Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Palavras chaves:
Assuntos:
Cosmovisão Reformada
O ser humano é caracterizado por desejos. Um desejo comum a todos nós, ainda
que disfarçado sob outros nomes, é o de autossuficiência, de bastar-se a si mesmo.
“Já imaginou” − perguntamos a nós mesmos, num solilóquio disfarçado de diálogo −:
“viver sem de nada e de ninguém precisar além de nós mesmos?” As respostas
poderão ser variadas mas, creio, serão em geral com uma propensão positiva de
admiração e satisfação.
1
D. Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus,
2004, p. 41.
2
E.F. Scott, El Caracter de la Iglesia Primitiva, Buenos Aires: La Aurora, 1967, p. 28.
3
R.C. Sproul, Estudos bíblicos expositivos em Romanos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 107.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 2
Este desejo está vinculado à busca pela felicidade. Daí a associação natural entre
autossuficiência e felicidade. Queremos ser felizes não abstratamente, antes, eu
quero ser feliz pessoalmente.4
O pecado nos tirou isto. Agora revelamos a nossa carência, o desejo ansioso de
termos o para quê fomos criados.6 Aí está o nosso dilema. A felicidade que se
origina essencialmente em Deus não pode ser encontrada fora dele. Deste modo,
ser feliz sem Deus é uma contradição de termos.7
4
Veja-se: Julías Marías, A Felicidade Humana, São Paulo: Duas Cidades, 1989, p. 18-20.
5
“ Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.
1 2
Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como
noiva adornada para o seu esposo. 3 Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o
tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus
mesmo estará com eles. 4 E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não
haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. 5 E aquele que está
assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas
palavras são fiéis e verdadeiras. 6 Disse-me ainda: Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o
Princípio e o Fim. Eu, a quem tem sede, darei de graça da fonte da água da vida” (Ap 21.1-6).
6
Veja-se: R.C. Sproul, A Alma em Busca de Deus: Satisfazendo a fome espiritual pela comunhão com Deus,
São Paulo: Eclesia, 1998, p. 170.
7
Veja-se: C.S. Lewis, A essência do Cristianismo autêntico, São Paulo: Aliança Bíblica Universitária, (1979),
p. 27.
8
“Parte da cruel ironia da existência humana parece ser que as coisas que, em nossa opinião, iriam
nos fazer felizes, deixam de fazê-lo” (Alister McGrath, O Deus Desconhecido: Em Busca da
Realização Espiritual, São Paulo: Loyola, 2001, p. 9).
9
Sproul (1939-2017) descrevendo as lutas de sua mocidade, disse: “Já cometi muitos pecados, mas
nenhum deles adicionou sequer um grama de felicidade à minha vida. Só me acrescentou infelicidade
em abundância. (...) Meus pecados não me trouxeram felicidade. No entanto me deram satisfação.
(...) O pecado pode produzir contentamento, porém nunca traz felicidade” (R.C. Sproul, A santidade
de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 171).
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 3
contingentes que somos, precisamos acertar em nossas seleções. Isso nos causa
angústia e dor.
Os desejos que agitam o homem carnal são como ondas impetuosas que se
chocam umas contra as outras, arremessando o homem de um lado para
outro, de modo tal que ele muda e vacila a todo instante. Todos quantos se
entregam aos desejos carnais experimentam tal desassossego, porque não
10
existe estabilidade senão no temor de Deus,
A efemeridade da felicidade
10
João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 3.3), p. 344.
11
Armand M Nicholi Jr., Deus em questão: C.S. Lewis e Sigmund Freud debatem Deus, amor, sexo e
o sentido da vida, Viçosa, MG.: Ultimato, 2005, p. 109. Marías, que escreve uma obra de fôlego sobre
a felicidade, depois de observar que não existe um verbo para este substantivo (tanto em espanhol
quanto em português), diz a respeito de seu objeto: “uma investigação sobre essa estranha realidade,
procurada e raramente encontrada, que chamamos felicidade” (Julías Marías, A Felicidade Humana,
São Paulo: Duas Cidades, 1989, p. 13-14). À frente: “Veremos ao longo deste estudo que a felicidade
é possível de modo parcial, deficiente, inseguro; mas a pretensão é inseparável da condição humana”
(p. 38).
