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Palavras chaves:

Imagem e semelhança, Domínio sobre a natureza, Personalidade, Justiça e


santidade, Espiritualidade

Assuntos:
Cosmovisão Reformada

Tentando pensar e viver como um Reformado:


Reflexões de um estrangeiro residente (14)
3) A Imagem e Semelhança Criadas
A essência da natureza humana é seu ser
[criado] à imagem de Deus. – Herman
1
Bavinck.

Aqui, a título de advertência, devemos frisar que temos algumas pistas


bíblicas – suficientes, é verdade – para orientar-nos quanto ao significado da
imagem e semelhança de Deus no homem. No entanto, estas indicações não são
sistemáticas ao ponto de possibilitar um estudo exaustivo e definitivo sobre o
assunto.2

Calvino afirma que existem alguns teólogos que procedem com um pouco mais
de sutileza e dizem que a imagem de Deus não é corpórea, contudo erram ao
manterem “que a imagem de Deus está no corpo do homem, porque sua admirável
estrutura brilha aí fulgurantemente”.3 No entanto, “o homem foi feito conforme a
Deus não mediante influxo de substância, mas pela graça e poder do Espírito”.4

Assim sendo, o homem não foi feito da mesma substância de Deus, apenas foi-
lhe concedido alguns de seus atributos. Continuando esta linha de raciocínio, diz:
“Contemplando a glória de Cristo, estamos sendo transformados, como pelo Espírito
do Senhor, Que, certamente, opera em nós, na mesma imagem Sua, contudo não
assim que nos renda consubstanciais a Deus”.5

1
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 540.
2
Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2,
p. 542-543.
3
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, v. 1, (Gn 1.26), p. 94.
4
João Calvino, As Institutas, I.15.5.
5
João Calvino, As Institutas, I.15.5.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 2

Homem e mulher foram criados por Deus segundo o próprio modelo divino (Ef
4.24).6 Isso não significa que o homem seja fisicamente igual a Deus. Deus não tem
forma, é espírito (Jo 4.24),7 nem significa que seja da mesma essência uma vez que
ela é incomunicável.8 Mas, na condição de criatura, ele corresponde a Deus como
tal.9

A imagem e semelhança refletem, em Adão, características próprias por


intermédio das quais ele poderia relacionar-se consigo mesmo, com o mundo e com
Deus.

A imagem de Deus é uma precondição essencial para o seu relacionamento com


Deus, e expressa, também, a sua natureza essencial: o homem é o que é por ser a
imagem de Deus. Não existiria humanidade senão pelo fato de ser a imagem de
Deus. Essa compreensão traz profundas implicações éticas na teologia de Calvino 10
e de Schaeffer (1922-1984).11

Barth (1886-1968), com propriedade, escreveu: “Ele não seria homem se não
fosse a imagem de Deus. Ele é a imagem de Deus pelo fato de que ele é homem”. 12

6
“Deus é o protótipo do qual o homem e a mulher são meras cópias, réplicas (Selem, ‘estátua ou cópia lavrada
ou trabalhada’) e fac-símiles (demût, ‘semelhança’)” (Walter C. Kaiser Jr. Teologia do Antigo Testamento, p.
78). Para uma interpretação diferente do conceito de imagem e semelhança, apontando na direção de o
homem ser “como” Deus, seu representante apenas, nada indicando ontologicamente, ver: Eugene H. Merrill,
Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Shedd Publicações, 2009, p. 175ss. Para uma crítica a esta
posição, veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999,
p. 84ss.
7
J. Gresham Machen, El Hombre, Lima: El Estandarte de la Verdad, 1969, p. 145.
8
Veja-se: R. L. Dabney, Lectures in Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1985,
p. 293.
9
“O homem foi criado à imagem de Deus. Ele é, portanto, semelhante a Deus em todas as coisas nas quais
uma criatura pode ser como Deus” (Cornelius Van Til, Apologética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2010,
p. 35).
10
Veja-se: Hermisten M.P. Costa, João Calvino 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo:
Cultura Cristã, 2009.
11
“Estou convencido de que uma das grandes fraquezas na pregação evangélica nos últimos anos é
que nós perdemos de vista o fato bíblico de que o homem é maravilhoso. (...) O homem está
realmente perdido, mas isso não significa que ele não é nada. Nós temos que resistir ao humanismo,
mas classificar o homem como um zero não é o caminho certo para resistir a ele. Você pode enfatizar
que o homem está totalmente perdido e ainda ter a resposta bíblica de que o homem é realmente
grande. (...) Do ponto de vista bíblico, o homem está perdido, mas é grande” (Francis A. Schaeffer,
Morte na Cidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 60,61). “Jamais estaremos em condições de
tratar as pessoas como seres humanos, de atribuir a elas o mais alto nível de humanidade
verdadeira, a menos que realmente conheçamos a sua origem – quem essas pessoas são. Deus diz
ao homem quem ele é. Deus nos diz que Ele criou o homem à sua imagem. Portanto, o homem é
algo maravilhoso. (...) A Bíblia diz que você é maravilhoso porque foi feito à imagem e semelhança de
Deus, mas que você é imperfeito, porque em certo espaço-temporal da História, o homem caiu”
(Francis A. Schaeffer, A Morte da razão, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 34). São muito oportunas
e sensíveis as analogias feitas por Olyott. (Veja-se: Stuart Olyott, Jonas - O missionário bem-
sucedido que fracassou, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2012, p. 75).
12
Karl Barth, Church Dogmatics, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2010, III/1, p. 184.
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Esta é a nossa existência autêntica e toda inclusiva. Deste modo, escreve


