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Alguns apontamentos de Teologia Fundamental

I
 Em cada momento e ao longo da sua história, um dos grandes desafios do cristianismo tem sido a
exposição da certeza de um facto, ocorrido no passado, mas com constantes influências no presente.
Trata-se de uma história que deve ser contextualizada e em constante revisão. A encarnação de Deus
na figura histórica de Jesus Cristo – acontecimento único e não mitológico – testemunhado pelos
escritores do NT, implica uma fé “contemporânea”. Daí que, a revelação cristã esteja imbuída de
uma configuração atualizante.
Já nos começos do cristianismo se descortina uma perspetiva apologética. Na própria estrutura
narrativa e argumentativa do NT, seguindo a lógica da fidelidade ao acontecimento de Jesus Cristo,
conjugada com as situações vitais das respetivas comunidades, está patente a instância apologética.
O episódio de Paulo no areópago é disso sintomático (cf. Act.17,16-34) e manifesta a exigência de
dar razões da própria fé no meio de um mundo culturalmente diverso. Esta necessidade é ainda
expressa no texto de 1Pe.3,15: “… Estai sempre prontos a responder para vossa defesa a todo
aquele que vos pedir a razão da vossa esperança …”
Também neste contexto, a literatura cristã, a partir de meados do século II, procurando compreender
a essência do cristianismo, reflectiu a necessidade que os cristãos sentiam de justificar a fé diante dos
dissidentes, dos judeus, dos magistrados e filósofos da sua época, ou ainda, de se defenderem dos
ataques, verbais e físicos, que provinham de todos os quadrantes da sociedade romana, dos vários
sectores do paganismo, desde a classe governante até à popular, passando, sobretudo, pela esfera
intelectual. Para isso, autores como Justino, Atenágoras, Taciano e Tertuliano, entre muitos outros,
serviram-se de argumentações retóricas e filosóficas com as quais procuravam demonstrar a
incongruência legal e moral que fundamentava as acusações, as difamações e as perseguições.
Por um lado, criticavam os costumes pagãos do império romano numa postura de réplica (aspecto
negativo da apologética cristã), por outro, intentavam esclarecer e convencer os adversários,
acentuando os valores positivos e fundamentais da doutrina cristã (aspecto positivo). É este último
aspecto, fruto de uma reflexão de cariz sobretudo filosófica, a grande inovação que origina uma
verdadeira apologética cristã. Porém, no seu exercício apologético, os autores cristãos, respondendo
a questões que punham em causa a ressurreição e a autoridade divina do homem chamado Jesus de
Nazaré, realçavam a supremacia da fé, sem, no entanto, perder o sabor filosófico que lhe era
requerido.
Mais tarde, entrou em cena Tomás de Aquino, o mais famoso apologista da escolástica. Empregando
técnicas de argumentação bastante materialistas, escreveu a “Summa Contra Gentiles” para defender
de modo racional as verdades (já não tanto as bíblicas), que provinham do magistério de Roma.
Nesse tempo, defendia-se mais a estrutura eclesiástica medieval do que a Bíblia, enquanto revelação
de Deus dada à humanidade. Ao reinterpretar o aristotelismo clássico na defesa do cristianismo
(perante as argumentações muçulmanas), Aquino, valeu-se de uma abordagem manualística e pouco
bíblica, distinguindo e harmonizando, cuidadosamente, as reivindicações da razão e da fé e
desenvolvendo uma demonstração sistemática dos fundamentos da fé, alicerçada em argumentos da
razão e da autoridade. Este método de reflexão veio a transformar-se na força dominante da
apologética cristã ocidental, até à chegada da modernidade no início do século XVI.
Com a transição do período medieval para a modernidade, quando Lutero e os pensadores modernos
romperam com o catolicismo, a Igreja viu-se obrigada a justificar-se perante os ataques protestantes
e racionalistas, que se avolumavam cada vez mais. Até então, a fé não era questionada, embora a
crença não estivesse necessariamente na doutrina de Cristo, mas naquilo que o magistério da Igreja
ensinava. O lema era Roma locuta, finita causa est – se Roma falou, não há que discutir. Logo, desde
o fim da Escolástica que a Igreja não tinha sentido tamanha urgência de justificar a sua fé perante os
seus inquiridores.
No seguimento desta posição por parte da Igreja e com o progresso dos movimentos renascentista e,
posteriormente, iluminista, que apresentavam a capacidade racional do homem como fonte e medida
de toda a verdade passível de conhecimento, surgiu um conflito apologético marcado por um certo
grau de fundamentalismo. O cunho marcadamente depreciativo da apologética teve origem neste
facto. A apologética passou a ser vista na tensão entre dois segmentos que não trouxeram resultados
muito positivos para a fé: o racionalismo – assente numa teologia, baseada na razão, em detrimento
da fé, que culminou no deísmo e no liberalismo – e o fideísmo – que desacreditou a razão, chegando
ao ponto de descartar qualquer estrutura racional como meio válido de conhecer as coisas de Deus.
Ambas as partes também resultaram, cada uma a seu modo, num humanismo que acabou por
“recriar” Deus à imagem e semelhança do homem. A religião, neste contexto, deixou de reflectir
sobre o transcendente para esboçar apenas uma imanência racional, descomprometida com a
revelação divina.
Nesta época, o esquema apologético dos teólogos baseava-se na tripla demonstração expressa na
obra de Joseph Hooke: a demonstração religiosa (sobre o valor objectivo da religião), a
demonstração cristã (sobre a originalidade e superioridade do cristianismo) e a demonstração católica
(para mostrar que a Igreja católica era a única querida por Cristo). Esta estrutura de defesa tornar-se-
ia na forma clássica de apologia até ao Vaticano II.
Foi dentro deste quadro filosófico-racionalista que a apologética passou a ganhar moldes de
polémica. Na disputa intelectual do racionalismo contra o fideísmo, a busca pela compreensão e
defesa da verdade tornou-se apenas numa guerra de ideias.
O crente comum, evidentemente, ficava à margem desses grandes debates, e uma boa parte do
cristianismo acabou por se voltar para um radicalismo doutrinário em busca de segurança intelectual.
Daí o surgimento de correntes como o evangelismo protestante e o pietismo alemão. Foi, portanto,
esta simbiose entre apologética e fundamentalismo, que fez aquela ser vista com preconceito.
Na fronteira entre o desejo de permanecer dentro da fé e a pretensão de efectuar uma reflexão,
inserida numa área abrangida pelo iluminismo e pelo deísmo, a apologética mostrou a debilidade do
seu próprio projecto, baseado numa teoria da revelação, cuja peculiaridade era a de poder demonstrar
a sua índole empírica, prescindindo do próprio conteúdo. Revelando pouca flexibilidade, resultante
do pouco contacto com a cultura viva e com as interrogações da história, a apologética clássica,
enfeudada no tomismo, apresentava formulações estereotipadas, muito centradas nas diversas
explicações dos milagres, que se adaptavam muito pouco às necessidades do tempo e que não
ofereciam um sentido para a interpretação da existência humana.