12
Veja-se: Agostinho, A Trindade, São Paulo: Paulus, 1994, XIII.3.6ss.
13
Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, 1998, v. 3, (Sl 118), p. 369,370.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 4
A Escritura trata com seriedade as nossas questões por mais simples ou mais
graves que sejam. Ela nos propõe caminhos seguros que nos conduzem pelas
sendas da obediência a Deus. Ele nos mostra a trilha da felicidade. Calvino escreve:
Agostinho (354-430), não sem razão, afirma que, no Sermão da Montanha, temos
“um programa perfeito de vida cristã destinado à direção dos costumes”.21
14
João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 4.10), p. 105.
15
St. Agostinho, O Sermão do Monte, São Paulo: Paulinas, 1992. Vejam-se: H.L. Drumwright Jr., Sermão do
Monte: In: Merril C. Tenney, ed. Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, v. 5, p. 569-570;
John R.W. Stott, A Mensagem do Sermão do Monte, 3. ed. Paulo: ABU., 1985, p. 11.
16
A Bíblia traduzida por Miles Coverdale (1488-1569), foi a primeira edição completa das Escrituras impressa
em inglês (04/10/1535). A sua impressão provavelmente ocorreu na Alemanha. Coverdale não se baseou nos
originais Hebraicos e Gregos, mas, sim, na Vulgata e em outras traduções existentes, tais como, a de Lutero
(AT.: 1522; NT.: 1534), de Leo Judas (Bíblia de Zurique, 1529); William Tyndale (NT.: 1525; AT.: 1535), etc.
Os apócrifos foram impressos como um apêndice ao Antigo Testamento.
17
“Quando a alma se encontra envolta em desejos carnais, busca sua felicidade nas coisas desta terra” (João
Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 60).
18
Vejam-se: F. Hauck, Maka/rioj: In: G. Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New
Testament, 8. ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, v. 4, p. 368;
William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, v. 1, p. 368.
19
Conforme expressão de Sproul (R.C. Sproul, Oh! Como amo a tua lei. In: Don Kistler, org. Crer e Observar:
o cristão e a obediência, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 11).
20
João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 154.
21
Agostinho, O Sermão do Monte, São Paulo: Paulinas, 1992, I.1.1. p. 23.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 5
A. Tentação da autossuficiência
A autonomia humana pecaminosa, longe de
ser o caminho para a autorrealização
humana, é, em si mesma, uma distorção
daquilo que é humano. ‒ Robert D. Knudsen
22
(1924-2000).
No Paraíso, Satanás tentou os nossos primeiros pais por meio do desejo que,
de alguma forma, cultivavam de serem iguais a Deus. Eles se esqueceram de todo o
histórico de sua relação com o Deus fiel, amoroso, justo e sábio. 23 O seu desejo já
em si mesmo, pecaminoso, falou mais alto aos seus corações.
Ao ceder à tentação, ela está plenamente convencida de que o que fez é certo
dentro de seus objetivos duvidosos. Daqui, podemos concluir que a certeza subjetiva
não significa necessariamente a correta interpretação dos fatos.
22
Robert D. Knudsen, O Calvinismo Como uma Força Cultural: In: W. Stanford Reid, ed. Calvino e Sua
Influência no Mundo Ocidental, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 20.
23
“O pecado original foi o pecado de esquecer Deus. Adão e Eva deram as costas a ele – daí os problemas”
(David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro:
Textus, 2004, p. 47).
24
Ocorre 5 vezes no NT.: Lc 20.23; 1Co 3.19; 2Co 4.2; 11.3; Ef 4.14.
