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Revista Cristã de Literatura e Artes

CONTOS:
Poetas Cristãos de Iberoamérica
Anamaria Kovács
ARTE em 100 Citações Clélia Inácio Mendes
Edna de Oliveira Coimbra
Karol Wojtyła: Carta aos Artistas Honoré de Balzac
João A. de Souza Filho
Jorge F. Isah
Liev Tolstoi
Moisés Martins
Roberto Vargas Jr.
CINEMA Sammis Reachers
JOHN PIPER
CHARLES CRIADOR
Wagner Antonio de Araújo
ANTOLOGIAS E ANTOLOGISTAS
ISRAEL BELO DE AZEVEDO
LENDAS DO POVO DE DEUS
RESENHAS
LUMINARES
PARLATORIUM
POESIA
POESIA
POESIA
Poeta em Destaque:
Alfredo Pérez Alencart HQ:
Vestigia 1
SUMÁRIO
Revista Amplitude - Número 03 - Jul 2019
Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . .03
Conto: Olhos Azuis / Clélia Inácio Mendes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 04
Lendas do Povo de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .05
Hot Spots: G. K. Chesterton . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 06
Poesia Visual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..08
AMPLITUDE é uma revista de cul- Conto: O Grupo de Kobald / Edna de Oliveira Coimbra . . . . . . . . . . .09
tura evangélica, com foco principal Lendas do Povo de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11
em ficção e poesia. Mas nosso leit- Crônica / John Piper . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
motiv, nosso motivo de ser e de Conto: O rei que queria ver Deus / Liev Tolstoi . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..13
existir, é a arte cristã em geral: Conto: Fragmento de uma sentença / Jorge F. Isah . . . . . . . . . . . . . . 14
Transitamos por cinema, fotografia,
Poesia / José Manoel Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
artes plásticas e quadrinhos. Publi-
Conto: Um pecador medíocre Ou: Uma conversa de bar / Roberto
camos artigos, estudos literários, Vargas Jr. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17
crônicas e resenhas.
Notas Culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
Nossa intenção diz respeito àquela 100 Citações sobre a Arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
despretensiosa excelência dos hu- Conto: O Borracheiro / João A. de Souza Filho . . . . . . . . . . . . . . . . . . .23
mildes. Nosso porto de partida e Luminares / Pastor Aílton . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .27
porto de chegada é Cristo. Nosso Poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
objetivo é fomentar a reflexão e a Conto: Viseu Nostromo / Sammis Reachers . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29
expressão, AMPLIAR visões, entre- Luminares / Renato Magnus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29
ter com valores cristãos, comunicar Poesia / Israel Belo de Azevedo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
a verdade e o belo e estimular o
Jardim dos Clássicos / Honoré de Balzac . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..31
engajamento artístico/intelectual
Lendas do Povo de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37
entre nossos irmãos. Nosso preço é
Poetas cristãos de Iberoamérica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .38
nenhum: a revista circula gratuita-
Conto: E o telefone tocou... / Wagner Antonio de Araújo . . . . . . . . .40
mente, no democrático formato
Poeta em Destaque / Alfredo Pérez Alencart . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .44
pdf.
Poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
Nosso e-mail: Galeria / Charles Criador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..47
sreachers@gmail.com Conto: Vamos para Belém / Anamaria Kovács . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .49
Facebook: Cinema: 7º Festival Nacional de Cinema Cristão . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
www.facebook.com/RevistaAmplitude Resenhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
Blog: HQ: A Vitória de Cristo / Vestigia HQ. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
www.revistaamplitude.blogspot.com.br Carta de João Paulo II aos artistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
E ainda: Conto: A noite inesquecível / Moisés Martins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65
www.poesiaevanglica.blogspot.com
Lendas do Povo de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .69
Baixe os números anteriores. É só Das Antologias: Exposição, defesa e perspectivas do gênero . . . . . . .70
clicar: #1 / #2 Parlatorium . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

Edição, redação, diagramação,


revisão, fainas e firulas de
CAPA: Detalhe da obra Nozze di Cana (“Bodas de
office boy: Sammis Reachers Caná”, 1563), do veneziano Paolo Veronese
(1528—1588).
Imagens: Pixabay
(Domínio Público)
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Editorial
Assustadores três anos se passaram, lentos ou esvoaçantes, a depender do ponto de quem
observa. AMPLITUDE entrou em seu anunciado hiato, devido aos hercúleos e clichés moti-
vos de força maior. Mas eis-nos aqui, redivivos, ressurretos como convém a co-herdeiros de
Cristo.
Neste tempo, pude dedicar-me, além dos compromissos acadêmicos, à edição de diversos
livros e recursos em serviço da igreja e da Literatura, e à manutenção religiosa dos blogs de
serviço.
Em tempos de secularização acelerada, relativismo e perseguição crescente, a nível local e
global (glocal) do cristianismo, usemos a arte para congregar-nos, estreitar nossa união e for-
talecermos nossa posição em Cristo, a favor da paz e a favor da vida: Eis a razão de ser desta
revista.
AMPLITUDE é uma revista de posição e cosmovisão declaradamente protestante; no en-
tanto, somos amplos em nossa irmanação criativa com nossos co-navegantes do mistério do
Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Assim, temos na seção Hot Spots um pouco do pensamento
desconcertante do anglicano-depois-católico G. K. Chesterton. Publicamos ainda a Carta aos
Artistas, significativa missiva escrita por Karol Wojtyła, o papa João Paulo II. E ainda, pon-
tuando toda a edição, o leitor encontrará pequenos textos e fábulas do imaginário hebraico.
AMPLITUDE pretende dar voz ao que não pode falar, e alumiar onde a luz cambaleia.
Nesta edição, (per)seguimos nossa proposta, a mesma que adotamos, há anos, à frente do
blog Poesia Evangélica, que é dar voz preferencialmente a autores que ainda não publicamos.
Acreditamos que assim se constroem cenários e panoramas, se fortalecem movimentos e au-
tores e educa-se o leitor para deleitar-se na sinfonia de vozes díspares.
Esta edição é nossa recordista em contos, com mais de dez autores presentes. Destaque
para a seção Jardim dos Clássicos, onde Honoré de Balzac apresenta um Jesus algo contracul-
tural numa Flandres de séculos pretéritos.
E seguimos com as seções: Crônica, com uma reflexão de John Piper; Cinema, com notí-
cia do VII Festival de Cinema Cristão; HQ, com os quadrinhos de Vestígia e Caio, o Pardal
Pensativo; Galeria, com a arte terna/dilacerante de Charles Criador; Luminares, nesta edição
apresentando obras de missionários que se dedicam às artes plásticas.
Na poesia, traduzimos para esta edição poetas protestantes de diversos países ibero-
americanos; por sinal, o Poeta em Destaque é também de fala espanhola: o insigne Alfredo
Pérez Alencart. Ainda nesta edição, poemas longos de Israel Belo de Azevedo e José Manoel
Ribeiro somam-se aos textos poéticos de muitos outros autores (e a um toque inesperado de
poesia visual).
Não deixe de deleitar-se com as 100 Citações sobre a Arte, na página 19. E, se tiver paci-
ência, publicamos ainda um artigo sobre antologias e antologistas (com o perdão do ranço
acadêmico, que de maneira nenhuma é o foco de Amplitude). Ainda as seções: Notas Cultu-
rais, Resenhas, e, sempre terminando a revista, as citações selecionadas de Parlatorium.
E quando sai a próxima edição? Hum, difícil pontuar. Perdoe pela confissão, mas é vera:
ser editor de revista é faina farpada que não desejo para ninguém. Prefiro a controlada moro-
sidade em preto e branco (e sem torrentes de e-mails trocados, ou pior: NÃO RESPONDI-
DOS!) que é editar livros. De toda forma, esperança e chá de boldo nunca mataram ninguém!
Tenha uma boa e edificante leitura, ainda que a edificação passe por alguma perturbação
do status quo que pode estar inadvertidamente embotando seus passos. E compartilhe esta
revista, que é gratuita, com outros irmãos ao seu alcance.
Sammis Reachers, editor

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pintura esquecida, ou (quem sabe?) seria apenas a
mente de Lucília a criar mais um ser para não se
Olhos Azuis sentir sozinha. Uma tarde de Novembro necessita
de companhia e vida.
Clélia Inácio Mendes (*)
Ao chegar perto do velho, ela reparou que
Naquela tarde chovera abundantemente e tinha os olhos de um azul tão puro e jovem que
Lucília olhava as folhas mortas no chão, boiando Lucília apertou a garganta para não soltar um grito.
nas poças ou simplesmente açoitadas Ela conhecera assim uns olhos. Não, não
pelo vento norte que cortava o ar. eram de um velho; era uma
imagem longínqua de muitos
De sapatos já gastos e anos atrás? De quem seriam?
casaco desbotado, cabelos Sim... era isso, eram de um
soltos feitos aves selvagens, menino. Lucília recordava-se
ela era a única nota vivente agora. Passara junto a uma
na rua, só e escura. Dir-se-ia janela e uns olhos azuis
que o Outono repousara ali e enormes, brilhantes como
não quisera partir. Ladeavam-na diamantes, sorriam-lhe e ela
paredes altas, esfoladas, de janelas sorrira, e o menino chama-se...
constantemente fechadas, com vidros Raul. Não, não era, era David... Seria
fechados e cortinas amarelecidas, esquecidas, David? Oh, não valia a pena pensar mais. Talvez
como as folhas que povoavam o solo. Na soleira de fossem só imagens da mente. A mente era a sua
uma porta um gato velho e cinzento dormia num recusa ao mundo. Ela inventava agora o que não
sono pesado como se esperasse a Primavera. As possuía, e ei-la chegada a um ponto em que não
árvores erguiam os ramos nus e esguios para os sabia qual o passado qual a fantasia. No entanto, os
céus, numa súplica de sol, e Lucília identificava-se olhos azuis eram reais, tão vivos. De repente, sentiu
com elas. Também ela suplicara esse sol e ficara -se aterrorizada. Precisava de sair dali para onde
assim estática, de braços erguidos, como árvores. não visse o velho. Entretanto, perto dela só o rio
Nem um garoto, nem um pregão, nem uma ave. Só era vida. Atravessou a correr o jardinzito que
os pingos no rosto, o vento a envolvê-la e as folhas separava o rio da cidade e embrenhou-se nas ruas
mortas-bailarinas. Onde teriam ido todos? Porque húmidas e sujas da mesma.
nem existia um só som? Um arrepio de solidão e
medo percorreu-a. Estremeceu. Queria voltar para Agora a rua era grande e larga. Havia carros,
casa, para os seus papéis, as suas recordações, as miúdos, adultos, barulho, gritos, risos e chuva,
suas lembranças. A imagem de fogo quente da sala muita chuva, que recomeçara a cair. Lucília sentia a
chamava-a, mas a inutilidade desse conforto e a vida subir-lhe às faces de novo e já não sentia o frio
necessidade de tocar algo vivo fê-la afastar por que ainda percorria a cidade.
momentos essa ideia. Aqui havia janelas abertas, pessoas que
Continuando a andar os sons secos dos falavam sem saber porquê e, embora ela detestasse
sapatos na calçada, chegou à beira do rio. As a sujidade das suas ruas, precisava hoje de tudo
árvores esqueléticas continuavam ao seu redor, o aquilo para viver. Sorriu. O sol encoberto pelas
chão já não era tão irregular e o som do rio nuvens tinha quase desaparecido e a noite estava
correndo com força já era sinal de vida. Sentado para vir. Olhou para a montra da loja já iluminada. A
num banco de pedra com um cartucho de porta estava fechada e lá dentro uma senhora
castanhas na mão, um velho sem idade, de chapéu gorda arrumava enormes caixas de papelão em
na cabeça e um grande casaco pardo, olhava o prateleiras e gavetas. A montra tinha, entre muitas
horizonte como se também ele esperasse algo novo coisas, uma bola colorida, uma bonequinha de cabe-
e quente, que viesse transformar a tarde outonal. O ça cheia de caracóis e bochechas coradas, um cão
vento abanava-lhe o casaco constantemente, mas o de peluche e, ao canto, encostado a uma caixa ver-
velho parecia não o sentir. Assim, de mãos de, um palhacinho de cara triste, com cabelos espe-
engelhadas apertando o embrulho das castanhas, tados, fato de quadrados com dois enormes bo-
os olhos que não se moviam olhando, olhando sem tões, guizos nos pés, que parecia olhar para ela.
nada dizer nem ver, dir-se-ia que seria somente uma
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Lucília achou-o tão real que lhe quis dar as boas junto à janela, vendo as luzes sumidas pela cortina
noites, mas ao abrir a boca viu com espanto que só fosca da chuva miudinha que caía, observando o
agora reparara que o palhacinho tinha os olhos de silêncio do sono da cidade, pensou no velho que via
lantejoula de um azul muito belo, muito claro e diante do rio. Para onde teria ido? Ainda lá estaria?
infantil, como os olhos do velho do rio. Lucília Naquele momento, sentiu uma vontade imensa de
deixou cair uma lágrima. Por detrás da montra a correr para lá, para ver se era realidade ou se o
senhora gorda dizia-lhe qualquer coisa com um velho se teria ido embora. Pensou depois no
sorriso bondoso nos lábios, mas ela não ouviu. palhacinho que olhara para ela com olhos de
Murmurou um adeus ao palhacinho e quis que lantejoula. Ambos tinham os olhos azuis e ela não
nesse momento um milagre se desse e fosse o sabia de onde tinham vindo. Um sobressalto
bonequito a retorquir-lhe a despedida, mas só apoderou-se dela e de um salto correu para o
houve silêncio e o sorriso emprestado da senhora móvel, abriu-o, retirou de lá o álbum das
da loja. fotografias, o velho álbum sem época e pousou-o
Aconchegou o casaco ao peito e regressou a nos joelhos Uma a uma, as folhas eram passadas
casa. A chuva parara mais uma vez. Na cidade, os com uma carícia e uma lágrima. Ela procurava o
ruídos acalmavam e Lucília não se apercebia! Ao menino dos olhos azuis que lhe sorrira há tanto
fundo da rua, a Escola, as recordações dos milhares tempo, mas...tal vez não fosse esse o menino nem
de anos atrás. Os seus sapatos novos, as meias esses os olhos.
curtas, o cabelo escovado e brilhante, os livros no Lucília parou. As mãos apertaram-se num
braço, o sorriso do colega mais atraente da turma, nervosismo incontrolável, as lágrimas foram
os poemas que começara a escrever, o sol soluços, o álbum escorregara-lhe para o chão. Uma
primaveril nas flores do jardim, a amiga Susana, as carta que estava dentro caíra. Então um silêncio
pregações de moral do Dr. "Lunetas"... a velha de repentino fez-se. Nem choro, nem chuva, nem
Física! Agora, a Escola parecia um edifício oco, sem vento. Lucília feita autómato deitara-se. Dentro da
vida, esperando demolição. mente não havia invenções, nem imagens obscuras,
Subiu a escada, abriu a porta. De dentro de somente o vácuo.
casa vinha um calor familiar. Lá dentro o pai tossia. Lá fora, uma estrela brilhava agora livre de
Lucília imaginou-o sentado no cadeirão, lendo os nuvens e espreitava na janela do quarto de Lucília
seus romances históricos, de cachimbo na mão. A que adormecera. No chão, o álbum aberto na
mãe, da cozinha, perguntou se era ela que chegara; fotografia de um menino de olhos azuis que
sem saber se mentia, se não, respondeu que sim e a estendia os braços e sorria e, ao lado, uma carta
mãe sorriu. Aquele sorriso fresco e agradável que o incompleta:
fumo das panelas não ofuscara nunca. Na sala "Querido Júlio,
passou a mão ao de leve pelo cabelo grisalho do pai Hoje, o nosso David já disse mais uma palavra.
que fingiu não sentir, Se soubesses com que graça o faz..."
À noite, na cama, mais uma vez rascunhou uns
poemas, falou com o diário, mexeu nas lembranças,
cartas, velhas palavras que encheram uns dias. A autora é poetisa, ensaísta e artista plástica
Tacteou as páginas da Bíblia e nunca ela lhe portuguesa.
parecera tão antiga tão pura, tão clara. Depois,

O Anel Valioso
Procurado, certa vez, por um mendigo, verificou o rabi Schmelke que nao dispunha de dinheiro algum para dar
esmola. Esquadrinhando as gavetas da esposa, encontrou no fundo da caixa de costuras um anel e deu-o ao pobre.
Ao regressar a casa, a mulher viu a gaveta aberta, a caixa revolvida e, dando pela falta do anel, desatou a gritar. O
marido explicou-lhe o que ocorrera e ela intimou-o a correr no encalço do mendigo e retomar, quanto antes, o anel
que fora dado. Tratava-se de uma joia que valia cinquenta taleres. Que absurdo! Entregar a um mendigo desconhe-
cido uma peça preciosa, uma joia de família.
O zaddik, ao ouvir aquilo, saiu de arremesso, correndo pela rua afora, e, alcançando o mendigo, advertiu-o ofegan-
te:
- Acabo de saber que o anel que de mim ha pouco recebeste vale cinquenta taleres. Nao consinta, portanto, que te
deem por ele quantia abaixo de seu verdadeiro valor.
Elian-J. Finbert Do livro Lendas do Povo de Deus, de Malba Tahan 5
No mundo superior o A imaginaçao nao gera a
inferno uma vez se rebe- insanidade. O que gera a
lou contra o ceu. Mas Gilbert Keith insanidade e exatamente
neste mundo o ceu esta a razao .
se rebelando contra o chesterton
inferno. Como podemos dizer que
O polivalente e desconcertante Chesterton
a Igreja deseja nos levar
O religioso antigo clama- foi muitos - escritor, poeta, crítico de arte, de volta para a Idade das
va por seu Deus. O religi- jornalista, teólogo... Nascido em 1874 em Trevas? A Igreja foi a uni-
oso moderno clama para Londres e falecido em 1936, a fé de Chester- ca instituiçao que nos
que deus seja seu. trouxe para fora desse
ton foi primeiro anglicana, depois católica. período.
Aceitar tudo e um exercí- Sua vasta obra (apenas os livros beiram os
cio, entender tudo e uma oitenta) abarca desde os clássicos de seu Os anjos conseguem voar
tensao. pensamento apologético Ortodoxia e O Ho- porque dao pouca impor-
tancia a si mesmos.
Progresso deveria signi- mem Eterno até ficções como O Homem que
ficar que estamos sem- Foi Quinta Feira e os muitos livros de seu O homem feliz e que faz
pre caminhando para a renomado detetive, Padre Brown. Grande coisas inuteis; o homem
Nova Jerusalem. Real- doente nao dispoe de for-
mente significa que a No-
polemista a apologeta do cristianismo, sua ça suficiente para ficar
va Jerusalem esta sem- obra teve considerável influência sobre no- sem fazer nada.
pre se afastando de nos. mes que vão desde C. S. Lewis até Jorge Lu-
ís Borges. Na medida em que sou
A poesia mantem a sani- homem, sou a principal
dade porque flutua facil- Aqui, um pouco da verve e do “veneno” do das criaturas. Na medida
mente num mar infinito; gigante (1,93m) peso-pesado (130kg) que em que sou um homem,
a razao procura atraves- era chamado de “o príncipe do paradoxo”. sou o principal dos peca-
sar o mar infinito, e as- dores.
sim torna-lo finito.
Nenhum homem deve colocar-se acima das coisas
Buscando o prazer, o ser humano perdeu o prazer que sao comuns aos homens todos. Esse tipo de
principal; pois o prazer principal e a surpresa. igualdade deve ser corporal, grosseira e comica.
Nao so estamos todos no mesmo barco como tam-
Na moral crista, em suma, e perverso chamar um bem estamos todos mareados.
homem de "condenado"; mas e estritamente religi-
oso e filosofico chama-lo de condenavel. Todas as filosofias modernas sao correntes que se
interconectam e prendem; o cristianismo e uma
O mundo nunca sofrera com a falta de maravilhas, espada que separa e liberta.
mas apenas com a falta de capacidade de se mara-
vilhar. Nao e apenas verdade que a fe e a mae de todas as
energias deste mundo, mas e tambem verdade que
O poeta apenas pede para por a cabeça nos ceus. O os inimigos dela sao os pais de toda a confusao do
logico e que procura por os ceus dentro de sua ca- mundo.
beça. E e a cabeça que se estilhaça.
Sempre fui mais inclinado a crer na multidao do
A loucura pode ser definida como o uso da ativida- povo trabalhador do que a crer naquela classe es-
de mental de modo a atingir o desamparo mental. pecial e complicada de literatos a qual pertenço.

Homens que começam a combater a Igreja em be- Voce pode alterar o lugar para o qual se dirige, mas
nefício da liberdade e da humanidade terminam nao pode alterar o lugar do qual saiu.
jogando fora a liberdade e a humanidade so para
poderem com isso combater a Igreja. Amor significa amar o inamavel, ou nao e uma vir-
tude, em absoluto.
O teste de toda felicidade e a gratidao.
6
O coraçao deve estar pre- de haver muitas naçoes de
so a coisa certa; a partir do camponeses toleravelmente
momento em que temos o Gilbert Keith felizes.
coraçao preso temos liber-
dade para as maos. chesterton Todo o mundo moderno se
dividiu em conservadores e
Havia uma certa coisa que progressistas. O negocio dos
era demasiado grande para Deus nos mostrar progressistas e continuar cometendo erros. O ne-
quando ele pisou sobre esta nossa terra. As vezes gocio dos conservadores e prevenir que os erros
imagino que era a sua alegria. sejam corrigidos.

Para o riso ser verdadeiro e necessario que toque o Uma cidade moderna e feia nao porque ela e uma
coraçao. cidade, mas porque ela nao e suficientemente uma
cidade, porque e uma selva, porque e confusa e
Uma coisa morta pode seguir a correnteza, mas so- anarquica, surgindo com a energia egoística e ma-
mente uma coisa viva pode contraria-la. terialista.
O ideal Cristao nao foi tentado e considerado im-
Entre os ricos voce nunca encontrara um homem perfeito; ele foi considerado difícil e nao foi tenta-
verdadeiramente generoso, nem por acaso. Eles do.
podem doar seu dinheiro, mas nunca se doam; eles
sao egoístas, enigmaticos, secos como ossos velhos. Os misterios de Deus sao mais satisfatorios que as
Para ser inteligente o suficiente para conseguir to- soluçoes humanas.
do aquele dinheiro, voce deve ser estupido o sufici-
ente para deseja-lo. Teologia e somente o pensamento aplicado a reli-
giao.
A simplificaçao de qualquer coisa e sempre sensa- A verdade e, claramente, que a rigidez dos Dez
cional. Mandamentos e uma evidencia, nao da obscurida-
de e estreiteza da religiao, mas, ao contrario, da
Quando entramos numa família, pelo ato de nas- sua liberalidade e humanidade. E mais economico
cermos, entramos realmente num mundo que e afirmar as coisas proibidas do que as permitidas:
incalculavel, num mundo que tem suas proprias e precisamente porque muitas coisas sao permitidas
estranhas leis, num mundo que poderia passar sem e apenas poucas proibidas.
nos, num mundo que nao criamos. Em outras pala-
vras, quando entramos numa família, entramos Quem pensa que o Menino Jesus nasceu em dezem-
num conto de fadas. bro entende por isso exatamente o que nos enten-
demos; que Cristo nao e meramente um sol de ve-
Uma coisa pode ser muito triste para ser crível ou rao para o prospero, mas um fogo invernal para o
muito ma para ser crível ou muito boa para ser crí- infeliz.
vel; mas ela nao pode ser tao absurda para ser crí-
vel, neste planeta de sapos e elefantes, de crocodi- A voz de rebeldes e profetas especiais, recomen-
los e peixes-espada. dando descontentamento, deve, como eu disse, se
fazer ouvir de quando em vez, repentinamente, co-
Quando um político esta na oposiçao ele e um ex- mo um anuncio. Mas as vozes dos santos e sabios,
pert nos meios para determinados fins; quando e recomendando contentamento, devem soar inces-
situaçao, ele e um expert nos obstaculos. santemente, como o mar.
Na luta pela existencia, a esperança começa a alvo-
Formei uma clara concepçao de patriotismo. Geral- recer somente para aqueles que permanecerem
mente, o tenho encontrado alçado ao primeiro pla- por dez minutos depois que tudo tenha se tornado
no por algum sujeito que tem algo a esconder no desesperado.
segundo plano. Tenho visto uma grande quantida-
de de patriotismo; e o tenho descoberto como o As palavras de uma boa prosa significam o que elas
ultimo refugio dos patifes. dizem. As palavras de uma boa poesia significam o
que elas nao dizem.
Nao pode haver uma naçao de milionarios, e nunca
houve uma naçao de camaradas utopicos; mas po-
7
LVROS PARA DOWNLOAD GRATUITO

ÁRVORE: Uma Anto- POESIA em 500 Amor, Esperança e Fé:


logia Poética Citações Uma antologia de cita-
Baixe AQUI. Baixe AQUI. ções
Baixe AQUI.

Páginas de Ouro da Poemas de Amor


em Trânsito Poemas da Graça
Oração (Antologia de
(Sammis Rea- (José Brissos-Lino)
citações e recursos)
chers) Baixe AQUI.
Baixe AQUI.
Baixe AQUI.

Antologia de Poe- Ruídos y Sombras - An-


Sermões Missionários
sia Missionária tología Poética
(Antologia de esboços
Vol. 3 (poemas e (Leopoldo Cervantes-
e recursos)
citações) Ortiz - Chile)
Baixe AQUI.
Baixe AQUI. Baixe AQUI.

8
Logo, eles teriam que ter o mesmo destino de Ko-
bald! Mas não! Qualquer um que solicitasse a repre-
sentação do Dr. Emanuel saía vitorioso. As argu-
mentações do Dr. Emanuel eram sempre verdadei-
ras. Nada ficava escondido. E ainda assim, o veredic-
to era satisfatório para os seus clientes. E era isso
Edna das Dores de Oliveira Coimbra que fazia com que Kobald o odiasse ainda mais. Ko-
bald não só odiava, mas também invejava o Dr.
Emanuel. Invejava, porque o próprio Kobald tam-
Quando os portões se abriram Kobald respirou, ali- bém era Advogado!
viado. Estava ansioso pela liberdade. To-
dos os anos ele e seus companhei- Kobald não desistia de Ludmila. Em
ros tinham permissão para ir às suas saídas havia um único pro-
ruas no carnaval. Fazia três pósito: levá-la consigo. Kobald
anos que Kobald não saía e usava de todas as artimanhas
não aproveitava da melhor para ter a atenção de Ludmila,
maneira possível todos os três porém era em vão. Ela sequer
dias de folia. Na quarta-feira de o enxergava. Devido ao traba-
cinzas ele retornaria sem cometer lho, o esposo de Ludmila viajava
nenhuma indisciplina, como fizera da constantemente, o que entristecia
última vez. Isso lhe custou caro. Cumpriria muito o coração de Ludmila. Ela o amava
sua saída temporária e retornaria de cabeça ergui- e sentia muito a sua falta. Da última saída de Ko-
da. bald, ele teve uma surpresa: Ludmila havia caído.
Caído no adultério. Caído nos braços de Aquiles. Is-
Da última vez foi enganado pelo coração de uma so era tudo do que Kobald precisava. A infidelidade
mulher, mas dessa vez seria diferente. Kobald já es- de Ludmila aos seus princípios, ao seu esposo, ao
tava de olho em Ludmila há alguns anos. Ele a dese- seu plano de vida, era a glória para Kobald. Agora
java com todas as suas forças. Jamais se interessou Ludmila também seria de Kobald. Completamente
tanto assim por alguém. Ele sempre teve todas as de Kobald. Pouco importava se ela tivesse um ou
mulheres que quis, contudo, essa era diferente. Ela mais homens. Se essa era a forma dele a possuir,
não se deixava seduzir. Ela era fiel aos seus princí- que fosse!
pios, ao seu esposo, ao seu plano de vida, e ao seu
Ludmila estava com Aquiles, mas não estava feliz.
Deus. Talvez por esse motivo Kobald pensasse nela
Ludmila também estava com Kobald, mas estava
dia e noite. Ele a teria. Ele a levaria. Era uma ques-
mais infeliz ainda. Kobald sentia isso. Sussurrava no
tão de honra. Honra de Kobald!
ouvido de Ludmila que não era errado o que eles
Todas as vezes que ele recebia autorização para sa- faziam; que o marido não se importava com ela;
ir, procurava Ludmila. E ela o ignorava completa- que nenhum homem deixaria uma mulher maravi-
mente. Vivia única e exclusivamente para o esposo lhosa como ela por causa de trabalho; e, que talvez
Emanuel. Kobald odiava esse nome. Odiava esse ele estivesse fazendo a mesma coisa que ela. Ko-
nome com todas as suas forças. Odiava, porque es- bald completava, sugerindo que talvez o esposo
se nome lembrava-lhe o seu passado. Lembrava-lhe tivesse até outra família, por isso precisava viajar
também de outro Emanuel: o que era Advogado. O tanto. E quanto a Aquiles - cochichava ele para Lud-
que vinha julgando as causas dos inimigos de Ko- mila – “Ele também não ama você. Aquiles quer
bald e ganhando. Ganhando sempre. Fazendo com apenas o seu corpo, nada mais do que o seu corpo.
que Kobald o odiasse ainda mais. Mas eu não! Eu quero o seu corpo, o seu coração.
Kobald cometera vários delitos. Muitos deles hedi- Eu quero os seus pensamentos; os seus desejos; eu
ondos, os quais ninguém ficava sabendo. Todavia, quero tudo que é seu”. Ludmila apenas chorava
alguns dos seus inimigos também não eram santos desgostosa do seu envolvimento com Aquiles e ar-
e muitos deles fizeram coisas semelhantes. Então, rependida do seu aliciamento com Kobald.
por que esse Emanuel vencia as causas desses? To- O término do período carnavalesco daquele ano já
dos sabiam que o Dr. Emanuel usava de justiça; de- se encerrava e Kobald ainda não conseguira a total
fendendo, orientando e assistindo em todos os convicção de Ludmila de abandonar o esposo e se-
graus as causas dos seus clientes na forma da Lei. guir com ele definitivamente. Uma força superior a
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era marcada por belos músculos, corpo bem defini-
segurava. Kobald não poderia esperar mais. Ele pre- do, pele cuidada. E quando ele estava com Ludmila
cisava ser mais convincente. sempre demonstrava sua força, seu lado de macho,
Em uma noite em que chovia bastante, Kobald esta- de protetor. Porém, perdia para a beleza do domi-
va com Ludmila junto à varanda do apartamento. nante.
Ludmila jamais permitiu que Aquiles entrasse em Kobald era o chefe da matilha! Sua beleza era ím-
seu apartamento. Eles se conheceram no clube on- par; sua inteligência admirada por todos; seus dotes
de faziam natação há alguns anos. Assim como Ko- físicos invejados. Era um deus! Se Ludmila se encan-
bald, Aquiles também percebeu a carência afetiva tou por Aquiles, encantar-se-ia muito mais por Ko-
de Ludmila. E seus olhos e desejos eram como os de bald! Pelo que ele tinha a lhe oferecer. O mundo
um lobo. Numa coisa Kobald estava certo: Aquiles, seria colocado aos pés de Ludmila. Bastava um sim.
como um excelente lobo predador, iria se afastar de Entretanto, ela preferiu ficar com o esposo, um ho-
Ludmila tão logo estivesse satisfeito. Que o marido menzinho comum e sem nenhuma importância.
aproveitasse os restos. Porém, uma coisa Aquiles Que diferença! Deixar Kobald, cuja aparência, bele-
não sabia: por trás dele havia um corvo extrema- za, perfeição e sabedoria eram quase inigualáveis!
mente inteligente exercendo toda influência sobre Ela estava louca. Voltou aos seus princípios; voltou
ele. para os braços do esposo; e voltou para o seu Deus.
A chuva continuava; o tempo de Kobald estava se Quando Kobald retornou da sua jornada carnavales-
acabando; e Ludmila não se decidia. Apenas olhava ca daquele ano, estava envergonhado. Envergonha-
os faróis dos carros que transitavam lá embaixo na do e atrasado. Como fora difícil para Kobald atra-
avenida principal. A vida de Ludmila perdera todo o vessar os portões da sua morada. Ouvir toda aquela
significado depois que se envolvera com Aquiles. zombaria de meses e meses. Todos gracejavam dele
Como ela permitiu que isso acontecesse? Como che- e até mesmo do significado do seu nome. Como
gou a esse ponto? Agora estava ali. Precisando to- eles ousavam isso? Quem eram eles para caçoarem
mar uma decisão. Ela poderia dar um fim nessa situ- da beleza, do poder, e da força que havia no seu
ação. Era tão fácil. Bastava apenas um sim. Um es- nome: Kobald!
tender de mãos e Ludmila partiria com Kobald, dei- Não obstante, chegara a oportunidade de ir às ruas
xando para trás todo o passado. Kobald percebeu novamente. Os blocos de carnaval desfilavam na
que ela estava menos resistente. Sim, ela partiria avenida principal. Kobald se juntou a um grupo, po-
com ele. Kobald tinha certeza. Todos os seus com- rém os seus integrantes não consumiam bebida
panheiros o invejariam. Seu troféu era o maior de alcóolica. Bebiam refrigerantes e Red Bull. Queriam
todos. Seus objetivos foram alcançados. Kobald brincar, pular e cantar marchinhas de carnaval. Ko-
vencera! bald queria mais do que isso. Deixou-os e partiu pa-
No entanto, inesperadamente, Ludmila caiu de joe- ra outro grupo que estava próximo a um bar onde
lhos no chão e em prantos começou a clamar por tomavam muita cerveja. Como Kobald almejou por
Emanuel. Seus soluços sacudiam o seu corpo e suas esse gostinho durante o período em que esteve au-
lágrimas molhavam suas mãos. Ludmila estava arre- sente! Cada gole era uma sensação maravilhosa.
pendida. Totalmente arrependida. Queria reconcili- Nesse primeiro dia o que Kobald queria mesmo era
ar-se com os seus princípios, com o seu esposo, beber. Beber todas. À medida que os blocos passa-
com os seus planos de vida. Queria uma chance de vam mais foliões iam se juntando ao grupo de Ko-
se redimir. Contaria toda a verdade para o seu espo- bald. O grupo começou a misturar cerveja, vodka,
so. Humilhar-se-ia pelo seu amor e pediria perdão vinho. Todos eram de alguém, e cada um era de to-
com toda a sinceridade do seu coração. dos.
Kobald ficou irado com aquela situação. Que atrevi- No segundo dia, Kobald estava prontinho para mais
mento era aquele? Por que chamar pelo esposo, se uma experiência fantástica, como a da noite anteri-
Kobald estava ali; se fora ela mesma quem escolhe- or. O grupo havia marcado para assistir a um desfile
ra ficar com ele? Maldita traidora! Maldita mentiro- de escolas de samba; Kobald os encontraria no lu-
sa! Maldita adúltera! Kobald aceitou o envolvimento gar combinado. Entretanto, nem todos vieram: um
de Ludmila com Aquiles, porque isso foi uma ponte entrou em coma alcoólico; outro levou um tiro à
para que Kobald chegasse até ela. E Kobald bem queima roupa, e um terceiro levou uma facada nas
sabia que ele e Aquiles eram farinha do mesmo sa- costas que penetrou o pulmão. Em compensação,
co. Lobos da mesma alcateia. Kobald era o domi- outros vieram. Era tudo alegria, mas Kobald queria
nante; o alfa. Aquiles, o beta. A beleza de Aquiles muito mais. Ele queria que alguém do grupo se ma-

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nifestasse com o mesmo desejo que o seu. beijada. Definitivamente Kobald nunca havia estado
Kobald olhava um por um do grupo e sutilmente com uma mulher assim. Depois do sexo, o rapaz ti-
insinuava no ouvido de um, no ouvido de outro, que rou de dentro do bolso da calça, alguns comprimi-
a noite ficaria melhor se pudessem fazer algo mais dos e os ofereceu para a moça. Ela se levantou da
do que beber. Dali a alguns minutos, alguém disse cama, pegou suco na geladeira e fizeram um brinde,
que havia um lugar onde eles poderiam se divertir ingerindo os comprimidos. Kobald nunca havia ex-
de verdade. Era tudo o que Kobald queria. Ao che- perimentado aquele tipo de comprimido, e tinha
garem ao endereço sugerido, encontrou de tudo. certeza que aquela moça também nunca fizera uso
Viu muita coisa rolando nesse grupo. Nem quando deles. Fizeram mais sexo e dessa vez sem pudor ne-
ele vivia aqui fora, aprontando todas, viu o que nhum. Pela manhã Kobald percebeu que a moça
aquele grupo fazia. Era todo mundo misturado, inje- não estava bem. O rapaz que estava com eles tam-
tado, ensanguentado e vomitado. bém percebeu e murmurou: “A barra sujou”! .O ho-
Quem pensou que no terceiro dia Kobald estaria mem pegou os seus pertences e saiu apressado.
cansado, se enganou. Havia ainda muitos blocos e Kobald também se preparava para fazer o mesmo.
escolas de samba para acompanhar. Três, dos que Mas, quando ele estava saindo, viu um casal se
estavam com o grupo no dia anterior faltaram ao aproximando e esquivou-se para não ser notado. Ao
novo encontro: um, porque sofrera uma overdose olhar atentamente para o casal viu que a moça se
de drogas, e os outros dois se acabaram num desas- parecia com eles.
tre de trânsito. Porém, outros se juntaram ao grupo Era quarta-feira de cinzas. O jornal estampava suas
de Kobald, entre eles, uma mulher lindíssima. Ela manchetes. Em uma delas, trazia a foto da carteira
não usava fantasia. Vestia um short jeans e uma blu- de identidade do rapaz dos comprimidos. Tinha sido
sinha de alça. Todos os presentes grudaram os atropelado. Kobald avaliou os três dias em que esti-
olhos nela. Ela exalava um perfume muito bom. E vera fora. Fizera um bom trabalho. Cérbero, o guar-
de perfume Kobald entendia. A moça pegava leve dião, ao recebê-lo de volta, sorriu satisfeito. Kobald
na cerveja, mas como sambava. E deixava todo saiu só e retornou com mais sete. Seus companhei-
mundo de água na boca. ros o aplaudiam e gritavam freneticamente:
Kobald sempre teve olho de especialista: aquele “Kobald! Kobald! Kobald!
peixe estava naquele aquário, mas não pertencia a Quem é o mais divertido? Kobald!
ele. Naquela noite Kobald queria algo especial. Algo Quem é o pai dos comediantes? Kobald!
que só uma mulher poderia lhe dar. E ele não se im- Quem governa lá fora? Kobald!
portaria de usar todos os meios para conseguir o Quem é o guarda dos metais preciosos? Kobald!
seu objetivo, inclusive, em compartilhá-la junto com Quem tem prazer na morte? Kobald! Kobald! Ko-
outro homem, desde que ele também tivesse a sua bald”!
parcela de prazer. O Chefe olhava toda aquela euforia e anotava em
Entre uma bebida e outra, Kobald foi cochichando seu Livro de Entrada o nome dos novos residentes.
no ouvido da moça que seria bom se ela pudesse Depois se sentou em seu trono e disse consigo mes-
ser tocada, acariciada, beijada de verdade. Ela sorria mo: “Ainda há muitos a serem recrutados”!
e balançava a cabeça. Resistia. Todavia, lá pelas tan-
tas, depois de alguns cigarros e meio embriagada, A autora é licenciada em Psicologia plena e é especialis-
ela aceitou a sugestão de um dos rapazes para ir ao ta em Psicologia Clínica e Psicologia Escolar e Educacio-
apartamento dela, e Kobald foi junto com eles. Ela nal. É mestre em Psicologia Pastoral, com especialização
gargalhando, se deixava ser abraçada, apalpada, em Poimênica. Poeta, cronista e escritora.

