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Introdução aos Profetas

Pré-Exílicos
Reginaldo Pereira de Moraes

Introdução aos Profetas Pré-Exílicos


1a ed.

Curitiba
2021
© Os direitos de autoria e patrimônio são reservados ao(s) autor(es) da obra e às Faculdades
Batista do Paraná (FABAPAR). É expressamente proibida a reprodução total ou parcial desta
obra sem autorização da FABAPAR.

FACULDADES BATISTA DO PARANÁ


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Gerência Acadêmica – Jaziel Guerreiro Martins
Gerência Administrativa – Jader Menezes Teruel
Coordenação dos Bacharelados em Teologia – Margareth Souza da Silva
Coordenação Adjunta do Bacharelado em Teologia EAD – Janete Maria de Oliveira
Autoria do Material – Reginaldo Pereira de Moraes

Coordenação Editorial – Thiago Alves Faria


Coordenação de Produção – Murilo de Oliveira Rufino
Núcleo de Inovação e Desenvolvimento Educacional – Elen Priscila Ribeiro Barbosa
Revisão – Edilene Honorato da Silva Arnas
Design Instrucional – Edson Luiz Mancini Junior
Design Gráfico e Diagramação – Thiago Alves Faria
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Sumário
Apresentação....................................................................................6
1. Introdução ao Movimento Profético na Bíblia............................8
1.1 Definições Iniciais sobre os Profetas (Tipos e a Escola/Profissionais)...9

1.2 O Surgimento dos Profetas e sua Missão......................................................16

1.3 A Mensagem, seu Recebimento e Transmissão .........................................21

1.4 A Literatura Profética e o Uso da Poesia Hebraica......................................37

Síntese do Capítulo...........................................................................40
2. Deus não Tolera a Pecaminosidade:
um Panorama aos Profetas Oséias, Amós e Miquéias..................42
2.1 O Livro do Profeta Oséias...................................................................................... 43

2.2 O Livro do Profeta Amós....................................................................................... 55

2.3 O Livro do Profeta Miquéias................................................................................. 68

Síntese do Capítulo...........................................................................77
Referências........................................................................................79
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Apresentação
Olá! Sou o professor e pastor Reginaldo Pereira de Moraes. Estudei
Teologia na FABAPAR e fiz a integralização pela FEPAR, especializei-me em
Liderança Pastoral pela FABAPAR e concluí meu Mestrado e Doutorado,
também em Teologia, pelas Faculdades EST. Tenho atuação ministerial como
pastor auxiliar desde 2003, e dedico-me à docência desde os idos de 2004.

Tenho escrito alguns artigos e livros, dos quais destaco: “O Fantástico


Mundo dos Fantoches”, “Introdução ao Hebraico”, “Introdução à Teologia
Bíblica do AT”, “Introdução aos Livros Poéticos e Sapienciais” e “Descanso
Sabático em Hebreus”. Ainda me considero um estudante em Teologia e amo
muito o que faço, porque além de abençoar as pessoas para as quais escrevo
ou ministro também sou ricamente abençoado e enriquecido por elas.

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1. Introdução ao Movimento
Profético na Bíblia
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1. Introdução ao Movimento Profético na Bíblia


Neste capítulo você aprenderá as principais questões relacionadas
ao profetismo em Israel, tais como: Por que tiveram tantos destaques?
Como surgiram? Quais as características de sua atuação e de seus
escritos? Como se relacionavam com Deus e com seu povo?, entre outros
aspectos necessários para se entender, mais adiante, a análise de cada
um dos livros reconhecidos como pré-exílicos.

FIGURA 01 – O profeta Davi – Rei Davi em oração

Legenda: GREBBER, Pieter de. O Profeta Davi – Rei Davi em Oração (original: David the
Prophet – King David in Prayer). Entre 1635-1640. 1 original de arte: colorida.
Nashville, TN, Estados Unidos da América. Coleção: Art in the Christian Tradition
(Vanderbilt University). Disponível em: http://diglib.library.vanderbilt.edu/act-imagelink.
pl?RC=57280. Acesso em: 14 jan. 2021. Domínio público.

#Pracegover: A imagem mostra uma pintura com um homem ajoelhado com os olhos
fechados em posição de reverência, enquanto um anjo está nas nuvens acima de sua
cabeça, ungindo-o.

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Estes livros são chamados de pré-exílicos porque, tradicionalmente,


são considerados como tendo o foco de suas mensagens antes do
evento fatídico que foi o exílio babilônico. Naturalmente, neste momento
histórico, ainda temos as duas partes do povo de Deus: Israel (ao norte)
e Judá (ao sul). Talvez você esteja se perguntando: Por que Isaías não foi
considerado um pré-exílico? De fato, há algumas linhas que o consideram
como pré-exílico, mas, pelo fato de boa parte de sua mensagem fazer
referência apenas a Judá e, em um período após o exílio, ele será estudado
mais adiante em outro recorte da história de Israel.

Ainda convém esclarecer que os nove livros (Oséias a Sofonias), que


serão trabalhados nos capítulos 2 a 4 deste livro, também são chamados
de profetas menores. Eles são denominados assim, juntamente com
os livros de Ageu, Zacarias e Malaquias, não porque possuem uma
importância menor ou porque tinham alguma coisa que os denegrissem.
São chamados de “menores” tão somente por conta do tamanho de sua
escrita. Por exemplo, enquanto os demais livros, como Isaías, Jeremias,
Daniel e tantos outros, eram escritos em um único rolo, todos estes últimos
nove livros do Antigo Testamento, após sua oficialização, acabaram sendo
unidos e escritos num único livro.

Dito isto, a seguir você aprenderá sobre definições gerais acerca do


profeta e da profecia, como surgiram e qual a missão dos Profetas, como
eles recebiam e transmitiam sua Mensagem e, por fim, alguns detalhes
acerca da profecia como literatura e o uso da poesia hebraica pelos profetas.

1.1 Definições Iniciais sobre os Profetas (Tipos e


a Escola/Profissionais)
Assim como Stott inicia seu livro sobre pregação, falando sobre o
que não é um pregador, faremos desta maneira. Antes de descobrirmos
as definições e os aspectos bíblicos relacionados ao termo, faz-se
necessário desmistificarmos nossas mentes. Você já deve ter ouvido
alguém falando que recebeu uma profecia ou que profetizou sobre a
vida de alguém. Infelizmente, em alguns círculos evangélicos estas
pessoas recebem, indevidamente, o mesmo status dos profetas bíblicos.

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Outro detalhe muito comum em nossos dias é considerar o profeta, tão


somente, como um adivinhador do futuro e, pior ainda, tem sido muito
comum alguns homens e mulheres ganharem fama por aquilo que dizem,
independentemente se possuem ou não uma vida espiritual condizente
com o viver cristão.

Tem sido cada vez mais comum ignorarmos as palavras de Deus em


Dt 13.1-5, quando claramente adverte que o mais importante no profeta não
é o cumprimento de suas palavras, mas se elas estão alinhadas com Deus
e interessadas em unir e abençoar o povo. O profeta bíblico está muito mais
para um professor, preocupado em ensinar e cuidar do seu povo, do que um
místico alienado que só sabe falar de coisas que ainda não aconteceram e
chamam mais a atenção para si do que para nosso Deus.

Outro aspecto muito interessante, que corrobora com a missão dos


profetas, podemos ver na própria língua hebraica, mais especificamente
na forma de conjugar os verbos. Enquanto nossa língua portuguesa se
preocupa muito com o quando: passado, presente e futuro, como se tudo
existisse numa linha vertical, sucessiva e contínua, o hebreu focava mais
no como a ação foi realizada. No hebraico bíblico, por exemplo, não há
a conotação presente, e o que nós traduzimos como passado e futuro,
na verdade, diz respeito a uma adaptação para o nosso dia a dia, pois
os personagens bíblicos pensavam apenas em dois “modos” diferentes:
completo e incompleto.

Tanto a ação completa, também chamada de perfeita, como


a incompleta ou imperfeita podiam estar ocorrendo tanto em nossa
concepção de passado como no presente ou no futuro. O que definiria
seria tão somente o contexto na qual o verbo foi escrito. Por exemplo,
quando se diz que “No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gn 1.1),1
a ênfase do verbo criar não está indicando que foi em algum lugar do
passado, todavia, no hebraico significa que sua criação foi algo completo,
acabado e totalmente realizado. Por outro lado, quando o salmista diz
que o bem-aventurado “meditará na Lei do Senhor dia e noite.” (Sl 1.2b),

1 Neste livro, quando não houver indicação acerca da versão bíblica utilizada é porque
optamos em traduzir o texto diretamente do hebraico.

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conjuga o verbo meditar no modo incompleto porque por mais que ele
gaste o tempo todo meditando, sempre será uma ação inacabada por
conta da grandeza da Palavra de Deus. Não há como esgotá-la.

Esta forma de encarar a vida (completa e incompleta) nos ajuda a


explicar que para a profecia bíblica a grande questão não era o vaticínio (a
arte de ver e desvendar o futuro), mas muito mais importante era entender
como Deus estaria agindo diante da situação em que o povo se encontrava,
caso não houvesse arrependimento. Infelizmente, hoje, criamos certo
padrão em que profetizar diz respeito somente a conhecer e declarar o
que há de vir, enquanto para os personagens bíblicos era mostrar onde
o povo estava, lembrar onde deveria estar e enfatizar o que ocorreria se
não houvesse arrependimento. Em outras palavras, a missão do profeta
era ajudar o povo a ver seu erro, lembrar do compromisso da aliança que
fizera com Yavé e convidá-lo ao arrependimento.

É muito importante termos isso em mente porque nos ajuda a não


correr certos erros na leitura de textos bíblicos. Já ouvi, por exemplo, que
Jonas ficou bravo pelo fato de Deus não destruir os ninivitas porque sua
palavra estaria comprometida. Afinal, ele teria dito que ela seria destruída
em 40 dias, e não foi. Mas, como veremos mais adiante, a própria Bíblia
mostra o verdadeiro motivo pelo qual ele não queria ir, o que não tem nada
a ver com este suposto medo.

Outra questão importante é percebermos que os profetas não eram


magos adivinhos. Desde muito cedo, a humanidade costumava se envolver
com questões mágicas e de adivinhação, no sentido de não apenas
consultar os deuses para se conhecer o futuro, mas, concomitantemente,
com o desejo de adulterá-lo a favor da necessidade daquele que busca
tal divindade ou seus representantes. Infelizmente, em Israel isso não era
tão diferente. Mesmo com as várias proibições da parte de Deus, volta
e meia, os reis acabavam cedendo à tentação de recorrer às práticas de
magias, adivinhações e agouro, como o rei Acazias, que manda consultar
o deus de Ecrom, Baal Zebube (II Rs 1.1-5). Nas palavras ali registradas,
só aparece o rei perguntando sobre seu futuro, mas, certamente, não era
sua intenção somente saber se iria morrer, mas sim que seus “sacerdotes”
pudessem reverter seu infortúnio.

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Os verdadeiros profetas não detinham a missão de manipular a


Deus, muito pelo contrário, eram emissários dele e a mando dele. É claro
que em algumas situações vemos alguns profetas intercedendo a Deus
por alguém ou pelo povo. Mas, em momento algum, você verá alguém
fazendo uma “mandinga” para evitar por conta própria uma determinada
consequência previamente mencionada pelo próprio Deus. Lembremos
da história em que Isaías chega para o rei Ezequias e diz que ele morrerá
em quinze dias. Como ele se arrepende, o profeta volta e diz que seus dias
se transformarão em quinze anos e manda que o rei coloque na ferida
uma pasta de figo (II Rs 20.1-11). Observe que a ordem de colocar a pasta
foi após Deus revelar ao profeta que curaria o rei.

O profeta é um mensageiro de Yavé e não seu controlador ou manipulador,


como, às vezes, vemos hoje em dia.

A recíproca também é verdadeira. É fato que o foco não era o


profeta em si, mas o agir divino para com seu povo, por intermédio do servo
escolhido para aquela missão. Todavia, quando dizemos que o foco não era
o profeta em si, não significa que ele era apenas um “fantoche nas mãos de
um ventríloquo”, isso não. Deus respeitou a individualidade e a personalidade
de cada um daqueles que comissionou para esta maravilhosa tarefa. Desta
forma, é prudente dizer e entender que o profeta, como tantos outros
personagens bíblicos, era fruto de sua época. Ou seja, mesmo que sua
mensagem possa, e deva, ser retransmitida aos nossos dias, num primeiro
momento, precisamos nos perguntar sobre o significado para sua gente;
e para isso torna-se de fundamental importância observarmos aspectos
referentes ao seu dia a dia em sua época.

Como veremos adiante, detalhadamente, temos profetas da


corte, profetas do campo, uns sacerdotes, outros sem qualquer vínculo
ministerial anterior, uns de origem rica, outros estadistas, poetas, cantores,
homens, mulheres, dentre outros. O que queremos é chamar sua atenção
para o fato de que cada um, independentemente de sua origem, quando
comissionados por Deus, dispunham-se a ser usado por ele, a partir do
que tinham e do que eram. Sua biografia, seu estilo de vida e seu jeito de
ser não eram adulterados, pelo contrário, Deus usava tais peculiaridades
para evidenciar ainda mais sua mensagem.

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Mas, diante de tudo isso, o que afinal significava ser um profeta?


Há algum texto bíblico que defina este personagem? Infelizmente, não
há nenhum texto bíblico que procure definir o que seria um profeta. Na
verdade, a Bíblia não se preocupa muito com a definição as coisas, como
você já deve ter notado. Mas, embora não tenhamos nenhum versículo,
podemos chegar a uma definição razoável do que seria esta função.
Principalmente, ao observarmos os vários exemplos e textos bíblicos
relacionados ao termo.
Nossa palavra “profeta” vem da transliteração do grego profhetes
(é a junção da preposição pro mais o verbo phemy, com o significado de
‘dizer em favor de’). A LXX optou por traduzir uma das palavras hebraicas
(Navi’ – “aquele que fala”) para profeta, isto porque ambas as palavras
têm como significado maior que a pessoa com esta denominação tem a
missão de falar em nome de outro, geralmente, em nome do nosso Deus
ou de algum deus, em se tratando do paganismo.
Certamente, falar algo em nome de uma divindade é uma boa
definição, todavia não abarca toda a essência deste ministério tão
incrivelmente fantástico. Crabtree, citado por Gusso, diz que “O profeta
é aquele que vê e entende a vontade de Deus; que recebe e reconhece
a revelação divina; que distingue entre os pensamentos do seu próprio
coração e a voz de Deus; que anuncia fielmente as coisas que recebe de
Deus”. (GUSSO, 2014, p. 17).
Se você conhece bem a Bíblia, já deve estar fazendo algumas
conexões do tipo: “mas Daniel, num determinado momento não entendeu
a mensagem divina”, conforme ele mesmo declara em Dn 12.8; ou então
“Moisés não conseguiu distinguir entre a vontade divina e os desejos de
sua carne” (Cf. Nm 20.10s); e Jonas não foi um exemplo de quem anuncia
com fidelidade a mensagem divina, afinal fez metade do trabalho e foi
muito sucinto (Cf. Jn 3.4). Se você lembrou destes fatos, parabéns, além de
boa memória são ótimos argumentos contrários à definição do Crabtree.
Todavia, como a Bíblia não se preocupa com uma definição clara do que
seria um profeta, as definições atuais são tentativas de descrever esta
função tão fantástica. Por isso, elas nunca conseguirão ser tão perfeitas, e
mesmo com estes pequenos exemplos de inadequação podemos ficar com
a ideia deste autor clássico entre os batistas brasileiros, mesmo porque,
no geral, é uma boa explicação do que é um profeta veterotestamentário.

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Além das palavras deste autor, é interessante observarmos a


etimologia das palavras hebraicas, utilizadas no Antigo Testamento, para
designar algumas funções destes homens e mulheres que se colocaram
à disposição de Deus. Mesmo porque, no conjunto destas facetas,
conseguimos ter uma noção maior e melhor do que esperar daquele que
vem em nome de Deus. Observe o quadro a seguir:

QUADRO 01: Palavras bíblicas utilizadas para profeta

Tradução
Transliteração Texto
para o Significado geral
do hebraico bíblico
português
Dt 13.1-11,
navi’ profeta Aquele que fala, com ou sem transe.
18.20-22
Um dos primeiros títulos utilizados, tinha
mais a conotação de destacar a habili-
ro’eh vidente I Sm 9.9
dade de se fazer predições (Ex.: vamos
ou não à guerra).
I Sm 9.6I
homem de Pessoa consagrada a Deus (Ex.: Samuel,
’ysh ’elohym Rs 17.18
Deus Elias, Eliseu).
II Rs 4.40
servo de Mesmo com o status que tinham entre o
‘avdey yhwh Am 3.7
Javé povo, ainda eram servos de Deus.
O nome Malaquias pode ser um
mensageiro nome próprio, mas seu significado é
mal’achy Ml 3.1
de Javé “Meu mensageiro”, designando que a
mensagem não era do profeta.
Atalaia,
Mostra a função de se avisar o perigo Ez 3.17 e
tsopheh sentinela,
que está chegando. 33.7
vigia
Destaca a humanidade do profeta,
filho do Ez 3.17,
ben-’adam colocando-o como representante dos
homem 33.7 e Dn 7
humanos.
I Cr 25.5, II
Outra forma de vidente, que recebe sua
hozeh visionário Cr 35.15,
mensagem por meio de visões.
Am 7.12
FONTE: Elaboração a partir de GUSSO, 2014, p. 15-16 e a última linha em SICRE, 2008, p. 76.

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Você deve ter notado que diante de tantas palavras, não é tão simples
achar ou chegar a uma definição que abarque todas as possibilidades que
a terminologia “profeta” leva em seu bojo. No entanto, a partir deste leque
de possibilidades, fica mais fácil entender como e por que homens como
Enoque, Abraão, Moisés, Saul e Davi foram reconhecidos pelo próprio
texto bíblico como profetas. Mesmo que aos nossos olhos, não seriam
de jeito algum. Note que, no fundo, nossa compreensão acerca dos
profetas ainda anda muito atrelada à questão da profecia em si (seja ela
vaticinadora ou não, como aprendemos há pouco). Todavia, precisamos
abrir mais nossas mentes, porque se a Bíblia os chama de profetas, de
fato são. Afinal, é muito mais fácil nossa compreensão estar equivocada
do que a Bíblia estar errada, não é mesmo?

Embora Enoque tenha sido o primeiro profeta a existir, Abrão foi


o primeiro homem do Antigo Testamento a ser chamado de profeta.
Ambos não possuem profecias alguma, mas o texto bíblico foi muito
claro em dizer que “Enoque andou com Deus” (Gn 5.22a). Ou seja, não
há como negar que Enoque foi um homem de Deus (’ysh ’elohym). Quem
melhor do que Abraão para receber o título de ro’eh (aquele que via os
planos de divino)? Afinal Deus se revelou muito intimamente a Abraão,
mostrando-lhe alguns de seus intentos. Seguindo nesta linha, Moisés
ainda hoje é reconhecido como um dos maiores profetas, sem, talvez, ter
proferido qualquer profecia. Mas, como um verdadeiro profeta (navi’), ele
falava todo o tempo em nome de Deus e ajudou o seu povo a entender
os desígnios divinos. Saul e Davi também se enquadram muito bem
quando comparados a esta perspectiva. Eles, respectivamente, podem
tranquilamente ser encarados como ‘avdey yhwh (servos de Yavé) e
mal’achy (mensageiro de Yavé). Mesmo com uma vida oscilante, Saul
conseguiu desenvolver bem seu papel diante do povo e Davi nos deixou
mensagens maravilhosas nas palavras dos salmos que ele compôs. Ou
seja, todos eles, de Enoque a Davi, embora não se enquadrem em nossa
definição comum, foram profetas do Deus altíssimo, sem ter suas vidas
associadas ao ministério de profecias.

