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Palavras chaves:

Criação do homem, Antropologia, Sabedoria de Deus

Assuntos:
Cosmovisão Reformada

Tentando pensar e viver como um Reformado:


Reflexões de um estrangeiro residente (11)
B. A Criação do Homem foi conforme o Sábio Conselho da
Trindade
A questão: quem é homem?, contém um
mistério que não pode ser explicado pelo
próprio homem. – Herman Dooyeweerd
1
(1894-1977).

O Salmo 8 exalta a majestade do nome de Deus manifesta na Criação. Aliás, a


majestade de Deus e o seu nome, são aqui, poeticamente sinônimos 2 (Sl 8.1). É um
hino que de forma analítica, por meio da Criação e do homem em especial, dignifica
a majestade de Deus. Este salmo em sua brevidade e simplicidade lírica, 3 “é um
hino à glória de Deus criador”.4

É possível que Davi tenha composto este Salmo na juventude, quando era
apenas um pastor de ovelhas, quando as suas lutas eram bastante complexas na
simplicidade de sua vida.5 Nesta fase, ele, certamente passava muitas noites
dormindo ao relento, contemplando as estrelas no firmamento e refletindo sobre o
poder de Deus. Esta mesma fé amadurecida pelas experiências com o Senhor o
acompanhará.

1
Herman Dooyeweerd, No Crepúsculo do Pensamento, São Paulo: Hagnos, 2010, p. 248.
2
Cf. Peter C. Craigie, Psalms 1-50, 2. ed. Waco: Thomas Nelson, Inc. (Word Biblical Commentary, v. 19),
2004, (Sl 8), p. 107.
3
Veja-se: C.S. Lewis, Reflections on the Psalms, San Diego: Harvest Book Harcourt, 1986, p. 132.
4
Artur Weiser, Os Salmos, São Paulo: Paulus, 1994, p. 98. Veja-se também: James M. Boice,
Psalms: an expositional commentary, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 1994, v. 1, (Sl 8), p. 67;
Anthony Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 30-32.
Para uma visão panorâmica das interpretações deste Salmo ao longo da história, veja-se: Bruce K.
Waltke; James M. Houston; Erica Moore, The Psalms as Christian Worship: A Historical Commentary:
A Historical Commentary, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 2010, p. 234-254.
5
“32 Davi disse a Saul: Não desfaleça o coração de ninguém por causa dele; teu servo irá e pelejará contra o
filisteu. 33 Porém Saul disse a Davi: Contra o filisteu não poderás ir para pelejar com ele; pois tu és ainda
moço, e ele, guerreiro desde a sua mocidade. 34 Respondeu Davi a Saul: Teu servo apascentava as ovelhas de
seu pai; quando veio um leão ou um urso e tomou um cordeiro do rebanho, 35 eu saí após ele, e o feri, e livrei
o cordeiro da sua boca; levantando-se ele contra mim, agarrei-o pela barba, e o feri, e o matei. 36 O teu
servo matou tanto o leão como o urso; este incircunciso filisteu será como um deles, porquanto afrontou os
exércitos do Deus vivo. 37 Disse mais Davi: O SENHOR me livrou das garras do leão e das do urso; ele me
livrará das mãos deste filisteu. Então, disse Saul a Davi: Vai-te, e o SENHOR seja contigo” (1Sm 16.32-37).
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Outra ocasião provável é quando, um pouco mais maduro e já ungido rei, 6 é


foragido de Saul que queria matá-lo. Neste período teve oportunidade, ainda que
com o coração angustiado, de experimentar a mesma sensação de ver e refletir
sobre a imensidão do céu diante dos seus olhos: “Ó SENHOR, Senhor nosso, quão
magnífico em toda a terra é o teu nome! Pois expuseste nos céus a tua majestade.
(...) 3Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que
estabeleceste” (Sl 8.1,3).

O salmista, à noite, tendo o céu estrelado diante de si, contempla parte da criação
e exulta demonstrando que em toda a terra o nome de Deus é exaltado. Ele
ultrapassa a visão apenas local de Israel, para reconhecer que o testemunho de
Deus na Criação se estende a toda a terra (Sl 8.1). “O mundo foi originalmente
criado para este propósito, que todas as partes dele se destinem à felicidade do
homem como seu grande objeto”, interpreta Calvino.7

O salmista percebe que este reconhecimento da majestade de Deus só se tornou


possível pela revelação de Deus na Criação: “Pois expuseste nos céus a tua
majestade” (Sl 8.1). É Deus mesmo quem sempre inicia o processo e os meios de
comunicação entre Ele e nós. A sua comunicação é sempre um ato de graça. Após
a Queda, envolve também a sua misericórdia uma vez que ela é uma manifestação
da bondade de Deus para com aqueles que estão em miséria.8

Davi ciente de que a Criação não é uma mera extensão da essência de Deus, 9
não se detém na Criação, antes, vai além, reconhecendo a glória de Deus nela.10

Argumentando de forma espacialmente dedutiva, 11 faz uma pergunta retórica:


“Que é o homem, que dele te lembres? E o filho do homem, que o visites?” (Sl 8.4).

