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Pastoral e Sociedade

FABAPAR
F A C U L D A D E S B A T I S TA D O P A R A N Á
Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

Pastoral e Sociedade
1a ed.

Curitiba
2021
© Os direitos de autoria e patrimônio são reservados ao(s) autor(es) da obra e às Faculdades
Batista do Paraná (FABAPAR). É expressamente proibida a reprodução total ou parcial desta
obra sem autorização da FABAPAR.

FACULDADES BATISTA DO PARANÁ


Direção-Geral – Jaziel Guerreiro Martins
Direção-Acadêmica – Reinaldo Arruda
Gerência de Captação e Expansão – Murilo de Oliveira Rufino
Coordenação dos Bacharelados em Teologia – Margareth Souza da Silva
Coordenação Adjunta do Bacharelado em Teologia EAD – Janete Maria de Oliveira
Autoria do Material – Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

Coordenação Editorial – Thiago Alves Faria


Núcleo de Inovação e Desenvolvimento Educacional – Elen Priscila Ribeiro Barbosa
Revisão – Marcela Vidal Machado
Design Instrucional – Ariadne Helena Körber
Design Gráfico e Diagramação – Thiago Alves Faria
Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP)
Rozane Denes (Bibliotecária CRB/9 1243)
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Sumário
Apresentação do professor............................................................6
Prefácio............................................................................................7
1. Uma Visão Bíblica da Vida Social..............................................10
Introdução.......................................................................................................................... 10

1.1 Direito e Justiça........................................................................................................ 11

1.2 Economia Solidária.................................................................................................. 17

1.3 Fraternidade............................................................................................................... 22

1.4 Solidariedade Social................................................................................................ 26

Síntese do capítulo.........................................................................28
Referências .....................................................................................29
2. Uma Visão Teórica da Vida Social.............................................31
Introdução.......................................................................................................................... 31

2.1 Principais Categorias de Análise da Sociedade............................................32

2.2 Família.......................................................................................................................... 43

2.3 Economia.................................................................................................................... 46

2.4 Estado.......................................................................................................................... 52

2.5 Cultura.......................................................................................................................... 54

Síntese do capítulo.........................................................................59
Referências .....................................................................................61
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Apresentação do professor
Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero é bacharel em Teologia
pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo. Mestre e doutor em
Teologia pelas Faculdades EST. Pastor jubilado da Igreja Presbiteriana
Independente do Brasil. Professor e coordenador de pós-graduação na
Faculdade Teológica de São Paulo da Igreja Presbiteriana Independente
do Brasil (Fatipi) e coordenador do Mestrado em Teologia da Faculdade
Teológica Sul-Americana. Autor de vários livros e artigos, começou
sua carreira teológica em 1980 atuando como professor, palestrante e
participante de movimentos sociais eclesiais e laicos. É casado e tem
cinco filhos e dois netos. Sua esposa, Glauci, é artista plástica.

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Prefácio
Embora aparentemente simples, o tema Pastoral e Sociedade é
desafiador. Parece simples porque todos nós vivemos em uma sociedade
e sabemos como nos comportar como membros dessa sociedade.
Aprendemos, no dia a dia, como usar meios de transporte, como procurar
emprego, como usar equipamentos elétricos e eletrônicos, como nos
relacionar com outras pessoas etc. Como igreja local, estamos situados
em um lugar social. Somos igreja em uma sociedade. Para nós, no dia
a dia, a sociedade não é o gigantesco mundo em que vivemos, mas é o
bairro, a vila, o local de trabalho etc.

Pastoral, neste livro, não é apenas o trabalho de pastores ordenados.


É a ação de toda a igreja, de cada membro da igreja, que dá testemunho do
Evangelho no mundo. Pastor é quem cuida, pastoral é a ação cuidadora da
igreja local no mundo. Não só a ação da igreja como tal, mas principalmente
a ação de cada membro da igreja em sua vida cotidiana.

Os antigos reformadores usavam no lugar de pastoral o termo


vocação. Para eles, toda pessoa cristã é chamada por Deus para viver
Jesus Cristo de modo fiel no mundo e a servir ao mundo como expressão
de nossa grande comissão. Assim cremos até hoje: como cristãs e
cristãos, somos pessoas vocacionadas por Deus para a espiritualidade e
para o serviço no mundo – sem sermos do mundo.

Nosso estudo do tema Pastoral e Sociedade, portanto, será uma


reflexão e discussão sobre a vocação cristã e sobre a missão do povo de
Deus na sociedade, se você preferir o termo missão ao termo vocação. É
um convite para que toda a igreja se veja como pastoreadora do mundo
que Deus ama. É um desafio a pastores e pastoras ordenados a edificar
sua igreja local como uma comunidade de cuidado pastoral.

Este livro propõe temas complexos e intelectualmente desafiadores.


Exige estudo, releitura, reflexão e oração. O desafio intelectual é grande,
mas é ainda maior o desafio ministerial que a sociedade contemporânea
nos apresenta hoje. Um livro de Teologia pode parecer abstrato, às vezes,
teórico demais, porém todo livro de estudo no contexto da Teologia poderia

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levar em conta a interação com o clamor das pessoas que sofrem. Teologia
não é mera ciência. É parte integrante da espiritualidade e do ministério.

Fazer teologia é casar o grito do mundo com o anúncio do


Evangelho. É dar nome e consistência ao que Deus faz no mundo para
a sua própria glória e para a salvação de toda a sua criação. Pastoral
na Sociedade é uma dimensão da nossa resposta ao agir de Deus. É
ministério, missão, vocação, chamado, ação. Por isso, demanda estudo,
reflexão, discernimento. É assim que este livro precisa ser lido: como uma
ferramenta do discernimento espiritual. Um instrumento a ser colocado
nas mãos de Deus para nossa edificação.

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1. Uma Visão Bíblica
da Vida Social
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1. Uma Visão Bíblica da Vida Social

Introdução
A Bíblia é reconhecida por nós, cristãs e cristãos, como a Palavra
escrita de Deus para guiar nossas vidas. Por isso, ao pensarmos a ação
pastoral na sociedade, nosso ponto de partida terá de ser a Escritura,
onde encontramos testemunhos, exemplos, princípios e conteúdos que
nos ajudarão a viver e praticar nosso ministério com fidelidade a Deus e
de modo relevante para nossa sociedade.

Ao falarmos na ação pastoral na sociedade, o que encontramos na


Bíblia não é uma ciência social, mas um conjunto de testemunhos sobre
como o povo de Deus viveu nas sociedades no decorrer da história. No
Antigo Testamento encontramos o testemunho do povo de Israel ao longo
de um período de cerca de 1000 a 1200 anos, quando a sociedade israelita
passou por uma variedade de modificações estruturais, começando
como um clã familiar, passando pela organização tribal da sociedade e
culminando na estruturação monárquica da sociedade. Nesse período,
Israel também passou por períodos de liberdade, mas, sobretudo, a vida
da sociedade israelita foi definida e determinada pela dominação de
Impérios estrangeiros (começando com o Egito, passando pela Assíria,
pela Babilônia, pela Pérsia, Macedônia, Grécia e culminando na dominação
do Império Romano).

No Novo Testamento, a igreja cristã nascente é o sujeito principal


da vida na sociedade. Não mais um povo organizado de modo nacional, a
igreja é essencialmente uma comunidade local de pessoas que seguem
ao Senhor Jesus Cristo. No período neotestamentário, as igrejas cristãs
estavam localizadas em cidades e eram comunidades absolutamente
minoritárias. Estima-se que no primeiro século o número de cristãs
e cristãos não passasse de 0,5% da população do Império Romano,
enquanto comunidades minoritárias enfrentavam uma série de desafios
gigantescos, como a rejeição pela população local, a desconfiança em
relação à legalidade da existência e do funcionamento da comunidade,
o arbítrio e a violência dos agentes governamentais do Império Romano.

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Assim, ao estudarmos alguns dos aspectos principais da visão


bíblica da vida em sociedade, nosso foco será a hermenêutica social,
procurando entender as relações entre o povo de Deus e as estruturas
sociais de sua época, com vistas a encontrarmos lições para o nosso
próprio ministério. Nosso estudo não será histórico, mas hermenêutico e
teológico: queremos aprender como viver e servir a Deus em sociedades
que não seguem o padrão divino, mas estão abaixo do domínio do pecado.

1.1 Direito e Justiça


A história de Israel enquanto povo começa com a família de Abraão
e Sara, migrantes para uma terra estranha. Em meio aos desafios do
desconhecido, a família de Abraão e Sara aprendeu a viver em sociedades
estranhas e infiéis ao Deus de Abraão. Sua família, depois de sua morte, foi
escravizada no Egito e lá suportou durante gerações a dominação imperial
egípcia, tendo sido libertada por Deus após muito tempo de sofrimento,
mas também de clamor e oração. A experiência no Egito marcou toda a
visão israelita de sua identidade e de como viver em sociedade – e, de fato,
durante toda a história de Israel a vida do povo de Deus foi intensamente
marcada pela dominação imperial estrangeira, que causava a ausência de
liberdade, a presença da injustiça e da opressão social, política, religiosa
e econômica. Além dessa dominação estrangeira, porém, houve períodos
na vida de Israel em que os próprios governantes israelitas eram injustos e
opressores, não cumprindo a vontade de Deus para o seu povo – repetindo,
para a maioria da população, a situação originária no Egito.

Como Israel definiu teologicamente o seu papel como povo de


Deus diante de períodos tão complexos de sua vida em sociedade? Três
conceitos teológicos foram a principal resposta de Israel, ao longo de
sua história, aos desafios da vida em sociedade: aliança, justiça e direito.
Vejamos brevemente o principal significado de cada um deles1.

Vamos começar com a noção de aliança. Berit é uma palavra


hebraica que, no Antigo Testamento, explica as reponsabilidades

1 A fonte principal para esta análise é ZABATIERO, Júlio P. T. M. Teologia Pública.


São Paulo: Fonte Editorial, 2018.

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presentes em diferentes tipos de relacionamento: na relação interpessoal


(amizade, casamento), a responsabilidade de ser fiel; na institucionalização
da interação social em um determinado grupo social (e.g., o rei governa
com base em uma aliança), a responsabilidade de ser obediente; nas
relações internacionais (tratados de cooperação ou de vassalagem), a
responsabilidade de ser submisso; nas relações de seres humanos com
os seres não humanos na criação, a responsabilidade de cuidar; e na
relação de Deus com sua criação, a responsabilidade divina de cuidar e a
responsabilidade de a criação (incluindo os seres humanos) ser cuidada
e cuidar de si mesma.

O significado básico da palavra berit (e seus equivalentes em outros


idiomas da época) é o de uma obrigação entre pessoas, que varia de
acordo com o tipo de berit que é realizado. No caso ideal, a noção básica
subjacente é a de que os membros da berit criam laços de pertença mútua
(identidade), equidade e corresponsabilidade. Estabelece-se, assim, um
reconhecimento mútuo como coparticipantes de um mesmo projeto de
vida. O termo, porém, também pode ser usado para relações injustas
assimétricas e desiguais. Nesse caso, a pessoa dominada tem de aceitar
a dominação como se ela fosse uma “parceria”.

Do ponto de vista teológico, o que é importante destacarmos? Em


primeiro lugar, a palavra berit deve ser traduzida de modos diferentes,
conforme o tipo de obrigação envolvida no relacionamento. Por exemplo:
“Sim, estabeleço a minha berit convosco: não será mais destruída toda
a terra pelas águas do dilúvio, e não haverá mais dilúvio para destruir a
terra” Gn 9,11. Nesse trecho, ao invés de usar o termo pacto, devería-
mos traduzir por juramento. A palavra é usada no mesmo sentido dos
juramentos do Antigo Oriente Próximo (AOP). Deus faz um juramento a
Noé e assumiu um compromisso com ele e com toda a criação (cf. Gn
9,12-16) de nunca mais destruir a Terra com um dilúvio.

Em segundo lugar, quando analisamos textos bíblicos em que


a palavra berit explica o relacionamento entre Deus e Israel, temos de
levar em consideração que esse relacionamento pode ser uma parceria
ou um contrato. É preciso saber diferenciar, nos textos, esses dois tipos
de relacionamento, a fim de entendermos bem um aspecto importante

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da Teologia do Antigo Testamento. A relação entre Deus e o seu povo


é descrita em alguns textos como uma parceria, logo, o relacionamento
que se espera é o da fidelidade, do amor, da amizade. Em outros textos, o
relacionamento é descrito como um contrato ou como um tratado. Então,
o que se espera do povo é obediência ou submissão. Em outros textos,
ainda encontramos uma situação muito interessante. Como vimos ao
mencionar Gn 9,11ss, é possível que textos descrevam a relação entre
Deus e Seu povo como uma relação em que Deus, voluntariamente,
assume uma posição “inferior” ao povo e lhe presta um juramento!

No primeiro e no terceiro tipos de textos, podemos dizer que


o relacionamento entre Deus e seu povo é de companheirismo, ou
seja, baseia-se na graça, na misericórdia ou na fidelidade de Deus. No
segundo caso, o relacionamento é contratual, ou seja, baseia-se no dever
que o povo tem para com Deus ou para com o governante humano –
é um relacionamento legal. Assim, podemos entender que no Antigo
Testamento a berit entre Deus e Israel pode ser descrita de dois modos
teológicos: no modo da graça e no modo da lei. É preciso, então, em
cada texto bíblico que estiver sendo estudado, analisar bem que tipo de
relacionamento está presente.

Para Israel, o relacionamento de parceria, de fidelidade, é o padrão


divino. Todavia, a impiedade humana estabelece, na prática, que o padrão
contratual seja o praticado em quase todo o tempo da vida na sociedade.
O padrão contratual é o padrão da lei, mas não o da lei divina, e sim o da
lei humana, a lei do mais forte econômica ou politicamente. A lei serve,
então, para justificar todo tipo de dominação, injustiça e opressão que um
grupo pequeno impõe a grupos maiores de pessoas e a toda a sociedade.
A história de Israel pode ser lida como um permanente confronto entre
diferentes formas de aliança: a fidelidade a Deus e ao próximo versus a
obediência às leis e a seus governantes.