Spykman (1926-1993), “ser humano é ser a imagem de Deus. Portanto, imago Dei
descreve nosso estado normal. Não assinala algo que está dentro de nós, ou a algo
acerca de nós, senão a nossa humanidade”.13

A imagem de Deus não é algo colado ou anexado a nós podendo ser tirado ou
recolocado. Antes, é algo essencial ao nosso ser. Interpreta Erickson: “A imagem de
Deus é intrínseca à humanidade. Não seríamos humanos sem ela. De toda a
criação, somente nós somos capazes de ter um relacionamento pessoal consciente
com o Criador e de reagir a Ele”.14

Por conseguinte, o homem não simplesmente possui a imagem de Deus, como


algo externo ou acessório, antes, ele é a própria imagem de Deus.15

A Confissão de Westminster (1647), capítulo IV, seção 2, declara:

Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e


fêmea, com almas racionais e imortais, e dotou-os de inteligência, retidão e
perfeita santidade, segundo a sua própria imagem, tendo a lei de Deus
escrita em seus corações e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade
de transgredi-la, sendo deixados à liberdade de sua própria vontade, que
era mutável. Além dessa escrita em seus corações receberam o preceito de
não comerem da árvore da ciência do bem e do mal; enquanto obedeceram
a este preceito, foram felizes em sua comunhão com Deus e tiveram
domínio sobre as criaturas.

Na sequência, estudaremos algumas características do homem como imagem de


Deus, dentro de uma perspectiva estrita:

1) Personalidade: O homem foi criado como um ser pessoal que tem


consciência e determinação própria.16 Diferentemente de todos os outros animais,
faz a distinção entre o eu, o mundo e Deus. Daí a capacidade de se relacionar com
Deus (Gn 3.8-14; Jr 29.13; Mt 11.28-30) e com o seu semelhante, e pode entender

13
Gordon J. Spykman, Teología Reformacional: Un Nuevo Paradigma para Hacer la Dogmática, Jenison,
Michigan: The Evangelical Literature League, 1994, p. 248-249. Do mesmo modo: Herman Bavinck,
Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 542,564.
14
Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 207.
15
Veja-se: Morton H. Smith, Systematic Theology, Greenville, South Carolina: Greenville Seminary Press,
1994, v. 1, p. 238.
16
“O caráter eternamente pessoal de Deus forma o fundamento último para o significado das pessoas finitas
que Ele criou” (Vern S. Poythress, Redimindo a filosofia: uma abordagem teocêntrica às grandes questões,
Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 55).
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(racionalmente) a vontade de Deus, fazer-se entender e avaliar todas as coisas (Gn