Para fecharmos esta questão, quanto à definição em si, também


lembramos da tentativa de Abrego (In: SICRE, 2007, p. 84), que procura
definir os profetas como pessoas inspiradas por Deus que conseguem

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compreender a realidade ao seu redor, a partir da ótica divina e com um


desejo ardente de que seu povo mostre a transformação necessária para
estar em sintonia com os desígnios de Yavé. Em outras palavras, ele vê os
profetas não como meros repetidores da mensagem, mas como agentes
envolvidos e coparticipantes em todo o processo.

Agora, falando acerca de questões gerais de nosso estudo, ainda,


segundo Crabtree (1947, p. 11-20), os profetas, às vezes, eram tidos
como fanáticos pelos incrédulos, mas eles mesmos eram portadores de
profundas convicções e tinham certeza de seu chamado (Jr 1.5), sentiam
o peso ético e espiritual de seu trabalho (Jr 20.7,9), eram idôneos e aptos
para a missão (Isaías era um estadista e extremamente culto, Ezequiel era
sacerdote, Amós um exímio poeta, dentre outros exemplos de maestria
naquilo que faziam) e, acima de tudo, sua própria vontade e consciência
moral não eram violadas (eram homens livres, como Elias que teve a
liberdade de dizer para Deus que não queria mais ser profeta).

Outro aspecto interessante é que enquanto os reis de Judá


recebiam o trono de seus antecessores e os sacerdotes eram escolhidos
da descendência de Arão, a escolha dos profetas não estava limitada a
lugares, à linhagem ou ao gênero. Os homens ou mulheres que se tornaram
profetas o foram em virtude da chamada divina para esta função específica
(CRABTREE, 1947, p. 12). Isto é verdade; mesmo quando observamos os
chamados profetas da escola de profetas, ali encontravam-se homens
de diversas partes, que iam se preparando, mas, de fato, entravam para o
ministério profético somente quando eram comissionados por Yavé.

1.2 O Surgimento dos Profetas e sua Missão


Para falarmos do surgimento da classe profética, precisamos
relembrar um pouco da história de Israel. Você deve lembrar-se de que
a partir de Abraão (Gn 12.1-3) Deus decide formar uma nação para que
por meio dela seu nome fosse reconhecido em toda a terra, por meio do
testemunho de seu povo. A história bíblica não se limita apenas a narrar
os fatos, mas tem a intenção de servir como ensinamento de que o povo
de Deus deve sempre estar em submissão a ele, para que suas bênçãos
possam sempre imperar na vida das pessoas que o professam.

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Quando Moisés é usado por Deus para retirar seu povo do Egito, a
intenção divina é que eles não possuíssem sempre um líder, como um
rei ou comandante. A ideia seria manter a filosofia nômade, na qual o pai
cuida de sua casa, o avô cuida da aldeia (formada pelas casas de cada
filho), o tataravô seria o zelador da tradição do clã, a reunião no dia a dia
de anciãos (formada pelos líderes de cada clã) tomavam as decisões
de cada tribo, e a reunião esporádica com os principais anciãos de cada
tribo decidiam questões e resolviam problemas relacionados a todas as
tribos. Quando lemos sobre os príncipes do povo, no livro de Números,
não se referem a filhos de reis com direito a algum trono. Pelo contrário,
diz respeito aos representantes do povo.

A melhor tradução para isso seria “os principais do povo”. Observe


a explicação que o próprio livro de Nm 7.2 nos dá: “os príncipes do povo
(cabeças das casas de Israel)...”. Em outras palavras, nunca foi da vontade
divina que seu povo fosse liderado por governadores e reis. O objetivo
seria que as pessoas pudessem seguir e obedecer por conta própria as
diretrizes dadas por Deus no Sinai e, caso houvesse alguma divergência,
os anciãos (os chefes de cada grupo menor) deveriam cuidar da situação,
administrar as crises e lembrar a juventude dos grandes feitos e das
ordenanças divinas.

Neste período histórico e nesta proposta de vida, só precisariam de


duas figuras de liderança: o ancião, que cuidaria das questões político-
administrativas do grupo e o sacerdote, que cuidaria das questões de ordem
cúltica e religiosa. Este sistema de governo é chamado de Teocracia, no
qual Deus estaria sendo o líder, representado pelos anciãos e sacerdotes.
Porém, como o povo não quis se sujeitar a essa forma de governo, preferindo
antes a monarquia, Deus atendeu a vontade do povo, e lhes deu um rei.
Juntamente com o rei vieram todos os demais cargos e funções, com os
quais o governo pelos anciãos acabou sendo deixado de lado.

Observe que quando Saul, Davi e Salomão são ungidos rei sobre
Israel, os anciãos já estavam, gradativamente, perdendo sua influência,
mas os sacerdotes ainda detinham seu poder e autoridade. Ou seja, a
função político-administrativa foi assumida pela monarquia e sua estrutura;
no entanto, as questões relacionadas ao sagrado continuavam com os

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sacerdotes. Eles é que, por exemplo, escolhiam e ungiam o próximo rei


para assumir o lugar do anterior; e a sucessão dentre os sumos sacerdotes
era realizada entre eles mesmos. Porém, a partir do reinado de Salomão,
este também toma para si esta dupla responsabilidade. A partir de então,
a sucessão real passa a ser decidida pelo próprio antecessor, antes que
viesse a morrer, ou pela equipe de seus generais; além disso, o rei passa a
determinar quem seria o próximo sumo sacerdote (Cf. I Rs 2.35).

O maior problema desta mudança administrativa foi deixar Deus


de lado de todo o processo. Você deve notar que é na monarquia que
aparece uma maior quantidade de profetas. Como vimos, eles já existiam
antes, como Enoque, Abraão, Moisés, Débora, Eli e Samuel. Mas quando
comparado com o período monárquico, estas aparições foram realmente
muito pequenas.

Em poucas palavras, podemos dizer que os profetas surgiram quando os


líderes da época já não desempenhavam seus devidos papéis.

Na época dos juízes, como o povo precisava muito mais de um


guerreiro, Deus levantou vários juízes para ajudá-los, mas ali já havia a
figura tanto de Débora quanto de Eli e Samuel, que mesclavam a função de
juiz e profeta; com exceção dos dois últimos, que ainda eram sacerdotes.
Ou seja, na época dos juízes, quando os anciãos deixaram de ajudar o
povo a andar nos caminhos divinos, Deus precisou levantar outros tipos
de líderes que o ajudassem naquela situação momentânea e emergencial.

Todavia, no período monárquico, em que os sacerdotes foram


calados e os reis cada vez mais afastavam-se de Deus e da tradição do
povo, houve uma necessidade cada vez maior de alguém que pudesse
zelar pela saúde espiritual do povo. Por isso é que na monarquia há
muito mais profetas do que em qualquer outro período da história de
Israel. Inicialmente surgem como indivíduos isolados, mas com sua
determinação em buscar a vontade divina acima de tudo, acabam caindo
na graça do povo e, em pouco tempo, virando uma categoria de servos
de Deus bem específica, surgindo assim a tão falada “escola de profetas”.

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Hoje em dia, quando se faz menção a este grupo, sempre o é sob


aspectos positivos e como se fosse um grupo inerrante e que sempre
buscava servir a Deus e cumprir os seus propósitos. Porém, basta
uma rápida leitura nas passagens bíblicas para vermos que este grupo
também acabou se corrompendo. Em especial, a partir do momento que
passou a ser sustentado pela Monarquia. Por isso, mais para o final do
período profético, voltamos a encontrar profetas sem qualquer linhagem
(como Amós), oriundos da classe sacerdotal (como Jeremias e Ezequiel)
e vindos da classe dominante (como Isaías e Daniel, que eram da corte).

Como mencionamos, a principal razão do surgimento dos profetas


foi em decorrência do povo e sua liderança se afastarem dos caminhos
divinos e, ainda, abafarem os principais meios de Deus manifestar sua
voz. Por isso, é bom salientar que, independentemente de seus grandes
feitos (como Moisés e Eliseu que fizeram grandes milagres, Ageu que
mudou a vida do povo com apenas três pequenas mensagens), o grande
personagem, o maior protagonista no ministério profético e, quiçá, da
própria história, sempre foi e sempre será o próprio Deus (CRABTREE,
1947, p. 13). Por isso, possuíam um senso tão forte e claro de sua missão
entre seu povo. Podemos ver isso na declaração de Micaías, quando
consultado por Acabe: “Assim como vive Yavé, certamente aquilo que
Yavé me disser, isto falarei” (I Rs 22.14b).

Os profetas tinham noção disto e por isso eles viviam de tal modo
a proclamar e enaltecer o seu Deus. Além disso, segundo Crabtree, eles
tinham como missão: “persuadir o povo a permanecer fiel e obediente à
vontade de Deus” (CRABTREE, 1947, p. 16), isto porque mais do que qualquer
pessoa ou líder, os profetas compreenderam exatamente os perigos que
cercavam o povo de Deus, que embora tão abençoado, era bem pequeno,
quando comparado às nações inimigas. Todavia, não apenas conheciam
o tamanho do perigo, mas tinham uma doutrina coerente e sólida, a
partir da qual conseguiam ser “portadores da mensagem de esperança
da vitória do reino de Deus sobre todos os seus inimigos” (CRABTREE,
1947, p. 17). Eles ensinavam ao povo sua própria história, os princípios
divinos extraídos da Lei dada por Deus ao seu povo e, consequentemente,
“grandes verdades sobre o caráter de Deus” (CRABTREE, 1947, p. 19).

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E a figura do falso profeta? Embora seja tão comum nos dias de hoje
e no Novo Testamento, o Antigo Testamento não usa esta terminologia,
mas o reconhece como sendo aquela pessoa que diz falar em nome de
Deus, mas não o faz. Por exemplo, em Dt 18.20-22, Deus manda matar
o profeta que disser que falou em seu nome e não o fez. Mas, como
reconhecer este tipo de agente que se diz ser enviado por Deus e não foi?

A própria Bíblia nos dá ao menos duas respostas para esta pergunta


tão intrigante. A primeira questão é checar o acontecimento em si: “quando
o profeta falar em nome de Yavé e a palavra não vier nem acontecer, esta
é a palavra que Yavé não falou.” (Dt 18.22a). Outra dica muito valiosa,
também mencionada em Deuteronômio (13.1-4), é estar atento à intenção
do tal profeta. Mesmo que ele consiga fazer prodígios e sinais, mas se
levar o povo para longe do Senhor, não deverá ser ouvido. Curiosamente,
em ambas as passagens, este “falso mensageiro” é chamado apenas de
“profeta” (navi’) ou no mínimo “um profeta de mentira”.

Abrego (In: SICRE, 2007, p. 84-85) nos ajuda a entender a razão


disso acontecer. Segundo ele, o profeta nem sempre recebe a mensagem
totalmente clara, como veremos mais adiante. Este agente e servo divino,
muitas vezes, precisa desvelar aquilo que Deus lhe mostrou por meio de
uma visão ou sonho, e transformar numa linguagem acessível a seus
ouvintes. Muitas vezes, a mensagem é bastante ambígua e por isso o
profeta precisa sempre estar em sintonia com seu Deus. Ele ainda nos
chama a atenção para cuidar antes de sair rotulando os personagens.

O profeta tido como falso ou mentiroso é aquele que vive


insistentemente longe de Yavé. Diferentemente de alguns casos, em que
servos legítimos do Senhor se equivocaram em suas interpretações. Por
exemplo, Natan que de imediato apoiou a iniciativa de Davi construir o
templo, mas no dia seguinte mudou de ideia e deu outra alternativa para
o seu rei (II Sm 7.1-7). Natan não pode ser considerado um falso profeta,
embora, naquele dia fatídico, acabou falando por conta própria (ABREGO,
In: SICRE, 2007, p. 86).

Segundo Crenshaw, o profeta pode se equivocar por conta de sua


própria fé ou experiência ou, ainda, pode ser “enganado” pelo próprio
Senhor (CRENSHAW, citado por ABREGO, In: SICRE, 2007, p. 90). Lembram

20
< voltar

do profeta Micaías, citado anteriormente? Acabe estava unindo forças


com Josafá; há muito tempo Norte e Sul não agiam em união, então como
o rei do Sul era mais temente a Deus pediu que se consultasse a vontade
divina, por intermédio dos profetas, para ter certeza que deveriam ir à
guerra. Os quatrocentos profetas de Acabe foram favoráveis a ele, mas
Micaías foi contra; e no decorrer da trama, ele chega a declarar que o
próprio Deus havia enganado os profetas de Acabe.

Outra causa de equívoco entre os profetas é a própria natureza


humana. Coisas como: a) o desejo de ser bem sucedido; b) a pressão do rei
em querer que sua vontade prevaleça; c) a pressão de se adequar à teologia
popular, falando para agradar ao povo; d) a força da tradição religiosa,
muitas vezes distorcida dos desígnios divinos, mas com força suficiente
para direcionar a vida de todos; e) a valorização do individualismo, surgido
com o arrefecimento da solidariedade tão presente no período tribal, mas
quase nula, na decadente sociedade monárquica (CRENSHAW, citado por
ABREGO, In: SICRE, 2007, p. 90).

1.3 A Mensagem, seu Recebimento e


Transmissão
Neste tópico aprenderemos acerca do tipo de mensagem que os
profetas tinham. Embora individuais e com suas personalidades e estilos
respeitados, eles tinham um tema norteador para seus escritos. Também
veremos as principais formas pelas quais Deus se revelava a seus servos
e como estes transmitiam a mensagem recebida para seus conterrâneos.

1.3.1 O Tipo de Mensagem a ser Transmitida


Segundo Crabtree (1947, p. 13-14), embora houvesse muita
diferença entre cada profeta, entre o tipo de preparo de cada um, nas
questões políticas e sociais que os envolviam, nas questões econômicas e
religiosas que imperavam sobre o povo e, principalmente, na forma como
cada geração reagia à mensagem profética genuinamente divina, havia
uma harmonia muito grande no conteúdo proferido por todos os profetas,
o que ele chama de doutrina profética. Por exemplo, o dia de Yavé é um

21
< voltar

momento de prestação de contas. Isto é de consenso geral, o que muda


entre um profeta e outro é o alvo deste dia de juízo. Para Obadias, os que
sofrerão a punição são os edomitas; para Joel, o próprio povo, como um
todo; para Sofonias e Amós, somente os israelitas infiéis.

Em outras palavras, a mensagem de cada profeta é determinada


pela condição social-espiritual do povo, no momento em que a recebe.
Enquanto Isaías cria veementemente que Yavé livraria Jerusalém das
mãos dos assírios, cerca de dois séculos mais tarde, Jeremias era o único
a defender que Yavé não livraria Jerusalém das mãos dos babilônios. Além
disso, curiosamente, um mesmo profeta podia e precisaria mudar a ênfase
de sua linguagem e atuação, dependendo do estado de espírito de seu
povo. Como Ezequiel, por exemplo, que no início pregava veementemente
contra a opinião pública e a favor da destruição de Jerusalém. Após suas
palavras se cumprirem e o povo ficar totalmente abalado e sem esperança,
ele passa a enfocar sua tarefa em animar o povo a confiar na promessa
divina (CRABTREE, 1947, p. 15).

Além desta versatilidade, inerente a cada profeta, sua mensagem


girava muito em torno da justiça. Hoje se fala muito em justiça social, mas
nos textos proféticos não há esta especificidade. Talvez porque a justiça
como um todo depreenda de uma questão maior, o problema da falta de
ética. Há quem defenda que o tema central dos profetas seria a questão
ética, mas Crabtree (1947, p. 20-21) defende a ideia de que o principal
problema era teológico, pois não há ética verdadeira sem uma boa base
teológica e, principalmente, um relacionamento sério com Deus. Por isso
é que estes servos de Deus sempre procuravam resgatar a consciência
do povo de que eles foram escolhidos para: a) ser uma nação separada e
dedicada ao serviço a Deus; b) ser um reino sacerdotal, no sentido de ser
o intermediário entre os demais povos e o Senhor; c) ser um guardião e
transmissor da revelação específica de Yavé; d) ser uma testemunha de
que há consequências para o pecado.

Infelizmente, Israel preferiu andar na contramão da história, quando


optou por ignorar os preceitos recebidos no Sinai e, principalmente, as
chamadas de atenção dada por cada profeta. Parece que quanto mais
revelação possuía, tanto maior era sua afronta e seu pecado. Sim, a

22
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despeito de tanta revelação e do tanto que Yavé se doou a seu povo,


este se tornou tão pecaminoso quanto as nações pagãs à sua volta e
perdeu completamente o seu propósito e missão (CRABTREE, 1947, p.
21). Por esta razão, quanto mais a nação se rebelava, quanto maior era
sua pecaminosidade, tanto mais Deus levantava homens e mulheres para
servir de atalaias, avisando o povo sobre onde estavam, de onde vieram
e o que fazer para retornar à santidade e dignidade anterior, usando para
isso vários meios de revelação a seus servos e dando liberdade àqueles
que também ousassem na forma de transmissão da mensagem. Afinal,
o que importava não era como a mensagem chegou ou seria transmitida,
mas que ela era verdadeira e que veio com a autoridade do próprio Deus.

1.3.2 As Principais Formas de Recebimento da


Mensagem pelos Profetas
Não sei você, mas geralmente quando falamos em revelação divina
normalmente me vem à mente a expressão “E disse Deus...”. Quando lemos
esta expressão nas Sagradas Escrituras, temos a tendência imediata de
achar que Deus falou palavra por palavra aos ouvidos de seus servos. O
verbo hebraico que aparece nesta construção, normalmente traduzido
por “disse”, é wayomer e o seu principal significado é “E comunicou”. Sua
ênfase está no fato de que Deus notificou, independentemente da forma
como o fez. É claro que houve ocasiões, como no chamado de Samuel,
em que Deus falou de forma audível, como se fosse uma pessoa (I Sm
3.4-5), mas normalmente não era assim. A seguir, veremos as principais
formas pelas quais Deus escolheu se revelar a seus servos.

Diante de sua grandeza, não teríamos como esperar menos. Deus se


revelou a seus profetas de várias formas, umas bem explícitas enquanto
em outras nem tanto assim. Ele se manifestou mostrando sua mensagem
por meio da própria história do povo, de oráculos, sonhos, visões, êxtase
ou transe, casual ou intuitiva, com uso de trovões, de sua própria palavra e
ainda algumas formas indefinidas. Em muitas delas, o profeta participava
de forma bastante ativa, interpretando e criando a mensagem, enquanto
noutras era bem passivo, servia quase que como mero receptor e
transmissor. Vejamos cada uma delas com mais detalhes.

23
< voltar

Podemos tranquilamente dizer que a história do próprio povo foi


uma fonte muito rica de inspiração e até mesmo de mensagens proféticas.
Segundo Ausin (In: SICRE, 2007, p. 67-69), nossos personagens, na
verdade, não apenas testemunhavam ou lembravam os principais feitos
e acontecidos no passado de seu povo, eles de fato os liam de forma
diferente, interpretando suas lições e significados. Realmente podemos
dizer que os profetas tinham a grande habilidade de ver além do fato
em si. Além de eles contemplarem com profundidade a realidade que os
cercavam, conseguiam enxergá-la com os olhos bem abertos, como se
usassem os próprios olhos de Deus.