Justiça (tsedaqa) e direito (mishpat) são os termos que expressam


as normas de relacionamento interpessoal e interinstitucional em
sociedades baseadas na aliança da fidelidade. Com essas palavras, o povo
de Israel representava a vontade de Deus para restaurar a aliança fiel a
Ele na vida em sociedade. Estudaremos brevemente o significado dessas

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duas palavras, começando com a constatação de que, embora elas sejam


usadas separadamente na Bíblia, é muito importante o uso do par na
teologia da vida social. Vamos começar com o termo justiça, que tal?

Inicia-se com uma afirmação que revela o quão diferente é o


conceito bíblico de justiça em relação ao conceito atual de justiça:
justiça é libertação2. Libertar, na Escritura, é fazer justiça a quem está
em situação de injustiça, e o critério primário da compreensão da justiça
são os atos poderosos de Deus que libertam o oprimido que clama por
justiça. O êxodo dos israelitas do Egito é o ato libertador fundamental de
Deus para o povo de Israel3.

Note como, nos textos a seguir, as palavras libertação e justiça


funcionam como sinônimos: “YHWH tornou conhecida a sua libertação,
manifestou a sua justiça perante os olhos dos gentios” (Sl 98,2); “Livra-
me na tua justiça, e faze-me escapar; inclina os teus ouvidos para mim,
e liberta-me” (Sl 71,2). Como resposta, o salmista declara: “A minha boca
relatará a tua justiça e de contínuo os feitos da tua libertação, ainda que
eu não saiba o seu número” (Sl 71,15); “Faço chegar a minha justiça, e não
está longe; a minha libertação não tardará; mas estabelecerei em Sião
o livramento e em Israel, a minha glória” (Is 46,13); “Porque a traça os
roerá como a um vestido, e o bicho os comerá como à lã; mas a minha
justiça durará para sempre, e a minha libertação, por todas as gerações”
(Is 51,8). Para ampliar seu conhecimento do conceito de justiça no Antigo
Testamento, leia também: Sl 22,31; 31,1; 35,24–28; 40,10; 69,27–29;
88,12; 119,123; Is 42,6–21; 45,8–13; 51,5–8; Mq 6,5; 7,9.

Vejamos como um estudioso da Escritura sintetizou o sentido da


palavra justiça:

2 Há muitos estudos sobre o tema da justiça na Escritura. Pode-se começar com


os artigos de dicionários teológicos. Sugere-se o verbete “Justiça, justificação” no
Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento (Vida Nova, 2007, p. 1117ss).
3 Há diferentes concepções de libertação na teologia contemporânea, a mais
conhecida é a Teologia da Libertação Latino-americana. Devemos diferenciar os
conceitos atuais dos conceitos bíblicos. Na Escritura não há o componente marxista
presente, por exemplo, na teologia da libertação. O conceito de justiça se refere
diretamente à ação de Deus que liberta e salva Israel e, a partir de Cristo, a humanidade.

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A compreensão veterotestamentária da justiça não se baseia na


concordância entre as ações humanas e determinadas normas
jurídicas que possuem um caráter absoluto, mas na adequação
do comportamento em um relacionamento bilateral. Por isso, a
justiça de Deus se manifesta em um agir digno dEle com relação
ao seu povo, a saber, em Sua ação salvífica e libertadora (Is 45,21;
51,5-5; 62,1). A justiça de Deus foi cantada nos tempos antigos
(Jz 5,11) e continua sendo celebrada ao longo da história (1Sm
12,7; Is 45,24; Mq 6,5; Sl 103,6; Dn 9,16). A pessoa que desejava
a libertação invocava a justiça de Deus, ou seja, a intervenção
divina (Sl 71,2; 143,11), e seus inimigos eram confundidos (Is
41,10-11; 54,17; Sl 129,4-5). Por amor a Israel a justiça de Deus
é outorgada inclusive à natureza e à terra, a fim de que fosse
próspera (Os 10,12; Jl 2,23; Is 32,15ss; 48,18-19). Israel se define,
aqui, mediante a participação na justiça de Deus (Sl 24,5), que
pode ser descrita inclusive mediante categoriais espaciais (Sl
89,17; 69,28). (SEEBASS, 1990, p. 405)

Agora ficará mais fácil entender o sentido da palavra direito no


Antigo Testamento. O direito no Antigo Testamento não é, como em
nossos dias, um sistema de códigos legais e de instituições jurídicas.
O direito é a restauração da justiça sempre que ela estiver ausente no
relacionamento entre as pessoas na sociedade. Como Israel enfrentou
injustiça, desenvolveu uma compreensão particular do direito, conforme
veremos na sequência.

Quando comparamos o direito israelita ao direito vétero-oriental,


encontramos uma peculiaridade do direito israelita: ele se funda na
noção israelita de justiça como libertação, por YHWH, do domínio de
um poder opressor. Essa peculiaridade é mais facilmente perceptível no
Deuteronômio, mas está presente em todo o Pentateuco. Vejamos uma
descrição dessa peculiaridade: o Deuteronômio
[...] pertence a e participa da criação do mundo de vida do autor
e ouvinte, ou leitor, originais. Esse mundo de vida original, com
todas as suas normas, valores, crenças e atitudes partilhadas
é parcial e indiretamente acessível a nós, de um modo tal que
é possível recriar as condições materiais dentro das quais ele
emergiu e às quais respondeu. (MAYES, 1996, p. 235)

Que condições seriam essas? Aquelas derivadas da dominação


assíria sobre a Palestina, que provocaram um forte choque cultural em

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Judá e colocaram em xeque as noções teológicas que visavam explicar o


relacionamento entre Javé e seu povo. Nesse período passa a ser usada,
então, a categoria de aliança como tema teológico4.

A ideia de aliança como contrato, em função de seu caráter político,


manifestada por meio de tratados de vassalagem e juramentos de lealdade
ao soberano, exerceu um forte impacto sobre os teólogos judaítas:
Foi da Assíria que Judá derivou a ideia de um relacionamento
contratual; esta foi integrada à tradição israelita de modo
que negasse a cosmovisão estrangeira que representava
originalmente. [...] teve de ser uma sistematização de tradição que
integrava ao javismo aqueles elementos da cultura concorrente
que se constituíam em uma alternativa atraente em Judá àquela
época. (MAYES, 1996, p. 239s)

Como isso influencia nossa visão do direito israelita? Vejamos as


consequências dessa compreensão para a compreensão do Deuteronômio
e seu conjunto de normas (e isso vale também para as normas presentes
nos demais livros do Pentateuco):

• o Deuteronômio não deve ser entendido como uma lei, mas como
um discurso teológico que serve de base para a elaboração das
normas da vida em sociedade;
• não sendo lei, no sentido do Direito Positivo da atualidade,
o Deuteronômio deve ser interpretado como uma resposta
teológica aos conflitos sociais, políticos e culturais de seu tempo;
• o Deuteronômio deve ser lido como um programa de
restauração da aliança como fidelidade: “o Deuteronômio é,
como Alt o reconheceu, um programa para o futuro, o programa
de um movimento de restauração que, através de pregação e
exortação, propõe uma tradição revitalizada na esperança de
persuadir os israelitas fiéis a se separarem daqueles israelitas
infiéis que ameaçavam a sociedade com a desintegração
interna” (MARTÍNEZ, 1994, p. 177).

4 A principal obra sobre a teologia da aliança no Antigo Testamento é EICHRODT,


Walter. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2004.

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Esses conceitos teológicos servem de base para entendermos


aspectos mais específicos da visão bíblica de sociedade justa, como a
justiça econômica.

Não podemos incluir aqui uma discussão ampla a respeito desses


temas no Novo Testamento. Deixamos algumas indicações para a sua
própria pesquisa. Aliança, justiça e direito são retomados por autores
do Novo Testamento no conceito do Reino de Deus, o tema central da
pregação de Jesus nos Evangelhos Sinóticos. A base da justiça e do direito
é a soberania de Deus, que, em Cristo, revela-nos o seu amor pela humani-
dade e os princípios que norteiam a vida do seu povo. Os princípios funda-
mentais para uma reflexão sobre justiça e direito na sociedade podem ser
encontrados principalmente no Sermão do Monte (Mt capítulos 5-7), que
estabelecem os valores do Reino para a vida humana.

O fator principal da compreensão da justiça econômica no Novo


Testamento é a afirmação de Jesus de que a riqueza é uma forma de
idolatria (“não podeis servir a dois senhores, ou a Deus, ou ao dinheiro
(Mamom)”), que Paulo retoma em 1 Tm 6,10 ao afirmar que “o amor ao
dinheiro é a raiz de todos os males”. Dois exemplos concretos dessa
nova visão são: a prática da igreja primitiva em repartir os seus bens
(At capítulos 2-5) e a coleta em favor dos pobres promovida por Paulo
(cf. 2 Co 8,1ss). Em termos da ação cristã na sociedade, podemos
encontrar a releitura da noção judaica da justiça e do direito no conceito
de boas-obras do apóstolo Paulo. Ef 2,8-10 e Tt 3,8 são os textos
fundamentais para nossa compreensão do tema, ao mostrarem que as
boas obras são expressão da graça de Deus recebida pela pessoa que
foi salva por Cristo.

1.2 Economia Solidária


Uma das áreas da vida social mais marcadas pela injustiça é a
econômica. Em toda a história da humanidade a propriedade de bens
imóveis, a produção de bens de consumo e a circulação do dinheiro –
em uma palavra, a economia – foram marcadas pelo enriquecimento
de poucos e o empobrecimento de muitos. Não foi diferente na história
de Israel no período do Antigo Testamento. Por isso, como forma de

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buscar a restauração da justiça econômica entre as famílias, os israelitas


desenvolveram uma visão solidária da economia. Em Dt 15,1-18
encontramos três normas econômicas baseadas na noção do sábado
como descanso, que visavam à restauração da justiça.

A primeira delas é a lei do perdão de dívidas (remissão):


1 Ao fim de cada sete anos farás remissão. 2 E este é o modo da
remissão: todo credor remitirá [literalmente: deixará cair]) o que
tiver emprestado ao seu próximo não o exigirá do seu próximo
ou do seu irmão, pois a remissão do Senhor é apregoada. 3 Do
estrangeiro poderás exigi-lo; mas o que é teu e estiver em poder
de teu irmão a tua mão o remitirá. (Dt 15,1-18)

Essa é a forma deuteronômica da norma do ano sabático. Uma vez


que o sábado é o dia do descanso, também a sociedade precise instituir
o seu próprio descanso. Nesse caso, o descanso econômico: para que
pessoas não se tornem pobres ou dependentes de outras pessoas, é
preciso que suas dívidas sejam periodicamente perdoadas. É claro que
não estamos falando aqui de dívidas contraídas por imprudência e gasto
excessivo, mas daquelas dívidas que impedem o sustento da pessoa e
sua família.

A segunda é a norma da generosidade econômica, ainda em Dt 15:


7 Quando no meio de ti houver algum pobre, dentre teus irmãos,
em qualquer das tuas cidades na terra que o YHWH teu Deus
te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás a mão a
teu irmão pobre; 8 antes lhe abrirás a tua mão, e certamente
lhe emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a sua
necessidade. 9 Guarda-te, que não haja pensamento vil no teu
coração e venhas a dizer: Vai-se aproximando o sétimo ano, o
ano da remissão; e que o teu olho não seja maligno para com
teu irmão pobre, e não lhe dês nada; e que ele clame contra ti a
YHWH, e haja em ti pecado. 10 Livremente lhe darás, e não fique
pesaroso o teu coração quando lhe deres; pois por esta causa te
abençoará YHWH teu Deus em toda a tua obra, e em tudo no que
puseres a mão. 11 Pois nunca deixará de haver pobres na terra;
pelo que eu te ordeno, dizendo: Livremente abrirás a mão para
o teu irmão, para o teu oprimido, e para o teu pobre na tua terra.

Preste atenção, em particular, ao forte tom pessoal-emocional


desses versos. Não se questiona a existência da pobreza nem se postula

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o seu fim. Pede-se, porém, que aquele que possui terras e prospera
seja solidário ao seu irmão que não conseguiu sucesso e, assim, não
pode sustentar sua família. No mundo atual, separamos a economia
das relações pessoais. Temos até um ditado que diz “amigos, amigos;
negócios à parte”. Para o antigo Israel não era assim.

A terceira norma de Dt 15, por fim, se referia à escravidão causada


por endividamento:
12 Se te for vendido um teu irmão hebreu ou irmã hebreia, seis
anos te servirá, mas no sétimo ano o libertarás. 13 E, quando o
libertares, não o deixarás ir de mãos vazias; 14 liberalmente o
fornecerás do teu rebanho, e da tua eira, e do teu lagar; conforme
YHWH teu Deus tiver abençoado te darás. 15 Pois lembrar-te-
ás de que foste escravo na terra do Egito, e de que YHWH teu
Deus te resgatou; pelo que eu hoje te ordeno isso. 16 Mas se
ele te disser: Não sairei de junto de ti; porquanto te ama a ti e a
tua casa, por estar bem contigo; 17 então tomarás uma sovela,
e lhe furarás a orelha contra a porta, e ele será teu servo para
sempre; e também assim farás à tua serva. 18 Não seja duro aos
teus olhos de teres de libertá-lo, pois seis anos te prestou serviço
equivalente ao dobro do salário; e YHWH teu Deus te abençoará
em tudo o que fizeres.

A escravidão não pode ser permanente, de fato, nem deveria


existir, mas quando existisse somente poderia ser temporária e a pessoa
escravizada, ao ser libertada, deveria receber o suficiente para recomeçar
a sua vida com justiça.

