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Cosmovisão Reformada
E. A Fé como Conhecimento
A razão mesmo estigmatizada pelo pecado, que se mostra tão eficaz nas
coisas naturais perde-se diante do mistério de Deus revelado em Cristo e, também
diante da revelação geral na Natureza. As suas pressuposições, ainda que possam
ter algo de verdadeiro, se perdem diante da complexidade do mundo real, conforme
escreve Calvino: “As mentes humanas são cegas a essa luz, que resplandece em
todas as coisas criadas, até que sejam iluminadas pelo Espírito de Deus e comecem
a compreender, pela fé, que jamais poderão entendê-lo de outra forma”.1
O nosso Deus é “O Deus de toda graça” (1Pe 5.10). Bem-aventurados são todos
aqueles que vivem como súditos do Reino da Graça de Deus.
A graça de Deus é a tônica da sua relação com o seu povo. A nossa existência
em toda a sua expressão e extensão é pela graça (1Co 15.10). A riqueza da graça
de Deus se manifesta de modo superabundante em nós (2Co 9.14; Ef 1.7; 2.7),
todavia, ela não foi manifestada em toda a sua plenitude. Por isso, aguardamos o
regresso triunfante de Jesus Cristo, quando Ele mesmo revelará a graça de forma
mais completa (1Pe 1.13), concluindo a nossa salvação (Fp 1.6/1Pe 1.3-5).
Estou inteiramente de acordo com Packer (1926-2020), quando diz que “conhecer
a Deus é uma questão de graça”.5 O conteúdo do conhecimento como a sua
possibilidade estão em Deus que, livre e soberanamente, se revela e oferece a nós
pecadores, de forma graciosa por meio da sua Palavra.
Fé resultante da graça
O nome cristão, aprendido na Bíblia para esta resposta é fé. Assim como a
revelação, a fé é resultado da graça salvadora de Deus (At 15.11; 18.27; Ef 2.8; Fp
1.29); por isso, a totalidade do conhecimento que podemos ter, repousa na graça de
Deus. Por isso, por melhores que sejam os argumentos que possamos alinhar para
explicar a nossa fé, não conseguimos o nosso intento. Não que a fé seja irracional,
como sugeriram Kierkegaard (1813-1855) e Miguel de Unamuno (1864-1936), entre
tantos outros.
5
J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 33. Em outro lugar: “Conhecer a Deus é o dom supremo
da graça de Deus” (J.I. Packer, Conhecendo Deus: o mundo e a Palavra. In: Gabriel N.E. Fluhrer, ed.
Firme Fundamento: A inerrante Palavra de Deus em um mundo errante, Rio de Janeiro: Anno Domini,
2013, p. 16).
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O que ocorre, é que a fé não pode ser limitada pelos cânones da razão. Ela é
suprarracional. Apesar de caminhar durante algum tempo lado a lado com a razão,
ela, agora, acompanhada da esperança, lança-se ao infinito (1Co 15.19; Hb 1.1). A
fé não é irracional, insistimos. Ela respalda-se em Deus e na sua promessa. Foi isto
que fez Abraão, conforme escreve Paulo: “Não duvidou da promessa de Deus, por
incredulidade; mas, pela fé, se fortaleceu, dando glória a Deus, estando plenamente
convicto de que ele era poderoso para cumprir o que prometera” (Rm 4.20,21).
Fé com conhecimento
A fé é gerada em nós pelo Espírito por intermédio da Palavra (Rm 10.17). Ela é a
boa obra do Espírito Santo em nós, que age fundamentado numa realidade histórica
irrefutável: a obra de Cristo no Calvário. “A fé verdadeira é aquela que ouve a
Palavra de Deus e descansa em sua promessa”, resume Calvino.7
Revelação, fé e conhecimento
6
João Calvino, As Institutas, III.2.2.
7
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 11.11), p. 318. Vejam-se também, (Hb 10.23), p. 270; João
Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 2.2), p. 49.
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A Palavra deve ser sempre o guia da nossa fé! “Nossa fé não tem que estar
fundamentada no que nós tenhamos pensado por nós mesmos, senão no que foi
prometido por Deus”, exorta Calvino.8 Por isso, devemos estar atentos à Palavra de
Deus, para entendê-la e praticá-la (Js 1.8; Sl 119.97; Fp 3.15; Tg 1.22-25). 9
8
Juan Calvino, Sermones Sobre a La Obra Salvadora de Cristo, Jenison, Michigan: TELL., 1988 (Sermão n°
13), p. 156.
9
“Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer
segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido“ (Js 1.8).
“Quanto amo a tua lei! É a minha meditação, todo o dia!” (Sl 119.97). “Todos, pois, que somos perfeitos,
tenhamos este sentimento; e, se, porventura, pensais doutro modo, também isto Deus vos esclarecerá.
Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos” (Fp 3.15-16). “Tornai-vos, pois, praticantes da
palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Porque, se alguém é ouvinte da palavra e
não praticante, assemelha-se ao homem que contempla, num espelho, o seu rosto natural; pois a si mesmo se
contempla, e se retira, e para logo se esquece de como era a sua aparência. Mas aquele que considera,
atentamente, na lei perfeita, lei da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte negligente, mas operoso
praticante, esse será bem-aventurado no que realizar” (Tg 1.22-25).