Devido a este fracasso da apologética, muitos ainda a reputam como um método arcaico e
ultrapassado. Crêem que ela está superada como instrumento de defesa da fé cristã e que devia ser
retirada dos currículos teológicos da atualidade. Esta visão, contudo, esquece que entre a sedução do
fundamentalismo e a tensão do fideísmo versus racionalismo, houve uma contribuição valiosa da
apologética para a manutenção da identidade cristã, como diria Tilich: “A teologia apologética é uma
teologia que responde”.
Já no século XX, no sentido de criar soluções alternativas que respondessem à exigência já expressa
em 1Pe.3,15, surgiu a teologia fundamental como teologia dos fundamentos, herdeira da apologética.
Foi no Concílio Vaticano II que se deu uma transmutação profunda. A constituição conciliar Dei
Verbum trouxe de novo ao seio da teologia a importância que deve ser dada à Palavra de Deus, na
condução da vida da comunidade de fé, sem correr o risco de cair num fideísmo exagerado;
recolocou a centralidade da reflexão na revelação e na redescoberta da mediação insubstituível de
Jesus Cristo e revalorizou-se este facto como alicerce e horizonte da teologia fundamental, à volta do
qual se traçou a sua identidade.
A Dei Verbum recuperou a dimensão histórica da Revelação ao reassumir a novidade, absoluta e
radical, da automanifestação perfeita de Deus, em Cristo. Nesta linha de pensamento, é nuclear a
afirmação do caráter central da Revelação e a redescoberta da mediação insubstituível de Jesus
Cristo. Segundo a constituição, é na história que Deus se oferece ao homem na procura de sentido,
daí que, também a teologia deva fazer-se presente na história, prestando maior atenção ao ser
humano, destinatário da revelação, e às questões da sua existência concreta, no seu contexto
histórico. A revelação permite, pois, ao homem, conhecer-se a si mesmo e, neste horizonte, a
teologia fundamental promove a orientação da fé, consciente da sua responsabilidade de unificar (em
permanente tensão) a fé e a experiência humana. Além disso, nesse aspecto, a teologia fundamental
permite estabelecer o diálogo com a cultura, com os não crentes, com a filosofia e com outras
religiões, num plano de igualdade.
Em jeito de conclusão, podemos afirmar que o restabelecimento da revelação, da fé e de Jesus Cristo,
como esteios da teologia fundamental, foi determinante para superar a crise originada pelo fracasso
da apologética. Como disse Fisichella: “A teologia fundamental devolveu ao crente a fé como
elemento vital e significativo, e ao não crente um instrumento válido para procurar o sentido da
existência para além da contradição humana”.

 O maior objetivo do Concílio era a difusão da Palavra de Deus, dando cumprimento ao apelo de
Jesus Cristo: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a Humanidade” (Mc.16,15).
Logo no prólogo, a Dei Verbum destaca o objetivo de “propor a genuína doutrina sobre a revelação
divina e a sua transmissão, para que o mundo inteiro, ouvindo, acredite na mensagem da salvação,
acreditando, espere e, esperando, ame” (DV 1).
A estrutura do documento é bastante simples, mas concentra um ensinamento muito profundo. É
designada “constituição dogmática” exatamente por tratar de temas de fé, abordando, mais
especificamente, a complexa relação entre Escritura e Tradição.
Perante os ataques do racionalismo, do ceticismo e da descrença modernista, e confrontada com um
clima de alguma instabilidade dogmática, ou, pelo menos, de uma clara interrogação sobre crenças
fundamentais, a constituição Dei Verbum – em sentido figurado – surge como a aragem que dissipa a
névoa. O rumo seguido, em ordem a uma conceção personalista, histórica e cristocêntrica da
revelação, constitui uma espécie de renovamento dos fundamentos cristãos, em comparação com a
conceção atemporal, nocional, extrínseca, que havia prevalecido desde o século das luzes até meados
do século XX.
Neste sentido, e apesar das resistências ao conteúdo, dos avanços e recuos para a sua aprovação, a
Dei Verbum revela um documento estruturante da obra conciliar e apresenta-se como chave
hermenêutica de todos os demais textos. Em poucas palavras podemos afirmar que a Dei Verbum
concentra os fundamentos de toda a Teologia da Revelação.
O primeiro capítulo é sobre a revelação. Revelar, etimologicamente, deriva do latim revelare que
significa tirar o véu, divulgar, mostrar, dar-se a conhecer. São muitos os sinónimos, mas a ideia
central é exactamente esta: manifestar. Deus revelou-se, deu-se a conhecer aos nossos antepassados,
manifestou a sua vontade e a sua verdade, diversas vezes ao longo da história, com o objectivo de
conduzir todos à comunhão consigo. Na plenitude dos tempos, revelou-se de modo pleno e definitivo
através do seu Filho, Jesus Cristo, o Verbo Encarnado.
Descreve, assim, o processo contínuo de comunicação entre Deus, que se revela a si mesmo, e o ser
humano, dando a conhecer o mistério da sua vontade e do seu plano salvífico para a humanidade.
Este desígnio de Deus consiste em que os homens, por Cristo, Verbo encarnado, tenham acesso ao
Pai (Ef.2,18), no Espírito, e se tornem participantes da sua natureza divina (2Pe.1,4).
O texto do concílio apresenta-nos a revelação como sábia pedagogia que forma e prepara o povo.
Deus, através dos tempos, desde o chamamento de Abraão, passando por Moisés e pelos profetas,
ensinou o seu povo a reconhecer nele o verdadeiro Deus. Assim, segundo a constituição, a revelação
concretiza-se na história e, através dela, prepara o caminho do evangelho. É contudo, essencialmente,
no mistério da encarnação, que Deus se revela; e esse mistério é Cristo, portanto, quem vê Jesus, vê
Deus. É neste contexto que a Dei Verbum precisa a natureza da revelação. Ela resulta do
consentimento de Deus. É graça. É livre iniciativa de Deus que, na superabundância do seu amor, sai
do seu mistério. Deus rompe o silêncio: dirige-se ao homem, interpela-o e inicia com ele um diálogo
de amizade, como fez com Moisés (Ex.33,11) e com os apóstolos (Jo.15,14-15). Desta forma, o Deus
invisível, pela revelação, fala aos homens convidando-os à comunhão com ele. É por meio de Jesus
que se manifesta a verdade profunda encontrada na revelação, tanto a respeito de Deus, como da
salvação do homem. Pela encarnação, Deus entra na existência humana e vive com os homens. Jesus
Cristo é o próprio Deus que desce à terra e se relaciona com os homens, falando-lhes.
A revelação divina é, portanto, entendida como um diálogo, no qual Deus tem a iniciativa e cujo
vértice é a encarnação. Tal plano de revelação concretiza-se mediante gestos e palavras intimamente
ligados entre si. As obras realizadas por Deus na história da salvação manifestam e reforçam os
ensinamentos e as realidades significadas pelas palavras. E as palavras, por sua vez, proclamam as
obras e elucidam o mistério que está contido nelas. Ao insistir nas obras e nas palavras, como
elementos constitutivos da revelação, o concílio quer sublinhar o carácter histórico e sacramental da
revelação. É Deus que realiza o acontecimento da salvação e que explica o seu significado, sendo
que, Jesus Cristo é a Palavra fundamental do Pai, que nos diz quem é Deus e que nos revela também
a verdade acerca do homem, isto é, que foi chamado e escolhido por Deus, desde antes da criação do
mundo, para ser, em Cristo, filho adotivo do Pai.