Ainda, segundo este mesmo autor, havia três grandes temas que
norteavam e serviam de baliza para o olhar dos profetas: o monoteísmo,
a eleição e a missão do povo entre as nações. O que levava os profetas
a se verem responsáveis por relembrar a história e transmitir a grande
mensagem de que: a) Deus é único e, consequentemente, é o Senhor
absoluto, assim, nada ocorre sem ser de seu agrado; b) Quando Yavé
fez uma aliança com Israel, não significava que as demais nações foram
excluídas de seus planos, tampouco que Israel poderia viver de qualquer
forma, como se fosse um “filho mimado”, pelo contrário, se pecassem
contra Deus, seriam castigados, mas não para sua própria ruína, mas
com o intento de se arrependerem de seus maus caminhos; c) Deus não
escolheu Israel para que tirasse proveito próprio; antes, como um bom
servo de Yavé, deveria levar a bênção e o conhecimento de seu Deus às
outras pessoas e nações.

Por isso, quase todos os livros proféticos são bem enfáticos em


recorrer à história e aos grandes feitos de Deus no passado. Por isso,
temas como o êxodo, a aliança e o reinado davídico eram constantemente
relembrados, como se fosse reinterpretado, dando luz aos desafios
contemporâneos à época em que o profeta estava atuando.

Outra forma de se consultar a vontade divina é por meio dos


oráculos, como menciona Sicre (2008, p. 48-60). Todavia, ele não chega
a descrever como de fato os profetas chegavam a consultar a Deus.
Como bem sabemos, a prática oracular foi muito bem difundida entre
os sacerdotes, que utilizavam o Éfode e o Urim e Tumim para consultar

24
< voltar

a Deus e determinar qual seria sua vontade. Segundo de Vaux (2003, p.


388-390), esta prática ficou mais restrita aos sacerdotes e, principalmente,
até o reinado de Davi. Assim, embora ainda tenhamos autores que digam
ser o oráculo uma forma de os profetas consultarem a Deus, não foram
específicos em detalhar como isso ocorria.

Às vezes, o profeta ou alguém sonhava e isto era entendido como


uma mensagem divina. Era comum ver na imagem do sonho alguma
mensagem impregnada e, por isso, pessoas capazes de interpretá-lo
eram chamadas. Pelos relatos bíblicos sobre a história de José, vemos
claramente que a importância dos sonhos era bastante forte naqueles
dias. Observe que não fora apenas José, o que sonhou, que estava convicto
e intrigado com a mensagem, mas seu próprio pai, ao repreendê-lo, dá a
entender que havia compreendido a mensagem, embora não concordasse
com ela (Cf. Gn 37.9-10).

FIGURA 02 – O sonho de Jacó

Legenda: BOL, Ferdinand.


O Sonho de Jacó (original:
Jacob’s Dream). 1650. 1
original de arte: colorida.
Nashville, TN, Estados Unidos
da América. Coleção: Art in the
Christian Tradition (Vanderbilt
University). Disponível
em: http://diglib.library.
vanderbilt.edu/act-imagelink.
pl?RC=47419. Acesso em: 14
jan. 2021. Domínio público.

#Pracegover: A imagem
mostra uma pintura com um
homem dormindo e dois anjos
estendendo a mão sobre sua
cabeça lhe conduzindo os
sonhos.

25
< voltar

Dentro do período profético, você há de lembrar do episódio em que


Nabucodonosor tem um sonho e fica tão impressionado que chama seus
sábios para dizer que não se lembra do que sonhou porque não queria ser
refém de qualquer pessoa com uma interpretação qualquer. Segundo ele,
se o intérprete fosse realmente bom, também teria que saber qual teria
sido o sonho. Desta forma, Daniel pede um tempo ao Rei, ora e espera em
Deus, até que este lhe revela tanto o sonho como o significado (Cf. Dn 2).

Davis (1996, p. 570) nos lembra que nem todo sonho tem uma
mensagem especial ou é algo comum e cotidiano, como os citados por
Jó 20.8 e Sl 73.20. Todavia, quando utilizados por Deus, eles podem: a)
afetar o ânimo das pessoas, como em Jz 7.13-15 que narra os midianitas
aterrorizados com o sonho que um deles teve e, por outro lado, Gideão se
sente confortado, com o mesmo sonho; b) instruir as pessoas, como no
caso em que Abimeleque foi orientado em como proceder com relação
a Abraão (Gn 20.2-3) ou Nabucodonosor (Dn 2.1,4,36) e o próprio Daniel
(Dn 7.1); c) servir como mensagem profética, anunciando algo que irá
acontecer. Os maiores exemplos desta última categoria estão com
José e Daniel, narrados respectivamente em Gn 41.16 e Dn 2.25-28,47.
Davis ainda nos lembra que quanto mais rara era a revelação especial
de Deus, maior a quantidade de sonhos sendo utilizados como meios de
sua manifestação e orientação. E, assim, como havia recomendações
para os que profetizavam falsamente, Dt 13.1-5 também recriminava os
sonhadores ou seus intérpretes que usassem esta técnica para proceder
de modo leviano.

Outra maneira de se entender a vontade e os desígnios de Yavé era


por meio de visões. Estas eram bastante parecidas com os sonhos, só
que enquanto aqueles eram recebidos durante o sono, a visão era recebida
enquanto o receptor estava acordado e lúcido. Segundo Davis (1996, p.
619), a Bíblia faz menção a dois tipos de visões: a noturna e a obtida pelos
profetas. Quanto à visão noturna, ao que parece, é obtida quando a pessoa
perde o sono, como ocorreu com Jó (20.8) ou sem uma causa específica,
como foi citada em Isaías 29.7 e Daniel 7.13; já a visão profética mostra
que Deus se comunica com seus escolhidos, respeitando-se as leis da
mente humana.

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< voltar

As visões podem se subdividir em duas categorias: simples e abstratas.


Asprimeirassãoaquelasemqueo profeta vêcoisas simples edocotidiano,mas
comsuainspiraçãoconsegueretirarliçõesespirituaisapartirdelas,comoAmós
7.1-9 que vê gafanhotos, fogo e um muro com um prumo. Normalmente,
elas seguem um pequeno roteiro: a) primeiro Deus mostra a visão; b) Yavé
pergunta o que o profeta vê; c) o profeta dá sua opinião; d) Deus revela sua
mensagem. Um exemplo bem claro disso está em Ez 37.1-23. Mas também
existem as visões extáticas, mais complexas, nas quais os profetas viam
coisas tão abstratas que, mesmo com a descrição que eles faziam, as
pessoas ficavam sem saber exatamente o que eles viram, como a visão no
chamado de Isaías (cap. 6) e as visões de Ezequiel e Zacarias.

É importante ressaltar ainda que todas as visões, independentemente


do tipo, eram dadas somente a homens santos, consagrados e em
comunhão com Deus. E, assim como os sonhos, as visões continham
uma significação bastante expressiva e carregada de sentido e ensino
moral. Mas, infelizmente também havia os embusteiros, que procuravam
imitar aqueles que possuíam visões autênticas e a estes os profetas
rechaçavam veementemente, como em Jr 14.14, 23.16, Ez 13.7-8.

A quarta forma de recepção da mensagem divina a ser destacada


aqui é o êxtase ou transe. Segundo Davis (1996, p. 216), o êxtase é o
“estado em que as funções dos sentidos ficam suspensas e a alma
parece fora do corpo, durante o tempo em que contempla algum objeto
extraordinário.”. Talvez, o mais prudente seja não delimitar que em toda
êxtase “a alma ficaria fora do corpo”, mas estar ciente do fato de que a
pessoa está “fora de si”. Como nos diz a definição de Gunkel (citado por
SICRE, 2008, p. 107), “o êxtase é um estado peculiar do espírito e do corpo
que se apodera do homem quando este experimenta uma sensação
particularmente intensa.”. Em outras palavras, neste caso, a pessoa não
está em uso de seus domínios perfeitos. Naturalmente, também não
significa dizer que seria um estágio da loucura. Não, isso não.

Diferentemente do louco, que ao ficar alienado da realidade perde a


total noção do que é certo e errado, do que é real ou imaginável, chegando
até a viver sua fantasia, como se fosse a mais pura realidade, o profeta em
êxtase ou transe perdia momentaneamente o sentido da realidade e neste

27
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momento seu subconsciente conseguia captar algo que sua mente “sã”
não conseguiria. Quando retornava a si, sabia diferenciar as duas coisas,
mesmo que não a compreendesse por completo (Cf. Dn 8.27). O mais
comum era um profeta entrar em transe por estar muito tempo sem se
alimentar, como ocorreu com Daniel (10.2-4), mas também podia ocorrer
de o êxtase acontecer sem um motivo aparente, como em Dn 7.15 e II Rs
8.11 ou causado especificamente pelo Espírito de Deus (I Sm 19.23-24).

Outra forma bastante comum, de revelação divina, era a casual


ou intuitiva. Isso acontecia quando o próprio profeta, ao observar o seu
derredor, acabava “deduzindo” a mensagem. Assim como os sábios, ao
verem e considerarem certas situações aprendiam com elas (Pv 24.32),
isso também acontecia com os servos de Yavé da linhagem profética.
Sicre (2008, p. 105) corrobora com essa ideia, quando diz que os profetas
também recebiam as mensagens divinas por meio da vida como um todo,
dos próprios acontecimentos do dia a dia e das pessoas que os rodeavam.

Observe o texto de Jeremias 18.1-10. Normalmente imaginamos


Deus falando audivelmente com Jeremias, tanto no verso 2, quanto no
verso 5. Todavia, faz muito mais sentido aceitar que o profeta ao ver o
oleiro trabalhando (18.3-4) captou a mensagem que Yavé teria para ele
transmitir a seu povo. Isto por simples dedução: se Deus teria falado
verbalmente com Jeremias a partir do versículo 5, não faz o menor sentido
ele ter enviado seu profeta até a casa do oleiro. Seria impossível Jeremias
não conhecer como era o processo de criação de um vaso. Assim, ele
não precisaria estar lá, para entender o que Deus estaria falando eu seus
ouvidos. Por outro lado, ao ver o vaso sendo construído, conseguiu captar
uma mensagem a partir de tal processo.

Outro exemplo disso, podemos ver na trajetória de Balaão (Nm


22-24). O texto bíblico relata que ele consultou a Deus para ver se deveria
ir ou não até Balaque. Porém, não especifica o que ele deveria dizer. Mas,
todas as três vezes em que abençoou o povo de Israel, contra a vontade
de Balaque, Balaão proferiu palavras de bênçãos em nome de Yavé, sem
nem sequer consultar a Deus para saber o que dizer. Ele simplesmente
deduziu a partir da própria história e trajetória do povo hebreu até ali.
Embora em Nm 22.35 o Anjo do Senhor tenha dito a ele para falar apenas
o que Deus colocasse em sua boca, nos versículos que antecedem as

28
< voltar

suas falas (23.7,18 e 24.3,15) é claramente declarado: “E (Balaão) fez sua


parábola e disse...”. Ou seja, o texto bíblico é muito claro em mostrar que
ele não era nenhuma marionete nas mãos divinas.

A sexta forma de Deus revelar seus planos é por meio de sua voz, como
trovão. Embora a palavra hebraica kol possa significar voz e som, quando
relacionada a este tipo de revelação geralmente é uma fala mais “subjetiva”,
por exemplo, como no caso em que Deus falava com Moisés no Monte Sinai,
mas o povo só ouvia o barulho dos trovões (Êx 19.16-19). Outros textos como
Jó 37.4-5 e 40.9 e o Salmo 29 mostram a grandeza divina e sua predileção
em se comunicar por meio dos trovões. Teologicamente, a comparação
da voz de Deus com a de trovões é uma figura de linguagem para mostrar
o quão profunda, impactante e clara é essa voz, além de declarar seu
poder e majestade. Obviamente, você já deve ter notado que este uso não
nos ajuda muito a compreender como era de fato o falar de Yavé. Mesmo
porque, enquanto para o profeta era algo nítido e certeiro, para as demais
pessoas era simplesmente um som barulhento e quase insuportável.

Outra forma de Deus se revelar era por meio de sua palavra.


Curiosamente, o termo em hebraico é davar, que também é a raiz do verbo
falar. Isto poderia nos levar a uma falsa percepção de que tal palavra se
preocuparia em descrever o modus operandi pelo qual Yavé se deixou
conhecer. Principalmente, quando lemos rapidamente clara, e muito
recorrente, expressão “e veio a palavra de Deus a fulano...”, encontradas
em I Rs 12.22, Is 38.4, Jr 1.2, Os 1.1, Jl 1.1, Jn 1.1, Mq 1.1, Sf 1.1, dentre
outras 125 vezes que aparece em todo o AT. Todavia, só ela por si só
não esclarece muita coisa. A única certeza é saber que Yavé não falou
literalmente com seus servos. Tinha muito mais a intenção de mostrar
que a mensagem não era apenas do profeta, mas tinha sua origem na
divindade, do que especificar o modo como ela chegou até eles.

Além do vocábulo davar, outro que segue nesta mesma linha é a


palavra yomer. Enquanto o primeiro, literalmente pode ser o verbo falar, o
segundo é dizer. À semelhança do primeiro, são muitíssimos os versículos
que declaram que “Deus disse algo a alguém”, cerca de 100 vezes em todo o
AT. Todavia, antes de serem descrições claras acerca da maneira como foi
feito, tem muito mais a ver com a ênfase de que a mensagem veio de Deus.

29
< voltar

Para uma melhor compreensão dos termos, toda vez que lermos
as seguintes expressões “e veio a palavra do Senhor” ou “e disse Deus”,
o melhor seria interpretá-las da seguinte forma: “e veio a revelação do
Senhor”, ou “e comunicou Deus”. Afinal, volto a enfatizar que a intenção do
texto bíblico não era descrever como a revelação foi obtida (pela fala ou
pelo dizer), pelo contrário, são expressões genéricas que enfatizam muito
mais quem agiu do que como foi sua ação.

Por fim, ainda havia algumas formas indefinidas, como o caso em


que é descrito em II Rs 20. O primeiro verso apenas menciona que Isaías
foi até Ezequias com uma mensagem divina, mas não especifica como
a obteve. Mas, o mais intrigante está no quarto versículo, que diz que ele
estava caminhando quando a palavra de Deus veio a ele, mandando-o
retornar com outra mensagem para o rei. Não há a menor chance de
sabermos como foi esta revelação. Só sabemos que ele foi orientado por
Deus, retornou ao rei, transmitiu sua nova mensagem e o rei teve mais
quinze anos de vida.

Independentemente da forma de recepção, os profetas tinham


certeza e convicção de que suas mensagens eram de fato oriundas
diretamente do próprio Yavé. Além disso, não existia uma forma de
recebimento que fosse mais importante que outra e, principalmente, não
cabia ao profeta determinar a forma pela qual Deus se revelaria a ele.
Eles eram servos e como tais estavam abertos aos meios que seu Deus
escolhia para se comunicar a eles. Mesmo porque todas as formas do
Senhor se revelar, indistintamente, serviam unicamente com o propósito
maior de se fazer conhecida a sua vontade e, de posse do seu conteúdo,
o profeta então pensava na melhor forma de transmiti-la ao seu povo.
Com exceção, é claro, dos casos em que o próprio Deus previamente
determinava como a mensagem deveria ser transmitida. Mas, estes
detalhes é assunto de nosso próximo tópico, em que veremos com
mais profundidade as formas e maneiras com as quais os profetas se
dispunham a transmitir sua mensagem.

Aqui, resta-nos ainda esclarecer que por maior que fosse qualquer
uma destas formas de revelação escolhida por Deus para se revelar ao
seu servo, a revelação divina sempre foi gradual, progressiva e nunca em

30
< voltar

sua totalidade. Vejamos o exemplo do profeta Isaías, embora tenha sido


alguém muito usado para descrever sobre a vinda do messias, para ela,
claramente, seriam dois “eventos” distintos: um protagonizado pelo servo
sofredor e outro pelo ungido triunfante. Hoje, sabemos que ambos se
cumpriram na pessoa e no ministério de Jesus, mas em momento algum
Isaías diz que são a mesma pessoa.

1.3.3 Os Tipos de Transmissão da Mensagem


Assim como Deus era hábil e bem dinâmico no uso de várias formas
para se revelar a cada profeta ou a cada situação, seus mensageiros
também gozavam de liberdade e criatividade para escolher a melhor
forma de comunicar a mensagem que recebiam. Com exceção dos
profetas Ezequiel e Habacuque, que foram orientados respectivamente a
escreverem num livro e numa placa, normalmente cabia a cada profeta a
decisão da maneira mais adequada para repassar o recado recebido. Por
esta razão, encontramos profetas conversando, pronunciando, gritando,
escrevendo, encenando, cantando, declamando, indo direto ao ponto ou
contando fábulas ou parábolas para transmitir a mensagem que recebera
do Senhor. Assim como não importava a forma como cada mensagem
fora recebida, de igual modo, a importância não estava na maneira
como o profeta anunciava sua profecia, mas no fato de que aquilo era
reconhecido como palavra de Yavé. Todavia, com fins didáticos, a seguir
falaremos um pouco sobre cada forma de se divulgar a mensagem dos
profetas. Eles utilizavam o tanto de discurso, como uma fala direta ou
os oráculos, escreviam livros ou em placas como se fossem outdoors;
alguns cantavam ou elaboravam poesia e alguns chegavam até a encenar
a mensagem para que ela ficasse bem marcada na mente do povo.

Palavra falada – ao que parece era a forma mais usual de se


transmitir uma profecia. O profeta simplesmente chegava diante da
pessoa que deveria ouvir a mensagem e começava a pronunciar suas
palavras. Como Natã, ao expor o pecado de adultério e homicídio de
Davi (II Sm 12.1-23), Micaías é convidado pelo rei a dar sua opinião e ao
dialogar com Acabe vai revelando sua mensagem (II Cr 18.8-16), Daniel
é chamado à presença de Belsazar para explicar as palavras na parede e

31
< voltar

ali mesmo interpretou e disse seu significado para o rei (Dn 5.17-28), ou
Jonas que gritava pela cidade sua pequena frase de condenação (Jn 3.4);
dentre outros exemplos que mostram os mensageiros de Yavé falando
diretamente sua mensagem a quem de direito.

Oráculo – podemos dizer que é um subtítulo da forma anterior, afinal


ela também é falada. Porém, aqui colocamos com certo destaque porque a
transliteração do hebraico é masa’, com o significado principal de oráculo,
pronunciamento ou sentença (KIRST, 2007, p. 143), normalmente traduzido
como profecia ou mensagens, dependendo da versão bíblica analisada. A
Bíblia não dá nenhum indício de como seria entregue, mas ao que parece,
assim como um juiz anuncia seu veredicto, o profeta simplesmente
pronunciava sua mensagem, como se fosse um arauto falando aos seus
ouvintes. Ao observar o conteúdo de vários masa’ym, podemos dizer que
esta terminologia dizia mais respeito ao conteúdo da mensagem do que
à forma como ela era transmitida. Ou seja, normalmente, o masa’ era uma
mensagem profética mais dura, mostrando que o juiz supremo julgou tal
pessoa ou país, como era mais comum, e enviou sua sentença, por meio
do profeta (Cf. Is 13.1; 15.1; 19.1; 21.1,11,13; 22.1; 23.1; Jr 1.16; Na 1.1; Ha
1.1; Zc 12.1).

