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Comentário bíblico

Colossenses

Pr Marcos Granconato
Sumário

A Epístola aos Colossenses - Aspectos Introdutórios................................................. 4

Colossenses 1.1-2 - Saudações Iniciais ...................................................................... 7

Colossenses 1.3-8 - Gratidão a Deus pelos Crentes de Colossos ............................. 12

Colossenses 1.9-14 - A Oração de Paulo pelos Crentes de Colossos ........................ 17

Colossenses 1.15-23 - A Supremacia de Cristo e sua Obra Reconciliadora .............. 25

Colossenses 1.24-29 - A Missão de Paulo de Proclamar o Mistério do Evangelho... 34

Colossenses 2.1-5 - Os Objetivos Específicos de Paulo no Tocante às Igrejas .......... 40

Colossenses 2.6-12 - Um Alerta Fundamentado na Suficiência de Cristo ................ 49

Colossenses 2.13-15 - Vida, Perdão e Vitória .......................................................... 59

Colossenses 2.16-23 - Regras Inúteis ...................................................................... 64

Colossenses 3.1-4 - A Vida Centrada nas Coisas do Alto.......................................... 78

Colossenses 3.5-11 - O Abandono da Velha Vida .................................................... 85

Colossenses 3.12-17 - A Convivência dos Homens Novos ....................................... 97

Colossenses 3.18-4.1 - A Casa dos Homens Novos ................................................ 108

Colossenses 4.2-6 - As Últimas Instruções............................................................. 123

Colossenses 4.7-9 - O Envio de Tíquico e de Onésimo........................................... 130

Colossenses 4.10-18 - Saudações e Orientações Finais ......................................... 133


A Epístola aos Colossenses - Aspectos Introdutórios

A CIDADE
Colossos ficava no vale do Rio Lico, na parte
meridional da antiga Frígia, onde hoje é a
Turquia. Erguia-se junto a longa estrada que
ia de Éfeso ao Eufrates. Hoje desabitada,
Colossos teve seus dias de glória nos tempos
do Império Grego. Heródoto (c. 485-420 a.C.)
se referiu a ela como uma grande cidade, e
Xenofonte a descreveu como “uma cidade
populosa, tanto rica quanto grande” (430-355 a.C).
A importância comercial de Colossos tinha sido, portanto, notável e
sua causa fora uma forte indústria têxtil. Porém, nos tempos do
Império Romano iniciou-se o declínio, de um lado por causa da
expansão de cidades vizinhas como Laodicéia e Hierápolis (4.13),
de outro, devido a prováveis destruições causadas por terremotos,
a partir de 60 A.D.
Nos dias de Paulo, a decadência social e comercial de Colossos
mostrava que os tempos de grandeza tinham ficado definitivamente
para trás. Aliás, é possível que a igreja colossense estivesse na
cidade menos importante dentre todas para as quais o Apóstolo
enviou suas cartas.
Quanto à população, era formada por frígios e gregos. Judeus
também tinham chegado àquela região no século II a.C. Essa
variedade populacional favoreceu a mistura de diferentes religiões
e culturas, criando uma atmosfera de sincretismo que teve reflexos
na vida da igreja.

A IGREJA
A igreja de Colossos foi fundada ao tempo da Terceira Viagem
Missionária de Paulo (At 18.23-21.17). O Livro de Atos narra que
durante esse empreendimento missionário, o Apóstolo se fixou em
Éfeso por dois anos e três meses de forma que, a partir dali o
evangelho se espalhou “por toda a província da Ásia” (At 19.8-10;
20.31). Ora, a cidade de Colossos distava cerca de 160
quilômetros a leste de Éfeso, sendo muito provável, portanto, que a
mensagem cristã tenha chegado ali entre os anos 53 e 56 A.D.,
graças a esse impacto de Paulo sobre toda a região.
Em Colossos viveu Filemom e seu escravo Onésimo (4.9 cf. Fm
10). Porém, a figura de maior importância na fundação da igreja ali
foi Epafras (1.7-8), um homem piedoso que se destacou por seu
amor pelos crentes daquela cidade e das circunvizinhas (4.12-13).
Paulo sequer conhecia pessoalmente a maioria dos colossenses
(2.1), mas quando estava preso em Roma, ouviu de Epafras, talvez
prisioneiro com ele (Fm 23), acerca de um falso ensino religioso
que ameaçava aquela igreja, dando ensejo a que escrevesse sua
carta.

A CARTA
Colossenses foi escrita por Paulo durante o período de sua prisão
domiciliar em Roma (At 28.30), por volta de 61 A.D., [1] ou seja,
num tempo em que a igreja devia ter mais ou menos seis anos de
existência. É provável que Tíquico tenha sido o mensageiro que a
levou aos seus destinatários (4.7).
A epístola deixa transparecer quais eram os desvios religiosos que
estavam se infiltrando na igreja. Parece que se tratava de uma
mistura do velho judaísmo com o gnosticismo nascente. De fato,
em 2.8 Paulo se refere a uma falsa filosofia, certamente uma forma
embrionária de gnosticismo que defendia uma forte antítese entre o
mundo material e o espiritual e cujos proponentes se jactavam de
ter conhecimentos secretos (2.2-4). O cerimonialismo e o
ascetismo estavam presentes como resultado da fusão dos ensinos
judaicos com a falsa filosofia (2.11, 16-17, 21-23; 3.11).
A visão gnóstica propunha a existência de inúmeras emanações de
Deus que eram como os raios que emanam do sol. Essas
emanações ou éões eram consideradas entidades espirituais, isto
é, eram tidas como anjos que deviam ser venerados (2.18). Cristo
era visto apenas como mais uma dessas emanações, um anjo entre

1 Outras cartas escritas por Paulo durante esse período foram Efésios, Filipenses
e Filemom. A Segunda Carta a Timóteo também foi escrita em uma prisão em
Roma, mas somente alguns anos depois, por volta de 67 A.D., quando Paulo se
encontrava no Cárcere Mamertino, pouco antes de ser executado sob as ordens de
Nero.
muitos outros [2]. Naturalmente, esse ensino depreciava a pessoa
do Salvador, o que motivou Paulo a ressaltar sua supremacia
(1.15-20; 2.2-3, 9), conferindo à carta o propósito não só de refutar
a filosofia mentirosa mostrando sua inutilidade, mas também
promover devoção exclusiva a Cristo como perfeito e suficiente
cabeça da igreja.

2 O autor de Hebreus, por volta do ano 68, combateu frontalmente essa doutrina
logo nos dois primeiros capítulos de sua carta (Hb 1.5 – 2.18).
Colossenses 1.1-2 - Saudações Iniciais

A introdução da Carta aos Colossenses segue


o modelo adotado em outras epístolas
paulinas que constam de uma apresentação
pessoal, a menção dos destinatários e votos
de que esses destinatários recebam bênçãos
de Deus [3]. A rigor, esse modelo pode ser
visto nas cartas da antiguidade com bastante
frequência, porém, o Apóstolo, como era de se esperar, acrescenta
elementos cristãos a ele (e.g., o termo “apóstolo” e as expressões
“Cristo Jesus” e “santos e fiéis irmãos”). Para Paulo, era
importante imprimir marcas distintamente cristãs mesmo sobre os
costumes e práticas mais comuns da vida.
No v. 1 o autor se apresenta como “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus
pela vontade de Deus”. Deve-se lembrar que a carta é dirigida a
uma igreja que não conhece o Apóstolo Paulo pessoalmente (2.1) e
que não havia sido fundada por ele (1.7). Por isso, ainda que em
Colossos não houvesse qualquer questionamento acerca da sua
autoridade apostólica (como já havia a contecido na Galácia e em
Corinto), Paulo se preocupa em mencionar o ofício que ocupa,
considerando que a igreja estava sendo ameaçada
doutrinariamente (2.4,8) e precisava de correção e ensino
derivados de alguém que tivesse alto grau de autoridade.
Assim, ao se apresentar como “apóstolo de Cristo Jesus”, Paulo se
distingue não só dos pastores comuns da igreja [ 4], como também

3 Veja-se 1Co 1.1-3; 2Co 1.1-2; Gl 1.1-3; Ef 1.1-2, Fl 1.1-2; 1Ts 1.1; 2 Ts 1.1-2,
etc.

4 Os apóstolos formavam uma classe exclusiva na igreja primitiva. Era um grupo


pequeno de homens (provavelmente apenas doze ou, no máximo, dezoito, cf. At
1.26; Rm 16.7; Gl 1.19; Ap 21.14) que viram Cristo ressurreto (1Co 9.1),
receberam diretamente dele o apostolado, sem a mediação de pessoas ou igrejas
(Gl 1.1. Evidentemente a auto-nomeação também era inaceitável, cf. 2Co 11.13;
Ap 2.2), tinham o dever de trabalhar como missionários pioneiros, pregando
principalmente em regiões ainda não alcançadas pela mensagem cristã (2Co
10.15-16), recebiam de Deus revelações de notável valor e conteúdo doutrinários
(Gl 1.11-12; Ef 3.5) e faziam milagres que comprovavam a autenticidade de seu
ofício (2Co 12.12; Hb 2.3-4). A existência desse grupo se restringiu ao século I,
dos falsos mestres. De fato, essa é a forma como ele destaca que
deve ser ouvido como figura preeminente, um “mestre da
verdadeira fé” (1Tm 2.7), detentor de autoridade singular (2Co
13.10), a quem foram revelados os mistérios de Deus (Ef 3.2 -9),
tendo, por isso, o direito inquestionável de ensinar a igreja. Ele
ainda realça que exercia seu ofício “pela vontade de Deus” já que
não se auto intitulara “apóstolo” como alguns falsos mestres
costumavam fazer (2Co 11.13; Ap 2.2).
Ainda que esteja fora de discussão que Paulo seja o autor da carta,
o Apóstolo menciona Timóteo como alguém que se une a ele nas
admoestações e ensinos que estão pre stes a serem expostos.
Timóteo é personagem muito conhecido no NT, figurando sem
dúvida como o amigo e cooperador mais próximo de Paulo (1Co
4.17; Fl 2.22; 1Tm 1.2, etc.). Nas epistolas que escreveu na sua
primeira prisão em Roma (Efésios Filipenses, Colos senses e
Filemom), ele só não mencionou Timóteo nas saudações iniciais de
Efésios.
Em 1.1, Paulo chama Timóteo de “irmão”. Isso porque talvez os
colossenses o conhecessem e, ao mencioná -lo dessa forma, Paulo
queria criar nos seus leitores uma disposição favorável para
acolher, com apreço fraternal, o que seria ensinado. Com isso o
Apóstolo também mostrava que o que tinha para expor não eram
ideias que somente ele nutria, mas o pensamento comum entre
crentes fiéis e de boa reputação. De fato, não é medida infrutífera
mostrar a quem está em perigo que os alertas que lhe são dirigidos
não partem de uma pessoa só, mas é fruto de um consenso do qual
participam crentes maduros, dignos de ser ouvidos.
Paulo prossegue dirigindo-se aos crentes de Colossos como
“santos e fiéis irmãos em Cristo ” (2). Santo é algo separado por
Deus para o seu uso. Nos escritos de Paulo, essa palavra nunca é
aplicada a indivíduos em particular, mas sempre a igrejas (talvez a
única exceção seja Ef 3.5, onde o termo a aplicado a um grupo
mais restrito). É possível que isso não ocorra por acaso, mas que
Paulo tivesse em mente o fato de que a comunidade dos eleitos é
um dos principais instrumentos que Deus usa para a realização de
seus propósitos soberanos. Isso coloca a igreja numa posição de

quando foram lançados os alicerces doutrinários, éticos e funcionais da igreja (Ef


2.19-21).
notável importância, sendo impossível prescindir dela caso alguém
queira participar da obra que o Senhor realiza na história.
Paulo também descreve os colossenses como fiéis, isto é, pessoas
dignas de fé. O termo usado também pode ser traduzido como
“crente”, ou seja, alguém que tem fé. Os dois sentidos aplicam -se à
igreja verdadeira. De fato, o povo de Deus se destaca por nutrir a
fé em Cristo. É o povo que crê; a comunidade de crentes. É pela fé
que alguém passa a fazer parte do grupo dos salvos e essa mesma
fé deve permanecer firme no coração de cada membro desse
mesmo grupo. Portanto, é fácil concluir que o povo da fé é também
o povo fiel. Ainda que sempre atacados naquilo que creem, Deus
os protege e os capacita a perseverar (1Pe 1.3 -7; 1Jo 5.4; Jd 24-
25).
Assim, mesmo sabendo que os crentes de Colossos estavam sendo
assediados por erros grosseiros e mentiras danosas que podiam
comprometer a existência da própria igreja, há no coração de Paulo
um brilho de confiança. Ele sabe que está se dirigindo aos santos,
a assembleia que Deus usa para realizar sua obra no mundo em
geral e nas pessoas em particular. Sabe também que a fé que
gerou essas pessoas e as colocou entre os salvos é uma fé que se
sustenta, fazendo de quem a tem não somente um homem de fé,
mas também alguém digno de fé, alguém fiel. Aliás, essa firmeza
podia ser vista nos crentes de Colossos (1.4,23; 2.5).
Os colossenses são ainda chamados de irmãos. Mesmo sem
conhecê-los pessoalmente, o Apóstolo sabia que, desde a hora em
que haviam crido, todos passaram a fazer parte da mesma família,
a família de Deus (Ef 2.19). Apontando a existência de laços tão
fortes, Paulo quer criar nos colossenses uma disposição favorável
ao recebimento das exortações que estão prestes a ser feitas.
Dirigindo-se a eles nesses termos, ele destrói barreiras e
desencoraja a resistência, despertando nos crentes os afetos
naturais, próprios das relações fraternas.
Os crentes são irmãos “em Cristo”. Fora da relação com o Senhor
não há como estar unido ao seu povo. Estar em Cristo significa
estar revestido de sua justiça e santidade, incluído na sua esfera
de graça, soberania e influência especiais. Obviamente, somente
os salvos estão em Cristo (2Co 5.17). Passando a estar nele, o
homem se une às demais pessoas que se encontram na mesma
condição gloriosa, e se torna parte de uma irmandade que
transcende as barreiras das diferenças raciais, culturais, sociais e,
o que é importante destacar na igreja moderna, denominacionais
(Gl 3.26-28; Cl 3.11).
A igreja para a qual Paulo escreve, além de estar em Cristo, estava
também “em Colossos”. Isso mostra que estar “em Cristo” não
implica isolamento do mundo. Ainda que tenha sido desarraigada
da presente era perversa (Gl 1.4) e transportada do império das
trevas para o reino do Filho amado (Cl 1.13), de modo que não
pertença mais a este mundo (Jo 15.19; 17.14,16), a igre ja de Deus
tem o dever de permanecer no mundo (Jo 17.15,18), revelando em
ações e pregações que está sujeita a Cristo, tendo -o como
Salvador e Mestre (Mt 5.16; Jo 17.23). Estando “em Cristo” e “em
Colossos”, a igreja não deve ficar surpresa ao encontrar se vera
oposição (1Pe 4.12-13; 1Jo 3.13). Antes, deve resistir com firmeza,
sem abandonar Cristo nem tampouco “Colossos” (1Pe 5.9-10) [5]
Paulo conclui a saudação inicial com votos de que seus leitores
recebam graça e paz. Trata-se de uma forma de oração ou bênção
colocada em termos de um bom desejo. Graça é o favor que Deus
concede às suas criaturas a despeito de suas falhas e
imperfeições. A rigor, consiste da manifestação do amor
incondicional do Pai. É pela graça que o crente recebe a salvação
(Ef 2.8), as bênçãos materiais (2Co 9.8), a força para enfrentar
dificuldades (2Co 12.9), a capacitação para o serviço cristão (Rm
12.6) e o chamado para o ministério (Ef 3.7 -8). Os colossenses
precisavam da graça de Deus para que vivessem como igreja
exemplar, livre, inclusive, das falsas doutrinas que se insinuavam
em seu meio (2Co 1.12).
Paz é a ausência de perturbações (1Co 16.11), barreiras (Ef 2.14)
e também desordens (1Co 14.33), sendo condição provada pelas
pessoas tanto em seu íntimo (Fl 4.7) como em suas rel ações com
os homens (Rm 12.18; 14.19; 2Co 13.11), com o ambiente ao redor
(At 9.31) e com o próprio Deus (Rm 5.1). Paulo quer que os
colossenses tenham paz especialmente em seus relacionamentos
dentro da igreja, conforme se vê em 3.12 -17. Porém, não há dúvida
de que também desejava vê-los livres das perturbações que os

5 Não é errado o cristão fugir de uma cidade onde haja feroz perseguição (Mt
10.23; 2Co 11.32-33). Porém, nunca é certo o crente evitar a corrupção, os apelos
e os ataques comuns do mundo através do isolamento adotado, por exemplo, por
alguns personagens ligados ao movimento monástico que surgiu no século IV da
era cristã.
mestres da mentira e os que se desviam da fé sempre trazem
sobre os santos (Gl 5.10; 6.17; Hb 12.15).
Graça e paz, portanto, são expressões que abrangem a totalidade
do bem. Elas só podem vir “da parte de Deus nosso Pai e do
Senhor Jesus Cristo” [6]. Somente em Deus o crente deve buscar
essas coisas, uma vez que somente ele as tem para oferecer (Tg
1.17).

6 A expressão “e do Senhor Jesus Cristo” não está presente em muitos


manuscritos.
Colossenses 1.3-8 - Gratidão a Deus pelos Crentes de Colossos

Logo após saudar a igreja de Colossos, Paulo


revela que sempre agradecia a D eus por ela
(3). Suas orações eram dirigidas “a Deus, o
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo ”. O
apóstolo usa essas palavras a fim de, desde o
início, fazer frente ao falso ensino que
ameaçava os colossenses e que tendia a
depreciar a pessoa de Cristo. Assim, ele não só realça que Jesus
tem o próprio Deus por Pai (o que implica ser participante de sua
natureza divina, cf. Lc 22.70 -71; Jo 5.18; 19.7), mas também que
ele mesmo é Senhor, enfatizando dessa forma sua singular
supremacia (1Co 8.6).
O louvor dirigido por Paulo a Deus se baseava em informações que
tinha recebido sobre a igreja. Ele ouvira falar que as três virtudes
cristãs básicas, ou seja, a fé, o amor e a esperança (1Co 13.13; Gl
5.5-6; 1Ts 1.3; 5.8) eram patentes entre os colossenses (4 -5). De
fato, eles tinham fé em Cristo, o que lhes dera acesso à graça da
justificação (Rm 5.1-2). Que essa fé era genuína, podia -se
comprovar pelo amor que os crentes de colossos nutriam por todos
os santos (Gl 5.6; 1Jo 3.10). Ademais, o que nutria e robustecia
tanto a fé como o amor era a esperança celeste. Com os olhos
fixos em sua herança futura os colossenses encontravam forças
para permanecer fiéis a Cristo, mesmo num mundo hostil (1Tm
4.10; 1Pe 5.9-10). Também mergulhados na esperança, eles
olhavam com afeição especial todos os que Deus tornara dignos de
participar de um futuro tão glorioso (1.12), nutrindo, assim, amor
por seus irmãos.
Deve-se ressaltar a esta altura que a esperança mencionada por
Paulo não é mero otimismo vago ou a expectativa um tanto incerta
de que Deus, no final, vai acolher os que têm fé. Esperança aqui é
sinônimo de certeza. É algo que se espera sabendo que de fato
virá (Rm 5.5; 8.20 -21; Ef 1.18; Tt 1.2; Hb 6.18-19). Observe-se
também que se trata de uma esperança “reservada nos céus” (1Co
15.19; 1Pe 1.4), ou seja, tem um conteúdo que representa o
inverso do que preenche a esperança nutrida pelos incrédulos e
pelos crentes imaturos (1Tm 6.17). Finalmente, trata -se de uma
esperança que compõe a mensagem do evangelho (5 in fine).
Pregar a fé cristã sem mencioná-la implica omissão de um dos
seus pontos principais.
O evangelho que apresentava a esperança celeste havia alcançado
Colossos, ao sul da antiga Frígia. A chegada da mensagem cristã
ao vale do rio Lico mostrava que a determinação de Jesus d e que
sua Palavra fosse anunciada além das fronteiras da Palestina
estava se cumprindo (At 1.8). E o que era mais empolgante: Paulo
pôde constatar já em seus dias que esse evangelho estava se
expandindo “por todo o mundo” (6).
De fato, a expansão da fé cri stã ao tempo em que Paulo escreveu
a Epístola aos Colossenses (61 AD) era notável. Por esse tempo o
Apóstolo já tinha concluído as três viagens missionárias
mencionadas em Atos. Por meio daquelas viagens, toda a parte
oriental do Império Romano tinha sido alcançada pela mensagem
de Cristo. Tanto isso é verdade que já em 57 AD, quando escreveu
a Carta aos Romanos, o Apóstolo deu a entender que considerava
cumprida sua missão no oriente e que planejava então ir à capital
do império, seguindo dali para a Espan ha (Rm 15.23-24).
Paulo foi preso antes de realizar esses planos e foi de sua prisão
domiciliar em Roma que escreveu aos colossenses. Ao dizer agora
que por todo o mundo a fé estava crescendo e frutificando,
certamente mostra estar ciente de que, mesmo sem a sua
cooperação, o evangelho já havia chegado também à parte oeste
do império. De fato, sabe-se que a Espanha, tão visada por Paulo,
acolheu o evangelho bem cedo. Ainda que não existam registros
que informem como o cristianismo chegou à Península Ibérica [7],
sabe-se que já no século II a igreja hispânica chamava a atenção
de grandes líderes eclesiásticos como Irineu de Lyon († c. 202) e

7 Há tradições que ligam a origem do cristianismo na Espanha ao ministério de


Paulo realizado depois de sua primeira prisão em Roma. Há também a lenda de
que o evangelho chegou à península através de sete missionários enviados por
Pedro. A história mais popular atribui a chegada da fé cristã à Espanha ao
Apóstolo Tiago que, antes de ser morto por Herodes em Jerusalém, teria visitado a
região e pregado na Galícia e em Zaragoza. Depois de sua morte, seus restos
mortais teriam sido supostamente levados para a Espanha, onde agora repousam
na basílica de Santiago de Compostela. Nenhuma dessas histórias, porém, são
dotadas de embasamento histórico. Veja-se Justo GONZALEZ. Uma história
ilustrada do cristianismo. 10 vols. A Era dos Mártires, vol. 1. São Paulo: Vida
Nova, 1980. p. 42-44.
Tertuliano de Cartago († c. 220), dada a sua firmeza doutrinária e
forte presença na região [ 8].
Por outro lado, mesmo que o ocidente ainda não tivesse sido
atingido com a pregação de Cristo quando Paulo escreveu aos
colossenses, o uso da expressão “todo o mundo” não seria
equivocado, pois é evidente que se trata de uma hipérbole (assim
como as afirmações em 1.23 e Rm 1.8) . Ora, é óbvio que a referida
expressão não foi usada com o propósito de indicar
especificamente cada nação ou povo que habita o globo, mas sim
com o objetivo de destacar a notável expansão do cristianismo que,
de uma pequena seita judaica, tornou -se religião mundial no breve
período de trinta anos após o Pentecoste.
Deve-se observar aqui que Paulo não destacou o crescimento
espantoso do cristianismo por amor ao sucesso ou às estatísticas.
Antes, sua intenção foi certamente realçar o escopo universal do
evangelho. O Apóstolo quis despertar seus leitores para o fato de
que a fé cristã não era propriedade de um pequeno grupo de
iniciados dotados de conhecimento especial como era o caso da
doutrina ensinada pelos falsos mestres que atuavam na Frígia.
Enquanto o proto-gnosticismo presente em Colossos propunha que
a verdade estava nas mãos de uma minoria que alegava ter
conhecimentos secretos, o evangelho era conhecido e oferecido
abertamente no mundo inteiro (Rm 1.5), o que mostrava quão
distante estava a fé cristã dos ensinos divulgados por aqueles que
contaminavam a igreja com sua vã filosofia (2.8).
Os colossenses não precisavam percorrer o mundo para descobrir
que a posse da verdade do Evangelho não era privilégio de uma
minoria. Entre eles mesmos a Palavra estava frutificando e
crescendo. Na própria cidade de Colossos a igreja não somente se
expandia, mas também amadurecia. Como, diante de avanços tão
notáveis, aqueles crentes podiam acreditar que a verdade
pertencia a um grupo restrito?
Paulo informa no v. 6 que a expansão da fé vinha ocorrendo entre
seus leitores desde o dia em que eles ouviram a mensagem cristã.
Ele também se refere a esse tempo como o dia em que os
colossenses “entenderam a graça de Deus em toda a sua verdade ”.
Aqui é possível perceber que a conversão consiste inclusive de um

8 Veja-se Boanerges RIBEIRO. A igreja na Península Hispânica antes de


Constantino. In: Fides Reformata 1:2 (jul/dez). São Paulo: JURET, 1996. p. 71.
milagre no intelecto do homem alcançado pela graça. De acordo
com Paulo não há quem entenda o Evangelho (Rm 3.11; 2Co 4.4;
Ef 4.17-18) e a mensagem da cruz é considerada irracional pelos
descrentes (1Co 1.18). Por isso, a conversão genuína sempre é
acompanhada de uma capacitação especial para entender a
verdade cristã básica. Essa capacitação advém da atuação
sobrenatural de Deus no homem (Lc 24.45; At 16.14; 2Co 4.6 -7;
1Jo 5.20).
Os colossenses entenderam a graça de Deus em toda a sua
verdade [9]. Isso significa que, diferente da heresia cheia de
mistérios propagada naquela região, a fé cristã tinha sido pregada
ali em sua plenitude. É claro que os crentes de Colossos tinham
que progredir no conhecimento espiritual da s coisas que lhes
haviam sido anunciadas (1.9; 2.2 -3), mas tratava -se de um
progresso em verdades que estavam à sua disposição desde o
início, não da descoberta de segredos acessíveis somente a alguns
(1.28).
Note-se que a compreensão da graça de Deus “em toda a sua
verdade” também aponta para o fato de que essa graça só é
realmente entendida a partir de um conjunto de lições a ela ligado.
Desprezar essas lições pode levar o homem a conclusões
perigosas. Aliás, os escritores do NT tiveram que lidar com
problemas decorrentes da má compreensão da graça de Deus por
parte de homens que, por ignorância ou deliberadamente,
rejeitavam suas reais implicações (Rm 6.1 -2; Gl 5.13; Jd 4). Com
os colossenses não tinha sido assim. Eles entenderam plenamente
o significado da graça (1Co 1.5; 1Jo 2.20). Se estavam sendo
ameaçados agora por mentiras que deturpavam de algum modo o
real sentido dela, precisavam apenas de uma palavra de alerta
(2.4-8) e de uma exortação para que vivessem de acordo com o
que já tinham aprendido (2.20-23).
Epafras fora o missionário que apresentara o Evangelho aos
colossenses (7). Paulo o chama de “amado cooperador” e “fiel
ministro de Cristo”. Parece que ele próprio era de Colossos e é
certo que tinha profundo envolvimento com igrejas de cidades

9 A NVI traduz dessa forma para resguardar o sentido do verbo grego que é
“conhecer exata e completamente”. Evidentemente, ao usar esse verbo, Paulo
contraria o ensino do gnosticismo nascente, cujos mestres se gabavam de ser
detentores de conhecimentos ocultos. A forma substantiva encontra-se em 1.9,10
e 3.10.
próximas, como Laodicéia e Hierápolis (4.12 -13). Estando com
Paulo em Roma, talvez como prisioneiro também (Fm 23), ele
relatou ao Apóstolo o progresso dos colossenses, falando -lhe do
amor que eles tinham no Espírito (8).
O amor “no Espírito” de que fala Paulo no v. 8 é a disposição de
promover o bem do outro mesmo quando isso requer alguma dose
de esforço ou implique algum grau de prejuízo. É chamado de amor
“no Espírito” porque o Espírito Santo é a sua fonte (Gl 5.22). Por
isso, somente as pessoas que estão dentro da esfera de atuação
especial do Espírito de Deus podem desenvolver um amor assim.
Além dessas fronteiras, o homem vive “na carne”, sendo movido
pelo amor de si mesmo e por suas vergonhosas inclinações
naturais (Gl 5.19-21). Aliás, esse era o caso dos falsos mestres
que atuavam em Colossos (2.23).
Colossenses 1.9-14 - A Oração de Paulo pelos Crentes de
Colossos

Não são somente informações indesejáveis


que devem motivar os crentes a orar por seus
irmãos. Paulo se animou a orar pelos
colossenses ao receber boas notícias acerca
deles, quando Epafras lhe falou acerca da fé
e do amor que tinham. No v. 9, diz que “por
essa razão” não parava de orar por eles
desde o dia em soubera do seu bom estado espiritual.
O apóstolo revela o conteúdo de suas súplicas. Ele pedia que os
cristãos fossem “cheios do pleno conhecimento da vontade de
Deus”. A frase indica a detenção completa de um conhecimento
amplo. Fica claro aqui o propósito de Paulo de, mais uma vez,
atingir a filosofia gnóstica em formação que elitizava o acesso ao
conhecimento. Desde o início, ele combate sem tréguas os falsos
doutores.
O objeto que o apóstolo desejava q ue seus leitores conhecessem
plenamente era a vontade de Deus. E para que os colossenses
tivessem ciência dela e a assimilassem era necessário que fossem
marcados por sabedoria e entendimento espiritual (Ef 1.17 -19).
Nos escritos paulinos, a vontade de Deu s se revela ao constituir
Paulo como apóstolo (Cl 1.1), ao predestinar, resgatar e adotar um
povo para si (Gl 1.4; Ef 1.5,11), ao determinar que todo o universo
seja posto sob o domínio e controle de Cristo (Ef 1.9 -10), e ao
ensinar o modo como os crentes devem viver (Ef 5.17; 6.6; 1Ts 4.3;
5.18). Paulo diz que a apreensão disso tudo está associada à
sabedoria e ao entendimento espiritual. Não há, pois, como aceitar
essas coisas a não ser que o homem tenha sua mente
reestruturada espiritualmente. Aliás, em Romanos 12.2 o apóstolo
mostra que o entendimento da verdadeira natureza da vontade de
Deus só é possível se houver renovação da mente.
O que se vê no v.9 é um tipo de súplica em prol dos crentes muito
raro em nossos dias. As orações que os cristãos pronun ciam
refletem exatamente os seus valores e interesses. Quando não há
suplicas para que a vontade de Deus seja acolhida por mentes
renovadas isso revela que essas coisas estão recebendo pouca
importância na igreja, especialmente por parte dos seus líderes.
Decisivamente não era esse o caso de Paulo e nem de Epafras
(4.12).
A súplica de Paulo, uma vez atendida, teria um desdobramento
prático. O “pleno conhecimento da vontade de Deus, com toda a
sabedoria e entendimento espiritual ” não geraria apenas crentes
com percepções teológicas mais profundas. Antes, faria com que
os cristãos de Colossos vivessem “de maneira digna do Senhor”
[10]. Deus revestiu os crentes de dignidade para serem
participantes do seu Reino (1.12; 2Ts 1.4 -5). É preciso agora que o
cristão, com a ajuda do Senhor, ande à altura desse privilégio, de
tal modo que Cristo seja glorificado em sua vida (2Ts 1.11 -12).
Uma descrição não muito detalhada do modo de vida digno da
vocação de Deus encontra-se em Efésios 4.1-3 [11]. Em termos
gerais, porém, trata-se de uma maneira de viver que em tudo
agrada ao Senhor e que é marcada por uma dinâmica que Paulo
descreve mencionando quatro componentes: frutificação,
crescimento, fortalecimento e gratidão.
A vida de modo digno do Senhor é aquela que segue “frutificando
em toda boa obra” (10). A figura sugerida aqui é óbvia: o homem é
como uma árvore e suas obras são os frutos. João Batista usou
essa mesma figura (Mt 3.8-10) e Jesus também (Mt 7.15 -20; 12.33;
Jo 15.1-6), sendo ainda uma das preferidas de Paulo (Rm 7.4-5; Gl
5.22-23; Ef 5.8-9; Fp 1.9-11).
Os frutos esperados dos crentes no texto em análise são as boas
obras [12]. Aliás, Deus determinou que o povo salvo fosse
caracterizado pela prática delas (Ef 2.10; Tt 2.14; 3.8), devendo
tais obras se constituir no “traje” característico das mulheres
crentes (1Tm 2.9-10; 5.10), bem como numa área em que o pastor

10 Veja-se 2Pedro 1.3-8, onde também o conhecimento de Deus é mencionado em


conexão com a vida frutífera. Aliás, o conhecimento dissociado da virtude não tem
valor algum dentro do cristianismo (1Co 13.2). Essa foi uma das razões pelas
quais o gnosticismo não pôde ser acolhido pela igreja apostólica.

11 Essa descrição está voltada mais especificamente para o modo de vida do


crente dentro na igreja, no seu relacionamento com os irmãos.

12 Em contrapartida, é muito comum a sua total ausência nos incrédulos (Tt


1.16; Jd 12).
deve ser exemplo (Tt 2.7). Paulo lembra, inclusive, que as obras do
crente serão matéria de julgamento no tribunal de Deus (2Co 5.10).
Tendo as boas obras tamanha importância na prática do viver
cristão, é preciso defini -las com maior precisão. Ao contrário do
que se pensa, a construção do conceito de boa obra não é deixad o
na Bíblia à mercê da intuição humana. Muito menos deve -se
acolher a ideia de que toda obra é aceitável por Deus desde que
feita com sinceridade. De fato, não é dado ao homem autoridade
para definir o que são boas obras. Tampouco seus sentimentos,
mesmo os melhores, têm, a rigor, o poder de validá -las. Antes, o
que a Bíblia ensina é que foi o próprio Deus quem fixou de
antemão o que se pode chamar de boas obras (Ef 2.10). Isso
significa que por mais bela ou sincera que uma ação possa
parecer, ela só será aceitável se estiver em harmonia com aquilo
que o Senhor, em sua sabedoria, elevou à cate goria de bom [13].
Por isso, a Escritura é crucial tanto para a descrição como para a
promoção das boas obras (2Tm 3.15 -17). Nela vemos alguns
exemplos das práticas que Deus eleva a essa categoria. São elas:
todas as ações de Jesus (Jo 10.32), a ajuda a pes soas carentes,
especialmente os irmãos na fé (At 9.36 -39; Tt 3.14), a boa criação
dos filhos, a prática da hospitalidade, o humilde serviço aos santos
(1Tm 5.10) e a rejeição dos impulsos da carne (1Pe 2.11 -12). A
Epístola de Paulo a Tito dá ênfase especial às boas obras, sendo
possível detectar nela um número maior de exemplos,
especialmente em 2.1-15 e 3.1-5. Esse tema ocupa espaço notável
na literatura paulina porque o Apóstolo, conforme se depreende do
texto em análise, vê as boas obras como marcas do a ndar digno do
Senhor.
A vida “digna do Senhor” é marcada também pelo crescimento no
“conhecimento de Deus” (v.10 in fine). Como no v. 9, Paulo usa
mais uma vez a palavra “conhecimento”, com o propósito claro de
desafiar o falso ensino que ameaçava a igrej a [14]. Agora, porém, o
objeto do conhecimento é o próprio Deus. Evidentemente, a

13 A sincera devoção idólatra (1Co 12.2), a adoração a Deus dissociada da


obediência (Is 1.12-15), a busca da justificação pelo esforço próprio (Gl 5.4) e a
condescendência em face do pecado obstinado (1Co 5.1-2) estão entre as obras
que as pessoas consideram boas, mas que, à luz da Bíblia, são repugnantes diante
de Deus (Is 64.6).

14 Veja-se o comentário a 1.6 e nota.


infinitude do Senhor faz com que o cristão sempre tenha campo a
percorrer no entendimento de quem ele é. Aliás, em sua oração
sacerdotal, Cristo declarou que a vida eterna consiste de conhecer
a Deus e a seu Filho (Jo 17.3), o que significa não somente que é
por conhecê-los que o homem entra na vida, mas também que a
imensidão de suas perfeições requere r nada menos que a
eternidade para serem exploradas.
Os colossenses já tinham conhecido a graça de Deus quando
creram (6), mas a experiência cristã não se resume obviamente à
conversão. Há uma dinâmica de crescimento que se segue. Paulo
mostra que esse crescimento envolve aprender mais sobre Deus.
[15]. Aliás, isso é importante porque o conhecimento de Deus se
constitui numa das marcas que distingue o homem piedoso dos
incrédulos (Jo 8.19; 2Ts 1.8). Estes, de fato, não conhecem a Deus
ou desprezaram o conhecimento que se pode obter dele pelas vias
naturais.
Os reflexos dessa ignorância são terríveis já nesta vida. De acordo
com o NT isso gera idolatria, discórdias, falhas no caráter e as
mais chocantes imoralidades (Rm 1.21 -31; 1Ts 4.3-5; Tt 1.16). A
falta do conhecimento de Deus é também a causa da perseguição
contra a igreja (Jo 15.21). Por isso, quanto mais os colossenses
crescessem no conhecimento de Deus, mais diferentes seriam dos
incrédulos que os cercavam. Além disso, seriam detentores de um
conhecimento relevante, indispensável para o viver “de maneira
digna”, diferente do conhecimento advogado pelos mestres do
gnosticismo nascente que tanto os perturbavam (2.23).
No v.11, a súplica principal de Paulo é que os crentes de Colossos,
mesmo em face dos falsos ensinos que lhes eram propostos,
mesmo vivendo numa cidade marcad a pelo sincretismo religioso e
mesmo sob os ataques que sofriam em meio a uma sociedade
pagã, fossem perseverantes e pacientes (2Co 6.4 -10; 2Tm 3.10).
As palavras gregas para perseverança e paciência são sinônimas.
Ambas significam firmeza ou fortaleza. Sã o as qualidades de quem

15 Os termos “deísmo” e “agnosticismo”, embora designem sistemas de


pensamento mais abrangentes, são muitas vezes usados para se referir
especificamente a idéias filosóficas que negam a possibilidade de conhecer a Deus.
No agnosticismo, a rigor, é dito que é impossível até mesmo saber se Deus de fato
existe. Do texto em análise, porém, se depreende que o Deus verdadeiro pode sim
ser conhecido. Na verdade, ele quer ser conhecido, tendo prazer em se revelar aos
homens (Sl 25.14; Is 65.1; Jr 29.13; Jo 14.21).
não desiste, mesmo sendo prolongado o combate e demorado o
livramento.
Considerando a força dos apelos e das ameaças que se
apresentam continuamente diante do crente, essas duas virtudes
são, de fato, essenciais. Contudo, sua fonte não está no próprio
cristão. Ele não é capaz de produzi -las por si mesmo. Por isso, os
crentes têm que ser “fortalecidos com todo o poder”. Do contrário,
não haverá firmeza (Fl 4.13). A intensidade do poder necessário
para que o crente persevere é descrita nas palavras “de acordo
com a força da sua glória”. Assim como a imensa energia do sol
está associada ao seu brilho indescritível, da mesma forma pode -
se ter alguma noção do poder de Deus quando se pensa na glória
da sua majestade. É esse poder infinito q ue Paulo quer que atue
nos colossenses fazendo-os perseverar. Nada menos que isso os
protegeria da apostasia (2Co 13.4; 1Pe 1.4 -5; Jd 24). Aliás, os
crentes modernos que anseiam testemunhar grandes
manifestações do poder de Deus, fariam bem em contemplá -lo na
vida daqueles que, mesmo sob intensa oposição, perseveram na fé
e na piedade.
O modelo prático de cristianismo que Paulo ansiava ver
concretizado na vida dos colossenses também era marcado pelo
dar graças (12). A alegria mencionada no fim do v. 11, cer tamente
se refere ao sentimento que deve acompanhar a gratidão. O
apóstolo, portanto, queria que seus leitores dessem graças a Deus
com júbilo. Essa gratidão deveria ser dirigida ao Pai. Ela seria fruto
do reconhecimento de que foi o Pai quem capacitou os colossenses
a terem parte na sua herança santa.
Não se pode minimizar a relevância do v. 12 para a compreensão
da origem da salvação. Há quem diga que a eleição de Deus
ocorreu quando ele, usando de sua presciência, anteviu quais
pessoas creriam no evangelho. Vendo, assim, de antemão os que
atenderiam a pregação da fé, Deus então os teria escolhido e, no
tempo devido, os chamados e justificado. Geralmente esse ensino
busca amparo em Romanos 8.29 e 1Pedro 1.2 [ 16].
A maior fragilidade, porém, dessa doutrina é que ela, contrariando
o ensino do Novo Testamento, baseia a salvação no merecimento
do homem, percebido previamente por Deus. A conclusão óbvia a

16 Esses textos não ensinam que Deus viu de antemão quem creria, mas sim que
ele conheceu de antemão em quem agiria, concedendo sua graça salvadora.
que ela conduz é que a eleição não procede da graça incondicional
do Pai, sendo antes um prêmio pela virtude vista de antemão por
ele em algumas pessoas. Assim, de acordo com esse
entendimento, a origem da salvação estaria no indivíduo, cuja
disposição de fé é descoberta previamente por Deus. Este então o
escolhe recompensando-o por aquela louvável disposição (Ve ja-se,
contudo, Rm 11.35). Trata-se assim da eleição oriunda do mérito
humano visto com antecedência e não decorrente da graça divina
incondicional [17].
Ora, essa maneira de explicar a eleição divina não pode ser
sustentada pela revelação bíblica. O texto em análise, por
exemplo, mostra que é o próprio Deus quem torna o homem digno
da sua herança. Assim, o Senhor não encontra uma multidão de
homens dignos e então os elege. Antes, ele elege uma multidão de
homens e então os torna dignos. Ademais, em Efésios 1.4-5 é
ensinado que a eleição de Deus se baseou exclusivamente em sua
vontade livre, misericordiosa e soberana e não em supostas
virtudes previstas (Rm 9.11 -18; 2Tm 1.9; Tt 3.4 -5). Como se não
bastasse, vê-se ainda na Bíblia que é Deus quem capacita o
homem tanto a ir a Cristo (Jo 6.44,65) como a crer nele (Ef 2.8). Se
é ele quem concede essas coisas ao homem, é absurda a
afirmação de que as verifica de antemão em alguém, realizando em
seguida a eleição. Portanto, é correta a afirmação de Agostinho
que diz: “A graça de Deus não descobre, pelo contrário, faz os que
devam ser eleitos” [18].
A palavra usada por Paulo no v. 12 para descrever a ação de Deus
sobre os colossenses, tornando -os dignos de herdar o reino
significa literalmente tornar suficiente ou qualificar. De si mesmo e
por si mesmo, o homem não pode colocar -se à altura de herdeiro
do céu. Somente Deus pode qualificá -lo para isso, revestindo-o de

17 Há um outro problema com esse ensino. Ele parte do pressuposto de que existe
um futuro fixo que Deus foi capaz de consultar. Porém, a questão que surge é:
Quem fixou esse futuro para o qual Deus olhou? Somente três opções podem ser
oferecidas como resposta a essa pergunta: ele próprio estabeleceu o futuro; um
outro deus o fez; ou foi o destino cego. As duas últimas opções são inaceitáveis
para o cristianismo. Logo, foi Deus quem fixou o futuro. Ora, se ele próprio assim
fez, então não descobriu quem creria, mas sim determinou quem receberia o
evangelho.

