Você está na página 1de 100

Teologia e Filosofia

FABAPAR
F A C U L D A D E S B A T I S TA D O P A R A N Á
Luiz Tarquínio Pontes

Teologia e Filosofia
1a ed.

Curitiba
2020
© Os direitos de autoria e patrimônio são reservados ao(s) autor(es) da obra e às Faculdades
Batista do Paraná (FABAPAR). É expressamente proibida a reprodução total ou parcial desta
obra sem autorização da FABAPAR.

FACULDADES BATISTA DO PARANÁ


Direção-Geral – Jaziel Guerreiro Martins
Gerência Acadêmica – Jaziel Guerreiro Martins
Gerência Administrativa – Jader Menezes Teruel
Coordenação dos Bacharelados em Teologia – Margareth Souza da Silva
Coordenação Adjunta do Bacharelado em Teologia EAD – Janete Maria de Oliveira
Autoria do Material – Luiz Tarquínio Pontes

Coordenação Editorial – Thiago Alves Faria


Coordenação de Produção – Murilo de Oliveira Rufino
Núcleo de Inovação e Desenvolvimento Educacional – Elen Priscila Ribeiro Barbosa
Revisão – Edilene Honorato da Silva Arnas
Design Instrucional – Elen Priscila Ribeiro Barbosa
Design Gráfico e Diagramação – Thiago Alves Faria
Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP)
Rozane Denes (Bibliotecária CRB/9 1243)
Dica

Preparamos uma versão para impressão, acesse-a!

Por meio do Adobe Acrobat Reader você pode economizar na impressão


da sua apostila! Escolha as configurações abaixo e imprima duas
páginas por folha, em preto e branco.

Se você ainda não tem o Adobe Acrobat Reader, baixe gratuitamente em


https://get.adobe.com/br/reader/

Atenção:
Sempre que você vir uma palavra colorida no meio do texto, clique sobre ela!
Sumário
Introdução.......................................................................................7
1. O Que é Filosofia.........................................................................13
1.1 Etimologia e Origem................................................................................................ 15

1.2 Períodos da Filosofia............................................................................................... 15

1.3 Filosofia Contemporânea...................................................................................... 16

1.4 O Arkhé Filosófico.................................................................................................... 19

1.5 A Relação da Filosofia com outras Áreas do Conhecimento..................25

Síntese do Capítulo.........................................................................30
2. Os Clássicos................................................................................32
Introdução.......................................................................................................................... 32

2.1 A Virada Socrática.................................................................................................... 32

2.2 A Filosofia Platônica................................................................................................ 39

2.3 Ideias Aristotélicas .................................................................................................. 44

Síntese do Capítulo.........................................................................48
3. A Relação entre a Filosofia e a Teologia....................................50
Introdução.......................................................................................................................... 50

3.1 Fides Quaerens Intellectum................................................................................ 50

3.2 A Revelação da Verdade........................................................................................ 58

3.3 Definição de “Palavra de Deus”........................................................................... 69


Síntese do Capítulo.........................................................................74
< voltar

4. O Teólogo-Filósofo.....................................................................76
Introdução.......................................................................................................................... 76

4.1 Motivações ................................................................................................................ 77

4.2 Desafios....................................................................................................................... 84

4.3 Devoção ...................................................................................................................... 90

Síntese do Capítulo.........................................................................97
Referências......................................................................................98

6
< voltar

Introdução
O capítulo de abertura pretende lançar as primeiras luzes acerca do
que seja filosofia. É muito comum, no dizer cotidiano, ouvir questionamentos
a respeito da utilidade prática da filosofia. Alguns pensam que “filosofia
não serve para nada”, outros que “é coisa para quem não possui outras
ocupações”. Contudo, a filosofia oferece subsídios para outras áreas do
conhecimento, inclusive para as ciências”, pois, no seu bojo, são forjadas
as premissas fundamentais para o progresso, haja vista seu papel analítico,
sistematizador e inquiridor. Interessante é o excerto a seguir:
Verdade, pensamento racional, procedimentos especiais para
conhecer fatos, aplicação prática de conhecimentos teóricos,
correção e acúmulo de saberes: esses propósitos das ciências
não são científicos, são filosóficos e dependem de questões
filosóficas. O cientista parte deles como questões já respondidas,
mas é a filosofia que as formula e busca respostas para eles.
Assim o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o
trabalho da filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No
entanto, como apenas os cientistas e os filósofos sabem disso,
a maioria das pessoas continua afirmando que a filosofia não
serve para nada. (CHAUÍ, p. 20-21, 2012).