O Poeta Mais Lido


– Poeta! Se os teus livros fossem vendidos diariamente aos milhares; se o teu nome fosse consagrado por to-
das as academias e a tua fama proclamada por todos os jornais, cinemas e agentes de publicidade, nem mes-
mo assim serias o primeiro entre os poetas do mundo! Sabes, meu amigo, qual e, afinal, o poeta mais lido e
mais citado no mundo inteiro? E um poeta judeu!
– Judeu?
– Sim, e um poeta judeu! E David! Os seus Salmos, transbordantes de poesia e inspirados na verdade divina,
estao presentes nas Bíblias de judeus e de toda a cristandade, e foram incluídos em suas liturgias. Milhoes e
milhoes de cristaos repetem todos os dias, a cada momento, em todos os recantos do mundo, os versos admi-
raveis do poeta judeu! - Malba Tahan
Do livro Lendas do Povo de Deus, de Malba Tahan11
Graças a Deus por Diários,
Agendas e Biografias!
Por John Piper
Tradução por Desiring God

Oh, a experiência renovadora, libertadora e estimulante de passar vá-


rios dias em outro século na companhia de santos! Durante a prepara-
ção para a Conferência de Pastores mergulhei nos diários e anotações
de David Brainerd. Ele era um missionário para os índios norte-
americanos de Nova York, Pensilvânia e Nova Jersey. Por vários dias eu
vivi a maior parte do meu tempo entre os anos de 1718 e 1747, o período
em que este jovem cheio de fogo viveu. Foi uma vida curta. Mas Ó, que
vida! Que vida agonizante, oprimida e dolorosa. Mas que testemunho da
longanimidade e misericórdia de Deus.
Seu pai morreu quando ele tinha 9 anos. Sua mãe morreu quando ele
tinha 14. Ele morreu de tuberculose aos 29 anos. Praticamente durante
toda a sua vida missionária, ele cuspiu sangue com espasmos dolorosos.
Não havia cura. E Deus não o curou. Ele sofreu ataques quase implacá-
veis de depressão, que, naqueles dias, eles chamavam de "melancolia".
Era como uma morte, e quando melhorava era glorioso: terça-feira, 6 de
maio de 1746, "Senti um pouco de espírito e coragem no meu trabalho,
estava em boa parte livre de melancolia: Bendito seja Deus pela liberta-
ção desta morte".
Ele foi expulso da universidade Yale um ano antes de se formar e nunca
foi permitido ter seu diploma. Ele havia dito que um dos professores
"não era mais gracioso do que uma cadeira". Isso era motivo de expul-
são naqueles dias. Assim, ele foi tirado da rota ministerial convencional,
tornou-se um missionário, e fez história.
Ele nunca se casou. Não foi fácil. E sentiu a solidão do deserto profunda-
mente. Quarta-feira, 18 de maio de 1743, "Eu não tenho nenhum compa-
nheiro cristão com quem eu poderia me abrir e revelar meus sofrimen-
tos espirituais, e de quem eu possa obter um conselho através de con-
versas sobre coisas celestiais e me unir em oração comunitária". Terça-
feira, 8 de maio de 1744, "Meu coração às vezes estava prestes a se aba-
ter só de pensar em meu trabalho, e caminhando sozinho pelo deserto,
eu não sabia para onde ir".
A vida no deserto era difícil. "A maior parte da minha dieta consiste de
milho cozido, mingau de farinha, etc. Eu vivo em uma cabana de palha, e
meu trabalho é extremamente difícil; eu tenho pouca aparência de su-
cesso para me confortar... Percorri muitas jornadas difíceis... e ainda
assim Deus nunca permitiu que um dos meus ossos se quebrasse... em-

12
bora eu tenha muitas vezes sido exposto ao frio e à fome no deserto...; tenho me perdido na mata frequente-
mente... Bendito seja Deus pois Ele tem preservado a minha vida".

Mas, em tudo isso estava a busca incessante de Deus e santidade. "Quando eu realmente desfruto de Deus, eu
sinto meus desejos por ele mais inesgotáveis, e a minha sede por santidade mais insaciável; ... Oh, por santidade!
Oh, por mais de Deus em minha alma! Oh, esta dor agradável! Faz a minha alma se apressar em busca de Deus...
Oh, que eu não caminhe lentamente na minha jornada celestial!"

Por que David Brainerd me encoraja tanto? Porque Deus pegou este jovem apaixonado por ele, arruinado pela
dor, temperamental, solitário, compulsivo, cheio de dificuldades e o usou para levar centenas de índios à glória
eterna, para estimular a fundação das faculdades Princeton e Dartmouth e para inflamar duzentos anos de missi-
onários com seus quatro anos de uma vida missionária radicalmente dedicada. Carey teve a Vida de Brainerd com
ele na Índia; Martyn na Pérsia, McCheyne na Escócia, Livingstone na África; e Jim Elliot no Ecuador.

E atrevo-me a dizer que nada disto teria surgido sem a sua desoladora expulsão da faculdade. Oh cantemos, ir-
mãos e irmãs: "Não julgueis o Senhor com débil entendimento / Mas confiais nele ou na sua graça. / Por trás de
uma providência carrancuda / Ele esconde uma face sorridente" (God Moves in a Misterious Way, hino de Willi-
am Cowper).

Apreciando as misericórdias severas,

Pastor John Piper - www.desiringgod.org

O rei que queria ver Deus


Liev Tolstoi
Havia um certo rei, que já tinha vivido e visto muitas coisas. Aí ele, a todo o custo, também queria ver Deus. E como ele exercia
seu poder de modo absolutista, ditatorial, ele deu uma ordem aos seus sacerdotes e sábios que lhe possibilitassem realizar
este seu desejo. E para tanto lhes deu um certo prazo de tempo.
Naturalmente ninguém conseguiu atendê-lo. E todos já estavam tristes por causa do castigo que o rei iria lhes aplicar. Aí apare-
ceu, vindo decampo, um pastor de ovelhas. que tinha ouvido falar daquela ordem do rei. Ele lhe disse:
- Majestade. permita-me que eu cumpra o vosso desejo!
- Está bem! - respondeu orei. - Mas lembra-te de que a tua cabeça estará em jogo!
O pastor levou o rei a um lugar a céu aberto, e lhe mostrou o sol.
Olhe para ele! - disse o pastor.
O rei ergueu os seus olhos e queria fitar o sol. Mas o seu brilho era forte demais; ele baixou a cabeça e fechou os olhos. Disse
ao pastor:
- Tu queres que eu fique cego?!
- Mas majestade! -disse o pastor. - Isto é apenas uma parte da criação. Uma cópia pálida da grandeza de Deus, uma pequena
centelha de uma fogueira de chamas. Como é que vossa majestade quer ver Deus com os seus olhos fracos e lacrimejantes?
Procure a Ele com outros olhos.
Esta ideia agradou ao rei. E ele disse ao pastor:
- Reconheço teu espírito, e vejo a grandeza de tua alma. Mas responde-me agora: O que existia antes de Deus?
Após refletir por algum tempo o pastor disse:
- Majestade. não se aborreça com o meu pedido! Mas conte!
O rei começou a contar: Um. dois, três_ - Não, não assim! - interrompeu-o o pastor. - Comece com aquilo que vem antes de um!
- Como é que eu posso? Antes de "um" não há nada! - disse o monarca. -
- Muito sábio o seu argumento. Majestade! - disse o pastor. - Ames de Deus também não existia nada.
Esta resposta agradou ao Rei mais ainda que a anterior. E então ele disse ao pastor de ovelhas:
- Vou te recompensar regiamente! Mas antes me responde à terceira pergunta: O que é que Deus faz? O pastor compreendeu
que o coração do rei havia se comovido.
- Bem, disse ele. - Também esta pergunta eu quero responder à Vossa Majestade. Eu só lhe peço uma coisa antes: Vamos tro-
car as nossas vestes por um breve momento.
E ambos trocaram as suas vestes. Aí o pastor disse: - É isto que Deus faz. Ele desceu de seu trono excelso e tomou-se um de
nós. Ele dá a nós o que Ele tem, e aceita o que nós temos e somos.
Via Anuário Evangélico Luterano #40—2011.

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FRAGMENTO DE UMA SENTENÇA terça-feira, se não me engano.
Era uma surpresa. Não pela morte propria-
Jorge F. Isah mente, mas pelo fato de sabê-la tão tarde. E após
ouvir a afirmação da enfermeira, com sua voz indife-
Andava bastante confuso ultimamente, bem rente e monótona, mesmo esperando por aquilo,
mais do que o habitual. Muitas coisas passando pela mais dia menos dia, não pude deixar de estremecer
cabeça, num vai e vem sem fim, e que me deixava e me sentir invadido por uma sensação estranha,
angustiado, por serem ideias esparsas, desconecta- muito diferente do vazio, e nada parecida com a dor
das, e não me levarem a lugar algum, a não sufocante que toma o peito de agonia, fazendo
ser ao labirinto das dúvidas e indeci- -o sentir o desejo urgente, uma ânsia
sões. Meditava se eu estava prepa- apressada, por alívio.
rado para descobrir alguma coisa, Havia alertado, à enfermeira da
mas percebi que mais do que ala, para me avisar de qualquer
descobrir algo, seja lá o que novidade, boa ou ruim. Deixan-
fosse, a necessidade era de do alguns cartões com os meus
encontrar a verdade e dela to- telefones de contato para se-
mar posse... ou antes, ser dela rem distribuídos entre a equi-
possuído. A minha vida e os pe.
meus pensamentos se fundiam
- A Renata está?
em algo vago, abstrato, mas que
me impingia uma dor lancinante, e - Um minuto... – Ela respondeu,
um temor estuporado, que invariavel- meio enfastiada.
mente levava-me à paralisia e, em segui- Depois de transferir para outro ramal, que
da, ao desejo de escapar incontinente, sem rumo, me transferiu novamente, e de novo, disseram-me
como um navio desgovernado anseia fugir do rede- que não estava de plantão; era o seu dia de folga.
moinho, mas, por fim, vê-se rojado pelo torvelinho.
Agradeci, e desliguei. Apesar da irritação no
De certa forma, sentia-me o pior dos ho- primeiro instante, entendi que não podia cobrar da
mens, e isso não me agradava; um tanto porque enfermeira a atenção que julgava necessário rece-
não era uma ideia boa para se pensar de si mesmo, ber, não havendo muito o que fazer para reparar a
e outro tanto porque cheirava-me a dissimulação, à situação. A Ivana falecera, e nos últimos dez dias,
tentativa de fugir da realidade para um lugar seguro não tive como visitá-la... Justo quando mais necessi-
na fantasia. É muito fácil vociferar, espernear, irritar tava de atenção e cuidados.
-se, difícil é o silêncio, o comedimento e o autodo-
mínio. E tudo isso começa, de certa forma, na men- Semanalmente, ia até o hospital, e quase
te, nos pensamentos. Se eu não os administro con- sempre me encontrava com os seus pais. Era filha
venientemente, de maneira saudável, útil, e deixo- única, vinda do interior para a Capital. Pedi-lhes que
me levar por eles sem a devida vigilância, não sobra- me colocassem a par da situação, caso houvesse
rá nada além de uma mente perturbada que acredi- alguma mudança, e me coloquei à disposição para o
tará possível a verdade apenas na exorbitância. Mas que precisassem. Eram ainda relativamente jovens,
há coisas que nos fazem retornar dos delírios, e talvez dez ou alguns anos mais do que eu. Era triste
existem não para a sublevação, a pirraça frívola, ver-lhes a dor, sem saber confortá-los. Sentia-me
mas para o discernimento do que somos e do mun- inútil, e apenas imitava-os em sua melancolia. Eram
do que nos flanqueia. sempre educados, mas de uma educação discreta,
envolvida por uma aura embatucada que os dois
Foi assim que, certa manhã, após uma noite compartilhavam solidariamente. Por fim, quando a
insone por causa do calor e dos malditos pernilon- filha ficava a maior parte do tempo insensível à tris-
gos que teimavam em romper o front, a despeito teza exterior, por causa dos estupefacientes, encos-
dos repelentes químicos e das poderosas hastes do tava-me à janela, fitando ora a imobilidade da paci-
ventilador, informaram-me a morte da Ivana. ente, ora a agitação nas ruas através da vidraça. Da-
- Quando? - Perguntei à atendente. quela janela era possível, a qualquer um, importar-
se com a correria, as luzes, os sons, e mesmo o ca-
- Tem três dias, mais ou menos... Na última
lor das ruas e calçadas. Uma senhora me disse, cer-

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ta vez, como sentia saudades de ir à padaria com- sempre distorcida à mente, uma espécie de bruma
prar pão, depois de fazer um café fresquinho, esti- translúcida em que os traços faciais se dissipavam
car a mão, pegar o troco e cumprimentar os vizi- como neblina. Por maior esforço despendido, a me-
nhos. Não havia quem não passasse por ela e não mória sempre trazia uma figura distendida, difusa,
conhecesse. Naquele hospital, podia sentir como a como se a fugir ou esconder-se da minha observa-
caminhada matinal era uma bênção. ção; então, eu desistia, quase sempre, de agrupar as
linhas dispersas, contentando-me apenas com o no-
- Sabe, moço, não sei quando vou sentir aquilo
me e o que ele trazia de significativo da pessoa. Mas
tudo de novo. Mas o dia em que sair de casa, depois
ficava mesmo era a tristeza com a factualidade da
de coar o café fresquinho, subir a rua até a padaria
vida, de como pode se evanescer rapidamente, nu-
e sentir o cheiro de pão novo, será o dia mais feliz
ma fração de segundos, não restando nada além de
da minha vida... – Segurou uma lágrima que teimava
lembranças...
em escorrer, esfregando os olhos para afastá-la – A
gente não dá importância para as coisas da vida até - O que é a vossa vida? - Inquiriu um santo.
que perde... Eu nunca mais vou deixar de ligar para Ao que respondeu, em seguida:
as mínimas coisas do dia-a-dia, por menor que se-
jam, por mais que se faça. Até mesmo se não gostar - É um vapor que aparece por um pouco, e de-
dela, vou agradecer a Deus... pois se desvanece. – Replicou para si mesmo.
Na semana seguinte, procurei pela velhinha, e Cheguei a sonhar durante algumas semanas
não estava. Havia morrido numa quarta-feira... com a Ivana. Via-a com o seu riso escandaloso, seus
gestos impetuosos, e o vigor juvenil, talvez a sua
Continuei olhando a rua, vendo as pessoas indo marca mais inequívoca. Estava sempre alegre, to-
e vindo, trombando, se esquivando, parando e se- mada pelo encanto, parecendo às portas de um ar-
guindo. Sinais abriram, fecharam. Ônibus e carros e rebatamento. Eu me divertia, e deixava-me arrastar
motos seguiam em fila, ou estacionavam lado a la- pelo seu entusiasmo. Parecia que nos amávamos, e
do. Ambulantes, carrocinhas de lanches e petiscos, a vida era um grande parque de diversões, rodeado
pacotes de batata, pipoca, docinhos e balas, perfila-
por gramados impecáveis e verdejantes, por cantei-
vam-se nas calçadas em frente à portaria do hospi- ros de flores multicores, e riacho e cascata de águas
tal. O ponto de táxis movia-se com a lentidão dis- límpidas. O céu azul, e uma brisa suave a agraciar
pensada pelos coletivos e ambulâncias... Mantinha- nossos rostos. Eu era mais jovem, dez anos no míni-
me assim por vinte, trinta minutos, depois me des- mo, e corríamos de mãos dadas, abraçando-nos,
pedia dos velhos. A mãe da Ivana apertava-me a vez ou outra, como eternos amigos. Seu rosto irra-
mão fortemente, e agradecia-me, não sem algumas diava vida; e eu a seguia, fascinado, como um beija-
lágrimas nos olhos, repetidas vezes por estar ali e flor atrás do mais puro néctar.
não abandonar a filha. Considerava-me um grande
amigo da família, o que não tentei negar. Como mo- Ao acordar, porém, reconhecia que ela estava
ravam no interior, as visitas de parentes e amigos cortada de diante dos meus olhos, e todo o enlevo
eram raras; cheguei a conhecer dois ou três deles, noturno se transformava em um peso na alma, e
não mais; e a minha importância provavelmente re- meu humor se tornaria em sequidão de estio, du-
sidia nesse fato, de que tão poucas pessoas fizes- rante os próximos dias, e ainda mais agora.
sem a cortesia de aparecer em um lugar deveras _____________________________________
estigmatizado como o H.M.P. Onde a foice da mor-
te pairava como um sinal de alerta, para, caso possí-
Jorge F. Isah é poeta e escritor. Autor de "A Palavra
vel, se mantivessem o mais distante, rejeitando
não escrita" (poesia, 2016), "Arpeggios Insula-
qualquer proximidade.
res" (poesia, 2018) e "A Distração do Pecado", teo-
Passei o restante daquele dia pensando na Iva- lógico, em 2018.
na. Era estranho como a imagem da pessoa vinha

“Leitura é atividade intensa que nos faz deter o tempo, adiar a morte, multiplicar a vida.”
Gabriel Perissé
“Há uma regra segura para julgar dos livros como dos homens, mesmo sem os conhecer: basta saber
por quem são amados e por quem são odiados.”
Joseph de Maistre
“Você não precisa queimar livros para destruir a cultura. Basta que as pessoas parem de ler.”
Ray Bradbury 15
O canto real é uma forma poética rara, formada por Brilhando a ponto de obscurecer
cinco estrofes, de onze versos em geral, terminando por Maravilhas em torno, emolduradas.
uma estância menor, chamada envio ou oferta, e que Cuidado com gracejos, senhoritas,
tem cinco ou seis versos. As rimas são simétricas, iguais Que em uníssono às vozes infinitas
em todas as estrofes e seguindo sempre o esquema: Do seu ego, acordem a adormecida
ABABCCDDEDE. O último verso de cada estrofe é, per- Figura de Narciso em nós contida.
manentemente, o mesmo. Toda imagem é o tempo que descora
Em água branda aos poucos diluída...
CANTO REAL Nº2 E você se torna aquilo que adora.

IV
"Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o
único Senhor. Ame o Senhor, o seu Deus, de Não, não se comisere por sofrer
todo o seu coração, de toda a sua alma e de As mais terríveis dores combinadas
todas as suas forças.” Como um augusto mártir sem saber
Deuteronômio 6: 4-5 Que existem anjos de asas mais pesadas.
O canto das lamúrias inauditas
I Faz dos queixosos silentes levitas
Porque a voz cada vez mais desprovida
Nao, nao se orgulhe tanto por viver De gratidão se esvai enfraquecida.
Cativo nas mansoes resignadas, A fome da pantera que o devora:
Nem seja mais do que o seu proprio ser A ingratidão por graça imerecida...
E você se torna aquilo que adora.
E capaz de aguentar nessas moradas.
Nao nos deixe na sala de visitas V
Esperando ao som de arias eruditas
Porque apos sua presença ser servida, Não, não se entregue quando escurecer
Rala e fria, voltaremos a lida. Aos braços que embalam madrugadas
Tao longe o homem prepotente mora Ao som funesto de um anoitecer
Que se eterniza além das alvoradas.
Que nunca mais sua voz sera ouvida...
As desilusões se tornam bonitas
E voce se torna aquilo que adora. E calmas canções de ninar escritas
No colo de Tânato. A voz ouvida,
II No entanto, é de uma lágrima caída
Por encanto, o que nas almas aflora
Nao, nao se encante ao ver o sol nascer O canto da bílis negra expelida...
Na palma de suas maos tao calejadas, E você se torna aquilo que adora.
Nem quando esse sol noutros sois bater
Fazendo o som de moedas dobradas, §
Nem diga: Oh senhor das almas aflitas
Por esmeraldas, diamantes, pepitas, Nunca se curve ante a luz vertida
De orgulho, riqueza, alarde ou ferida,
Forjarei nesse metal minha vida!
Ora essa luz brilha rente ao chão, ora
Pois logo ela tera a mesma medida
Se apaga igual centelha constrangida...
E o valor de cada dobrao que outrora E você se torna aquilo que adora.
Fora apenas mais um grao na jazida...
E voce se torna aquilo que adora.
Do livro O Intervalo das Nuvens (no prelo).
III
José Manoel Ribeiro é professor, licenciado em Le-
Nao, nao se encante ou se apaixone ao ver
tras e Filosofia. Autor de dois livros de contos.
Seu proprio rosto em aguas espelhadas
16
Um pecador medíocre — Não, acho que não. É bom que sua memória seja
ainda pior que a minha ou que sua vida seja feita de
Ou: Uma conversa de bar leveza como você diz. Acho que o mundo seria óti-
mo se fosse feito de gente como você. Não, não
quero fazer você pensar em você. Pelo menos não
Roberto Vargas Jr.
fiz a pergunta com esta intenção.
— Está pensando em que então?
Calebe Sore sempre fora um tipo ensimesmado.
— Um pouco em mim mesmo, um pouco em duas
Seus amigos se acostumaram com seu humor me-
posturas que talvez sejam estereotipadas,
lancólico e consideravam aquela feição
mas que podemos reconhecer em
sempre fechada e os termos sem-
uns e outros, principalmente em
pre rudes algo cômico.
nós mesmos.
Quem não o conhecia o ti-
— Não estou entendendo
nha por grosseiro, pura e
nada.
simplesmente. Calebe não
chegava a se importar. Já — É que você já tomou
vivera invernos demais cerveja demais!
para ter ilusões de ser dig- Ambos riem e, após breve
no de qualquer empatia. pausa, Calebe continua:
“Viver e deixar viver” era
seu mote tácito. — Eu já abusei e já fui abusa-
do. Na verdade acho que você
Nesta noite, porém, algo o per- também. Apenas que talvez vo-
turbava especialmente, deixando cê se ocupe mais do “grave” que do
sua cara fechada ainda de menos ami- abuso. Não faço juízo sobre se tal foco é
gos e sua melancolia ainda mais voltada para si bom ou ruim. Como eu disse, estou pensando em
mesma. Seus termos, porém, haveriam de ser estra- mim mesmo e eu sei bem que eu já abusei e já fui
nhamente afáveis. abusado tanto em termos graves quanto não gra-
— Ei, Calebe, faz horas que você olha perdido para ves.
esse copo. Vai beber ou não? — Pensando assim, acho que tenho que aquiescer.
Estava tão absorto em seus devaneios que ele mal — Você lembra aquela piada sobre os elogios ao
percebia o prazer da cerveja. Certamente não fazia presbítero no caixão?
horas, mas já fazia um bom tempo que Calebe fita-
va a cerveja como que a olhar através dela. Ergueu — Aquela em que a esposa, diante de tantos elogi-
o copo aos lábios e tomou de um gole generoso. os, pede ao filho para ver se era o pai dele mesmo
Era uma boa cerveja, e o fato de estar mais quente que estava no caixão?
do que deveria fez com que lembrasse do prazer — Essa mesmo.
esquecido e o fez apreciá-la ainda mais.
— Que tem ela?
— Acácio, você por acaso já foi abusado ou abusou
— Tem que eu gostaria de ser minimamente autên-
de alguém?
tico neste tempo para não ser elogiado, ou xinga-
Surpreso com uma tal pergunta, Acácio respondeu: do, injustamente após morto.
— Que papo brabo, Calebe! Não sei, acho que não. — Acho que percebo.
Pelo menos não me recordo de nada grave neste
— Veja, eu quero evitar viver como uma daquelas
sentido.
posturas estereotipadas…
— Você é um abençoado, Acácio. Seja porque sua
— Que seriam?
memória o alivie do tormento ou da culpa, seja por-
que de fato não haja gravidade nas coisas que fez — Uma delas é a do santo. Deus me livre de ser san-
ou sofreu. to.
— E lá vem você me fazer pensar se há ou não algo — Sim, isso percebo claramente. Não há nada pior
de que me culpar… que santarrões. Por um lado eles soam falsos quan-
17
to a si mesmos, por outro impõem fardos sobre o — Exatamente. E eu quero ter a consciência disso,
comportamento alheio. No mais das vezes sequer sem afetação. Não quero fingir ser o santo nem
conseguem viver de acordo com seus próprios far- quero esquecer do que meu coração é capaz. Quan-
dos. É mesmo asqueroso. do meu corpo jazer no caixão, não quero os elogios
falsos. Também não quero ser um pecador contu-
— Exatamente.
maz. Quero ser um pecador medíocre. Quero me
— E qual a outra postura? saber pecador para que eu peque menos e menos
— A oposta a essa, a de um pecador não só incon- mal faça a outros. Quero que o pecado de tempos
fesso, mas mesmo orgulhoso. idos ainda me entristeça, mas já não me condene.
Quero ser um pecador medíocre que não só foi alvo
— Bem, isso ninguém quer ser. da misericórdia divina como pela graça fez algum
— Ah, não estou mesmo certo disso. O inverso de bem àqueles que conheceu.
ver nesta sua cerveja um pecado mortal é se encher Acácio não respondeu. Ficaram ambos em silêncio
dela sem o menor controle. por algum tempo e tomaram ambos mais alguns
— Cara, deixa minha cerveja em paz! goles generosos da cerveja que era mesmo boa.
Novamente se riem. Calebe prossegue: Então o semblante de Calebe descontraiu, como se
tivesse tirado um peso de suas costas, pediu outra
— É verdade que a gente não quer ser um abstêmio
rodada de cerveja a ambos e mudou de assunto,
xiita nem um bêbado inconveniente. Só que a gen-
como se tivesse já dito tudo o que precisava.
te corre o risco de cair num erro ou outro, talvez
não quanto à cerveja, mas em relação a tudo o _____________________________
mais. Corremos o risco de ser aquele que mostra o Roberto Vargas Jr., brasileiro nômade, cristão refor-
dedo indicador ou aquele que mostra o dedo mé- mado, casado e pai de três pródigos, não-escritor que
dio… escreve, pecador sob abundante graça. Autor do livro
— Corremos o risco de farisaísmo ou de cauterizar- “RVJ, reminiscências de um blog”. Agora escreve em
mos nossa mente… https://link.medium.com/GtnaWNh8yX

Notas Culturais
A editora Upbooks, que tem investido pesado em autores cristãos brasileiros, com livros individuais e
antologias, está com inscrições abertas para a antologia de contos cooperativada Fala a Este Jovem.
Confira AQUI.  A Upbooks lançou também edição do livro Ilusão, de Naasom André. Naasom é
mantenedor do blog Ficção Evangélica e antigo promotor de nossas letras na internet. Confira o livro
AQUI.  A Editora Verus, selo editorial do grupo Record, lançou neste ano o livro Um Eco na Escu-
ridão, segundo volume da série A Marca do Leão, da autora cristã best-seller internacional Francine
Rivers. Confira AQUI.  O vencedor na categoria romance do Prêmio Areté 2018 (que premia os
melhores livros evangélicos de diversas categorias lançados pelas editoras associadas à Associação de
Editores Cristãos) foi o excelente Cartas de um Diabo a Seu Aprendiz, de C. S. Lewis (Thomas Nelson
Brasil). A TN está relançando a obra de Lewis em belas edições. No entanto, como se premia a reedição
de um livro já publicado há muito no Brasil, em detrimento de obras recentes, não me pergunte (C. S.
Lewis/Thomas Nelson ganharam ainda na categoria apologética, com outro livro que já havia sido
publicado). Confira a lista de vencedores AQUI.  A AD Santos lançou em 2018 o romance O Jo-
vem Mensageiro, de Paulo Roberto de Araújo. A obra romantiza a vida do patriarca Jacó. Confira
AQUI.  Concursos Literários (premiações em dinheiro): Prêmio Barueri de Literatura - Poesia e
Contos. Informações AQUI.  XXIX Concurso Nacional de Contos José Cândido de Carvalho. Infor-
mações AQUI. 30º Concurso de Contos Paulo Leminski. Informações AQUI.
18
A arte foi feita para ser sentida e não para ser compreen- A criatura defende-se criando.
dida; por isso, toda vez que se tenta falar dela com inteli- André Malraux
gência, o mais que se consegue dizer são tolices.
Usa a linguagem que quiseres e jamais chegarás a expres-
Remy de Gourmont
sar senão o que tu és.
A arte é um jeito que o ser humano tem de resgatar sua Ralph Waldo Emerson
própria grandeza oculta.
Arte bela é aquela em que a mão, a cabeça e o coração
André Malraux
vão juntos.
Toda arte é uma revolta contra o destino do homem. John Ruskin
André Malraux
A arte, como a vida, é um segredo que fala.
A arte não existe para reproduzir o visível, e sim para tor- Lawrence Durrell
nar visível o que está além.
Os artistas existem para isto: plasmar numa tela, num pen-
Paul Klee
tagrama, numa página em branco, algo que está dentro
Arte é contemplação do mundo em estado de graça. deles e que pertence ao futuro.
Hermann Hesse Marc Chagall
A arte tem o belo costume de fazer tábula rasa de todas as Inspiração é trabalho, trabalho e mais trabalho.
teorias artísticas. Charles Baudelaire
Marcel Duchamp
A arte não tem por objeto deixar obras que o tempo dete-
A arte deve ser reconhecida como a forma de expressão riora, mas sim fazer que surjam artistas em todas as pes-
mais certa a que chegou a humanidade. soas e despertar na criatura comum o gênio adormecido.
Herbert Read Nietzsche
A gente não pode escapar do mundo mais facilmente que As nações escrevem suas autobiografias em três manuscri-
pela arte, mas não se pode vincular ao mundo mais facil- tos: o livro de seus feitos, o livro de suas palavras e o livro
mente que pela arte. de suas artes. Não se pode entender nenhum desses livros
Goethe sem ler os outros dois, mas, dos três, o único fidedigno é o
último.
A arte é uma mentira que nos permite aproximar-nos da
John Ruskin
verdade.
Picasso A arte tem um dever social que é o de dar escape às an-
gústias da época.
Não creio que a arte tenha chegado a nenhum beco sem
Antonin Artaud
saída. O ser humano irá abrindo portas sempre novas: o
importante é saber aonde vão dar essas portas, e então Só a realidade tem o direito de ser inverossímil; a arte,
ter forças para trilhar o caminho que delas se avista. nunca. Eis por que a arte não se deve confundir com a vi-
Juan Miró da.
Emile Verhaeren
Seres caídos, a arte nasce de nossa necessidade do divino.
Sammis Reachers A arte constrói imagens do sentimento, tornando-o acessí-
vel à contemplação e meditação.
A Natureza é uma festa da arte pela arte.
Yi-Fu Tuan
Vladimir Nabokov