18 Citado por João CALVINO. As institutas ou tratado da religião cristã. Vol. III
(XXII:8). São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989. p. 405.
dignidade. Ao crer em Cristo, os colossenses haviam sido objeto
dessa ação de Deus que os tornara dignos da sua herança. Isso se
constituía na razão suprema pela qual os crentes de Colossos
deviam alegremente dar graças ao Pai. Sua dignidade não era
decorrente de pertencerem a uma pequena elite de indivíduos
iniciados nos falsos mistérios do gnosticismo nasc ente. Essa era a
dignidade falaciosa que os mestres daquelas doutrinas vãs
arrogavam para si. Não havia qualquer razão para que os
colossenses anelassem pertencer àquela elite ilusória. Sua
dignidade havia sido dada por Deus que os alçara à posição de
herdeiros, tornando-os dignos dessa posição. E isso devia
promover alegre gratidão.
Disso tudo se depreende que os crentes em geral não têm qualquer
razão para buscar a admiração que o mundo tributa a elites
sociais, círculos de poder, grupos intelectuais ou sociedades
secretas. As grandezas e o status que a sociedade sem Deus
almeja não devem despertar o interesse do homem redimido nem
ser alvo de seus anseios. A nobreza dos cristãos foi -lhes
concedida por Deus que, ao salvá -los, os fez dignos de um reino
majestoso. Não há, pois, razão para que o povo eleito se afadigue
na busca das glórias ilusórias deste mundo.
O v. 12 termina mencionando a luz. No NT esse termo é usado
para se referir à pureza (1Jo 1.5), ao conhecimento (2Co 4.6) ou à
glória celeste (1Tm 6.16). No texto em análise o último sentido é o
mais apropriado. Há, portanto, aqui uma clara alusão à esperança
escatológica do crente (Veja -se tb. 1.5, 27 e 3.4) que nunca deve
perder de vista onde está seu verdadeiro tesouro e a real
felicidade.
Se de um lado o crente espera o Reino, de outro deve ter
consciência de que já faz parte d ele e desfruta, desde agora, do
status de cidadão do céu (Fp 1.27). Isso é possível porque Deus
Pai o libertou do “império das trevas” (v.13), isto é, do domínio de
Satanás, sob o qual vivia em plena escuridão, ou seja, em
ignorância e pecado (At 26.17-18). Observe-se que o verbo usado
por Paulo aqui significa salvar, libertar ou resgatar, o que mostra a
condição de escravo sob a qual o cristão vivia antes da sua
conversão, bem como a triste situação em que todo incrédulo se
encontra (2Co 4.4; 2Tm 2.25-26).
Tendo libertado o crente do reino sombrio de Satanás, o Pai o
transportou para o Reino do seu Filho amado. Assim, o crente foi
removido de uma pátria para outra. Como parte de um povo liberto,
ele foi colocado sob o domínio de um novo império, sob o qual
experimenta liberdade, paz e segurança, nutrindo também um
modo de vida diferente. Ainda que o desfrute pleno de sua pátria
esteja reservado para o futuro (Fp 3.20; 1Pe 2.11), ele prova desde
já e em grande medida os benefícios de sua libertação (Rm 14.17) .
No Filho amado de Deus, o crente encontrou a redenção, ou seja,
libertação, pleno livramento (v. 14. Veja -se Ef 1.7; Hb 9.12). Esse
benefício não está somente ligado à remoção do império das
trevas. A redenção também abrangeu “o perdão dos pecados”. Isso
significa que além de ser liberto do domínio do diabo, o crente
também ficou livre de suas culpas e, consequentemente, da
condenação daí decorrente (Rm 8.1).
Colossenses 1.15-23 - A Supremacia de Cristo e sua Obra
Reconciliadora

A menção do “Filho amado” no v. 13 cria a


primeira oportunidade na epístola para Paulo
falar sobre a supremacia de Cristo. Em
Colossos, os ensinos judaicos mesclados às
doutrinas propostas pelo gnosticismo em
formação propunham que os crentes
buscassem sabedoria, conhecimento e
santidade em práticas cerimoniais e ascéticas e não em Cristo
(2.2-4, 11, 16-17, 21-23). Ademais, a rejeição da matéria como
essencialmente má comprometia a realidade da encarnação (v. 20,
22; 2.9). Isso tudo reduzia a importância de Cristo tanto no
pensamento como a prática do viver cristão. Daí a preocupação de
Paulo em realçar sua supremacia, levando assim os crentes a se
sujeitarem exclusivamente ao Filho de Deus [ 19].
Paulo começa dizendo que Cristo “é a imagem do Deus invisível ”
(15. Veja-se tb. 2Co 4.4). A invisibilidade de Deus é ensinada já
nas primeiras páginas da Bíblia, tendo servido como base para a
proibição de imagens que o representassem já a partir dos tempos
do Êxodo (Dt 4.12 -18). De fato, a essência de Deus é invisível
(1Tm 1.17; 6.16; 1Jo 4.12) e Jesus ensinou que ninguém jamais viu
o Pai, exceto ele próprio (Jo 6.46).
Em Cristo, porém, o homem pode ver Deus [ 20] (Jo 1.14,18; 14.9;
Hb 1.3). Ele é a imagem visível [21] daquele que é invisível.

19 É possível que os vv. 15-20 encerrem um hino cristológico usado na igreja


primitiva. Aliás, hinos desse tipo serviam como veículo para o ensino doutrinário e
é perfeitamente possível que Paulo esteja usando esse recurso didático aqui.
Outros prováveis exemplos dessa prática se encontram em Efésios 5.14; Filipenses
2.6-11 e 1Timóteo 3.16.

20 Mesmo nos tempos do AT, é possível que algumas visões de Deus fossem
aparições da Segunda Pessoa da Trindade. Talvez uma comprovação disso
encontre-se em João 12.41 comparado com Isaías 6.1-5.

21 É desse vocábulo grego (pronuncia-se eikon) que advém a nossa palavra


“ícone”. Nas igrejas russa e grega, o termo é usado para se referir à representação
de figuras sagradas em superfície plana de madeira.
Imagens e ícones de ouro, prata, madeira ou pedra são
abomináveis ao Senhor (Sl 115.3 -8), mas Jesus é o ícone vivo de
Deus. Basicamente, isso significa, que Cristo é Deus em forma
visível.
A segunda parte do v. 15 diz que Cristo é o “primogênito de toda a
criação”. A princípio, essa expressão pode s ugerir que Cristo foi o
primeiro a ser criado entre todos os demais seres que compõem o
universo que Deus fez [22]. Esse entendimento, porém, nega a
divindade de Jesus, não se harmonizando com a cristologia
claramente exposta em todo o NT (Jo 1.1; 20.28; Rm 9.5; Hb 1.8;
1Jo 5.20). Ademais, deve ser lembrado que o propósito de Paulo,
ao escrever sua Carta aos Colossenses, é ressaltar a supremacia
de Cristo. Portanto, entender a expressão em análise como uma
prova de que Cristo é apenas uma criatura especial, nada tendo de
divino, milita contra o principal objetivo do apóstolo.
A forma, pois, correta de entender a expressão “primogênito de
toda a criação” é a seguinte: como o primogênito, no mundo dos
dias de Paulo, tinha primazia sobre tudo o que pertencia ao pai,
sendo seu herdeiro principal, da mesma forma Cristo tem o direito
de primogênito sobre tudo o que foi criado. Tudo convergirá nele
(v. 16; Ef 1.9-10), que exerce supremacia sobre o universo inteiro
(v. 18; 1Co 15.27-28; Ef 1.22; Hb 2.8). Assim, a expr essão usada
por Paulo, está longe de dizer que Cristo foi criado primeiro que
tudo. Antes, significa que ele tem direito de primogenitura sobre
toda a criação de Deus, como herdeiro principal e senhor dela (Hb
1.2).
Tendo tocado no tema da criação, o texto se expande
apresentando as razões pelas quais Cristo tem o status de
primogênito sobre o universo que Deus fez. De acordo com o v. 16,
“nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra ”. Essa
afirmação coloca Cristo como agente na criação (Jo 1.3). Ora,
sabe-se que o Deus-Trino criou o universo, mas a Bíblia não

22 Ao tempo da igreja antiga, o presbítero Ário de Alexandria († c. 335) foi o mais


vigoroso expoente do ensino de que Cristo, apesar de ser, de fato, o criador do
mundo, era ele mesmo uma criatura, não sendo certo crer em sua divindade. As
idéias de Ário, porém, foram condenadas no Concílio de Nicéia, reunido em 325, e
ele foi deportado para o Ilírico. O arianismo, contudo, se manteve vivo e, mesmo
nos dias de Ário, mostrou-se vigoroso e em expansão. A igreja oficial, porém,
nunca o acolheu. Atualmente, o grupo que mais se aproxima das doutrinas
arianas são as Testemunhas de Jeová.
informa o modo específico como cada uma das três Pessoas atuou
nessa obra [23]. Assim, não é possível determinar que papel exato
a Segunda Pessoa da Trindade exerceu quando os anjos foram
criados ou quando os fundamentos do universo foram lançados
[24].
Seja como for, Paulo diz expressamente que tudo o que existe,
tanto o mundo material quanto imaterial (o que, evidentemente,
inclui os anjos), veio à existência pelo ato criador do Filho. E não
somente “todas as coisas foram criadas por ele ”, mas também
“para ele”, ou seja, tudo o que foi criado convergirá um dia no Filho
(Ef 1.10). Isso significa que, no fim de tudo, todas as coisas serão
postas em harmonia por ele e com ele. A desordem, o caos, o
sofrimento, a vaidade e a desarmonia a que o pecado lançou a
criação de Deus, um dia terá fim, sob o domínio absoluto do
Senhor Jesus (Rm 8.19-22).
Não se pode perder de vista que Paulo destaca essas verdades
acerca da supremacia de Cristo sobre a criaç ão com o objetivo de
enfraquecer o ensino dos falsos mestres que ameaçavam a igreja
de Colossos. Especialmente a apresentação de Cristo como criador
de tronos, soberanias, poderes e autoridades, ou seja, das
diferentes ordens de anjos, conforme o ensino ju daico de então,
deve ter causado forte impacto sobre o gnosticismo nascente que,
ao que parece, encorajava a adoração de seres angelicais (2.18)
[25].
No v. 17, Paulo realça a preexistência de Cristo ao afirmar que “ele
á entes de todas as coisas”. Essa afirmação implica divindade, pois
enfatiza que Cristo já existia antes da criação do universo físico e
dos seres espirituais (Jo 1.1 -2). Ora, é óbvio que só Deus, ele
próprio eterno e não criado, pode ser considerado existente desde
as infindas eras da pré-criação. Assim, Paulo destaca novamente a
divindade do Filho. Aliás, o próprio Senhor Jesus afirmou isso

23 Não há dúvidas de que o Pai atuou na criação (Ap 4.11). Que o Filho é criador
também fica claro em textos como o que está em análise. Já a atuação do Espírito
Santo na obra criadora é obscura e geralmente deduzida a partir de Gênesis 1.2.

24 O v.16 aliado a textos como João 1.3 e Hebreus 1.2 dão a entender que, na
criação, o Filho atuou como agente intermediário.

25 A supremacia de Cristo sobre os anjos também é mostrada em 2.15 (Veja-se tb.


Ef 1.20-21; Hb 1.5-8, 13-14).
quando também alegou ser pré-existente (Jo 8.58). Ora, existindo
antes de todas as coisas, Cristo se situa na posição de Senhor
sobre a totalidade da ordem criada.
Em seguida, é dito que “nele tudo subsiste”. O verbo aqui usado
significa continuar, permanecer, ou ainda segurar. É dessa palavra
que advém o termo sistema. O texto ensina, portanto, que Cristo é
o sustentador de tudo o que há. Se o universo nã o entra em
colapso, se a realidade consiste de um cosmos ordenado e não de
um caos, se é possível perceber a existência de um sistema bem
elaborado e em perfeito funcionamento no mundo, se há leis físicas
e forças misteriosas regendo, controlando, movendo e fazendo
girar de maneira harmônica a fantástica e infinitamente complexa
máquina do universo, Paulo atribui essa obra ao Deus -homem. É,
de fato, pelo poder dele que as menores sementes germinam e
também os astros mais gigantescos não desabam ou saem de s uas
órbitas (Hb 1.3).
Em face dos ensinos gnósticos que ameaçavam a centralidade e
supremacia de Cristo entre os crentes de Colossos, Paulo, no v.
18, menciona o senhorio exclusivo de Jesus sobre a igreja. “Ele é a
cabeça do corpo que é a igreja”, ou seja, como um organismo vivo,
unificado e bem estruturado (1.24; 3.15. Veja -se tb. Rm 12.4-5;
1Co 12.12-27; Ef 3.6) a igreja recebe sua força vital e o comando
para as suas ações unicamente de Cristo e não de filosofias
humanas (Ef 1.22-23; 4.15-16; 5.23-24, 29-30). Se for separada
dele, ficará sem orientação, seguindo vozes alternativas e, por fim,
morrerá ou se transformará numa outra sociedade qualquer,
defendendo tradições e crenças estranhas sob a capa de uma
piedade fingida. Esse era exatamente o caso do g rupo de falsos
mestres que perturbavam os crentes de Colossos (2.16 -19).
Paulo também afirma no v. 18 que Cristo “é o princípio”. A ideia
dominante é a de que ele é o originador ou fundador de tudo. Em
conexão com a realidade da igreja que acaba de ser mencionada, é
possível que o texto se refira não somente às origens do universo,
mas também à criação do novo homem em Cristo (Ef 2.14 -15). De
fato, a igreja é considerada no NT a nova criação de Deus (2Co
5.17; Gl 6.15; Ef 2.10), algo que veio à existência porque ele,
diante das trevas em que o coração dos salvos outrora se
encontrava, disse outra vez: “Haja luz! ” (2Co 4.6). Em face disso,
é possível que o texto aponte para Cristo como agente também na
nova criação, o princípio de tudo, inclusive de uma nova raça, a
raça eleita (1Pe 2.9). De fato, ele próprio disse expressamente a
Pedro: “... edificarei a minha igreja” (Mt 16.18).
A ressurreição de Cristo foi uma espécie de prenúncio da
ressurreição dos crentes em geral (1Co 15.20 -23). Por isso, o
versículo 18 prossegue com a afirmação de que ele é o
“primogênito dentre os mortos”. De fato, Jesus foi a primeiro a
ressuscitar com o chamado corp o da ressurreição, isto é, um corpo
imperecível, que não se deteriora (1Co 15.42 -44). Outras pessoas
ressuscitaram antes daquela manhã em que o Senhor se levantou
do túmulo onde jazia (2Rs 4.35; Lc 7.15; Jo 11.44, etc.), mas todas
elas voltaram à vida num corpo mortal, dando simples continuidade
ao curso de sua existência, até morrerem outra vez.
Desse modo, Cristo foi o primeiro a ressuscitar definitivamente num
corpo glorioso, revestido de imortalidade. Por isso, pode -se dizer
que ele foi o princípio também da nova criação de Deus, o
inaugurador de uma nova humanidade, a humanidade formada por
homens celestiais (1Co 15.45 -49).
O v. 18 termina dizendo que Cristo desempenha funções cruciais
nas suas relações com o universo e com a igreja para que tenha
absoluta e total supremacia [26]. Em sua infinita soberania, o Pai
quis que o Filho tivesse plena primazia, pelo que fez dele o
originador, sustentador e cabeça de tudo.
Essa verdade também é exposta no v. 19. Nesse versículo Paulo
ensina que Deus se agradou em fazer com que em Cristo
“habitasse toda a plenitude”. Os gnósticos usavam a palavra
“plenitude” para se referir à soma total do poder e dos atributos de
Deus. Essa plenitude, segundo eles, era distribuída entre agentes
(emanações ou poderes angélicos) atra vés dos quais Deus
governava o mundo e revelava a sua vontade. Assim, esses seres
intermediários retinham parcelas maiores ou menores da plenitude
que era distribuída e diluída entre eles. Nenhum tinha toda a
plenitude e é provável que os falsos mestres de Colossos
dissessem que Cristo era apenas mais uma dessas emanações
procedentes do divino.
Paulo, porém, ensina que em Cristo habita “toda” a plenitude,
destacando que tudo o que é pertinente a Deus (seus atributos,

26 Particularmente, o fato de ser o primogênito dentre os mortos coloca Cristo


numa posição de autoridade sobre os homens (At 17.31).
poder e autoridade) reside nele de forma completa (2.9). Assim, o
texto fala da perfeita divindade de nosso Senhor, pela qual ele
criou e sustenta tudo o que há e pela qual exerce total autoridade
sobre o mundo e a igreja.
O v. 20 encerra o hino cristológico iniciado no v.15. O texto ensina
que a vontade de Deus consistiu de fazer com que o Filho fosse o
instrumento de reconciliação entre ele e todas as coisas “tanto as
que estão na terra quanto as que estão nos céus ”. Essa afirmação
levanta uma série de questões difíceis. Estaria Paulo ensinando
que a inimizade com Deus um dia desaparecerá do universo? Se
esse for o caso, seria certo dizer que as penas do inferno são
temporárias e que as almas ali lançadas um dia desfrutarão da paz
com o Senhor? E mais: a reconciliação com Deus das coisas que
“estão nos céus” implicaria na salvação dos seres angélicos que se
rebelaram contra ele, como Satanás e os demônios?
Na história da teologia cristã houve quem respondesse
afirmativamente cada uma dessas perguntas. Orígenes de
Alexandria (c.185-253) foi aparentemente o primeiro pensador
cristão a propor o ensino de que Deus, no final, reconciliará
consigo mesmo todos os seres criados, inclusive Satanás. Essa
teoria, tecnicamente denominada apokatástasis (Lit. restauração),
foi considerada um desvio da doutrina ortodoxa, sendo uma das
razões pelas quais Orígenes não é considerado um dos pais da
igreja. Seja como for, para ele não havia outra forma de entender
textos como Salmos 110.1 e 1Coríntios 15.28. O grande erudito
alexandrino cria que essa era uma implicaçã o necessária da
bondade de Deus e do poder da Palavra, os quais impõem a
necessidade de um término para o mal. Segundo o entender de
Orígenes, se o mal, Satanás ou o inferno existirem para sempre,
Deus jamais será “tudo em todos” [27].
Conforme já dito, a igreja cristã jamais acolheu esse pensamento
[28]. Qual então, seria o sentido da reconciliação mencionada no
texto sob análise? A palavra que o NT geralmente usa para
“reconciliação” diz respeito à restauração de um relacionamento
cuja harmonia se perdeu (Rm 5.10-11; 11.15; 1Co 7.11; 2Co 5.18-

27 Veja-se HALL, Christopher A. Lendo as Escrituras com os Pais da


Igreja. Traduzido por Rubens Castilho Meire Santos. Viçosa: Ultimato, 2007. p. 63.

28 Veja-se SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Vol. 2 (21:XVII). São Paulo:


Vozes, 1990. p. 507.
19). Porém, o termo usado por Paulo em Colossenses 1.20 é
ligeiramente diferente e só aparece novamente em 1.22 e Efésios
2.16. Esse termo também significa restauração da paz (1.22), mas
Paulo o usa ainda para indicar uma realidade unida em perfeita
harmonia com Deus (Ef 2.16).
Assim, ao falar das coisas terrenas sendo reconciliadas com Deus,
Paulo golpeia o conceito gnóstico de que o mundo físico é
intrinsecamente mau, situando-se fora do interesse de uma
divindade que se mantém distante dele. Opondo -se a isso, o
apóstolo mostra que, por compor a boa criação de Deus, o universo
material um dia será parte de uma realidade unificada sob seu
completo domínio, desfrutando de paz e tendo restaurada a
harmonia que caracterizou o seu estado inicial (Rm 8.19 -22).
E quanto às coisas celestiais? De fato, está fora de dúvida que
Paulo tem em mente aqui as realidades espirituais. Entretanto, é
certo que os santos anjos não precisam de reconciliação. Também
é certo que não há provisão para a restauração dos anjos caídos
(Hb 2.16). Como então entender o que Paulo diz no v. 20? Diante
do ensino geral do NT e das nuances que a palavra usada nesse
texto admite, parece certo que a reconciliação das coisas que
estão nos céus deve ser entendida no sentido de serem postas em
sujeição a Deus, sendo totalmente devotadas a ele.
Ora, é sabido que o pecado pôs o diabo e seus demônios em
franca rebelião contra o Senhor, lançando desordem no universo
espiritual, desordem essa que ainda persist e (Ef 6.12). Está fora de
questão que esse estado de coisas deve ser remediado e é
provável que Colossenses 1.20 aponte o modo como isso
acontecerá. Considerado ao lado de textos como 1Coríntios 15.28;
Efésios 1.10, Colossenses 1.16 e Hebreus 2.8, parece c erto que o
texto em análise fala da reconciliação não como a restauração da
harmonia através do fim da inimizade, mas sim como a restauração
da harmonia através da subjugação de tudo ao Pai [29]. Portanto, a
reconciliação de que Paulo trata aqui é a inclusã o de todas as
coisas numa realidade unificada posta debaixo da absoluta
soberania de Deus. Nessa condição não mais existirá qualquer
rebelião, desobediência ou resistência ao governo divino. É certo

29 Textos como Lucas 10.18, Colossenses 2.15 e Judas 6 mostram alguns


sentidos em que essa subjugação já existe. A sujeição completa, porém, dos anjos
maus ao domínio do Senhor está reservada para o futuro (Ap 12.7-10).
que a atitude dos maus (anjos e homens perdidos) jamais s erá
marcada por sujeição amorosa. Porém, haverá de sua parte a mais
completa resignação (Ap 14.10). É nesses termos que a harmonia
será reconstruída no universo espiritual.
O v. 20 ainda diz que a restauração da paz (Lit. fazer a paz) foi
possível graças ao sangue da cruz. Isso mostra o alcance da obra
de Cristo no Calvário. É por meio desse sacrifício que toda a
desordem a que o pecado lançou a criação pode ser solucionada.
Conclui-se, desse modo, que a cruz neutralizou todos os efeitos do
pecado. Ora, a violação da vontade divina não gerou somente
culpa (Rm 5.18-19), mas também inimizade e desordem. Sendo
assim, o sangue de Cristo não foi derramado apenas para anular a
culpa, mas também para destruir a inimizade (Rm 5.10) e pôr um
fim na desordem. Portanto, para o crente, o sangue que manchou o
madeiro agiu ao tempo de sua conversão, removendo a culpa e a
inimizade com Deus quando ele creu (Rm 5.1); mas ainda agirá no
futuro, restabelecendo a ordem no universo decaído (At 3.21).
Ao falar sobre reconciliação, Paulo naturalmente se volta para o
aspecto em que essa realidade se aplica aos crentes. Sendo
viabilizada a reconstrução da paz através da cruz, os homens são
beneficiados por ela quando respondem positivamente ao
evangelho. Foi o que aconteceu com os co lossenses. O apóstolo
descreve a condição deles antes de se tornarem cristãos, dizendo
que “estavam separados de Deus” (21). A palavra usada por Paulo
denota alguém estranho, excluído ou separado (Ef 2.12; 4.18). De
fato, antes da conversão, os colossenses eram pessoas distantes
de Deus e da salvação, separadas e banidas da comunhão com ele
por causa do pecado.
Os colossenses também tinham sido inimigos. Sua hostilidade
contra Deus se manifestara na mente, ou seja, nos seus raciocínios
e emoções. As inclinações interiores daquelas pessoas, seus
pensamentos e desejos, tinham sido outrora completamente hostis
ao Senhor (Ef 2.3). A forma como essa inimizade se expressava
era através do “mau procedimento”. As obras de perversidade que
os colossenses praticavam n os dias da sua incredulidade eram
provas da sua inimizade contra o Deus santo. Evidentemente, essa
descrição do apóstolo se ajusta a todos os descrentes de qualquer
lugar ou época.
Os benefícios da morte de Cristo, porém, alcançaram aquelas
pessoas. Os versículos 21 e 22 mostram o contraste entre o
“antes” e o “agora”. Paulo diz que Deus, interferindo na condição
deplorável dos colossenses, os reconciliou consigo (22). Isso foi
possível graças ao milagre da encarnação. Com um corpo de
carne, Cristo pôde morrer (Hb 2.14-15). Sua morte aplacou a ira de
Deus (1Jo 2.2) e tornou possível a reconciliação do homem com
ele (Rm 5.10-11; Ef 2.13). Deve-se notar a ênfase de Paulo aqui na
real corporeidade de Jesus [ 30]. Certamente, ao enfatizar o “corpo
físico de Cristo” (Lit. corpo da sua carne), o apóstolo teve como
alvo fustigar a doutrinas ensinadas pelos falsos mestres que
negavam a realidade de um corpo material em Cristo. No v. 22 ele
não somente repugna esse ensino, mas também realça a
necessidade da encarnação. Sem esse fato, a morte de Cristo na
cruz seria impossível e o perdão necessário à reconciliação jamais
poderia ocorrer (Hb 9.22).

30 Veja-se também Efésios 2.15.


Colossenses 1.24-29 - A Missão de Paulo de Proclamar o
Mistério do Evangelho

Nesse parágrafo Paulo faz uma apologia do


seu ministério, afirmando que recebeu a
mensagem que pregava do próprio Deus e
que a proclamava zelosamente a todos. É
bem provável que o apóstolo apresente essa
defesa por não ser conhecido pessoalmente
na igreja de Colossos (2.1). Os falsos mestres
certamente tiravam proveito disso e também do fato dele se
encontrar mui distante daqueles crentes, numa prisão domiciliar em
Roma (2.4-5). Ademais, é também possível que os falsos mestres
estivessem pondo em dúvida a legiti midade do apostolado de
Paulo, a fim de lançar sua mensagem no descrédito e remover,
com isso, qualquer obstáculo aos seus maus propósitos [ 31].
Em face disso tudo, o apóstolo menciona verdades sobre o seu
trabalho, desejando que, tendo ciência delas, os co lossenses
acolham seus ensinos e admoestações. Primeiramente Paulo diz
que se alegra em seus sofrimentos (24). Ele tem em mente aqui os
desconfortos que enfrentava em sua primeira prisão em Roma.
Ainda que estivesse numa prisão domiciliar, livre das tortur as da
masmorra e tendo permissão para pregar (At 28.30 -31), é fato que
Paulo estava sob liberdade vigiada, até certo ponto à mercê de um
soldado romano (At 28.16) [ 32] e impedido de realizar seu trabalho
de modo mais abrangente.
O sofrimento decorrente dessa situação, porém, era recebido por
Paulo com alegria. Isso porque tais agruras eram sofridas em prol
dos próprios colossenses e, num sentido amplo, em benefício da
igreja como um todo. De fato, Paulo sofria pela igreja. Suas

31 Paulo, alguns anos antes, tinha enfrentado esse mesmo problema, porém de
forma mais intensa, na Galácia (Gl 1.11-12) e em Corinto (1Co 9.1-2; 2Co 11.5-6,
23; 12.12).

32 O famoso historiador Edward Gibbon (1737-1794) informa que os soldados


rasos que compunham os exércitos dos imperadores romanos eram recrutados
“entre as camadas mais baixas e com muita freqüência mais crapulosas da
sociedade” (GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. p. 36).
viagens, lutas, privações e prisões tinham sempre como objetivo
promover o bem, a edificação e a expansão do povo de Deus (2Co
1.6; 12.15; Ef 3.13; 2Tm 2.10). Assim, olhando para a sua própria
dor como um veículo através do qual os eleitos eram abençoados,
Paulo se regozijava nela, vislumbrando seus efeitos benéficos
sobre o rebanho do Senhor [33].
Paulo interpretava também seus sofrimentos como uma forma de
completar em seu corpo “o que resta das aflições de Cristo, em
favor do seu corpo, que é a igreja ”. Na literatura paulina essa
mesma ideia aparece algumas vezes (2Co 1.5; 4.10; Gl 6.17). Ela
aponta para o fato de que as agruras pelas quais os servos de
Deus passam no serviço do Reino são também os sofrimentos de
Cristo, dada a união entre o Senhor e o seu povo (At 9.4 -5).
Eventualmente, Paulo usa esse mesmo ensino para encorajar seus
leitores, afirmando que se os crentes estão unidos a Cristo até o
ponto de participar de seus sofrimentos e morte, isso significa que
eles também participarão de sua ressurreição e glória (Rm 8.17; Fp
3.10-11) [34].
Assim, é óbvio que a intenção do apóstolo aqui não é afirmar que
os sofrimentos da obra expiatória de Cristo foram incompletos (Jo
19.30; Hb 9.24-26), mas sim que as perseguições e dores que ele
provou ao ministrar em favor do seu povo não se esgotaram e, de
fato, continuam a existir, torturando agora os seus servos que
também trabalham em prol da igreja.
No fim do v. 24, a igreja é qualificada como “seu corpo”, ou seja, o
corpo de Cristo. Essa figura aparece inúmeras vezes nas epístolas
de Paulo. O apóstolo a usa para estimular o fim das divisões e
inimizades entre o povo de Deus (Ef 2.16; 3.6; Cl 3.15), bem como
para falar da unidade produtiva da igreja, realçando a importância
do serviço de cada crente na sua comunidade local (Rm 12.4 -8;
1Co 12.12-31). A figura do corpo também ilustra a união vital da

33 Existe também a possibilidade de Paulo ensinar aqui que o povo de Deus tem
uma parcela de sofrimento a ser vivenciado antes da vinda do Messias (noção
presente no judaísmo apocalíptico). Se for esse o caso, ele próprio se via como
alguém que completava essa cota de dor no lugar do povo de Deus como um todo.
Veja-se MARTIN, Ralph. Colossenses e Filemon: Introdução e Comentário. São
Paulo Mundo Cristão e Vida Nova, 1984. p. 80-81.

34 Veja-se o mesmo raciocínio em Pedro (1Pe 4.13).


igreja com Cristo (Ef 4.15-16) e sua sujeição a ele como líder
supremo (Ef 1.22-23; 5.23).
Na Epístola aos Colossenses, Paulo usa a figura do corpo para
promover a sujeição exclusiva a Cristo (1.18), algo que a doutrina
gnóstica em formação, com sua ênfase na busca de ritualismos e
mistérios (2.16-18), desestimulava. A mesma figura é usada em
Colossenses para mostrar que os falsos mestres que ameaçavam a
igreja não pertenciam a Cristo (2.19). Finalmente, P aulo usa a
figura da igreja como corpo para desencorajar as discórdias entre
os irmãos (3.15). Possivelmente, em Colossos essas discórdias
existiam num certo grau devido à atuação dos falsos mestres que,
com seus ensinos, afastavam os crentes de Cristo, fa zendo com
que o amor deles entre si esfriasse. De fato, é notável a
intensidade dos desentendimentos que marcam as igrejas que
sofrem a má influência da heresia [ 35].
No v. 25, Paulo diz que se tornou “ministro”. O termo que emprega
é o mesmo que aparece em 1.23, isto é, diáconos e, conforme já
dito, é usado para se referir a alguém que presta auxílio ou se
dedica a um serviço. Em 1.23, Paulo se apresenta como ministro
do evangelho. Aqui, se define como ministro da igreja. Esse seu
serviço é descrito com co ntornos específicos.
Primeiramente é um ministério com responsabilidades que lhe
foram atribuídas pelo próprio Deus. A palavra traduzida na NVI
como “responsabilidade” é o vocábulo oikonomia e se refere grosso
modo à administração de uma casa ou ao gerenci amento dos bens
de outrem [36]. Assim, Paulo está dizendo que recebeu de Deus a
incumbência de um administrador, a fim de cuidar de certos
aspectos ligados ao funcionamento da igreja que pertence ao
Senhor (1Co 9.17; Ef 3.2). No idioma em que foi escrito o NT,
aquele a quem é confiada uma oikonomia é dado o nome de
oikonomos [37], e Paulo aplica esse termo a si mesmo em

35 No NT, uma das maiores evidências disso se encontra nas igrejas da Galácia,
onde aflorou a heresia judaizante (Gl 5.15).

36 Outras versões traduzem o termo como “dispensação”. Essa palavra é também


usada por Paulo num sentido teocrático para se referir à administração segundo a
qual o próprio Deus planejou e executou o seu projeto relativo à salvação do
homem (Ef 1.10; 3.9).

37 A NVI traduz como “encarregado” e a ARA como “despenseiro”.


1Coríntios 4.1-2, bem como aos bispos em geral, em Tito 1.7. Já
para o apóstolo Pedro, cada crente em particular é um oikonomos e
deve servir a Deus com isso em mente (1Pe 4.10).
Em segundo lugar, o ministério de Paulo em prol da igreja era
marcado pela responsabilidade específica de apresentar
plenamente a palavra de Deus. Isso implicava tanto o dever de
pregar a todos (Rm 15.19) [38] como o de anunciar a mensagem
sem qualquer omissão (At 20.27; 2Co 4.2). De fato, o ministério
completo é aquele que se dirige a todas as classes, sem exceção,
e também prega o desígnio de Deus de forma plena, sem
selecionar pontos da verdade de acordo com a conveniência da
situação ou as preferências teológicas do intérprete.
A palavra de Deus que Paulo anuncia é descrita como “o mistério
que esteve oculto durante épocas e gerações ” (26). Conforme já
exposto, no gnosticismo nascente a salvação consisti a do
conhecimento de verdades que se mantinham em segredo, sendo
acessíveis apenas a um grupo seleto de pessoas privilegiadas
espiritualmente. Paulo, aqui, afirma que o verdadeiro mistério é a
palavra que ele anuncia. É comum o apóstolo usar o termo
“mistério” para se referir ao evangelho ou a verdades a ele
relacionadas (Rm 11.25; 16.25; 1Co 2.1, 7; 15.51; Ef 1.9; 3.3 -5, 9;
5.32; 6.19; 1Tm 3.9, 16). Sendo assim, para o apóstolo, diferente
dos falsos mestres, mistério é algo que estava escondido, mas que
agora é manifesto a todos, em cumprimento da vontade de Deus
[39].
No texto em análise, Paulo afirma que o mistério de Deus foi
revelado “aos seus santos”. À luz de Efésios 3.5, é certo que os
“santos” aqui mencionados são os apóstolos e profetas que, sob a
influência do Espírito Santo, conheceram e transmitiram a Palavra
de Deus aos homens nos tempos da igreja primitiva.
O v. 27 diz que Deus concedeu a tais homens (aos “seus santos” e
não aos proponentes das ideias gnósticas que estavam aflorando

38 Esse parece ser o sentido dominante aqui (Veja-se 1.28-29), mesmo porque os
falsos mestres afirmavam que suas doutrinas pertenciam a uma classe de homens
especialmente dotados e Paulo, sem dúvida, pretende realçar a distinção que há
entre o seu trabalho e o deles.

39 Em Colossenses, além de 1.26-27, Paulo se refere ao “mistério” também em 2.2


e 4.3.
em Colossos) o conhecimento do mistério que é a verdade rica e
gloriosa que alcança todos os povos e não somente um grupo de
iniciados na suposta gnose (Ef 3.5-6). A glória dessa verdade
agora revelada é, portanto, notável entre os gentios espalhados
pelo mundo, sendo universalmente conhecida (Rm 16.25 -26).
O mistério específico que Paulo tem em mente aqui e cujo
benefício se vê alcançando homens de todas as raças é a
realidade da habitação de Cristo naquele que crê. Essa verdade
compunha a mensagem de Paulo, sendo pa rte integrante do
evangelho que ele anunciava (Rm 8.9). Paulo explica que a
habitação de Cristo é a base para a esperança do crente quanto à
glória futura (2Co 1.21-22; Ef 1.13-14; 4.30). De acordo com o
ensino paulino, aqueles em quem o Senhor não faz mor ada neste
mundo, não podem esperar entrar em suas moradas no mundo
porvir.
O apóstolo prossegue enfatizando que anunciava o mistério do
evangelho a todas as pessoas sem qualquer discriminação (28).
Sua ênfase se verifica no fato de que a expressão “todo homem”
aparece três vezes no texto grego do v. 28. Assim, para Paulo a
oferta do evangelho era universal. O alvo das boas novas é o
homem, não importando suas origens, formação ou nível social.
Qualquer grupo que, como os mestres gnósticos dos dias de Paulo,
limita a participação em seus segredos a uma minoria, não é
detentor da verdade divina, já que esta, além de ser livre de
complexidades, foi revelada a fim de ser universalmente conhecida.
No v. 28 Paulo diz que anunciava o mistério de Deus “advertindo e
ensinando a cada um”. O verbo traduzido como “advertir” significa
também admoestar ou aconselhar. É um ato que sempre requer
paciência e benignidade (Rm 15.14; 2Ts 3.15), podendo ser
realizado em meio a mais profunda comoção (At 20.31). O segundo
verbo significa simplesmente instruir. É a ação de quem transmite a
outrem uma doutrina; o ato de quem informa e educa (At 15.35). O
trabalho de Paulo como pregador é descrito plenamente através
desses dois termos [ 40]. Dos textos supracitados se depreende que
tanto crentes como incrédulos eram alcançados pelo conselho e
ensino do apóstolo como proclamador dos mistérios de Deus. O

40 Em 3.16, onde os dois verbos aparecem juntos novamente, verifica-se que


advertir e ensinar são deveres de todos os crentes em face de seus irmãos. O
mesmo texto mostra que, assim como Paulo, os cristãos devem cumprir essa
tarefa com sabedoria.
texto também diz que Paulo realizava esse trabalho “com toda a
sabedoria”, ou seja, com a postura e o entendimento dados por
Deus (Tg 3.17-18; 2Pe 3.15).
O alvo do apóstolo como ministro de Deus e pregador dos seus
mistérios era apresentar “todo homem perfeito em Cristo ”. A
palavra “perfeito” pertence ao vocabulário usado pela heresia que
ameaçava a igreja de Colossos. Seus proponentes aplic avam esse
termo para se referir às pessoas que haviam sido iniciadas nos
segredos das religiões de mistério. O sentido básico do termo é
“completo” ou “maduro”. Paulo, portanto, está dizendo que
trabalhava para que os homens alcançassem um desenvolvimento
espiritual pleno [41]. Isso, porém, só seria possível se eles
estivessem “em Cristo”, ou seja, dentro da sua esfera de atuação e
poder. Ainda que os falsos mestres alegassem ter um alto grau de
percepção e maturidade espirituais e prometessem essas coisas
aos que acolhessem seus ensinos, Paulo afirma que o
amadurecimento espiritual verdadeiro só podia ser alcançado por
alguém que estivesse “em Cristo”, tendo acolhido os ensinos do
mistério de Deus revelado, ou seja, o evangelho.
No v. 29, o apóstolo descreve o grau de empenho com que se
dedicava ao trabalho de anunciar a verdade visando a perfeição
espiritual dos homens. Ele diz que se esforça, isto é, trabalha
arduamente. Também afirma que luta com todas as forças (1Co
9.25-27), mesmo em meio às mais terríve is pressões. Nesse
combate, ele recebe a força de Deus, a qual atua nele de modo
eficaz, capacitando-o e dando-lhe energia, resistência e vigor.
Esse versículo é importante porque trata de um paradoxo muitas
vezes mal-entendido entre duas realidades: a necessidade do
esforço humano e a capacitação de Deus. De acordo com o texto,
um fator não anula o outro. Na verdade, ambos se completam. De
fato, Paulo se esforçava no serviço o mais que podia e, segundo
ele, esse esforço decorria do poder de Deus que nele a tuava. Na
verdade, era o poder de Deus que dava a medida do esforço de
Paulo. Daí se conclui que é a capacitação do Senhor que habilita
seus ministros a se esforçarem além do imaginável (1Co 15.10).