Assim, pois, Cristo é o mediador e a plenitude da revelação; é o Deus que revela e o Deus que é
revelado; o autor e o objeto da revelação; o que revela o mistério e o próprio mistério em pessoa (cf.
Jo.14,6; 2Cor.4,4-6; Ef.1,3-14; Col.1,26-27). É, em pessoa, a própria verdade que anuncia e que pede
a adesão do homem, pela fé, de forma a transformar a sua vida e a tender para a comunhão com o
Pai, o Filho e o Espírito.
No âmbito da teologia fundamental, a constituição conciliar Dei Verbum centra-se num horizonte
cristocêntrico, utilizando uma linguagem concreta e próxima da experiência humana numa ótica
histórica e salvífica. Veio, deste modo, estabelecer uma nova reflexão assente na recuperação do
destinatário da revelação: o ser humano necessitado de salvação. Com a afirmação do caráter central
da revelação, como a automanifestação de Deus ao homem e a redescoberta da mediação
insubstituível de Jesus Cristo, plenitude da revelação, o documento abriu caminho a uma nova
investigação sobre o método e a orientação global que permitiu retomar a linha do discurso em torno
de alguns núcleos estruturais: a revelação divina e a resposta do homem na fé, numa unidade
indispensável.
A revelação, assim concebida, convida o homem a participar no projecto salvífico de Deus, em Jesus
Cristo e a teologia fundamental apresenta-se na afirmação central do cristianismo: Deus, por meio de
Jesus Cristo, está no meio de nós como alguém verificável e, portanto, credível.

 A revelação divina é um grande dom, imerecido e inesperado, do amor de Deus, em forma de


diálogo amoroso, ou comunicação entre amigos. Em suma, “revelando-se a si mesmo, Deus quer
tornar os homens capazes de lhe responderem, de o conhecerem e de o amarem, muito para além de
tudo o que seriam capazes por si próprios”. A salvação de Deus aparece em tudo o que faz, ao
intervir na história dos homens, e não apenas na consciência dos crentes, quando tomam
conhecimento dessa história. Mediante a Sagrada Escritura, Deus dá a conhecer o sentido salvífico
dos acontecimentos, e estes podem assim compreender-se como história da salvação.
O ponto de partida para falar da revelação é, sem dúvida, a Palavra de Deus, a Bíblia. Desde o AT
até ao NT, Deus dá-se a conhecer e revela-se progressivamente.
A Bíblia apresenta um Deus que escolhe a companhia do homem, e que nessa proximidade lhe indica
o caminho do encontro e a atitude do diálogo como sinal da diferença entre ele e o homem. Ela é um
documento das intervenções de Deus. São precisamente estas intervenções que convertem a história
em história de Deus. A revelação divina é realmente Palavra de Deus, mas é também – e
inseparavelmente – acontecimento, manifestação e desenvolvimento do plano de Deus, ao longo da
história.
Se quiséssemos sintetizar numa palavra o que Deus nos quis revelar através dos séculos e o projeto
que ele pensou para a humanidade, escolheríamos o termo “Aliança”, palavra e realidade que está
presente ao longo de toda a história da salvação e da revelação.
A revelação de Deus segue um plano sabiamente pensado, realizado pacientemente, para preparar a
humanidade a acolher gradualmente a sua oferta. Esse percurso foi realizado, escolhendo diferentes
caminhos, utilizando a pedagogia de se revelar por etapas, para melhor se ajustar ao modo humano
de agir (cf. DGC 38).
Neste percurso, Deus vai escolhendo diferentes mediações para se dar a conhecer.
Numa primeira etapa, Deus dá-se a conhecer desde as origens em tudo o que criou, através do seu
Verbo e especialmente na relação pessoal que estabeleceu com os nossos primeiros pais, a quem
“convidou a uma comunhão íntima consigo, revestindo-os de graça e justiça resplandecentes”. Na
Aliança com Adão e Eva, Deus criou o homem em harmonia consigo, com os outros, com a natureza
e com Deus, enchendo-o dos seus dons. Porém, o homem foi infiel a este projeto de amizade,
pecando, e rompendo com a harmonia. Mas Deus, apesar do pecado, não abandona a humanidade e
promete-lhe o redentor (reconstrutor) dessa mesma humanidade.
Ao quebrar-se, pelo pecado, a unidade do género humano, Deus, depois do castigo do dilúvio, renova
a Aliança com toda a humanidade em Noé: “Vou estabelecer uma Aliança convosco, com a vossa
descendência e com os demais seres que vos rodeiam … Esse é o sinal da Aliança que estabeleci
entre mim e todas as criaturas existentes na terra” (cf.Gn.9,8-18). Este pacto afeta toda a humanidade
e revela o plano divino para todas as nações da terra; Deus quer ser garantia da possibilidade de mais
e melhor vida. Não se afasta apesar dos fracassos e infidelidades.
Mais tarde, para reunir a humanidade dispersa, Deus escolhe Abraão, chamando-o para longe da sua
terra, da sua pátria e da sua casa, e fá-lo pai de uma multidão de nações. É com Abraão que Deus
decide intervir na história, através de um povo, do qual vai surgir o redentor. Deus chama Abraão e
diz-lhe: “Eu sou o Deus Todo-Poderoso. Anda na minha presença e sê perfeito. Quero fazer uma
Aliança contigo e multiplicarei a tua descendência até ao infinito … Estabeleço uma Aliança
contigo e com a tua posteridade, de geração em geração; será uma Aliança eterna, em virtude da qual
eu serei o Teu Deus e da tua descendência (cf. Gn.17) ”. Abraão é um modelo de fé: ouve a voz de
Deus, acredita nele, dispõe-se a cumprir a sua palavra e parte, confiante no projeto salvífico de Deus.
Depois dos patriarcas, no AT, a etapa que mais se destaca é a novidade do Êxodo (cf. Ex.15,22-
18,27), que não é apenas experiência de libertação do Egito, mas antes encontro definitivo com Deus
(cf. Ex.3,14), com carácter fundacional. Deus forma Israel como seu povo, salvando-o da escravidão
do Egipto: escolhe Moisés, revela-se – “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, de Isaac e de
Jacob” (Ex.3,6) – e diz o seu nome – “Eu sou Aquele que sou” (Ex.3,14). Então, Deus, por
intermédio de Moisés, liberta, organiza e dá consciência a este povo e conclui com ele a Aliança do
Sinai, dando-lhe a sua lei, para que Israel o reconheça e o sirva como único Deus vivo e verdadeiro e
viva na expectativa do salvador prometido.
