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Palavras chaves:

Conhecer a Deus, Epistemologia cristã, Criação, Revelação de Deus, Revelação


Especial de Deus

Assuntos:
Cosmovisão Reformada

Tentando pensar e viver como um Reformado:


Reflexões de um estrangeiro residente (8)
3. O Deus que se dá a conhecer (Continuação)

E. A Fé como Conhecimento

A razão mesmo estigmatizada pelo pecado, que se mostra tão eficaz nas
coisas naturais perde-se diante do mistério de Deus revelado em Cristo e, também
diante da revelação geral na Natureza. As suas pressuposições, ainda que possam
ter algo de verdadeiro, se perdem diante da complexidade do mundo real, conforme
escreve Calvino: “As mentes humanas são cegas a essa luz, que resplandece em
todas as coisas criadas, até que sejam iluminadas pelo Espírito de Deus e comecem
a compreender, pela fé, que jamais poderão entendê-lo de outra forma”.1

A graça, portanto, antecede à fé e ao conhecimento. 2 “Se Deus não se


antecipasse aos homens com sua graça, todos eles pereceriam totalmente”, enfatiza
Calvino.3

A fé consiste na convicção de que a salvação está além de nossos recursos; no


caso da fé salvadora, significa que depositamos nossa fé em Deus por meio de
Cristo.4

A graça de Deus é eminentemente socializante. Isto porque não há um homem


sequer que dela não necessite e, mesmo sem saber, dela não participe. Todos, sem
1
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 11.3), p. 299.
2
“Diz ele (Paulo) que, antes que nascêssemos, as boas obras haviam sido preparadas por Deus;
significando que por nossas próprias forças não somos capazes de viver uma vida santa, mas só até
ao ponto em que somos adaptados e moldados pelas mãos divinas. Ora, se a graça de Deus nos
antecipou, então toda e qualquer base para vanglória ficou eliminada” (João Calvino, Efésios, São
Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 2.10), p. 64).
3
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 25.8), p. 548.
4
Fé salvadora ou justificadora é um dom da graça de Deus, por meio do qual somos habilitados a
receber a Jesus Cristo como nosso único e suficiente Senhor e Salvador e, a crer em todas as
promessas do Deus Triúno, conforme estão registradas nas Escrituras Vejam-se: Hermisten M.P.
Costa, A fé como boa obra e a boa obra da fé, Goiânia, GO.: Cruz, 2020; Wayne A. Grudem,
Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 147).
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exceção, somos devedores à graça de Deus – aquele favor imerecido da parte de


Deus para com os pecadores.

O Deus de toda graça

O nosso Deus é “O Deus de toda graça” (1Pe 5.10). Bem-aventurados são todos
aqueles que vivem como súditos do Reino da Graça de Deus.

A graça de Deus é a tônica da sua relação com o seu povo. A nossa existência
em toda a sua expressão e extensão é pela graça (1Co 15.10). A riqueza da graça
de Deus se manifesta de modo superabundante em nós (2Co 9.14; Ef 1.7; 2.7),
todavia, ela não foi manifestada em toda a sua plenitude. Por isso, aguardamos o
regresso triunfante de Jesus Cristo, quando Ele mesmo revelará a graça de forma
mais completa (1Pe 1.13), concluindo a nossa salvação (Fp 1.6/1Pe 1.3-5).

Estou inteiramente de acordo com Packer (1926-2020), quando diz que “conhecer
a Deus é uma questão de graça”.5 O conteúdo do conhecimento como a sua
possibilidade estão em Deus que, livre e soberanamente, se revela e oferece a nós
pecadores, de forma graciosa por meio da sua Palavra.

Somente pela graça da autorrevelação de Deus é que podemos nos relacionar


com Deus. O “conhecimento” intelectual e abstrato de um Deus distante, se possível
fosse fora da Revelação Geral, o que não é, não redundaria em relacionamento
afetivo e de confiança. Nós podemos conhecer a Deus subjetivamente porque Ele se
deu a conhecer objetivamente em sua Palavra e, plenamente, dentro do seu
propósito, em Cristo Jesus, o Deus encarnado. (Cl 1.19; 2.9).

A revelação de Deus não indica, necessariamente, a apreensão subjetiva por


parte do homem, contudo para que haja uma satisfação em termos de objetivo, faz-
se necessário que o homem, a quem Deus dirige especialmente a sua revelação,
tenha, ao menos potencialmente, condições de apreendê-la.

Conforme vimos, a revelação de Deus exige uma resposta. Como poderá o


homem captar esta revelação e responder de forma satisfatória? Em outras
palavras: qual seria o principium cognoscendi internum?.