Livro – quando o profeta estava impedido de falar frente a frente


com seu público, usava do artifício de escrever suas palavras e enviar
como se fosse uma carta. Pelo que sabemos dos relatos bíblicos, o profeta
Jeremias era o que mais usava deste tipo recurso. Em seu livro, há pelo
menos quatro registros dele escrevendo suas palavras em um livro: a)
para mandar lembranças e palavra de esperança aos seus conterrâneos
que estavam na Babilônia, enquanto ele estava em Jerusalém (Jr 29);
b) as palavras que Baruque escreveu num livro, enquanto Jeremias as
ditava da prisão, por estar preso e proibido de se aproximar do rei (Jr 36.2);
c) novamente as palavras do livro que havia sido rasgado e queimado,
para que Baruque as reescrevesse (36.28); d) outra mensagem ditada a
Baruque (Jr 45); e) uma profecia contra a Babilônia escrita em um livro
e enviada pelas mãos do camareiro-mor de Zedequias (Jr 51.59-63). O
curioso é que em duas destas ocasiões (36.2,28) foi o próprio Yavé quem
ordenou que Jeremias pegasse um rolo para registrar suas palavras. As
demais, ele fez por conta própria.

32
< voltar

Quando falo que Jeremias era o que mais escrevia, digo isto
me referindo à sua apresentação imediata; pois muitos outros também
escreveram ou tiveram suas mensagens escritas, algum tempo depois de
ela der sido pronunciada a seu público-alvo. Como Jonas, por exemplo, que
tem uma escrita muito depois do acontecido. Quanto a esta importância
de se escrever a mensagem, de imediato ou algum tempo depois, Zimmerli
(citado por SICRE, 2008, p. 174) nos aponta pelo menos três razões para
as quais isso ocorria: a) para ficar ainda mais impregnada, pois além de
ouvir a mensagem, o ouvinte poderia depois olha-la e lê-la; b) para servir
de testemunho de que a desgraça ocorrida poderia ser evitada, caso os
ouvintes se arrependessem; c) para causar um impacto ainda maior, como
se estivesse sacudindo os ouvintes, uma vez que era escrita.

Concordamos com ele em partes porque, numa era em que o


processo de escrita era tão caro e, dependendo do período histórico, a
grande maioria das pessoas era analfabeta, inviável aplicarmos as três
razões apresentadas por ele para todas as profecias. Porém, podemos
dizer com certeza que quando era conveniente, o profeta usava o recurso
da escrita para aumentar o poder de transmissão de sua mensagem.

Outdoors – além das palavras escritas formalmente em livros,


como acabamos de mencionar, houve também, ao menos, duas ocasiões
em que o próprio Yavé ordenou que os profetas escrevessem sua breve
mensagem numa tábua grande, como se fosse uma placa indicativa, para
que as pessoas pudessem ver ao passar pelo caminho, como se fosse os
nossos outdoors modernos. Com a grande diferença de que, em vez de
vender algo bom e agradável, transmitia uma mensagem de condenação.
Em Is 8.1, o profeta escreveu as seguintes palavras: “Rápido despojo,
presa segura”, enquanto que em Hc 2.1-4 é narrado que o mensageiro
deveria escrever a visão toda em letras bem grandes para facilitar a
leitura. Talvez você esteja se perguntando, mas e os analfabetos, como
foi dito nos parágrafos anteriores? Na época de Habacuque já havia um
pouco mais de alfabetizados, graças à cultura recebida da Babilônia e, na
época de Isaías, mesmo os analfabetos acabariam sendo impactados.
Pois ao passar por uma placa, algo totalmente novo para sua época,
certamente a pessoa perguntaria o significado daquilo e conseguiria
acesso à mensagem de forma indireta.

33
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Canção ou poesia – por se tratar de um povo extremamente rico


e criativo no quesito cultural, já era de se esperar a transmissão do recado
profético por meio de música ou poesia, tão comum no meio do próprio
povo. Sobre os aspectos poéticos, convém ressaltar que a poesia não é
apenas encontrada nos livros poéticos e sapienciais. Ela se espalha por
todo o texto do Antigo Testamento, principalmente, em meio aos profetas.
Só para ter uma ideia, há quem defenda que os profetas Isaías e Amós são
os maiores poetas do AT. Muitas vezes, não as vemos porque a poesia
hebraica é bem distinta da nossa. Outras questões relacionadas à poesia
entre os profetas serão comentadas no próximo tópico, quando falaremos
da literatura e do cuidado necessário que se deve ter ao ler a poesia nas
mensagens proféticas.

Além da poesia, mas de certo modo vinculada a ela, também


encontramos muita música entre os profetas. Sim, nossos personagens
em estudo eram exímios em registrar ou repassar suas mensagens com o
uso de acordes musicais. Eis alguns exemplos de profecias transmitidas em
forma de canção: a) a visão triunfalista de Obadias: muito provavelmente,
este profeta não foi até os edomitas para pronunciar sua profecia. Mas,
ao estruturá-la em forma de um canto de triunfo, muito provavelmente os
judeus, seus conterrâneos, iam cantando, até que chegava ao destinatário
pretendido; b) o motejo de Jeremias, mais conhecido como Lamentações,
é um belíssimo canto, estruturado em alto arranjo poético, mas é um
canto fúnebre. O profeta se coloca diante de Deus, como se estivesse
no funeral de sua cidade e mesmo ali, de forma tão trágica e triste,
consegue vislumbrar esperança; c) o registro feito pelo profeta Jonas
(2.2-9) de sua oração em forma de salmo, que era sempre cantado
em sua época; d) a menção no livro de Habacuque de que uma de
suas orações foi feita à moda de Sigionote (3.2-20). Embora seja um
termo com tradução um tanto quanto incerta, com certeza podemos
dizer que era uma música (pela descrição no último versículo),
e muito provavelmente era um estilo mais para a linha emotiva;
e) Am 4.13; 5.8-9; 9.5-6, que parece utilizar fragmentos de hinos
relacionados ao culto e ao poder de Deus; f) Isaías 12, que é um belíssimo
hino composto pelo profeta.

34
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Ação simbólica – diferentemente de seus povos vizinhos, que


usavam o simbolismo e o teatro como ação mágica, como se estivessem
refazendo e modificando a ação real, entre os israelitas, esta prática tinha
muito mais o intuito de ratificar e deixar bem impregnada a mensagem
na memória. Se alguns escreviam, para que o ouvinte pudesse além de
ouvir, ver e falar, a mensagem encenada tinha como intenção escancarar
a mensagem.

Imagine você, ao passar pela rua: vê um líder espiritual que você


conhece andando só de avental, como aqueles que usamos nos hospitais,
mostrando as nádegas. Além do susto inicial, certamente iríamos
perguntar “O que significa isso? Tá ficando doido?”, e como resposta ele
nos diria: “Deus disse que assim como eu estou vestido, iremos todos ser
vendidos como escravos”. Além da cena visual forte, a nos incomodar a
todo instante, simultaneamente teríamos a mensagem dura e de igual
modo intensa a ecoar em nossas mentes. Pois bem, foi exatamente isso
que aconteceu com o profeta Isaías e seus conterrâneos (Is 20.2-3).

Como algumas ações desempenhadas pelos profetas foram


muito fortes, como a nudez de Isaías e o casamento de Oséias com uma
prostituta, alguns estudiosos tentam suavizar seu impacto negativo,
comparando tais mensagens a parábolas ou atribuindo sua execução a
um estado de êxtase de seus executores. Todavia, segundo Fohrer (citado
por SICRE, 2008, p. 172), não há como entender a ação simbólica a não ser
de forma real, pois, antes de tudo, servia como sinal para o próprio povo
(Ez 4.3). Sua intenção seria intensificar a mensagem deixando-a mais
expressiva possível. Além disso, continua ele, ela era sempre ordenada
por Deus, tinha sua interpretação por Yavé ou do profeta (nunca ficava
subentendida na interpretação dos ouvintes) e, acima de tudo, pretendia
revelar o mais claramente possível os planos divinos, a fim de que as
pessoas se submetessem a esses planos.

Eis alguns exemplos de mensagens de ação simbólica: a) o nome


dos filhos dos profetas Isaías (8.3) e Oséias (1.4-9); b) a ordem para
Jeremias não se casar, não chorar e não se alegrar (Jr 16.1-9); c) a botija
quebrada do lado de fora da cidade, na frente de testemunhas (Jr 19.1-11);
d) a canga que Jeremias colocou em volta de seu pescoço e foi quebrada

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por Hananias (Jr. 27.1-12); e) a ida de Ezequiel para o deserto (Ez 12); f) a
ordem para Ezequiel não ficar de luto pela morte da esposa (Ez 24.15-27);
g) a confecção de duas coroas por Zacarias (Zc 6.9-15), entre outros casos.

Parábola ou fábula – dependendo da situação, o profeta não podia


ser tão direto com sua mensagem, muitas vezes por correr risco de morte.
Por isso, eles podiam usar deste artifício, como fez o profeta Natã. Para
repreender Davi pelos pecados de adultério e homicídio, o profeta chega
na presença do monarca indagando-o acerca de uma situação fictícia de
um fazendeiro pobre que foi explorado por outro muito mais rico. Quando
Davi mostra sua indignação contra o malfeitor, chegando a pedir que o
profeta o apresente, para que seja punido, então Natã lhe responde: “Este
homem és tu. Assim diz o senhor...” (II Sm 12.7). Neste caso, a fábula
serviu apenas para preparar a atenção do rei, para que pudesse ouvir com
atenção a mensagem de Deus.

O profeta Balaão, como mencionado anteriormente, proferiu suas


quatro falas por meio de parábolas (Nm 23 e 24). Em momento algum
tem a explicação dessas parábolas, isto porque, diferentemente das
parábolas que estamos acostumados a ler no NT, as de Balaão estariam
muito mais para um canto satírico. Elas não são uma história com uma
mensagem central oculta em sua estrutura. A palavra utilizada no texto
bíblico, em hebraico, é mashal, que pode ser traduzida como sentença,
dito, provérbio, adágio, dito de sabedoria ou canção satírica (KIRST, 2007,
p. 145). Talvez porque este gênero literário fosse bastante comum entre
os hebreus. Outro caso parecido é registrado em Ez 17.1-9, que profere
sua mensagem por meio de uma alegoria e mais adiante (Ez 17.10-24) é
dada a explicação do significado da mensagem enigmática.

Enfim, estas são as principais formas que os profetas utilizaram


para transmitir a mensagem que recebiam de Deus. Da mesma forma que
o poder e a importância da mensagem não estavam na forma como ela
era recebida, assim também era com sua transmissão.

O que determinava sua autenticidade e relevância não era o método de


entrega, mas seu conteúdo.

36
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1.4 A Literatura Profética e o Uso da Poesia


Hebraica
Com o passar do tempo e a transição entre o período da oralidade
para a escrita, algumas formas de transmissão acabaram caindo em
desuso enquanto outras foram se consagrando cada vez mais. Além
das visões, que ganharam toda uma estrutura própria em sua utilização,
algumas mensagens proféticas, a partir da escrita, também acabaram
se adequando a certa roupagem literária e estilística. Convém salientar
que nem todos os profetas deixaram algo escrito e que alguns deles não
escreveram sua própria biografia. Como é o caso de Jonas, que parece
ter sido escrito muito tempo depois do evento descrito em seu livro.
Mas, isso veremos com calma, mais adiante, quando estudarmos cada
um dos profetas. Aqui nos importa saber que houve muitos profetas que
não escreveram praticamente nada, como Elias e Eliseu, enquanto outros
tiveram ajuda para o registro de suas mensagens, como foi o caso de
Jeremias que tinha um escriba aos seus cuidados.

Nosso foco, aqui, é falar não sobre os profetas e suas mensagens em si,
mas enfocar o texto escrito e, principalmente, a estrutura por trás desse texto.
Quando estudamos e lemos os livros proféticos, percebemos que certas
profecias acabam se parecendo umas com as outras. Em outras palavras,
parece haver certo padrão ao se relatar determinados tipos de mensagens.
Quanto a isso, Sicre (2008, p. 102) nos diz que as principais fórmulas proféticas
podem ser enquadradas em dois grupos distintos. Um que enfatiza que
a mensagem chegou ao profeta por meio de sua interpretação e outro que
evidencia que a palavra é de Deus e não do profeta. Ele dá como exemplo,
na primeira categoria, as 233 vezes em que aparecem as expressões do tipo:
“veio a palavra do Senhor” ou “disse o Senhor”.

Ainda, segundo ele, esta categoria mostraria que a revelação de


Deus vem a alguém específico, mas esta pessoa é que seria a responsável
por interpretar e dar um molde que seus ouvintes entendam. Enquanto
no segundo estariam quatro fórmulas mais específicas, que indicariam
mais claramente que a origem da mensagem está diretamente ligada ao
próprio Yavé: “assim diz o Senhor”, “oráculo do Senhor”, “diz o Senhor”,

37
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“fala o Senhor”. Todavia, não me parece ser algo tão distinto e claro assim.
Acredito muito mais que estas duas formas de fórmulas especiais em
vez de se distinguirem se complementam. Ou seja, nestas 1133 vezes em
que uma destas afirmações aparecem, a intenção dos profetas é muito
clara em declarar que “a palavra transmitida não é ocorrência pessoal,
nem fruto das ideias próprias, mas palavra de Deus.” (SICRE, 2008, p. 102).

Como esta palavra foi escrita e pertence a um estilo literário,


ainda segundo Sicre (2008, p. 144-146), podemos encontrar profecias
emolduradas em três gêneros principais, retirados do dia a dia das pessoas.
Há relatos proféticos: a) escritos de forma similar aos encontrados nos
cultos, utilizados pelos sacerdotes, como a instrução, com a qual o líder
procura responder algum problema bem pontual e específico (Am 4.4-5);
b) utilizados a partir da vida cotidiana, como a cantoria de Is 5.1-7 e Ez
24.3-10, respectivamente, canção de amor e de trabalho doméstico, e os
famosos “ais”, normalmente cantados pelas carpideiras, mas utilizados
pelos profetas Isaías (5.7-10 e 5.20), Amós (5.16-6.14), Miquéias (2.1-2)
e Habacuque (2.6-19); c) escritos de forma parecida com os trâmites de
um tribunal da época, quando o profeta utiliza o linguajar acusatório, que
chama à responsabilidade e finaliza enfatizando o castigo cabível pela
culpa, assim como ocorria no processo judicial, veja Ez 18.5-17, Is 42.18-
25, Jr 6.16-21 e Ml 1.6-2.9.

Normalmente, este gênero que empresta características de


um tribunal, geralmente segue uma estrutura bem delineada e pode
ser classificado em dois tipos. Esta distinção se dá a partir do tipo de
destinatário da mensagem, podendo se referir a indivíduos ou a um grupo
específico.

Segundo Sicre (2008, p. 147), quando a mensagem é individual,


o foco é indicar um determinado pecado e, normalmente, se fala
diretamente, cara a cara. Normalmente o profeta inicia com um convite
ou chamado à atenção; em seguida, expõe a acusação, mostrando a que
pecado Deus está se referindo, daí usa a chamada fórmula do mensageiro
“Assim diz o Senhor”, para então decretar a sentença, anunciando o
castigo. Resumindo, a profecia condenatória destinada a um indivíduo
geralmente segue o seguinte roteiro: convite a ouvir – apresentação da

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acusação – fórmula do mensageiro – declaração da sentença. Claro


que embora isso seja um esquema no qual a grande maioria deste tipo
de profecia se enquadra, cada profeta é livre para retrabalhar pequenas
variações em sua utilização. Eis algumas pessoas que passaram por este
tipo de confrontação: o mordomo administrador Sebna (Is 22.15-19), o rei
Senaqueribe (Is 37.22-30), o rei Ezequias (Is 39.5-7), o rei Salum (Jr 22.10-
12), o falso profeta Ananias (Jr 28.15-16), Amasia (Am 7.10-17).

Ainda, segundo este mesmo autor, quando o oráculo de condenação


é para um coletivo, a estrutura é um pouco diferente e parece oscilar mais
que nos oráculos individuais. Por exemplo: a) ela começa com a fórmula
do mensageiro, mostrando desde o início que o “acusador” não é o profeta,
mas o próprio Yavé, b) destaca o pecado, às vezes de forma mais geral,
c) indica o castigo, d) termina com outra fórmula “disse Yavé”. Às vezes,
o profeta acaba invertendo a ordem, suprimindo ou ampliando algum dos
elementos. Amós 1.3-2.5 apresenta sete exemplos que seguem fielmente
esta estrutura mencionada. Logo em seguida, porém, Am 2.6-16 também
tem uma análise condenatória ao estilo das anteriores, mas com muito
mais conteúdo. Isto porque, claramente, das oito nações analisadas, a
última passa a ser a mais importante, aquela para a qual o profeta quer
dar muito mais atenção. Amós 9.8-10 inverte alguns elementos, Oséias
10.1-2 amplia a parte da acusação, Isaías 5.26-30 amplia o anúncio do
castigo e Ezequiel 26 amplia quase todos os elementos.

Outra observação fundamental, quando se fala de literatura


profética, é estarmos atentos ao fato de que essa literatura contém
elementos poéticos em suas linhas. Isso é muitíssimo importante
porque ao ignorarmos detalhes como estes corremos o risco de não
captar a mensagem pretendida pelo profeta. Não respeitando este fato,
não são poucos que leem literalmente Is 7.12-14 e acabam associando
indevidamente este trecho à queda de satanás. Da mesma forma, não
podemos interpretar de forma literal o convite que Yavé faz para que o
povo vá até o templo para pecar, como se o pecado tivesse sido liberado
para todos (Am 4.4-5). Pelo contrário, Deus está sendo irônico e com isso
estava repudiando a religiosidade do seu povo, que ia bonitinho aos cultos,
mas no dia a dia nem lembrava que Deus existia.

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Por isso, lembre-se sempre de que além da dificuldade normal de se


entender determinados textos proféticos, por conta de sua própria
roupagem enigmática, ainda temos a dificuldade de ler a poesia hebraica
impregnada em tais textos, com todos os seus jogos de palavras e figuras
de linguagem.

Síntese do Capítulo
Neste capítulo você viu algumas definições importantes sobre o
profeta e sua mensagem. Ele não é como os magos que procuravam
manipular seus deuses, muito pelo contrário, como servos que são,
procuram estar atentos àquilo que Yavé os revela. Tiveram seu surgimento
quando os líderes deixaram de comunicar e ensinar o povo acerca dos
desígnios divinos e quanto maior era o distanciamento do povo de seu
objetivo inicial, mais enfáticos eram os profetas em alertá-los.

Não eram apenas transmissores da palavra de Deus, mas verdadeiros


intérpretes. Deus sempre procurou se revelar na história do povo, por meio
do Urim e Tumim, dando sonhos e visões a seus servos. Algumas mais
claras e outras bastante abstratas. Às vezes o profeta entrava em ou tinha
um insight a partir das coisas que observava, noutras, Deus era mais
expressivo, como nos trovões e no anúncio de sua palavra.

Da mesma forma, os profetas eram bastante participativos na forma


de anunciar a mensagem recebida ou captada. Dependendo da ocasião,
da localidade ou de perfil de cada um, eles utilizavam os discursos, como
verdadeiros palestrantes, noutros momentos eram mais sucintos e
discretos, usando uma fala cara a cara ou pronunciando alguma sentença
direta e objetiva. Alguns escreviam livros ou registravam suas mensagens
em tábuas para que as pessoas pudessem ver. Outros tinham dotes
artísticos, e preferiam cantar ou declamar poesia. Alguns dominavam as
artes cênicas e encenavam a mensagem, dramatizando-a para ter um
efeito maior entre os receptores. Por fim, você viu sobre a importância
de respeitar a poesia e o estilo cultural de cada escrito profético, a fim de
entender melhor o que cada um quis dizer com sua escrita.