De facto, no Êxodo e no Sinai, Deus revela-se como único, presente, próximo e que caminha com o
seu povo, libertando-o e colaborando com ele. A promessa de Deus, no êxodo, é uma “promessa de
si mesmo”, de uma história que nasce da sua iniciativa, imprimindo um sentido mais amplo que a
expectativa de Israel e Deus.
Outra etapa que se reveste de grande importância no percurso desta revelação é a dos profetas. Deus,
afirmando-se como o Deus único e salvador que faz uma Aliança com o seu povo – “Serei o seu
Deus e eles serão o meu Povo” (Jer.31,33) – serve-se de mediadores, que se tornam guardiões e
defensores dessa Aliança estabelecida com Israel. Deus chama os profetas à sua intimidade,
revelando-lhes o seu projeto para que sejam verdadeiros intérpretes junto dos homens, criando no seu
povo, a esperança da salvação (messianismo), na espera duma Aliança nova e eterna, destinada a
todos os homens, gravada nos corações e que terá o seu cumprimento no Cristo, o Messias, Jesus de
Nazaré. Neste período, a revelação reveste-se de um caráter essencialmente interpessoal. É a
manifestação de alguém a outra pessoa.
No AT, uma última etapa que gostaria de salientar da revelação é a literatura sapiencial, onde se
descobre o encontro e o choque entre razão, experiência e revelação: Deus é profundamente livre de
dispor as coisas, enquanto Criador, e não se manipula, nem se pode confinar dentro dos limites do
pensamento.
Concluindo, a revelação no AT expressa-se em forma de diálogo e Aliança, é a religião da palavra
escutada, onde predomina o ouvir sobre o ver, onde o homem se converte em interlocutor e
colaborador de um projeto a concretizar. A revelação, que se inicia com a promessa feita a Abraão,
que se manifesta no Êxodo, no código da Aliança e que na fase dos profetas passa por uma
realização parcial, atinge a plenitude da sua realização em Cristo e por meio dele.
O aspeto central do NT é o acontecimento capital que ocorre entre as duas alianças: “Tendo Deus,
muitas vezes e de muitos modos, falado outrora aos nossos pais por intermédio dos profetas, nestes
últimos dias, falou-nos por meio de seu Filho” (Hb.1,1-2).
Cristo, que pela encarnação, assume a carne e a linguagem dos homens, torna-se plenitude da
revelação, aquele que revelando Deus, se revela a si mesmo. Cristo torna-se o rosto do Pai, de tal
modo que vê-lo é ver o Pai e, por isso, “com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com
palavras e obras, sinais e milagres e, sobretudo, com a sua morte e ressurreição, e ainda, com o envio
do Espírito da Verdade, completa e confirma com o testemunho divino a revelação” (DV 4). De
facto, Jesus Cristo é a “Palavra única, perfeita e definitiva do Pai” (CCE 65).
Os evangelhos sinóticos são a manifestação progressiva de Jesus como filho de Deus que se revela e,
consequentemente, revela o Pai, sobretudo mediante as parábolas, a partir das suas obras, dos
milagres, os exemplos que nos deixa como herança, da sua paixão e da sua morte e ressurreição. Os
termos que descrevem a ação reveladora de Jesus Cristo são pregar (kerissein) e ensinar (didaskein).
Cristo prega a Boa Nova do reino e a conversão como meio para entrar nele.
Os Atos dos Apóstolos dão continuidade à tradição sinótica e dão testemunho de Jesus (sobretudo do
acontecimento da ressurreição) como Filho de Deus que se revelou. São os apóstolos que, imbuídos
pelo Espírito, ligam a história, anunciando a Boa Nova da salvação (cf. Hb.2,14; 8,5; 10,42).
Já no corpus paulino, o binómio mistério/evangelho situa-nos no coração do pensamento de S. Paulo
sobre a revelação. Efetivamente, o mistério só pode ser compreendido à luz do sopro do Espírito, que
alimenta a sabedoria humana e ilumina os corações dos crentes. A revelação, segundo S. Paulo
concebe-se como uma ação livre gratuita, através da qual Deus manifesta ao mundo a economia da
salvação, ou seja o seu desígnio eterno de reunir todas as coisas em Cristo. Na epístola aos Hebreus,
a revelação radica-se em dois pontos fundamentais: comparação entre a antiga aliança e a nova
aliança e a grandeza das exigências da Palavra de Deus. Desde os primeiros capítulos, a epístola
coloca em evidência a autoridade da revelação do NT, referindo a relação histórica entre as duas
fases da história da salvação – verifica-se que entre estas duas economias de salvação existe uma
continuidade (Deus falou), uma diferença (tempos, modos, mediadores, destinatários) e uma
excelência (superioridade da nova economia).
Para terminar, refira-se sucintamente que nos escritos joânicos, Cristo é o Filho que manifesta o Pai
(dá testemunho do que viu e ouviu – Jo.3, 32). Em João, há três elementos que constituem Cristo
como perfeito revelador do Pai: a sua preexistência como Logos de Deus (Jo.1,1-2), a sua entrada na
carne e na história (Jo.1,14) e a sua intimidade permanente de vida com o Pai, tanto antes como
depois da Incarnação (Jo.1,18). O conceito da revelação é a pedra angular a partir do qual se tem
edificado a obra do cristianismo.
Concluindo, Jesus Cristo, Filho de Deus, através das suas palavras e dos seus gestos revela o ser e o
amor do Pai, pelo que a sua obediência filial e o cumprimento da sua vontade acaba por ser o modo
pelo qual mostra a união entre o Pai e o Filho. Este é o modelo e o centro de toda a experiência
pascal possível, pois em Jesus cada pessoa pode experimentar o amor do Pai, revelado pelo Filho, e
onde todos são chamados a serem filhos de Deus, assumindo de forma incondicional e livre a
vontade salvífica de Deus.
Esta iniciativa divina verifica-se nas palavras e nos gestos – nos sacramentos – que Jesus Cristo
ressuscitado realiza na Igreja, sua esposa e nossa mãe, que, sob a ação do Espírito Santo, guia e
conduz aqueles que são chamados a entrar na comunhão de vida trinitária. De facto, “aprouve a
Deus, em sua bondade e sabedoria, revelar-se e tornar conhecido o mistério da sua vontade” (cf.
Ef.1,9), pelo qual “os homens têm, no Espírito Santo, acesso ao Pai e se tornam participantes da
natureza divina, por Cristo, Verbo feito carne” (cf. Ef.2,18; 2Pe.1,4).
Mediante esta revelação, portanto, “o Deus invisível (cf. Col.1,15; 1Tim.1,17), levado por seu grande
amor, fala aos homens como a amigos (cf. Êx.33,11; Jo.15,14-15), entretém-se com eles (cf.
Bar.3,38) para convidá-los à participação de sua intimidade” (DV 2).
Jesus encerra em si, definitivamente, o dar-se a conhecer de Deus. Com Cristo culmina a revelação
de Deus, que é destinada a toda a humanidade: “Deus quer que todos os homens se salvem e
cheguem ao conhecimento de Deus” (1Tim. 2,4; cf. DGC 42).
