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O Senhorio de Cristo

Vivemos hoje numa sociedade dualista, a qual faz uma diferenciação entre “sagrado” e
“profano”, boa parte dessa visão é advinda do gnosticismo, corrente filosófica iniciada por
volta do séc. II d.C, a qual entendia que Deus criou a matéria através de um demiurgo, e não se
envolvia ativamente com a criação, sendo assim, tudo aquilo que não fosse voltado à
espiritualidade era intrinsicamente mal.

Outra corrente que tinha um pensamento parecido era o platonismo, o qual acreditava num
dualismo entre a esfera mental ou intelectual (o mundo das formas de Platão), no qual as
ideias são perfeitas, imateriais e eternas, e a esfera material do nosso mundo concreto, o qual
é composto de cópias imperfeitas, materiais e corruptíveis dessas ideias perfeitas. Tal
pensamento influenciou teólogos como Orígenes e Agostinho, acentuando-se então, esse
dualismo na história da igreja.

Por volta do ano 140 d.C, influenciados por uma literatura apócrifa, chamada “O Pastor de
hermas”, muitos cristãos começaram a pensar numa ideia de uma moralidade superior e outra
inferior, passando então, a enaltecer a abnegação, renúncia ao matrimônio, uma fuga ao
mundo exterior, isolamento em lugares remotos. Após isso, começaram a surgir os chamados
“mosteiros cristãos”, onde estes eremitas ou monges, viviam uma vida comum, regrada,
comiam, trabalhavam e adoravam, fazendo também, votos de pobreza, castidade e
obediência. Sendo então, movidos por um pensamento de que o cristão deveria: “entrar para
um mosteiro, separar-se do mundo e abandonar relações comuns da vida social”, pois a “alma
estaria acorrentada à carne como um prisioneiro a um cadáver”, fazendo assim, com que
durante toda a Idade Média, a maioria dos líderes eclesiásticos, tivessem esse pensamento de
repúdio pelas coisas materiais.

Outro movimento cristão, que tinha um pensamento semelhante a este era um movimento
pós reforma protestante, chamado de “anabatismo”, tal movimento pregava que eram “a
verdadeira igreja” em meio a um mundo perverso, se recusando assim a portar armas, ocupar
cargos políticos e prestar juramentos.

No entanto, uma cosmovisão cristã, nos ajuda a entender corretamente como o cristão deve
se portar frente a tais extremos, de acordo com “Col 1:16”, nós vemos a criação de todas as
coisas, sejam visíveis e invisíveis pelo Deus triúno, com o objetivo de serem para louvor e glória
de Cristo, sendo assim, como está escrito em Gênesis, tudo que Deus criou, Ele viu que “era
bom”, toda a matéria criada, mesmo manchada pelo pecado, proclama a glória de Deus
(Salmos 19:1), sendo assim, não é algo intrinsicamente mal, conforme relatado por estas
correntes. Sendo assim, o papel do cristão não é se isolar do mundo ou da vida em sociedade,
mas ser um agente de reconciliação dessa criação com Deus (2 Coríntios 5:18-19), sabendo
que, toda criação um dia será restaurada por completo na vinda de Cristo (Romanos 8:19), mas
que hoje Deus cumpre o propósito de restaurá-la através da atuação da igreja, a qual é a figura
dessa sociedade redimida, como também sal e luz do mundo.

Outra atitude errônea dos cristãos atuais é usar o termo gospel nas coisas para que elas sejam
consideradas espirituais. Lutero, por sua vez, soube bem explicar essa questão, fazendo um
apelo para que a igreja fosse “profana”, o que significa no sentido da palavra “fora do templo”,
segundo essa concepção, a igreja profana é a que sai para fora do templo e entra no mundo,
falando então que, por muitas vezes os cristãos querem se refugiar no templo, como no
Cenáculo, mas Jesus foi aquele que os mandou aos “confins da terra”, pois Jesus não é apenas
Senhor do espiritual, mas de todas as coisas “visíveis e invisíveis”, tendo o propósito para a
matéria, pois, Jesus “amou o mundo”, que foi local e propósito de sua encarnação, o qual está
sendo redimido, dessa forma, apoiado no “sacerdócio universal de todos os crentes” Lutero
dizia que um trabalho como de um sapateiro, não é menos espiritual do que de um pregador,
pois ambos estão cumprindo sua vocação no reino de Deus, e seu chamado para ser parte da
igreja, a qual atua dentro e fora do templo, pois Cristo é Senhor de todas as coisas.

Imago Dei

Segundo o relato das escrituras, os seres humanos foram criados, conforme a imagem e
semelhança de Deus (Gên 1:26-27), esta imagem então, envolve características como: serem
detentores de domínio, habilidades de mostrar e dar amor e comunicar, como também,
possuírem conhecimento.

Além disso, dizer que os seres humanos possuem a “imagem e semelhança” de Deus é dizer,
que embora sejam menores do que Deus, possuem atributos morais, semelhantes aos de Deus
como: sensibilidade ética e moral, consciência e vida espiritual, e não características corpóreas
semelhantes à dele. No mundo antigo era comum, um rei erguer uma imagem de si mesmo, de
pedra ou de outro metal, para representar a sua soberania sobre aquele determinado
território, sendo assim, a nossa dignidade enquanto seres humanos, não provém daquilo que
fazemos ou pelas decisões que tomamos, mas por receber esse dom gracioso de Deus, o de
sermos dotados com sua imagem.

