho que tu tem razão, mas, pelo que a gente
conhece do Antoninho, ele não vai parar por aí. Ainda mais quando
descobrir que um dos quatro foragidos é você. Pensa bem no que
pode ainda acontecer com vocês. E tem outra coisa, foi estupro,
sim! Vamos falar sobre isso depois que tudo passar.
— Cara, nunca pensei em dizer isso na minha vida, pois a
frase fica bem em ti, mas aí vai: “O futuro a Deus pertence”. Agora
nós temos outro problema pra resolver e vamos continuar. Vem, me
ajuda a levantar.
A história de Polo comoveu Thomas, fez ver o quanto que
a vida do amigo era também um turbilhão de problemas, talvez
estivesse aí a razão do bom humor de Polo, era a sua resiliência, só
assim ele conseguia viver um dia após o outro.
— Me ajuda a empurrar a porta — pediu Polo.
— Pode deixar, eu abro sozinho, tu vai piorar esse corte se
fizer mais força.
— Assim eu me apaixono — brincou Polo olhando para
Thomas com aquele sorriso sarcástico de sempre.
No mesmo momento, Thomas largou a tocha no chão e deu
um selo na boca de Polo.
— O que foi isso? — reagiu Polo, espantado pela atitude.
— Nada, apenas um carinho, tô agradecendo pela confiança
e por ter me contado esse lance.
— Bah, da hora! Se for assim, tenho milhares de segredos
pra te contar.
— Não te acostuma. Vamos, tem mais um pavilhão fedido
pra investigar — Thomas terminou a conversa pegando a tocha e
empurrando Polo porta a dentro.

O ESTAMPADOR | 155
Ao entrar naquele imenso pavilhão, uma sensação de
empolgação surgiu no coração dos dois, havia muitas coisas
diferentes naquele espaço, as máquinas de fiar e os teares davam
agora espaço para equipamentos maiores ainda, eram esteiras que
partiam de um lado e se distribuíam para diferentes lugares, ora
subindo e se elevando quase que perto do telhado, ora descendo e
terminando em grandes funis que coletavam a lã e dali seguiam para
tanques de lavagem e tingimento. Um espaço intrigante, onde o que
mais chamava a atenção era o estado do abandono, a forma como
os objetos tinham sido largados e contavam os últimos momentos
daquele lugar. Dava para imaginar uma volta ao passado e sentir
as pessoas trabalhando e movimentando toda aquela engrenagem.
— Porra, Thomas, quando eu penso que essa fábrica tem
fim, cada vez mais eu me sinto pequeno aqui dentro, esse negócio
é imenso.
— Nem os shoppings de Porto Alegre são tão grandes quanto
isso aqui. Impossível a gente não encontrar nenhuma ferramenta
nesse lugar.
— Bem lembrado, precisamos encontrar alguma coisa com
cara de oficina, vamos até o fundo, acho que temos mais chance
indo até lá.
Polo não sabia explicar, mesmo com um pouco de dor,
sentia uma empolgação quase absurda. Queria descobrir tudo,
experimentar tudo, explorar aquele lugar. Nem parecia que estavam
perdidos num lugar desconhecido, o desespero tinha desaparecido
como num passe de mágica, e, com certeza, a presença de Thomas
tinha muito a ver com isso, era um sentimento misto de cuidado e
segurança. Algo que há muito tempo ele não vivenciava.

156 | O ESTAMPADOR
No fundo daquele pavilhão havia o que tanto estavam
procurando, uma sala de manutenção, era um espaço cheio de
estantes e armários, ficava protegido sob uma tela de arame e havia
uma única porta também com tela e que estava trancada. Mas a
euforia de ver que ali existiam ferramentas fez daquele empecilho
o menor dos problemas, os dois já estavam treinados em arrombar
portas e invadir espaços fechados.
— Deus do céu, olha isso, Polo, tem muita coisa aí dentro.
— Te falei, mané, impossível um negócio desse tamanho
não ter uma oficina.
— E como se faz pra entrar aí?
— Pensa, pois as ferramentas estão lá dentro, temos que
cortar essa tela de algum jeito.
— Já sei como, vamos usar a nossa barra de ferro, essa tela
de arame vai ceder muito fácil.
— Isso aí, queridão, aprendeu direitinho — zombou Polo.
Passados alguns minutos, um buraco surgiu entre as malhas
da tela de arame, Thomas foi quebrando as partes que prendiam a
tela entre as colunas e o marco e conseguira criar uma passagem
para os dois. Um mundo de ferramentas antigas esperava entre as
estantes e os velhos armários de madeira ainda de pé.
— Olha só isso, Polo, tem muita coisa aqui, nem sei pra que
serve tudo isso.
— Sim, acho que maioria foi feita pra arrumar estas
máquinas, precisamos achar algo menos pesado, precisamos de
uma serra, uma serra que corte ferro.
— E tu conhece uma assim?
— Cara, qualquer coisa que tiver um serrilhado deve servir.

O ESTAMPADOR | 157
— Tipo isso? — Thomas ergueu um serrote que estava sob
uma bancada.
— Caralho, meu, você encontrou, não acredito que a gente
tenha tanta sorte assim.
— É isso mesmo?
— Óbvio, com isso vamos cortar aquela corrente e tirar o
Vincenzo de lá.
— Vê bem se não vamos precisar levar mais alguma coisa,
olha aí, naquela outra bancada tem mais serrotes.
— Então vamos levar mais de um, vai que quebrem, melhor
ter reservas.
— Boa, pega todos, não podemos falhar. Aqui tem quatro,
levamos os quatro.
— Sem dúvida, Thomas, com quatro serrando aquela
corrente, não vai ter vez.
— Se você diz, está dito, não entendo nada de serrotes, mas
tô bem confiante por ter encontrado algo.
— Bora, então? Quanto mais rápido cortamos essa corrente,
mais rápido saímos deste lugar.
— Polo?
— Sim.
— Queria te dizer que eu tô contigo e que esse lance com o
pai do Jorginho me incomodou muito, tu foi mais uma vítima. Em
algum momento, gostaria que tu pudesse pensar sobre isso. Acho
que o Antoninho precisa pagar por esses crimes. Promete que vai
ver isso de frente um dia?

158 | O ESTAMPADOR
— Não posso te prometer aquilo que eu não sei ainda se
quero fazer, mas vou pensar, sim. Talvez, contigo do meu lado, eu
fique mais seguro, sou impulsivo, tu sabe disso, tenho medo de
não me conter e fazer merda. Ser o que eu sou nesta cidade é puro
sofrimento, não vai faltar quem diga que eu queria, não quero dar
chance pro Antoninho ter razão e sair de herói.
— Te entendo, mas fica sabendo que eu tô do teu lado, tu é
um grande cara, uma cara do bem.
— Valeu, seu maluco, eu te curto muito, sabia? Agora
vamos, temos que tentar tirar o Vincenzo daqui, esse, sim, tem um
problemão.
— Vambora!

O ESTAMPADOR | 159
18 – O INVENTÁRIO
Aqueles livros tinham muito o que contar, estava ali a melhor
evidência do que realmente havia acontecido naquele lugar, era um
registro com os nomes de todos os escravizados pelo comendador,
uma lista com a marca de uma época de terror. Ao lado do nome
de cada pessoa havia o local da origem e o valor pago em contos
de reis pelo comendador, a vida daqueles seres humanos tinha um
preço.
— Olha isso, Ana. Cada uma dessas pessoas foram
compradas, tem o nome, eles não têm sobrenome, tem a idade, diz
se é homem ou mulher e tem o preço pago por cada um.
— Que inferno foi essa época.
— Hoje não está muito diferente, acabou o comércio, mas as
condições pra maioria ainda são parecidas, trocaram o chicote pelo
desprezo e pela falta de oportunidades.
— É, meu amigo, e não tem data pra acabar — Ana respondeu
olhando o chão.
— Esse livro é de 1887. Quando terminou a escravatura?
— No ano seguinte, 1888.
— Precisamos achar os livros depois desta data.
— Só que todos esses vão até o ano da abolição — afirmou
Ana olhando a data de cada um deles na página de rosto.

160 | O ESTAMPADOR
— Tem que haver mais, essa fábrica funcionou até 1920.
Onde estão os outros livros? — perguntou Jorginho, intrigado.
— Já olhamos tudo por aqui, ou eles não existem, ou estão
escondidos.
— Pode ser.
— Sim, acho que o crime todo começa aqui.
— Como assim? — perguntou Jorginho olhando Ana e
movimentando os ombros em sinal de dúvida.
— Pensa bem, Jorge, se esta fábrica funcionou por mais
trinta anos depois da abolição, é sinal que o segredo é grande. Tu
tem razão, o que a tua família esconde deve ser algo bem grave.
— Você está me assustando, sabe? Vamos continuar
procurando, tem que estar em algum lugar.
— É, meu amigo, teu pressentimento fala mais alto mesmo,
vamos olhar tudo novamente.
Na escuridão do lugar e com apenas a luz das duas tochas,
nem tudo era visível, ainda mais quando se procura por algo
escondido. A sala estava toda fora do lugar, mesas e escrivaninhas
estavam viradas, quebradas e em desordem. Isso não ajudava na
procura, mas, ao menos agora, sabiam o que estavam procurando:
os registros das últimas décadas da fábrica e de seus funcionários.
— Eu já olhei cada armário, nós abrimos todos, não tem
livro nenhum.
— Já estou achando que foram retirados daqui.
— Mas pra onde levariam, Jorge?
— É obvio que seria pra um lugar mais seguro, sinal que
eles provam alguma coisa ilegal.

O ESTAMPADOR | 161
— Se é ilegal, e eu acho que sim, pouca gente deveria saber
— Ana concluiu o raciocínio.
— Pouca gente ou apenas uma pessoa.
— Uma pessoa?
— Sim, isso faz sentido pra mim, esconder esses livros era
a proteção de qualquer prova contra o responsável por tudo isso. E
o único responsável aqui era o dono, ou seja: meu tataravô.
— Então eles podem não estar mais aqui.
— Também pensei nisso, mas tem uma chance da gente
estar errado quanto ao local.
— Como?
— Lembrei da história que meu avô contou sobre a morte
do comendador. Falei pra vocês que ele morreu de uma doença
desconhecida. Fez ele ficar por tempos numa cama, sangrando e
com muita dor. A morte dele foi sofrida, parece até vingança por
todas as bandidagens que fez. Mas meu avô contou um detalhe que
nos serve agora.
— Qual?
— Ele disse que o comendador teve uma crise aguda na
fábrica e passou muito mal, daí eles levaram ele pra casa e nunca
mais ele saiu de lá. Da cama ele foi pra uma cova.
— E o que tem isso? — voltou a questionar Ana.
— Pensa, Ana, se ele teve uma crise e levaram ele daqui
pra casa, esse velho ordinário não teve tempo de levar com ele os
livros.
— Humm, faz sentido.

162 | O ESTAMPADOR
— Neste caso, esses livros devem estar aqui, escondidos em
algum lugar.
— Um cofre?
— Só tem um, e está aberto, ali — apontou Jorginho para
um canto escuro da sala onde havia um imenso cofre com a porta
aberta e completamente vazio.
— Cara, então, onde estamos falhando?
— Acho que estamos no lugar errado.
— Como assim?
— Vem, ainda não encontramos a sala do comendador, esse
lugar aqui era só o escritório da fábrica, ele devia ter uma sala
só dele.
— Cacete, Jorginho! É claro, não pensamos nisso antes.
Mas onde?
— Está vendo aquele painel ali? Aquele de madeira?
— Sim.
— É uma porta, não dei muita bola pra ela, deve estar
trancada.
De fato, havia mais um anexo naquela sala, entre os painéis
de jacarandá corroídos e danificados, um deles estava quase
intacto, era uma porta de madeira da mesma cor e mais resistente,
se confundia com o restante da parede. Como imaginavam, estava
fechada, aguardando o retorno do seu dono, o que nunca aconteceu.
— Como a gente não viu isso antes?
— Porque não dá pra fazer tudo ao mesmo tempo, eu já
tinha percebido, mas não dei importância.

O ESTAMPADOR | 163
— E dá pra abrir esse negócio?
— Ora, gata, você tem dúvida? Já me viu fazendo isso antes.
E, se afastando de Ana e da porta, Jorginho tomou um
impulso, flexionou o joelho e, com uma perna fixa ao chão, jogou
com toda a força a outra perna contra a madeira mofada na porta de
jacarandá. Um estrondo e um grito quebraram o silêncio do lugar.
— Ai! Puta que pariu, meu pé!
A porta sequer se mexeu, sujeiras caíram do entorno do
marco e a marca do chute ficou impressa no mofo que cobria a
porta. Caído no chão e segurando o pé, Jorginho gemia de dor.
— Tu tá bem, Jorginho?
— Claro que não, Ana, caralho, que dor! Acho que quebrei
meu pé.
— Não inventa, Jorge, era só o que faltava agora.
— Vai passar, vai passar! Não te preocupa.
— Ah é, se quebrou vai passar sim, daqui um mês! Deixa
eu olhar.
— Cuidado, tá doendo pra caramba.
Mas a dor que Jorginho sentiu foi pelos ferimentos que
trazia nos pés, havia agora um pouco de sangue na sua meia e Ana
viu que não era nada, com o tempo cicatrizaria.
— Esquece, seu maluco, não quebrou nada, só piorou os
cortes deste pé. Mas o nosso problema continua, a porta está intacta.
— Eu sei, vamos pensar numa outra forma, ela não é um
armário.
— Eu não tenho nenhuma outra ideia.
— Precisamos de um apoio, algo que sirva de alavanca.

164 | O ESTAMPADOR
— Tipo?
— Uma barra de ferro, um atiçador de lareira, algo parecido.
— Já sei, então, fique aqui.
Saindo do escritório sem dizer muito a Jorginho, Ana
retornou rápido com uma lança na mão, parecia ser o objeto
esperado pelo amigo.
— Cacete, o que é isso, onde tu achou essa coisa?
— Quando entramos aqui, ali fora tinha esse negócio de
colocar bandeira, tem mais dois caídos no chão, será que vai dar?
— Gata, cada instante me apaixono mais, com certeza, vai
dar. Vem, me ajuda a enfiar esta ponta bem do lado da fechadura.
E, com várias tentativas, a alavanca foi abrindo um espaço
maior entre a fechadura e o marco da porta, lascas da madeira iam
se soltando e, ao final da última tentativa, um bom pedaço da ponta
do mastro estava enterrada no interior da porta.
— Isso aí, linda, agora é só fazer força juntos e isso vai ter
que ceder.
— Então empurra, vamos!
O som de um estalo se ouviu quando o conjunto todo cedeu,
a porta abriu para trás até trancar no chão, onde o piso velho e
mofado havia estufado.
— Viu, garoto, o que seria de ti sem uma mulher ao teu lado?
— Bah, linda, eu sem mulher não seria nada! Sou apaixonado
por vocês, e por ti em especial.
— Te controla, seu tarado. Não estamos aqui pra isso. Vem,
a porta emperrou, só podemos passar um por vez por esta fresta
que abriu.

O ESTAMPADOR | 165
E, na sala do comendador Fornari, mesmo com pouca
iluminação, os olhos de Jorge e Ana não acreditavam no que
viam. Era muita ostentação, havia objetos de arte, tapetes persa
se decompondo, cristais adornavam as luminárias, sofás de couro
e poltronas de cetim que se desmanchavam ao serem tocadas, tal
como cinzas de um jornal queimado. A sala era imensa para um
escritório, havia candelabros de cristal e outros de metal folheados
a ouro e prata. Uma lareira imensa, com suas bordas revestidas
de granito e mármore, adornava um dos cantos da sala. Quadros
pintados e bastante corroídos pelo tempo. Estátuas de bronze e
pedras raras, sustentadas por colunas romanas, exibiam o luxo
que aquele ambiente vislumbrara um dia. A cada canto por onde
direcionavam a claridade de suas tochas, mais e mais objetos e
móveis iam surgindo. Uma cena chocante e inacreditável da riqueza
do comendador.
— Puta que pariu! Olha pra tudo isso, Ana.
— É incrível, Jorginho, esse teu parente não valia o ar que
respirava. O filho da puta vivia nesta ostentação às custas da morte
e do sofrimento de muita gente.
— Nem me lembra disso, amiga. Tomara que tenha sangrado
e doído muito a morte dele. Cada vez mais quero estar longe de
tudo isso, já quero ter outro sobrenome, esse não me diz mais nada!
Tenho vergonha.
— E o pior é que toda essa indecência era normal pra época,
igual ao teu comendador existiam tantos outros. E a história vem
se repetindo, assim como teu pai herdou essa sujeira toda e ainda
reina como se fosse no século passado, imagina quantas outras
famílias dessas ainda perduram e fazem o mesmo.