41 O alvo da perfeição não pode ser alcançado nesta vida. Porém, isso não
desencorajava Paulo a realçar a importância desse ideal para os crentes (Ef 4.11-
13). Aliás, ele mesmo o buscava em sua própria vida (Fp 3.12-14).
Colossenses 2.1-5 - Os Objetivos Específicos de Paulo no
Tocante às Igrejas

O capítulo 1 de Colossenses termina com


Paulo mencionando a intensidade do
empenho com que se dedica ao trabalho de
proclamação da fé. Ali ele aponta o alvo geral
do seu ministério, ou seja, todo homem. No
capítulo 2, o apóstolo continua a falar dos
seus esforços. Desta vez, porém, menciona
alguns alvos específicos do seu labor: os próprios colossenses, os
crentes de Laodiceia e as igrejas que não tinham sido fundadas
diretamente por ele, mas sim por algum delegado apostólico, talve z
por ele comissionado.
A Epístola aos Colossenses, conforme é sabido (veja -se “Aspectos
Introdutórios”), foi escrita enquanto Paulo estava detido em sua
prisão domiciliar em Roma (At 28.30; Cl 4.3,10,18). Isso poderia
levar alguém a pensar erradamente que aquelas circunstâncias
faziam do apóstolo um soldado fora de combate. Ele, no entanto,
repudia essa ideia. De fato, de forma veemente afirma que está
lutando muito por eles e por outros crentes (2.1).
A palavra que o apóstolo usa para se referir ao seu labor, traduzida
na NVI como “luta”, é um termo emprestado do contexto dos jogos
gregos. Lembra o empenho dos atletas, numa competição esportiva
[42]. Paulo usa essa palavra num sentido figurado para se referir à
intensa solicitude com que, entre os mais terríveis obstáculos, se
dedica ao trabalho de ensinar a verdade aos homens (1Ts 2.2; Fp
1.29-30; 2Tm 4.7). Assim, mesmo preso ele não devia ser
considerado um atleta fora da corrida. A ida à prisão curiosamente
não resultara no abandono do estádio. O após tolo, portanto, quer
que saibam que ele ainda está na competição, “suando a camisa” e
nos limites do seu fôlego.
Como, porém, estando preso, Paulo participava com tanta
dedicação da corrida? Ora, sabe -se que a prisão em que Paulo se
encontrava permitia que ele trabalhasse no anúncio da fé (At

42 Veja-se o uso dessa figura em Hebreus 12.1, onde o autor exorta os crentes a
participar da “corrida” cristã com “perseverança”.
28.30-31), ainda que nem todas as portas estivessem abertas para
o pleno desempenho do seu serviço como pregador (4.3 -4). O v.1,
porém, diz que o apóstolo se esforçava inclusive em prol de
crentes que estavam longe del e. No tocante a essas pessoas,
considerando que o trabalho de Paulo abrangia especialmente
tanto a advertência quanto o ensino (1.28), Paulo tinha a
possibilidade de lhes ministrar mediante a palavra escrita, o que
ele fazia com grande zelo quando estava p reso (4.16) [43].
Além disso, o esforço de Paulo em prol dos colossenses, dos
laodicenses e de todos os ainda não tinham visto o seu rosto se
manifestava também numa obra ininterrupta de oração. Em 2.2 ele
fala que se esforçava para que aqueles irmãos foss em fortalecidos
no coração, estivessem unidos em amor e alcançassem pleno
conhecimento de Cristo. Nos versículos 1.9 -11, Paulo diz que
orava incessantemente pelos crentes e, ao expor o conteúdo de
suas orações, menciona substancialmente aquelas mesmas cois as.
Isso significa que a oração era uma das formas como Paulo lutava
para produzi-las nos seus leitores. Ademais, o apóstolo deixa claro
na própria epístola que orar é também uma luta, ao afirmar que
Epafras estava sempre “batalhando” (o mesmo verbo grego usado
em 1.29) pelos colossenses em oração (4.12).
Já foi destacado que os alvos específicos dos esforços de Paulo
mencionados no v.1 são os colossenses, os laodicenses e todos os
que não o conheciam pessoalmente (lit. “todos os que não viram o
meu rosto em carne”). Os próprios colossenses estavam incluídos
entre os que ainda não tinham tido contato direto com Paulo, sendo
certo que quem lhes anunciou o evangelho inicialmente foi Epafras
(1.7-8), provavelmente enviado pelo apóstolo que, à época (entre
53 e 56 AD), estava fixado em Éfeso, cerca de 160 quilômetros de
distância (At 19.8-10; 20.31).
À forma como Paulo se expressa no v. 1 deixa transparecer que a
maioria dos laodicenses também não o conhecia, exceto por ouvir

43 Obviamente, a própria Carta aos Colossenses é evidência disso. Como visto


anteriormente (Veja-se “Aspectos Introdutórios”) Efésios, Filipenses e Filemom
também foram escritas quando o apóstolo estava detido em sua primeira prisão
em Roma. É por isso que essas cartas recebem a designação de “Epístolas da
Prisão”
falar. Porém, assim como aos colossen ses, Paulo escreveu aos
crentes daquela cidade a fim de fortalecê -los também (4.16) [44].
Laodiceia distava de Colossos cerca de dezoito quilômetros a
oeste e a heresia proto-gnóstica, sem dúvida, havia chegado
igualmente ali, pelo que Paulo se viu forçado a alertar aqueles
irmãos. Apesar do cuidado do apóstolo, sabe -se que, cerca de
trinta e cinco anos depois de composta a Carta aos Colossenses,
João, em Patmos, recebeu do Senhor a ordem de também escrever
à igreja de Laodiceia, censurando sua indiferença, seu orgulho e
sua falta de comunhão com ele (Ap 3.14 -22). Certamente, o
contato anterior com falsas doutrinas embrutecera aquela igreja,
tornando-a árida, espiritualmente estéril e inútil para os propósitos
de Deus.
No fim do v. 1 Paulo não especifica os outros que ainda não tinham
visto seu rosto. É possível, contudo, que tivesse em mente os
cristãos de Hierápolis, outra cidade vizinha de Colossos (4.13),
situada a vinte três quilômetros ao norte. Os crentes de Hierápolis,
certamente precisavam de muito a mparo e estímulo, uma vez que
aquela cidade era famosa como grande centro de cultos pagãos.
Três são os objetivos dos esforços de Paulo em prol daquelas
igrejas, conforme se depreende do v. 2. Ele trabalhava para que os
crentes tivessem conforto (ou consol o) no coração, fossem unidos
através do amor e obtivessem rica e sólida compreensão do
mistério de Deus que é Cristo.
A NVI inicia a tradução do v. 2 com as palavras ”Esforço-me para
que eles sejam fortalecidos em seu coração ”. Trata-se de uma
tentativa de transmitir com maior exatidão o verbo usado por Paulo,
cujo sentido, se exposto mais amplamente, abrange encorajar,
confortar e consolar. Os crentes de Colossos, Laodiceia e
Hierápolis precisavam de vigor em seu íntimo para permanecer de
pé em meio à oposição da sociedade e os ataques dos falsos
mestres. O desânimo, o cansaço e a angústia poderiam torná -los
improdutivos e fazer com que deixassem de perseverar. Paulo
tomava medidas para que isso não acontecesse (4.7 -8. Veja-se tb.
Ef 6.21-22)

44 Alguns críticos acreditam que essa carta de Paulo aos crentes de Laodiceia é a
mesma que hoje conhecemos como Epístola aos Efésios.
Paulo também trabalhava em prol da unidade deles. O verbo usado
pelo apóstolo, traduzido como “estejam unidos”, poderia também
ser interpretado como “sejam instruídos” [45]. Porém, o mesmo
verbo aparece novamente em 2.19, onde o sentido é claramente o
de unidade. Assim, o que Paulo suplica a Deus é que, através do
amor, seja construído um vínculo perfeito entre os crentes (3.14).
Essa unidade era fundamental na luta contra a heresia e no
suprimento do encorajamento essencial à carreira cristã. Daqui se
depreende que o crente que se distancia da unidade amorosa fica
exposto a abandonar tanto a vida quanto a verdade cristã. É a
unidade no amor um dos fatores que o protegem desses desvios.
Finalmente, os esforços de Paulo eram no sentido de que os
crentes adquirissem uma compreensão mais firme da verdade
teológica relativa a Cristo. Ele diz que se empenhava para que
aqueles irmãos tivessem riqueza de convicção, isto é, para que
tivessem certeza absoluta, estando plenamente seguros em seu
entendimento da verdade. De posse d e uma convicção assim
inabalável eles teriam condições de adquirir compreensão mais
plena do mistério revelado de Deus: Cristo [ 46].
O apóstolo sabia que os falsos mestres, ao lançar dúvidas sobre a
supremacia do Salvador, ao abalar a certeza dos crentes ac erca
das verdades do evangelho, poderiam deixá -los numa condição de
paralisia mental, impedindo que crescessem na visão da magnitude
do Filho de Deus e, consequentemente, desencorajando a devoção
devida a ele. A dúvida geraria a estagnação do conhecimento e,
finalmente, a apatia no serviço.
Por isso, Paulo se esforçava para que houvesse riqueza de
convicção no entendimento daqueles irmãos. Ele sabia que a
incerteza faria os crentes estacionar na percepção da verdade e,
logo em seguida, desanimar na prática da piedade. A observação
da igreja moderna, tão carente de convicções, tão rasa e
indiferente no tocante à compreensão maior do evangelho e tão
longe da real devoção a Cristo, mostra quão real era o perigo
vislumbrado pelo apóstolo.

45 Essa é a opção de São Jerônimo, constante da Vulgata. Veja-se esse uso do


verbo em Atos 9.22 e 1Coríntios 2.16.

46 Veja-se a explicação do termo “mistério” no comentário a 1.26-28.


O v.3 diz que em Cristo, o mistério que Deus revelou, “estão
escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento ”.
Essas palavras representam um ataque frontal ao pensamento dos
mestres da doutrina gnóstica que, ao tempo da composição da
epístola, estava em pleno desenvo lvimento.
No século 2, quando o gnosticismo tomou forma mais sistemática e
complexa, seus proponentes diziam que existiam três classes de
homens: os pneumáticos, os psíquicos e os terrenos [ 47]. Os
pneumáticos eram os próprios gnósticos, supostamente portad ores
do conhecimento perfeito de Deus e dos mistérios espirituais.
Estes estavam destinados a uma forma de salvação que incluía sua
inserção no “Pleroma”, a essência da divindade, onde viveriam
como esposas dos anjos. Os pneumáticos se autodenominavam
“perfeitos” e diziam desfrutar da impossibilidade absoluta de se
corromper, quaisquer que fossem as obras que praticassem [ 48].
Os psíquicos, por sua vez, eram identificados pelos gnósticos como
os cristãos comuns que, sendo ignorantes dos mistérios supremos,
tinham, contudo, a possibilidade de escolher o bem. Se assim
fizessem, repousariam num estado intermediário, porque nenhum
psíquico jamais poderia entrar no “Pleroma”. A terceira classe de
homens, os terrenos, era composta pelos que mantinham uma
ligação completa e irremediável com a matéria, sendo impossível
que recebessem qualquer grau de incorruptibilidade. O destino
deles seria a completa destruição.
As sementes dessas ideias combatidas pela igreja cristã no século
II, certamente já existiam nos dias do apóstolo Paulo. De fato, não
há dúvida de que os falsos mestres que atuavam em Colossos no
século I afirmavam ser detentores de um conhecimento especial,
profundo e privilegiado de Deus [ 49], colocando-se acima dos

47 Para uma análise mais detalhada, veja-se IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias.
Livro 1 (Caps. 6-8). São Paulo: Paulus, 1995. p. 47-52.

48 Na obra citada na nota anterior, Irineu, famoso bispo de Lião no século II,
assim se referiu ao grupo denominado pneumáticos: “Como o ouro lançado na
lama não perde o brilho e conserva a sua natureza sem que a lama o prejudique
em nada, assim, dizem eles, podem estar misturados com qualquer obra hílica
[i.e., corruptível] que não sofrerão dano nenhum, nem perderão sua substância
pneumática”. (IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias. Livro 1 [6:2]. São Paulo:
Paulus, 1995. p. 48.).

49 Basicamente, a “sabedoria e o conhecimento” dos gnósticos abrangiam


doutrinas ligadas à origem do mundo, à natureza do homem e das coisas
cristãos e reduzindo a importância do con hecimento de Cristo e a
consequente devoção e ele.
Em face disso, o apóstolo afirma que somente em Cristo o homem
pode encontrar a sabedoria e o conhecimento de Deus. Estes
atributos são de uma riqueza inalcançável (Rm 11.33), mas a
pregação apostólica os revela aos crentes ao lhes apresentar
Cristo, o recipiente único e completo deles. À parte de Cristo não
há nada que se possa acrescentar para que o homem cresça no
entendimento das coisas espirituais. Ademais, somente a
sabedoria e o conhecimento verdadei ros, cujos tesouros estão
“escondidos”, isto é, depositados, em Cristo, podem habilitar o
crente a viver do modo digno do Senhor (1.9 -10). Qualquer outro
tipo de sabedoria e conhecimento ditos espirituais são incapazes
de promover a genuína piedade na vida das pessoas (2.23).
Vale ressaltar ainda que, ao afirmar que no ser de Cristo estão
armazenados todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento,
Paulo também destaca a divindade do Salvador, pois lhe confere a
plenitude de atributos que, nesse grau de infinitude, pertencem
somente a Deus (Rm 11.33-36). Nesse aspecto também é possível
ver aqui um ataque ao ensino dos falsos mestres que viam em
Cristo apenas mais uma das diversas emanações de Deus, no que
não se diferenciava dos anjos (2.18).
A razão pela qual Paulo destaca aos colossenses o fato de Cristo
ser o verdadeiro receptáculo de toda sabedoria e conhecimento é
revelada no v.4: “Eu lhes digo isso para que ninguém os engane
com argumentos que só parecem convincentes ”. É nítido o foco nos
falsos mestres aqui. Para o apóstolo o perigo que eles
representavam era real, pois tinham grande habilidade em iludir as
pessoas. O verbo traduzido como “enganar”, foi usado pelos
escritores do período clássico para se referir ao procedimento de
quem apresenta contas erradas com o propósito de trapacear [ 50].

(especialmente da matéria em contraposição ao que é espiritual), à forma de se


dissociar do mal e se aproximar de Deus e ao destino final do ser humano e do
universo. O ensino apostólico mostra a verdade sobre cada um desses temas,
interpretando-os à luz da Pessoa e obra de Cristo (1.15-22). É por isso que Paulo
diz que “nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento”.

50 O grego clássico ou arcaico foi o usado entre os séculos VIII e IV a.C.


A ideia principal, portanto, é de tentar mostrar que algo é válido
através de provas que parecem incontestáveis, mas que, na
verdade, não passam de um embuste, de uma manipulação
desonesta de dados [51]. Na atualidade, vê-se muitos falsos
mestres agindo assim, quando apresentam “provas bíblicas” para
seus argumentos, compondo um mosaico no qual, usando
versículos desconexos, montam qualquer doutrina que lhes seja de
interesse. É precisamente esse tipo de engano, q ue faz uso
deliberado de “cálculos” errados, que maneja hábil e
maliciosamente o que é certo de maneira a construir uma ideia
falsa; é essa forma de procedimento que confunde as pessoas
simples com “provas” que parecem imbatíveis que Paulo tem em
mente aqui.
Isso é reforçado pelo que vem a seguir. De fato, Paulo fala de um
engano que utiliza “argumentos que só parecem convincentes ”.
Essa expressão é a tradução de uma só palavra grega, o termo,
cujo sentido é “fala persuasiva”. Paulo diz aqui que os falsos
mestres pronunciavam discursos nos quais não faltavam
argumentos aparentemente fortes, mas que na verdade, conduziam
as pessoas ao erro.
O grande opositor do gnosticismo, Irineu de Lião († c. 202), mostra
em seus escritos que esse mesmo expediente era usado pelos
falsos mestres ainda no século 2. Sua descrição dessa prática é
vívida e criativa:
Leem coisas que não foram escritas e, como se costuma dizer,
trançando cordas com areia, procuram acrescentar às suas
palavras, outras dignas de fé, como as parábolas do Senhor, os
oráculos dos profetas, ou as palavras dos apóstolos, para que as
suas fantasias não se apresentem sem fundamento. Descuidam a
ordem e o texto das Escrituras e, enquanto lhes é possível,
dissolvem os membros da verdade. Transferem, transformam e,
fazendo de uma coisa outra, seduzem a muitos com as palavras do
Senhor atribuídas indevidamente a fantasias inventadas. É como
se a um autêntico retrato do rei, realizado cuidadosamente em rico
mosaico por hábil artista, alguém desmanchasse a figura de
homem e fizesse com as pedras deslocadas e maldispostas a
figura de cão ou de raposa e depoi s dissesse e confirmasse que
aquela era a autêntica imagem do rei feita pelo hábil artista.

51 Tiago mostra que é possível alguém agir assim consigo mesmo (Tg 1.22).
Mostrando aquelas mesmas pedras que, bem-dispostas pelo
primeiro artista, apresentavam a imagem do rei e, maldispostas
pelo segundo artista, transformavam -na em figura de cão, pelo
brilho das pedras enganam os simples que não conhecem o
aspecto do rei e os convencem que a ridícula imagem da raposa é
o autêntico retrato do rei. Assim, costurando fábulas de velhinhas e
tomando daqui e dali palavras, sentenças e parábol as, procuram
adaptar as palavras de Deus às suas fábulas [ 52].
Conforme se vê, os mesmos ardis de que faziam uso os mestres do
proto-gnosticismo dos dias de Paulo, ainda eram usados cerca de
cem anos mais tarde pelos proponentes desse mesmo sistema de
mentiras. O fato é que tais homens perceberam facilmente que a
estratégia de mesclar a verdade com o erro se constitui num dos
mais eficazes meios de desviar os homens da Sã Doutrina dada
por Deus aos santos apóstolos (1Tm 6.20 -21) [53].
Paulo alerta os colossenses sobre as estratégias de engano dos
hereges porque se sentia unido àqueles crentes, tendo a mente
ocupada com tudo o que dizia respeito ao bem-estar deles. É isso
o que se depreende do v.5. O apóstolo diz aqui que estava
“fisicamente longe”. De fato, encontrava-se preso em Roma,
enquanto seus destinatários estavam na antiga Frigia, numa cidade
situada na região meridional da atual Turquia, ou seja, há uma
distância de quase mil e quinhentos quilômetros em linha reta da
capital do Império.
Mesmo tão longe, porém, Paulo afirma estar presente “em espírito”.
Isso significa que em sua alma ele se via tão ligado aos
colossenses que era capaz de se incomodar com os perigos que os
ameaçavam, bem como se alegrar com o bom exemplo que
estavam dando [54]. A expressão “em espírito” é usada por Paulo
também em 1Coríntios 5.3, onde ele trata de um caso de
excomunhão na igreja de Corinto. Ali, o apóstolo mostra que,
mesmo estando fisicamente longe, sua participação no ato de
disciplina era ativa e decisiva (1Co 5.4), o que sugere que, ao falar
de sua presença “em espírito”, Paulo pode ter em mente também

52 IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias. Livro 1, 8:1. São Paulo, Paulus: 1995. p.
52-53.

53 Outro método de enganar associado a esse era o uso da bajulação (Rm 16.18).

54 Outro método de enganar associado a esse era o uso da bajulação (Rm 16.18).
seus deveres e sua autoridade que alcançam as igrejas mesmo
quando ele não se encontra junto delas em corpo.
Estando assim ligado aos crentes de Colossos, o apóstolo era
capaz de se alegrar ao verificar que eles estavam “vivendo em
ordem”, ou seja, estavam observando uma conduta regrada e
disciplinada na igreja, longe de anarquia, confusão e bagunça (1Co
14.23,40). Além disso, Paulo também estava contente com a
firmeza na fé que aqueles crentes estavam demonstrando, mesmo
sob o ataque dos falsos mestres [ 55]. Ao que se vê, havia naqueles
cristãos notável solidez doutrinária, de modo que a heresia, mesmo
estando a rodear os crentes ou mesmo influenciando talvez um ou
outro círculo (2.20-22), não tinha conseguido conquistar a igreja,
dado o apego dos irmãos ao ensino que aprenderam do apóstolo.
É bom destacar que a parte final do v. 5 consubstancia o que há de
mais desejável numa igreja cristã: ordem no funcionamento e
firmeza na Sã Doutrina. A ausência de qualquer desses elementos
favorece a propagação do erro e facilita a infiltração do inimigo no
arraial do povo de Deus.

55 As informações sobre a situação da igreja colossense foram certamente


transmitidas a Paulo por Epafras (Veja-se 1.7-8).
Colossenses 2.6-12 - Um Alerta Fundamentado na Suficiência
de Cristo

Paulo disse no v. 5 que se alegrava pelo fato


dos crentes de Colossos estarem firmes na
fé. Conforme visto, isso significa que eles
mantinham um forte apego ao evangelho que
lhes fora pregado pelo apóstolo.
Basicamente, os colossenses tinham crido em
Cristo como o Filho de Deus encarnado (Hb
2.14) que, vindo ao mundo, morreu pelos nossos pecados e
ressuscitou para a nossa justificação (Rm 4.25). Era essa a
mensagem a que eles estavam fortemente arraigados.
O v. 6 traz em seu início a palavra, “portanto”, tradução de um
termo grego geralmente usado no sentido inferencial. Assim, é
como se Paulo começasse o novo parágrafo com a palavra
“consequentemente”, ligando esse trecho ao v. 5. O apóstolo está
como que dizendo: “Vocês abraçaram firmemente a fé (v. 5),
consequentemente... (v. 6) ”. A seguir, contudo, Paulo não diz de
pronto quais são as consequências esperadas dessa fé. Em vez
disso, ele se refere a ela novamente, usando, porém, outras
palavras, ou seja, ele afirma que os seus leitores haviam recebido
Cristo Jesus. Dessa forma, Paulo identifica o crer com o receber,
fazendo o leitor cristão moderno se lembrar fatalmente de João
1.12.
Essa identificação do crer em Cristo com o receber Cristo é
fundamental para a compreensão da natureza da fé salvadora. A fé
que salva não é a mera adoção de um conjunto de proposições
doutrinárias. Não se constitui no simples assentimento intelectual
que acolhe e repete mecanicamente as teses principais da teologia
cristã. Tampouco consiste numa opinião positiva sobre Cristo e
seus ensinos [56]. Não! Crer em Cristo no sentido salvífico é
recebê-lo.
Não há dúvida de que o verbo usado aqui por Paulo e traduzido
como “receber” tem o sentido de aceitar o que f oi dito sobre Cristo

56 As Escrituras fornecem exemplos da fé incapaz de salvar em João 2.23-25 e


12.42-43. Esse tipo de fé pode produzir algum grau de comprometimento. Isso,
porém, é temporário (Lc 8.13).
[57]. Porém, é muito intensa também a ideia de se unir a ele. Na
verdade, o sentido de associação é tão forte no verbo empregado
aqui que algumas vezes ele é usado para se referir ao ato de
desposar uma mulher, ou seja, “recebê-la” como esposa (Mt
1.20,24).
Desse modo, o conceito de fé salvadora não se esgota numa
resposta cerebral positiva ao que o evangelho ensina. Ainda que
isso a componha, a fé que salva vai além e se manifesta numa
disposição interior de unir-se a Cristo, de entregar-se como uma
esposa a ele, passando a lhe pertencer por toda a vida.
Ao fim do v. 6, Paulo aponta o que deve vir logo depois do crer. O
texto diz: “continuem a viver nele” ou, literalmente, “andem” nele. O
sentido presente aqui denota o viver sob a autori dade e a
influência de Cristo (1.10). Trata -se de uma construção semelhante
a que se encontra em Gálatas 5.16, onde a ideia é claramente a de
sujeição ao domínio do Espírito Santo.
O crente deve andar em Cristo porque, conforme Paulo recorda no
próprio texto, Cristo Jesus é “o Senhor”, ou seja, ele é o Deus
soberano. A menção do senhorio divino de Jesus aqui não é
incidental. Paulo o destaca com o fim de desfazer os falsos
conceitos de Cristo que estavam sendo disseminados na região de
Colossos, os quais definiam Jesus como mais uma das emanações
de Deus, ou seja, um anjo entre outros [ 58]. Essa cristologia
reducionista desencorajava a fé e desmotivava a sujeição a Cristo,
sendo necessário remover qualquer sombra dela da mente da
igreja, a fim de que sua obediência e devoção ao Salvador fossem
completas.
No v. 7, o apóstolo ensina que o andar em Cristo deve ser
assinalado por constância inabalável. De fato, segundo ele os
crentes deviam estar “enraizados” no Senhor, ou seja, deviam criar
profundas e fortes raízes de fidelidade, dependência e sujeição a
ele. Além da figura extraída do contexto agrícola, Paulo reforça a
ideia de solidez usando a linguagem própria da construção civil.
Ele diz: “edificados nele”. O termo usado aqui, além de sugerir a
permanência firme sobre um alicerce, comporta também a noção de

57 Em João 1.12, o verbo usado é uma forma ligeiramente diferente. A forma


idêntica a que Paulo usa em Colossenses 2.6, porém, está presente em João 1.11.

58 Veja-se uma forte refutação dessa heresia em Hebreus 1.5 – 2.18.


dinamismo, ou seja, a imagem de uma edificação que cresce (At
20.32; Jd 20-21). Assim Paulo faz nesse trecho uma referência ao
crescimento espiritual que decorre da sólida comunhão com Cristo
(1Pe 2.4-5).
Disso tudo se depreende que o verdadeiro andar no Senhor implica
perseverança e crescimento. O crente que vive nele t em a firmeza
de uma grande árvore cujas raízes profundas a prendem
fortemente ao solo bom. Esse crente também tem sua vida
espiritual construída sobre o sólido alicerce que é Cristo, ou seja,
sobre a constante comunhão com ele. Essa comunhão promove
crescimento no conhecimento da verdade e na santificação.
Paulo acrescenta a isso tudo a expressão “firmados na fé”. O
particípio usado aqui mantém a noção de permanência presente em
todo o v. 7. Trata-se de uma advertência para que os colossenses
retivessem o conjunto de verdades doutrinárias que tinham
aprendido de Epafras (1.7,23). Isso fica claro por meio das
palavras “como foram ensinados”. Mais uma vez o apóstolo
encoraja os seus leitores a rejeitarem o ensino novo e fraudulento
que se espalhava pelo vale do rio Lico e os admoesta a perseverar
com vigor nas doutrinas verdadeiras que lhes foram entregues no
início (1Tm 4.16; Hb 13.9; 2Jo 9; Jd 3).
A última cláusula do v. 7 mostra que o real andar em Cristo, com
suas marcas de perseverança, crescimento e apego à sã doutrina,
deve também ser assinalado por transbordante gratidão. Sob o
senhorio de Cristo, em crescente comunhão com ele e abraçado
fortemente às verdades da sua Palavra, o crente é capaz de
desenvolver uma noção mais clara da imensidão da graça que lhe
foi dada. Assim, ele deve se empenhar para que a murmuração, as
queixas e as frustrações cedam lugar à imensa gratidão que
decorre da percepção de quem Cristo realmente é, do que consistiu
em sua obra de salvação e do privilégio que representa ter sido
alcançado por ele.
O verbo que Paulo usa para se referir à gratidão e traduzido aqui
como transbordar aponta para algo que progride e que vai além do
suficiente. O apóstolo fala, assim, de uma gratidão rica, nutrida
pelo homem que conhece as riquezas de C risto (2.3).
Movido pelo desejo de que os colossenses revelassem firmeza na
fé, Paulo os exorta a ficarem atentos para que ninguém os
escravizasse com falsos ensinos (v. 8). Ele os admoesta para que
“tenham cuidado”! O imperativo usado por Paulo aqui tem o sentido
figurado de manter os olhos da mente bem abertos, discernindo as
coisas e percebendo o que é perigoso. Num mundo em que a
verdade está constantemente sob ataque, essa é a postura que o
crente deve adotar em todo o tempo.
Os falsos ensinos acerca d os quais Paulo alertava os colossenses
eram “filosofias vãs e enganosas”, ou seja, tratavam-se de
sistemas de pensamento vazios que, além de serem incapazes de
produzir qualquer efeito salutar na vida das pessoas, também as
confundia e ludibriava. Essas fi losofias tinham como base meras
“tradições humanas”, ou seja, ideias e práticas inventadas por
homens e por eles entregues aos outros [ 59].
De fato, os mestres gnósticos, desde o início, se gabavam de
serem detentores de doutrinas e fórmulas secretas que t ransmitiam
aos seus seguidores e iniciados. No século 2, eles diziam que seus
ensinos haviam sido revelados por Jesus a um círculo reduzido de
discípulos e que estes receberam ordens de transmitir tais
segredos somente a quem julgassem dignos. Sabe -se, porém, que
os “mistérios” dos mestres gnósticos não passavam de imitações
mal elaboradas de sistemas filosóficos helenistas, de mitos pagãos
grosseiros e de histórias de comediógrafos gregos antigos como
Homero [60].
Paulo percebera, já nas origens desse sist ema enganoso, que ele
não ia além de invenções da mente sem Deus, transmitidas por
promotores da mentira que tentavam explorar os que lhes davam
ouvidos (1Tm 6.3-5; 2Pe 2.1-3). Nesse sentido, um verdadeiro
abismo se abria entre as fantasias da gnose e a do utrina cristã,
pois esta não consistia de fábulas e havia se originado no próprio
Deus (1Co 2:7-13; Gl 1.11-12; Ef 3.3-5; Cl 1.26-28; 2Pe 1.16, 21).
A filosofia que ameaçava os colossenses também se baseava nos
“princípios elementares deste mundo ”. Essa expressão é usada em
Gálatas 4.3,9-10 para se referir a uma forma de religiosidade que
impunha a observância de regras judaicas aos crentes. Em
Colossenses os “princípios elementares” também estão associados

59 A palavra “tradição” tem o sentido de algo que foi entregue.

60 Para uma análise mais precisa dessas informações, veja-se IRINEU DE


LIÃO. Contra as heresias. Livro I, 25:5 e 30:14; Livro II, 14. São Paulo: Paulus,
1995.
à rigorosa obediência de normas (Cf. 2.16,20 -21), e é por isso que
Paulo alerta seus leitores no sentido de que ninguém os escravize.
Porém, é possível ir além e detectar o que subjazia as severas
exigências do sistema gnóstico.
O pensamento helenista, em várias de suas manifestações,
abrigava a ideia de que inúmeros seres espirituais habitavam a
atmosfera ao redor da terra. Esses seres eram considerados os
senhores da criação, os elementos ( stoicheia) dominadores do
universo que, controlando os astros, eram capazes de determinar o
destino dos homens. Segundo essas concepções, para se verem
livres das fatalidades impostas pelo movimento das estrelas, as
pessoas deviam honrar as divindades padroeiras dos corpos
celestes. Isso não somente as salvaria de um destino mau, mas
também as ajudaria a progredir n o processo de livramento da
prisão da matéria. O modo como essas entidades espirituais
podiam ser honradas abrangia a adoração expressa (2.18) e o rigor
ascético que também traria purificação ao devoto.
É bem possível que esses fatores marcavam o jovem gno sticismo
que se espalhou pelo vale do Lico nos dias de Paulo. Vendo,
assim, que a igreja estava sendo ameaçada por mitos tão
grosseiros, o apóstolo insistiu que somente Cristo é o Senhor das
coisas criadas, tanto visíveis quanto invisíveis (1.15 -16), devendo
ele só ser honrado, o que o cristão deve fazer recusando qualquer
modelo de pensamento que se baseie em fantasias da mente
humana e que não tenha como fundamento a verdade do evangelho
centralizada em Cristo.
O v. 9 fornece a base para a admoestação con stante do versículo
precedente. Paulo exorta os crentes a fugir de filosofias não
centralizadas em Cristo porque nele “habita corporalmente toda a
plenitude da divindade”.
Esse é um dos versículos mais importantes para a cristologia do
Novo Testamento. A partir dele pode-se afirmar a união das
naturezas divina e humana em Cristo, doutrina conhecida como
União Hipostática. Também com base nesse texto pode -se concluir
que a “corporalidade” de Jesus não foi obstáculo para sua plena
divindade. Essa verdade, sem dúvida, foi a que Paulo quis
transmitir especialmente aqui, pois a heresia que se propagava na
região de Colossos a contrariava em vários aspectos.
É impossível traçar os contornos específicos do gnosticismo dos
dias de Paulo. Aliás, em todas as épocas es sa filosofia apresentou
grande variedade de formas, sendo difícil defini -la de maneira
precisa e completa. Seja como for, parece certo que o gnosticismo
sempre ensinou a existência de um ser perfeito, eterno e ingênito,
mais tarde chamado de Protopai. Esse ser, da mesma forma que o
sol emite seus raios, fez emissões que foram identificadas como
anjos ou “poderes” espirituais. Cada uma dessas emissões ou éões
carregava em si fragmentos da divindade. Assim, o ser perfeito e
as entidades que ele emitira formav am em conjunto a plenitude ou
o Pleroma da essência divina. Essa essência jamais poderia
habitar em um corpo físico, pois, conforme já dito, na cosmovisão
gnóstica a matéria é má, uma vez que se originou da ignorância de
um éon emitido pelo “Protopai”.
É fácil perceber que o v. 9 desmantela o sistema descrito acima em
cada um dos seus pontos. Primeiramente, ao usar a expressão
“nele”, Paulo aponta a exclusividade de Cristo na participação da
divindade, negando que os anjos se igualassem a ele nesse
aspecto. Paulo descreve essa participação usando o verbo
“residir”. A habitação de que Paulo fala aqui não é a mesma de que
desfrutam os crentes (Jo 14.23; 1Co 3.16). A própria heresia que
Paulo combate fornece o pano de fundo para a compreensão
correta da natureza dessa habitação, a saber: Cristo, e não os
anjos, tem substância divina.
A exclusividade do Senhor Jesus na participação da essência de
Deus recebe realce ainda maior quando o Apóstolo usa a
expressão “toda a plenitude”. Ao contrário do que ensinavam os
falsos mestres, o Pleroma divino não estava fragmentado e
espalhado entre as diferentes entidades espirituais. Antes, em sua
inteireza estava concentrado em Cristo e nele só. A expressão que
Paulo usa é enfática. Nenhuma fagulha sequer de divindade é
deixada aos poderes espirituais. Nesse ponto é preciso destacar
que o que “habita” em Cristo é a essência da divindade e não
apenas qualidades divinas. Paulo fala aqui do estado de ser Deus,
o que vai além de afirmar simplesmente que Cristo tinha atributos
divinos [61].

61 Veja-se a importante distinção entre os termos gregos apresentada em


THAYER, Joseph H. Greek-English lexicon of the New Testament. Grand Rapids,
Michigan: Baker Book House, 1984. A primeira palavra, usada em Colossenses
2.9, denota essência. A segunda se refere a atributos ou qualidades (Rm 1.20).
Novo golpe desferido contra o gnosticismo vem por meio da
palavra “corporalmente”. Através desse termo, Paulo rechaça o
conceito de Cristo que o definia como uma entidade espiritual
travestida de um corpo aparente (2Jo 7). Sua corporeidade era r eal
(1Jo 4.2), o que o tornou autêntico participante da natureza
humana e viabilizou sua obra substitutiva (Rm 8.3; Hb 2.14 -15).
Ademais, seu contado máximo com a concretude da matéria
ocorrido no fato da encarnação, em nada o corrompeu,
permanecendo a essência da divindade intacta e completa nele (Jo
1.14), o que deve estimular a devoção do crente ao seu Senhor
feito carne.
No v.10 Paulo se volta para a condição do homem que está ligado
a Cristo. Os gnósticos se jactavam entre si dizendo que pertenciam
a uma classe especial de pessoas. Conforme dito acima (veja -se o
comentário a 2.3), os mestres posteriores dessa heresia se
apresentavam como perfeitos e diziam até que era impossível que
se corrompessem, independentemente das obras que praticassem.
Eles arrogavam para si não somente o privilégio de terem um
conhecimento pleno dos mistérios de Deus, mas também de serem
portadores de uma substância “pneumática” que os situava na mais
alta classe de homens.
É bem possível que já nos dias de Paulo, os doutores da mentira
dissessem coisas muito semelhantes, apodando os crentes comuns
de pessoas inferiores a quem faltavam esses altos benefícios
espirituais. O apóstolo, portanto, ataca essas ideias no v. 10. Ele
nega que os conhecedores da falsa gnose sejam homens
aperfeiçoados. Segundo Paulo, os cristãos é que o são. Somente
os crentes “receberam a plenitude” e isso por “estarem nele”, isto
é, em Cristo.
Isso significa que os cristãos não são perfeitos em si (com o os
gnósticos diziam acerca deles próprios), mas por estarem ligados a
Cristo desfrutam de salvação completa e têm, de forma plena, a
totalidade dos recursos de que precisam para crescer em
santidade. Assim, eles não precisam seguir filosofias vãs, nem
tradições humanas, nem tampouco normas aparentemente
piedosas (v. 8), pois bebem da fonte verdadeira de sabedoria e
redenção (1Co 1.30). Pelo fato de em Cristo habitar a plenitude de
Deus (v. 9), e pelo fato de estarem unidos a ele, tudo de que os
cristãos precisam para a vida e a piedade está à sua disposição
(2Pe1.3). Em Cristo, pois, eles desfrutam da condição perfeita de
salvos e podem crescer no rumo da plena santidade (Fp 1.6).
Estando “enraizados e edificados nele” (v. 7), nada lhes falta para
a salvação ou para a santificação da vida. É nesse sentido que os
crentes estão aperfeiçoados.
A prova de que a totalidade dos recursos espirituais está
concentrada em Cristo, em vez de se encontrar esparsa entre anjos
ou outras entidades, como diziam os falsos me stres, está no fato
de que Cristo é a cabeça de todos os seres angelicais. Os termos
usados por Paulo (Tb. em 1.16 e 2.15) sugerem a ideia de
entidades detentoras de destacada autoridade (pode também ser
traduzido como “principado”) e poder (também vertido para o
português como “potestade”). Cristo, porém, está acima delas (Mc
1.13; Ef 1.20-21; Hb 1.3-8,13; 1Pe 3.22), reunindo em si toda a
plenitude de Deus e dispensando a necessidade do homem buscar
benefícios espirituais em outros seres como faziam os her eges
(2.18).
Ao que tudo indica, elementos do judaísmo também compunham a
heresia colossense (Veja-se 2.16 e 3.11). Geralmente os
proponentes do cristianismo judaizante revelavam um forte apego á
circuncisão como fator crucial até mesmo para a salvação (At 15.1-
5; Gl 5.2-3,6; 6.13-15) e é bem provável que essas ideias se
mesclassem com as vãs filosofias ensinadas pelos hereges na
região do Vale do Lico.
Em face disso, Paulo explica a seus leitores que eles já tinham
sido circuncidados (v.11; Fl 3.3). A circ uncisão dos cristãos,
porém, não fora realizada por homens, como era o caso da
circuncisão judaica. Antes, tratava -se de uma intervenção
sobrenatural de Cristo na vida dos que haviam crido nele.
De que consiste a circuncisão de Cristo? Paulo ensina que ela é “o
despojar do corpo da carne ”. O termo usado aqui sugere tanto
despojar, no sentido de remover ou despir (3.9), como desarmar,
isto é, espoliar um inimigo, privando -o de suas armas (2.15). No
texto, o segundo sentido é o mais adequado. O que foi espoli ado
foi o corpo da carne [62], ou seja, a natureza pecaminosa do
homem que o mantém escravizado sob o domínio do pecado (Rm
6.17-22) e morto em suas transgressões (v.13; Ef 2.1 -5). Essa

62 Em Romanos, Paulo usa expressões semelhantes, ou seja, “corpo do pecado”


(Rm 6.6) e “corpo desta morte” (Rm 7.24). Ambas se referem à natureza
pecaminosa a que o apóstolo alude no texto em análise através da expressão
“corpo da carne”.
natureza não foi inteiramente removida (Rm 7.15 -24), mas sofreu
um golpe violento por ocasião da conversão do crente e perdeu,
assim, o domínio sobre ele (Rm 6.14; 8.7 -9). Esse milagre é
também chamado de circuncisão do coração (Rm 2.28 -29).
O fenômeno da “circuncisão de Cristo” ocorreu a partir de um
momento específico na vi da dos crentes de Colossos. Paulo diz
que isso aconteceu quando eles foram sepultados com Cristo no
batismo (v.12). O batismo de que o apóstolo fala aqui é a cerimônia
pública de iniciação cristã a que se submete o novo discípulo do
Senhor (Mt 28.19). Isso não significa que o rito batismal em si é
capaz de “circuncidar o coração” e muito menos salvar alguém.
Aliás, o próprio Paulo, escrevendo aos coríntios, deixa
transparecer a irrelevância do batismo para a salvação (1Co 1.14 -
17). O que ocorre é que nos di as do Novo Testamento, uma vez
que o batismo era ministrado no ato da conversão (At 2.41; 8.12,
36-38; 16.33, etc.), muitas vezes o rito exterior e o milagre da nova
vida, com todas as suas implicações espirituais (inclusive o
amortecimento da natureza pecaminosa), eram apresentados como
realidades simultâneas e interligadas (Rm 6.3 -6; 1Pe 3.21). Não se
deve, porém, atribuir ao batismo o que cabe somente à fé [ 63].
Ademais, o próprio versículo em análise destaca a fé como o meio
através do qual o crente recebe vida nova, livre do domínio da
carne.
Paulo diz que na conversão/batismo os crentes foram sepultados e
ressuscitados. Em Romanos 6.1 -4, a dinâmica morte –
sepultamento – ressurreição aplicada ao homem que crê no
Salvador é explicada com mais detalhes. A li o apóstolo ensina que
a morte e o sepultamento do crente ocorridos no batismo, se deram
em relação ao pecado, de modo que não é admissível que o cristão
viva sob o domínio da iniquidade que outrora governou sua vida

63 A frase “Quem crer e for batizado será salvo” (Mc 16.16) pertence ao final
prolongado de Marcos (16.9-20) e, por não constar de dois dos principais
manuscritos do NT, deve ser acolhida com cautela. Por outro lado, mesmo que
esse texto seja recebido como autêntico, não é correto entendê-lo como prova de
que o batismo é necessário à salvação. O que Marcos 16.16 ensina, na verdade, é
que a fé salvadora é a fé comprometida, do tipo que leva quem a tem a se batizar
(Assim também em Atos 2.38). É como se o texto dissesse: “Quem crer com uma fé
pública, assumida e comprometida, o que é demonstrado através do batismo, será
salvo”. A Bíblia mostra que há um tipo de fé que não é assim, sendo antes
marcada pela covardia, pela dissimulação, pela timidez e pela ocultação. Essa “fé”
não deve ser confundida com a verdadeira fé salvadora (Jo 12.42-43).
(Rm 6.1-3,6). Ademais, depois de ter sido morto e sepultado, o
crente ressuscitou para uma nova vida, marcada pela consagração
a Deus (Rm 6.4), sendo seu dever empenhar -se por ajustar sua
conduta a essa nova realidade (Rm 6.11 -13; Cl 3.1-3) [64].
Tanto em Romanos como no texto em análise, o a póstolo afirma
que o sepultamento e a ressurreição dos crentes ocorreram
juntamente com Cristo . Isso aponta para a participação dos
cristãos nos benefícios oriundos da morte e ressurreição do
Senhor. De fato, quando crê no evangelho, o homem se une de tal
forma a Cristo que a morte de seu Senhor passa a ser também a
sua morte, e a vida dele torna-se também a sua vida (Gl 2.20).
Essa união do crente com Cristo em sua morte e ressurreição lhe
garante tanto o livramento do pecado no presente (Rm 6.6 -7; Cl
2.13) como a glorificação futura (Rm 6.5,8).
O v.12 termina destacando a fé como o instrumento mediante o
qual Deus concedeu vida ao crente. Este ressuscitou mediante
(através de) a fé que teve como objeto o poder de Deus. De fato, a
aceitação do evangelho que, nos pontos principais da sua
mensagem, agride os olhos da razão carnal (1Co 1.18), impõe a
necessidade de crer na onipotência divina. O aspecto dessa
mensagem que Paulo destaca como ligado ao poder de Deus é a
ressurreição do Senhor. Certamente ele apont a esse componente
da pregação cristã a fim de repudiar o ensino dos mestres
gnósticos que, reputando a matéria como má, rejeitavam a verdade
de que Cristo havia se levantado da sepultura num corpo físico (Lc
24.39; 1Co 15.12).