O que as leis econômicas de Dt 15 têm em comum é o seu


fundamento na noção de fraternidade. Para o antigo Israel, a economia não
era um sistema autônomo, mas uma dimensão da vida social em fidelidade.
Entretanto, esse tipo de lei só funciona se o povo for um povo que pratica
a fidelidade. Os profetas de Israel perceberam que o povo de Deus não era
um povo fiel, por isso, Jeremias, por exemplo, proclamou a chegada de uma
nova aliança, não baseada no dever, mas na graça de Deus.

Em Jr 31,27-34, o profeta anuncia a chegada de uma nova aliança.


O texto é subdividido em três seções (mas estudaremos apenas as duas
últimas), iniciadas com a expressão “dias virão” ou “naqueles dias”. Na
primeira seção, YHWH promete restaurar a casa de Israel (que havia

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sido destruída pelos assírios no VIII século a.C.) e de Judá após o fim do
reino de Judá (tomado pelos babilônios no VI século a.C.) – vigiei (juízo)
e vigiarei (restauração). Na segunda seção, o Senhor anuncia uma nova
mentalidade sobre o pecado e a culpa – cada um morrerá pela sua própria
iniquidade – rompendo com a forma tradicional de incluir os filhos e netos
na culpa dos pais/avós (quando um fazendeiro ficava endividado, por
exemplo, suas filhas e seus filhos poderiam ser escravizados para abater
a dívida), mentalidade que permitia, na prática, isentar os pais poderosos
de castigo (note, por exemplo, que é o filho de Davi com Bateseba que
morre, ao invés do pecador Davi, e isso é atribuído pelo escritor ao juízo de
Deus). Na terceira seção, temos um dos textos mais famosos do Antigo
Testamento para os cristãos: o anúncio da nova aliança. Vejamos, então,
o texto e sua teologia.
29 Nesses dias não mais se dirá: Os pais comeram uvas verdes,
e os dentes dos filhos se embotaram. 30 Cada pessoa, porém,
será morta como consequência de seu próprio delito. Cada
pessoa que comer uvas verdes terá seus dentes embotados. 31
Aproximam-se dias – oráculo de YHWH – em que firmarei com
a casa de Israel e com a casa de Judá uma nova aliança. 32
Não será como a aliança que fiz com seus pais, no dia em que
os tomei pela mão, para tirá-los da terra do Egito. Eles traíram
minha aliança enquanto eu ainda era esposo entre eles; oráculo
de YHWH. 33 Esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel
depois desses dias – oráculo de YHWH – gravarei a minha
instrução em suas entranhas e no seu coração as escreverei;
então eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo. 34 Não
ensinará mais cada um ao seu vizinho, nem cada um ao seu
irmão, exortando: Conhece a YHWH. Cada pessoa me conhecerá,
da mais insignificante até a mais poderosa – oráculo de YHWH.
Perdoarei o seu delito e de seu pecado não mais me lembrarei.
(Jr 31,29-34)

Note as expressões indicativas de que Jeremias está falando a


respeito de dias de transição: nesses dias (v. 29), aproximam-se dias
(v. 31), depois desses dias (v. 33). Note a profusão de verbos no futuro,
que contrastam com os verbos no passado. Note, ainda, que a expressão
“oráculo de YHWH” é usada três vezes, reforçando a origem e a autoridade
divina da inovação proposta por Jeremias. Esse uso repetido ressalta a
estranheza da mensagem de Jeremias em seu contexto, de modo que ele

20
< voltar

apela insistentemente à autoridade divina. Novo e velho se contrapõem


nessa pequena fala de Jeremias.

O velho mundo em desaparecimento na época de Jeremias era


o mundo rural, do reino de Judá independente, protegido por YHWH, o
Deus de Davi, morador do Templo em Sião, chefe dos exércitos do rei,
abençoador do povo5. O novo mundo nascente era um mundo urbanizado,
no qual a urbanização foi provocada pelas seguidas incursões militares
estrangeiras que obrigavam as populações rurais a migrarem para as
cidades em busca de proteção.

O velho mundo da tradição monárquica tinha suas certezas


teológico-políticas. Eram pelo menos três: YHWH escolheu Davi e sua
família para reinar para sempre em Israel (tudo bem que Israel já deixara
de fazer parte do domínio davídico no século IX a.C. e se tornara província
do Império assírio no século VIII. A linhagem davídica reinava apenas em
Judá, mas quem se preocupa com exatidão quando ouve a profecia?);
YHWH era o deus do rei de Judá e, assim, o comandante em chefe dos
exércitos terrestres do rei e dos celestes dele mesmo, e YHWH é retratado
como bom de briga nas tradições antigas de Israel e Judá; YHWH mora no
Templo, por isso, Sião será inabalável – montanha da felicidade, refúgio
seguro em tempos de aflição, umbigo do universo.

O novo mundo jeremiânico, porém, nasce rompendo com essas


certezas. Desde o rei Acaz, mais de cem anos antes do tempo de
Jeremias, um descendente de Davi continuava no trono, mas era servo
de outros reis – da Assíria ou do Egito, ou da Babilônia. Nos dias de
Jeremias, porém, não mais havia um davidida no trono. A primeira certeza
desmoronou. YHWH era bom guerreiro, mas, aparentemente, os deuses
da Assíria, do Egito e da Babilônia, na ordem cronológica, eram melhores.
O exército de Judá, segunda certeza, foi para o cemitério. Os muros de
Jerusalém, que livraram Ezequias da morte, mas não do tributo, ainda
estavam em pé depois das guerras contra assírios e egípcios; o Templo
mantinha sua imponência. De três certezas, uma ainda funcionava. Mas

5 Para esse período da história de Israel, sugerimos ZABATIERO, Júlio P. T. M. Uma


história cultural de Israel. São Paulo: Paulus, 2004.

21
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nos dias de Jeremias o Templo foi destruído, os muros de Jerusalém


foram demolidos e quase metade da população morreu. A terceira certeza
também desabou.6

A teologia da corte real de Jerusalém e do sacerdócio do Templo de


Jerusalém estava se esvaindo também – mas como a fé não é vista, o rei
e o sacerdócio ainda diziam: YHWH nos livrará! Entretanto, um sacerdote
do interior, também profeta, não teria medo de ficar na oposição. Outro
sacerdote-profeta, Hananias, peitou Jeremias várias vezes e a dúvida
se estabeleceu: quem era o verdadeiro profeta? Jeremias ou Hananias?
Moral da história: Jeremias entrou para a Bíblia. Hananias só é lembrado
porque Jeremias colocou as discussões com ele no seu livro.

1.3 Fraternidade
Vamos, agora, fazer uma incursão do Antigo ao Novo Testamento.
Jesus interpretou a Torá (ensino ou, como se traduz comumente, lei) com
base na noção de fraternidade, explicada por ele por meio do mandamento
do amor ao próximo. Esse mandamento é encontrado em Mt 22,39, Mc
12,33, Lc 10,27 e usado também por Paulo em Rm 13,9-10 e Gl 5,14. Sua
origem está em Lv 19,18: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os
filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou
YHWH”. Nos Sinóticos, o contexto literário é o das disputas de Jesus
contra saduceus e fariseus. Após encerrar uma disputa com os saduceus
a respeito da ressurreição, Jesus é questionado por um escriba fariseu
a respeito do “maior mandamento” – ou seja, o fariseu queria saber se
Jesus era um bom intérprete da Torá. A resposta de Jesus foi direta ao
ponto e não deixou ao fariseu alternativa para replicar:
Entretanto, os fariseus, sabendo que ele fizera calar os
saduceus, reuniram-se em conselho. E um deles, intérprete da
Lei, experimentando-o, lhe perguntou: Mestre, qual é o grande
mandamento na Lei? Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor,
teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o

6 Essa interpretação se baseia na interpretação da história de Israel apresentada


em Zabatiero (2004) e em KESSLER, Rainer. História social do antigo Israel. Tradução de
Haroldo Reimer. São Paulo: Paulinas, 2009.

22
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teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O


segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti
mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os
Profetas. (Mt 22,34-40)

Já nos escritos paulinos, a interpretação da Lei por Paulo é mais


sintética: “Com efeito: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não
darás falso testemunho, não cobiçarás; e se há algum outro mandamento,
tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.
O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o cumprimento da lei é o
amor” (Rm 13,9-10) e “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade.
Não useis então da liberdade para dar ocasião à carne, mas servi-vos
uns aos outros pelo amor. Porque toda a lei se cumpre numa só palavra,
nesta: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,13-14).

O que significa, na prática, amar ao próximo como a si mesmo?


Vejamos alguns exemplos bem concretos:

• Amar a si mesmo significa cuidar do próprio corpo: boa


alimentação, descanso, atividade física compatível com a saúde,
sono adequado, higiene, não colocar o corpo em situações de
risco para a saúde física, moral ou espiritual da pessoa;
• Amar a si mesmo significa cuidar de si mediante boas relações
com os outros (solicitude), uso adequado de utensílios
(ocupação), trabalho sem explorar o corpo, meditar sobre si
mesmo (habilidades, limites, projeto de vida etc.), buscar a
excelência nas atividades de trabalho, vida e lazer, manter uma
disciplina pessoal no estudo, no descanso, no trabalho etc.;
• Amar a si mesmo significa também viver em uma comunidade
de cuidado mútuo, estar aberto a receber a instrução e a ajuda
de irmãs e irmãos mais experientes e sábios, participando de
projetos comuns de vida espiritual e missão – afinal de contas, se
não amamos ao próximo, não amamos a nós mesmos. De fato,
poderíamos dizer, aqui, amar a si mesmo como a um próximo;
• Amar a si mesmo significa resistir às tentações do presente
século: evitar o consumismo, o individualismo, o culto ao
corpo, a indiferença com o sofrimento do próximo, a falta de

23
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compromisso com o bem comum da sociedade etc. Significa,


também, resistir à tentação religiosa de autossacrifício
ensimesmado – em outras palavras, servir sem ser explorado
(seja na família, na igreja, no trabalho, na sociedade etc.);
• Amar a si mesmo significa cuidar de si mediante a prática da
vida devocional (pessoal e comunitária): estudo da Escritura,
meditação, oração, louvor, cultivo do silêncio, contemplação
a Deus em sua criação, jejum etc. Afinal de contas, se não
amamos a Deus acima de todas as coisas, não conseguiremos
amar a nós mesmos – e amando a Deus, podemos viver na
justiça messiânica, a meta final do cuidado de si cristão.
Mas o mandamento inicia falando do amor ao próximo. Quem é
meu próximo? Essa pergunta não é original, nós a encontramos no
diálogo entre o escriba e Jesus em Lc 10,29-37. O trecho é continuação
do diálogo sobre o maior mandamento. Como a resposta de Jesus foi
irrefutável, o escriba ainda tentou complicar a questão, levantando o
aspecto da sutileza hermenêutica – quem, afinal de contas, é o próximo
a quem devo amar? Uma questão fundamental no judaísmo da época.
O próximo inclui os judeus impuros e desobedientes à Lei? O próximo
inclui os gentios? A resposta mais comum no judaísmo da época era a de
restringir o “próximo” aos eleitos de Deus e, dentre eles, aos cumpridores
da Lei. O raciocínio de fariseus e saduceus era compreensível, na medida
em que na tradição veterotestamentária o próximo é basicamente o
vizinho, definido, assim, pela proximidade geográfica. Dessa proximidade
geográfica à proximidade étnico-religiosa a distância não é grande.

A visão de Jesus, porém, foi desconcertante para o escriba: ele


inverteu a questão e, após a parábola, retornou a pergunta ao escriba:
“quem foi o próximo do que caiu na mão dos assaltantes”? A resposta
do escriba foi correta: “o que praticou misericórdia”. Ou seja, Jesus
desloca a questão da identidade do próximo para a questão da prática da
proximidade – não devemos nos preocupar e definir quem é meu próximo,
mas saber como ser próximo, viver a proximidade como nosso modo de
ser no mundo. No século XX, foi o filósofo judeu Emmanuel Levinas quem
mais profundamente tratou da questão do próximo (outro), trazendo à luz
o que há de melhor no pensamento judaico sobre o tema. Vejamos uma

24
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pequena síntese de seu conceito de alteridade e proximidade:


[...] o sujeito é exposto à alteridade antes de poder se conscientizar
de si e tomar uma posição ética. Esta vizinhança sem distância,
esta imediaticidade de uma abordagem que permanece
abordagem sem circunscrever aquilo que aborda, sem localizá-
lo lá, Levinas chama de proximidade. O outro, meu próximo (le
prochain) me concerne, me aflige com uma proximidade mais
próxima que a proximidade de entidades. O relacionamento
com a alteridade, que é o que escapa à apreensão, excede toda
apreensão, é infinitamente remoto e é, paradoxalmente falando,
a imediaticidade mais extrema, proximidade mais próxima do
que a presença, contato obsessivo. (COHEN, 1998, p. XXV)

Assim, embora Levinas constitua a noção da proximidade com


base na reflexão sobre o espaço, de fato, a proximidade explode o
espaço e configura um modo de ser com os outros no infinito – minha
responsabilidade com o próximo é infinita, ela reveste a totalidade de meu
ser e articula a existência com o mundo e com os outros. Proximidade é
sensibilidade, é deixar-se ser afetado(a) pelo próximo – tanto as coisas,
como as pessoas e demais seres vivos. Desta forma, a questão “Quem
é meu próximo?” recebe uma resposta surpreendente: toda a criação é
meu próximo – coisas, animais, plantas, pessoas etc. Tudo, enfim, é meu
próximo, de modo que cuidar do próximo não se restringe a amar outras
pessoas e cuidar delas, mas engloba cuidar de tudo o que existe.

A visão bíblica para a vida em sociedade, portanto, é a de um


povo que se relaciona com base na fidelidade (amor) e não na lei
(contratos). A lei e os contratos devem estar a serviço da fidelidade, e
não o contrário. Uma pastoral social visa construir fraternidade e não
novas estruturas econômicas, sociais ou políticas. Fraternidade, em
um mundo marcado por injustiças, porém, só pode acontecer se for
precedida pela solidariedade.

