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A NOÇÃO JUDAICO-CRISTÃ DO CORPO E SEUS AFETOS

PLÁSTICOS NA DANÇA CONTEMPORÂNEA


11. THE JUDEO-CHRISTIAN NOTION OF CORPOREAL
AFFECTIVITY IN CONTEMPORARY DANCE
Marcia Almeida

Resumo              

Tudo o que envolve o ser humano serve como referência na sua formação.


No ocidente, a representação corporal se apresenta sob a égide da noção
cristã do corpo segundo o modelo teológico. O corpo é desprezado em
detrimento da valorização do espírito. A dança incita um julgamento moral
cristão. O sentimento moral se confunde com o estético no momento
da contemplação. Isso afeta o resultado da dança contemporânea que se vê
no palco. Este texto, em tradução da autora, faz parte da tese
intitulada: Les affections plastiques du corps et la danse
contemporaine, defendida em 2009 na Universidade Paris I Panthéon-
Sorbonne, Paris (FR) financiada pela CAPES.
Palavras-chave | Arte coreográfica | Noção cristã do corpo | Dança
contemporânea

Abstract

Everything that revolves around the human being serves as a reference to


his or her own formation. In the West, the representation of the body is
presented under the influence of the Christian notion of the body, according
to the theological model in which the spirit is valued to the detriment of the
body. Dance, then, encourages a judgment according to Christian
morality.  Upon contemplation, moral feeling, or reaction, is confused with
the aesthetic.  This affects one's perception of what is happening on
stage. This essay, translated by its author,  is part of her dissertation
entitled: Les affections plastiques du corps et la danse contemporaine
(Corporeal Affectivity in Contemporary Dance), defended in the University
of Paris I Panthéon-Sorbonne, Paris (FR), in 2009 and funded by a grant
from CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior/ Coordinating Foundation for Graduate Programs).
Keywords | Choreographic art | Christian notion of the body | Contemporary
dance

Marcia Almeida é Doutora em Estética/Dança pela Universidade Paris I


Panthéon-Sorbonne. Desde 2010 é professora do curso de Licenciatura em
Dança (Instituto Federal de Brasília). Coordena o grupo de pesquisa Arte
Coreográfica/Dança Contemporânea IFB/CNPq. Interessa-se pelos afetos
plásticos do corpo na dança contemporânea. 
Marcia Almeida holds a Doctorate in Aesthetics/Dance from the University
of Paris I Panthéon-Sorbone.   Since 2010, she has taught in the
Undergraduate Program in Dance  (Federal Institute of Brasília) and is
Coordinator of the research group Choreographic Arts/Contemporary Dance
IFB/CNPq.   She is interested in the corporal affectivity of contemporary
dance.  

 
A NOÇÃO JUDAICO-CRISTÃ DO CORPO E SEUS AFETOS PLÁSTICOS
NA DANÇA CONTEMPORÂNEA
                                                                      Marcia Almeida
Desde a concepção da criança, tudo o que está à sua volta serve
como referências complexas na sua formação: motivações, julgamentos,
condutas, significado moral, educação. Esse conjunto de elementos fica
tatuado na pele, assegurando a integração histórica da pessoa, em uma
determinada cultura, mesmo que se apresente de forma sutil, num primeiro
olhar. Lévi-Strauss (1983) considera que nas sociedades ocidentais se
encontram fatores, inconscientes e conscientes, que determinam as trocas
genéticas. Elas se fundam no espaço geográfico onde habitam os futuros
casais e estão marcadas pela religião, origem étnica, nível de educação.
A noção do corpo no mundo ocidental é concebida pelo cristianismo.
O modelo cristão propõe um princípio dualista, pois ele representa, de um
lado, a aproximação do divino e, por outro, a aproximação da matéria do
pecado. A carne é pesada e o espírito, leve.
Nas representações picturais do Cristo, ele aparece sempre com um
corpo idealizado como imagem do homem criado por Deus. O Cristo é
semelhante ao seu Pai quando ele acede ao status do Divino, logo que ele
se desvencilha de seu corpo na Ressurreição. Por conseguinte, as imagens
são pensadas segundo um ideal de aparência que não é nada mais do que o
reflexo do humano. De fato, o olho que enxerga concebe o corpo segundo o
modelo da interioridade espiritual.
Nessas sequências paradoxais do pensamento regido pelo
cristianismo, Deus é invisível ao olhar humano, mas este deve procurar
assemelhar à imagem que não vê. Explico isso pela pena de Jean-
Marie Schaeffer:
Para que a imagem possa proporcionar acesso ao modelo, a
relação de similaridade deve ser baseada em uma relação de
cópia. Somente esta última pode garantir que o que é dado
a ver é uma manifestação do Modelo, e não uma vã
aparência improcedente. No caso da imagem – o Cristo –, a
relação da cópia é garantida porque o Cristo é a imagem
consubstancial do Pai. [...] Originalmente, o mundo é
pensado como uma transcendência absoluta, situado além
de toda representação e, portanto, inacessível aos
humanos  (Schaeffer: 2006, p. 70; 65, minha tradução).
1

O ser humano tenta representar através da pintura o que é concebido


em sua memória, a lembrança das imagens do Paraíso, ou melhor, o ideal
do Paraíso. O corpo deve se aproximar do que representa o corpo ideal.
Existe uma ligação entre o pensamento do corpo e o culto das imagens do
corpo. Dessa maneira, o homem cultua e representa a imagem de um corpo
ideal segundo o que ele mesmo considera como perfeição. Cultua-se a
imagem de um corpo idealizado cuja referência é algo inacessível ao olhar.
Assim, Deus é a representação de um ideal representado pelo homem,
segundo o que ele mesmo considera como perfeição. Compreendido que ele
não pode representar a imagem de Deus, pois ela é inacessível ao olhar
humano, a imagem do corpo tem como modelo uma imagem já existente,
que vem a ser a imagem do próprio ser humano. No entanto, quanto mais o
homem se aproxima do seu corpo, de sua carne, mais ele se distancia do
Divino. Ele deve sempre apagar a diferença para se aproximar da perfeição
de seu criador. Ou seja: ele deve negar a carne.
Segundo o Gênese, Deus era visível aos olhos de Adão e Eva até o
momento em que o modelo feminino sucumbiu ao pecado da carne. É
importante remarcar que, nas sociedades patriarcais, regidas ou não pelo
cristianismo, a mulher é sempre aquela que aporta o pecado e semeia a
doença no grupo ao qual ela pertence.
Essa passagem no Gênese chama a atenção sobre o prazer procurado
através do ato sexual, da aproximação da carne, da sensualidade. De uma
maneira indireta, ela é indulgente em relação à fraqueza masculina à mercê
da sedução da mulher. O Gênese não mostra o modelo masculino como um
sujeito vulnerável. Negligencia o poder da mulher através da fala, caso em
que o discurso é considerado próximo ao intelecto, ao espírito, enquanto
que o ato sexual é coisa da carne. Então o Gênese acentua o pecado como
cometido pela mulher, remarca, sobretudo, a fraqueza através da falta,
condena o corpo, a matéria. Sublinha que ela procura o conhecimento
delineado pelo sexo. Esse discurso é muito importante no comportamento
tangível ao mundo ocidental. No entanto, é a dois que se realizam,
normalmente, as relações íntimas. Todavia o Antigo Testamento culpa o
modelo feminino, ao designá-lo como este que está na origem da
sexualidade, no lugar de atribuir esse papel ao casal. Eva quer buscar o
conhecimento e convence Adão a segui-la. E o Gênese infatiza que foi a
mulher que instigou o modelo masculino à transgressão e não que o modelo
masculino tenha sido vulnerável.
Imagem 1: A Tentação de Adão e Eva, Michelangelo Buonarotti (1508-1512). Detalhe da
Capela Sistina, afresco, Vaticano, Roma, Itália
(http://www.galerie-arts.com/boutique/index.html?lang=fr&target=d17.html).

  No Ocidente, a arte sempre foi marcada pela representação do


corpo. Nas representações picturais, os corpos nus são mostrados como
sinal de inocência, como neste afresco de Michelangelo representando o
momento da tentação. O modelo feminino quer conhecer o mundo por si
mesmo. Assim, Eva se volta em busca do conhecimento e convence Adão a
segui-la. Este, sem nenhuma objeção, parte com o modelo feminino em
busca de novas sensações; eles querem novas experiências e autonomia de
ação.
O pecado da carne marca a diferença. O homem, não sendo mais do
que uma imagem que perdeu sua dignidade, seu corpo passa a ser
representado com uma folha que cobre seu sexo, sinal do pecado; como
mostra o quadro, de Albrecht Dürer: Adão e Eva, pintado em 1507.

Imagem 2: Adão e Eva, 1507, Albrecht Dürer (Alemanha, 1471–1528). Óleo sobre tecido
(209 x 82 cm por quadro), Museo National do Prado, Madrid
(http://forum.doctissimo.fr/psychologie/dieu-religions/peinture-chretienne-
sujet_654_3.htm).
 

Adão e Eva aparecem neste quadro depois que perderam a pureza, e,


mesmo assim, seus corpos são imagens de corpos infantilizados. O que
marca a diferença entre os corpos de adultos mostrados nestes quadros e
os que estão reproduzidos no quadro anterior é a folha de parreira que
esconde o sexo, sinal da vergonha. Depois de serem expulsos do Paraíso
por Deus, num ato de rancor, o homem será, a partir de então, sempre
concebido em duas partes: uma que não é representável, à similaridade de
seu Criador, e outra segundo o modelo que é a cópia. Isso é contraditório,
pelo fato de que o Criador não é representável em imagens, pois é apenas a
parte imaterial. Deus se mostra através da encarnação no Cristo, que é
concebido à imagem daquele que seu Pai criou. 
Assim, após o evento em que Eva busca o conhecimento, o casal
perde sua reputação e se torna cego em relação à imagem de seu Criador.
Tudo o que o casal carrega consigo é a memória do paraíso e de seu
Criador. Segundo o Gênese, é a partir de Adão e Eva que a Terra foi
povoada e que os humanos foram destinados a não mais aceder ao paraíso,
pois eles são hereditários do pecado. E assim começa uma eterna busca de
se livrar da carne, fonte do pecado, para se ter direito a se aproximar do
Divino. Doravante, o humano é condenado a ver seu Criador através da
imagem-memória, pois Deus não se mostra nunca mais aos olhos humanos.
Resta apenas a promessa de um novo encontro depois da morte, para os
que seguem suas Leis. Dessa maneira, a única representação pictural
possível é esta do Cristo, Seu filho, que foi concebido à semelhança do Pai.
Segundo Hannah Arendt (2005), o modelo do cristianismo é
emprestado ao Império Romano, de acordo com o modelo proposto por
Platão. O que muda de um modelo a outro é o nome “espírito” ou
“inteligência” para a palavra “Deus”.
A partir da Renascença, o corpo humano profano é de acordo com o
modelo ao qual ele se refere. Assim, a pintura propõe mostrar a harmonia
interior através da beleza corporal. No quadro, a representação sensual de
Eva, mulher pecadora, é exibida através de um corpo infantilizado. Ele não
tem seio de adulto, nem curvas acentuadas, muito menos pelos.

Imagem 3: Eva Prima  Pandora (em torno de 1550), Jean Cousin le Père. Pintura francesa,


Museu do Louvre, Paris, óleo sobre tecido (0,97 m altura x 1,50 m largura)
(http://www.louvre.fr/llv/oeuvres/detail_notice.jsp?CONTENT%3C
%3Ecnt_id=10134198673225176&CURRENT_LLV_NOTICE%3C
%3Ecnt_id=10134198673225176&FOLDER%3C
%3Efolder_id=9852723696500815&baseIndex=65&bmLocale=fr_FR ).

 
O corpo, de beleza ideal, passa pelo corpo orgânico para se submeter
à lei da forma. Ele é apresentado como paisagem da alma. Assim, a
imagem do corpo foi pintada, sobretudo, conforme corpos infantis ou
similares à inocência dos anjos. Os corpos são mais uma espécie de
decoração do quadro do que uma representação de corpos, eles mesmos. O
nu não é equivalente à carne do corpo sexuado, ele desvela a beleza da
alma. Como se pode constatar neste quadro, o corpo aqui está próximo ao
modelo do Divino, é o corpo dos anjos, puro sem pecados. Então, o corpo
espiritual é figurado através de corpos que remetem à inocência e, assim,
ele não é desejável. Dessa maneira, a representação do corpo é mais
próxima de Deus, modelo que os olhos humanos não são capazes de ver
por eles mesmos. Esse corpo se distancia da carne de Maria Madalena, que
é o símbolo do corpo prostituído, aquele que vive da sua carne. Explico
melhor: a imagem do corpo é mostrada neste quadro como a representação
do espírito, corpo este que remete à pureza dos anjos e não ao corpo
passível do pecado. Ele figura um corpo “desencarnado”, como o corpo das
crianças em que a nudez da carne não as faz desejáveis.

Imagem 4:  Amour endormi  (1768), Louis Jean François Lagrenée (1724 - 1805). Pintura
francesa, Museu do Louvre, Paris (1,21 m x 1,21 m).
 

Em 1768, Amour endormi, pintura feita por Louis Jean François


Lagrenée, chocou os ideais da época. Mas, como podemos ver, os corpos ali
representados estão longe de remeter à imagem real de um corpo adulto.
Neste quadro aparecem corpos infantis, puros, quase assexuados, longe do
corpo que sugere o pecado da carne. Dessa maneira, logo que o corpo é
mostrado como sexuado, carnal e desejado, ele cessa de ter o lugar do
olhar, que se dirige para a interioridade espiritual.
Ainda em nossos dias, o quadro L’origine du monde, pintado em 1866
por Gustave Coubert, representa a transgressão da imagem do corpo. Este
quadro mostra o corpo do delito.
Imagem 5:  L’origine du monde, Gustave Courbet.

Na época em que o quadro foi pintado, não havia mulheres


independentes. Os modelos que posavam para os artistas eram
considerados como “pouco frequentáveis” na sociedade marcada por uma
moral severa, como sublinha Savatier, quando escreve sobre a reputação
das mulheres:
Viver à margem das normas sociais – e o simples status de
modelo e amante de um pintor era suficiente para ser
julgada como marginal – permitia às pessoas “respeitáveis”
marcá-las ao ferro da infâmia. [...] Somente a mulher
casada (ou viúva), fina, fecunda, submissa, protetora de um
lar de onde ela raramente se distanciava, tinha direito
a considerações; as outras pertenciam à categoria das
mulheres de vida duvidosa, termo genérico pelo qual se
pressentia a filha de Eva tentadora, guiada por um prazer
fortemente lúbrico. A sociedade puritana do Século XIX
funcionava assim (Savatier: 2006, p. 54-55, minha
tradução).2

E, por isso, a obra de Coubert foi confinada a um estado


clandestino. De um lado, porque ele desvela explicitamente o sexo
feminino, de outro porque ela excitava a curiosidade das pessoas em
relação às modelos que poderiam ter posado para o artista. Essa obra foi
considerada, então, uma representação escandalosa. Obra que provoca a
fascinação e a rejeição. Jaques Lacan foi seu último proprietário, antes da
obra ser adquirida pelo Museu d’Orsay, em 1995 (p.
199). Lacan apresentava esse quadro, que ficava escondido por um véu,
somente a alguns convidados escolhidos por ele, que o visitavam. Ele
propunha desvelar pouco a pouco esta parte da carne que sempre
está escondida. Por certo, o véu que Lacan colocou sobre o quadro de
Coubert teria como objetivo remeter ao jogo de palavras e designificações
escondido nos sonhos, como propõe Lacan no trabalho terapêutico.
Segundo Lacan, a criança desvela a imagem fragmentada e parcial
que começa a apreender de seu próprio corpo, até que ela se complete. Ele
propõe desvelar as imagens, acordando a memória por palavras-chave.
Assim, os fantasmas e as cenas do passado, que determinaram o destino de
cada um, são resgatados progressivamente pela consciência, sanando o
problema do paciente.
O quadro L’origine du monde representa a primeira imagem do corpo
que a criança vê de sua mãe, no ato do nascimento: parte da carne sempre
escondida por uma folha de parreira sobre os corpos infantilizados
representados nos quadros da Idade Média. Coubert assume uma atitude
ousada, tão ousada que ainda hoje sua obra evoca a transgressão. L’origine
du monde  está longe de representar a imagem da mãe virgem, imagem
ideal da mulher, concebida pelo mundo judaico-cristão.
Na doutrina dualista o corpo está a serviço da alma; a beleza do
corpo não é plástica, ela deve se aproximar da beleza não representável. Na
sua nudez, a carne se distancia da inocência do paraíso, pois o corpo foi
criado por Deus, à sua imagem e similitude. Lacan joga com esta
representação da alteridade em relação ao seu Criador e a imagem explícita
do sexo feminino, por onde o sexo masculino penetra para que o esperma
possa ir ao encontro do óvulo. Aliás, esse ato é negado pelo cristianismo.
Na mitologia cristã, Jesus é concebido no útero de uma mulher virgem. Com
essa obra, Coubert transgride as convenções e inaugura uma nova
geografia corporal. 
Depois do Século XX, houve outros meios (a fotografia, o cinema, a
televisão e as imagens veiculadas na Internet) que difundiram a imagem do
corpo nu, aliás, mais real do que a representação pictural.
Ao longo da história, o ocidental demonstra a tendência em explorar
principalmente o corpo em sofrimento. Há uma certa inclinação em mostrar
a intimidade do sofrimento do corpo, pois, segundo a noção cristã do corpo,
é preciso desprezá-lo, para se aproximar do Criador. Assim, a reprodução
do sofrimento permite ao espectador se identificar com a chaga de Cristo.
 Uma exposição fotográfica nas grades do Jardim de Luxembourg , em
3

Paris (2006/2007), demonstrou grande sucesso e a forte atração pelo corpo


sofrido. Trata-se de um conjunto de belas fotos tendo como sujeito o
cotidiano de nigerianos, malineses, senegaleses, burkinambeses e
mauritaneses, mais exatamente da condição miserável desses povos. Eu me
pergunto sempre sobre a questão da ética/estética deste tipo de trabalho.
Em geral, são belas fotos tomadas por fotógrafos que exploram a miséria do
outro. Eles violam a intimidade dos que não têm escolha de decidir se
querem ou não ser expostos. Os fotógrafos mostram o que o olhar não vê:
a miséria do outro. Fechar os olhos, a fim de guardar em abrigo o órgão
que possui o sentido da visão, é um ato reflexo que o homem executa
assim que se sente ameaçado por qualquer coisa de sua exterioridade. A
miséria, a violência, a morte são coisas que não são muito agradáveis ao
olhar, assim como nesta fotografia tomada por Sebastião Salgado.
Imagem 6: Refugee camp at Benako, Tanzania (1994), Sebastião Salgado.
http://www.berkeley.edu/news/media/releases/2002/01/18_salgado.htm, © Sebastião
Salgado.
 