1.28-30; 2.18,19).17

2) Justiça e Santidade: O homem não foi criado como um ser neutro entre o
bem e o mal. Ele foi formado bom, santo, como Deus o é de forma absoluta. Daí
que, segundo a própria avaliação do seu Autor, tudo “era muito bom” (Gn 1.31). Ele
foi formado em “retidão” e “verdadeira santidade” (Ec 7.29; Ef 4.24; Cl 3.10). 18 O
homem tinha condições de entender a Palavra de Deus, a sua lei. 19 A santidade e
retidão originais do homem não significavam simplesmente inocência, mas o desejo
inerente de ter maior comunhão com Deus e agradar-lhe. Havia uma perfeita
harmonia entre o seu ser e a Lei Divina. O homem conhecia e tinha prazer na
vontade divina. A justiça e a santidade eram derivadas de Deus, dependiam
fundamentalmente desta sua comunhão com o Criador. Logo, ao mesmo tempo em
que não era impossível ao homem pecar, também não havia nele nada que o
constrangesse a fazê-lo.20

O homem é a “expressão mais nobre e sumamente admirável de sua justiça, e


sabedoria e bondade”, conclui Calvino.21 Ele também explica o que significa “retidão”
e “verdadeira santidade”:

Portanto, por esta palavra se designa a perfeição de toda nossa natureza,


como apareceu quando Adão foi dotado com um reto juízo, tinha os afetos
em harmonia com a razão, tinha todos os seus sentidos íntegros e bem
22
regulados e realmente excedia em tudo o que é bom.
Do quê concluímos que, de início, a imagem de Deus foi conspícua na luz
da mente, na retidão do coração e na saúde de todas as partes do ser
23
humano.

17
“28 E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai
sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra. 29 E disse Deus
ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra e
todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. 30 E a todos os animais da
terra, e a todas as aves dos céus, e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes
será para mantimento. E assim se fez” (Gn 1.28-30). “18 Disse mais o SENHOR Deus: Não é bom que o
homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea. 19 Havendo, pois, o SENHOR Deus formado
da terra todos os animais do campo e todas as aves dos céus, trouxe-os ao homem, para ver como este lhes
chamaria; e o nome que o homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome deles” (Gn 2.18-19).
18
“Eis o que tão-somente achei: que Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias” (Ec 7.29).
“E vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Ef
4.24). “E vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem
daquele que o criou” (Cl 3.10).
19
Veja-se: Donald J. Wiseman, Yashar: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia
do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 684. Olivier segue esta interpretação. Ver: Hannes
Olivier, Ysr: In: Willem A. VanGemeren, org. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do
Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 564.
20
Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p.
590.
21
João Calvino, As Institutas, I.15.1.
22
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, v. 1, (Gn 1.26), p. 94-95.
23
João Calvino, As Institutas, I.15.4. “O primeiro homem foi criado por Deus em retidão; em sua queda, porém,
arrastou-nos a uma corrupção tão profunda, que toda e qualquer luz que lhe foi originalmente concedida
ficou totalmente obscurecida” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 62.9), p. 579).
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3) Liberdade: Adão e Eva dispunham de plena liberdade dentro do que lhe foi
permitido escolher, não havendo em sua natureza a semente do pecado para
influenciá-los à desobediência, ao uso inadequado desta liberdade. C.S. Lewis
coloca a questão nestes termos: “Se uma coisa é livre para ser boa, também é livre
para ser má. E o livre-arbítrio foi o que tornou possível o mal. Por que Deus deu
então o livre arbítrio? Porque o livre-arbítrio, apesar de tornar o mal possível, é
também a única coisa que faz com que todo amor, bondade ou alegria valham a
pena. Um mundo de autômatos, de criaturas que trabalhassem como máquinas, não
valeria a pena ser criado”.24

Liberdade pressupõe responsabilidade. Deus criou o homem livre e responsável


pelos seus atos (Gn 2.16,17; 3.6-24).25 Aliás, seja qual for a escolha que ele faça,
não perderá a sua responsabilidade ainda que sua resposta seja a negação do uso
das capacidades que lhe foram conferidas, ou a negação do próprio Deus Criador. 26
Agostinho (354-430) coloca a questão em termos poéticos: “A pena me acompanha,
porque me deste livre-arbítrio. Se, pois, não me tivésseis dado o livre-arbítrio, e
desta forma não me tivesses feito melhor do que os animais, não sofreria justa
condenação ao pecar. Então, pelo livre-arbítrio me elevaste, e por justo juízo me
derrubaste”.27