166 | O ESTAMPADOR
— E o pior é que tudo continua na mão dos mesmos, só
mudou as moscas. Uma lástima, mas espero que a gente possa
mudar pelo menos aqui em Alfor. Faço questão de descobrir o que
aconteceu aqui e contar bem alto pro mundo todo ouvir.
— É isso aí, garoto, vamos procurar o que queremos e dar
o pé daqui.
— Deve ter algum cofre nesta sala, se não tiver, vamos estar
com sorte.
E, revirando a sala particular do comendador Alencar,
Ana e Jorginho passaram a ver cada detalhe, cada gaveta, cada
armário e estantes onde aqueles livros de registros pudessem estar
escondidos.
— Nada ainda? — perguntou Ana.
— Não, cofre não tem, mas está escuro e esta tocha fica
cada vez mais fraca. Onde mais poderia estar?
— Já olhei por tudo, estou ficando sem ideias.
— Algum lugar secreto?
— Aqui não tem cofre, só pode estar em um armário, arquivo
ou gaveta.
— Se fosse coisa boa, esses livros estariam à vista, ele deve
ter escondido, pra que não caíssem em mãos erradas.
— Só que comigo esse velho vai se foder, nós vamos achar,
sim — resmungou Ana.
— Tá vendo a mesa de trabalho dele?
— Sim, o que tem?

O ESTAMPADOR | 167
— Ela é enorme e tem aquelas gavetinhas de merda,
pequenas demais pra um móvel tão grande. Vem me ajudar a ver
melhor.
E Jorginho estava certo, o móvel estilo chipandelle era todo
torneado, com bordas arredondadas, bem como as gavetas e seus
painéis. Era um monstrengo do século XIX, feito sob encomenda
— algo que eles não sabiam.
— Vamos tirar todas as gavetas e ver se tem algum
esconderijo por dentro.
— Ok, e depois?
— Bem, se desconfiarmos de algo, o mastro da tua bandeira
vai servir mais uma vez.
E assim retiraram as oito gavetas que ficavam nas duas
laterais da grande escrivaninha, foram amontoadas umas nas outras
até que uma delas chamou a atenção.
— Ei, Ana, esta última gaveta que tu me deu é menor que
as outras!
— Sério?
— Olha aqui, é metade do tamanho.
— Caraca, Jorginho, então encontramos, só pode ter um
fundo falso por aqui.
— De onde tu tirou ela?
— Desta primeira fila, aqui — apontou para a primeira
gaveta do lado direito da escrivaninha.
— Bingo, tem um fundo falso aqui. É uma outra gaveta lá
no fundo, só sai tirando a primeira.

168 | O ESTAMPADOR
Jorginho enfiou as duas mãos pelo buraco da gaveta
chegando até o espaço falso. De lá, conseguiu puxar o que parecia
ser uma caixa de madeira.
— Agora, minha linda, é só rezar para que os livros
estejam aqui.
— Vai lá, Jorginho, estou com o coração na boca, abre logo!
A fina caixa decorada fazia parte do móvel, tinha uns
quarenta centímetros de largura por cinquenta de fundos. Havia
uma pequena fechadura bem frágil, com o seu canivete, Jorginho
conseguiu quebrá-la. Ao abrir a tampa, a primeira coisa que podia
ver era um pano de flanela vermelho que cobria todo o conteúdo.
Jorginho olhou para Ana e puxou o pano, que logo deixou à mostra
um velho revólver, estava intacto, carregado, bastante enferrujado,
mas tinha um cabo de marfim que ainda brilhava de tão polido
que era.
Ao lado dele havia alguns objetos de valor, medalhas de
ouro, um anel e algumas moedas. Mas, no fundo da caixa, lá
estava o que tanto procuravam: cinco livros de capa preta escrito
“INVENTÁRIO” em letras maiúsculas. Finalmente o seu conteúdo
ia ser revelado.
— Olha, Ana, os livros!
— Caralho, Jorginho! Você achou, isso me deixa muito
bem, sabia? — falou Ana em voz alta e tascou um beijo na boca do
Jorginho.
— Uau, gata! Pode fazer isso de novo? Vou começar a abrir
todas as gavetas desta fábrica.

O ESTAMPADOR | 169
— Desculpa, me empolguei, tô feliz! Mas, se isso puder
contar mais do que sabemos, vai ser uma bomba pra esta cidade,
isso me deixa emocionada.
— Vamos abrir!
— Claro.
— Olha este aqui, tem registros de 1889 até 1896, o que
eu imaginava parece ser verdade — ele respondeu com um olhar
investigativo.
— O que foi, Jorginho?
— Busca aquele último livro que vimos lá no escritório,
precisamos comparar.
E, correndo até a sala da administração, Ana trouxe o livro.
— Veja, este aqui está escrito “Livro dos Escravos”, já neste
aqui fala em “INVENTÁRIO”, mas, por dentro, são iguais.
— Compara aqui os nomes.
— Santo Deus, olha isso aqui, Ana, a maioria dos escravos
continua neste registro, e já havia terminado a escravatura no
Brasil.
— Então era isso que ele tanto queria esconder, velho
desgraçado, ele manteve os escravos mesmo depois da lei Áurea.
— Sim, foi tudo premeditado, ele sabia que a escravidão
podia terminar no Brasil, foi por isso que ele fugiu da corte e veio
parar aqui, neste lugar que não seria encontrado por ninguém —
concluiu Jorginho.
— E faz sentido o abandono da fábrica e a peste, os
escravizados morreram, não tinha mais quem colocar no lugar deles.
— Sim, na verdade um massacre, gente que deveria estar
livre foi mantida em cativeiro por décadas.
170 | O ESTAMPADOR
— O que a gente faz agora?
— Ainda tem algo errado que não fecha bem essa história.
— Mas o que é?
— Polo e Thomas disseram que os túmulos tinham a data de
nascimento e que eram todos jovens, a maioria morreu adolescente
ou criança. Eles sequer existiam quando terminou a escravatura.
— Estranho, o que será que aconteceu?
— Porra! Se for verdade o que eu estou pensando, então a
coisa é pior ainda, olha a data dos outros livros.
— Aqui tem de 1896 a 1905, esse aqui de 1906 a 1910, esse
outro de 1911 a 1915, e esse aqui de 1915 a 1920.
— Pega esse último.
E a intuição de Jorginho desvendava de vez o segredo da
família. O comendador era mais que um escravagista bandido,
era um transgressor da lei e um genocida. Estendeu por décadas
a escravidão na sua fábrica e, com isso, manteve o negócio
funcionando. Ana estava atenta aos movimentos de Jorginho, os
olhos do amigo se moviam a cada linha que lia, seu rosto estava
sério como nunca. A amiga percebia uma respiração que aumentava,
até que, sob a fraca luz da tocha, Ana viu uma lágrima escorrer
pelo rosto dele.
— O que foi, Jorge? Tu tá bem?
Sentado no chão com as pernas flexionadas, ele usou os
joelhos como apoio e baixou a cabeça, um choro fraco mas sentido
era possível ser ouvido. A amiga apenas o abraçou e o confortou
com um carinho.
— Quer me contar? O que está escrito aí?

O ESTAMPADOR | 171
— Ana, é muito pior do que a gente imaginou, um crime!
Um crime sem precedentes.
— Me diz, Jorge, o que foi?
— Olha esses nomes aqui — disse estendendo o livro com
as páginas em aberto.
— …Francesco Grizoti, Giuseppe Anoni, Antonela Rossi…
O que tem isso?
— São italianos!
— Isso eu sei, mas o que isso significa?
— Olha tudo. Veja o registro.
Naquele livro haviam nomes e sobrenomes italianos. No
lugar de origem estava escrito “Itália” e não havia o valor de
compra, apenas a idade de cada um. Eram famílias inteiras, mães,
pais, filhos e irmãos e até avós, todos estavam registrados naquelas
páginas.
— Que nó, Jorginho, não estou entendendo mais nada.
— Pensa bem, Ana, o velho manteve os escravizados
aqui até eles morrerem. Todos morriam cedo naquela época, não
aguentavam os castigos e os maus tratos. Em algum momento, não
havia mais nenhum negro escravizado pra fazer o trabalho sujo
nesta maldita fábrica.
— E os italianos?
— Aí está o outro crime! Foram escravizados, que nem ele
fez com os negros. Essa gente veio pro Brasil atraída por empregos
e uma vida nova. Eram imigrantes. No início daquele século, a
imigração ainda estava acontecendo no Brasil.

172 | O ESTAMPADOR
— Então eles vieram trabalhar aqui no lugar dos escravos
— Ana foi entendendo.
— Sim, só que nunca mais puderam sair, foram escravizados
também, mais uma leva de famílias inteiras a ferro, sendo tratadas
como animais.
— E a peste matou eles?
— Sim, só parou o sofrimento depois que o último italiano
morreu de febre espanhola. Não havia mais o que fazer, a fábrica
foi abandonada e a história, enterrada com ela.
A descoberta era grave e pesada. Ana percebeu a dor do
amigo e também se abalou com toda aquela revelação, por minutos
ficaram abraçados, as lágrimas vinham e não dava pra conter a
emoção e a raiva pelo sentimento de impotência. Abraçados
e carregando todos aqueles livros, os dois retornaram para o
acampamento. Estava revelado o segredo dos Fornari.

O ESTAMPADOR | 173
19 – O CONFLITO
O encontro improvável dos cinco jovens começava a fazer
sentido diante dos fatos daquela noite, um arranjo do universo. A
amizade que surgia estava pautada no objetivo de salvar a vida de
um menino, por instantes seus problemas pessoais haviam ficado de
lado, embora todos soubessem o quanto tudo aquilo estava mexendo
com eles, transformando cada alma e oportunizando momentos
importantes para rever suas vidas e seus comportamentos.
No acampamento, Tainá e Vincenzo dormiam, nada de novo
havia acontecido ali enquanto os demais estavam fora. O menino
parecia não estar presente, frágil como papel, trazia no semblante
uma paz que não condizia com o seu estado de cativeiro.
Tainá foi acordando com os sons das falas de Polo e Thomas,
ao longe via a claridade das tochas dos dois que se aproximavam.
— E aí, Tainá, como ele está? — perguntou Polo.
— Oi, Polo, tudo igual. Parece que nem está nesta situação.
— Ele está vivo?
— Sim, Thomas, apenas dormindo. Encontraram as
ferramentas?
— Yes! Olha só que beleza — Polo mostrou a Ana os serrotes
que haviam encontrado.

174 | O ESTAMPADOR
— Puxa, que legal. Vamos serrar isso, então, e dar o fora
daqui, tô angustiada com tudo isso.
— E a Ana e o Jorginho?
— Ainda não voltaram, mas devem estar chegando, já se
passou uma hora.
— Olhem! Tem claridade vindo dali. São eles — anunciou
Thomas.
— Espero que tenham encontrado o que foram procurar.
— Acho que sim, estão carregando algo nas mãos.
E, daquele jeito, o grupo todo voltou a se reunir. Aquele
poderia ser o final de toda a história. Com as ferramentas e com
o achado de Ana e Jorge, nascia uma esperança de ir embora e
esclarecer os mistérios daquela noite.
— E aí, Jorginho, encontraram o que queriam? —
perguntou Polo.
— E aí, turma. Sim, Polo, encontramos. E tudo parece ser
bem pior do que eu imaginava.
— Sério? Mas o que foi, então? — falou Thomas.
E, sentados ao redor de Vincenzo e do fogo, Jorginho contou
a todos a descoberta que ele e Ana haviam feito. O clima de dor
e indignação tomou conta do grupo, agora consternado e sem ter
muito o que falar. Estavam na cena de inúmeros crimes, o lugar era
amaldiçoado. Não havia mais razão de estarem ali. Era o momento
de salvar Vincenzo e fugir.
— E vocês, encontraram a oficina? — indagou Jorginho.
— Sim, e veja só essas maravilhas que trouxemos.

O ESTAMPADOR | 175
— Serrotes?
— Sim, trouxemos quatro, agora nada vai nos impedir de
tirar o Vincenzo daqui.
— Cacete, Thomas, continuamos fodidos — reagiu Jorginho
com uma cara de desolado.
— Ué, por quê?
— Isso é para serrar madeira, seus tontos, nunca que vai
cortar essas correntes.
— Fica sussa, Jorginho, se tem serra, vai dar, é só a gente
começar — alegou Polo.
— Cara, às vezes minha mãe tem razão quando diz que
adolescente é tudo sem noção — criticou Ana.
— Deixa com a gente, Ana, eu o Thomas vamos nos revezar,
se começarmos agora, em pouco tempo vamos cortar a corrente.
— Com um serrote? Pouco tempo? Se uma semana for pouco
tempo, então vamos conseguir, sim — ironizou a amiga.
Sem dar muita importância à fala de Ana e Jorge, os dois
se afastaram e foram para o lado da corrente presa ao tear. Mesmo
sendo contrariados pelos amigos, começaram a serrar um dos elos.
— Não consigo ainda acreditar no que vocês dois nos
contaram, isso precisa ser denunciado, alguém tem que corrigir
isso! — falou Tainá com os olhos tristes.
— Sim, Tainá, mas pra isso temos que sair daqui. Enquanto
não libertarmos o Vincenzo, estamos presos aqui.
— Espero que aqueles dois malucos saibam o que estão
fazendo e cortem aquela corrente — comentou Ana.

176 | O ESTAMPADOR
— É óbvio que eles não têm a menor noção, mas temos que
valorizar o achado deles, pra todo mundo aqui resta um pouco de
esperança, deixa eles descobrirem por si.
— Tá certo, Jorge, vai que eles consigam.
— Cortar uma corrente com um serrote?
E, pela primeira vez, os três puderam rir de uma situação
no meio de tanta coisa triste. Estavam no meio da madrugada, em
poucas horas o sol iria iluminar o local e talvez a vida pudesse
voltar a brilhar para o grupo. Junto ao fogo e a Vincenzo, os três
aproveitaram para descansar e recobrar as forças.
Passado um tempo, um grito ecoou por todo o pavilhão.
Morcegos e corujas voaram assustados, quem dormia acordou
sobressaltado.
— Puta que pariu! Que merda, de novo não! Ai — gritou Polo.
— O que foi isso? — Tainá levantou com um salto.
— Credo, o que houve? Parece o Polo — comentou Ana.
— Puta merda, o serrote! Deve ter se machucado — lembrou
Jorginho levantando e indo na direção dos dois amigos.
— Mais essa agora — falou Ana, também indo ao
encontro deles.
A cena era preocupante, Polo estava sentado no chão com
a mão sobre a coxa machucada, por entre os dedos podia-se ver
o sangue escorrendo. Thomas, apavorado, consolava o amigo que
não parava de gemer.
— Meu Deus, Polo, tu te machucou? — acudiu Ana.
— Que merda, Ana, de novo bati no meu machucado, puxei
o serrote com força e ele escapou e bateu bem onde não devia.