Essas imagens evocam muito mais os objetos que nos ameaçam e


nos fazem desviar o olhar. Mas, contrariamente ao que é esperado, corpos
maltratados chamam a atenção, ao invés de provocarem o fechamento dos
olhos. Aqui não se trata da questão social, mas, muito mais, porque no
mundo cristão as pessoas sentem prazer em ver o corpo sofrido. Assim, não
é exatamente a pobreza que chama a atenção, mas o corpo em sofrimento.
Dessa maneira os fotógrafos denunciam, de uma maneira artística, o
que o mundo resiste em ver como um problema social mundial, no lugar de
ver como um problema de um povo em particular. As imagens visualizadas
da fome, da miséria, do sofrimento não mostram as consequências. Elas
não mostram a qual tratamento penoso esses corpos se submetem, a cada
dia. Todavia, eu penso que, no mundo contemporâneo, a arte não tem mais
que cumprir o papel de denunciar esses fatos, pois a mídia o faz em tempo
real. Basta lembrarmos das imagens da destruição das torres gêmeas nos
Estados Unidos, quando o mundo inteiro assistiu o atentado de 11 de
setembro. É verdade que esses fotógrafos mostram imagens que não
interessam à mídia, caso a televisão precise do retorno econômico e seja
mais rentável mostrar imagens que emocionem os países ricos. No entanto,
nota-se que não houve imagens de corpos, quando do atentado aos Estados
Unidos, pois a política preserva uma relativa intimidade. 
Resta então aos fotógrafos estetizar e expor a intimidade da miséria
do outro, ali onde a existência de corpos pobres e sofridos é ignorada do
mundo e onde suas vidas não valem nada. Onde não existe uma política de
privacidade do sofrimento, como denuncia James Nachtwey, nesta foto que
mostra como o ser humano é animalizado, desprezado. Porém não deixa de
ser uma evocação ao corpo sofrido, proposto pela noção cristã do corpo.
Imagem 7: Famine victim in a feeding center (Sudan, 1993), Nachtwey.
(http://www.nikohk.com/2008/01/06/james-nachtwey-photographe/)

 
Mas estetizar o sofrimento é também desnudar para sempre as
exigências das justificativas e fazê-las valer aos olhos dos diferentes
espectadores. Esta estetização deve, então, produzir um efeito público, ao
mesmo tempo que um efeito sobre o público. Ela permite igualmente uma
nova orientação do ato e uma (re)codificação da relação com o outro
sofredor; notavelmente no que concerne à denúncia, à indignação e/ou à
compaixão diante desse sofrimento. Todavia, estetizar a miséria, e expor a
mesma, não quer dizer que a arte seja capaz de transformar a pobreza
dessas pessoas ou mesmo que o artista que a expõe tenha a intenção de
mudá-la.
Os diferentes públicos têm percepção do sofrimento do
mundo contemporâneo sem, no entanto, fazerem julgamentos avaliativos e
definitivos. Em certos casos, por exemplo nos casos dos sofrimentos ligados
à exclusão social, existem os que julgam que o artista tem obrigações
sociais e deve levar algum retorno aos que foram fotografados, e outros
que simplesmente têm a compaixão cristã. Raros são os que olham a obra e
são mais tocados por suas qualidades plásticas e estéticas do que pela
imagem exposta. Quando é mais difícil imaginar que no planeta exista tanta
desigualdade. 
De fato, o objetivo do trabalho do artista não é mudar as coisas,
como sublinhou Pedro Costa, quando da apresentação de seu filme En
avant la jeunesse , no dia 19 de fevereiro de 2008, no cine MK2 Beaubourg.
4

Nesse filme, Costa desvela o cotidiano de habitantes de uma favela situada


nos arredores de Lisboa. As imagens captadas pelo prisma dos olhos do
artista são tão belas, que não é a pobreza de uma família que passa o dia
assistindo a televisão que sobressai.
Para mostrar essas cenas, ele utiliza uma luz fraca, mas
incandescente, que invade o espaço e envolve os olhos de quem contempla.
Através do seu talento artístico, Pedro Costa nos transporta, sobretudo,
para onde a beleza domina e chama a atenção, e não para onde a
indigência habita. Ele joga com a sombra, opondo-a à luminosidade
estonteante por sua beleza, e que escapa, por ser impossível retê-la
prisioneira, da mesma forma como não podemos aprisionar Eros, filho do
Caos, encarnação da harmonia e da potência criativa no universo. Ninguém
pode aprisionar o amor. Se ele se sente acorrentado, ele foge. É assim que
a beleza fugaz da obra de Pedro Costa se apresenta: é preciso contemplar
sua beleza plástica, jamais tentar se apropriar da causa social.
Mas o sujeito ocidental tende a se apegar ao lado marginal. Sempre o
mundo ocidental gostou de ver imagens que mostram o corpo sofrido, com
o julgamento feito sobre a representação do corpo se apresentando sob a
égide da noção cristã da corporeidade.
Segundo Foucault (2006), a praça estava cheia de espectadores
durante o suplício de Damiens, conhecido por tentar assassinar Louis XV.
Da mesma maneira, é narrado na Bíblia que a folia estava imensa no
caminho do sacrifício de Cristo. É flagrante o sucesso dos vídeos, difundidos
na Internet, que mostram a execução de soldados americanos. De fato, no
mundo ocidental, os vídeos conheceram o sucesso ao invés de se
tornarem impressões desagradáveis, o que era o objetivo daqueles que os
divulgaram. Todavia, a relação do corpo no Ocidente tem um outro sentido.
O povo do Oriente Médio tem uma relação diferente com o corpo. No mundo
ocidental há uma tendência em priorizar a estetização do sofrimento, hábito
residual da noção cristã do corpo.
Segundo essa noção, é preciso sofrer para ser salvo, de forma que a
alma seja purificada podendo assim atingir o reino dos céus. Na cultura
ocidental utilizam-se diversas maneiras de ver o sofrimento corporal,
engendrado pelas diferentes situações de maltrato corporal. Esta noção do
corpo sofrido impregna os corpos ocidentais: a vivemos sem pensar, sem
questionar. Pois no mundo ocidental o corpo sempre foi pensado como o
lugar do sofrimento. As pessoas apreciam a degradação do corpo. Existe
um fascínio em face do sofrimento dos outros, pois a apreciação do corpo
belo conduz à imagem do corpo carnal, condenado ao pecado pela noção
cristã que rege o mundo ocidental.
Isso justifica por que os fotógrafos que expõem os corpos sofridos em
detrimento dos belos corpos fazem mais sucesso perante o público. O corpo
é sempre pensado como uma coisa que deve sofrer, e sempre essa
representação é estetizada. As fotografias dos corpos sofridos são feitas
num mundo longe das nossas fronteiras. Os sons, os perfumes escapam à
imagem fotográfica. Seus sentidos nos escapam, e o que nós somos
capazes de perceber e sentir é a dimensão plástica da imagem, desta forma
de expressão visual. De fato, a fascinação pela imagem é a fascinação pela
realidade virtual, aonde a pessoa não pode aceder. Essa representação não
é real, pois esta virtualização do real passa a ser o assassino da realidade.
A fotografia é o testemunho plástico dos acontecimentos e não o
acontecimento em si. Através das fotos, o espectador não realiza a essência
das imagens históricas, mas as imagens plásticas.
Assim a estetização não procura embelezar as coisas, mas fazer com
que sejam admiráveis. No entanto, as coisas não se estetizam por elas
mesmas, são as pessoas que as estetizam. Toda imagem é uma imagem
formada pela exterioridade. Não existem imagens dentro de um espelho, se
alguém não as pode olhar. A fotografia produz a distância entre o público e
a representação.
A imagem existe através de uma relação do olhar: imagens
ideológicas, lembranças, memórias. O humano é um sujeito imaginativo. A
imagem é sempre a imagem de alguma coisa, tem uma intencionalidade e
uma dependência. A imagem é sempre a imagem do outro. E é a imagem
que nos reenvia o desejo, formado pela imagem imaginada. Este olhar
vigilante, segundo Foucault (2006), é o que atribui valores às coisas da
nossa historicidade, e que determina o que é bom e o que é mau.
Como o mundo judaico-cristão percebe negativamente a
representação do corpo belo, numerosas stars vendem sua imagem com
benfeitoras, para se fazerem conhecidas através da mídia e aceder ao
grande público sem serem julgadas negativamente. Numerosas são as
atrizes que escolhem ser fotografadas ao lado de crianças subnutridas a fim
de vender uma boa imagem, como o fez também a princesa Diana. 

Imagem 8: Angelina Jolie


(http://angiesrainbow.com/site/images/unhcr/tchad_2007_6.jpg)
 

Recentemente, numerosas fotografias da atriz Angelina Jolie, rodeada


de crianças africanas, foram difundidas na Internet. Fotos que expõem a
miséria e as más condições de saúde dessas crianças. Sob cada foto havia
comentários elogiando a generosidade da atriz. Um deles dizia que
Angelina Jolie “é sensual sem ser vulgar”. É dessa maneira que a imagem
da atriz é veiculada ao lado de corpos sofridos, explorando a intimidade de
crianças miseráveis. A sensualidade de Jolie é perdoada, uma vez que ela é
uma bela mulher que utiliza da sua beleza e fama para se aproximar das
crianças pobres e sofridas, para promover sua autoimagem.
Imagem 9:  Madonna  of  the Book, 1480, Sandro Botticelli (Florentine, 1455-1510). Óleo
sobre tela (23 1/23 x 16)
(http://www.portrait-art.com/arrowood.htm)

Sua imagem se assemelha a essa de Maria, mãe virgem de Cristo,


mulher assexuada, como nesse quadro de Botticelli. A imagem de Angelina
Jolie evoca, sobretudo, a mulher maternal, modelo valorizado e aceitável, o
que a difere da mulher sexuada.

Imagem 10: Madonna


(http://madonna-madonnahistory.blogspot.com/p/madonna-e-os-corsets.html)
 

Em compensação, Madonna sempre foi condenada como fêmea


carnal, sexuada, ela jamais teve o direito de ser sensual sem ser vulgar,
como o foi Jolie. Em oposição ao que Jolie propõe em  sua imagem,
Madonna se serve da sensualidade para divulgar sua imagem. Ela evoca o
desejo carnal.
Aliás, os nomes das duas artistas são provocadores: uma se chama
Angelina, o que remete aos anjos, seres que não têm sexo. E Madonna, que
é a mãe virgem, sua imagem remete a Maria Madalena, a amante de
Cristo. Maria Madalena perdeu seu título de Santa, assim como sua auréola.
A mídia nunca associou a imagem da artista Madonna à mulher maternal.
Embora ela tenha tido filhos, não circula na mídia a imagem da mãe. Que
ela seja uma boa mãe para seus filhos, isso tem pouca importância na
mídia. Sua imagem é sempre associada à transgressão da lei divina.
Uma vez que a sociedade pune a dessemelhança a Deus, eu remarco
que os dançarinos contemporâneos têm a tendência em explorar nas
composições coreográficas  movimentos corporais que dissimulam o corpo
sexuado, a fim de subtrair o desejo carnal dos olhos que contemplam a
arte. Tenho percebido uma tendência dos dançarinos em exibir, na cena, as
matérias rejeitadas pelo corpo, de expor os rejeitos que sempre foram
escondidos na intimidade do cotidiano, como a matéria fecal, urina, sangue,
suor, saliva, pois eles não remetem ao desejo sexual como a carne. Os
dançarinos demonstram uma preferência em conceber a imagem do
sofrimento, compreendido que, no mundo ocidental, é preciso sempre se
aproximar da imagem do Criador. Ao punir o corpo, a alma se eleva.
Paul Valéry comentou:
Jamais la danseuse humaine, femme échauffée, ivre de
mouvement, du poison de ses forces excédées, de la
présence ardente de regards chargés de désir, n’exprima
l’offrande impérieuse du sexe, l’appel mimique du besoin de
prostitution, comme cette grande Méduse, qui par saccades
ondulatoires de son flot de jupes festonnées, qu’elle trousse
et retrousse avec une étrange et impudique insistance, se
transforme en songe d’ Éros; et tout à coup, rejetant tous
ses falbalas vibratiles, ses robes de lèvres découpées, se
renverse et s’expose, furieusement ouverte  (2003, p. 33;
5

35).
Paul Valéry estabelece uma relação dos movimentos da dançarina, da
medusa e da prostituta. E por que sempre esta relação da dançarina com a
prostituta?
Mesmo que consideremos que as obras de arte são objetos ficcionais,
elas estão sempre envolvidas de moral e ética. É preciso notar que as
coisas, elas mesmas, não são boas nem más, é o olhar sobre elas que
determina o seu valor. A percepção é subjetiva. Então eu questiono: as
propriedades morais estão presentes nas obras de arte? Existe uma moral
estética?
Durante o período que fiz minha pesquisa (2005 a 2009) no Brasil,
Canadá e França, não existiam mais dançarinas e dançarinos. Eles/elas se
denominavam intérpretes criadores e/ou performers. Quando eu fiz uma
entrevista  com a dançarina e coreógrafa Chantal Lamirande, perguntei-lhe
6

por quais razões as dançarinas no Québec escolhem se denominar


intérpretes-criadoras ou performers, no lugar de dançarinas. Ela me
respondeu que as dançarinas de Montreal fizeram essa escolha para se
distinguirem das dançarinas de cabaré. Após esse diálogo, decidi alargar
essa sondagem. Escolhi fazer a mesma pergunta para as dançarinas
brasileiras, canadenses e francesas. Fiz uma enquete por meio da Internet
para saber por que as dançarinas não se denominam mais “dançarinas”.
Houve muitas participações, dançarinas de todas as categorias de dança me
responderam. Quando a pergunta se dirigiu a homens, as respostas se
justificam pela formação: dizem que o dançarino é aquele que repete
movimentos dados por outra pessoa, e os intérpretes-criadores são os que
criam os seus movimentos.
Paradoxalmente, a palavra intérprete se refere àqueles que
interpretam uma coisa dada. Não são eles que criam os seus personagens.
Por conseguinte, as dançarinas me deram muitas explicações, mas todas,
sem exceção, tanto as brasileiras, canadenses como as francesas,
responderam que elas escolhem se denominar performers ou intérpretes-
criadoras para se diferenciarem das dançarinas prostitutas. Isso quer dizer
que existe ainda uma espécie de confusão entre a artista e a prostituta; que
o corpo artístico é assimilado ao corpo prostituído.
A dança incita então um julgamento moral cristão para o qual o corpo
é atributo do pecado. Mesmo após o movimento de contracultura dos anos
de 1960, o sexo é ainda um tabu e o corpo em movimento remete sempre à
conotação sexual impura. E basta o corpo mover-se, para que seja
classificado como sexy/sensual. Assisti, no Youtube, a um video
nomeado Very sexy contortion performance . Tratava-se de uma artista
7

russa de circo que fazia contorcionismo. De fato, não havia nada sexy em


seus movimentos, apenas um corpo flexível. De toda maneira, é expondo o
corpo que nós, as dançarinas contemporâneas e as dançarinas de cabaré,
ganhamos nossas vidas. Mas não há de fato nenhuma relação entre as duas
profissões, pois, tal como não importa em qualquer outro domínio
artístico, a arte coreográfica não é concebida para seduzir sexualmente o
espectador. Essa aproximação deve-se à noção judaico-cristã do corpo. E,
sobretudo, é o olhar reprimido do outro que enxerga a sedução no corpo
dançante.
Dessa maneira, certas dançarinas contemporâneas preferem negar
sua formação em dança e a condição de dançarinas, pois têm problemas
com o julgamento dos outros, compreendido que o julgamento moral é
construído por uma sociedade judaico-cristã e que as mesmas vivem
também sob a égide da noção judaico-cristã do corpo. Por conseguinte,
mesmo que inconscientemente, existe sempre a passagem entre o
sentimento moral e estético no momento da contemplação de uma obra. O
pré-julgamento retrocede à noção dualista do corpo/espírito. Nos seus
escritos, Platão fala do corpo como uma tumba da alma . Ele considera a
8

carne como vergonhosa e fraca, propõe que o corpo é matéria sem nobreza.
No que concerne ao pensamento no mundo ocidental, o corpo instiga o
desejo carnal; enquanto que o espirito cultiva suas faculdades intelectuais.
Assim, para não serem identificados com a carne, os dançarinos não
se consideram como pessoas, mas como objetos de trabalho, pois eles
estimam que, como executores de dança, não usam do intelecto. Todavia,
Dewey (2005) considera que o termo “intelecto” significa simplesmente que
a experiência tem um sentido; o termo “prática” indica que o organismo
participa de experiências trocando com os eventos e objetos no meio em
que estão inseridos.
O medo marca o limite entre o íntimo e o social. Ele envolve os
músculos, ossos, vísceras, humores. A carne se organiza sob a pele e sob o
olhar do outro (Sartre, 1996). Ela se modela segundo as normas sociais
(Foucault, 2006).
Os dançarinos se consideram como material sem nobreza, depois que
uma longa tradição da dança clássica os colocou a serviço de seu mestre,
que os dançarinos teriam que superar para conquistar o lugar numa
companhia. Eles tinham uma vida profissional muito curta e eram
substituídos como se substitui objetos descartáveis. Posicionar-se como
objeto sem nobreza é também uma consequência do pensamento judaico-
cristão, pois a carne não vale nada.
Como já mencionei, o corpo sempre foi a figura central das obras de
arte no mundo ocidental. A pintura foi o veículo da imagem e do
pensamento sobre o corpo. O corpo não tem uma realidade própria, pois ele
segue sempre uma imagem, ele deve se aproximar da perfeição invisível do
Divino.
David Le Breton (2008) considera que o corpo é confundido no
mundo, ele não é suporte ou prova de uma individualidade, caso esta
repouse sobre fundamentos que a tornem permeável às evaporações do
meio ambiente. O corpo não faz fronteira, mas é elemento indissociável de
um conjunto simbólico. Assim, a noção cristã do corpo é pregnante no
mundo ocidental e o modelo seguido é o da perfeição do Divino, dentro do
qual o corpo é o pecado e só o espírito aproxima do Criador. É necessário,
então, ficar muito atento a fim de não se apegar ao julgamento judaico-
cristão, porque é o olhar reprimido e repressivo que enxerga sempre a
sexualidade nos movimentos corporais.
Os dançarinos, sobretudo as dançarinas, devem se desvencilhar
dessa marca profunda que resiste, no mundo ocidental.
Yves Klein renuncia ao controle quando propõe que a imagem do
corpo seja traçada pelo corpo, como é mostrado nas imagens aqui
apresentadas.