64 A prática do batismo por imersão se sustenta, entre outras coisas, sobre essa
associação que Paulo faz entre o rito e a morte/ressurreição do cristão. Os
imersionistas afirmam que o mergulho total do crente na água preserva melhor o
simbolismo do sepultamento, enquanto o levantar-se após a imersão transmite de
modo perfeito a idéia de ressurreição também simbolizada no rito
Colossenses 2.13-15 - Vida, Perdão e Vitória

Descrever a nova e privilegiada condição dos


crentes de Colossos foi um dos meios que
Paulo usou para estimulá-los a fugir das
doutrinas falsas que lhes estavam sendo
propostas. O Apóstolo sabia que se os
cristãos tivessem uma noção clara de sua real
identidade e condição, jamais se
preocupariam em buscar os supostos benefícios oferecidos pelos
gnósticos aos iniciados em seus mistérios.
Assim, o v. 13 apresenta uma dinâmica do tipo “antes e depois”,
ressaltando a situação dos colossen ses nos tempos da
incredulidade e apontando os privilégios de que passaram a
participar quando acolheram a mensagem do evangelho. Nos dias
de sua ignorância eles “estavam mortos em pecados” (Ef 2.1). A
figura evoca o estado espiritual deplorável e de cresc ente
degeneração em que se encontra o homem separado de Deus. Ele
se decompõe moralmente em meio às suas transgressões. A
palavra traduzida aqui como “pecados” sugere a ideia de desvio
[65]. De fato, os incrédulos apodrecem espiritualmente enquanto se
desviam mais e mais dos caminhos que o Senhor aponta como
retos e verdadeiros.
A condição lastimável dos colossenses não era decorrente apenas
de seus tropeços e desvios. Eles também tinham estado mortos em
virtude da “incircuncisão da sua carne”. Ao mencionar os pecados
deles, Paulo se referiu a atos de desobediência. Agora, ele fala de
um estado permanente de rebelião. Ao usar a expressão
“incircuncisão da sua carne”, o Apóstolo se refere à natureza não
regenerada que domina a vida dos incrédulos, determi nando
continuamente seus anseios, decisões e comportamento (Rm 7.5).
A carne, isto é, a natureza que há no homem inclinada para o mal
(Rm 8.5-8), precisa ser “cincuncidada” por Cristo para que o
domínio das paixões carnais sobre o ser humano tenha fim.
Conforme já visto no comentário ao v. 11, essa circuncisão
consiste de um enfraquecimento da inclinação que o homem tem

65 A palavra também sugere a idéia de dar um passo em falso e cair para o lado.
Em todo caso, a noção que prevalece é a de alguém que está fora da vereda reta.
para o pecado, de tal modo que ela não mais reine na vida de
quem recebeu o Salvador (Rm 6.6,17 -18). Os colossenses tinham
sido outrora incircuncisos de coração. Isso agravara ainda mais
seu estado de morte, acelerando o processo de putrefação moral a
que estavam sujeitos.
É preciso destacar ainda que a ausência da circuncisão espiritual
não significara somente o domínio da natureza pecaminos a na vida
dos colossenses. Considerando o sentido da circuncisão no Antigo
Testamento (Gn 17.10-14), ser incircunciso implicava estar
separado do povo de Deus, fora da aliança com ele e,
consequentemente, longe das promessas constantes dessa mesma
aliança (Ef 2.11-12). Essa condição de “estranho” para Deus
também compõe o retrato do cadáver espiritual.
Depois de falar sobre a deplorável condição espiritual dos cristãos
de Colossos ao tempo de sua incredulidade, o v. 13 menciona uma
série de ações salvíficas de Deus em favor deles. Primeiramente é
dito que Deus os vivificou com Cristo. A participação do crente na
vida ressurreta do Senhor já foi mencionada no v. 12 (veja -se
comentário supra). Paulo continua destacando que, assim como
Cristo superou a morte, os crentes, desde o dia em que o
receberam, se uniram a ele e passaram a experimentar, desde já, o
poder da vida ressurreta (Fp 3.10), manifesta, na prática, numa
vida que não se sujeita ao domínio do pecado (Rm 6.11 -12).
A segunda ação salvífica que o Após tolo menciona é o perdão de
Cristo. No momento da conversão foram perdoadas “todas as
transgressões” dos colossenses (v. 13 in fine). Aqui aparece
novamente o termo usado para descrever o pecado como desvio
(Veja-se nota 1). Paulo diz que todos os descamin hos que os
colossenses trilharam receberam a absolvição de Deus. O verbo
traduzido aqui como “perdoar” encerra a noção de benevolência
gratuita, oferecida livremente (Rm 8.32; Fp 1.29). O perdão de
Cristo foi, assim, gracioso. Esse ensino paulino conflitav a com as
doutrinas dos falsos mestres que impunham aos crentes um
minucioso conjunto de preceitos ascéticos como meio de obtenção
de pureza espiritual (2.20-23).
O v. 14 fala de um terceiro ato divino em prol da salvação dos
crentes. O texto diz que Cristo “cancelou a escrita de dívida”. Essa
expressão se refere a um documento de natureza comercial, um
tipo de nota promissória, que consubstanciava a dívida que alguém
tinha obrigação de pagar. A ideia óbvia presente em todo o quadro
é de Deus como credor do homem que, diante dele, se apresenta
sempre como devedor inadimplente.
A dívida do homem para com Deus “consistia em ordenanças”.
Evidentemente, Paulo faz alusão aqui à Lei Mosaica com seus
rigorosos preceitos morais e cerimoniais. Consistindo a dívida de
mandamentos tão rígidos, a obediência perfeita a cada um dos
seus itens era a única moeda através da qual o débito do homem
com Deus poderia ser saldado. É claro que um montante tão alto
não podia ser pago pelo ser humano (At 15.10). Daí a afirmação de
Paulo de que essa escrita de dívida “nos era contrária”.
No início do v. 14 é dito que essa dívida foi cancelada (apagar,
remover ou eliminar). Em seguida, Paulo diz que o título de dívida
foi removido. Desta vez, ele usa outro verbo, cujo significado
básico é tirar ou tomar algo e levá -lo embora. Em ambos os casos,
é óbvio que o ensino dominante é que a Lei foi abolida, uma
doutrina comum nos escritos paulinos (1Co 9.20; Gl 3.19, 23 -25; Ef
2.14-15).
Existe uma viva controvérsia no meio teológico acerca de qua l
aspecto do Código Mosaico foi cancelado. Esse debate tem
produzido interpretações forçadas, como a que diz que a referida
remoção só foi aplicada aos preceitos veterotestamentários de
natureza cerimonial, sendo mantida a vigência das normas morais.
O ensino de Paulo, contudo, não aponta para essas distinções. Na
verdade, nos textos em que o Apóstolo diz que o crente está livre
das normas mosaicas, ele dá claras evidências de que tem
mandamentos morais em mente. Isso se verifica em toda a Carta
ao Gálatas, onde Paulo fala do fim da Lei (Gl 3.23 -25), fazendo
constantes referências aos seus aspectos tanto éticos (e.g., Gl
3.12) quanto litúrgicos (e.g., Gl 4.10 -11; 5.3). Romanos 7.6-7 e
2Coríntios 3.7-11 também são textos que falam do cancelamento
da Lei destacando seu lado ético.
O que foi dito acima pode conduzir o estudante apressado a virar
as costas para a bela conduta proposta nos escritos de Moisés e
em todo o Velho Testamento. Isso, porém, seria uma trágica
temeridade. O cristão deve aprender que a revo gação da Lei não
implica anomia (Rm 6.15). Na verdade, o ensino de Paulo é que,
mesmo estando livre da totalidade da norma mosaica, o crente,
sendo transformado por Deus em seu interior, é induzido e
capacitado pelo Espírito que nele habita a cumprir a jus tiça que há
na Lei (Rm 8.3-4; Gl 5.18; Hb 8.10-12). Desta vez, porém, estando
sob uma Nova Aliança, ele não fará isso como escravo, e sim como
filho, com um coração inclinado à sujeição, numa obediência livre e
voluntária (Rm 7.4-6; Gl 4.4-7).
O quarto e último ato salvífico é mencionado por Paulo no versículo
15: Cristo despojou os poderes e as autoridades. Esses dois
termos são basicamente sinônimos e apontam para alguém que
ocupa um posto de comando ou um lugar de preeminência. Paulo
os utiliza em suas cartas para se referir a anjos (Rm 8.38: Ef 1.20 -
21; 3.10), inclusive os maus (1Co 15.24; Ef 6.12), como é o caso
no texto em análise.
Em 1.16, o Apóstolo afirmou que Cristo é o criador dessas
entidades, e em 2.10 declarou sua perfeita supremacia sobre elas
(Veja-se comentários supra). Agora Paulo ensina que, no tocante
aos poderes e autoridades malignos, o Senhor, quando foi pregado
na cruz, os “despojou”, isto é, removeu algo que tinham [66]. Não
há precisão no texto quanto ao objeto de que os anjos maus foram
privados quando Cristo foi crucificado. Parece, contudo, óbvio que
Paulo tem em mente aqui a perda do domínio que essas entidades
espirituais tinham sobre as pessoas [ 67]. Aliás, em 1.13-14 é
evidente que a redenção realizada por Cristo em prol dos crentes
implicou também na sua libertação do império das trevas.
Assim, a crucificação de Cristo cujos contornos exteriores podem
inspirar noções de derrota foi, na verdade, uma vitoriosa ação
militar realizada no campo espiritual. Nessa ação, o divino General
atacou seus inimigos e de certa forma os golpeou, removendo os
muros que tornavam possível o seu domínio sobre os homens e
impediam o acesso a Deus [68]. No Calvário, portanto, ao pagar o
preço do pecado humano, Cristo fez com que os principados e as
potestades do mal perdessem força. De fato, a cruz foi como um

66 O verbo usado aqui pode significar “desarmar” ou simplesmente “despir” (3.9).


Em 2.11, a forma substantiva é usada no sentido de “espoliar” (Veja-se comentário
supra).

67 É admissível também a idéia de que os principados e as potestades foram


despojados de qualquer honra que arrogassem para si. Sendo esse o caso, o culto
gnóstico, com sua veneração aos anjos (2.18), perde completamente o sentido.

68 A derrota completa de Cristo sobre esses poderes espirituais está reservada


para o fim, mais precisamente para algum momento no tempo que seguirá a
ressurreição dos justos (1Co 15.24).
aríete que abriu uma grande brecha nas muralhas do império das
trevas, possibilitando que a humanidade fugisse de seus malignos
dominadores e, redimida pela fé, corresse para os braços do
perdão do Pai (Hb 2.14-15).
O v. 15 apresenta um quadro ainda mais vívido do magnífico
impacto da cruz sobre os principados e potestades. Paulo diz que,
além de despojá-los, Cristo “fez deles um espetáculo público ”. As
palavras usadas pelo Apóstolo evocam o costume militar romano
que consistia de conceder a um general vitorioso a glória de
desfilar na capital do Império, conduzindo em correntes se us
prisioneiros de batalha [69]. A humilhação dos inimigos é o aspecto
específico do costume romano que Paulo tem em vista aqui. É
como se a cruz tivesse sido a biga, o carro de batalha sobre o qual
Cristo desfilou triunfantemente à frente dos poderes demon íacos
expostos ao vexame.
Essa figura é cheia de significado. Ela indica que, ao livrar o
homem por meio do seu sangue, Cristo revelou que os anjos maus
não eram detentores de todo poder, nem dignos de temor,
adoração ou glória, nem tampouco senhores do de stino humano
como os falsos mestres ensinavam em Colossos. A natureza
libertadora da obra de Cristo na cruz demonstrou, assim, quão
falaciosa era a crença gnóstica de que os diversos poderes
espirituais tinham em suas mãos o controle de cada vida humana.
De fato, ao buscar na cruz o homem perdido, Cristo tornou notória
a verdade de que os espíritos maus são incapazes de dirigir o
destino das pessoas, são fracos para se opor aos desígnios de
Deus e são mentirosos quando se apresentam como deuses
onipotentes que devem ser temidos e honrados. Vergonha,
portanto, foi o que a cruz trouxe sobre eles, e o homem que foi
liberto pela cruz ri das pretensões desses espíritos
desmascarados, jamais permitindo que o medo deles determine
suas ações ou lance seu coração no labirinto da dúvida (1Jo 4.4;
5.18).

69 A mesma figura é usada em 2Coríntios 2.14, porém com o objetivo de mostrar


Cristo vitorioso, conduzindo o povo que conquistou para si.
Colossenses 2.16-23 - Regras Inúteis

As ações salvíficas que Cristo realizou em


prol dos crentes têm desdobramentos
vivenciais. Tendo sido vivificados, perdoados
e libertos tanto da dívida que constava de
ordenanças como do império dos anjos do
mal, Paulo destaca que qualquer regra
legalista imposta agora sobre os salvos não
tem qualquer sentido, uma vez que sujeitá -los a tais normas seria o
mesmo que colocá-los sob nova escravidão. Querendo, pois,
apontar as implicações do ensino que acabou de expor, o Apóstolo,
no v. 16, usa o termo “portanto”. Seu uso indica o desfecho do
pensamento apresentado anteriormente, ou seja, o que decorre
daquilo que acabou de dizer.
Com efeito, para Paulo, em decorrência do livramento que
provaram, os cristãos não deveriam deixar que ninguém os
julgasse pelo que com iam ou bebiam, nem tampouco em relação a
festas, celebrações ou dias supostamente sagrados como o
sábado. Essa admoestação do Apóstolo mostra que, conforme já
destacado na análise de 2.8, o gnosticismo que se alastrava na
região de Colossos trazia nítidos elementos do judaísmo legalista.
Além disso, no v. 20, a expressão “princípios elementares deste
mundo” indica que aquele sistema filosófico -religioso abrigava
também ideias oriundas do paganismo helenista, as quais acolhiam
noções de livramento por meio d a purificação que, segundo criam,
era decorrente do rigor ascético (Veja -se comentário a 2.8. Veja -se
ainda Gl 4.3, 8-11).
O v.16 fornece exemplos das regras que o proto -gnosticismo, com
seu fundo judaico e helenista, impunha aos seus adeptos. O texto
fala inicialmente de ataques contra o uso de alimentos, apontando
para as restrições que os falsos mestres faziam quanto a comida e
bebida. A Lei Mosaica havia imposto limites à dieta dos judeus,
proibindo vários tipos de alimento (Lv 11) e o gnosticismo
embrionário, ao que se vê, recepcionou esse aspecto da Lei [ 70].
Quanto a bebidas, o VT não fazia nenhuma restrição, mas é

70 A cultura helenista também estimulava a abstinência de alimentos, porém


baseada na crença da transmigração da alma. A partir dessa noção, o ato de
comer carne podia ser considerado uma forma de canibalismo.
possível que os proponentes do gnosticismo nascente, com seu
rigor ascético, proibissem a ingestão de qualquer líquido que
produzisse prazer especial para os sentidos do corpo [ 71].
Paulo ensina que o crente não deve permitir que o julguem pelo
consumo dessas coisas. Ao usar o verbo “julgar”, o Apóstolo tem
em vista aqui a conclusão de um julgamento cuja sentença é
desfavorável. Assim, ele insiste com os colossenses para que eles
não acolham qualquer palavra que os condene por consumirem o
que quer que seja. De fato, estão longe da fé cristã as proibições
referentes a comida e bebida (Mc 7.18 -19; Rm 14.1-3,17; 1Tm 4.1-
5) [72].
Os cristãos também não devem ouvir ou acolher qualquer censura
referente a guarda de dias especiais. Paulo alude a essa prática
através de três expressões: festividade religiosa (Lit. “dia de
festa”), celebração das luas novas (ou somente “lua nova”) e dias
de sábado. Todas parecem indicar a estreita relação entre a
heresia colossense e alguns elementos do judaísmo. De fato, o
calendário judaico fixava datas descritas exatamente nos termos
usados por Paulo no versículo em análise (Nm 10.10; 2Cr 8.13;
31.3; Sl 81.3-4; Is 1.13-14) [73], e, ao censurar a observância
desses dias, o Apóstolo não somente se insurgiu contra a nova
heresia que se desenvolvia no Vale do Lico, mas também revelou a

71 A incerteza decorre da escassez de informações detalhadas acerca das práticas


gnósticas ao tempo da formação desse modelo filosófico-religioso. Dados
posteriores, porém, revelam que algumas seitas ligadas ao gnosticismo proibiam a
ingestão de vinho. A heresia encratita (o termo grego significa abstêmio), por
exemplo, uma seita que tomou força no século II, exigia de seus adeptos a total
abstenção tanto da carne como do vinho. Sabe-se que na sua refeição eucarística,
a água era usada no lugar do vinho, num arremedo da Ceia do Senhor. Veja-se
SCHAFF, Philip. History of the Christian Church. Vol. II: Ante-Nicene
Christianity (A.D. 100-325). Grand Rapids: Eerdmans, 1987. p. 494-495.

72 A falta de moderação, porém, é descrita como pecado (1Co 11.21; Gl 5.21; Ef


5.18; 1Tm 3.2-3,8; Tt 2.3).

73 As festas judaicas eram nove: Páscoa, Pães Asmos, Tabernáculos, Pentecostes,


Lua Nova, Ano Novo (ou Trombetas), Dia da Expiação, Purim (que significa
“sortes”) e Luzes (ou Festa da Dedicação). A festa da lua nova, destacada por Paulo
no v.16, era celebrada pelos judeus no início de cada mês. Sua comemoração
incluía a oferta de sacrifícios e o som de trombetas (Nm 10.10; 28.11-15).
independência do cristianismo em relação aos velhos moldes
religiosos judaicos (Mt 9.14-17).
Paulo explica a razão pela qual os crentes não devem se preocupar
com censuras quando comerem e beberem ou quando não
guardarem dias especiais. Ele afirma que a dieta restrita da Lei
Mosaica e as datas sagradas do calendário judaico são apenas
“sombras do que haveria de vir” (17). Isso significa que todos
esses aspectos exteriores da Antiga Aliança devem ser
considerados símbolos, meras imagens de uma realidade muito
mais importante, perene, clara e sólida. De fato, como a sombra de
um corpo projetada na parede, o cerimonialismo judaico
apresentava de forma pálida alguns contornos do que um dia seria
plenamente revelado. Seu valor e propósito giravam em torno disso
e, assim, sua razão de ser perdeu o sentido tão logo o que
prefiguravam se manifestou.
O versículo 17 diz qual é a realidade para a qual todas essas
coisas apontavam. Se as restrições alimentares e os dias sagrados
eram a sombra, o corpo, diz Paulo, é de Cristo. Nele se encontra o
cumprimento das verdades para as quais, de forma simbólica, a s
determinações da Lei apontavam e, evidentemente, estando o
cristão agora diante da realidade palpável, não há mais razão
nenhuma para ostentar suas fracas projeções. Assim como as
placas em uma rodovia perdem a utilidade para o automóvel que
chega ao ponto que elas indicavam, da mesma forma, as
prescrições exteriores da Lei a que Paulo alude no v. 16, perderam
sua utilidade tão logo Cristo, aquele para quem tais normas
apontavam, se revelou ao homem.
Com efeito, o advento do Senhor trouxe à luz inúmeras r ealidades
prefiguradas na Lei. No tocante às restrições alimentares, não fica
claro no NT para quais aspectos da doutrina cristã isso apontava.
Talvez uma relação entre essa forma de abstinência e a verdade
trazida à luz por Cristo possa ser encontrada con siderando-se a
Festa dos Pães Asmos. Nessa celebração era proibida a ingestão
de qualquer comida com fermento (Ex 23.15). Ora, à luz de
1Coríntios é notável que Paulo vê nisso um símbolo da
necessidade de pureza na igreja. Pensando nessa festa, o
Apóstolo ensina que a igreja de Corinto devia purgar sua
comunhão de indivíduos que vivessem no pecado, lançando fora “o
velho fermento” a fim de ser uma “nova massa” (1Co 5.6-13).
A Festa dos Pães Asmos é exemplo não só do simbolismo de
certas restrições alimentares, mas também do significado dos dias
festivos e especiais que a heresia colossense inutilmente tentava
preservar. Ora, como é sabido, essa festa durava sete dias e era
celebrada pelos judeus imediatamente após a Páscoa, sendo,
portanto, a longa festa do povo agora redimido, liberto do jugo
opressor do Egito. Tudo isso, como ensina o texto em análise,
apontava para realidades que vieram à luz com o advento de Cristo
e a realização de sua obra.
A Páscoa, obviamente, com o sacrifício do cordeiro, prefigurava
Cristo e seu sofrimento na cruz. Sua morte foi a verdadeira
Páscoa, simbolizada pela antiga festa judaica, e promotora da real
libertação, a redenção do jugo do pecado. Os que se beneficiaram
desse sacrifício e, pela fé, se alimentaram do Cordeiro de Deus (Jo
6.48-51), participaram dessa Páscoa verdadeira e singular. Por
isso, agora celebram a festa que sucede a Páscoa, ou seja,
celebram uma contínua Festa dos Pães Asmos, na qual não deve
haver lugar para o velho fermento do pecado.
Logo, se o sacrifício de Cristo e a salvação que disso decorre eram
simbolizados pela Páscoa judaica, a nova vida dada por ele é
simbolizada pela Festa dos Pães Asmos, a celebração que se
prolonga por dias a fio, marcada pelo abandono da impureza. Foi
isso o que Paulo ensinou quando escreveu: “Pois Cristo, nosso
Cordeiro pascal, foi sacrificado. Por isso, celebremos a festa [dos
Pães Asmos], não com o fermento velho, nem com o fermento da
maldade e da perversidade, mas com os pães sem fermento, com
os pães da sinceridade e da verdade” (1Co 5.7b-8).
Ainda no tocante a guarda de dias, Paulo ensina que também o
sábado guardado pelos judeus deve ser visto pelos crentes como
uma sombra que, com a chegada do corpo que é Cristo, se desfez
totalmente. Ora, é evidente que a guarda do sétim o dia era um
símbolo do descanso que Deus inaugurou ao fim da criação (Gn
2.2). Esse descanso do trabalho criador nunca mais teve fim, pois
o Senhor o iniciou quando concluiu totalmente a obra de
construção do universo e nada mais havia para fazer nesse
aspecto [74]. Aliás, é curioso notar que todos os dias da criação

74 Deve-se destacar que Deus descansou definitivamente do seu trabalho criador.


No tocante a outras realizações, o Senhor permanece em constante atividade (Sl
121.4; Jo 5.17).
são descritos em Gênesis como tendo tarde e manhã (Gn
1.5,8,13,19,23,31) exceto o sábado (Gn 2.2 -3). Isso foi destacado
por escritores antigos como um indício de que o descanso de Deus
é eterno, que o dia do seu repouso não tem noite, que nele a luz
brilha para sempre [75] [76].
Era para esse descanso que a Lei Mosaica apontava ao exigir a
guarda do sábado. Quando Cristo se manifestou, porém, o repouso
de Deus prefigurado na observância do sétimo dia tornou-se de
pronto acessível ao homem. De fato, Cristo disse certa vez:
“Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados,
e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e
aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e voc ês
encontrarão descanso para as suas almas” (Mt 11.28-29).
As palavras de Jesus sugerem que as delícias do descanso celeste
inaugurado, abençoado e santificado por Deus depois da criação
do mundo podem ser desfrutadas em boa medida desde já e que
esses benefícios se tornaram disponíveis graças à manifestação do
Filho de Deus, por meio de quem, os que vivem na terra podem
provar, mesmo agora e pela fé, o fim do pesado jugo legalista (Jo
1.17; At 15.10; Gl 5.1) e as alegrias futuras do sétimo dia celestial
(Jo 4.13-14; 1Tm 6.12). Por isso, é certo dizer que todos os que
crêem em Cristo, vivem agora num sábado constante, marcado
pelo repouso em Deus e pelo desfrute prévio e substancial da bem -
aventurança que os aguarda na glória.
O preceito mosaico acerca do sá bado, porém, não apontava
somente para o descanso prévio que o homem experimenta quando
conhece o Salvador. A guarda do sétimo dia exigida na Lei também
simbolizava a entrada do crente no próprio descanso de Deus, ou
seja, o seu ingresso no repouso pleno e real que, desde o término
da criação do universo, nunca terminou.

75 Nesse sentido, veja-se AGOSTINHO DE HIPONA. Confissões. XIII:50. São Paulo:


Paulinas, 1984. p. 416-417.

76 É claro que, se os dias mencionados em Genesis 1 forem considerados dias


literais, conforme impõe a boa hermenêutica, então o sétimo dia teve vinte e
quatro horas assim como os demais. É evidente, contudo, que o descanso criador
de Deus iniciado naquele primeiro sábado nunca teve fim. É exclusivamente sob
esse aspecto que se pode falar de um sábado eterno como, aliás, conforme será
visto, o próprio autor de Hebreus destaca.
Esse ensino é claramente exposto em Hebreus 4.1 -11. Nesse texto
é ensinado que a incredulidade (também descrita como
“desobediência”, cf. Hb 3.18-19) é o fator impeditivo de entrada no
prometido descanso de Deus (vv.1 -3, 6). A passagem de Hebreus
também diz que esse descanso é associado ao dia em que o
Senhor repousou após o término de sua criação (vv.3 -5) e afirma
em seguida que o cumprimento presente das promessas de Deus
não satisfaz de forma plena a sua grandiosa promessa de
descanso completo feita aos fiéis (vv. 7 -9). Segundo o texto, há,
portanto, um repouso futuro e perfeito ainda aguardando o povo
redimido (vv.9-10 – observe-se que no v. 9 a palavra traduzida
como “descanso” ou “repouso” quer dizer literalmente “descanso
sabático”) e somente a fé que persevera (ou não desobedece)
ingressará nesse sábado sublime e perpétuo (v.11).
O sábado, assim, era uma sombra dessas coisas. Tratava -se, de
fato, de uma ilustração ou um símbolo que apo ntava para Cristo,
mais especificamente para o repouso de que hoje se beneficiam os
que crêem nele, já que tais pessoas foram aliviadas no fardo
legalista e podem experimentar agora uma porção do descanso
celeste. O sábado também simbolizava o repouso futu ro e perfeito
a que se pode ter acesso pela fé em Cristo, o repouso celeste no
qual todo crente entrará em breve. Eis a razão pela qual Paulo não
vê sentido no cristão observar a guarda ritualista e mecânica do
sétimo dia. Para ele, quem já tem a realidade do símbolo não
precisa mais se preocupar com o símbolo da realidade.
Paulo prossegue em sua exortação estimulando os crentes a não
concederem espaço em sua vida para pessoas que, separadas de
Cristo, se apresentavam como mestres detentores de grande
sensibilidade espiritual. Obviamente, ele tem como alvo aqui os
doutores do gnosticismo em formação que ameaçava contaminar as
igrejas da região de Colossos. No v. 18, Paulo descreve o modo de
proceder desses falsos líderes religiosos, traçando um perfil
surpreendentemente atual de todos os proponentes de doutrinas
mentirosas.
Se for seguida a ordem presente no texto grego, o Apóstolo
primeiramente diz que os pseudoprofetas eram pessoas que
consideravam os crentes indignos da salvação. A expressão “os
impeça de alcançar o prêmio”, constante na NVI, é tradução de
uma palavra apenas, verbo cujo significado pode ser tanto “privar”
(o adotado pela NVI) como “decidir contra” ou “condenar” (ARA).
Esses dois sentidos podem ser facilmente conjugados, pois o verbo
descreve, inclusive, a atuação do árbitro de uma competição que,
ao decidir contra um dos participantes, declara -o indigno de
receber o prêmio. Assim, é provável que os mestres sectários de
Colossos estivessem declarando que os cristãos, com a fé simples
que adotavam, jamais receberiam a coroa da vitória. Como juízes
numa disputa esportiva, eles como que diziam dos crentes: “Estes
são os perdedores. Como árbitros decidimos que eles não fazem
jus a nenhum troféu”.
Paulo diz ainda que os doutores heréticos fazi am isso se
deleitando em algum tipo censurável de “humildade”. O adjetivo
“falsa” não consta do texto grego (nem tampouco no v. 23, onde o
substantivo aparece novamente), mas é evidente que se tem em
vista aqui uma “modéstia ostensiva”. Sem dúvida, adotando um
modo de vida repleto de privações (v. 21 -23), os falsos mestres
pretendiam transmitir aos homens a aparência de serem pessoas
desprendidas, livres de qualquer apego aos bens e prazeres deste
mundo material. Naturalmente, a própria intenção de fazer es sa
“humildade” ser notada era prova de sua falsidade.
É possível também que o uso da palavra “humildade” por Paulo,
sem qualquer qualificação ruim, signifique ainda que havia nos
falsos mestres uma disposição real de se submeter, sem reservas,
aos deveres ascéticos e cerimoniais da seita. Esse tipo de
humildade, contudo, por mais sincera que fosse, não recebia o
aplauso do Apóstolo, posto que, sendo decorrente de crenças
erradas, expressava -se em práticas vazias de qualquer valor.
Curiosamente, portanto, havia nos doutores gnósticos, um misto de
soberba e humildade, sendo esse paradoxo claramente percebido
no texto grego do versículo 18. Se por um lado eles eram
orgulhosos por se considerarem membros de uma elite espiritual e
almejarem que os homens reconhec essem isso; de outro, eram
humildes, havendo neles uma disposição sincera em se curvar
diante das determinações cultuais e ritualistas de sua filosofia
religiosa, bem como diante de normas rigorosas que negavam ao
corpo o desfrute de qualquer prazer. Em am bos os casos, tanto em
seu orgulho como em sua humildade, os hereges de Colossos eram
alvo da justa reprovação apostólica.
Outra prática na qual os primeiros gnósticos se envolviam era a
“adoração de anjos”. O comentário a 2.8 já apontou o lugar que o
culto a entidades angélicas ocupava nas religiões de fundo
helenista. Considerando que seres espirituais controlavam os
astros e estes, por sua vez, influenciavam o destino dos homens,
os falsos mestres promoviam cerimônias de adoração a eles,
possivelmente crendo também que receberiam, dessa forma, ajuda
para se livrarem com celeridade maior da matéria à qual estavam
presos por um ciclo de sucessivas reencarnações.
Como os cristãos não praticavam a abstinência “humilde” dos
hereges, nem buscavam o favor dos s eres angelicais, os mestres
da mentira diziam que eles não eram dignos de receber o prêmio
da salvação. Não se sabe que destino os gnósticos do século I
apontavam para os crentes, mas sabe -se que no século II, essa
forma perniciosa de religião dizia que os cristãos que
desprezassem a gnose perfeita seriam aniquilados. Já os crentes
que nutrissem uma fé simples e a boa conduta poderiam ser postos
num lugar intermediário, abaixo do plano perfeito que chamavam
de Pleroma, este reservado somente para os que abr açavam os
ensinos gnósticos. Quanto aos corpos de todos, por ser matéria
má, seriam devotados à destruição completa, sem qualquer
esperança de ressurreição [ 77].
Para conferir credibilidade aos seus ensinos, os falsos doutores
também alegavam ter visões. P aulo usa aqui uma expressão que
não aparece em nenhum outro lugar no NT e cujo sentido é incerto
(Lit. “Entrando em visões”) [78]. O significado mais provável é que
os hereges narravam detalhes do que diziam ter visto em
experiências de êxtase, talvez nas s uas cerimônias de iniciação, ou
investigavam de forma acurada as minúcias dessas mesmas
visões, fazendo especulações acerca da mensagem que
supostamente estava por trás delas e buscando, assim,
conhecimento (gnose) mais profundo dos mistérios espirituais.
Paulo destaca que o problema principal dessas pessoas era a
mente carnal, ou seja, a disposição interior de atender aos

77 IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias I:6-7. Coleção Patrística. São Paulo:


Paulus, 1995. vol. 4. p. 47-52.

78 Há uma variante textual, acolhida por um vasto número de manuscritos, que


inclui nessa expressão o negativo. Nesse caso, uma tradução possível seria:
“Baseando-se em coisas que não viu”. Se essa leitura for adotada (como foi pela
ARC e pela KJV), Paulo estaria dizendo que os falsos mestres ensinavam coisas
que Deus jamais lhes havia revelado através dos meios pelos quais ele costumava
falar aos seus profetas. Sendo assim, tudo o que os hereges afirmavam era mero
resultado das projeções de sua mente carnal.
impulsos de sua natureza pecaminosa (Rm 8.5 -8). Nos falsos
mestres a mente carnal se comprazia na crença de que, sendo
dotados de rara percepção espiritual, eram superiores aos outros
homens. Segundo Paulo, porém, não havia motivo algum para que
nutrissem esse sentimento de grandeza.
A raiz de todos os males ensinados e praticados pelos falsos
mestres, segundo o entender do Apóstolo, é que eles não estavam
unidos a Cristo (19). Esse era o motivo principal pelo qual julgavam
os crentes indignos de receber o prêmio final. Essa também era a
causa por que se gloriavam em seu rigor ascético, em seus rituais
e experiências místicas, além de nutri rem sempre uma mente
carnal inflada com os ares da soberba.
A expressão que Paulo usa no v.19 para se referir a essa
deficiência primordial pode ser traduzida como “não se apegando à
cabeça”. O verbo constante nessa expressão sugere a situação de
quem teve algo nas mãos, mas não foi capaz de reter, guardar ou
segurar. A alusão a Cristo como a “cabeça”, por sua vez, é
indicativo óbvio de sua autoridade suprema (1Co 11.3; Ef 1.22;
4.15; 5.23; Cl 1.18; 2.10). O que Paulo está dizendo, portanto, é
que os falsos mestres não foram capazes de reter a devida
sujeição a Cristo, rejeitando por completo a sua autoridade e
recusando-se a se manter debaixo dela.
Vê-se assim que, possivelmente, os hereges de Colossos, em
algum período anterior, tiveram um bom envolvimento com o
cristianismo autêntico, aparentando obediência ao Senhor. Depois,
porém, descambaram para as crendices da falsa gnose. Se foi isso
mesmo o que aconteceu, essa não foi a primeira vez que Paulo
testemunhou o surgimento de doutores enganosos no meio do
próprio rebanho de Cristo. Tampouco seria a última.
De fato, o Apóstolo havia visto essa tragédia em Corinto, por volta
de 55 AD (1Co 15.12) e veria o mesmo problema ao tempo em que
escreveu a Timóteo a sua última carta, em cerca de 66 AD (2Tm
2.16-18) [79]. Na mesma época, Pedro também apontou o perigo
dos mestres apóstatas (2Pe 2.1ss). Além deles, João, em sua

79 A heresia mencionada por Paulo em 1Coríntios 15.12 rejeitava de forma cabal a


hipótese da alma humana, depois de separada do corpo na morte, voltar a ser
novamente “aprisionada” nele. Já a heresia mencionada em 2Timóteo 2.18
propunha provavelmente uma forma espiritual de ressurreição. Ambas se
alinhavam ao gnosticismo com sua aversão à matéria.
primeira epístola, escrita aproximadamente no ano 90 AD, fez
referência à mesma realidade (1Jo 2.18 -19). O que se depreende
disso é que, muitas vezes, conforme a história da igreja cristã
também atesta, os doutores do erro nascem dentro da própria
comunidade eclesiástica, revelando -se precisamente no momento
em que se mostram inconformados e até irritados com a verdade
que ali aprendem.
A alusão a Cristo como a cabeça desemboca naturalmente na
figura da igreja como o seu corpo, uma imagem comum nos
escritos de Paulo (Rm 12.4-5; 1Co 10.17; 12.12-27; Ef 1.22-23;
2.16; 3.6; 4.4, 12, 16, 25; 5.23, 29 -30). Em Colossenses, a
comunidade eclesiástica aparece como corpo de Cristo em 1.18, 24
e 3.15, além do texto em análise.
As ideias acerca da igreja que afloram em 2.19 são três:
dependência, unidade e crescimento. A dependência é obviamente
da cabeça, Cristo. Desligada dele nenhuma comunidade pode
experimentar o crescimento a que Apóstolo se refere aqui.
Conforme visto, o indivíduo ou grupo desconectado de Cristo é
aquele que recusa sua autoridade e doutrina, dispondo -se a seguir
fábulas (2Tm 4.3-4). Esse era o caso dos mestres da falsa gnose.
Quanto à unidade, essa decorre também da cabeça, mas pela
instrumentalidade de seus “ligamentos e juntas”. Paulo explora
ainda mais aqui a figura do corpo, deixando pouco claro a que
correspondem as imagens dos ligamentos e juntas. Qualquer
sugestão corre o risco de se a fastar do propósito principal da figura
que é acentuar a unidade provedora da manutenção do corpo. Seja
como for, é ponto pacífico que em Colossenses, Paulo aponta a
habitação de Cristo em seu povo, a boa disposição para com o
outro, o amor, a paz (veja-se especialmente Ef 4.3) e a
preponderância da palavra de Cristo entre os santos como os
fatores que mantêm os crentes vinculados entre si (3.11 -16). Eis
aí, talvez, os itens representados pela imagem dos “ligamentos e
juntas” que sustentam e unificam a comu nidade dos salvos.
Privada deles a igreja desmonta, se esfacela e cai. Tamanha
destruição fatalmente sobreviria aos colossenses caso eles
seguissem as falsas doutrinas que lhes estavam sendo propostas.
O crescimento mencionado no v. 19 resulta tanto da dep endência
da cabeça como da unidade promovida pelos ligamentos e juntas.
Qual é a natureza do crescimento destacado aqui? Não se trata de
crescimento numérico. Em Efésios 4.11 -16, texto em que Paulo
trata basicamente do mesmo assunto ora discutido, percebe -se
claramente que o crescimento experimentado pelo corpo ligado a
Cristo e unido por todas as juntas é o crescimento “na unidade da
fé e do conhecimento do Filho de Deus ” (Ef 4.13), ou seja, é o
crescimento conjunto numa só maneira de crer e num só modo de
conceber a pessoa de Jesus Cristo, rejeitando as alternativas
heréticas dos mestres do engano.
Evidentemente, esse crescimento promove firmeza doutrinária,
impedindo que os crentes sejam levados pelo ensino errado (Ef
4.14). A verdade, o amor e o serviço dominam o ambiente em que
tal amadurecimento se processa (Ef 4.15 -16). Deve ser destacado
que, à luz de Efésios 4.13, o alvo final desse progresso é a
maturidade que pode ser definida como o atingir “a medida da
plenitude de Cristo”, expressão que descreve o crente “preenchido”
por tudo aquilo que Cristo tem e pode transmitir. Paulo destaca em
2.19 que esse crescimento vem de Deus. De fato, outras formas de
progresso (numérico, econômico, intelectual, etc.) podem ser
provadas por qualquer grupo, não sendo n ecessariamente sinais do
favor divino. O crescimento de que se trata aqui, porém, é bênção
disponível somente à igreja verdadeiramente obediente e fiel.
Seguindo na linha principal de sua argumentação, Paulo explica
que não fazia sentido os crentes de Colo ssos se submeterem aos
“princípios elementares deste mundo ” uma vez que, com Cristo,
haviam morrido para o eles (20). Já foi exposto acima (2.8) o
significado da expressão “princípios elementares deste mundo ”.
Basta recordar em linhas gerais que se referia a entidades
espirituais que supostamente controlavam os astros, determinando
assim o destino das pessoas. Segundo as concepções helenistas
adotadas pelo gnosticismo incipiente, essas entidades podiam ser
induzidas a atuar em prol do indivíduo, caso este s e submetesse a
certas exigências que incluíam o rigor ascético.
Paulo destaca que os cristãos, no tocante a essas coisas,
morreram com Cristo. Em seus escritos o Apóstolo afirma com
certa frequência que o novo comportamento do crente, o propósito
de sua vida, bem como seu conjunto distinto de convicções foram
acolhidos porque o homem salvo se tornou participante da morte
de Cristo (Veja-se o comentário a 2.12). Tendo morrido com o
Senhor, o crente ressuscitou para uma vida em que os velhos
padrões de conduta e pensamento não são mais cabíveis (Rm 6.1 -
4, 11-13; 7.4; Gl 2.20; 6.14). É por isso que o v. 20 é carregado de
certa dose de indignação. O mundo é marcado por todas as formas
de perversão, inclusive a religiosa. Nesse campo é notório que nele
reinam inúmeras concepções mitológicas e outras grosseiras
superstições as quais impõem aos homens comportamentos tolos,
inúteis e vãos (1Tm 4.1-7; 2Tm 4.4; 2Pe 1.16; Hb 13.9). Ora, os
colossenses, mesmo tendo morrido para isso tudo, estavam agora,
de forma surpreendente, se deixando levar de novo no rumo
traçado pelos pastores da mentira.
Na prática, os destinatários da carta estavam se submetendo a
regras. Essa conduta é descrita por Paulo através de uma só
palavra, o verbo, cujo sentido básico na voz passiva é suj eitar-se a
determinações, decretos ou regulamentos que foram ditados por
alguém. Evidentemente, a censura de Paulo aqui diz respeito
apenas à esfera religiosa, uma vez que seus leitores, assim como
muitos crentes modernos, tendiam a crer que o cristianismo
vivencial estava circunscrito à observância mecânica e artificial de
normas e tabus. Segundo essa concepção, a espiritualidade cristã
não passaria da adoção de um conjunto de escrúpulos estéreis que
tornam os homens extremamente severos no julgamento de c oisas
sem importância.
A natureza das determinações que estavam sendo ensinadas aos
colossenses pode ser detectada a partir do v. 21: “Não manuseie!
”, “Não prove! ”, “Não toque! ”. É evidente que essas proibições se
relacionavam ao consumo de comida e beb ida (Cf. 2.16). Porém, é
também possível atribuir à primeira delas uma conotação sexual,
especialmente quando se leva em conta que os proponentes da
falsa gnose proibiam também o casamento (1Tm 4.3) [ 80].
Paulo faz uma análise crítica de tais regras nos vv . 22-23. Segundo
ele “todas essas coisas estão destinadas a perecer pelo uso ” (22),
ou seja, sendo proibições de ordem primordialmente alimentar,
estavam relacionadas a elementos perecíveis que, com o simples
uso, desaparecem. Ora, o próprio Senhor censuro u a
espiritualidade baseada em normas dessa natureza, ensinando que
a piedade cristã não pode ser construída, medida ou demonstrada
a partir de coisas que se desfazem tão facilmente (Mt 15.10 -20).
Ademais, diz Paulo, aquelas regras eram de origem meramente

