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As crianças e a imagem de Deus: santidade na fé e na prática

Introdução

O tema de 2023 da Igreja Metodista evoca a santidade integral: pessoal e social. Sob as luzes
deste tema, as crianças abordarão, durante este ano, a santidade relacionada com a imagem
de Deus: “Sede santos, porque eu sou santo”. Assim, a santidade assume o aspecto da
identidade, pois fomos criados à imagem e à semelhança de Deus. Ao olhar para nós mesmos e
para as outras pessoas, deveríamos ser capazes de ver Deus refletido. Por isso, optamos por
tratar este tema usando um recurso de linguagem concreto para as crianças: a metáfora do
espelho.

Assim como em todas as realidades humanas, também na vida da criança encontramos não o
espelho da imagem de Deus, mas muitas vezes os cacos quebrados, ocasionados pelo pecado.
Crianças vítimas da violência, do descaso, do abandono, da rejeição. Crianças vivendo em
condições sub-humanas do trabalho escravo, da prostituição e até mesmo da venda de órgãos.
Crianças a quem é negado diariamente o direito à brincadeira, ao afeto, à educação e ao amor.
E mesmo quando parece que situações econômicas e sociais são adequadas, existem crianças
que são alienadas do cuidado e do carinho.

A consequência de todas essas coisas é uma deformação da imagem de Deus que elas
deveriam, assim como os adultos, portar. E a deformidade da imagem de Deus em nós abre
espaço para o afastamento de Deus e de sua graça. Como igreja do Senhor, é nossa tarefa
incessante cuidar para que o reflexo neste espelho seja o mais próximo possível do Deus que
nos criou. A santidade, portanto, é algo de fé e de prática para nossos pequenos e pequenas.

A pesquisadora Cristina Tomaz, ao escrever um artigo sobre o espelho como metáfora da


constituição da pessoa, nos informa que a palavra espelho vem “do latim speculum, significa
representação, reflexo. Originalmente, especular era contemplar o céu, as estrelas e outros
corpos celestes com o auxílio de um espelho. Pode ser visto como símbolo do saber, do
autoconhecimento, da verdade e da clareza”. Ela conta que é bem provável que as pessoas
tenham identificado seus primeiros reflexos na água e que os primeiros espelhos existentes,
provavelmente de origem egípcia, eram de bronze polido com areia e, portanto, não muito
nítidos. Somente em 1300 vão surgir os primeiros espelhos em vidro.

Com esta informação, é possível entender por que o apóstolo Paulo, em 1 Coríntios 13.12,
afirma: “Porque, agora, vemos como em espelho, obscuramente; então, veremos face a face.
Agora, conheço em parte; então, conhecerei como também sou conhecido”. Seu espelho
primitivo não lhe dava a clareza dos espelhos de hoje em dia. Ele usa essa comparação para
dizer que nosso reflexo é limitado. Temos essa experiência prática ainda hoje, quando
compramos um espelho com defeito e vemos nossa imagem distorcida. Podemos pensar que
somos algo que não somos!

Além disso, as crianças, ao interagir pela primeira vez com os espelhos, não discernem que se
trata de seu próprio reflexo. Vemos inúmeras histórias de pais e mães contando divertidos
momentos desta descoberta. A criança age como se o reflexo fosse algo completamente
distinto dela mesma e fica surpresa com a “imitação” que vê. Algumas vezes isso a assusta,
mas também desperta a sua curiosidade. Com o tempo, ela começa a identificar-se com o que
vê e a agir naturalmente diante do espelho.
É uma metáfora poderosa: queremos que a criança cresça na sua identificação com Cristo,
resgatando, em sua própria experiência de fé, sua similaridade com o Criador, de modo a ser
cada vez mais natural para ela agir e parecer-se com Cristo. A visão do espelho paulino se
amplia até que vejamos face a face, gerando plenitude de conhecimento tanto de Cristo como
de nós mesmos, como filhos e filhas amados!