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2. Deus não Tolera a
Pecaminosidade: um Panorama
aos Profetas Oséias, Amós e
Miquéias
< voltar

2. Deus não Tolera a Pecaminosidade: um


Panorama aos Profetas Oséias, Amós e
Miquéias
Neste capítulo você aprenderá algo muito simples, mas que ainda
hoje tem atrapalhado, e muito, a vida do povo de Deus: o pecado precede à
ruína. Assim como Israel muitas vezes acabava se deixando levar pela ideia
de favoritismo, no sentido de que não importam as consequências, quando
se é filho de Deus, às vezes, agimos assim também. Como se Deus fosse
obrigado a nos atender só porque somos seus filhos. Ledo engano. E tanto
Israel quanto Judá aprenderam da pior forma possível esta dura verdade, que
os sábios já diziam, tempos antes: “Deus zomba do escarnecedor” (Pv 3.34).

Tragicamente esta atitude de arrogância, prepotência e


autossuficiência foi bastante vivenciada pelos hebreus da tribo no
Norte. Talvez porque eram maiores e, consequentemente, sempre mais
numerosos e com a “necessidade” de se mostrar ao mundo que não
dependiam de Jerusalém. O detalhe é que quando rejeitaram Jerusalém,
num primeiro momento, foi porque Jeroboão não queria perder o trono
(Cf. I Rs 12.25-30), mas, com o tempo, automaticamente se afastaram
cada vez mais de Yavé, o Deus de sua salvação. Muito provavelmente por
isso acabaram tendo um espírito muito mais contumaz e de dura cerviz.

Todavia, independentemente do elo com o Senhor ou mesmo de


quão forte era sua disposição em manter a aliança com seu povo, uma
coisa que jamais Deus tolerou foi o pecado. Desde o início, ele já advertira
ao povo para serem santos como ele o é (Lv 19.2).

Em outras palavras, não importa quem seja, se rico ou pobre, nobre ou


plebeu, pessoa simples ou com chamado, pecado é pecado e causa um
estrago irremediável, quando não confessado.

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Israel foi o primeiro a experimentar isso. A arrogância e a ganância


de seus líderes acabaram levando-os a serem exterminados pelos Assírios.

Infelizmente, seus irmãos do Sul, em vez de aprenderem com a


lição, foram para o lado extremo. Em lugar de ver a realidade: Israel foi
destruído por conta de seu pecado, maldade e afastamento de Yavé,
passaram a achar, equivocadamente, que a razão do sucesso de Judá,
em detrimento às tribos do Norte foi porque eles tinham Jerusalém e o
templo, símbolos da morada e permanência divina entre eles. Por isso
Jeremias sofreu tanto com a rejeição de sua mensagem.

Por esta razão, como será visto ao analisarmos o profeta Miquéias,


Judá também caiu. Não deu atenção ao exemplo vivenciado por Israel.
Assim como seus irmãos não deram ouvidos às próprias palavras de
Oséias e Amós, que foram levantados exclusivamente para mostrar a
situação pecaminosa do povo e lembrar o que aconteceria se eles não se
arrependessem. Judá ignorou o escrito de tais profetas e acabou seguindo
este mesmo caminho de rebeldia. Também não deu atenção às palavras
do profeta Miquéias, seu conterrâneo, e pouco tempo depois acabou indo
parar no cativeiro babilônico, experimentando a maior dor e decepção
de sua história. Tão somente porque ignorou uma premissa basilar da fé
em Deus: o Senhor não tolera a pecaminosidade, independentemente de
quem seja. Nos próximos tópicos estudaremos estes três profetas, que
de forma tão forte lutaram contra o pecado de seu povo porque, acima de
tudo, os amava e queria ver o seu bem.

2.1 O Livro do Profeta Oséias


Neste primeiro tópico, analisaremos os aspectos relacionados à
produção do livro de Oséias, questões pessoais de seu autor, sua estrutura,
alguns destaques e dificuldades para melhor entender sua mensagem,
para então mostrar algumas aplicações deste profeta para a igreja nos
dias de hoje. Afinal, a Bíblia como Palavra de Deus é “viva e eficaz” (Hb
4.12) e por isso continua falando ainda hoje para aqueles que têm ouvidos
para ouvir sua voz.

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FIGURA 03 – Profeta Oséias

Legenda: DUCCIO, di Buoninsegna. Profeta Oséias


(original: Prophet Hosea). Entre 1308-1311. 1
original de arte: colorida. Nashville, TN, Estados
Unidos da América. Coleção: Art in the Christian
Tradition (Vanderbilt University). Disponível em:
http://diglib.library.vanderbilt.edu/act-imagelink.
pl?RC=46447. Acesso em: 14 jan. 2021. Domínio
público.

#Pracegover: A imagem mostra uma pintura com


um homem em pé segurando um pergaminho com
sua mão esquerda, e apontando para o céu com
sua mão direita, rosto sério.

2.1.1 Produção do livro de


Oséias
O livro narra a história do profeta
que empresta o seu nome à obra. Ele é um
ótimo exemplo do que falamos no capítulo
anterior, sobre a mensagem simbólica, no
sentido de dramatização. Ele literalmente
vivenciou a mensagem que deveria pregar
aos seus conterrâneos. O profeta foi
ordenado por Deus para resgatar uma
prostituta e se casar com ela e para “piorar
a situação”, quando Omer, sua esposa, o
abandona e retorna às práticas antigas,
Oséias é intimado a perdoá-la e comprá-la novamente. Para simbolizar
o quanto Yavé ama seu povo, ao ponto de tirá-lo do Egito, inicialmente, e
constantemente, perdoando seus pecados e aceitando-o de volta.

O envolvimento do profeta foi tão grande que até os seus próprios


filhos fizeram parte da mensagem. Eles se chamavam Jezreel (Os 1.4),
Lo-Ruama (Os 1.6) e Lo-Ami (Os 1.9), significando literal e respectivamente:
Carnificina, Sem misericórdia e Deserdado. Isto porque, ao perguntarem
o nome das crianças e ouvirem o som de seu significado, Israel deveria

44
< voltar

estar atento ao fato de que o julgamento divino estava bem próximo e que
traria muita destruição, sem qualquer misericórdia porque Deus havia
rompido os laços filiais com seu povo. Com estes três nomes, Deus estava
dizendo que não reconhecia mais Israel como seu próprio povo e por isso
estaria castigando de forma extremamente severa sem qualquer tipo de
misericórdia.

Oséias foi um profeta do Norte para o Norte, enquanto Amós, que


veio um pouquinho depois, era de Judá, mas pregou para Israel, como
veremos no próximo tópico. Por hora, importa dizer que por conta das
muitas citações e referências ao reino do Sul alguns acreditam que Oséias
teria profetizado só para o Norte e talvez até escrito suas histórias e
profecias, mas com o passar do tempo e, principalmente com o extermínio
das tribos de Israel, o livro teria passado por uma reedição, acrescentando
estes detalhes acerca de Judá, para que também pudesse servir de
mensagem para o povo de Judá.

Obviamente é uma teoria e, embora seja muito aceita por vários


teólogos da atualidade, é bastante rejeitada pelos mais conservadores.
Afinal, mesmo que o foco da mensagem do profeta fosse direta e
especificamente o Norte, o chamado do profeta é sempre servir a Deus
e alertar o seu povo. Não vejo problemas em aceitar o fato de ele estar
concentrado contra Israel, mas, ao mesmo tempo, dando umas indiretas
a Judá, que embora estivesse numa situação um pouco melhor, com
relação a seu relacionamento com Deus, estava longe de ser considerado
um exemplo de dedicação.

Esta confusão toda se dá porque dos quatorze capítulos apenas os


três primeiros são mais tranquilos de se entender. Os capítulos 4 a 14 são
quase iguais ou mais difíceis que as profecias apocalípticas de Zacarias.
Talvez você esteja pensando: “os capítulos 1 a 3 são fáceis?”, tendo em
vista as várias vertentes interpretativas relacionadas ao casamento
de Oséias com Omer. Todavia, embora não haja concordância entre os
teóricos se ele foi real, fictício ou parabólico, com certeza, a mensagem
geral é extremamente clara entre todos os autores pesquisados: a vida
matrimonial do profeta é uma analogia entre o relacionamento espiritual
entre Israel e seu Deus. Mostrando, acima de tudo, a propensão constante

45
< voltar

para a infidelidade dos israelitas em contraste com o magnífico e sublime


amor de Yavé, que faz tudo ao seu alcance para resgatar e reavivar o
relacionamento com seu povo.

Outra dificuldade, porém, bem menor, comparada à questão da


interpretação do casamento do profeta é determinarmos com exatidão
em que período histórico o profeta está inserido. Tradicionalmente ele é
reconhecido como anterior ao profeta Amós, por isso, está como o primeiro
livro dos profetas menores. Porém, há alguns autores, como Sicre (2008),
que defendem que Amós teria sido o primeiro destes profetas canônicos.

A principal dificuldade neste sentido é que, embora o profeta Oséias


tente limitar seu ministério logo no início do livro, dizendo que atuou “nos
dias de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias, reis de Judá e nos dias de Jeroboão,
filho de Joás, rei de Israel” (Os 1.1b), não há consenso entre os teólogos
pesquisados sobre qual realmente teria sido o período de seu ministério.
A principal razão é que desde o início de Uzias (766 a.C.) até o final do
reinado de Ezequias (699 a.C.) temos quase um século de história. Para
piorar, enquanto em Judá ele menciona a sequência de quatro reis, do lado
de Israel ele só menciona o reinado de Jeroboão (II), que ocorreu entre os
anos de 781-746 a.C., o que claramente não abarca todo o período.

Acreditamos que o ministério de Oséias tenha ocorrido entre os


anos 765 a.C. a 725, pelas seguintes razões: a) o início do ministério de
Oséias tem que estar entre os anos 781 a.C. e 762 a.C., a primeira data trata
no início do reinado de Jeroboão (II). Como Oséias critica a riqueza gerada
pela exploração, deve ter se passado uns dez a quinze anos. E a data de
762 a.C. foi o início do ministério do profeta Amós. Embora tenham sido
contemporâneos, a tradição judaica coloca Oséias como tendo iniciado
seu ministério primeiro; b) o final do ministério profético de Oséias tem
que ser entre os anos 729 a.C. e 722 a.C., respectivamente, início do
reinado de Ezequias e a destruição de Samaria que levou ao extermínio
das tribos do Norte, o que não foi mencionado pelo nosso profeta em
estudo; c) quanto ao fato de apenas aparecer o nome do rei Jeroboão
(II) na menção de Oséias, pode significar tão somente que, embora após
ele tenham vindo outros seis monarcas, suas políticas administrativas
andaram à sombra de seu grande antecessor. Assim, não vejo problemas
em encarar Jeroboão como representante de todos os demais.

46
< voltar

2.1.2 Estrutura do Livro de Oséias


O livro do profeta Oséias é muito conhecido pelos seus três
primeiros capítulos, principalmente por toda polêmica que há entre as
possíveis interpretações. Todavia, não é apenas o seu início que é difícil
de se entender, pois, como já dissemos, a parte final é ainda mais difícil.
Uma das razões para isso acontecer, segundo Dillard e Longman (2006,
p. 344), é o fato de que muitos oráculos se misturam, pois Oséias não usa
as tradicionais fórmulas proféticas: “assim diz o Senhor”, “disse o Senhor”,
“oráculo de Yavé”, entre outras. Além disso, em seu texto, há discursos
tanto na primeira pessoa como falas na terceira, sem mencionar, de forma
clara, quem seria seu interlocutor. Às vezes não dá nem para saber o que
pertence a cada orador. Como regra geral, concordamos com os autores
no sentido de que os discursos em primeira pessoa seriam as falas
relacionadas diretamente a Deus, enquanto as falas impessoais seriam o
posicionamento do profeta.
O livro é bem dividido em duas partes principais, a primeira em forma
de narrativa, chamada por alguns de “oráculos prosaicos”, compreendida
pelos três primeiros capítulos. Enquanto o restante do livro (capítulos 4 a
14) está escrito todo em poesia. Há quem procure defender que estaria
em poesia porque na época do profeta ele usava apenas o recurso da
oralidade e para isso a poesia era mais adequada. Todavia, não há como
confirmar ou negar tal suposição. Mas, uma coisa é certa, o fato de ser
prosa ou poesia, segundo os autores Moraes (2020) não interfere na
qualidade nem no valor da mensagem proferida.

Numa tentativa de vislumbrar melhor o livro como um todo, Gusso


(2017, p. 28-29) defende que o livro de Oséias deve ser dividido em duas
partes, com subdivisões na segunda:

Parte I: capítulos 1 a 3 – Infidelidade de Israel

Parte II: capítulos 4 a 14 Coletânea das profecias de Oséias, em que:


4-7.7 Trabalha a decadência moral;
7.8-10.15 Condena a decadência política;
11.1-11 Mostra a compaixão divina;

47
< voltar

11.12-13.16 Último apelo e a inevitável condenação;


14.1-21 Promessa de restauração final.

Já para os pesquisadores Dillardy e Longman (2006, p. 345), a


mensagem de Oséias pode ser esquematizada a partir de três partes.
A diferença do esboço anterior é que estes autores dividem a segunda
parte, que trata sobre a coletânea de profecias, em dois grupos. Eles
ainda propõem subdivisões para a primeira parte, conforme podemos
observar a seguir:

Parte I: capítulos 1 a 3 – O casamento de Oséias como reflexo do


relacionamento de Deus com Israel;
1.1 Introdução;
1.2 a 2.1 o matrimônio de Oséias e o nascimento de seus filhos;
2.2-23 o casamento de Yavé com Israel;
3.1-5 a reconciliação do casamento de Oséias;
Parte II: capítulos 4.1 a 11.11 – O primeiro ciclo de profecias;
4.1-19 Deus aponta a falta de lealdade de Israel;
5.1-15 Deus pune Israel;
6.1-7.16 O convite de Oséias ao arrependimento é ignorado;
8.1-10.15 Deus castiga seu povo por rejeitá-lo;
11.1-11 O amor de Deus é maior que sua ira;

Parte III: 11.12 a 14.8 – O segundo ciclo de profecias;


11.12-12.14 Oséias aponta os pecados de seu povo contra Deus;
13.1-16 A fúria divina contra Israel;
14.1-8 Exortação ao arrependimento;
14.9 Conclusão com um colofão2 de sabedoria.

2 Segundo o dicionário Priberan, Colofão ou cólofon vem do grego kolophôn, que


literalmente significa cume, mas quando usado para literatura diz respeito à nota final
de um livro. Podemos dizer que é similar ao que falamos em nosso linguajar popular:
“a cereja do bolo”. Em nossas obras modernas, acredito que equivaleria muito bem à
epígrafe. Uma frase de impacto que resume bem a ideia da obra como um todo.

48
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2.1.3 Destaques do Livro de Oséias


Nosso propósito neste subtópico não é servir de comentarista
versículo por versículo, mas dar uma ideia geral dos principais aspectos
do livro do profeta Oséias que possa auxiliá-lo a entender melhor, quando
precisar recorrer a um comentarista, para procurar o significado de um
determinado versículo.

Para Stuart (1987, p. 6-7), não há como entender a mensagem do


profeta Oséias se não entendermos sua relação e apego à aliança sinaítica.
Deus fez uma aliança com seu povo e, vice-versa, no Sinai. A partir de
então, iniciaria um relacionamento permeado de bênçãos e maldições. A
primeira para os fiéis, obviamente, e as consequências relacionadas ao
opróbrio àqueles que não se mantiverem no compromisso assumido.

Já os autores Dillardy e Longman (2006, p. 340-341) nos convidam


a ler e interpretar Oséias a partir do seu período histórico. Jeroboão (II)
assume o trono um século depois de o rei Onri ter levado Israel para um
patamar bem elevado de status e poder. O maior em toda a história das
tribos do Norte. Embora Onri e seus filhos conseguissem levar Israel a
um ótimo relacionamento internacional, os reis que vieram depois não
conseguiram manter tal situação. Assim, quando Jeroboão (II) assume
o trono de seu pai Jeoaz (II Rs 14.23-29) consegue resgatar boa parte da
fama e da glória que as tribos do Norte haviam conseguido.

Este monarca conseguiu trazer paz interna e externa e, com isso,


conseguiu um crescimento econômico extraordinário. Foi um período tão
bom que até as tribos do Sul acabaram, de certa forma, pegando uma
carona e também conseguiram crescer. O problema é que todo este
crescimento político e econômico que levou a uma grande prosperidade,
símbolo das mais preciosas bênçãos divinas, em vez de trazer mais
crescimento espiritual do povo, como um todo, serviu como tropeço. A
idolatria aumentou consideravelmente e, com ela, a falta de amor pelo
próximo acabou desaparecendo. Os ricos tornavam-se mais ricos, os
pobres eram cada vez mais explorados e ignorados, e Deus cada vez mais
deixado de lado.

49
< voltar

Enquanto Sicre (2008, p. 254) destaca a grande crise de idolatria


exercida pelo povo a favor do deus canaanita Baal, anteriormente,
ele já havia mencionado mais dois níveis de idolatria, muito comum
entre os israelitas: a idolatria política e a idolatria econômica (SICRE,
1979, p. 23-25). Desta forma, havia sempre três coisas sendo
colocadas frente a frente com o próprio Deus: Baal, o poder e a
riqueza. A idolatria ao poder era a mais versátil dentre as demais. Em
II Sm 24.1-10, menciona-se o enaltecimento do poderio militar; em I
Rs 11.1-8, encontra-se uma referência a uma idolatria de conveniência;
em II Cr 16.10-18, vemos reis israelitas reverenciando os grandes impérios.

Só para comprovar que a ganância e ambição não compensam,


como os israelitas não deram ouvidos à voz do profeta Oséias (nem a de
Amós, pouco depois), apenas trinta anos após a grandeza conquistada
por Jeroboão (II), Israel estaria sendo varrido do mapa e da história.
Hubbard (1989, p. 24-25) faz um resumo bastante claro e ao mesmo triste
da situação. Entre o final do reinado deste monarca e a queda de Samaria
foram cerca de trinta anos. Enquanto Jeroboão (II) reinou por quarenta
e um anos, nestes trinta anos que o sucederam, o Norte teve seis reis.
Só no primeiro ano, foram três. Quatro deles foram assassinados por
usurpadores, um ficou no poder por um mês, outro por seis meses e outro
por menos de dois anos.

Para piorar a situação, neste mesmo período, a Assíria estava


se reerguendo pelas mãos de Tiglate-Pileser III, que tinha interesse em
conquistar o Egito, e para isso a região de Canaã era de vital importância.
A política interna também andava tão ruim que as constantes guerras
civis muito provavelmente criaram uma separação entre as próprias tribos
do Norte. O que explicaria o fato de o profeta se referir ao seu povo ora
por Israel e ora por Efraim. Esta hipótese foi levantada por Cook e mais
tarde apoiada por Thiele (citados por SICRE, 2008, p. 252). Todavia não dá
para afirmar sua veracidade porque entre os textos poéticos também era
muito comum o uso de nomes diferentes, como sinônimos, sem pensar
em qualquer distinção entre si.

Diante de toda esta instabilidade e, principalmente, tendo em


mente a insistente decisão do povo em virar as costas para o único e

50
< voltar

soberano Deus e, ainda, serem contumazes em não dar ouvidos à voz


dos profetas que os chamavam de volta ao arrependimento, podemos
iniciar nosso panorama sobre o livro do profeta Oséias, verificando seus
principais versículos ou procurando explicar alguns detalhes para um
melhor entendimento de sua menagem.