Imagem 11: Anthropométrie, performance de 9/03/1960, Yves Klein, foto Harry Shunk


(http://boomer-cafe.net/version2/index.php/Arts-plastiques-dans-les-annees-50/Les-
femmes-pinceaux-d-yves-Klein.html).

 
Imagem 12:  Anthropométrie de l’époque bleue (ANT 82),  1960, Yves Klein. Pigmento puro e
resina sintética sobre papel (montado em tela 155 x 281 cm). Adquirido em 1984 pelo
Centro Pompidou. © Adagp, Paris 2007
(www.centrepompidou.fr/.../ENS-Yves_Klein.htm).

Logo que o corpo cessa de ser mostrado como reflexo da alma, ele
passa a ser carne animalesca e sexuada, assim a dançarina é carne-obra-
de-arte, através da qual transgride a lei divina. Os outros domínios da arte
são mais próximos ao espírito.
A dança se distancia da dança em si, para se aproximar
da  performance, pois os dançarinos supõem que o performer é mais dado à
reflexão. Dessa forma, ela é mais próxima do espírito e assim do modelo do
Divino, enquanto que a dança é mais próxima do corpo e do pecado. Talvez
essa associação da performance com a intelectualidade remonte ao
movimento artístico dos anos de 1960, pois,  com o Fluxus, os artistas
estavam voltados para um engajamento ideológico. E a dança lembra as
prostitutas que seduzem seus clientes com os movimentos corporais.
Segundo essa lógica, o corpo pode ser mostrado somente se ele
comportar sinais que o faz se aproximar da imagem do corpo sofrido. Assim
que ele aparece como corpo carnal, ele deve ser rejeitado. Isso quer dizer
que o homem ocidental aceita a carne se ela for veículo da alma. Quando
ocorre o julgamento sobre a representação corporal, isso se dá pela noção
cristã do corpo. E relembrando, depois que Adão e Eva foram banidos do
Paraíso, o corpo foi destinado ao sofrimento. As sociedades adotaram o
suplício como condenação até o Século XVIII. O corpo do condenado era
exposto em público, das torturas até a morte. O corpo era o objetivo maior
da repressão penal. O suplício era um espetáculo, uma festa punitiva, como
a condenação de Cristo. O espetáculo da crucificação foi seguido pela
população.
Segundo as palavras de Foucault (2006), a punição deixa de ser
pública. O principal objetivo da punição deixa de ser carnal e passa a ser
subjetivo, moral, ético. O mesmo autor comenta que as sociedades educam
o corpo pela alma. Mas a punição corporal continua sendo estetizada.
Assim, as sociedades remodelam o sistema punitivo e legitimam a
“economia política do corpo”, quando elas utilizam métodos dóceis a fim de
educar os corpos e os transformarem em úteis, subordinados a gestos e
comportamentos. Coerções, interdições e obrigações são impostas. Os
corpos são disciplinados, e isso implica obediência ao outro, pois a
autonomia individual permite vigiar a conduta de cada um. Foucault (2006,
p. 37) trata o “corpo político” como um conjunto de elementos materiais e
técnicos que servem como armas, sevem de via de comunicação e de
pontos de apoio às relações de poder que investem os corpos humanos e os
subordinam, tratando-os como objetos de manipulação. Nos dias atuais as
sociedades tratam o corpo dócil através da vigilância, pelo olhar, pelo
julgamento do olhar social, que é um eficaz meio de punir imediatamente
um mau comportamento na sociedade.
Cada sociedade tem sua maneira de vigiar e punir. A coerção se faz
individualmente, é através da expressão corporal que se vigia, pois que o
objeto de punição é a carne, o corpo em si mesmo.
Segundo a noção judaico-cristã, o corpo que dança se aproxima do
corpo pecador que evoca a sensualidade mais do que a espiritualidade. A
sexualidade representa o prazer da carne. Ela concerne um dos sete
pecados capitais, a luxúria. Se o corpo se afasta da fonte do seu ser, a alma
perde a sensibilidade e se faz dessemelhante do Divino. Para salvar sua
pele, o ser humano tem que se aproximar do Divino. Na concepção que o
público faz do corpo dança, ele é mais sexual do que obra de arte.
 
Referências bibliográficas:
ARENDT, Hannah. La crise de la culture (1972). Paris: ed. Gallimard, 2005.
DEWEY, John. III L’art comme
expérience.  Introdução Richard Shusterman; Posface Stewart Buettner. Tra
dução do inglês (USA, no quadro do GRAPPHIC e do CICADA)  Jean-
Pierre Cometti, Christophe Domino, Fabienne Gaspari, Catherine Mari,
Nancy Murzilli, Claude Pichevin, Jean Piwnica et
Gilles Tiberghien; coordenação Jean-Pierre Cometti.
Farrago: Universidade Pau, Farrago, 2005.
FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir: Naissance de la prison (1975). Paris:
Gallimard, 2006.
LE BRETON, David. Anthropologie du corps et modernité (1990).  Paris:
Quadrige/PUF, 2008.
LEVI-STRAUSS, Claude. Le regard éloigné. Paris: Plon, 1983.
SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant: Essai d’ontologie phénoménologique
(1943, edição corrigida com indicação feita por Arlette Elkaïn-Sartre). Paris:
Gallimard, 1996 (Col. Tel).
SAVATIER, Thierry. L’Origine du monde:  histoire d’un tableau de Gustave
Courbet. Paris: Bartillat, 2006.
SCHAEFFER, Jean-Marie. Qu’est-ce q’un corps ? Afrique de l’Ouest/Europe
occidentale/Nouvelle-Guinée/Amazonie. Direção Stéphane Breton. Michèle
Coquet, Michael Houseman, Jean-Marie Schaeffer, Anne-Christine Taylor,
Eduardo Viveiros de Castro (autores). Paris : Museu Quai Branly-
Flammarion, 2006.
VALERY, Paul. Degas Danse Dessin.  Paris: ed. Gallimard, 1985.
 

 Pour que l’image puisse donner accès au modèle, la relation de ressemblance doit être
1

fondée sur une relation d’empreinte. Seule cette dernière peut garantir que ce qui se donne
à voir est bien une manifestation du Modèle, et non pas une vaine apparence sans
fondement d’être. Dans le cas de l’image conforme – le Christ –, la relation d’empreinte est
garantie parce que le Christ est l’image consubstantielle du Père. […] À l’origine, le monde
est pensé sous la forme d’une transcendance absolue, située au-delà de toute représentation
et donc inaccessible à l’homme  (Schaeffer: 2006, p. 70; 65).
1

 Vivre en marge des normes sociales – et le simple statut de modèle et maîtresse d’un
2

peintre suffisait pour être jugée marginale – permettait aux gens “respectables” de vous
marquer au fer de l’infamie. […] Seule la femme marié (ou veuve), prude, féconde, soumise,
gardienne d’un foyer dont elle s’éloignait rarement, avait droit à la considération; les autres
appartenaient à la catégorie des femmes de mauvaise vie, terme générique derrière lequel
on pressentait la fille d’Ève tentatrice, guidée par un plaisir forcement lubrique. La société
puritaine du XIXème siècle fonctionnait ainsi (Savatier: 2006, p. 54-55).
 Exposição fotográfica proposta por Roberto Neumiller, Sahel, L’homme face au
3

désert (Homem diante do deserto), nas grades do Jardim do Luxembourg, Paris, de 24 maio


até 1º de julho 2007.
 Filme realizado por Pedro Costa, com Mario Ventura Medina, Vanda Duarte, Beatriz Duarte.
4

Filme de produção francesa/portuguesa/suíça. Duração: 2h35min. Ano de produção: 2006.


Título original: Juventude em marcha. Distribuído por Équation.
 Nunca a mulher dançarina, embriagada pelos movimentos, pelo veneno de suas forças
5

esgotadas, pela presença ardente de olhares carregados de desejos, traduziu a oferta


imposta pelo sexo, a chamada mímica da necessidade da prostituição, como a grande
Medusa que, por movimentos ondulatórios do fluxo de sua saia bordada, que ela mexe e
remexe com uma estranha e impudica insistência, transforma-se em produto de imaginação
de Eros; e de repente, rejeitando todos os vibrantes ornamentos, seus vestidos de lábios
cortados, se mostra pelo avesso e se expõe, furiosamente aberta.
 Entrevista concedida em Montréal, Canadá, 7 dez. 2007.
6

 http://youtu.be/A67XujOnFJQ
7

 Ver sobretudo: Phédon, Timée, Philèbe  e La République.


8

Artigos

O judaísmo veterotestamentário a partir da visão


maquiaveliana da religião
The veterotestamentary judaism in machiavellian view of
religion
Marcone Costa Cerqueira markantfilos@yahoo.com.br.
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
O judaísmo veterotestamentário a partir da visão maquiaveliana da religião

Griot: Revista de Filosofia, vol. 15, núm. 1, pp. 17-43, 2017

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.

Recepção: 16 Março 2017

Aprovação: 20 Maio 2017

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v15i1.753

Resumo:Neste artigo intentamos empreender uma leitura do judaísmo antigo, ou


veterotestamentário, em alguns de seus aspectos principais, à contraluz da visão maquiaveliana
do papel da religião na organização e expansão do Estado. O primeiro passo desta empresa será
dado ao expormos os traços fundantes e delineadores da tradição judaica antiga, principalmente
nos livros que compõe o chamado velho testamento, demonstrando o uso da religião na
ordenação e expansão do Estado, bem como na formação do indivíduo. Em um segundo
momento demonstraremos como se cria uma nova tradição judaica, influenciada e
influenciadora do mundo grego antigo, logo no início da era cristã a qual será assimilada e
explorada em seu viés místico no humanismo renascentista. Esta tradição judaico helenístico
será a mais conhecida e assimilada nos círculos eruditos europeus da renascença. Por fim,
buscaremos demonstrar como os traços constitutivos do judaísmo antigo, em detrimento ao
judaísmo helenístico, podem ser lidos à luz da descrição maquiaveliana do papel da religião na
organização e expansão do Estado e na formação do indivíduo.

Palavras-chave:Judaísmo, Maquiavel, Religião, Política.

Abstract:In this article we intend undertake a reading of ancient judaism, or


veterotestamentary, in some of its main aspects, in contrast to the Machiavellian view of the role
of religion in the organization and expansion of the State. The first step of this enterprise will be
given by exposing the founding and delineanting features of the ancient Jewish tradition,
especially in the books that make up the so-called Old Testament, demonstranting the using of
religion in the ordination and expansion of the State, as well as in the formation of the
individual. In a second moment we will demonstrate how to create a new Jewish tradition,
influenced and influential on the ancient Greek world, early in the Christian era which will be
assimilated and explored in its mystical bias in Renaissance humanism. This Hellenistic
Judaism tradition will be best known and assimilated in the European erudite circles of the
Renaissance. Finally, we will try to demonstrate how the constitutive features of ancient
Judaism, to the detriment of Hellenistic Judaism, can be read in the light of Machiavellian
description of the role of religion in the organization and expansion of the State and the
formation of the individual.

Keywords:Judaism, Machiavelli, Religion, Politic.

Introdução
A crítica maquiaveliana à religião cristã, a partir da leitura que lhe é dada em sua
época, suscita ponderações e interpretações diversas por parte de seus leitores. Este
movimento é fomentado por diversas inserções, esparsas ou em conjunto, de
observações que o florentino fez sobre o papel da religião na vida do Estado e na
organização social. Em nenhum momento Maquiavel trata do judaísmo
especificamente, a não ser quando fala de Moisés e sua saga com o povo de Israel. No
entanto, a partir do que ele indica ser o papel da religião na construção do caráter cívico
dos indivíduos, os rituais religiosos que causam impressão, temor e ordem política no
seio social, e por fim, a forma como ele indica o uso da religião na organização e
fortalecimento da pátria, podemos fazer uma leitura dos traços marcantes do judaísmo
veterotestamentário.

Neste sentido, o primeiro passo será apresentar a diferença entre o judaísmo


veterotestamentário de Jerusalém, antes do período inter-bíblico, e o judaísmo
helenístico, ou posterior à diáspora, influenciado pelas correntes sapienciais,
principalmente de Alexandria. Buscaremos aqui apresentar a diferença de constituição
da leitura sobre o papel da religião na vida política do povo judeu e suas implicações e
assimilações do mundo ocidental greco-romano. Em seguida, num segundo passo,
apresentaremos o que foi a absorção e influência deste judaísmo helenístico, ou
sapiencial, no mundo intelectual da Europa medieval e renascentista, principalmente por
meio da mística. Será necessário aludir a autores como Pico della Mirandola, cuja
influência dos textos hebraicos é claramente percebida. No entanto, ainda será preciso
entender como a cultura europeia no fim do medievo assimilava e compreendia a
cultura judaica e sua construção teológico-política em detrimento ao cristianismo.

Enfim, no terceiro movimento de nossa argumentação, demonstraremos como o


judaísmo veterotestamentário está próximo das descrições, e prescrições, do que deva
ser o papel da religião na construção do espírito cívico, da ordem política e do
fortalecimento da pátria segundo Maquiavel. Tomaremos aqui dois eixos centrais, a
formação dos indivíduos e o papel do ordenamento religioso e seus rituais no processo
de ordenamento político da sociedade e defesa da pátria. Certamente não entraremos
nos meandros teológicos ou místicos da religião judaica, a não ser nos momentos em
que seja necessário demonstrar a mudança de perspectiva em relação ao ordenamento
político. O cerne de nossa argumentação será exatamente demonstrar como a religião
judaica veterotestamentária coaduna-se à descrição maquiaveliana dos traços religiosos
que auxiliam na formação de um corpo político coeso e voltado para a defesa e
expansão da pátria. Esta orientação da religião judaica antiga se mostrará mais próxima
das religiões pagãs grega e romana do quê daquele cristianismo desenvolvido e
praticado na época de Maquiavel.

O judaísmo antigo

Seria necessário uma extensa análise histórica para se poder assentar, em todos os
seus aspectos, as mudanças sofridas pela religião judaica em seus mais de 4.000 anos de
existência. No entanto, dois períodos podem ser minimamente delineados, o período
antigo, ou veterotestamentário., que se estende do pentateuco até os profetas menores, e
o período helenístico, que começa após a diáspora ocorrida logo depois da destruição do
segundo templo pelos romanos no século I.. Entre estes dois períodos está o que se
costuma chamar, na tradição cristã, de período inter-bíblico, ou seja, o período de
transição entre o antigo testamento, desde o fim da época dos profetas, até o período que
se inicia, já na tradição cristã, com o novo testamento, durando cerca de 400 anos. Neste
período a Palestina passou pela dominação babilônica, grega e assíria, até a dominação
romana em 63 a.C.

No final do século I a.C, o reino próspero de Davi e Salomão é apenas um vulto


presente nos escritos dos livros históricos do velho testamento e uma esperança ainda
viva na promessa do Messias que o restauraria. No entanto, após séculos sob tantas
dominações estrangeiras e exílios, vendo sua promessa messiânica se tornar o
ancoradouro de uma nova religião, o judaísmo antigo começa a se direcionar para uma
mudança dramática. A promessa do Messias sempre foi uma profecia de cunho político
que anunciava a vinda daquele que restauraria a casa de Davi e a glória de seu reinado.
Mas, a religião cristã que surge das raízes judaicas tem como líder um messias que
prega a não-violência e a valorização do reino divino em detrimento ao reino terreno,
um Messias não-político.

Esta discrepância entre as imagens dos dois arquétipos que surge da mesma profecia
messiânica irá se acentuar após a conversão de Constantino ao cristianismo. Como
comenta Neusner:

Desde que os judeus como um todo, e os sábios entre eles, anteciparam a vinda do
Messias prometido pelos profetas, o problema pode ser facilmente apreciado. Se a
história prova as proposições, como os profetas e os visionários apocalípticos tinham
sustentado, então como podem os judeus negarem a reivindicação cristã de que a
conversão do imperador, bem como do império, demonstravam o verdadeiro estado de
relação entre o céu e a terra? (NEUSNER, 1987, p. 59.)

O movimento de mudança na configuração do judaísmo antigo se dará principalmente


a partir da destruição do segundo templo em 70 d.C pelos romanos, o que causa o
aumento de uma grande dispersão do povo judeu através de áreas do Oriente Médio,
Mediterrâneo, África e Europa. Esta dispersão ficou conhecida como diáspora.
Alexandria era um dos grandes centros da época, sendo certamente um dos lugares aos
quais os judeus dispersos se direcionaram. Diversas outras cidades gregas se tornaram
polos culturais e comerciais do mundo antigo antes da era cristã. Neste cenário a fusão
entre a cultura grega e a cultura judaica formou a tradição conhecida como judaísmo
helenístico, sendo o início da tradição sapiencial e o grande momento de fortalecimento
de uma mística hebraica, próxima dos moldes ocidentais. Segundo Campos:

Houve, pois, duas tendências judias no mundo de após Alexandre. De um lado a


mentalidade ferrenha dos judeus beatos de Jerusalém, e das pequenas aldeias palestinas
puramente judaicas, que se queriam fechar a toda e qualquer concessão à cultura helena,
de outro a das colônias judias das cidades gregas, que se deixavam penetrar não
somente por sangue estrangeiro, como pelas ideias dos dominadores intelectuais do
mundo. Os primeiros tentavam judaizar o que raramente lhes chegava da civilização
helenística, os segundos, ao contrário, iam grecizando, como podiam, as velhas
tradições a que se conservavam fiéis. (CAMPOS, 1961, p. 245)

“A mística hebraica, não diversamente da grega e da cristã, é um conjunto de


fenômenos históricos determinados e concretos”. (SCHOLEM, 1993, p. 19). Sendo
assim, pode-se asseverar que a tradição judaico helenística, surgida no século I da era
cristã em Alexandria com o fortalecimento da mística hebraica, é fruto dos
acontecimentos históricos e políticos ocorridos na Palestina durante mais de 400 anos.
A perda da referência religiosa do templo de adoração, destruído pelos romanos, os
séculos sob o jugo da dominação de outras nações e o desvirtuamento da promessa
messiânica, fizeram com que o judaísmo antigo, veterotestamentário, desse lugar a um
judaísmo mais centrado nos aspectos místicos de religiosidade.