80 O verbo constante da primeira proibição tem o sentido, na voz média,


de tocar ou pegar, sendo praticamente sinônimo do verbo constante da terceira
proibição. Em 1Corintios 7.1, é usado para se referir a relações sexuais (Veja-se
MARTIN, Ralph P. Colossenses e Filemom: Introdução e Comentário. São Paulo:
Mundo Cristã e Vida Nova, 1984. p. 107.).
humana. Esse era o motivo pelo qual se estribavam em objetos tão
vãos e passageiros. Com efeito, a mente do homem, sob o jugo do
pecado, não poderia produzir uma piedade de categoria melhor (Tt
1.13-14).
O ensino do Apóstolo nesse ponto, evoca as palavras de Isaías
29.13, citadas, inclusive, por Jesus em uma de suas censuras aos
fariseus e mestres da Lei (Mt 15.1 -9). Sob a luz das palavras do
Mestre, é possível vislumbrar a triste verdade de que aqueles que
inventam, propõem e praticam formas fúteis de esp iritualidade,
repletas de preceitos e tabus, são pessoas distantes de Deus,
apegadas a expressões meramente mecânicas e externas de
religiosidade. Acrescente-se a isso o fato de que tais sistemas
legalistas são extremamente eficazes na produção de hipócrit as
obstinados (Mt 15.7), isto é, de pessoas que somente fingem zelar
pelo sagrado, quando, na verdade, não se dispõem a cumprir nem
mesmo as regras que elas próprias defendem com tanto vigor (Mt
23.4; Gl 6.13).
A avaliação crítica de Paulo prossegue. Ele a firma que as regras
do tipo proposto pelos mestres do gnosticismo nascente tinham
aparência de sabedoria (23). Os contornos dessa aparência
abrangiam o caráter religioso que expunham. Paulo descreve isso
usando uma palavra que pode significar “culto de si mesmo” (ARA)
ou, numa tradução que melhor expressa a ideia presente aqui,
“adoração voluntária”. O termo, na verdade, indica o tipo de culto
que a pessoa fabrica arbitrária e livremente. Trata -se, pois, da
prática de quem inventa religiões ou formas divers as de adoração.
Assim, Paulo está afirmando que a nova religião proposta pelos
falsos mestres tinha sido engendrada por eles mesmos [ 81]. Essa
conduta é absolutamente reprovável, já que as prescrições cultuais
não podem ser fixadas a partir da livre vontade do homem, sendo
aceitáveis somente aquelas que o próprio Deus estabeleceu. O céu
e não a terra é o único berço da religião verdadeira.
A falsa religião também tinha aparência de sabedoria porque nela
as pessoas viam uma nítida forma de humildade, expressa em
sujeição incondicional aos preceitos criados. Ademais, havia ainda
a severidade com o corpo que refletia um modo admirável de
autonegação e domínio próprio. Tudo isso dava ao ensino dos

81 Veja-se o comentário sobre a expressão “baseando-se em visões” (2.18),


especialmente a nota 9.
falsos mestres um toque de seriedade, causando forte impressão
nas pessoas comuns e nos crentes simplórios.
Paulo, porém, conclui sua crítica severa dizendo que todos os
rigores da devoção gnóstica não tinham valor algum para refrear os
impulsos da carne. Isso significa que as inclinações pecaminosas
que subjugam a natureza humana não podiam ser neutralizadas
pelas exigências da heresia colossense. Com efeito, o ritualismo, o
legalismo, a superstição, enfim, a religião inventada pelo homem é
muito fraca para inibir as tendências malignas que há no próprio
ser humano. Somente o viver sob o controle do Espírito pode
realizar esse milagre (2.11; Rm 8.12 -14; Gl 5.16). Mitos, crenças e
filosofias falsas, ao contrário, servirão somente para estimular
ainda mais os impulsos do pecado que habita no homem, incitando
seu orgulho, ao fazê-lo acreditar que pertence a um grupo seleto
de pessoas detentoras de rara percepção mística ou conhecedoras
de profundos mistérios espirituais.
Colossenses 3.1-4 - A Vida Centrada nas Coisas do Alto

Na Epístola aos Colossenses é muito claro o


propósito de Paulo em desmascarar as falsas
filosofias que tentavam seduzir os crentes
com sua ilusória profundidade e aparente
devoção (2.4, 8, 18, 23). Ao apontar quão
falaciosas eram aquelas doutrinas heréticas,
Paulo pretende atingir um alvo ainda mais
sublime que a mera defesa da fé. Ele anseia promover devoção
exclusiva a Cristo como a singular cabeça da igreja (1.10, 18; 3.23 -
24; 4.1,17), uma vez que o gnosticismo incipiente reduzia a pessoa
do Salvador a apenas mais uma das diversas emanações que
compunham seu sistema imaginário, negando sua real divindade
(1.15-17; 2.9-10). Se acolhessem essa visão, os crentes de
Colossos não teriam razão nenhuma para submeter sua vida ao
senhorio absoluto de Jesus.
Por isso, depois de demonstrar a divindade de Cristo e destacar
sua supremacia, Paulo passa a incitar os crentes a andar em total
sujeição a ele, destacando expressões visíveis e práticas do viver
assim. Ademais, o Apóstolo havia apontado a posição a que os
cristãos de Colossos tinham sido alçados quando creram no
Senhor, o que também servia de estímulo a uma vida de
obediência (1.12-14, 21-23).
Assim, como corolário das doutrinas que expôs de início, Paulo, ao
compor o texto abrangido pelo capítulo 3 e início do capítulo 4 da
Carta aos Colossenses, alista inúmeras formas de proceder que
refletem a visão de que a Cristo é devida toda a submissão. Essas
formas de conduta também revelam que quem as adota tem
consciência de que é participante de uma vida diferente. Com
efeito, o versículo 3.1 sugere essas duas realidades: “Vocês
ressuscitaram com Cristo”, ou seja, os crentes têm agora uma vida
nova; e “Cristo está assentado à direita de Deus ”, isto é, ele reina
soberano, sendo-lhe devida toda a honra e sujeição. É s obre essas
duas vigas que o Apóstolo ensina seus leitores a construir o belo
edifício da verdadeira vida de piedade.
O capítulo 3 traz em seu início a palavra “portanto”, indicando a
conexão entre o que foi dito anteriormente e o que está para ser
ensinado. Paulo, na verdade, está aqui introduzindo o desfecho do
pensamento expresso em 2.20-23, em que exortou os crentes a
não se sujeitarem a regras inúteis, uma vez que “morreram com
Cristo para os princípios elementares deste mundo ”.
Para Paulo era fato inegável que, quando creram no Senhor, os
colossenses romperam com o antigo sistema pagão de crenças e
comportamentos. Tendo morrido para aquelas coisas, era também
certo que ressuscitaram com Cristo (2.12 -13; 3.3), ou seja,
passaram a participar da vida do Se nhor, nutrida e moldada por ele
só (2.6-7), uma vida que ele agora vive no céu. A implicação básica
que resulta disso é o dever imposto aos cristãos de buscar as
coisas que são do alto, onde Cristo está, deixando de se preocupar
com a religiosidade mecânica que só se baseia em preceitos de
origem humana acerca de coisas meramente terrenas que se
dissolvem tão logo são usadas (2.22).
Assim, procurar “as coisas que são do alto” tem, a priori, o sentido
de buscar uma piedade fundamentada em padrões celestes,
nascidos no coração de Deus e ligados a valores permanentes.
Trata-se de desfrutar na terra da vida que Cristo vive no céu. De
fato, se a vida ressurreta de que o crente participa é a própria vida
de Cristo; e se é certo que ele vive essa vida agora no céu, então é
a piedade fundada nessa vida celeste que o crente deve buscar.
São os contornos visíveis dessa forma de piedade que Paulo
apresenta na vasta seção de orientações práticas que se estende a
partir desse ponto da Epistola aos Colossenses.
A expressão “coisas que são do alto” é complementada pela
cláusula “onde Cristo está assentado à direita de Deus ”. No Velho
Testamento, o Salmo 110.1 aponta a destra de Deus como lugar
reservado ao Messias de Israel. O Senhor mesmo usou esse texto
para defender a natureza humana/divina de sua própria
messianidade (Mt 22.41-45) e, na pregação de Pentecostes, Pedro
associou o Salmo a Jesus a fim de apresentá -lo como o Messias
que foi rejeitado pelo povo judeu, mas exaltado pelo Pai (At 2.34 -
36) [82]. Tão forte é a conexão entre o assentar-se à direita de
Deus e a figura do Messias que Jesus disse aos seus opositores
que a prova de que ele era o Cristo seria apresentada quando eles

82 Note-se que no Salmo 110.1 o sentar-se ao lado do Pai não implica somente a
exaltação do Messias. Com efeito, seu assentar-se é também associado à espera,
ou seja, o Messias reina ao lado do Pai aguardando o dia em que, finalmente,
esmagará seus inimigos (Sl 110.5-6; 1Co 15.24-28; Hb 10.12-13; Ap 19.15).
o vissem no céu, sentado à destra do Pai (Mt 26.63 -64; Lc 22.67-
69).
No Novo Testamento, o ensino de que o Senhor, após ter sido
assunto ao céu, se assentou ao lado de Deus aparece várias vezes
[83]. Seu significado é amplo. Em alguns contextos a menção de
Cristo sentado no céu indica que sua obra remidora foi concluída,
não havendo mais nada que precise ser feito para a redenção da
humanidade (Hb 1.3; 10.12). Há também na imagem de Cristo ao
lado do Pai a base para o ensino de que ele intercede pelos
crentes (Rm 8.34), no exercício de uma função sacerdotal realizada
não nas dependências simbólicas de um templo terreno, mas no
verdadeiro santuário celeste (Hb 8.1 -2).
Na maior parte das vezes, porém, a menção de Cristo sentado à
direita de Deus aponta para a exaltação que seguiu sua
humilhação terrena (At 2.33; Hb 12.2), para a posição elevada que
ele ocupa como Príncipe e Salvador (At 5.31), para sua soberania
divina e seu senhorio absoluto sobre todo o universo (Ef 1.20 -23;
1Pe 3.22) [84]. Assim, é evidente que a referência a Cristo como
alguém que ocupa lugar ao lado do Pai tem geralmente o objetivo
de inspirar devoção e obediência exclusiva a ele. Obviamente esse
é o caso no texto em análise, uma vez que, conforme visto, o
ensino gnóstico desestimulava a sujeição a Cristo, identificando -o
apenas como mais uma das diversas emanações angélicas que
compunham o universo espiritual imaginário dos falsos mestres.
No v. 2 Paulo renova a admoestação no sentido de que os
colossenses tenham como prioritárias as coisas do alto. Desta vez,
porém, ele realça o pensamento dos crentes, ensinando o que deve
ocupar sua mente na maior parte do tempo. É claro que, na prática,
é impossível meditar continuamente sobre as realidades

83 Em Atos 7.55-56 há uma descrição ligeiramente distinta. Ali o Senhor é visto


por Estevão em pé, à direita de Deus. O quadro singular tem sido entendido de
duas formas. A primeira delas propõe que Cristo, como bom anfitrião, levantou-se
para receber seu servo que estava prestes a chegar ao lar celeste. A segunda
sugere a função de Cristo como Advogado, defendendo a causa de Estevão junto
ao Pai. Seja qual for o caso, a visão gloriosa do primeiro mártir cristão serviu para
exacerbar ainda mais o ódio dos judeus que a entenderam como indicativa da
messianidade de Jesus (vv. 57-58).

84 O ousado pedido constante de Mateus 20.20-21 revela como era considerada


elevada a posição de quem se sentasse ao lado de um soberano. Isso explica a
grande indignação dos dez discípulos descrita no v. 24.
espirituais, mas o que Paulo propõe nesse ponto é que todo o
universo mental dos cristãos seja ordenado sobre o pano de fundo
das coisas celestes, de modo que mesmo os fatores comuns da
vida aqui sejam considerados a partir de suas relações com o
mundo espiritual. Assim, deve -se lidar com os dilemas pessoais, as
questões de família, os problemas profissionais e os assuntos
éticos levando-se em conta a verdade de que a realidade presente,
visível e palpável, não é a única existente. Há um mundo espiritual
situado nas alturas que é tão real quanto este, sendo certo que a
reflexão sobre seus bens e valores determina o modo como se vive
agora (Fp 3.7-9; Hb 11.24-27).
A segunda cláusula do v. 2 aponta o oposto do viver pensando nas
coisas do alto. Trata -se de manter o coração centrado nas coisas
terrenas. Essa expressão descreve o estilo de vida do incrédulo.
De fato, para o ímpio, tudo o que importa é o que se pode perceber
através dos sentidos corporais. Sua vida não recebe qualquer
influência procedente do pensamento de que existe um Deus no
céu, cuja vontade deve ser cumprida e que, afinal, julgará todas as
ações dos homens. Tendo os olhos fixos nes te mundo, tudo o que
lhe importa é comer, beber e alegrar -se (Mt 24.37-39; Lc 12.13-21).
O prazer ilusório e o sucesso material são seus alvos supremos,
sua mais alta aspiração.
Em Filipenses 3.18-21 Paulo contrasta o crente com o incrédulo
descrevendo, a princípio, o modo de vida das pessoas que adotam
a visão meramente terrena da realidade. Ele diz que tais indivíduos
“vivem como inimigos da cruz de Cristo ” (Fp 3.18), tendo como
deus o “estômago”. Essa última afirmação significa que essas
pessoas anelam somente os deleites do corpo, deleites que, com
fanática devoção, se empenham todo o tempo por satisfazer. Paulo
ensina ainda que os homens desse tipo desenvolvem uma ética às
avessas, passando a se orgulhar de tudo o que é vergonhoso.
Finalmente, o apóstolo revela a raiz do problema. Segundo ele,
essas pessoas vivem desse modo porque “só pensam nas coisas
terrenas” (Fp 3.19).
No versículo em análise, portanto, ao exortar os colossenses a não
fixar a mente no que pertence a este mundo, Paulo está advertindo
seus leitores a não adotarem a filosofia de vida própria dos
incrédulos. O apóstolo sabe que o homem que em seu íntimo nutre
amores e anelos somente pelas coisas do presente século,
sentindo-se encantado com suas ofertas e promessas, logo passa
a viver de acordo com esses anseios, distanciando -se da conduta
reta e santa ensinada por Deus. Com efeito, um fenômeno notável
é que aqueles que em seu coração esvaziam o céu, bem cedo
passam a viver vazios aqui na terra. Seus atos, então, tornam -se
tão ocos quanto eles próprios.
Prosseguindo em sua admoestação, Paulo, no v. 3, reforça a base
para a vida diferente do cristão, destacando com certa variação o
ensino já enunciado no v. 1. Mais uma vez, então, o tema da
“morte” do crente aparece [85], destacando que o cristão não vive
em retidão simplesmente por adotar um sistema elevado de normas
éticas, mas sim pelo fato de sua realidade anterior ter sido
sepultada (Rm 6.1-2; 2Co 5.14-15), sendo certo que ele participa
agora da vida do próprio Cristo ressurreto, uma vida que será
provada de modo pleno no futuro (v. 4), mas que, desde já, pode
ser exibida pelo homem salvo, posto que já lhe pertence.
Paulo diz que a vida do cristão “está escondida com Cristo em
Deus”. Alguns sentidos distintos são possíveis aqui. O verbo
“esconder”, conforme usado no texto, talvez evoque a figura do
enterro de um cadáver, quando o corpo é “escondido” na terra e
todas as relações deste mundo com o morto finalmente cessam. Se
essa for a ideia presente no versículo em análise, então Paulo
pretendeu realçar ainda mais o ensino acerca do sepultamento
espiritual do crente, destacando que um ponto final foi dado ao
velho estilo de vida que caracterizou os tempos de incredulidade.
Esse entendimento, porém, associado ao v. 3, criaria a imagem de
um “sepultamento celeste” do cristão, algo inusitado no ensino
paulino que sempre relaciona o sepultamento espiritual do crente à
experiência presente de conversão e batismo (Rm 6.4; Cl 2.12).
É também possível enxergar na frase de Paulo a ideia de proteção.
Ao dizer que a vida do homem redimido está escondida com Cristo,
o Apóstolo estaria ensinando que a herança reservada aos salvos
está sob a guarda de Deus, sendo impossível que qualquer ameaça
seja capaz de destruí-la ou cancelá-la. De fato, esse ensino está
presente no NT (Jo 10.27-29; Rm 8.29-39; 1Pe 1.3-5). Porém, só é
razoável apontá-lo aqui por inferência, sendo pouco plausível que
Paulo o tivesse em mente quando escreveu o versículo em análise.
Finalmente, há a possibilidade de Paulo estar falando sobre a vida
gloriosa que pertence ao crente. Essa vida não pode ser vista

85 Veja-se o comentário a 2.12 e 20 supra.


agora em todo o seu esplendor, permanecendo escondida aos
olhos de todos. O texto diz que ela está “com Cristo em Deus”
porque o Salvador, estando junto ao Pai, vive na plena participação
dela (Jo 17.5; Fp 2.9; 1Tm 3.16; Hb 2.9).
Esse entendimento harmoniza-se com o que é dito no v. 4.
Ademais, seu conteúdo parece a justar-se melhor ao contexto em
que Paulo exorta os crentes acerca do que deve ocupar o
pensamento deles (vv. 1-2). Estando a falar sobre em que
deveriam pensar, Paulo dá ênfase especial à vida gloriosa hoje
oculta aos olhos terrenos, mas que um dia se man ifestará com todo
o seu pujante esplendor. De fato, a conexão entre o pensar nas
coisas do alto e a vida que está oculta com Cristo é bastante
evidente no texto. Paulo diz: “Mantenham o pensamento nas coisas
do alto... Pois vocês morreram, e agora a sua vi da está escondida
com Cristo em Deus”. Ora, ao usar a conjunção “pois”, Paulo deixa
clara a ligação entre as coisas em que os crentes devem pensar e
a vida gloriosa de que um dia desfrutarão.
Se hoje a glória da vida que pertence aos crentes está escondida ,
essa não é uma condição definitiva. Um dia todo o seu esplendor
será revelado. Esse é o ensino consubstanciado no v. 4. Paulo o
interpõe enunciando, a princípio, as seguintes palavras: “Quando
Cristo, que é a sua vida, for manifestado... ” Aqui o Senhor é
descrito como a vida dos cristãos [ 86]. É verdade que ele é a fonte
de toda a vida (Jo 1.4). Porém, para os que crêem, Cristo é, desde
já, manancial de vida nova e abundante, sem a qual é impossível
ser feliz neste mundo (Jo 6.35; 10.10; 14.6).
Cristo é também a vida dos crentes porque lhes concede vitória
sobre a morte (Jo 11.25) e, afinal, lhes dará a vida eterna (Jo 3.36;
1Jo 5.11-12). Essa vida futura dos cristãos está conectada à do
Senhor, numa relação de completa dependência. De fato, é porque
ele vive que os crentes também viverão para sempre (Jo 14.19).
Paulo ensina ainda que o Senhor um dia se manifestará. A alusão
é claramente à segunda vinda de Cristo. Nessa ocasião os cristãos
“também serão manifestados com ele em glória ”. Outras passagens
do NT apontam para esse aspecto da doutrina cristã, lançando luz
sobre o sentido do que o Apóstolo diz aqui. Romanos 8.18 -23, por
exemplo, relaciona a manifestação da glória dos crentes com a

86 Alguns manuscritos trazem “nossa” em vez de “vossa” ou “sua”. A NVI adotou a


segunda opção. A ARA e a ARC adotaram a primeira.
ressurreição e redenção do seu corpo, algo que ocorrerá quando o
Senhor voltar (1Co 15.51-57; 1Ts 4.16-17).
O Apóstolo Pedro também trata desse assunto. Ele conecta a glória
dos cristãos a ser manifesta na segunda vinda a uma alegria
indizível (1Pe 4.12-13) e, a seguir, encoraja os ministros da igreja
falando-lhes da glória de que participarão quando o “Supremo
Pastor” se manifestar (1Pe 5.1-4). João também alude a isso ao
escrever “Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se
manifestou o que havemos de ser, mas sabemos que, quando ele
se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como
ele é” (1Jo 3.2). Em seguida afirma que essa esperança estimula
quem a tem a manter-se puro (1Jo 3.3).
Pode-se, pois, comparar o cristão, em sua realidade atual, ao ipê -
amarelo cujas flores só aparecem no fim do inverno. Sim, pois se
hoje, na fria noite do presente século, nenhum esplendor é visto no
desprezado povo de Deus, é certo que a aurora do dia de Cristo
em breve há de raiar. Então, o ipê santo que o Senhor plantou
finalmente revelará sua inefável beleza e a glória da igreja genuína
será enfim contemplada por todos e para sempre.
Colossenses 3.5-11 - O Abandono da Velha Vida

Tendo destacado que ao crente foi dado


participar da vida do Cristo exaltado, devendo
agora pensar nas coisas do alto e buscá -las
com zelo vigoroso; e tendo ainda ensinado
que essa vida está envolta em uma glória
majestosa que um dia se manifestará, Paulo
inicia um novo parágrafo alistando traços da
vida sem Deus que devem ser abandonados pelo cristão a fim de
que sua conduta se harmonize de maneira mais perfeita com a
realidade espiritual de que ele agora faz parte. A palavra “Assim”
(Gr. pois, portanto), constante do início do v. 5, evidencia essa
relação de resultado entre o que foi dito nos vv. 1 -4 e o que vem a
seguir.
Inicialmente, Paulo emite uma admoestação ampla: “ ...façam
morrer tudo o que pertence à natureza terrena de vocês ” (5). A
expressão “façam morrer” significa aqui privar de poder, destruir a
força, deixar sem vitalidade ou enfraquecer [ 87]. O impulso que o
cristão deve lutar para debilitar é a sua “natureza terrena”. O texto
grego refere-se a essa natureza com as palavras “os membros
sobre a terra”, dando a entender que os crentes devem se esforçar
para minar o vigor das inclinações pecaminosas que atuam em seu
corpo na presente realidade terrena. O corpo físico não é mau,
como dizia o gnosticismo incipiente, mas é um veículo através do
qual a força do pecado se manifesta (Rm 7.5, 21 -24).
Conforme visto em 2.11, é certo que, ao tempo da conversão, a
natureza pecaminosa do crente sofreu um severo golpe. Porém,
não há dúvida de que ela continua viva e presente, pelo que o
crente tem a responsabil idade de amortecê-la, ainda que isso só
seja possível através da capacitação do Espírito Santo (Rm 8.13).
Segundo o ensino paulino, essa batalha não ocorre apenas no
universo mental do indivíduo convertido (Rm 7.23), mas consiste
também do esforço prático por manter um modelo íntegro de vida,
marcado pela abstenção de qualquer conduta desonrosa (Rm 6.12 -
13,19; 1Ts 4.3-5). Aliás, na lista constante do v.5 (ampliada nos vv.
8-9) é muito clara a ideia de que o empenho por fazer morrer a

87 O uso do mesmo verbo grego em Romanos 4.19 e Hebreus 11.12 ilustra bem o
sentido pretendido no versículo em análise.
natureza terrena abrange o afastamento e total abandono de todas
as práticas próprias da velha vida. Assim, não há dúvidas de que o
desviar-se do erro é um dos remédios mais eficazes para inibir o
ímpeto do mal ainda presente nos filhos de Deus.
No v. 5, Paulo alista cinco desvi os que emanam da natureza
terrena. A lista, assim como no v. 8, não é exaustiva, mas apenas
fornece exemplos de vícios em que os crentes podem cair caso não
amorteçam o pecado que subsiste em seus membros.
O primeiro vício mencionado é a imoralidade sexual. O termo tem
sentido abrangente (1Co 6.18), sendo usado para referir -se a todo
tipo de intercurso sexual ilícito e extramarital (adultério, fornicação,
prostituição, etc.). Relações antinaturais também são incluídas no
significado da palavra usada aqui (1 Co 5.1). Que a imoralidade é
obra da carne é expressamente ensinado em Gálatas 5.19, sendo
dever do crente fugir dela (1Ts 4.3 -5).
Como é sabido, o protognosticismo que marcou o século I cultivava
total desprezo pela matéria. Especificamente na região de
Colossos, fica claro que esse desprezo se expressava na rejeição
de certos prazeres corporais (2.16, 20 -23). Aliás, outros textos
neotestamentários revelam que alguns proponentes do gnosticismo
nascente censuravam inclusive os deleites do leito conjugal,
chegando a proibir o casamento (1Co 7.1 -5; 1Tm 4.1-3; Hb 13.4).
Por outro lado, a cosmovisão que considerava o corpo físico
essencialmente mau, muitas vezes desencadeava a mais chocante
devassidão como forma de desprezo pela substância material.
Ademais, essa concepção tendia a crer que a alma, em total
contraste com a realidade palpável, era absolutamente pura, não
podendo ser corrompida pelos atos do corpo (1Co 6.13) [88].
Evidentemente, os desdobramentos práticos dessas ideias eram
comportamentos assinalados pela mais completa imoralidade (2Tm
3.6-9; 2Pe 2.13-14, 17-19; Jd 1.4, 8, 12 -13, 16). Ora, Paulo sabia
que a falsa gnose, a despeito de sua aparente piedade, era
incapaz de refrear os impulsos da natureza terrena (2.23),
podendo, na verdade, até mesmo estimulá-los. Daí seu alerta aos

88 Em 1Coríntios 6.13 fica claro que alguns coríntios pensavam que, assim como
o uso irrestrito de alimentos não desagradava a Deus, da mesma forma o uso
irrestrito do sexo não traria qualquer prejuízo espiritual. Paulo concorda com a
primeira cláusula, mas recusa a segunda.
colossenses no sentido de que fugissem de toda forma de
corrupção sexual.
Os três vícios mencionados a seguir têm também conotação
sexual, mas podem abranger outras esferas em que a
pecaminosidade humana se manifesta. Impureza refere-se a todo
tipo de imundícia, tanto moral como “natural” ou física (Mt 23.27),
mas somente o primeiro sentido é pretendido aqui (Assim tb. em
Rm 6.19; 2Co 12.21; Ef 4.19; 5.3). A impureza moral, além de
envolver a luxúria (Rm 1.24), também engloba motivações sujas
(1Ts 2.3). Em 1Coríntios 7.14, o termo “impuro” é aplicado a
pessoas que estão fora de qualquer influência santificadora.
A palavra traduzida como “paixão” é pathos e aplica-se a qualquer
afeição desordenada, mas no NT, onde ocorre em apenas outros
dois lugares, é usada especialmente para aludir ao desejo sexual
ardente, desonroso e depravado (Rm 1.26; 1Ts 4.5). Pathos é uma
doença espiritual que subjuga a alma torna ndo-a inquieta,
continuamente sedenta, sempre desejosa de satisfazer apetites
impuros.
A próxima expressão foi traduzida como desejos maus.
Basicamente é sinônima do termo que a antecede. Trata -se, pois,
da cobiça, da ambição, do intenso anseio por algo il ícito (Rm 6.12;
13.14; Gl 5.16; 1Tm 6.9; Tt 3.3; 2Pe 3.3).
A lista do v. 5 termina com a menção da ganância. A palavra usada
pelo Apóstolo designa o desejo insaciável de adquirir bens
materiais (Mc 7.21-22; Rm 1.29; Ef 5.3). Esse pecado induz, às
vezes, à uma generosidade anêmica, rara e forçada (2Co 9.5). O
termo também descreve o anelo desenfreado por obter aquilo que
pertence a outra pessoa, o que induz à prática de fraude e
extorsão (1Ts 2.5; 2Pe 2.3). Paulo considera a ganância “idolatria”
porque esse desvio faz das posses de um homem o centro da sua
vida, a razão de sua existência (Lc 12.15). Contaminado por esse
pecado, o indivíduo se torna servo e adorador das riquezas,
ficando impedido de servir a Deus (Lc 16.13 -14). É por isso que,
com justiça, os avarentos não têm parte no Reino dos Céus (Mt
13.22; 19.22; Ef 5.5).
Paulo encoraja os seus leitores a viverem longe dos vícios
alistados no v. 5 dizendo que esses desvios são a causa pela qual
a ira de Deus sobrevém aos descrentes (6). A ira mencionada p elo
apóstolo é o castigo pós-morte, conforme se depreende do “texto
gêmeo” de Efésios 5.5-6, onde é clara a conexão entre a
indignação divina e a condenação eterna. Aliás, é inegável que os
escritos de Paulo façam clara referência à fúria escatológica do
Senhor (Rm 2.5; 1Ts 1.10; 5.9; 2Ts 1.5 -10). Deve-se ainda
destacar que, à luz do ensino geral que emana de todo o Novo
Testamento, essa fúria não tem como causa apenas o
comportamento desregrado e promíscuo das pessoas (como uma
leitura irrefletida de Colossenses 3.6 poderia dar a entender), mas
também e fundamentalmente, a incredulidade presente no coração
de quem rejeita o Filho e não atende ao convite constante da
mensagem evangélica de recebê -lo pela fé (Jo 3.36; Rm 2.8; 5.8 -9;
2Ts 1.8; Hb 10.29).
Ainda que a ira de que fala o v. 6 seja aquela que se revelará no
dia futuro ou na realidade além, é preciso lembrar que o ensino
paulino mais amplo concede também espaço para manifestações
da ira de Deus contra a impiedade humana já no presente.
Romanos 1 é o texto áureo acerca desse assunto, posto que ali o
Apóstolo afirma claramente o derramamento da cólera divina sobre
os maus ainda nesta vida (Rm 1.18), explicando que essa fúria se
extravasa numa “entrega” de tais homens às mais grosseiras
formas de perversão (Rm 1.24-31) [89].
Vista sob esse aspecto, a ira de Deus contra o pecado não é inerte
ou inoperante no presente. Ela atua, não só trazendo
(eventualmente) grandes calamidades físicas e materiais sobre os
inimigos do Senhor (At 12.23), mas também os trans formando em
monstros assombrosos, com repugnantes deformidades de caráter.
Ora, nenhuma calamidade maior pode sobrevir a alguém neste
mundo do que ser portador de uma alma apodrecida, que se deleita
no próprio mal que a corrói e sorri satisfeita diante de cada novo
tumor que descobre em si mesma. É, porém, precisamente com
essas trevas interiores que Deus visita os maus hoje, antes de
lançá-los nas trevas exteriores ainda mais densas amanhã.
O versículo 6 termina classificando os incrédulos, aqueles sobre
quem a ira de Deus virá, como “filhos da desobediência”. Algumas
traduções colocam toda a expressão entre colchetes (e.g. ARA).
Isso acontece devido a sua ausência em alguns manuscritos
antigos importantes. Dificilmente, porém, a frase não constava do
original. Primeiramente porque ela dá ao v. 6 um desfecho mais
natural e esperado. Em segundo lugar porque os manuscritos que a

89 Veja-se especialmente em Romanos 1 a expressão “Deus [ou ele] os entregou”,


presente nos vv. 24, 26 e 28. Note-se ainda que, de acordo com o v. 27, os ímpios
já “receberam em si mesmos o castigo merecido pela sua perversão”.
incluem são numerosos e fazem a evidência pesar em favor da
leitura mais longa.
“Filhos da desobediência” é expressão que designa pessoas cujo
traço principal de conduta é a rebelião contra a vontade moral de
Deus (Ef 2.2-3). Tais indivíduos vivem desobedecendo. Os
caminhos que trilham são tortuosos e eles andam por essas sendas
continuamente, revelando-se incapazes de ouvir o que o Se nhor
ordena. Sua relação com a desobediência é, portanto, tão íntima
quanto a relação mãe/filho. Os laços que unem esses homens à
rebelião são fortes como os laços de filiação. Na verdade, essa
associação é tão intensa que não basta dizer que o “filho da
desobediência” é alguém que desobedece. Antes, é preciso
descrevê-lo como um indivíduo que está sob o poder da
desobediência; alguém naturalmente inclinado a desprezar o que
Deus requer da conduta humana (Gn 6.5; Jr 13.23).
Isso fica ainda mais evidente no v. 7, onde Paulo sugere que no
passado seus leitores foram, eles próprios, filhos da
desobediência. Com efeito, o Apóstolo afirma que os colossenses,
antes da conversão, “andaram” e “viveram” nos vícios descritos no
v. 5. Os verbos usados aqui (περιπατέω e ζάω) indicam a ideia de
regular a vida a partir dos desvios alistados. Paulo diz, portanto,
que os colossenses tinham passado seus dias de incredulidade sob
a orientação do pecado, ligados continuamente ao mal. Como se
vê, os filhos da desobediência moram com a mãe!
Não se pode perder de vista que, escrevendo aos colossenses,
Paulo tem como um dos seus alvos atacar os inimigos da sã
doutrina, ou seja, os mestres do protognosticismo que
apresentavam aos crentes uma falsa filosofia, proponente de uma
cristologia reducionista (2.8-9) e marcada por legalismo e
religiosidade estéreis, incapazes de refrear as inclinações da
natureza pecaminosa (2.16-23). Assim, ao apontar os vícios dos
“filhos da desobediência” é evidente que Paulo está descrevendo,
inclusive, a conduta desses mesmos falsos mestres que, conforme
visto acima, eram homens chocantemente imorais (2Pe 2.13 -14) e
também gananciosos (2Co 2.17; 1Tm 6.3 -5; 2Pe 2.1-3).
A nova vida inaugurada pela fé em Cristo tem como marca o
sepultamento (imediato ou gradu al) do modo de andar
característico dos “filhos da desobediência”. Isso é ensinado por
Paulo já a partir do v. 5. Agora, porém, no v. 8, ele amplia essa
ideia, destacando o dever que o crente tem de demonstrar o
contraste entre seu passado (7) e o “agora”.
Esse dever consiste do abandono não só dos vícios
predominantemente sexuais alistados no v. 5, mas também dos
pecados de mau gênio e do uso inescrupuloso das palavras. O
verbo usado por Paulo e vertido na NVI para abandonar é
ἀποτίθημι, que também pode ser traduzido como renunciar, pôr de
lado, tirar do caminho ou remover. Seu uso figurado (como é o
caso aqui) refere-se ao rompimento total com alguma forma
reprovável de comportamento, isto é, indica o livramento definitivo
de um hábito ou de um estilo de v ida que desagrada a Deus (Rm
13.12; Ef 4.22,25; Hb 12.1; Tg 1.21; 1Pe 2.1).
Entre os pecados de mau gênio, o primeiro mencionado é a ira
(ὀργή). O próprio texto ensina que Deus se ira (6), o que mostra
que essa reação, em si, não é pecado. Aliás, Paulo su gere que é
possível alguém ficar irado sem desagradar a Deus (Ef 4.26). A ira,
porém, pode deixar de ser uma reação ocasional do coração e
tornar-se a disposição natural da alma, um estado de mente, um
componente notório do temperamento e do caráter de uma pessoa.
É essa inclinação rancorosa, mal-humorada, amarga e pronta a
atacar que a Bíblia condena (1Tm 2.8; Tg 1.19 -20).
O segundo pecado alistado é a indignação, termo que traduz a
palavra grega θυμός. Trata-se, basicamente, de um sinônimo de
ira, mas é usado para se referir a acessos de cólera, isto é, a fúria
inflamada. Paulo tem em mente aqui as explosões de raiva, o ódio
descontrolado e cego que arrebata os homens e os precipita na
violência irrefletida (Mt 2.16; Lc 4.28 -29; At 19.28-29; Ef 4.31).
Ainda que nos dias modernos essa reação seja considerada
“compulsiva”, ou seja, um surto emocional pelo qual o homem não
pode ser responsabilizado, a Bíblia a descreve como iniquidade,
um comportamento típico de quem não conhece a Deus, um pecado
que deve ser abandonado pelos que, em Cristo, estão sendo
conformados à imagem do seu Criador.
Maldade dá sequência à lista. O significado da palavra usada por
Paulo (κακία) é amplo. Abrange a disposição da mente para o mal
e também a prática de atos iníquos. É, assim, a maldade inerente
ao coração de alguém (At 8.22; Rm 1.29), bem como as ações
perversas que brotam a partir desse mesmo coração (1Co 5.8).
Depois de apontar os pecados de mau gênio, o Apóstolo volta sua
pena contra o uso inescrupuloso das palavras. Nesse ponto ele
reprova primeiramente a maledicência. Βλασφημία é o termo usado
aqui e descreve tanto o emprego da língua para destruir a boa
reputação de alguém (2Pe 2.10-11) como o discurso que fere a
majestade de Deus (Mc 2.7; Jo 10.33).
O v. 8 termina com a menção da linguagem indecente
(αἰσχρολογία). Paulo trata aqui do discurso sujo, das palavras
baixas e chulas que saem da boca dos incrédulos. Desde a
meninice é comum os ímpios proferirem obscenidades, adotando
um vocabulário sórdido sem nenhum recato. Esse discurso vil e
desavergonhado é percebido tanto no uso de palavras impróprias
(Ef 4.29) como em conversas vulgares ou gracejos imorais (Ef 5.3-
4). Seja qual for o caso, o crente precisa reconhecer que o modo
como fala deve refletir sua nova condição espiritual, sendo
inaceitável que a mesma boca que confessa Jesus Cristo como
Senhor também propale asquerosas podridões.
O último pecado ligado ao uso das palavras é a mentira. “Não
mintam uns aos outros”, escreve o Apóstolo (9). A mentira pode
assumir as mais variadas formas. Todas elas, porém, têm por pai o
diabo (Jo 8.44) [90]. Sendo, pois, a igreja a coluna e o sustentáculo
da verdade doutrinária (1Tm 3.15), sendo ela o bastião que
defende a revelação daquele que não pode mentir (Tt 1. 1-2) e
tendo a igreja sua própria origem na mais pura e santa verdade (Ef
1.13; Cl 1.5-6), é inadmissível que qualquer falsidade seja
tolerada, propalada ou propagada em seu seio.
Por isso, ainda que mentir para qualquer pessoa seja pecado, a
menção de “uns aos outros” (ἀλλήλους) no v. 9 reflete a
preocupação de Paulo com a preservação da verdade
especialmente entre os crentes da igreja local (Ef 4.25). Aliás, é
significativo que o primeiro juízo de Deus contra o pecado dentro
da comunidade cristã foi aplicado precisamente a um casal que
mentiu na igreja (At 5.1-11). De fato, mentir para os irmãos é tão
grave que nem o próprio Pedro, líder dos apóstolos, escapou da
repreensão de Paulo quando, agindo com dissimulação, tentou
enganar os delegados de Jerusalém que chegaram a Antioquia (Gl
2.11-14). A divulgação de mentiras no seio da igreja certamente

90 Há episódios no VT em que a mentira parece ser uma solução aceitável,


notadamente em situações em que dizer a verdade põe em risco a vida de alguém
(Js 2.1-6; 1Sm 20.5-6; 2Rs 6.18-20). Isso talvez indique que, havendo uma
situação de conflito entre dois valores, o “maior” entre eles deve ser preservado,
em detrimento do outro. O fato, porém, dos textos mencionados não terem como
propósito enunciar esse critério, faz com que sua aplicação seja questionável, até
porque não há fundamento sólido para a afirmação de que a vida é um valor maior
do que a verdade.
era uma marca dos mestres do gnosticismo nascente em Colossos,
sendo também esse um dos motivos pelos quais Paulo condena
essa prática aqui.
O motivo principal pelo qual os crentes não devem trocar mentiras
entre si está no fato deles formarem uma comunidade de pessoas
que se “despiram do velho homem com suas práticas ”. A figura
evocada nessa passagem é, basicamente, a de alguém que tirou as
roupas velhas que o cobriam e se livrou delas. Despir-se
(ἀπεκδύομαι) tem, pois, aqui o sentido de despojar -se, separar-se
de algo [91]. Certamente, com essa ilustração, o Apóstolo quer
criar na mente dos seus leitores a imagem do batismo, ocasião em
que o crente se despia antes d e entrar na água, cobrindo-se depois
com outras vestes [92]. Sendo esse o caso, Paulo, nesta
passagem, novamente conecta o batismo à conversão e ao início
de uma vida nova (Rm 6.3-4). É que, conforme exposto
anteriormente (veja-se comentário a 2.12), nos te mpos dos
apóstolos, a conversão e o batismo ocorriam de forma quase
simultânea (At 2.41; 8.12, 36-38; 16.33, etc.). Daí a forte
associação entre ambos (1Pe 3.21).
Os crentes se despiram do “velho homem” (παλαιὸς ἄνθρωπος). O
Apóstolo usa essa expressão som ente em outros dois lugares:
Romanos 6.6 e Efésios 4.22. Em todas as ocorrências a figura se
refere, basicamente, à natureza corrupta que domina os
descendentes de Adão. Os crentes foram despojados dessa
natureza quando se ligaram a Cristo (2.11 -12). Por isso, mesmo
que a “lei do pecado” ainda se insinue em sua vida (Rm 7.23), eles
não vivem mais cobertos pelos trapos ou envolvidos nos farrapos
da natureza adâmica ao ponto de serem vistos como molambos ou
maltrapilhos morais iguais aos incrédulos.
O “velho homem” de que Paulo fala tem “suas práticas” (πρᾶξις),
ou seja, realiza as obras que lhe são próprias (vv. 5, 8, 9). É fora
de questão que a pessoa sem Cristo tem uma maneira típica de
agir e de lidar com as questões comuns da vida (Rm 8.5 -8). O
modo como essa pessoa “funciona” leva-a a se corromper cada vez
mais, numa prática constante de atos que Deus reprova (Ef 4.22;

91 Em 2.15, o verbo tem o sentido de desarmar, mas esse significado é pouco


provável aqui.