Fé resultante da graça

O nome cristão, aprendido na Bíblia para esta resposta é fé. Assim como a
revelação, a fé é resultado da graça salvadora de Deus (At 15.11; 18.27; Ef 2.8; Fp
1.29); por isso, a totalidade do conhecimento que podemos ter, repousa na graça de
Deus. Por isso, por melhores que sejam os argumentos que possamos alinhar para
explicar a nossa fé, não conseguimos o nosso intento. Não que a fé seja irracional,
como sugeriram Kierkegaard (1813-1855) e Miguel de Unamuno (1864-1936), entre
tantos outros.

5
J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 33. Em outro lugar: “Conhecer a Deus é o dom supremo
da graça de Deus” (J.I. Packer, Conhecendo Deus: o mundo e a Palavra. In: Gabriel N.E. Fluhrer, ed.
Firme Fundamento: A inerrante Palavra de Deus em um mundo errante, Rio de Janeiro: Anno Domini,
2013, p. 16).
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O que ocorre, é que a fé não pode ser limitada pelos cânones da razão. Ela é
suprarracional. Apesar de caminhar durante algum tempo lado a lado com a razão,
ela, agora, acompanhada da esperança, lança-se ao infinito (1Co 15.19; Hb 1.1). A
fé não é irracional, insistimos. Ela respalda-se em Deus e na sua promessa. Foi isto
que fez Abraão, conforme escreve Paulo: “Não duvidou da promessa de Deus, por
incredulidade; mas, pela fé, se fortaleceu, dando glória a Deus, estando plenamente
convicto de que ele era poderoso para cumprir o que prometera” (Rm 4.20,21).

Fé com conhecimento

A fé exige conhecimento da Palavra de Deus. A fé é uma relação de confiança;


como acreditar em alguém que não conhecemos? A fé consiste no conhecimento do
Pai e do Filho pelo testemunho do Espírito (Jo 17.3/Jo 15.26; 16.13-14). “A fé não
consiste na ignorância, mas no conhecimento; e este conhecimento há de ser não
somente de Deus, mas também de sua divina vontade”, conclui Calvino.6 É
impossível crer e nos relacionar pessoalmente com um Deus desconhecido.

A fé é gerada em nós pelo Espírito por intermédio da Palavra (Rm 10.17). Ela é a
boa obra do Espírito Santo em nós, que age fundamentado numa realidade histórica
irrefutável: a obra de Cristo no Calvário. “A fé verdadeira é aquela que ouve a
Palavra de Deus e descansa em sua promessa”, resume Calvino.7

A Palavra e a fé só poderão ser entendidas mediante a aceitação da graça de


Deus onde tudo começa. Temos a graça pela obra de Cristo, para que, pela graça,
possamos conhecer a Deus e, assim, possamos saber “qual a esperança do seu
chamamento, qual a riqueza do seu poder para com os que cremos, segundo a
eficácia do seu poder; o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os
mortos, e fazendo-o sentar à sua direita nos lugares celestiais” (Ef 1.18-20), vivendo,
a partir daí, pela graça e para a glória de Deus (1Co 10.31).

Revelação, fé e conhecimento

É somente pela graça, mediante a fé que podemos nos apropriar da revelação de


Deus. Somente a fé, como efeito da graça, nos faz perceber a revelação, abrindo os
nossos olhos para a Palavra de Deus (Sl 119.18; Ef 1.15-18). Deste modo, Deus nos
ilumina para que possamos entender a sua revelação nas Escrituras.

A revelação antecede à fé (Rm 10.17; Gl 3.3,5). E, pela revelação, mediante a


iluminação do Espírito, o homem é subjugado por Deus, respondendo positivamente
com fé. A resposta do homem é apenas uma evidência da eleição de Deus (Jo
15.16; At 3.16; 15.11; 16.14; 18.27; Ef 2.8; Fp 2.12,13). Deus se revela, fala por
meio da Palavra regenerando o pecador, concedendo-lhe fé para que, agora, salvo
pela graça, ande nas boas obras preparadas por Deus de antemão, para nós. (Cf.
Ef. 2.10).

Limites de uma fé consciente

6
João Calvino, As Institutas, III.2.2.
7
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 11.11), p. 318. Vejam-se também, (Hb 10.23), p. 270; João
Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 2.2), p. 49.
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Entretanto, no nosso relacionamento com Deus, deparamo-nos com um


paradoxo: quanto mais conhecemos a Deus, temos, por um lado, um maior
discernimento de nossa pecaminosidade e, por outro, uma maior consciência da
insondabilidade e infinitude de Deus. Paulo, escrevendo aos romanos, após falar de
um assunto difícil, exulta:

Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria, como do conhecimento de


Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e quão inescrutáveis os seus
caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? ou quem foi o seu
conselheiro? Ou quem primeiro lhe deu a ele para que lhe venha a ser
restituído? Porque dele e por meio dele e para ele são todas as cousas. A
ele pois, a glória eternamente. Amém. (Rm 11.33-36).