25
e)capata/w *Rm 7.11; 16.18; 1Co 3.18; 2Co 11.3; 2Ts 2.3; 1Tm 2.14.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 6
O engano do pecado
O Humanismo secular
26
Veja-se: R.K. Mc Gregor Wright, A Soberania Banida, São Paulo: Cultura Cristã, 1998, p. 248. Após
a queda, “a criação não se tornou má, mas tornou-se o campo de batalha entre o bem e o mal. Ela
carrega as cicatrizes do pecado (e o pecado sempre deixa cicatrizes). Na ocasião, a estratégia de
Satanás era tornar o mundo de Deus o seu mundo — apossar-se do bom mundo de Deus. Satanás
trabalha para transformar o mundo de Deus à sua imagem. Ele trabalha para convencer o homem de
que o mundo de Deus é estranho, bizarro, desagradável, desafeiçoado ou entediante. Esse foi
justamente o seu apelo para Eva em Gênesis 3: ‘Eva, venha viver no meu mundo. Deus não deseja o
melhor para vocês. Deus não os deixou comer esta fruta deliciosa. Em meu mundo, vocês podem
comê-la. Deus não quer que vocês saibam tudo o que ele sabe. Em meu mundo, deixarei que vocês
saibam todas as coisas. Deus mentiu para vocês. Mas estou lhes dizendo como as coisas realmente
são’. Satanás está propondo não apenas que Adão e Eva desobedeçam; não está simplesmente
convidando o homem a rebelar-se. Satanás está oferecendo-lhes um mundo completamente
diferente. Está oferecendo-lhes uma realidade diferente. Todos sabemos que aquilo que nos cerca
tende a tornar-se normal para nós” (P. Andrew Sandlin, Deus decide o que é normal, Brasília, DF.:
Monergismo, 2021 (Edição do Kindle), p. 9. Posição 144-1880).
27
Cf. Gene Edward Veith, Jr., Tempos Pós-Modernos: uma avaliação cristã do pensamento e da cultura da
nossa época, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 65. Veja-se exemplo disso em Erich Fromm, que sustenta
que “o homem é capaz de saber o que é bom e de agir em conformidade, apoiado no vigor de suas
potencialidades naturais e de sua razão”. Continua: “Seria insustentável se fosse verdadeiro o dogma da
maldade natural nata do homem” (Erich Fromm, Análise do Homem, São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.], p.
182).
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 7
Talvez o volátil consenso popular possa nos dar uma pista, porém, ele além de
manipulável é extremamente fugidio.29 Estamos “perdidos no espaço”, ainda
buscando a nossa satisfação. Sem absolutos, não sabemos ao certo o valor do
homem e o seu papel no universo. Sem princípios universais não existem absolutos.
Sem absolutos, é impossível uma ética consistente.30 Assim, tudo é possível.31
34
Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd
Publicações, 2007, p. 68.
35
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1 (Sl 1.1), p. 51. Veja-se: João Calvino,
Beatitudes: sermões sobre as bem-aventuranças, São Paulo: Fonte Editorial, 2008, p. 34.
36
Cf. U. Becker, Bênção: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 297; F. Hauck, Maka/rioj: In: G. Friedrich; Gerhard
Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8. ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans
Publishing Co., (reprinted) 1982, v. 4, p. 362-363.
37
Veja-se: William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, v. 1, (Mt 5.3),
p. 97-98.
38
F. Hauck, Maka/rioj: In: G. Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v.
4, p. 363.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 9
39
Cf. F. Hauck, Maka/rioj: In: G. Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament,
v. 4, p. 362; William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, v. 1, (Mt 5.3), p. 97.
40
Cf. R.T. France, Mateus. In: D.A. Carson, et. al., eds. Comentário Bíblico Vida Nova, São Paulo: Vida Nova,
2009, p. 1369.
41
“Bem-aventurado o homem que põe no SENHOR a sua confiança e não pende para os arrogantes,
nem para os afeiçoados à mentira” (Sl 40.4). “Ó SENHOR dos Exércitos, feliz o homem que em ti
confia” (Sl 84.12).
42
“Bem-aventurados todos os que nele se refugiam” (Sl 2.12). “Oh! Provai e vede que o SENHOR é
bom; bem-aventurado o homem que nele se refugia” (Sl 34.8).
43
“Bem-aventurado o homem, SENHOR, a quem tu repreendes, a quem ensinas a tua lei” (Sl 94.12).