O ESTAMPADOR | 177
— Porra, meu, parece feio, olha o sangue!
— Pior, Jorge, é a segunda vez que ele bate neste lugar,
aconteceu o mesmo lá atrás quando a gente tava na oficina —
relatou Thomas.
— Deixa eu ver, Polo. — Ana retirou com cuidado as mãos
de Polo sobre a perna para poder olhar melhor o machucado. — Tu
precisa de um curativo, isso tá pior que o tiro do Jorginho. Precisa
de pontos.
— Esquece, Ana, não vou sair daqui sem vocês.
— E vai morrer sangrando?
— Não é pra tanto, só está doendo.
— Cara, esse corte está muito fundo, onde tu conseguiu
isso? — indagou Jorginho.
— Eu… eu caí e me machuquei uns dias atrás.
— Caiu? Mas de quantos andares?
— Não torra, Jorge, caí e pronto!
— Tá feio, Polo, e tá doendo porque começou a infeccionar,
você está sujo, e este lugar aqui não ajuda nada contra as bactérias.
Se isso piorar, tu pode ter sérios problemas.
— Bah, gente, não fode. Faz um curativo e pronto, quando
eu sair daqui, procuro um postinho e fica tudo de boa.
— A Ana tem razão, Polo, já ouviu falar de tétano? Isso
mata — se assustou Thomas.
— Eu não vou ter tétano, Thomas, já passei por coisa pior e
saí inteiro.
— Mas não nesse lugar sujo e sem condições.
— Tô bem, já falei.

178 | O ESTAMPADOR
— Cara, tu é muito teimoso, tu não tem controle sobre isso,
e se a merda da faca estava suja, infectada, tu não…
— Faca? Que faca? — perguntou Ana com as sobrancelhas
sobressaltadas.
— Cala essa boca, Thomas!
— Peraí, que história é essa de faca? Tu não tinha caído?
— É merda da cabeça do Thomas, eu caí em cima de uma
faca, foi isso que fez o corte.
— Ah, tá. Conta outra, meu, esta história tá mal contada —
retrucou Jorginho.
— Polo, se tu não quer falar, não precisa, mas dá pra
imaginar que não foi queda nenhuma, isso foi uma briga, tá na cara
que tu levou uma facada — disse Ana.
— Podemos mudar de assunto? Só me faz um curativo,
por favor.
Jorginho calou e se afastou, caminhou em direção à porta da
fábrica e ficou ali, pensando e refletindo.
— Tá bem, Polo, não quer contar o que houve, não precisa,
a gente espera pelo teu tempo. Tu vai achar a hora certa pra contar
— ponderou Tainá.
— É sério, Polo, não posso fazer muito aqui, no máximo
limpar e tentar estancar com um curativo — explicou Ana.
— Então faz isso. Eu conheço meu corpo, vai passar.
Saindo do seu estado contemplativo, Jorginho voltou para o
grupo. Estava sério e visivelmente agitado, se aproximou de todos
e, sem dar qualquer possibilidade de reação, pulou em cima de Polo,
colocando o joelho em seu peito e as duas mãos no seu pescoço.

O ESTAMPADOR | 179
— Era tu, filha da puta! Bem que eu desconfiei. No primeiro
momento que eu te vi, sabia que te conhecia, seu viado!
A gritaria foi geral, Ana e Tainá se jogaram contra Jorginho
e Thomas fez o mesmo, dando uma gravata no amigo e jogando ele
para o lado, contra o chão úmido e sujo da fábrica.
— Ei, ei, que merda é essa, Jorge? Qual teu problema, cara?
— gritou Ana colocando seu corpo entre o de Jorginho, caído, e o
de Polo, que sangrava.
— Esse viado que tava com o meu o pai, isso é traição, tu
não vale nada, cara, e vem dizer que o pervertido é o prefeito. Te
fode, meu, eu podia ter te matado, infeliz!
— Chega! — gritou Tainá. — Que droga toda é essa?
— Como que tu sabe disso, Jorginho? Acusar sem provas é
crime, sabia? — continuou gritando Ana.
— Quer prova melhor do que esta? Esse viado…
— CHEGA! — berrou Ana. — Se falar mais uma vez isso,
eu juro que não te olho na cara nunca mais! Que tal pôr em prática
tudo o que conversamos até aqui? Tu é um descontrolado, vem com
essa fala mansa pra me agradar e, na hora que a merda fede, tu vira
um animal. Tua verdade só se sustenta dando porrada.
— Vai ficar do lado dele?
— Não vou ficar do lado de ninguém, nunca precisei fazer
isso na minha vida e não vai ser agora, eu só fico no lado do que
é justo. E parece que tu não entende o que é isso, né? Olha a bosta
que a tua família vem fazendo há séculos, olha o sangue nas mãos
dos Fornari, é disso que tu também te alimenta? Quer continuar
aqui a saga da família? Vai adiante, querido, mate o Polo! Taí um
bom momento pra tu reerguer a história desta fábrica maldita.

180 | O ESTAMPADOR
A fala de Ana ecoou por todo o pavilhão. Depois disso, o
silêncio se fez. Jorginho tentava se controlar, era um misto de raiva
e dor, não conseguia conter as lágrimas. Diante daquele quadro,
ninguém sabia mais o que dizer. Até que Tainá resolveu cortar a
tensão.
— Polo, era tu que tava com o prefeito naquela noite?
Polo ficou em silêncio por mais alguns segundos enquanto
todos esperavam por sua resposta.
— Era.
— O Polo não tem culpa nenhuma — interveio Thomas. —
Desculpa, eu me atrapalhei, não devia ter falado nada.
— Deixa pra lá, Thomas, tô de boa, menos um segredo…
Afinal de contas, é pra isso que estamos aqui, não é mesmo?
— O que tu sabe sobre isso, Thomas? — perguntou Ana.
— Deixa pra lá, Ana, o Thomas não precisa se envolver, eu
contei pra ele, foi só isso.
— E vai contar pra nós?
— Que diferença faz, Tainá? Era eu o cara e pronto. Cada
um com os seus problemas.
— Isso é ridículo, Polo. Tu vai deixar o Jorginho com a
versão dele? Que tal esclarecer as coisas e dar um fim nesta história?
— Esse cara não quer me ouvir, ele é homofóbico, nada que
eu disser aqui vai servir pra ele.
Ao ouvir aquilo, Jorginho saltou novamente entre os amigos.
Entre lágrimas que não conseguia conter, falou:
— Não diz aquilo que eu não sou, Polo. Tua orientação é
coisa que só diz respeito a ti. Agora, quando se trata de ir fazer

O ESTAMPADOR | 181
programa com o meu pai, mesmo ele sendo um traste, isso me
afeta, afeta a minha mãe e ao pouco que restou de dignidade desta
família que eu odeio, mas é a única que eu ainda tenho.
— Cara… se eu não estivesse aqui fodido com este corte
que você me fez… —Polo respondeu cerrando os punhos. —
Contigo tudo é na violência mesmo. Eu juro que me levantava e
enchia esta tua cara bonitinha de porrada até virar uma massa. Se
tu tem coragem pra me julgar, então vai até o pervertido do teu pai
e pergunta pra ele que tipo de programa ele escolheu fazer, idiota!
— Chega, gente! — Tainá teve que se interpor na frente de
Jorge, que voltava a tentar se aproximar de Polo. — Isso tá ficando
insustentável, pensem no Vincenzo, esse, sim, tem problemas —
falou Tainá.
— Já falei, Jorginho, o Polo não tem culpa de nada disso —
Thomas voltou a defender o amigo.
— Como não tem? Eu vi o que esse safado estava fazendo,
se eu não chegasse naquela hora, aquilo ia longe…
— Longe? Que isso, Jorginho? Tu não sabe nada do que
aconteceu lá.
— Eu vi, Thomas, eu vi com esses olhos, ninguém precisa
me contar nada.
— Então o que foi o que tu viu, fala? — desafiou Thomas
com um tom forte, como nunca havia expressado antes. — Teu pai
estuprou o Polo, essa sim é a verdade.
— O quê? — se surpreendeu Ana.
A resposta se transformou apenas em olhares constrangidos.
Alguns olhando para o chão, outros para os protagonistas, e o som
das respirações ditavam o clima do momento.

182 | O ESTAMPADOR
— Como tu sabe disso, Thomas? — Tainá voltou a
interromper o silêncio.
Thomas olhou para o amigo buscando aprovação. Polo
respondeu o olhar por poucos segundos, respirou fundo, mirou
o chão, e voltou a olhar para cima, esboçando um leve aceno
afirmativo com a cabeça, dando de ombros.
— Jorge, pela graça do nosso senhor, você deveria agradecer
por ter amigos que te apoiam, e não se voltar contra eles. Teu pai
estuprou o Polo, sim, e sabe por quê? Por pura crueldade.
Thomas contou toda a história, os detalhes falado antes por
Polo agora saíam da boca do amigo. A cada desenrolar do acontecido,
só se viam cabeças balançando e lágrimas brilhando pela luz tênue
da fogueira. Era visível, no rosto de Polo, o constrangimento e o
sentimento — conforme ele entendia, enquanto acompanhava a
história vista por um terceiro ponto — de que era uma vítima. Toda
a sua pose se esvaía naquele momento. Ele estava mais nu do que
quando nadou nos tanques da velha fábrica.
Jorginho escutou cada palavra de Thomas como se fosse
a própria punhalada que desferira em Polo. Sofria demais e não
conseguia conter o ódio pelo pai e, agora, o arrependimento por
também ter causado sofrimento.
— Deu, gente! Chega por hoje. Precisamos sair daqui
inteiros e melhores, se possível — falou Ana, se recompondo e
tentando juntar os cacos da turma.
— Sabe de uma coisa? Eu acho que tu tem razão — concordou
Polo enxugando as lágrimas com a manga da camisa.
— Tá falando do que, Polo?

O ESTAMPADOR | 183
— Não dá mais pra eu ficar aqui, acabou, sabe? Vou embora,
vou pedir ajuda pra que salvem o Vincenzo e vocês. Vou tomar
cuidado e falar com gente de bem que vai vir só ajudar.
— Esquece isso, Polo. Tu não tá em condição de caminhar
com este corte na coxa. Tu vai desmaiar antes de chegar na cidade.
Isso é loucura, não vamos deixar — frisou Tainá.
— Não tem mais clima pra mim aqui, tô me sentindo mal…
Me sinto o cara que deu errado. De boa, eu preciso ir.
— Só se passar por cima de mim — disse Thomas tentando
esboçar um sorriso. — Não chegamos até aqui pra tu sair do nada.
Se tu for, eu vou junto, mas penso que, pelo Vincenzo, temos que
ficar até o fim. Tudo isso vai passar, Polo.
— O Thomas tem razão, Polo. Tu não precisa te envergonhar
de nada, tu não fez nada de errado, tu é outra vítima dos Fornari. Se
a gente não resolver isso aqui e agora, seremos mais um grupinho de
merda, cada um com a sua ideologia e se agredindo por verdades e
mentiras que não são nossas. Chega disso, a gente tem o Vincenzo
pra salvar — concluiu Ana estendendo uma mão para Polo e a outra
em direção ao Jorginho.
Jorginho estava sentado. Se escondia entre os joelhos sem
conseguir conter o choro. Sua dor era não saber por que tudo aquilo
estava acontecendo com ele, se sentia tão bandido quanto o pai, e
seu remorso por Polo parecia não ter fim. Ana se aproximou de
Jorginho e abraçou o amigo, tentando lhe dar um pouco de conforto.
O mesmo fez Thomas com Polo.

184 | O ESTAMPADOR
— Que momento, diria minha professora — falou Tainá. —
Acho que já sofremos o que era permitido.
— E isso precisa nos fortalecer — completou Ana.
Com a ajuda de Ana, Jorginho foi aliviando aquela posição
contida e, aos poucos, foi se levantando. Abraçou mais uma vez a
amiga, que lhe deu um único beijo na testa e sorriu. Jorginho fez o
mesmo, tocando em seu rosto e sorrindo pra amiga. Devagar foi se
aproximando de Polo e se ajoelhou diante dele.
— Tu saberia perdoar um cretino? — falou emocionado.
— Acho que um cretino, não, mas um babaca, sim —
respondeu Polo entre lágrimas.
O silêncio se fez novamente, as vozes se calaram. Jorge
estendeu as mãos e Polo aceitou um abraço longo e apertado, entre
soluços e lágrimas.

O ESTAMPADOR | 185
20 – VINCENZO
É muito interessante entender os grupos e como se formam
os relacionamentos. O que era improvável, até o momento em
que Jorginho e Ana se encontraram na praça de Alfor, virou um
fato pelas simples circunstâncias daquele dia. Em algumas horas,
a história de todos acabara criando elos de reconhecimento e de
amizade. As questões particulares ganharam um protagonismo
coletivo. Este era o momento de pensar somente em Vincenzo. Um
menino sem origem, com um passado misterioso.
O clima lacônico do acampamento envolvia todos, Tainá
cuidando de Vincenzo, que ainda repousava ao seu lado. Ana
retocava os ferimentos de Polo enquanto Jorginho e Thomas lutavam
com quatro serrotes contra uma corrente de aço do século XIX.
— Vai lá, Thomas, agora é a tua vez — Jorginho estendeu a
mão com um dos serrotes velhos retirados da oficina.
— Porra, tu tinha razão, Jorginho, nesse ritmo, daqui uma
semana a gente consegue cortar um elo. Olha! Esse serrote já é o
segundo e tá perdendo os dentes mais rápido do que a minha avó e
sequer cortou um milímetro deste elo.
— Eu falei pra vocês que isso é pra madeira.
— Mas era a única coisa com serra que tinha naquela oficina,
o resto de nada servia.

186 | O ESTAMPADOR
— Tu tem certeza que não havia nada além disso?
— Eu vi uma marreta, mais de uma, até. Mas eram gigantes,
sabe? Tipo de filme medieval.
— Cara, era pra ter trazido também, com uma marreta
dessas e dando muita porrada, essa corrente vai ter que ceder.
— Quer ir buscar? O Polo não pode caminhar muito, o
ferimento tá aberto e vai voltar a sangrar de novo se fizer força —
observou Thomas.
— Nem me lembra disso que eu fico muito mal, ainda não
acredito que eu fui capaz de enfiar uma faca numa pessoa.
— Fica sussa, isso já passou, o Polo é muito massa, um
cara muito de boa e legal. Ele vai apagar isso e seguir a vida como
sempre fez.
— Mas meu pai vai pagar muito caro por tudo isso. Não vou
deixar barato, sem contar o resto dos crimes dele, tá claro que ele
escraviza trabalhadores até hoje. Maldição de família, preciso dar
um fim nisso.
— Isso. Tu vai romper com uma história ruim de família,
mesmo que tu fique na miséria, acaba com esta sina.
— Pode ter certeza, Thomas, amanhã vai ser o último dia
de sofrimento de muita gente e uma data pra esquecer o nome dos
Fornari pra sempre.
— Boa! Mas agora precisamos buscar a marreta, esses
serrotes aqui mal fizeram cócegas nesta corrente.
— Vou ficar com o Vincenzo e a Ana, meus pés ainda doem.
Convida a Tainá, ele precisa espairecer um pouco.
— Legal, se não voltarmos é porque me perdi.

O ESTAMPADOR | 187
— Te liga, meu. Marca o caminho por onde tu vai, lembra
da história de João e Maria?
— Sim, os dois que se foderam porque os passarinhos
comeram todas as migalhas de pão.
— Isso aí, como não temos pão, usa pedras.

***
Tainá e Thomas retornaram até a oficina em busca da
marreta, Polo dormia e Ana cuidava de Vincenzo. Aparentando
estar mais tranquilo, Jorginho sentou ao lado de Vincenzo e Ana.
— E aí, playboy, já tinha tido um dia assim antes?
— Bah! Que dia punk, não vai sair da minha memória pra
sempre. Parece que alguém decidiu mexer em todos os problemas
num só dia. E, pra piorar, nos entregou de bandeja esse pobre
garoto. Que crueldade.
— Tu já pensou que até agora ninguém apareceu pra buscar
o Vincenzo, ou ver se estava bem, ou trazer água e comida? —
questionou Ana.
— Não sei nem te dizer se isso é bom ou ruim.
— Pela nossa segurança, é bom, mas, se não tivéssemos
aqui, este garoto já tinha morrido de fome e sede. Isso me faz
pensar que foi deixado aqui pra morrer.
— Puxa! Não me toquei nisso. Mais um crime. E quem
fez isso?
— Me perdoa pela fala, mas, neste momento, só tenho um
suspeito, tanto do caso do moleque que caiu no jardim dos Sampaio,
como neste aqui.
— Meu pai, né?