A filosofia é um a priori das demais áreas do conhecimento, até


mesmo das ciências chamadas “duras”. Seu olhar perscrutador1 coloca
entre parênteses aquilo que se acredita como líquido e certo, o que faz
parte do senso comum e pseudoconhecimento, possibilitando, assim, o
avanço do pensamento em vieses distintos daqueles advogados pelos
discursos dos portadores do status quo ante.

Saiba Mais

Ciências duras são as chamadas ciências naturais: física, matemática,


astronomia etc., enquanto as ciências “moles” são as sociais.

1 Examinar, investigar rigorosamente; indagar. (Dicionário eletrônico Houaiss da


língua portuguesa 2009.6).

7
< voltar

Glossário

Entenda-se status quo neste contexto os discursos considerados como


certos nos quais uma comunidade qualquer, social, científica, religiosa,
edifica suas estruturas.

O conhecimento é sempre infinito e não estagnável. É avesso a


grilhões, avança como o tempo. Daí a necessidade da filosofia para
ofertar as bases para a formulação de críticas legítimas ao que todos têm
por certo ou errado. Desta forma, nem todo certo ou errado é certo ou
errado! Detectar uma verdade pode ser mais difícil do que se imagina, pois
geralmente o senso comum persuade com força e poder os incautos2. A
filosofia, desta forma, é instrumento de defesa para todos aqueles que
não são persuadidos por princípios e conceitos rasos de fundamento.

Portanto, a filosofia talvez não tenha a mesma ação direta da ciência


para exercer retificações, reorientações e avanços, mas é o motor que
aciona suas ignições. Por exemplo, ao se descobrir uma nova vacina, os
méritos são dos pesquisadores que levantaram as hipóteses, testaram
e concluíram pela eficácia de determinado emplasto. No entanto, em
momento anterior ao conteúdo da descoberta, houve a utilização de
métodos da lógica, área da filosofia, e, também, o lançamento de dúvidas
filosóficas acerca da eficácia dos tratamentos existentes até então, além
da realização da análise – base lançada pela filosofia aristotélica – que se
pauta pela decomposição dos problemas complexos em partes menores
a fim de facilitar o melhor entendimento. Destarte, por meio de deduções,
induções e inferências percebe-se a eficácia ou não da nova vacina.
Ademais, para a conclusão do empreendimento: nova vacina, fez-se
necessária a contestação de um esquema posto, ou seja, o da “não vacina”.

Como o tema desta matéria é a relação entre a teologia e a filosofia,


digna-se aduzir3, já na introdução, que, ao mesmo tempo em que existem

2 Que ou o que é destituído de malícia; crédulo, ingênuo. (Dicionário eletrônico


Houaiss da língua portuguesa 2009.6).

3 Expor ou apresentar (razões, argumentos, provas etc.) (Dicionário eletrônico


Houaiss da língua portuguesa 2009.6).

8
< voltar

pontos que grampeiam harmonicamente as duas áreas de conhecimento,


há também expressivas marcas de contrastes. Compreender esta
relação é fundamental para o estudante de teologia que deseja utilizar de
maneira saudável os conteúdos filosóficos como subsídio para a melhor
compreensão dos seus estudos acadêmicos. Tanto a rejeição da filosofia
quanto a aderência inquestionável aos seus conceitos são filhas de um
mesmo equívoco.

A partir da análise do relacionamento do apóstolo Paulo com


a filosofia pagã de sua época, pode-se agregar lições importantes. O
apóstolo conhecia os filósofos, inclusive os pré-socráticos. A primeira
citação referente ao tema, que testifica acerca da leitura de Paulo das
obras filosóficas populares do seu tempo, encontra-se em Atos, capítulo
17, verso 18a.: “‘Pois nele vivemos, nos movemos e existimos’, como
disseram alguns dos poetas de vocês”. Esta citação específica é atribuída
ao filósofo cretense Epimênides, a partir de um texto contido na obra
Cretica. Ele é citado também em Tito 1:12: “Um dos seus próprios profetas
chegou a dizer: “Cretenses, sempre mentirosos, feras malignas, glutões
preguiçosos”. Paulo também cita Cleanto, em sua obra “Hino a Zeus,
04”, no capítulo 17, na segunda parte do versículo 18, dizendo: “‘Também
somos descendência dele’” (GENEBRA, 2009, p.1453). Desta forma, fica
clara a intimidade de Paulo com os filósofos pagãos.