19
A arte é o único domínio em que a onipotência das ideias O artista tem um estranho poder sobre a vida. Cria sobre o
se manteve até nossos dias. Só na arte ainda acontece que nada e isso lhe dá sensação de eternidade.
um homem, atormentado por desejos, realize algo que se Marcello Grassmann
assemelhe a uma satisfação; e, graças à ilusão artística,
este jogo produz os mesmos efeitos afetivos, como se fos- Os grandes artistas não têm pátria.
se algo real. É com razão que se fala da magia da arte e Alfred de Musset
que o artista é comparado a um mágico. Só o artista pode fazer um mundo novo.
Freud Mário Carcia-Guillén
Criar para tornar mais intensa a vida: eis a função da arte. O artista não é um tipo diferente de pessoa, mas toda pes-
Luís Franco soa é um tipo diferente de artista.
A arte é um sonho em que não há o que sonhar e em que Eric Gill
tudo é real, até o sonho. Arte nacional não existe, nem ciência nacional: a arte e a
Jean-Louis Barrault ciência, assim como todos os sublimes bens do espírito,
pertencem ao mundo inteiro e só podem prosperar com o
Enquanto a ciência tranquiliza, a arte perturba.
mútuo influxo de todos os contemporâneos, sempre res-
Georges Bracque
peitando tudo quanto o passado nos legou.
Não fica bem animar os artistas: os artistas verdadeiros, os Goethe
únicos de que necessitamos, não se deixarão desanimar
por nada – são aqueles que, como íamos dizendo, fincam O mundo do artista é o mundo da discussão vivaz e da
os pés na energia que têm, energia essa que diante dos compreensão.
obstáculos encolhe-se apenas para armar o salto. Esses Albert Camus
não têm nenhuma necessidade de ser animados. Orgulho-me de dizer isto: Jamais considerei a pintura co-
André Gide mo uma arte de mera recreação, de divertimento. O que
A arte nasce da dor, como a pérola. eu sempre quis, através do desenho e da cor – que são
minhas armas –, foi penetrar cada vez mais no conheci-
Monteiro Lobato
mento do mundo e dos seres humanos.
A arte é a ciência da beleza, assim como a matemática é a Pablo Picasso
arte da exatidão.
O caminho da arte conduz à nossa própria identidade.
Oscar Wilde
André Marteau
A arte é a mão direita da natureza. A natureza nos deu
Criar é unir.
vida, a arte nos tornou homens.
Teilhard de Chardin
Friedrich Von Schiller
A vida é a imitação de algo transcendental com o qual a Em certa medida, toda arte é uma abstração.
arte nos põe em contato. Henry Moore
Antonin Artaud Arte é habilidade, este é o sentido primeiro dessa palavra.
Toda arte é deformação. Não há precisão absoluta. Toda Eric Gill
arte é uma mudança da realidade. Em quase todas as tarefas relativas às formas há milhares
Fernando Botero de elementos que por vontade humana são forçados a
A arte é um modo de libertação. trabalhar em harmonia. Só pela arte se pode alcançar essa
harmonia.
Marcel Duchamp
Alvar Aalto
A arte não é espelho da vida, mas a sua essência.
A vida bate e estraçalha a alma e a arte nos lembra que
Lajos Egri
você tem uma.
Arte é trabalho livre. Se fossem livres, todos os outros tra- Stella Adler
balhos poderiam se abrir para a arte.
Não é possível estar dentro da civilização e fora da arte.
Sérgio Ferro
Ruy Barbosa
Na arte, sentir é compreender.
Na arte só uma coisa importa: aquilo que não se pode ex-
Guerra Junqueiro
plicar.
O artista é a própria arte. Georges Braque
José Antonio da Silva
Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes,
A beleza perece na vida, mas não na arte. a arte de viver.
Leonardo da Vinci Bertolt Brecht
20
Arte legítima é aquela que tem uma certa inevitabilidade: Eu não pinto a natureza. Eu sou a natureza.
só poderia ser feita naquele momento histórico, por uma Jackson Pollock
determinada pessoa, inspirada por uma visão de um mun-
A arte é um compêndio da natureza formado pela imagi-
do determinada.
nação.
Alexei Bueno
Eça de Queiroz
Religião e arte procedem da mesma raiz e são parentes
próximos. Economia e arte não se conhecem. A arte é a contemplação: é o prazer do espírito que pene-
tra a natureza e descobre que ela também tem uma alma.
Willa Cather
É a missão mais sublime do homem, pois é o exercício do
A arte é a expressão da sociedade em seu conjunto: cren- pensamento que busca compreender o universo, e fazer
ças, ideias que faz de si e do mundo. com que os outros o compreendam.
Georges Duby Auguste Rodin
A coisa mais bela que podemos experimentar é o mistério. A arte saiu da caverna e caminha em direção ao divino. É o
Essa é a fonte de toda a arte e ciência. deus que há em nós, a grande mola que propulsiona o ho-
Albert Einstein mem para a frente e para cima.
Olga Savary
O autor na sua obra, deve ser como Deus no universo, pre-
sente em toda a parte, mas não visível em nenhuma. A arte é a assinatura da civilização.
Gustave Flaubert Beverly Sills
A obra de arte pode ter um efeito moral, mas exigir uma As grandes obras de arte somente são grandes por serem
finalidade moral do artista é fazê-lo arruinar a sua obra. acessíveis e compreendidas por todos.
Goethe Leon Tolstoi
Não acredito na ideia de vanguarda, como não acredito Uma obra de arte é um ângulo visto através de um tempe-
em progresso na arte. Na ciência, essas ideias são aceitá- ramento.
veis, mas em arte o que vale é a obra encantar e provocar Émile Zola
admiração, ou não.
Os artistas se limitaram, em sua maioria, a expressar figu-
Ernst Hans Gombrich
rativamente a realidade; o que importa, no entanto, é
A arte é cúmplice do amor. Tire o amor e não haverá mais transformá-la.
arte. Nildo Viana
Remy de Gourmont
A crítica da arte não vem apenas para destruir suas ilusões
O objetivo central da arte é trabalhar em estreita colabo- e fazê-la viver sem ilusão, mas sim para que ela a supere e
ração com a religião e filosofia para ajudar o espírito abso- assim em seu lugar brote uma arte verdadeiramente signi-
luto, tendo que recorrer ao meio dos sentidos e da forma ficativa, ou seja, de qualidade, com significado humano
de intuição para essa finalidade. real.
Josef Rattner Nildo Viana
É incontestável que a arte deve conter valor social; como A arte é o triunfo sobre o caos.
poderoso meio de comunicação que é, deve ser dirigida e John Cheever
em termos compreensíveis à percepção da humanidade.
A arte é uma forma de crescimento para a liberdade, um
Rockwell Kent
caminho para a vida.
Na arte, a inspiração tem um toque de magia, porque é Fayga Ostrower
uma coisa absoluta, inexplicável. Não creio que venha de
Todas as artes procedem de Deus e devem ser considera-
fora pra dentro, de forças sobrenaturais. Suponho que
emerge do mais profundo "eu" da pessoa, do inconsciente das criações divinas.
individual, coletivo e cósmico. João Calvino
Clarice Lispector A arte é um trabalho de Deus junto com um artista; quan-
Uma obra de arte só é superior se for, ao mesmo tempo, to menos o artista fizer, melhor.
um símbolo e a expressão exata de uma realidade. André Gide
Guy de Maupassant A arte é dom de Deus e deve ser usada para Sua glória.
A arte de um povo é um reflexo autêntico de sua mentali- Henry Wordsworth Longfellow
dade. A arte existe porque Deus desejou a sua existência.
Jawaharlal Nehru Hans Rookmaaker

21
Sem autenticidade, sem educação, sem liberdade no seu Eu escolhi Bezalel, filho de Hur, da tribo de Judá, e o enchi
significado mais amplo – na relação consigo mesmo, com do Espírito de Deus, dando-lhe destreza, habilidade e ple-
as próprias ideias pré-concebidas, até mesmo com o pró- na capacidade artística para desenhar e executar trabalhos
prio povo e com a própria história – não se pode imaginar em ouro, prata e bronze, para talhar e esculpir pedras,
um artista verdadeiro; sem este ar não é possível respirar. para entalhar madeira e executar todo tipo de obra arte-
Ivan Turgueniev sanal.
Êxodo 31:2-5
Arte pra mim não é produto de mercado. Podem me cha-
mar de romântico. Arte pra mim é missão, vocação e festa. A arte é uma forma da atividade humana pela qual seres
Ariano Suassuna privilegiados podem comunicar a outros sensações e senti-
mentos que eles próprios experimentaram.
Uma coisa é ser capaz de pintar um quadro especial ou
Leon Tolstoi
esculpir uma estátua, produzindo, assim, objetos de bele-
za. Mas é muito mais glorioso esculpir e pintar a própria A arte deve ser um órgão moral da vida humana.
atmosfera e a maneira pela qual vemos o mundo. Influir Leon Tolstoi
na qualidade do dia, esta, sim, é a mais elevada das artes.
A literatura, a cultura e a arte não são um suplemento pa-
Thoureau
ra a alma, uma futilidade ou um monumento pomposo,
A verdadeira obra de arte não é mais que uma sombra da mas algo que nos apropriamos, que furtamos e que deve-
perfeição divina. ria estar à disposição de todos, desde a mais jovem idade
Michelangelo e ao longo do caminho, para que possam servir-se dela
quando quiserem, a fim de discernir o que não viam antes,
A arte não é o modo mais eficaz de mudar a realidade. A
dar sentido a suas vidas, simbolizar suas experiências.
política ou as metralhadoras têm efeito muito mais direto.
Michèle Petit
Mas a arte, às vezes, preserva a memória no momento em
que desejam apagá-la. A arte, mesmo a mais pessimista, é uma proposição de
Amos Gitaï felicidade.
Mário de Andrade
Algo anda mal na cultura de um país se os seus artistas,
em lugar de se proporem mudar o mundo e revolucionar a A essência de toda a arte bonita, de toda grande arte, é a
vida, se empenham em alcançar proteção e subsídios do gratitude.
governo. Nietzsche
Mario Vargas Llosa
A arte deve ser uma expressão de amor ou não é nada.
A arte é um jogo – e outras coisas. Mas sem jogo não há Marc Chagall
arte.
Lembro que uma noite, na sua casa da rua de Varennes,
Octavio Paz
em Paris, se discutia com ardor a natureza da arte. Repeti-
O homem que trabalha com as mãos é um trabalhador, o ram-se todas as definições de arte, enunciadas desde Pla-
que trabalha com as mãos e a cabeça é um artesão, mas o tão. Inventaram-se outras, que eram, como sempre, o fe-
homem que trabalha com as mãos, a cabeça e o coração é nômeno visto limitadamente através de um temperamen-
um artista. to. Fradique [de Morais] conservou-se algum tempo mu-
Robert Winter do, dardejando os olhos para o vago. Por fim, com essa
maneira lenta (que para os que incompletamente o co-
A maior parte dos artistas está numa missão. A questão é nheciam parecia professoral) murmurou, no silêncio defe-
se essa missão é bem executada. rente que se alargara: “A arte é o resumo da natureza fei-
Chimamanda Ngozi Adichie to pela imaginação”.
O princípio da liberdade de expressão deve sempre preva- Eça de Queiroz
lecer, mas isso não justifica que os artistas possam fazer _____________________________
qualquer coisa para chegar aos resultados que desejam.
Rodrigo Cássio Oliveira
Todas as artes aspiram a fundir-se na prece.
Henri Brémond
Do e-book Arte em
A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um 200 Frases (org. de
martelo para forjá-lo.
Sammis Reachers).
Maiakóvski

22
O Borracheiro
sos, aperta os parafusos. Calibra o pneu. Vê se está
tudo certo. E um novo cliente espera a vez de ser
atendido. Sua mulher me diz que o borracheiro tem
João A. de Souza Filho um problema de saúde: as constantes dores nas
costas não lhe permitem trabalhar direito; está pen-
sando em largar tudo. E chega em casa nervoso,
Para entender bem essa história, você tem de saber
agitado. Quando não briga com todo mundo,
o que faço. Sou pastor e vivo envol-
acomoda-se no seu silêncio interior
vido com pessoas, participan-
diante da tevê.
do da alegria e das triste-
zas delas. Quero dizer: Dias depois, como andava
sou um pastor à moda nas proximidades, resolvi
antiga, que cuida de visitar seu marido no local
pessoas, ouve seus de trabalho e ver o que
dramas, chora e ri se passava com o ho-
com elas, participa de mem. Que- ria observá-lo
aniversários, casamen- trabalhando, desparafu-
tos, funerais, batizados, sando rodas, consertando...
enfim, um pastor. Por isso Gosto de ver as pessoas lidando
essa história começa de maneira em suas profissões. A habilidade do
casual, corriqueira. Não existe uma trama marceneiro em transformar um pedaço de
preparada ardilosamente como fazem os escritores madeira, do ferreiro, do pintor, do advogado ao te-
quando querem relatar um conto, um romance, ou lefone...
uma história qualquer. Não estou para Edgard Alan O carro levantado, meio ladeado sobre o macaco
Poe que maquinava seus mistérios, nem para Ma- hidráulico, dizia tudo. Ali era a borracharia. Fiquei na
chado de Assis ou Érico Veríssimo, relatando dra- calçada, apenas observando. Enquanto estou ali,
mas e sagas de família; nem ainda pretendo ser co- pronto para entrar na oficina e conversar com o
mo os escritores modernos que planejam ardilosa- borracheiro, um velho aparece ao meu lado e enta-
mente seus contos. Escrevo apenas o que aconte- bula uma conversa. Nem vi de onde apareceu. Des-
ceu, e como disse, de maneira casual! confiei dele, pois dona Celma, mulher do borrachei-
E foi dentro dessa rotina diária de atender e ouvir as ro, quando conversou comigo levantou suspeitas
pessoas que Celma, estava ali, sentada diante de sobre o morador da casa ao lado da borracharia.
mim, falando de seu marido. Conforme seu relato, Seria esse homem? Decido averiguar, e pergunto:
ele precisava ser salvo e curado. Enquanto falava
percebi que ela desconhecia completamente o sen- – É você que mora na casa ao lado, aquela do por-
tido do que é ser salvo – para ela era uma questão tão de ferro?
de frequentar a igreja. Desconhecia também o que – Não, responde o cidadão.
se passava no mundo espiritual. Com as mãos entre-
Bisbilhoteiro, dou alguns passos e resolvo espiar
laçadas, apertava os dedos uns nos outros, e vez
pela fechadura do portão. Precisava ver a casa ao
que outra esfregava uma unha na outra; imagino
lado, pois Celma disse umas coisas sobre o morador
que todo seu nervosismo se concentrasse na palma
dali, levantou suspeitas e a gente fica tomado de
das mãos, visto que não parou de mexer os dedos
curiosidade. O que ela me disse fez minha mente
um só momento enquanto contava seu dilema. Para
imaginar a existência de um mundo tenebroso e
ela, o que estava me relatando acontecia com tanta
sinistro, com personagens invisíveis, usando o anti-
gente, mas no seu caso, era diferente.
go casarão como território. Imagino que dali par-
Seu marido vivia com constantes dores nas costas tem ordens a seres misteriosos para que executem
que o impediam de trabalhar, enquanto precisava os pedidos que noite e dia chegam pelo ar; moder-
de saúde e de boa forma física para abaixar e se le- namente, por telefone. Ali não se ouvem tambores
vantar, erguer peso e movimentar pneus. Ela logo nem velas são acesas, mas, imaginei, o sujeito que
me deu o endereço onde ele trabalhava. Trinta e consegui enxergar - colocando um olho só pela fe-
oito anos com a borracharia no mesmo prédio! Tra- chadura do portão e que aparecia minúsculo no fun-
balho duro; o indivíduo se abaixa e se levanta o dia do do pátio - assumia ares de bruxo, sem aquela ca-
todo! Põe macaco, tira macaco! Afrouxa os parafu- pa e chapéu preto tradicional. Estava todo de bran-
23
co. Agora não era imaginação: era real. Havia um Percebi que me examinava da cabeça aos pés; fiz de
homem de branco no pátio. conta que não notei e por algum momento não lhe
O velho que seguira comigo sem eu perceber, deu dirigi a palavra. Fiquei ali imaginando os portugue-
ses embarcando em galés sujas, sendo despejados
sua opinião:
pela Coroa ao longo da costa brasileira. Eles chega-
– Ele nunca usa roupa escura. É uma dessas pessoas ram aqui, rejeitados pela Coroa Real. Lançados nos
que estão sempre alegres e sorridentes, mas que porões fétidos dos veleiros cujas velas estufavam
nunca está em casa quando coisas ruins acontecem ao sabor do vento tropical, esses portugueses açori-
nas casas ao lado. Aparece todos os anos de carro anos foram plantados aqui, como se planta um pé
novo. de milho no fundo do quintal. Planta-se, colhe-se o
Dizem que rouba um carro, utiliza-o o ano todo e, fruto e depois o pé de milho é arrancado, queima-
quando expira o licenciamento, retira os bancos, as do, ou deixado para adubo sobre a terra. O governo
rodas e o motor, vende tudo e joga a carcaça no rio. português precisava ocupar o Novo Mundo, e abriu
Estou apenas repetindo o que se ouve por aí. nas praias brasileiras as portas das prisões, lançan-
do sua gente na terra desconhecida. Aqui os plan-
Franzi o cenho, dando a entender que não estava tou, usou e os abandonou! Mas os portugueses fo-
entendendo o que ele queria dizer com seu comen- ram valentes, pensei.
tário, continuei a olhar para dentro do portão, e
sem me virar para ele, perguntei: Parei minha reflexão, e dando-me conta de que o
velho estava ainda ao meu lado, perguntei:
– Como anda a vida nesse bairro?
– Mas o que houve com a família que morava nessa
Ele também sem olhar para mim, olhos fixos no casa? Você falou em maldição? Dessa vez me enca-
chão, respondeu: rando nos olhos, rosto enrugado, respondeu:
– A maioria da população daqui mudou para os no- – Ninguém sabe direito. Era uma família boa, não
vos bairros da cidade. Esse bairro está se deterio- muito rica, pois para morar nesse ponto da cidade,
rando e a população que aqui permanece está mor- próximo ao porto, deveria ser algum comerciante. E
rendo com ele. É só gente velha, concluiu. continuou: - Nós os portugueses - e falava com
A antiga casa em cuja garagem funcionava a borra- aquele jeito peculiar com chiado e tudo - desbrava-
charia, construída em estilo açoriano, com a pintura mos essa terra, detivemos as águas do rio erguendo
desbotada, tem nos pequenos detalhes da fachada o porto, criamos indústrias, cultivamos a terra e ho-
a pompa da década de 1930. Logo acima das janelas je tudo o que resta são as carcaças dos edifícios que
aquele rendado entrelaçado de flores e fitas, feitos edificamos.
em cimento que os portugueses pintavam de outra E ia desabafando, dizendo que pelo porto que er-
cor para realçar. Mas havia também decorações que gueram chegaram italianos, alemães e polacos inva-
nada têm a ver com a arquitetura portuguesa. Nos dindo o comércio local... Fez uma pau- sa com a voz.
cantos da casa pequenas esculturas de mini Atlas Aproveitei para interrompê-lo, e antes que come-
segurando o globo nas costas – neste caso, imagi- çasse a falar mal dessa gente, indaguei se chegara a
nativamente o peso do telhado. Junto ao telhado conhecer os antigos moradores da casa.
vestígios dos gárgulas de boca aberta, olhando para
cima, por onde entrava a água da chuva que escor- Diante da interrupção, seus olhos brilharam. Era co-
ria pelos telhados. Não eram feios; eram figuras mo se uma faísca fosse acesa em sua memória; co-
com asas abertas, como as do colibri que se man- mo se sua alma vislumbrasse naquele momento a
tém no ar; as bocas escancaradas, o que me levou a manhã da ressurreição. Eu achava que ele era velho,
duvidar da presença portuguesa na arquitetura. Só mas não parecia tão velho assim quando se olhava
que a calha de água havia muito desaparecera. Ago- nos olhos dele, quem sabe a vida lhe havia sido in-
ra só o vestígio de uma época dourada. Quem cons- grata. Seu rosto de açoriano gasto pelo tempo,
truiu a casa tinha bom gos- to. cheio de rugas, esboçou um sorriso nada tímido e
me disse:
– Mas por que a propriedade nunca mais foi habita-
da por seus donos?, pergunto curioso. – Os Souza!
– Maldição! Maldição de português é pior que de Mas depois de pigarrear, acrescentou:
judeu praticante da cabala, atravessa gerações; é
assim que se dizia nos Açores, respondeu o homem.
24
– Nessa casa morou primeiro a família do Felisbino Ninguém sabe o que há por trás delas. Assim é o
de Souza; depois a família se misturou com os Silva desdobramento das maldições! Aparecem no próxi-
e vieram os Garcia e os Santos... mo cenário da vida. Em algum descendente!
Interrompeu o que dizia, abaixando a cabeça como Ansioso por falar, não se conteve: - Não sei muita
num ato solene de profundo respeito, e continuou: - coisa meu filho, mas quando a maldição veio sobre
mas aí a maldição pegou. Imagine - falou em voz esses conterrâneos, até o bairro envelheceu. Esse
baixa inclinando a cabeça para me falar baixinho bairro era próspero nos anos 30 a 60. O bonde gaio-
como quem conta um segredo - os Souza dos Aço- la passa- va aqui em frente, sacolejando passageiros
res, os Silva da Madeira, os Santos do Alentejo e os e despejando os trabalhado- res para as grandes
Garcia da fronteira com a Espanha fizeram essa casa empresas. A faísca que saía do cabo que prendia o
estremecer. bonde ao fio elétrico iluminava as noites e madruga-
Volto a olhar para a casa e, sinto no ar que o mora- das. As grandes fá- bricas instalaram-se aqui. A Ren-
dor que dizem ser um invasor ali há cinco anos, que ner, a Wallig, a Casa Genta, os Moinhos Riogranden-
nunca pôde ser tirado da casa, descobriu no antigo se, a Neuguebauer...
sobrado o ambiente perfeito para suas práticas es- Fez uma pausa e mudou de assunto:
pirituais. Vestido de branco - fui informado - recebe – Pelo que fiquei sabendo os Souza casaram-se com
visitas só à noite e, durante o dia pouco aparece, e os Silva do outro quarteirão. Estes, com os Santos
quando o faz, some como a neblina ao calor do sol. do quarteirão mais ao sul; e cada uma dessas famí-
Por uma fresta vejo um homem no pátio, encoberto lias misturou-se com os Garcia.
pelo portão de grade - estilo português também -
– Português com português gera português, brin-
em que alguém colocou umas chapas de ferro so-
quei!
bre os ferros artisticamente trabalhados, levando
privacidade ao local. É um desses portões cobiçados Ele sorriu e acrescentou: - Também para cá vieram
por arquitetos à cata de prédios antigos demolidos. russos, poloneses e alemães.
Serve para decorar os modernos jardins de hoje! Insisti que me respondesse como começou a maldi-
Diante de meu silêncio, o português toca em meu ção, e ele com muita desenvoltura, falou:
ombro e diz: – Pela traição. Maldição sem traição não é maldição.
– É interessante observar que quando sai de casa, o Toda maldição traz consigo enfermidades, pobreza,
morador dela está sempre de terno e gravata; e os moléstias e tem que ter uma dose de traição! E hou-
vidros escuros do carro o escondem atrás do volan- ve casos de traição entre eles. Foram tantos os ca-
te. Dizem que têm três mulheres morando com ele sos em que tios e sobrinhos engalfinharam-se em
aí dentro! brigas; os primos traíam uns aos outros nos negó-
Com um ouvido escutei o que o homem dizia, en- cios; concunhados tinham o maior prazer de dormir
quanto olhava novamente pela fresta. O morador com a esposa do outro, sem levantar suspeitas. Até
da casa desaparecera por trás dos arbustos planta- os irmãos brigavam e se matavam. Quando tudo
dos no pátio. Um enorme coqueiro erguia-se impo- veio à tona, a casa estremeceu. Os velhos morreram
nente como guardião do quintal. de desgosto. Três crimes passionais acabaram por
terminar a família. Os portugueses amam de verda-
– Eu só conheci os moradores daqui a partir dos
de, mas quando entra a perfídia, com ela vem o
anos 50 ou 60, depois da grande enchente, falou o
ódio e as mortes.
velho.
Ouvindo tudo isso, dei-me conta de que estava ali
Referia-se à grande cheia de 1941 que alagou a cida-
tentando encontrar o marido de dona Celma. Que-
de. E continuou com suas considerações:
ria conversar com ele, investigar as razões das do-
– Já havia gente nesse bairro desde 1890. Meus pais res de sua coluna, orar por ele, e acabei por entrar
falavam dos moradores que aqui chegaram. Eles já numa conversa sobre maldições. Achei interessante
diziam que a maldição alcançou todo mundo. a conversa com o português, que esqueci que viera
E desandou a falar de crimes, traições e mentiras para falar com o homem que trabalhava na borra-
entre essas famílias. charia.
– É como nos grandes teatros – avisou, - abrem-se O português não desgrudou e me perguntou: - O
as cortinas, e depois outras, e outras, mas ainda fi- senhor crê em maldição?
cam cortinas mais atrás que haverão de ser abertas. A pergunta dele tinha algum sentido. Assenti positi-

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vamente com a cabeça. entrada, ao lado, dois bancos dianteiros de fusca,
também rasgados, serviam de sala de espera.
O homem com quem eu conversava tinha
Sobre o balcão, em meio às ferramentas, uma cuia
informações que me poderiam ser úteis, pensei.
de chimarrão e uma garrafa térmica que já
Conversar sobre genealogias, famílias, mal-
perdera a cor de tão suja; o homem gostava de
dições, etc. é bem interessante. O pior é quando
um bom mate. Hoje a maioria das borracharias é
se descobre na árvore genealógica, não um
limpa e raramente deixam vestígios ou sujei- ra.
príncipe, mas um bandido, um assassino! Mas eu
Mas essa era como as de antigamente; não se
tinha de falar com o borracheiro, afinal, sua
renovara.
esposa andava preocupada com ele. O homem fez
menção de seguir adiante e nos despedimos. Ele – Ando mal da coluna, resmungou entre os
colocou no bolso da minha camisa um pedacinho dentes.
de papel rabiscado com seu primeiro nome e Apontou-me um banquinho de madeira onde me
telefone. sentei. Ele passou a contar das dores nas costas,
– Se precisar, é só ligar, disse. – Estranho, pensei. do cansaço e da clientela que não aparecia:
Nem falei para ele quem sou. O tráfego fluía – Antes os pneus tinham câmara de ar; hoje a
sereno em direção à ponte. Parados ali, con- maioria dos carros roda com pneus sem câmara e
versando, nem me dei conta do avançado da hora. isso traz menos freguês. Mas ainda aparecem por
Um Monza estava meio ladeado suspendido pelo aqui carros com pneus de câmara de ar,
macaco hidráulico; agachado ao seu lado, um especialmente carros mais antigos. Há sempre um
senhor, não muito idoso, arfava tentando prego rasgando os pneus, mesmo os sem câmara.
desaparafusar a roda do carro. Minha atenção foi Não sei o que mais me preocupa: a falta de
atraída pelo barulho de uma peça de metal que clientes ou as dores na coluna. Vivo tomando
tiniu ao cair no chão. Era a chave estrela que remédios para as dores e antiinflamatórios.
usava. Ainda não tinha um parafusador elétrico! Tentei desviar do assunto. Se lhe dissesse que
Era no muque mesmo! Ali estava o homem com também tive sérios problemas na coluna a ponto
quem devia conversar. Mas como me apresen- de me arrastar pelo chão durante a noite, ele iria
tar? contar seu rosário de enfermidades. Existem
O borracheiro tinha uns sessenta anos, mas pessoas que se deleitam em desfilar seu rosário de
parecia ter mais idade, vestido com o macacão de dores e mal-estar. Basta dar cordas à con- versa;
trabalho, sujo com a poeira preta que solta dos um assunto puxa o outro. Eu queria ir direto ao
pneus. O cliente do Monza pagou o conserto, e motivo de minha presença ali.
saiu. Antes que se assustasse com alguém – Você crê que Deus pode lhe curar?, arrisquei,
entrando em sua oficina a pé, apresentei-me: fazendo uma per- gunta tola, porque, sempre
– Sua esposa pediu que eu viesse aqui conversar imagino que as pessoas creiam no poder de Deus!
com você. Ela está preocupada com suas dores Ele assentiu. Falei sobre Deus, Jesus, sua morte na
nas costas e com seu estado geral de saúde. Vim cruz, Isaías 53, as dores levadas sobre Jesus na
aqui para orar por você. cruz, o perdão de nossos pecados e, logo orei por
ele. Às vezes nós os pastores adaptamo-nos à
– Você é medico?, perguntou o borracheiro.
rotina de um mé- dico do SUS: não gastamos nem
Ele me olhou de forma estranha quando lhe falei cinco minutos com o paciente! Mas acho que
que era pastor. Orar por uma pessoa é um bom demorei meia hora falando da vida abundante que
começo de diálogo; afinal, raramente alguém há em Jesus.
rejeita uma oração!
Quando estava terminando de orar, observei pelo
As mãos sujas de tanto manusear pneus canto do olho o homem da casa ao lado nos
apertaram com vigor as minhas. Desculpou-se observando junto à porta. Senti arrepios perto. A
pela sujeira, puxou a cadeira de praia com algu- presença dele causou-me estranheza. Não era o
mas tiras rotas e se sentou. Quem sabe na cadeira mesmo homem que eu vira pela fresta da
em que sentava estava o mal de suas costas? Na
26
fechadura. Estava bem trajado, jeans e paletó pelo tudo é calmo. Não há vizinhos por perto, a não ser
corpo. Isso me intrigou, afinal, só sinto arrepios bares e casas de prostituição; mas, já fui
com demônios por perto. A presença dele causou informado de que a noite acon- tecem coisas
-me estranheza. Não era o mesmo homem que eu estranhas nessa casa. Chegam carrões, mulheres e
vira pela fresta da fechadura. Estava bem trajado, até a po- lícia. Às vezes a polícia dá umas batidas
jeans e paletó branco; uma corrente de ouro como se estivesse à cata de algu- ma coisa. Mas
grossa aparecia sob o colarinho aberto da camisa acho que é só para mostrar serviço. Desconfio que
mostrando um peito cabeludo. Duas pulseiras de o sujeito mexa com coisa da pesada! Alguém me
ouro ornavam- lhe as mãos. Um anel grosso cingia informou que ele usa carros roubados e quando
seu dedo ao lado de uma aliança. Fomos está na hora de fazer o licenciamento, joga o carro
apresentados. no rio e aparece com outro, devidamente
licenciado.
– Este é o pastor – falou o borracheiro. Veio orar
por mim. Era a segunda pessoa que me dizia a mesma coisa,
pensei. Fofoca de vizinho.
– Meu nome é Paulo. Muito prazer. Moro na casa
ao lado. Era fim de tarde. Terça-feira. Noite do culto de
oração. O vento primaveril soprava do Norte
E da mesma forma como apareceu, sem qualquer
anunciando chuva. O ruído da cidade dizia que era
explicação virou as costas, saiu e entrou pelo
hora do pique. Despedi-me do borracheiro, dei-lhe
portão da casa dele.
meu cartão com o número do telefone e voltei
Puxei assunto com o borracheiro. - Sujeito para casa.
estranho, parecia um fantasma surgido do nada.
O borracheiro foi até à porta certificar-se de que * * * * * *
Paulo não estives- se nos ouvindo e falou:
Este texto é na verdade o primeiro capítulo do
– Faz cinco anos que ele mora na casa ao lado. romance O Complô (Porto Alegre: Editora Faith,
Dizem que é um invasor. Parece que ninguém 2004). O romance foi disponibilizado
reclamou na justiça o direito de propriedade dessa gratuitamente no site da editora, e você pode
velha casa. Ali morou uma família de portugueses - baixar o arquivo CLICANDO AQUI. Baixe também
que desgraça caiu sobre a família, suspirou. outro livro do autor, a novela Ratos de Igreja,
Conheci a família em processo de de- gradação. CLICANDO AQUI.
Depois que se mataram uns aos outros, a casa
ficou fechada durante alguns anos, até que um
sujeito usou-a como bordel. Para ter ideia – disse-
João A. de Souza Filho é escritor, historiador e
me – estou neste ponto desde que o último bonde
ministro do evangelho.
passou por aqui, e lá se vão os anos! Aí veio esse
sujeito misterioso morar na casa. Durante o dia

O pastor Ailton, de Anápolis - GO, é missionário


junto com sua esposa no Ministério Oásis, onde
trabalham no aconselhamento de pastores e mis-
sionários. Ailton é também um excelente pintor, e
comercializa sua produção no objetivo de manter
seu trabalho para o Reino.
Página no Facebook:
https://www.facebook.com/notlieart/
Instagram: @notlie
27
SEI QUE ESTÁS PRESENTE
NO PRINCÍPIO
José Julio de Azevedo
José Brissos-Lino (Portugal)
Ao acordar sei que estás presente
Quando vejo o rosto das crianças “In Principio erat Verbum.”
Seu que estás presente. (Evangelho S. João, 1:1, em Latim)
Sei que estás presente no alvorecer
Todas as coisas acordam
E a cada minuto deste dia. no princípio
Posso estar com o coração radiante de alegria mas a primeira foi o Verbo
E sei que posso agradecer-te. uma expressão de vontade
Posso estar calado e entristecido um propósito puxado
à realidade
E sei que posso partilhar contigo minhas dúvidas
já nada será como aquele silêncio
E lamentos, porque sei que estás presente. basáltico
o Vazio anterior
Ao caminhar sob o sol deste dia agora há uma Voz que chama as coisas
Sei que estás presente. à existência
Posso falar contigo de coração aberto um sopro de vida
Porque sei que me ouves quando falo, um começar
Mesmo quando apenas penso ou murmuro. uma luz infinita
que me atinge.
Ao entardecer, em prece, junto à janela
Sob bilhões de estrelas que criastes
Sua onipotência ampara
E faz pulsar meu coração.
SOU CRISTÃO
Sob este teu altar formoso e cintilante Jérnerson Alves
Posso louvar Teu Nome com reverencia Sou da galera de Chesterton, Creio que a vida da gente
E dormir seguro. Dulce, Tereza, Letícia, É mais que ganhar dinheiro,
De Dickens, C. S. Lewis, Que ninguém é acidente,
Lídia, Perpétua, Patrícia, Pois Deus nos amou primeiro.
De Jerônimo e Agostinho, Neste globo, em todo caso,
INSPIRAÇÃO De Crisóstomo, de Longuinho, Não estamos por acaso,
Dante, Gustavo Corção, Mas temos uma missão:
Big Johnny
Camões, Vieira e Aquino. De semear o amor
Desde o tempo de menino, E em todo lugar que for
Toda e qualquer inspiração
Eu confesso: sou cristão. Ser exemplo de cristão.
Até a que não tenho
Agradeço a Jesus Creio no Deus Criador, Cresci ouvindo sermão
Mestre do engenho. Em Jesus Cristo, Seu Filho, Da boca de pregadores,
No Espírito Consolador No deleite da unção
E se por Ele não for concedido Que nos mostra o Santo trilho. De inspirados louvores,
O talento que a mim não for merecido Em Cristo ressuscitado, Li a Bíblia sem cessar,
Agradeço mesmo assim Na remissão do pecado, Ao dormir e acordar
Pelo mesmo motivo. Creio na ressurreição Sempre fiz minha oração.
E creio na vida eterna Vou vivendo pela fé...
Versos mil dormem em minh’alma No Céu onde Deus governa. Não sou perfeito, Deus é.
Eu professo: sou cristão. Eu sou somente um cristão.
Aguardando o momento
De serem despertados
Pelo toque do Unigênito.
28
Viseu Nostromo passagem do ano. Deste ano mau. Noventa textos,
provas, indícios. Agora órfãos. Precisamos retomar
seu projeto. Ele merece, disse Dario. Nós outros
Sammis Reachers
dois abaixamos a cabeça em concordância.
De longe o mais simpático e afável dentre nós. Sua Éramos últimos, (sub?/trans?)cristãos de meia idade
passagem foi um baque, um estorvo em em trânsito ou em luta entre o nomina-
nossas lides. lismo (morte) e uma volta à fé
No funeral, um de nós lem- atuante. Compartilhadores
brou-se de seu projeto, de piadas e versículos, fri-
leit motiv final de sua volidades e insânia. Em
passionalidade, seu dias amargos e vendidos,
“Projeto Melquisede- pornografia. Agora preci-
que”: a cada dia do ano sávamos descobrir sua
ele se propusera publicar senha. A senha de um cien-
nas redes uma lenda, uma len- tista e poeta e coligidor de bro-
da que remetesse a algo da revelação mélias. Tentamos datas importan-
judaico-cristã que supostamente jazia “perdida” na tes, depois o básico ('senha123'), depois nomes de
cosmovisão de cada povo - de algum povo dos 12 almas próximas. Sem recurso, ensaiamos senhas
mil que o mundo habitam. Só mesmo um antropólo- parecidas com as nossas: w@rlord1978, catskills67,
go. Só mesmo um missionário... Tudo estava em darkwatt#rs. Nada. Dias passando.
seus arquivos, ou melhor, “na nuvem”, como ele Um dia, lanchando na urbe cinza quente, exausto
dizia. E era bonito olhar o celular pela manhã e ver do inferno que são os outros, vi uma flor cair de
aquilo, enquanto ia para o trabalho. Pequenos rela- uma árvore do calçamento. Rodopiou lenta, alheia,
tos que refundavam sentido em minha vida marás- acima do simulacro cinza. Lembrei de meu amigo e
mica, miasmática, miserável. sua alma lenta e flor.
Anos de pesquisa. No escritório branco gelo confirmei o intuído lá no
Faltavam três meses para a quebra calendária, a cinza: "primavera" era a senha do homem melhor
que nós.