44
“Bem-aventurados os irrepreensíveis no seu caminho, que andam na lei do SENHOR. Bem-
aventurados os que guardam as suas prescrições e o buscam de todo o coração” (Sl 119.1-2).
45
“Bem-aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por seu auxílio, cuja esperança está no SENHOR,
seu Deus” (Sl 146.5).
46
“Feliz a nação cujo Deus é o SENHOR, e o povo que ele escolheu para sua herança” (Sl 33.12);
“Bem-aventurado o povo a quem assim sucede! Sim, bem-aventurado é o povo cujo Deus é o
SENHOR” (Sl 144.15).
47
“Bem-aventurado aquele a quem escolhes e aproximas de ti, para que assista nos teus átrios;
ficaremos satisfeitos com a bondade de tua casa -- o teu santo templo” (Sl 65.4).
48
“Bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado é coberto” (Sl 32.1).
49
“Bem-aventurado aquele que teme ao SENHOR e anda nos seus caminhos!” (Sl 128.1). Seguir
fielmente o caminho do Senhor nos torna irrepreensíveis (Sl 119.1).
50
R.C. Sproul, Oh! Como amo a tua lei. In: Don Kistler, org. Crer e Observar: o cristão e a obediência, São
Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.12.
51
William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, v. 1, (Mt 5.3), p. 96.
Compare com: R.C.H. Lenski, Commentary on the New Testament: The Interpretation of St. Matthew’s
Gospel, [s. cidade]: Hendrickson Publishers, 1998, (Mt 5.3), p. 183.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 10
Aqui nosso Senhor ataca frontalmente o desejo humano tão arraigado no coração
de ter uma visão bastante otimista a seu respeito, considerando-se acima dos
demais. Essa tentação é tão comum e, até mesmo, tão aceitável socialmente dentro
de determinadas condições, que nem sequer paramos para pensar nela.
52
“Havia também certo mendigo (ptwxo\j), chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta
daquele” (Lc 16.20).
53
Vejam-se, entre outros: Richard C. Trench, Synonyms of The New Testament, 7. ed. (revised and
enlarged.), London: Macmillan And Co., 1871, § xxxvi, p. 121-123; F. Hauck; E. Bammel, ptwxo/j: In:
G. Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8. ed. Grand Rapids,
Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, v. 6, p. 885-915; William Hendriksen,
Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, v. 1, p. 375-377; p. 147-148; D.A. Carson, Comentario
Bíblico del Expositor: Mateo, Miami, Florida: Editorial Vida, 2004, (Mt 5.3-10), p. 148; A.T. Robertson,
Word Pictures in the New Testament, Volume 1: The Ages Digital Library, [CD-ROM], (Rio, Wi: Ages
Sofware, 2002, (Mt 5.3); Leonard J. Coppes, ‘Abâ: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 4-5; Leonard J.
Coppes, ‘Aãnâ: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo
Testamento, p. 1145-1146 (Especialmente); G.J. Botterweck, Ebhyôn: In: G. Johannes Botterweck;
Helmer Ringgren, eds. Theological Dictionary of the Old Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdmans,
1977 (Revised edition), v. 1, p. 27-41; E. Gerstenberger, ‘Bh: In: E. Jenni; C. Westermann, eds., Dic-
cionario Teologico Manual Del Antiguo Testamento, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1978, v. 1, col.
601-608; A. Richardson, Poor, etc.: In: Alan Richardson, ed. A Theological Word Book of the Bible, 13.
ed. London: SCM Press LTD., 1975, p. 168-169.
54
J.C. Ryle, Comentário Expositivo do evangelho Segundo Mateus, São Paulo: Imprensa Metodista, 1959, (Mt
5.1-12), p. 23.
55
João Calvino, Beatitudes: sermões sobre as bem-aventuranças, São Paulo: Fonte Editorial, 2008, p. 37.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 11
É por isso que o nosso primeiro contato com o evangelho, com frequência, antes
de trazer paz espiritual, provoca uma espécie de guerra interior, uma “crise”. O
evangelho desestabiliza a nossa estrutura de pensamento e, por vezes, a tão bem
arrumada concepção de vida e valores que sustentamos – ainda que nem sempre
conscientemente – e divulgamos alguns de seus aspectos mais evidentes em nossa
compreensão.
