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Palavras chaves:

Conhecer a Deus, Criação, Revelação de Deus, Revelação Especial de Deus

Assuntos:
Cosmovisão Reformada

Tentando pensar e viver como um Reformado:


Reflexões de um estrangeiro residente (9)
4. Criação e Queda
Portanto, por mais que ao homem
convenha, com sério propósito, os olhos
volver à consideração das obras de Deus,
uma vez que foi colocado neste
esplendíssimo teatro para que lhes fosse
espectador, todavia, para que frua maior
proveito, convém-lhe, sobretudo, alçar os
1
ouvidos à Palavra. ‒ João Calvino.

Uma doutrina da criação é o alicerce da


cosmovisão bíblica e cristã. A criação não
deve ser deificada nem desprezada, mas,
como “teatro da glória de Deus”, deve ser
desfrutada e usada com ponderação. Ela é
2
a boa criação de Deus. − Herman Bavinck.

O mundo inteiro é música, cujo compositor e


intérprete é Deus. − Gregório de Nissa (c.
3
335-395).
Introdução

Como vimos, as Escrituras iniciam o seu registro com o Deus Autoexistente e


Autopoderoso criando do nada todas as coisas. (Gn 1.1).

O Catecismo Maior de Westminster respondendo à pergunta – “Qual é a obra da


criação?” – resume: “A obra da criação é aquela pela qual, no princípio e pela
palavra do seu poder, Deus fez do nada o mundo e tudo quanto nele há, para si, no
espaço de seis dias, e tudo muito bom”.4 (Gn 1; Rm 11.36; Ap 4.11).

1
João Calvino, As Institutas, I.6.2.
2
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 415-
416.
3
Gregório de Nissa, Apud: Luís Alonso Schökel; Cecília Carniti, Salmos I: salmos 1-72, São Paulo: Paulus,
1996, p. 336.
4
Catecismo Maior de Westminster, Perg. 15.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 2

A. A Narrativa Bíblica

Kuyper (1837-1920) nos chama a atenção para um ponto que costumeiramente


é esquecido:

Quando Deus criou Adão, Ele nos criou: na natureza de Adão ele fez surgir
a natureza onde nós agora vivemos. Os capítulos de Gênesis 1 e 2 não são
registros de alienígenas, mas o nosso próprio registro – referente à carne e
sangue que carregamos conosco, à natureza humana em que nos
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sentamos para ler a Palavra de Deus.

Assim sendo, tratar da criação do homem significa falar de nós mesmos, de nossa
origem, da nossa história por meio de nossos primeiros pais. É impossível fazer isso
de forma indiferente. À frente, Kuyper continua: “Quando Deus formou Adão, do pó,
ele também nos formou. (...) A queda de Adão foi também a nossa. Numa palavra, a
primeira página de Gênesis relata a nossa própria história real, e não a de um
estranho”.6

A doutrina da Criação e da Queda é fundamental à teologia e fé cristã. Daí, em


especial, o caráter decisivo da historicidade dos três primeiros capítulos de Gênesis.
Deus age no tempo que Ele mesmo cria e preserva. Ele é Senhor do tempo. Deus
cria o homem e a mulher e por meio deles, toda a humanidade. O pecado, resultado
da desobediência, ocorreu na história. Por isso, todo o desenvolvimento da história
em consonância com a promessa de Deus da vinda daquele que esmagaria a
cabeça da serpente (Gn 3.15).7

A leitura da história sem o entendimento da Queda de nossos primeiros pais será


sempre incompleta e sem sentido. Se não compreendermos o fato bíblico da
Criação e da Queda, do pecado do homem como um distúrbio de alcance cósmico,
que afetou drasticamente todas as relações, a começar entre a criatura e o Criador,
jamais poderemos ter condições de entender o significado da História; teremos um
grande quebra-cabeça diante de nós faltando algumas peças que não podem ser
deduzidas intuitivamente. A história da humanidade sem a Revelação Bíblica carece
de total sentido.