O judaísmo antigo continua a ser uma religião nacionalista, com forte cunho político
e ampla ligação entre o político e o religioso. No entanto, é a religião nacionalista de um
povo sem Estado, ou melhor, sem um domínio territorial próprio. Os judeus que
continuaram em Jerusalém após a destruição romana tiveram que aceitar a presença de
outros povos palestinos. “As nações do antigo Oriente próximo que estavam na
vizinhança dos judeus, tinham símbolos específicos e bem definidos de um
nacionalismo político, nomeadamente, o templo, o território, o reino e o exército.”
(MENDELS, 1991, p. 1). A ligação do judaísmo com a influência intelectual grega cria
um sincretismo que modificará não só o foco do culto judaico, mas, também todo o
arranjo ético-político que constituía a base do judaísmo antigo. Weber nos dá uma
indicação desta influência:

O judaismo antigo, bem como o farisaísmo, ignoravam totalmente o dualismo entre o


espírito e a matéria, o espírito e o corpo, ou a pureza divina e a corrupção do mundo,
elaborada pelo intelectualismo helenístico; o neoplatonismo tinha erigido o dualismo em
um sistema onde o corpo não era mais que o envólucro da alma, uma realidade
degradante. Certos círculos intelectuais judaico-helenísticos (Philon) tomaram
emprestado o dualismo, e o cristianismo de Paulo, e fizeram sua visão ética do mundo.
Tudo isso é estranho ao judaismo farisaico e talmúdico. (WEBER, 1970, p. 522).

Em vista desta mudança tão significativa na história da religião judaica, é preciso


compreender o que era o judaísmo antigo, veterotestamentário, e como ele articulava a
relação entre política e religião, principalmente a partir de suas bases de sustentação, a
saber: a tradição, a formação do indivíduo e a defesa da nação. Certamente que a
principal fonte para esta compreensão são os livros históricos e os livros da lei. Como já
aludido acima, esta tradição ficou mantida, de forma mais restrita, aos círculos judaicos
que permaneceram em Jerusalém e aqueles que não foram influenciados diretamente
pela tradição helenística.

O ponto central do judaísmo veterotestamentário, é a tradição contida na Torá, livros


dados diretamente por Deus à Moisés no Sinai, juntamente com a tradição oral. Seu
núcleo se constitui dos cinco primeiros livros do chamado velho testamento, ou seja, o
Pentateuco, os livros da lei. Segundo a tradição, a Torá foi dada ao povo de Israel como
forma de expressar a vontade de Deus para o povo ao qual ele elegeu como seu na terra.
Além disso, segundo a tradição, o povo de Israel aceitou ser o povo escolhido de Deus,
mostrando sua diferença em relação aos demais povos da terra. Isto está bem claro na
tradição, como se lê no seguinte trecho da Sifré:

Somente Israel quis tomar a Torá: Quando o Santo, bendito seja, se manifestou para
dar a lei à Israel, a revelou não somente à Israel, mas antes a todos os outros povos.
Primeiro foi aos filhos de Esaù e perguntou-lhes: Quereis tomar consigo a Torá? Eles
disseram: Que coisa está escrito nela? Deus respondeu: Não matarás (Exôdo 20:13).
Mas os filhos de Esaù disseram: Senhor do mundo, foi a natureza de nosso progenitor
ser assassino, como está escrito (Gênesis 27:22): As mãos são as mãos de Esaù e
(Gênesis 27:40): Viverás da tua espada. Não podemos tomar conosco a Torá. Deus
andou aos Amonitas e aos Moabitas e perguntou-lhes: Quereis tomar consigo a Torá?
Eles disseram: O que está escrito nela? Deus respondeu: Não cometerás adultério!
(Exôdo 20:14). Mas os Amonitas e os Moabitas disseram: Senhor do mundo, nós temos
origine na luxúria, como está escrito (Gênesis 19:36): Assim as duas filhas de Lot
conceberam de seu pai. Nós não podemos tomar conosco a Torá. Depois Deus foi aos
Ismaelitas e lhes disse: Quereis tomar consigo a Torá? Eles disseram: O que está escrito
nela? Deus respondeu: Não roubarás! (Exôdo 20:15). Mas os Ismaelitas disseram:
Senhor do mundo, foi a natureza de nosso progenitor ser um ladrão, como está escrito
(Gênesis 16:12): Serás um selvagem; a sua mão será contra todos e a mão de todos
contra ti. Nós não podemos tomar conosco a Torá. E assim Deus foi de uma nação à
outra oferecendo a Torá, mas nenhuma queria ter a Torá. Só ao fim chegou aos
Israelitas. Sem perguntar que coisa estava escrito na Torá, os Israelitas responderam
rapidamente: Seguiremos e compreenderemos tudo o que tem dito o Senhor. (Da Sifré
al Deuteronomio, Pisqa 343, ed. Finkelstein, pág. 395 – 397; cfr. Pesiqta Rabbathi 21,
ed. Friedmann, p. 99b. Apud. PETUCHOWSKI, 1983, pág. 74 – 75.)

Um forte sentimento de identidade nacional se expressa nessa realidade de pertença à


vontade de Deus, tornando a Torá um referencial para a construção de costumes, leis
mais abrangentes e de organização política do povo. Ao contrário de outros povos da
antiguidade, como os romanos e os gregos que estabeleceram forte sincretismo religioso
e cultural em suas organizações sociais com outros povos, os judeus buscavam
demarcar as suas origens apenas na vontade divina, desvencilhado-se de qualquer
sincretismo cultural ou religioso. No entanto, assim como os romanos tinham o mos
maiorum e os gregos a paidéia, os judeus tinham na tradição da Torá e de seus ritos a
base para a formação do indivíduo e das instituições sociais.

Partindo desta centralidade da Torá, a formação do indivíduo judeu passava,


primordialmente, pelo aprendizado da tradição oral. Segundo a tradição, a lei oral
constituía uma ampliação da lei escrita, ou seja, a interpretação das leis escritas, que
tiveram origem no Sinai com as tábuas da lei, isso se fazia necessário para a
confrontação com todas as situações vividas pelo povo e a organização social. Desta
forma, a organização social e a formação do indivíduo não estavam engessadas em uma
tradição de leis escritas, distanciadas das alterações sociais, culturais e políticas do
povo. A Torá se constitui numa referência que guia a construção do corpo legislativo do
povo judeu e de suas interações sociais internas e externas. Como comenta Schimmel:

O povo judeu é frequentemente chamado de “O povo do livro”, mas se alguém


procurar um povo que siga literalmente o comando da bíblia, pode ser levado aos
Samaritanos, os quais no entanto, praticam sua religião nos arrabaldes de Schechem, ou
os Karaitas, os quais estão agora estabelecidos no sul da moderna Tel-Aviv, mas nunca
o povo judeu. Eles não seguem agora a palavra literal da bíblia, nem nunca fizeram isso.
Eles têm sido moldados e regulados pela interpretação verbal da palavra escrita, mais
particularmente pela ‘Torah’, a qual abarcar ambas, a lei escrita e a oral. (SCHIMMEL,
1973, p. 19)

Além desta tradição escrita e oral de transmissão das leis e dos costumes, a tradição
de manutenção da história dos grandes líderes políticos e religiosos também é muito
importante para a identidade do povo judeu. Os livros históricos, que estão logo após o
Pentateuco, são a marca viva da ação do povo judeu sob a égide divina. Estes livros, tais
como Josué, Juízes, Reis e Samuel, são a saga do povo de Israel e de seus líderes em
busca do estabelecimento de um poderio que culminaria no reinado de Davi e Salomão.
Desde a saída do Egito, passando pela busca da terra prometida, a luta contra os povos
que ali habitavam, a constituição de uma monarquia na figura do rei Saul e a conquista
da estabilidade territorial e política com o rei Davi, diversas batalhas e conquistas
expansionistas são narradas e passam a ser transmitidas pela tradição oral.

A marca destes livros históricos é a ação de Yahvé como um Deus conquistador, a


promessa feita ao povo era a de possuir uma grande nação e um grande poderio
territorial. Sendo assim, estes livros históricos mostram esta expansão do povo judeu, de
uma multidão fugida da escravidão a uma nação poderosa e rica. Destacam-se neste
processo os grandes homens ‘ungidos’ por Deus, um dos maiores exemplos é Davi, de
simples pastor de ovelhas a rei de Israel. Certamente que a única preocupação dos textos
históricos não era necessariamente ressaltar os valores éticos e morais dos grandes
homens que agiram sob a vontade de Deus, a questão que se põe é o estabelecimento de
exemplos que demonstrem o poderio de Yahvé ao se valer de homens imperfeitos para
execução de suas obras.

Este fator de estabelecimento de exemplos à serem seguidos é fundamental para a


formação da cultura judaica e para a formação dos indivíduos. As imagens dos grandes
líderes são reverenciadas e dispostas como marcos de ação dentro do contexto social,
bem como todas as ações empreendidas em prol da grandeza de Israel e da
demonstração da ação divina. A questão das tradições oral e escrita, da história de
Israel, é latente no processo de valorização da história do povo desde sua origem. “Israel
foi a primeira nação civil a produzir uma historiografia, na época davidico-salomônica,
que merece este nome e possa, por fim, reivindicar para si um grau de primazia.”
(HERRMANN, 1977, p. 57).

Apesar de toda a majestade do reinado de Davi, não é ele a figura central da tradição
judaica, pode-se afirmar que a figura mais importante na tradição do judaísmo é a de
Abraão, seguido depois por Moisés. Estes dois homens são responsáveis pelo
estabelecimento e fortalecimento do povo judeu enquanto povo escolhido. À Abraão foi
dada a promessa de ser pai de uma grande nação, ele é o fundador da religião judaica e
o pai dos judeus, não Moisés, a este coube a tarefa de resgatar o povo da escravidão e
lhe dar corpo político e legislativo enquanto nação. Neste sentido, Moisés é o fundador
da nação judaica, enquanto Abraão é o pai do povo judeu e o fundador da religião
judaica.

Como nos relata novamente Campos:

Há na história primitiva dos Hebreus, uma anomalia que não tem merecido a atenção
e um cuidadoso exame por parte dos estudiosos do Judaísmo. O povo tem a sua origem
em Abraão. Yahvé elegeu Abraão, revelou-lhe em primeira mão, tirou-o da sua pátria,
da casa dos pais, para o conduzir a um país dele desconhecido. É com Abraão que
Yahvé faz o pacto primitivo, pelo qual o deus lhe daria à descendência Canãa, por isso
chamada “Terra Prometida”, enquanto o profeta se empenhava a uma eterna fidelidade.
Daí vem o apelido “Deus da Aliança” com que se conhece Yahvé. Apesar disso tudo, há
uma nova revelação, um novo ajuste, um código novo no Sinai, entre Yahvé e Moisés.
Afinal, qual dos dois fundou a nacionalidade, Abraão ou Moisés, qual deles iniciou o
culto de Yahvé, quem planejou a conquista de Canãa, quem foi o primeiro hebreu a
arregimentar os de sua casta numa anfictionia e dar-lhes um código particular? A
fórmula clássica até hoje, reza: ‘Yahvé, deus de Abraão, Isaque e Jacó’, e não ‘deus de
Moisés’. (CAMPOS, 1961, p. 104).

Com Abraão foi feito uma aliança, uma promessa que Deus se empenharia em
cumprir, com Moisés Deus faz um pacto, o qual deveria ser honrado pelo povo. O papel
de Moisés é central porque é ele quem dá ao povo judeu um estatuto político, legislativo
e de legitimação de seus costumes, ou seja, o estabelecimento das bases que constituem
um corpo social. Além disso, em Moisés se inicia a tradição de um aspecto muito
importante do caráter do Deus de Israel, a denominação de “Deus dos Exércitos”. É o
que nos indica Weber:

No entanto, é extremamente importante sobre o plano prático que, apesar de tais


atributos, Yahvé torna-se e permanece a ser, ao menos para o Israel antigo, um Deus da
organização social, mesmo que ainda em uma acepção particular. Devemos admitir que
desde Moisés ele é o Deus da Aliança da confederação israelita e, conforme o objetivo
desta última, essencialmente o Deus dos exércitos. (WEBER, 1970, p. 184).

Estes pontos são extremamente importantes para se estabelecer o caráter da religião


durante este período de formação da nação de Israel. O sentimento de povo guerreiro e
expansionista será o mote dos livros históricos que relatam a saga da ascensão do reino
de Israel e sua culminação nas figuras de Davi e Salomão, como já indicamos. A
preocupação obsessiva dos judeus em se manterem distante dos povos circunvizinhos e
de ressaltar sua eleição exclusiva como povo de Deus, o único e verdadeiro deus, fez
com que a aceitação de estrangeiros e o casamento de judeus, e judias, com estrangeiros
fossem restritos. Obviamente que isto fez fortalecer o caráter estabilizador das leis
estabelecidas pela tradição escrita e oral. No entanto, fez também com que o povo judeu
ficasse restrito ao desenvolvimento das doze tribos originais, ou melhor, dos seus
representantes que saíram do cativeiro egípcio.

No entanto, o período expansionista e de fulgor do povo de Israel terá fim a partir da


ascensão de grandes impérios no Oriente Médio, povos como os babilônios, os assírios,
os persas, trouxeram um jugo pesado sobre a nação israelita. Após a derrocada do
reinado de Salomão e o cativeiro babilônico, a promessa de um messias restaurador se
torna o mote central das profecias. Além disso, a imagem do “Deus dos Exércitos”
passará a se tornar mais desbotada e dará lugar à imagem de Deus punitivo, que puni
seu povo por não honrar o pacto feito com Moisés. Neste sentido, a ideia de retorno ao
princípio fundador da nação, ou seja, o pacto sinaítico com Moisés através da lei e todo
o seu ensinamento, será o norte pelo qual a religião judaica se direcionará. Mas, apesar
deste esforço, os tempos de conquista e expansão não voltaram pelas mãos de um
messias, ao contrário, a religião judaica teve que assimilar os acontecimentos que
viriam.

No tópico seguinte nos deteremos na assimilação do judaísmo helenístico pela


intelectualidade europeia renascentista, principalmente no período no qual Maquiavel
está escrevendo. Isto nos permitirá compreender a leitura que se fazia do judaísmo na
Europa e a maneira como o judaísmo antigo era obliterado em vista do judaísmo
helenístico.

O judaísmo antigo a luz da visão maquiaveliana de religião


O assunto da religião nos escritos maquiavelianos é permeado de inúmeras alusões às
religiões pagãs, dos povos itálicos do período de ascensão dos romanos enquanto
poderio regional, bem como, e em maior grau, dos próprios romanos. Porém, em alguns
momentos Maquiavel faz menção à ícones de outras culturas, principalmente das
tradições mitológico-religiosas grega e judaica. Temos como exemplos Teseu e Moisés,
principalmente quando o tema é a fundação e a organização político-legislativa de uma
nação. No entanto, refletindo o que era a apreensão do judaísmo em seu tempo,
Maquiavel não aprofunda os aspectos religiosos e históricos do povo judeu.

Como já indicamos na introdução deste trabalho, nos dedicaremos a prescrutar uma


identificação destes aspectos religiosos do judaísmo antigo com as descrições feitas por
Maquiavel a respeito do papel da religião na organização, estabilidade e expansão de
um Estado. Certamente que este movimento trará atrelado à si a necessidade de
recorrermos aos textos históricos do velho testamento, bem como aos textos
maquiavelianos, principalmente os “Discorsi”. No entanto, antes de fazer esta
aproximação, entre os textos históricos do judaísmo antigo e a leitura maquiaveliana do
papel da religião, precisamos pontuar rapidamente a questão da história nos escritos do
Florentino.

Diante da utilização, por parte de Maquiavel, de figuras da mitologia grega, romana e


da tradição judaica expressa pela leitura cristã, surge o problema de se especificar se o
autor aceita estes relatos como realmente históricos ou se ele os toma apenas como
modo de ilustrar suas asserções. Mais ainda, se o autor, retomando tais histórias como
exemplificação, acredita que se possa reproduzir os atos expressos nos relatos aludidos.
Para Maquiavel as paixões dos homens não conhecem limites temporais ou culturais,
em todos os tempos e em todos os lugares os homens tiveram e terão sempre as mesmas
paixões e inquietações. Em suas palavras:

Aquele que estuda a história atual e a antiga verá que os mesmos desejos e as mesmas
inclinações reinaram e reinam em todos os governos, bem como em todos os povos. Por
isto é fácil, ao que estuda com cuidado os acontecimentos passados, prever o que o
futuro reserva a cada governo, propondo os remédios já utilizados pelos antigos ou, caso
isto não seja possível, imaginando novos remédios, baseados na similaridade dos
ocorridos. (D. I, 39. MACHIAVELLI, 1997, p. 282).

Por este prisma, entende-se que Maquiavel não está centrado nem na veracidade
histórica dos fatos narrados, nem na simples exemplificação de verdades morais ou
políticas através de tais fatos. Seu foco é compreender a ação humana no contexto
político e a partir daí pensar a realidade política de seu próprio tempo. Ou seja, a peça
central da história continua sempre a mesma, o indivíduo humano. Este indivíduo tem
uma natureza inalterada, propensa sempre aos mesmos fins. “O paralelismo entre as leis
da natureza e as leis da história dão a esta última uma solidez e uma força
suplementar.”(D’ISTRIA/FRAPET, 1980, p. 35). Sendo assim, prescrutar a história não
é apenas buscar a veracidade dos fatos, é antes entender como as paixões, os desejos, as
inclinações da natureza humana moldam sua vida social e política e como isso pode ser
usado como aprendizado para compreender seu próprio tempo.

Os relatos históricos dos judeus contidos no velho testamento seriam então, nesta
perspectiva maquiaveliana, uma fonte de compreensão das consequências das ações
humanas, em vista de suas paixões e inclinações, no seio daquele determinado povo e
cultura em um determinado tempo. Certamente que esta compreensão pode ser usada
para o entendimento de seu próprio tempo, seja na formulação de respostas políticas aos
problemas sociais, seja na formulação de teses sobre as consequências das ações do
homem de modo geral.