4) Conhecimento Espiritual: Cl 3.10.28 Adão, antes de pecar, tinha uma


compreensão genuína a respeito de Deus. No entanto, “após a sua rebelião, ficou
privado da verdadeira luz divina, na ausência da qual nada há senão tremenda
escuridão”, comenta Calvino.29 O seu conhecimento tornou-se totalmente nulo
quanto à salvação.30

É bom lembrar que a compreensão não era exaustiva visto ser Deus infinito e
inesgotável e, também, que Adão ignorava, em seu primeiro estado, aspectos do ser
de Deus, tais como o seu amor redentor, o seu plano salvífico, a sua misericórdia,
etc. A queda trouxe sérias consequências: a morte e a escravidão.

“Como a morte espiritual não é outra coisa senão o estado de alienação em que a
alma subsiste em relação a Deus, já nascemos todos mortos, bem como vivemos
mortos até que nos tornamos participantes da vida de Cristo”, conclui Calvino.31
24
C.S. Lewis, A essência do Cristianismo autêntico, São Paulo: Aliança Bíblica Universitária, (1979), p. 26.
25
Veja-se: Confissão de Westminster, IX.1-2.
26
Vejam-se: Emil Brunner, A Doutrina Cristã da Criação e da Redenção, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, v.
2, p. 86-88; Gerard van Groningen, Criação e Consumação, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, v. 1, p. 85.
27
Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 93), 1998, (Sl (102)101.11), v. 3, p. 22.
28
Vejam-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, p. 40-41; Charles Hodge, Teologia
Sistemática, São Paulo: Hagnos Editora, 2001, p. 557-558.
29
João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.18), p. 137.
30
“Depois da Queda do primeiro homem, nenhum conhecimento de Deus valeu para a salvação sem o
Mediador” (João Calvino, As Institutas, II.6.1).
31
João Calvino, Efésios, (Ef 2.1), p. 51. “O gênero humano, depois que foi arruinado pela queda de Adão, ficou
não só privado de um estado tão distinto e honrado, e despojado de seu primevo domínio, mas está também
mantido cativo sob uma degradante e ignomínia escravidão” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo:
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O homem perdeu totalmente seu discernimento espiritual: ele está morto! O


pecado traz em um outro estágio a idolatria visto que o homem sozinho não
consegue se relacionar com Deus, e até mesmo ignora o Deus verdadeiro (At 17.22-
29).

Comênio (1592-1670) comenta:

É evidente que todo o homem nasce apto para adquirir conhecimento das
coisas: Primeiro, porque é imagem de Deus. Com efeito, a imagem, se é
perfeita, apresenta necessariamente os traços do seu arquetípico, ou então
não será uma imagem. Ora, uma vez que, entre os atributos de Deus, se
destaca a onisciência, necessariamente brilhará no homem algo de
semelhante a ela. (...) A tal ponto a mente do homem é de capacidade
inesgotável que, no conhecimento, se apresenta como um abismo...
[No entanto] após a queda, que o obscurece e confunde, é incapaz de se
libertar pelos seus próprios meios; e aqueles que deveriam ajudá-lo não
32
contribuem senão para aumentar o embaraço em que se encontra.

O Catecismo de Heidelberg (1563), à pergunta 6, responde:

Deus criou o homem bom e à sua imagem, isto é, em verdadeira justiça e


santidade, a fim de que ele conhecesse corretamente a Deus, seu Criador,
o amasse de todo coração e vivesse com ele em eterna bem-aventurança,
louvando-o e glorificando-o.

5) Imortalidade: O homem foi criado para viver eternamente – corpo e alma –;


33
ele teve princípio, mas não teria fim. Fomos criados para viver para sempre em
comunhão com Deus (Gn 2.17; 3.19; Rm 5.12; 6.23; 1Co 15.20,21). 34 Calvino
sustenta que a consciência que discerne entre o bem e o mal respondendo ao juízo
de Deus é um sinal do senso de imortalidade do homem.35

Vale enfatizar que a fonte de nossa vida não está em nós mesmos, mas em Deus,
o único que é eterno e possui a imortalidade (1Tm 6.16).36