AT e NT são duas partes de uma mesma história da salvação, e embora nós, os cristãos, pertençamos
já ao povo da “Nova Aliança”, nem por isso podemos ignorar o que diz respeito à “Antiga Aliança”,
que durante tantos séculos tem preparado a humanidade para a chegada da “plenitude dos tempos”.
O AT é a história da revelação de Deus ao povo de Israel, narrada e explicada pelos autores sagrados
e escrita nos livros da Antiga Aliança, como verdadeira Palavra de Deus. Estava orientado,
“sobretudo, a preparar, a anunciar profeticamente e a significar com várias figuras a vinda de Cristo,
Redentor universal, e a vinda do Reino messiânico” (DV,15). Embora a sua missão fosse preparar o
povo de Israel para a vinda de Cristo, mantém esse mesmo sentido para os homens de hoje. “A Lei
foi nosso pedagogo para nos conduzir a Cristo” (Gal.3,24).
A experiência do povo de Israel é útil também para quem continua à procura de Cristo. Todos temos
necessidade de nos preparar para os novos adventos de Cristo, que se realizam na liturgia e na vida
cristã, rumo à parusia do Senhor. O AT dá-nos a conhecer Deus e o ser humano e o modo como Deus
se relaciona com o homem e a mulher. Porque esse conhecimento está adaptado às pessoas a quem se
dirige, no AT encontram-se “imperfeições e coisas restritas a um tempo determinado”.
De facto, Deus tolerou modos imperfeitos de observar a lei moral: poligamia, divórcio, vingança, etc.
Mas isso manifesta a pedagogia divina, que vai conduzindo o povo do imperfeito ao mais perfeito.
Por isso, o AT conduz à perfeição do NT.
Para além disso, o AT já exprime um vivo sentido de Deus, contém doutrinas preciosas sobre Deus e
a sua transcendência, sobre a criação, sobre o ser humano enquanto imagem de Deus, sobre a
Providência, etc.; e oferece-nos um tesouro admirável de orações. Por isso, “os cristãos devem
aceitar devotamente esses mesmos livros”, como raiz do NT e do cristianismo (DV,15).
Sintetizando, podemos afirmar:
A revelação é um dom que Deus, providencialmente, nos quis oferecer, para que pudéssemos entrar
na sua intimidade e na comunhão com ele. É uma dádiva de salvação;
Deus usou a pedagogia da progressividade e das mediações para melhor se ajustar à compreensão
dos homens;
Pela encarnação Cristo torna-se o rosto visível do Pai, a plenitude da revelação;
A Igreja instituída por Jesus é a expressão visível para a conservação e transmissão do projeto
salvífico que Deus revelou.

 O Concílio Vaticano I, proclamado por Pio IX, teve lugar entre 0 dia 8 de dezembro de 1869 e o dia
18 de dezembro de 1870. As principais decisões do Concílio foram estabelecidas nas constituições
dogmáticas “Dei Filius”, sobre a fé, e “Pastor Aeternus”, sobre o primado e a infalibilidade do Papa
quando se pronuncia “ex-cathedra”, em assuntos de fé e de moral. Neste âmbito, o concílio, ao
defender os fundamentos da fé católica, condenou, entre outros, os erros do tradicionalismo e do
racionalismo.
No que diz respeito ao tradicionalismo, afirmava-se que estava construído sobre o pressuposto da
desconfiança na capacidade da razão, preconizando o princípio da autoridade e, consequentemente, a
necessidade da tradição, social e revelada, como meio de chegar à verdade sobre a qual se estabelecia
a convivência social.
Por outro lado, o racionalismo – corrente filosófica assente, inicialmente, na definição do raciocínio
como operação mental, discursiva e lógica – professava a confiança incondicional na capacidade da
razão, defendendo a sua autonomia e proclamando a sua idoneidade para adquirir o consenso
necessário na instituição da sociedade.
Vários filósofos como Descartes (1596-1650), Spinoza (1632-1677) e Leibniz (1646-1716)
introduzem o racionalismo na filosofia moderna. Friedrich Hegel (1770-1831), por sua vez,
identifica o racional com o real, supondo a total inteligibilidade deste último.
O racionalismo é fundado nos princípios da busca da certeza e da demonstração, sustentados por um
conhecimento a priori, ou seja, conhecimentos que não vêm da experiência e são elaborados somente
pela razão.
A reflexão levada a cabo pelos teólogos e pelo Magistério, na constituição dogmática Dei Filius,
alicerçada na distinção entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, assim como na afirmação da
transcendência de Deus relativamente ao mundo, vem formular a plena afirmação dogmática sobre a
revelação, confrontando tantos as ideias tradicionalistas como as racionalistas. O horizonte de
referência da Dei Filius é essencialmente gnosiológico e tenta dar ênfase à possibilidade de
conhecimento de Deus: no meio do mundo, o homem pode conhecer Deus.
Ainda que a revelação natural possa levar ao conhecimento de Deus, o documento conciliar sublinha
a insuficiência histórica da razão humana, incapaz por si de levar ao conhecimento da Verdade. É,
portanto, necessária a iniciativa gratuita de Deus, diferente da revelação natural. Refere ainda que a
revelação é a comunicação que supera a manifestação de Deus na criação, mas que vai ao seu
encontro.
Assim, a revelação está para além do controlo da razão e é qualitativamente superior à insuficiência
da razão natural: é verdade revelada. Portanto, o conhecimento apenas através da razão é incompleto.
Defende ainda que é impossível haver conflito entre a fé e a razão, pois uma e outra são
complementares e dons do mesmo Deus, ainda que a fé seja superior à razão.

 Segundo o princípio da Sola Scriptura, somente a Escritura é a suprema autoridade em matéria de


vida e doutrina. A Bíblia é completa, dotada de autoridade e verdadeira: “Toda a Escritura é
inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na
justiça” (2Tim.3,16). Apenas ela é árbitro de todas as controvérsias (a supremacia das Escrituras); ela
é a norma normanda (norma determinante) e não a norma normata (norma determinada) para todas
as decisões de fé e é fonte não só da verdade teológica, mas também de sabedoria prática para
enfrentar todos os desafios da vida.
A autoridade da Escritura é superior à da Igreja e da tradição e é intrínseca: a Igreja não confere
autoridade às Escrituras, mas apenas a reconhece. Essa autoridade decorre da origem divina das
Escrituras. Com efeito, a Igreja está edificada “sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas”
(Ef.2,20), ou seja, o evangelho, que está contido nas Escrituras é a sua essência. Contra a afirmação
católica: “a Igreja ensina” ou “a Tradição ensina”, os reformadores afirmavam: “a Escritura ensina”.
Foi Martinho Lutero, teólogo alemão e artífice da reforma protestante, quem defendeu este princípio,
reivindicando para a Escritura uma primazia decisiva, relativamente à Tradição e à globalidade das
tradições, as quais, considerava tradições humanas e, por isso, imersas em erros. Defendia, por isso,
o princípio hermenêutico da Sola Scriptura que consistia, precisamente, no primado da Escritura, a
qual considerava “a intérprete de si mesma” (analogia da Escritura), à luz do princípio cristológico
(Cristo é o centro e a chave da Escritura). Para Lutero, a Igreja, longe de ter prioridade sobre a
Escritura, é na realidade uma criação da Escritura, nascida do ventre da Escritura.