Não podemos ainda deixar de lado o fato de que Maquiavel é um indivíduo vivendo
em uma sociedade cristã, altamente punitiva no tocante a tudo aquilo que contradiga os
dogmas aceitos. Porém, mais do que a coerção pela punição, tal sociedade cria em torno
de si uma narrativa social que permeia e ao mesmo tempo reflete as crenças e
percepções desses mesmos dogmas. Como já demonstramos no tópico anterior, a
tradição judaica que se conhece mais amplamente na Europa de Maquiavel é aquela
suprassumida pela realidade do Cristo, principalmente em sua definição como messias.
É interessante ver no capítulo 26 de “O Príncipe”, um tom quase messiânico de
exortação àquele que há de vir salvar a Itália de seus inimigos. Como segue:

E se, como eu disse, era necessário, querendo ver a virtù de Moisés, que o povo de
Israel fosse escravo no Egito; e a conhecer a grandeza de ânimo de Ciro, que os persas
fossem oprimidos pelos medos; e a excelência de Teseu, que os atenienses fossem
dispersos; assim no presente, querendo conhecer a virtù de um espírito italiano, era
necessário que a Itália se reduzisse aos termos presentes e que fosse mais escrava que os
hebreus, mais serva que os persas, mais dispersa que os atenienses: sem líder, sem
ordem, batida, espoliada, lacerada, saqueada e tenha suportado todo tipo de ruína.
Embora até aqui, se tenha visto em alguns, certos lampejo de esperança, podendo julgar
que fosse ordenado por Deus para sua redenção, também se viu como depois, no mais
alto curso de suas ações, foram pela fortuna reprovados. (P. XXVI. MACHIAVELLI,
1997, p. 189 – 190).

Entendemos que Maquiavel tem um conhecimento limitado da história do povo


judeu, a partir da leitura cristã de sua época e das assimilações que ela sofreu na cultura
ocidental, como já demonstramos. Sendo assim, não buscaremos nos textos
maquiavelianos referências que indiquem um profundo conhecimento do judaísmo
antigo, no entanto, num movimento de contraluz, tomaremos as indicações
maquiavelianas do papel da religião no corpo social e buscaremos, na história e na
tradição do judaísmo antigo, veterotestamentária, paralelos que possam ser validos. Esse
movimento deve ser guiado por duas questões muito próximas no pensamento do
Florentino, primeiro, a formação do indivíduo em uma tradição religiosa que permita
uma ordenação social e defesa da pátria, segundo, um uso da religião que permita o
fortalecimento do espírito de luta dos exércitos e o medo em infringir as regras sociais
estabelecidas nas leis.

Sua crítica ao cristianismo é muito bem conhecida por aqueles que se dedicam a este
tema da religião, o principal momento desta crítica parece ser a acusação de que o
cristianismo tende a criar homens submissos, mais amantes da contemplação do que dos
grandes atos de coragem e força. Nas palavras do Florentino:

Pensando, portanto, donde possa nascer, que, naqueles tempos antigos, os povos
fossem mais amantes da liberdade que neste; creio nasça daquela mesma causa que faz
agora os homens menos fortes: a qual creio seja a diversidade da nossa educação em
relação à antiga. Porque, havendo a nossa religião mostrado a verdade e o verdadeiro
caminho, se faz estimar menos a honra mundana: onde o gentios, estimando-a bastante,
e havendo posto nisso o sumo bem, eram em suas ações mais ferozes. [...]. A nossa
religião tem glorificado mais os homens humildes e contemplativos, que os ativos.
Tendo ainda posto o sumo bem na humildade, abnegação e no desprezo das coisas
humanas; enquanto a outra o colocou na grandeza de ânimo, na fortaleza do corpo, e em
todas as outras coisas capazes de fazer o homem fortíssimo. (D. II, 2. MACHIAVELLI,
1997, p. 333.)

Esta dura crítica lançada sobre a educação advinda de uma compreensão cristã do
mundo demonstra a preocupação de Maquiavel em relação à formação dos indivíduos.
“Maquiavel prefere uma humildade diferente da professada pelos cristãos e um orgulho
diferente do qual eles inadvertidamente caem. Ele assume que o homem deve lutar por
si mesmo, reconhecer esta necessidade é o tipo de humildade que pode tornar homens
em soldados.”(SULLIVAN, 1996, p. 50). Sua intenção não é a de defender um retorno
ao paganismo romano ou antigo, no entanto, sua crítica está voltada para a valorização
de algo que não está em consonância à defesa da pátria e ao bem comum do corpo
político. Ou seja, independente da pretensa verdade do conteúdo religioso ou de seus
meios para a purificação moral ou espiritual dos indivíduos, o principal papel da religião
é contribuir para a formação de indivíduos comprometidos com a defesa, o ordenamento
e o crescimento do Estado. Neste sentido, podemos procurar no judaísmo antigo este
direcionamento da religião indicado por Maquiavel, principalmente no tocante à defesa
e expansão da pátria e o amor à liberdade.

No judaísmo antigo a educação do indivíduo, através dos textos históricos e da Torá,


era guiada pela clara intenção de se incutir a imagem de Yahvé como o “Deus dos
Exércitos”, tanto a necessidade de defesa quanto a necessidade de expansão e
estabilidade territorial levavam a este direcionamento. Como aponta Liverani:

O paradigma adotado no livro de Josué é aquele da ‘guerra santa’, de clara matriz


deuteronomista, mas dotada de profunda raiz na ideologia siro-palestina após séculos da
pressão assíria. A historiografia deuteronomista o aplicou retrospectivamente a toda a
história das relações entre Israel e os outros povos, não só pela época da conquista, mas
antes pela época dos Juízes e depois pela primeira idade monárquica. Os princípios
fundamentais da guerra santa são os seguintes: Deus é conosco, combate ao nosso lado
e garante a vitória; os inimigos, mesmo que aparentemente mais fortes, não podem
prevalecer diante de tal apoio, são destinados a derrota; as ações bélicas vão, porém,
precedidas de adequada preparação votiva-cultual, cada erro ou negligência neste
sentido será punido com o insucesso; o fruto da vitória será votado a Deus (o qual é o
artífice) e portanto será ritualmente destruído sem trazer vantagem material.
(LIVERANI, 2006, p. 315).

Este espírito de combate em nome de Deus é fartamente descrito no Pentateuco,


principalmente nos livros que tratam da expansão do povo saído do cativeiro e no seu
estabelecimento diante dos diversos povos que habitavam a terra de Canaã. O amor à
pátria, Israel, é o próprio amor a Deus, ou seja, um sentimento está intrinsecamente
atrelado ao outro. “Fica claro, pela leitura do antigo testamento, que a guerra não era um
problema para os antigos israelitas.”(HOBBS, 1997, p. 16). A vontade de Deus é
expressa na ação dos indivíduos que agem em prol do crescimento do reino de seu povo,
em geral, tal crescimento só é conquistado por meio de lutas sangrentas e destruições
dizimadoras.
Moisés é a principal figura na educação beligerante do povo, ele traz a mensagem
expansionista de Deus:

Moisés disse ao povo:

- O Senhor, nosso Deus, fará com que vocês entrem na terra que vão possuir e ele
mesmo expulsará os povos que vocês enfrentarem. Conforme vocês forem avançando,
Deus derrotará sete povos que são mais numerosos e mais poderosos do que vocês. São
eles: os heteus, os girgaseus, os amorreus, os cananeus, os perizeus, os heveus e os
jebuseus. O senhor entregará esses povos nas suas mãos, e vocês os atacarão e
destruirão completamente. Não façam nenhum acordo de paz com eles, nem tenham
pena deles. (Deuteronômio 7: 1, 2).

Este caráter de nação conquistadora é enfatizada na tradição do judaísmo antigo como


sinal da presença de Deus, é um claro uso do poder de convencimento da religião no
processo de adesão do povo à luta pela expansão da pátria e sua defesa. Isso se reflete
também na descrição das ações dos grandes líderes, principalmente em momentos de
disputa territorial ou de poderio local. A valorização da ação contundente, direcionada
para o fortalecimento da nação, é o mote central das narrativas contidas nos livros
históricos. Em geral, tais narrativas são demonstrações de ferocidade e força, ordens
dadas pelo próprio Deus e levadas a cabo sem nenhum tipo de piedade. Contrariar tais
ordens é ir contra a vontade do próprio “Deus dos Exércitos”, mais ainda, é colocar em
risco a própria soberania e liberdade da nação. Isso pode ser ilustrado pelo caso do rei
Saul, este foi eleito por Deus como rei de Israel, recebeu a ordem de exterminar todo ser
vivo nas cidades vizinhas a região destinada ao povo de Deus, no entanto, ele não
cumpriu tal ordem. Como está relatado no livro de Samuel:

Samuel disse à Saul:

- O senhor Deus mandou ungir você para ser rei de Israel, o povo dele. Agora escute
isto que o Senhor Todo-Poderoso diz. Ele castigará os amalequitas porque eles lutaram
contra os israelitas quando estes vieram do Egito. Vá, ataque os amalequitas e destrua
completamente tudo o que eles têm. Não tenha dó nem piedade. Mate todos os homens
e mulheres, crianças e bebês, gado e ovelhas, camelos e jumentos. […] - Eu pequei,
respondeu Saul, desobedeci as ordens de Deus, o Senhor, e as instruções que você deu.
Fiquei com medo do povo e fiz o que eles queriam. Mas agora, Samuel, eu peço que
perdoe o meu pecado e volte comigo para que eu possa adorar o senhor. - Eu não
voltarei com você! Respondeu Samuel. - Você rejeito as ordens de Deus, o Senhor, e
por isso ele também o rejeitou como rei de Israel. (1 Samuel 15: 1- 3; 24 – 26).

Esta narrativa presente no livro de Samuel retrata bem o que era a relação entre a
religião e a política no judaísmo antigo. Ao dar a ordem de Deus, Samuel estava
fortalecendo na mente do povo a ideia do comando divino de todos os atos de guerra e a
legitimação de todas as leis que regulavam a sociedade israelita. Saul, como rei de
Israel, não poderia contradizer tal ordem, pois, fazendo isso, colocava em risco todo o
arranjo político-religioso que impulsionava a educação do povo e o ordenamento social.
É clara a crueldade e ferocidade da ordem divina, todos os seres vivos pertencente ao
povo inimigo deveriam ser mortos. No entanto, Saul descumpre a ordem, deixa vivo o
rei inimigo, Agague, e todos os bons animais que os pertenciam. Isto não é apenas um
descumprimento de uma ordem divina, é a quebra de um processo de ordenamento
social, a legitimação das leis e o próprio ordenamento das instituições sociais
dependiam de uma educação baseada em princípios claros.

Este fator de manutenção de uma clara ordenação das instituições sociais é muita cara
à Maquiavel, segundo ele, toda a manutenção das leis, a ordenação das relações sociais
e a legitimação política depende disso. A religião tem um papel importantíssimo nisso,
seja incutindo uma educação que leve o indivíduo a respeitar as leis, seja impondo
rituais e práticas que despertem o temor e o respeito na mente das pessoas. Como
argumenta o Florentino:

Quando se examina o espírito da história romana, é forçoso reconhecer que a religião


servia para comandar os exércitos, levar a concórdia ao povo, zelar pela segurança dos
justos e fazer com que os maus corassem pelas suas infâmias. De modo que, se tivesse
de dizer a quem Roma devia maiores obrigações, se a Rômulo ou a Numa, creio que
este último teria a preferência. (D I, 11. MACHIAVELLI, 1997, p. 229, 230).

Pode se dizer que o mesmo se dá no seio da sociedade israelita nos tempos do velho
testamento, a ordenação social dependia indelevelmente do respeito e da estrita
observância da religião nacional. Saul sendo o líder da nação, o rei escolhido pelo
próprio “Deus dos Exércitos” não poderia quebrar esta ordem estabelecida, sendo ela o
elo entre as instituições políticas e religiosas. “Os dirigentes de uma república ou de
uma monarquia devem respeitar os fundamentos da religião nacional.” (D. I, 12.
MACHIAVELLI, 1997, p. 232). A consequência desta alteração no ordenamento
político-religioso poderia ser um desequilíbrio na própria estabilidade interna do corpo
social. Para sanar tal indesejável consequência a única ação possível era renovar o temor
no coração dos indivíduos e restabelecer os princípios religiosos que davam sustentação
às instituições políticas e sociais.

Sendo assim, o que fez Samuel na sequência da narração pode parecer ainda mais
cruel e bárbaro, algo próprio das religiões pagãs mais primitivas e que se assemelha
bastante ao que era a prática entre os bárbaros na época dos romanos. Como segue:

E Samuel ordenou:

- Tragam aqui o rei Agague. Tremendo de medo, Agague foi até o lugar onde Saul
estava e disse:

- Como é amargo morrer!

Samuel disse:

- Assim como a sua espada fez muitas mães ficarem sem filhos, agora também a sua
mãe vai ficar sem o seu filho. Em seguida Samuel cortou Agague em pedaços, em
Gilgal, em frente do altar. (1 Samuel 15: 28 - 30)

Diante de todo o povo, Samuel esquarteja o rei inimigo, Agague, cumprindo o que
tinha sido a ordem original do “Deus dos Exércitos”. “Dentro desta constituição, o
profeta devia desempenhar um papel-chave. Ele colocava os limites ao exercício do
poder da parte do rei, e era dever do profeta proteger a aliança divina das violações
humanas.” (HOBBS, 1997, p. 153). Certamente que é um espetáculo bárbaro e cruel, no
entanto, ele tinha a função de restaurar, como dissemos, a estabilidade da ordem
político-religiosa. Este fato no livro histórico de Samuel ilustra bem o que era a
educação bélica trazida pela religião, mas, além disso, retrata o formato da judaísmo
antigo enquanto religião nacional. O sacrifício em si não tinha um ensinamento
religioso, não era costume no judaísmo antigo a imolação de um ser humano, no
entanto, a necessidade de se manter a ordem estabelecida exigia tal extremo. Até este
momento na história da nação de Israel as organizações sociais e políticas estavam
intrinsecamente atreladas às disposições da religião, a monarquia só estava começando e
sua legitimação ainda carecia de fundamentos mais sólidos, fundamentos estes que só
poderiam vir com a própria legitimação advinda da religião.

Maquiavel é enfático ao defender a necessidade de acontecimentos excepcionais que


tragam o temor da punição e o respeito às leis, ele está atento a estes acontecimentos na
história de Roma e os indica como sendo momentos nos quais a manutenção da
estabilidade é garantida, e faltando estes, os homens se tornam corruptos e causadores
de tumultos. Vejamos isto em suas palavras:

Entre aquelas execuções antes da tomada de Roma pelos gauleses, foram notáveis a
morte dos filhos de Brutos, a morte dos decênviros, aquela de Spúrio Moelio; depois da
tomada de Roma, foi a morte de Mânlio Capitolino, a morte do filho de Mânlio
Torquato, a execução de Papirio Cursor contra Fábio, seu mestre de cavalaria, pela
acusação contra os Cipiões. As quais coisas, porque eram excepcionais e notáveis, todas
as vezes que ocorriam, faziam os homens retornarem em direção ao princípio fundador;
e quando começaram à ser mais raras, começaram a dar mais espaço aos homens de se
corromperem, com mais perigo e tumulto. (D I, 1. MACHIAVELLI, 1997, p. 418).

Este processo de “educação pela força” é amplamente utilizada por Maquiavel em


seus textos, diversas vezes atrelada à função da religião, principalmente na manutenção
da estabilidade política e no incentivo ao combate. No caso de Israel, este espetáculo
sangrento era necessário, naquele momento, exatamente para manter, como dissemos, a
legitimação do governo monárquico recém-estabelecido. Este modelo de governo, a
monarquia, foi estabelecido logo após o período de governo centrado na figura
proeminente dos Juízes. “Essa instituição é paralela à instituição monárquica, mas sem
comportar o elemento dinástico e a ‘aura’ religiosa. Uma edição do Livro dos Juízes
parece haver utilizado essa noção para elaborar uma história pré-monárquica da
salvação da nação… (CAZELLES, 1986, p. 109).

Após a derrocada de Saul como primeiro rei de Israel, vê-se surgir uma das figuras
mais importantes do judaísmo, Davi ascende a partir de um acontecimento ímpar.
Segundo o relato bíblico, Davi se aproveita de uma situação de desafio feito por um
guerreiro inimigo e demonstra extrema bravura e destreza de luta. Certamente que a
veracidade do fato pode ser posta em dúvida, mas, no âmbito da tradição judaica antiga,
a luta entre Davi e o gigante Golias é um dos pontos altos das conquistas empreendidas
no início da monarquia em Israel. Não deixa de ter um fundo simbólico, um garoto com
uma arma simples, uma atiradeira, vence um gigante experiente e bem armado. A
simbologia da própria ascensão do povo judeu é expressa neste episódio, um povo
pequeno que se estabeleceu e conquistou poder sobre povos mais numerosos.

A história de Davi pode ainda ser lida a partir de termos postos por Maquiavel em
seus textos, ele se aproveitou de uma oportunidade excepcional, a Fortuna lhe trouxe a
possibilidade de demonstrar audácia e coragem, coisas que segundo o Florentino são
primordiais para se ter a sua graça. Além disso, demonstrou ainda desprendimento e
acabou conquistando a posição de rei, demonstrando Virtù ao ascender como chefe
militar e enfraquecendo seu principal rival, o próprio Saul, depois aniquilando seus
descendentes. No entanto, as disposições morais de Davi não são seu ponto forte, na
verdade, diversos ícones da tradição antiga, expressa no velho testamento, não são
exemplos morais. Segundo a avaliação de Campos:

O caráter do rei Davi transparece nas lendas e notícias que, sobre ele, nos dá a bíblia.
Foi um homem forte, capitão sábio e prudente, capaz de disciplinar e manejar, para o
êxito das empresas, a valentia, a audácia e a impulsividade dos seus homens. Impiedoso
e feroz para com inimigos que o contrariassem ou pudessem, mesmo remotamente,
prejudicar-lhe os planos, tolerante e mesmo generoso com os demais. Soube arranjar um
pretexto piedoso para mandar empalar perante Yahvé, em sufrágio de Yahvé, os sete
filhos sãos de Saul (II Sam. XXI 1 – 14) e poupou o filho de Jônatas, Meribaal, um tolo
e pobre aleijado, para que esse comendo à sua mesa, lhe testemunhasse magnanimidade.
Inescrupuloso e covarde quanto aos meios de satisfazer os apetites de homem libidinoso
e incontinente…(CAMPOS, 1961, p. 138).