L O missionário Renato Magnus


trabalha há anos em comunida-
U des do sertão nordestino. Atual-
mente está baseado em Santa-
M na do Matos—RN.

I Renato também pinta telas, que


são comercializadas para auxili-
N ar na manutenção da obra.
Você pode conhecer mais so-
A bre o trabalho missionário de
Renato e sua família, bem co-
R mo formas de colaborar, em
seu site:
E
www.sertaovida.com.br
S
29
O dia e este, Da opiniao alheia
Que tu me deste. Mas serao como perfume
Vou fruir cada hora que passa Que une,
Como gostoso sorvete que se gasta Que abençoa,
Mas lega um sabor Como peça que torna a maquina da vida uma en-
Que desce grenagem boa.
E a vida floresce.
E tudo porque eu sei
Que em mim habita o teu Espírito Santo
Se algo doer,
Que me ama tanto
Na alma
Que por ele nutrido serei.
Ou no peito ou no pe
E serei asas que fazem o outro voar
Sera com fe,
Sem desanimar,
Para ter calma,
Com um sopro que fortalece,
Que vou viver.
Como flor que aparece
Vou o ontem agradecer, Mesmo onde o deserto e tao grande
Vou o hoje celebrar. que parece que nao vai terminar.
Mais: vou te entregar
Cada instante
Tudo o que vai acontecer.
Sera uma prece
De gratidao
O que desejas sentirei,
De quem nao merece
No que escreves meditarei,
Sequer o pao
O que cantas entoarei,
Que sera comido como presente,
Como queres que eu seja e que serei.
Como dadiva.
Farei de cada atividade um compromisso, O trabalho, leve ou pesado,
De cada atividade farei mais que um serviço: Sera pensado
Sera um hino dedicado a Cristo, Como suor
Para que ele viva atraves de mim, submisso. Que verte
Para o chao
O tempo como se fosse dos ceus E tambem sobe a Ti como oraçao
Vai por minhas maos santas Contente
Se desdobrar, Para que cada hora esteja avida
Minhas palavras serao muitas De mais comunhao
Mas apenas as necessarias: Com os conhecidos,
As que tomam pela mao a pessoa Com os desconhecidos,
Que como criança recebe o Reino de Deus. Com os que que vivem a esmo,
Eu mesmo serei mentoreado por ele Com os que reconhecem o dia como teu dom,
Como quem e dele, Oh nosso Autor
Como quem vive por causa dele. E de toda Criaçao.
As palavras da minha boca (Salmo 118.24)
Nao repetirao a coisa louca [www.prazerdapalavra.com.br ]
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Jardim dos Clássicos
Parte da colossal A Comédia Humana, o projeto literário balzaquiano que abarca qua-
se 150 obras, entre concluídas e inconclusas, este belo conto (ou novela) Jesus Cristo em
Flandres causou alguma polêmica quando de sua publicação, notadamente pelo caráter
algo anticlerical do conto e de seu autor, o católico Honoré de Balzac (1799 – 1850).

Jesus Cristo em Flandres mais doutos ou mais ínfimos. Apenas, na im-


possibilidade de harmonizar todas as versoes,
Honoré de Balzac eis o fato despojado talvez de sua ingenuidade
romanesca impossível de reproduzir, mas com
NUMA EPOCA um tanto indeterminada da suas ousadias que a historia reprova, com sua
historia de Brabançon, as relaçoes entre a ilha moralidade que a religiao aprova, seu fantasti-
de Cadzant e a costa de Flandres eram manti- co, flor da imaginaçao, seu sentido oculto do
das por uma barca destinada a travessia dos qual pode se apropriar o sabio. A cada um seu
viajantes. Capital da ilha, Midelbourg, mais tar- pasto e o cuidado de separar o joio do trigo.
de tao celebre nos anais do protestantismo, so- A barca que servia para transportar os passa-
mava nao mais de duzentas ou trezentas al- geiros da ilha de Cadzant a Ostende ia deixar a
mas. A rica Ostende era um porto desconheci- margem. Antes de soltar a corrente de ferro
do, assentado sobre um povoado parcamente que prendia sua chalupa a urna pedra do pe-
habitado por alguns pescadores, pobres co- queno píer no qual se embarcava, o chefe tocou
merciantes e corsarios impunes. O burgo de diversas vezes a trompa, para chamar os retar-
Ostende, entretanto, composto por umas vinte datarios, pois aquela viagem seria a ultima. A
casas e trezentas cabanas, casebres ou choupa- noite se aproximava, os ultimos raios do sol
nas construídos com despojos de navios nau- poente permitiam apenas vislumbrar a costa
fragados, contava com um governador, uma de Flandres e distinguir na ilha os passageiros
milícia, um patíbulo, um convento, um burgo- atrasados, vagando ao longo dos muros em ter-
mestre, enfim, todos os organismos de uma ci- ra, cujos campos estavam cercados, ou entre os
vilizaçao adiantada. Quem reinava entao em altos juncos dos pantanos. A barca estava
Brabant, em Flandres, na Belgica? Sobre esse cheia, um grito se ouviu:
ponto, a tradiçao emudece. Confessamos? Esta — O que esta esperando? Vamos embora.
historia ressente-se estranhamente da impre- Naquele momento, um homem apareceu a al-
cisao, da incerteza, do maravilhoso que os ora- guns passos do píer; o piloto, que nao o ouvira
dores favoritos dos saraus flamengos tantas chegar, nem andar, ficou muito surpreso ao ve-
vezes se divertiram disseminando atraves de lo. Aquele viajante parecia se ter erguido de
suas glosas tao diversas em poesia quanto Con- repente da terra, como um campones que se
traditorias em detalhes. Contada atraves das tivesse deitado num campo a espera da hora
eras, repetida de lar em lar pelas avos, pelos da partida e que a trombeta tivesse acordado.
contadores do dia e da noite, esta cronica rece- Seria um ladrao? Seria algum homem da alfan-
beu de cada seculo um matiz diferente. Seme- dega ou da polícia? Quando ele chegou ao píer
lhante a monumentos arranjados conforme o no qual estava amarrada abarca, sete pessoas
capricho das arquiteturas de cada epoca, mas que se mantinham de pe no fundo da chalupa
cujas massas negras e rudes agradam aos poe- apressaram-se a sentar nos bancos, a fim de
tas, faria o desespero dos críticos, dos esmiuça- içarem so eles e nao deixarem o estranho se
dores de palavras, fatos e datas. O narrador meter com elas. Foi um pensamento instintivo
acredita nela, como acreditaram todas as men- e rapido, um desses pensamentos de aristocra-
tes supersticiosas de Flandres, sem que fossem cia que vem a mente de gente rica. Quatro da-
31
queles personagens pertenciam a mais alta no- Ostende, recuou para dar lugar suficiente
breza de Flandres. Primeiro um jovem cavalei- ao recem-chegado. Seu movimento nao re-
ro, acompanhado de dois belos galgos e usando velou nem servilismo nem desdem. Foi um
sobre os cabelos compridos um gorro bordado daqueles testemunhos de gentileza atraves
de pedrarias, fazia retinir suas esporas doura- dos quais as pessoas pobres, habituadas a
das e, com impertinencia, frisava a intervalos
conhecer o preço de um favor e as delícias
seu bigode, lançando um olhar desdenhoso ao
da fraternidade, revelam a franqueza e a na-
resto do cortejo. Uma altiva senhorita tinha um
falcao sobre o punho e so falava com sua mae turalidade de suas almas, tao ingenuas na
ou a um eclesiastico das altas esferas, sem du- expressao de suas qualidades e de seus de-
vida seu parente. Aquelas pessoas faziam mui- feitos; em consequencia, o estranho agrade-
to barulho e conversavam entre si, como se es- ceu-lhes com um gesto cheio de nobreza.
tivessem sozinhas na barca. Entretanto, junto Entao sentou-se ele entre essa jovem mae e
delas estava um homem muito importante na o velho soldado. Atras dele estavam um
regiao, um gordo burgues de Bruges envolto campones e seu filho, com 10 anos de ida-
num grande casaco. Seu criado, armado ate os de. Uma mulher pobre, com uma sacola
dentes, colocara perto dele dois sacos cheios quase vazia, velha e enrugada, em farrapos,
de dinheiro. Ao lado deles havia ainda um cien- imagem de infelicidade e indiferença, jazia
tista, doutor na universidade de Louvain, lade- na ponta da barca, acocorada sobre um
ado por seu paroco. Essas pessoas, que despre-
grande maço de cordas. Um dos remadores,
zavam umas as outras, estavam separadas da
velho marinheiro que a conhecera bela e
parte da frente pelo banco dos remadores.
rica, deixara-a entrar, aplicando o admiravel
Quando o passageiro em atraso pos o pe na
dito popular: pelo amor de Deus.
barca, lançou um rapido olhar para a popa,
nao viu lugar, e foi pedir um aos que esta- — Muito obrigada, Thomas — dissera a ve-
vam na frente do barco. Tratava-se de gente lha —, rezarei por voce essa noite dois pais-
nossos e duas ave-marias.
pobre. Pelo aspecto do homem de cabeça
O chefe tocou a trompa mais uma vez, olhou
descoberta, cujo casaco e calçoes em tecido
o campo emudecido, atirou a corrente no
marrom, cuja manta em tela de linho engo-
mada nao tinham qualquer enfeite, que nao barco, correu pela beira ate o leme, segurou
a barra, continuou de pe; entao, depois de
trazia na mao gorro ou chapeu, sem bolsa
contemplar o ceu, disse numa voz forte a
ou espada na cintura, todos o tomaram por
seus remadores, quando estavam ao mar:
um burgomestre seguro de sua autoridade,
burgomestre bom e terno como alguns da- - Remem, remem com força, e vamos embo-
queles velhos flamengos cuja natureza e ra! Esse danado desse mar nao esta com
boa cara! Sinto o marulho no movimento do
temperamento ingenuos nos foram tao bem
leme e a tempestade em minhas feridas.
conservados pelos pintores do país. Os po-
Tais palavras, ditas em termos de marinha,
bres passageiros acolheram entao o desco-
nhecido com demonstraçoes respeitosas especie de língua inteligível apenas Para ou-
vidos acostumados ao barulho das ondas,
que provocaram zombarias sussurradas en-
imprimiram aos remos um movimento ace-
tre a gente da popa. Um velho soldado, ho-
lerado, mas sempre cadenciado; movimen-
mem triste e cansado, deu seu lugar no ban-
co ao estranho, sentou-se na borda da barca to unanime, diferente da forma de remar
e ali se manteve em equilíbrio pelo modo anterior, como o trote de um cavalo o e de
seu galope. A sociedade sentada na parte de
como apoiou seus pes contra uma daquelas
tras gostou de ver todos aqueles braços
tabuas que, como as espinhas de um peixe,
nervosos, aqueles rostos marrons aos olhos
servem para ligar as pranchas dos barcos.
Uma mulher jovem, mae de uma criancinha de fogo, aqueles musculos tensos e aquelas
e que parecia pertencer a classe operaria de
32
diferentes forças humanas atuando em har- dos se calaram e contemplaram o mar e o
monia para faze-la atravessar o estreito me- ceu, fosse por pressentimento, fosse para
diante um pequeno pedagio. Longe de de- obedecer aquela melancolia religiosa que
plorar tal miseria, mostravam uns aos ou- assalta quase todos na hora da oraçao, ao
tros os remadores, rindo das expressoes cair do dia, no instante em que a natureza
grotescas que a manobra imprimia a suas se cala, em que os sinos falam. O mar emitia
fisionomias atormentadas. Na proa, o solda- uma luz branca e palida, mas instavel e se-
do, o campones e a velha contemplavam os melhante as cores do aço. O ceu estava to-
marinheiros com aquela especie de compai- talmente acinzentado. A oeste, longos espa-
xao natural as pessoas que, vivendo de seu ços estreitos simulavam borbotoes de san-
labor, conhecem as rudes angustias e o fe- gue, enquanto no oriente linhas faiscantes,
bril cansaço do trabalho. Alem disso, habi- como que traçadas por um pincel fino, eram
tuados a vida ao ar livre, todos haviam com- separadas por nuvens plissadas como rugas
preendido, pelo aspecto do ceu, o perigo no rosto de um anciao. Assim, mar e ceu
que os ameaçava, e estavam assim todos se- ofereciam por toda parte um fundo som-
rios. A jovem mae embalava seu filho, can- brio, todo em meios-tons, que fazia ressal-
tando-lhe um antigo hino religioso para tar os fogos sinistros do poente. Essa fisio-
adormece-lo. nomia da natureza inspirava um sentimen-
Se chegarmos — disse o soldado ao campo- to terrível. Se e permitido introduzir os au-
nes —, o bom Deus tera metido na cabeça a dazes tropos do povo na língua escrita, re-
ideia de nos deixar vivos. petiríamos o que dizia o soldado, que o
— Ah!, ele e quem manda — respondeu a tempo era de retirada, ou, o que lhe respon-
velha —; mas acho que seu prazer preferi- deu o campones, que o ceu tinha a cara de
do e nos chamar para junto dele. Estao ven- um carrasco. O vento ergueu-se de repente
do aquela luz la? — E, com um gesto da ca- em direçao ao poente, e o chefe, que nao pa-
beça, apontou o poente, onde riscas de fogo rava de consultar o mar, vendo-o inchar no
cortavam vivamente nuvens marrons de re- horizonte, exclamou: "Ho! Ho!" A esse grito,
flexos avermelhados que pareciam bem os marinheiros pararam na mesma hora e
perto de desencadear algum vento furioso. deixaram flutuar seus remos.
O mar fazia ouvir um murmurio surdo, uma — O patrao tem razao — disse friamente
especie de mugido interior, muito parecido Thomas quando o barco levado para o alto
com a voz de um cao quando so quer res- de uma enorme onda voltou a descer como
mungar. Afinal, Ostende nao era longe. Na- para o fundo do mar entreaberto.
quele momento, o ceu e o mar ofereciam Com esse movimento extraordinario, com
um daqueles espetaculos aos quais e im- essa subita ira do oceano, as pessoas da po-
possível tanto a pintura quanto as palavras pa empalideceram e deram um grito terrí-
dar mais duraçao do que realmente tem. As vel:
criaçoes humanas precisam de contrastes — Vamos morrer!
poderosos. Tambem os artistas pedem em — Ah, ainda nao! — respondeu-lhes tran-
geral a natureza seus fenomenos mais bri- quilamente o chefe.
lhantes, desesperando sem duvida de tor- Nesse momento, as nuvens se despedaça-
nar ordinaria a grande e bela poesia de seu ram sob o esforço do vento, bem acima do
aspecto, ainda que a alma humana seja tam- barco. Tendo as massas cinzentas se esten-
bem muitas vezes profundamente abalada dido com sinistra prontidao no oriente e no
tanto na calma quanto no movimento, e pe- poente, a luz do crepusculo ali caiu perpen-
lo silencio tanto quanto pela tempestade. dicularmente por uma fresta provocada pe-
Houve um momento em que, na barca, to- lo vento de tempestade, e permitiu que se
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vissem os rostos. Os passageiros, nobres ou E voces — continuou ele dirigindo-se aos
ricos, marinheiros e pobres, ficaram por um marinheiros —, remem com vontade! Te-
instante surpresos com o aspecto do recem- mos um instante de tregua, em nome do di-
chegado. Seus cabelos de ouro, divididos ao abo que lhes abandona neste mundo, seja-
meio sobre seu semblante tranquilo e sere- mos nos mesmos nossa providencia. Este
no, caíam em inumeros cachos sobre os om- canal e furiosamente perigoso, todo mundo
bros, recortando sobre a cinzenta atmosfe- sabe, ja sao trinta anos que eu o atravesso.
ra uma figura sublime de doçura e da qual Nao e de hoje que eu brigo com a tempesta-
se irradiava o amor divino. Ele nao despre- de!
zava a morte, ele tinha a certeza de nao pe- Entao, de pe defronte ao leme, o chefe con-
recer. Mas se, em princípio, as pessoas da tinuou a olhar alternativamente para o bar-
popa esqueceram por um instante a tem- co, o mar e o ceu.
pestade cuja implacavel furia os ameaçava, — O chefe sempre zomba de tudo — disse
logo voltaram a seus sentimentos de egoís- Thomas em voz baixa.
mo e aos habitos de suas vidas. — Deus vai nos deixar morrer com estes
— E coisa que se faça esse estupido burgo- miseraveis? — perguntou a orgulhosa jo-
mestre nao perceber o perigo que corremos vem ao belo cavaleiro.
todos? Ele fica aí como um cao e morrera — Nao, nao, nobre senhorita. Pode me ou-
sem agonia — disse o doutor. vir?
Assim que ele disse essa frase tao judiciosa, Ele puxou-a pela cintura, e falando-lhe ao
a tempestade desencadeou suas legioes. Os ouvido:
ventos sopraram de todos os lados, o barco — Eu sei nadar, nao diga a ninguem! Vou
girou como um piao, e o mar entrou. segura-la pelos seus lindos cabelos e a leva-
— Ah! Coitado do meu filho! Meu filho! rei suavemente ate a margem; mas so posso
Quem vai salvar meu filho? — exclamou a salvar a senhorita.
mae com voz dilacerante. A moça olhou para sua velha mae. A senho-
— Voce mesma — respondeu o estranho. ra estava de joelhos e pedia alguma absolvi-
O timbre daquele orgao penetrou no cora- çao ao bispo que nao a ouvia. O cavaleiro
çao da moça e nele colocou esperança; ela leu nos olhos de sua bonita amante um fra-
ouviu aquela frase suave apesar dos silvos co sentimento de piedade filial e lhe disse
do temporal, apesar dos gritos lançados pe- numa voz surda:
los passageiros. — Submeta-se as vontades de Deus! Se ele
— Santa Virgem do Perpetuo Socorro, que quiser chamar sua mae para perto dele, se-
estais na Antuerpia, prometo-lhe mil libras ra sem duvida para a felicidade dela... no
de cera e uma estatua, se me tirar daqui — outro mundo — acrescentou numa voz ain-
exclamou o burgues de joelhos sobre os sa- da mais baixa. "E para a nossa aqui", pen-
cos de ouro. sou ele.
— A Virgem nao esta mais na Antuerpia do A senhora de Rupelmonde tinha sete feu-
que aqui — respondeu-lhe o medico. dos, alem do baronato de Gavres. A moça
— Ela esta no ceu — retrucou uma voz que ouviu a voz de sua vida, os interesses de seu
parecia sair do mar. amor falando pela boca do belo aventureiro,
— Mas quem foi que falou? jovem descrente que visitava as igrejas, nas
Foi o diabo — exclamou o criado —, ele quais buscava uma presa, uma moça casa-
zomba da Virgem da Antuerpia. doira ou belas moedas sonantes. O bispo
— Deixem-me em paz com sua santa Vir- benzia as mares e ordenava-lhes que se
gem — disse o chefe aos passageiros. — Pe- acalmassem, em desespero de causa; ele
guem os baldes e esvaziem a agua do barco. pensava em sua concubina que o esperava
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com algum delicado festim, que talvez na- semelhante ao entusiasmo que os soldados
quele momento estivesse se banhando, se tem por seu chefe, quando ele e um homem
perfumando, vestindo-se de veludo, ou co- de poder, cercado pelo brilho das vitorias, e
locando seus colares e pedrarias. Longe de caminha em meio as brilhantes glorias do
pensar nos poderes da santa Igreja e de genio. A velha indigente dizia em voz baixa:
consolar aqueles cristaos exortando-os a — Ah! Pecadora infame que sou! Sera que ja
confiar em Deus, o bispo perverso combina- sofri o bastante para expiar os prazeres da
va lamentos mundanos e palavras de amor juventude? Ah! Por que, infeliz, levaste a vi-
as santas palavras do breviario. A claridade da facil de uma gaulesa, comeste o pao de
que iluminava aqueles rostos palidos per- Deus com gente da igreja, o pao dos pobres
mitiu que se vissem suas diversas expres- com os torcionarios e exatores? Ah, como
soes quando a barca, erguida nos ares por fiz mal! Ah, meu Deus! Meu Deus! Deixai-
uma onda, depois atirada ao fundo do abis- me acabar meu inferno nessa terra de infe-
mo, depois sacudida corno uma folha impo- licidades. Ou melhor: Virgem Santa, mae de
tente, brinquedo da brisa de outono, esta- Deus, tende piedade de mim!
lou em seu casco e pareceu prestes a se — Acalme-se, minha velha, o bom Deus nao
quebrar. Houve entao gritos horríveis, se- e um lombardo. Mesmo que eu tenha mata-
guidos de medonhos silencios. A atitude do, talvez a torto e a direito, os bons e os
das pessoas sentadas a proa do barco con- maus, nao temo a ressurreiçao.
trastou singularmente com a dos ricos e po- — Ah! Senhor anspeçada, essas belas se-
derosos. A jovem mae apertava seu filho de nhoras sao felizes por estarem ao lado de
encontro ao seio a cada vez que as ondas um bispo, de um homem santo! — continu-
ameaçavam engolir a fragil embarcaçao; ou a velha. — Elas terao a absolviçao de
mas ela acreditava na esperança que lhe seus pecados. Ah! Se eu pudesse ouvir a voz
lançara no coraçao a frase dita pelo estra- de um padre me dizendo: "Seus pecados se-
nho; a cada vez, ela voltava seu olhar para rao perdoados", eu acreditaria nele!
aquele homem e colhia em seu rosto uma O estranho voltou-se para ela e seu olhar
nova fe, a fe forte de uma mulher fraca, a fe caridoso a fez estremecer.
de uma mae. Vivendo pela palavra divina, — Tenha fe — disse ele — e sera salva.
pela palavra de amor deixada escapar por — Que Deus o recompense, meu bom se-
aquele homem, a ingenua criatura esperava nhor — respondeu ela. — Se estiver dizen-
com confiança a execuçao daquela especie do a verdade, irei pelo senhor e por mim
de promessa e quase nao temia mais o peri- em peregrinaçao ate Nossa Senhora de Lo-
go. Colado a beirada da chalupa, o soldado rette, descalça.
nao deixava de contemplar aquele ser sin- Os dois camponeses, o pai e o filho, continu-
gular sobre cuja impassibilidade modelava avam silenciosos, resignados e submissos a
sua figura rude e bronzeada irradiando sua vontade de Deus, como gente acostumada a
inteligencia e sua vontade, cujas poderosas seguir instintivamente, como os animais, o
energias pouco se haviam alterado no de- impulso dado a Natureza. Assim, de um la-
correr de uma vida passiva e maquinal; ciu- do as riquezas, o orgulho, a ciencia, a liber-
mento daquela capacidade de se mostrar tinagem, o crime, toda a sociedade humana
tranquilo e calmo tanto quanto daquela co- tal como a fazem as artes, o pensamento, a
ragem superior, acabou por se identificar, a educaçao, o mundo e suas leis; mas tam-
contragosto talvez, com o princípio secreto bem, apenas desse lado, os gritos, o terror,
daquele poder interior. Entao sua admira- mil sentimentos diversos combatidos por
çao se tornou um fanatismo instintivo, um duvidas terríveis; do outro, apenas, as an-
amor sem limites, uma fe naquele homem, gustias do medo. Entao, acima daquelas
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existencias, um homem poderoso, o chefe dou ao lado dele sobre o mar. O soldado er-
da barca, de nada desconfiando, o patrao, o gueu-se de repente dizendo em sua lingua-
rei fatalista, fazendo-se sua propria provi- gem de inocencia: "Ah! Filho de uma egua!
dencia e gritando "Sao Vertedouro!...", e nao Eu te seguirei ate o inferno." Entao, sem pa-
"Santa Virgem!"... enfim, desafiando a tem- recer surpreso, andou sobre o mar. A velha
pestade e lutando com o mar corpo a corpo. pecadora, acreditando na onipotencia de
Na outra extremidade do bote, os fracos!... a Deus, seguiu o homem e andou sobre o mar.
mae embalando em seu seio uma crianci- Os dois camponeses disseram:
nha que sorria para o temporal; uma moça, — Se eles andam sobre a agua, por que nos
outrora contente, agora entregue a horrí- nao faríamos como eles? Levantaram-se e
veis remorsos; um soldado crivado de feri- correram atras deles andando sobre o mar.
mentos, sem qualquer outra recompensa Thomas quis imita-los, mas, sua fe fraque-
alem de sua vida mutilada ao preço de uma jando, caiu diversas vezes no mar, ergueu-
dedicaçao infatigavel; ele tinha apenas um se; entao, depois de tres provaçoes, andou
pedaço de pao encharcado de lagrimas; en- sobre o mar. O audacioso piloto se agarrara
tretanto, ria de tudo e andava sem preocu- como uma remora sobre o chao do barco. O
paçoes, feliz quando afogava sua gloria no avaro tivera fe e se levantara, mas quis levar
fundo de um copo de cerveja ou quando a seu ouro, e seu ouro o levou para o fundo
contava a crianças que o admiravam, confi- do mar. Zombando do charlatao e dos imbe-
ava alegremente a Deus os cuidados com cis que o escutavam, no momento em que
seu futuro; enfim, dois camponeses, gente viu o desconhecido propondo aos passagei-
de lida e fadiga, o trabalho encarnado, a la- ros caminhar sobre o mar, o sabio começou
buta da qual vivia o mundo. Essas criaturas a rir e foi engolido pelo oceano. A mocinha
simples nao se preocupavam com o pensa- foi levada para o abismo por seu amante. O
mento e com seus tesouros, mas estavam bispo e a velha dama foram ao fundo, com o
prestes a mergulha-los numa crença, tendo peso de crimes, talvez, mas ainda mais pe-
a fe ainda mais robusta por jamais terem sados pela incredulidade, pela confiança em
discutido, ou analisado, o que quer que fos- falsas imagens, pesados de devoçao, leves
se; naturezas virgens nas quais a conscien- de esmolas e de verdadeira religiao.
cia havia permanecido pura e o sentimento, O grupo fiel que comprimia com pes firmes
poderoso; o remorso, a infelicidade, o amor, e secos a planície das aguas enfurecidas ou-
o trabalho haviam exercitado, purificado, via a seu redor os horrendos silvos da tem-
concentrado, decuplicado sua vontade, a pestade. Vagas enormes vinham se quebrar
unica coisa que, no homem, se parece com o sobre seu caminho. Uma força invisível cor-
que os sabios chamam de alma. tava o oceano. Atraves da bruma, aqueles
Quando a barca, conduzida pela miraculosa fieis percebiam ao longe, na margem, uma
habilidade do piloto, chegou quase defronte luzinha fraca que tremeluzia pela janela de
a Ostende, a cinquenta passos da margem, uma cabana de pescadores. Cada um deles,
foi empurrada por uma convulsao da tem- andando corajosamente em direçao aquela
pestade e soçobrou de repente. O estranho luz, acreditava ouvir seu vizinho gritando
de rosto luminoso disse entao aquele pe- atraves dos rugidos do mar: "Coragem." E
queno mundo de dor: entretanto, atentos ao seu perigo, ninguem
— Os que tem fe serao salvos; que me si- dizia coisa alguma. Atingiram assim a beira
gam! do mar. Quando estavam todos sentados no
O homem se levantou, caminhou com passo lar do pescador, procuraram em vao seu
firme sobre as ondas. Imediatamente, a jo- guia luminoso. Sentado no alto de um ro-
vem mae pegou seu filho nos braços e an- chedo, aos pes do qual o temporal atirara o
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piloto agarrado a sua prancha por aquela ceu. Naquele local foi construído, pelos ma-
força que demonstram os marinheiros as rinheiros, o convento da Graça, no qual por
voltas com a morte, o HOMEM desceu, reco- muito tempo se viu a pegada que os pes de
lheu o naufrago quase quebrado; disse en- Jesus Cristo tinham, dizem, deixado sobre a
tao, estendendo uma mao confortadora so- areia. Em 1793, quando os franceses entra-
bre sua cabeça: ram na Belgica, monges levaram aquela
— Tudo bem desta vez, mas nao faça de no- preciosa relíquia, a prova da ultima visita
vo, seria um pessimo exemplo. que Jesus fez a Terra.
Pos o marinheiro sobre os ombros e levou-o
ate a cabana do pescador. Bateu pelo infeliz, Do livro Os Melhores Contos Bíblicos, de Flá-
para que lhe abrissem a porta daquele mo- vio Moreira da Costa (org.) - Ediouro Publica-
desto abrigo, e entao o Salvador desapare- ções.

Deus e os ídolos
Certa vez, em Roma, alguns idolatras astuciosos interpelaram o velho rabi Simeao, apelidado “o muito sabio”.
– Se nao agrada ao vosso Deus a adoraçao dos ídolos, por que ele, o Todo-Poderoso, nao os arrasa?
– Se os homens adorassem as coisas de que o mundo nao precisa, Deus, decerto, as arrasaria. Eles adoram, po-
rem, o Sol, a Lua, os astros e os planetas. Deveria o Senhor destruir o seu mundo, por causa dos estultos?
Um dos romanos insistiu com perfida vivacidade:
– Nesse caso, poderia pelo menos arrasar as coisas de que o mundo nao precisa, e deixar as outras?
– Seria, entao, fortalecer os adoradores dos astros, do Sol e da Lua na sua idolatria – objetou o sabio. – Os idola-
tras diriam, certamente: “Vede, eis os verdadeiros deuses, porque nao foram destruídos.”
Abedah Zarah

A Bolsa Perdida
Rico avarento perdeu a bolsa e anunciou que recompensaria generosamente a quem a encontrasse. Apareceu-
lhe um pobre com a bolsa perdida, o avarento contou e recontou o conteudo e, por fim, exclamou:
– Faltam aqui cem rublos! Vai-te embora, homem! Esperas ainda, depois desta fraude ignobil, que eu te de uma
gratificaçao?
O outro, ferido por tal calunia, pois nao tocara no dinheiro, queixou-se ao zaddik local. O zaddik, que era muito
acatado e gozava de alto prestígio, mandou vir a presença o sovina e interrogou-o:
– Quanto havia na bolsa que perdeste?
– Quinhentos rublos - afirmou ousadamente o ricaço, mentindo com hipocrita compostura.
Voltando-se para o pobre, o zaddik perguntou, conciliador:
– E quanto ha na bolsa que encontraste?
– Quatrocentos rublos - confirmou humildemente o homem.
– E claro, entao - decidiu o zaddik, dirigindo-se novamente ao avarento - que esta bolsa nao e a que perdeste.
Devolve-a, portanto, a quem a achou; ele a guardara, ate aparecer o verdadeiro dono.

Honras e Alegrias
Um ricaço de Hommona, muito vaidoso, obcecado pela mania de grandeza, desejava ardentemente ser eleito
chefe da comunidade. Insinuara essa ideia aos amigos mais prestigiosos, sem ousar pedir claramente.
Certa vez, em palestra com o rabi Abba Shapira, queixou-se amargamente:
– O Talmude (Erubin, 13a) diz-nos que quando fugimos das honras, estas nos perseguem. Comigo tal coisa nao
ocorreu. Esquivei-me das honras. Elas, porem, nao correram atras de mim.
– As palavras do Livro – retorquiu o mestre – sao sabias e verdadeiras. As honras fogem de ti embora caminhes
na frente delas. E a razao e simples: E que a todo instante volves a cabeça para ver se elas te seguem!
Lázaro-Liacho
Do livro Lendas do Povo de Deus, de Malba Tahan.
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Poetas Cristãos de Iberoamérica
Apresentamos aqui traduções de poetas nossos irmãos na fé,
oriundos da Espanha e de diversos países da América Latina