25
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1.4 Solidariedade Social


No mundo contemporâneo, a solidariedade é uma virtude quase
ausente. Em seu lugar, domina o egoísmo, o individualismo consumista
e acumulador. Se queremos viver em uma sociedade justa e amorosa,
precisamos de pessoas que tenham experimentado a solidariedade
de Deus e pratiquem essa solidariedade em sua vida cotidiana. Você
estranhou o uso da palavra solidariedade como uma expressão da ação
de Deus? Bem, vamos trocar solidariedade por compaixão e você verá
que uma pastoral social sempre começará com o anúncio da boa-nova
da solidariedade de Deus em Cristo Jesus.

Precisamos de compaixão e solidariedade para proclamar o


Evangelho. Ao olhar para as pessoas e para as multidões de seus dias,
Jesus as via como “ovelhas sem pastor” e demonstrava-lhes compaixão.
A compaixão (solidariedade) era o motor de suas ações a favor das
pessoas (v. Mt 9,36; 14,14; 15,32; 20,34; Mc 6,34; 8,2; Lc 7,13 etc.). Jesus
demonstrava, por meio de seus atos, a compaixão de Deus pelos(as)
seus(suas) filhos(as) escravizados(as) pelo pecado; demonstrava a
solidariedade do Deus encarnado para com a humanidade pecadora (cf.
Hb 2,14-17; 4,15-16). Para pregar o Evangelho, não posso ver o “outro”
como adversário – a evangelização não pode gerar inimigos, mas, sim,
pessoas reconciliadas com Deus e, consequentemente, conosco e com
elas mesmas, amigos e amigas de Jesus Cristo (Jo 15,14-15).

Para pregarmos o Evangelho, é importante resistir à tendência


desumanizadora e brutalizante de nossa sociedade e à tentação de
vivermos apenas em função de nós mesmos e de nossos interesses e
desejos. A evangelização é acompanhada de solidariedade, compaixão,
sentir o sofrimento do outro como o nosso próprio sofrimento. Se somos
amigos e amigas de Cristo, fazemos o que Ele manda. E o que Ele manda?
“Eu vos escolhi para irdes produzir frutos e para que o vosso fruto
permaneça [...]. O que eu vos ordeno é que vos ameis uns aos outros” (Jo
15,16-17). A Igreja existe para anunciar o Evangelho – essa é a grande
comissão de Jesus (Mt 28,18-20 e paralelos), e esse é o poder do Espírito
(At 1,8) – e se ela não o faz, deixa de ser povo de Deus e se identifica com

26
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o mundo, torna-se sal sem sabor, não prestando para nada. Tenhamos
compaixão de todas as pessoas. Anunciemos o Evangelho de Jesus
Cristo e a boa notícia de que Deus pode mudar a vida das pessoas.

Assim como Jesus fez acompanhar sua pregação de sinais visíveis


do amor de Deus pelos pecadores, também a igreja compassiva, na
pós-modernidade, fará sua pregação da salvação ser acompanhada
dos sinais do Reino. Quem ama, é compassivo e solidário com a pessoa
toda, não faz divisão entre “alma” e “corpo”, pregando para salvar “a
alma” e deixar o “corpo” morrer. Jesus cuidava das doenças do corpo,
das doenças espirituais, dos problemas econômicos e sociais. Paulo, o
evangelista dos gentios, recebeu a recomendação de “nos lembrar dos
pobres, o que eu tive muito cuidado de fazer” (Gl 2,10). A diaconia cristã é
a expressão concreta da compaixão evangelizadora da Igreja. A diaconia é
o meio pelo qual a Igreja pratica as boas-obras para as quais cada cristão
foi chamado por Deus (Ef 2,10).

É importante discernir quais são as boas-obras mais urgentes,


ou quais as formas mais importantes de ação diaconal. No âmbito da
economia, por exemplo, a esmola já perdeu a sua eficácia (que tinha em
períodos muito antigos na história econômica da humanidade). O socorro
econômico por meio da esmola é insuficiente para livrar os pobres da
miséria. É preciso tomar ações mais eficazes. Por exemplo: projetos
sociais de capacitação profissional, de desenvolvimento comunitário, de
combate contra o desemprego e contra a fome, movimentos políticos
pela adoção de mecanismos de defesa econômica dos cidadãos,
garantidos pelo Estado – por exemplo: renda mínima, salário-educação
etc. No âmbito da saúde, é preciso também atuar por meio de projetos de
desenvolvimento (ambulatórios, clínicas voluntárias etc.) e de movimentos
sociais e políticos (campanhas relativas à saúde pública, instituições
especializadas no atendimento a certos tipos de doenças e deficiências
etc., além de movimentos políticos que visem forçar o Estado a cumprir as
metas de saúde pública mínimas para garantir a dignidade dos cidadãos).

É preciso que a Igreja atue de modo a contribuir para que a


solidariedade seja uma verdade prática e não apenas um belo ideal.
Para que a mensagem do Reino pregada pela Igreja seja entendida, é

27
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necessário que a Igreja demonstre os sinais do Reino por meio de sua


vida e da vida de seus membros. Em nossa sociedade, na qual a pessoa
é vista como consumidora, ou como produtora de bens, é importante
ajudar a resgatar a cidadania das pessoas. Como cidadãs e cidadãos do
Reino de Deus, somos chamados para sermos exemplos de cidadania
que molda um país justo e livre e para demonstrar solidariedade plena
com os não cidadãos. Para fazer isso, o Espírito que ungiu Jesus também
pode nos ungir (cf. Lc 4,18-21; 7,18-23)

Síntese do capítulo
Neste capítulo conversamos sobre alguns dos princípios e conceitos
bíblicos fundamentais para a vida em sociedade de acordo com a vontade
de Deus. Com base no conceito de aliança como parceria entre pessoas
mutuamente fiéis, vimos que Israel desenvolveu suas práticas e conceitos
de direito e justiça a fim de restaurar a liberdade e a justiça perdidas
por causa do pecado. Aprendemos que quando a justiça e o direito
imperam na sociedade, a economia deixa de ser um sistema autônomo
de acumulação e lucro e se torna um sistema no qual a igualdade social
é o valor mais importante. Para que a economia seja solidária, porém, é
preciso que o laço entre as pessoas e instituições na sociedade seja o da
fraternidade e não o da competição ou da conquista. Fraternidade, uma
relação baseada na fidelidade, depende da solidariedade social cuja fonte
é o respeito à diferença e a ética da alteridade.

Ao pensarmos a prática pastoral na sociedade, esses princípios e


conceitos bíblicos nos encaminham para a construção de igrejas locais
comunitárias, famílias da fé nas quais as pessoas vivem de fato como
irmãs umas das outras e não pensam sua fé como uma religião melhor do
que as demais, nem como uma religião de conquista e mero crescimento
numérico – como na teologia da prosperidade, por exemplo. A fé em
Jesus Cristo motiva a comunidade a uma atividade pastoral compassiva e
amorosa, como foi a prática do próprio Senhor em seu ministério terreno.

28
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Referências
COHEN, Richard A. Foreword. In: LEVINAS, E. Otherwise than being,
or, Beyond essence. Pittsburgh: Duquesne University Press, 1998. p.
XII-XXXIII.

MARTÍNEZ, F. G. Deuteronomy 14 and the Deuteronomic Worldview. In:


MARTÍNEZ, F. G. et al. (ed.). Studies in Deuteronomy. In honor of C.J.
Labuschagne on the occasion of his 65th birthday. Leiden: E. J. Brill, 1994.
p. 168-188.

MAYES, A. D. H. “On describing the purpose of Deuteronomy”. In:


ROGERSON, J. W. (ed.). The Pentateuch. A Sheffield Reader. Sheffield:
Sheffield Academic Press, 1996. p. 230-249.

SEEBASS, Horst. Justicia” In: COENEN, Lothar; BEYREUTHER, Erich;


BIETENHARD, Hans (ed.). Diccionário Teológico del Nuevo Testamento.
Salamanca: Sígueme, 1990. p. 404-478. v. II.

29
2. Uma Visão Teórica
da Vida Social
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2. Uma Visão Teórica da Vida Social

Introdução
No capítulo anterior estudamos alguns dos conceitos teológicos
que formaram a visão de sociedade no Antigo Testamento. Vimos que
esses conceitos não são descritivos, mas normativos. Ou seja, a Escritura
não é um livro de ciência que descreve como as coisas são, mas uma
biblioteca teológica, que apresenta as coisas como deveriam ser para que
Deus seja glorificado pela humanidade e por toda a criação.

Neste capítulo continuaremos nossa reflexão predominantemente


teórica, só que agora nosso olhar será do tipo científico – como vimos, o
olhar científico é predominantemente descritivo. A ciência não diz o que
deve ser, mas procura apresentar com a maior exatidão possível aquilo que
é. Quando falamos em ciência da sociedade ou da vida humana, estamos
falando em um tipo de ciência em que a exatidão é apenas aproximada.
Diferentes especialistas apresentam a vida social de modo diferente,
chegando até a construção de modos contraditórios e antagônicos de
descrição da sociedade. Assim, este capítulo baseia-se principalmente
na Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas (sociólogo e
filósofo alemão, ainda vivo), filósofo social bastante respeitado no meio
acadêmico e usado por vários sociólogos e sociólogas brasileiros.

Entretanto, essa visão não é a única e verdadeira descrição da


sociedade. É uma das visões teóricas mais relevantes hoje em dia
e não deve ser entendida como a única possível. Usamos a teoria de
Habermas porque: ela enfatiza a ação humana como formadora da vida
social; ela oferece uma síntese importante dos clássicos da sociologia;
ela desenvolve uma concepção de sociedade em que há uma tensão
criativa entre as estruturas sistêmicas (economia e política) e a vida
cotidiana (mundo-da-vida); ela enfatiza a comunicação eticamente
realizada como meio de construir consensos em resposta aos problemas
da sociedade; e ela tem sido revisada e aperfeiçoada por Habermas em

31
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suas obras mais recentes. Fica, aqui, o convite para pesquisar outras
formas de teoria social, se desejar. 7

2.1 Principais Categorias de Análise da


Sociedade
Vamos começar com os conceitos mais abstratos, ou, como o título
nomeia, com as categorias que explicam a vida social da forma mais ampla
e genérica possível. Seguiremos neste tópico principalmente a teoria da
ação comunicativa de Habermas, sociólogo crítico da vida contemporânea,
de modo que essa teoria é, sim, descritiva, mas também nos fornece pistas
para uma análise crítica dos males sociais de nossos tempos.

Nós não vivemos sozinhos. Vivemos em grupos, começando


com nossa família, estendendo-se por bairros, cidades, estados, países,
continentes, enfim, o mundo todo. Como expressão concreta desse viver
em comum, as pessoas se agrupam e se constituem como sociedades,
povos, culturas. As sociedades humanas são fruto da ação conjunta das
pessoas e, ao mesmo tempo, funcionam como estruturadoras da ação
humana. Existe uma complexa unidade tensa entre a ação pessoal e as
estruturas sociais. Por um lado, a ação humana coletiva gera estruturas
sociais, e estas, por sua vez, passam a estruturar as possibilidades da
ação, de modo que se influenciam mutuamente. Em outras palavras: é

7 Outras teorias importantes contemporâneas à de Habermas são: a sociologia da


prática de Pierre Bourdieu; a sociologia estrutural de Anthony Giddens; a sociologia
sistêmica de Niklas Luhmann. Os clássicos fundadores da sociologia sempre são uma
fonte importante de pesquisa: Émile Durkheim, Max Weber, Karl Marx, Norbert Elias,
George H. Mead, Talcott Parsons. Sociólogos brasileiros que desenvolveram conceitos
importantes dentro das teorias sociais são, principalmente, Florestan Fernandes, José
Maurício Domingues e Jessé Souza. Caso você queira conhecer melhor o campo da
sociologia, pode começar com um ou mais dos seguintes livros: BAUMAN, Zygmunt.
Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010; CASTRO, Celso.
Textos básicos de Sociologia: de Karl Marx a Zygmunt Bauman. Rio de Janeiro: Zahar,
2014; GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento
social clássico e contemporâneo. São Paulo: Editora da UNESP, 1998; JOAS, Hans;
KNÖBL, Wolfgang. Teoria Social: vinte lições introdutórias. Petrópolis: Vozes, 2017.

32
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a ação humana que produz as estruturas sociais, mas essas estruturas,


uma vez consolidadas, passam a ter autonomia em relação à ação. Isso
ajuda a entender porque as mudanças sociais nem sempre ocorrem do
modo como desejamos.

Por meio da ação, o ser humano produz simultaneamente objetos


concretos e objetos simbólicos. Não só produzimos “coisas”, como
também as explicamos e lhes damos sentido. Mediante o trabalho e a
interação cotidianos, os grupos sociais vão produzindo ideias, valores,
bens, instituições etc. As sociedades, assim constituídas pela ação,
possuem uma realidade estrutural bidimensional: a dimensão a que
Habermas chama de sistema, ou seja, a estruturação geral dos produtos
concretos da ação; e a dimensão a que ele chama de mundo-da-vida, ou
seja, a estruturação geral dos produtos simbólicos da ação. Entendidos
como estruturantes da ação, o sistema e o mundo-da-vida devem ser
vistos como estruturas complexas, caracterizadas internamente, cada
um deles, por quatro subestruturas que, grosso modo, correspondem-
-se, em uma unidade complexa e tensa. Entendidos como dimensões
estruturais da sociedade, sistema e mundo-da-vida não precisam nem
devem ser vistos como realidades autônomas entre si, estanques, como
uma concepção dualista da sociedade, mas como estruturas existentes
apenas uma na outra, em uma tensa unidade relacional.