Conta-se que Epimênides era um dos poucos filósofos monoteístas


de seu tempo. Inclusive, a ideia de ter em Atenas um altar ao deus
desconhecido foi fruto de Epimênides, haja vista, durante uma epidemia na
cidade, após os sacerdotes terem feito sacrifício para as mais de 30.000
(trinta mil) divindades existentes, sem sucesso, o povo lembrou-se de
Epimênides, chamando-o para que mostrasse onde deveria sacrificar ao
Deus único para quem Epimênides orava. Ele orientou que se colocasse
um rebanho de ovelha no cimo de um monte, afirmando que elas
desceriam até o local onde este deus gostaria que fossem sacrificadas.
Os animais desceram para um local onde não havia idolatria e ali foram
sacrificadas. Após o que, os religiosos construíram no local uma estátua
ao “deus desconhecido”.

9
< voltar

Epimênides, por outro lado, também acreditava na reencarnação,


processo parecido com o espiritismo atual e com as propostas do mundo
ideal de Platão, principalmente em sua “Teoria da Reminiscência”, que
será estudada ao longo deste livro. Esses episódios são instrumentos
pedagógicos importantes para quem deseja se servir da filosofia para fazer
teologia. Ou seja, havia noções de verdades, ainda que nebulosas, no filósofo
enfocado. E o mesmo se observa nas mais variadas escolas filosóficas.
Há quinhões de verdade misturados a expressivos erros. Cabe ao teólogo,
fundamentado nas Escrituras, “saborear o peixe separando as espinhas”

Por meio da revelação geral, isto é, por meio do que Deus revelara
por meio da natureza e dos conteúdos contidos no espírito humano, que
não perdeu completamente a imagem e semelhança do Criador, filósofos,
pensadores e cientistas trazem à baila princípios verdadeiros, mas que,
não raras vezes, encontram-se misturados a conceitos equivocados, por
não se pautarem na verdade revelada nas Escrituras, a revelação especial
de Deus, que pormenoriza e profere detalhamentos acerca d’Ele.

Diante disso, a visão do teólogo cristão costuma pautar-se pela


análise acurada da filosofia, que, certamente, pode trazer conteúdos
valiosíssimos ao estudante. Por outro lado, o estudioso não há de dispensar
os critérios críticos necessários para o cotejamento entre os cabedais
filosóficos e os consignados nas Escrituras, retendo sempre o que se
coaduna com a Palavra de Deus. Diante de um possível e inconciliável
impasse, será virtuosa a manutenção da fé na Palavra revelada de Deus,
fazendo da filosofia uma constante serva da teologia, nunca senhora. Pois
no Evangelho de João 10:35 está contido: “a Escritura não pode falhar,”. Tal
conceito é ratificado, também, em João 17:17: “Santifica-os na verdade, a
tua palavra é a verdade.”

Contudo, algumas vezes, as descobertas científicas e filosóficas


podem auxiliar no esclarecimento de conceitos não muito bem clarificados
contidos nas Escrituras. Um caso típico encontra-se no livro de Josué,
capítulo 10:12-14, que reza:
No dia em que o Senhor entregou os amorreus aos israelitas,
Josué exclamou ao Senhor, na presença de Israel: “Sol, pare
sobre Gibeom! E você, ó lua, sobre o vale de Aijalom! “O sol parou,

10
< voltar

e a lua se deteve, até a nação vingar-se dos seus inimigos, como


está escrito no Livro de Jasar. O sol parou no meio do céu e por
quase um dia inteiro não se pôs. Nunca antes nem depois houve
um dia como aquele, quando o Senhor atendeu a um homem.
Sem dúvida o Senhor lutava por Israel! (JOSUÉ 10:12-14).