188 | O ESTAMPADOR
— Lamento, mas sim.
— Talvez tenha chegado o momento de colocar fim a tudo
isso. A Tainá me falou um negócio sobre o dia do expurgo.
— Expurgo?
— Sim, o termo que ela usou não é bem esse, mas tem o
mesmo sentido. Ela diz que o universo, em certo momento, se
organiza. Aí ele reúne pessoas para que, de alguma forma, as coisas
aconteçam, sejam discutidas, enfim, que venham à tona. Acho que
o dia de hoje é um desses dias de expurgo.
— E qual vai ser o resultado do teu expurgo, meu amigo?
— Ser feliz, gata. Vou me livrar de tudo que não quero mais
e que me atormenta e jogar fora. Amanhã precisa ser um dia de
mudanças.
Os olhos de Vincenzo voltaram a abrir, a voz de Jorginho
era como um alerta. Correram até encontrar os de Jorginho, e, mais
uma vez, o menino lançou um singelo sorriso.
— Oi, Vincenzo, você está melhor? — perguntou Jorginho
passando a mão na testa do garoto.
— Oi, Vincenzo, você sente alguma coisa? — falou Ana e
repetiu o gesto de Jorginho.
— Quer água?
— Quer comer uma fruta?
— Quer alguma coisa? — intercalaram as perguntas com
certa ansiedade.
— O meu estampador! Encontraram?
— Não, Vincenzo, ainda não. Precisamos tirar você daqui
primeiro, isso sim é mais importante — explicou Ana.

O ESTAMPADOR | 189
— Não precisa, só encontrem o meu estampador. Quando eu
encontrar ele, o Albernaz vai me libertar, por favor! — suplicou o
menino mais uma vez.
— Olha, Vincenzo, a gente não sabe bem o que procurar, o
que é esse estampador? — indagou Jorginho tentando entender a
importância do objeto para o menino.
— É o meu marcador “P”, eu perdi.
— Marcador? Como assim? — insistiu Jorginho.
— Minha ferramenta pra marcar as máquinas, olha ali
— apontou para um dos teares onde havia um número de série
estampado no chassi de aço.
Se aproximando do tear, Jorginho pôde entender sobre o que
o menino falava. Na ponta de cada estampador havia um número ou
uma letra. As impressões eram feitas batendo-se com um martelo
ou marreta contra o aço da máquina, em uma sequência que ia
formando palavras ou números de registro. Esse trabalho pesado e
perigoso era o que Vincenzo dizia fazer naquele lugar.
— Vem aqui ver, Ana!
— É isso que ele faz? Escreve coisas nas máquinas?
— Sim, é o que ele diz. Mas não faz sentido. Esse lugar
está abandonado, nada faz crer que alguém tenha passado por aqui
e muito menos trabalhado neste lugar. Como que ele perdeu uma
ferramenta e está sendo castigado por isso?
— Quem prendeu Vincenzo aqui fez pra deixar ele morrer,
não tem outra explicação. E se esse cara voltar? Vincenzo está
convicto de que, achando esta ferramenta, ele fica livre.
— Isso tudo é muito doido, Ana, não fecha.
— Vem, vamos aproveitar que ele está acordado, a gente
precisa saber mais.
190 | O ESTAMPADOR
Como agora parecia que Vincenzo estava bem o suficiente
para falar, Ana e Jorge continuaram a inquirir o garoto.
— Vincenzo, quando você perdeu o estampador?
— Foi ontem, no fim do dia.
— Mas esta fábrica está abandonada, Vincenzo, não tem
ninguém por aqui, onde está todo mundo? — perguntou Ana.
— O Albernaz e os outros garotos? Nós estávamos
trabalhando na obra e, quando íamos embora, ficou faltando o meu
estampador.
— Obra? Que obra, Vincenzo?
— A obra do piso.
— Ana, eu acho que ele ainda tá misturando as coisas.
— Sim, Jorge, mas tem outras que fazem sentido. Ele fala
com uma certeza de quem trabalha aqui e conhece este lugar. Até
o trabalho dele existe, olha o nome estampado nas máquinas? Ele
afirma que é isso que faz, mas pra quê? Qual o sentido de fazer isso
numa fábrica abandonada?
— Bah, Ana, se tu tá com a cabeça cheia de dúvidas, imagina
a minha. A única certeza que eu tenho é que esse moleque tá preso
aqui e só tem a nós pra ajudar. Esse Albernaz que ele fala, se existe,
deixou ele aqui pra morrer.
— Mas ele acredita em tudo isso, Jorginho. Ele pede por
este estampador o tempo todo em que está acordado. Acho que
temos que encontrar esse objeto e, assim, acalmá-lo. O que tu acha?
— Está bem, Ana, até concordo, mas sequer estamos
conseguindo achar um jeito de quebrar essa corrente, vamos ter
que procurar esse estampador?

O ESTAMPADOR | 191
— Sim, vamos nos dividir e tentar agilizar isso. Vai fazer
bem pro garoto e, ao mesmo tempo, não ficamos batendo cabeça
entre nós para saber como soltar a corrente.
Jorge voltou a se virar para o menino.
— Vincenzo, nós vamos procurar o teu estampador. Pra
isso, precisamos saber mais sobre ele e como tu acha que o perdeu.
— Obrigado. Humm, ele é bem pequeno.
— Qual o formato? — perguntou Jorginho.
— Parece um lápis, mas tem a ponta chata, tem que ter a
letra “P”, foi este que eu perdi, e só isso pode me tirar daqui.
— Um objeto tão pequeno num lugar tão grande vai ser foda
de encontrar — falou Jorginho.
— Bem, Jorge, vamos esperar a Tainá e o Thomas retornar
e nos dividimos.

***
Jorginho observava Polo descansando e deitado no ninho do
acampamento. Não conseguia deixar de pensar em toda situação de
risco que havia causado. Ainda com os fantasmas da culpa voando
sobre sua cabeça, Jorge sentia agora a necessidade de ajudar.
— Pensando na vida?
— Pior que não, estava pensando na morte. Eu quase matei
esse cara. Ainda não paro de pensar nisso. E o pior é que, há algumas
horas, eu sequer me incomodava com isso. Eu tinha certeza de ter
feito a coisa certa.
— E o que te fez mudar de ideia?
— Bem, Ana, eu agora conheço ele, e eu gosto dele,
gosto muito.

192 | O ESTAMPADOR
— Humm, deixa eu ver: se tu gosta, então tem remorso por
ter feito algo ruim; se tu não conhece e não gosta do sujeito, o que
tu fez não é tão importante assim?
— Bah, Ana, moralzinha de novo?
— Não, Jorginho, é apenas uma conversa. Tu não é burro,
que tal pensar no que estamos falando? Tu esfaqueou o cara que hoje
tu gosta muito. E se, na hora que tu entrou no quarto, tu soubesse
disso? Ia ser diferente?
— Claro, ia ser meu amigo.
— Errado, Jorginho, ia ser pior, tu ia te sentir traído pelo teu
amigo, aí sim íamos ter uma tragédia. Tu só mudou de ideia porque
viu que fez merda, além de bater e esfaquear um cara, notou que
teus sentimentos homofóbicos prevaleceram sobre teu juízo.
— Tu acha isso?
— Tenho certeza, porque é assim que o ser humano age na
hora do conflito, alguns até se controlam, outros não conseguem.
— E tu acha que o Polo vai me perdoar?
— Esquece isso, Jorginho, o Polo é uma alma do bem, um
cara que vale ouro, só o fato de mostrar teu arrependimento deu
a ele uma alegria que tu não imagina. Essa noite tem sido a noite
mais iluminada da vida de todos nós.
— Só que ainda não terminou…
— Uma coisa é certo, Jorge, ninguém vai sair daqui igual
ao jeito que entrou.
— Concordo, amiga, concordo.

***

O ESTAMPADOR | 193
No pavilhão leste, Thomas e Tainá retornavam à oficina em
busca da marreta.
— Cuidado, Tainá, onde pisa. O chão é sujo e tem muitos
insetos e outros bichos aqui.
— Dos bichos eu não tenho medo, Thomas, mas desse prédio,
sim. Vivi minha vida indo pra aldeia dos meus avós, a natureza não
me incomoda.
— Vidas diferentes, que coisa, né? Pois os bichos me
apavoram, prefiro o prédio.
— Tá com medo, Thomas?
— Mais ou menos, nunca fico confortável com coisas assim.
— Mas tu nunca fica sozinho, estamos sempre juntos.
— Sim, mas antes eu tava com o Polo, e agora tô contigo,
tenho que cuidar dos dois.
— Humm, tu acha que uma menina não consegue se cuidar?
— disse Tainá segurando um dos pulsos de Thomas.
— Acho que nós temos sempre que proteger, vocês são mais
frágeis.
— Frágeis? Tipo essa aranha que está caminhando no teu
ombro agora?
Thomas respirou fundo. Os quatro pêssegos reviraram no
seu estômago. Estava com medo, mas sabia que iria se sentir muito
melhor depois de passar por aquele teste da Tainá. Não queria
fraquejar.
— Bem, não era sobre isso que eu tava falando, mas, se tem
uma aranha aí, tu pode me ajudar?

194 | O ESTAMPADOR
— É pra já, veja! — sorriu a menina esticando o braço. Com
a mão direita, ela fez uma ponte para a pequena aranha, inofensiva
para ela, apavorante para Thomas.
— E agora, melhor?
— Obrigado, Tainá. Entendi o recado.
— Lembra, garoto, todo mundo tem suas fragilidades, por
isso estamos juntos, os dois se protegem — sorriu mais uma vez e
puxou Thomas pelo pulso.
— É por aquele arco ali que fica o galpão onde está a oficina
— ele apontou em direção ao breu do interior do prédio.
— Então vamos rápido. Desde que cheguei aqui, só tenho
maus pressentimentos, e esse menino me preocupa muito.
Enquanto caminhavam na direção apontada por Thomas,
Tainá continuou a conversar.
— Queria te dizer que fiquei muito feliz contigo quando
defendeu o Polo e contou a verdade pro Jorginho.
— Não tinha outra coisa a ser feita, né? Ele precisava saber
da verdade ou ia ficar odiando um cara bacana pro resto da vida
sem ter um motivo verdadeiro.
— O Jorge também é um cara legal, pena que a família dele
não ajuda, ele tem a maior vergonha do pai — afirmou Tainá.
— É, eu estou percebendo isso, mas famílias são sempre
assim, nem sempre elas são como a gente gostaria. E tu, Tainá?
— O que tem eu?
— E a tua família? Vocês vivem de bem com a vida, né?
— De bem com a vida? O que tu quer dizer com isso?

O ESTAMPADOR | 195
— Vocês respeitam a natureza, têm uma vida mais tranquila,
menos ambição e acho que nem brigam.
Houve uma pequena hesitação no passo de Tainá, seus
ombros se ergueram, as costas se curvaram, mas ela se controlou e
respirou fundo.
— Bah! O Polo tem razão, em que mundo que tu vive?
— Falei algo errado?
— Errado, não, mas tu acabou de descrever uma fantasia,
essa fantasia que criaram de que indígenas são felizes porque estão
em harmonia com a natureza, que nem um sapo está pro brejo.
— Não é isso? — Thomas continuou questionando com toda
ingenuidade que lhe era peculiar.
— Vou lhe contar de outro modo, então — salientou Tainá
diminuindo o passo e caminhando lado a lado do amigo. — Pensa
num povo, um grupo de pessoas felizes morando no meio da
floresta, na terra que sempre conheceram. Um dia surge um agente
do governo dizendo que irão mudar as suas terras de lugar. No
mês seguinte, você e toda a sua família e pessoas daquele povo são
jogados em uma terra estranha, que não tem nada a contar, que não
lembra a tua história. Ali existe um mato, não uma floresta. Na
volta, muitas lavouras que não te pertencem, um rio que não tem
mais peixes porque os dejetos das fábricas de tecidos mataram uma
parte e afugentaram o restante. Não existem os animais silvestres
com quem antes tu convivia, o espaço para plantar é minúsculo e
oferece riscos, pois tem gente estranha que entra na reserva e, além
de te ameaçar, rouba o pouco que o lugar oferece. Mas, adiante,
existe uma pequena cidade. Talvez ali exista alguma esperança de
sustento? Engano. A cidade é de um grupo de oligarcas brancos
e escravagistas. Índio, o termo que eles usam, pra eles é pior que
196 | O ESTAMPADOR
doença ruim ou praga, pois índio que tu não consegue escravizar
não vale nada, vale menos que negro.
Não era perceptível sob a luz das tochas, mas o olhar de
Thomas era tão ingênuo quanto curioso. Embora ele também não
conseguisse distinguir a expressão de Tainá, podia notar, pelo tom
da voz, como ela transmitia suas emoções conforme avançava na
narrativa.
— As mulheres são um pouco diferentes, pois elas podem
ser usadas pra satisfazer o desejo dos empregados das fazendas e
de qualquer forasteiro que passar por ali, pois comer uma índia à
força não dá nenhum problema, é como comer uma fruta verde do
pé, dá um pouco de trabalho, mas no fim compensa. E quanto à
idade dela, isso também não é problema, quanto menor, mais fácil
fica, pois aí não se debate tanto, e tu consegue dominar melhor. Ao
resto, é dada a “oportunidade” de vender penas, cocares, qualquer
artesanato em troca de alguns trocados. Aos mais velhos, sobra
beber, beber muita cachaça nas vendas e armazéns desta cidade,
pois a bebida é farta, barata e anestesia. Até que seu pai retorna
bêbado pra casa. Agora ele já não sabe quem é, quem sabe ele
pode se comportar como um homem branco? Ele tem a chance de
treinar, então, chegando em casa todos os dias bêbado, ele pode
bater na esposa e nos filhos, estuprar a mulher, abusar das filhas,
pois parece que isso não dá nada.
Tainá passou de calma a ofegante. Thomas não sabia como
reagir.
— E então, viu como nós somos felizes? Viu como estamos
em harmonia com a natureza?
Ao se virar e olhar para Thomas, Tainá percebeu que o amigo
havia ficado uns dois passos atrás no caminho. Estava estático, com

O ESTAMPADOR | 197
o olhar triste e baixo e completamente calado. Retornou até ele,
segurou uma das mãos do jovem, erguendo-a até seu próprio rosto.
Fez com que ele passasse os dedos sobre sua pele e finalmente
encarasse seus olhos marejados.
— Desculpa se eu te assustei. Essa é a minha vida, não
acredita em todas as fantasias que te contam.
Tainá puxou Thomas do seu estado quase catatônico e
entraram pavilhão adentro até chegarem na oficina. Lá, pegaram e
carregaram uma grande marreta de volta ao acampamento, sempre
em silêncio.

198 | O ESTAMPADOR
21 – MADRUGADA
A luz da fogueira mantinha uma penumbra naquela noite de
verão. Se não fosse pelas circunstâncias, aquele encontro poderia
ser visto como uma aventura de cinco jovens. Aquele típico
acampamento de final de semana, onde tudo que se faz é se divertir
e passar bons momentos com os amigos. O clima era ambíguo,
ora podiam se sentir aliviados pela oportunidade de falar sobre
problemas que nunca antes haviam sido revelados para alguém, ora
viviam a angústia pela impotência em não poder ajudar Vicenzo. O
grupo se fortalecia entre a compreensão de um pelo outro e pelos
novos sentimentos que tudo aquilo estava despertando entre eles.
Jorginho pensava muito sobre como estava envolvido em todos os
fatos desencadeados. Se sentia responsável por todos e percebia que,
pela primeira vez, havia encontrado amigos de verdade, pessoas
iguais a ele e que lutavam pela felicidade em uma cidade onde a
sua família havia criado as regras. Polo dormia profundamente.
Vicenzo retornava ao seu estado quase vegetativo, dava a impressão
de que a sua energia era limitada, despertava e falava pouco, seu
corpo reagia como se tivesse corrido uma maratona. No segundo
seguinte, ficava inerte e desfalecia.
— Quer ir lá fora um pouco? — Jorginho convidou Ana.
— O que você vai me mostrar? As luzes da cidade? —
brincou a amiga.