É importante ressaltar que não conhecemos tudo a respeito de Deus e da sua


Palavra, mas devemos ter por certo de que o limite da fé está circunscrito pelos
parâmetros das Escrituras (Dt 29.29). Ou seja: não podemos crer além do que Deus
nos revelou na Bíblia. Fazer isto, não é ter fé, mas especular sobre os mistérios de
Deus.

A Palavra deve ser sempre o guia da nossa fé! “Nossa fé não tem que estar
fundamentada no que nós tenhamos pensado por nós mesmos, senão no que foi
prometido por Deus”, exorta Calvino.8 Por isso, devemos estar atentos à Palavra de
Deus, para entendê-la e praticá-la (Js 1.8; Sl 119.97; Fp 3.15; Tg 1.22-25). 9

Conhecimento limitado, porém, verdadeiro

Correndo o risco de me tornar repetecioso, insisto neste ponto: a nossa mente


finita não consegue compreender exaustivamente as perfeições de Deus. 10 O

8
Juan Calvino, Sermones Sobre a La Obra Salvadora de Cristo, Jenison, Michigan: TELL., 1988 (Sermão n°
13), p. 156.
9
“Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer
segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido“ (Js 1.8).
“Quanto amo a tua lei! É a minha meditação, todo o dia!” (Sl 119.97). “Todos, pois, que somos perfeitos,
tenhamos este sentimento; e, se, porventura, pensais doutro modo, também isto Deus vos esclarecerá.
Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos” (Fp 3.15-16). “Tornai-vos, pois, praticantes da
palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Porque, se alguém é ouvinte da palavra e
não praticante, assemelha-se ao homem que contempla, num espelho, o seu rosto natural; pois a si mesmo se
contempla, e se retira, e para logo se esquece de como era a sua aparência. Mas aquele que considera,
atentamente, na lei perfeita, lei da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte negligente, mas operoso
praticante, esse será bem-aventurado no que realizar” (Tg 1.22-25).
10
“Somos seres humanos, e é preciso que observemos sempre as limitações de nosso conhecimento,
e não os ultrapassemos, pois tal gesto seria usurpar as prerrogativas divinas” (João Calvino, As
Pastorais, São Paulo: Paracletos,1998, (1Tm 5.25), p. 160). “Deus não pode ser apreendido pela
mente humana. É mister que Ele se revele através de sua Palavra; e é à medida que Ele desce até
nós que podemos, por sua vez, subir até os céus” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo:
Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 186). "A teologia reformada sustenta que Deus pode ser
conhecido, mas que ao homem é impossível ter um exaustivo e perfeito conhecimento de Deus (...).
Ter esse conhecimento de Deus seria equivalente a compreendê-lo, e isto está completamente fora
de questão: 'Finitum non possit capere infinitum'." (L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.:
Luz para o Caminho, 1990, p. 32). Do mesmo modo Schaeffer (1912-1984): “A comunicação que
Deus tem com o homem é verdadeira, mas isto não significa que seja exaustiva. Esta é uma distinção
importante que precisamos sempre ter em mente. Para conhecer qualquer coisa exaustivamente,
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alcance e limite de nosso conhecimento é determinado pela revelação. O não


revelado não pode ser objeto de nossas especulações. Os nossos passos devem
se limitar ao que Deus nos deu a conhecer. Quando Deus se cala, nos calamos.
Quando Ele para, devemos parar admirados em reverência e gratidão.

Sigamos o sábio e piedoso exemplo de Agostinho (354-430): “Ignoremos de boa


mente aquilo que Deus não quis que soubéssemos”.11

Ao mesmo tempo, nos alegremos com o que Ele nos deu a conhecer, meditando
e praticando. Isso porque, se a especulação indevida é um mal; devemos observar
também, que mal semelhante é negligenciar o estudo daquilo que Deus nos revelou
em sua Palavra. Calvino (1509-1564) os advertiu quanto a esses extremos: “As
cousas que o Senhor deixou recônditas em secreto não perscrutemos, as que pôs a
descoberto não negligenciemos, para que não sejamos condenados ou de excessiva
curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra”.12