10
“Somos seres humanos, e é preciso que observemos sempre as limitações de nosso conhecimento,
e não os ultrapassemos, pois tal gesto seria usurpar as prerrogativas divinas” (João Calvino, As
Pastorais, São Paulo: Paracletos,1998, (1Tm 5.25), p. 160). “Deus não pode ser apreendido pela
mente humana. É mister que Ele se revele através de sua Palavra; e é à medida que Ele desce até
nós que podemos, por sua vez, subir até os céus” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo:
Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 186). "A teologia reformada sustenta que Deus pode ser
conhecido, mas que ao homem é impossível ter um exaustivo e perfeito conhecimento de Deus (...).
Ter esse conhecimento de Deus seria equivalente a compreendê-lo, e isto está completamente fora
de questão: 'Finitum non possit capere infinitum'." (L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.:
Luz para o Caminho, 1990, p. 32). Do mesmo modo Schaeffer (1912-1984): “A comunicação que
Deus tem com o homem é verdadeira, mas isto não significa que seja exaustiva. Esta é uma distinção
importante que precisamos sempre ter em mente. Para conhecer qualquer coisa exaustivamente,
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Ao mesmo tempo, nos alegremos com o que Ele nos deu a conhecer, meditando
e praticando. Isso porque, se a especulação indevida é um mal; devemos observar
também, que mal semelhante é negligenciar o estudo daquilo que Deus nos revelou
em sua Palavra. Calvino (1509-1564) os advertiu quanto a esses extremos: “As
cousas que o Senhor deixou recônditas em secreto não perscrutemos, as que pôs a
descoberto não negligenciemos, para que não sejamos condenados ou de excessiva
curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra”.12
precisaríamos ser infinitos, como Deus. Mesmo na vida eterna não seremos assim” (Francis A.
Schaeffer, O Deus que Intervém, Jaú, SP.: Refúgio; ABU., 1981, p. 143). Vejam-se também: João
Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 1.19), p. 64; Herman Bavinck,
Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 97-99; Charles
Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Wm. Eerdmans Publishing Co., 1986, v. 1, p.
535; J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 20;
Gordon J. Spykman, Teologia Reformacional: um Nuevo paradigma para hacer Teologia, Jenison,
Mi.: The Evangelical Literature League, 1994, p. 79-80; Cornelius Van Til, Apologética Cristã, São
Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 35-36; John M. Frame, A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura
Cristã, 2013, p. 168, 175ss.; Cornelius Van Til, An Introduction to Systematic Theology, Phillipsburg,
New Jersey: Presbyterian and Reformed Publishing Co. 1974, p. 24.
11
Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/1), 1998, (Sl 6), v. 1, p. 60.
“Tudo o mais que pesa sobre nós e que devemos buscar é nada sabermos senão o que o Senhor
quis revelar à sua igreja. Eis o limite de nosso conhecimento” (João Calvino, Exposição de 2
Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 12.4), p. 242- 243). Vejam-se também: João Calvino,
As Institutas, I.2.2; III.21.4; III.23.8; III.25.11/ I.5.9.
12
João Calvino, As Institutas, III.21.4.
13
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2,
p. 33.
14
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, v. 2, p. 114.
15
“Podemos reconhecer as impressões digitais de Deus na ordem do mundo natural e nas intuições
mais profundas da natureza humana e concluir que essas pistas foram tecidas em conjunto para nos
permitir ver um panorama maior” (Alister McGrath, A fé e os credos, São Paulo: Cultura Cristã, 2017,
p. 20).
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Portanto, pelo fato do nosso conhecimento a respeito de Deus ser limitado, isso
não significa que o que conhecemos aqui será corrigido pelo que conheceremos na
eternidade, como se a revelação de Deus contida na Palavra fosse imprecisa. Não.
No entanto, este remendo humano torna a situação do homem ainda pior porque,
na realidade, ele consciente ou inconscientemente está se enganando e, deste
modo, enquanto adota um paliativo espiritual, abandona a procura sincera pela
verdade e torna-se, geralmente, imune à genuína proclamação do Evangelho de
Cristo.
16
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, v. 2, p. 110, 113. Da mesma forma,
veja-se: Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 59.
17
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, v. 2, p. 110.
18
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, v. 2, p. 99.
19
Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo e as Sagradas Escrituras: Inerrância e Pneumatologia: In: John F.
MacArthur, org., A Palavra Inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, [p. 262-281], p. 264.
20
Veja-se: Tim Chester, Conhecendo o Deus Trino: porque Pai, Filho e Espírito Santo são boas
novas, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2016, p. 20.
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Somente o genuíno conhecimento de Cristo nos conduz a Deus e nos liberta das
cadeias do pecado. “Como as trevas são dispersas pelos raios furtivos do sol, assim
todas as invenções e erros perversivos se desvanecem diante desse conhecimento
de Deus”, exulta Calvino.21
A comunicação que Deus tem com o homem é verdadeira, mas isto não
significa que seja exaustiva. Esta é uma distinção importante que
precisamos sempre ter em mente. Para conhecer qualquer coisa
exaustivamente, precisaríamos ser infinitos, como Deus. Mesmo na vida
23
eterna não seremos assim.
24
Cf. João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 12.3), p. 373.
25
“O grande fim de toda revelação é inspirar um louvor humilde e reverente a Deus” (John Stott,
Salmos Favoritos, São Paulo: Abba Press, 1997, p. 24).