O ESTAMPADOR | 199
— Tem as luzes dos vagalumes, acho que é mais romântico.
— Tá bem, mas e o Vicenzo?
— Ele dorme. E o Polo está aqui do lado dele.
— O Polo apagou, nem com banda de rock ele acorda agora.
— Verdade, foi um dia muito pesado pra ele.
— Pra ele e pra todos, né, Jorginho?
— É, linda, nunca imaginei que este dia poderia acontecer.
— Tudo tem consequências, estamos lidando com coisas que
sequer nós existíamos quando foram feitas. A vida é uma sequência
de consequências, o que a gente faz hoje, em algum momento, vai
ter seus resultados. Você não acha?
— Pior que sim, dá pra entender agora o que é herança. E
não se resume a dinheiro. Os problemas também são herdados —
respondeu Jorginho levantando e esticando a mão para a amiga. —
Vem, vamos passear.
Caminharam em direção ao portão da fábrica e passaram
pela mesma brecha que entraram, ganhando o breu do mato e dos
sons da noite.
— Ficou mais calmo? — perguntou Ana ainda de mãos
dadas com Jorge.
— Sim, mas ainda não estou legal. Cada vez que lembro do
Polo, tenho vontade de me esmurrar.
— Isso já foi resolvido. Vocês dois são caras do bem. Polo
tem os seus problemas, mas é um guri da paz. Sempre ajudando
quem ele pode.
— Vocês são amigos, né?
— Sim, a gente já estudou juntos e moramos perto.

200 | O ESTAMPADOR
— Não é justo o que meu pai fez com ele.
— Tu quer dizer com eles, né? Tem a família, não esqueça.
— Sim, verdade, tudo começou por aí. Mas não se faz com
um homem o que meu pai fez.
— Nem com um homem e nem com ninguém, teu pai
abusou dele porque sabia da condição do Polo. Cometeu um crime
duas vezes.
— Como assim, condição? Que condição?
— O Polo é gay, Jorginho — revelou Ana.
— Não, tu tá zoando?
— Por quê? Algum problema, Jorginho? Não falamos sobre
isso o suficiente hoje?
— Eu não sabia.
— Isso muda alguma coisa? — continuou Ana.
— Não deveria, mas fiquei estranho com isso.
— É? Vai voltar lá e encher a cara dele de porrada novamente?
— Para com isso, Ana. Não sou esse animal que tu enxerga
em mim.
— Quem disse que ficou “estranho” foi tu.
— Tá bem, errei a palavra, estou surpreso, sei lá, meio
bolado. Nunca imaginei que ele fosse isso.
— Sim, ele é. E já sofreu muito por causa dessa condição. E
não se diz “isso”!
— Não te preocupa, Ana, não vai mudar nada entre nós.
Eu gosto dele, fiquei chateado comigo desde a briga lá na praça da
prefeitura. Eu vi que tinha feito merda.
— Opa! Que bom ouvir isso. Sinal que estamos evoluindo.

O ESTAMPADOR | 201
— Vem! Vamos caminhar — disse Jorginho de mãos dadas
e ainda mancando um pouco pela dor nos pés.
O entorno da velha fábrica naquela madrugada mostrava a
tranquilidade da vida rural. Um pouco de luz da lua destacava as
silhuetas entre campos, matos e as lavouras de milho. Os vagalumes
que Jorginho havia mencionado antes estavam lá. Recriavam um
céu estrelado entre os pastos e a vegetação rasteira que circundava
o lugar. O cenário era lindo.
— Tu é braba, né?
— Eu? — surpreendeu-se Ana com aquela pergunta quase
em tom de afirmação.
— Não! De onde tu tirou isso?
— Poxa, Ana, eu te vi hoje me dando sermão mais de
uma vez.
— Não sou de dar sermão, mas tu, às vezes, vira um cara tão
sem noção, sem falar dos teus preconceitos ainda mal resolvidos,
tu me tira do sério, sim — ela respondeu apertando forte a mão
do amigo.
— E tu acha que eu tenho solução? — ele provocou mais
uma vez.
— Não sei. Tu é quem deve responder isso.
— E se eu não souber? Tu vai me ajudar?
— Depende.
— Depende do quê?
— Se tu vai ser um bom aluno ou não.
— E se eu não for? A professora vai fazer o quê?
— Posso te pôr de castigo — ela brincou sorrindo.

202 | O ESTAMPADOR
— Está bem, vou mudar a palavra, então. Não vou dizer que
tu é braba, mas, sim, “durona”.
— É, melhorou! Sou dura, sim, já levei porrada demais de
garotos que nem tu.
— E o que tu fez?
— Com eles?
— Não, o que tu fez pra eles pra ter que ficar durona.
— Engraçado, né, Jorginho, na cabeça da maioria das pessoas
existe sempre um culpado. Se não gosto de negros, é porque eles
fizeram alguma coisa; se não gosto de gays, é porque eles também
fizeram alguma coisa. Se a mulher é durona, é porque ela não sabe
ser de outro jeito com os homens. Porra! Tu tem noção de como tu
pensa a vida?
— Não penso assim.
— Mas tu fala assim.
— Tô mudando, te falei.
— Mas então não muda só nos gestos, muda no discurso
também. Teu discurso é feio e preconceituoso, é machista e
constrangedor.
— Desculpa, Ana, nunca imaginei isso. Às vezes eu brinco
com coisas que sei que a maioria das pessoas não faria, mas pra
mim é brincadeira.
— Pois é, Jorginho, a gente envelhece e o mundo fica mais
sério, nem todo mundo quer brincar com as coisas que tu julga
possível brincar. Sem querer, tu pode machucar muita gente.
— Não quero te machucar nunca, sabia?
— Eu e o mundo, espero! — Ana completou a frase.

O ESTAMPADOR | 203
— Em especial a ti. Não quero que essa noite acabe sem que
eu possa te dizer isso.
— Isso o quê?
— Que eu tô amarrado em ti.
— Olha lá, moleque, o que tu tá dizendo — ponderou Ana,
largando a mão de Jorginho e ficando um passo à frente.
— Tu não vai me levar a sério?
— Não sei. Isso pode ser mais uma das suas brincadeiras, já
te falei que levei muita porrada de garotos igual a ti.
— Agora tu é quem tá sendo preconceituosa.
A na parou e se virou para Jorginho, olhou para o céu
estrelado e, em seguida, direto para os olhos do amigo. Sorriu e fez
um aceno com a cabeça, em afirmação. Mais uma vez, Jorginho
estendeu a mão, puxou Ana para perto do seu corpo e segurou a
cintura da amiga, dando um abraço forte e afetivo. Os dois ficaram
ali parados, apenas se olhando.
Enquanto durava o impasse, Ana se convencia de que ele
estava tentando descobrir uma forma de ficar com ela. Depois do
que pareceu ser uma eternidade, ele falou:
— Tira a minha camisa?
— O quê?
— Tira a minha camisa.
— Mas tá friozinho.
— É noite de verão, quero sentir o calor do teu corpo no meu.
— Ah, deixe de bobagem — falou Ana tocando no corpo
dele. As mãos delicadas foram acariciando as costas de Jorginho
até que não havia mais como parar. Jorge deu um beijo em Ana,

204 | O ESTAMPADOR
intenso, prensando seu corpo contra uma parede de feno seco que
se esparramava próximo a uma lavoura de milho. Aos poucos,
foram ficando mais intensos e se jogaram naquele monte. Ana
conseguiu ficar por cima dele e tirou sua camisa. Enquanto isso, ele
sentiu o gosto do suor dela na pele, abaixo da clavícula, enquanto
sussurrava, a boca encostada nela:
— Ana, eu te amo.
O corpo de Jorginho relaxou debaixo do dela logo que
conseguiu dizer aquilo. Em seguida, ele esticou os braços e tirou a
camisa de Ana. Jorginho virou de lado e, após tirar sua bermuda,
viu Ana fazer o mesmo com sua calça. O contato dos corpos
deixava a respiração dos dois cada vez mais forte, e o desejo de
poder se tocar agora era mais do que uma simples declaração de
amor. Os dois se entregavam abrindo espaço para um sentimento
bem diferente do que todas as experiências anteriores pelas quais
haviam passado.
Tudo aquilo foi exatamente o oposto do que Ana imaginava,
o que começara num movimento intenso de desejo despertado
pelos dois deu lugar a uma relação de amor, devagar, paciente,
silenciosa, nem especialmente extasiante. Nada de gritos. Aquela
foi provavelmente a maior quantidade de tempo que passaram
juntos sem falar nada.

***

— Thomas! — quebrou o silêncio Tainá.


— Sim.
— Eu não contei a minha história pra te deixar triste…
Desde que saímos daquela oficina, tu tá mudo.

O ESTAMPADOR | 205
— Nada, não, Tainá. Só estou pensando em tudo isso que
está acontecendo com a gente. Acho que a minha vida é um mar
de rosas perto das coisas que vocês vêm contando — explicou com
uma voz baixa e segurando em uma das mãos a marreta.
— Olha, Thomas, ninguém aqui é infeliz. Todo mundo tem
seus problemas, mas nem por isso minha vida é ruim hoje. Já sou
independente, tenho uma vida pra construir e tudo que falei já ficou
pra trás. Faz parte da minha história. Sou descendente dos povos
originários, mas nasci já com os meus problemas aqui, em Alfor.
— E isso faz diferença?
— Nenhuma, mas num lugar onde o preconceito é normal,
basta olhar pra minha fisionomia pra acharem que moro numa
oca e que me alimento de caça e frutas colhidas na floresta. Uma
estupidez que só os brancos conseguem construir na sua mente de
raça dominadora.
— Sabe, eu nunca imaginei que essas coisas pudessem
acontecer aqui, numa cidade pequena. Acho que vivi numa bolha,
tudo que vocês contaram eu só tinha notícias disso na TV. Lá na
igreja, somos doutrinados a gostar um dos outros, lá tem negros,
brancos, índios, gente pobre, gente rica, e convivemos bem.
— Igrejas são assim, Thomas. Elas cumprem o seu papel,
acho até que ajudam muita gente sem esperança. Mas têm seu
preço. Tua vida tem controles que são da igreja, não teus.
— Mas e se a gente acha que isso é correto? Ninguém sofre
com isso — explicou Thomas, parando um pouco e trocando a
marreta de mão.
— Sim, mas quando se é controlado, não se vive outras
experiências, e com isso nos tornamos mais uma vez misóginos,

206 | O ESTAMPADOR
machistas, homofóbicos, enfim, excludentes. Olha o que aconteceu
com o Polo, se não fosse por ti, o Jorginho talvez ainda estivesse
com ódio dele.
— Por ele ter sido violentado?
— Não, por quem ele é.
— Por ser gay?
— Sim.
— Confesso que, quando descobri, fiquei muito
desconfortável — revelou Thomas.
— Pois então, como seria pra ti levar ele na tua igreja? E
contar pra todo mundo que tu tem um amigo gay e que ele vai
frequentar a igreja contigo?
— Impossível! Isso nunca seria aceito.
— Entendeu agora? Todos na tua igreja se aceitam até que
um se mostre diferente dos demais. Daí o modelo que tu vê nas
ruas de Alfor também acontece lá dentro e, pior, de forma aberta e
constrangedora.
— Eu preciso te contar uma coisa — falou Thomas largando
a marreta e sentando no chão da fábrica.
— Fala, Thomas, o que é?
— Aconteceu algo muito estranho quando fui com o Polo
buscar água.
— Tu quer me contar que vocês ficaram. É isso?
Aquela revelação de Tainá assolou Thomas como o impacto
de um pássaro em voo numa janela de vidro. O garoto não sabia
mais o que dizer, havia sido descoberto.
— O que foi que ele te contou?

O ESTAMPADOR | 207
— Nada, Thomas, ele não me contou nada.
— Então como que tu sabe?
— A gente percebe os movimentos e os olhares, vocês
voltaram muito felizes e, pelo tempo que demoraram lá, alguma
coisa a mais tinha acontecido.
— Mas eu fiquei muito mal com tudo isso — falou Thomas
antes que Tainá continuasse a revelar o que havia percebido.
— Eu imagino, estamos falando justamente disso. Da tua
igreja e de como existem outros tipos de relacionamentos para lidar
e que elas não estão preparadas. Não foi ter tido atração por um
outro homem o que te perturbou, mas eu acho que é como vai ser
daqui pra frente, isso, sim, pode mudar tudo aquilo que tu vem
acreditando até hoje.
— Eu tô muito confuso, eu não sei o que fiz. Eu não sei se
tenho atração por ele, eu nem sabia direito o que tava fazendo, mas
não quis parar, só podia ser coisa do demônio.
— Demônio, Thomas? Para com isso, deixa o demônio fora
disso, ele deve ter outras coisas mais importante pra fazer. São os
teus próprios fantasmas que te aterrorizam agora.
— Eu não sei o que fazer.
— Não sabe o que fazer pra contar isso que aconteceu pros
outros? Ou não sabe lidar com algo que pode ser possível na tua
vida daqui pra frente?
— Nos dois casos.
— Então esquece o primeiro caso e te preocupa só com o
segundo. É nesse que tu vai descobrir se quer ser feliz ou não.

208 | O ESTAMPADOR
— Nós já conversamos e combinamos que não passava
disso. Uma bobagem de garotos — explicou Thomas.
— Ok, se tu acha que isso já tá resolvido, então esquece
tudo. Isso não vai ter importância nenhuma na tua vida, mas, pelo
jeito que tu começou essa conversa, acho que tem alguma coisa
remoendo essa cabecinha aí, e é disso que tu tá com medo.
— Não vou mais tocar nesse assunto e tentar esquecer
isso tudo.
— Beleza, se for pra ser assim, vai dar tudo certo. Mas se
não for, logo tu vai descobrir. Essas coisas não se resolvem em uma
noite. Muito mesmo nesta, cheia de terror à nossa volta. Vamos,
temos que levar essa marreta e tirar aquele menino de lá, ele, sim,
tem problemas que sequer chegam perto dos nossos.

O ESTAMPADOR | 209
22 – O ESTAMPADOR
Uma tênue penumbra surgia no horizonte anunciando o
fim daquela madrugada na fábrica. O tempo se esgotava junto
com a energia de todos. O momento era de reunir forças e salvar
Vicenzo. Com a chegada de Thomas e Tainá e a marreta gigante,
o jogo poderia virar a favor deles. No acampamento, os olhares
de afirmação despertavam sorrisos e cumplicidades. Estavam bem
entre si, o grupo se reconhecia e havia um tom de felicidade, de
alívio. A catarse daquela noite purificava cinco almas, a amizade
agora era incontestável. Ana e Jorginho retornaram ao ninho no
mesmo instante em que Thomas e Tainá chegavam com a marreta.
— Bem, gente, acho que, se não conseguirmos tirar Vicenzo
com esta marreta, não temos mais o que fazer a não ser mudar
de estratégia — falou Thomas, erguendo nas duas mãos a pesada
ferramenta.
— E qual vai ser esta estratégia? Já tentamos tudo —
perguntou Polo ao amigo, levantando do chão e se juntando a
Thomas.
— Alguém vai ter que sair e trazer socorro — disse Thomas
objetivo.
— Quem?
— Eu — sorriu Thomas.