O POETA MÍSTICO
Balam Rodrigo (México) FIOS DE PRATA
O poeta místico diz que fala com deus ou a deusa Beatriz Garrido (Espanha)
Mas é incapaz de falar e tratar outros homens
com a humildade e paciência dos pássaros. Fios de prata manejam minha vida,
me envolvem, me prendem e me fazem sonhar.
Seus livros são templos supostamente sagrados Os fios macios que guiam meus passos,
embora erigidos no meio do nada: e fazem que brilhe todo meu caminhar.
despojados de deuses e demônios, Fios de prata que o meu Deus me coloca,
eles apenas dizem isso, nada. não por força ou ordem, apenas por amor.
Porque é mais fácil que um escritor Amor que me abraça, amor que me envolve,
de livros de autoajuda assim como a hera olhando para o sol.
entre pelo olho de uma agulha Fios de prata levarão um dia
que um falso poeta místico para o doce destino que me espera lá.
entre no reino dos leitores. Mais alto que nuvens, que luzes e estrelas,
Profeta de si mesmo, eco do vazio nos espelhos, ao lado do Deus que um dia me veio salvar.
o poeta místico se veste como um guia espiritual de alta
classe
e lentamente fecha as pálpebras enquanto "levita"
ao ler em público seus versos.
AS PEGADAS DO SEU AMOR
Mas não são nuvens celestes
as que o cegam ao abrir os olhos: Elsie Romanenghi de Powell (Argentina)
é a fumaça de seus livros que são consumidos Também as pegadas de seu amor
na inevitável pira do deus do tempo, traçaram seus espaços,
no fogo pagão da vida. desbarataram coisas,
Miserável em espírito, sacerdote da soberba, gravaram sua verdade;
Que os deuses do esquecimento o abençoem. como se fossem as linhas da mão,
os sulcos da testa.
"DEUSÁLOGO" Como se elas sempre lá existissem.
Daylíns Rufín (Cuba) Estranha forma de nos saber,
Um pássaro trina ao sol de conhecer quem somos,
Um bebê chora de ir descobrindo-nos pelo que amamos:
Dois se dão as mãos essa ternura de Jesus diante do povo,
enquanto calam sua intimidade com Deus,
Um homem abre aquele livro, sua santidade viril e humana.
Suspira
e submerge Agora nos resta esta saudade
Não pela primeira vez em suas palavras. tenaz,
Aquela mulher ora, esperançosa,
esta reza que sente um rosto que não vê,
e alguma gente canta. e ama.
Tudo é uma resposta.
Tudo!
Pois Deus perguntou o que posso fazer por ti Traduções do espanhol (salvo poema de
com a manhã. Luis Cruz-Villalobos): Sammis Reachers 38
Poetas Cristãos de Iberoamérica
VEM COM O AR ...
DE ONDE VÊM OS POETAS?
Juan Carlos Martín Cobano (Espanha)
Luis Cruz-Villalobos (Chile)
Vem com o ar, Tradução de Maria do Sameiro Barroso
Traz o cheiro de cachorro molhado
De onde vêm os poetas?
É uma onda de pretéritos imperfeitos
Esses energúmenos alados
Não há como pegá-la Que sabem respirar bem fundo
Ela rasga os dedos do jardineiro mais cínico
É meu passado De onde vêm
É meu pecado Senão das masmorras das flores
E dos labirintos do sol
É minha parede
É a minha cerca de arames e volts Vêm das aldeias perdidas
Eu digo que não, mas sou eu Repletas de danças embriagantes
Sou eu, inocultável, nem mais nem menos E licores ágeis e rítmicos
Sou eu, coxo, mutilado, cego e mudo Vêm dos desertos solitários
Morto ereto persistente Dos bosques densos de perfumes
E dos prados húmidos e temos
O hálito chega de cima
Com lascas de sol e abraço Vêm da queda perfumada
Verdugo de oxalás e subjuntivos, Do suave afugentar das aves
As mãos marcadas me apoiam E do marulhar das ondas claras
Sem alergia à minha medula purulenta Vêm do Sul e também do Este
Sem balanços, sem contagens, Vêm da noite como do pôr do sol
Sem deveres e haveres no meu prato Vêm da duna e do lago verde
Sem a náusea
De onde vêm os poetas
É a porta, é a casa, o quarto cordial e hospitaleiro
Esses que nunca souberam
A mesa posta, e cheira a pão e café da manhã O nome das coisas
A cama feita, o edredom cálido
Os braços abertos De onde vêm senão do nicho
Roupa limpa Da podridão e da derrota do mal
Do desmoronamento do óbvio
Beijo de Pai
Lágrimas de felicidade JESUS DO BOM VINHO Vêm correndo e rolando
É a graça! Do mais alto dos abismos
Gerardo Oberman (Argentina) E das fossas que se abriram
Jesus das festas e do bom vinho, Vêm das lágrimas azuis
amigo da gente simples que se reúne para celebrar, Que se tornaram ondas infinitas
nos abençoe com sua companhia criativa, Na dura história dos homens
preenche as lacunas que ameaçam o bem viver, Vêm da paz e da guerra
transforma a escassez em abundância, De se saberem amarrados a um destino
a avareza em compartilhar. Que só lhes permitia cantar
Jesus que se encontra com o povo
Vêm mal-humorados e rudes
que precisa ser capaz de dançar e rir e acreditar, Como rosas vermelhas e perfumadas
transforma a tristeza em riso, Que afiaram os seus espinhos mais novos
as angústias em esperança,
a passividade em movimento, Vêm da fome e da sede de vida
Vêm da urgência para o despenhadeiro
a religiosidade em espiritualidade,
E o desespero pelo mel do dia
a apatia em solidariedade,
a distância em abraços, Vêm de longe muito longe
os medos em confiança. Tão longe que não chego a saber
Jesus de Caná, filho de Maria, mestre De onde vêm os poetas.
derrame seu espírito neste mundo exausto
e, ao seu sinal, será um novo mundo. 39
pra dizer que já estava com outro cara. Pra que per-
O TELEFONE TOCOU... dão? Vai viajar com ele, vai viver com ele, meu
bem... Só me deixe em paz, por favor (Luciano cho-
Wagner Antonio de Araújo ra baixinho).
Sem se dar conta, Luciano percebe uma pessoa na
– Alô? porta do escritório. Era ela. Natasha estava olhando
– Alô. Luciano? pra ele. Ela falava do celular. Luciano fica perplexo,
– Sim. Quem é? alegre e triste - ela está linda, belíssima,
– Não conhece mais a minha voz? muito elegante. Mas seu rosto está
– Não estou conseguindo identifi- abatido, cansado, doente. Na mão
car. Quem está falando? tinha uma sacola. Aproximou-se
– Nossa, como foi fácil pra vo- da mesa de Luciano, e, com
cê me esquecer... Acho que olhos lacrimejantes, desligou o
não tivemos muito significa- celular, olhou para ele e disse:
do... – Oi, amor.
– Nathasha?! – Oi, Natasha. Pare de me cha-
– Oi... mar de amor. Você tá um caco,
– Que surpresa você me ligar! filha!
Pra quem disse que queria me Olhos baixos, Natasha começa a
esquecer para sempre ... tirar da sacola algumas coisas: uma cai-
– Vai ofender? Eu desligo! xa do correio com um CD do Demmis Rous-
– Fique à vontade, querida. Quem ligou foi você sos, que Luciano havia enviado de presente no ani-
mesmo... versário, uma boneca de porcelana numa casinha
– Não, espere, não vou desligar. Desculpe. É que de papel, um celular pré-pago, alguns livros devoci-
estou aborrecida, só isso. onais, uma bíblia de Genebra e um pacote de foto-
– Tá. E o que você quer? grafias. Luciano a observava, perplexo, triste, e via
– Nada. Eu só queria ouvir sua voz. as lágrimas de Natasha molharem a fórmica da sua
– Só? Então já ouviu. Mais alguma coisa? escrivaninha.
– Espere, pare de ser grosso. Não, desculpe, não Cada objeto tirado era uma facada no coração sofri-
desligue. É que eu estou me sentindo muito sozi- do de Luciano. Algumas coisas lhe custaram caro,
nha. ele fizera grande esforço para pagá-las. Mas, pensa-
– Foi você quem quis assim, querida. Sorva do seu va ele, se era pra ela, valeria à pena o esforço. Quan-
próprio veneno. do tudo terminara, ele se arrependera de tanto gas-
– Realmente você não muda. Só sabe acusar... to desperdiçado...
– Bom, vou desligar. Tchau... – Pensei que você havia jogado as coisas que lhe
– NÃO, PELO AMOR DE DEUS, não desligue, espere, dei, Natasha...
preciso te dizer algo... – Eu nunca me esqueci de você, Luciano. Eu errei.
– Fala logo, Natasha, tenho que trabalhar. Errei muito, me perdoe...
– Eu estava errada. Me perdoe. Luciano, jovem advogado, lutador com as intempé-
– ERRADA? Você estava errada? Tem certeza disso? ries da vida, sabia que Natasha poderia estar men-
Será que não é um pouco tarde pra dizer isso? tindo, como tantas outras vezes, quando namora-
– Mas agora eu reconheço... Por favor, amor, me vam e mesmo quando eram noivos. Mas havia um
perdoe! quê de diferente no olhar vermelho de Natasha.
– Agora? Depois que você acabou comigo, querida? – Por que você veio hoje aqui, Natasha? Deu alouca?
Até hoje eu pago o mico do papelão que você me O que te traz aqui?
fez passar... Convites distribuídos, acampamento Natasha suspirou, chorou, recompôs-se e disse:
alugado, comida encomendada, viagem paga, meu – Estou com câncer, Luciano...
casamento com você, tudo perdido... (Luciano sus- – CÂNCER? Luciano petrificou-se.
pira). Sofri, sofri mesmo. Queria matar você! Droga, – Sim, amor, eu vim me despedir. Saí do hospital à
por que eu tive que amar você? Mas tudo bem. Já força, pra falar com você e pra morrer em casa...
faz dois anos... Ah, meu Deus, dois anos... Luciano não esperava por essa. Veio-lhe à memória
– Luciano, pelo amor de Deus, me perdoe! uma de suas discussões, onde Natasha, na hora do
– Pra que você quer o meu perdão? Você nem ligou nervoso, dissera: "E daí, Luciano? Que se dane a
40
paz, ouça-me: EU PERDÔO VOCÊ POR TUDO QUE
igreja, que se dane o pastor, que se dane você, e se
ME FEZ. VOCÊ ESTÁ LIVRE EM NOME DE JESUS!
Deus achar que estou errada, que me castigue..."
Nossa, era como se a cena passasse de novo na Natasha tremeu. Gritou "aleluia", sorriu, chorou, e
caiu desmaiada.
mente de Luciano.
Logo o assistente de Luciano veio ajudá-lo, e, colo-
– Como foi, Natasha?
cando-a no carro, levaram-na para o hospital. Lucia-
– Depois que eu deixei você, amor, fui caindo no
no tinha o telefone de toda a família ainda, ligou e
abismo, afastei-me do Senhor, fui morar com o An-
avisou. Em uma hora todos estavam ali na recep-
dré, abandonei a Cristo. Eu estava cega. Mas Deus
ção, tristes, aflitos, alguns desesperados. Chegou o
me amava, Luciano. Se eu não fosse dEle, estaria
pastor. A família implorou-lhe que fosse até a UTI
numa boa agora, bem com o André, bem comigo e
orar com ela. O pastor, que conhecia o Luciano,
pronta pra ir pro Inferno. Mas, por amor, Deus veio
olhou bem pra ele, pensou, fechou os olhos em ora-
corrigir-me. Ele repreende e castiga a quem ama.
ção, e, a seguir, falou:
Ele me ama, Luciano! Estou doente. Mas estou bem,
– Quem tem que entrar é o Luciano. Vá lá, Luciano.
porque estou podendo vir até você pra pedir per-
Eu conheço o diretor da UTI, pedirei autorização.
dão! Nunca fui feliz, nunca tive paz, saí de casa com
– EU, PASTOR?
3 meses de vida a dois. O André me batia, me traía,
– Sim, filho. Ela é o seu amor.
eu fugi.
– FOI, PASTOR.
– E ele não foi buscar você de volta?!
– Não, filho. Deus o uniu a ela novamente, ainda
– O André foi assassinado, Luciano. Tráfico de dro-
que seja na despedida.
gas.
Luciano não sabia o que fazer. A família, desconso-
Luciano estava perplexo.
lada, chorava, mas a mãe, certa do que tinha que
– Luciano, estou voltando pro Senhor, estou me
ser feito, empurrou o Luciano até a porta, dizendo:
preparando pra partir. Mas tenho que receber o seu
"Vai, filho, corre, antes que seja tarde!"
perdão, amor! Sei que nunca irei compensar o que
Ah, aquele corredor que dava para a UTI parecia
lhe fiz, mas... por favor... ME PERDOA, AMOR!
Luciano olhou para aquele resto de mulher - outrora não ter fim! Cada passo dado era uma lembrança: o
primeiro beijo, a primeira maçã-do-amor, o primeiro
tão orgulhosa, ostentando tanta beleza e autossufi-
jantar, o primeiro pôr-do-sol juntos; o dia em que
ciência, confiando tanto em seu corpo e em sua ful-
viajaram num encontro missionário, o dia em que
gurante beleza, e agora, bonita ainda, mas notada-
foram juntos à praia e que ele deu de presente a
mente pálida, enferma, cheia de hematomas nos
primeira rosa! O jantar de noivado, os telefonemas,
braços, pescoço e pernas, e triste, profundamente
tudo. Não sobraram recordações da tragédia, da
triste, a implorar-lhe perdão para morrer em paz!
traição, do desprezo. Na verdade quem ama guarda
Cena patética! Ali estava quem Luciano mais amara
as más experiências numa sacola furada. E Luciano
na vida, quem mais o fizera sofrer, a depender de
fez assim.
uma palavra apenas, para morrer em paz!
Vestido com o jaleco, a máscara e o sapato de pano,
"Hora da vingança", veio-lhe à mente. Claro, agora
Luciano entrou. Vários boxes onde pessoas definha-
seria a hora da revanche! Mas Luciano era um moço
vam. Lá estava Natasha, no número 6. Estava no
crente, de bom coração, e seria incapaz de reter a
respirador artificial, cuja sanfona funciona como um
bênção para aquela a quem tanto amara e que, infe-
pulmão e faz um barulho horripilante. Estava linda,
lizmente, ainda tanto amava e tanto o fazia sofrer...
mas totalmente ligada a aparelhos, notadamente
– Quer que eu perdoe você, Natasha?
cansada, em coma, morrendo. Luciano sentiu sua
– SIM, PELO AMOR DE DEUS, Luciano! Nunca mais
dor. Chorou. Tremeu. Segurou forte a mão de sua
tomei a Ceia do Senhor, nunca mais louvei ao Se-
amada. Pensou em Cristo, que dera a vida pela noi-
nhor com alegria, nunca mais fui membro de igreja,
va, pensou em Oséias, que aceitou a esposa adúlte-
não aguento mais! Aceito as consequências, mas,
ra novamente, pensou em Deus, que tantas e tantas
por favor, diga que me perdoa!
vezes tratou a Jerusalém com compaixão. Quem
Enxugando as lágrimas, refazendo-se, Luciano
era ele para não perdoar? Quem era ele para não
olhou-a no fundo dos olhos, tomou as suas duas
mãos, que estavam frias como as de um defunto, e acolher?
Então orou.
lhe disse, num terno sorriso misericordioso:
"Senhor, o que posso dizer? Minha garota está mor-
– Querida: desde que você foi embora eu já havia
rendo! Ex-garota, claro. Mas mesmo assim está do-
lhe perdoado. Mas, se você quer escutar e sentir
endo, Pai! E eu sou impotente diante de tudo isso!
41
va entre sua vontade e a vontade de Deus.
Essas máquinas, esse cheiro de éter e de carnes in-
Sonhou durante o sono, no delírio da febre. Sonhou
flamadas, esse barulho infernal, meu Pai, o que pos-
so dizer? Que deixe a minha garota morrer em paz? estar na igreja. Viu o pastor a pregar, e, ao seu lado
estava Natasha, bonita e sorridente. Lá do púlpito o
Sim, Senhor, leve-a para a tua glória! Eu a amo! Mas
pastor dizia: "Aquele que amar mais à sua mulher,
sei que tu a amas mais do que eu! Abençoa a Natas-
mais do que a mim, não é digno de mim - palavras
ha. Em nome de Jes...
de Jesus!" E, aos poucos, o sorriso de Natasha foi
Subitamente Luciano pensou em completar a ora-
sendo coberto por uma neblina e desaparecia. As-
ção com o seguinte pedido:
sim acordou.
"Mas, Senhor, se ainda houver um espaço para ela
Assustado e cônscio de que Deus falara com ele,
viver para ti, recuperar parte do tempo perdido, se
pôs-se a orar, dizendo:
na tua infinita misericórdia não for demais, por fa-
– Senhor, sei que é difícil, mas tenho que fazer isso.
vor, Senhor, cura a tua serva. Ela já sofreu bastante,
Confesso que estou revoltado, ó, Pai. Quero fazer a
ela aprendeu, Senhor. Até eu, que fui o mais ofendi-
minha vontade, não a tua. Eu não estou conseguin-
do, já a perdoei! Por favor, Senhor, se der, devolve-
do aceitar a tua vontade, caso seja a de levá-la em-
lhe a vida! Mesmo que não seja pra viver comigo. E
bora! Sei que estou errado, Senhor, e sei que é isso
agora sim, em nome de Jesus. Amém".
que quisestes me falar. Senhor, sou teu servo e que-
– Por favor, me avisem – disse Luciano aos familia-
ro te obedecer. Se irás tirar a Natasha mais uma
res –, me avisem quando tudo terminar. Quero es-
vez, tira-a, apesar de mim. Por mais que isso doa,
tar presente.
Senhor, prefiro assim: não quero perder-te Senhor.
E foi embora. Tirou a tarde para viajar, seu hobby
Só me ajude e console o meu coração... Tu sabes o
preferido: foi pra uma cidadezinha próxima, ver o
que será melhor para ela, e também melhor para
pôr-do-sol.
mim. Em nome de Jesus, amém.
Voltou a dormir.
PARTE FINAL
Toca o celular.
No caminho, ao longo da rodovia, seus pensamen- – Alô?
– Luciano?
tos corriam mais que o vento: por que tudo isso es-
– Sim, sou eu.
taria acontecendo? As coisas não poderiam ter sido
– Aqui é o pastor, filho. Como você está?
mais fáceis? E agora? Ele, no carro, ela no hospital, a
– Bem mal, pastor. Mas sobrevivendo...
lembrança daquelas máquinas monstruosas de pro-
– Eu orei por você, garoto. Pedi a Deus para lhe fa-
longar a vida não lhe saíam da memória... As lágri-
zer suficientemente forte para renunciar, se preciso
mas corriam, misturadas à poeira do vento seco do
for. Você quer conversar sobre isso?
caminho.
– Pastor – disse, sorrindo o rapaz, – já o ouvi pregar
Revoltado com tudo isso, parou o carro no acosta-
agorinha mesmo no sonho, já renunciei a Natasha.
mento. Encontrou uma estradinha de terra. Deva-
Está doendo, mas estou em paz. Obrigado.
gar, como a seguir um féretro, entrou pela rota dos
– Ótimo. Então volte pro hospital, Luciano. A Natas-
sitiantes. Subiu devagar a montanha, encontrou um
ha acordou e saiu do estado crítico. Ela quer ver vo-
mirante. Parou, abriu a porta, e, num grito de dor e
cê...
lamento, chorou. Ah, como chorou! Seu pranto es-
– O QUE??? SÉRIO, PASTOR?
corria pela porta do carro. Os pássaros, assustados,
– Seríssimo. Vem com calma, mas acelera, filho...
aquietaram-se nas árvores, contemplando aquele
Não levou hora e meia e Luciano estava entregando
misto de dor e revolta. Parecia que todo o mundo
a chave do carro pro manobrista do hospital.
fazia silêncio em respeito a tanta dor.
– E a Natasha? – , perguntou à mãe dela.
– Deus, por que? Por que? Por que? Por que tive que
– Filho, corre, ela está chamando por você! Vai, fi-
amá-la? Por que tive que vê-la? E agora, Senhor, o
lho! Deus está agindo! Eu já a vi, mas ela teima que
que fazer? E se tu a levares? O que será de mim? Eu
quer ver-lhe!
já estava quase esquecendo, Senhor! Agora tudo
Agora o corredor do hospital era longo demais para
volta a doer! Senhor, Senhor...
Cansado de tanto chorar, entrou no carro e deitou- ele. Se pudesse, daria três passos em um, para che-
gar mais rápido e contemplar o rosto de sua amada.
se, estendendo o banco para o fundo. Travou a por-
Seu coração estava disparado, pensava no que ou-
ta, colocou uma fita de música clássica e desfaleceu.
viria e no que diria. O suor lhe escorria pela face e as
Ali estava um moço de valor, que amava e que luta-
vistas estavam enfumaçadas. Correu a vestir o jale-
42
o poder de Deus, a misericórdia do Altíssimo. E um
co, o sapato de pano, as luvas e a máscara. Box 06.
câncer desaparecido tem que parecer um mero
Lá estava ela, e três médicos palestrando. Ao olha-
rem o rapaz, perguntaram: "erro médico". Mas o milagre acontecera de fato...
Outra tarde, fim de expediente no escritório de Lu-
– Você é o Luciano?
ciano, Natasha de pé em frente à escrivaninha de
– Sim, doutor, sou eu. Por que?
trabalho dele.
– Converse um pouco com ela. Ela gritou o seu no-
– Luciano, de agora em diante eu viverei cada dia
me por mais de meia hora e nos deixou quase lou-
como um milagre do Senhor, e viverei apenas e tão-
cos! Isso é que é amor! Mas seja breve, ainda não
somente para a glória dele.
entendemos essa súbita melhora. Temos que medi-
– Que bom, Natasha! Espero que você seja feliz!
cá-la novamente.
Orarei sempre por você!
Aproximou-se do leito. Os lábios de Natasha esta-
– Luciano...
vam sangrados, a boca ferida, canos haviam saído
– Fale, querida.
da garganta, o pescoço estava com fios, braços e
– Quero pedir só mais uma coisa.
pernas com soro, sondas, enfim, uma cena dramáti-
– Se eu puder atender...
ca, mas não tanto quanto na última vez. Pelo menos
– Eu quero me casar com você e ser a sua mulher, a
o respirador artificial estava desligado, e em silên-
sua companheira, e servir ao Senhor ao seu lado. Eu
cio...
te amo! Me perdoe por tudo que fiz!
– Lu..cia..no.. me.u...a..mor....
Era tudo o que o rapaz queria ouvir. Sorridente,
– Fala, querida, eu estou aqui!
abriu a gaveta da escrivaninha e tirou uma linda bo-
– Je..sus....veio..a..qui! Eu..vi!
neca de porcelana, numa casinha de papelão, idênti-
Luciano deixou as lágrimas verterem de seus olhos,
ca à primeira, presenteada quando começaram a
lágrimas quentes e profundas.
namorar. Levantou-se, entregou-lhe a boneca, abra-
– Você estava sonhando, querida.
çou sua amada pela cintura, trazendo-a para junto
– Nã..ão, meu ..a..mor, Je..sus veio...me di..zer..
de seu rosto, e lhe disse, com um brilho jamais visto
uma..coi..sa!
Um tanto alegre, mas também incrédulo, Luciano em seu olhar:
– Eu perdoo você e quero recebê-la como minha
pergunta:
esposa, amor. Eu te amo!
– E o que Jesus lhe disse, amor?
– Também te amo, querido!
– Dis.se...que.. vo..cê..me ama..va
Não se podia descrever o que era mais bonito e bri-
e..que..es.ta...va... (cof! cof!) es..ta..va. orando
lhante; se o brilho do sol da tarde, clareando toda a
lá..num sí..tio.. por..mim...e ..lu..tan..do ...para me
sala pelas vidraças, ou se o brilho do beijo de Natas-
renun..ciar..
ha e Luciano, ao som da mais linda música que o
Luciano gelou. Natasha completou:
mundo pode ouvir: o palpitar de dois corações apai-
– E..le.. me..dis..se..que..a.ceitou..a.sua..or.a..ção!
xonados. Aliás, apaixonados por Deus primeiramen-
Agora ele estava arrepiado. Não só isso, ele estava
te, e, por causa do Senhor, apaixonados um pelo
com as pernas totalmente moles e adormecidas,
outro...
num misto de medo e perplexidade.
– E sobre você, amor, ele disse alguma coisa?
* * * * * *
– Dis.se..pa..ra....que..eu não ...pe..casse.. de
nno..vo... - Natasha adormeceu.
O resto?
– Natasha!!! Natasha!! Não morra!!!
Bem, essa já será uma outra "PÁGINA SOLTA"...
– Calma, garoto – disse o médico – ela só adorme-
ceu. Fique tranquilo, mas saia agora, temos que se-
guir os procedimentos necessários.
E assim foi.
Wagner Antonio de Araújo é ministro do evangelho
Natasha saiu do hospital em 20 dias. Sem explicação
e escritor.
convincente, os médicos quiseram impetrar a si
mesmos um erro de avaliação e diagnóstico, dizen-
do que pensaram que havia câncer onde nada exis- Leia centenas de outros textos no blog do autor:
http://prwagnerantoniodearaujo.blogspot.com
tia, mas não sabiam explicar as dúzias de exames,
de biópsias, de ressonâncias e de quimioterapias
feitas. Claro, grande parte da medicina desconhece

43
ESCOLHA
NA PLATAFORMA DO TREM DIZERES COMUNS
Tradução de Álvaro Alves de Faria
Tradução de Sammis Reachers Tradução de Álvaro Alves de Faria
Podes embarcar
Da alba ao crepúsculo Linguagem que não ondula,
na ternura
e sentir como o amor Tu estás na plataforma da tua orfanda- cotidiana para o homem
se oferece à respiração. de, e seu propósito;
esperando para ver
Ou bem o pai mais amado. linguagem
podes envenenar-te que conhece o pó do caminho
até a morte. E se isso não bastasse, e se ilumina ou se despe
Os sonhos - ou a memória - para mostrar-se mais nítida,
Podes abrir os olhos te permitem levantar
diante das tragédias cotidianas; a tampa do que foi vivido compreensível para crianças e idosos
e a nebulosa onde o supõe que esquecem qualquer derrota
ou podes fazer-te
de cego como extraviado. ouvindo palavras
em teu sofá confortável. sem asfixia,
Nesta estação
Não é fácil escolher O amor é a senha palavras que o humor
quando a esperança (ou a suplicante força) ou o clamor renascem no meio
é uma operação que abre as válvulas da rua, onde passam as meninas
de soma por onde é possível que passe o trem e mulheres,
e subtração. com o pai que limpou todas
as tuas feridas. ou falam com as moças
SOU, SEREI... com seu dizer comum, claro
Trad. de Álvaro Alves de Faria Esse e nenhum outro retorno
e contundente,
É a Felicidade para ti.
Não importa que minha carne como o milagre de existir
seja derrotada.
Sou, sempre serei
o espírito, HÁ DE BUSCAR-SE AMOR TEMPLO
pois cheguei muito antes Tradução de Maria José de Sant’ Anna Trad. de Álvaro Alves de Faria
de mim mesmo, e Reynaldo Valinho Alvarez
Em teu silêncio
em distante tempo O amor é licor de noite e dia cabe um templo
quando as árvores que embriaga docemente o homem para perdoar tanto
eram infinitas.
quando estabelece seus altares e ungir
É verdade que logo e se ergue invicto de azuis dúvidas efervescentes
fracassarei em tudo, voejos de mensagens sem idade. ou aquilo
menos na língua
Desdobremos o mapa do reino: que abranda a sede,
que aprendi ontem.
que o bom amor se considere
Dano menor é perder insistindo
como fruto do fluir do tempo,
o corpo. Meu espírito tem sem fechar os olhos,
como capela onde se congregam
e terá sua particular sem dizer
os amparados pela felicidade. palavras em falso,
experiência.
Busquemos o tesouro que postula dragando poços
Sou e serei o que passa encher o recanto gentil do coração: profundos,
pelo olho da agulha Chega, amor, com o fio de tua lei.
com as pupilas
Chega ao fundo de nós mesmos. solitário frequente
do sagrado. 44
sempre alucinadas.
LONGA VIDA AOS PROFETAS
Alfredo Pérez Alencart nasceu em Tradução de Sammis Reachers
Puerto Maldonado, Peru (1962), mas está ra-
dicado há Senhor, cada palavra tua é uma aliança
anos em Salaman- com a humildade que extingue a fome da alma
ca, Espanha, onde e faz germinar as sementes que foram secas.
é professor de Di- Mas para dizer a verdade
reito do Trabalho falaste a teus bem-aventurados profetas
desde 1987. Poeta, que clamam, sob um alvoroço sem migalhas,
escritor, tradutor e contra aqueles que exploram os pobres e os necessitados.
ensaísta. Foi secre- Assim mostram a fome que impede a feliz bonança
tário da Cátedra de dos embotados por manjares de avareza,
Poética Luis de babando suas preocupações sobre o caixão da misericórdia.
León da Pontifícia Universidade (entre 1992 e Eu sou pobre e sei o quão dura é a noite do homem
com fome que pouco espera de outra manhã,
1998) e é coordenador, desde 1998, dos En-
afundado na chuva, grunhindo de frio, com os olhos
contros de Poetas Ibero-Americanos, organi-
cerrados no meio da poça que molha seus sonhos
zados pela Fundação Cidade de Cultura e Co-
para que nasçam mortos pelo drama de todos os dias.
nhecimento de Salamanca. Atualmente é co- Clamam Amós e os demais, mas os poderosos
lunista dos jornais La Razón e El Norte de Cas- Evadem-se da praça sem oferecer pão algum
tilla, além de vários jornais e revistas digitais às bocas com fome, aos cheios do espírito.
na Espanha e na América Latina. É ainda presi- Banha-os, Senhor, com os dejetos imundos dos porcos,
dente do júri de diversos prêmios de poesia. e repudia-os para que não te encontrem nem no fundo do mar!
Fundador de Tiberíades—Rede Iberoamerica- Ponha fome no estômago dos insaciáveis
na de Poetas e Críticos Literários Cristãos. Re- e permita que a poderosa voz de seus profetas
cebeu, pelo conjunto da obra, o Prêmio Inter- tenha vida longa pelos séculos dos séculos!
nacional de Poesia Medalha Vicente Gerbasi,
do Círculo de Escritores de Venezuela, e o
Prêmio de Poesia Juan Baños, de Valadoli. Co- AS CHAVES DO REINO
mo poeta publicou La voluntad enhechiza- Tradução de Maria J. de Sant’ Anna e Reynaldo V. Alvarez
da (2001); Madre Selva (2002); Ofrendas al
tercer hijo de Amparo Bidon (2003); Pájaros Eu,
bajo la piel del alma (2006); Hombres traba- que sinto o coração
jando (2007); Cristo del Alma (2009); Estaci- de meus irmãos,
ón de las tormentas (2009); Savia de las Antí- sobre a pedra dos holocaustos
podas (2009); Aquí hago justicia (2010); Car- exponho o hinário
tografía de las revelaciones (2011); Margens que em meu peito escreveram
de um mundo ou Mosaico Lusita- os profetas.
no (2011); Prontuario de Infinito (2012); La
Eu,
piedra en la lengua (2013); Memorial de Tier-
que emigrei por distintos continentes,
raverde (2014); El sol de los ciegos (2014);
giro em direção à cratera do reino
Regreso a Galilea (2014, en inglês, hebraico,
onde ficaram impregnados
árabe e italiano), Lo más oscuro (2015, em
os feitos de Jesus.
cinquenta idiomas), Los éxodos, los exilios
(2015), El pie en el estribo (2016), Ante el mar, Eu,
callé (2017), Onde estao os outros? (2019, em outrora pedreiro de trabalhos forçados,
São Paulo) e Barro del Paraíso (2019). Em por- forjei umas chaves
tuguês, tem publicados os livros Cristo da Al- para que meu golpeado espírito
ma (2011); Aqui faço Justiça; Estação das Tor- possa entrar pela janela estreita
mentas; Da Selva a Salamanca; Margens de onde outra vida se festeja.
um Mundo ou Mosaico Lusitano (2011) e On-
de Estão os Outros? (2019). Sua poesia tem Eu não sou eu,
sido traduzida para mais de cinquenta idio- senão a voz de uma hoste de poetas
mas, e o autor já traduziu, por sua vez e ape- que levantam acampamento
nas dentre autores portugueses e brasileiros, em privilegiada parcela do Cristo
mais de cinquenta nomes. dos excluídos. 45
OS MEUS SENTIDOS
DA HORA SEXTA À NONA
Carlos Nejar
Jorge F. Isah
Um dia
vi Deus numa palavra As nuvens escureciam rapidamente,
e luminosa despontava, argila. ajuntando-se como exercito em guerra,
E Deus vagueava tudo, aquietava estampidos se repetiam no ceu insistentes,
as numinosas letras, quase em fila.
o vento soprava com furia,
E depois se banhava nesta ilha deslocando a poeira em círculos vertiginosos,
de bosques e bilenios. Clareava levantando o cheiro umido dos ruídos das eras,
as formigas noctambulas da fala. e dos coriscos a comoçao inesperada do drama.
E nele os meus sentidos se nutriam.
O dia se fez noite, no arrematado da hora sexta,
Os meus sentidos eram coelhos ebrios em que as densas brumas sufocaram o silencio,
na verdura de Deus entretecidos. arrebataram das maos e pes as consciencias,
A palavra empurrava o que era cego, no sangue vertido das chagas por uma sentença,
misturando-se ao odor ocre do barro e enxofre.
a palavra luzia nos sentidos.
E Deus nas vistas do menino, roda O mundo nao seria mais o mesmo,
e roda nos olhos da palavra.
nem antes, nem depois;
apenas a eternidade testemunharia o evento,
e manter-se-ia intocada,
POEMA porque mesmo aquele corpo, ainda que morto,
ressuscitaria apos tres dias,
Wolô
reconquistando a causa perdida dos homens,
Nao trago mala nem cuia levada a cabo pelas virtudes exclusivas
Mas na alma Aleluia! daquele que tem, em si, tudo e mais um pouco.
Nao tenho ouro nem prata
Mas no peito Maranata!

Posso nao ter um vintem


Mas dou o que Ele me manda
Levanta-te, meu filho, e anda
Em nome de Jesus, Amem!

RETORNO À ALAMEDA SÃO BOAVENTURA, 1071


DAVID Sammis Reachers
J. T. Parreira (Portugal) O abraço do obreiro na porta da congregação
Aquela sensação oceânica de casa
Nenhum homem esteve mais perto Fui enredado pela paz que combati
de Deus do que David Refundado em ágape, da fugacidade do frágil
por razão da música e seus salmos desp(ed)ido
Quando tocava
a harpa, era Deus que respirava Âncora para meu caos fez-se a Tua palavra,
Deus desfazia o silêncio nos dedos de David. E cais contra meus naufrágios

46
Galeria Charles Criador

Charles Lopes Santos, que assina seus trabalhos


como Charles Criador, é um manauara radicado em
São Paulo que tem marcado presença nas redes
sociais com sua arte impactante. Charles desen-
volve um ministério que ele chama de pintura pro-
fética, e com esse trabalho tem ministrado
workshops em igrejas e organizações, nas quais
são apresentados também lições e ministrações de
dança e teatro (vide flyer na próxima página).
Conheça e curta a página do artista no Facebook:
https://www.facebook.com/charlescriador/

47
48
Vamos para Belém! no momento.
O velho Elias suspirou. Conhecia bem aquela cabeça
dura: afinal, era seu sobrinho...
Anamaria Kovács — Escute, rapaz. Não estou brincando. Se eu tives-
se percebido que você dormia, teria lhe dado um
O velho Elias, ainda tonto depois de toda aquela lu- chute, na hora. Sinto muito que tenha perdido um
ze explosão de sons maravilhosos, olhou em torno. acontecimento tão importante. Mas você precisa ir
Seus companheiros haviam partido para Belém, dei- para Belém! O pessoal todo foi para lá.
xando-o sozinho para tomar conta dos rebanhos. Joaquim cruzou os braços, franziu a testa e fechou
De qualquer maneira, não poderia ir, pois a boca. Fixou as labaredas, e assim
a perna machucada na luta contra ficou por vários minutos. Elias
um lobo doía a cada passo. De Ilustração da autora sabia o que isso queria dizer:
repente, percebeu um vulto ele estava mesmo determi-
junto ao chão, do outro la- nado a não arredar pé dali.
do da fogueira. A brisa da madrugada co-
"Não é possível" — pen- meçou a soprar suave-
sou — "Será que o Joa- mente. El ias olhou para o
quim dormiu o tempo to- céu, ainda totalmente ne-
do?!" Ergueu-se a custo, gro, onde as estrelas cintila-
mancou até a trouxa e sacu- vam aos milhões.
diu-a, enquanto chamava o no- — Joaquim...
me do garoto. Uma cabeça desgre- — Hum.
nhada surgiu entre as dobras do manto — Posso provar o que lhe contei.
grosseiro, e uma voz rouca sussurrou: — Ah, é? Como?
— Que é? — Suba naquele outeiro e olhe na direção de Be-
— Ô rapaz, vai me dizer que você não viu nada do lém. Você verá uma estrela diferente, nova, mais
que aconteceu aqui? brilhante do que todas as outras. Ela marca o lugar
— Não vi o quê? — resmungou Joaquim, mal- onde está o menino.
humorado. — Ora, não seja ridículo. Quando eu chegar no topo
O velho suspirou. Ajeitou a fogueira e sentou-se ao do morro, a turma vai estar me esperando para rir
lado do rapaz, dizendo: de mim até o final dos tempos! Não adianta, tio.
—Acho bom você se levantar, pois a história é lon- Não saio daqui.
ga e incrível. O velho perdeu a paciência.
Joaquim sentou-se, esfregando os olhos. Apesar — Vou com você até lá. Vamos, levante-se!
dos seus quinze anos, era franzino, pois comia pou- Joaquim acabou cedendo. Subiram juntos a eleva-
co, mas suas pernas ágeis e braços fortes lhe garan- ção, o que não foi nada fácil para o velho. A recom-
tiam o miserável emprego de pastor de ovelhas. Só pensa, porém, valeu a pena. Elias também ainda
assim alimentava (mal) a mãe viúva e uma irmã pe- não vira a estrela. Ambos, tio e sobrinho, ficaram
quena. olhando, fascinados.
— Qual é a novidade? Cadê os outros? — Acredita agora? — perguntou Elias, triunfante.
Elias contou tudo: a luz no céu, o coral dos anjos, o — Sim... — murmurou o rapaz.
nascimento do Messias. Joaquim ouviu calado, en- — Escute... Você não acha que poderíamos ir juntos
quanto olhava em tomo, procurando, entre moitas até Belém?
e pedras, as silhuetas dos companheiros. Provavel- — E quem vai cuidar dos rebanhos?
mente estavam escondidos, prontos para rir dele se — Ora... Se há tantos anjos no céu para um simples
acreditasse naquela história absurda. anúncio, há de sobrar algum para cuidar das nossas
— ...E você também precisa ir para Belém, filho. ovelhas... Vamos lá, tio, apoie-se em mim! Vamos
Joaquim começou a rir. para Belém!
— Você acha que eu estou acreditando nessa histó-
ria da carochinha? Pensa que me engana? Posso ser
jovem, mas não sou tolo. Vocês já me pregaram pe- Anamaria Kovács é jornalista, escritora e professora apo-
ças antes, pensa que eu esqueci? Daqui não saio! sentada. Autora de mais de dez livros, entre contos, in-
Além disso, alguém precisa cuidar do rebanho, e, ao fantis e paradidáticos.
que me consta, você não é a pessoa ideal para isso,
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CINEMA

Sob a direção geral de Verônica Brendler, o FICC é um festival de cinema internacional que premia os
melhores filmes em suas categorias e orienta o processo criativo, articulando conhecimentos técnicos e de produção,
oferecendo ferramentas para o desenvolvimento de novos filmes que fomentam os valores de inclusão social, da
família, socioambiental, educacional e esportivo.
Participam exibidores, distribuidoras de filmes, players, produtoras, cineastas, produtores de games, estudantes de
cinema, youtubers, profissionais da arte das cinco regiões do país e exterior.
A 7ª edição do FICC está cheia de novidades, além de 23 categorias de Longas Metragens, Medias, Curtas, Séries, Do-
cumentários, Clipes Musicais, Animação, Games, entre outras, o Festival vem com um Prêmio Especial para youtu-
bers, humoristas, cia de teatro, atores, e publicitários que podem inscrever os seus vídeos.
É a primeira vez que o evento abre um prêmio para brasileiros inscreverem Roteiros de filmes. Vamos iniciar o pro-
cesso com roteiros até 5 páginas no Formato Master Scenes. Será uma excelente oportunidade para quem ama es-
crever e concorrer nessa premiação. Vale também para brasileiros que moram fora do país.
Nas classificações de filmes como de ação, suspense, drama, policial, musical, entre outros gêneros, o FICC recebe
duas linhas de filmes; o filme cristão e o filme com uma mensagem positiva, que agrega valores.
A Categoria de Melhor Filme Estrangeiro vem com duas classificações, AO e BO. AO - Alto Orçamento são produções
acima de U$ 1.000.000 (1 milhão) e BO - Baixo Orçamento são produções até 1 milhão. Na Categoria de Melhor Lon-
ga Metragem também temos a classificação de AO e BO, mas com outros valores cf Regulamento disponível no site.
A 6ª edição do Festival teve a participação de mais de 300 filmes inscritos. O FICC premiou diversas categorias de fil-
mes e também certificou distribuidoras e TVs. Em 2018, a Paris Filmes levou a chancela de Distribuidora que mais
exibiu filmes cristãos em cinemas nacionais e a TV Boas Novas levou a chancela de TV que mais exibiu filmes em sua
grade. Foram premiados produtoras e cineastas das 5 regiões do país e exterior e o ex-Ministro da Cultura Sergio Sá
leitão foi homenageado pela excelente gestão cultural.
As inscrições foram prorrogadas até 31 de julho, e são gratuitas. Para participar é necessário ler todo o Regulamento
que já está disponível no site https://festivaldecinemaficc.com/viificc Ao todo são 23 categorias de filmes que passa-
rão pelo crivo da curadoria e da comissão julgadora. O Festival acontece em novembro desse ano, no Rio de Janeiro
– RJ.
Assista agora o trailer das melhores imagens do VI FICC e inscrições: https://youtu.be/wkSCEofIhIU
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Resenhas
LIVRO / Arppegios Insulares [POESIA]—Jorge Fernandes Isah (Kálamos Editora, 2019).
Toda obra poética, da sua concepção aos acabamentos, é a realização da potência presente no
escritor de expandir seu mundo interior e de dominar as formas de interiorizá-lo e dizê-lo.
Em seu novo livro, Arpeggios Insulares, Jorge Fernandes Isah dá mais um passo na direção de
clarificar melhor sua linguagem. Com isso, ganha o leitor que, no afã de conhecer outros mun-
dos e pessoas, tem a oportunidade de revisitar temas fundadores do Ocidente como o conhe-
cemos.
Não apenas ideias vagas e descarnadas dessa centelha de vida que as fez crescer no passado,
mas decididamente experiências íntimas onde podemos ver a centralidade de Deus e dos valo-
res judaico-cristãos que habitam com perenidade a mente do autor.
Quando não se tratam de experiências pessoais ou, pelo menos, ativadas por simples atitudes do dia a dia, vemos
também um olhar para o outro. Para o que se virá a ser, ou diante do Pai na glória eterna ou diante do Juiz no fla-
gelo eterno.
Jorge, nesse sentido é, no mínimo, um bruxuleio que tem se levantado contra a escuridão das trevas. Uso este
termo por conta de motivo evidente, qual seja: a escuridão em que nos encontramos tem crescido. Não só no
campo da fé, mas em diversos outros em que observamos um acentuado processo de deterioração, do qual nem
a língua escapa.
Nota-se que há uma clarificação do universo que se está desvelando à medida que transcorremos as páginas de
Arppegios. No primeiro livro do autor, percebe-se um entranhamento ainda muito grande das ideias e da forma
de dizê-las, dando ao leitor uma sensação de estar sendo levado e absorvido pelo fluxo de pensamento do men-
sageiro. Neste segundo livro, conseguimos enxergar ideias já mais bem colocadas e o dizer mais à mão da pena.
Muito há ainda a se fazer no burilar das estrofes e versos, mas vejo na profusão de obras publicadas que não falta
a quem nos escreve e nos delicia com seu nanquim o vigor e o desejo de crescer e se tornar, ao longo dos anos,
um dos grandes virtuoses de nossa poesia, numa época em que se veem mais no horizonte espinhos e abrolhos
do que a boa vinha das musas a inebriar poetas e leitores. - Marcos Rios
O livro está disponível na Amazon, AQUI.