Esse conflito, portanto, como é previsível, dói e, por vezes, dói muito. Contudo o
evangelho nos desafia, transforma e concede, pelo novo nascimento espiritual, uma
dimensão nova da vida, do tempo e da eternidade, mostrando-nos o quanto
estávamos equivocados em nossa forma de nos ver, interpretar e nos posicionar em
relação à realidade. O evangelho evidencia de modo contundente o quanto somos
carentes de Deus e da sua graça. O Deus que cria a realidade, vem nos mostrar que
o nosso conceito de real está totalmente equivocado. Isso é extremamente
chocante, especialmente se você é seriamente comprometido com seus valores,
como foi o caso de Saulo.
Enquanto os homens querem ter coisas para serem felizes, Jesus Cristo começa
mostrando a necessidade que temos de nos esvaziar. A construção da verdadeira
felicidade começa pela desconstrução de nosso eu, nossa pretensa riqueza,
referência e escala de valores. Percebam o drama: eu que, durante toda a vida,
desde o nascimento fui socializado assim, tendo como referência de valores o eu,
agora sou redirecionado para uma esfera totalmente distinta, passando a ter Deus
como referência e centro. Mudei de uma visão “egorreferente” para outra, oposta,
“teorreferente”.
A Lei de Deus é boa. Ela nos foi dada para o nosso bem. Ela se tornou
maldição para nós por causa do nosso pecado. A quebra da Lei fez com que
merecêssemos o justo castigo por ela prescrito. Aliás, a Lei precisa ser enfatizada
para que o homem, por graça, se disponha a ouvir o evangelho. Sem a Lei, a
impressão que fica é que temos uma vida correta e satisfatória. De nada
precisamos; muito menos de salvação.
56
Albert N. Martin, As Implicações Práticas do Calvinismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 29.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 12
Na realidade, a Lei de Deus, como que por um espelho, reflete a nossa miséria
espiritual resultante de nossa total incapacidade de cumprir as exigências divinas. O
confronto com a Lei é algo profundamente angustiante e destruidor de alguma
presunção orgulhosamente autônoma.
As nossas vestes autônomas – com todos seus valores agregados por marcas,
etiquetas e nomes exóticos – só servem para certificar de forma eloquente a nossa
nudez. Não passam de folhas arrancadas às pressas de um jardim já corrompido
pelo pecado. Evidenciam, às vezes, de modo abrupto, as nossas imperfeições.
Como tratar consciente e eficazmente de um mal não percebido? (Sl 19.12). A Lei
coloca em destaque a nossa condição de pecador, revelando de forma contundente
os nossos pecados.57
Por isso, entendemos que somente pela graça, por meio da Lei, podemos ter uma
clara consciência de nossa pecaminosidade ativa e concreta e de sua afronta a
Deus.
Enquanto isso não acontecer, ele soará sempre como algo descartável. “Não
podemos ser cristãos sem convicção do pecado. Ser cristão significa que
compreendemos que somos culpados diante de Deus e que estamos sob a ira de
Deus”, resume Lloyd-Jones.58
A Lei em seu primeiro aspecto, nos cala de vergonha. A graça que nos justifica,
nos faz confessar a Jesus como Senhor. 59 A Lei, portanto, nos conduz à graça que
brilha de forma magnífica na face de Cristo.60
57
”Aqueles (...) que foram instruídos na lei de Deus e no Evangelho, como descrito na Bíblia,
normalmente têm uma consciência mais viva de seu estado pecaminoso, e de seus pecados
particulares, porque a luz divina que brilha neles e que vem das Escrituras para expor-lhes é mais
intensa” (J.I. Packer, A Redescoberta da santidade, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 42).
58
D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996,
p. 227.
59
“Se o leitor separar a lei da pessoa de Cristo, nada ficará nela senão formas vazias. (...) A verdade consiste no
fato de que através de Cristo obtemos a graça que a lei não poderia dar” (João Calvino, O Evangelho
segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.17), p. 57).