2.1.1. O Mundo-da-Vida
Habermas descreveu o mundo-da-vida como composto de três
subestruturas, as quais denominou de cultura, sociedade e personalidade ou
[...] paradigmas culturais, ordens legítimas e estruturas
pessoais – como formas condensadas dos (e sedimentos
depositados pelos) seguintes processos que operam através
da acção comunicativa: entendimento, coordenação da acção e
socialização. (HABERMAS, 2002, p. 138)8

A esses três componentes acrescentamos o da sacralidade ou dos


paradigmas do sagrado (para ser coerente com a introdução da sétima
dimensão da ação na teoria habermasiana).

8 O livro foi editado em Portugal, por isso a palavra ação é grafada de modo diferente.

33
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Vejamos como Habermas descreve os três primeiros componentes:


Cultura é aquilo que definimos como reserva de conhecimento à
qual os participantes na comunicação, ao entender-se uns com
os outros, vão buscar as suas interpretações.

Quanto à sociedade, consiste nas ordens legítimas através das


quais os participantes na comunicação regulam as suas filiações
em grupos sociais e salvaguardam a solidariedade.

Na categoria de estruturas de personalidade incluímos todos os


motivos e competências que permitem ao indivíduo falar e agir,
assegurando desta forma a sua identidade. (HABERMAS, 2002,
p. 139)

Por sacralidade, entendemos o acervo de conhecimentos, valores,


e rituais adjetivados como sagrados, mediante o qual os participantes
da interação social produzem sentido último, com pretensão de
universalidade e validade atemporal, para a vida humana.

Esses componentes do mundo-da-vida se materializam na


sociedade de maneiras diversificadas:
[...] o conhecimento cultural materializa-se em formas simbólicas
– em objetos utilitários e tecnologias, em palavras e teorias, em
livros e documentos, etc. – tal como o faz nas acções. Quanto
à sociedade, toma forma nas ordens institucionais, nas normas
legais ou nas redes de práticas e costumes normativamente
regulados. Por fim, as estruturas de personalidade tomam
forma, literalmente, no substrato dos organismos humanos.
(HABERMAS, 2002, p. 141)

A sacralidade, por sua vez, materializa-se tanto em formas simbóli-


cas (crenças, mitos, rituais, doutrinas) quanto em ordens institucionais,
normas sagradas e em redes de práticas e costumes regulados pelas
crenças (igrejas, associações religiosas, religiões em geral, espirituali-
dades, ou na forma de “doutrinas abrangentes” não religiosas – expli-
cações científicas, filosóficas, éticas ou políticas de como deve ser a vida
humana em sua totalidade).

O que Habermas chama de mundo-da-vida, então, é um imenso


e complexo conjunto de discursos (ideias, valores, noções, organizadas
tematicamente ao longo da convivência humana no tempo e no espaço)

34
< voltar

sobre a vida humana em sociedade. Nenhuma pessoa é capaz de


conhecer a totalidade do mundo-da-vida de seu país, por exemplo, nem
mesmo o de sua cidade, pois os discursos que compõem o mundo-da-
vida são amplos e muito variados. Esses discursos também possuem
a característica de serem conflitantes entre si. Pense na ideia de justiça
social, por exemplo, ela varia muito de acordo com a classe social,
o gênero, a raça, a condição escolar, ou a religião das pessoas. O que
pessoas ricas definem como justo não é a mesma coisa que pessoas da
classe média ou pessoas pobres definem como justo. Justiça social não é
a mesma coisa para brancos e negros, homens e mulheres. Por exemplo,
há homens que consideram justo agredir suas esposas – pois elas são
como uma espécie de propriedade dos maridos (até mesmo algumas
mulheres aceitam essa ideia). Graças a movimentos sociais organizados
e à luta de algumas mulheres, no Brasil a agressão do marido contra a
esposa é considerada crime (Lei Maria da Penha).

De fato, como Habermas e outros sociólogos reconhecem, na


maior parte dos casos nós agimos com base nesses discursos, mesmo
não sabendo que eles existem de maneira organizada. Em linguagem
tipicamente sociológica, a maior parte das nossas ações é não reflexiva
ou habitual, ou seja, não pensamos para agir, agimos com base em
sentimentos e hábitos que já foram estruturados ao longo da história
da nossa sociedade. Somente quando acontece algum tipo de crise,
alguma situação que coloca em xeque o valor de nossos sentimentos e
hábitos é que começamos a agir de maneira reflexiva, ou seja, pensando
cuidadosamente no que devemos fazer, como devemos fazer e por que
devemos fazer.

Quando passamos a refletir criticamente sobre algum aspecto do


mundo-da-vida, percebemos que os valores e conceitos que compõem
o mundo-da-vida estão muito entrelaçados. Por exemplo, descobrimos
que há argumentos biológicos para maridos agredirem esposas (homens
são estatisticamente mais fortes do que as mulheres), argumentos
culturais (mulheres são educadas para serem amorosas e homens são
educados para serem agressivos), argumentos religiosos (as mulheres
devem ser submissas aos seus maridos e, quando não o são, merecem
ser punidas) e assim por diante. Por isso, é mais fácil agir habitualmente

35
< voltar

do que reflexivamente – há muito mais custo emocional, esforço mental


e trabalho social quando agimos reflexivamente.

2.1.2. Problemas e Enfrentamento de Problemas no


Dia a Dia
A descrição prévia do mundo-da-vida apresentou os seus contornos
ideais e indicou dificuldades na interação simbólica entre as pessoas.
Na prática social, as interações comunicativas não resultam apenas em
pessoas e sociedades permanentemente saudáveis e bem ajustadas.
Vários fatores podem provocar distorções comunicativas e resultar em
patologias pessoais e sociais, de grandes ou pequenas proporções, seja
afetando o todo da sociedade, seja afetando apenas partes dela. No âmbito
da cultura, por exemplo, em que se formam as interpretações que fazemos
da vida em sociedade, podemos elaborar interpretações inadequadas,
ruins, ou falsas de algum aspecto da vida humana. O exemplo dado acima,
da violência doméstica, claramente envolve uma interpretação ruim das
diferenças físicas entre homens e mulheres, dos papéis sociais da mulher e
do homem, bem como da ideia bíblica de submissão.

Essas interpretações ruins, por sua vez, dão base para formas
inadequadas de normatização da vida em sociedade, de modo que a
solidariedade que deveria existir entre marido e mulher se transforma em
dominação da mulher pelo marido. Um dos frutos dessa relação violenta
é a alteração patológica da autoidentidade de mulheres – a experiência
mostra que mulheres vítimas de violência por seus maridos tendem a
desenvolver baixa autoestima, sentem-se culpadas, não reconhecem o
seu direito de não sofrer violência e, muitas vezes, não conseguem se
afastar do marido violento. Por fim, a fé religiosa, que deveria ajudar
homens e mulheres a praticar o amor mútuo, acaba se tornando uma
fonte de legitimação de atos não amorosos ou, na linguagem cristã,
pecaminosos.

A tabela a seguir apresenta as principais estruturações de crise dos


processos interacionais que criam e recriam o mundo-da-vida:

36
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Componentes
estruturais
Dimensões de
Cultura Sociedade Personalidade Religiosidade
avaliação
Processos
reprodutivos
Crise na orien- Crise de Raciona-
Reprodução Perda de Crise de
tação e na sentido e lidade do
cultural sentido legitimação
educação esperança conhecimento
Crise da
Integração Solidariedade
identidade Anomia Alienação Intolerância
social dos membros
coletiva
Ruptura da Fuga da Psicopatolo- Conflitos Responsabili-
Socialização
tradição motivação gias religiosos dade pessoal
Ausência
Ruptura da da norma- Fundamen- Confiabilidade
Tradição Hipocrisia
tradição tividade talismos interacional
tradicional

Fonte: o autor, 2021. Adaptada de HABERMAS, 2002, p. 143.

Vejamos outro exemplo de patologia, dessa vez no campo da


sacralidade: uma determinada tradição religiosa qualquer pode perder
a sua validade à medida que os seus objetivos não são realizados na
vida concreta das pessoas. Quando isso acontece, ocorre uma ruptura
da tradição dessa instituição religiosa, na medida em que ela não é mais
capaz de explicar totalmente a vida das pessoas. No caso mais extremo
dessa patologia, produz-se um esvaziamento da normatividade tradicio-
nal, e as relações entre os membros da instituição passam a ser regidas
primariamente pelos interesses de cada um ou dos diferentes grupos
que compõem a religião. No âmbito da personalidade, a patologia mais
evidente é a da hipocrisia, ou seja, do não ajustamento das crenças aos
comportamentos dos indivíduos. Como reação extrema a essa ausên-
cia de normatividade e ruptura tradicional, surgem os fundamentalismos,
ou seja, a defesa incondicional da tradição quebrada, sem aceitação da
possibilidade de debater a validade dela.

37
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As sociedades estão igualmente aparelhadas para resolver


problemas e crises estruturais. Quando da ocorrência de patologias
sociais, as interações comunicativas podem produzir efeitos terapêuticos,
reajustando a sociedade, recolocando-a em equilíbrio saudável. Podemos
construir melhores interpretações da pessoa e da vida humana, podemos
criar normas mais saudáveis de relacionamento e de papéis sociais,
desenvolvemos formas mais ricas de autoidentidade, assim como
renovamos crenças e práticas religiosas.

No exemplo acima sobre a violência contra a esposa, um marido


violento poderia aprender que a submissão da esposa deve ser contra-
balançada pelo amor do marido (Ef 5,21ss9), de modo que perceberia que
quem ama não agride, não age violentamente nem precisa agir como
“chefe”, mas pode exercer autoridade de igual para igual – assim como
Jesus, sendo justo e poderoso, deu sua vida em benefício de pessoas
injustas e pecadoras. Esse marido reconheceria que ele e sua esposa
têm os mesmos direitos e deveres perante Deus e perante a sociedade e
cessaria de tratar violentamente a sua esposa quando suas opiniões ou
ações entrassem em conflito. A seguir, acrescentamos uma tabela que
sintetiza as funções reprodutivas da ação comunicativa, necessárias para
a terapia das interações comunicativas:

9 O termo “ss” é usado para referenciar “seguintes” em referenciações bíblicas.

38
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Componentes
estruturais
Cultura Sociedade Personalidade Religiosidade
Processos
reprodutivos
Reprodução de Transmissão,
Transmissão, Renovação do
conhecimento crítica,
Reprodução crítica, aquisição conhecimento
relevante para aquisição de
cultural de conhecimento efetivo para a
a educação em conhecimento
cultural legitimação
geral do sagrado
Coordenação
Imunização de
Imunização de um das ações via Reprodução
um estoque
Integração estoque central pretensões de de padrões de
central de
social de orientações validade inter- membresia
orientações
valorativas subjetivamente social
religiosas
reconhecidas
Internalização de Construção da Diálogo
Socialização Enculturação
valores identidade religioso
Testemunho
pessoal
Internalização de Desenvolvi-
Tradição “Enreligiosização”
crenças mento da fé
Doutrinas e
teologias

Fonte: o autor, 2021. Adaptada de HABERMAS, 2002, p. 144.

Há muitas implicações práticas que poderíamos levantar com


base nessa descrição conceitual da dimensão simbólica da sociedade.
A mais importante é que, somente por meio da comunicação honesta
e livre, mediante a ação reflexiva, podemos transformar aspectos da
sociedade em que vivemos. Como vimos, assim como o mundo-da-vida
é complexo, também a ação reflexiva para a transformação social deve
levar em consideração essa complexidade – pois não podemos mudar
uma área do mundo-da-vida sem modificarmos as demais. É uma das
responsabilidades da teologia cristã contribuir com essa comunicação
reflexiva, crítica, com base na vivência da fé e dos valores cristãos, como
manifestação e exemplo de práticas de justiça e solidariedade.

39
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2.1.3. Características do Sistema


A dimensão material da estruturação social é chamada de sistema.
Na teoria habermasiana, os componentes do sistema são as estruturas
derivadas dos meios sistêmicos poder e dinheiro, a saber, estruturas
políticas e estruturas econômicas da sociedade. Assim como cada
sociedade desenvolveu diferentes conteúdos e formas do mundo-da-vida,
também se produziram diferentes estruturações das relações políticas e
econômicas entre as pessoas. Na maior parte da história das sociedades
humanas, os meios sistêmicos de interação social não possuíam
autonomia em relação aos meios “comunicativos” de interação social e
vice-versa. Em outras palavras, a coordenação das ações em sociedade
era realizada quase que integralmente por meio da ação comunicativa, na
medida em que esta era consolidada por fatores religiosos ou sagrados,
que exerciam o papel principal na organização da vida social no mundo
pré-moderno. Ou seja, as instituições políticas e econômicas da sociedade
dependiam de legitimação religiosa para continuar existindo.

Entretanto, à medida que o mundo-da-vida das sociedades modernas


foi se fragmentando e racionalizando (ou seja, a religião deixou de ter o
papel de legitimar a ordem social e esse papel foi transferido para o direito
e para a ciência)10 e as relações políticas e econômicas foram se tornando
cada vez mais conflitivas, surgiram estruturas políticas e econômicas
que aos poucos iam assumindo para si a função de coordenar a ação
coletiva em sociedade, fazendo com que a interação social passasse a
ser coordenada estrategicamente. Isso significa que as interações sociais
passaram a ser comandadas, não mais pelo consenso, mas pelo sucesso
– o sucesso de uns, independentemente do dos demais.

10 Não cabe aqui a argumentação demonstrativa dessas teses. Na Teoria da Ação


Comunicativa, Habermas desenvolve a noção de sistema a partir de uma releitura do
conceito weberiano de racionalização e desencantamento do sagrado na modernidade
ocidental. Embora não tenha desenvolvido amplamente a temática, Michel Foucault
apresentou sua versão desse processo de racionalização por meio da sua interpretação
do poder pastoral que, na Modernidade, transferiu-se das instituições religiosas para as
estatais. Ver, basicamente, “O Sujeito e o Poder”, em RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel
Foucault, uma Trajetória Filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 231-249.