Este texto, durante séculos, foi interpretado como uma definição


técnica de que o sol girava em torno da terra. Ora, se ele parou, era porque
estava circulando, ou seja, em movimento. Depois de muitos estudos
e das descobertas científicas, esse texto foi melhor compreendido.
Uma vez que a Bíblia não é um livro de ciência nem pretende indicar
literalmente, matematicamente os acontecimentos, esse evento que
ocorrera começou a fomentar uma exegese distinta daquela praticada
correntemente naqueles dias, não sendo, contudo, menos legítima. Os
intérpretes começaram a perceber que do ponto de vista dos homens
de fato o sol parou, mas não do ponto de vista técnico e astrofísico. Da
mesma maneira que dizemos no cotidiano que algumas coisas estão em
linha reta, sabendo que num mundo redondo não existe, no estrito rigor,
qualquer coisa literalmente reta, e assim por diante.

Entretanto, o relacionamento entre a teologia e a filosofia avança


noutras searas. O próprio conhecimento das doutrinas jesuânicas não
pode dispensar o das estruturas filosóficas, haja vista a epistemologia,
isto é, o estudo acerca do próprio conhecimento é objeto filosófico. O ato
de conhecer seus limites, possiblidades e extensão são áreas do trabalho
filosófico. Por outro viés, o rigor das verdades filosóficas deve antes passar
pela peneira teológica. A filosofia é a busca pela verdade, não exatamente
seu encontro. Jesus é a verdade. O que vai dar um tônus distintivo entre
filosofia e fé cristã tem a ver com sua metodologia, haja vista não ser,
para os cristãos ortodoxos, a especulação ou o pensamento que gesta
a verdade, mas a Palavra de Deus contida nas Escrituras. Esta fé pinta a
grande separação entre filosofia e teologia.

11
1. O Que é Filosofia
< voltar

1. O Que é Filosofia
“A filosofia é arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos”
(DELUZES, p. 10, 1992). É a tentativa humana de descortinar o mundo e a
vida. Para a realização de tal objetivo, os seres humanos servem-se de sua
capacidade cognitiva e percepções. O filósofo é alguém que coloca todas
as coisas entre parênteses, isto é, o aguçado espírito crítico é uma de suas
características mais particulares. Nada está alheio às suas interrogações.
Não faz isso, no entanto, pelo amor à polêmica ou ao contraditório, mas
por prezar a verdade.

O desvelar da “verdade” é o objetivo maior da filosofia. Bem


verdade, que muitas vezes os temas filosóficos funcionam à guisa de
entretenimento para despertar a reflexão, a curiosidade e as discussões,
sem o objetivo de encontrar definições e denominadores em comum. Já
se afirmou que a filosofia não passava de uma ginástica que em vez de
músculo exercitava o pensamento de per si, sem almejar outro interesse
senão entreter o pensamento. (PRADO JR., 1981, p. 6)

Neste sentido, a filosofia pode se alinhar a um parque de diversões


mentais, que, apesar de possuir uma possível função na sociedade, não
se esmera ao escopo de encontrar a verdade. Alguns entendem que por
não desejar chegar ao objetivo de descortinar uma realidade verídica,
o respectivo gênero não se enquadraria no rol temático da filosofia,
esquivando-se para outras áreas.

A filosofia tem seu inicia no espanto. “Admiração e espanto


significam que reconhecemos nossa ignorância e exatamente por isso
podemos superá-la” (CHAUÍ, 2012, p. 19). Há relatos acerca de que
Sócrates certa vez estava conversando com uma profetiza, que lhe fez
a seguinte pergunta: “O que você sabe?” Sócrates teria olhado fixamente
para ela, respondendo em seguida: “Só sei que nada sei”. Admirada com a
resposta do interlocutor, a sibila4 arrematou: “Sócrates é o mais sábio de
todos os homens, pois é o único que sabe que nada sabe!”.

4 Entre os antigos, mulher a quem se atribuía o dom da profecia e o conhecimento do


futuro. (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2009.6).

13
< voltar

A postura do “não saber” é a única oportunidade para o conhecimento.


Quando algo é sabido e descortinado, a priori, esgota-se a possibilidade
para o alcance de novo conhecimento.

A filosofia começa dizendo “não” aos preconceitos e lugares


comuns; questiona aquilo que está posto, o que é defendido pelo status
quo, o politicamente correto e até aquilo que defendem e preconizam
as próprias escolas filosóficas e científicas. Ou seja, nada permanece à
revelia do pensamento do filósofo, a fim de ser revelada a verdade. Sua
investigação começa no investigador, o próprio homem.