O acontecimento relevante na vida do reformador, para a definição da Sola Scriptura, foi a sua
viagem a Augsburgo, onde se apresentou diante de um júri presidido pelo cardeal Caetano. Foi aí que
Lutero afirmou pública e categoricamente o seu apego às Escrituras. Quando o cardeal Caetano lhe
exigiu que se retratasse, Lutero contestou: “Sua Santidade, o Papa, abusa das Escrituras. Eu nego que
a sua autoridade esteja por cima da Palavra de Deus”. Este evento deixou claro que o fundamento das
crenças de Lutero, e em geral de toda a sua teologia, era a Escritura e só a Escritura; para ele a
autoridade da Palavra de Deus superava a do Papa e a dos concílios.
Este compromisso com as Escrituras foi reconfirmado três anos depois na famosa Dieta de Worms,
onde compareceu perante o imperador e a corte do império. Aí, foi outra vez convidado a retratar-se
e de novo contestou: “Não posso, nem quero retratar-me, a menos que se me prove, pelo testemunho
da Escritura, ou por meio da razão, que estou equivocado; não posso confiar nem nas decisões dos
concílios, nem nas dos papas, porque está bem claro que eles não só erraram, como também se
contradisseram entre si. A minha consciência está sujeita à Palavra de Deus e não é honrado, nem
seguro agir contra a minha própria consciência. Que Deus me ajude! Ámen”.
Ficou, assim, claro que, para ele, as Escrituras eram o fundamento da sua fé. Com a adesão à sola
Scriptura, Lutero formulou uma interpretação da salvação alicerçada somente em Jesus Cristo e da
qual cada um se deveria apropriar segundo a sola fide (“Justo é aquele que sem obras crê tenazmente
em Cristo” – Paradoxa theologica).
Em resposta às reformas do movimento protestante, o Concílio de Trento foi determinante na
elucidação da doutrina católica e na luta contra a disseminação das ideias de Lutero.
Só com a eleição do Papa Paulo III se deram os primeiros passos para a convocatória do Concílio de
Trento, em 1536 e 1537. Todavia, o Concílio só teria o seu início em 1545, em Trento, e duraria
dezoito anos, dividido em três etapas: uma primeira entre 1545 e 1549, com uma participação
escassa, mas que criou, desde logo, divergências entre os legados pontifícios, os bispos e o
imperador, quanto à estratégia e aos assuntos a debater (primeiro a reforma da Igreja ou o
apuramento doutrinal?). Contudo, chegaram a um consenso e acordaram discutir os temas em
simultâneo, com resultados proveitosos, ao estabelecer um vínculo entre a teoria e a praxis. Uma
segunda etapa foi ordenada pelo Papa Júlio III, entre 1551 e 1552, com a presença dos protestantes,
por insistência do imperador, mas que acabaram por abandonar o Concílio ao verem recusado o
pedido de anulação de todas as decisões precedentes e por pretenderem a superioridade do Concílio
sobre o Papa, assim como a exclusão dos legados pontifícios. Finalmente, uma terceira etapa,
concertada pelo Papa Pio IV em 1562 e que terminou em 1563.
Nestes dezoito anos, o Concílio de Trento assumiu especial importância ao nível dogmático: fixou os
livros canónicos; confirmou a Escritura e a Tradição como fontes da revelação, em oposição à Sola
Scriptura luterana; determinou o carácter inerente da justificação, afirmando que a verdadeira fé leva
ao amor de Deus e do próximo (fides formata); oficializou os sete sacramentos e reiterou o carácter
sacrificial da missa e a presença de Jesus na Eucaristia através da transubstanciação.
No que respeita à liturgia, ficou definida a forma oficial da celebração do matrimónio; foram
proibidos os enlaces clandestinos (decreto Tametsi) e, na comunhão, o cálice foi interdito aos leigos.
Ao nível disciplinar e pastoral verificou-se a reafirmação do celibato sacerdotal; o dever de
residência dos bispos e párocos; o provimento de sacerdotes versados em Sagrada Escritura nos
mosteiros; a proibição de acumularem benefícios e a abolição de comendas; a instituição dos
seminários para a formação do clero, sobretudo para os aspirantes pobres e intelectualmente dotados;
o sínodo diocesano anual e o sínodo provincial trienal e, ainda, a criação das visitas pastorais. Todas
estas diligências reforçaram e centralizaram os poderes no Papa, que passou a ser denominado
“Pastor Universal da Igreja”, sendo-lhe concedida primazia em matéria de dogmas e de disciplina.
Em resposta às declarações de Lutero, o Concílio de Trento, ao tentar reequilibrar alguns aspetos
problemáticos relativamente às Escrituras e definir a norma daquilo que não era fixado pelas
Escrituras (no conceito de Tradição confluíam diferentes conceções), confirmou que a Igreja
Católica existia, com uma fé implantada nos corações dos crentes, antes da própria composição dos
livros do NT.
Vejamos o exposto no número 783 da Sessão IV (08-04-1546):
“Os Livros Sagrados e as Tradições dos Apóstolos … Seja na Igreja conservada a pureza do
Evangelho, prometido antes nas Escrituras Santas pelos profetas, o qual Nosso Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, primeiramente com a sua própria palavra o promulgou e depois, por meio de seus
apóstolos, mandou pregá-lo a toda criatura (Mt.18,19ss; Mc.16,15), como fonte de toda a verdade
salutar e disciplina dos costumes. Vendo que esta verdade e disciplina estão contidas nos livros
escritos e nas tradições orais que – recebidas ou pelos apóstolos dos lábios do próprio Cristo, ou dos
próprios apóstolos sob a inspiração do Espírito Santo – chegaram até nós como que entregues de mão
em mão, fiéis aos exemplos dos padres ortodoxos, com igual sentimento de piedade e reverência
aceita e venera todos os livros, tanto os do AT, como os do NT, visto terem ambos o mesmo Deus
por autor, bem como as mesmas tradições que se referem tanto à fé como aos costumes, quer sejam
só oralmente recebidas de Cristo, quer sejam ditadas pelo Espírito Santo e conservadas por sucessão
contínua na Igreja Católica”.
Neste contexto, ficou definido o caráter central do Evangelho como ponto de referência e
fundamento de toda a Tradição, donde advém a necessidade de “conservar a Igreja na pureza do
Evangelho”, constituindo a Igreja de Jesus Cristo o único critério para a compreensão da relação
entre Escritura e Tradição.
Determinou-se, ainda, a intervenção da Tradição na comunicação da Revelação, juntamente com a
Escritura – apesar de diferentes – dada a sua ligação originária às tradições apostólicas (razão pela
qual as tradições não escritas não se podem perder) e a sua normatividade sobre a transmissão da
Revelação, por força da complementaridade com a Escritura.
Lutero apontou para a comunicação multifacetada da Revelação, ao que o Concílio de Trento
respondeu com a complementaridade entre Escritura e Tradição.