A revelação de Deus também não é completa no sentido de abarcar total e


exaustivamente o ser de Deus.13 Porém, conforme vimos, podemos dizer que
qualitativamente, “como Deus se revela, assim ele é” (Bavinck). 14 Não há uma
representação artificial naquilo que Ele nos dá a conhecer. Portanto, muitíssimos de
seus atos soberanos nos escapam. O finito não pode comportar o infinito! No
entanto, podemos conhecer a Deus genuína e verdadeiramente à luz de sua
autorrevelação.15

Bavinck (1854-1921) coloca bem a questão:

precisaríamos ser infinitos, como Deus. Mesmo na vida eterna não seremos assim” (Francis A.
Schaeffer, O Deus que Intervém, Jaú, SP.: Refúgio; ABU., 1981, p. 143). Vejam-se também: João
Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 1.19), p. 64; Herman Bavinck,
Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 97-99; Charles
Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Wm. Eerdmans Publishing Co., 1986, v. 1, p.
535; J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 20;
Gordon J. Spykman, Teologia Reformacional: um Nuevo paradigma para hacer Teologia, Jenison,
Mi.: The Evangelical Literature League, 1994, p. 79-80; Cornelius Van Til, Apologética Cristã, São
Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 35-36; John M. Frame, A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura
Cristã, 2013, p. 168, 175ss.; Cornelius Van Til, An Introduction to Systematic Theology, Phillipsburg,
New Jersey: Presbyterian and Reformed Publishing Co. 1974, p. 24.
11
Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/1), 1998, (Sl 6), v. 1, p. 60.
“Tudo o mais que pesa sobre nós e que devemos buscar é nada sabermos senão o que o Senhor
quis revelar à sua igreja. Eis o limite de nosso conhecimento” (João Calvino, Exposição de 2
Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 12.4), p. 242- 243). Vejam-se também: João Calvino,
As Institutas, I.2.2; III.21.4; III.23.8; III.25.11/ I.5.9.
12
João Calvino, As Institutas, III.21.4.
13
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2,
p. 33.
14
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, v. 2, p. 114.
15
“Podemos reconhecer as impressões digitais de Deus na ordem do mundo natural e nas intuições
mais profundas da natureza humana e concluir que essas pistas foram tecidas em conjunto para nos
permitir ver um panorama maior” (Alister McGrath, A fé e os credos, São Paulo: Cultura Cristã, 2017,
p. 20).
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Não é contraditório (...) dizer que um conhecimento é inadequado, finito e


16
limitado e ao mesmo tempo é verdadeiro, puro e suficiente.
O conhecimento absoluto, plenamente adequado de Deus, é, portanto,
17
impossível.
Nosso conhecimento de Deus não é, e, de fato, não pode ser, exaustivo: ele
18
é analógico e ectípico.

Portanto, pelo fato do nosso conhecimento a respeito de Deus ser limitado, isso
não significa que o que conhecemos aqui será corrigido pelo que conheceremos na
eternidade, como se a revelação de Deus contida na Palavra fosse imprecisa. Não.

Entendemos que, o pouco que podemos conhecer do Deus infinito é fidedigno


uma vez que o nosso conhecimento respalda-se na sua Palavra e, cremos que a
Bíblia é o registro infalível e inerrante da Palavra de Deus (2Tm 3.16; 2Pe 1.20,21).

As possíveis correções e certamente os prováveis aprofundamentos estarão


associados às nossas maiores limitações neste estágio de vida e ao
desenvolvimento da revelação progressiva de Deus na eternidade.

Ferguson, extasiado, escreve com uma compreensão correta: “O milagre, porém,


é que Deus é um revelador de mistérios. Nós não os compreendemos plenamente,
mesmo assim podem entendê-los dentro dos limites da nossa natureza criatural”.19

Portanto, ainda que não possamos compreender a Deus exaustiva e plenamente,


podemos conhecê-lo verdadeira e genuinamente.20

As tentativas humanas por encontrar Deus aparte de Jesus Cristo, conforme é-


nos dado conhecer nas Escrituras, terminam em naturalismo, ateísmo ou deísmo,
que nada mais são do que formas de paganismo.

A religiosidade descompromissada como resultado da carência de Deus, não


direcionada pela Palavra, termina em superstição e idolatria que, entre outros males,
pode, em determinadas circunstâncias, dar a sensação de satisfação para a
angustiante carência de Deus.

No entanto, este remendo humano torna a situação do homem ainda pior porque,
na realidade, ele consciente ou inconscientemente está se enganando e, deste
modo, enquanto adota um paliativo espiritual, abandona a procura sincera pela
verdade e torna-se, geralmente, imune à genuína proclamação do Evangelho de
Cristo.