Acredita-se que Sócrates tenha revolucionado a filosofia ocidental


quando tomou como padrão de sua filosofia a frase consignada nos
umbrais do templo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo!”. A proposta
socrática guiou o pensamento ocidental da physis ao anthropos, isto é,
das questões vinculadas à natureza para aquelas relacionadas ao homem.

Glossário

Palavra de origem grega que significa fazer brotar ou nascer. Para os


pré-socráticos, seria o elemento primordial da natureza, infinito, mas em
constante mutação.

A narrativa de Gênesis indica que Deus fez o homem e a mulher à sua


imagem e semelhantes. Como seres alinhados à pessoa divina, os seres
humanos possuem capacidades extraordinárias, o que possibilita a absorção
de um variado cabedal5 de insumos para o desvelamento de problemas acerca
de “o quê”, “por quê”, “como”, de variados objetos e realidades.

Numa conversa com uma profetiza, no templo de Apolo, afirmou:


“Só sei que nada sei”.

5 Conhecimento, talento, competência, habilidade que se adquirem com a experiência,


o estudo, a ética. (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2009.6).

14
< voltar

1.1 Etimologia e Origem


O termo “filosofia” advém da junção de dois radicais gregos. O primeiro
é φίλος (philos) e σοφία (sophia). A primeira palavra possui o sentido de
amor, amizade, afeto; a segunda refere-se à sabedoria ou ao saber.

Há algumas teorias acerca do surgimento da palavra. Estudiosos


defendem que a criação da palavra se deu a partir das ideias de Pitágoras,
filósofo e matemático que viveu na ilha de Samos, conhecido principalmente
pela elaboração de seu teorema, forjado enquanto admirava as pirâmides
do Egito. Outros advogam a tese de ter sido Heráclito o criador da palavra.
Fato é que antes do nascimento da palavra filosofia, o termo filósofo, isto
é, alguém dedicado a pensar acerca da vida, já existia. (GALLO, p. 15, 2014)

O significado da palavra filosofia, destarte6, é o amor no sentido de


amizade pela busca da sabedoria. Se é o desejo de buscá-la, isso quer
dizer que não é a sabedoria de per si, mas o anseio por conquistá-la, é
uma relação com o saber que implica um movimento de construção e
busca da sabedoria. A filosofia, pois, é um movimento daquele que não
sabe em relação ao saber, um anelo7 que dispensa a estagnação do posto
para ir ao encontro de um novo entendimento (GALLO, 2014, p. 12).

O termo filosofia, portanto, nasce na Grécia entre os séculos VI


e VII antes de Cristo para designar as tarefas próprias daqueles que se
davam às investigações acerca da arkhé, isto é, da matéria original da qual
todas as outras seriam derivadas, no período filosófico conhecido como
pré-socrático, o qual será tratado a seguir.

1.2 Períodos da Filosofia


Determinar períodos históricos não é tarefa fácil, principalmente
devido ao fato de a sociedade humana não ser hermética e os movimentos

6 Assim, desta maneira; dessarte (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa


2009.6).

7 Desejo intenso; anelação, anélito, aspiração. (Dicionário eletrônico Houaiss da


língua portuguesa 2009.6).

15
< voltar

humanos não serem organizados em minutos e segundos, de modo a permitir


que uma pessoa durma no modernismo e acorde no pós-modernismo. Tais
exatidões não funcionam muito bem nas dinâmicas sociais.

Entretanto, tradicionalmente os estudiosos aderem à possibilidade


de separar os períodos filosóficos em etapas, devido à observação de
cortes importantes que foram produzidos ao longo do tempo, e que
impulsionaram mudanças expressivas na forma de focar determinados
objetos pela filosofia. Sendo assim, pode-se dividir os períodos filosóficos
em: filosofia antiga (vai dos pré-socráticos até o período helenístico);
filosofia patrística (iniciado com os escritos de Novo Testamento e
sua interpretação pelos pais da Igreja, tendo em Agostinho seu maior
representante); filosofia do medievo (nasce aproximadamente a partir
do século VIII, tendo em São Tomás o maior representante); filosofia
renascentista (marcada pelo redescobrimento de obra dos clássico,
escritas em grego, as quais receberam novas traduções mais claras em
latim); filosofia iluminista (marcada pelo excessivo prezo8 pela razão e
autonomia do homem em relação a Deus e à grande importância dada às
ciências) e filosofia contemporânea (inicia-se no período mil-oitocentista
com um olhar otimista para o homem, que pendula radicalmente no
século XX devido às duas grandes guerras).