210 | O ESTAMPADOR
— Tem certeza disso? — perguntou Ana.
— Sim, eu tô bem, não estão me procurando e sei onde
buscar ajuda com os irmãos lá da igreja.
— Ok, Thomas — afirmou Jorginho dando um tapinha no
ombro do amigo.
— Mas, antes, vamos sentar a porrada nesta corrente, ela
vai ter que ceder.
— Mas também precisamos fazer outra coisa — lembrou Ana.
— O quê? — perguntou Tainá.
— O estampador. Temos que encontrar.
— Mas, se vamos tirar o Vicenzo daqui, qual a importância
disso agora? — falou Polo.
— É importante para Vicenzo, é a crença dele. Foi a única
coisa que nos pediu a noite toda. Ele acredita nesta ferramenta pra
sair daqui. Não podemos falhar com esse menino — considerou Ana.
— Concordo, Ana — endossou Tainá.
— Eu também — adicionou Jorginho.
— Perfeito, e como fazemos? — lançou a dúvida Thomas,
ainda de posse da sua marreta.
— Polo não pode fazer força, vai nos ajudar a procurar o
estampador. Thomas e Jorginho cuidam da corrente, pode ser?
— Feito, Tainá.
O grupo se dividiu e foram para diferentes pontos do pavilhão
principal. Havia esperança e, com a chegada dos primeiros raios
de sol, novas cores iam surgindo. O aspecto fantasmagórico do
lugar ia sendo substituído por outras cores, cores do abandono e do
tempo. Mesmo perdida ali por um século, a fábrica ainda mantinha

O ESTAMPADOR | 211
a sua imponência. A tênue claridade ia invadindo as janelas e os
espaços, aquele movimento de luzes e claridade, chegando. Ao
mesmo tempo que revelavam os detalhes antes não vistos, também
espantavam os fantasmas da noite.
Próximo ao tear, Jorginho e Thomas tiraram suas camisetas
e, com muita disposição, se prepararam para vencer aqueles
elos. No lado oposto da corrente, Vicenzo repousava como numa
manjedoura, tinha um semblante angelical, um leve sorriso nos
lábios fechados e uma respiração quase inexistente.
Polo, Ana e Tainá seguiram formando uma linha de busca,
passo a passo, iriam vasculhar cada metro quadrado daquele lugar
e se certificar de que nenhum canto ficaria sem ser visto.
— Acho que precisamos colocar essa corrente entre dois
suportes, assim, quando batermos, vai diminuir a resistência do
elo — explicou Jorginho pensando em como iniciaria mais aquela
tentativa.
— Que suporte vamos usar?
— Pedras, tem muita pedra aqui, vamos fazer um apoio com
duas pedras grandes e colocamos a corrente entre elas, daí, meu
querido, vai ser só porrada.
— Bora.
E, juntando as pedras, os dois montaram um apoio para
repousar a corrente.
Já nas primeiras marretadas, o elo sentiu e foi se deformando.
Uma sensação de vitória bateu no coração dos jovens. Mesmo assim,
perceberam que não seria fácil romper um grilhão tão espesso. No
outro canto da fábrica, as buscas continuavam.

212 | O ESTAMPADOR
— Não sabemos bem o que procurar, as informações do
Vincenzo nos dizem que é uma ferramenta bem pequena, do
tamanho de uma caneta, e tem que ter uma letra “P” na ponta —
explicou Ana.
— Do tamanho de uma caneta? Isso vai ser uma agulha no
palheiro.
— Com certeza, Polo, mas temos que tentar, o Vincenzo
merece isso.
— Claro, vamos achar sim.
— Por onde começamos? — perguntou Tainá.
— Acho que devemos começar lá dos fundos e vir em
direção ao acampamento, se conseguirmos isso, mais da metade do
pavilhão terá sido revistado. O que acham? — sugeriu Ana.
— Boa, e temos mais alguma pista?
— Bem, Polo, a única coisa que descobrimos foi que havia
uma obra.
— Uma obra?
— Sim, Vincenzo disse que estavam fazendo uma obra
no piso.
— Bom, já é alguma coisa.
— Podemos antes olhar pro chão e ver onde existe uma
reforma — propôs Tainá.
— Mas não dá pra ver o chão, está todo emporcalhado com
terra, lama, folha e sei lá mais o quê — justificou Polo.
— Que tal varrer?
— Caralho, Ana, esse lugar deve ter mais de dois mil metros.

O ESTAMPADOR | 213
— Tem outra ideia, Polo?
— Pior que não.
— Então precisamos fazer vassouras — concluiu Tainá.
— Como? — perguntou Polo.
— Bem, isso é fácil, foi uma das primeiras coisas que minha
avó me ensinou. Vem, precisamos de três cabos de bambu. Aí fora
está cheio de carqueja.
— Carqueja? Mas que diabo é isso?
— Uma plantinha rasteira, funciona como palha de vassoura.
— Te adoro, Tainá — elogiou Ana. — Vamos lá pegar essas
coisas. Polo, pega os bambus, vou colher carqueja com a Tainá.
E, em poucos minutos, três vassouras surgiam. O plano
não era varrer todo o lugar, mas descobrir sinais de uma obra,
uma reforma, um piso novo, algo que pudesse estar próximo de
onde Vicenzo havia dito que estava quando perdeu o estampador.
Por outro lado, as marretadas de Jorginho e Thomas assolavam a
corrente, mas nada de algum daqueles elos abrirem.
— Caralho, Thomas, nós estamos amassando esses elos,
mas eles não quebram.
— Pior, estão fazendo desta corrente uma barra de ferro
ainda mais dura. Que droga, eles precisam ceder.
— Não tem jeito, vamos passar o dia fazendo isso e não vai
quebrar.
— Plano B — falou Thomas.
— Plano B? Que plano B?
— Vou voltar com ajuda, já está amanhecendo, se não
encontrar ninguém pelo caminho, na cidade eu sei quem procurar.

214 | O ESTAMPADOR
— Tu quer fazer isso mesmo?
— Não temos outra saída, Jorginho. É isso ou ele morre
preso aqui.
— Tá bem, vamos contar pros outros.
Por mais que todos relutassem em voltar para a cidade antes
de soltar Vicenzo e poder organizar as ideias para que, em vez
de apenas se defenderem, pudessem também acusar e acabar com
todo aquele sofrimento, os dois sabiam que estavam perdendo feio
a luta contra as correntes. Não havia mais o que fazer, os recursos
da fábrica não seriam possíveis para que eles pudessem dar conta
de ferro e aço.
— Tem certeza que vai conseguir sozinho? — perguntou
Polo ao voltar para perto do amigo.
— Sim, tu não tá bem pra ir comigo, caminhar essa distância
vai te deixar mal, se acontecer alguma coisa, vai ser pior, teremos
de fazer dois salvamentos ao invés de um, e não vou conseguir
voltar a tempo — ponderou Thomas.
— E tu vai aonde? Quem tu vai chamar pra nos ajudar? Não
dá pra ir direto pra polícia antes que a gente consiga se explicar —
disse Jorginho.
— Ora, Jorge, esse vai ser o nosso menor problema, é
fácil explicar a cortina de fumaça que teu pai fez pra se livrar do
protesto, difícil vai ser explicar a morte de uma criança — apurou
a consciência de Ana.
— Não te preocupa, Jorginho, eu vou encontrar alguém, sim,
é só sair desse fim do mundo que aparece alguém — tranquilizou
Thomas vestindo suas meias e tênis e se preparando para a longa
caminhada.

O ESTAMPADOR | 215
— Concordo, Thomas, tem muita lavoura aqui na volta, essa
plantação de milho aqui do lado da fábrica é de alguém que não
mora muito longe — explicou Tainá.
— Tu já viu o tamanho dessa plantação? — alertou Jorginho.
— É enorme, a sede deve ficar longe.
— Não importa, eu chego lá.
— Te cuida, tu é a nossa esperança aqui — finalizou Ana.
E, decidido a pôr um fim no sofrimento de Vincenzo, Thomas
se via agora como um outro homem, queria fazer algo a favor dos
amigos, sabia que devia muito a eles. Foi uma transformação em
apenas uma noite de muita troca e de muitas mudanças. Todos ali
haviam aprendido com o passar dos anos, talvez das maneiras mais
horrendas possíveis, que é muito tênue a linha entre a vida e a morte,
entre a beleza extraordinária e a feiura espantosa, entre o cenário mais
inocente e um banho de sangue assustador. Basta um segundo para
rompê-la. Num momento, a vida parece idílica, no outro, pula para
dentro de um inferno onde você reconhece todos os seus demônios.
— Thomas! — chamou Polo.
— Fala, meu brother.
— Nunca vi ninguém mudar o vocabulário tão rápido como
tu — disse Polo.
— Acho que, por muito tempo, quis pronunciar essas
palavras, mas não tinha lugar.
— E agora tem?
— Sim, acho que, daqui pra frente, vai ser onde eu quiser —
explicou Thomas vestindo uma camiseta suada e suja pelas marcas
da fábrica.

216 | O ESTAMPADOR
— Te cuida, cara! — pediu Polo estendendo a mão e
entregando dois pêssegos para o amigo.
— Pode deixar, tenho motivos pra voltar — sorriu para Polo
pegando as frutas e passando a mão no rosto do amigo.
— Volta o mais rápido que tu puder, não sabemos qual o
estado do Vincenzo — pediu Tainá.
— Até daqui a pouco, gente, eu só vou ali e já volto, fiquem
com Deus.
E, com o coração apertado, todos viram Thomas se afastar
e sumir na trilha que levava até a estrada.
De volta ao ninho, ficaram conversando, mas não havia
mais nada a acrescentar. Vincenzo, desacordado, não podia ajudar
muito, e mesmo quando estava consciente, sua fala era confusa e
deslocada do tempo.
— E agora, o que a gente faz, espera? — perguntou Polo.
— Sim e não.
— Como assim, Ana? — perguntou Jorginho.
— Vamos continuar fazendo o que falamos antes.
— Procurar o estampador — completou Tainá.
— Isso mesmo, minha amiga. Devemos isso ao Vincenzo,
ele nunca nos pediu para livrá-lo da corrente, mas implorou muito
por esta ferramenta. E acho que essa fábrica maldita não vai nos
vencer, encontrar o estampador e devolver ao Vincenzo vai ser a
nossa resposta, precisamos achar.
— Concordo contigo, minha linda — falou Jorginho dando
um beijo nos lábios de Ana e arrancando caras de surpresa dos
amigos.

O ESTAMPADOR | 217
— Quer dizer que vocês dois… — Polo tentou completar a
frase, mas foi interrompido pelo dedo de Tainá, que encostou em
seus lábios e piscou o olho sorrindo.
A luz do amanhecer iluminava todo o pavilhão, os fachos de
luz do sol invadiam os espaços moldados pelas formas retangulares
das janelas do prédio. Algumas, ainda com vidros, difundiam a
claridade e faziam surgir diferentes cores que eram rebatidas pela
poeira do lugar. O torneado em metal torcido vindo da Inglaterra,
que adornavam as vigas e arcos que sustentavam o telhado, refletia
sua sombra no chão criando formas harmoniosas e floreadas.
O medo da noite definitivamente havia ido embora.
Organizados em duplas, os amigos e suas vassouras improvisadas
partiram para uma batalha ainda não vencida, mas com um
pressentimento de que podiam ganhar.
Os espaços a procurar estavam nos corredores, entre a
infinidade de teares justapostos em linhas e cartesianamente
organizados como um grande tabuleiro. Como ceifadeiras em uma
lavoura de trigo, eles varriam o chão em busca de remendos ou
qualquer pista que pudesse revelar o local da obra. A cada passo,
folhas e poeira eram removidas. O chão da fábrica não possuía
revestimentos nem ladrilhos ou qualquer outro tipo de cerâmica,
era cimento puro. Estava rachado e danificado na maioria dos
espaços. Plantas brotavam entre as rachaduras aumentando os
danos e deixando aquele piso irregular e com a mesma aparência
em toda a sua extensão.
Vindo do final do pavilhão em direção ao ninho, onde
Vincenzo repousava, o grupo varria desesperadamente na chance
de ver algo diferente.

218 | O ESTAMPADOR
— Ana, já estamos na metade e nada de estranho até aqui
— gritou Polo varrendo com cuidado e num ritmo menor do que
os outros.
— Meus olhos já não sabem mais o que procurar, e a poeira
que levanta não ajuda em nada — respondeu Ana.
— Por que não procuramos perto do ninho? Foi lá que
encontramos o Vincenzo — questionou Jorginho.
— Temos que descartar o espaço maior. Se, até lá, não
tivermos encontrado, é porque as chances de estar perto de
Vincenzo serão maiores — ponderou Tainá.
— Espero que tu esteja certa, minha amiga — disse Ana em
meio a uma nuvem de poeira que já se aproximava do ninho.
Com todo o cansaço de uma noite não dormida e cheia de
ação, os quatro vasculharam aquele chão sem deixar passar um
centímetro entre um tear e outro. Era uma busca incessante e quase
frenética, por quase duas horas varreram o pavilhão inteiro. Não
havia sinal de obra, qualquer reforma que tivesse sido feita ali nos
últimos dias seria visível. O cimento do século XXI não é muito
diferente do século XIX, era feito à base da queima de argila e
calcário como hoje. Mas a cor e a textura, passado um século,
seria fácil de comparar no caso de um uso recente como Vincenzo
havia dito.
Aos poucos, os amigos foram chegando para perto do
acampamento, seus rostos eram só fuligem e pó preto fixados pelo
suor que escorria de todos os lados do corpo. Um a um, foram
procurando um lugar para sentar ao lado de Vincenzo e descansar.
Havia no ar mais uma vez um sentimento de derrota.

O ESTAMPADOR | 219
— Não é possível, gente! Esse garoto não pode estar falando
a verdade, ele delira muito! — disse Polo indignado com o insucesso
e perdendo as esperanças.
— Não dá, gente — falou Ana —, procurar o que não se
conhece num lugar gigante desses é impossível.
— Se fosse uma marreta, já tínhamos achado, mas um
bagulho minúsculo? Só com muita sorte — desabafou Polo.
— E o que fazemos agora, Tainá?
— Sei lá, Jorginho, vamos rezar e pedir que escutem nosso
pedido.
— Neste caso, precisamos do Thomas, aqui ninguém reza
— argumentou Polo.
— Então só pede e deixa que o resto eles cuidam pra nós —
completou Tainá.
— Não dá pra deixar de dizer que é muito frustrante. Uma
noite inteira consertando os nossos problemas e o que motivou tudo
isso, Vincenzo, não consegue ser ajudado por nós — queixou-se Ana.
— Lamento, mas só temos que torcer pelo Thomas, sem ele
e a ajuda, vamos ficar por aqui mais um tempo.
— Que merda, Jorginho, uma derrota — disse Polo
segurando o ferimento.
— Olha o nosso estado, parecemos bichos ou carvoeiros,
nunca fiquei tão suja na minha vida — comentou Ana passando
a mão no rosto e vendo a sujeira se espalhar entre seus dedos e
a pele do rosto. — Estou fedendo, gente! Preciso me lavar, quem
busca água?

220 | O ESTAMPADOR
— Olha, Ana, acho melhor irmos lá nos tanques e mergulhar,
o que acham? — sugeriu Polo, também passando as mãos nos braços
e pernas encardidos pela fuligem.
— Nem pensar, temos que ficar aqui pelo Vincenzo e pelo
Thomas, que pode chegar — desconversou Jorginho.
— Bah, Jorginho, sei que tu deve estar cansado, mas bem
que tu podia pegar aquele balde ali e trazer água pra pelo menos a
gente poder se limpar um pouco.
— Qual balde? — perguntou Jorginho.
— Aquele ali — apontou Ana. — Perto daquele tear.
— Esquece! — respondeu Jorginho. — Está cheio de cimento
endurecido, o Thomas quase quebrou o pé quando chutou ele.
— Cimento endurecido? — repetiu a frase Tainá.
— Sim.
— Caralho, mano! — gritou Polo.
— Não acredito nisso, tu tá pensando no que pode ser? —
falou Jorginho.
— Cara, é o mais perto que conseguimos chegar —
disse Polo.
— Vocês podem me dizer o que é? — perguntou Ana.
— Ana, pensa! O balde com cimento e o estampador.
— Caralho!
E, como se fosse a grande resposta do universo para o pedido
dos quatro, estava ali a única evidência da obra de Vincenzo, um
balde com cimento endurecido ao lado de um tear.