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Ainda de acordo com Habermas, nas sociedades modernas, os


meios sistêmicos se tornam autônomos em relação à coordenação
comunicativa da ação e passam a assumir cada vez mais o lugar principal
de coordenação da ação. Esses meios de coordenação não comunicativa
da ação já estão, então, estruturados como Estado (que assume o papel
de única instituição social sancionadora legítima) e Mercado (que assume
o papel de única instituição econômica legítima).

A descrição de Habermas faz justiça às sociedades dos estágios


inicial e médio da modernidade. No período da modernidade tardia, ou da
pós-modernidade, deve-se acrescentar outros dois meios sistêmicos
que se tornaram relativamente autônomos e passaram a ocupar, com
o Poder e o Dinheiro (embora não tão plenamente institucionalizadas
estruturalmente como Estado e Mercado), funções de coordenação
estratégica da ação humana: a Ciência (especialmente nas diversas
formas de tecnologia de ponta) e a Mídia (nas suas diversas formas, como
rádio, TV e a rede mundial de comunicação, seja no sistema de satélites,
seja na internet). As relações sociais passaram a ser estruturadas
a partir de meios impessoais e não mais de meios pessoais, como a
amizade, a fidelidade etc. É o desejo de lucro, de poder, de saber ou de
prestígio que, acima de outros meios, assume o controle das interações
humanas em sociedade.

2.1.4. Problemas e Enfrentamento de Problemas


Sistêmicos
Esta descrição nos ajuda a entender e explicar a estrutura das
patologias sociais no Ocidente moderno (opressão, repressão, perda de
sentido, falta de participação política, exclusão etc.). Para Habermas,
essas patologias são o resultado da colonização do mundo-da-vida
pelo sistema. A colonização do mundo-da-vida se dá à medida que os
meios sistêmicos de coordenação da ação social subordinam a interação
social regida pela ação comunicativa. Ou seja, quanto mais complexas
se tornam as estruturas econômicas e políticas e as instituições e
avanços tecnológicos e midiáticos, mais elas se regem por seus próprios
interesses, tornando-se cada vez mais impessoais.

41
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Um claro exemplo dessa colonização é dado pela forma tecnicista


como são administradas as economias nacionais. Os imperativos do
sistema econômico assumem, permanentemente, precedência sobre as
necessidades das populações, de tal modo que o Estado passa a assumir
o papel de guardião do sistema econômico e não mais o garantidor do
bem-estar da população a ele subordinada. Considere, por exemplo,
quantos diferentes ministros da Economia ou Fazenda do Brasil já
disseram que “é preciso consertar a economia para depois resolver os
problemas da pobreza, criminalidade, etc.”? Considere como, em diversos
governos recentes do Brasil, o Estado alegou não ter dinheiro para resolver
problemas sociais, mas tinha dinheiro de sobra para resolver problemas
de bancos que estavam prestes a falir. Você se lembra da mais recente
crise do capitalismo no Primeiro Mundo, quando vários governos usaram
dinheiro de impostos para “salvar” empresas e bancos da falência, ao
mesmo tempo que alegavam não ter dinheiro para a saúde pública e
outros benefícios sociais?

Não só o Estado, mas também o Mercado, a Mídia e a Ciência


possuem uma espécie de vida própria que, se não for controlada e limita-
da pelos valores de justiça e solidariedade construídos na interação social
pessoal, somente fará crescer o abismo entre pessoas que vivem “bem” e
pessoas que são vitimadas pelas estruturas da sociedade. Consequente-
mente, a transformação social dependerá não só de mudanças significati-
vas nos processos reprodutivos da dimensão sistêmica, mas, igualmente,
seguindo a perspectiva de Habermas trabalhada nesse subponto, da
“descolonização” do mundo-da-vida. Desse modo, a interação social
passará a ser regida não exclusivamente pelos interesses estratégicos
dos subsistemas Dinheiro, Poder, Ciência e Mídia, mas, principalmente,
pela interação comunicativa entre os diferentes grupos na sociedade,
na construção de um consenso democrático capaz de coordenar a ação
social na direção da emancipação e da justiça social.

Os conceitos de mundo-da-vida e sistema nos ajudam a entender os


complexos processos mediante os quais uma sociedade existe e se repro-
duz no tempo e no espaço. Também nos ajudam a entender porque existem
problemas sociais sérios cuja solução não depende apenas da boa vontade
das pessoas, mas também da aplicação de conhecimentos sociológicos.

42
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Para todos aqueles que acham que viver a vida de maneira


mais consciente vale a pena, a sociologia é um guia bem-vindo.
Embora repouse em constante e íntima conversação com o
senso comum, ela procura ultrapassar suas limitações abrindo
possibilidades que poderiam facilmente ser ignoradas. Quando
aborda e desafia nosso conhecimento partilhado, a sociologia
nos incita e encoraja a reacessar nossas experiências, a descobrir
novas possibilidades e a nos tornar, afinal, mais abertos e menos
acomodados à ideia de que aprender sobre nós mesmos e os
outros leva a um ponto final, em lugar de constituir um processo
dinâmico e estimulante cujo objetivo é a maior compreensão.
(BAUMAN; MAY, 2010, p. 25)

É claro que a sociologia não pode ser vista como o remédio para
os males sociais, mas ela pode ser útil na busca de soluções viáveis.
Encerramos nossa discussão sobre macroestruturas sociais. Cabe a
você refletir sobre a sua aplicação concreta na vida cotidiana. A seguir,
dedicaremos atenção a outros aspectos da teoria social.

2.2 Família
Diz o senso comum que a família é o esteio da sociedade, a unidade
básica da vida social. Essas afirmações não estão longe da verdade, mas
precisam ser qualificadas para que não sejam meros chavões. A primeira
qualificação a ser feita é o reconhecimento de que existem diferentes
tipos e formas de família. O tipo de família que o senso comum considera
o único é o que especialistas chamam de família nuclear – marido (pai),
esposa (mãe), filhos(as). Esse tipo de família é comum em ambientes
urbanos e industrializados, nos quais as condições socioeconômicas
demandam que os filhos e filhas, ao chegarem à idade adulta, saiam de
casa e constituam as suas próprias famílias nucleares. Mesmo nesses
ambientes urbanos industrializados, a família nuclear não é a forma
mais frequente. Nas classes média baixa e pobre, o tipo mais comum de
família é o que se pode chamar de família extensa – não só o casal e seus
filhos(as), mas também avós, tios, sobrinhos etc. Na mesma casa moram,
por assim dizer, várias famílias nucleares.11

11 Para conhecer melhor a história das formas e conceitos de família, você poderá
consultar: ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 1981.

43
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Família nuclear e família extensa são tipos relativamente recentes de


família – e têm em comum o fato de que nesses tipos a norma esperada é a
de que os casais sejam monogâmicos e heteroafetivos (homem e mulher).
Em períodos mais antigos da história humana, porém, outros arranjos
familiares eram possíveis de serem encontrados. Vejamos a própria Bíblia.
Quando lemos Gênesis, por exemplo, constatamos que o tipo de família
predominante era o que chamamos de clã, ou seja, uma grande família
extensa, composta de pelo menos três ou quatro gerações de pessoas
consanguíneas, além de agregados, como servos, amigos, empregados de
confiança etc. Vemos, também, que as famílias nos tempos de Abraão (Gn
25:1), por exemplo, não eram monogâmicas, mas poligâmicas.

Isso nos faz, então, refletir sobre o fato de que existem modelos
normativos de família e existem as famílias reais, que nem sempre se
adaptam ao modelo normativo. Por exemplo: hoje em dia há um grande
número de famílias compostas de casais que já tiveram relacionamentos
anteriores e terminaram em divórcio. Então, além dos parentes
consanguíneos, há também parentes “sociais” – novos irmãos e irmãs,
primas e primos etc. Existem famílias homoafetivas que podem, ou não,
adotar crianças e se organizar como famílias nucleares monogâmicas.
Existem experimentos de famílias poliamorosas, nas quais se acredita
que o relacionamento amoroso não precisa ser monogâmico, de modo
que cada cônjuge possui mais de um cônjuge (essas famílias são formas
contemporâneas da antiga poligamia). Essa pluralidade de modos de
família real gera, é claro, conflitos éticos e diferentes grupos sociais e
diferentes religiões tratam de modos diferentes essa realidade. Mesmo
entre as denominações cristãs (e até mesmo dentro de uma única
denominação) há diferentes modos éticos de entender e lidar com a
realidade plural dos modos contemporâneos de família.

Do ponto de vista da descrição social, mais importante do que


constatar a existência de diferentes tipos de família é prestarmos atenção
ao modo de funcionamento das famílias. Vejamos como uma teóloga
cristã conservadora fala da família (em sentido amplo):
O que é uma família? Uma família é um móbile. A família é o
móbile mais versátil, sempre em movimento, que existe. A
família é um móbile vivo, diferente dos móbiles feitos à mão e

44
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dos móbiles em museus de arte, diferente dos móbiles de lago e


árvores e dos móbiles de aves, peixes e animais — diferente de
quaisquer móbiles de máquinas, animais ou plantas. A família
é um móbile complexo composto de personalidades humanas.

De tantas maneiras a família é móbile — uma obra de arte que


leva anos, até mesmo gerações, para ser produzida, mas que
nunca é acabada. A obra de arte do móbile chamado “família”
continua, e imaginação, criatividade, originalidade, talento,
carinho, amor, compaixão, empolgação, determinação e tempo
produzem uma diversidade que desafia qualquer ser humano
reflexivo que tenha recebido o entendimento de como dar início
ao estúdio da própria vida. (SCHAEFER, 2019, p. 12)

A metáfora do móbile destaca a diversidade dos modos reais


mediante os quais as famílias (seja de que tipo forem) vivem em seu dia a
dia. Idealmente, a família deveria ser o espaço de amor, companheirismo,
aprendizado mútuo, respeito, educação, vida devocional etc. Na
realidade, porém, as marcas do pecado, segundo a perspectiva cristã,
também se fazem sentir e há muitas (provavelmente a maioria) famílias
desajustadas, complicadas. Algumas vezes é possível até perceber que
nessas famílias desajustadas e complicadas há, no lugar de amor, ódio;
no lugar de carinho, violência; no lugar de aprendizado mútuo, indiferença
etc. Esse fato é tão frequente que há um crescente número de pessoas
especializadas no cuidado de famílias e desenvolveu-se uma disciplina
psicológica específica: a terapia familiar.

A realidade nos faz constatar que não podemos viver com uma
visão romântica da família, de uma família ideal em que tudo é harmonio-
so e maravilhoso. A realidade está muito distante disso. Especialmente
em nossos dias, quando o individualismo, o consumismo e o desejo de
acumulação e de competição dominam o cenário socioeconômico da
vida. Independentemente do tipo específico de família, seguindo o ponto
de vista dessa teoria social, hoje em dia o principal desafio social no tocan-
te à família é a superação dessas patologias e a construção de famílias
que efetivamente vivam em harmonia, amor e respeito mútuo. É claro
que a descrição sociológica não aborda a questão ética dos modelos de
família. Cabe às igrejas e aos cristãos em geral interpretar eticamente a
história dos modelos de família.

45
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Não é possível compreender bem a família contemporânea se


não a estudarmos como parte do arranjo econômico da sociedade. Por
isso, no tópico a seguir estudaremos o modo como funciona a economia
capitalista contemporânea – que estudiosos e estudiosas chamam de
neoliberalismo.

2.3 Economia
Podemos descrever o neoliberalismo como um modo de
racionalidade que visa moldar tanto a conduta de governantes como a de
governados:
O neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política
econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente
uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não
apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos
governados. A racionalidade neoliberal tem como característica
principal a generalização da concorrência como norma de
conduta e da empresa como modelo de subjetivação. (DARDOT;
LAVAL, 2016, p. 16)

Nessa descrição os autores retomam a análise pioneira de Foucault:


[...] ora, para as neoliberais, a essencial do mercado não está
na troca, nessa espécie de situação primitiva e fictícia que as
economistas liberais do século XVIII imaginavam. Está em outro
lugar. O essencial do mercado está na concorrência. (FOUCAULT,
2008b, p. 161)

Como decorrência dessa nova lógica, a pessoa no mundo neoliberal deve


ver a si mesma como uma concorrente, como um homo oeconomicus, ou, de
maneira mais direta, como empresária de si mesma:

O homo oeconomicus é um empresário, e um empresário de si


mesmo. Essa coisa é tão verdadeira que, praticamente, o objeto
de todas as análises que fazem os neoliberais será substituir, a
cada instante, o homo oeconomicus parceiro da troca por um
homo oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele próprio
seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si
mesmo a fonte de [sua] renda (FOUCAULT, 2008b, p. 311).

46
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O homo oeconomicus do neoliberalismo é a nova forma-de-vida do


homo oeconomicus do capitalismo liberal clássico:
Desde o momento no qual os neoclássicos inventaram a estranha
ficção do homo oeconomicus (este ser etéreo e abstrato que
já não tem necessidades, mas apenas gostos e preferências),
já que se apagou todo limite mínimo nas necessidades físico-
espirituais do ser humano, tudo o que se refere a corporalidades
tangíveis se tornou infinitamente discutível. Desapareceram
as certezas concretas sobre a fome real, a morte real e todas
as necessidades reais. Elas já não podem ser conhecidas e
determinadas, porque esses economistas só conhecem seres-
com-desejos que, pelo visto, têm “corpos astrais”. Então, todas
as exigências concretas se tornam discutíveis, nada se pode
saber ao certo, tudo é ilimitadamente complexo, e nada conserva
a simplicidade da lágrima, do grito, da fome e do perigo de morte.
As certezas intocáveis se deslocam, então, a outro plano, o da
“crença totalizante e metafísica” (F. H. Cardoso) (ASSMANN;
HINKELAMMERT, 1989, p. 36).