LIVRO / Travessia do Mar Vermelho e Outros Poemas [POESIA]—J. T. Parreira. Seleção de


José Brissos-Lino e Alfredo Pérez Alencart e tradução de Alfredo Pérez Alencart (Edições
Tiberíades, 2019).
No ano de 2018, a literatura lusófona de expressão evangélica, notadamente a Poesia, so-
freu grande perda com a passagem para a glória do poeta português João Tomaz Parreira. A
pena eleita e incansável de Parreira agraciou, com seus tons de chiaroscuro, o paladar de
leitores dos dois lados do Atlântico e alhures.
Neste Travessia do Mar Vermelho e Outros Poemas (edição bilíngue), o poeta e ativista Al-
fredo Pérez Alencart selecionou e traduziu poemas que dão nota do poder transcendente da
pena de Parreira.
Palavras da apresentação do livro, por Brissos-Lino, dando panorama da obra do autor: “O poeta revisita, nos po-
emas que nos oferece, nomes relevantes da literatura e da cultura Universal [...] [mas reflete] também sobre a
vida quotidiana do comum dos mortais. O poeta via, nos passos repetidos do dia, na monotonia dos gestos, na
ocupação habitual dos espaços e na liturgia dos procedimentos, significâncias que escapam à ditadura da exegese
tradicional dos hábitos adquiridos. O universo bíblico foi, porém, a linha de inspiração e opção literária por exce-
lência que acompanhou o autor desde sempre, e que mantinha num vasto conjunto de poemas da sua obra. [...]
A universalidade temática observada na poesia do autor diz-nos alguma coisa, não apenas sobre a sua vasta cultu-
ra literária, e a sua riqueza como pessoa permanentemente atenta ao mundo dos homens, mas sobretudo sobre
as suas preocupações como ser humano, com os outros seres humanos, seus irmãos, tendo em conta os seus so-
frimentos, as suas angústias existenciais, as circunstâncias de vida que experimentam, incluindo as lutas, fracas-
sos e vitórias, contingências típicas de quem não se consegue salvar a si mesmo.” - Sammis Reachers
O livro está disponível para download gratuito, AQUI.

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Caio, O Pardal Pensativo - www.facebook.com/Caioopardal
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CARTA DE JOÃO PAULO II AOS ARTISTAS

Amplitude é uma revista declaradamente protestante, em sua confissão de fé, cosmovi-


são e objetivos. Entretanto, abrimos com prazer espaço para a publicação da carta do
Papa João Paulo II aos Artistas, confiantes de que as palavras aqui presentes reverbera-
rão nos corações de todos os apreciadores e praticantes da arte como expressão do
bem, do bom e do divino, em suas múltiplas formas. Arte é missão.

1999
A todos aqueles que apaixonadamente
procuram novas “epifanias” da beleza
para oferecê-las ao mundo
como criação artística.
“Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa” (Gn 1,31).

O artista, imagem de Deus Criador


1. Ninguem melhor do que vos, artistas, construtores geniais de beleza, pode intuir algo daquele pathos
com que Deus, na aurora da criaçao, contemplou a obra das suas maos. Infinitas vezes se espelhou um
relance daquele sentimento no olhar com que vos — como, alias, os artistas de todos os tempos —, ma-
ravilhados com o arcano poder dos sons e das palavras, das cores e das formas, vos pusestes a admirar a
obra nascida do vosso genio artístico, quase sentindo o eco daquele misterio da criaçao a que Deus, uni-
co criador de todas as coisas, de algum modo vos quis associar.
Pareceu-me, por isso, que nao havia palavras mais apropriadas do que as do livro do Genesis para come-
çar esta minha Carta para vos, a quem me sinto ligado por experiencias dos meus tempos passados e
que marcaram indelevelmente a minha vida. Ao escrever-vos, desejo dar continuidade aquele fecundo
dialogo da Igreja com os artistas que, em dois mil anos de historia, nunca se interrompeu e se preve ain-
da rico de futuro no limiar do terceiro milenio.
Na realidade, nao se trata de um dialogo ditado apenas por circunstancias historicas ou motivos utilita-
rios, mas radicado na propria essencia tanto da experiencia religiosa como da criaçao artística. A pagina
inicial da Bíblia apresenta-nos Deus quase como o modelo exemplar de toda a pessoa que produz uma
obra: no artífice, reflete-se a sua imagem de Criador. Esta relaçao e claramente evidenciada na língua
polaca, com a semelhança lexical das palavras stwórca (criador) e twórca (artífice).
Qual e a diferença entre “criador” e “artífice”? Quem cria da o proprio ser, tira algo do nada — ex nihilo
sui et subiecti, como se costuma dizer em latim — e isto, em sentido estrito, e um modo de proceder ex-
clusivo do Onipotente. O artífice, ao contrario, utiliza algo ja existente, a que da forma e significado. Este
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modo de agir e peculiar do homem enquanto imagem de Deus. Com efeito, depois de ter afirmado que
Deus criou o homem e a mulher “a sua imagem” (cf. Gn 1,27), a Bíblia acrescenta que Ele confiou-lhes a
tarefa de dominarem a terra (cf. Gn 1,28). Foi no ultimo dia da criaçao (cf. Gn 1,28-31). Nos dias anterio-
res, como que marcando o ritmo da evoluçao cosmica, Jave tinha criado o universo. No final, criou o ho-
mem, o fruto mais nobre do seu projeto, a quem submeteu o mundo visível como um campo imenso on-
de exprimir a sua capacidade inventiva.
Por conseguinte, Deus chamou o homem a existencia, dando-lhe a tarefa de ser artífice. Na “criaçao ar-
tística”, mais do que em qualquer outra atividade, o homem revela-se como “imagem de Deus”, e realiza
aquela tarefa, em primeiro lugar plasmando a “materia” estupenda da sua humanidade e depois exer-
cendo um domínio criativo sobre o universo que o circunda. Com amorosa condescendencia, o Artista
divino transmite uma centelha da sua sabedoria transcendente ao artista humano, chamando-o a parti-
lhar do seu poder criador. Obviamente e uma participaçao, que deixa intacta a infinita distancia entre o
Criador e a criatura, como sublinhava o Cardeal Nicolau Cusano: “A arte criativa, que a alma tem a sorte
de albergar, nao se identifica com aquela arte por essencia que e propria de Deus, mas constitui apenas
comunicaçao e participaçao dela”.[1]
Por isso, quanto mais consciente esta o artista do “dom” que possui, tanto mais se sente impelido a olhar
para si mesmo e para a criaçao inteira com olhos capazes de contemplar e agradecer, elevando a Deus o
seu hino de louvor. So assim e que ele pode compreender-se profundamente a si mesmo e a sua vocaçao
e missao.

A vocação especial do artista


2. Nem todos sao chamados a ser artistas, no sentido específico do termo. Mas, segundo a expressao do
Genesis, todo o homem recebeu a tarefa de ser artífice da propria vida: de certa forma, deve fazer dela
uma obra de arte, uma obra-prima.
E importante notar a distinçao entre estas duas vertentes da atividade humana, mas tambem a sua co-
nexao. A distinçao e evidente. De fato, uma coisa e a predisposiçao pela qual o ser humano e autor dos
proprios atos e responsavel do seu valor moral, e outra a predisposiçao pela qual e artista, isto e, sabe
agir segundo as exigencias da arte, respeitando fielmente as suas regras específicas.[2] Assim, o artista e
capaz de produzir objetos, mas isso de per si ainda nao indica nada sobre as suas disposiçoes morais.
Neste caso, nao se trata de plasmar-se a si mesmo, de formar a propria personalidade, mas apenas de
fazer frutificar capacidades operativas, dando forma estetica as ideias concebidas pela mente.
Mas, se a distinçao e fundamental, importante e igualmente a conexao entre as duas predisposiçoes: a
moral e a artística. Ambas se condicionam de forma recíproca e profunda. De fato, o artista, quando mo-
dela uma obra, exprime-se de tal modo a si mesmo que o resultado constitui um reflexo singular do pro-
prio ser, daquilo que ele e e de como o e. Isto aparece confirmado inumeras vezes na historia da huma-
nidade. De fato, quando o artista plasma uma obra-prima, nao da vida apenas a sua obra, mas, por meio
dela, de certo modo manifesta tambem a propria personalidade. Na arte, encontra uma dimensao nova e
um canal estupendo de expressao para o seu crescimento espiritual. Atraves das obras realizadas, o ar-
tista fala e comunica com os outros. Por isso, a Historia da Arte nao e apenas uma historia de obras, mas
tambem de homens. As obras de arte falam dos seus autores, dao a conhecer o seu íntimo e revelam o
contributo original que eles oferecem a historia da cultura.

A vocação artística ao serviço da beleza


3. Um conhecido poeta polaco, Cyprian Norwid, escreveu: “A beleza e para dar entusiasmo ao trabalho, o
trabalho para ressurgir”.[3]
O tema da beleza e qualificante, ao falar de arte. Esse tema apareceu ja, quando sublinhei o olhar de
complacencia que Deus lançou sobre a criaçao. Ao por em relevo que tudo o que tinha criado era bom,
Deus viu tambem que era belo.[4] A confrontaçao entre o bom e o belo gera sugestivas reflexoes. Em
certo sentido, a beleza e a expressao visível do bem, do mesmo modo que o bem e a condiçao metafísica
da beleza. Justamente o entenderam os Gregos, quando, fundindo os dois conceitos, cunharam uma pa-
lavra que abraça a ambos: “kalokagathía”, ou seja, “beleza-bondade”. A este respeito, escreve Platao: “A
força do Bem refugiou-se na natureza do Belo”.[5]
Vivendo e agindo e que o homem estabelece a sua relaçao com o ser, a verdade e o bem. O artista vive
numa relaçao peculiar com a beleza. Pode-se dizer, com profunda verdade, que a beleza e a vocaçao a

57
que o Criador o chamou com o dom do “talento artístico”. E tambem este e, certamente, um talento que,
na linha da parabola evangelica dos talentos (cf. Mt 25,14-30), se deve por a render.
Tocamos aqui um ponto essencial. Quem tiver notado em si mesmo esta especie de centelha divina que
e a vocaçao artística — de poeta, escritor, pintor, escultor, arquiteto, musico, ator... —, adverte ao mes-
mo tempo a obrigaçao de nao desperdiçar este talento, mas de o desenvolver para coloca -lo ao serviço
do proximo e de toda a humanidade.

O artista e o bem comum


4. De fato, a sociedade tem necessidade de artistas, da mesma forma que precisa de cientistas, tecnicos,
trabalhadores, especialistas, testemunhas da fe, professores, pais e maes, que garantam o crescimento
da pessoa e o progresso da comunidade, atraves daquela forma sublime de arte que e a “arte de educar”.
No vasto panorama cultural de cada naçao, os artistas tem o seu lugar específico. Precisamente enquan-
to obedecem ao seu genio artístico na realizaçao de obras verdadeiramente validas e belas, nao so enri-
quecem o patrimonio cultural da naçao e da humanidade inteira, mas prestam tambem um serviço soci-
al qualificado ao bem comum.
A vocaçao diferente de cada artista, ao mesmo tempo que determina o ambito do seu serviço, indica
tambem as tarefas que deve assumir, o trabalho duro a que tem de sujeitar-se, a responsabilidade que
deve enfrentar. Um artista, consciente de tudo isto, sabe tambem que deve atuar sem deixar-se dominar
pela busca duma gloria efemera ou pela ansia de uma popularidade facil, e menos ainda pelo calculo do
possível ganho pessoal. Ha, portanto, uma etica ou melhor uma “espiritualidade” do serviço artístico,
que a seu modo contribui para a vida e o renascimento do povo. A isto mesmo parece querer aludir
Cyprian Norwid, quando afirma: “A beleza e para dar entusiasmo ao trabalho, o trabalho para ressur-
gir”.

A arte face ao mistério do Verbo encarnado


5. A Lei do Antigo Testamento contem uma proibiçao explícita de representar Deus invisível e inexpri-
mível atraves duma “estatua esculpida ou fundida” (Dt 27,15), porque Ele transcende qualquer repre-
sentaçao material: “Eu sou Aquele que sou” (Ex 3,14). No misterio da Encarnaçao, porem, o Filho de
Deus tornou-Se visível em carne e osso: “Ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho,
nascido de mulher” (Gl 4,4). Deus fez-Se homem em Jesus Cristo, que Se tornou assim “o centro de refe-
rencia para se poder compreender o enigma da existencia humana, do mundo criado, e mesmo de Deus”.
[6]
Esta manifestaçao fundamental do “Deus-Misterio”” apresenta-se como estímulo e desafio para os cris-
taos, inclusive no plano da criaçao artística. E gerou-se um florescimento de beleza, cuja linfa proveio
precisamente daqui, do misterio da Encarnaçao. De fato, quando Se fez homem, o Filho de Deus introdu-
ziu na historia da humanidade toda a riqueza evangelica da verdade e do bem e, atraves dela, pos a des-
coberto tambem uma nova dimensao da beleza: a mensagem evangelica esta completamente cheia dela.
A Sagrada Escritura tornou-se, assim, uma especie de “dicionario imenso” (P. Claudel) e de “atlas icono-
grafico” (M. Chagall), onde foram beber a cultura e a arte crista. O proprio Antigo Testamento, interpre-
tado a luz do Novo, revelou mananciais inexauríveis de inspiraçao. Desde as narraçoes da criaçao, do
pecado, do diluvio, do ciclo dos Patriarcas, dos acontecimentos do exodo, passando por tantos outros
episodios e personagens da Historia da Salvaçao, o texto bíblico atiçou a imaginaçao de pintores, poetas,
musicos, autores de teatro e de cinema. Uma figura como a de Jo, so para dar um exemplo, com a proble-
matica pungente e sempre atual da dor, continua a suscitar conjuntamente interesse filosofico, literario
e artístico. E que dizer entao do Novo Testamento? Desde o Nascimento ao Golgota, da Transfiguraçao a
Ressurreiçao, dos milagres aos ensinamentos de Cristo, ate chegar aos acontecimentos narrados nos
Atos dos Apostolos ou previstos no Apocalipse em chave escatologica, inumeras vezes a palavra bíblica
se fez imagem, musica, poesia, evocando com a linguagem da arte o misterio do “Verbo feito carne”.
Tudo isto constitui, na historia da cultura, um amplo capítulo de fe e de beleza. Dele tiraram proveito
sobretudo os crentes para a sua experiencia de oraçao e de vida. Para muitos deles, em tempos de escas-
sa alfabetizaçao, as expressoes figurativas da Bíblia constituíram mesmo um meio concreto de catequi-
zaçao.[7] Mas para todos, crentes ou nao, as realizaçoes artísticas inspiradas na Sagrada Escritura per-
manecem um reflexo do misterio insondavel que abraça e habita o mundo.

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Entre Evangelho e arte, uma aliança profunda
6. Com efeito, toda a intuiçao artística autentica ultrapassa o que os sentidos captam e, penetrando na
realidade, esforça-se por interpretar o seu misterio escondido. Ela brota das profundidades da alma hu-
mana, la onde a aspiraçao de dar um sentido a propria vida se une com a percepçao fugaz da beleza e da
unidade misteriosa das coisas. Uma experiencia partilhada por todos os artistas e a da distancia incol-
mavel que existe entre a obra das suas maos, mesmo quando bem sucedida, e a perfeiçao fulgurante da
beleza vislumbrada no ardor do momento criativo: tudo o que conseguem exprimir naquilo que pintam,
modelam, criam, nao passa de um palido reflexo daquele esplendor que brilhou por instantes diante dos
olhos do seu espírito.
O crente nao se maravilha disto: sabe que se debruçou por um instante sobre aquele abismo de luz que
tem a sua fonte originaria em Deus. Ha porventura motivo para admiraçao, se o espírito fica de tal modo
inebriado que nao sabe exprimir-se senao por balbuciaçoes? Ninguem mais do que o verdadeiro artista
esta pronto a reconhecer a sua limitaçao e fazer suas as palavras do apostolo Paulo, segundo o qual
Deus “nao habita em santuarios construídos pela mao do homem”, pelo que “nao devemos pensar que a
Divindade seja semelhante ao ouro, a prata ou a pedra, trabalhados pela arte e engenho do ho-
mem” (Act 17,24.29). Se ja a realidade íntima das coisas se situa “para alem” das capacidades de com-
preensao humana, quanto mais Deus nas profundezas do seu misterio insondavel!
Ja de natureza diversa e o conhecimento de fe: este supoe um encontro pessoal com Deus em Jesus Cris-
to. Mas tambem este conhecimento pode tirar proveito da intuiçao artística. Modelo eloquente duma
contemplaçao estetica que se sublima na fe sao, por exemplo, as obras de Fra Angelico. A este respeito, e
igualmente significativa a lauda extasiada, que S. Francisco de Assis repete duas vezes na chartula, redi-
gida depois de ter recebido os estigmas de Cristo no monte Alverne: “Vos sois beleza... Vos sois beleza!”.
[8] S. Boaventura comenta: “Contemplava nas coisas belas o Belíssimo e, seguindo o rasto impresso nas
criaturas, buscava por todo o lado o Dileto”.[9]
Uma perspectiva semelhante aparece na espiritualidade oriental, quando Cristo e designado como “o
Belíssimo de maior beleza que todos os mortais”.[10] Assim comenta Macario, o Grande, a beleza trans-
figurante e libertadora que irradia do Ressuscitado: “A alma que foi plenamente iluminada pela beleza
inexprimível da gloria luminosa do rosto de Cristo, fica cheia do Espírito Santo (...) e toda olhos, toda luz,
toda rosto”.[11]
Toda a forma autentica de arte e, a seu modo, um caminho de acesso a realidade mais profunda do ho-
mem e do mundo. E, como tal, constitui um meio muito valido de aproximaçao ao horizonte da fe, onde a
existencia humana encontra a sua plena interpretaçao. Por isso e que a plenitude evangelica da verdade
nao podia deixar de suscitar, logo desde os primordios, o interesse dos artistas, sensíveis por natureza a
todas as manifestaçoes da beleza íntima da realidade.

Os primórdios
7. A arte, que o cristianismo encontrou nos seus inícios, era o fruto maduro do mundo classico, exprimia
os seus canones esteticos e, ao mesmo tempo, veiculava os seus valores. A fe impunha aos cristaos, tanto
no campo da vida e do pensamento como no da arte, um discernimento que nao permitia a aceitaçao au-
tomatica deste patrimonio. Assim, a arte de inspiraçao crista começou em surdina, ditada pela necessi-
dade que os crentes tinham de elaborar sinais para exprimirem, com base na Escritura, os misterios da
fe e simultaneamente de arranjar um “codigo simbolico” para se reconhecerem e identificarem especial-
mente nos tempos difíceis das perseguiçoes. Quem nao recorda certos símbolos que foram os primeiros
vestígios duma arte pictorica e plastica? O peixe, os paes, o pastor... Evocavam o misterio, tornando-se
quase insensivelmente esboços de uma arte nova.
Quando, pelo edito de Constantino, foi concedido aos cristaos exprimirem-se com plena liberdade, a arte
tornou-se um canal privilegiado de manifestaçao da fe. Por todo o lado, começaram a despontar majes-
tosas basílicas, nas quais os canones arquitetonicos do antigo paganismo eram assumidos sim, mas rea-
justados as exigencias do novo culto. Como nao recordar pelo menos a antiga Basílica de S. Pedro e a de
S. Joao de Latrao, construídas pelo imperador Constantino? Ou, no ambito dos esplendores da arte bi-
zantina, a Haghia Sophía de Constantinopla querida por Justiniano?
Enquanto a arquitetura desenhava o espaço sagrado, a necessidade de contemplar o misterio e de o pro-
por de modo imediato aos simples levou progressivamente as primeiras expressoes da arte pictorica e
escultural. Ao mesmo tempo surgiam os primeiros esboços de uma arte da palavra e do som; e se Agos-

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tinho incluía tambem, entre as tematicas da sua produçao, um De musica, Hilario, Ambrosio, Prudencio,
Efrem da Síria, Gregorio de Nazianzo, Paulino de Nola, para citar apenas alguns nomes, faziam-se pro-
motores de poesia crista, que atinge frequentemente um alto valor nao so teologico mas tambem litera-
rio. A sua produçao poetica valorizava formas herdadas dos classicos, mas bebia na linfa pura do Evan-
gelho, como justamente sentenciava o Santo poeta de Nola: “A nossa unica arte e a fe, e Cristo e o nosso
canto”.[12] Algum tempo mais tarde, Gregorio Magno, com a compilaçao do Antiphonarium, punha as
premissas para o desenvolvimento organico daquela musica sacra tao original, que ficou conhecida pelo
nome dele. Com as suas inspiradas modulaçoes, o Canto Gregoriano tornar-se-a, com o passar dos secu-
los, a expressao melodica típica da fe da Igreja Catolica durante a celebraçao liturgica dos Misterios Sa-
grados. Assim, o “belo” conjugava-se com o “verdadeiro”, para que, tambem atraves dos caminhos da
arte, os animos fossem arrebatados do sensível ao eterno.
Nao faltaram momentos difíceis neste caminho. A proposito precisamente do tema da representaçao do
misterio cristao, a antiguidade conheceu uma aspera controversia, que passou a historia com o nome de
“luta iconoclasta”. As imagens sagradas, ja entao difusas na devoçao do povo de Deus, foram objeto de
violenta contestaçao. O Concílio celebrado em Niceia no ano 787, que estabeleceu a legitimidade das
imagens e do seu culto, foi um acontecimento historico nao so para a fe mas tambem para a propria cul-
tura. O argumento decisivo a que recorreram os Bispos para debelar a controversia, foi o misterio da
Encarnaçao: se o Filho de Deus entrou no mundo das realidades visíveis, lançando, pela sua humanida-
de, uma ponte entre o visível e o invisível, e possível pensar que analogamente uma representaçao do
misterio pode ser usada, pela dinamica propria do sinal, como evocaçao sensível do misterio. O ícone
nao e venerado por si mesmo, mas reenvia ao sujeito que representa.[13]

A Idade Média
8. Os seculos seguintes foram testemunhas dum grande desenvolvimento da arte crista. No Oriente, con-
tinuou a florescer a arte dos ícones, vinculada a significativos canones teologicos e esteticos e apoiada
na convicçao de que, em determinado sentido, o ícone e um sacramento: com efeito, de modo analogo ao
que sucede nos sacramentos, ele torna presente o misterio da Encarnaçao nalgum dos seus aspectos.
Por isso mesmo, a beleza dum ícone pode ser apreciada sobretudo no interior de um templo, com os
candelabros que ardem e suscitam na penumbra infinitos reflexos de luz. A este respeito, escreve Pavel
Florenskij: “Barbaro, pesado, futil a luz clara do dia, o ouro reanima-se com a luz tremula dum candela-
bro ou duma vela, que o faz cintilar aqui e ali com miríades de fulgores, fazendo pressentir outras luzes
nao terrestres que enchem o espaço celeste”.[14]
No Ocidente, sao muito variadas as perspectivas e os pontos donde partem os artistas, dependendo tam-
bem das convicçoes fundamentais presentes no ambiente cultural do respectivo tempo. O patrimonio
artístico, que se foi acumulando ao longo dos seculos, conta um florescimento vastíssimo de obras sa-
cras de alta inspiraçao, que deixam cheio de admiraçao mesmo o observador do nosso tempo. Em pri-
meiro plano, situam-se as grandes construçoes do culto, onde a funcionalidade sempre se une ao genio
artístico, e este ultimo se deixa inspirar pelo sentido do belo e pela intuiçao do misterio. Nascem daí es-
tilos bem conhecidos na Historia da Arte. A força e a simplicidade do romanico, expressa nas catedrais
ou nas abadias, vai-se desenvolvendo gradualmente nas ogivas e esplendores do gotico. Dentro destas
formas, nao existe so o genio dum artista, mas a alma dum povo. Nos jogos de luzes e sombras, nas for-
mas ora maciças ora ogivadas, intervem certamente consideraçoes de tecnica estrutural, mas tambem
tensoes proprias da experiencia de Deus, misterio “tremendo” e “fascinante”. Como sintetizar em pou-
cos traços, nas diversas expressoes da arte, a força criativa dos longos seculos da Idade Media crista?
Uma cultura inteira, embora com as limitaçoes humanas sempre presentes, impregnara-se de Evange-
lho, e onde o pensamento teologico realizava a Summa de S. Tomas, a arte das igrejas submetia a mate-
ria a adoraçao do misterio, ao mesmo tempo que um poeta admiravel como Dante Alighieri podia com-
por “o poema sagrado, para o qual concorreram ceu e terra”,[15] como ele proprio classifica a Divina
Comedia.

Humanismo e Renascimento
9. A feliz estaçao cultural, em que tem origem o florescimento artístico extraordinario do Humanismo e
do Renascimento, apresenta tambem reflexos significativos do modo como os artistas desse período
concebiam o tema religioso. Naturalmente as inspiraçoes sao tao variadas como os seus estilos, ou pelo

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menos como os mais importantes deles. Mas, nao e minha intençao lembrar coisas que vos, artistas, bem
conheceis. Dado que vos escrevo deste Palacio Apostolico, escrínio de obras-primas talvez unico no
mundo, quero antes fazer-me voz dos maiores artistas que por aqui disseminaram as riquezas do seu
genio, permeado frequentemente de grande profundidade espiritual. Daqui fala Michelangelo, que na
Capela Sistina de algum modo compendiou, desde a Criaçao ao Juízo Universal, o drama e o misterio do
mundo, retratando Deus Pai, Cristo Juiz, o homem no seu fatigante caminho desde as origens ate ao fim
da Historia. Daqui fala o genio delicado e profundo de Rafael, apontando, na variedade das suas pinturas
e de modo especial na “Disputa” da Sala da Assinatura, o misterio da revelaçao de Deus Trinitario, que
na Eucaristia Se faz companheiro do homem, e projeta luz sobre as questoes e os anelos da inteligencia
humana. Daqui, da majestosa Basílica dedicada ao Príncipe dos Apostolos, da colunata que sai dela como
dois braços abertos para acolher a humanidade, falam ainda Bramante, Bernini, Borromini, Maderno,
para citar apenas os maiores, oferecendo plasticamente o sentido do misterio que faz da Igreja uma co-
munidade universal, hospitaleira, mae e companheira de viagem para todo o homem a procura de Deus.
A arte sacra encontrou, neste conjunto extraordinario, uma força expressiva excepcional, atingindo ní-
veis de imorredouro valor quer estetico quer religioso. O que vai caracterizando cada vez mais tal arte,
sob o impulso do Humanismo e do Renascimento e das sucessivas tendencias da cultura e da ciencia, e
um crescente interesse pelo homem, pelo mundo, pela realidade historica. Esta atençao, por si mesma,
nao e de modo algum um perigo para a fe crista, centrada sobre o misterio da Encarnaçao e, portanto,
sobre a valorizaçao do homem por parte de Deus. Precisamente os maiores artistas acima mencionados
no-lo demonstram. Bastaria pensar no modo como Michelangelo exprime nas suas pinturas e esculturas,
a beleza do corpo humano.[16]
Alias, mesmo no novo clima dos ultimos seculos quando parte da sociedade parece indiferente a fe, a
arte religiosa nao cessou de avançar. A constataçao torna-se ainda mais palpavel, se da vertente das ar-
tes figurativas se passa a considerar o grande desenvolvimento que, neste mesmo período de tempo,
teve a musica sacra, composta para as necessidades liturgicas, ou apenas relacionada com temas religio-
sos. Sem contar tantos artistas que a ela se dedicaram amplamente (como nao lembrar Pero Luís de Pa-
lestrina, Orlando de Lasso, Tomas Luís de Victoria?), e sabido que muitos dos grandes compositores —
de Handel a Bach, de Mozart a Schubert, de Beethoven a Berlioz, de Listz a Verdi — nos ofereceram
obras de altíssima inspiraçao tambem neste campo.

A caminho dum renovado diálogo


10. Verdade e que, na Idade Moderna, ao lado deste humanismo cristao que continuou a produzir signi-
ficativas expressoes de cultura e de arte, foi-se progressivamente afirmando tambem uma forma de hu-
manismo caracterizada pela ausencia de Deus senao mesmo pela oposiçao a Ele. Este clima levou por
vezes a uma certa separaçao entre o mundo da arte e o da fe, pelo menos no sentido de menor interesse
de muitos artistas pelos temas religiosos.
Mas, vos sabeis que a Igreja continuou a nutrir grande apreço pelo valor da arte enquanto tal. De fato
esta, mesmo fora das suas expressoes mais tipicamente religiosas, mantem uma afinidade íntima com o
mundo da fe, de modo que, ate mesmo nas condiçoes de maior separaçao entre a cultura e a Igreja, e
precisamente a arte que continua a constituir uma especie de ponte que leva a experiencia religiosa. En-
quanto busca do belo, fruto duma imaginaçao que voa mais acima do dia-a-dia, a arte e, por sua nature-
za, uma especie de apelo ao Misterio. Mesmo quando perscruta as profundezas mais obscuras da alma
ou os aspectos mais desconcertantes do mal, o artista torna-se de qualquer modo voz da esperança uni-
versal de redençao.
Compreende-se, assim, porque a Igreja esta especialmente interessada no dialogo com a arte e quer que
se realize na nossa epoca uma nova aliança com os artistas, como o dizia o meu venerando predecessor
Paulo VI no seu discurso veemente aos artistas, durante um encontro especial na Capela Sistina a 7 de
Maio de 1964.[17] A Igreja espera dessa colaboraçao uma renovada “epifania” de beleza para o nosso
tempo e respostas adequadas as exigencias proprias da comunidade crista.

No espírito do Concílio Vaticano II


11. O Concílio Vaticano II lançou as bases para uma renovada relaçao entre a Igreja e a cultura, com re-
flexos imediatos no mundo da arte. Tal relaçao e proposta na base da amizade, da abertura e do dialogo.
Na Constituiçao pastoral Gaudium et spes, os Padres Conciliares sublinharam a “grande importancia” da

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literatura e das artes na vida do homem: “Elas procuram dar expressao a natureza do homem, aos seus
problemas e a experiencia das suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si mesmo e ao mun-
do; e tentam identificar a sua situaçao na historia e no universo, dar a conhecer as suas miserias e ale-
grias, necessidades e energias, e desvendar um futuro melhor”.[18]
Baseados nisto, os Padres, no final do Concílio, dirigiram aos artistas uma saudaçao e um apelo, nestes
termos: “O mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para nao cair no desespero. A beleza, co-
mo a verdade, e a que traz alegria ao coraçao dos homens, e este fruto precioso que resiste ao passar do
tempo, que une as geraçoes e as faz comungar na admiraçao”.[19] Neste mesmo espírito de profunda
estima pela beleza, a Constituiçao sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium lembrou a historica
amizade da Igreja pela arte e, falando mais especificamente da arte sacra, “vertice” da arte religiosa, nao
hesitou em considerar como “nobre ministerio” a atividade dos artistas, quando as suas obras sao capa-
zes de refletir de algum modo a beleza infinita de Deus e orientar para Ele a mente dos homens.
[20] Tambem atraves do seu contributo, “o conhecimento de Deus e mais perfeitamente manifestado e a
pregaçao evangelica torna-se mais compreensível ao espírito dos homens”.[21] A luz disto, nao surpre-
ende a afirmaçao do Padre Marie-Dominique Chenu, segundo o qual o historiador da Teologia deixaria a
sua obra incompleta, se nao dedicasse a devida atençao as realizaçoes artísticas, quer literarias quer
plasticas, que a seu modo constituem “nao so ilustraçoes esteticas, mas verdadeiros ‘lugares’ teologi-
cos”.[22]

A Igreja precisa da arte


12. Para transmitir a mensagem que Cristo lhe confiou, a Igreja tem necessidade da arte. De fato, deve
tornar perceptível e ate o mais fascinante possível o mundo do espírito, do invisível, de Deus. Por isso,
tem de transpor para formulas significativas aquilo que, em si mesmo, e inefavel. Ora, a arte possui uma
capacidade muito propria de captar os diversos aspectos da mensagem, traduzindo-os em cores, formas,
sons que estimulam a intuiçao de quem os ve e ouve. E isto, sem privar a propria mensagem do seu va-
lor transcendente e do seu halo de misterio.
A Igreja precisa particularmente de quem saiba realizar tudo isto no plano literario e figurativo, traba-
lhando com as infinitas possibilidades das imagens e suas valencias simbolicas. O proprio Cristo utilizou
amplamente as imagens na sua pregaçao, em plena coerencia, alias, com a opçao que, pela Encarnaçao,
fizera d'Ele mesmo o ícone do Deus invisível.
A Igreja tem igualmente necessidade dos musicos. Quantas composiçoes sacras foram elaboradas, ao
longo dos seculos, por pessoas profundamente imbuídas pelo sentido do misterio! Crentes sem numero
alimentaram a sua fe com as melodias nascidas do coraçao de outros crentes, que se tornaram parte da
Liturgia ou pelo menos uma ajuda muito valida para a sua decorosa realizaçao. No cantico, a fe e sentida
como uma exuberancia de alegria, de amor, de segura esperança da intervençao salvífica de Deus.
A Igreja precisa de arquitetos, porque tem necessidade de espaços onde congregar o povo cristao e cele-
brar os misterios da salvaçao. Depois das terríveis destruiçoes da ultima guerra mundial e com o cresci-
mento das cidades, uma nova geraçao de arquitetos se amalgamou com as exigencias do culto cristao,
confirmando a capacidade de inspiraçao que possui o tema religioso relativamente tambem aos crite-
rios arquitetonicos do nosso tempo. De fato, nao raro se construíram templos, que sao simultaneamente
lugares de oraçao e autenticas obras de arte.