O ESTAMPADOR | 221
Rapidamente um círculo estava formado, o balde ao centro
e, nas mãos de Jorginho, a marreta de Thomas.
— Se afastem um pouco, pode saltar pedaços de concreto
em vocês — pediu Jorginho.
— Vai lá, Jorge, senta a porrada nesse balde! — gritou Polo.
E, com uma força vinda das entranhas, Jorginho levantou a
marreta acima da sua cabeça esticando o braço o mais distante que
podia. Numa fração de segundo, o corpo da marreta foi projetado
contra o balde que estava virado para cima e recebeu, bem no centro
daquela massa de cimento endurecido, a primeira pancada. Lascas
saltaram por todos os lados. A cada marretada, os olhos de todos
se espremiam e voltavam a abrir num segundo para ver o resultado.
— Está quebrando, Jorginho, mais umas duas porradas
dessas e deu pra esse balde, cara.
— Então vai ser agora! — se animou Jorginho com os olhos
quase saltando da órbita e os músculos dos braços contraídos para
mais uma marretada.
Na segunda batida, o cimento não suportou e quebrou em
pedaços, saindo por inteiro de dentro do balde e deixando no chão
toda aquela massa compacta e endurecida.
— Vai lá, Jorge, mais uma — falou Ana na torcida e com os
dedos cruzados, acompanhando Tainá.
Por último, Jorginho mirou bem nos pedaços amontoados
daquele concreto e jogou com força o corpo da marreta. Por um
segundo, o som da batida da marreta esmagando o concreto deu
espaço a um som mais fino, um tilintar de metais. Entre lascas de
cimento endurecido e um pouco de poeira, ficou nítida a aparição
de um objeto saltando entre os fragmentos e tomando altura com

222 | O ESTAMPADOR
um brilho diferente, reluzia diante do sol, girava quase que em
câmera lenta por cima das cabeças do grupo. Na rota daquele voo,
surgia o braço de Jorginho esticado ao máximo e indo em direção à
pequena peça. Os dedos de sua mão aberta caçavam no ar, tal como
as garras de uma rapina ameaçando a sua presa. Por fim, os dedos
se fecharam e o objeto desapareceu na mão de Jorginho. Quatro
cabeças baixas se aproximaram com um olhar fixo na mão do
amigo. A mão foi abrindo e revelando a todos a joia mais desejada,
o estampador “P” de Vincenzo.
Entre os rostos encardidos de cada um, caminhos feitos por
lágrimas iam surgindo e borrando aquelas caras juvenis, havia uma
explosão de emoção e de alegria. O time havia vencido a velha
fábrica do comendador. Vincenzo teria o seu estampador de volta e
os jovens, a sensação boa de cumprir o pedido de um anjo.

O ESTAMPADOR | 223
23 – O MISTÉRIO DE VINCENZO
O brilho do sol entrando pelas janelas projetava a sombra
dos quatro jovens ajoelhados ao entorno de Vincenzo. Jorginho
trazia na sua mão o estampador “P”. Vincenzo foi abrindo os olhos
e firmando a visão no rosto de cada um até encontrar Jorginho.
Ao reconhecê-lo, sorriu. Em seguida, foi acompanhando a mão do
amigo, que se erguia em direção ao seu rosto. Por um instante, os
dois voltaram a se olhar e a sorrir, até que a mão do jovem se abriu
e o estampador brilhou mais uma vez. O menino alargou o sorriso
e levantou o braço pela primeira vez. Segurou o objeto trazendo-o
para perto do seu peito, de onde suspirou, a pequena ferramenta
voltava ao seu dono.
No segundo seguinte, Vincenzo olhou novamente para cada
um como agradecimento e fechou os olhos bem devagar voltando
a dormir.
— Gente, esse menino tá piorando — exclamou Ana.
— Calma, Ana, calma! Ele tá respirando, só tá esgotado,
temos que mantê-lo estável — falou Jorginho segurando o braço da
amiga e medindo o pulso de Vincenzo.
— Ele parece muito feliz — afirmou Tainá.
— Sim, eu também vejo isso — completou Jorginho.
— Então é só esperar o Thomas — concluiu Polo.

224 | O ESTAMPADOR
Nada mais podia ser feito. Os corpos cansados iam se
estendendo pelo ninho ao entorno de Vincenzo, um a um. Havia um
semblante de tranquilidade em cada rosto, pareciam ter encontrado
uma paz há muito perdida. O grupo adormeceu e o tempo passou.

***
Um som diferente começava a se distinguir daquele
ecossistema, alguns movimentos no ninho diziam que, ainda
sonolentos, os garotos também estavam percebendo. Polo despertou
e tentou afinar o ouvido na direção do som. Estava longe, mas era
um motor, conseguia agora distinguir.
— Jorginho, acorda!
— Que foi, Polo?
— Escuta?
— Escuta o quê?
— Psiuuu, faz silêncio e escuta. Ouviu?
— Ouvi, é um carro.
— Sim, é um motor — disse Polo.
— Deve ser um trator da lavoura aqui do lado — explicou
Jorginho ainda despertando.
— Ou pode ser o Thomas vindo com alguém.
— Sim, também pode, vamos embora daqui, graças a Deus,
me ajuda a chamar as gurias.
E, com a boa notícia, os dois acordaram Ana e Tainá, que,
sobressaltadas com a possibilidade de sair da fábrica, se ajoelharam
no ninho e se conectaram com o fato.
— Nem acredito que vamos sair daqui — balbuciou Ana
esfregando os olhos.

O ESTAMPADOR | 225
— E se não for o Thomas? — lançou a dúvida Tainá.
— Não importa, seja lá quem for, nos tirando daqui, já tá
valendo.
Havia uma certa euforia naquele amanhecer. Por algumas
horas, puderam dormir e se restabelecer. Entretanto, a boa notícia
de um possível resgate era ofuscada por mais um fato inesperado.
— Gente! — gritou Ana aos amigos de joelhos no ninho e
olhando para o espaço do Vincenzo.
— Que susto, Ana, pra que gritar? — disse Polo.
— Gente, o Vincenzo! — alertou Ana mais alto ainda,
levando as mãos ao rosto e tapando nariz e boca ao mesmo tempo.
— O que foi, Ana, ele está mal? — correu Tainá, se juntando
à amiga e também não acreditando no que via.
— Ele piorou? — perguntou Jorginho também chegando
junto e se deparando com a cena.
Mais uma vez a fábrica os desafiava com seus mistérios,
desta vez um choque para todos. No ninho onde Vincenzo fora
cuidado por toda a madrugada, restava apenas a corrente e o grilhão.
Não havia sinal do menino, o grilhão que prendia seu tornozelo
continuava ali, sólido e fechado como sempre estivera, assim como
a ponta da corrente fixada ao tear. Vincenzo não estava mais lá,
havia sumido como se nunca tivesse existido.
— Mas o que é isso? Meu Deus! Cadê o Vincenzo? — agora
quem gritava era Polo.
— Gente! Cadê o nosso menino, ele sumiu! Não pode ser,
isso é loucura — chorava Ana.
— Alguém entrou aqui enquanto a gente dormia e roubou
ele de nós! — murmurava Jorginho.

226 | O ESTAMPADOR
— Não pode ser, Jorge, eles teriam que ter passado por cima
da gente! Isso é uma loucura! — disse Polo também alterado.
— Calma, gente, precisamos nos acalmar, tem que ter uma
explicação pra isso, nós não somos loucos! — argumentou Jorginho.
— Isso não faz sentido, passamos a noite toda lutando pra
romper essa corrente e agora ele some do nada! A corrente está aí,
no mesmo lugar, como se nada tivesse acontecido — falava Ana
compulsivamente.
— E se for uma brincadeira do Thomas? Ele pode ter
chegado e aprontado essa — sugeriu Polo.
— Polo! — chamou Jorginho. — O barulho do motor, sim,
pode ser ele. Filho da puta, será que teve a coragem de nos dar
esse susto?
— Vamos lá fora!
E, completamente transtornados, os quatro correram para
fora da fábrica na tentativa de encontrar Thomas e o seu socorro.
— Cadê ele? — perguntou Jorginho olhando para todos
os lados.
— Eu ainda escuto o barulho do motor. Olha lá embaixo, no
início da trilha! — Ana apontou para além da floresta.
— Tem um trator vindo pra cá — identificou Polo com a
mão na testa fazendo sombra para os olhos.
De fato, na subida da estrada rural que se unia à trilha que
levava à fábrica, um trator e seu carona podiam ser vistos chegando.
— Cacete, é o Thomas, olhem, está de carona.
O amigo retornara conforme havia prometido, vinha na
carona daquele trator grande conduzido por um morador rural.
Por alguns instantes, a felicidade e a alegria tomaram conta, até

O ESTAMPADOR | 227
o momento em que precisaram se conectar com o fato de que
Vincenzo havia sumido. Cinco minutos, e o trator e seu condutor
pararam bem em frente à fábrica e aos quatro amigos.
— E aí, galera! Não falei que eu ia voltar com ajuda? —
disse Thomas pulando de cima do para-lama do trator. — Esse aqui
é o seu Adão, ele tem terras aqui perto e veio nos ajudar, tem uma
caixa cheia de ferramentas e mais a força deste tratorzão aqui —
sorriu Thomas com muito orgulho.
Por parte dos amigos, a reação foi nenhuma, os quatro em pé
visivelmente abalados não pronunciavam nenhum som, até mesmo
porque não sabiam o que contar ao amigo.
— Olá, guris, o amigo de vocês aqui disse que tem outro
guri preso numa corrente? Onde tá? Vamos lá que eu ajudo a tirar.
Tenho que voltar pra lavoura.
O grupo continuava catatônico, apenas se olhavam e
ninguém tinha a coragem de iniciar aquela conversa.
— Gente! Sejam pelo menos educados e digam oi pro seu
Adão — repreendeu Thomas um pouco constrangido.
— Oi, seu Adão, obrigado por ter vindo — disse Ana
quebrando o clima seco daquela recepção.
— Pessoal, a cara de vocês está estranha. Aconteceu alguma
coisa? Não me digam que o Vincenzo…
— Sim, Thomas! — falou Polo cortando a frase do amigo.
— Morreu? Não pode ser? Demorei muito, não acredito,
que merda!
— Não, Thomas, ele não morreu, e você só fez o que era
certo — salientou Tainá.

228 | O ESTAMPADOR
— Então vamos tirar ele de lá, o seu Adão vai nos ajudar
— proclamou Thomas correndo em direção ao pavilhão e sumindo
por entre o vão da porta sem dar mais atenção à fala dos amigos.
Todos correram atrás dele, incluindo o Sr. Adão, que já sabia
parte da história contada por Thomas. A cena não poderia ser outra.
No interior da fábrica, Thomas perplexo diante do ninho vazio.
Conseguia ver a corrente intacta e fechada e com a ponta externa
presa ao tear, tal qual estava quando ele deixou o acampamento.
— Gente, cadê o Vincenzo?
— Não sabemos, Thomas — respondeu Polo colocando a
mão no ombro do amigo.
— Como não sabem? Ele não está mais aqui, vocês estavam
com ele, pra onde ele foi? Quem tirou ele da corrente?
— Cara, acredita na gente, não sabemos e estamos tão
assustados como tu está agora. Nós dormimos e acordamos não
faz vinte minutos, e puf!, ele não estava mais lá, sumiu, evaporou,
desapareceu, ninguém viu nada — explicou Jorginho.
— Como puf!? Isso não faz sentido nenhum, gente!
Ninguém desaparece assim, ele era um menino, estava todo fodido,
não tinha forças pra nada, qualquer um que entrasse aqui vocês
viriam, acordariam. Olha todo o esforço e barulho que fizemos pra
tentar quebrar essa corrente. Impossível alguém entrar aqui, levar
o garoto e vocês não verem nada.
— Thomas, tu precisa te acalmar pra nos ajudar — disse
Tainá se aproximando dele. — A gente não sabe o que aconteceu,
é um mistério, uma loucura, mas o fato é que dormimos e, quando
acordamos, Vincenzo não estava mais.

O ESTAMPADOR | 229
— Se não incomodar, preciso saber o que fazer, pois tenho
que voltar com o trator pra lavoura — disse o Sr. Adão coçando um
boné de publicidade rural sem entender nada do que acontecia ali.
— Bem, seu Adão, acho que não vamos mais precisar da sua
ajuda, obrigado por trazer o Thomas pra nós — respondeu Ana.
— Tá, mas e o guri que estava preso? Onde ele foi? Foi por
causa dessa história toda que eu vim.
— Bem, seu Adão, como o senhor tá vendo, ele sumiu, não
sabemos pra onde foi, o senhor nos desculpe, a gente agradece por
ter vindo com o nosso amigo — desconversou Tainá.
— Olha aqui, seus moleques, eu acho que essa história toda
foi inventada só pra eu dar carona pra esse magrelo aqui. Quero
dizer que tenho muita coisa pra fazer e que eu ia dar a carona assim
mesmo. Não precisava inventar essa bobalhagem toda!
— Sim, seu Adão, nos desculpe outra vez, mas não sabemos
explicar o que aconteceu, nos perdoe, e obrigado assim mesmo —
admitiu Ana.
— Eu acho que vocês tão tudo perdido e andaram bebendo
coisa forte ou fumando erva do diabo, e eu perdendo meu tempo
aqui com um bando de maluco. Tô indo embora, e vê se vocês
mudam de vida, essa aí que vocês têm não tá boa, não.
E, com aquele sermão, o seu Adão deu as costas e saiu por
onde havia entrado.
Por algum tempo, os cinco ficaram sentados no ninho,
olhos fixos no centro do espaço em que Vincenzo ficou preso.
Não conseguiam erguer a cabeça e olhar uns para os outros. Havia
um medo e um choro silencioso, mas constante, ora por saudades
do menino pelo qual todos se afeiçoaram, ora pela sanidade de

230 | O ESTAMPADOR
todos, que não podia explicar aquele sumiço. Não era lógico, não
era factível com os últimos momentos vividos ali, não cabia uma
explicação misteriosa ou mística. Simplesmente não havia uma
explicação.
Ana passou a mão no espaço onde antes estava Vincenzo,
por alguns segundos, pode sentir o calor do corpo do menino
nas forragens do ninho. Mas logo se conscientizou que podia ser
fruto da sua imaginação. Ao recolher a mão, sentiu o toque frio e
metálico do estampador “P”. Uma prova de que tudo que haviam
feito naquela madrugada tinha sido real. A ferramenta implorada
pelo menino estava ali, no leito da sua última acolhida.
— Olhem o estampador! Ele não levou.
— É, Ana, do que adianta? Ele se foi — disse Thomas.
— Isso é muito bizarro, gente! Não tem explicação —
falou Polo.
— Acho que o seu Adão tem razão no que disse, ou bebemos
muito e não nos lembramos de nada, ou foi uma alucinação coletiva
porrada, das fortes. Não faz sentido — lamentou Jorginho.
— O Vincenzo sempre disse que, encontrando o estampador,
ele sairia do castigo. Aconteceu, né? — lembrou Polo.
— Nós precisamos saber onde ele está! Não dá pra ir embora
daqui sem ter a certeza de que ele está bem, ou não? — questionou
Ana cobrando de todos alguma atitude.
— Mas o que se pode fazer, Ana?
— Não se tem vestígios, não se tem sequer pegadas desse
menino aqui — disse Jorginho.
— Alguém lembrou de tirar uma foto dele? — perguntou
Tainá.