60
Veja-se: João Calvino, As Institutas, II.7.8.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 13
Sproul (1939-2017) afirma com precisão: “Não pense que o Evangelho que o
liberta da maldição da lei é uma licença para você desprezar e ignorar a lei”.61
A magnitude da graça é retratada por Paulo ao dizer que “Cristo nos resgatou da
maldição da lei” (Gl 3.13). Ele satisfez perfeitamente todas as exigências dela. Por
isso, o Senhor pode nos libertar definitivamente do seu aspecto condenatório,
restaurando-nos à comunhão com Deus por meio de sua obra sacrificial, fazendo-se
maldito em nosso lugar.
19
Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para
que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, 20 visto
que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que
pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. 21 Mas agora, sem lei, se
manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; 22
justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os
que creem; porque não há distinção, 23 pois todos pecaram e carecem da
glória de Deus, 24 sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante
a redenção que há em Cristo Jesus, 25 a quem Deus propôs, no seu
sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por
ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente
cometidos; 26 tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo
presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em
Jesus. 27 Onde, pois, a jactância? Foi de todo excluída. Por que lei? Das
obras? Não; pelo contrário, pela lei da fé. 28 Concluímos, pois, que o homem
é justificado pela fé, independentemente das obras da lei. 29 É, porventura,
Deus somente dos judeus? Não o é também dos gentios? Sim, também dos
gentios, 30 visto que Deus é um só, o qual justificará, por fé, o circunciso e,
mediante a fé, o incircunciso. 31 Anulamos, pois, a lei pela fé? Não, de
maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei. (Rm 3.19-31).
A Lei, portanto, no seu aspecto moral, não foi abolida. Escreve Calvino:
A Lei não nos salva, contudo nos mostra a necessidade que temos do perdão e
da purificação efetuada por Deus. “A regra de nossa santidade é a lei de Deus”,
afirma Packer (1926-2020).63
61
R.C. Sproul, Oh! Como amo a tua lei!: In: Don Kistler, org. Crer e Observar: o cristão e a obediência, São
Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 14.
62
João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo:
Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.16), p. 160.
63
J.I. Packer, O Plano de Deus para Você, 2. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus,
2005, p. 155.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 14
Por intermédio de Cristo, somos libertos da tentativa insana de tentar ser salvo
pelo cumprimento da Lei, o que é impossível. Além do mais, este desejo ainda que
fosse moralmente possível, não o seria dentro do propósito glorioso de glorificar o
nome de Deus, que deve ser o alvo final de todas as coisas, inclusive de nossa
obediência (1Co 10.31).
Calvino orienta-nos:
Contudo, o que a Lei exige, ela mesma não nos capacita a cumprir, deixando-nos
sozinhos.66 Esta capacitação é somente pela graça que, se envolve a Lei, não se
restringe a ela.
Calvino comenta:
Pela lei Deus exige o que lhe é devido, todavia não concede nenhum poder
para cumpri-la. Entretanto, por meio do Evangelho os homens são
regenerados e reconciliados com Deus através da graciosa remissão de
67
seus pecados, de modo que ele é o ministério da justiça e da vida.
64
Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 22.
65
João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 8, p. 21.
66
“A lei deixa o homem entregue às suas próprias forças e o desafia a empregá-las ao máximo; o Evangelho,
porém, coloca o homem diante do dom de Deus e lhe pede que faça deste dom inefável o verdadeiro
fundamento de sua vida” (J. Jeremias, O Sermão do Monte, 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 57).
67
João Calvino, Exposição de Segunda Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 3.7), p. 70.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 15
Porque, ainda que vivendo como cristãos, vamos aumentando sem cessar
nossa dívida e agravando a embrulhada da nossa situação. A dívida cresce
de dia em dia. E imagino que à medida que envelhecemos, mais conta nos
damos de que não temos possibilidade alguma de cancelar essa dívida. As
72
coisas vão de mal a pior.