Lloyd-Jones (1899-1981), conclui:

O importante princípio que devemos manter sempre vívido na mente é que


a única maneira de entender a longa história da raça humana é dar-se conta
de que ela é resultado da Queda. Essa é a única chave da história, de
qualquer espécie de história, tanto da história secular como desta história
mais puramente espiritual que temos na Bíblia. Não se pode entender a
história da humanidade se não se leva em conta este grande princípio. A
história é o registro do conflito entre Deus e suas forças, de um lado, e o
diabo e suas forças, de outro; e o grande princípio determinante é de
imensa importância, não só para entender-se a história passada, como
também para entender-se o que está acontecendo no mundo hoje. É,

5
Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 70.
6
Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 71.
7
“Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e
tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3.15).
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igualmente, a única chave para compreender-se o futuro. Ao mesmo tempo,


é a única maneira pela qual podemos compreender as nossas experiências
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pessoais.

A encarnação ocorreu na história, assim como a morte e ressurreição de Jesus


Cristo. O Cristo na cruz é aquele que viria e veio, esmagando a cabeça da serpente.
Seu sangue e sofrimento são frutos de sua ferida vitoriosa.

Desprezar a doutrina da Criação significa uma falta de compreensão bíblica do


propósito de Deus que faz todas as coisas conforme a sua determinação e graça.
Sem a Criação não teria sentido a encarnação, morte e ressurreição de Jesus
Cristo, o eterno Filho de Deus.

A doutrina da Criação nos fala do poder todo suficiente de Deus e de nossa total
dependência daquele que nos criou e preserva. Somente Deus, pelo seu poder,
pode do nada tudo criar e, ao mesmo tempo, no exercício de seu poder, preservar
todas as coisas, visíveis e invisíveis, conhecidas e ignoradas por nós. A criação é a
expressão do Deus que pensa e cria, sem inspiração alguma fora de si mesmo. Na
criação vemos delineados aspectos do ser de Deus, de sua sabedoria, bondade e
poder.9

Bavinck enfatiza: “A doutrina da criação a partir do nada ensina a absoluta


soberania de Deus e a absoluta dependência humana. Se uma partícula não tivesse
sido criada do nada, Deus não seria Deus”.10

Fazendo eco à Bavinck e Kuyper, dizemos que não há um pedaço, um “cantinho”


do universo que não tenha sido criado por Deus. Não há vida fora de Deus. Nele
vivemos, nos movemos e existimos. (At 17.28).

Portanto, um dos aspectos fundamentais da soberania de Deus repousa no fato


dele, por meio do Espírito, ter criado todo o universo e a nós conforme sua
deliberação e graça. Vejamos a expressão dessa realidade em alguns salmos:

Os céus por sua palavra se fizeram, e, pelo sopro de sua boca, o exército
deles. (Sl 33.6).
Vinde, adoremos e prostremo-nos; ajoelhemos diante do SENHOR, que nos
criou. (Sl 95.6).
Sabei que o SENHOR é Deus; foi ele quem nos fez, e dele somos; somos o
seu povo e rebanho do seu pastoreio. (Sl 100.3).
Que variedade, SENHOR, nas tuas obras! Todas com sabedoria as fizeste;
cheia está a terra das tuas riquezas. (Sl 104.24).
O meu socorro vem do SENHOR, que fez o céu e a terra. (Sl 121.2).

8
D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 72.
9
Veja-se: Abraham Kuyper, Sabedoria & Prodígios: Graça comum na ciência e na arte, Brasília, DF.:
Monergismo, 2018, p. 35-39.
10
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v.
2, p. 427.
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A Bíblia atesta que Deus faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade
(Ef 1.11), conforme o seu santo prazer e deliberação (Sl 115.3). Todos os seus atos,
livres como são, constituem-se em manifestações do seu soberano poder e da sua
infinita sabedoria (Pv 3.19; Rm 11.33).

O salmista diz que a inteligência do Senhor é incomensurável: “Grande (lAdG")


(gadol) é o Senhor nosso e mui poderoso; o seu entendimento (hn"WbT.) (tebunah)
não se pode medir” (Sl 147.5).