Essa mudança radical da noção e prática da subjetividade indica


a transformação pela qual passa a cidadania no mundo neoliberal: não
mais um sujeito de direitos, nem um sujeito crítico, a pessoa no mundo
neoliberal, o indivíduo atual, reformula a sua noção de cidadania a partir da
sua autocompreensão como empresa. Uma empresa busca lucro e para
consegui-lo precisa de alta produtividade e alta capacidade de derrotar a
concorrência. O cidadão-empresa não visa servir, mas ser servido; não se
sacrifica pelo bem do outro, sacrifica o outro pelo seu próprio bem.

Consequentemente, todo o jogo das relações entre sociedade,


Mercado e Estado se modifica, especialmente no âmbito do Estado, diante
da cidadania, pois a forma neoliberal do capitalismo:
[...] estrutura também um imaginário coletivo sobre a sociedade,
cujo eixo é a ampliação das liberdades do proprietário privado,
real ou potencial, e a redução da intervenção do Estado ou da
coletividade na vida social, política ou econômica. Enquanto
corrente de pensamento, o imaginário coletivo serve de
sustentação ideológica para a definição das políticas públicas
preponderantes em uma nova fase de acumulação do capital,
caracterizada pela liberação das forças do mercado (MÚNERA,
2003, p. 44).

47
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Em síntese: como modo de governo da conduta das pessoas, o


neoliberalismo é o modo de racionalidade que foi capaz de estruturar o
Estado como um agente a serviço da chamada liberdade de mercado
ou livre-concorrência (um claro adeus à mão invisível de Adam Smith),
avaliado como se fosse uma empresa, embora sua estruturação e organi-
zação sejam altamente burocráticas e ineficientes do ponto de vista
empresarial. Como modo de autogoverno, o neoliberalismo é o dispos-
itivo que orienta as pessoas à construção de sua subjetividade a partir
dos critérios da concorrência empresarial paralelamente ao consumismo,
individualismo e um exacerbado etnocentrismo nacionalista (que explica
as diversas formas de desrespeito e intolerância com relação às pessoas
e grupos sociais que não se conformam à norma subjetiva: homem,
branco, cristão, classe média, conservador) – de modo que uma prática
altruísta de cidadania (ou de vida em geral) está fora das possibilidades e
desejos do sujeito.

Cabe, aqui, um olhar crítico da sociedade brasileira atual:


Empresarializar a vida passa muito mais do que ter a
concorrência como orientação que anima o mercado, é formular
a concorrência como algo normativo. Assim, apresentar o ser
humano como capital implica alguns desdobramentos: (1) se
somos “capital humano” para nós mesmos, seremos para o
Estado e para a constelação pós-nacional de que fazemos parte,
ou seja, não há direitos políticos específicos neste ambiente,
reina a figura da descartabilidade que desintegra o social; (2) se a
fórmula reinante é a concorrência, será a desigualdade seu meio
de relação, portanto torna-se normal e necessária; (3) quando
tudo é capital, a força de trabalho desaparece como categoria,
desaparece qualquer força coletiva e base analítica entre
trabalhadores (séculos de leis laborais indo por terra é apenas
a ressaca disso) e (4) quando a esfera do político se expressa
em termos econômicos, desaparece qualquer fundamento
de cidadania preocupada com a coisa pública, ou seja, a rigor,
elimina-se a própria ideia de povo, um demos que afirma sua
soberania política coletiva. A persistência da política como
destruição da vida pública é o que a fará contemporaneamente
pouco atrativa, tóxica e permeável tanto ainda mais aos políticos
profissionais quanto àqueles que nem se dizem políticos. A falta
de resposta escandalizada a uma democracia de consumidores,
bem formulada e em alto tom, inclusive de espectros de
esquerda, sobre o papel do Estado como alguém que prioriza,

48
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serve e sustenta o neoliberalismo, quer dizer, apoia o capital e


degrada a justiça social, é um excelente indicador do êxito da sua
racionalidade (AMARAL, 2018, p. 133, grifos do original).

A expressão em itálico na citação introduz dois novos termos em


nossa discussão: consumo e consumismo. O consumismo não é um
tema destacado nas análises do neoliberalismo com que temos dialoga-
do aqui – não está ausente, mas está integrado à expressão “empresário
de si mesmo”. Por isso, vale a pena uma citação de Foucault (2008b, p.
311, grifos do original), na qual ele apresenta o conceito de consumo
proposto por Gary Becker, um dos intelectuais do neoliberalismo:
Não vou lhes falar a esse respeito, porque seria longo demais,
mas vocês têm em Gary Becker, justamente, toda uma teoria
interessantíssima do consumo, em que Becker diz: não se deve
acreditar que o consumo consiste simplesmente em ser, num
processo de troca, alguém que compra e faz uma troca monetária
para obter um certo número de produtos. O homem do consumo
não é um dos termos da troca. O homem do consumo, na medida
em que consome, é um produtor. Produz o quê? Pois bem, produz
simplesmente sua própria satisfação E deve-se considerar o
consumo como uma atividade empresarial pela qual o indivíduo,
a partir de certo capital de que dispõe, vai produzir uma coisa
que vai ser sua própria satisfação. E, por conseguinte, a teoria, a
análise clássica e mil vezes repisada daquele que é consumidor,
por um lado, mas é produtor e, na medida em que é produtor de
um lado e consumidor de outro, está de certo modo dividido em
relação a si mesmo, todas as análises sociológicas (porque elas
nunca foram econômicas) do consumo de massa, da sociedade
de consumo, etc., tudo isso não funciona e não vale nada em
relação ao que seria uma análise do consumo nos termos
neoliberais da atividade de produção. É portanto uma mudança
completa na concepção do homo oeconomicus, ainda que haja
efetivamente um retorno à ideia de um homo oeconomicus
como grade de análise da atividade econômica.

A chave para a compreensão do consumismo contemporâneo não


está, portanto, apenas no desejo de ter algo, de consumir algo – embora
a análise possa começar aí. A chave está no fato de que não há mais
alienação entre produtor e consumidor no homo oeconomicus neoliberal.
O empresário de si mesmo é simultaneamente produtor e consumidor
de bens, pois no processo econômico de produção e consumo ele cria

49
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a si mesmo, ele se torna quem ele é, quem ele precisa ser. Esta tese é
confirmada por Dardot, em uma das poucas vezes que ele trata do assunto:
“Para el proletario se trata finalmente, a través del hecho de consumir
cada vez más, de la posibilidad de convertirse él mismo en un capitalista”
(DARDOT; LAVAL, 2018, p. 215). Em outras palavras, a distinção radical
entre capitalista e trabalhador se dilui na nova subjetividade neoliberal,
pois o empregado passa a ver a si mesmo, antes de “empregado”, como
empresário de si mesmo, como uma espécie de capitalista.

Se levarmos a análise para o campo da ação do indivíduo, podemos


traduzir a metáfora econômica em metáfora psíquica:
Se a ideia de que a identidade é descoberta e não comprada soa um
tanto abstrata ou pouco sedutora, deixem-me citar April Benson
(2000:505) sobre o assunto “fazer compras”. Diz ela: “Fazer
compras [...] é uma das maneiras de procurar por nós mesmos e
por nosso lugar no mundo. Apesar de acontecer num dos lugares
mais públicos, fazer compras é essencialmente uma experiência
íntima e pessoal. Comprar é provar, tocar, testar, considerar e pôr
para fora nossa personalidade através de diversas possibilidades,
enquanto decidimos o que precisamos ou desejamos. Comprar
conscientemente não é procurar somente externamente, como
numa loja, mas internamente, através da memória e do desejo.
Fazer compras é um processo interativo no qual dialogamos não
só com pessoas, lugares e coisas, mas também com partes de
nós mesmos. Esse processo dinâmico, ao mesmo tempo que
reflexivo, revela e dá forma a partes de nós mesmos que de outra
forma poderiam continuar adormecidas [...]. O ato de comprar
é um ato de autoexpressão, que nos permite descobrir quem
somos” (CAMPBEL, 2006, p. 53).

A nova visão do consumo na teoria neoliberal é fruto de seu conceito


de capital humano – o indivíduo é um empreendedor de si mesmo para
que acumule capital – se não puder acumular capital financeiro, terá de
acumular capital humano a fim de se posicionar melhor no mundo da
concorrência, tanto em termos de seu estilo de vida quanto em termos de
sua capacidade de auferir ganhos.

No caso da autoimagem, o consumo como investimento é


demonstração da disciplina da pessoa para viver na sociedade
concorrencial:

50
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Se para o surgimento do capitalismo moderno teve vital


importância o desenvolvimento de um estilo de vida de sóbria
existência metódica que salientasse os valores do trabalho
e a poupança, para o capitalismo recuperar sua vitalidade e
poder continuar seu avanço parece crucial promover um estilo
de vida com outros valores que orientem aos indivíduos a se
pensarem como um empreendimento – isto é, a sua atividade,
o seu trabalho, a sua carreira e ainda, a sua própria vida. Trata-
se de uma concepção da vida e um estilo de vida que os tornam
únicos responsáveis por todo o que com eles acontece, únicos
responsáveis de si próprios, ou seja, nos termos dessas doutrinas:
do seu “capital”. Responsáveis pela manutenção e acréscimo
desse capital através dos “investimentos” apropriados que devem
ser feitos, e únicos responsáveis também – embora nunca dito
nas retóricas da administração – pelos seus fracassos. (LOPEZ-
RUIZ, 2009, p. 227, grifo do original)

No caso da competição econômica propriamente dita:


O consumo-investimento (e não a poupança) é o que nos dá
a possibilidade, senão de mobilidade social, pelo menos de
continuar pertencendo a um mesmo grupo social. Se deixarmos
de investir (consumir) temos o alto risco de não ter nada no
futuro: qual será nosso capital humano? Que experiência
teremos capitalizado? E, curiosamente, qual será nosso capital
econômico se, por não ter investido o suficiente em nossa
carreira e em nossos relacionamentos, perdemos oportunidades
de crescimento e ao final acabamos perdendo nosso emprego?
Por essa razão, quando o consumo é entendido no sentido
proposto pela teoria do capital humano como um “investimento”,
a orientação que tomam os valores hoje parece ser mais
claramente definida pela equação “consumo-capacitação-
permanência social”, do que pela tradicional equação que guiava
o espírito do capitalismo antigamente e que rezava “poupança-
educação-mobilidade social”. (LÓPEZ-RUIZ, 2009, p. 228)

Desta forma, o neoliberalismo se tornou eficaz como produtor de


dispositivo de subjetivação-assujeitamento. Gera uma nova identidade
para as pessoas – empresárias de si mesmas. Nessa nova identidade, todas
as decisões da vida da pessoa, de uma forma ou de outra, são tomadas à
luz dos critérios de eficiência e concorrência econômicas. A antropologia
se reduz à economia; a imagem de Deus no ser humano se reduz à capaci-
dade de concorrer e vencer na sociedade neoliberal de mercado.

51
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2.4 Estado
Um dos pioneiros na descrição histórica e conceitual do
neoliberalismo foi Foucault, que dedicou um de seus cursos no Collège
de France a esse tema: Nascimento da Biopolítica (1978-1979). Foucault
estava interessado em dar continuidade a seus estudos da relação
entre poder e subjetivação, não só no dia a dia, mas também no modo
como os Estados se organizam e funcionam. Ele criou o conceito
governamentalidade, em um curso ministrado no ano anterior, mediante
o qual explicava o modo de funcionamento do Estado e das relações de
poder na vida cotidiana da sociedade:
Por esta palavra, “governamentalidade”, entendo o conjunto
constituído pelas instituições, os procedimentos, análises
e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer
essa forma bem específica, embora muito complexa, de
poder que tem como alvo principal a população, por principal
forma de saber a economia política e por instrumento teórico
essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por
“governamentalidade” entendo a tendência, a linha de força que,
em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito,
para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar
de ‘governo’ sobre todos os outros – soberania, disciplina
– e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma
série de aparelhos específicos de governo [e por outro lado],
o desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por
“governamentalidade” creio que se deveria entender o processo,
ou antes, o resultado do processo pela qual o Estado de justiça
da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado
administrativo, viu-se pouco a pouco “governamentalizado”.
(FOUCAULT, 2008a, p. 143-144)

Mediante o conceito da governamentalidade, Foucault explica a


mudança radical que o Estado sofreu, do tempo liberal, para o tempo
neoliberal. O vínculo desse conceito com o de neoliberalismo se
encontra primariamente na afirmação de que a principal forma de saber
da governamentalidade é a economia política. Em uma de suas várias
descrições do neoliberalismo no curso Nascimento da Biopolítica,
Foucault (2008a, p. 181) afirma: “O problema do neoliberalismo é, ao
contrário, saber como se pode regular o exercício global do poder

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político com base nos princípios de uma economia de mercado”.


Efetivamente, em suas diferentes formas, o neoliberalismo consegue
se impor como nova época da governamentalidade a partir dos anos
1970. Falando especificamente sobre o neoliberalismo alemão, mas
com uma generalidade que vale também para o norte-americano e o
neoliberalismo de nossos dias, Foucault (2008b, p. 160) estabelece os
parâmetros do conceito:
[...] será que o liberalismo vai efetivamente conseguir fazer
passar o que é seu verdadeiro objetivo, isto é, uma formalização
geral dos poderes do Estado e da organização da sociedade a
partir de uma economia de mercado? Será que o mercado pode
ter efetivamente um poder de formalização, tanto para o Estado
como para a sociedade? É esse o problema importante, capital,
do liberalismo atual, e é nessa medida que ele representa, em
relação aos projetos liberais tradicionais, que vimos nascer no
século XVIII, uma mutação importantíssima. Não se trata apenas
de deixar a economia livre. Trata-se de saber até onde vão poder
se estender os poderes de informação políticos e sociais da
economia de mercado. Eis o que está em jogo. Pois bem, para
responder “sim, a economia de mercado pode efetivamente
enformar o Estado e reformar a sociedade, ou reformar o Estado
e enformar a sociedade”, os ordoliberais [neoliberais alemães]
realizaram certo número de deslocamentos, de transformações,
de inversões na doutrina liberal tradicional, e são essas
transformações que eu queria explicar um pouco agora.