Como metáfora, o espelho também ensina coisas poderosas para nós. O risco de ficar
autocentrado, como na antiga história de Narciso, que olhou tanto para seu reflexo que
acabou morrendo em egoísmo. Muitas histórias da ficção, dos mais diversos povos no mundo,
usam o espelho para falar sobre isso. É um ensino sobre precisarmos olhar a nós mesmos sob a
luz correta, para que também possamos contemplar as outras pessoas. Olhar no espelho é
uma figura de linguagem que utilizamos muito quando as pessoas têm uma autopercepção de
si mesmas que parece exaltada ou orgulhosa: “Te olha no espelho!”, diz a linguagem popular.
Portanto, o espelho também pode ser uma comparação para que sondemos o nosso próprio
coração, ensinando humildade e quebrantamento.

Cristina Tomaz conclui, dizendo: “Assim, visto como metáfora, historicamente o espelho e suas
representações não esgotam seu complexo simbolismo, servindo como inspiração a poetas
escritores, pintores, cineastas, pensadores”.

Imagem e semelhança de Deus: a teologia de Gênesis

Diz a Bíblia que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança. Mas o que isso significa?
Esta pergunta deve ser respondida considerando-se dois momentos da existência humana: a
imagem e semelhança de Deus antes da queda e depois dela, quando o ser humano se torna
um pecador, por causa da desobediência a Deus.

a) Antes da queda, um reflexo nítido

No ato da criação humana, em Gênesis 1.26, Deus afirma: “Façamos o homem à nossa
imagem, conforme a nossa semelhança...”. Assim, o ser humano foi feito santo, como santo é
Deus que o criou, foi feito misericordioso, como misericordioso é Deus, perfeito, como é o
autor de todas as coisas perfeitamente criadas. Como Deus é amor, assim o ser humano,
vivendo em amor, viveu em Deus e Deus nele. Deus o fez como imagem da sua própria
eternidade, incorruptível, puro. O ser humano não conheceu o mal de qualquer espécie ou
grau, mas era interna e externamente sem pecado. É isso o que João Wesley, em seu ensino,
definiu como imagem moral de Deus no ser humano.

Como Deus, o ser humano também foi dotado de entendimento – a capacidade de apreender
todas as coisas e de fazer um julgamento a respeito das mesmas. Por isso, Deus afirma em
Gênesis 1.26, na segunda parte: “Tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos
céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam
pela terra”. O ser humano recebeu de Deus, vontade, a qual se manifesta em várias afeições e
paixões. É o que a teologia wesleyana entende como sendo a imagem política do ser humano,
isto é, sua capacidade criativa para administrar o mundo criado.

E, em último lugar, foi dotado de liberdade de escolha. O espírito de vida que Deus dá ao ser
humano o coloca na condição de decidir sobre sua própria existência. Essa capacidade, ou livre
arbítrio, é definida por Wesley como sendo a imagem natural de Deus no ser humano. Por isso
mesmo, Deus dá à humanidade um único mandamento para seguir, obedientemente, ou não.
Do contrário, não haveria razão de escolha para o ser humano. Deus concedeu sua imagem ao
ser humano, pela qual teria liberdade para escolher seu caminho, ter domínio de si e de todas
as coisas criadas. Antes da queda, essa imagem moral, política e natural é como um espelho
límpido no qual se podem ver as expressões, a cor da pele e os detalhes do rosto de quem se
mira nele...

b) Depois da queda, um reflexo ofuscado

Mas, depois da queda (Gn 3) quando Adão, em quem toda a humanidade estava contida,
livremente preferiu o mal ao bem, como fica a imagem e semelhança de Deus? É preciso
salientar que o ser humano preferiu fazer a sua própria vontade a fazer a do seu Criador. Não
há como negar que essa experiência caminha conosco. Na maioria das vezes, Deus é
secundário na agenda da nossa vida.