O ESTAMPADOR | 231
— Eu não, só cuidei da bateria pra ter a luz da lanterna do
celular — explicou Thomas.
— Nem eu — concordou Polo.
— Na hora ninguém ia pensar nisso, ele estava mal, preso
naquela corrente, quem ia lembrar de fazer selfie ou coisa parecida
— disse Ana.
— A gente não merece isso, parece que tudo que a gente faz
dá errado, do comício até aqui só nos ferramos — falou Tainá.
— Olha, ficar aqui não vai resolver nada. A gente está
podre de cansados, sujos, fedendo, e sem a menor condição de
fazer alguma coisa. Vamos embora, vamos pegar esses livros e ir
embora. Depois pensamos no que fazer — opinou Jorginho.
— Eu concordo — disse Thomas.
— Eu também — adicionou Tainá, da mesma forma
como Polo.
— Jorginho! — chamou Ana — Os livros.
— O que tem eles?
— Me empresta aqui, quero ver uma coisa.
Sentando ao chão ao lado de Jorginho, Ana pegou os livros
do inventário e começou a folhear.
— Não quer fazer isso lá na cidade? Esse lugar aqui só nos
deu tristeza.
— Espera um pouco, Jorginho, a gente precisa ver uma
coisa antes de ir embora.
Por instantes, uma ideia maluca passou pela cabeça de
Ana, era tão absurda que sequer teve coragem de contar, preferiu
investigar por si própria e ver se fazia algum sentido. Nos livros

232 | O ESTAMPADOR
dos escravizados havia o registro do nome, a data de nascimento
e morte de cada uma daquelas pessoas. Quando encontraram os
livros dos imigrantes italianos, havia uma diferença nas anotações,
havia também o nome e o sobrenome, tinha a data de nascimento e
morte de cada um daqueles trabalhadores até 1919, quando a peste
dizimou todos eles.
— Jorge, me passa aqueles livros da sala do comendador,
esses aqui são os antigos. Me dê aqueles mais recentes — pediu Ana.
Olhando linha por linha, página após página, Ana só parou
quando seus olhos confirmavam a sua pior teoria.
— Não é possível, mas não temos como negar, olha aqui,
Jorge — chamou Ana, já com todos os amigos de joelhos grudados
ao seu redor para ouvir o que tinha descoberto. — Olha este nome.
— Vincenzo! Meus Deus! É ele?
— Não dá pra saber, Jorginho, isso tudo é muito louco, esse
livro tem cem anos, o menino estava ali há poucos minutos —
ponderou Thomas.
— Caralho, véio! — praguejou Polo. — O moleque veio nos
assombrar!
— Olha aqui, Jorginho! — apontou Ana com o seu dedo na
linha onde estava o nome de Vincenzo.
— Vincenzo Fornari? Não pode ser, Ana, que absurdo isso.
O garoto tem o meu sobrenome.
— Sim, ele tem seu sobrenome e tinha uma cara que era um
clone seu. E veja a idade? Dez anos! E, pra ajudar, olha a origem:
Brazil.
— Isso só pode ser brincadeira, a gente fumou todo mundo
junto e esquecemos disso, só pode ser. Que merda! Como entender

O ESTAMPADOR | 233
isso tudo, como explicar isso tudo? — falava Jorginho alto e
visivelmente perturbado.
— Acho que agora podemos ir embora — sugeriu Tainá.
— Concordo, amiga, nós nunca vamos confirmar tudo isso
— disse Ana.
— Vamos embora, Jorginho, quanto mais ficarmos aqui,
mais vamos enlouquecer com todo esse negócio. Pra mim chega,
sabe! Um dia alguém me explica! — retrucou Polo.
— Não, Polo, acho que a gente precisa ainda fazer uma
última coisa.
Carregando todos os pertences e saindo da fábrica, o grupo
tomou a direção da trilha de pedras nos fundos do prédio e caminhou
até o cemitério. Jorginho queria uma última confirmação.
— Vou pedir um último favor a todos. Não vou conseguir ir
embora sem confirmar o que está neste livro, me ajudam?
Os cinco amigos iniciaram uma busca por cada lápide
colocada naquele cemitério. Entre elas, todas misturadas, estavam
os túmulos dos negros escravizados e dos italianos, também
escravizados. A diferença era nome e sobrenome, para os italianos,
e apenas o nome, para os africanos. Mais um tempo se passou até
que Tainá gritou pra todos.
— Gente, achei!
E, de fato, lá estava a lápide com o nome de Vincenzo
Fornari, 1909 - 1919. Por alguns segundos, todos pararam, e foi
inevitável segurar as lágrimas. Pra eles, era uma morte recente,
uma puta sacanagem do universo e que nunca iam poder contar
ou explicar sem que passassem por loucos alucinados. Jorginho,
agachado e muito emocionado, limpou o mato na volta do túmulo e

234 | O ESTAMPADOR
passou sua mão sobre a lápide pela última vez. Sobre ela depositou
aquilo que Vincenzo havia vindo procurar e que todos ali haviam
ajudado a encontrar, o estampador “P” repousava agora junto a
seu dono.
Sem ter mais o que fazer e com a mente totalmente confusa,
os cinco amigos foram levantando aos poucos, pegando suas coisas
e, um a um, deixaram a velha fábrica. Tomaram o caminho de
volta, percorrendo em sentido contrário a trilha e a estrada. Foram
horas de caminhada, não queriam carona, não queriam conversa,
não queriam estar perto uns dos outros. Queriam apenas caminhar
e pensar. Deixar a mente solta pra aceitar os fatos e entender que
a fábrica era dona dos seus mistérios. Na troca pela revelação dos
segredos da família do Jorginho, a velha fábrica cobrou seu preço,
ela provou que tinha vida própria, devolvendo aos cincos garotos
um mistério ainda maior, que nunca teria explicação.

O ESTAMPADOR | 235
24 – UMA VOZ
Algumas semanas se passaram e a vida retomou o seu rumo.
Alfor continuava pacata como sempre. O movimento nas ruas era
o mesmo e parecia que nada de diferente havia acontecido. Era
meio da tarde de um dia de semana. Os motivos dos encontros
na praça da prefeitura e na estátua do comendador agora tinham
outras razões. O protesto havia ficado para trás, mas com alguns
resultados bons. Parecia que nem tudo estava perdido.
Ana e Tainá faziam companhia uma à outra bem debaixo
da estátua do comendador, que agora tinha múltiplas pinturas. Por
todo o corpo, a estátua servia de tela para as cores do arco-íris e
outras pequenas flâmulas. Ao redor da testa do comendador fôra
colocada uma bandana vermelha com flores brancas, uma corrente
fôra passada ao entorno da estátua, aprisionando o comendador
definitivamente, nos seus olhos uma venda negra fazia alusão ao
quanto aquela imagem deveria ser esquecida ou ressignificada. A
turma dos estudantes fazia plantão por ali e ninguém se atrevia a
remover os adereços escolhidos por eles.
— Ele tá melhor? — perguntou Tainá sentada ao lado de
Ana, na parte onde a estátua fazia sombra.
— Olha, minha amiga, vai levar algum tempo. Ele ainda
pensa muito em tudo que aconteceu, acho que até sonha, pois
acorda durante a noite.

236 | O ESTAMPADOR
— Acho que foi muita pancada num só dia, mas Jorginho
tem cabeça boa, vai evoluir. E vocês, estão bem?
— Sim, pelo menos isso! Ele é muito querido comigo e sabe
me cuidar sem ser chato.
— E a maconha?
— Largou, era uma condição, senão não tinha romance.
— Que bom, amiga.
— Em compensação, ele trepa todos os dias. Se for esse o
motivo pra largar a droga, tá valendo, eu tô ganhando e pra mim tá
muito bom — riu Ana arrancando risos da amiga também.
— E aí, minhas lindezas! — gritou Jorginho como uma voz
do além, cercando as duas pela direção oposta à estátua. Estava
diferente, limpo, arrumado, cabelo feito e a mesma cara de garoto
que tinha. Carregava nas mãos os livros do inventário da fábrica.
— Oi, meu lindo! — disse Ana recebendo um beijo na boca.
— E aí, Tainá, de folga?
— Hoje sim, tô aqui esperando Thomas e Polo. E tu? Foi
fazer exame de fezes? Todo arrumadinho.
— Quase isso. Tô vindo do presídio, fui ver meu pai.
— Humm, e como ele está? — perguntou Ana.
— Tá na merda, Ana, todo fodido e acreditando que está
sofrendo uma injustiça.
— E o que os advogados dele estão dizendo?
— Não vai ter muito o que fazer, as provas são todas
testemunhais e contundentes, crime de racismo é inafiançável,
somado a cativeiro e escravidão, sem contar que tinha menores de
idade, ou seja, tudo errado! Vai ficar muitos anos lá.

O ESTAMPADOR | 237
— E tu, Jorginho, como está com tudo isso?
— Olha, Tainá, eu vou ter que me entender de novo, sei
lá! Mas tenho a minha parceira aqui, com ela me sinto mais
competente — disse sorrindo pra Ana e fazendo um carinho no seu
rosto. — Quanto ao meu pai, acho que ele está no lugar que precisa
estar, espero que fique muitos anos lá, só assim vai ter a chance de
construir uma consciência e ver todas as merdas que fez. Ele não
tem esse alcance e se sente traído e injustiçado, por isso precisa de
tempo na prisão pra mudar a cabeça.
— E tu ficou de boa com a prisão dele?
— Sim, ao menos foi feita a justiça, pensei muito e vou
continuar indo visitar ele na prisão. Acho que a punição está
correta, mas não dá pra ser desumano, por pior que seja, ladrão,
escravagista, bandido e o que mais for, também é meu pai.
— Tu ficou bem visitando ele? — perguntou Ana segurando
a mão de Jorginho.
— Fiquei, pensei até que ficaria triste, mas não foi este o
sentimento. Sabe, me senti mais forte na frente dele. Acho que só eu
posso consertar essa relação, vou tentar isso. Quem está na melhor
posição agora é o filho, e não o pai. É a minha vez.
— E esses livros?
— Bah, Tainá, ele nunca acreditou no que eu falei e nem nos
depoimentos da delegacia. O cara não tem a menor consciência de
que fazia algo errado, ele reproduzia um padrão de séculos. Hoje
eu mostrei os livros, acho que alguma coisa mudou, mas não sei
dizer o que foi. Sei que, quando deixei a mesa de visitas, ele estava
mudo, completamente calado.

238 | O ESTAMPADOR
— Fico feliz, meu amigo. Espero que esta punição mude as
coisas por aqui — ponderou Ana.
— Sei não, meu amor. Eu mostrei os livros pra promotora,
pro juiz, pro novo delegado, fui até conversar com o bispo e o padre
Tomaz, mas ninguém deu a atenção que devia. Parecem não querer
mudar a história.
— É uma sensação ruim, né? — disse Tainá.
— Todo mundo tem medo de se descobrir envolvido ou
conivente, cidade racista é assim, a memória e a consciência não
andam juntas — falou Ana.
— Pois isso me dá uma sensação de impotência em não
conseguir mostrar pro mundo o terror que aconteceu aqui por mais
de um século.
— E tu foi pra TV?
— Tainá, tentei de tudo! Falei com as rádios, jornal… A
rádio daqui é tão chinelo que sequer entendeu o que mostrei. Mandei
e-mails e mensagens pra alguns repórteres de Porto Alegre, mas
ninguém retornou. Teve um que disse que viria até aqui. Mas não
acredito que venha.
— Com teu pai preso, acho que pode ser um começo pra
essa gente toda repensar a vida — disse Ana
— Já é alguma coisa.
Uma madrugada que valeu por cem anos, ao menos para os
amigos, o episódio da fábrica mostrava profundas transformações
na cabeça deles. Faltavam Polo e Thomas naquele papo, mas logo
encontraram-se com os demais. Chegaram pela frente da estátua se
aproximando felizes e com muita farra.

O ESTAMPADOR | 239
— E aí, só gente fina aqui? — saudou Polo.
— Saudades de vocês, beijos aqui, senão eu sofro — gritou
Thomas abraçando e apertando Ana, Tainá e Jorginho.
— Bah, Thomas, quem te viu e quem te vê, como dizia a
minha avó! O Polo tá fazendo escola — mexeu Ana.
— Temos uma novidade pra contar — anunciou Polo com
um sorriso sarcástico no rosto.
— E o que é?
— Olha, Tainá! — respondeu levantando a mão esquerda
para a amiga e mostrando um anel de prata novinho no seu dedo
anelar.
— Um anel de prata, que chique!
— Não é só um anel de prata — corrigiu Polo. — Thomas,
mostra pra ela.
E, da mesma forma, Thomas levantou sua mão esquerda
mostrando seu dedo anelar, onde também estava um anel igual.
— Uau! Agora entendi, é uma aliança de compromisso! —
gritou Tainá.
— Parabéns, meus queridos — falou Jorginho levantando e
beijando os dois amigos.
— E isso vai ser sério? — perguntou Ana.
— Olha, Ana, sério já está sendo, só não sabemos se vai
durar, mas estamos querendo muito, então tem tudo pra dar certo
— falou Thomas sorrindo e beijando Polo pela primeira vez na
frente dos amigos.
— Jorginho, e o Vincenzo? — perguntou Polo.
— O que tem ele?

240 | O ESTAMPADOR
— Até agora eu não elaborei aquela história, foi como ver
um E.T. e não conseguir provar.
— Olha, Polo — disse Tainá —, tem coisas que acontecem
e não podem ser ditas, tem coisas que o universo nos dá e não tem
recibo. Não dá pra ter tudo. Temos os livros e uma história que
podemos provar, isso, sim, é muito importante. Vincenzo foi a luz
pra tudo isso. Acho que será pra sempre o nosso segredo.
— Obrigado, Tainá, eu não conseguiria explicar melhor —
disse Jorginho.
— Mas eu sinto falta dele, senti saudades e fiquei triste —
completou Ana.
— Nem me fala, ele tinha o meu sobrenome, ele foi fruto
da perversão do comendador. Um filho forjado com uma imigrante
escravizada, e, pra ser mais cruel ainda, escravizado também pelo
próprio pai.
— E o que tu pretende fazer agora, Jorginho? —
perguntou Tainá.
— Não sei, eu tentei contar e mostrar pra todo mundo
as coisas que aconteceram, mas parece que o assunto não é de
interesse de quem mora aqui e, pra mídia, ainda preciso ser mais
sensacionalista ou esses caras também não vão se interessar. Mas
uma coisa eu já posso fazer.
— O que é? — indagou Thomas.
— Com meu pai sendo condenado, todos os bens da família
ficam no meu espólio, vou vender a fábrica e todas as terras que
pertencem a ela, a Fazenda Santa Isabel também. Com isso, posso
indenizar as famílias e melhorar algumas vidas.
— Da hora isso, Jorge — elogiou Polo.

O ESTAMPADOR | 241
— É isso aí, acho que a vida segue e fizemos o nosso
melhor. Só preciso dizer o quanto que eu amo vocês, o quanto que
eu aprendi a amar vocês nesses dias. Estou no lucro, sem falar em
ti, Ana. Talvez o meu melhor presente e o apoio que eu sempre
precisei.
— Isso aí, garotão! — aplaudiram os amigos enquanto Jorge
recebia um abraço de Ana.
Os dois então se afastaram do grupo e se abraçaram
novamente sob a sombra da estátua que os uniu pela primeira vez.
— Sabe, Ana, me custa acreditar que estar contigo seja
verdade. Mas vou acabar acreditando. Com certeza, amanhã de
manhã, acordaremos juntinhos. Depois de amanhã também. Tu
vai ser a primeira pessoa que verei todos os dias. Tua voz será
a primeira que ouvirei. E isso, sei bem, é tudo de que preciso —
finalizou Jorginho beijando Ana.
Tudo podia terminar ali, a não ser pelo fato de que era
necessário mais um movimento do universo. Por alguns instantes,
os amigos viram um carro que circundava a praça estacionar
em frente à estátua do comendador. Na porta estava escrito
“Reportagem”. Ela se abriu e de lá um jovem com microfone na
mão foi até o grupo e perguntou:
— Boa tarde! Algum de vocês é o Jorge Fornari?
Enquanto os amigos olhavam incrédulos uns para os outros,
Jorginho levantou a mão.
— Sim, sou eu!
— Olá, Jorge, prazer! Sou o repórter Maurício Duprat, foi
você quem me ligou? Vim fazer uma matéria para o Fantástico.

242 | O ESTAMPADOR
Todos os direitos reservado ao autor
/escritormariopool
www.marioaugustopool.com.br
mapool86@gmail.com
(51) 99193.6016
www.marioaugustopool.com.br
A cidade de Alfor vive dias conturbados de caos e
conflitos. Fugindo de um protesto dispersado com
violência e confusão, cinco jovens desconhecidos
acabam escondidos em uma fábrica abandonada. Nas
ruínas da antiga tecelagem, Jorge, Ana, Tainá, Polo
e Thomas descobrem um mistério que vai uni-los.
Em apenas uma madrugada, as consequências de mais
de um século de atitudes corrompidas pelo poder vão se
tornar a base para que os cinco estudantes transformem
suas próprias vidas e, talvez, a história e o futuro de Alfor.

Você também pode gostar