92 Essa sugestão encontra-se em MARTIN, Ralph P. Colossenses e


Filemom: introdução e comentário. Série Cultura Bíblica. Vol. 12. São Paulo: Vida
Nova e Mundo Cristão, 1984. p. 116-117.
2Tm 3.13; Ap 22.11). Ao despir-se do velho homem, o crente se
libertou também desses seus feitos, sendo, portanto, inaceitável
que agora novamente caminhe, trôpego, sob o fardo de uma vida
de pecados.
Assim como, ao ser batizado na água, o crente tirou suas vestes e
se cobriu com outras, da mesma forma, ao se associar a Cristo
pela fé, o convertido se revestiu do novo homem (10). Esse novo
homem é a natureza regenerada, o caráter do próprio Cristo que
passa a envolver o cristão [ 93], refreando suas inclinações e
incluindo-o numa nova humanidade, onde não há barreiras entre os
homens, nem diferentes graus de status espiritual, como
propunham os falsos mestres que atuavam na região de Colossos
(v. 11. Veja-se especialmente Gl 3.27-28).
Segundo Paulo, esse novo homem ainda não está pronto. Antes
“está sendo renovado”. O verbo usado (ἀνακαινόω) significa,
literalmente, fazer crescer ou tornar novo. O modo como esse
verbo é usado no texto indica um processo contínuo de renovação,
no qual a forma antiga e corrupta é substituída aos poucos pela
nova (Gl 4.19; Ef 4.11-13; Fp 1.6; Cl 2.19).
Basicamente, conforme realça Paulo , a natureza regenerada do
crente se desenvolve à medida que caminha rumo ao “pleno
conhecimento” (εἰς ἐπίγνωσιν). A heresia que se propagava no Vale
do Lico nos dias de Paulo ensinava uma antítese entre o mundo
material e o espiritual. Os proponentes dess e falso ensino
apresentavam-se como conhecedores dos mistérios ligados a essa
suposta antítese e diziam que a salvação dependia do
conhecimento pleno desses mesmos mistérios. Para eles, portanto,
a salvação pertencia a uma classe privilegiada de pessoas,
detentoras de informações secretas acerca de realidades
insondáveis e inacessíveis aos homens comuns (1Tm 6.20).
Para Paulo, porém, o “pleno conhecimento” é algo disponível a
qualquer indivíduo que crê no Salvador (1Co 1.5 -6). Este renova
seu modo de viver, aperfeiçoando-se a cada dia, na medida que
cresce rumo à essa “gnose” completa e verdadeira. O objeto desse
conhecimento capaz de renovar o homem foi apontado em 2.2 -3:
“...a fim de conhecerem plenamente o mistério de Deus, a saber,

93 Veja-se Romanos 13.14, onde Paulo evoca a mesma figura, ensinando, porém,
que o crente deve revestir-se (ἐνδύω– o mesmo verbo usado em Cl 3.10) do Senhor
Jesus Cristo.
Cristo. Nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do
conhecimento”.
Assim, não há como o crente prosseguir na renovação de seus
hábitos se não crescer no conhecimento da Pessoa e da vontade
de Cristo (1.9-10). À parte do conhecimento dele, não é possível
desenvolver o caráter maduro e santo do homem novo (2Pe 1.3 -4,
8). Por isso, um dos alvos supremos do cristão deve ser crescer no
conhecimento do Senhor, sabendo que isso gerará reflexos na
construção de uma vida marcada por conduta e valores magistrais
(Ef 1.17; Fp 3.8; 2Pe 3.18). Em Colossos, contudo, ao propor alvos
fantasiosos de conhecimento, os mestres heréticos tentavam
afastar os cristãos das verdades que podiam realmente transformá -
los. Por isso, Paulo realçou o valor da genuína gnose, na qual o
homem novo cresce e que é capaz de mudar esplendidamente a
sua vida.
O alvo final da renovação experimentada aos poucos pelo homem
regenerado é a “imagem do seu Criador”. É evidente aqui a alusão
a Gênesis 1.27. Ao recordar esse texto, é possível que Paulo
quisesse propor como pano de fundo de seu pensamento o fato de
ter havido um primeiro Adão, a partir de quem teve origem o ”velho
homem”, ou seja, a humanidade corrompida. Então, em meio aos
tristes ecos da verdade de que a primeira humanidade se perdeu, o
Apóstolo contrapõe o ensino exultante de que é criada agora uma
nova humanidade, a humanidade regenerada a partir da obra do
segundo Adão, Cristo (Rm 5.14 -19; 1Co 15.45-49). Enquanto os
participantes da velha criação se corrompem, desfigurando a
imagem de Deus neles gravada, as pessoas que participam da
nova criação experimentam um processo de aperfeiçoamento e
renovação no qual a imagem daquele que as criou é formada nelas
(1Co 15.49; 2Co 5.17; Ef 2.10). As duas humanidades, portanto,
seguem direções opostas: enqua nto uma se desfaz, a outra se
refaz; enquanto uma se corrompe, a outra se santifica (Ef 4.22-24;
Ap 22.11).
O crescimento em direções opostas não é, contudo, a única
diferença entre as duas humanidades. Há também disparidade no
modo como as pessoas são cla ssificadas dentro de cada uma
delas. Se na humanidade decaída há distinções raciais, sociais,
econômicas e culturais determinando o grau de importância, o valor
das pessoas e a amizade entre elas, na nova humanidade não é
assim (11). Nela esse tipo de sepa ração desaparece (Ef 2.11-16:
Gl 3.26-28). De fato, na comunidade dos santos todos se igualam
como filhos de Deus e membros da mesma família (Ef 2.18 -19).
Paulo fala do fim da distinção entre gregos e judeus, mostrando
assim que na nova humanidade não exis te mais nenhum abismo de
separação racial. Ele também se refere a esses grupos usando as
palavras “circunciso e incircunciso ”. Ora, a circuncisão era o sinal
da aliança exclusiva que os judeus tinham firmado com Deus (Gn
17.10-11). Portanto, ao dizer que e ntre os homens novos não há
desigualdade entre circunciso e incircunciso, Paulo ensina que na
humanidade redimida não existem diferenças de status espirituais
diante de Deus, desaparecendo assim qualquer privilégio ou
vantagem dessa natureza de uns sobre o utros. Isso certamente
representou um severo golpe contra a heresia que ameaçava a
igreja de Colossos, pois combateu tanto sua tendência judaizante,
como seu ensino de que os detentores da gnose formavam uma
classe especial de homens espirituais.
Além de não existir na nova humanidade nenhuma barreira racial
ou espiritual, nela também desabam os muros que separam os
homens de culturas e classes sociais diferentes. Paulo ensina isso
ao fazer referência aos bárbaros. Ora, os bárbaros eram pessoas
incultas e não civilizadas que, em sua maior parte, viviam além das
fronteiras do Império Romano, excluídas da participação de seus
ricos benefícios, tolhidas de qualquer direito de cidadania e
totalmente estranhas à sofisticada cultura grega. Mesmo essas
pessoas, porém, podiam participar da sociedade redimida e, assim,
serem postas em pé de igualdade com todos os salvos.
Entre os bárbaros, os que viviam na Cítia, região situada ao norte
dos mares Negro e Cáspio, eram os mais rudes. Os citas eram
nômades selvagens com quem nenhum homem civilizado desejaria
ter comunhão. Pela fé em Cristo, porém, até mesmo pessoas assim
são aproximadas e, segundo Paulo, passam a desfrutar da posição
de homens novos diante de Deus, sem nenhuma discriminação.
Tampouco distinções econômicas persistem diante de Deus entre
os componentes da nova humanidade. De fato, escravos e livres
também são nivelados entre os crentes, sendo todos igualmente
redimidos pelo sangue da cruz e participantes da herança celeste.
A doutrina paulina de que na nova humanidade não existem
distinções raciais, culturais, sociais ou econômicas não se baseia
na análise externa dos fatos. Na verdade, é óbvio que entre o povo
de Deus há ainda ricos e pobres, bem como pessoas de diferentes
culturas e realidades sociais. O fundamento, porém, para o ensino
acerca da ausência de distinções entre os homens novos é o fato
de que, para o povo salvo, “Cristo é tudo em todos ” (ARA), ou seja,
somente a pessoa e presença de Cristo são importantes na
realidade vivida por cada um. Qualquer detalhe fora disso é
secundário e irrelevante. É nesse sentido que todos os crentes se
igualam e nivelam, ainda que distinções não essenciais sejam
ainda percebidas no tempo presente.
Conforme tem sido enfatizado, o protognosticismo ensinava a
existência de uma elite espiritual que, por ser a suposta detentora
de conhecimentos especiais, se situava acima das demais
pessoas. O ensino de Paulo sobre a ausência de distinções entre
os homens novos obviamente tem como alvo destruir essa
pretensão. Porém, é possível que a meta apologética do Apóstolo
ultrapasse esse objetivo. Não se pode detectar os contornos
específicos da heresia gnóstica que tomava forma nos dias de
Paulo. Porém, sabe-se que formas desenvolvidas do gnosticismo,
presentes em séculos posteriores, ensinavam uma futura abolição
de diferenças entre as “almas esclarecidas”. O maniqueísmo, por
exemplo, anelava o dia em que os espíritos despertos
mergulhariam no Reino da Luz e viveriam finalmente em doce
harmonia, nutridos por fortes laços de amizade espiritual e livres
de todas as distinções impostas pela matéria má [ 94]. Talvez
alguns embriões dessas ideias já existissem ao tempo de Paulo.
Ele então destaca que a igualdade entre os homens viabilizada por
Cristo não é apenas o objeto da espe rança futura dos crentes, mas
também uma realidade vívida e atual, desfrutada desde já pelos
homens novos, gente que pouco se importa com diferenças de
classe e formação, pessoas para quem hoje mesmo Cristo é tudo e
o resto é resto.

94 O maniqueísmo foi uma seita de natureza gnóstica fundada por Mani (216 - c.
277), um filósofo persa que se denominava o parácleto enviado pelo “Pai da Luz”.
Em 1992 foram encontrados diversos textos e cartas maniqueístas no Egito
ocidental. Esses documentos revelaram o anseio dessa seita pelo livramento das
diferenças que marcam a realidade presente. (Veja-se BROWN, Peter. Santo
Agostinho: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 596).
Colossenses 3.12-17 - A Convivência dos Homens Novos

Ao usar a palavra “portanto” (οὖν) no início


desse parágrafo, Paulo evidentemente
pretende tratar das implicações daquilo que
acabou de dizer nos versículos anteriores.
Ora, ele ressaltou no v. 10 que os crentes se
revestiram do novo homem, sendo agora
membros da humanidade redimida que se
aperfeiçoa na medida que conhece a Cristo e vai, gradualmente, se
assemelhando a ele. Paulo também destacou a ausência de
distinções essenciais nessa nova humanidade (11), mostrando que,
para qualquer dos seus membros, inde pendentemente de classe ou
condição, Cristo é tudo, habitando indistintamente em todos.
Tendo exposto tais verdades aos seus leitores, o Apóstolo passa
agora a mostrar-lhes o impacto que esses ensinos devem causar
na dinâmica do dia-a-dia. Para isso, ele novamente emprega o
verbo “revestir” (ἐνδύω), já usado no v. 10 para se referir ao novo
homem. Desta vez, porém, Paulo usa o verbo para realçar os
traços específicos desse novo homem, destacando os contornos e
formas que seus “trajes” exibem no campo da convivência dentro
da comunidade cristã. É preciso destacar aqui que Paulo, ao
descrever o comportamento da humanidade recriada, mesmo
podendo se voltar para inúmeras áreas da vida, preocupa-se
exclusivamente em expor o modo ideal como seus membros se
relacionam uns com os outros. É, de fato, significativo que, ao
pensar no novo homem, o Apóstolo apresente logo de início uma
pessoa de fácil convivência; uma figura simpática, paciente e dócil;
alguém que vive longe de encrencas, rancores, inimizades e
queixas. Segundo parece, para Paulo é especialmente nesse
indivíduo que a nova humanidade é percebida de forma plena.
A humanidade recriada, ou seja, a igreja, é chamada no v. 12 de
“povo escolhido de Deus”. O texto grego traz a expressão “eleitos
de Deus” (ἐκλεκτοὶ τοῦ θεοῦ). Ainda que no meio evangélico
brasileiro predomine um tipo deformado e raso de arminianismo
[95], a literatura paulina é rica em evidências de que o Senhor

95 O arminianismo é o sistema teológico proposto por Jacó Armínio (1560-1609),


segundo o qual Deus dotou cada indivíduo com a capacidade de crer em Cristo
caso queira. É a chamada graça preveniente. De acordo com o arminianismo,
portanto, Deus não age de forma especial em pessoas eleitas conduzindo-as à fé.
escolhe soberanamente aqueles que quer salvar (Rm 8.30; 9.20 -
24; 1Co 1.27-28; Ef 1.4-5,11; 1Ts 1.4-5; 2Ts 2.13; Tt 1.1). Esse
ensino recebe força ainda maior quando se leva em conta os
discursos do próprio Senhor Jesus (e.g., Mt 24.22,24,31; Lc 18.7;
Jo 10.16,26; 15.19) e as palavras de outros escritores do Novo
Testamento (Jo 11.51-52; 1Pe 1.1; 2.9). Vê-se assim que a igreja é
a comunidade dos eleitos, o povo que, sem mérito algum, mas pela
livre administração da graça divina, foi escolhido antes da
fundação do mundo para ser santo desde já e, afinal, herdar o céu.
O povo escolhido por Deus é “santo e amado” (ἅγιοι καὶ
ἠγαπημένοι), ou seja, tendo sido eleito por ele, foi então separado
para os seus sábios propósitos e tornou -se objeto de seu amor
especial. A magnífica dignidade e o glorioso privilégio da igreja são
destacados aqui. Neste ponto, vale fazer uma pequena digressão.
A igreja, sendo santa e amada, não tem porque anelar a conquista
de posições elevadas neste mundo, nem deve buscar sedenta a
obtenção do afeto dos homens, como se disso necessitasse.
De fato, a grandeza da posição da igre ja está no fato dela ter sido
alçada ao status de santa, ocupando assim um lugar exclusivo
como povo que Deus separou para, por meio dele, realizar seus
planos na história (Ef 2.6-7; 1Tm 3.15). É nisso que consiste a
gloriosa magnitude do povo eleito. Adem ais, sendo também amada,
a igreja não tem que se preocupar em, a todo custo, conquistar o
afeto deste mundo. Basta-lhe o amor infinito de Deus. Não deve,
pois, desgastar-se na criação de medidas para que, através de
seus cultos, atos e discursos, obtenha a simpatia de todos (1Jo
3.13). Ela tem o amor do Senhor. Não há nela nenhum espaço que
o afeto dos incrédulos possa ou deva preencher. Aliás, o amor e a
aprovação dos incrédulos podem ser até maus sinais, talvez tristes
evidências de que a conduta e a mens agem da igreja não estão

Antes, atua igualmente em todos, cabendo a cada um responder ao convite da


graça, conforme livremente queira. Para os arminianos, quando a Bíblia fala de
eleitos, refere-se a pessoas que Deus sabia de antemão que creriam. Na tentativa
de fundamentar essa afirmação usam Romanos 8.29 e 1Pedro 1.2. Esses ensinos,
porém, ainda que atraentes para a mente moderna que tanto valoriza a liberdade
humana, não podem ser sustentados à luz de textos como João 6.37, 44, 65; Atos
16.14; Romanos 9.18; 11.7, onde se vê claramente que a graça salvadora de Deus
atua de modo especial somente em algumas pessoas. Quanto ao uso equivocado
de Romanos 8.29 e 1Pedro 1.2 veja-se o comentário a 1.12 supra. Frise-se apenas
aqui que esses textos não falam de pessoas que Deus sabia previamente que
creriam, mas sim de indivíduos nos quais ele sabia de antemão que agiria,
abrindo-lhes o coração e concedendo-lhes a fé (Ef 2.8).
causando desconforto naqueles que vivem na prática da iniquidade
(Jo 7.7; 15.18-19; 1Pe 4.4). Na verdade, ter o amor do mundo pode
ser a marca mais inconfundível da igreja apóstata (Tg 4.4).
O v. 12 prossegue destacando as virtudes que o povo escolhido,
conforme dito, deve cultivar nas suas relações internas. Quais são
as atitudes que um crente, sendo eleito, santo e amado, deve nutrir
no trato com seus irmãos? Paulo mostra que, nesse aspecto, há
disposições adequadas aos cristãos, formas de sentir e agir que
estão à altura da magnífica condição espiritual em que se
encontram. Sendo eleitos, santos e amados, nada aquém dessas
disposições pode ser esperado deles na dinâmica do seu convívio
constante (Ef 4.1-3).
Primeiramente, o apóstolo menciona a “profunda compaixão”
(σπλάγχνα οἰκτιρμοῦ). A primeira palavra da expressão grega
fornece a figura de um sentimento de ternura presente nas
entranhas da pessoa. É evidente a ideia de uma sensação afetiva
real e profunda que parte do mais íntimo do ser de alguém. A
segunda palavra da cláusula aponta para a preocupação ou o grau
elevado de sensibilidade diante de alguém que sofre, ambos
expressos em misericórdia e compaixão. Paulo, assim, encoraja os
crentes a, no trato entre si, se cobrirem de uma profunda afeição
misericordiosa; algo sincero, que vem de dentro, quase físico; um
mover interior que se compadece da dor do outro. Trata -se do
extremo oposto da indiferença. Uma expressão semelhante
aparece em Filipenses 2.1.
A seguir, Paulo alista a “bondade” (χρηστότης) que, como outros
itens da presente lista, é fruto do Espírito (Gl 5.22 -23). O termo
usado por Paulo descreve a disposição generosa de ser útil na
promoção da felicidade das pessoas. Esse termo, a lém de abrigar
um sentido moral (integridade), pode significar também cortesia ou
gentileza. Com efeito, o crente que anda de acordo com a sua
vocação é pessoa que trata seus irmãos com fineza, fazendo com
que se sintam bem. É, assim, muito fácil e agradáv el caminhar com
ele.
“Humildade” (ταπεινοφροσύνη) é o próximo item na lista de Paulo.
Basicamente, é a qualidade da pessoa que conhece a realidade de
sua própria pequenez e limitações. Assim, o homem humilde é, a
priori, aquele que tem um conceito modesto de si. A humildade se
manifesta ainda na prontidão em abrir mão dos próprios interesses
em prol dos outros (Fl 2.3-4). Nesse sentido, Jesus é o maior
exemplo de humildade (Fl 2.5-8). Outra marca do cristão humilde é
a mente submissa (1Pe 5.5-6). A observação dos fatos do dia-a-dia
mostra que a ausência da humildade está na raiz de quase todos
os problemas e conflitos que a igreja enfrenta dentro de suas
próprias fileiras.
Na sequência, Paulo cita a “mansidão” (πραότης), virtude que
reúne tanto os traços da bondade como da humildade. O que se
destaca, porém, no homem manso é a sua serenidade mesmo
diante dos mais terríveis dissabores da vida. Quando esses
dissabores surgem por conta do convívio com os outros, ele não
explode em fúria descontrolada, nem se mos tra teimoso ou
obstinado. Antes, dispõe-se a ceder ou, quando preciso, age com
gravidade, sem nunca perder a disposição pacífica e o domínio de
si (Gl 6.1; 2Tm 2.24-25).
O homem manso também será paciente. O termo usado por Paulo
(μακροθυμία) descreve a pessoa tolerante, clemente, tardia na
iniciativa de punir. É o indivíduo que suporta firmemente a ofensa,
sendo demorado para reagir ou romper o relacionamento. Nesse
sentido, o homem paciente é também perseverante. Ele permanece
surpreendentemente constante em sua atitude de não retribuir o
mal que sofre.
O significado de “paciência” é melhor entendido na cláusula que
inicia o v.13: “Suportem-se uns aos outros”. Essa expressão pode
ser entendida como o dever dos crentes de dar suporte àqueles
que estão curvados sob algum fardo excessivo. Porém, o contexto
impõe a noção de aturar pessoas que, de alguma forma,
incomodam. Aliás, o verbo usado aqui (ἀνέχομαι) aparece, por
exemplo, em Mateus 17.17 e 2Coríntios 11.1, onde esse último
sentido é evidente. Numa comun idade como a igreja, em que
pessoas de tão diferentes idades, origens, culturas e formações
são convidadas a conviver em plena harmonia, a disposição de
aguentar costumes, concepções, atitudes, palavras e gestos que
irritam é fundamental para que o grupo n ão se desfaça em
discórdias nem se desvie do seu alvo primordial envolvendo -se
continuamente em querelas.
Suportar um irmão, porém, terá pouco valor se mágoas forem
nutridas no coração de quem se sente ofendido ou incomodado.
Por isso, Paulo conecta ao dever de suportar a decisiva
necessidade de perdoar (χαρίζομαι). No original, esse verbo sugere
a ação de agraciar alguém, mostrando generosidade (Rm 8.32).
Aplica-se, assim, ao homem que cancela uma dívida (Lc 7.42),
sendo clara, portanto, a noção de perdão que o termo encerra (2Co
2.10; 12.13). De fato, na maior parte das vezes que esse verbo
aparece no NT, a ideia presente é a de perdoar.
De acordo com o texto, os crentes devem perdoar as queixas que
porventura tenham uns contra os outros. Queixas (μομφή) são
reclamações, censuras e recriminações. Havendo perdão, críticas
assim tendem a desaparecer e a igreja passa a desfrutar de um
ambiente leve e alegre.
O versículo termina ensinando que o modelo que deve ser imitado
na concessão do perdão é aquele demonstrado pelo próprio Senhor
no seu trato com os salvos. Ora, o perdão do Senhor é gratuito,
completo e sem reservas (2.13 -14), sendo nesses aspectos que
deve ser imitado. Além disso, o perdão de Cristo redundou na
restauração completa do seu relacio namento conosco outrora
quebrado (1.21-22; Rm 5.10). A partir daí, talvez seja correto dizer
que a maior prova de perdão seja a reconstrução arriscada da
amizade.
A virtude cristã soberana, sob cuja sombra todas as demais se
desenvolvem e crescem, é, sem d úvida, o amor. Por isso, Paulo
exorta os colossenses a situar o amor “acima de tudo” (ἐπὶ πᾶσιν
δὲ τούτοις. Lit. acima de todas essas coisas ). Considerando a
dinâmica despojar/revestir presente no contexto imediato (vv 8 -12),
a expressão com que o apóstolo inicia o v. 14 sugere que a capa
ou o sobretudo que deve cobrir todas as demais peças da
vestimenta do cristão é o amor. Debaixo dessa virtude todas as
demais ficam protegidas e o crente se apresenta completamente
trajado, envergando a peça principal do g uarda-roupas de Deus.
A razão porque o amor deve ocupar um lugar tão notável está no
fato dele ser o “elo perfeito” (σύνδεσμοςτῆς τελειότητος) ou,
literalmente, o “vínculo da perfeição” (ARA). A palavra traduzida
aqui como elo ou vínculo se refere a algo com que se amarra ou
conecta uma coisa à outra, prendendo-as juntas fortemente. Pode
ser um laço (At 8.23) ou mesmo os ligamentos que unem os
membros do corpo (2.19) [ 96]. A ideia de unidade é, portanto, muito
clara aqui. Paulo está dizendo que o amor é o fator que gera
perfeita coesão entre os crentes. Sendo essa virtude o laço ideal
que junta as partes plenamente, sem ela a união, obviamente, será
frouxa. Ora, o barco mal amarrad o logo se solta do cais e se afasta

96 A mesma palavra aparece em Efésios 4.3. Ali, porém, o vínculo que mantém a
“unidade do Espírito” é a paz. Contudo, o mesmo trecho mostra que a paz só
existirá se os crentes se suportarem mutuamente em amor (Ef 4.2).
para longe. Da mesma forma o cristão que não aperta o nó do
amor, em breve se afasta do seu irmão, não importa quão leve seja
a agito das ondas que se abatam contra ele.
No conjunto de admoestações relativas à vida crist ã em
comunidade, Paulo acrescenta o ensino de que a paz de Cristo
deve ser o juiz no coração de cada um (15). A paz de Cristo (ἡ
εἰρήνη τοῦ Χριστοῦ) é, nesse contexto, a paz que o Senhor
conquistou para a igreja e que ele quer que seus servos cultivem
entre si (Ef 2.14-18).
Essa paz obtida e ordenada por Cristo deve servir como árbitro. O
substantivo “juiz” não aparece no texto grego. O que se tem ali é
um verbo (βραβεύω), cujo significado básico é atuar como árbitro,
o que envolve decidir, controlar e dete rminar. Assim, Paulo está
dizendo que o que deve determinar os rumos da caminhada cristã
conjunta é a paz que Cristo quer que reine entre seus servos. Essa
paz tem que controlar todas as reações, deve apontar como o
crente tem que agir quando provocado ou ofendido, deve impor
suas decisões quando o irmão ferido e cansado está oscilando
entre perdoar ou não, entre suportar ou não, entre amar ou não.
Paulo está, assim, através de um recurso criativo de linguagem,
personificando a paz de Cristo e mostrando a i mportância de
investi-la na função de juiz para que presida o andamento da
igreja. Como magistrado revestido de autoridade, a paz de Cristo
determinará o modo como as partes devem se conduzir ao longo do
difícil processo de convivência e, principalmente, c olocará fim aos
conflitos que surgirem dentro da comunidade dos santos.
Esse árbitro, porém, não estará diante das partes. Seu lugar é o
interior delas. De fato, os crentes devem constituir tal juiz “em seu
coração”. Então, a paz de Cristo será um magistra do íntimo,
sentado na cátedra da alma, revestido de poder para ordenar, a
partir da consciência de cada crente, como ele deve agir no trato
com o outro. Em termos práticos, essa orientação pode ser
traduzida da seguinte maneira: sempre que houver um confli to de
relacionamento dentro da igreja (ou mesmo a possibilidade de um
conflito), as partes devem, interiormente, se curvar diante das
determinações da meritíssima paz, fazendo tudo o que porventura
seja útil à restauração ou preservação da amizade e do amb iente
leve, alegre e livre de perturbações (Rm 14.19; Ef 4.3; 2Pe 3.14).
O apóstolo expõe a razão principal pela qual a paz de Cristo deve
ocupar a função de árbitro no coração dos crentes. Segundo Paulo,
os santos “foram chamados” para viver em paz como parte de um
só corpo (1.18, 24; 2.19). De fato, um organismo saudável tem
todas as suas partes em harmonia, inexistindo qualquer grau de
desacordo entre elas (Rm 12.4-5; 1Co 12.12-27; Ef 2.16). Portanto,
sendo inseridos no corpo de Cristo que é a Igreja, os crentes foram
vocacionados para viver em paz (1Co 7.15). Evidentemente, os que
dentre eles nutrem antipatias, barreiras, contendas, discórdias e
mágoas podem ser contados como ministros desleais a essa santa
vocação.
O v. 15 termina dizendo que os cristão s devem ser agradecidos
(εὐχάριστοι). Considerando que Paulo está pensando em termos de
comunidade, isso significa que a igreja não pode se distinguir como
um grupo de murmuradores. Gente descontente que vive
reclamando forma o contexto ideal para brigas. Por isso, o
Apóstolo incentiva o cristão a nutrir um espírito de gratidão a Deus.
Os vv. 16-17 repetem essa ordem. Aqui, porém, a gratidão está
ligada ao fato de pertencer ao corpo de Cristo.
Além de pacífico e harmonioso, o relacionamento entre os crentes
de uma determinada igreja local deve ser construtivo. O convívio
dos cristãos deve produzir efeitos didáticos. Enquanto andam lado
a lado eles devem se instruir e se aconselhar mutuamente (16).
Porém, para que isso aconteça é necessário que a Palavra de
Cristo habite ricamente em cada um (Rm 15.14).
A expressão “palavra de Cristo” (Ὁ λόγος τοῦ Χριστοῦ) não
aparece em nenhuma outra parte do Novo Testamento. Isso
evidencia a preocupação que Paulo tem aqui de apresentar a
pessoa de Cristo como Senhor absoluto da igreja, promovendo,
assim, devoção exclusiva a ele. É fácil compreender essa
preocupação do apóstolo: sendo certo que a igreja de Colossos
estava sendo ameaçada pelo gnosticismo incipiente que reduzia
Cristo a somente mais um entre diversos anjos (vej a-se Aspectos
Introdutórios), Paulo se preocupa, ao longo de toda a epístola, em
inculcar nos seus leitores a realidade da supremacia de Cristo, o
criador dos anjos, a quem a igreja deve total obediência.
A “palavra de Cristo” é o Evangelho, isto é, a mensagem centrada
em Cristo, pela qual os colossenses haviam sido chamados à fé
(1.5-6). Em outros lugares, essa mensagem é chamada de “palavra
de Deus’ (At 4.31; 6.7; 8.14; 1Ts 2.13; 2Tm 2.9) ou “palavra do
Senhor” (At 8.25; 13.49; 1Ts 1.8; 2Ts 3.1). A singular expressão
“palavra de Cristo” também abrange a palavra pronunciada por
Cristo, ou seja, os ensinos gerais de Jesus transmitidos pelos
apóstolos (Jo 14.26; 16.13; At 20.35; 1Co 7.10; 11.23; 2Co 13.3; Gl
1.11-12; 1Ts 4.15; Hb 2.3). Em todos os sentidos que a expressão
englobe, o fato é que essa palavra deve habitar ricamente no
crente (ἐνοικείτω ἐν ὑμῖν πλουσίως), ou seja, tem que estar viva
nele, enchendo de maneira completa sua mente e coração, de
forma que o cristão seja amplamente influenciado por ela (1Jo
2.14) e a faça transbordar para os outros.
O texto paralelo de Efésios 5.18 -20 indica que a plenitude do
Espírito Santo no crente está fortemente associada com a
habitação da palavra de Cristo. Com ef eito, uma breve comparação
entre o versículo em análise e o texto de Efésios mostra que
ambos são substancialmente iguais, o que permite que seja
estabelecida uma grande correspondência entre ser controlado
pelo Espírito Santo e ser “invadido” no íntimo pela mensagem de
Cristo e seus ensinos. É, portanto, como se Paulo, nos dois
trechos, estivesse falando do mesmo fenômeno, mas usando
linguagem e figuras diferentes. Sendo esse o caso, estar cheio do
Espírito Santo e ser habitado pela palavra de Cristo são,
basicamente, a mesma coisa.
Os crentes em quem a palavra de Cristo habitar estarão aptos para
se ensinar e aconselhar mutuamente. Ensinar (διδάσκω) é dar
instrução, expondo e explicando doutrinas ao outro; já aconselhar
(νουθετέω) é exortar, alertar ou adm oestar alguém. O sentido
dominante é o de corrigir (1Co 4.14; 1Ts 5.14). Ora, qualquer
tentativa de realizar essas tarefas sem o uso da palavra de Cristo
redundará na mera exposição de opiniões pessoais ou na
apresentação de filosofias não cristãs e heréti cas. Infelizmente,
nos dias atuais, muitos pastores, orientadores espirituais e mesmo
crentes comuns têm agido assim. O resultado é a orientação vazia
de verdade, o conselho estéril de bons frutos e o ensino que
preserva e até induz ao erro. Isso não é de se estranhar. A palavra
de Cristo é luz (Sl 119.105; 2Pe 1.19). Se os cristãos de nosso
tempo, especialmente os mestres da igreja, continuarem a conduzir
o povo pelo vale escuro deste mundo com tochas apagadas, o
resultado será sempre o desvio, o tropeço e a queda (Is 8.19-20;
Mt 15.14).
Paulo diz que o ensino e o conselho devem ser ministrados com
toda sabedoria (σοφία). A palavra usada aqui indica conhecimento
amplo e entendimento claro, o que mostra que o crente não deve
se entregar ao ensino e ao consel ho tendo apenas noções básicas
da verdade (Veja-se tb. 1.28). O termo “sabedoria”, porém, tem
sentidos mais abrangentes. A palavra indica também habilidade,
prudência, tato e seriedade. Trata -se, portanto, da virtude de quem
tem bom juízo e clara percepção das coisas, sabendo agir de modo
adequado na hora adequada [97].
Considerando esse último sentido, o destaque que Paulo dá à
sabedoria é necessário porque, de fato, a instrução e a correção
não podem ser realizadas somente com um conteúdo bíblico. É
preciso também que sejam ministradas de modo bíblico. Sim, pois
se o crente apresentar a palavra de Cristo a seu irmão sem ser
sábio na maneira como o faz, estará, ele próprio, desobedecendo
essa mesma palavra. Nesse caso, dificilmente obterá resultados
positivos em seu trabalho. Antes, construirá barreiras entre si e
aqueles a quem tenta ministrar, criando resistências no coração
dos que o escutam. Ora, conforme o ensino neotestamentário, a
instrução e o conselho devem ser realizados com mansidão (2Ts
3.15; 2Tm 2.24-25), paciência (2Tm 4.2), seriedade (Tt 2.7),
convicção (Tt 2.15), temor (Jd 22 -23) e, algumas vezes, quando as
circunstâncias o exigirem, severa firmeza (1Co 4.19 -21). Esse é o
modo sábio como o crente deve ministrar a palavra de Cristo aos
seus irmãos na fé.
O versículo 16 termina orientando os crentes a cantar hinos a
Deus. Segundo Paulo, a comunidade cristã, ao realizar a tarefa
mútua de ensino e correção, deve fazer isso também através do
louvor, num ambiente marcado pela gratidão sincera a Deus,
expressa no entoar de “salmos, hinos e cânticos espirituais ”. Não
há grandes distinções entre esses três itens. Os salmos (ψαλμοῖς)
são versos poéticos com conteúdo piedoso (o termo aqui não se
refere necessariamente aos salmos do AT). Hinos (ὕμνοις) são
canções sacras de louvor e celebração. Cânticos espirituais (ᾠδαῖς
πνευματικαῖς) tem sentido abrangente e engloba tanto poemas
como canções resultantes do impulso do Espírito Santo sobre o
adorador.
O contexto da passagem deixa claro que o uso dessas cançõe s na
liturgia cristã está associado não somente ao louvor em si, mas
também à instrução e à correção. Há indícios de que em Colossos
os falsos mestres do gnosticismo incipiente expunham uma falsa
espiritualidade manifesta em transes e êxtases emocionais (2 .18).
Paulo mostra aqui que a experiência cristã madura está longe

97 Certamente Paulo usa palavra “sabedoria” também para atacar a heresia, cujos
mestres tentavam transmitir aos outros a falsa ideia de que eram sábios (Veja-se
2.23).
disso. Mesmo nos momentos de maior elevação espiritual, quando
a alma, estimulada pelo Espírito Santo, se volta inteiramente para
o louvor e a gratidão a Deus, o crente enuncia cânticos rac ionais e
instrutivos, preocupando-se, inclusive, com a edificação, ensino e
correção de seus irmãos (Ef 5.18 -20). Nesse aspecto a igreja dos
dias atuais tem muito que corrigir. De início, tem que aprender que
os cânticos entoados durante o culto devem ser veículos de ensino
da sã doutrina e não apenas meios de enlevo emocional ou simples
fontes de deleite musical para todos os gostos.
A expressão “salmos, hinos e cânticos espirituais ”, em suas duas
ocorrências (aqui e em Ef 5.18 -20), aparece associada à gratidão.
Com efeito, nesse último aspecto, Paulo instrui expressamente os
colossenses a cantarem a Deus “com gratidão” (χάρις). O sentido
do termo usado aqui é amplo e engloba, além de gratidão, alegria,
prazer, deleite, doçura e boa vontade. O fato é que a reunião dos
crentes precisa sempre primar pela instrução, mas nunca deve
deixar de ser leve, bonita, feliz e restauradora, com cada indivíduo
contribuindo para a construção dessa atmosfera ao manter -se
consciente de que a participação na comunidade dos ho mens
novos (3.10) é uma dádiva maravilhosa de Deus pela qual deverá
eternamente dizer “muito obrigado”.
A seção em análise termina com uma admoestação aplicável a
quaisquer manifestações da conduta humana. O Apóstolo diz “Tudo
o que fizerem” e, em seguida, circunscreve a totalidade do
comportamento humano dentro dos limites de duas esferas:
palavras e ações. Usando palavras o homem discursa, conversa,
escreve, canta e ora. No campo das ações são inumeráveis os
exemplos do que o ser humano tem ao seu alcanc e realizar. Seja
como for, uma só regra deve reger tanto as palavras como os atos
dos crentes: façam tudo “em nome do Senhor Jesus” (17). Fazer
algo em nome de Jesus significa atuar como representante dele,
agindo sob sua autoridade. De fato, o crente carr ega consigo o
dever de se comportar como um emissário do Senhor nos mínimos
detalhes de sua caminhada aqui, sob o risco de desonrar o Rei
diante do mundo e dos seus irmãos.
A última frase do versículo 17 é “... dando por meio dele graças a
Deus Pai”. Paulo, no v. 16, já incitou os crentes a uma liturgia
caracterizada por expressões de gratidão. Agora ele expande essa
admoestação, ensinando que o cristão deve dar graças ao Pai em
meio a tudo o que diz ou faz (1Ts 5.16 -18). Paulo certamente
agrega essa frase à ordem inicial do v. 17 porque muitas vezes o
homem é instado o fazer algo por força do dever e não da vontade
(Cf. vv. 18-22). Nesses momentos, reclamações e murmurações
são comuns, de modo que tanto as palavras como as ações do
crente deixam de refletir a conduta própria de alguém que faz tudo
“em nome do Senhor Jesus”. Como representante de Cristo, porém,
o cristão deve repudiar essas expressões de descontentamento e
inconformismo. Na verdade, reações assim são características de
pessoas conduzidas por uma mente carnal. Aliás, elas marcavam
exatamente a conduta dos mestres da falsa gnose tão combatida
por Paulo nessa epístola (Jd 16).
Observe-se, finalmente, que as graças rendidas pelo crente a Deus
Pai só podem ser oferecidas “por meio dele” (διʼ αὐτοῦ). Com
efeito, Cristo é o único Mediador que torna possível a aproximação
entre o homem e Deus (Ef 2.17-18; 1Tm 2.5; Hb 8.6; 9.15; 12.24).
O texto mostra, portanto, que o Senhor, através de sua obra
redentora e seu ministério de intercessão (Rm 8.34; Hb 7.2 5; 1Jo
2.1), não somente viabiliza as súplicas que o crente faz, mas
também abre o acesso para suas ações de graça, de modo que
elas cheguem ao céu como sacrifícios de aroma suave (Hb 13.15;
1Pe 2.5).
Colossenses 3.18-4.1 - A Casa dos Homens Novos

A heresia que se propagava em Colossos,


com sua tônica numa suposta elite espiritual,
estimulava o orgulho, a postura arrogante
diante de qualquer um que não pertencesse
ao grupo de homens “espirituais” e que não
tivesse acesso ao pleno conhecimento do que
os hereges entendiam ser os mistérios
divinos. Os proponentes dessas doutrinas tentavam passar uma
imagem de humildade diante de todos, mas Paulo os desmascarou
na Carta aos Colossenses, dizendo que sua modéstia era apenas
aparente – um conjunto de práticas ascéticas que não servia para
nada (2.18, 23).
O fato é que, propagando desvios daquela natureza, os mestres do
gnosticismo nascente certamente estimulavam em seus seguidores
um insuportável sentimento de superioridade. Ora, é notório que
pessoas que nutrem esses sentimentos são orgulhosas, não se
sujeitam a ninguém, antes desprezam e humilham os outros.
Especialmente aqueles com quem convivem têm que enfrentar
manifestações diárias de rebeldia e aspereza, além de assistir
constantes brigas e práticas injustas. Vê-se, assim, que da heresia
nasce o orgulho e do orgulho vêm as discórdias (1Tm 6.3 -5).
Evidentemente, os sinais malignos da soberba são sentidos
primeiramente em casa. Por isso, depois de ensinar como os
crentes devem agir na igreja, no convívio c om os irmãos (3.12-17),
Paulo se volta para o lar cristão, admoestando esposas, maridos,
filhos e pais a nutrir entre si uma postura condizente com a
verdade que abraçaram. Naqueles dias, a casa de um homem
abrangia também seus escravos. Assim, o Apóstolo ensina ainda
como deveria ser a relação entre servos e senhores, estimulando a
obediência, a justiça e o respeito mútuo.
Voltando-se, então, para a casa do crente, Paulo dirige -se
inicialmente às esposas. As mulheres eram alvos especiais dos
falsos mestres que se aproximavam delas, inclusive, na expectativa
de obter favores sexuais (2Tm 3.6) [ 98]. Paulo sabia que se as

98 Irineu († c. 202), expondo os traços da heresia gnóstica reinante na Gália no


século II, informa que alguns de seus mestres seduziam e corrompiam mulheres
secretamente, outros mentiam dizendo que as amantes com quem viviam eram, na
esposas dessem ouvidos às fabulas propostas pelos hereges, elas
não somente ficariam expostas aos assédios de homens lascivos,
mas também olhariam para seus maridos crentes como pessoas
inferiores, que não pertenciam à classe superior dos detentores da
gnose. Isso as levaria a desprezá -los, chegando talvez a se opor à
sua liderança.
Uma atitude de sujeição é então requerida das esposas cristãs.
Para admoestá-las nesse sentido, Paulo usa um verbo (ὑποτάσσω)
cujo sentido é obedecer [ 99], colocar-se sob o controle de outrem,
acolhendo seus conselhos e direção. Isso tudo implica uma
disposição voluntária em ceder e cooperar, rendendo -se ao
comando de um líder. Essa ordem dirigida às mulheres casadas é
repetida nos mesmos termos por Paulo em Efésios 5.22 e Tito 2.4 -
5. Também Pedro a enuncia (1Pe 3.1,5 -6), sendo certo que suas
raízes remontam aos tempos do Éden (Gn 3.16), jamais devendo
ser entendida como uma evidência da inferioridade da mulher [ 100],
mas como uma expressão da forma que Deus escolheu ordenar a
vida em família.
O Apóstolo explica que a sujeição ao marido deve existir por parte
da esposa porque isso “convém no Senhor” (ARA). A expressão
constante do texto grego é ἀνῆκεν ἐν κυρίῳ. O verbo que aqui
aparece (ἀνήκω) ocorre somente mais duas vezes no Novo
Testamento (Ef 5.4; Fm 8) e significa ser conveniente, ser próprio
de, combinar com ou ser devido a alguém. O que Paulo, portanto,
está dizendo é que a submissão ao marido é algo próprio da
mulher que pertence ao Senhor, uma atitude que combina com a
posição espiritual ocupada por ela. Note -se que o verbo carrega
também o sentido de dever. Isso mostra ainda qu e a sujeição aqui

verdade, irmãs de sangue, outros ainda separavam algumas esposas de seus


maridos, passando a conviver publicamente com elas (IRINEU DE LIÃO. Contra as
heresias I, 6:3).