Davi parte de um princípio óbvio para nós cristãos: Deus é o Criador do universo
e também do homem. Esta dimensão jamais alcançada pela filosofia grega nos
oferece uma cosmovisão diferente: o homem criado por Deus não é um mero
detalhe fruto de um processo cósmico-evolutivo, antes é uma criação especial de
Deus.12

6
Veja a argumentação de Keil e Delitzsch em favor da redação do Salmo após a unção de Davi (C.F. Keil; F.
Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, MI: Eerdmans, (1871), v. 5, (I/III), (Sl 8), p.
148).
7
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.6), p. 172.
8
Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 219.
“Misericórdia é o princípio eterno da natureza de Deus que o leva a buscar o bem temporal e a
salvação eterna dos que se opuseram à vontade dele, mesmo a custo do sacrifício próprio” (Augustus
H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2003, v. 1, p. 431).
9
Veja-se: Francis A. Schaeffer, Poluição e Morte do Homem, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 35.
10
Ver também: Artur Weiser, Os Salmos, São Paulo: Paulus, 1994, p. 98.
11
“Nem mesmo o mundo todo pode ter o mesmo valor de um homem” (Herman Bavinck, Teologia
Sistemática, p. 19).
12
Veja-se: Gordon H. Clark, Uma visão cristã dos homens e do mundo, Brasília, DF.: Monergismo, 2013, p.
90.
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Assim mesmo, a sensação é de pequenez diante do vasto universo onde posso


contemplar, ainda hoje, uma minúscula parte. O sistema solar é apenas um pequeno
ponto no universo que apenas conhecemos limitadamente. E, mesmo assim, a
Terra, o minúsculo planeta onde vivemos, é o centro significativo do universo, como
acentua Bavinck (1854-1921):

A Escritura nos fala pouco sobre a criação dos céus e dos anjos, limitando-
se primariamente à Terra. Em um sentido astronômico a Terra pode ser
pequena e insignificante. Em matéria de massa e peso ela pode ser
excedida por centenas de planetas, sóis e estrelas. Mas em um sentido
religioso e moral ela é o centro do universo. A Terra e somente a Terra foi
escolhida para ser a morada do homem. Ela foi escolhida para ser a arena
na qual a grande batalha será travada contra as forças do mal. Ela foi
13
escolhida para ser o lugar do estabelecimento do reino dos céus.

No entanto, até onde a ciência pode ir não há nada mais complexo do que o
cérebro humano14 ainda que ele não seja o aspecto mais amplo e completo do ser
humano criado à imagem de Deus.15

Barth (1886-1968), com propriedade, escreveu a respeito do homem, dizendo que


“ele não seria homem se não fosse a imagem de Deus. Ele é a imagem de Deus
pelo fato de que ele é homem”.16 O homem revela mais sobre Deus do que toda a
criação.

Bavinck (1854-1921), expressa esse conceito de forma quase poética, porém,


amplamente bíblica:

A essência da natureza humana é seu ser [criado] à imagem de


Deus. Todo o mundo é uma revelação de Deus, um espelho de seus
atributos e perfeições. Toda criatura, ao seu próprio modo e grau, é a
incorporação de um pensamento divino. Mas, entre as criaturas, apenas o
ser humano é a imagem de Deus, a mais exaltada e mais rica

13
Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP, 2001, p. 187.
14
“Não há outra estrela ou planeta no universo cuja importância para Deus se compare à da Terra. O
próprio homem, no sentido biológico, é infinitamente mais complexo do que as estrelas. É absurdo
apequenar o homem só por causa de seu tamanho. Embora grande, uma estrela é muito simples,
composta em sua maior parte de hidrogênio e hélio. A medida do significado no universo não é o
tamanho, mas a ordem e a complexidade, e o cérebro humano, até onde a ciência pode determinar,
é, de longe, o mais complexo agregado de matéria do universo. Em sentido estritamente físico, a
Terra é o mais complexo agregado de matéria inanimada que conhecemos no universo, e se destina
exclusivamente a servir de lar para o homem” (Henry M. Morris, Amostra de Salmos, Miami: Editora
Vida, 1986, p. 21-22). “Os seres humanos são infinitamente mais complexos do que processos
físicos, químicos e biológicos. A partir de uma perspectiva teísta cristã, pode-se afirmar também essa
complexidade em virtude do fato de que as pessoas são criadas à própria imagem de Deus. Cada
pessoa é única, e as exceções podem ser citadas para qualquer paradigma ou modelo” (Robert W.
Pazmiño, Temas Fundamentais da Educação Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 13).
15
“O homem que por meio de sua mente pode pensar o universo, descobrir suas leis, e estimar sua extensão, é
maior do que o universo. (...) A verdadeira grandeza do homem não é sua razão, pela qual aprende a
conhecer, mas consiste no fato de que foi feito para a comunhão com Deus e com os demais indivíduos”
(Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina Cristã da Criação e da Redenção, v. 2, São Paulo: Fonte Editorial,
2006, p. 100).
16
Karl Barth, Church Dogmatics, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2010, III/1, p. 184.
Igualmente, Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 628.
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autorrevelação de Deus e, consequentemente, a cabeça e a coroa de toda