1.3 Filosofia Contemporânea


O período que se seguiu ao século XII, marcado pelo desabrochar
da ciência moderna, foi impregnado por uma atitude otimista em relação
ao futuro da humanidade. O avanço da ciência e das novas tecnologias
fomentaram o desenvolvimento da ideia acerca da autonomia dos seres
humanos, que teriam chegado a um patamar de evolução que os conduziria
à liberdade e à felicidade, concretizando a utopia da reconstrução do
Paraíso na terra.

8 Ter grande apreço. Disponível em: https://www.sinonimos.com.br/


prezo/#:~:text=18%20sin%C3%B4nimos%20de%20prezo%20para,%2C%20
aprecio%2C%20admiro%2C%20acato. Acesso em: 15 jul. 2020.

16
< voltar

Foi no século XIX que se começou a pensar acerca da categoria


“progresso”, concepção de que os seres humanos, as sociedades, as
ciências, as tecnologias e afins estão sempre se desenvolvendo, numa
vetorização constante que tende à ascendência. Isto é, o progresso
seria o pensamento de que todas as coisas estão se aprimorando
constantemente, de maneira que o presente é sempre melhor do que o
passado, e que o futuro será melhor do que o presente. Esta ideia estava
embrenhada neste período.

Tal pensamento tem seu gérmen em Hegel, o qual defendia que a


história humana deveria ser vista como um espiral em constante elevação
e soerguimento. Por meio da dialética – processo em que a partir de uma
tese e antítese infere-se uma síntese, que se torna uma nova tese – a
história seria uma etapa progressiva de novas soluções para o homem.
Esta ideia foi corroborada pela teoria da evolução defendida por Charles
Darwin, em sua obra clássica, cuja primeira edição tinha o título: “Da
Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural ou a Preservação de
Raças Favorecidas na Luta pela Vida”.

Neste diapasão, oferecendo graças elevadas às ciências, surgiu


o positivismo, doutrina que reprimia e alijava da esfera epistemológica
quaisquer experiência religiosa ou metafísica, restringindo o conhecimento
ao que pudesse ser provado pela ciência. Um dos seus paladinos foi
Augusto Comte, para quem a sociedade humana tinha passado por três
períodos: o teológico, o metafísico e o positivo. O primeiro se relacionava
com as tentativas de se elaborar conceitos e definições acerca dos deuses
e seu relacionamento com o mundo criado e os humanos, condicionando
as ocorrências no mundo concreto ao desejo dos “deuses”, tentando
fundamentar sua existência, personalidade e seus valores; o metafísico
seria um meio-termo, uma passagem entre o período teológico e o positivo,
esquecendo-se dos deuses, mas colocando em seu lugar entes abstratos.
Por fim, o positivismo seria uma etapa sucessiva e última da comunidade
humana, em que pessoas teriam alcançado a maturidade ao subordinar
todas as suas ideias ao que poderia ser provado cientificamente, por meio
de uma metodologia legítima e racional, por isso, positiva.

17
< voltar

Não obstante, no século XIX, já se podia detectar efeitos colaterais


provenientes do desenvolvimento e progresso tecnológico. Os motores a
vapor lotavam as cidades de fumaça e os níveis de poluição começavam
a elevar-se acima do aceitável, condição que somente piorou até os dias
atuais. Isso começou a colocar um ponto de interrogação acerca do
validamento efetivo dos avanços científicos, ou, na melhor das hipóteses,
fomentou a não idolatria às novas tecnologias, que poderiam tanto ser
utilizadas para o bem-estar da humanidade como para sua completa
destruição, como se observou por meio das aparelhagens bélicas
nucleares que dizimaram cidades no Japão.