No entanto, é interessante notar que Davi só foi repreendido e punido quando


cometeu uma ação em benefício próprio. No episódio em que ele toma a mulher de
Urias, a engravida e depois planeja a morte de seu marido. Neste momento ele é
repreendido por Samuel, no entanto, quando ele mata por empalamento os filhos de
Saul, os quais poderiam reclamar o direito de hereditariedade ao trono, ele não foi
repreendido. Certamente que esta hereditariedade maldita de Saul estava também
rechaçada pelo viés da religião, uma vez que Saul foi rejeitado como rei e condenado
pelo principal profeta, Samuel. No entanto, isso demonstra a preocupação de Davi em
manter-se seguro na posição de único rei de Israel e poder garantir a estabilidade do
reino. Sendo assim, podemos asseverar que a ação de Davi está de acordo com o que
indica Maquiavel sobre a justificação do governante diante de atos extremos, quando
sua intenção é manter a estabilidade da nação e evitar desordem. Como segue:

Desta forma, o bom legislador, animado pelo desejo único de servir não aos seus
interesses pessoais, mas os do público: de trabalhar não em favor dos próprios
herdeiros, mas para a pátria comum, não fará conta dos esforços para manter em seu
poder toda a autoridade. E nenhuma mente esclarecida reprovará quem se tenha valido
de uma ação extraordinária para instituir um reino ou uma república. (D. I, 9.
MACHIAVELLI, 1997, p. 418).

A constituição de uma nação, tendo como ancoradouro uma religião nacional, sem
vínculos sincréticos com outros povos é uma tarefa que demanda tempo e um forte
sentimento de unidade. No período davídico-salomônico, de certa forma, a constituição
da nação Israelita já estava em seu apogeu, saindo de um longo período tribal, dirigida
por líderes locais e Juízes. A instituição da monarquia foi de certa maneira uma
adequação aos modelos vigentes nas nações vizinhas. Este processo, estabilizado na
figura de Davi, foi um marco para o desenvolvimento da nação israelita. “Quando foi
introduzida a monarquia em Israel, as armas tornaram-se muito mais numerosas.”
(HOBBS, 1991, p. 90).
Apesar deste destaque da figura de Davi, como já aludimos, Moisés é sem dúvidas a
personagem mais conhecida da história do povo judeu, principalmente para os não-
judeus. Em Maquiavel, a figura de Moisés é posta junto daquela dos grandes
legisladores e fundadores de nação, sendo arrolado entre os príncipes que tiveram
virtude para se tornarem líderes e aproveitarem a oportunidade que lhes surgiu. Apesar
de ser depois, de certa maneira, marcado como executor da estrita vontade divina, como
está no livro V de O Príncipe. A despeito disso, é claro que Maquiavel vê nas ações de
Moisés, expressas no antigo testamento, traços políticos, ancorados em preceitos
religiosos que merecem ser analisados e até imitados. Como ele mesmo coloca:

Para vencer tal tipo de inveja, existe apenas um remédio: a morte. Se a sorte for então
propícia a um homem virtuoso que o liberte dos inimigos, dando-lhes morte natural, ele
poderá prevalecer sem oposição, usando, sem empecilhos, qualidades que não
ofenderão a mais ninguém. Mas, se não tiver esta sorte, será preciso desfazer-se dos
rivais por todos os meios, sem poupar esforços, antes de alçar qualquer
empreendimento. Se lermos a Bíblia, interpretando-a como é propício e devido,
veremos que Moisés, para firmar as leis e as instituições, foi obrigado a matar muitos
indivíduos que, levados por inveja, se opunham aos seus desígnios. (D. III, 30.
MACHIAVELLI, 1997, p. 572).

O Florentino está se referindo à passagem de Êxodo 32, quando Moisés desce do


monte Sinai com as tábuas da lei e vê o povo em cultos diversos daquele estabelecido
por ele. Na sequência do texto bíblico, Moisés chama os homens que estavam com ele e
que temiam à Deus, os da tribo de Levi, e manda que estes matem todos os indivíduos,
homens e mulheres, que se rebelaram. Neste episódio mais de três mil pessoas foram
mortas. Esta citação específica da ação de Moisés, demonstra que Maquiavel realmente
tinha um conhecimento dos textos do antigo testamento, no entanto, tais exemplos eram
totalmente negligenciados, e na verdade, evitados pela tradição cristã que suprassumiu a
tradição judaica antiga.

Mas, a despeito deste pouco uso dos relatos históricos do judaísmo antigo, a despeito
também de toda a tradição cristã que se apropriava da história judaica, podemos ver
nesta última citação de Maquiavel a indicação do que até agora tentamos demonstrar. O
judaísmo antigo, veterotestamentário, expressa uma leitura da religião que se coaduna à
busca da defesa da pátria e de sua expansão. Nos “Discorsi”, ao dizer no livro III: “Se
lermos a Bíblia, interpretando-a como é propício e devido...”, Maquiavel pode estar
indicando a resposta de sua própria interpelação no livro II ao dizer: “... se se levasse
em consideração que a fé é compatível com a grandeza e a defesa da pátria, se veria que
é devida para com a boa religião amar e honrar a pátria, e assim nos prepararíamos para
defendê-la.” No entanto, na tradição cristã que Maquiavel presencia em seu tempo, o
judaísmo antigo não passa de um estágio primitivo, mas importante, para a ascensão da
verdade religião.

O judaísmo helenístico

No início do tópico anterior já adiantamos um pouco do que foi o processo de


fortalecimento de um judaísmo influenciado, e influenciador, da cultura grega. A
preocupação dos judeus em manter sua distinção em relação ao demais povos foi posta à
prova quando o mundo civilizado da época se agigantou pelas mãos dos gregos e depois
dos romanos. A ascensão destas duas grandes civilizações mudou por completo o
quadro geopolítico do Mediterrâneo antigo. Segundo a opinião de Bevan:

Sobre todas as terras ao redor do Leste do Mediterrâneo os gregos, nos dias de


Alexandre, espalharam sua dominação cultural; então Roma surge em cena, adotando a
tradição grega na literatura, no pensamento e na ciência, somando a ela seu próprio
gênio de governo e leis, então que uma cultura meio helênica veio impor-se sobre o
Oeste Latino, e sob esta dubla predominância greco-romana todas as outras tradições do
Mediterrâneo perderam prestígio e poder. (BEVAN, 1927, p. 30)

A tradição judaica se mantinha viva nos rituais religiosos e no estudo e transmissão


da Torá. No entanto, o processo de dispersão de grande parte do povo judeu da
Palestina, fez com que surgissem novas leituras e práticas em relação a esta tradição.
Como já apontado anteriormente, a perda do referencial de adoração, o templo de
Salomão, a perda do controle da cidade santa de Jerusalém e o surgimento de uma nova
religião no seio judaico, fizeram com que as bases político-religiosas fossem abaladas e
sofressem influências. Este é o resumo do cenário que se tornou o pano de fundo para o
fortalecimento do judaísmo helenístico no início do primeiro século da era cristã. Pode-
se intuir que o judaísmo fosse, neste cenário desfavorável do início da era cristã, uma
tradição em vias de se extinguir, como fora mais tarde o caso das religiões pagãs grega e
romana. Apesar disso, o forte sentimento nacionalista incutido nos preceitos religiosos
fizeram com que o judaísmo se mantivesse vivo nos preceitos da tradição. No entanto, é
óbvia a mudança do contexto político, as promessas de retomada da independência
territorial e política pareciam, certamente, ainda mais distantes do quê no final do século
I a.C.

A tradição judaica que se fortaleceu no mundo grego foi direcionada principalmente


pelos vetores místicos presentes no judaísmo antigo, bem como seus aspectos
sapienciais e ritualísticos. Este movimento é preponderante para a assimilação de
aspectos destacados na tradição grega, o que obviamente culmina em escritos mais
próximos dos escritos ocidentais. A própria tradução da Torá, ou mais centralmente do
Pentateuco, para o grego, foi a base para a posterior organização da bíblia cristã
organizada sob o império romano. De acordo com Renckens:

Assim o targum do Pentateuco que se nos conservou é uma fonte natural para a
crítica do texto e sobretudo para a história mais antiga da exegese. Mais para o Oeste e
sobretudo no Egito, o aramaico foi, desde Alexandre, desalojado como língua universal
pelo grego. Nas sinagogas helênicas seguia, portanto, após a leitura hebraica, uma
paráfrase grega. Hoje em dia todos concordam em que a própria Septuaginta ou ao
menos a sua base deve ser considerada como um targum grego. (RENCKENS, 1969, p.
244).

A valorização dos aspectos místicos do judaísmo em uma vertente helenística não é


interessante apenas pelo fato de demonstrar o sincretismo e assimilação que se possa
existir entre as duas tradições. Na verdade, o que se impõe é uma forma de pensar e
viver a religião em um âmbito sociopolítico. A ênfase do “Deus dos Exércitos” já está
no passado, a expectativa por um messias político, guerreiro e conquistador também já
está em descrédito. A própria tradição de formação do indivíduo judeu e da valorização
dos exemplos à serem seguidos é distinta daquela que configurava o judaísmo antigo. A
ampliação de uma abordagem mística do judaísmo traz consigo uma maneira de viver a
religião que se desprende do contexto político, ou seja, o judeu vive sua religião no
âmbito privado de sua casa e nos aspectos introspectivos que ela traz. Estes são os
traços de todas as religiões pautadas em aspectos místicos despregados do contexto
político. Para Scholem:

A mística hebraica, nos seus diversos aspectos, representa a tentativa de entender


como valores místicos e valores religiosos típicos do hebraísmo; ela se concentra na
representação do Deus vivente – que se manifesta na criação, na revelação, na redenção
– desprendendo-se ao ponto de fazer surgir deste domínio do Deus vivente todo um
mundo de vida divina, no qual o segredo é ativo e presente em cada ser. (SCHOLEM,
1993, p. 23).

O próprio cristianismo é uma religião fortemente arraigada em aspectos místicos que


permitem ao indivíduo vivenciar sua religião independentemente do âmbito social que o
envolve. Não apenas o caráter de coesão social do judaísmo se modifica na tradição
helenística, a própria construção da identidade legislativa do povo judeu sofre
interferência direta. Viver em Jerusalém sob um forte código legislativo-religioso é uma
coisa, mas, viver em terras estrangeiras, sob um código legislativo que não se baseia em
uma tradição própria, é outra bem diferente.

As tradições da lei escrita e da lei oral são brutalmente atacadas no sentido de se


adequarem, em um contexto político distinto no qual a religião perde seu poder de
coesão e no qual os aspectos místicos são predominantemente despregados do viver
social. A tradição sapiencial dos comentadores e sábios passará a preencher a lacuna
deixada pela ausência de poder de coesão por parte das tradições da lei. Ou seja, um
processo de adequação do milenar código judaico é forçosamente posto em marcha no
período helênico. A tradição será interpretada, condicionada, adequada as realidades
impostas por condições políticas, econômicas e sociais. Esta será uma marca do
judaísmo helenístico, o processo de interpretação das leis, tendo como principal
discussão a manutenção de sua identidade principal, sua origem na vontade divina.
Como comenta Schimmel:

A vontade de Deus como expressa pelas leis sinaíticas foi absolutamente mantida nos
Sábios. ‘Têm, então, os Sábios poder para sobrepor esta lei da Torah?’, o Sábio
perguntou. Até então, em circunstâncias excepcionais, a Torah empodera os Sábios a
legislarem contrariamente à lei sinaítica. Exatamente o que essas circunstâncias são é
uma matéria de disputa entre os primeiros grandes estudiosos. (SCHIMMEL, 1973, p.
109).

Pode-se afirmar que o povo judeu, onde quer que esteja, fora de Jerusalém, tem dois
códigos de lei, um do Estado onde esteja, outro da Torá e da tradição. Sendo assim, o
processo de helenização do judaísmo foi também o processo de quebra com a tradição
da lei, bem como o processo de quebra do papel da religião judaica como argamassa de
formação de uma identidade territorial. Em detrimento a isto, este processo de
helenização da tradição judaica foi o trampolim para sua inserção no mundo civilizado
de então. O mundo grego, posteriormente herdado pela cultura romana, estabeleceu as
vigas da civilização ocidental, principalmente os alicerces políticos e intelectuais que a
formaram.
Neste sentido, devemos entender que o judaísmo conhecido pelos europeus medievais
e renascentistas é aquele da tradição helenística e posteriormente cristã. Muito pouco se
conhecia das tradições que se mantiveram fiéis aos traços presentes no judaísmo antigo,
ou veterotestamentário. O próprio cristianismo católico, até o acontecimento da reforma
protestante, se manteve próximo do chamado Cânone de Alexandria, que possuía seis
livros a mais(os chamados livros sapienciais) do que do Cânone de Jerusalém, que se
mantinha fiel ao formato da Torá. Lutero retomará o Cânone de Jerusalém, dizendo ser
necessário voltar à origem, por isso a bíblia utilizada pelos protestantes tem seis livros a
menos que a bíblia utilizada pelos católicos romanos.

É interessante entender como o judaísmo era visto pela Europa cristã, ou seja, para a
Cristandade o velho testamento, bem como o judaísmo contido nele, é apenas um
prenúncio da verdadeira religião, a cristã. Por conta disto, a tradição sapiencial do
judaísmo helenístico será assimilada como um movimento intelectualmente distinto da
tradição cristã, bem como daquele judaísmo expresso no velho testamento. No entanto,
os entrelaçamentos entre judaísmo, cristianismo e filosofia se tornaram cada vez mais
próximos, ao ponto de se desenvolverem correlatamente, como correntes
essencialmente próximas. Esse movimento se espalhava por toda a Europa no período
medieval, da Espanha à Alemanha, com algumas distinções nesta última. Como
argumenta Scholem:

No medievo o mundo hebraico-alemão se tem distanciado dos problemas teológicos e


filosóficos, que ao invés, naquele tempo, agitavam profundamente as comunidades
oriental, espanhola e italiana, promovendo nestes grupos um desenvolvimento decisivo.
Seja a introdução de novos valores e ideias na concepção de Deus na antropologia e na
ética por parte dos teólogos e filósofos hebreus, os sucessivos desenvolvimentos – que
se poderiam descrever como a luta entre Platão e Aristóteles pela hereditariedade bíblica
e talmúdica do hebraísmo – tudo isso interessou bem pouco à comunidade hebraica da
Alemanha e do norte da França, e teve sobre elas pouca influência. (SCHOLEM, 1993,
p. 95)

Temos então, na Idade Média e no Renascimento, basicamente duas tradições


judaicas conhecidas e assimiladas, a primeira, aquela do judaísmo helenístico, mais
destacada pela mística e pela proximidade com a tradição filosófica grega, a segunda,
aquela da tradição judaica atrelada à história do cristianismo na figura do cristo, que se
confundia com a própria religião cristã e era suprassumida por essa. “O número dos
temas proféticos postos em relação com a vida de Cristo e a infidelidade de Israel
justifica igualmente o recurso frequente aos profetas principais.” (DAHAN, 2007, p.
389). O judaísmo antigo, com toda a sua significação política, social e religiosa, já
estava totalmente restrito a comunidades que mantiveram a tradição da Torá,
principalmente aquelas que não se afastaram de Jerusalém após a diáspora.

Na Itália renascentista, como já aludimos acima, estavam presentes as duas principais


tradições judaicas mais conhecidas pelos europeus, de um lado, por uma vertente
atrelada à filosofia neoplatônica, a mística judaica, por outro lado, atrelada a leitura
cristã do judaísmo, a tradição judaico-cristã. Ambas as tradições estavam distanciadas
daquela tradição antiga do judaísmo, sendo assim, os próprios aspectos político-
religiosos contidos nesta última também estavam obliterados. A mística judaica,
tangenciada por correntes esotéricas, neoplatônicas e sapienciais, se expressava
principalmente nos círculos filosóficos e astrológicos. A Kabbala havia ganhado força
neste movimento e tinha se tornado uma fonte de inspiração mística e esotérica, um
fenômeno surgido no seio judaico da Cristandade. Scholem novamente comenta:

De início se põe muito naturalmente duas questões: em quais circunstâncias a


Kabbala tem aparecido na cena histórica, e quais eram as características da época em
que a vimos surgir? É certo que como fenômeno histórico no judaísmo medieval, a
Kabbala nasceu na Provença, mais exatamente em sua parte ocidental, no Languedoc.
De lá, ela foi transplantada, no primeiro quarto do século XIII, em Aragão e Castella,
onde ela tornou-se conhecida pela sequência de seu desenvolvimento clássico. Ela
constitui-se por tanto numa manifestação da vida judaica no Ocidente cristão, e não
possuímos nenhuma informação histórica, nenhum documento direto sobre sua
existência ou sua propagação nos países do Islã. (SCHOLEM, 1966, p. 20-21).

O Renascimento italiano está aberto a ambas as tradições, uma advinda de sua


vertente místico-filosófica e aquela leitura cristã do judaísmo contido no velho
testamento e suprassumido pela imagem do Cristo. Esta mista presença judaica nos
escritos renascentistas pode ser bem entendida a partir das obras de autores como de
Pico della Mirandola. Este autor é notadamente conhecedor e estudioso das diversas
vertentes místicas e sapienciais de origem grega, hebraica e árabe. Sua principal obra
sobre a condição do homem como ser livre e de ação é sem dúvidas o Discurso..
Vejamos, a partir de suas palavras, a condição das ações do homem:

Portanto, ainda que dedicados à vida ativa, se assumirmos tratar as coisas inferiores
com reto discernimento, afirmar-nos-emos com a firmeza dos tronos. Se libertos das
ações, meditando na criação o artífice e no artífice a criação, estaremos imersos na paz
da contemplação, resplandeceremos rodeados de querubínica luz. [...] Sobre o trono,
isto é, acima do justo juíz, está Deus juíz dos séculos. (PICO DELLA MIRANDOLA,
1942, p. 271.)

Sua visão sobre a natureza humana se pauta pela liberdade, estritamente humana, de
se degradar ou se elevar em termos quase divinos, ou seja, a liberdade de alçar um
movimento de aprimoramento intelectual e espiritual. No tocante a esta liberdade, e
pesando aí o antagonismo entre coisas inferiores e coisas superiores, a contemplação se
firma como caminho seguro para tal aprimoramento. As leis refletem também este
processo que se deve constituir como ascendente, o justo juiz se ilumina sob os
auspícios do juiz dos séculos. “O texto ‘pichiano’, decantado a dignidade e a liberdade
do homem, exalta a sua possibilidade de desvencilhar-se das cadeias perversas dos
pecados e sair em direção a Deus, continuando e aprofundando assim o curso do
pensamento medieval escolástico.” (GUKOUSKJ, 1965, p. 462).