O capitalismo neoliberal, ou cosmocapitalismo, apresenta o


mercado como sua realidade, como substituto da natureza e da
sociedade; até mesmo como substituto do próprio Deus – é o Mercado
quem resolverá todos os problemas da humanidade, apenas o Mercado
detém o poder da salvação e ele retém esse poder de toda e qualquer
pessoa ou instituição que não se submeta totalmente ao seu domínio.
Não se trata mais de contrapor realidade e mercado, chegamos ao ponto
de identificar realidade e mercado. Em outros termos: o neoliberalismo
não procura apenas impedir que o Estado intervenha no mercado, ele
ativamente procura reformar e enformar o Estado para que ele garanta
o livre funcionamento do mercado nos moldes neoliberais. Seguindo
esse ponto de vista, o Estado procuraria, também, reformar e formatar a
sociedade, as pessoas e a própria natureza, de tal modo que elas também
se conduzam mediante as regras de funcionamento do mercado. Nas

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palavras de Dardot e Laval (2016, p. 34), leitores críticos de Foucault: “o


neoliberalismo é precisamente o desenvolvimento da lógica do mercado
como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo
da subjetividade” e, devemos acrescentar, da natureza em sua totalidade.

Assim, o Estado deixa de ser um sistema autônomo, capaz de


confrontar o sistema econômico, e se torna subjugado ao sistema
econômico. A evidência concreta dessa submissão é o desmonte
constante e progressivo, em todo o Ocidente, das políticas de redistribuição
de renda criadas pelo Estado de bem-estar social – reforma de previdência,
privatização dos sistemas de saúde, eliminação de direitos trabalhistas etc.

2.5 Cultura
Vamos encerrar este capítulo retomando o conceito de cultura já
abordado de maneira bem abstrata por Habermas em sua descrição
do mundo-da-vida, conforme vimos anteriormente. Agora é necessário
tornar mais concreta nossa compreensão da cultura, pois é por meio dela
que construímos a nossa identidade e diferenciamos nosso modo de viver
do modo de viver de outras sociedades. É por meio da cultura (mundo-da-
vida) que podemos resistir aos sistemas econômico e político. É na vida
cotidiana que o Evangelho deve ser vivido, e é nesse contexto de questões
que envolvem o Estado e o Mercado que a Igreja e seus membros são
chamados para serem agentes de transformação – como resposta ao
Reino de Deus.

Primeiro, uma breve definição do termo cultura, que servirá como


ponto de partida para nossa discussão sobre a construção da identidade
com base nela: cultura é o acervo padronizado de saber e significados,
incorporado em formas simbólicas existentes em relação a contextos e
processos historicamente específicos e socialmente estruturados dentro
dos quais, e por meio dos quais, essas formas simbólicas são produzidas,
transmitidas e recebidas. Esta definição, bem abstrata, deve nos fazer
pensar sobre a diversidade cultural. Em nossos dias, mesmo dentro de
um único país, e até mesmo dentro das grandes cidades, não se pode
falar da cultura como uma realidade uniforme. Vivemos em sociedades

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multiculturais, nas quais diferentes grupos constroem diferentes


identidades e modos de viver.

Antigamente, pensava-se que a identidade (eu) já era fixa, quase


que natural, e que a alteridade deveria ser construída como o não eu, o
não idêntico, e ser, só depois, fixada como uma diferença. Até hoje, na
linguagem cotidiana, essa confusão existe: pensamos que o nós já existe
e que os outros são os diferentes de nós, são menos do que completos.
Não é bem assim. Identidade e alteridade se constroem mutuamente.12
Só construímos a identidade a partir da diferenciação em relação a uma
alteridade, e só construímos a alteridade a partir da diferenciação em
relação à identidade. Numa linguagem mais parecida com a dos textos
bíblicos, podemos dizer que o outro é o próximo, de modo que nossa
identidade é construída com base em nosso amor ao próximo – ou, na
linguagem de Jesus, o próximo é quem precisa de nós e o próximo sou eu
que me aproximo do outro (por exemplo, veja a parábola conhecida como
a do Bom Samaritano).

A construção da identidade-alteridade, porém, ou quem sabe


criamos um neologismo, “alteridentidade”, é um processo sociolinguístico
por meio do qual se firmam as identificações, bem como as diferenciações
necessárias em relação às quais nossa identidade se delineia para que
tal identidade13 seja efetivamente nossa e a identidade do outro seja
dele, ou uma alteridade. Nós construímos a identidade (e a alteridade)
quando dizemos: “nós não somos como os americanos” (diferenciação)
e, simultaneamente, afirmamos “nós somos brasileiros” (identificação).
Além das identificações e diferenciações, construímos a alteridentidade
quando fazemos classificações, por exemplo: “a cultura alemã é fria e
fechada”, “a cultura brasileira é quente e aberta” – e quase sempre tais
classificações são inadequadas, pois normalmente implicam juízos de
valor com base em nossa cultura, ou seja, sempre tendemos a pensar

12 Sobre o conceito de identidade, ver, entre outros: CASTELLS, M. O poder da


identidade. A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra,
2000. v. 2; HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A Editora, 1998.

13 Em alguns textos antropológicos o termo etnicidade é sinônimo de identidade.

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que a nossa cultura é superior à outra (não é à toa que quando viajamos
para fora de nossa terra, logo sentimos saudades!). Como o processo
de construção de alteridentidades ocorre na história dos povos, nós
somos afetados pelas centenas de anos em que se foram construindo as
alteridentidades do mundo atual14.

Como processo de classificar, de diferenciar, de identificar, de dizer


quem pertence a nós e quem pertence aos outros15, a construção da
alteridentidade é também um processo sociopolítico, configura-se como
uma prática de poder16. Por exemplo: os europeus, quando “descobriram”
as Américas, falavam de seus habitantes como “selvagens”, ou seja, “não
europeus”. Em suas cartas, Paulo contesta a divisão cultural do mundo
realizada pelos gregos, que chamavam os não gregos de bárbaros, assim
como contestava a divisão do mundo em judeus e gentios.

A Antropologia chegou a uma conclusão similar à proposta paulina:


entre culturas não se pode falar de superioridade e inferioridade, avançada
ou primitiva. Embora haja diferenças significativas entre as culturas, cada
cultura possui idêntico valor, de modo que as culturas só podem ser

14 Uma boa introdução a esse modo de conceber identidade se encontra em:


LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica. São Paulo:
Perspectiva, 2002.

15 “A identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato. [...] a identidade não
é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea,
definitiva, acabada, idêntica, transcendental. [...] podemos dizer que a identidade é uma
construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A
identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade
está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas
de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder” (SILVA,
2000, p. 96s).

16 “Todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações


de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído. [...] Somos
constrangidos, entretanto, não apenas pela gama de possibilidades que a cultura
oferece, isto é, pela variedade de representações simbólicas, mas também pelas relações
sociais. [...] ‘A identidade marca o encontro de nosso passado com as relações sociais,
culturais e econômicas nas quais vivemos agora. [...] a identidade é a intersecção de
nossas vidas cotidianas com as relações econômicas e políticas de subordinação e
dominação’ (Rutherford, 1990, p. 19-20)” (WOODWARD apud SILVA, 2000, p. 18s).

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julgadas com base em critérios internos e não externos ou comparativos.


Diferenças culturais não podem ser classificadas como inferioridades
com base na nossa cultura, que jamais pode ser o critério de valor das
outras. A esse erro dá-se o nome de etnocentrismo (ROCHA, 1989).

Manuel Castells (2000), levando em consideração as relações de


poder envolvidas na construção da identidade, propôs a seguinte tipologia:

• Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições


dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar
sua dominação em relação aos atores sociais, tema que está
no cerne da teoria de autoridade e dominação de Sennett e se
aplica a diversas teorias do nacionalismo.
• Identidade de resistência: criada por atores que se encontram
em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas
pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de
resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes
dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo
opostos a esses últimos, conforme propõe Calhoun ao explicar
o surgimento da política de identidade.
• Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de
qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma
nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e,
ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social
(CASTELLS, 2000, p. 23s).
A essas três categorias da tipologia de Castells acrescentamos uma
quarta, a identidade emancipatória, a saber, aquela forma de identidade
que é fruto bem sucedido de um projeto de transformação social – de
uma identidade de projeto – e, conquanto possa passar a ser a identidade
predominante de um povo, ou nação, não se configura como uma forma
de garantir e racionalizar a dominação social (HABERMAS, 1980, p. 103).
Baseamo-nos em uma conceituação que inclui formas emancipatórias,
como na teoria de Hanna Arendt:
[...] o poder serve para preservar a práxis, da qual se originou.
Consolida-se em poder político, através de instituições que
asseguram formas de vida baseadas na fala recíproca. O poder
manifesta-se em: a) ordenamentos que garantem a liberdade

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política; b) na resistência contra as forças que ameaçam a


liberdade política, tanto exterior como interiormente; c) naqueles
atos revolucionários que fundam as novas instituições da
liberdade. Em Arendt, o que investe de poder as instituições é
o apoio do povo que, por sua vez, é a continuação daquele
consenso original que produziu as instituições e as leis. Todas
as instituições políticas são manifestações e materializações do
poder; elas se petrificam e desagregam no momento em que a
força viva do povo deixa de apoiá-las. (OLIVEIRA, 2020)

Destacamos ainda que não se deve incorrer no erro de reificar essa


tipologia, mas entendê-la sempre como se referindo a processos históricos
que, em dados momentos, se sedimentam, mas jamais se estagnam.

Nos processos de construção da identidade cultural, a diferenciação é


o mecanismo por meio do qual um grupo social constrói discursivamente os
seus outros, a identificação é o mecanismo por meio do qual um grupo social
constrói a sua autoimagem, identifica-se com (associa-se a) um conjunto
de representações, um discurso a respeito de si mesmo. Nesse sentido,
identificação e diferenciação são mecanismos comunicativos, discursivos,
que operam simultaneamente. Mitos de origem, genealogias e etiologias, por
exemplo, são mecanismos de construção do outro e do si mesmo17.

Sistemas classificatórios são a expressão simbólica dos


mecanismos de diferenciação e identificação:
[...] um sistema classificatório aplica um princípio de diferença
a uma população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la
(e a todas as suas características) em ao menos dois grupos
opostos – nós/eles ... eu/outro – dão ordem à vida social, sendo
afirmados nas falas e nos rituais. (WOODWARD, 2000, p. 40)

Os sistemas classificatórios são, comumente, binários (sagrado/


profano; puro/impuro; amigos/inimigos; nós/eles), havendo a possibili-
dade de sistemas mais abertos e includentes.

17 “Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que


influencia tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. [...] As
culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a ‘nação’, sentidos com os quais podemos
nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que
são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e
imagens que dela são construídas” (HALL, 1988, p. 50s).

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Nas formas de identidade legitimadora, a diferença se constrói


negativamente, geralmente por meio de oposições binárias, dualismos
éticos, étnicos, religiosos ou sociais, que são percebidos como
permanentes, pelo que as identidades legitimadoras tendem a ser
essencialistas. Nas formas de identidade de resistência e de projeto,
é comum um estágio de construção negativa da diferença, que
pode anteceder uma visão positiva ou se cristalizar negativamente,
reproduzindo, dessa maneira, mecanismos da identidade legitimadora.
A identidade emancipatória, em tese, afirma e celebra a diferença,
reconhecendo o seu valor, sem desconsiderar, entretanto, que nem todo
diferente é parceiro na construção de uma sociedade emancipada – não
deixa de estabelecer o outro como inimigo, mas não, normalmente, de
maneira tão permanente como na identidade legitimadora.

Em suma: se pensarmos no assujeitamento neoliberal, podemos


dizer que o homo oeconomicus é uma identidade legitimadora, que faz
a pessoa acreditar que é o único modo legítimo de viver. A identidade
cristã, porém, deve ser vista como emancipatória, libertando a pessoa do
domínio do dinheiro, do poder, do prestígio – enfim, do domínio da carne
e do pecado.

Síntese do capítulo
Compreender a vida social contemporânea é, de fato, muito
complicado. Vivemos em um mundo muito complexo, com grandes
novidades tecnológicas, um sistema econômico desafiador, uma vida
política intensa e radicalizada em debates que nem sempre se tornam
ações práticas que viabilizem uma vida digna e livre para os cidadãos,
novas identidades religiosas e eclesiásticas que deixam qualquer cristã
ou cristão com dúvidas e questionamentos de grande porte. Como
afirmado na introdução, a visão aqui apresentada é uma das visões
teóricas possíveis e não tem a pretensão de ser a única e verdadeira
interpretação do mundo contemporâneo.

Nosso estudo neste capítulo objetiva fornecer instrumentos eficazes


para interpretar a realidade contemporânea e entendê-la intelectual

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e espiritualmente, por isso este capítulo trouxe conceitos abstratos


desafiadores. Começamos com as categorias de sistema e mundo-
da-vida, que são as formas mais abstratas de descrever a vida social
em sua dupla dimensão material e simbólica, de coisas e de discursos.
Depois, fomos afunilando essas categorias e refletimos sobre a família
como a instituição social mais básica da vida humana, constatando a
diversidade de tipos de família e de modos de viver em cada um desses
tipos. Na sequência, estudamos o sistema econômico contemporâneo,
tentando desvendar os mecanismos de seu funcionamento e como a
economia, hoje em dia, dirige a vida integral da sociedade.

Passamos, no final, ao estudo da formação da identidade cultural,


refletindo sobre como enfrentar o mundo e sua proposta de identidade
centrada no individualismo. Todo este capítulo deveria ser lido como uma
tentativa de dialogar com a exortação de Paulo em Rm 12,1-2:
Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que
apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável
a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com
este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa
mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e
perfeita vontade de Deus.

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