Dessa forma, entendemos que por causa dessa imagem, toda vida humana possui uma
dignidade singular, sendo de um valor incalculável para Deus, não podendo se dizer que uma
vida vale mais que outra, pois cada ser humano é uma obra prima da criação de Deus. Dessa
forma, a forma como devemos tratar uns aos outros, deriva do entendimento dessa imagem e
semelhança.

Em Salmos 8:5 vêmos que o homem foi coroado de “glória e honra”, a glória significando a
importância e plenitude conferida à humanidade, e a honra, expressando a beleza e o
resplendor do dom divino. Os seres humanos também, foram constituídos por Deus como
administradores das obras de suas mãos, pois tudo foi posto aos seus pés (Salmos 8:6-8), de
forma, que os seres humanos seriam como mordomos de Deus, administrando a criação e
usando esta em benefício próprio, construindo assim, utensílios para uma vida melhor,
cidades, tecnologia, agricultura, exploração de minérios, tratamentos médicos, tudo isso,
utilizando os recursos naturais, no entanto, não usando-os de maneira desordenada, mas
sendo a imagem de Deus, o qual é Senhor sobre nós, os seres humanos, como senhores da
natureza, devem agir com o cuidado de Deus para conosco, servindo-se dela, mas como
guardiões da criação terrena, mantendo a ordem na natureza, nutrindo-a em todas as suas
formas, sabendo que iremos prestar contas a Deus, se cumprimos corretamente o papel para o
qual Ele nos designou.

Dizer que possuímos a “imagem de Deus” é dizer que fomos chamados para uma estreita e
particular comunhão com Deus, possuindo ainda, atributos como: liberdade, para tomar
decisões, até mesmo contrárias à vontade de Deus e virtude, que significa: refletir Deus como
um espelho, particularmente na bondade e no amor. Possuindo também, a capacidade de
sermos seres sociais, ou seja, fomos criados para o relacionamento com Deus e com outros
seres humanos, devido a isso, Deus criou a mulher para ser uma companheira para Adão, o
Criador, então uma parceira completa para Adão, para lhe complementar.
Dessa forma, a criação da mulher foi de uma ajudadora que lhe seja igual, ou seja, homem e
mulher foram criados à imagem e semelhança de Deus, ambos sendo chamados, para dominar
a terra e cooperar com o Criador no desenvolvimento de seus recursos para o bem da
humanidade. No entanto, os papeis de “masculino e feminino”, apontam para o
relacionamento de amor que une às pessoas da trindade, onde mesmo sendo iguais em poder,
glória e autoridade, há submissão em amor do Filho ao Pai e do Espírito Santo ao Filho e ao
Pai, consequentemente há esta mesma submissão da mulher para com o homem.

Cristianismo e Cultura

O pecado do homem afetou num primeiro momento a vida individual de cada ser humano,
fazendo-o este se afastar de Deus, gerando assim, a morte, mas essa morte não é só a de
indivíduos, mas também, da sociedade, ou seja, uma decadência da cultura em todos os
sentidos: valores, ideais, moralidade e beleza, gerando até mesmo a destruição física do lugar,
como foi o caso de Sodoma e Gomorra, desta forma, Deus nos chama para sermos sal e luz do
mundo, salgando e iluminando a sociedade, trazendo benefícios a cultura.

Isso era o que ocorria no tempo da narrativa bíblica, quando por exemplo, no tempo onde
vitoriosos eram aqueles que utilizavam de força bruta, os 10 mandamentos faziam um enorme
contraste, como também, quando no contexto cultural do novo testamento, os valores de
força e violência do Império Romano, contrastavam com os valores trazidos por Cristo.

Muitos dos valores que possuímos hoje na sociedade advém da graça comum de Deus
derramada sobre uma cultura judaico-cristã, sendo desta que advém o nosso pensamento de
que, os pais não devem matar seus filhos ou abortar, pois no período do império romano era
comum o abandono de crianças ou morte por serem meninas ou deficientes, outros valores
que estão presentes na sociedade fruto do cristianismo é: o amor como valor supremo, o
perdão como prática necessária, o respeito à vida humana, ao autossacrifício, valorização da
mulher e das crianças.

No entanto, nos últimos tempos, muitos cristãos motivados por uma má teologia, colocando
um foco na volta de Cristo, dizem que o cristão deve alienar-se da vida em sociedade,
dedicando-se apenas ao evangelismo e adoração a Deus, fato é, por conta disso, a cultura
passou a ser tomada pelo humanismo, o qual colocou o “homem como centro do universo”,
utilizando-se de cosmovisões reducionistas, que enxergam o problema do homem não como o
pecado, mas como outras questões, como é o caso do marxismo, pragmatismo, niilismo, etc.
Dessa forma, a sociedade tem sido absorta em corrupção, guerras e disputas ideológicas de
um ser humano para com outro, os quais motivados pela ira, querem chegar em um paraíso
utópico nessa terra.

Os cristãos por sua vez, não devem agir dessa forma, pois os grandes nomes do passado que
influenciaram positivamente a sociedade, utilizaram a volta de Jesus e o olhar para eternidade,
não como uma forma de afastar-se deste mundo, mas de propagarem os princípios deste reino
que viria, já neste tempo presente, pois Deus nos chama para enquanto tivermos
oportunidades, não desistirmos, mas mantermos sempre a esperança de dias melhores,
pregando todo o propósito de Deus (Atos 20:27), fazendo boas obras e amando nosso próximo
como a nós mesmos, o que significa ter uma postura ativa em todas as áreas da sociedade,
seja nos lares, na igreja, nos hospitais, nas escolas, empresas, governo, literatura e artes, etc.

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