E esta sabedoria se manifestou na criação: “Àquele que com entendimento


(hn"WbT.) (tebunah) fez os céus, porque a sua misericórdia dura para sempre” (Sl
136.5).

Jeremias escreve: “O Senhor fez a terra pelo seu poder; estabeleceu o mundo
por sua sabedoria (hm'k.x') (chokmah), e com a sua inteligência (!WbT') (tabuwn)
(judiciosamente,11 entendimento12) estendeu os céus” (Jr 10.12).

No livro de Jó lemos: "Eis que Deus se mostra grande em seu poder!" (Jó
36.22/Jó 36.26).

A Criação é resultado da vontade e do poder criador de Deus, revelando aspectos


da sua majestade e grandeza. (Gn 1.1,26,27; Sl. 148.5; Is 44.24; Jr 32.17; Rm 1.20;
4.17; 2Co 4.6; Hb 11.3; Ap 4.11). “Toda a criação nada mais é do que a cortina
visível por detrás da qual irradia a operação excelsa desse pensamento divino”,
interpreta Kuyper.13

Na criação em geral e na formação do homem em especial, encontramos a


concretização precisa do decreto eterno de Deus. O homem é o produto da vontade
de Deus: "Tudo quanto aprouve ao Senhor ele o fez, nos céus e na terra, no mar e
em todos os abismos" (Sl 135.6).

Assim, o homem não foi criado por um insensível acaso, por uma catástrofe
cósmica ou por uma complicada mistura de gases e matérias. O homem foi formado
por Deus de acordo com a sua sábia e soberana vontade (Gn 2.7; Rm 11.33-36).14

O salmista louva e convida os fiéis a louvarem a Deus considerando o seu poder


na Criação: "Louvem o nome do Senhor, pois mandou ele, e foram criados" (Sl
148.5).15

11
Sl 49.4.
12
Sl 136.5; 147.5.
13
Abraham Kuyper, Sabedoria & Prodígios: Graça comum na ciência e na arte, Brasília, DF.: Monergismo,
2018, p. 38.
14
“A origem da humanidade não é, de acordo com o nosso texto [Gn 1.26], o resultado de acontecimentos
fortuitos que ocorreram por meio de eras prolongadas de tempo” (Gerard van Groningen, Criação e
Consumação, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, v. 1, p. 76).
15
Como indicativo histórico extrabíblico do conceito judeu referente à criação do mundo como sendo
proveniente do nada, citamos o livro apócrifo de Macabeus, que diz: "Suplico-te, meu filho, que olhes para o
céu e para a terra e para todas as coisas que há neles, e que penses bem que Deus as criou do nada, assim
como a todos os homens" (2Mac 7.28).
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 5

Na Criação nos deparamos já de início com o Deus que fala e age com poder. O
seu poder "é a primeira coisa evidente na história da criação (Gn 1.1)", destaca
Charnock (1628-1680).16 De fato, a criação do nada nos fala de seu infinito e
incompreensível poder.17

Davi contemplando a majestosa criação de Deus, escreveu: “Graças te dou, visto


que por modo assombrosamente (arey") (yare') maravilhoso (hl'P') (palah) me
formaste; as suas obras são admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem” (Sl
139.14).18

A doutrina da Criação nos fala do poder todo suficiente de Deus e de nossa total
dependência daquele que nos criou e preserva. Somente Deus, pelo seu poder,
pode do nada tudo criar.19

Maringá, 07 de julho de 2023.


Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

16
Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Two
volumes in one), 1996 (Reprinted), v. 2, p. 36.
17
Cf. Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God, v. 2, p. 38.
18
“Ao único que opera grandes (lAdG") (gadol) maravilhas (al'P') (pala), porque a sua misericórdia
dura para sempre” (Sl 136.4).
19
“A doutrina da criação a partir do nada ensina a absoluta soberania de Deus e a absoluta dependência
humana. Se uma partícula não tivesse sido criada do nada, Deus não seria Deus” (Herman Bavinck,
Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 427).

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