 DV 5
Fé é a adesão completa do ser à revelação. É a submissão livre do homem à palavra de Deus. Na Dei
Verbum, a “obediência da fé” evidencia a resposta do homem à revelação de Deus e, essa resposta,
deve ser um ato que parte da sua liberdade: o ato de crer deve ser livre. Representa a entrega livre e
total do homem, pelo entendimento e pela vontade, a Deus, ou seja, a aceitação da revelação. O ato
de fé realiza-se pela inteligência, sob o impulso da vontade, movida pela graça, ou seja, apresenta-se
como graça de Deus, que surge com o auxílio do Espírito Santo e que move o coração do homem e o
converte a Deus. A revelação exige “a obediência da fé”, mas a abordagem continua a ser a do
encontro interpessoal e dialógico, num “ato integral do homem, pelo qual ele põe na balança a
inteligência, a vontade e o coração”. A “obediência da fé” é expressa na constituição como um ato de
entrega total do homem a Deus. Na sua totalidade, o homem adere às verdades reveladas e conduz a
sua vivência para o que se exige no plano salvífico de Deus. O homem entrega-se por completo ao
plano do Senhor.
A fé apresenta várias propriedades. Entre elas: é uma graça; é um ato essencialmente humano; deve
ser livre; é necessária para a salvação; é por onde começa a vida eterna; possui um caráter trinitário e
é um ato pessoal, mas, simultaneamente, eclesial (cf. CIC 150 – 167).
LG 12,1
Neste parágrafo, que trata da participação de todo o Povo de Deus no múnus profético de Cristo, é
apresentado o sentido infalível da fé, que a comunidade eclesial possui, em virtude da sua unção pelo
Espírito Santo. Trata-se da perceção espontânea, quase involuntária, que os crentes têm daquilo que
está ou não de acordo com a revelação de Deus, operada em Jesus Cristo. Referimo-nos a um olhar,
iluminado pela fé, sobre tudo quanto é vivência e expressão desta.
Com efeito, o nº 12 da LG especifica a doutrina conciliar sobre o sensus fidei em termos de um
conjunto de noções e de afirmações: a noção de Povo de Deus; o múnus profético de Cristo (o
ministério da palavra) enquanto dever de ensinar; a participação de toda a igreja nesse ofício; a
qualidade de testemunha como forma de participação no ministério da palavra; a afirmação da
infalibilidade da fé, exibida por toda a Igreja; a matriz sobrenatural e de dom do sensus fidei devido à
“inspiração” dos fiéis pelo Espírito Santo; a sua área de competência (objeto) como pertencente a
“questões de fé e moral”; a noção (para lá de um sensus) de um consenso universal sobre essas
matérias; a consciência do acolhimento da Palavra de Deus por todos os crentes, e a ênfase dada a
uma receção ativa, ligando os quatro verbos – receber, aderir, penetrar e aplicar – para descrever o
processo eclesial desse acolhimento.
Neste texto, o objeto da fé é identificado com o “sentir sobrenatural … de todo o povo … quando
manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes … e já não recebe simples palavra de
homens mas a verdadeira palavra de Deus”
Os critérios para discernir o objeto da fé são: a manifestação do consenso universal sobre as verdades
relativas à fé e aos costumes; a ação do Espírito Santo; a orientação do magistério da Igreja e o
acolhimento da palavra do magistério, não meramente como palavra de homens mas como
verdadeira Palavra de Deus.
No segundo capítulo da Lumen Gentium, afirma-se uma participação comum de todos os batizados
no triplo ministério sacerdotal, profético e real do Povo de Deus como um todo. No nº 12, a fé, como
dom do Espírito Santo, conduz todos os crentes a participar no múnus profético, porque a Palavra de
Deus é confiada a todos, isto é, o sensus fidei capacita e permite que o Povo de Deus realize o ofício
profético (múnus docendi), o ministério da Palavra. A preservação e realização ativa da Palavra de
Deus abrangem toda a comunidade dos crentes e não apenas a hierarquia eclesial. Quem adere
verdadeiramente à fé como dom recebido, não se engana e participa como testemunha, a seu modo,
na missão profética de Cristo.
O concílio, portanto, prevê um papel ativo para todos os batizados na apropriação e transmissão da
realidade da salvação, isto é, da palavra divina na história humana e de Deus que toca no coração da
humanidade, através de Cristo, pelo poder do Espírito Santo. A ênfase dada ao sensus fidei para a
própria eficácia da revelação (o consenso universal e a afirmação da infalibilidade da fé), muda o
foco teológico para os destinatários da autocomunicação de Deus e destaca o papel necessariamente
ativo e de cooperação entre o laicado e magistério, em nome de Deus, de forma a permitir que o
processo da revelação divina alcance o seu objetivo.
Assim, está bem evidenciada a importância da caminhada comum para a verdade e o reconhecimento
de que o Espírito Santo está ativo na vida da Igreja.
GS 11,1; 43,2
No nº 11 da Gaudium et Spes, a fé é apresentada como o fator motivador da Igreja para olhar para o
mundo exterior – e não, exclusivamente, para dentro – na busca dos sinais da presença de Deus (com
a participação de todos os homens – inclusive os não crentes – que fazem parte do plano salvífico de
Deus), para encontrar soluções plenamente humanas (assentes numa verdadeira antropologia cristã)
para os seus anseios, as suas exigências e as suas aspirações, isto é, soluções que tratem não só da
vocação espiritual e universal à santidade, ao qual todas as pessoas são convidadas, mas também dos
aspetos físicos e psicológicos da condição humana. Deste modo, a fé, constituindo uma dimensão
fundamental da existência humana, converte-se não só numa atitude mais como as restantes, mas no
alicerce da vida cristã na sua totalidade.
A fé nunca poderia ser autêntica se não compreendesse a proclamação da Palavra de Deus e o
testemunho dessa palavra na práxis da vida. De facto, seria um paradoxo proclamar uma mensagem
de verdade sem o consequente testemunho nas obras. Assim, o crente deve procurar discernir nos
acontecimentos da atualidade, os sinais da presença e da vontade de Deus, os quais devem ter
implicações concretas na sua vida, orientando-o nas suas opções reais, de acordo com a vocação que
Deus lhe deu.
A fé não é somente uma confissão a respeito de Cristo, mas também uma ação dinâmica, que brota
do coração do crente que quer seguir a Cristo. A principal finalidade da fé é fazer e praticar o que se
crê. Como aceitação da revelação e da graça de Cristo, a decisão da fé empenha o homem em todas
as dimensões da sua vida. Como anuência real à mensagem cristã, a fé implica a realização da
mensagem na existência. A fé cristã, enquanto testemunho de Cristo para o mundo, tem de mostrar a
sua eficácia na vida dos homens, convertendo-se, assim, em autêntica força transformadora da
história.
É a fé que gera a identidade do crente, fazendo presente no seu contexto existencial a mesma vida
trinitária que Cristo viveu durante a sua encarnação. A unção do Espírito impele-o a ser santo,
segundo os dons recebidos e a buscar a sua missão na Igreja, consoante a vocação de cada um.