Em meio aos enfrentamentos referentes ao ceticismo científico,


a filosofia contemporânea também teve que se debruçar sobre novas
questões que colocaram em xeque o establishment, tais como as
recém-inauguradas teorias em relação à evolução de Charles Darwin,
ao marxismo e ao existencialismo de Nietzsche, que sacudiram,
principalmente no Ocidente, os princípios básicos dos valores sociais.
Segundo Kim: “Nietzsche acreditava que a filosofia ocidental, com suas
raízes nas tradições gregas e judaico-cristãs, estava mal preparada para
explicar essa moderna visão de mundo”. (KIM, 2016, p. 212)

A filosofia contemporânea, ademais, foi desafiada a pensar acerca do


surgimento e do naufrágio de novos ideais políticos. Devido ao conceito do
“progresso”, doutrinadores sociais preconizavam uma mudança nas estruturas
de poder então vigentes. Com vistas à formação de uma sociedade mais
justa, igualitária e menos opressora, desenvolveu-se as ideias do anarquismo,
socialismo e comunismo. No entanto, tais propostas não demoraram a
naufragar, voltando-se para os esquemas patológicos stalinista e maoísta.
Mais recentemente, com a queda do muro de Berlim, provou-se que todos os
argumentos a favor das possibilidades marxistas são natimortos.

Contudo, no século XX, a filosofia foi escrita por pensadores de esquerda


na sua grande maioria. A começar pela “Escola de Frankfurt”, nome dado ao
Instituto de Pesquisa Social ligado à Universidade de Frankfurt, composta por
pensadores como Horkheimer, Fromm, Adorno, Marcuse, Lowenthal e Pollock,
Habermas, todos filiados à causa marxista, os quais manusearam suas penas
na defesa do respectivo ideário. Ademais, fora do respectivo grupo, pode-se
citar Sartre, Beauvoir, Foucault, entre outros.

18
< voltar

1.4 O Arkhé Filosófico


O termo arkhé é eminentemente pertinente ao objeto de estudo dos
filósofos pré-socráticos, que buscavam o elemento constitutivo de todas
as coisas. Ao referir-se ao arkhé filosófico, o que se pretende é oferecer
uma perspectiva acerca dos primeiros gérmens que dispararam a ignição
para o surgimento da filosofia como se é entendida nos dias atuais,
tecendo considerações acerca das primeiras sementes que motivaram
o seu surgimento.

Sabe-se que a filosofia teve início na Grécia, aproximadamente


no século VI a.C, mas seu surgimento não foi a ignição do pensamento
humano. As sociedades já possuíam anteriormente determinados
cabedais de conhecimento e pensamento, a que se costuma dar o
nome de mito. A palavra mythós significa, em grego, narrativas, histórias
divulgadas por meio da comunicação oral, predominante em sociedades
tribais, quando não há escrita.

A civilização grega teve início por volta do século XX a.C., quando


invasores indo-europeu invadiram a região posteriormente conhecida com
Grécia para dar início à civilização aqueia. Neste tempo, a Grécia ainda se
chamava Hélade, constituída de diversas regiões autônomas que mantiveram
a língua e a solidez da unidade cultural (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 30).
Certamente, a manutenção de uma expressiva unidade idiomática e cultural
criou laços substanciais para o desenvolvimento da região.

Os gregos eram politeístas. Seus deuses possuíam atributos


divinos e humanos ao mesmo tempo. Habitavam no Monte Olimpo
e eram imortais. Um dos grandes santuários estava situado em
Delfos, onde havia um Oráculo, imortalizado devido a acontecimentos
relacionados à vida de Sócrates. Tinham filhos e filhas, sendo em algumas
situações benevolentes, e em outras extremamente cruéis em seus
comportamentos. Entre as obrigações que lhes eram devidas, contam-
se os sacrifícios, preces e oferendas, destacando-se as peregrinações
aos locais e templos sagrados. (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 30)

19
< voltar

Glossário

Significa resposta de uma “divindade” a um determinado questionamento


oferecido pelo devoto.

1.4.1 As Narrativas Homéricas


Desde o tempo do historiador grego Heródoto, que viveu no
século V a.C, são oferecidas informações díspares em relação à vida de
Homero, flexibilizando a data de seu nascimento e morte, bem como
sua naturalidade. A vida do escritor – se é que ele existiu – é bastante
controversa. Há quem defenda que, na verdade, as narrativas homéricas
não passam de coletâneas antigas compiladas de variados excursos que
circulavam na Grécia Antiga.