Segundo Sicre (2008, p. 255-257), os principais temas de sua


mensagem giram em torno de: a) denúncia contra a injustiça e corrupção
(Os 4.1-3), b) crítica ao culto falso ou superficial (Os 6.4-6; 8.11-13); c)
pregação contra idolatria, como já destacamos; d) evidência de uma visão
crítica da história de seu povo (Os 9-14), no sentido de destacar que os
problemas de sua época não eram novos, mas já vinham de longa data; e)
dura crítica à monarquia, entendendo-a como fruto da ira divina (Os 13.11);
f) enfatizar sobre a possibilidade de uma série de castigos rápidos, com o
intuito de levar o povo ao arrependimento (Os 5.15); e, o mais impactante,
g) descrever sobre o grande amor de Yavé para com seu povo (Os 1-3;
11.1-5). Deus faz de tudo por seu povo, mas mesmo assim ele se afasta e
decide confiar em outras coisas.

Embora os capítulos 4 a 14 sejam de difícil interpretação, por


conta da estrutura na qual as profecias foram aglutinadas, os capítulos
1 a 3 demonstram dificuldade em sua interpretação. Não são poucos e
nem é de hoje que, numa tentativa de defender Deus, muitos procuram
fugir do ponto de vista literal quando este parece apontar algo estranho
ou não consensual. Desta feita, para não dar a ideia de que um Deus santo
mandou seu profeta viver com uma prostituta, passou-se a pensar em
várias possibilidades de interpretação para o “suposto” casamento de
Oséias. Eis algumas possibilidades interpretativas:

a. teria sido apenas um sonho ou visão e não aconteceu de verdade.


Mas sua história serviria para ilustrar a mensagem profética que
Deus queria destacar (GRESSMANN, 1921, citado por DILLARDY;
LONGMAN, 2006, p. 343);
b. Gomer é chamada de prostituta figurativamente, assim como
os israelitas, que se desviavam da fé javista. Ela na verdade seria
uma idólatra (STUART, 1987, p. 11);

51
< voltar

c. seria uma alegoria ou parábola, uma história inventada para


ensinar uma mensagem de forma a impactar;
d. é um relato histórico, mas não literal. Assim, Gomer só se
prostituiu depois do casamento (ARCHER, 1986, p. 254-255);
e. foi real e não literal. Gomer não era de fato prostituta, nem de
rua, nem cultual. Ela apenas trabalhava nos templos canaanitas
auxiliando nos ritos nupciais dos cananeus (WOLFF, 1974, citado
por DILLARDY; LONGMAN, 2006, p. 343);
f. Gomer seria virgem, mas idólatra ou destinada a ser prostituta;
g. a restauração do casamento teria sido um novo casamento. O
que por um lado ameniza o fato de que além de ter casado com
uma prostituta, Oséias se rebaixaria perdoando sua traição, por
outro lado contraria completamente o texto bíblico.
h. Segundo Fohrer (citado por SICRE, 2008, p. 171), como a ação
simbólica serve de um sinal claro para o povo, ela precisa ser de
fato executada na íntegra. Não faria sentido o profeta procurar
destacar tanto o amor de Deus e a constante infidelidade de seu
povo, a partir de seu casamento, se este não fosse de fato real e,
principalmente, se o próprio Oséias não tivesse experimentado
ou passado por aquela situação.
Por isso, concordamos com vários pesquisadores analisados
(Sicre, 2008; Gusso, 2017; Dillard e Longman, 2006) na questão de encarar
o casamento de Oséias como uma narrativa histórica, literal, que tinha
como propósito maior servir como profecia dramatizada ou como ação
simbólica, na qual o profeta vivencia a mensagem antes de pregá-la ao
povo. Como o principal argumento contra sua historicidade tem sido a
declaração de que um Deus santo e puro jamais iria contra a sua própria
natureza, pedindo a um profeta para viver em prostituição, procuraremos
explicar como isso não procede.

a. Não dá para interpretar o texto no sentido de que Gomer não era


prostituta de fato, mas era apenas uma mulher com inclinações
à prostituição. A ordem dada por Yavé para Oséias: “vá, pegue
para ti uma mulher de prostituições”, deixa claro o que ela
realmente era;

52
< voltar

b. A partir desta mesma frase, não podemos concordar com


a ideia de que Oséias deveria casar com uma meretriz e,
simultaneamente, ela poderia continuar fazendo os seus
programas. A ordem é clara em retirar a mulher daquelas
condições. No sentido de estar libertando uma escrava daquele
lugar, dando-lhe uma nova alternativa de vida. Isto em si não é
nada desonroso, convém lembrar que Raabe era prostituta, foi
aceita pelo povo hebreu e mais tarde se casou com alguém que
veio a ser um dos antecessores do próprio Jesus;
c. Deus nunca deu qualquer mandamento indicando como ou com
quem os profetas deveriam casar. Apenas os sacerdotes eram
proibidos de casarem-se com prostitutas (Lv 21.7,14);
d. Os relatos dos capítulos 2 e 3 são desdobramentos da narrativa
do capítulo 1, não dando qualquer indício de ser sonho, visão,
parábola ou qualquer outra alternativa que não seja real
(HUBBARD, 1993, p. 64);
Mesmo que você opte por escolher outra alternativa quanto à
interpretação dada ao casamento do profeta e Ômer, se mantivermos o
foco na mensagem central e principal da passagem como um todo, ainda
assim é fascinante o quanto Deus procurou mostrar o seu amor ao seu
povo e o quão tristemente este o abandonava por qualquer coisa e em
qualquer situação.

Quanto aos outros destaques, Gusso (2017, p. 31) destaca que os


três primeiros capítulos acabam seguindo a mesma sequência, a partir de
três temas: pecado, castigo e perdão. Veja o quadro:

QUADRO 02: Divisão tríplice de cada um dos três primeiros capítulos

Temas Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3


Pecado v. 2 v. 2-5 v.1-2
Castigo v. 4, 6, 9 v. 6-13 v. 3-4
Perdão v. 10-2.1 v. 14-23 v. 5

FONTE: Criação própria a partir de dados de Gusso (2017, p. 31).

53
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Infelizmente o povo estava tão desorientado que às vezes chamava


a Yavé de “meu Baal”, conforme reclama Os 2.16. É o que o profeta
menciona em 4.6 “o povo padece por lhe faltar conhecimento. A palavra
utilizada pelo profeta não trata de mera informação. O que ele quer dizer é
que seu povo não se relaciona com Deus. No mesmo versículo ele diz que
além de faltar, o povo não quer conhecimento. Em outras palavras, além
de ter um relacionamento abaixo do esperado e devido, o povo não deseja
estar com seu Deus. Leia também os seguintes versículos: 4.1,6,14; 5.4;
6.3,6; 7.11; 8.2; e 9.7; todos eles relacionados a esta triste situação do
povo de Deus.

Diante do linguajar atual, acerca de guerra espiritual, convém salientar


que o “espírito de luxúria” (Os 4.12) e o “espírito de prostituição” (Os 5.4),
mencionados na versão João Ferreira de Almeida (1990), diz respeito tão
somente ao desejo carnal do povo. Devemos lembrar que para a teologia
do AT o ser humano é um ser integral. Oséias usa tal figura de linguagem
da mesma forma que em Nm 5.14 fala de “espírito de ciúmes”, Is 19.14
fala sobre “espírito de perversidade” e Zc 13.2 fala acerca de um “espírito
imundo”. CRABTREE (1961, p. 91) é enfático em afirmar que todas estas
alusões são tão somente figuras de linguagem para destacar alguma
tendência humana para o pecado.

2.1.4 Aplicações de Oséias para os Dias de Hoje


O livro do profeta Oséias continua nos ensinando e, muito, sobre:

a. A importância de nos mantermos firmes ao nosso Deus.


Como somos fracos e tolos tal qual fora Israel. Em vez de nos
firmarmos em Cristo e vivermos na dependência do Espírito,
volta e meia nos deixamos levar pelas concupiscências da carne
e seus desejos vãos.
b. A liderança continua tendo um importante papel na educação do
povo de Deus e, se falharmos, o povo todo sofre.
c. Ainda hoje, tem sido cada vez mais comum cultos sem valor,
revestidos de uma religiosidade fria e fingida. Vivemos esquecendo
que nosso papel é sermos sal da terra e luz do mundo (Cf. Mt

54
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5.13-16) e, principalmente, vivemos neste mundo, mas não somos


dele, estamos aqui apenas como peregrinos (Cf. I Pe 2.11).
d. Infelizmente temos presenciado, e com frequência, a crescente
onda do mundo gospel. Há roupas, filmes, músicas e artifícios da
mais diversa modalidade feito tão somente pensando em atender
ao público chamado evangélico. Inicialmente tais produtos eram
feitos pensando em se transmitir o evangelho, hoje, muitas
vezes, são feitos apenas pensando nos lucros por trás de tais
produtos. Isso, de certo modo, tem trazido muitos simpatizantes
ao evangelho, mas poucos convertidos genuinamente. A mesma
triste realidade experimentada por Oséias.
e. Deus continua sendo um ser pessoal e prático, com emoções,
sentimentos e amor bem reais e à disposição de toda a
humanidade. Ele continua se doando e se entregando
incondicionalmente a todos, porém nem todos o aceitam ou o
reconhecem, perdendo assim a chance de se relacionar com um
Deus tão incrível.

2.2 O Livro do Profeta Amós


Agora estudaremos sobre o livro de um homem que não tinha qualquer
ligação com o movimento profético de Israel, mas que foi comissionado
por Deus para repreender seu povo. Para melhor compreender esta obra
de escrita tão fascinante, dentre os livros proféticos, você conhecerá a
autoria de Amós, as principais questões relacionadas ao contexto de sua
época, os principais desdobramentos que a obra acabou tendo, a estrutura
mais provável escolhida pelo profeta para registrar sua mensagem, alguns
destaques que achamos fundamentais e, por fim, algumas aplicações de sua
mensagem que ainda servem para falar a cada um de nós, nos dias de hoje.

55
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FIGURA 04 – Profeta Amós

Legenda: Profeta Amós (original: Prophet Amos). 1250. Iluminura de Manuscrito.


Nashville, TN, Estados Unidos da América. Coleção: Art in the Christian Tradition
(Vanderbilt University). Disponível em: http://diglib.library.vanderbilt.edu/act-imagelink.
pl?RC=57970. Acesso em: 14 jan. 2021. Domínio público.

#Pracegover: A imagem mostra uma pintura com um homem em pé apoiado por um


cajado, segurando uma shofar com animais à sua volta.

2.2.1 Autoria de Amós e Questões Contextuais


Como já mencionamos, o profeta Amós foi contemporâneo ao
profeta Oséias. No mesmo período de sucesso militar, estabilidade
econômica e aumento territorial, conquistados por Jeroboão (II) no Norte
e Uzias no Sul. Consequentemente ele lidou com a mesma classe libertina,
opulenta, sedenta pelo poder, disposta a sacrificar quem quer que fosse
para manter seu status quo e, acima de tudo, decidida em não dar ouvidos
aos Senhor ou a seus profetas (DILLARD; LONGMAN, 2006, p. 358).

Como o seu ministério foi mais curto e bem pontual, alguns o


colocam como tendo sido o primeiro profeta a atuar, dentre os profetas

56
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menores. Todavia, além da tradição judaica indicar Oséias como o primeiro,


nós também o fazemos em especial por conta de sua mensagem. Ela é
bem mais severa e dura que a mensagem de Oséias, indicando assim que
primeiramente Deus teria enviado um profeta local com uma mensagem
de amor e esperança aos que se arrependessem e, só depois, diante da
irredutibilidade do povo, é que Yavé teria chamado um profeta de longe e
com uma mensagem mais contundente.

Sim, Amós não era do Norte, ele era de Judá, da cidade de Tecoa
(Am 1.1), ela ficava “há uns dezessete quilômetros ao sul de Jerusalém”
(SICRE, 2008, p. 244) e, principalmente, não pertencia à chamada classe
profética (II Rs 3.4; Am 7.14). Embora não haja nenhuma referência bíblica
para este uso, mas diante do fato de que o profeta anterior teve toda sua
vida usada como mensagem dramatizada, torna-se, no mínimo, curioso
que a cidade de Tecoa era considerada, segundo Gusso (2017, p. 51), “um
lugar de se tocar a trombeta de alarme (Jr 6.1)”.

Talvez por isso este profeta tenha sido tão enérgico em suas
palavras, que embora poucas, menos de duas mil, no livro todo, produzem
um impacto tão grande que ainda hoje, dentre os profetas, é o mais
estudado. Principalmente porque sua mensagem continua tão atual
quanto o jornal desta manhã. Suas críticas contra a injustiça, a corrupção
e a favor de uma religião verdadeiramente capaz de unir o eterno com o
dia a dia daquele que se diz adorador, continua essencial e extremamente
relevantes ainda hoje.

O profeta Amós era criador de ovelhas, pois estava entre os pastores


de Tecoa, quando foi chamado (Am 1.1 e II Rs 3.4), mas também era boieiro
e cultivador de sicômoros. Alguns autores, como Trapiello, van Hoonacker,
Osty, Rinaldi e Steinmann defendem que o profeta era de origem humilde e
que tais animais só estariam sob os seus cuidados. Já os autores “Mishna,
Neher, Kapelrud, Monloubou, Randellini, Wolff, Rudolph.” defendem que
Amós teria sido um importante funcionário do rei Uzias, como se fosse
um capataz encarregado de fiscalizar a produção agrícola e pecuária.
Enquanto Vesco, provavelmente, pertencesse à alta sociedade judia, só
não soube definir se teria pertencido ao status religioso ou político de
Jerusalém (citados por SICRE, 2008, p. 245).

57
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Deveras, nem de perto, é uma questão de fácil resolução. Vejamos


um pouco mais suas atenuantes em prol de sua menor importância: a)
muitos dos que apregoam ter sido ele muito simples, o fazem pelo fato de,
na época de Jesus, o sicômoro não tinha nenhum valor econômico, mas
estes se esquecem que no AT ele era um produto de alto valor, colocado
ao lado das oliveiras (I Cr 27.28) e lamentado pelo salmista quando uma
geada os destruiu no Egito (Sl 78.47); b) outros, por conta relação com a
profissão dos boiadeiros contemporâneos, normalmente composta por
gente mais simples, chegaram a deduzir que Amós era gente simples,
do campo e, como fez Jerônimo, classificando-o como alguém iletrado
(citado por SICRE, 2008, p. 245); c) outros alegam se caso ele fosse um
rico proprietário, tal qual seus ouvintes a quem critica, ele não teria sido
acusado “de estar defendendo seus interesses pessoais ao condenar as
injustiças” (SICRE, 2008, p. 245).

Por outro lado, também são bem convincentes as afirmativas


que tentam defendê-lo como alguém de um status mais elevado: a) um
homem culto, que percebe os problemas a fundo e, sem rodeios, ataca
suas origens (SICRE, 2008, p. 245); b) tem um linguajar bem polido e
refinado, tem sido considerado, junto a Isaías, um dos maiores poetas do
AT; c) embora um judaíta, conhecia muito bem a situação sociocultural
dos seus irmãos nortistas e certas questões da política externa adotadas
por seus vizinhos (SICRE, 2008, p. 245); d) só o fato de que sua mensagem
era a favor dos pobres e injustiçados não pode servir de comprovação
de que ele deveria ser um deles. Muito pelo contrário, se ele fosse um
rico proprietário que conseguiu seus bens de forma justa, teria um peso
muito maior para a sua mensagem; e) a palavra hebraica para designá-lo
como pastor de ovelhas é noqed e não ro‘eh, como era mais comum para
se referir a um pastor de origem humilde (DILLARD; LONGMAN, 2006, p.
359); f) a palavra ugarítica, similar a noqed é utilizada para se referir a
um criador expressivo ou a um negociante de gado e não apenas a seu
cuidador (CRAIGIE, 1982, citado por DILLARD; LONGMAN, 2006, p. 359);
e, por fim, g) a partir do levantamento feito por Gusso (2017, p. 52), como
veremos mais adiante, ele era um exímio conhecedor do pentateuco, algo
que seria muito difícil para um simples camponês da época.

58
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Concordamos não ser um ponto tão pacífico, quanto à discussão


sobre sua procedência, mesmo porque existem grandes teólogos e
comentaristas defendendo cada opção. Entretanto, optamos por entender
que Amós foi de uma classe mais elevada, não necessariamente a mais
rica. Outra incógnita tão grande quanto, senão, muito maior, é determinar
quando ele deveria ter recebido o seu chamado. Há quem defenda, a
partir da dureza e concisão de seu discurso, que seria um jovem, quando
foi chamado, tal qual Jeremias (WOLFF citado por SICRE, 2008, p. 245).
Todavia temos duas objeções a esta teoria: Jeremias, mesmo com um
chamado jovem, é considerado o profeta chorão exatamente porque se
deixa envolver na mensagem. Assim, não dá para atrelar a insensibilidade
de um discurso à pouca idade de seu orador. Além disso, um jovem, em
sua época, não teria condições de entender tanto acerca das questões
de política. Por fim, se de fato fosse jovem, isto teria vindo à tona porque
seus ouvintes não se deixariam ser admoestados por um “pivete”. Assim
como reclamaram ser ele judaíta, teriam ignorado seu discurso alegando
falta de experiência.

Da mesma forma que não sabemos sua idade, ao ser comissionado,


também não temos a menor noção de quanto tempo durou seu ministério.
Só para ilustrar esta grande indecisão, mencionamos os exemplos
levantados por Sicre (2008, p. 246): enquanto Fürts defende que ele
profetizou durante quatorze anos, há Morgenstern, que defende que Amós
teria pregado um único discurso, com duração entre vinte e trinta minutos.
Todavia, quanto a esta questão, a única certeza que temos é que não
há como saber o tempo exato de sua atuação. Talvez, o mais provável,
é que tenha anunciado sua mensagem por várias semanas ou meses e,
principalmente, em vários lugares, até ser confrontado e expulso pelos
líderes religiosos de Israel (Cf Am 7.10-13).

Ainda, segundo Dillard e Longman (2006, p. 358), seu ministério não


deve ter passado de dois anos, uma vez que Am 1.1 faz questão de atrelar
sua mensagem ao período de dois anos antes do grande terremoto, que
pela arqueologia sabemos que aconteceu em 760 a.C. Isto faz muito
sentido pelo fato de que um evento tão importante e, considerado na época
como castigo divino, não foi mencionado em suas profecias, apenas na
introdução do livro.

59
< voltar

Quanto ao período de seu chamado, enquanto Sicre (2008, p.


246) segue a opinião da maioria, situando-o entre os anos de 760 a
750 a.C., Gusso (2017, p. 53-54) é bem mais preciso. Segundo ele, o
comissionamento ocorreu no ano de 762 a.C., porque o próprio profeta
menciona que foi dois anos antes do terremoto, e pelas descobertas
arqueológicas houve um terremoto no ano de 760 a.C. em Samaria.
Lembrando que a contagem do tempo antes de Cristo se faz ao contrário,
por isso 760 menos 2 anos é 762, e não 758.

2.2.2 Produção do Livro e a Estrutura do Livro de


Amós
Embora também seja um ponto um tanto delicado porque na
verdade não dá para saber quando exatamente o profeta teria escrito seu
livro. Algo que está muito claro é o fato de que num primeiro momento
Amós profetizou suas palavras oral e presencialmente para seus ouvintes
e, somente depois, gastou energia em registrar tais oráculos. Isto pode
ser percebido na própria declaração inicial do livro “As palavras de Amós,
que estava com os pastores de Tecoa, o que viu sobre Israel, nos dias
de Uzias, rei de Judá, nos dias de Jeroboão, filho de Joás, rei de Israel,
dois anos depois do terremoto.” (Am 1.1). Note que a declaração descreve
quando foi o chamado e sua execução: nos dias de Uzias e Jeroboão. E,
a declaração de que ela ocorreu dois anos antes do terremoto, indica que
a escrita está sendo pelo menos dois anos depois da ocasião dos fatos.