Assim, dentro da comunidade cristã e na diversidade de funções, carismas e ministérios, o cristão é
chamado a desempenhar o seu papel na evangelização e na realização da história salvífica de Deus.
Esta fé vivenciada, comum, mas diferente na hierarquia e nos leigos cristãos, a todos serve para
expressar a natureza orgânica da Igreja, que prolonga nos seus membros a participação nos
ministérios de Cristo e preconiza uma distinção, mas também uma conexão e unidade vital, entre a fé
professada e a fé vivida, que converge na edificação da Igreja e no cumprimento da sua missão.
A vocação geral do crente consiste no apelo à santidade que é comum a todos os batizados. Esta
vocação trespassa toda a comunidade eclesial, independentemente das funções ou ministérios que
cada um desempenhe. A vocação singular do leigo chama-o a ser santo na sua relação peculiar com
as realidades temporais: a política, a sociedade, a economia, a cultura, as ciências, as artes, a família,
o trabalho, etc. Trata-se de viver a sua condição cristã, aproximando o mundo de Deus, pelo
testemunho contínuo, no exercício da fé, da esperança e da caridade, e de participar, empenhado, na
evangelização e santificação dos homens.
O crente fiel tem como missão ser testemunha, perante o mundo, da ressurreição e da vida de Jesus
Cristo e sinal de Deus vivo. Deve transmitir a fé e evangelizar, e também viver o evangelho, servindo
a pessoa e a sociedade. Deve aspirar à santidade oferecendo a sua vida como meio de santificação do
mundo e de edificação da Igreja. Deve ser sinal da caridade divina e comprometer-se na libertação
integral do homem. Deve impulsionar a paz e o diálogo e promover a dignidade humana. O leigo
deve ainda testemunhar os valores da secularidade como o diálogo e a tolerância ou o primado da
consciência e a responsabilidade na busca da verdade. Na relação com a hierarquia eclesiástica deve
participar no apostolado e manifestar a comunhão eclesial, participando na liturgia e nos
sacramentos. No fundo, deve ordenar as realidades temporais segundo Deus e para Deus,
fomentando o bem e o amor, e colaborando na edificação do Reino de Deus.

 Desde os primeiros séculos da era cristã, pensadores têm-se debruçado sobre a questão da
conciliação entre fé e razão. Muito tem sido discutido sobre o assunto, mas continuam as dúvidas
relacionadas com a importância de ambas para o desenvolvimento da humanidade. Trazendo à tona o
assunto, o papa João Paulo II, em 14 de setembro de 1998, promulgou para os bispos da Igreja
Católica a carta encíclica “Fides et Ratio”, que tem como finalidade “fazer com que os formadores
de opinião (cientistas, filósofos e teólogos) se empenhem na busca de uma filosofia que tenha como
objetivo harmonizar fé e razão, para dar ao homem contemporâneo as condições de responder aos
apelos mais profundos de sua existência.”
Neste documento, o papa postula que a razão e a fé são não apenas compatíveis mas essenciais
juntas. A fé sem razão – argumenta ele – leva à superstição; razão sem fé conduz ao niilismo e ao
relativismo.
Historicamente, a necessidade de conceder à filosofia e às várias ciências a sua própria autonomia
acompanhou a ascensão das universidades e a separação progressiva das disciplinas.
Nalguns quadrantes passou a haver uma profunda desconfiança da razão, alguns preferiram
concentrar-se somente na fé e outros negar, completamente, a racionalidade da fé.
Como a filosofia moderna progressivamente se distanciou da revelação cristã, a separação das
disciplinas, por vezes, transformou-se em hostilidade, e a teologia muitas vezes foi marginalizada.
Surgiu um humanismo ateu, que considerava a fé prejudicial para a racionalidade. A rejeição da
metafísica pelo positivismo incluía a negação de valores absolutos de que alguns se serviram para
justificar o uso de uma lógica puramente orientada para o mercado.
Noutros quadrantes a crise da racionalidade provocou uma espécie de niilismo, e, em geral, houve
uma profunda mudança na perceção do papel que a filosofia deveria desempenhar dentro da cultura.
De ser respeitada como sabedoria universal, a filosofia converteu-se em apenas um dos muitos
campos (muitas vezes periférico) da aprendizagem humana. A perda da metafísica deixou a cultura
aberta à redução utilitarista do ser humano como apenas mais uma parcela do mundo, cujo valor é
calculado pela razão instrumental. Quando vinculada a uma razão débil, a fé corre o risco de ficar
reduzida a mito ou superstição.
Nota-se que os homens da pós-modernidade estão cada vez mais inseguros no que diz respeito ao
conhecimento de si. As questões fundamentais da existência humana demonstram desde as mais
remotas épocas um profundo anseio do conhecimento que o homem tem por si e pelo seu Criador. A
fé e a razão devem, pois, ajudar o homem a encontrar o sentido necessário para sua existência e
alcançar a verdade.
O papa inicia a encíclica afirmando: “A fé e a razão constituem como que duas asas pelas quais o
espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”. Constata-se que um pássaro ou um avião
não levanta voo somente com uma das asas. As duas asas são essenciais para o voo acontecer.
Da mesma forma, fé e razão são de suma importância para que o homem encontre a verdade e se
possa também encontrar a si mesmo. É pelo uso correto da razão que os homens se descobrem e se
realizam, encontram o sentido para existirem. A procura pela verdade, que só pode ser obtida com o
auxílio da razão, faz do homem um ser que não se satisfaz facilmente e procura sempre abarcar os
mais recônditos mistérios da verdade.
Segundo o grande expoente da filosofia escolástica, S. Tomás de Aquino (1225-1274) “a razão é
uma ajuda propícia para conhecer mais facilmente determinado objeto e com maior certeza aquelas
verdades que, por si, estão agrupadas, e para tornar-lhe acessíveis àquelas verdades sobrenaturais que
superam toda a sua capacidade.” S. Tomás reconhece a autonomia da razão, mas não admite o facto
de que ela sozinha seja capaz de penetrar nos mistérios de Deus, apesar de ser ele a sua finalidade.
Por outro lado, a fé é o ato de assentir algo que não é evidente, que não está explícito.
Consequentemente, é racionalmente aceite se fundamentada com premissas coerentes. A fé
proporciona à razão obter com maior agilidade e credibilidade o seu objetivo, que é a verdade. Por
mais que a razão se esforce para provar determinadas proposições, somente a fé é capaz de lhe
conceder a aceitação de que não pode obter tudo o que quer.
Não deve haver oposição entre a razão e a fé. A razão é uma obra do criador inerente ao homem e a
fé é um dom que o criador lhe concede. A razão e a fé possuem seus objetos de conhecimentos
específicos. A razão realiza a ciência com descobertas, nutrindo o intelecto, e a fé nutre a vida
espiritual do homem. A razão conduz o homem ao conhecimento das leis naturais do cosmos, e a fé
condu-lo para a transcendência do sobrenatural. A razão requer provas, a fé requer aceitação. Os
números 45 a 48 da Fides et Ratio abordam claramente esta relação, muitas vezes conflituosa entre a
fé e a razão.

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