Entretanto, mesmo na condição de pecador, nós, metodistas, entendemos que a imagem e


semelhança de Deus ficou preservada, em parte, no ser humano. É claro que não se pode mais
falar em atributos de santidade, pureza, amor e eternidade em sentido pleno na vida humana.
Wesley mesmo afirma que essa parte foi perdida.

No entanto, há aspectos da imagem divina ainda presentes no ser humano, herdadas de Deus.
No aspecto da imagem natural, o ser humano é o único ser capaz de entrar em contato, em
relacionamento com Deus. A imagem natural de Deus no ser humano se expressa nas suas
capacidades de razão, vontade e liberdade.

A imagem política ainda se evidencia pela capacidade de liderança e administração. Daí vêm os
atributos humanos do juízo, da decisão e do poder de mando. E, por último, a imagem moral,
que consiste na capacidade humana de sociabilidade e construção de relacionamentos
alicerçados em valores divinos como amor, justiça e paz. Embora não plenas, tanto a imagem
moral quanto a política podem ser percebidas nos seres humanos, afirma João Wesley. E a
graça de Deus busca operar na vida humana de modo a recuperar a imagem perdida, partida,
desfocada ou desbotada pelo pecado!

c) Restaurando a imagem

Como se faz com uma foto cujos detalhes se perderam no tempo, a graça de Deus opera de
modo preveniente, justificador e santificador na vida humana. O plano de Deus, em enviar
Jesus Cristo a este mundo, consiste exatamente em dar uma nova oportunidade ao ser
humano de restabelecer a divina imagem de santidade, pureza, perfeição e amor
incondicional, perdidas com a queda.

Deus promete um novo céu e uma nova terra, em que sua imagem e semelhança serão
restituídas inteiramente a todos os que crerem e com ele firmarem um novo pacto, baseado
em Jesus Cristo, seu filho. Tudo depende do querer humano em aceitar a proposta de Deus.
Pela ressurreição em Cristo Jesus, Deus promete uma vida no paraíso com Deus, como no
princípio!

Por fim: um adendo às referências do universo infantil usadas no selo

Como há uma frase amplamente conhecida do público infantil, brincamos com ela ao
aproximar as crianças deste espelho a que as convidamos. Na antiga história, a rainha perde
seu próprio valor, destrói outras pessoas e ao final destrói a si mesma porque o espelho não
mostra o reflexo dela, mas a põe em comparação a outra mulher, altera sua percepção de si
mesma.
Por isso, mudamos a tradicional pergunta, para que ela não se volte a nós mesmos, mas ao
propósito de nossa vida como filhos e filhas de Deus: quando olhamos no espelho, vemos a
imagem de Deus ou apenas a nós mesmos? É um convite ao quebrantamento numa linguagem
perfeitamente compatível com o universo infantil.

As crianças são habituadas ao universo da imaginação e os maiores escritores de todos os


tempos recorrem a este tipo de narrativa para exemplificar, fortalecer e clarear os
ensinamentos morais e comportamentais que querem destacar.

A própria Bíblia é repleta de histórias de fantasia e imaginação. O apólogo de Jotão, quando as


árvores pedem um rei. As próprias parábolas de Jesus trazem diversos elementos que eram
correntes em seu tempo. Os próprios judeus têm muitas histórias fantasiosas e mirabolantes,
com autores e autoras altamente imaginativos, escrevendo para crianças, desde os tempos de
Jesus.

As narrativas comumente chamadas de contos de fadas são feitas para provocar reflexões
sobre comportamentos nocivos em sociedade. No caso que usamos, o exemplo da rainha má é
claramente para ser evitado por todo e qualquer leitor. Nunca poderemos focar apenas em
nós mesmos e isso ser bom. É preciso garantir que ao nos aproximarmos do espelho,
tenhamos clara a nossa identidade e que ele reflita isso!