Outra incógnita é sobre a estrutura do livro. Isto porque encontramos


opiniões das mais diversas possíveis. Segundo Gusso (2017, p. 57), da
mesma forma que muitos livros do AT, o livro de Amós tem sido alvo de
inúmeras tentativas de recorte, por parte dos críticos. Esta variedade de
proposta e teorias é tão grande que os autores Dillard e Longman (2006, p.
362-363) dizem que “os esforços investigativos sobre a história redacional
de Amós tem encarado o livro como se ele fosse uma tora de massa
folhada, cujas várias finas camadas pudessem ser separadas e avaliadas”.
Como exemplo ainda citam o caso de Wolff que determinou que o livro
deste profeta possui seis fases de desenvolvimento, enquanto Coote foi
mais comedido e “só” encontrou três níveis. Mas, finalizam dizendo que

60
< voltar

ultimamente a preocupação dos críticos tem se voltado muito mais para


questões sincrônicas, que tratam sobre o significado do livro como ele é,
independentemente de como foi elaborado.

Quanto ao esquema literário do livro, parece ser bastante claro, afinal


todos os pesquisadores analisados seguem a mesma proposta, com
pequenas diferenças redacionais e nas escolhas de palavras, enquanto no
todo são bem próximos. Por isso, escolhemos a proposta feita por Dillard e
Longman (2006, p. 363), que defendem uma divisão tríplice e bem simples:

I – Am 1-2 Oráculos contra as nações;


II – Am 3-6 Série de discursos de julgamento contra Israel;
III – Am 7-9 Grupo de visões com oráculo de salvação.
Além desta proposta mais comum, também optamos por reproduzir
a sugestão de Pinto (2014, p. 717), que difere um pouco na interpretação
de cada parte, mas no todo também mantém a mesma ideia:

I – Am 1.-2 Prólogo;
II – Am 1.3-2.16 Profecias de proclamação de castigo para Israel e
as nações vizinhas;
III – Am 3.1-6.14 Sermões contra a Infidelidade do povo;
IV – Am 7.1-9.10 Descrição de cinco maneiras que mostram a
indiferença e oposição de Israel contra o Senhor;
V – Am 9.11-15 Promessa de restauração, caso haja arrependimento.
Aqui também é interessante destacar a grande relação entre a
profecia de Amós e as questões morais expressas no pentateuco. Para
isso, apresentaremos tais informações, em forma de quadro, para uma
melhor visualização:

61
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QUADRO 03: Correlação entre Amós e o Pentateuco

Tipos de referências Aspectos mencionados Referência


Conquista de Canaã Am 2.9
Referência ao êxodo Am 3.1
Menção à destruição de Sodoma e Gomorra Am 4.11
Históricas
Período em que estiveram no deserto Am 5.25
Am 3.13; 5.6;
Menções a Isaque, Jacó e José
7.16

Menção a sacrifícios e dízimos Am 4.4-5; 5.22


Alusão a sacrifícios levedados Am 4.5
A respeito da Lei
Crítica aos rituais Am 5.21
Citação sobre Luas novas e sábados Am 8.5

O perigo de não guardar a Lei (Dt 17.19) Am 2.4


Prostituição religiosa (Dt 23.17,18) Am 2.7
Questões Morais Ir dormir com roupas de penhor (Êx 22.26) Am 2.8
Desrespeito aos Nazireus (Nm 6.1-21) Am 2.12
Condenou a injustiça nos negócios (Lv 19.35) Am 8.5

FONTE: Criação nossa a partir dos dados de GUSSO, 2017, p. 52-53.

2.2.3 Destaques do Livro de Amós


Um realce importante a se fazer, logo de imediato, é a declaração
do próprio profeta de que “eu não sou profeta (navi’) nem sou filho (ou
discípulo) de profeta” (Am 7.14). Alguns criam toda uma explicação para
tentar dizer que navi’ seria a palavra para designar os profetas do Norte
enquanto que hozeh seria para o Sul. Ou então, tentam fazer alguma
distinção no sentido de que uma era mais honrosa que a outra e Amós não
estaria se rebaixando, ou ainda, que Amós havia aceito a palavra visionário
(hozeh), mas não a de profeta (navi’) (DILLARD; LONGMAN, 2006, p. 360).
Mas, ao observarmos sua resposta a Amazias, nosso profeta diz que foi
incumbido a profetizar (nava’) e não a ser visionário (hazah).

62
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Além disso, faz muito mais sentido, diante da intimidação de


Amazias, de querer que Amós desistisse de seu trabalho, alegando que
ali era território dos profetas “profissionais”, pagos pelo rei (Am 7.12-13),
Amós lhe dá esta resposta. Como o hebraico não é tão claro quanto ao
passado, presente e futuro, como dissemos no primeiro capítulo deste
livro, acaba passando a ideia de que Amós não se vê como profeta, nem
naquele momento. Quando o mais certeiro seria traduzir sua resposta
como “nunca fui profeta, nem tão pouco discípulo de profetas”. Com isso,
ele estava dizendo que não estava ali atrás de um emprego ou profetizando
para ganhar o pão do dia, como fora acusado no início deste diálogo (Am
7.13), muito pelo contrário, ele estava ali porque tinha convicção de que
Yavé o havia comissionado e dado a ordem para ele profetizar. Dillard e
Longman (2006, p. 361) também concordam com isso e declaram que “os
atos de Amós são de um profeta: ele tem visões e prega.” E pelo contexto
tanto Amazias quanto o próprio profeta são concordantes de que Amós
de fato é um profeta.

Nos seus dois primeiros capítulos, Pinto (2014, p. 718) destaca os


principais pecados cometidos pelas cidades de Canaã: repetida crueldade
efetuada por Damasco (Arã), tráfego desumano de escravos pelos
Filisteus, quebra de acordo político por Tiro, injustiças e violência contra os
vizinhos e parentes efetuadas por Edom, Amom e Moabe. Todos pecados
contra a humanidade. Quando o profeta dirige sua palavra contra o povo
escolhido (Judá e Israel), o Sul é acusado de desobediência à revelação
divina enquanto ao Norte é mostrado sua futilidade em se considerar
superior às outras cidades e nações.

Neste mesmo trecho, há uma expressão idiomática que aparece


por oito vezes: “sobre três transgressões de tal cidade, e sobre quatro,
não retirarei o castigo...”. dependendo da versão consultada, pode passar
a ideia de dúvida. Observe o quadro a seguir:

63
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QUADRO 04: Comparação entre versões para a fórmula profética


utilizada em Amós 1 e 2

Versão Tradução Fórmula O que dá a entender


“sobre três trans- Numa leitura rápida, passa
gressões de tal a ideia de complementa-
Tradução do “sobre três e
cidade, e sobre riedade: como se somasse
original sobre quatro”
quatro, não retirarei sete pecados ou razões no
o castigo...” total.
“por três crimes de Passa a ideia de que são
Pastoral da tal cidade e pelo “por três e pelo apenas 4 pecados e talvez
Paulus quarto, eu não vou quarto” o quarto tivesse sido como
perdoar...” a “nossa gota d’água”.
Também passa a ideia de
“por três crimes
somatória, como na primei-
Bíblia de de tal cidade e “por três e por
ra, com a diferença de, em
Jerusalém por quatro, não o quatro”
vez de ser sobre o pecado,
revogarei.”
seria por causa dele.
“por 3 transgressões
Passa a ideia de que a
de tal cidade e ainda “por três e ainda
NVI quarta é realmente mais
mais por quatro, não mais por quatro”
forte que as anteriores.
anularei o castigo...”

FONTE: Própria, a partir dos textos bíblicos citados.

Convém destacar as palavras de Gusso (2017, p. 59) que esta era


uma figura de linguagem que pretendia indicar a totalidade das coisas
relacionadas, significando: “por todas as transgressões” ou “pelos muitos
pecados cometidos”. Afinal, os números possuem um significado bastante
expressivo na cultura judaica e “3 por 4” poderia estar indicando muito
mais a soma entre eles, que totalizaria 7 e este número é bem expressivo
para se indicar a totalidade das coisas.

Acrescentamos a isso a possibilidade desta figura se referir


inclusive aos pecados das gerações anteriores, como se destacando que a
pecaminosidade não surgiu de repente, mas já vinha de longe. Chegamos
a esta pequena possibilidade pelo fato de que Amós conhecia muito bem
o Pentateuco e que lá há uma clara promessa de que Deus castigaria o
pecado de seu povo até a terceira e quarta geração (Êx 20.4). Embora isto
seja mera conjectura, a melhor forma, de fato, de se interpretar as palavras
de Amós é encarando-as como a totalidade dos pecados cometidos
contra tudo e todos.

64
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Segundo Pinto (2014, p. 718), no terceiro capítulo, Amós chama a


atenção de seu povo quanto à ingratidão retribuída a Yavé. Mesmo diante
de tantos privilégios, o povo agia como se nada houvesse acontecido.
Além disso, Gusso (2017, p. 60) nos chama a atenção para os versos 3-8,
nos quais o profeta apresenta uma série de nove perguntas retóricas, que
num primeiro momento poderia transparecer algum sinal de dúvida, mas
na prática é exatamente o contrário. Amós está afirmando claramente
várias verdades acerca de seu chamado, utilizando-se deste recurso
literário. Lembramos que esta técnica era tão comum, que o próprio Deus
se utiliza dela para conversar com Jó. Na ocasião o Senhor fez cerca de
15 perguntas para se revelar a seu servo (Cf. Jó 40 e 41).

Dos capítulos 3 a 6 de Amós, o profeta utiliza o cenário judicial da


época para descrever sua mensagem. Eis abaixo o “roteiro” de sua queixa,
com os versículos do capítulo 3 como exemplos, mas isto se aplica em
cada um destes quatro capítulos mencionados.

I – O juiz demandante apresenta sua queixa (Am 3.1a);


II – As relações passadas de desobediência são revisadas
(Am 3.1b-2);
III – As testemunhas são convocadas (Am 3.9);
IV – As acusações são pronunciadas (Am 3.7,8);
V – Há um interrogatório – normalmente perguntas retóricas –
(Am 3.3-6);
VI – Há oferecimento de oportunidade de arrependimento ou
reparação (Am 3.10-12);
VII – Especifica-se a punição (Am 3.13-15).
Em Am 5.5, não significa que Deus estaria proibindo ou não
valorizando o culto nos templos. Definitivamente este versículo não serve
para aqueles que acham que podem servir a Deus em casa, sem qualquer
vínculo eclesiástico. O que o profeta está defendendo é que não basta
apenas buscar nos templos, tampouco ter uma vida de mera religiosidade.
A busca deve ser sempre com relação a Deus. O templo sempre foi apenas

65
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um símbolo da morada divina, mas ele de fato habita entre o seu povo,
desde que este de fato viva a sua palavra.

Da mesma forma, não é que devemos viver de qualquer forma


como se nunca fôssemos nos encontrar com o nosso Deus. Devemos
falar e “respirar o céu”, mas quando o profeta lamenta os que desejam o
“dia do Senhor” (Am 5.18), ele recrimina as pessoas que o buscam sem
os devidos cuidados. Desejam encontrar-se com Deus, mas de fato não
estão prontos. Por isso o profeta chega a dizer que tal dia seria dia de
trevas. Isto porque, para os justos, sim será dia de regozijo e alegria, mas
para o ímpio e infiel será dia de prestar contas.

Em Am 5.24 encontra-se o que muitos têm atribuído como o seu


versículo central, por meio do qual, o profeta nos convida a investirmos
esforços para que nossa justiça seja tão fluente e natural como um rio.
Uma observação interessante e muito atual: normalmente se tem atrelado
o livro do profeta Amós ao tema da justiça social. Porém, em todos os
seus nove capítulos ele nunca faz esta restrição. Ele apela e convida sim à
justiça, mas como um todo, não apenas na área social.

Claramente Amós diz que Israel será castigado por ignorar e


não viver como uma nação justa e reta, como deveria ser desde de seu
chamado. Pinto (2014, p. 718) nos lembra que mesmo com palavras tão
duras e enfáticas acerca de um castigo iminente e severo, nosso profeta
não deixa de lado a misericórdia divina. Yavé continua convidando seu povo
ao arrependimento para que evite passar pela vergonha que merece. Como
podemos ver nos convites escancarados narrados em Am 5.4,6,14 e 15.

Por fim, antes de passarmos às possíveis mensagens de


Amós aos nossos dias, não podemos deixar de comentar outros
versículos, aparentemente bem polêmicos: Am7.1-6, que tratam sobre o
arrependimento divino. Afinal, se a própria Bíblia é enfática para declarar que
Deus “não é homem para mentir e nem filho do homem para se arrepender”
(Nm 23.19), como que em Amós é declarado que Yavé se arrependeu?
Seria um erro? Ou simplesmente outra palavra, de raiz diferente? Nenhuma
das duas. Trata-se da mesma raiz naham, cujo significado é muito maior
que nosso sentido de arrependimento tradicional.

66
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Habitualmente, temos em nosso contexto que arrepender-se


é “virar as costas para o pecado”, mas o campo semântico da palavra
hebraica, tanto usada em Número quanto em Amós, vai muito além disso.
Ela pode significar tanto arrepender-se (no sentido de pecado), como
mudar de ideia (independentemente de ter ou não um erro implícito), mas
também pode servir para descrever pena, compaixão ou tristeza pela
desgraça alheia. Desta forma, o autor de Números se refere ao fato de
Deus não poder se condoer por conta de seus pecados ou mesmo ficar
mudando de ideia “a torto e a direito”, como alguém sem rumo. Enquanto
Amós utiliza o mesmo vocábulo com o sentido de: se for necessário, Deus
pode mudar seus planos. Não porque ele não sabia o que iria acontecer
e por isso precisa ir se reajustando, mas porque, sendo misericordioso e
deixando sob a decisão humana algumas decisões, sua ação, de certa
forma, pode e deve ser alterada, no decurso da história, como o exemplo
de Jonas. A palavra era clara: Nínive será destruída em 40 dias, mas como
os ninivitas se arrependeram, o Senhor mudou de ideia (se arrependeu) e
não mais as destruiu (como veremos com maior profundidade no próximo
capítulo de nosso livro).

2.2.4 Aplicações de Amós para os Dias de Hoje


Assim como vimos ao final do tópico passado, quando estudamos
Oséias, aqui também apontaremos algumas lições de Amós totalmente
válidas ainda em nossos dias. A primeira, indiretamente já tocamos nela,
há alguns parágrafos: embora o livro do profeta Amós seja tão duro e
contundentemente contra o pecado, servindo de uma declaração iminente
de castigos severos contra a nação por conta de sua pecaminosidade,
ele não deixa de destacar que pode haver sim renovação do povo eleito,
independentemente da catástrofe em que tenha se envolvido, desde que
haja arrependimento (Cf. Am 9.11-15).

Sobre a existência de um remanescente, Amós deixa claro que


embora todo pecado exija julgamento e, principalmente, Yavé jamais
deixará de administrá-lo, independentemente de quem seja, a aliança
que o Senhor fez com seu povo acaba, de certo modo, permitindo que
um remanescente sobreviva ao castigo, saindo dele mais elevado
espiritualmente, para dar continuidade ao povo escolhido.

67
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Fazer parte do povo escolhido por Yavé não significa apenas privilégios,
antes, tem muito mais uma característica de responsabilidade direta e
indireta. Pois, enquanto vai se vivendo de forma a cuidar de si mesmo e,
simultaneamente, a agradar a Deus, também vamos fazendo com que o
seu nome seja conhecido em toda a terra, como nosso testemunho.

Normalmente, para o povo, o chamado dia do Senhor era tido apenas


como um dia de bênçãos e bonificação ao povo de Israel. Acabaram,
inclusive, esquecendo-se de que não basta ter nascido israelita, mas
que deveriam viver em conformidade com os estatutos divinos. Todavia,
para Amós (5.18-20) será o momento em que Deus trará os próprios
inimigos para castigar seu próprio povo. Em vez de galardão, o povo
receberá castigo (que não deixa de ser um tipo de paga, por suas atitudes
errôneas e distorcidas). Assim, diferentemente de outros profetas, para
Amós este dia não é escatológico, reservado a um futuro distante e global,
mas algo imediato e local e de julgamento do pecador de sua era. Da
mesma forma, podemos perceber que além do grande julgamento final,
ainda indeterminado quanto à hora, muitas pessoas já passaram ou têm
experimentado o seu próprio dia de ajustes de contas com o Senhor. Por
isso, o convite de Amós de que estejamos buscando ao Senhor a cada dia
(5.4,6) e fazendo o que é correto o tempo todo (5.24) é atual e necessário.

2.3 O Livro do Profeta Miquéias


Miquéias é comissionado por Deus para exortar os habitantes de
Judá. Embora, em determinados momentos da história, estiveram um
pouco mais próximos de seu Deus, do que os seus irmãos israelitas,
nesse momento histórico, o Sul estava afundado nas mesmas atitudes
pecaminosas que seus irmãos. Assim como socioeconomicamente
ambos estavam muito bem, mas espiritualmente os dois também
estavam mortos. Vejamos alguns exemplos: : a) Mq 1.7 indica a idolatria
generalizada; b) em Mq 2.1 o mal era arquitetado e não apenas cometido
por tentação; c) Mq 2.2 condena a ganância dos donos de terra; d) Mq
2.8-9 mostra que os pobres eram constantemente explorados; e) Mq 2.11
e 6.7 sinaliza uma religiosidade interesseira e aparente; f) Mq 3.11 mostra
a vergonhosa situação de suborno e corrupção; g) Mq 6.12 violência
generalizada; e h) Mq 7.2-3 descreve a extinção do homem piedoso.

68
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FIGURA 05 – Altar da Ovelha Mística – Profeta Miquéias

Legenda: EYCK, Hubert van. Altar da Ovelha Mística – Profeta Miquéias (original:
Altar of the Mystical Lamb – Prophet Micah). Entre 1426-1432. Retábulo. Nashville, TN,
Estados Unidos da América. Coleção: Art in the Christian Tradition (Vanderbilt University).
Disponível em: http://diglib.library.vanderbilt.edu/act-imagelink.pl?RC=48723. Acesso
em: 14 jan. 2021. Domínio público.

#Pracegover: A imagem mostra um homem olhando para baixo com um livro ao seu lado
e uma faixa acima de sua cabeça com dizeres em latim.

Para mais interação e compreensão de sua mensagem, a seguir,


você aprenderá questões mais técnicas relacionadas à obra, tais como:
o personagem por trás da história, questões relacionadas à unidade e à
estrutura de seu livro, alguns destaques que consideramos importantes e,
por fim, as principais lições de Miquéias que ainda falam aos nossos dias.

2.2.5 O Profeta Miquéias e a Unidade de seu Livro


O profeta Miquéias desenvolveu o seu ministério entre os reinados
de Jotão, Acaz e Ezequias (Mq 1.1). Embora seja uma declaração tão clara,
para Dillard e Longman (2006, p. 380-381) não temos nenhum indício mais
contundente para delimitar melhor este período, o que se estenderia de 750
a 686 a.C. Eles também concordam que o profeta não atuou em todos os
sessenta e quatro anos. Certamente, iniciou ao final do reinado de Jotão
e finalizou no início do reinado de Ezequias. Desta forma, reduziríamos o
recorte temporal de seu ofício entre os anos aproximados de 735 a 705 a.C.