Edições Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.6), p. 171). “O primeiro homem foi criado por Deus em retidão; em sua
queda, porém, arrastou-nos a uma corrupção tão profunda, que toda e qualquer luz que lhe foi originalmente
concedida ficou totalmente obscurecida” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 62.9), p. 579). “Todos
nós estamos perdidos em Adão” (João Calvino, Efésios, (Ef 1.4), p. 24).
32
João Amós Coménio, Didáctica Magna, 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1985), p. 102-103.
33
Pensam de igual modo, entre outros: Agostinho, A Cidade de Deus, Petrópolis, RJ.; São Paulo: Vozes;
Federação Agostiniana Brasileira, 1990, v. 2, Livro XIV.1. p. 131; Veja-se: François Turretini, Compêndio de
Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 592, 597-601; J. Gresham Machen, El
Hombre, p. 158; L. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 675-676; Loraine Boettner, La Inmortalidad, Grand
Rapids, Michigan: TELL. [s.d.], p. 18ss.; Anthony Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Casa Editora
Presbiteriana, 1989, p. 105ss.; Gerard van Groningen, Criação e Consumação, São Paulo: Cultura Cristã,
2002, v. 1, p. 95 (nota 61); 97.
34
François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 597ss.
35
Ver: J. Calvino, As Institutas, I.15.2.
36
“O único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu,
nem é capaz de ver. A ele honra e poder eterno. Amém!” (1Tm 6.16).
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6) Espiritualidade: (Gn 2.7). O homem é uma unidade bipartite. Ele foi criado
e dotado de corpo e alma, com anseios espirituais que se concretizam na sua
comunhão com o Criador.37 O homem, como parte da criação, é tomado do pó da
terra, todavia, como imagem de Deus, recebe dele uma alma eterna e imortal que
retornará ao seu Criador38 (Ec 12.7).39

Van Groningen (1921-2014) amplia o conceito, dizendo que homem e mulher são
“extracósmicos no sentido de que não devem ser considerados só como matéria que
pode funcionar de uma maneira altamente desenvolvida. Ser espiritual é ser capaz
de se comunicar e exercer comunhão íntima com Deus ‘que é Espírito’ (Jo 4.24)”.40

7) Domínio sobre a natureza: Um dos aspectos da imagem de Deus no


homem, é o seu domínio legítimo, pacífico e prazeroso sobre a Criação (Gn 1.26,27;
Sl 8.5-8).41 “Deus criou Adão e Eva e os colocou nele [reino cósmico] para serem
seus representantes e agentes. Ele os fez ser realeza. Ele lhes deu um status
real”.42

Desse modo, a Criação estava naturalmente sob o seu domínio. Deus atestou o
poder concedido ao homem, partilhou amorosamente43 com ele, conforme vimos, o
direito de dar nome (classificando as espécies, revelando um conhecimento das
características distintivas de cada uma)44 aos animais (Gn 2.19,20).45 Por derivação
da autoridade divina, “ao homem competia refletir o governo de Deus mediante um

37
Ainda que a compreensão de Brunner (1889-1966) seja limitante, visto que interpretou a Criação
em termos simplesmente existencialistas, portanto, não crendo na historicidade da Criação e Queda,
identificando o conceito de imagem e semelhança como a capacidade de relacionar-se com Deus em
amor, o que diz aqui é relevante (Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina Cristã da Criação e da
Redenção, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, v. 2, p. 107-115; 364-367. Compare com: Emil Brunner,
Nossa Fé, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1970, p. 33-37; Emil Brunner, The Mediator, 8. ed.
London: Lutter Worth Press, 1956, p. 377-396; Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina Cristã da
Criação e da Redenção, v. 2, p. 364-367): “O homem que por meio de sua mente pode pensar o
universo, descobrir suas leis, e estimar sua extensão, é maior do que o universo. (...) A verdadeira
grandeza do homem não é sua razão, pela qual aprende a conhecer, mas consiste no fato de que foi
feito para a comunhão com Deus e com os demais indivíduos” (Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina
Cristã da Criação e da Redenção, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, v. 2, p. 100). Para uma resenha
crítica da posição de Brunner, veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 1999, p. 66-72).
38
Veja-se: Agostinho, As Confissões, I.1.
39
“E o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu” (Ec 12.7).
40
Gerard van Groningen, Criação e Consumação, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, v. 1, p. 84.
41
Vejam-se: Gerard van Groningen, Criação e Consumação, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, v. 1, p. 76-77;
Anthony Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 94-95.
42
Gerard van Groningen, Criação e Consumação, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, v. 1, p. 71.
43
Cf. Fred Van Dyke, et. al., A Criação Redimida, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 117.
44
“Nomear implica conhecer, um conhecimento íntimo e particular do que alguma coisa é” (Fred Van Dyke, et.
al., A Criação Redimida, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 124). Veja-se: François Turretini,
Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 326-327.
45
“O homem constitui o auge da grande obra de criação de Deus. Não há nada superior ao homem. O homem
foi feito 'senhor da criação', o ser supremo na terra, depois de Deus” (D. M. Lloyd-Jones, O Combate
Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 72).
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governo real exercido sobre a terra”.46 Consequentemente, o domínio sobre a