Mas do que ser um ponto de convergência entre as doutrinas e tradições místicas,


judaica e árabe, com o ensino essencialmente cristão e as doutrinas filosóficas, Pico é a
imagem icônica do que foi o processo de apreensão das tradições orientais na
intelectualidade ocidental, principalmente no Medievo e no Renascimento. Certamente
que não pretendemos aprofundar este quadro, no entanto, nos interessa demonstrar
como a tradição do judaísmo antigo já estava obliterada no contexto intelectual europeu
no fim do Medievo. Interessa-nos também apontar que é neste cenário que Maquiavel
tomará conhecimento das figuras históricas do judaísmo, principalmente Moisés.
Neste sentido, no próximo tópico, buscaremos demonstrar como a descrição
maquiaveliana do papel da religião na organização político-social de uma nação pode se
coadunar a alguns dos aspectos principais do judaísmo antigo e pode ser utilizada para
compreender esta religião em um patamar mais próximo das religiões pagãs antigas do
que do cristianismo.

Conclusão

Nos termos indicados no transcurso de todo este texto, buscamos demonstrar como o
judaísmo antigo, pelo menos em seus mais destacados traços político-religiosos
expressos no chamado velho testamento, foram obliterados, transformados e adequados
à realidade do devir histórico. Tais mudanças foram ligações entre a própria tradição
judaica e as mudanças que o mundo sofreu desde a Antiguidade até o Renascimento. A
partir disto, demonstramos, mesmo que em termos sucintos, que o judaísmo antigo, ou
veterotestamentário, pode ser visto à luz das diretrizes e dos apontamentos
maquiavelianos do papel da religião na constituição, manutenção e defesa de uma
nação.

O assunto da religião nos textos de Maquiavel é uma seara fértil e que apresenta
diversas facetas passíveis de discussão e ponderação, assim como o judaísmo antigo, em
suas diversas expressões religiosas intrinsecamente ligadas às constituições políticas
que estabeleceram a nação israelita. Sendo assim, temos ciência de que o assunto não
foi de forma alguma encerrado, mas que apesar do caráter sucinto de nossa explanação,
os termos que assentam a discussão foram satisfatoriamente expostos.

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_____________________________________________________________
Autor(a) para correspondência: Marcone Costa Cerqueira, Universidade Federal
de Santa Catarina, R. Eng. Agronômico Andrei Cristian Ferreira, s/n, Trindade,
CEP 88040-900, Florianópolis - SC, Brasil. markantfilos@yahoo.com.br.

A época em que o Brasil


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barrou milhares de judeus que fugiam


do nazismo
 João Fellet - @joaofellet
 Da BBC News Brasil em São Paulo

20 janeiro 2019

CRÉDITO,YAD VASHEM
Legenda da foto,
Moradores do bairro judeu em Chelmza, Polônia, país invadido por tropas nazistas em
1939
Em julho de 1938, o cônsul do Brasil em Budapeste (Hungria), Mário
Moreira da Silva, enviou ao ministro das Relações Exteriores, Oswaldo
Aranha, uma circular secreta em que informava ter recusado a concessão
de vistos a 47 pessoas "declaradamente de origem semita" (judeus) que
buscavam migrar para o Brasil.
Eles tentavam fugir enquanto o governo húngaro, aliado da Alemanha nazista,
punha em marcha uma série de políticas antissemitas - que, seis anos depois,
culminariam com o envio de meio milhão de judeus húngaros para campos de
extermínio.
O cônsul em Budapeste já havia se posicionado contra a entrada de judeus no
Brasil. Em ofício enviado ao ministro meses antes, ele os chamara de "assaz
(muito) perniciosos" e "inassimiláveis, que só sabem trabalhar - sem o menor
escrúpulo e só visando o lucro - como intermediários de negócios, nada
produzindo de útil".

 Os três meses mais terríveis da 2ª Guerra, quando foram mortos 25% de


todos os judeus do Holocausto
 Quem ficou com a fortuna bilionária de Hitler?

Não era uma posição isolada no governo. Documentos diplomáticos


compilados por Maria Luiza Tucci Carneiro, professora do Departamento de
História da USP, mostram que o Brasil rejeitou ao menos 16 mil pedidos de
visto feitos por judeus que fugiam do Holocausto ou tentavam reconstruir suas
vidas após a Segunda Guerra.
Os documentos - que estão sendo incorporados ao Arquivo Virtual Sobre
Holocausto e Antissemitismo (Arqshoah) - jogam luz sobre um lado pouco
conhecido da história da imigração no Brasil.

Cristãos Novos: Os Anussim e


o Povo Judeu
2 anos ago

14 comentarios

por Editora e Livraria Sêfer


Escrito por Editora e Livraria Sêfer

A admissão dos Marranos no Povo Judeu

Os marranos têm uma história bizarra. Seus ancestrais, na Espanha do


século XV foram adulados, exortados, ameaçados e obrigados a se
converterem ao cristianismo. Eles o fizeram, em massa, conforme as
exigências cristãs. Depois que 170 mil judeus foram expulsos em 1492,
por não quererem se converter, cerca de 300 mil conversos
permaneceram na Espanha. A maioria deles converteu-se ao
cristianismo. Eles tornaram-se muito religiosos, fundadores de
conventos, líderes da ordem dos jesuítas, e ocuparam outros cargos
cristãos elevados e até reais.

A maioria dos marranos converteu-se ao cristianismo, principalmente


porque foram obrigados a isto; mas também por causa da atração
adicional de tirar de suas famílias o temor da perseguição e serem
aceitos dentro da sociedade espanhola “normal”. Os marranos foram
denominados “cristãos-novos”, e foram odiados simultaneamente pelos
“velhos cristãos” e repelidos pelos autênticos judeus, que não cederam à
pressão para se converterem. Os “velhos cristãos” iniciaram um
movimento que investigava todo o mundo em busca da “pureza
de sangue”, ou seja, se não estava manchado pelo sangue da conversão.
Mas eles mantiveram sua individualidade e contribuíram mais do que
qualquer outro grupo étnico para cultura da Renascença.

Muitos dos marranos, submeteram ao batismo, observavam os rituais


cristãos apenas externamente. No íntimo de suas almas, eles
continuaram observando os costumes judaicos. Curiosamente, a
escolha das observâncias era quase aleatória e exclusiva de cada
comunidade. Por exemplo, as velas de Shabat eram acesas no porão, de
modo clandestino e seguro, enquanto outras cerimônias importantes
foram descartadas, mesmo na privacidade. Por séculos, seus
descendentes continuaram a praticar sub-repticiamente estes costumes
e leis, como era o costume de sua família, embora eles não soubessem
mais porque assim procediam.

Estas pessoas foram denominadas Anussim (forçados) em contraste


com os Meshumadim, que eram apóstatas por vontade própria. A
história judaica tem conhecido este tipo de judeu desde o século IV. Em
Portugal, os Anussim perduraram até o século XVII. De fato, muitas
crianças que sobreviveram ao Holocausto e foram batizadas pela igreja
depois de serem salvas pela mesma são, em alguns sentidos, similares
aos Anussim das épocas anteriores. Às vezes, os Anussim retornavam
ao meio judaico como, por exemplo, aqueles que chegaram ao Recife em
maio de 1630, depois que os holandeses desembarcaram no nordeste
brasileiro. Eles foram circuncidados e plenamente convertidos, e
tornaram-se judeus praticantes. Alguns marranos que se converteram
ao cristianismo contra sua vontade em Portugal (depois de 1497,
quando, segundo relatos, não havia absolutamente nenhum judeu
vivendo em Portugal) escaparam e retornaram ao judaísmo, formando
um Kahal Kadosh Shel Baalê Teshuvá, uma Comunidade Sagrada de
Arrependidos, em Salônica.
Quase todos os descendentes de Marranos – que não abandonaram
totalmente o judaísmo naquela ocasião – fizeram casamentos mistos
nos quinhentos anos seguintes. Alguns marranos, que mantiveram sua
associação com seus ancestrais, agora procuram entrar de novo no
povo judeu. A pergunta é se estes cripto-judeus devem se submeter ao
ritual inteiro da conversão, ou simplesmente serem considerados
“judeus arrependidos”. Está bem claro que esta é uma questão que só
pode ser decidida pelos padrões prescritos na Halachá, a lei judaica –
não pelos sentimentos a respeito da óbvia sinceridade dos indivíduos,
nem pela compaixão por seus ancestrais que foram Anussim,
compelidos a se converterem, e nem mesmo pelo grau atual de sua
observância de Mitsvót.

A Halachá determinará a lei a ser aplicada para determinar se os


ancestrais maternos do marrano continuaram judeus em cada um de
seus casamentos ou não. A menos que alguém que deseja ser um judeu
pleno tenha uma árvore genealógica comprovável que volte até séculos
atrás, o mais provável é que algum de seus descendentes, perseguido e
disperso pelo mundo civilizado, tenha se casado com um não judeu.

Por este motivo, os marranos estão em uma posição qualitativamente


diferente da dos Falashas, da Etiópia. As comunidades Falashas, em
sua maioria, eram sociedades fechadas, cuja população nativa casava-
se fielmente somente dentro de suas comunidades judaicas. Sua
linhagem é impecavelmente judaica; eles não exigem rituais de
conversão adicionais. Eles já são judeus. Mas aqueles Falashas que se
misturaram com a comunidade maior durante gerações não podem ser
considerados como tendo sempre se casado com judeus. Este é o
mesmo caso dos judeus russos que emergem após duas ou três
gerações de perseguição pelos comunistas ateus. As probabilidades de
casamentos mistos na família, no passado, são tão grandes, que tornam
implausível que eles sejam halachicamente judeus.

Eles não podem entrar para o povo judeu simplesmente porque afirmam
seu desejo genuíno; é preciso uma autenticação positiva de sua
linhagem ou uma conversão completa ao judaísmo.

Os filhos dos marranos que desejam observar os costumes judaicos


como judeus plenos, por dentro e por fora, devem se recebidos de volta
com boas-vindas ao povo judeu de todo o coração e com os braços
abertos. Eles são corajosos e sábios, e devemos manter as portas
sempre abertas à sua oa-vontade. Mas eles terão de seguir todo
o protocolo de conversão, como descrito neste livro, para confirmar sua
condição legal de judeus, e acabar para sempre com quaisquer dúvidas,
quanto a eles e seus filhos, sobre se eles são judeus autênticos ou não.
De fato, eles serão novamente os filhos de Abrahão e Sara.
A eles, eu digo: ‘Bem-vindos de volta. Esperamos por vocês com as luzes
acesas”.

Indicações de leitura:

Bem-vindo ao judaísmo
Retorno e Conversão – Nova edição!
Autor: Maurice Lamm
Editora Sêfer
Páginas: 430

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Dicionário Sefaradi de Sobrenomes – Dictionary of


Sephardic Surnames
Inclusive Cristãos-Novos, Conversos, Marranos, Italianos,
Berberes e sua História na Espanha, Portugal e Itália
Autor: Guilherme Faiguenboim, Paulo Valadares e Anna
Rosa Campagnano
Editora Sêfer
Páginas: 528

Genealogia Sefaradita
Por Paulo Valadares
Nomes de árvores e animais correspondem a sobrenomes judeus?
É comum ouvir que certos sobrenomes usados por
lusodescendentes identificam origem judaica, herança de
ancestrais cristãos-novos. De acordo com esta explicação
popular, sobrenomes como Lobo ou Pereira identificariam a
procedência. Será verdade? Para responder, é bom que se
conheça um pouco do desenvolvimento da onomástica judaica.
Os judeus sempre usaram, para se identificar, um patronímico, o nome do pai. É

só verificar no Velho Testamento – a Bíblia Hebraica – os nomes dos personagens

como Fulano ben (filho de) Sicrano. Hoje eles são usados apenas nas cerimônias

religiosas. Os sobrenomes foram incorporados primeiro na Península Ibérica e

depois, por influência napoleônica, fora dela. No mundo ibérico, já no século XIV,

havia judeus que se identificavam com prenome bíblico e um sobrenome de

variadas origens geográficas – Abravanel, Amado, Arruda, Cavaleiro, Cohen,

Crespim, Franco, Navarro, Negro, Pinto, Toledano, Valentim etc –, que, com o

passar dos anos, foram incorporados aos patrimônios familiares.

A permanência dos judeus, como convertidos, a partir do século XV, tornou

obrigatório o recebimento de novos nomes e sobrenomes sem que houvesse um

ordenamento jurídico para sua aquisição. Somente os prenomes tradicionalmente

usados, como Abraão, Isaac e Jacó foram convenientemente abandonados, mas

como o objetivo era a incorporação desta minoria à população majoritária, não

havia sinais que os distinguissem pela onomástica. Os convertidos que se


renomeavam também nada traziam do passado. O objetivo era desaparecer na

massa circundante.

Lenda tem base em discursos religiosos

Mas como encontrar os sobrenomes utilizados pelos cristãos-novos e seus

descendentes se eles desapareceram na população geral? Convém consultar a

documentação produzida pela Inquisição, como as listas de penitenciados e cerca

de 40 mil processos movidos contra cristãos-novos entre os séculos XVI e XVIII.

Lá está a maioria dos sobrenomes usados pelos portugueses. Do simples Santos

ao dinástico Bragança. Em alguns casos, é possível encontrar a autoridade

inquisitorial e o réu com o mesmo nome de família, sem que eles tenham vínculos

de parentesco entre si.

O desconhecimento desse passado levou pesquisadores amadores a buscarem

uma teoria para localizá-los. Baseados no discurso religioso, principalmente nas

bênçãos aos filhos de Jacó (Gênesis, 49:1-33), chegaram à conclusão de que

nomes de plantas e animais correspondem aos sobrenomes judeus, mas sem

qualquer fundamentação na realidade.

É impossível descobrir a origem de um lusodescendente só pelo nome de família.

É equivocado afirmar que alguém tem origem judaica só por ter um sobrenome

como Barata, Bezerra, Carneiro, Carvalho, Cordeiro, Falcão, Figueira, Leão,

Leitão, Lobo, Oliveira ou Pereira. A afirmação não se sustentaria na documentação

produzida durante 300 anos. Não há sobrenome cristão-novo, mas um sobrenome

ibérico usado por cristãos-novos, que muitas vezes foi o mesmo usado também

por cristãos-velhos, ciganos, mouriscos, indígenas…

Paulo Valadares é autor de A presença oculta. Genealogia, identidade e cultura

cristã-nova brasileira nos séculos XIX e XX(Fundação Ana Lima, 2007) e editor

doBoletim do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro.

Saiba Mais

CARVALHO, Flávio Mendes. Raízes judaicas no Brasil. O arquivo secreto da

Inquisição. São Paulo: Nova Arcádia, 1992.


FAIGUENBOIM, G.; VALADARES, P.; CAMPAGNANO, A.R. Dicionário Sefaradi

de Sobrenomes/Dictionary of Sephardic Surnames. São Paulo: Fraiha, 2003, 2004

e 2010.

NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil. Séculos XVI-XIX. Rio de

Janeiro: Expressão e Cultura, 2002.

Artigo publicado na edição número 73, em outubro de 2011, na Revista de História

da Biblioteca Nacional

Viajando através
dos sobrenomes
Data: 8 de fevereiro de 2013Autor: fabiolinslessa28 Comentários

Sempre se entendeu que a ascendência de uma pessoa pode ser estudada através
de seus sobrenomes.