Temos diversos escritores cristãos que utilizaram desses recursos para proclamar o Evangelho
sob roupagens ricas de fantasia e imaginação. Um deles foi Tolkien, escritor cristão que
escreveu “O Senhor dos anéis”. Certa vez, explicando a força da fantasia para a proclamação
do Evangelho, ele escreveu: “O Evangelium não ab-rogou as lendas; ele as consagrou, em
especial o ‘final feliz’. O cristão ainda precisa trabalhar, com a mente e com o corpo, sofrer, ter
esperança e morrer; mas agora pode perceber que todas as suas inclinações e faculdades têm
um propósito, que pode ser redimido. É tão grande a generosidade com que foi tratado que
talvez agora possa, razoavelmente, ousar imaginar que na Fantasia poderá de fato ajudar o
desabrochamento e o múltiplo enriquecimento da criação. Todas as histórias poderão tornar-
se verdade; e, no entanto, finalmente redimidas, poderão ser tão semelhantes e
dessemelhantes às formas que lhes damos quanto o Homem, finalmente redimido, será
semelhante e dessemelhante ao decaído que conhecemos”.

Outro famoso escritor de fantasia, o pensador e teólogo Gilbert Chesterton, afirma: “(...)
podemos ver, com facilidade, uma obscura e extraordinária opinião, a opinião de que os
contos de fadas são algo fantástico, artificial, algo da mesma natureza de um gracejo, e, é
claro, o exato oposto é verdadeiro. Os contos de fadas são a mais antiga, séria e universal
forma de literatura. (...) Toda a raça humana que vemos vagando em todos os lugares é uma
raça mentalmente alimentada pelos contos de fadas. Isso é tão certo quanto o fato de ser uma
raça fisicamente alimentada pelo leite. (...) Para começo de conversa, mesmo com relação ao
mero fato físico, os contos de fadas são um retrato muito melhor da vida permanente de
grande parte da humanidade do que a ficção mais realista. A mais realista das ficções lida com
cidades modernas — ou seja, com um curto período de transição numa pequena esquina do
menor dos quatro continentes. Os contos de fadas lidam com a vida de campo, de cabanas e
palácios, daquelas simples relações com o gado e do tipo que, na verdade, são a experiência
de grande número de homens no maior número de séculos.”

Por fim, o escritor de fantasia e teólogo mais conhecido do público evangélico, C. S. Lewis, ao
detalhar na obra “Três maneiras de escrever para crianças” seu método de escrita, afirmou:
"Em quase todas as épocas e lugares, os contos de fadas não eram feitos especialmente para
as crianças nem desfrutados exclusivamente por elas. Só se deslocou para a escola maternal
quando caiu de moda nos círculos literários (...). E todos aqueles que a apreciam, sejam jovens
ou velhos, provavelmente a apreciam pela mesma razão. (...) O conto de fadas é acusado de
dar uma falsa impressão do mundo em que vivem. Na minha opinião, porém, nenhum outro
tipo de literatura que as crianças poderiam ler lhes daria uma impressão tão verdadeira. As
histórias infantis que se pretendem 'realistas' tendem muito mais a enganar as crianças.
Quanto a mim, nunca achei que o mundo real pudesse ser igual aos contos de fadas. Acho que
eu esperava que a escola fosse igual às histórias de escola. As fantasias não me enganavam, as
histórias de escola, sim..." E expressa um desejo: “Um dia, você será velho o bastante para
voltar a ler contos de fadas”.

Referências

Revista Em Marcha, São Paulo: Editora Cedro, 2009 (lição de autoria da bispa Hideide Brito
Torres e do pr. Otávio Júlio Torres)

https://centropsicanalise.com.br/2019/02/20/maria-macedo-tomaz-cristina-espelho-uma-
reflexao-sobre-a-constituicao-do-eu/

https://www.sociedadechestertonbrasil.org/a-educacao-pelos-contos-de-fadas/

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