99 A composição dessa palavra evoca um sentido militar, com a ideia básica de


“colocar-se em ordem sob alguém”, como uma tropa que se organiza sob o
comando de um general. Isso, é claro, não significa que o marido crente tem o
direito de tratar a esposa como um comandante trata seus soldados. Porém,
permanece clara na simples composição do termo a noção de hierarquia funcional
tão importante para o bom desenvolvimento de qualquer núcleo social.

100 Deve ser lembrado que o princípio da hierarquia funcional está presente no
próprio Deus, cuja tri-pessoalidade se processa também numa dinâmica de
sujeição (Jo 16.13-15; 1Co 11.3; 15.28).
requerida não é opcional. Trata -se de um ideal que a mulher crente
precisa alcançar, se quiser de fato agir como alguém que pertence
a Cristo.
É possível que Paulo, ao mencionar nesse ponto o fato da esposa
cristã estar “no Senhor”, tenha também como propósito trazer à
lembrança de seus leitores a realidade de que Cristo é o Soberano
supremo, estando toda a igreja dentro da esfera de sua influência e
absoluta autoridade. Como é sabido, a heresia que grassava na
região de Colossos reduzia C risto a uma mera entidade angélica
entre muitas outras (2.18) e, assim, desencorajava a devoção e
obediência exclusivas a ele. Ao destacar que o crente está “no
Senhor”, Paulo evoca a noção, oposta ao pensamento gnóstico, de
que só Cristo tem o domínio sob re o seu povo, devendo cada
crente devotar-se unicamente a ele e andar, fora ou dentro de
casa, como alguém que vive sob seu senhorio.
A admoestação seguinte é dirigida aos maridos. Paulo diz que eles
devem amar “cada um a sua mulher” (19). O verbo usado aqui
(ἀγαπάω) está no Imperativo Ativo, denotando, assim, o dever de
respeitar, estimar e considerar; tudo isso aquecido pela mais forte
afeição. Agapaō também denota a atitude compassiva e terna que
deseja o bem do outro (Mc 10.21) e que trabalha para que esse
bem seja alcançado, mesmo quando não é correspondido à altura
(2Co 12.15; Ef 5.25-30). A amplitude da dimensão vivencial de
agapaō pode também ser percebida quando se observa o seu uso
aplicado a escravos e discípulos. Nesses casos, o verbo é usado
para descrever aquele que serve com fidelidade (Mt 6.24) e
permanece ao lado mesmo durante a provação (Tg 1.12).
Note-se, desse modo, que o amor devido pelo marido crente à
esposa não se perfaz nos limites da alma ou da mente. Não é um
simples impulso interior ou um incerto sentimento romântico
desbotado pela ação do tempo e encerrado em algum canto do
coração. O amor de que Paulo fala ultrapassa essas fronteiras e se
perfaz no trato do dia-a-dia, numa disposição constante,
desprendida, humilde e paciente de aperfeiçoar, alegrar, proteger e
honrar o outro.
Em Colossos, a heresia que ameaçava a igreja ia na contramão
disso tudo, pois ao envenenar os homens com a mentira de que
podiam pertencer à elite dos detentores da gnose, impingia neles
as sementes do orgulho e do consequente desprezo pelos outros,
inclusive por suas esposas. É que a falsa doutrina e a apostasia
não têm limites em seu poder de destruição. Quem as acolhe
bombardeia a igreja, devasta a própria casa e, muitas vezes, se
lança sobre espadas, trazendo terríveis dores para si mesmo (1Tm
6.10, in fine).
O v. 19 termina com uma admoestação que destaca um dos modos
como o amor devido à esposa se comporta. Paulo diz “não a tratem
com amargura”. Tratar com amargura é tradução de um verbo
apenas (πικραίνω), cujo significado básico é tornar amargo. Em
Apocalipse, aquilo que é tornado amargo provoca mal-estar e até
mata quando ingerido (Ap 8.11; 10.9 -10). Ao usar esse verbo,
portanto, Paulo está dizendo figurativamente aos maridos crentes
que eles não devem provocar mal-estar nas esposas através da
forma como as tratam (1Pe 3.7). Ironia, aspereza, grosseria,
desprezo e irritação são alguns ingredientes do veneno amargo
que muitos homens servem à sua esposa, às vezes até
publicamente. O uso deles, porém, é aqui vedado ao marido
cristão, uma vez que compõem a antítese do amor verdadeiro.
Ao concluir as considerações referentes ao que Paulo ensina sobre
o relacionamento entre maridos e esposas, cabe aqui uma breve
digressão: note-se que os versos 18 e 19 pressupõem uma relação
marital monogâmica e heterossexual. Por mais óbvio que pareça, é
preciso reafirmar às pessoas do mundo atual que o cristianismo só
recepciona o casamento nesses moldes. Ao falar sobre o
relacionamento entre os cônjuges, nenhum outro modelo transita
pela mente do Apóstolo.
É interessante notar que os pares mencionados pelo Apóstolo no
texto em análise são sempre apresentados numa sequência do
menor para o maior (esposa-marido; filhos-pais; escravos-
senhores). Certamente isso não ocorre por acaso. É possível que
Paulo queira, com essa dinâmica, dar certa primazia ao tema da
sujeição que era tão negligenciado pelos falsos mestres por causa
do orgulho que nutriam, uma vez que se consideravam superiores a
todos na esfera espiritual. Tomado por essa preocupação, o
Apóstolo passa agora a admoestar brevemente os filhos,
ensinando-lhes a obediência (20).
O dever dos filhos de obedecer aos pais é tema comum nas
páginas da Bíblia. Encontra-se implícito na ordem de honrar
presente em Êxodo 20.12 [ 101]. A gravidade do desprezo a essa

101 Na Bíblia, “honrar” encerra um conceito que ultrapassa o ato de obedecer. Na


prática, o homem que honra alguém vê a pessoa honrada como merecedora de sua
ordem é percebida na pena que podia ser aplicada aos infratores.
Com efeito, em Deuteronômio 21.18-21 há previsão legal para
punir com a morte o filho desobediente. Acrescente -se ainda que,
em 1 Samuel 2.22-25, o descaso em face da repreensão do pai é
contado entre os terríveis pecados dos filhos de Eli. Em
contrapartida, o livro de Provérbios ensina que a sabedoria de um
jovem é medida por sua disposição em ouvir a voz dos pais (Pv
1.8; 13.1), dando-lhes seu coração (Pv 23.26). De acordo com as
palavras do sábio, o resultado dessa disposição será longevidade,
paz e prosperidade (Pv 3.1-2; 4.10; 6.20-23).
No Novo Testamento, Lucas, anelando destacar a sabedoria e o
caráter santo de Jesus desde os tempos de sua meninice, observa
que ele era um filho obediente (Lc 2.51). Paulo, por sua vez, ao
relacionar os pecados cometidos pelos pagão s mais depravados e
pelos falsos mestres que sempre resistem à verdade, insere em
suas listas a desobediência aos pais (Rm 1.29 -31; 2Tm 3.2,8).
Essa rebeldia, segundo o ensino do próprio Cristo, pode chegar a
graus extremos de violência nos casos de oposiç ão por causa do
evangelho (Mt 10.21). O Mestre, porém, mostra que o filho
obstinado pode também se aproveitar dos desvios de uma falsa
doutrina para, sob a capa da piedade hipócrita, desprezar
totalmente os seus genitores (Mc 7.9 -13). Ora, sendo um pecado
que desestrutura a família, Paulo ensina que os homens que têm
filhos insubordinados não podem exercer o ministério pastoral (Tt
1.6) já que essa tarefa, assim como a função diaconal, só pode ser
realizada por quem governa bem a sua própria casa, mantendo os
filhos em sujeição (1Tm 3.4,12).
No texto em análise, Paulo ensina que os filhos devem render aos
pais obediência completa. Ele diz: “Filhos, obedeçam a seus pais
em tudo...”. Evidentemente, o apóstolo contempla aqui a
obediência integral naquilo que De us aprova. Nenhum filho está
obrigado pela Escritura a obedecer às ordens iníquas de seus pais
(Ez 20.18). Aliás, note-se na segunda parte do v. 20 que Paulo
está falando de uma obediência que “agrada ao Senhor”.
Também é preciso notar que, no texto parale lo de Efésios 6.1, o
Apóstolo apresenta o mesmo ensino tendo em vista possivelmente
a obediência a pais crentes (cf. a expressão “pais no Senhor”

ajuda material (1Tm 5.3-4;17-18). Assim, o filho que honra os pais é aquele que,
entre outras coisas, lhes oferece provisão para a vida (Mt 15.5-6).
presente na maioria dos manuscritos), de quem se espera a
emissão de ordens
Justas [102]. Dada a grande semelhança entre as epístolas aos
Colossenses e aos
Efésios, é provável que esse seja também o caso aqui. Isso não
significa, contudo, que os filhos crentes de pais incrédulos têm
licença para desobedecê-los. Significa apenas que, no texto em
análise, é possível que Paulo não tenha em mente esse tipo de
relação. Seja como for, a regra geral é que todos os pais devem
ser honrados e obedecidos, sendo aceitável a resistência somente
nos casos em que suas ordens estejam em conflito aberto com a
Palavra de Deus [103].
A próxima admoestação de Paulo é dirigida aos pais. Sua
autoridade sobre os filhos não lhes confere apenas prerrogativas e
privilégios. Eles também têm sérias responsabilidades. Paulo as
resume num único comando: “Pais, não irritem seus filhos ” (21). O
verbo traduzido como “irritar” (ἐρεθίζω) aparece somente duas
vezes no NT, aqui e em 2 Coríntios 9.2. Seu significado básico é
“provocar” ou “incitar o rancor”. Em 2 Coríntios 9.2, Paulo usa o
termo num sentido positivo (estimular a ação). No texto em análise ,
porém, é óbvio o emprego do verbo em seu significado mais
comum de estimular a ira de alguém.
Na prática, os pais que provocam os filhos são aqueles que os
predispõem à rivalidade, criando contendas e inimizades com eles.
São os pais que adotam severidad e excessiva, tratam com
aspereza, aplicam castigos pesados demais, tecem críticas
constantes, humilham, zombam, faltam com a palavra, mentem e
agem com parcialidade, levando os filhos a se sentirem
injustiçados. São também aqueles que tratam os filhos com
indiferença, que nunca os corrigem e que, assim, os fazem pensar

102 A ordem “Filhos, obedeçam a seus pais no Senhor”, constante de Efésios 6.1,
também pode significar “obedeçam seus pais porque vocês pertencem ao Senhor”.

103 A Bíblia também não fala da idade limite para a obediência dos filhos aos
pais. Textos como Deuteronômio 21.18-21 e Tito 1.6 sugerem que a sujeição filial
é exigência que, em algum grau, alcança também a fase adulta. Não há dúvida,
porém, que a emancipação ocorre quando o filho se casa (Gn 2.24), ressalvado o
dever perene de honrar seus genitores.
que não são importantes (Pv 13.24) [ 104]. Todas essas condutas e
outras semelhantes provocam decepção, mágoa e rancor. Em
Efésios 6.4, o oposto disso é criar os filhos “segundo a instrução e
o conselho do Senhor”. Isso significa oferecer-lhes uma forma de
educação marcada pelo amor, pela paz, pela amizade, pela
decência, pela justiça e pela verdade.
Paulo ensina que os pais não devem nutrir ressentimentos nos
filhos a fim de que eles “não desanimem”. Desanimar (ἀθυμέω) é
perder o entusiasmo, a coragem ou a paixão. O filho desanimado é
aquele cujo coração deixou de pulsar fortemente, aquele cujo
espírito está quebrado. É a pessoa que perdeu o ímpeto e a
disposição para prosseguir em tudo o que fa z. É o que segue
adiante, mas sem motivação ou força de vontade. Por causa dos
ressentimentos que tem dos pais, da solidão que experimenta em
relação a eles, do desamparo de que se sente vítima e das
decepções que provou caminha desapontado e sem ânimo alg um.
Nele não existe mais disposição para entender a mente dos pais.
Trata-se de um filho infeliz, meio morto por dentro [ 105].
O último par a quem Paulo se dirige são os servos e os senhores
(3.22-4.1). Nos dias do Novo Testamento, a escravidão fazia parte
da realidade social. A existência de cerca de quatrocentos mil
escravos em Roma durante o reinado de Trajano (98 -117) dá
indícios de que, no século I, naquela cidade, um terço da
população estava sob o jugo da servidão [ 106].
Na época de Paulo, alguém se tornava escravo, basicamente, por
seis meios: sendo capturado pelo inimigo nas guerras do Império
Romano, sendo vendido por mercadores de escravos que
sequestravam pessoas com esse fim, nascendo de pais escravos,
em pagamento de dívidas, em punição pela prática de crimes

104 Na Bíblia, a falta de correção por parte dos pais gera prejuízos ainda maiores.
Geralmente, o filho sem disciplina se transforma num homem de mau caráter
(1Sm 3.12-13; 1Rs 1.5-6; Pv 29.15).

105 A experiência mostra que filhos assim tendem a se “vingar” dos pais
inicialmente através de uma secreta conduta desonrosa. Mais tarde, via de regra,
a rebelião eclode de forma assumida e aberta.

106 Para uma análise mais completa da escravidão no Império Romano no Século
I, veja-se MELICK, R. R. The New American Commentary (316): Philippians,
Colossians, Philemon. Edição eletrônica. Logos Library System. Nashville:
Broadman & Holman Publishers, 2001. vol 32.
(especialmente furto ou roubo), e por vontade própria (movido,
geralmente, por situações de desespero).
A princípio, a maior parte dos escravos foi composta por pessoas
rudes – bárbaros capturados em batalha pelos soldados romanos.
Com o avanço das conquistas do Império, porém, muitos homens
de boa formação e dotados de grandes habilidades intelectuais
foram escravizados. A esse tipo de servo os senh ores davam
funções mais nobres do que meros serviços braçais. Por isso, nos
tempos de Paulo, muitos escravos ocupavam altas posições nas
casas em que serviam, atuando como administradores,
professores, médicos e até como líderes em determinadas áreas.
Esses escravos tinham seu valor reconhecido por seus senhores e
geralmente eram muito bem tratados.
É aos escravos que o Apóstolo dirige a admoestação mais longa
dessa seção da epístola. Isso pode ser um indício de que na igreja
de Colossos havia um número con siderável de escravos, mas
também pode indicar a existência de problemas mais urgentes no
meio desse grupo. Deve-se lembrar que Onésimo, o escravo
fugitivo que se converteu com a pregação de Paulo em Roma,
pertencia a Filemom, um membro da igreja de Coloss os (Fm 8-17)
[107]. Essa fuga bem-sucedida de Onésimo que, além de fugir,
talvez tenha furtado dinheiro de Filemom (Fm 18), pode ter
encorajado os escravos crentes a resistir à autoridade de seus
senhores, praticando outras formas de rebeldia.
Além disso, deve-se destacar que os discursos dos falsos mestres
tinham reduzido Cristo a apenas um anjo entre muitos, forçando
Paulo a reafirmar o exclusivo senhorio de Jesus sobre os crentes.
Essa ênfase na supremacia absoluta de Cristo podia ser mal
interpretada por pessoas que se encontravam em posição de
subordinação, como as esposas, os filhos e os escravos. Entre
esses, os escravos eram os que mais sentiam o jugo da servidão,
tornando-se, por isso, os alvos das admoestações mais extensas
de Paulo.
Mais proveitoso, porém, do que detectar os motivos que fizeram o
Apóstolo escrever em dobro aos servos, é examinar a admoestação
em si, observando os princípios que apresenta. O texto diz:

107 A Epístola a Filemom, sendo uma das epístolas da prisão, foi escrita ao
mesmo tempo que Efésios, Filipenses e Colossenses. Uma vez que Filemom
morava em Colossos (compare Fm 2 e Cl 4.17), certamente a epístola a ele
endereçada foi enviada junto com a Epístola aos Colossenses (Cl 4.9).
“Escravos, obedeçam em tudo a seus senhores terrenos ” (22), ou,
numa tradução mais literal, seus “senhores segundo a carne” (κατὰ
σάρκα). Essa expressão denota uma autoridade exercida na esfera
física ou exterior. Paulo ordena obediência completa a esse tipo de
autoridade, mostrando que o senhorio de Cristo não a invalida. Na
verdade, o Apóstolo vai além e diz no mesmo v. 22 que essa
obediência deve ser rendida por temor ao Senhor. Fica, assim,
implícito que a sujeição dos servos a seus senhores é ordenada
pelo próprio Cristo que se dispõe a disciplinar os escravos crentes
que se rebelam.
Nesse ponto deve ser ressaltado que o cristianismo bíblico nunca
se afigura como um movimento revoltoso, tentando, pela força ou
pela coação, mudar o injusto status quo social reinante. Antes, a
postura que engendra é sempre serena, pacífica e paciente. N ão
se colhem uvas com pauladas! Por isso, as conquistas do povo de
Deus sempre lhe advieram pela via da oportunidade honesta, pelo
exemplo sábio de vida, pelo discurso verdadeiro e pelo convite à
consciência (1Co 7.20-24; Ef 6.5-8; Tt 2.9-10; Fm 15-17; 1Pe 2.18-
20). Ironicamente, o impacto que esse modelo tem exercido na
transformação da sociedade suplanta em muito o que qualquer
revolução sangrenta já foi capaz de fazer.
Ora, os séculos que precederam o presente já provaram que os
movimentos que tentaram m udar o mundo pelo uso da força,
alvoroçando as massas com suas promessas de liberdade e
justiça, serviram apenas para elevar ao poder novos ditadores que
se empenharam para se perpetuar no trono, nada fazendo em prol
da construção de uma sociedade melhor.
O cristianismo, ao contrário, sem armas, golpes, gritarias ou
ameaças, mostrou sua força pela fé paciente, pelo testemunho
notável e pela doce e ardente pregação da verdade. Com esse
“arsenal” a igreja invadiu o mundo e, enquanto os impérios foram
caindo um a um, os fracos e humildes seguidores de Jesus
imprimiram lenta e indelevelmente, em todas as culturas que
alcançaram, os princípios de igualdade e de liberdade ensinados
pelo Mestre, os quais serviram como fundamento teórico para as
leis de todos os povos civilizados [108]. Por isso, é certo dizer que

108 Quem melhor reconheceu essa influência do cristianismo sobre todo o mundo
foi precisamente seu maior oponente, Friedrich Nietzsche (1844-1900). Ele
entendeu acertadamente que para Jesus os homens tinham o mesmo valor e
também direitos iguais. No entanto, ironizou esses ensinos dizendo que dessa
“moral de rebanho”, advinda de uma classe submissa, veio a democracia. Para
escravos cristãos anônimos, transmitindo os ensinos de Jesus com
humildade e sujeição, fizeram, a longo prazo, muito mais pela
causa da liberdade do que os famosos líderes revolucionários que
figuram nos livros de história.
Paulo prossegue em sua admoestação aos servos crentes dizendo
que eles não deviam obedecer seus senhores “somente para
agradá-los quando estão observando, mas com sinceridade de
coração”. A falsidade e a bajulação hipócrita eram traços dos
mestres da mentira (Rm 16.17-18; Gl 4.17). Eram eles que, em
Colossos, se preocupavam em construir falsas aparências (Cl
2.23), sempre com o objetivo de obter vantagens pessoais (Jd 16)
[109].
Paulo estava convicto, portanto, que o comportamento teatral era
uma das marcas de quem não conhecia a verdade, bem como de
pessoas interesseiras e de mau caráter. Ademais, é possível
também que se preocupasse por saber que o uso contínuo de
encenações no serviço diário poderia facilmente se expandir e
levar o indivíduo a bancar o ator em outras áreas da vida (Gl 4.18).
Por isso, o Apóstolo ordena aos escravos que cultivem “sinceridade
de coração” (Ef 6.5). Aqui, o termo adotado por Paulo (ἁπλότης)
descreve a mente livre de segundas intenções, a alma pura que
age com franqueza, que não esconde desejos egoístas ou
sentimentos maliciosos, sendo, assim, digna de confiança.
A ordem dirigida aos escravos para que a sinceridade fosse
cultivada tinha um fundamento teológico: há um Senhor no céu que
deve ser temido. Os segredos perversos do coração e as más
motivações são conhecidos por ele e isso devia gerar temor e
mudança de comportamento nos servos cristãos. Se, por um lado,

Nietzsche, a democracia é má, pois promove a elevação de todos, impedindo o


desenvolvimento dos mais fortes (o super homem). Por isso, no entender do filósofo
alemão, a democracia deve ser erradicada o quanto antes. Para isso, porém, é
preciso destruir o cristianismo em suas concepções do homem, especialmente o
conceito de igualdade. Nietzsche entendeu que os homens não são iguais. Segundo
ele, o processo de evolução envolve a utilização da classe inferior pela superior,
provando que a natureza abomina a igualdade. Se noções de igualdade forem
mantidas, o caminho para uma nova raça não será aberto.

109 Como os escravos de confiança geralmente galgavam posições privilegiadas na


casa de seus senhores, transmitir uma falsa imagem de zelo e fidelidade podia se
tornar tendência comum entre os servos. Assim, como ocorria com os falsos
mestres, o interesse egoísta podia se tornar, para os escravos, um grande estímulo
à hipocrisia.
seus senhores terrenos nem sempre os observavam, por outro, os
olhos de Deus estavam continuamente so bre eles, avaliando
minuciosamente os esforços de seus braços e o conteúdo de seus
corações.
Na NVI, o v. 23 traz duas vezes o verbo “fazer” (assim também a
ARA). Essas ocorrências, contudo, são traduções de dois
diferentes verbos gregos: ποιέω e ἐργάζομαι – “Tudo o que fizerem
(ποιέω), façam (ἐργάζομαι) de todo o coração...”. Enquanto o
primeiro verbo se aplica a uma ação qualquer, o segundo é mais
específico, denotando o ato de trabalhar, ou seja, de realizar os
afazeres próprios do servo. Trata -se do verbo que descreve a ação
de quem labuta, empenhando-se na realização de um a tarefa.
Paulo usa esse termo aqui para desencorajar a indolência, isto é, a
atitude do servo que faz “corpo mole” e adota, desse modo, um
comportamento impróprio para alguém que participa da nova vida
em Cristo (Ef 4.28; 2Ts 3.10).
O Apóstolo realça que os servos crentes devem se empenhar em
seu labor “de todo o coração”. A expressão que aparece aqui é,
literalmente, “de alma” (ἐκ ψυχῆς). O conceito de “alma” adotado
aqui é mais abrangente do que “coração” e envolve todas as forças
individuais de um homem , a sua energia vital [ 110] (talvez haja aqui
em eco de Dt 6.5). Segundo Paulo, essa atitude de total dedicação
deveria ser nutrida pelos servos porque seu trabalho tinha que ser
feito “como para o Senhor, e não para os homens ” (Ef 6.6-7).
Assim, os escravos crentes são exortados a laborar com empenho
e sinceridade não somente por temor ao Deus que tudo vê, mas
também considerando que o serviço prestado por eles é, de fato,
para esse mesmo Senhor Divino, isto é, em prol dos seus
interesses santos e para o enriquecimento da sua casa espiritual.
A realidade de que os escravos cristãos trabalhavam, na verdade,
para o Senhor Celeste é realçada também pelo fato de que é desse
Senhor que eles receberiam, no fim de tudo, a recompensa (24). O
substantivo traduzido com o “recompensa” (ἀνταπόδοσις) ocorre
somente aqui no NT e refere-se a uma retribuição pelo que a

110 Veja-se essa sugestão em SPENCE-JONES, H. D. M., Org. The Pulpit


Commentary: Colossians. (157). Logos Research Systems, Inc.: Bellingham, WA,
2004. Veja-se também DUNN, J. D. G.. The Epistles to the Colossians and to
Philemon: A commentary on the Greek text (255). William B. Eerdmans Publishing;
Paternoster Press: Grand Rapids: Carlisle, 1996, onde é dito expressamente: “A
alma é o centro da vitalidade humana; enquanto o coração é a sede da
experiência”.
pessoa fez (Ef 6.8). Pode ser, portanto, uma retribuição boa ou
ruim (um castigo). No texto em análise, contudo, não há dúvidas de
que o Apóstolo tem em mente a retribuição no sentido positivo, o
que se conclui a partir do modo como ele qualifica a recompensa.
Ele a chama de “recompensa da herança”, ou seja, a recompensa
que é a herança. Ora, nos escritos de Paulo, essa herança é o
reino de Deus (1Co 6.9-10; Gl 5.21; Ef 5.5).
Tudo isso devia ser mais uma fonte de motivação para os servos.
Certamente, muitos escravos crentes não recebiam de seus
senhores nenhum tipo de reconhecimento por seus esforços. Além
disso, de acordo com as leis do Império Romano, nenhum esc ravo
podia herdar coisa alguma. Então, para encorajá -los, Paulo recorda
que o verdadeiro Senhor para quem, de fato, trabalhavam ia
recompensá-los no futuro, dando-lhes uma herança junto com os
santos no reino da luz (1.12).
Tem-se aqui, portanto, uma mostra de como a escatologia cristã,
ao olhar para o porvir, estimula a prática e a permanência no bem
desde agora! É certo, porém, que algo mais pode ser detectado
nas palavras de Paulo em análise. Trata -se da verdade de que
Cristo é o soberano juiz mesmo dos atos corriqueiros da vida. Sim,
pois no Dia que fatalmente há de vir, ele julgará tudo o que os
homens fizeram “por meio do corpo” (2Co 5.10), inclusive o modo
como realizaram as tarefas do seu trabalho diário, no campo, na
casa ou na pequena e pobre ofici na.
Na cláusula final do v. 24, Paulo repete o ensino consubstanciado
no v. 23. Desta vez, porém, identifica o Senhor de modo mais
preciso, dizendo ser ele o próprio Cristo. Evidentemente, há aqui
um claro sinal de que Paulo, enquanto escrevia à igreja de
Colossos, não perdia de vista por um momento sequer sua meta
apologética, isto é, seu propósito de destacar o senhorio absoluto
de Cristo contra os ensinos do proto -gnosticismo que identificavam
a figura de Jesus como apenas mais uma emanação angélica.
As admoestações dirigidas aos escravos caminham para o fim com
a afirmação de que “quem cometer injustiça receberá de volta
injustiça” (25). O público alvo dessas palavras é nitidamente mais
amplo aqui, preparando o caminho, junto com a cláusula seguinte,
para as advertências aos senhores consubstanciadas em 4.1.
Cometer injustiça (ἀδικέω) é praticar o mal (Ap 22.11). É violar
normas, quaisquer que sejam, prejudicando ou ofendendo alguém
(1Co 6.8; Fm 18). O Apóstolo adverte que quem agir assim,
receberá como troco algo que combine com sua conduta. Se existe
algo de confortante na realidade de que o Senhor dará aos seus
servos a recompensa da herança (24), há no texto em análise um
contrapeso ameaçador: o mal será a paga de quem se põe a
serviço do mal (2Pe 2.13). Paulo ensina, assim, que o universo,
uma vez que está sob o governo divino, é um universo não
somente físico, mas também moral, sendo certo que Deus fixou
nele normas morais inflexíveis. Uma delas é que toda a injustiça
receberá, cedo ou tarde, algum ti po de retribuição.
O v. 25 termina com a afirmação de que, nesse aspecto, “não
haverá exceção para ninguém ”, ou seja, nenhuma pessoa escapará
das implicações dessa norma. Aqui é notável que a advertência
passa a abarcar todos, tanto servos quanto senhores. A justiça
retributiva de Deus não reconhece distinções dessa natureza. Ao
destacar essa lição, Paulo usa uma palavra grega interessante,
cujo significado básico é “receber a face” (προσωπολημψία). Deus,
em seus atos de juiz, não faz diferença entre os hom ens,
reconhecendo o rosto de alguns preferidos e tratando -os com
favoritismo (Rm 2.11; Ef 6.9). Não! Nem servos nem senhores
jamais desfrutarão de um privilégio assim.
Sendo os escravos os destinatários principais da presente
admoestação, sem dúvida Paulo tem como alvo aqui estimulá-los
em duas direções: primeiro, anela esvaziá -los de qualquer desejo
de vingança contra senhores perversos, desencorajando até
mesmo os pequenos e secretos atos de retaliação. Afinal, o próprio
Deus daria a esses maus senhores a paga de suas ações. Em
segundo lugar, o Apóstolo pretende engendrar temor no coração
dos servos crentes, repisando a verdade já expressa nos
versículos anteriores, de que há um Senhor temível, justo e
retribuidor no céu. Seu Reino, de fato, é dado gratuit amente aos
que crêem [111], mas isso não o impede de punir seus filhos,
muitas vezes já nesta vida (1Pe 4.12,17), independentemente da
posição que ocupam na presente era (1Pe 1.17).

111 Nada do que Paulo diz no texto estudado contrasta com a sua doutrina da
justificação somente pela fé (Rm 5.1; Ef 2.8-10). Tampouco suas admoestações
contradizem o ensino que ele mesmo ministra a respeito da absoluta segurança
dos salvos (Rm 8.31-39). A lição que Paulo transmite aqui é que o Senhor pune a
injustiça de todos, inclusive a de seus filhos queridos. Seu castigo paternal pode
ser aplicado tanto na presente vida (Hb 12.5-11), quanto no dia do encontro do
crente com ele (2Co 5.10). Essas punições, porém, em nada comprometerão a
eterna salvação dos que creram no Filho de Deus (1Co 3.15; 5.5).
A presente seção, em virtude de um erro na divisão dos capítulos,
termina em 4.1, com uma admoestação dirigida aos senhores,
ensinando o modo como deviam tratar seus escravos. Ora, no
mundo romano os escravos eram vistos como gado e seus donos
podiam, a princípio, tratá -los como bem entendessem. Esse
tratamento variava de acordo com o caráter e disposição de cada
senhor. Entre estes, os mais cruéis puniam, torturavam e até
matavam seus servos.
Por causa desses excessos, o Império preocupou -se, desde o
início, em inibir os maus tratos. O imperador Cláudio (41 -54), por
exemplo, na metade do século I, decretou que escravos doentes
abandonados por seus senhores fossem libertos. A Lex Petronia (c.
61 AD), por sua vez, proibia que um homem entregasse seu
escravo para lutar com as feras no anfiteatro sem a prévia
autorização do magistrado competente (a autorização só era
concedida do caso de má conduta comprovada) [ 112]. Havia
também provisão legal para que, caso um escravo fosse vendido,
sua família (esposa e filhos) o acompanhassem, mesmo que o
senhor não reconhecesse o casamento ou a filia ção. Nero (54-68),
a despeito de sua fama de crueldade, criou um procedimento legal
que dava aos servos a possibilidade de denunciar as injustiças que
eventualmente sofressem da parte de seus senhores; e no fim do
século I, Domiciano (81-96) proibiu, sob pesada multa, a castração
de escravos.
Ora, se os senhores de um império pagão revelavam noções de
humanidade em favor de pessoas que facilmente estariam sujeitas
aos caprichos maldosos dos mais fortes, o que deveria ser
esperado dos senhores cristãos? Se o s poderosos deste mundo se
empenhavam em promover a redução do sofrimento e da injustiça,
qual devia ser a atitude dos senhores crentes diante dessas
coisas?
Paulo ensina em 4.1 que os cristãos que tinham escravos deveriam
dar a eles “o que é justo e direito”. Dar o que é justo (δίκαιος) é o
oposto do comportamento descrito em 3.25. Logo, os senhores não
deveriam praticar o mal contra os servos, prejudicando -os ou
mesmo ofendendo-os. Tampouco deveriam negar-lhes o que é
“direito”. O termo que o Apóstolo usa aqui (ἰσότης) significa,
basicamente, igualdade (2Co 8.13-14). É bem provável, portanto,

112 Veja-se BERGER, Adolf. Encyclopedic Dictionary of Roman Law. Vol. 43.
Philadelphia: The American Philosophical Society, 1991. p. 557.
que Paulo esteja ensinando os senhores crentes a tratarem seus
servos da mesma forma como deviam tratar os homens livres, não
levando em conta as diferenças sociais. Esse apelo seria ainda
mais urgente no caso de ambos, senhor e escravo, serem cristãos
(3.11). Com efeito, se os senhores fossem dóceis e benignos, as
diferenças seriam menos sentidas e, fatalmente, haveria equidade,
outro significado para o termo adotado aqui.
A verdade que serve para motivar os senhores a tratarem seus
escravos com justiça e equidade é que eles também têm um
Senhor nos céus. Não são, portanto, somente os servos que devem
se lembrar da existência de um soberano celeste (3.23 -24), mas
também os senhores. Evidentemente, há um forte tom de ameaça
aqui, desencorajando os que detêm alguma parcela de poder sobre
os homens de oprimi-los com desprezo, humilhação, abusos,
enganos ou perversidades. O fato é que, se é verdade que os
senhores são merecedores de respeito e obediência sinceros da
parte daqueles que lhes estão sujeitos, é também verdade que eles
são devedores das mesmas coisas ao Senhor que têm nos céus, o
qual impõe a todos os seus servos, grandes e pequenos, a prática
zelosa da justiça, sempre mesclada de bondade, doçura e
compaixão. Por isso, a força que têm nas mãos não pode
embriagá-los ao ponto de esquecerem o Tribunal vindouro no qual,
diante do Juiz divino e supremo, responderão por cada gesto
praticado na presente vida.
Colossenses 4.2-6 - As Últimas Instruções

A Epístola aos Colossenses caminha para o


final com algumas instruções gerais de Paulo
aos cristãos daquela cidade. Tratam -se,
basicamente, de orientações acerca da
oração e do modo como os crentes devem se
comportar no seu relacionamento com os de
fora. Essas áreas são, precisamente, aquelas
em que os cristãos de todas as épocas
sempre precisam ser instruídos, tanto por
causa de sua negligência e descuido nesses
campos, como em virtude dos desvios
frequentemente propostos pelos falsos
mestres quando tratam desses assuntos.
A primeira orientação é “dediquem-se à oração” (2). Dedicar-se
(προσκαρτερέω) é tradução de um verbo cujo sentido é persistir
(Rm 12.12), guardar com devoção (At 2.42) ou apegar -se
intensamente (At 6.4). Paulo quer, assim, que os crentes sejam
fiéis praticantes da oração, jamais esmorecendo (Mt 7.7 -11; Lc
18.1-8; Ef 6.18; 1Ts 5.17).
Ora, é sabido que a heresia pregada em Colossos colocava o
destino das pessoas sob a dependência do movimento dos astros
que, por sua vez, eram controlados por anjos. Por isso, os desvios
doutrinários que eram ali disseminados abrangiam a adoração de
anjos na esperança de que essas entidades agissem em prol dos
adoradores dispondo os astros da maneira que lhes fosse favorável
[113]. Ao estimular a firmeza na oração, porém, o Apóstolo golpeia
essa superstição, colocando unicamente nas mãos de Deus o
controle da vida humana e ensinando que é só na sua soberana
graça que o homem deve depositar a sua esperança quando almeja
desfrutar qualquer forma de bem (Tg 1.17).
Em seguida, Paulo diz: “estejam alerta”. O termo usado aqui
(γρηγορέω) significa, basicamente, manter-se acordado. Os
autores do NT o empregam para ensinar o crente a estar preparado
diante da iminente volta do Senhor (Mt 24.42-43; 25.13; Mc 13.35;
1Ts 5.4-6; Ap 16.15) e também para exortar o cristão a não se

113 Veja-se comentário a 2.8 e 18.


deixar levar pelo desmazelo nas coisas espirituais durante a sua
jornada na vida presente (1Co 16.13). O NT usa ainda esse termo
para advertir acerca de algum a ameaça iminente ou ao redor,
diante da qual o crente deve vigiar (At 20.29 -31; 1Pe 5.8).
Considerando o perigo do proto-gnosticismo a que estavam
expostos os crentes de Colossos, talvez esse seja o caso aqui.
Porém, o modo como a presente ordem é constru ída no grego
indica mais seguramente que a vigilância deve estar associada à
oração. Paulo estaria, então, admoestando os colossenses a estar
alertas, zelando para que sua vida de oração não esmorecesse (Ef
6.18). É também possível que o Apóstolo esteja in dicando aqui que
a oração perseverante é uma forma do crente manter -se atento,
como Jesus parece mostrar em Mateus 26.36 -41.
A oração também tem que ser um meio através do qual os crentes
demonstram gratidão, reconhecendo que o Senhor a quem devem
devoção exclusiva administra bondosamente sua graça, provendo
as necessidades de seus servos, dirigindo sabiamente suas vidas e
enchendo-os muitas de vezes de alegria e satisfação.
É por isso que, num contexto em que Paulo fala
predominantemente sobre a oração, el e escreve “sejam
agradecidos”. O termo adotado pelo Apóstolo aqui é muitas vezes
traduzido como “ação de graças” (εὐχαριστία) que é nada menos do
que uma expressão verbal de gratidão e louvor (1Co 14.16). Essa
prática é tida como oposta ao uso de palavras torpes (Ef 5.4) e
deve permear o coração do crente em todas as circunstâncias,
boas ou más (1Ts 5.18). A oração de gratidão deve também
substituir a ansiedade que muitas vezes domina a mente do cristão
(Fl 4.6). Em Colossenses, Paulo ensina que os crentes devem
crescer em ações de graça (2.7). O alvo final desse modo de vida é
a glória de Deus (2Co 4.15).
Tendo orientado os colossenses no tocante a vida de oração, o
Apóstolo passa a expor aos leitores os seus próprios anseios [ 114],
pedindo que eles os incluam em suas súplicas a Deus. Os pedidos
de oração de Paulo se resumem, basicamente, num só: que ele
realize seu trabalho de evangelista, mesmo estando preso. Anexos
a esse pedido principal, Paulo apresenta outros que, quando