17
a criação, a imago Dei e o epítome da natureza.
Embora todas as criaturas exibam vestígios de Deus, somente o ser
humano é a imagem de Deus. Ele inteiro é essa imagem, alma e corpo, em
suas faculdades e capacidades, em todas as condições e relações. O ser
humano é a imagem de Deus porque, e na medida em que, é
verdadeiramente humano; e é verdadeiro e essencialmente humano porque,
18
e na medida em que, é a imagem de Deus.

Aqui, vemos de forma refletida o paradoxo da existência humana: grandeza e


limitação; finitude e transcendência; prodigialidade e animalidade. A ciência esbarra
sempre na questão enfatizada por Blaise Pascal,19 detectada por Bavinck: “A ciência
não pode explicar essa contradição no homem. Ela reconhece apenas sua grandeza
e não sua miséria, ou apenas sua miséria, e não sua grandeza”.20

Sem a Palavra de Deus nenhuma ciência ou mesmo a arte, nem mesmo a junção
de todas as ciências e o idealismo da arte conseguem apresentar um quadro
completo do significado do homem e da vida.

Somente por meio da revelação de Deus, o nosso Criador, podemos ter uma
visão clara e abrangente do significado da vida, do homem, do tempo e da
eternidade. Somente a cosmovisão cristã tem algo a dizer de forma compreensiva e
significativa a respeito da totalidade da vida. 21 É por isso que somente a partir de
uma visão real do Deus das Escrituras que nos leve a honrá-lo, poderemos ter um
enfoque correto da realidade.22

Séculos depois de Davi, encontramos admiração semelhante entre os gregos.


Todavia, a admiração dos gregos, ao contemplar o universo, os conduziu em outra
direção. Na realidade, eles suprimiram a revelação. Por isso, em suas reflexões
surgem as explicações a respeito da origem da vida. Eles diziam que a admiração
conduz o homem à filosofia.

17
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 540.
18
Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 564. De
semelhante modo, escreveu Grudem: “É provável que fiquemos surpresos ao descobrir que quando o Criador
do universo quis fazer algo ‘à sua imagem’, algo mais semelhante a si do que todo o resto da criação, Ele nos
criou. Essa descoberta nos dá um profundo senso de dignidade e importância, pois passamos a refletir sobre a
excelência de todo o restante da criação divina: o universo estrelado, a terra abundante, o mundo das plantas
e dos animais e os reinos dos anjos são admiráveis, magníficos mesmo. Mas nós somos mais semelhantes ao
nosso Criador do que qualquer dessas coisas. Somos a culminância da obra criadora infinitamente sábia e
hábil de Deus” (Wayne Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 370).
19
“É perigoso fazer ver demais ao homem quanto ele é igual aos animais, sem lhe mostrar a sua grandeza. É
ainda perigoso fazer-lhe ver demais a sua grandeza sem a sua baixeza. É ainda mais perigoso deixá-lo ignorar
uma e outra. Mas é muito vantajoso representar-lhe ambas” (Blaise Pascal, Pensamentos, São Paulo: Abril
Cultural, 1973. (Os Pensadores, v. 16), VI.418. p. 139).
20
Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 24.
21
Vejam-se: Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, São Paulo: Cultura
Cristã, 2008, p. 19; Cornelius Van Til, Apologética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 21.
22
“Se nos recusarmos a honrar a Deus como Deus, toda nossa visão sobre a vida e o mundo torna-
se distorcida” (R.C. Sproul, A Santidade de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 206).
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 5

Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) estão acordes neste ponto.
Platão escreveu: “A admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem
outra origem a filosofia”.23

Aristóteles, na mesma linha:

Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim hoje como no
começo, foram levados a filosofar, sendo primeiramente abalados pelas
dificuldades mais óbvias, e progredindo em seguida pouco a pouco até
resolverem problemas maiores: por exemplo, as mudanças da Lua, as do
24
Sol e dos astros e a gênese do universo.

Nestas reflexões surgem as explicações a respeito da origem da vida. É o que


veremos no próximo post.

Maringá, 07 de julho de 2023.


Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

23
Apud Platão, Teeteto, 155d: In: Teeteto-Crátilo, 2. ed. Belém: Universidade Federal do Pará, 1988, p. 20.
24
Aristóteles, Metafísica, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, I.2. p. 214.

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