A arte precisa da Igreja?


13. Portanto, a Igreja tem necessidade da arte. Pode-se dizer tambem que a arte precisa da Igreja? A per-
gunta pode parecer provocatoria. Mas, se for compreendida no seu reto sentido, obedece a uma motiva-
çao legítima e profunda. Na realidade, o artista vive sempre a procura do sentido mais íntimo das coisas;
toda a sua preocupaçao e conseguir exprimir o mundo do inefavel. Como nao ver entao a grande fonte
de inspiraçao que pode ser, para ele, esta especie de patria da alma que e a religiao? Nao e porventura
no ambito religioso que se colocam as questoes pessoais mais importantes e se procuram as respostas
existenciais definitivas?
De fato, o tema religioso e dos mais tratados pelos artistas de cada epoca. A Igreja tem feito sempre ape-
lo as suas capacidades criativas, para interpretar a mensagem evangelica e a sua aplicaçao a vida con-
creta da comunidade crista. Esta colaboraçao tem sido fonte de mutuo enriquecimento espiritual. Em
ultima instancia, dela tirou vantagem a compreensao do homem, da sua imagem autentica, da sua verda-

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de. Sobressaiu tambem o laço peculiar que existe entre a arte e a revelaçao crista. Isto nao quer dizer
que o genio humano nao tenha encontrado estímulos tambem noutros contextos religiosos; basta recor-
dar a arte antiga, sobretudo grega e romana, e a arte ainda florescente das vetustas civilizaçoes do Ori-
ente. A verdade e que o cristianismo, em virtude do dogma central da encarnaçao do Verbo de Deus, ofe-
rece ao artista um horizonte particularmente rico de motivos de inspiraçao. Que grande empobrecimen-
to seria para a arte o abandono desse manancial inexaurível que e o Evangelho!

Apelo aos artistas


14. Com esta Carta dirijo-me a vos, artistas do mundo inteiro, para vos confirmar a minha estima e con-
tribuir para o restabelecimento duma cooperaçao mais profícua entre a arte e a Igreja. Convido-vos a
descobrir a profundeza da dimensao espiritual e religiosa que sempre caracterizou a arte nas suas for-
mas expressivas mais nobres. Nesta perspectiva, faço-vos um apelo a vos, artistas da palavra escrita e
oral, do teatro e da musica, das artes plasticas e das mais modernas tecnologias de comunicaçao. Este
apelo dirijo-o de modo especial a vos, artistas cristaos: a cada um queria recordar que a aliança que
sempre vigorou entre Evangelho e arte, independentemente das exigencias funcionais, implica o convite
a penetrar, pela intuiçao criativa, no misterio de Deus encarnado e contemporaneamente no misterio do
homem.
Cada ser humano e, de certo modo, um desconhecido para si mesmo. Jesus Cristo nao Se limita a mani-
festar Deus, mas “revela o homem a si mesmo”.[23] Em Cristo, Deus reconciliou consigo o mundo. Todos
os crentes sao chamados a dar testemunho disto; mas compete a vos, homens e mulheres que dedicas-
tes a vossa vida a arte, afirmar com a riqueza da vossa genialidade que, em Cristo, o mundo esta redimi-
do: esta redimido o homem, esta redimido o corpo humano, esta redimida a criaçao inteira, da qual Pau-
lo escreveu que “aguarda ansiosa a revelaçao dos filhos de Deus” (Rm 8,19). Aguarda a revelaçao dos
filhos de Deus, tambem atraves da arte e na arte. Esta e a vossa tarefa. Em contato com as obras de arte,
a humanidade de todos os tempos — tambem a de hoje — espera ser iluminada acerca do proprio cami-
nho e destino.

Espírito Criador e inspiração artística


15. Na Igreja catolica, ressoa muitas vezes esta invocaçao ao Espírito Santo: Veni, Creator Spiritus...,
“Vinde, Espírito Criador, as nossas mentes visitai, enchei da vossa graça os coraçoes que criastes”.[24]
Ao Espírito Santo, “o Sopro” (ruah), acena ja o livro do Genesis: “A terra era informe e vazia. As trevas
cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-Se sobre a superfície das aguas” (1,2). Existe grande afini-
dade lexical entre “sopro — expiraçao” e “inspiraçao”. O Espírito e o misterioso artista do universo. Na
perspectiva do terceiro milenio, faço votos de que todos os artistas possam receber em abundancia o
dom daquelas inspiraçoes criativas donde tem início toda a autentica obra de arte.
Queridos artistas, como bem sabeis, sao muitos os estímulos, interiores e exteriores, que podem inspi-
rar o vosso talento. Toda a autentica inspiraçao, porem, encerra em si qualquer fremito daquele “sopro”
com que o Espírito Criador permeava, ja desde o início, a obra da criaçao. Presidindo as misteriosas leis
que governam o universo, o sopro divino do Espírito Criador vem ao encontro do genio do homem e es-
timula a sua capacidade criativa. Abençoa-o com uma especie de iluminaçao interior, que junta a indica-
çao do bem a do belo, e acorda nele as energias da mente e do coraçao, tornando-o apto para conceber a
ideia e dar-lhe forma na obra de arte. Fala-se entao justamente, embora de forma analogica, de
“momentos de graça”, porque o ser humano tem a possibilidade de fazer uma certa experiencia do Ab-
soluto que o transcende.

A “Beleza” que salva


16. Ja no limiar do terceiro milenio, desejo a todos vos, artistas caríssimos, que sejais abençoados, com
particular intensidade, por essas inspiraçoes criativas. A beleza, que transmitireis as geraçoes futuras,
seja tal que avive nelas o assombro. Diante da sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravi-
lhas do universo, o assombro e a unica atitude condigna.
De tal assombro podera brotar aquele entusiasmo de que fala Norwid na poesia, a que me referi ao iní-
cio. Os homens de hoje e de amanha tem necessidade deste entusiasmo, para enfrentar e vencer os de-
safios cruciais que se prefiguram no horizonte. Com tal entusiasmo, a humanidade podera, depois de
cada extravio, levantar-se de novo e retomar o seu caminho. Precisamente neste sentido foi dito, com

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profunda intuiçao, que “a beleza salvara o mundo”.[25]
A beleza e chave do misterio e apelo ao transcendente. E convite a saborear a vida e a sonhar o futuro.
Por isso, a beleza das coisas criadas nao pode saciar, e suscita aquela arcana saudade de Deus que um
enamorado do belo, como Agostinho, soube interpretar com expressoes incomparaveis: “Tarde Vos
amei, o Beleza tao antiga e tao nova, tarde Vos amei!”.[26]
Que as vossas multiplas sendas, artistas do mundo, possam conduzir todas aquele Oceano infinito de
beleza, onde o assombro se converte em admiraçao, inebriamento, alegria inexprimível.
Sirva-vos de guia e inspiraçao o misterio de Cristo ressuscitado, em cuja contemplaçao
“Eleva-se do caos o mundo do espírito”! A partir destas palavras, que Adam Mickiewicz escrevera numa
hora de grande afliçao para a patria polaca,[28] formulo um voto para vos: que a vossa arte contribua
para a consolidaçao duma beleza autentica que, como reverbero do Espírito de Deus, transfigure a ma-
teria, abrindo os animos ao sentido do eterno!
Com os meus votos mais cordiais!
Vaticano, 4 de Abril de 1999, Solenidade da Páscoa da Ressurreição.
JOÃO PAULO PP. II

NOTAS:
[1] Dialogus de ludo globi, liv. II: Philosophisch-Theologische Schriften, III (Viena 1967), p. 332.
[2] As virtudes morais, particularmente a prudencia, dao ao sujeito a possibilidade de agir de harmonia com o
criterio do bem e do mal moral: segundo recta ratio agibilium (o justo criterio dos comportamentos). A arte, di-
versamente, e definida pela filosofia comorecta ratio factibilium (o justo criterio das realizaçoes).
[3] Promethidion, Bogumil, vv. 185-186: Pisma wybrane, II (Varsovia 1968), p. 216.
[4] A versao grega dos Setenta exprime claramente este aspecto, ao traduzir o termo hebraico t(o-)b (bom) por
kalon (belo).
[5] Filebo, 65 A.
[6] Joao Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 80: AAS 91 (1999), 67.
[7] Este princípio pedagogico foi enunciado pela pena autorizada de S. Gregorio Magno, numa carta, do ano 599,
escrita ao Bispo Sereno de Marselha: « A pintura e usada nas igrejas, para que as pessoas analfabetas possam ler,
pelo menos nas paredes, aquilo que nao sao capazes de ler nos livros » (Epistulæ, IX, 209: CCL 140A, 1714).
[8] Lodi di Dio Altissimo, vv. 7 e 10: Fonti francescane, n. 261 (Padua 1982), p. 177.
[9] Legenda maior, IX, 1: Fonti francescane, n. 1162 (Padua 1982), p. 911.
[10] Enkomia na celebraçao do Orthros do Grande Sabado Santo.
[11] Homilia I, 2: PG 34, 451.
[12] « At nobis ars una fides et musica Christus » (Carmen 20, 31: CCL 203, 144).
[13] Cf. Joao Paulo II, Carta ap. Duodecimum sæculum (4 de Dezembro de 1987), 8-9: AAS 80 (1988), 247-249.
[14] A perspectiva invertida e outros escritos (Roma 1984), p. 63.
[15] Paradiso XXV, 1-2.
[16] Cf. Joao Paulo II, Homilia da Missa celebrada na conclusao dos restauros dos frescos de Miguel Angelo na Ca-
pela Sistina (8 de Abril de 1994): L'Osservatore Romano (ed. port. de 16 de Abril de 1994), p. 7.
[17] Cf. AAS 56 (1964), 438-444.
[18] N. 62.
[19] Mensagem do Concílio aos artistas (8 de Dezembro de 1965): AAS 58 (1966), 13.
[20] Cf. n. 122.
[21] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporaneo Gaudium et spes, 62.
[22] A teologia no seculo XII (Milao 1992), p. 9.
[23] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporaneo Gaudium et spes, 22.
[24] Hino de Vesperas, na Solenidade de Pentecostes.
[25] F. Dostoevskij, O Idiota, parte III, cap. V (Milao 1998), p. 645.
[26] « Sero te amavi! Pulchritudo tam antiqua e tam nova, sero te amavi! » (Confessiones 10, 27: CCL 27, 251).
[27] Paradiso XXXI, 134-135.
[28] Ode a juventude, v. 69: Wybor poezji, I (Wroclaw 1986), p. 63.

© Copyright 1999 - Libreria Editrice Vaticana

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das", pensou. Vinte minutos depois estava lendo
um artigo sobre a conexão do mormonismo com a
Maçonaria de origem escocesa. Tudo muito impres-
Moisés Martins sionante, mas será que era verdade? Por fim, leu
um artigo sobre OVNIS, no qual o articulista falava
"Estai vós também apercebidos; porque, do rapto em massa da humanidade, que poderia
num momento que não penseis, virá o ocorrer no futuro próximo para remover da terra os
Filho do Homem" (Lc 12.40) religiosos fundamentalistas do cristianismo sectário
e ignorante. Isto seria necessário para a instalação
Dez horas da noite. O rigoroso inverno castigava de um milênio de paz, harmonia e prosperidade na
naquele ano da graça infalível de nosso Se- terra, sob o comando de uma civilização
nhor. Ismael, jovem fotógrafo de uma intergaláctica superior. Os raptados
revista especializada em religião e iriam para uma estação de recicla-
política internacional, encerrou gem espiritual e reeducação
o serviço. Respirou fundo e cultural, para serem regenera-
deteve, por alguns segun- dos e, mais tarde, reintrodu-
dos, o olhar através da jane- zidos no planeta terra. Isma-
la rachada do terceiro andar el ficou pensativo por um
de um prédio com ar de momento.
abandono. Contemplava uma Lembrou-se, então, de um
bela e grande estrela, ou lumi- sermão que ouviu na Igreja
nosidade em forma esférica, por Cristã Maranata, através do qual
assim dizer, que brilhava vivida- o pastor explicava o arrebatamento
mente naquele céu escuro, nublado. da Igreja, a Grande Tribulação, o Milênio
Bebeu o último gole de café, já frio e enjoativo. e o Juízo Final. O pastor terminou dizendo que Sa-
Beijou o retrato da filha, que sobreviveu à tragédia tanás iria tentar enganar a humanidade até o fim.
e, hoje, é missionária na selva amazônica, concluin- "Tudo isso é muito intrigante", pensou.
do a tradução do livro de Salmos para a língua tupi- O ônibus parou na esquina do viaduto central, no
guarani. bairro de Cascadura, Rio de Janeiro. O local era su-
- Que saudade... jo, com ar de abandono por parte do poder público.
Vestiu a capa de frio e saiu. Na rua, não havia nin- O que é real, em se tratando do Brasil. Ismael des-
guém, por causa da hora e do tempo. "É bom as- ceu logo após um homem de terno e gravata, com
sim. A gente vai caminhando sozinho, pensando um livro preto na mão e passadas elegantes. A cal-
nas coisas da vida", pensava ele. çada esburacada e mal iluminada exalava um forte
- Vera, Sarah... cheiro de urina. Alguns mendigos sentados ao re-
Ismael caminhava pensando nessas duas mulheres. lento bebiam cachaça e fumavam cigarros apanha-
Seus corpos triturados no brutal acidente de cinco dos no chão. O homem e Ismael, um pouco mais
anos atrás. Eram tão lindas. Vera, sempre a namora- atrás daquele, iam se desviando dos entulhos, dos
da, mesmo quando já esposa. Sarah, sempre feliz, lixos e dos buracos que encontravam pelo caminho.
cantando hinos junto com Rita e falando de Jesus. Mais à frente, um grupo de crianças com um ca-
Ela dizia que Jesus voltaria e mudaria tudo na terra. chorro de aspecto doente pedia dinheiro e comida.
Insistia que Deus tinha uma hora certa para o retor- Se não conseguiam o que queriam, xingavam as
no de Cristo. Como era lindo vê-las juntas, mãe e pessoas e corriam. Um cinema apresentava no car-
filhas, brincando, conversando e orando. Era a mai- taz um filme pornográfico, com dizeres imundos.
or das alegrias. Mas as duas atravessaram o portal Algo vergonhoso de se olhar. O homem não olhou
da eternidade Restou Rita, com seus olhinhos aper- o cartaz, pois caminhava de cabeça baixa. Ismael,
tados e submissos. Sempre ia de ternura e compai- por sua vez, olhou para os cartazes e cuspiu, enoja-
xão. do. Pensou que o mundo era mesmo um lugar de
No ônibus, Ismael abriu a revista "Transcendência" violência, miséria e imoralidade. Triunfou a barbárie
do mês passado, dezembro, para ler um artigo so- e a civilização foi sepultada.
bre a doutrina dos mestres cósmicos do universo e Em certa esquina, duas mulheres com roupas bran-
os fenômenos sobrenaturais da religiosidade da cas acendiam velas para entidades malignas invisí-
Nova Era. "Interessante, mas alucinante, sem dúvi- veis. Uma delas parecia em transe. Um espetáculo
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tão presente na América católica, mas, ao mesmo se surrealista. Ismael não ficou ali muito tempo.
tempo, tão bizarro e deplorável. O homem do livro Queria ir embora. E foi.
preto passou bem perto das mulheres e a que esta- Em casa sentou-se na varanda para respirar fundo e
va em transe deu várias gargalhadas e falou pala- pensar. Repassou todas as cenas retidas em seu
vrões. O homem permaneceu em seu trajeto sem cérebro. Era impossível de acreditar. Mas foram
se perturbar com os agravos. Atravessou a rua e concretas, realmente aconteceram.
entrou em um corredor que dava acesso subterrâ- Notou que o céu estava escuro, carregado de nu-
neo ao outro lado da linha férrea. Ismael olhava tu- vens ameaçadoras. Uma tempestade viria com cer-
do ao seu redor. Estava cansado e desejoso de che- teza. Resolveu entrar e se desligar um pouco da-
gar em casa para comer e dormir. queles acontecimentos.
De repente, um vento forte soprou e uma luminosi- Sentou-se no sofá e ligou a televisão. Pegou alguns
dade como um flash dentro do corredor subterrâ- biscoitos e um copo de suco de melão. Com o con-
neo. Ismael se assustou e olhou para trás. Não viu trole remoto foi trocando os canais, pouco a pouco.
nada. Voltou-se para a direção normal. Não viu mais Futebol, culto evangélico, pornografia, entrevista
o homem que ia à sua frente. Raciocinou e concluiu com padres ligados à parapsicologia, filme policial,
que não era possível àquele homem alcançar o ou- documentário sobre vírus, reprise de novela e vá-
tro lado tão rápido assim. E não só isso. Não havia rias emissoras fora do ar. Desligou o aparelho. En-
saídas na lateral. Ismael ficou tenso e com certo te- costou a cabeça na almofada e assobiou uma can-
mor. "Que coisa impressionante', pensou. O vento ção, deixando o tempo passar.
que entrou no corredor, o flash de luz e o desapare- Quando se viu pensando em Rita, deu um salto do
cimento do homem. Estranho, muito estranho. Is- sofá. Foi ao telefone e discou um número. Deixou
mael apertou os passos para sair daquele corredor chamar bastante, mas ninguém atendia. Esperou
que assustava. Correu um pouco ofegante e pensa- um pouco, andando de um lado para o outro. Vol-
tivo. Quando alcançou o outro lado olhou em todas tou a discar. Em vão. Ninguém atendeu. Desanima-
as direções e não viu ninguém, só um casal de gatos do, foi para o quarto. Ligou o rádio num volume
arranhando um ao outro. Olhou para o céu. Lá não baixo e pegou um livro budista para ler. Deteu-se
estava a bela e grande estrela, em forma esférica. num capítulo sobre a reencarnação, assunto que
Um fato, no entanto, explodiu na mente de Ismael. achava curioso e relativamente plausível. Pelo me-
Um pensamento rápido como um relâmpago. Lem- nos achava isto mais lógico do que as teorias judai-
brou-se que, ao apertar os passos, dentro do corre- co-cristãs.
dor, tropeçou em algo Criou coragem e voltou para Os relâmpagos eram cada vez mais fortes. A chuva
verificar. Surpreso, ou melhor, estupefato, desco- pesada logo caiu. Parecia um dilúvio súbito Uma
briu que havia tropeçado na Bíblia e nas roupas do feroz tempestade. Logo a eletricidade foi atingida.
homem. Pôs as mãos na cabeça e exclamou: Ainda bem que o rádio era a pilha, apesar dos re-
- Meu Deus, o que é isto? Estas coisas não aconte- lâmpagos atrapalharem a recepção.
cem. Só em ficção científica! Ismael deitou e ficou imaginando a sua imensa soli-
Pegou a Bíblia e saiu imediatamente do local. Que- dão. Não tinha mais uma família e sentia o fato des-
ria chegar em casa o quanto antes e ordenar os ta realidade. Virou-se para o canto, desligou o rádio
pensamentos. "Não será tudo isto uma alucinação? e dormiu por alguns minutos.
Será que estou louco?" O telefone tocou. Parecia um sonho. Ismael revirou-
Antes de chegar em casa, numa rua próxima à sua, se na cama. O telefone continuou a tocar. É um so-
Ismael viu algo impressionante. Uma mulher, com nho ou realidade? Primeiro esfregou os olhos, de-
trajes de dormir, cercada por vizinhos nervosos, pois os abriu. A chuva agora caía de forma menos
gritava alucinadamente que sua filhinha havia desa- intensa, não havia relâmpagos. O telefone ainda
parecido diante de seus olhos, dentro de casa. Ou- tocava. Ismael deu um salto ao perceber que aque-
tras pessoas também falavam que parentes sumi- le barulho de telefone não era um sonho. Correu e
ram. Filhos, pais, avós, netos... Aquelas pessoas es- atendeu.
tavam atordoadas. Ismael ouviu alguém falar de um - Alô?
vento que soprou e um flash de luz. Imediatamente Era um amigo, um grande amigo. Ligou para dizer
voltou sua mente ao corredor mal iluminado e ao que a mulher entrou no banheiro para tomar banho
desaparecimento do homem que ia na frente dele. e demorou além da medida. Achou isso estranho e,
Estava atônito e sem resposta. A mulher chorava e ao abrir a porta, ela havia desaparecido do nada.
gritava o nome da filha. Um quadro patético e qua- - Calma.
66
O amigo, chorando e nervoso, pediu para que Isma- - Oi, Ismael.
el o ajudasse, pois não sabia o que fazer. Ismael dis- - Entre.
se que sim. - Obrigado.
- Vou até a sua casa. Aguarde um pouco. Lawrence contou duas vezes mente. Ismael relatou
Ismael tomou um banho rápido, trocou de roupa, os latos que ficaram em silêncio por longo tempo.
pegou o carro na garagem e saiu. No caminho ligou - O que está ocorrendo, Ismael? Ouvi no rádio que
o rádio e procurou notícias. Uma emissora católica mi I liares ou talvez milhões de pessoas desaparece-
noticiava o desaparecimento de pessoas e a confu- ram. Nós estamos loucos, Ismael? Quero ouvir sua
são que tal ocorrido estava causando em vários lu- opinião.
gares da cidade, do país e do mundo. Trocou de es- - Sua esposa acreditava na Bíblia e em Jesus Cristo?
tação. Uma rádio de notícias 24 horas falava do - Por quê? - Acreditava'? - Sim, acreditava. E fre-
mesmo assunto, entrevistando pessoas ao vivo. Os quentava uma igreja evangélica chamada Igreja de
entrevistados estavam assustados e relatavam his- Nova Vida. Mas, e daí?
tórias semelhantes, ou seja, todos conheciam al- - Parece que há algo em comum com as pessoas
guém que havia sumido. Ismael desligou o rádio. que se foram.
- Rapto de extraterrestres? Arrebatamento bíblico? - Foram para onde, Ismael? Não fiz sentido o que
Alucinação coletiva? Meu Deus, Meu Deus... você está dizendo.
Próximo à casa do amigo Ismael viu grupos de pes- - Eu sei, você e eu estamos assustados e acuados
soas que se aglomeravam na porta de unia Igreja diante de tais circunstâncias. Não poderia ser dife-
Metodista Wesleyana. Havia um carro de polícia rente. Sinto-me mal com isto tudo, Lawrence.
estacionado com a sirene ligada e a luz vermelha - Claro. Com certeza.
piscando, bem na porta do templo. Jornalistas, poli- - Acontece que os desaparecidos são pessoas segui-
ciais e curiosos trocavam palavras perplexas. Ismael doras de Jesus, eu acho. As notícias apontam para
parou o carro, desceu e se aproximou cautelosa- esta conclusão.
mente. Perguntou a um policial o que estava acon- - Acho que sim. Mas, para onde foram estas pesso-
tecendo. Que confusão era aquela. O policial res- as?
pondeu que as pessoas, cerca de oitenta, que esta- - Para o céu, Lawrence.
vam na igreja louvando a Jesus Cristo haviam desa- - Para o céu? Você acredita nisto?
parecido, de repente. - Minha mulher falava de uma coisa chamada arre-
- Verdade?! batamento.
- É o que dizem. Mas eu creio que a história é outra. - O que é isto?
- Qual é a história? - Está escrito na Bíblia, no Novo Testamento. Diz
- Vamos investigar. Com licença, amigo. que em determinado dia e hora todos os seguido-
Ismael agradeceu e ficou olhando para o templo, res de Jesus seriam transportados da terra para o
imaginando o fato de dezenas de pessoas, num pis- céu de forma milagrosa e misteriosa.
car de olhos, terem sumido, evaporado no ar, exa- - Foi isso que ocorreu, Ismael?
tamente como aquele senhor no bairro de Cascadu- - Se não foi isso, pode ser qualquer outra coisa.
ra. - Não, não faz sentido.
Na porta da igreja, um homem idoso, nervoso e trê- - É, não faz sentido.
mulo, repetia para todos que vira quando um forte Ismael abraçou o amigo, disse-lhe mais meia dúzia
vento soprou dentro da Igreja e uma faísca de fogo de palavras de conforto e se despediu, com um
brilhou bem no altar. E rápido, muito rápido, todos olhar de impotência e desânimo.
sumiram. Apenas ele, no último banco, e uma mu- - Qualquer coisa, liga.
lher, sentada no terceiro banco do coral, ficaram. - Obrigado por sua gentileza. E não se esqueça de
- Eu estou falando a verdade, senhores. Creiam em ligar para Rita.
mim, por favor. - Se ela ainda estiver no planeta terra, o que é bas-
Ismael deu meia-volta, retornou ao carro e prosse- tante improvável, penso eu.
guiu em seu caminho, com dor de cabeça e respira- - Lamento, Ismael.
ção ofegante. - Descanse, Lawrence. Adeus!
- Jesus, Jesus, Jesus... será? Sem saber o que fazer Ismael entrou no carro e saiu
Dez minutos transcorreram. Ismael chegou na casa dirigindo em qualquer direção, pensando em tudo
do amigo. Tocou a campainha e foi atendido. ao mesmo tempo.
- Oi, Lawrence. Estacionou próximo a um viaduto em São Cristóvão
67
para olhar uma mulher que tentava pular lá de ci- canto, em sua cadeira. O português decidiu falar:
ma, sendo contida por um grupo de pessoas tam- - Escuta aqui, minha filha, deixa de bobagem e sai
bém agitadas. Que quadro comovente e inusitado. logo daqui.
Distraído, Ismael não percebeu o homem que se A garota começou a grunhir e a revirar os olhos.
aproximou do carro. Encostou uma arma na cabeça Apontou o dedo para o português e saltou sobre
dele e mandou que saísse do veículo, com as mãos ele com uma agilidade impressionante. Meteu as
na cabeça. unhas no rosto do homem, rasgando-lhe as faces,
- Nada de heroísmo, amigo, ou você vai morrer. provocando uma imediata profusão de sangue, que
- Calma, amigo. Não quero morrer. começou a escorrer sobre o balcão. Ismael deu um
- Assim é melhor. Agora vai andando e não olha pa- salto e saiu correndo pela rua. Só parou, com o co-
ra trás. Certo? ração quase saindo pela boca, quando as pernas
- Certo. Você crê no céu e no inferno? não mais obedeciam a vontade da alma. Encostou,
- O quê? Não enche, cara. Vai embora. Eu não creio de cabeça baixa e desorientado, na pilastra de um
em nada. Só na maldade humana. prédio clássico e velho.
Ismael pôs as mãos no bolso e caminhou despreo- - Acho que vou morrer. Meu Deus, me ajude.
cupado, sem medo de levar um tiro por trás. Ouviu Já descansado, Ismael conseguiu localizar-se e, en-
o motor ser ligado e viu quando o carro passou em tão, resolveu dar um jeito de voltar para casa. Atra-
alta velocidade e subiu a ponte, desaparecendo do vessou a larga avenida Cruz e Souza totalmente de-
outro lado. serta, com raros carros passando e pouquíssimas
- Ó Deus, perdi tudo, até o meu carro. pessoas, algumas em grupo, aflitas e exaltadas.
Ismael andou durante muito tempo, até avistar um Do outro lado da avenida, Ismael viu um prédio ilu-
bar aberto. Entrou e pediu uma lata de cerveja. Sen- minado, parecendo uma Igreja. Apertou os passos.
tou e fixou o olhar na televisão na parede central Chegou a correr um pouco. Na frente do prédio
do estabelecimento. O noticiário falava de aciden- percebeu que era uma Igreja Católica. A porta esta-
tes e de dramas pelo mundo inteiro. Quedas de avi- va entreaberta. Ismael atravessou o terreno, abriu
ões, suicídios, saques, assassinatos e sumiço de o pequeno portão e, ao empurrar a porta do tem-
muitas pessoas. plo, foi logo interceptado por um sacerdote de apa-
Um português de aparência mal educada xingava a rência nórdica.
todo instante. Um velho cego de um olho ria e be- - Pois não, senhor.
bia cachaça. Ismael pensava em como seria a vida - Desculpe. Eu estava na rua e como vi a Igreja ace-
dali para frente. sa, resolvi entrar.
- Os americanos estão por trás disso tudo — disse o - A primeira missa será às 4h da madrugada, não
português, cuspindo no chão sujo do bar. agora. Neste momento alguns padres estão no al-
Ismael não respondeu nada. Continuou vendo as tar rezando. É só isto.
imagens na televisão e ouvindo os comentários dos - Sei, me desculpe mais uma vez. Acho que o senhor
jornalistas. Cada vez ficava mais surpreendido e sabe que as pessoas sumiram.
conformado. - Ouvi falar. Mas não seio que dizer.
Subitamente, entrou no bar uma adolescente ruiva, - Imagino. Bem, com licença.
corpulenta, com os olhos esbugalhados e um sorri- - Volte mais tarde, se desejar.
so doentio nos lábios. Quando falou, sua voz era - Obrigado.
rouca e nitidamente masculina. O que assustou Is- Ismael puxou a porta e ganhou a rua. A esta altura
mael. começou a chover novamente. Mas ele não se inti-
- Os eleitos foram levados para a cidade dos puros. midou com a água que caía. Continuou caminhan-
Só ficaram aqui os que são das trevas e irão nos ser- do, ansioso por chegar em casa. Enquanto andava
vir durante a grande tribulação. Satanás vai escravi- pensou na filha Rita. Não se conteve. Começou a
zar todo o mundo. chorar, misturando no rosto lágrimas e pingos de
A garota cortou o ar com uma gargalhada sinistra. chuva. Se sentia miserável, inútil e esquecido neste
Ismael sentiu arrepios e medo. O português e o ve- mundo.
lho também não falaram nada. A chuva tornou-se torrencial e logo as ruas estavam
- Sabem o meu nome? Sou chamado de Exu Caveira alagadas. O vento forte tornou impossível as cami-
e mato quem fica no meu caminho. E eu quero san- nhadas. Ismael, encharcado e infeliz, procurou abri-
gue de alguém. Quem vai me dar sangue? go sob uma marquise, onde poucas pessoas tam-
Ismael começou a suar frio. O velho se encolheu no bém procuraram refúgio.
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Um rapaz bem vestido apareceu na esquina, vindo disse o endereço. Durante a viagem Ismael dormiu
de uma rua lateral. Ele gritava que o arrebatamento profundamente.
havia acontecido. Sua voz estridente acordou pes- Ao chegar em casa ligou a televisão e verificou a
soas de um apartamento próximo. Ele gritava que secretária eletrônica. Nenhum recado. Discou para
Jesus Cristo veio e levou seus seguidores fiéis. Isma- a filha Rita. Ninguém atendeu Sentou no sofá e
el olhava, atônito, aquele quadro. Algumas pessoas prestou atenção ao noticiário. Tudo confirmado.
começaram a insultá-lo. Mas ele prosseguiu, andan- Milhões de pessoas desapareceram misteriosamen-
do desnorteado e gritando sua mensagem a plenos te em todo o globo terrestre. Todas elas eram cris-
pulmões, até entrar em outra rua lateral e sumir de tãs e acreditavam na Bíblia de forma literal, em qua-
vista. se todos os pontos. Desligou a televisão. Foi até a
Ismael sentou-se encostado no portão de ferro de varanda, olhou para as nuvens no céu e, em silên-
uma loja de brinquedos. Esfregou as mãos no rosto cio, do fundo da alma, pediu a Deus que lhe desse
e na cabeça. Balbuciou algumas palavras de dor e uma oportunidade para que conhecesse a verdade.
sofrimento. Por fim abaixou a cabeça apoiada nos Em seguida ajoelhou-se e chorou, tanto por arre-
braços cruzados sobre os joelhos. Não quis pensar pendimento quanto por remorso e angústia...
em nada. E ali, cansado, adormeceu. Por alguns anos, durante um tempo terrível e im-
Ao amanhecer, Ismael foi acordado pelas sirenes da placável de tribulação e juízo divino, Ismael se lem-
polícia e de ambulâncias. Então, pôs-se de pé e braria daquela noite inesquecível!
olhou ao redor. Muita gente na rua, gritando e ges-
ticulando. Uma situação bastante anormal. * * * * *
Ismael caminhou até uma banca de jornal. Sentia
Do livro Contos de Tirar o Fôlego – A influência satâ-
dores na coluna e nas pernas. Olhou para a man-
chete de um jornal popular, que dizia: nica no mundo (Editora Hosana, 8667).
"Extraterrestres sequestraram terráqueos em mas-
sa". A cabeça de Ismael girou e ele sentiu dor no
estômago. Mesmo fraco, conseguiu dirigir-se a um Moisés Martins é professor, teólogo e escritor. Au-
ponto de ônibus. Dois ônibus passaram com placas tor do romance Labirintos: As terríveis garras do
de garagem. Então, fez sinal para um táxi. Entrou e mal (Upbooks).