Criação não significa destruição e matança, antes o conhecimento e o interesse47
próprio pelo que nos fora confiado e o desejo de preservá-lo para poder apresentar a
Deus o resultado de nosso trabalho, feito em obediência à sua vontade, e realizado
para a sua glória. O homem glorifica a Deus quando cumpre o propósito dele para a
sua Criação.

Renunciar a esse governo ou transformá-lo em destruição, significa rejeitar algo


de característico na sua natureza essencial de imagem de Deus.48

8) Corporeidade: Deus não tem corpo, nem por isso, o corpo humano é menos
importante do que a sua alma. Deus é quem cria o espírito e a matéria. É por meio
de seu corpo que o homem reflete as maravilhas de ter sido criado à imagem de
Deus. Não há no homem uma espiritualização em detrimento do corpo. O homem é
um ser integral. A salvação é integral, assim como será a nossa morada eterna após
a nossa ressurreição final. Cremos que a imagem de Deus abrange o seu corpo.
Jesus Cristo se encarnou para salvar o homem todo.

Bavinck escreve:

O corpo não é uma prisão, mas uma peça de arte maravilhosa produzida
pela mão do Todo-Poderoso e tão constituinte da essência da humanidade
quanto a alma (Jó 10.8-10; Sl 8; 139.13-17; Ec 12.2-7; Is 64.8). Ele é nossa
morada terrena (2Co 5.1), nosso órgão ou instrumento de serviço, nossa
ferramenta (1Co 12.18-26; 2Co 4.7; 1Ts 4.4) e os membros do corpo são as
armas com as quais pelejamos na causa da justiça ou da injustiça (Rm
6.13). Ele é tão integral e essencialmente parte de nossa humanidade que,
embora tenha sido violentamente arrancado da alma pelo pecado, será
reunido com ele na ressurreição dos mortos. (...) Ora, esse corpo, que está
tão intimamente ligado à alma, também pertence à imagem de Deus. (...) O
corpo humano é uma parte da imagem de Deus em sua organização como
instrumento da alma, em sua perfeição moral, não em sua substância
material como carne. (...) A encarnação de Deus é prova de que os seres
humanos, e não os anjos, são criados à imagem de Deus e que o corpo
49
humano é um componente essencial dessa imagem.

Em essência, se queremos saber mais sobre a imagem e semelhança de Deus,


olhemos para Cristo, porque nele, temos de forma inconfundível e perfeita, “a
imagem do Deus invisível” Cl 1.15).

46
Jay E. Adams, Conselheiro Capaz, São Paulo: Fiel, 1977, p. 129. “O homem não é chamado para um
domínio absoluto, arbitrário, da natureza, mas para um domínio que permaneça sob a ordem do Criador, e,
portanto, honra e ama o universo criado como criação de Deus” (Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina
Cristã da Criação e da Redenção, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, v. 2, p. 102).
47
Veja-se: Fred Van Dyke, et. al., A Criação Redimida, p. 126-130.
48
Veja-se: Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 559-560.
49
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 568-
569. Vejam-se também: L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 205;
G.C. Berkouwer, Man: The Image of God, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, © 1962, Reprinted 1984, p.
75-77; 229-233; Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999,
p. 83-84. Para uma visão diferente, veja-se: J. Gresham Machen, El Hombre, Lima: El Estandarte de la
Verdad, 1969, p. 145; João Calvino, As Institutas, I.15.3.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 9

Maringá, 28 de julho de 2023.


Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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