16
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, v. 2, p. 110, 113. Da mesma forma,
veja-se: Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 59.
17
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, v. 2, p. 110.
18
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, v. 2, p. 99.
19
Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo e as Sagradas Escrituras: Inerrância e Pneumatologia: In: John F.
MacArthur, org., A Palavra Inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, [p. 262-281], p. 264.
20
Veja-se: Tim Chester, Conhecendo o Deus Trino: porque Pai, Filho e Espírito Santo são boas
novas, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2016, p. 20.
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Somente o genuíno conhecimento de Cristo nos conduz a Deus e nos liberta das
cadeias do pecado. “Como as trevas são dispersas pelos raios furtivos do sol, assim
todas as invenções e erros perversivos se desvanecem diante desse conhecimento
de Deus”, exulta Calvino.21

A Palavra de Deus deve dirigir toda a nossa abordagem e interpretação teológica,


bem como de toda a realidade: o Espírito por meio da Palavra é quem deve nos
guiar à correta interpretação da revelação. Na Escritura, por proceder de Deus,
temos o nosso padrão e apelo final.

Assim, apesar de não podermos conhecer tudo a respeito de Deus, o que


conhecemos por meio da Palavra é a verdade, não toda a verdade, mas parte da
verdade que está em harmonia com o todo. Fazendo uma analogia, podemos dizer
que pelo fato de colocarmos a água do mar num recipiente, ela não deixa de ser do
mar, entretanto, o perigo está em dizer que ali, dentro do recipiente está todo o mar.

Portanto, reafirmamos: o que a Bíblia diz é uma verdade essencial a respeito de


Deus, nela temos tudo o que Deus deseja que saibamos nesta vida a seu respeito.
No entanto, precisamos avaliar sempre o nosso conhecimento para que não
corramos o risco de tornar a nossa “percepção da verdade”, toda e única verdade.
Todos nós, por melhor que seja a nossa percepção espiritual e teológica, temos
ainda, uma “nuvenzinha de ignorância”.22 Agora, ainda vemos obscuramente (1Co
13.12).

Cito aqui as penetrantes considerações de Schaeffer (1912-1984):

A comunicação que Deus tem com o homem é verdadeira, mas isto não
significa que seja exaustiva. Esta é uma distinção importante que
precisamos sempre ter em mente. Para conhecer qualquer coisa
exaustivamente, precisaríamos ser infinitos, como Deus. Mesmo na vida
23
eterna não seremos assim.

Conhecer a Deus pela fé é se relacionar com Ele. Portanto, não é um


conhecimento simplesmente a respeito de Deus, antes, é uma relação pessoal, de
confiança, obediência e amor.

Este é um conhecimento único, diferente de todos os outros conhecimentos,


porque Deus é único e singular. É possível ter um conhecimento especial de algo
comum, porém, conhecer a Deus é sempre algo especial, porque Deus é singular
em sua essência, existência e revelação.

Somente Deus é o Senhor! Portanto, nunca poderemos ter um conhecimento real


e, ao mesmo tempo banal de Deus. Banalidade e majestade são termos que
essencialmente se excluem quando tratamos de Deus. Aliás, só há majestade em
21
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 106.21), p. 684.
22
J. Calvino, As Institutas, IV.1.12.
23
Francis Schaeffer, O Deus que Intervém, São Paulo: Refúgio; ABU., 1981, p. 143. Do mesmo modo, ver:
J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 20; Cornelius Van Til,
An Introduction to Systematic Theology, Phillipsburg, New Jersey: Presbyterian and Reformed Publishing
Co. 1974, p. 24.
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Deus e, ao mesmo tempo, não há nada de comum e banal em nosso Glorioso


Senhor.

Insistimos: Sem a revelação de Deus pelo Espírito nós jamais o conheceríamos. 24


Esse dom, associado à revelação, visa nos conduzir a Deus em alegre submissão e
gratidão.25

A fé, portanto, é precedida de conhecimento. O conhecimento, por graça, produz


fé. Conhecimento e fé são inseparáveis. Esse conhecimento por fé nos conduz a
amar a Deus. O amor a Deus nos leva a querer conhecê-lo mais e mais.

Firmados nisso, sabemos que o fundamento, a inspiração e capacitação para a


nossa santificação estão no Trino Deus que se revela.

Maringá, 07 de julho de 2023.


Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

24
Cf. João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 12.3), p. 373.
25
“O grande fim de toda revelação é inspirar um louvor humilde e reverente a Deus” (John Stott,
Salmos Favoritos, São Paulo: Abba Press, 1997, p. 24).

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