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Por conta da declaração em Jr 26.17-19, de que Miquéias “profetizou


nos dias de Ezequias”, alguns têm alegado que seu ministério estaria restrito
apenas a este período (715-686 a.C.). Todavia, quem assim o faz ignora que
na época de Jeremias a intenção não era citar a biografia do profeta, mas
dizer que o rei Ezequias deu ouvidos a um profeta não “reconhecido pela
corte”, mas que se comprovou ser um homem de Deus. E assim disseram
para que, de alguma forma, o rei israelita mudasse seu veredicto de morte
contra Jeremias. Ainda mais se levarmos em conta a indicação de sua
origem “Moresete Gate”, praticamente um forasteiro em Jerusalém.

Ainda, segundo Dillard e Longman (2006, p. 380), pelas evidências


internas do livro podemos ter duas certezas: Miquéias iniciou o seu
ministério profético um bom tempo antes de Samaria ser destruída em
722 a.C., pois suas práticas pecaminosas ainda estavam em atividade (Mq
1.6). E a partir do lamento do profeta em 1.8-16, indicam-nos que o profeta
ainda estava atuando por volta dos anos 701 a.C. porque as cidades citadas
por ele coincidem com a invasão de Senaqueribe, nesta data.

Também somos da opinião de que muito provavelmente foi


contemporâneo do profeta Oséias, em seus últimos anos de ministério,
se bem que não dá para saber se eles se conheceram, e o profeta Isaías,
que iniciou sua atuação “no ano em que morreu o rei Uzias” (Is 6.1).
Enquanto Isaías, devido à sua possível linhagem nobre, atuava mais na
corte (GARDNER, 1999, p. 275), o nosso profeta atuava entre o povo,
dirigindo-se a pobres e ricos, tendo em vista sua linhagem mais simples.
Isto deduzem os autores Dillard e Longman (2006, p. 380) pelo fato de ele
não citar o nome de seu(s) antepassado(s). De fato, curiosamente, assim
como Naum, o livro de Miquéias cita apenas sua cidade de origem.

Seu nome significa “Quem é como Javé?”. A transliteração hebraica


é mychah, abreviação de mychayahu, com o mesmo significado (GUSSO,
2017, p. 82). Se não fosse a referência bíblica de Jeremias ao seu nome,
poderíamos pensar em apenas um nome fictício, apenas para representar o
teor de sua mensagem. Pois é um livro que enaltece ao Senhor e mostra sua
indignação e juízo contra o pecado de seu povo, tanto Israel, que ainda não foi
destruído, quanto Judá. Sim, embora nosso profeta atue no Sul ele não deixa
de mencionar e condenar, também, os pecados de seus irmãos nortistas.

70
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Tradicionalmente Miquéias é o sexto livro canônico, dentre


os profetas menores. Mas a tradução grega o deixa como terceiro,
imediatamente após Amós, muito provavelmente por conta de suas
datas serem tão próximas (DILLARD; LONGMAN, 2006, p. 380). Neste
livro, nós os agrupamos, não por conta da data, que é bastante similar,
mas foi basicamente por conta do teor de suas mensagens, fortemente
contrárias ao contexto pecaminoso vivenciado por seus conterrâneos,
tanto de Israel quanto de Judá. Sim, as tribos do Sul, sempre menores e à
sombra de suas irmãs, com o rei Uzias, anterior a este período, também
haviam conquistado muita riqueza, glória e estabilidade (II Cr 26.6-15)
e, consequentemente, trilharam o mesmo caminho de afastamento dos
caminhos de Deus, deixando-se afundar na exploração do próximo, na
corrupção, arrogância e tantos outros pecados que não condiziam com
o povo do Deus altíssimo. Por isso, enquanto ao norte Oséias e Amós se
revezavam em seus ministérios, ao sul estavam Miquéias e Isaías.

Segundo Dillard e Longman (2006, p. 384), o nosso profeta tem


uma teologia extremamente focada “no julgamento divino contra o
pecado”. Pecado estes tanto de ordem sociais (Mq 2.1-2), quanto também
de natureza religiosa (Mq 1.5-7). Seus conterrâneos enfrentavam a
mesma situação vivenciada pelos seus irmãos israelitas: conheciam
a Deus somente na teoria e mantinham uma vida religiosa superficial
e prepotente. Miquéias 6.6-8 resume muito bem o que se esperava do
povo de Deus. Nestes três versículos ele faz como se fosse um resumo
da Lei, conclamando o povo a uma verdadeira correção de suas práticas
religiosas que demonstravam uma religião meramente ritualística,
mecânica e exterior.

2.2.6 Estrutura e Alguns Destaques do Livro de


Miquéias
Diante de suas profecias relacionadas ao ministério de Jesus
(Mq 5.2; 6.5-8), o livro de Miquéias acaba sendo um tanto quanto conhecido.
Todavia, por conta de seu texto difícil, oriundo de um hebraico bastante
simples, no sentido gramatical, de sua ênfase no uso de linguagens
figuradas, de sua eloquência retórica e, ainda, por não possuir uma
estrutura geral bem definida, acaba sendo pouco estudado ou lido nas

71
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igrejas. Isso também acaba sendo agravado, segundo Dillard e Longman


(2006, p. 382), porque o livro não apresentaria nenhuma estrutura clara. É
como se as profecias mencionadas pelo profeta ao longo do seu ministério
fossem agrupadas aleatoriamente. Já não bastasse toda essa confusão,
em potencial, House (2005, p. 470) ainda esclarece que o profeta Miquéias
alterna de forma bastante aleatória entre os acontecimentos de sua
época, permeado em pecado, e os de um futuro carregado de esperança,
otimismo e justiça.

Acrescente-se a isso a grande quantidade de pesquisadores que


defendem que somente os três primeiros capítulos pertenceriam ao autor
e que os capítulos 4 a 7 seriam de outro autor, acrescidos posteriormente.
Há inclusive quem defenda ser ele composto por três autores distintos: de
1-3 o próprio profeta, 4-5 um autor desconhecido do período exílico, e de
6 a 7 um autor também anônimo, mas do Norte e do período pós-exílico.
As principais razões para esta desconfiança são a falta de uma estrutura
clara e, principalmente, a menção à Babilônia, feita em Mq 4.10 (SICRE,
2008, p. 277). Todavia, como bem destaca Crabtree (1971, p. 125), tanto
o linguajar quanto o estilo literário de todas as três possíveis partes são
semelhantes do começo ao fim. Além disso, Mq 4.10 não precisaria estar
se referindo a eventos tão futuros, como normalmente se pensa e por
isso não deveria ser tão assertivo, humanamente falando. Porém, esta
menção à Babilônia nem é tão específica assim e poderia se referir a algo
da própria época do profeta, na qual os babilônios já começavam a pintar
no cenário mundial, como opositores aos Assírios.

Quanto à possível ausência de estrutura entre os capítulos, Gusso


(2017, p. 85) mostra pelo menos uma lógica em suas mensagens. Segundo
ele, Miquéias teria reunido sua fala seguindo a seguinte sequência:
I – profecias de desgraça, II – profecias de promessa, “I” – profecias
de desgraça, “II” – profecias de promessa. Embora Gusso não tenha
desenrolado mais esta questão, este encadeamento 1-2-1-2 é idêntico ao
clássico padrão poético conhecido como “quiasmo espelhado”, “myasmo”
ou, mais recentemente, “paralelismo estrutural”. Precisaríamos de mais
tempo e pesquisa para comparar cada parte para afirmar se tratar de um
poema de fato, mas por ora não há como negar que Miquéias não é tão
desorganizado assim. Ele segue, sim, uma estrutura, mesmo que mínima.

72
< voltar

Curiosamente, mesmo afirmando que Miquéias não teria “nenhuma


estrutura global”, os autores Dillard e Longman (2006, p. 383) já haviam
proposto um esboço simples para o profeta, dentro desta mesma
perspectiva de repetição. Eles chamaram de primeiro round de julgamento
e salvação, seguido de um segundo round com a mesma temática. Por
outro lado, House (2005, p. 471-474) faz uma divisão tríplice para o livro,
a partir de sua teologia. Ficando da seguinte forma: a) Mq 1 a 3 Denúncia
dos pecados cometidos; b) Mq 4-5 O remanescente será exaltado por
Deus; c) Mq 6-7 Deus perdoa baseado em sua aliança.

A partir de um esboço mais detalhado, proposto por Crabtree (1971,


p. 128), juntando-se à proposta já mencionada de Gusso, propomos algo
mais simples, mantendo a divisão quádrupla de suas partes, mantendo o
indicativo do padrão poético paralelístico:

A – Profecias de desgraças: Mq 1-3 “denúncia contra os poderosos”;


B – Mensagens de promessas: Mq 4-5 “Sião será redimida e seus
inimigos castigados”;
A’ – Profecias de desgraças: Mq 6 “Deus julga seu povo”;
B’ – Mensagens de promessas: Mq 7 “a passageira iniquidade humana
versus o amor imutável do Senhor”.
Voltando a destacar o estilo literário de nosso profeta, embora sua
capacidade literária seja bem menor que os profetas Amós e Isaías, seu
linguajar não deixa de ser “caracterizado por vigor, sentimentos profundos,
imagens e figuras retóricas [...] (1.5; 2.7; 3.11), imperativas (1.10,13,16; 3.1),
símiles (1.4,6,8; 3.12) e metáforas (3.2,3,10)” (CRABTREE, 1971, p. 126).
Infelizmente, muitas destas preciosidades se perdem na tradução. Por
exemplo, em Mq 1.10-15 o profeta faz uso exagerado de redundâncias,
para deixar sua mensagem ainda mais impactante, mas como ele associa
algumas ações a nomes das principais cidades em que Senaqueribe
passou a mensagem acaba ficando escondida.

Segundo Crabtree (1971, p. 140), alguns acreditam que estas


profecias descritas de forma tão poeticamente bela não teriam sido
concluídas porque o profeta teria imaginado uma invasão completa dos
Assírios contra Jerusalém. Todavia, em momento algum ele menciona

73
< voltar

seu extermínio e, a julgar pelos relatos históricos, embora Judá não tenha
sido dizimada pelos Assírios, como foram as tribos do Norte, dezenas
de suas cidades foram destruídas e a queda da grandeza adquirida por
Uzias foi gritante. Ou seja, mesmo que Judá não tenha sido totalmente
devastada, ela foi de forma terrível e vergonhosa, o que não tiraria o crédito
e a destreza de tal profecia.

Além disso, ao que parece, a principal mensagem de Miquéias é


bem parecida com as dos profetas Oséias e Amós. A graça divina não é
algo negociável, ela deve andar atrelada a uma vida constante de justiça e
equidade. Da mesma forma que seus conterrâneos, além de ser bastante
duro e enérgico contra os pecados do povo é, da mesma forma, brilhante
ao anunciar o livramento do Senhor, para aqueles que se disporem ao
arrependimento.

Em Mq 2.1, o profeta condena o que ele chama de “planejadores


da iniquidade e obreiros do mal”. Claramente uma declaração de que o
pecado da liderança e dos poderosos de seu povo não eram ocasionais,
nem como o pentateuco denomina “pecados de ignorância” (Lv 4.2; Nm
15.28). Aqui não, os opressores realmente sabiam o que estavam fazendo
e, por que não dizer, eram peritos na arte da exploração. Para piorar ainda
mais a situação, não bastassem pecar de caso pensado, em Mq 2.3 é
mencionado que viviam como se fosse uma verdadeira família, o que
hoje nós chamamos de quadrilha ou organização criminosa. Conforme
o profeta, não importa o quão arrogantes ou poderosos possam ser, sua
vergonha será certa.

A palavra motejo, descrita em Mq 2.4, conforme algumas versões,


significa um tipo de cântico proverbial, como um canto fúnebre, mas além
de apenas demonstrar a tristeza, procura destacar alguma sabedoria por
trás do mesmo. Como quem diz: assim como os pobres ficam felizes por
seus feitos pecaminosos e de opressão, logo estarão chorando porque
sua sorte será mudada e de poderosos passarão a ser oprimidos.

Em Mq 2.11 é descrita uma terrível realidade ainda presente nos dias


de hoje. Profetas que pregam o que o povo quer ouvir, pois se preocupam
muito mais com a aceitação humana do que com os princípios divinos.
Mas, um pouco mais adiante, Miquéias declara que independentemente

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de o povo não querer a Deus, o Senhor estará sempre com aqueles que o
invocarem (Mq 2.13). Aqui, as palavras rei e senhor se referem à mesma
pessoa, ao próprio Yavé, que estaria no meio do próprio povo.

No capítulo 3 aparecem várias palavras relacionadas ao povo de


Deus, como Jacó, Israel, Sião e Jerusalém, todavia devemos lembrar da
veia poética de nosso profeta, e em vez de seccionar o povo ou tentar
fazer qualquer distinção entre alguma parte, na verdade está se referindo
ao povo como um todo. São todas palavras sinônimas.

No capítulo 4.1-5, Miquéias faz uma belíssima declaração acerca


do futuro de Sião. Porém, como inicia com a expressão “nos últimos
dias”, muitos têm interpretado como pertencente do período pós-exílico.
Todavia, não há motivo para duvidar de sua exposição pelo nosso profeta
em estudo, mesmo porque há coisas que de fato ocorreriam próximo aos
dias do profeta, como o retorno da babilônia, a fase de reconstrução do
templo, mas como também há acontecimentos que se cumpriram com
a ascensão de Cristo e outros que só ocorrerão quando de fato tivermos
novos céus e novas terras (CRABTREE, 1971, p. 156-157).

Da mesma maneira que Amós adota o uso de nove perguntas


retóricas (Am 3.3-8), Miquéias também usa deste recurso, e no capítulo
6.1-8 apresenta sete deles, em sequência. Não porque tivesse qualquer
dúvida, mas para ratificar sua mensagem de que o povo está em terrível
falta contra seu Deus.

No capítulo 5, a declaração de que Yavé estará destruindo os maus


e purificando o mundo é bastante enfática. Não podemos perder isto de
vista. Às vezes, a corrupção se alastra tanto que parece que os poderosos
nunca serão punidos. Em Mq 7.1-7 isto é ainda mais evidente: ainda que
a sociedade esteja corrompida e não seja nem um pouco segura, Deus
continua sendo confiável e verdadeiramente fiel.

Por fim, convém lembrar mais uma vez do constante uso de paralelos
e sinônimos pelo profeta. Como fazer-se calvo e tosquear-se (Mq 1.16);
Jacó, Israel, Jerusalém e Sião (Mq 3); Assíria e Ninrode (Mq 5.6); perdoar/
esquecer e pecado/transgressão (Mq 7.18). Chamamos especial atenção
para esta última citação. Normalmente, este versículo tem sido utilizado

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para defender que Deus esquece os pecados. Todavia, aqui, a ênfase é


unicamente uma só: o pecado (seja qual for) será perdoado. O profeta não
está pensando em duas categorias distintas para os erros e outras duas
para descrever como Deus age em cada situação. Ele diz a mesma coisa
com palavras diferentes para enfatizar o poder de Deus em acabar com
qualquer falta que seu povo tenha, desde que se arrependam.

2.2.7 Aplicações de Miquéias para os Dias de Hoje


Da mesma forma que seus irmãos e companheiros de ministérios
nortistas, Miquéias também não é apenas “pancadaria”, ele tem palavras
de salvação e esperança (Mq 2.12-13; 5.1-2), mostrando acima de tudo
um Deus magnificamente gracioso e único em verdade (Mq 7.18-20).

House (2005, p. 470) nos chama a atenção para o fato de que


enquanto em Amós Yavé era tido como o justo juiz, e por todo o aspecto
legal que envolvia as profecias daquele profeta, em Miquéias, Deus é visto
muito mais como testemunha. Certamente, também o soberano que dará
o cabo de cada sentença, mas o grande chamariz deste nosso profeta é
destacar que o próprio Senhor entra como testemunha contra os pecados
de seu povo.

Não importa o tipo ou a quantidade de pecados, Deus tem reservado


seus “ais” a todos eles. O fato de o Senhor não agir quando a gente quer,
não significa que esteja inativo, omisso ou conivente com a maldade.

Deus tem a hora certa de agir e jamais se deixa intimidar.

Nosso profeta continua de grande alerta para os dias de hoje ao


destacar que os pecados, sejam nacionais ou individuais, impedem o
usufruto maravilhoso da bênção divina e desencadeiam consequências
danosas aos infratores.

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Assim como Deus governava o mundo na época do profeta


Miquéias, condenado e julgando os maus e galardoando os justos,
semelhantemente, nos dias de hoje, Yavé continua agindo. De tal modo
que ainda hoje podemos tranquilamente perguntar, retoricamente, como
fez o profeta: “Quem é como nosso Deus?”

Síntese do Capítulo
Neste capítulo aprendemos que Deus tem aversão imensa contra
todo e qualquer tipo de pecado. Quando o pecador é arrogante, parece
que o deixa ainda mais indignado. Todavia, da mesma forma que sua fúria
é imensa, sua benignidade também o é. Yavé sempre se mostra disposto
a perdoar o pecador contrito e arrependido. Neste capítulo, também
conhecemos um pouco sobre a história de três profetas que tiveram um
papel de extrema importância na exposição do pecado de seu próprio povo
e das nações vizinhas. Foram eles, Oséias, Amós e Miquéias. Escolhidos
e arrolados neste primeiro grupo porque a mensagem e a ênfase dos três
foram bastante parecidas.

No primeiro tópico, aprendemos que Oséias foi chamado para uma


das piores formas de ministério profético, o da mensagem dramatizada.
Neste sentido, o profeta foi convidado a vivenciar em sua própria experiência
de vida a mensagem de Deus para seu povo. Por conta disso, teve que se
casar com uma mulher que, por mais amor que ele oferecesse, sempre estava
disposta a abandoná-lo e traí-lo, assim como foi a trajetória de Israel em seu
relacionamento com Yavé. Embora os capítulos iniciais até possam assustar
um pouco, dadas as devidas proporções, a mensagem geral é de extrema
claridade e revelação: Deus tem e demonstra um amor incondicional pelo seu
povo enquanto este tende a viver sua vida a seu bel-prazer.

Como seus conterrâneos não deram ouvidos ao próprio testemunho


do profeta Oséias, Deus teve que trazer um homem, lá da região de Judá,
para que talvez assim seu povo percebesse a grande loucura que estava
fazendo. Todavia, de igual modo, Amós também foi totalmente ignorado.
Mesmo que não tenhamos muitos dados acerca da duração do ministério
deste profeta, sua mensagem foi suficientemente clara para destacar que

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assim como um leão não vacila em seu território, o Senhor trará a juízo
os perversos. Isto é tão forte que só se passaram cerca de três décadas
após o final do ministério de Oséias, e, talvez, umas duas décadas a mais,
depois das palavras de Amós, para Israel, tão altivas e soberbas em sua
ganância e corrupção, cair ao ponto de nunca mais se poder reconhecer
quem são os descendentes de suas tribos.

Da mesma forma, o profeta Miquéias praticamente contemporâneo


a Oséias, teve seu ministério focado em apontar as desmazelas que, seu
povo, as tribos de Judá estavam cometendo a despeito de tudo que o
Senhor lhes havia ensinado. Infelizmente, em vez de perceberem o erro de
seus irmãos do Norte e se humilharem diante do Senhor, se vangloriaram
ainda mais, achando que Israel havia sido banido do mapa porque não
tinham a cidade santa, como eles possuíam.

Infelizmente, uma triste realidade esboçada e escancarada por


todos estes três homens de Deus. Mais triste ainda é saber que, tal qual
os israelitas e judaítas, o povo de Deus hoje, ainda ousa desobedecê-lo e,
pior, ainda tem a audácia de ignorar o Senhor da bênção e só se preocupar
e almejar a bênção do Senhor.

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