Por isso, só nos resta suplicar o perdão. “A súplica por perdão subentende que o
suplicante reconhece que não existe outro método pelo qual sua dívida seja
cancelada. Portanto, é uma súplica por graça”, infere corretamente Hendriksen
(1900-1982).73
68
Calvino comenta: “.... só são dignos estudantes da lei aqueles que se achegam a
ela com uma mente disposta e se deleitam com suas instruções, não considerando
nada mais desejável e delicioso do que extrair dela o genuíno progresso. Desse
amor pela lei procede a constante meditação nela....” (João Calvino, O Livro dos
Salmos, v. 1, (Sl 1.2), p. 53).
69
João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 1.2), p. 53. “No que tange à substância da Escritura, nada se
acrescentou. Os escritos dos apóstolos nada contêm além de simples e natural explicação da lei e dos profetas
juntamente com uma clara descrição das coisas expressas neles” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo:
Paracletos, 1998, (2Tm 3.17), p. 264).
70
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 32.1), p. 39.
71
“41 Certo credor tinha dois devedores: um lhe devia quinhentos denários, e o outro, cinquenta. 42 Não tendo
nenhum dos dois com que pagar, perdoou-lhes a ambos. Qual deles, portanto, o amará mais?” (Lc 7.41-42).
“25 Não tendo ele, porém, com que pagar, ordenou o senhor que fosse vendido ele, a mulher, os filhos e tudo
quanto possuía e que a dívida fosse paga. 26 Então, o servo, prostrando-se reverente, rogou: Sê paciente
comigo, e tudo te pagarei. 27 E o senhor daquele servo, compadecendo-se, mandou-o embora e perdoou-lhe a
dívida” (Mt 18.25-27).
72
K. Barth, La Oración, Buenos Aires: La Aurora, 1968, p. 76.
73
William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, v. 1, p. 470.
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 16
Diria mais: é impossível uma autêntica vida cristã sem esta consciência: de
sermos pecadores e da necessidade do perdão de Deus. 74 Enquanto não
admitirmos isso, estamos, na realidade, sustentando algum tipo de imatura ou
arrogante autossuficiência, de qualquer forma, pecaminosa.
Algumas aplicações
74
Veja-se: David M. Lloyd-Jones, O Clamor de um Desviado: Estudos sobre o Salmo 51, São Paulo:
Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997, p. 53.
75
“Humildes são aqueles que estão convencidos dos seus pecados e não procuram ocultá-los a Deus” (J.C.
Ryle, Comentário Expositivo do evangelho Segundo Mateus, São Paulo: Imprensa Metodista, 1959, (Mt 5.1-
12), p. 23).
Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 17
3. Devemos eliminar de nós todo e qualquer espírito de altivez que nos conduza a
pensar em nossa capacidade e autonomia.77
Calvino interpreta:
5. Os pobres em espírito são aqueles que encaram toda a realidade pelo prisma
teológico, reconhecendo que todas as coisas só são relevantes a partir da
importância conferida por Deus.
6. O caminho da verdadeira pobreza em espírito não começa por olhar para nós
mesmos,79 ou para o nosso próximo. Antes, tem seu início quando nos fixamos
em Deus e contemplamos a sua majestade. Partindo daí, voltamos para nós
mesmos e, assim, percebemos o quanto somos carentes da graça dele.
Calvino comenta:
bem em nós, que o mesmo seja, por esta razão, totalmente debitado à
80
conta da divina graça.
80
João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 4.7), p. 134-135.
81
Sobre a similaridade das expressões “Reino de Deus” e “Reino dos Céus”, veja-se: A.A. Hoekema, A Bíblia
e o Futuro, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 62.
82
A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 72. “A vinda do reino de
Deus representa o estágio final da redenção cósmica no qual Deus e as suas criaturas habitam em harmonia,
justiça e deleite. Na realidade, a ‘vinda do reino de Deus’ é apenas a forma neotestamentária de escrever
shalom” (Cornelius Plantinga Jr., O Crente no Mundo de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 107).
83
Paulo fala da operosidade da fé (1Ts 1.3).
84
Jeremias (1900-1979) denomina isso de “fé vivencial” (J. Jeremias, O Sermão do Monte, 4. ed. São Paulo:
Paulinas, 1980, p. 57).