Segundo o wikipédia, “Em Portugal o número máximo de sobrenomes


permitidos é quatro, o que permite o uso de sobrenome duplo quer materno,
quer paterno, enquanto que em Espanha é de dois, mas esses dois podem ser
duplos, unidos por hífen, resultando na realidade em quatro. Já no Brasil e nos
restantes países de língua portuguesa não existe essa limitação. Em muitas
culturas também é normal uma mulher assumir o sobrenome do marido após o
casamento. Em Países como a França, a Alemanha e nos países anglo-saxônicos
é normal a mulher “abdicar” do seu sobrenome de solteira (o chamado maiden
name) e ficar apenas com o sobrenome do seu cônjuge. Nos últimos anos,
porém, tem-se tornado algo frequente as mulheres estadunidenses apenas
“acrescentarem” o apelido do marido ao seu nome de solteira ou hifenizarem
ambos os sobrenomes (é o caso de Hillary Rodham Clinton)”.
Para buscar as origens remotas de um indivíduo, além de ir atrás da fonte de seus
sobrenomes, cabe também uma pesquisa nos “nomes de família” dos pais e avós.
Tomarei meu caso como exemplo: Lins de Lessa Carvalho (meus sobrenomes),
Barros (de meus pais) e Almeida, Gama e Higino (dos meus avós).
Para mim, até hoje, Lessa era um sobrenome tipicamente português. Mas em
breve pesquisa, cheguei a ler que: “Esta família traz suas origens dos
imperadores de Constantinopla. Em cada país por onde os Lessa passaram o
nome é escrito com grafia diferente, é o que tudo indica !!! A familia Lessa é
uma só, é muito grande, pois é muito antiga. A dificuldade que se tem de se
saber a origem da família Leça ou Lessa, Leca, Lessac e Lessard se dá por se
tratar de uma origem muito remota. Tem-se o conhecimento de que ela surgiu no
Império de Constantino, na poderosa Constantinopla, atual Istambul. Os
“Lessas” estavam entre a classe dominante desse império com cargos
honoríficos e de chefia, por serem pessoas instruídas e distintas. Com mudanças
de governo, essa família se espalhou pelo mundo através da Ilha de Córsega
(França) para a Espanha, da Espanha passou para Portugal
(principamente,Ilha da Madeira e Porto). Com a mudança da familia Real para
o Brasil muitos Lessa vieram para o Brasil.”
O sobrenome Carvalho também imagino ser português. Sempre soube que os
sobrenomes que representam nomes de animais (Lôbo, Coelho), plantas
(Carvalho), profissões (Ferreira), dentre outros, são de origem judaica,
representando os novos-cristãos, denominação dada aos judeus que foram
obrigados a se converter ao cristianismo. Li que: ” Estima-se que cerca de um
décimo (1/10), da população brasileira seja de descendentes de judeus cristãos-
novos – alguns historiadores afirmam que na verdade essa proporção é de 35%.
Isso equivale, na menor das estimativas, a 17 milhões de pessoas. Segue-se uma
lista retirada do livro “As raízes judaicas no Brasil”, de Flávio Mendes de
Carvalho, com os sobrenomes de cristãos-novos, brasileiros ou residentes no
Brasil, condenados pela Inquisição nos séc. XVII e XVIII e que constam nos
arquivos da Torre do Tombo em Lisboa. A sua família pode estar citada aqui! É
bom lembrar que os judeus, por ocasião da conversão forçada e para esconder
suas raízes e evitar a perseguição, adotaram muitos sobrenomes de cristãos-
velhos. Assim o fato de um sobrenome estar na lista não nos garante dizer que
todas as pessoas que o carregam são descendentes dos cristãos-novos. Por outro
lado, o fato de outro sobrenome não estar, não quer dizer que não seja de
origem judaica, posto que a pesquisa de Flávio Mendes não abrangeu todo o
período de atuação da Inquisição e ainda que muitas famílias conseguiram
manter-se em segredo. Na obra do historiador, também descendente de cristãos-
novos, constam os nomes e na maioria das vezes a naturalidade, o parentesco e
residência dos judaizantes – termo como eram chamados os conversos
descobertos praticando o judaísmo. Há vários casos em que muitos dos membros
de uma mesma família foram condenados e torturados para delatar a sua
própria gente”
Em relação ao sobrenome Lins, já havia lido que sua origem é alemã. Inclusive,
existe na Áustria a cidade de Linz, e eu pessoalmente vi uma estação na
Alemanha chamada Linsbourg. Os Lins teriam chegado ao norte de Alagoas. Em
todo livro de história alagoana, está registrado que o primeiro colonizador destas
terras foi Cristóvão Lins. Li na internet que: “Durante minhas pesquisas para
elaboração da biografia do meu pai (comandante Severiano Lins, pioneiro da
aviação comercial brasileira), recebi contribuição importante a respeito da
genealogia do LINS. Em carta datada de 07/03/1995, Oswald Heinrich Muller,
ex- diretor da Condor e amigo de meu pai, diz esse segundo aeroviário da
aviação comercial brasileira (o primeiro foi Ruben Berta): Um parente meu, na
Alemanha, que vive perto de Coburg, região dos meus antepassados, descobriu
um livro de publicação recente intitulado: O Brasil e seus alemães (…) na
página 17 lê-se sobre a vinda ao Brasil da família LINS, já em 1557, ou um
pouco depois, e como sei que o amigo é um descendente dessa família, pois
lembro-me que me disse, em certa ocasião, que os LINS vieram de Ulm, resolvi
dar ciência da existência desse livro ao amigo”. Para colonização do nordeste
brasileiro “é significativa – consta do referido livro – a família LINS, oriunda de
Ulm, no Danúbio. Derald LINS estabeleceu-se, como comerciante, em Lisboa,
por volta de 1540. Depois da fundação da Colônia pernambucana, em 1557,
LINS adquiriu, ali, grandes latifúdios e neles estabeleceu vários engenhos de
açúcar. Seus filhos Christoph e Bartholomaus, ainda nascidos na Suabia
(Alemanha), fizeram plantações nas propriedades brasileiras da família e
dirigíiram os engenhos (…) Formou (Christoph), no início dos anos 70, uma
pequena tropa military, que se pode, efetivamente, denominar “a primeira
unidade do território brasileira e, com ela, conquistou a área que, hoje, forma o
Estado de Alagoas (…) fundou Porto Calvo; acabou sendo considerado”
Patriarca de Porto Calvo” e verdadeiro fundador do Estado de Alagoas”.”
Lembro que quando fui fazer um curso de alemão em Munique, comentei com a
dona de casa que existia esta origem do sobrenome Lins, e ela fez uma busca nos
catálogos de telefone da Alemanha através da internet e descobriu a existência de
uma grande quantidade de Lins naquele país.
Em relação aos sobrenomes de meus pais que eu não herdei, só há um: Barros. A
família Barros, segundo minhas breves consultas à internet, tem origem
portuguesa.
Quanto aos sobrenomes de meus avós que não “herdei”, há Almeida, Gama e
Higino.
Almeida é um dos sobrenomes que geram uma certa polêmica. Os Almeida
brasileiros vieram de Portugal. A questão é saber se são descendentes dos judeus
ou dos mouros. Segundo alguns, os sobrenomes com o prefixo AL, como
Almeida e Albuquerque, são de origem árabe. Para outros, Almeida é um nome
de origem toponímico, ou seja, sua origem indica um local, sendo portanto de
origem judaica (cristãos-novos).
A família Gama é de origem portuguesa, basta lembrar o grande navegador e
herói português Vasco da Gama. A família Higino, pouco numerosa, reputo ser
de origem portuguesa.
Resumo da ópera: que mistura danada eu sou.
Brasileiro, com ascendência portuguesa, judia, alemã, árabe… E mais:
descendente dos Imperadores de Constantinopla, do Grande Herói Vasco da
Gama e do Fundador do Estado de Alagoas. Parece mais uma regressão ou uma
conversa num manicômio. Como diriam por aqui: É o fraco esse rapaz!!!
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Publicado por fabiolinslessa
Apaixonado por viagens, geografia, história, idiomas, cinema, música, literatura e
outras manifestações culturais, Fábio Lins nasceu e vive em Maceió/AL (Brasil), é
casado e tem dois filhos. É Professor universitário (UFAL e Cesmac) e advogado,
atuando como Procurador de Estado (desde 2000). Realizou cursos em
Salamanca e Barcelona (Espanha), Munique (Alemanha) e Londres (Inglaterra). É
Mestre e Doutor em Direito, sendo autor de diversos livros. Idealizador do blog
"culturaeviagem" (desde 2013), e dos projetos "Viagem Cultural" (desde 2012) e
"Saber-Fazer Cursos Personalizados" (desde 2016), faz parte do escritório Lins,
Duarte & Gazzaneo Advocacia & Consultoria (desde 2017). Já visitou mais de 35
países, especialmente no continente europeu. Tem 45 anos, tendo dedicado
muitas horas de sua vida para conhecer pessoas, lugares, livros, músicas e filmes.
Autor de diversos livros, inclusive Graciliano Ramos e a administração pública,
Atrevidos Caetés - 50 encontros entre alagoanos e personalidades mundiais e
Pontes de Miranda e a administração pública. Foi admitido em 2021 como sócio do
Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) e é o fundador e presidente do
Instituto de Direito Administrativo de Alagoas (IDAA) desde 2019 Ver todos os
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Sobrenomes - Os judeus desconhecidos
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Sobrenomes - Os judeus desconhecidos
#258357 | Conde de Granada | 11 Jul 2010 02:27

Sobrenomes - Os judeus desconhecidos


Por: Teodosio Muñoz Molina*

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Eram tão orgulhosos, por exemplo, que cada família pintava a casa da mesma
cor que seus pais. E não sabiam que a cor das casas era uma alusão às suas
origens, o sangue que haviam herdado de seus antepassados junto com as casas.
Não sabiam que, muitos séculos atrás, os normandos tinham por costume pintar
as casas de branco, enquanto os gregos utilizavam sempre o azul, e os árabes
distintos tons de rosa e de vermelho. Os judeus por sua vez usavam o amarelo.
Contudo, todos eles se consideravam sicilianos. Os sangues haviam sido tão
mesclados no decurso dos séculos que já não se podia identificar o proprietário
de uma casa por suas feições e, se alguém tivesse dito ao dono de uma casa
amarela que tinha antepassados judeus, poderia terminar com uma navalhada
no ventre.

O texto acima, de “O siciliano”, de Mário Puzzo, parece nos comprometer a


todos. “Os sangues se mesclaram tanto no decurso dos séculos" que escassos
mortais sabem quem foram os seus antepassados em 1512, e muito menos em
1250, e nem falar de 711.

Teria reagido Mussolini também com uma navalha se alguém se atrevesse a


recordar-lhe que no século XIII, em Veneza, existiu um judeu de nome
Mussolini? Na relação de sobrenomes judeus, publicada na Itália durante o
fascismo, não figura nenhum Hitler, mas vários Heitler e Hittler, nenhum
Goebbels, mas sim um Goebel e sem deformação ortográfica alguma, outros
judeus cujos sobrenomes coincidem com os de vários chefes do nazismo:
Rosenberg, Frank, Naumann, Schroeder, Pohl (general das SS), e Wolf (outro de
idênticas funções).

E como haveria reagido Hitler de ter-se inteirado de que em 1933, um judeu


polonês chamado Moisés Hitler decidiu mudar seu sobrenome para evitar a
mínima coincidência com o verdugo de seu povo? A lista não se esgota aí.
Teríamos que estar muito atentos à reação de muitos (e não é raro que militem
no anti-semitismo) ainda que não sejam sicilianos, se recorressem ao rápido
argumento da navalha ou do revólver caso lhes lembrássemos dos seus
antepassados das doze tribos. Para que ninguém se sinta tentado a jogar a
primeira pedra, é conveniente recordar nomes que alguma vez tiveram a ver
com a lei mosaica: Álvarez, Ibañez, Gómez, Fernández, Estévez, Díaz, Heredia,
López, Hernández, Méndez, Menéndez, Míguez, Láinez, Nuñez, Suárez,
Rodríguez, Ruiz, Pérez, Velázquez, Jiménez, etc.

A relação continua com os nomes de batismo que figuram como patronímicos


em qualquer das nações européias e se iniciou com o costume dos judeus que se
batizavam ao adotar o nome do padrinho cristão. As águas batismais
aumentavam o número de cristãos, mas eram incapazes de apagar a origem do
converso. Estes nomes individuais podem vir precedidos ou não da preposição
"de": Diego, Nicolás, Miguel, Frank, Franco, Martín, Martino, Albert, Alberti,
Michele, Michelet, Micheletti, Michelin, Pierleoni, Pierangeli, Gaspar, Jacob,
Michaelis, Benedetto, Benedetti, Guglielmo, Guglielmi, Guglielmini, Jacquart,
Jacquet, Bernhardt, Bernardi, Robert, Roberts, Alessandri, Alexander, Giacomo,
Giacometti, Simón, Simone, Mattei,

Mateos, Matteis, León, Vicente, Vincenti, Daniel, Danielou, Bertrand, Giovanni,


Giovanelli, etc.
Para assegurar-se de um novo protetor no céu, também era muito freqüente
entre os judeus conversos, agregar ao nome individual o de algum santo:
Santangel, Santa Maria, San Martin, Santa Marina, São José, Saint-Saëns, Saint
Chamas, Saint Pierre, Saint Jean, San Juan, etc.

Muitíssimos gentílicos podem remeter também a sobrenomes judaicos


desconhecidos ou não: Scott, Langlais, Lallemand, Alemán, Francés, Espanhol,
Spagnuolo, Spagnoletti, Catalano, Catalani, Tedesco, Tedeschini, Veneziano,
Breton, Lebreton, Lombard, Lombardo, Lombardi, Schweitzer, Pollack, Pohl,
Wiener, Berliner, Frankfurter, Hamburger, Ascolelese, Ascolesi, etc.

Como se isto fosse pouco, há que acrescentar os nomes relacionados com as


plantas: Cepeda, Cardoso, Espinosa, Carballo, Carballal, Carbajales, Robles,
Robledo, Peral, Pereira, Perales, Manzano, Manzanero, Manzanedo, Moreira,
Silva, da Silva, Silveira, Pino, Pinedo, Pineda, Piñeiro, Pinheiro, Dupin, Olmos,
Olmedo, Noceda, Nocedal, Noguera, Nogueira, Noguerol, Blum, Blumenfeld,
Rosenberg, Rosenthal, Lilienthal, Blumenthal, Lafleur, etc. Com preposição ou
sem ela, também parecem relacionar-se com a estirpe judaica: Alcalá, Zamora,
Berlín, Zaragoza, Meneses, Novara, Paredes, Castro, Ferrara, Sevilla, Montes,
del Monte, Delmonte, Belmonte, Montijo, Montejo, Montaña, Montagna,
Montanha, Berg, Bergson, Bergmann, Costa, Acosta, Da Costa, Lacoste, Medina,
Ríos, del Río, Torres, Torquemada, Aragno, Ascoli, Bassano, Bassani, Fermo,
Fermi, Luzazatto, Luzzatti, Mondolfo, Modigliani, Segni, Ravenna, Tolentino,
Veroli, Pontecorvo e Tívoli.

Tampouco se livram as particularidades físicas: Moreno, Brun, Lebrun, Brown,


Roth, Rojo, Bermejo, Vermelho, Blanco, Branco, Blank, White, Green, Roux,
Leroux, Rosso, Rossi, Rousseau, Roussel, Weiss, Black, Nero, Neri, Negro,
Braun, Tostado, Crespo, Crespi, Browning, etc.

Muitos irão resistir a aceitar que seu sobrenome, do qual se sente legitimamente
orgulhoso, se relacione de alguma forma com o povo de Israel e até poderão
perguntar de onde sai tanta conversa mole. Pois bem, nem tanto para
tranqüilizá-lo, mas ao contrário, podemos responder-lhe que nenhum dos
sobrenomes citados no presente capítulo foi tirado a esmo, sem mais nem
menos, e que se quiser convencer-se, pode pesquisar por sua conta, para o que
lhe facilitamos as fontes onde pode convencer-se:

Há listas de nomes judaicos de Palermo publicados em 1237. Há listas dos


judeus de Paris no século XII. Há uma lista dos judeus de Marselha do ano 1367.
Há uma lista de cristãos novos de Provença do ano 1512. Há uma lista dos
judeus de Barcelona do ano 1392. Há uma lista dos judeus de Bordeaux do ano
1806. Há um documento que o cardeal de Mendoza apresentou ao rei Felipe II
da Espanha que, com o título de “El tizón de la nobleza española” [O tronco da
nobreza espanhola], da conta de que há só 48 famílias nobres (e não as mais
elevadas) que podem alegar pureza de sangue.

Em princípios do século XX foi publicado na Alemanha um livro chamado


“Gotha”, que citava os sobrenomes das casas reinantes, ou que em alguma época
haviam reinado. Mas no ano de 1912 também se publicara o “Semi-Gotha”, ou
seja, o “Gotha” semítico, onde se informava dos sobrenomes da nobreza
européia relacionados com a etnia de Sem. Ao que parece, a intenção de
Guilherme II era favorecer as bodas de pessoas da nobreza com judeus, ou
judias.
Existem também, em inglês, dois catálogos intitulados “Who is who in the world
jewry” [Quem é quem no judaísmo mundial] e “Anglo-jewish Notabilities”
[Anglo-judeus de notabilidade], onde, por exemplo, aparecem sobrenomes
como Belasco, Franco, Green (nada menos que 15, entre eles um rabino) e mais
de 25 Alexander.
E sem pretender o esgotamento da bibliografia, podem ser consultados ainda
“La France juive” [A França judaica], de Drumont; “Noms israelites en France”
[Nomes israelitas na França], de Paul Lévy; “Los judíos”, de Hilaire Belloc; e
“Los judíos”, de Roger Peyrefitte.

Somos então todos judeus desconhecidos? Como sabê-lo? Se alguém ignora


quem foram seus tataravôs e os tataravôs de seus tataravôs, é provável que
esteja na mesma situação dos sicilianos que pintavam sua casa de amarelo. Os
outros, os da nobreza ou das casas reinantes, que têm um minucioso registro de
cada ramo da sua
árvore genealógica, sabem muito bem que, em mais de uma oportunidade, as
alianças matrimoniais os aparentaram com o povo de Israel.

O mais prudente é ter uma atitude precavida, a não ser que, se padecemos da
paixão doentia do anti-semitismo, surja alguém que ao recordar algum próximo
ou distante antepassado nosso, pretenda exercer em nós essa mesma paixão
enferma. Para curar do espanto aos melindrosos da linhagem, creio ser
oportuno citar um texto de Roger Peyrefitte, do seu livro “Los judíos”.

O primeiro de janeiro de 1963, festa da Circuncisão de Nosso Senhor, o general


De Gaulle não pensava sem dúvida em seus antepassados, os judeus Kolb. O
chanceler Adenauer em seus antepassados, os judeus Adenauer, o presidente da
República italiana em seus antepassados, os judeus Segni, o rei da Suécia em
seu antepassado, o semi-judeu Bernardotte, o ex-rei da Itália em seus
antepassados maternos, os judeus montenegrinos Petrovich Niegoch, o
arquiduque Otto de Habsburgo em sua antepassada, a judia Enriquez, mãe de
Fernando o Católico, o rei dos belgas em sua antepassada, a judia Pereira, de
quem descende sua bisavó Bragança, o príncipe Bernhard dos Países Baixos em
sua antepassada a judia Pacheco, a rainha Isabel em seus antepassados
maternos, os judeus Bowes-Lyon, o duque de Edimburgo em seus antepassados,
os judeus Haucke, o presidente Kennedy não pensava em seus antepassados, os
judeus Kennedy, e o vice-presidente Johnson em seus antepassados, os judeus
Johnson. Era igualmente duvidoso que, em Louveciennes, o conde de Paris
pensasse na judia Pierleoni, de quem descende pelos Bourbons e por Juana de
Albret, na judia Älvarez de Toledo, de quem descendem pelos Médicis, e na
judia Henríquez, de quem descendem também por Ana da Áustria, nem que a
condessa de Paris pensasse na judia Pereira, de quem descende ela também
pelos Bragança. Em Havana, Fidel Castro não pensava provavelmente ele
tampouco em seus antepassados os judeus Castro; nem em Madrid, o general
Franco em seus antepassados, os judeus Franco, nem em Lisboa, o presidente
Salazar em seus antepassados, os judeus Salazar. Junto a estes ilustres
personagens, glória da conservação do prepúcio, o chefe do Estado de Israel,
Ben Zvi, parecia uma figura insignificante e sobretudo fazia o papel de
desmancha-prazeres, pois podia dizer a cada um: Acorda!".

* Teodosio Muñoz Molina é o autor do livro: "El enigma de los nombres y


apellidos. Su origen y significado", Lidium, Buenos Aires, 1996. O texto é o Cap.
II "Entre los judíos", págs. 25 a 28, e foi enviado por Leonardo Cherniak, de
Buenos Aires, Argentina, e José Zokner, de Curitiba. Traduzido por Szyja Lorber
para o jornal Visão Judaica.

http://www.visaojudaica.com.br/Outubro2005/artigos/17.html

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