Deus é Ladrão
Conta-se que Adriano, o temido imperador, mandou, certa vez, viesse a sua presença o sabio Gamaliel e, com o
intuito de confundi-lo diante da corte, interpelou-o desta forma:
– Dize-me, o judeu!, aquele que rouba e ou nao e um ladrao?
– Sim – concordou o rabi Gamaliel. – Nao ha como negar a evidencia: Aquele que rouba e ladrao.
Ouvida a resposta, volveu o romano com rispidez:
– Entao o teu Deus e um ladrao, um trapaceiro, pois, segundo ensina o teu Livro Santo, Deus fez dormir Adao, e,
durante o sono, furtou-lhe uma costela.
Nesse momento, a jovem Raquel, filha do rabi, que ouvira o dialogo oculta atras de um reposteiro, surgiu de im-
proviso na sala e, acercando-se do trono de Cesar, implorou aflita:
– Senhor! Venho pedir justiça! Fui roubada! Miseravelmente roubada!
– Como foi isso? - indagou o surpreso soberano.
– Entrou um ladrao em minha casa, durante a noite, e furtou-me pequeno cantaro de barro. E o trapaceiro deixou,
no lugar, precioso vaso de ouro, cheio de rubis e diamantes! Peço justiça!
– Mas minha filha – ponderou o imperador, com malicioso sorriso – quem me dera um ladrao assim, todas as noi-
tes, assaltando os meus aposentos e levando tudo o que e meu! Esse homem nao agiu como um ladrao, mas, sim,
como um benfeitor!
Ao ouvir tais palavras prorrompeu com altivez a filha de Gamaliel:
– Como queres, entao, o Cesar!, atirar sobre o nosso Deus, sobre o Deus dos judeus, o libelo de ladrao? Lembra-te
de que Ele furtou de Adao uma costela, e deixou, em troca, uma linda e dedicada esposa.
A. Cohen
Do livro Lendas do Povo de Deus, de Malba Tahan.
69
Das Antologias: Exposição, defesa e perspectivas do gênero

Sammis Reachers [1]

Conceito de antologia

O termo grego ανθολογία (antologia), significa “coleção ou ramalhete de flores”. Do termo grego deri-
vou o latim florilegium. Dado o seu caráter de eleição crítica e em geral coletiva, a antologia nasce já como a
melhor maneira de uma literatura ofertar(-se); campo de aberturas, gênero sutil de metaliteratura – de livros a
devoradora e de metalivros a parturiente. A antologia legitima ao chancelar determinado texto e/ou autor como
antológico(s). É uma forma de assegurar, em sua função de arquivo e farol. É ainda a fundação de uma (linha)
narrativa.
A antologia “implica uma seleção apreciativa, crítica e informativa de determinado número de obras,
reunidas segundo gêneros, épocas e estilos” (LUCAS, 1996). Uma antologia serve para apresentar um recorte
da produção bibliográfica sobre um tema, período, grupo, escola, autor ou circunscrição geográfica – conti-
nente, país, bairro.
A antologia, objeto-filtro, será composta por uma justaposição de lógicas, desde uma primária ou explí-
cita, que delimita seu tema e abrangência da seleta, a uma (ou diversas) secundária ou implícita, que responde-
rá sempre aos desejos estéticos, sentimentais e políticos do organizador (ou editor) – onde se embarca na di-
mensão do subjetivo ou particular – o seu “toque pessoal”, que pode ser involuntário ou não, aceito ou comba-
tido, mas ainda assim impossível de não manifestar-se. Afinal, “a antologia é um ensaio crítico levado à práti-
ca” (PROSDOCIMI apud SERRANI, 2008, p.278).
No dizer de Claudio Guillén (apud DE MAESENEER e LOGIE, S/D, p. 203) “A antologia é uma forma
coletiva intertextual que supõe a reescritura ou reelaboração, por parte de um leitor, de textos já existentes me-
diante sua inserção em novos conjuntos” (tradução nossa). Assim, na avaliação de uma antologia, primeiro é
necessário precisar quais os objetivos do autor (explícitos e/ou implícitos) ao elaborar tal seleta.
Aqui cabe a distinção, nem sempre exata, assinalada por Morton Dauwen Zabel (apud HADDAD, 1961,
p.25): “Há duas espécies de antologia... Uma oferece um panorama impessoal de um terreno ou de um perío-
do, tão objetivo, didático e de acordo com a aceitação média quanto possível. A outra desenvolve um argu-
mento antológico (an editorial argument), uma crítica por seleção, de uma posição específica ou enfaticamente
pessoal.”
Uma antologia não servirá apenas de registro, celebração ou construção de cânone. Ela poderá igual-
mente fundar um novo gênero ou dar nova vida a gênero já existente, ou um recorte em especial, fundando
uma nova perspectiva.
Sobre este poder vivificante que uma simples antologia pode assumir, consideremos brevemente dois
exemplos.
Manuel Bandeira, organizador de muitas antologias, publicou em 1946 sua singular A ntologia dos Poe-
tas Bissextos Brasileiros Contemporâneos. Bissexto, nas palavras de Bandeira, seria “aquele em cuja vida o
poema acontece como o dia 29 de fevereiro do ano civil. [...] Bissexto é todo poeta que só entra em estado de
graça de raro em raro” (BANDEIRA, 1946, p.08). O aparecimento da seleta fez, como que num repente, eclo-

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direm diversos poetas bissextos país afora, e a antologia, se não teve o mérito de inaugurar um gênero ou re-
corte, conferiu-lhe entre nós grande vivacidade. Outro caso paradigmático deu-se com a publicação em 1940,
na Argentina, da A ntologia da Literatura Fantástica, vinda a lume pela operosidade de Jorge Luis Borges,
Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo. Aqui os antologistas elegeram um tema (a literatura fantástica), base-
ados principalmente em textos estrangeiros, tema este que eles próprios já versejavam em suas obras, e que
após tal publicação passaram a priorizar em suas próprias escritas; assim, a antologia, se não fundou, estabele-
ceu um marco ou sendeiro em direção daquilo que os próprios organizadores (logo acompanhados por simpa-
tizantes de primeira hora) desejavam trilhar, ajudando tanto a “delimitar” (se a grande heterogeneidade dos
textos ali coligidos pode ser assim referida) quanto a popularizar o gênero.
Diversas categorizações nos ocorrem para distinguir as antologias. No tocante a seu conteúdo, podemos
segmentá-las a princípio em duas modalidades:
Antologia panorâmica: Quando não se busca ou não se pode ainda figurar ou consolidar um julgamento críti-
co, ou este é tênue e diluído, sobre o objeto de eleição. Aqui o autor busca exatamente ofertar um panorama ou
apresentação de determinado tema. Embora este conceito pareça remeter ao de coletânea, esta semelhança po-
de ser descartada ao considerarmos que a coletânea pode prescindir de maior rigor crítico que uma antologia[2].
Antologia de escol: os melhores textos, “canônicos” ou que se objetiva canonizar, de determinado tema/
segmento/recorte. Aqui o autor pretende elencar os melhores textos, dentro de uma cornucópia de textos exis-
tentes em seu tema.
Uma segmentação a partir da característica bibliográfica (e importância relativa) das antologias, poderia
ser rudimentarmente estabelecida em três modalidades:
Antologia pioneira – Aquela que primeiro colige textos de uma determinada área, período, corrente etc., e ain-
da a que funda determinada corrente ou segmentação. A primaz em seu gênero ou tema.
Antologia de atualização – Antologia abordando tema já antologiado, mas que carece de atualização por moti-
vos diversos (acréscimo ou mesmo supressão de material bibliográfico, mudança de paradigma crítico/
estético/disciplinar, etc.). Aqui, além de obras novas, podem ser agrupadas as reedições, sempre que revistas e/
ou ampliadas, de obras correntes.
Antologia de contradição – Modalidade eminentemente crítica. Aqui o objetivo não é fundar ou expor um câ-
none, mas tão-só contestá-lo.

A figura do antologista e o seu ofício

O antologista é um leitor avançado, provável e preferencialmente possuidor de graus de afinidade, fami-


liaridade ou especialização numa área específica que intentará compilar. Entendemos que função capital do
antologista será perceber um lacuna bibliográfica em determinada área ou tema, e esforçar-se para supri-la.
Claro, em termos editoriais, nem sempre será para o antologista e principalmente para o editor interessante/
viável publicar antologia pelo terno e humanista desejo de suprir uma carência de bibliografia: a lei do lucro a
muitos manieta. Caberá ao antologista convicto, neste caso, recorrer a bolsa de publicação, edição acadêmica
(caso ele atue como docente, pesquisador ou aluno de instituição), edição conjunta entre instituição de ensino
(ou outro órgão governamental) e editora comercial – ou ainda a velha publicação às próprias expensas. Pode-
rá ainda optar pela pouco ou nada onerosa edição eletrônica (e-book).
Como dito anteriormente, toda antologia é fundamentalmente pedagógica, e presta-se como objeto didá-
tico. Mas, caso o antologista objetive imprimir caráter majoritariamente pedagógico ao seu trabalho, lhe cabe-
rá selecionar e fundamentar a linha(s) de interpretação e a linha(s) de “instigação” que ele deseja propor ao
aluno/leitor.
Apesar de toda antologia ser uma forma de arrojar(-se), de propor unilateralmente uma visão de todo ou
de mundo em recorte, o antologista sempre deverá proceder e apresentar-se com suma humildade. Se o que ele
faz é recortar uma parte de um todo que dificilmente pode ser abarcado em sua completude, a possibilidade de
equívoco – por supressão, hipertrofia, má eleição etc. – é a constante maior de seu trabalho. Se a confissão
desse risco totalitário de parcialidade, confissão onipresente nos prefácios dos antologistas[3], é sincera ou retó-
rica, isso é passível de dúvida.
Ainda que considerada a amplidão de suportes e plataformas de consulta bibliográfica, o elemento fun-
damental de trabalho do antologista é o livro, e o será por largo tempo. A antologia é um sumo de livros, depu-
rados por variegados filtros. O antologista, ainda que sem o saber, foi dos primeiros “profissionais” de curado-
ria do conhecimento de que se tem notícia. A atividade do antologista será sempre de mediação, curadoria.
Aqui surge o maior gargalo para o trabalho do selecionador: o acesso à bibliografia.
Em teoria, o Brasil conta com um mecanismo legal que visa a coleta e conservação de todo livro (além
de periódicos, partituras, fonogramas e videogramas) publicado no país: o depósito legal. Regulado pela Lei nº
10.994, de 14/12/2004, a chamada Lei do Depósito Legal regula que, a cada livro publicado no país, deverá
ser remetido no mínimo uma cópia para a instituição Biblioteca Nacional, responsável pelo registro e salva-
guarda da bibliografia pátria. Acontece que um elenco de fatores entra em ação para impedir a concretização
deste objetivo, e o principal é que muitas editoras e mesmo autores independentes deixam de fazer a remessa –
71
por desconhecimento, desinteresse etc. A Lei prevê a responsabilização civil, que consistirá em: (1) Multa cor-
respondente a até 100 (cem) vezes o valor da obra no mercado; (2) Apreensão de exemplares em número sufi-
ciente para atender às finalidades do depósito. Mas, na prática, faltam mecanismos e pessoal que façam cum-
prir tal regra. Assim, a salvaguarda que deveria garantir a todo cidadão brasileiro, dentre os quais o pesquisa-
dor, o acesso à bibliografia nacional é sabotado e fragilizado.
Há ainda outros fatores que dificultam o acesso do pesquisador à bibliografia sob a guarda da BN: de-
mora para a catalogação das publicações dentro da própria BN; extravios, falta de campanhas informativas etc.
O resultado é que é bem provável que haja livros que qualquer leitor médio, com uma biblioteca pequena, pos-
sua em sua estante, que NÃO CONSTEM dos registros da BN. De nossa parte, ao longo de anos de pesquisa,
atestamos já diversos livros que possuímos e não constam dos registros da BN, e outros de que eventualmente
carecemos, tanto novos quanto esgotados, e que precisaram ser adquiridos em livrarias e sebos virtuais, pelo
mesmo motivo de não poderem ser consultados na BN. A falha do mecanismo de depósito legal compromete
todo um projeto de cultura e, necessário é dizer, de país – pois a máxima de Monteiro Lobato de que um país
se faz com homens e livros não é fabulosa. Aqui, um parênteses: segundo informa Fernando Baez (2004,
p.397), há pouco mais de duas décadas a quantidade de livros exigidos pela Biblioteca Nacional do (algo inós-
pito) Iraque, era de cinco livros. Um belo contraste com a lei brasileira que requer um exemplar apenas.
Assim, se o antologista no Brasil muitas vezes não poderá sequer contar com a Biblioteca Nacional, si-
tes que congregam para a venda via internet acervos de centenas de sebos, como a Estante Virtual e o Livro-
nauta, têm suprido em parte a imensa lacuna deixada. Dentre outras iniciativas para o fortalecimento do siste-
ma de depósito legal, uma simples mudança na legislação sobre o ISBN[4], que hoje solicita apenas o envio
prévio de cópia da FOLHA DE ROSTO do livro a ser publicado, para a obrigação casada do envio de dois
exemplares do livro, APÓS IMPRESSO, sob risco de criminalização do autor ou editor e IMPEDIMENTO de
obter novos números ISBN, traria um avanço significativo na solução do problema. Essa ação dificultaria, no
mínimo, a evasão do depósito legal, pois, embora não obrigatório, sem número de ISBN um livro dificilmente
poderá ser comercializado pelas vias oficiais (livrarias etc.).
Se a dificuldade de acesso a fontes primárias de consulta, a depender sempre do tema estudado, é o prin-
cipal empecilho ao antologista, o problema inverso, ou seja, o “excesso” de fontes, exigirá a apuração dos me-
canismos de filtragem e de suas técnicas de curadoria, e é sempre problema menor.
Existe caso em que o pesquisador localiza exemplar desejado para seu estudo, mas o mesmo encontra-se
em acervo situado outro estado ou mesmo país; nesse caso a dificuldade de acesso geográfico pode ser em par-
te suprida pelos mecanismos de empréstimo interbibliotecas. Caso estes mecanismos não estejam disponíveis
ou a obra necessitar de acesso local, viagens serão necessárias, o que pode dificultar ou impossibilitar a con-
sulta àquele material. Pesquisadores munidos de bolsas de estudo/pesquisa terão maior facilidade de desloca-
mento, principalmente em se tratando de um território continental como o brasileiro.
A carência de literatura crítica sobre antologias e o trabalho do antologista é patente, e será suprida em
grande parte pela consulta aos prefácios, introduções e notas presentes nas antologias publicadas. Além disso,
a consulta a antologias, obras semelhantes ou de alguma forma correlatas, publicadas em outros países, será de
grande valia para o trabalho do antologista.
Ideal será sempre que a seleção antológica seja feita por indivíduo de reconhecido saber na área em
apreço; mas, na prática, isso não acontece sempre, por motivos os mais diversos, desde a prosaica inexistência
de um especialista, de fato ou de direito, naquele determinado tema ou nicho temático/editorial, seja por a tal
especialista, caso exista, não interessar ou sequer lhe ocorrer a ideia de elaborar um florilégio de textos de sua
área, seja ainda por impossibilidades ou desinteresses editoriais etc. Assim, o que faz um antologista “não-
especializado” é imergir naquele universo ideário que objetiva sumarizar, mas aqui em seu caso não apenas as
fontes primárias, os textos antologiáveis em si, mas as fontes secundárias – prefácios, estudos, reportagens, a
fortuna crítica sobre aquele tema, e mesmo o contato e entrevistas com autores ligados ao objeto de sua pes-
quisa serão fundamentais para conferir-lhe ambientação e segurança crítica no universo de seu temário.
O antologista precisa estar sempre ciente de seu considerável e temerário poder fundacional e normati-
zador dentro daquele tema ou disciplina, poder que vai desde o estabelecimento de uma vereda crítica inova-
dora até um cânone – canonização que pode estabelecer-se ex nihilo, ou servir de aprofundamento e confirma-
ção de cânone já estabelecido dentro daquela literatura, ainda que alguns críticos desconfiem, a nosso ver in-
fundadamente, do poder canonizador das antologias. O antologista poderá ainda utilizar seu trabalho para
(tentar) destruir um cânone estabelecido. Seu trabalho poderá esforçar-se para propor ou afirmar uma corrente,
viés ou recorte específico dentro de um tema, da obra de um autor em particular, uma escola, gênero, geração.
Pode ainda trabalhar não para afirmar isto ou aquilo, senão a ele mesmo: seu recorte e senso crítico, sua leitura
singular, expressa tanto pelo jogo de inclusões/exclusões da seleta em si, quanto principalmente pelo aparato
crítico de que ele a municia em prefácio e notas.
Para a elaboração de antologias cujos fins sejam didáticos, o pesquisador precisará despir-se ao máximo
possível das diversas camadas de parcialidade que regem o julgamento, e, apesar da veracidade da máxima
barthesiana de que “tudo é ideologia” (BARTHES apud CAMPOS, 1981, p.70), alimentar o olhar universal e
universalizante, para abarcar o que eventualmente não lhe seja concorde ou aprazível, mas o representativo,
72
tenha que cores tenha, o que teve/tem/poderá ter impacto, ainda que pela via da controvérsia (alimento dialéti-
co), no universo ideário daquele tema ou literatura. Pois as antologias que optam por fundamentalmente susci-
tar polêmicas são um fenômeno editorial cada vez mais comuns.
Como um biógrafo que desce às minúcias sobre seu biografado, o antologista lança-se no universo de
seu tema, buscando a raiz do cânone, das obras principais, mas atento ao diferencial, atento mesmo às curiosi-
dades que podem dar desde um novo sabor em sua seleta até uma mudança de sua tese inicial e nova direção à
sua investigação.
A depender do tema abordado, além da simples consulta é bastante comum que o antologista precise
recorrer a tradução de material estrangeiro, inédito (ou não) em sua língua, para utilização e enriquecimento de
seu trabalho. Nisto poderá contar com tradutor ou realizar ele mesmo a tradução.

A necessidade da antologia

A informação desaba sobre nossos sentidos numa torrente a cada dia mais caudalosa. Livros são publi-
cados em número cada vez maior, e agora contamos com o fenômeno das baixas tiragens e da impressão sob
demanda (o que, se de um lado facilita a vida do autor, de uma maneira geral é péssimo para as bibliotecas e
para a difusão do conhecimento). Numa sociedade da informação, a figura do curador do conhecimento é cada
vez mais necessária e, porque não, paradigmática. Filtro humano, cujas capacidades a inteligência artificial
está a certa distância de equiparar, é ele quem sintetiza o grosso caudal de informações em segmentos e contêi-
neres palatáveis para o público não especializado. E o que é o curador do conhecimento senão um antologista?
A impossibilidade de aceder ao conhecimento publicado sobre uma única área ou disciplina cresce em
progressão geométrica, no ritmo mesmo da profusão de literaturas. O filtro de informação, que já foi “luxo”
dispensável, depois salutar auxílio, hoje é necessariamente imprescindível, uma comporta de escoamento que
permite que a represa da informação não se rompa sobre os desavisados.
Muitas antologias representam e representaram desde sempre a única forma de salvar certos textos e au-
tores do mais completo esquecimento. Devemos a algumas antologias a conservação de tesouros cujos origi-
nais se perderam irremediavelmente, e isso desde a Antiguidade, passando pela Idade Média até aqui. E, para
além da salvaguarda representada pelas antologias, ela assegura (mesmo ao fundar) uma história da literatura e
necessariamente da leitura. No dizer de Chao: “é inegável que as sucessivas antologias atestam uma história da
leitura, uma vez que estas não são, enquanto seleção de textos, ato de escrita, mas obra de leitor” (CHAO apud
ALVES-BEZERRA, 2011, p. 69).
A antologia raramente é monólogo, no dizer de Haddad (1961, p. 18), mas diálogo, onde a adequação a
determinado fim é o fator preponderante. Assim, ela vive segura na tênue linha entre o gosto do autor e a ne-
cessidade editorial da qual a antologia é fruto, pois sua função social é sua bandeira.
O contato entre o texto primário, ainda que breve trecho, arroja o leitor em direção a um patamar superi-
or não apenas de compreensão, mas de familiaridade com o tema em apreço, e mais, com o exercício de cho-
que/fascinação da cultura, ao apresentar um cardápio diverso de textos de valor. Esta é a preciosidade e o álibi
eterno da antologia.
O antologista é um humanista anacrônico. Por mais que tal espírito renascentista/iluminista esteja data-
do e criticamente demolido, é ele que subjaz não apenas a cada antologia (que é de per si uma celebração da
literatura ou melhor, do literário), mas a cada livro que se publica – sua contracapa secreta, inolvidável élan
que faz o maquinário do conhecimento girar.
Foi nosso poeta porto-alegrense Mário Quintana (apud MORICONI, 2001) que disse que quem escreve
um poema abre uma janela. Aquele que franqueia ao público uma antologia abre um albergue, no centro e co-
ração de uma cidade, na praça que se nomeia cultura.

As críticas à antologia

Como assinala Haddad (1961), a crítica à antologia é coisa fácil e virá de todo modo: falta de originali-
dade da obra por incluir apenas os autores/textos já celebrados; excesso de ousadia por incluir por demais no-
vidades ou elementos “fora da curva”; falta de notas e material crítico; excesso de notas e material crítico etc.
Como escrevemos num prefácio algures, toda antologia é e será sempre obra falha.
A própria condição de indefinição em que a antologia flutua colabora para seu estranhamento por parte
de alguns autores contrafeitos: apesar de sua condição geral de gênero cabalmente metaliterário, ela torna-se
paradoxalmente fonte de incertezas e controvérsias quando busca-se por definições mais apuradas.
A crítica às antologias que aponta a suposta característica da antologia de descontextualizar os textos, ao
arrancá-los de seu contexto para enxertá-los num plano diverso, nem sempre se sustenta, pois esta é uma via
de mão dupla, e é possível mesmo que a antologia venha a maximizar o sentido pretendido pelo autor/texto,
seja política, estética ou filosoficamente.
Uma certa crítica primária parece alegar que há algo de herético e de violação no trabalho do antologista

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que porventura resgata/elege textos que o autor prefere ver esquecidos, ou que permanecessem num segundo
plano. No entanto, aqui a proposta ou recorte do antologista deverá ser considerada, pois a antologia é ela mes-
ma a confecção de obra nova, e não mero balaio de “cegas” repetições; e mais que ela, o interesse cultural e do
especialista há de ser priorizado. Pois é fato sabido que o autor pode ser motivado a preferir/preterir determi-
nado de seus textos por interesses os mais espúrios, desde os de foro sentimental, repentes panfletários, rene-
gação wittgensteiniana de parte de sua produção etc.
Se há antologias catastróficas, são poucas e o entorno tratará de as suprimir; quanto a uma antologia
ruim, que não seja tomado por escândalo a constatação de que uma antologia ruim é melhor que antologia ne-
nhuma.
A crítica que se desenvolve em particular sobre as antologias escolares desdobra-se sobre diversos de
seus aspectos: instrumento de aparelhamento político, repetidora da “miopia” ou inconsistente percepção críti-
ca/estética de seu organizador, “deformando” a percepção dos alunos. Ora, no contexto de uso em sala de aula,
todo livro passará pelo crivo crítico do professor e/ou coordenador pedagógico escolar, que deverá optar pela
utilização do livro que mais for conveniente, ou mesmo, faltando o ideal, complementar sua proposta pedagó-
gica com textos “avulsos”, o que sempre é recomendável. No mais, toda antologia será incontornavelmente
didática em algum sentido, logo proveitosa, ainda que seu autor jamais a tenha pensado ou planejado para uso
escolar. E, como coleção de leituras de um leitor, será sempre passível de contradição por outro leitor. Pois, a
realizar a utopia entrevista, a cada leitor será necessária uma antologia, pois todo leitor acaba antologista, ain-
da que apenas em mente, ao preferir estes textos em detrimento àqueles. No entanto, uma efetiva resposta a
estas críticas, no que elas possuem de justas, é que antologias passassem a ser elaboradas a partir do julgamen-
to de uma pletora de especialistas, ou um colegiado, e não estar apenas à mercê da ótica de um só organizador,
como é de praxe. E isso se aplicaria com vantagem a quase toda e qualquer antologia, e não somente à escolar.

Propostas para a oxigenação do gênero

Uma das possibilidades de aumentar, principalmente face ao público escolar, a atratividade das antologi-
as é submetê-las a uma certa re-invenção editorial, a transformação da antologia, de construto etéreo ou tomo
sisudo em almanaque – e desconte-se aqui o que este termo possua de pejorativo. A inserção de quadros con-
tendo curiosidades sobre o autor, a obra e o contexto geohistórico; quadros com inserções humorísticas (texto/
imagem) relacionadas ao autor e/ou sua obra; charadas e passatempos; ampla utilização de imagens; e o prin-
cipal, elementos hipertextuais estabelecendo analogias e correlações entre a obra, seu tema e fatos do presente,
se possível do contexto imediato do público-alvo (e aqui, quanto mais criativa e inusitada a correlação estabe-
lecida, mais atrativa para o leitor). A antologia-almanaque seria uma efetiva adequação do gênero às moder-
nas formulações e soluções editoriais e midiáticas.
[...]
O impedimento maior para a construção e publicação de antologias é o Direito Autoral. A lei Nº 9.610/98 as-
segura o seguinte, em seu Capítulo IV – Das Limitações aos Direitos Autorais:
Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:
[...] VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer
natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objeti-
vo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um
prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.

O problema é que a regra da citação minimamente necessária, “pequenos trechos” e “nem uma linha a
mais” que a lei regula, bem como a exigência de que “a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra
nova” pode ter efeito castrador no caso das antologias, e incongruente quando a prioridade de uma sociedade
da informação deve ser aprioristicamente a democratização do conhecimento. Assim, propomos um relaxa-
mento da lei do direito autoral, para contemplar de forma circunscrita aquelas antologias elaboradas para os
fins didáticos, organizadas por professores de ensino fundamental e médio, em pequenas tiragens e destinadas
estas apenas aos alunos dos períodos elencados (circulação interna), e sem fins lucrativos. Claro deve ficar que
tais antologias (em formato de apostila ou mesmo brochura) não devem sob nenhuma hipótese objetivar lucro
financeiro algum, sendo distribuídas às expensas da instituição escolar (se privada) ou do erário público (se
pública), ou comercializadas apenas ao custo de impressão/cópia. Para que um limite fixo sobre o total do tex-
to seja estabelecido, transpondo assim tanto o limite mínimo imposto pela lei em vigor, quanto a possibilidade
de cada caso litigioso ser avaliado em particular pelo judiciário, propomos um limite de utilização de até 49%
do conteúdo de qualquer obra literária (impressa), entendidos aqui tanto textos artístico-literários (romances,
novelas, poemas etc.) quanto textos de não ficção (jornalísticos, técnico-científicos etc.). No caso do gênero
poético, sua utilização será livre de limite, em virtude mesmo da exiguidade de extensão comum ao gênero.
Iniciativa sumamente importante é tornar desnecessária outra exigência da lei: a autorização, por escrito,
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do autor, detentor dos direitos ou editor, para a reprodução de parte da obra (aqui proposta para o âmbito esco-
lar).
Sobre direitos autorais, autorizações e antologias, abro parêntesis para introduzir uma nota de horror. O
poeta Thiago de Mello publicou, depois de 20 anos de abnegado trabalho, a obra Poetas de A mérica em Canto
Castelhano (Global Editora, 2011). A obra, colossal por suas quinhentas páginas, pelo tamanho (formato 18
x 26 cm) do livro e pela amplidão de poetas abarcados – 120 autores, de dezenove países da Latinoamérica,
seria na verdade ainda mais significativa. A antologia, única em nossa bibliografia, contaria na origem com
nada menos que duzentos autores, segundo nos relata o editor da obra, A. P. Quartim de Moraes (p.11). Acon-
tece que, por problemas da ordem de autorizações, exigências irreais e outras querelas por parte de autores,
descendentes e agentes literários, e apesar de a obra ser única no gênero, a alcançar o amplo público brasileiro,
apesar de muitos dos autores estarem sendo apresentados pela vez primeira ao idioma português, apesar de o
trabalho estar a cargo de um dos maiores poetas brasileiros vivos, e certamente aquele de maior penetração
entre seus confrades latino-americanos, tais pessoas impediram a inserção de quase uma centena de textos na
referida obra (o editor chega a listar os ausentes – cujos poemas já haviam sido inclusive traduzidos). Tal rela-
to serve para clarificar situações muitas outras em que o interesse de um indivíduo mostrou-se maior que o
interesse da Arte, da cultura, de seu próprio povo e país, e mesmo da humanidade inteira.
Tais iniciativas, claro está, hão de ser combatidas por uma maioria de autores, e principalmente os edito-
res e livreiros, que são os que mais lucram com qualquer obra publicada. Uma maneira de minorar o eventual
“prejuízo” dos interessados, seria a criação pelo país de um fundo de ressarcimento fixo, ou algo mais efetivo,
como um mecanismo de subsídio ou desoneração fiscal a incidir sobre editores e livreiros. Outro mecanismo
oportuno seria o aumento da gravidade da infração e consequentemente das penalidades (principalmente mul-
tas) sobre aquele que for pego comercializando publicações elaboradas dentro deste modelo.
Para as antologias de cunho eminentemente comercial (publicadas por editoras regulares), a adaptação
de flexibilizações aproximadas às acima propostas pode servir de grande insumo ao reflorescimento do gênero
e ampliação de seu alcance. [...]

A antologia, por suas características de congregar textos selecionados e rearranjados, sua singularidade
de filtro e condensador metaliterário, é sempre pedagógica, e objeto inescapavelmente didático. No Brasil,
pouca é a literatura crítica sobre o gênero e também sobre seu oficiante, o antologista. Conceituar, elogiar e
defender a antologia foi o que esta reflexão se propôs, pois além de sofrer pela dificuldade de definição, o gê-
nero é alvo ainda de críticas, infundadas em sua grande parte, críticas algumas das quais buscamos responder.
Concluímos que, em tempos de avalanche informacional, o filtro humano e o objeto-filtro, ou a antolo-
gia e o antologista, são colunas e gargalos sumamente necessários ao trato do fluxo de informação a que busca
aceder o leitor comum ou não-especializado.

* * * * * *

Este texto é um trecho do artigo A ANTOLOGIA COMO EQUIPAMENTO DIDÁTICO: EXPOSIÇÃO, DEFESA E
PERSPECTIVAS, apresentado como trabalho de conclusão do curso de Especialização em Gestão Escolar, na Universi-
dade Salgado de Oliveira (2019). VOCÊ PODE LER O ARTIGO COMPLETO AQUI.

NOTAS
1. O autor é licenciado em Geografia, com especialização em Metodologia do Ensino de Geografia e História
e especialização em Gestão Escolar. Mas o lance dele parece ser, sinistramente, a Literatura.

2. Entendemos a coletânea como coleção indiscriminada. Por exemplo, temos dez alunos e requisitamos a
confecção de um poema; após publicamos todos os dez poemas em livro – aqui temos uma coletânea; se,
dentre esses dez poemas, selecionamos apenas três para publicação, tal publicação será uma antologia.

3. Wilson Alves Bezerra, em seu artigo Promessas antológicas: o conto latino-americano contemporâneo a
partir de algumas antologias (2011), referindo-se em parte ao risco que todo antologista incorre ao ter que
abster-se de abarcar a totalidade de um tema em defesa de um recorte (mesmo que pretenso, nunca neu-
tro), refere o fato de “seus prefácios serem verdadeiros exercícios de estilo e persuasão” – pois o prefácio é a
defesa do antologista, o para-choque de seu trabalho temerário.

4. International Standard Book Number (ISBN) - é um sistema que identifica numericamente os livros segun-

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do o título, o autor, o país e a editora, individualizando-os inclusive por edição. No Brasil, é a mesma Bibliote-
ca Nacional quem coordena as atividades sobre o ISBN. Para as publicações periódicas e seriadas, há o ISSN.

REFERÊNCIAS

ALVES-BEZERRA, Wilson. Promessas antológicas: o conto latino-americano contemporâneo a partir de algumas antolo-
gias. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n.38, jul./dez. 2011, p. 61-72.
BÁEZ, Fernando. História Universal da Destruição dos Livros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

BANDEIRA. Manuel. Antologia dos Poetas Bissextos Brasileiros Contemporâneos. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zelio
Valverde S.A., 1946.

BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.


BRASIL. LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l9610.htm . Acesso em: 12/02/2019.
DE MAESENEER, Rita e LOGIE, Ilse. Las antologías como instrumentos de canonización: una introducción. Acade-
mia.Edu. Disponível em: https://www.academia.edu/10052349/Las_antologias_como_instrumentos_de_canonizacion.
Acesso em: 01/02/2019.

GONÇALVES, Magaly Trindade, AQUINO, Zélia Thomaz de e SILVA, Zina Bellodi. Antologia de antologias: Prosadores
brasileiros “revisitados”. Prefácio de Fábio Lucas. São Paulo: Musa Editora, 1996.
GOODFREY, Gerald. Frases de Cabeceira – Vol.1. Rio de Janeiro: Record, 1981.
HADDAD, Jamil Almansur e BUZAID, Alfredo. Defesa e Ilustração da Antologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1961.
MELLO, Thiago de (seleção, tradução e notas). Poetas da América de Canto Castelhano. São Paulo: Global, 2011.
QUINTANA, Mário. "Emergência". In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
SERRANI, Silvana. Antologia: escrita compilada, discurso e capital simbólico. Alea vol.10 no.2. Rio de Janeiro, Jul/Dez. 2008.

Carta aos Antologistas


Sammis Reachers

Deus é o códice e a logosfera Tua psicanálise é clara: Mão no caldeirão das Palavras
Donde todo verbo emana: Sofres da pulsão de abarcar. Para saciar os sempre nascentes
A você, pequeno livro de DNA, Tua sociologia é a mais chã e nua: Necessitados e a profusão
Cabe adentrar as bibliocatedrais, Todo antologista é um civilizador, Dos sofomendicantes.
Abrir os outros livros em sua fonte, Um amigo do Homem.
Esposar em luz a profusão de periódi- Nunca se envergonhe de sua milícia
“Não há limites para o fazer livros”, E labor: se outros, príncipes e reis
cos,
E você, muar cargueiro de Gutemberg, Construíram incandescentes palácios
Os homens e(m) suas memórias;
Entendeu exato que, logo, E ebúrneas torres, você foi eleito
Mergulhe, vá!, polígamo pária,
Não há força que lhe impeça. Para construir pontes:
No Oceano de Papel do qual
O muito estudo, enfado da carne É nauta e é também pontífice.
Você é o mais propício nauta;
Que a muitos bem-intencionados Fraterno elo da humana corrente.
Execute seu trabalho
Amolece, você pisoteia E guardião da despensa das almas,
Como compilador.
Com as botas de seu pragmatismo, A biblioteca. Você este acumulado,
Revista-se de anonimato Pois mortificar a carne Você o portador das chamas
Para celebrar os Nomes luminosos; É a tua ascese. Que ardem em tinta, o coletivo veloci-
Você é o cobrador de impostos Da Literatura o filantropo & remendador no:
Da sabedoria humana, De tropos e de trapos Trabalha e confia.
E o seu mais fiel e abnegado tributário. Tua inamissível missão é afundar a
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Parlatorium
"Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus' é o conselho do salmista, e sempre achei que este
é um bom conselho para a Literatura também. Aquiete-se do mesmo modo que Tolstoi se
aquieta, ou como Anthony Trollope se aquieta, de modo que seus personagens possam falar
por si e ganhem vida em sua própria maneira imortal. Se você é um escritor como eu, dá
menos importância a tentar impor uma forma no caos do que ver qual é o formato que emer-
ge dele, que está oculto dentro dele. Se personagens menores mostram sinais de se tornarem
personagens principais, você pode, pelo menos, dar uma chance a eles, pois no mundo da
ficção você pode precisar de algumas páginas para descobrir quem realmente são os ver-
dadeiros personagens. É como na vida real. Pode ser que você leve alguns anos para desco-
brir que aquele estranho com quem conversou por meia hora numa estação de trem fez mui-
to mais ao apontar a direção correta do que seus amigos mais próximos ou seu terapeuta."
Frederick Buechner

“JESUS é um momento de significação inin-


terrupta: um SIGNO de leitura INFINITA.” “A maioria dos estudantes pen-
sa que escrever é colocar ideias, in-
Paulo Leminski sights e visões no papel. Acham que,
primeiramente, precisam ter alguma
“Nunca duvide do poder das histó- coisa a dizer antes que possam efeti-
rias. Natã, sob inspiração divina, con- vamente escrevê-la. Para eles, escrever
tou uma história a Davi para levá-lo à “A POESIA é um pouco mais do que registrar um
consciência e arrependimento do pe- repara a pensamento preexistente. Porém, com
esta abordagem, o verdadeiro ato de
cado – o que, felizmente, aconteceu. existência.” escrever torna-se impossível. Escrever é
Como Davi, nós também habitamos Alfredo Pérez um processo no qual descobrimos
uma narrativa. Resta saber se estamos Alencart aquilo que vive dentro de nós. O pró-
ouvindo os natãs.” prio escrever revela o que está vivo (...)
Leonardo Bruno Galdino A mais profunda satisfação ao escre-
ver é exatamente que este ato abre no-
vos espaços dentro de nós dos quais
não tínhamos consciência antes de
começar a escrever. Escrever é embar-
car numa jornada cujo destino final
não sabemos.”
Henry Nouwen

(...) Cria, e terás com que exaltar-te


No mais nobre e maior prazer.
A afeiçoar teu sonho de arte.
Sentir-te-ás convalescer.

A arte é uma fada que transmuta


E transfigura o mau destino.
Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta.
Cada sentido é um dom divino.
Manuel Bandeira 77

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