114 O uso de “nós”, no v. 3, indica que os companheiros de Paulo mencionados


em 4.7-14 tinham os mesmos desejos que ele expõe aqui.
analisados, revelam algumas de su as concepções sobre o
ministério de proclamação da fé.
Primeiro Paulo pede orações “para que Deus abra uma porta” para
a mensagem (3). É curioso que na condição de prisioneiro em que
o Apóstolo se encontrava, sua primeira preocupação não girasse
em torno de seu bem-estar, de sua liberdade ou de sua segurança,
ainda que pedisse orações por essas coisas também (Rm 15.30 -32;
Fp 1.19; 2Ts 3.1-2; Fm 22). Com efeito, para ele, o serviço de
Cristo estava acima da própria vida (At 20.24). Por isso, anelava
antes de tudo que Deus lhe abrisse uma porta a fim de que,
passando por ela, a mensagem da salvação em Cristo se
expandisse, seguindo seu curso.
E expressão “abrir uma porta” era eventualmente usada por Paulo
(1Co 16.9; 2Co 2.12-13) e encerra uma figura de fácil
compreensão. Abrir uma porta significa, basicamente, cri ar uma
oportunidade. A partir daí é possível concluir que, no texto em
análise, o Apóstolo reconhece que as oportunidades para o
evangelismo dependem da vontade e da ação de Deus (At 16.6 -7).
É ele quem, em sua soberania e poder, “abre as portas”, ou seja,
maneja as circunstâncias e dispõe os fatos, de modo a fazer com
que apareçam as ocasiões propícias à pregação e até mesmo à
aceitação da fé (At 14.27).
No texto grego, o termo constante do v. 3 e traduzido na NVI como
“mensagem” é, literalmente, “palavra” (λόγος). Na Carta aos
Colossenses, esse termo se refere indubitavelmente ao evangelho
que convida o homem perdido a desfrutar de uma nova esperança
preservada no céu (1.5). A “palavra” é também todo o ensino que
Deus confiou aos seus servos, os apóstolos (1.25), ensinos esses
que devem ser conhecidos profundamente por todos os crentes e
usados na instrução e no aconselhamento de cada membro da
comunidade da fé (3.16). É, pois, pela oportunidade de comunicar
essas coisas que Paulo pede que os colossenses or em.
O Apóstolo se refere à mensagem que proclama chamando -a de “o
mistério de Cristo”. Em 1.25-27 e 2.2, ele já usou o termo “mistério”
(μυστήριον) para aludir ao seu ensino. Conforme dito no
comentário a 1.26, ao usar essa palavra, Paulo fazia frente ao
próprio gnosticismo embrionário que se difundia na região de
Colossos, já que essa falsa filosofia alegava, na pessoa de seus
líderes, ser detentora de segredos espirituais inacessíveis ao
homem comum. É também provável, contudo, que a noção de
mistério que subjaz o uso de Paulo seja procedente da apocalíptica
judaica mais do que das concepções filosóficas helenistas. Ora, na
visão judaica “mistério” é, em termos gerais, o conjunto de
segredos revelados por Deus acerca dos seus propósitos. Nesse
sentido, ao ser revelado, o mistério concede ao homem uma visão
privilegiada de todo o desenrolar da história humana, conforme o
ponto de vista divino [ 115].
Esse uso judaico do termo em Paulo pode, de fato, ser percebido
com certa clareza em 1.26-27 e com nitidez maior em Romanos
11.25-26; 1Coríntios 2.7; 15.51; Efésios 1.9 -10; 3.5-6. Em
Colossenses 4.3, porém, “mistério” parece ter um sentido mais
abrangente, abarcando toda a mensagem evangélica que Paulo
anela proclamar (Ef 6.19), da qual realmente faz parte tanto o
modo como Deus executa o seu plano de salvação na história,
como o alvo final dessa mesma história (Ef 1.9 -10). Paulo afirma
no fim do v. 3 que era precisamente por proclamar essa mensagem
que ele estava preso (Ef 6.20; 2Tm 2.8 -9).
A abertura de portas para a proclamação da fé é obra de Deus. Ele
é quem cria as oportunidades, tornando possível o avanço do
Evangelho. Na busca desse propósito, porém, a ação poderosa do
Senhor não se limita à abertura de portas. Além de gerar ocasiões
favoráveis à pregação, Deus também habilita seus servos de modo
que possam realizar essa obra com clareza, ousadia e coragem. É
o que se depreende do v. 4. Rogando que os colossenses orem por
seu ministério missionário, Paulo mostra o anseio de que Deus lhe
conceda a graça de manifestar o mistério de Cristo de modo puro e
transparente, como é necessário que o servo do Senhor faça.
A expressão “manifestá-lo abertamente”, constante da NVI, é
tradução de um verbo apenas (φανερόω), cujo significado básico é
mostrar ou fazer aparecer. A noção de tornar visível, claro e
evidente compõe o sentido desse verbo. Assim, o Apóstolo, nem de
longe pretendia apresentar sua mensagem numa linguagem
hermética, cheia de narrativas de visões obscuras, como
provavelmente faziam os doutores da mentira que atuavam em
Colossos (2.18). Ora, sabe-se por fontes extra bíblicas que os
mestres da falsa gnose se deleitavam nesse tipo de linguagem e a

115 Veja-se DUNN, J. D. G. The Epistles to the Colossians and to Philemon: A


commentary on the Greek text. William B. Eerdmans Publishing; Paternoster
Press: Grand Rapids, 1996. p. 119-120.
adotavam para impressionar as pessoas simples [ 116]. Paulo,
contudo, como ministro da verdade, queria ser claro em tudo o que
dizia, expondo Cristo aos olhos dos seus ouvintes do modo mais
límpido e nítido possível (Gl 3.1).
Do texto paralelo de Efésios 6.20, conclui -se que para pregar
dessa forma é preciso coragem. De fato, o termo usado por Paulo
em Efésios (παρρησιάζομαι) significa falar de modo livre e
confiante, mostrando ousadia. Em Colossenses 4.4, o Apóstolo
destaca que pregar assim não lhe era opcional, mas sim um dever,
algo necessário e compulsório (δεῖ). Os diversos sermões de Paulo
transcritos no livro de Atos não deixam dúvidas de que essa
maneira de evangelizar era sempre adotada por ele (At 20.26 -27.
Veja-se ainda 1Co 2.1-2 e 2Co 4.1-4). O notável missionário
reconhecia, contudo, que a capacitação para tanto vinha somente
de Deus. Por isso, pedia as oraç ões dos colossenses.
Nos vv. 5-6, Paulo dá orientações aos seus leitores acerca do
modo como deveriam se comportar em face das pessoas que não
pertenciam à comunidade da fé. No procedimento diante delas, a
marca principal do crente deveria ser a sabedoria (σοφία). Essa
palavra aparece seis vezes na epístola (1.9, 28; 2.3, 23; 3.16; 4.5).
No NT geralmente é empregada para descrever a capacidade de
usar o conhecimento teórico na construção de um comportamento
correto. O texto em análise reflete de forma preci sa esse sentido
ao determinar que os cristãos devem proceder (Gr. Περιπατέω,
andar ou, num sentido figurado, se comportar) sabiamente.
Vê-se assim que, de modo diverso dos filósofos seculares e dos
falsos mestres de Colossos, a sabedoria do povo de Deus nã o
deve se restringir a discursos eloquentes (1Co 1.17; 2.1, 4) que
não servem para nada (Veja -se 2.8; 1Co 1.20; 2.6; 3.19 -20). Antes,
precisa ter um aspecto vivencial, podendo ser testemunhada pelas
pessoas ao redor.
Ainda no v. 5, Paulo se refere aos incr édulos como “os de fora”
(1Co 5.12-13) dizendo que é diante deles, especialmente, que os
crentes devem se comportar de forma sensata (1Ts 4.12). Ele
ensina, assim, que os cristãos devem se preocupar seriamente com

116 Documentos cristãos produzidos no século 2 atestam que muitas seitas


gnósticas faziam uso de fórmulas de iniciação repletas de palavras estranhas, com
termos hebraicos e nomes de seres imaginários, tudo com o fim de impressionar
seus novos adeptos e cativar os pagãos em geral ou os cristãos despreparados
(Veja-se IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias I, 11:3-4; 21:3-4).
o modo como se apresentam aos olhos do mun do. Isso, é claro,
não significa que os crentes devem tentar agradar os não crentes a
todo custo (Gl 1.10), mas sim que precisam mostrar a eles que o
evangelho de fato faz diferença, mudando para melhor a vida de
quem crê.
No fim do v. 5 Paulo destaca uma forma em particular através da
qual os salvos devem mostrar sabedoria aos perdidos. Ele diz:
“aproveitem ao máximo todas as oportunidades ”. O texto grego diz
precisamente “remindo o tempo”, expressão cujo significado básico
aponta para o uso diligente do tempo, numa forma de vida em que
cada momento é tido como uma dádiva digna de zelo e cuidado e
em que cada oportunidade é aproveitada.
Pode-se dizer, à luz do ensino geral do NT, que isso é importante
no trato com os incrédulos porque o tempo da salvação es tá se
findando e em breve a oferta de perdão será removida (Rm 13.11 -
12; 2Co 6.2). Daí a necessidade de usar cada instante com
sensatez e cuidado, a fim de que os homens conheçam depressa,
pela vida e pelas palavras do povo redimido, a salvação que Deus
ainda oferece em Cristo [117].
Deve-se destacar ainda que, no texto paralelo de Efésios 5.15 -16,
Paulo faz a mesma admoestação (remir o tempo), dizendo que o
crente deve agir assim porque “os dias são maus”. Isso significa
que, num universo caído, em que coisas, fatos e homens carregam
as marcas da malignidade do pecado, o crente deve aproveitar
cada instante para oferecer a todos um lampejo da graça e da
verdade em meio à longa noite da presente era.
Outra forma de mostrar sabedoria aos não crentes é prev ista no v.
6. Trata-se de uma maneira distinta de falar. Primeiramente Paulo
diz que o crente deve ser agradável em suas conversas triviais com
os de fora. A palavra traduzida como “agradável” é o vocábulo
grego cujo significado mais comum é “graça” (χάρις). Esse termo,
aplicado à forma de dialogar, descreve uma conversa de bom
conteúdo, graciosa, atraente, elegante e educada. O apóstolo,
pois, ensina um modo de falar que traz deleite e não aborrecimento
ou mal-estar aos participantes da conversa (Ec 10.12; Lc 4.22; Ef
4.29).

117 Veja-se essa sugestão em McNAUGHTON, I. S. Opening up Colossians and


Philemon. Leominster: Day One Publications, 2006. p. 85-86.
Prosseguindo, Paulo ilustra essa maneira de dialogar descrevendo -
a de modo figurado. Ele afirma que o falar do cristão deve ser
“temperado com sal”. O sentido disso é simples: assim como o sal
tempera os alimentos, tornando -os mais agradáveis ao paladar, as
palavras dos crentes também devem ser “saborosas”, com gosto de
inteligência, bom senso, brandura, amabilidade e equilíbrio [ 118].
Sendo os crentes o “sal da terra” (Mt 5.13; Mc 9.50), é de se
esperar que suas palavras reflitam essa rea lidade.
Certamente, a maneira de conversar com os de fora ensinada por
Paulo aqui, criaria oportunidades de testemunho para os
colossenses. Usando palavras boas e agradáveis no trato diário
com os incrédulos, estes naturalmente se sentiriam à vontade para
falar sobre assuntos ligados à fé, levantando questões, discutindo
opiniões ou fazendo perguntas. Quando isso acontecesse, os
crentes tinham o dever de saber o que responder em cada caso
específico, sendo sensíveis à necessidade de cada interlocutor em
particular (1Pe 3.15-16).

118 Como nos dias de Paulo o sal era usado inclusive com o propósito de
preservar os alimentos do processo comum de deterioração, existe o parecer de
que a figura usada aqui aponta também para uma conversa livre de corrupção
(Veja-se ANDERS, M. Galatians-Colossians. Holman New Testament Commentary.
Holman Reference. Broadman & Holman Publishers: Nashville, 1999. vol. 8, p.
346). É óbvio que esse entendimento não contraria a intenção do apóstolo (Cf. Ef
4.29), mas o contexto da presente passagem deixa claro que o sentido principal da
figura usada por Paulo é a forma agradável de falar.
Colossenses 4.7-9 - O Envio de Tíquico e de Onésimo

Informações e referências pessoais, assim


como saudações e breves orientações gerais
marcam o fim da Epístola aos Colossenses.
Isso faz com que a carta transmita uma noção
muito forte acerca do grau de afinidade e
compromisso reinante entre os membros da
comunidade cristã primitiva. A impessoalidade
e o distanciamento que hoje marcam até as
relações entre os crentes de uma mesma
igreja local estão totalmente ausentes aqui.
Paulo começa mencionando Tíquico que, indo
a Colossos, deveria dar informações sobre o
Apóstolo aos crentes daquela cidade (7). Ele seria o mensageiro
que levaria a Carta aos Colossenses, assim como a Epístola aos
Efésios (Ef 6.21-22), a carta aos crentes de Laodicéia (4.16) e a
pequena missiva a Filemom.
Tíquico é citado pela primeira vez no Novo Testamento em Atos
20.4, onde se lê que ele e Trófimo eram de província da Ásia. No
mesmo texto há a informação de que, junto com outros irmãos,
Tíquico acompanhou o Apóstolo Paulo em um trecho de sua viagem
pela Macedônia [119]. O relato de Atos diz ainda que, depois de
viajarem com Paulo, Tíquico e a equipe de que fazia parte
seguiram adiante e ficaram esperando pelo Apóstolo em Trôade,
quando ele seguia para Jerusalém (At 20.1-5). Aliás, é bem
possível que Tíquico tenha acompanhado Paulo até Jerusalém,
uma vez que Trófimo, um dos membros da equipe de que Tíquico
fazia parte, certamente seguiu com o Apóstolo para aquela cidade
(At 21.29).
Sendo, assim, bem conhecido por Paulo, Tíquico é chamado por
ele de “irmão amado, ministro (διάκονος) fiel e cooperador
(σύνδουλος) no serviço do Senhor”. Essas palavras refletem o
empenho, a fidelidade e o companheirismo de Tíquico que, como
era de se esperar, permaneceu ao lado de Paulo depois que ele foi
liberto da prisão em Roma em que se encontrava quando escreveu

119 Em Atos 20.4, a vasta maioria dos manuscritos traz a expressão “até a Ásia”
depois de “acompanharam-no”, sendo esta a melhor leitura.
a presente carta (Tt 3.12). Na verdade, Tíquico mostrou -se fiel
companheiro de Paulo até o fim. Quando escreveu sua última
carta, já prestes a ser martirizado, o velho Apóstolo citou Tíquico
mais uma vez como um servo ainda útil no serviço do Reino (2Tm
4.12).
No v. 8, Paulo revela os dois motivos que o estimulavam a enviar
Tíquico a Colossos: informar o que se passava com ele e com os
irmãos que estavam ao seu lado em R oma e fortalecer o coração
dos colossenses [120]. Certamente, as informações que estavam
prestes a ser levadas por Tíquico fariam com que os crentes
orassem por Paulo de modo mais específico, conhecendo melhor
suas lutas, problemas e anseios. Já o fortalecim ento do coração
dos crentes de Colossos viria através das boas notícias nas quais
Tíquico relataria as expectativas otimistas de Paulo, sua possível
libertação (Fm 22) e as vitórias que estava obtendo no anúncio do
evangelho (Fp 1.12-14).
Paulo diz que Tíquico iria com Onésimo (9), chamado aqui de
irmão fiel (πιστός) e amado (ἀγαπητός). Esses termos são os
mesmos com que o Apóstolo descreve Tíquico (v. 7) e Epafras
(1.7), ambos notáveis ministros do evangelho. Paulo diz também
que Onésimo era “um de vocês”. Isso significa que ele era
procedente de Colossos. Voltando para sua cidade, tinha a missão
de, junto com Tíquico, informar os cristãos colossenses acerca da
situação de Paulo.
A maior parte das informações acerca de Onésimo procede da
Carta de Paulo a Filemom. A partir desse documento, sabe -se que
Onésimo era um escravo que havia fugido para Roma, causando
alguns prejuízos a seu senhor Filemom (Fm 1.18 -19), um cristão
honrado da igreja de Colossos, amigo do Apóstolo (Fm 1.1, 4 -7).
Por obra da providência, quando estava em Roma, Onésimo se
encontrou com Paulo que, estando em prisão domiciliar, desfrutava

120 Alguns manuscritos trazem no v. 8 a frase “para que vocês saibam como
estão”. Uma vez que essa variante textual é vazia de sentido, copistas antigos
fizeram uma pequena modificação no versículo e produziram a leitura “para que
ele [Tíquico] saiba como estão”. A evidência decorrente de manuscritos mais
confiáveis, porém, aponta para a leitura adotada pela NVI e ARA. Ademais, o
versículo gêmeo de Efésios 6.22 corrobora o uso de “nosso estado” em vez de
“vosso estado” em Colossenses 4.8. Essa leitura também se harmoniza melhor
com o propósito da visita de Tíquico mencionado em 4.7 e 9. Paramais detalhes,
veja-se METZGER, B. M. A textual commentary on the Greek New Testament.
United Bible Societies: London and New York, 1994. p. 559.
de ampla liberdade para receber pessoas em casa (At 28.30 -31).
Ouvindo a pregação do apóstolo, Onésimo se converteu (Fm 1.10)
e, agora, ciente de seu erro, aceita o conselho de voltar a
Colossos, pedir o perdão de Filemom e reassumir fielmente suas
funções (Fm 1.15). Em suas mãos levará a carta de Paulo a seu
senhor, em que o Apóstolo pede que Filemom trate Onésimo com
indulgência e benignidade, considerando que ele agora é mais do
que um escravo, tendo se tornado um irmão amado (Fm 1.8 -17).
Onésimo não é mencionado em nenhuma outra carta de Paulo além
de Colossenses e Filemom. A tradição, porém, diz que ele se
tornou bispo de Éfeso, sendo a ele que Inácio de Antioquia († c.
110) se refere em sua Carta aos Efésios, quando diz: “Foi assim,
pois, que a toda vossa grande comunidade recebi em nome de
Deus, na pessoa de Onésimo, homem de indizível caridade, vosso
bispo segundo a carne. Rogo-vos que o ameis segundo Jesus
Cristo e a ele vos assemelheis ” [121].
Mesmo não sendo possível afirmar com certeza que o Onésimo
mencionado por Inácio é o mesmo homem de que Paulo fala em
suas cartas, as informações que advêm dos escritos bíblicos são
suficientes para mostrar que o escravo rebelde de Filemom foi
protagonista de uma das mais belas histórias de transformação e
de perdão que o Novo Testamento apresenta.

121 INÁCIO DE ANTIOQUIA. Carta aos Efésios, 34. Em: GOMES, Cirilo Folch.
Antologia dos santos padres. São Paulo: Paulinas, 1979. p.33,34.
Colossenses 4.10-18 - Saudações e Orientações Finais

No v. 10 iniciam-se as saudações finais


registradas na Epístola aos Colossenses.
Quem primeiro envia saudações é Aristarco,
chamado por Paulo de “companheiro de
prisão”. Aristarco é mencionado também em
Filemom 1.24.
As primeiras informações sobre Aristarco são
encontradas em Atos 19.29, onde ele aparece como um dos
companheiros de Paulo em sua Terceira Viagem Missionária. Esse
texto mostra Aristarco e Gaio sendo arrastados violentamente
pelos pagãos de Éfeso até o teatro, durante o grave tumulto
incitado por Demétrio contra a pregação cristã naquela cidade (At
19.23-41). Na ocasião, Gaio e Aristarco só escaparam da morte por
causa da prudente intervenção do escrivão de Éfeso (At 19.35 -41).
Depois daquele perigoso episódio, Aristarco seguiu viagem com
Paulo (At 20.4), participando da mesma equipe de que Tíquico fez
parte (veja-se comentário a 4.7). Assim, Aristarco e outros irmãos
viajaram com o Apóstolo pela Macedônia. Depois, adiantando -se,
chegaram a Trôade, onde ficaram esperando o Apóstolo (At 20.3 -5)
e de onde talvez tenham seguido viagem com ele até Jerusalém.
Aristarco aparece novamente em Atos 27.1 -2, onde é dito que
quando Paulo foi enviado como prisioneiro para Roma, ele
embarcou com o Apóstolo num navio que ia para a Ásia. Não se
sabe, porém, se Aristarco participou de toda a viagem ou se seguiu
somente até parte do trajeto. Se ele foi com Paulo até Roma, isso
explica sua presença naquela cidade ao tempo em que Paulo
escreveu sua Carta aos Colossenses. Em Atos 27.2 há ainda a
informação de que Aristarco era macedônio, da cidade de
Tessalônica.
O fato de Paulo chamar Aristarco de “companheiro de prisão” tem
dividido opiniões. De um lado há quem diga que ele era
literalmente um prisioneiro, sendo impossível, contudo, determinar
as circunstâncias exatas d e seu aprisionamento. De fato, o termo
usado pelo Apóstolo aqui (συναιχμάλωτος) se refere a um indivíduo
que está preso junto com alguém, ou seja, um “colega” de prisão.
Porém, de outro lado, há os intérpretes que entendem a palavra de
modo figurado, dizendo que Aristarco era prisioneiro de Cristo,
servindo ao Senhor ao lado de Paulo (Ef 3.1; 4.1; 2Tm 1.8; Fm
1.9).
Infelizmente, há somente outras duas ocorrências do termo
συναιχμάλωτος no NT (Rm 16.7 e Fm 1.23), e seu uso nessas
poucas passagens não tornam possível detectar com precisão se o
sentido que Paulo lhe atribui é predominantemente figurado ou
literal [122].
O próximo a enviar saudações aos colossenses é Marcos, “primo
de Barnabé”, citado também na Carta a Filemom (Fm 1.24). Marcos
era filho de Maria, uma mulher cristã que morava em Jerusalém (At
12.12). O Livro de Atos conta que quando estava para sobrevir uma
grande fome sobre todo o Império Romano (sentida especialmente
na Judéia por volta de 44 A.D.), os irmãos de Antioquia enviaram
ajuda aos crentes da Judéia pelas mãos de Saulo e Barnabé (At
11.27-30). Quando estes voltaram para Antioquia, levaram Marcos
consigo (At 12.25).
Pouco depois, a igreja de Antioquia, orientada pelo Espírito Santo,
decidiu enviar Saulo e Barnabé naquela que ficou conheci da como
a Primeira Viagem Missionária (At 13.1 -3). Ambos partiram levando
Marcos como auxiliar (At 13.5). Porém, provavelmente assustado
com os perigos e dificuldades que via pela frente, Marcos desistiu
da viagem logo que chegaram em Perge, na Panfília, e seguiu para
Jerusalém, onde morava sua mãe (At 13.13).
Esse episódio impactou mais tarde o relacionamento entre Paulo e
Barnabé. A narrativa de Atos diz que, transcorrido algum tempo
depois de concluída a Primeira Viagem Missionária, ambos
decidiram voltar às cidades onde haviam pregado a fim de ver
como estavam as novas igrejas. Ocorreu, porém, que Barnabé quis
levar seu primo João Marcos e Paulo se opôs a isso, lembrando a
evidente falta de perseverança daquele jovem (At 15.36 -38). O
desentendimento entre eles foi tão grande que não puderam seguir
na mesma direção, indo Barnabé e Marcos para Chipre, enquanto
Paulo seguiu para o destino previamente planejado, levando Silas
consigo (At 15.39-41).
Marcos é citado também por Pedro que o chama carinhosamente
de “filho” (1Pe 5.13). A última menção desse personagem no NT,

122 Para uma exposição mais detalhada dessa discussão, veja-se MOO. D. J. The
letters to the Colossians and to Philemon. The Pillar New Testament Commentary.
Grand Rapids: William B. Eerdmans Pub. Co., 2008. p. 337–338.
porém, é feita pelo próprio Paulo. Curiosamente, nessa citação, o
Apóstolo que outrora o havia desprezado tão severamente, no fim
da vida percebeu o amadurecimento daquele irmão, além do seu
extremo valor para a causa do Mestre. Com efeito, às vésperas da
morte, Paulo escreveu a Timóteo: “Traga Marcos com você, porque
ele me é útil para o ministério “ (2Tm 4.11).
Na verdade, o texto em análise mostra que a mudança no conceito
que Paulo, a princípio, teve de Marcos já havia ocorrido quando ele
escreveu aos colossenses. Note -se que ele afirma ter dado
instruções aos colossenses a respeito de Marcos e que, caso ele
fosse visitá-los, devia ser acolhido entre os irmãos. Isso talvez
indique que o Apóstolo tinha em mente incumbir Marcos de alguma
missão no Vale do Lico. Detalhes sobre essa possível missão,
porém, não se encontram em parte alguma do NT.
A tradição e a história da igreja também fornecem uns poucos
dados acerca de João Marcos. Geralme nte, o jovem anônimo
mencionado em Marcos 14.51-52 é reputado como sendo ele.
Pápias de Hierápolis (c. 70 – c. 140) explica que o segundo
evangelho foi produzido por Marcos sob a supervisão de Pedro.
Eusébio de Cesareia, em sua História Eclesiástica diz que Marcos
foi a primeiro missionário a ser enviado ao Egito e que ali
estabeleceu igrejas, sendo a primeira em Alexandria. Essa
informação, porém, não tem nenhum amparo histórico objetivo
[123].
O terceiro companheiro de Paulo é Jesus, chamado Justo (11). No
Novo Testamento não há nenhuma outra menção dele. Paulo o
coloca entre os três únicos judeus cristãos que estavam
trabalhando ao seu lado, ao tempo em que ele escreveu aos
colossenses.
De acordo com o texto, Jesus, chamado Justo, juntamente com
Aristarco e Marcos, eram irmãos que encorajavam Paulo enquanto
ele enfrentava as limitações e dificuldades impostas por sua
condição de prisioneiro. De fato, a palavra traduzida na NVI como
“fonte de ânimo” (παρηγορία) ocorre somente aqui no NT e
significa conforto ou consolação. O termo indica ainda uma forma

123 A citação de Pápias encontra-se em EUSÉBIO DE CESARÉIA. História


Eclesiástica III:39:15. Na mesma obra, no Livro II:15:1-2, Eusébio fornece mais
detalhes sobre a composição do Evangelho de Marcos, de acordo com sua
concepção. A informação sobre a presença de Marcos no Egito como missionário
encontra-se também na História de Eusébio, no Livro II:16:1.
de alívio que não procede somente de palavras, mas também de
ajuda efetiva [124]. Logo, os três crentes judeus que o Apóstolo
menciona nos vv. 10-11 eram como um lenitivo para ele,
suavizando suas dificuldades através de palavras de consolo e
obras de auxílio.
No v. 12, Paulo diz que Epafras também envia saudações. Assim
como Onésimo (9), ele era de Colossos e se destacava como
“servo de Cristo”. Em 1.7-8 há a informação de que Epafras foi o
missionário que apresentou o evangelho aos colossenses, estando
também fora de dúvida que foi através dele que Paulo, estando em
Roma, recebeu informações sobre as igrejas do Vale do Lyco.
Em Filemom 1.23, Epafras é chamado por Paulo de “meu
companheiro de prisão”. Porém, como no caso de Aristarco (veja -
se comentário ao v. 10 supra), é difícil concluir, a partir do termo
usado em Filemom (συναιχμάλωτος), se ele era prisioneiro junto
com Paulo ou se o termo deve ser entendido de modo figurado,
apontando para um prisioneiro de C risto que o servia ao lado do
Apóstolo. As duas opções permanecem dividindo os comentaristas.
Não há outras informações sobre Epafras no NT. Não se sabe, por
exemplo, como ele conheceu Paulo ou como se tornou seu
cooperador. Também nenhum detalhe é registr ado acerca de seus
atos posteriores. É certo, porém, que nuvem alguma paira sobre o
tipo de ministro que ele foi. Note -se que, mesmo em Roma, para
onde fora talvez enviado pelas igrejas de Colossos, Laodiceia e
Hierápolis, a fim de dar suporte a Paulo, Epa fras nutria um
profundo zelo por seu rebanho distante. A prova disso é que ele
batalhava sempre em oração pelos colossenses.
Os pedidos de Epafras em prol dos colossenses eram para que
eles permanecessem maduros e plenamente convictos. O termo
traduzido na NVI como “pessoas maduras” (τέλειος) é usado para
descrever algo completo, cheio, em que não falta nada. Já a
expressão “plenamente convictas” decorre de um verbo (πληρόω)
que evoca o mesmo sentido de plenitude, de algo terminado,
completo e perfeito. Assim, Epafras anelava que os crentes de
Colossos, em vez de serem como meninos influenciados
ingenuamente pelas doutrinas dos falsos mestres, fossem “varões
perfeitos” (Ef 4.13-14), detentores de uma fé sólida, manifesta

124 Veja-se ZODHIATES, S. The complete word study dictionary: New Testament
(Edição eletrônica). Verbete G3931. Chattanooga, TN: AMG Publishers, 2000.
naquele modo de vida que mantém a von tade de Deus em seu
centro.
É importante observar ainda que o conteúdo das orações de
Epafras evoca, em certa medida, as súplicas de Paulo descritas em
1.9-12. Isso revela que ambos partilhavam das mesmas
preocupações com as igrejas que estavam sob seu cui dado e
influência. Com Efeito, Paulo destaca que no coração de Epafras,
essas preocupações se estendiam às igrejas de Laodiceia e
Hierápolis (13) [125].
Hierápolis é citada somente aqui no NT. Já foi dito no comentário a
2.1 que essa cidade se situava a 23 quilômetros de Colossos.
Hierápolis era conhecida tanto por causa do poder curativo de suas
fontes termais, como por ser um centro de intensa atividade cultual
pagã. Já Laodiceia era um pouco mais próxima de Colossos,
distando cerca de dezoito quilômetros a oeste daquela cidade.
Muito maior do que Hierápolis, Laodiceia era um centro comercial
próspero que produzia lã e artigos medicinais, além de ser rica em
sua agricultura.
Considerando o grande envolvimento e preocupação de Epafras
com as igrejas dessas duas cidades da Ásia, torna-se muito
provável que elas tenham sido fundadas por esse pastor -
evangelista sob a direção de Paulo, ao tempo em que o Apóstolo
esteve fixado em Éfeso (At 19.9 -10).
Conforme foi destacado no comentário a 2.1, é importante lembrar
que a igreja de Laodiceia, apesar de todo o zelo de seus
fundadores, cerca de 35 anos depois de escrita a Epístola aos
Colossenses, foi severamente censurada pelo próprio Senhor nas
visões que João teve em Patmos. De fato, o Livro do Apocalipse
mostra Cristo reprovando a inutilidade e o orgulho dos laodicenses
(Ap 3.14-22). Tudo indica que a geração posterior de crentes
daquela cidade, sem o amparo de líderes zelosos como Paulo e
Epafras (Paulo foi executado em c. 67), havia perdido toda sua
vitalidade espiritual.
Lucas e Demas também figuram na lista de irmãos que enviam
saudações aos colossenses (14. Veja -se tb. Fm 24). Lucas é o
autor do terceiro evangelho e do Livro de Atos dos Apóstolos [ 126].

125 Veja-se comentário a 2.1-5

126 Tanto o Evangelho de Lucas como o Livro de Atos apresentam a mesma


estrutura literária, revelando terem sido escritos pela mesma pessoa. Note-se
Nessa última obra, a autoria lucana se depreende especialmente
da mudança dos pronomes durante a narrativa (de eles para nós),
conforme se verifica em Atos 16.10 -17; 20.5-15; 21.1-18; 27.1–
28.16. Essas passagens mostram que o autor de Atos participou,
entre outras coisas, da viagem de Paulo a Roma. Considerando
esse e outros fatores, Lucas permanece, por eliminação, como o
melhor entre os possíveis candidatos à autoria.
Paulo diz que Lucas era médico. De fato, em seus escritos há
vários indícios de conhecimento ou interesse médico [ 127]. Lucas
também se destacou como o primeiro historiador da igreja cristã.
Ele revela ter tido grande habilidade e empenho na pesquisa e
coleta de dados históricos, com o objetivo de narr á-los ao leitor de
modo claro, preciso e convincente (Lc 1.1 -4; 2.1-2; 3.1-2). O
“médico amado” era provavelmente gentio, talvez de Antioquia da
Síria [128] e, conforme se percebe em seus escritos, era um
homem culto, inteligente e bem versado na língua grega e na
cultura helenista em geral. Ele foi um dos poucos que
permaneceram até o fim como fiéis companheir os de Paulo (2Tm
4.11,16).
O mesmo não se pode dizer de Demas. Pouco tempo depois da
composição da Carta aos Colossenses, Paulo foi liberto e deu
continuidade ao seu ministério. Porém, foi preso novamente
quando estava em Trôade (2Tm 4.13), sendo martiriza do em Roma
por volta de 67 AD. Quando estava nessa segunda prisão, o
Apóstolo lamentou a apostasia de Demas, afirmando que ele,
movido pelo amor ao presente século, foi para Tessalônica (2Tm
4.10). Ora, Tessalônica era uma cidade portuária, o maior e mais

ainda que em Atos o autor faz referência ao “primeiro tratado” (At 1.1), certamente
uma alusão ao terceiro evangelho. Além disso, as duas obras têm o mesmo
destinatário, o “Excelentíssimo Teófilo” (Lc 1.3; At 1.1). Considere-se finalmente
que a autoria lucana é também defendida por escritores cristãos antigos como
Irineu, Tertuliano e Eusébio.

127 Veja-se UTLEY, R. J. D. The Gospel According to Luke. Study Guide


Commentary Series. Vol. 3A. Marshall, Texas: Bible Lessons International, 2004,
onde se lê: “Lucas usou termos relacionados à medicina, curas, doenças, etc., pelo
menos trezentas vezes… Além disso, os comentários depreciativos de Marcos
acerca dos médicos, em Marcos 5.26, são omitidos [em alguns manuscritos] no
texto paralelo de Lucas 8.43”.

128 Esse é o entendimento de antigos escritores como o autor do Prólogo Anti-


Marcião de Lucas (175 AD) e Eusébio (História III:4.2). Veja-se Ibid.
movimentado centro comercial da Macedônia. Ali Demas
certamente encontrou tudo de que precisava para satisfazer suas
paixões.
No v. 15 Paulo menciona mais uma vez a igreja de Laodiceia,
pedindo que os colossenses saúdem os irmãos dali. Isso mostra
uma ligação bem estreita entre as duas igrejas, o que fica ainda
mais evidente nas orientações do v. 16. Em seguida, Paulo pede
para que os seus leitores saúdem “Ninfa e a igreja que se reúne
em sua casa”. Ninfa não aparece em nenhum outro lugar no NT.
Sua obscuridade torna-se ainda maior pelo fato dos manuscritos
antigos não serem unânimes no tocante ao gênero desse
personagem [129]. Aliás, mesmo o nome próprio, considerado na
forma como aparece, pode ser tanto masculino como feminino.
Não se sabe porque Paulo escolheu mencionar especialmente
Ninfa aqui. O texto mostra que uma igreja se reunia em sua casa. A
sugestão decorrente do próprio versículo é que essa igreja -lar se
situava em Laodiceia. Por isso, pode ser que Paulo tenha se
lembrado especialmente de Ninfa por causa de sua grande
importância como alguém em cuja casa de reunia uma comunidade
de cristãos de Laodiceia.
É sabido que nos primeiros séculos do cristianismo, as igrejas se
reuniam em lares e o NT é repleto de evidências disso (At 2.46;
5.42; 12.12; 16.40; 20.8,20; Rm 16.5,23; 1Co 16.19; Fm 1.2). Essa
prática se estendeu por todo o século 2 e adentrou o século 3. De
fato, o mais antigo templo cristão encontrado é uma casa -igreja em
Dura-Europos, que foi construída por volta de 232 e destruída em
258 [130].
No v. 15, a menção separada que Paulo faz dos irmãos de
Laodiceia e da igreja que se reunia na casa de Ninfa indica a
existência de mais de um núcleo de cristãos naquela cidade. O
mesmo talvez acontecesse em Colossos, onde, conforme se sabe,
um grupo distinto de crentes se reunia na casa de Filemom (Fm
1.2).

129 Veja-se METZGER, B. M., & United Bible Societies. A textual commentary on
the Greek New Testament. London/New York: United Bible Societies,1994. p. 560.

130 CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja
cristã. São Paulo: Vida Nova, 1984. p. 97.
Nas últimas linhas da Carta aos Colossenses, Paulo orienta seus
leitores no sentido de que a carta a eles dirigida seja lida na ig reja
dos laodicenses. Uma outra carta, escrita à igreja de Laodiceia,
igualmente deveria ser lida aos crentes de Colossos (16).
Naqueles dias, dar circulação às cartas de Paulo era comum,
considerando a autoridade apostólica do autor que o legitimava a
transmitir os mistérios de Deus ocultos de outras gerações (Ef 3.5).
Assim, essas cartas, levadas de uma igreja para outra e copiadas
por essas mesmas igrejas, eram lidas em voz alta diante de toda a
congregação (1Ts 5.27), da mesma forma como eram lidas as
Escrituras do VT (1Tm 4.13), dando indícios de que os cristãos
primitivos, já à época, as consideravam palavra de Deus, cheias de
autoridade (2Ts 2.15; 3.14). Paulo incentiva essa prática no
versículo em análise, mostrando que seus ensinos não se
aplicavam a uma igreja local em particular, mas sim a toda a
comunidade da fé.
A carta escrita aos crentes de Laodiceia , aludida no v. 16, não
pode ser identificada com precisão. É possível que tenha se
perdido, como ocorreu com outras cartas de Paulo (1Co 5.9; 2Co
2.3-4; 7.8). Porém, é geralmente aceito que se trata da Carta aos
Efésios que, sendo provavelmente uma carta circular, tinha uma
cópia endereçada aos laodicenses [ 131]. Essa hipótese é reforçada
pelo fato de que no Cânon de Marcião (Séc. II), o intrigante he rege
deu à Carta aos Efésios o título de “Carta aos Laodicenses”
seguindo, provavelmente, uma tradição antiga que identificava as
duas epístolas como a mesma e uma só [ 132].
No v. 17, Paulo ordena que Arquipo seja admoestado no sentido de
que cumpra o ministério que recebeu do Senhor. Arquipo só é
mencionado novamente em Filemom 1.2, onde aparece como
provável membro da casa de Filemom (talvez seu filho) e onde

131 Para uma discussão mais ampla, veja-se DUNN, J. D. G. The Epistles to the
Colossians and to Philemon: A commentary on the Greek text. Grand Rapids;
Carlisle: Eerdmans Publishing; Paternoster Press, 1996, onde é também discutida
a hipótese da referida carta ser procedente de Laodicéia (τὴν ἐκ Λαοδικείας).

132 Veja-se SPENCE-JONES, H. D. M. (Org.). The Pulpit Commentary: Colossians.


Bellingham: Logos Research Systems, 2004. p. 215. A história da igreja fornece
ainda a informação de que, entre os anos 300 e 400 AD, surgiu uma epístola
apócrifa aos laodicenses. Por volta do século VIII, porém, esse documento foi
repudiado por toda a igreja cristã (Cf. McNAUGHTON, I. S. Opening up Colossians
and Philemon. Leominster: Day One Publications, 2006. p. 95).
Paulo o chama de “companheiro de lutas” (συστρατιώτης. Lit.
soldado companheiro), uma indicação de que Arquipo havia
batalhado ao lado do apóstolo na obra missionária (Fl 2.25; 4.3).
O texto de Colossenses não esclarece qual era a tarefa (διακονία)
da qual Arquipo devia se desincumbir. Tudo o que se sabe é que
essa tarefa, qualquer que fosse, ainda não tinha sido terminada,
sendo dever de Arquipo completar (πληρόω) o que faltava para sua
conclusão. Paulo entende que esse serviço tinha sido dado àquele
irmão pelo próprio Senhor, sendo esta uma imensa motivação para
que fosse realizado na íntegra. Como, a o que parece, Arquipo não
estava cumprindo o dever que lhe havia sido dado por Deus, Paulo
ordena que toda a igreja o admoeste (3.16)!
No último versículo da carta (18), Paulo escreve sua saudação de
próprio punho, uma medida que ele tomava a fim de autent icar
seus escritos e também se proteger de fraudes (1Co 16.21; 2Ts
2.2; 3.17; Fm 1.19). A seguir Paulo suplica que os crentes não se
esqueçam de sua condição de prisioneiro, solicitando, certamente,
com isso, que não deixassem de interceder por ele, ou ain da que
não se esquecessem de enviar-lhe auxílio e provisão (Fp 4.14 -18).
Finalmente, o apóstolo encerra a carta enunciando uma súplica
indireta no sentido de que a graça de Deus esteja com os
colossenses. A forma abrupta e resumida como Paulo enuncia essa
bênção talvez indique que sua composição tenha sido feita sob
certas dificuldades ou pressões. Seja qual for o caso, o fato é que
o cerne da oração ficou explícito, destacando a necessidade da
operação da graça de Deus em seu povo. De fato, sem a atuação
dessa graça seria impossível que os colossenses se mantivessem
firmes nas doutrinas e práticas que emanam dessa magnífica carta.

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