Acerca das questões homéricas, Canton afirma:


Acadêmicos clássicos se referem a essa falta de informações
como “a questão homérica”, que inclui uma série de enigmas.
Quem Homero – se é que um dia existiu, em caso afirmativo,
quando? Homero foi o único autor das epopeias ou um de
vários autores? Será que os poemas são originais, ou os
autores simplesmente fizeram um registro escrito de poemas
transmitidos oralmente entre gerações. Muitos acadêmicos
argumentam que as epopeias evoluíram de uma tradição oral e
foram refinadas e ornamentadas por vários poetas em uma séria
de versões. Faltam provas concretas e a questão homérica ainda
precisa ser definitivamente solucionada. (CANTON, 2016, p. 28).

Certamente, muitas informações acerca assunto “Homero” precisam


ser elucidadas a fim de fornecer conteúdos mais precisos acerca de sua
vida e trabalho.

Homero escreveu dois poemas épicos de grande relevância: “Ilíada”


e “Odisseia”. A primeira narrativa conta sobre a guerra de Troia, que, em
grego, é Ílion, enquanto a segunda retrata a viagem de retorno de Ulisses,
Odisseus em grego, a Ítaca, a sua terra natal, salientando todas as suas
etapas e peripécias ocorridas durante o trajeto, além de solucionar
algumas questões não resolvidas na Ilíada.

20
< voltar

Ilíada é um exemplo sofisticado de contação de história, relatando


uma guerra sob o ponto de vista de um único personagem, qual seja
Aquiles. Algumas partes da narrativa são desenvolvidas remontando-se
ao passado, como uma lembrança, enquanto outros desenvolvimentos
são vaticínios9 de eventos futuros. Enredos e subenredos se entrelaçam
para dar azo10 aos esquemas dos personagens. (CANTON, 2016, p. 29)

Por muito tempo, acreditou-se que Troia fosse uma cidade


mitológica, criada por Homero para dar ensejo aos seus respectivos
temas literários. Ou seja, uma região que não existia historicamente, mas
imaginada pelo grande e festejado escritor grego. Contudo, atualmente,
arqueólogos festejados concordam que alguns achados em Anatólia, na
Turquia, revelaram a cidade de Troia, cantada pelo poeta. Cantada, sim,
pois tais rapsodos11 declamavam seus poemas geralmente em praça
pública, sem o manuseio de quaisquer materiais escritos.

Na vida dos gregos, as epopeias exerciam função pedagógica.


Proferiam a exposição da história grega, transmitindo os valores culturais
mediante o relato das realizações dos deuses e seus antepassados. Por
expressarem uma noção do “bem viver” desde muito cedo, as crianças
aprendiam a recitar seus versos e assumir os valores expressos nas
narrativas. As ações heroicas relatadas na poesia homérica falam da
constante intervenção dos deuses, ora para ajudar seus diletos, ora
para perseguir um determinado inimigo. O indivíduo, por outro lado, se
apresenta enleado ao seu destino, que é fixo e predeterminado nas mais
variadas dimensões. (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 21)

Homero foi um educador par excellence12. Foi extremamente


importante para a formações dos basilares da cultura grega, e,

9 Suposição de algo que pode acontecer, com base na realidade atual; prognóstico.
(Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2009.6).

10 Motivo, causa; oportunidade. (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa


2009.6).

11 Na Grécia antiga, recitador profissional de poesias épicas. (Dicionário eletrônico


Houaiss da língua portuguesa 2009.6).

12 Por excelência. Disponível em: https://www.linguee.com.br/frances-portugues/


traducao/par+excellence.html. Acesso em: 15 jul. 2020.

21
< voltar

consequentemente, para o surgimento da filosofia. Seus poemas


fornecem, por meio de sua linguagem e manuseio de determinadas
perspectivas reflexivas, aspectos que facilitaram o surgimento das
elucubrações filosóficas. Os próprios pré-socráticos, Parmênides e
Empédocles, utilizaram as estruturas discursivas homéricas chamadas
de “hexâmetros” para proceder seus discursos. (LISBOA et al. 2013, p. 44)

1.4.2 Os Pré-Socráticos
Homero juntamente com seu contemporâneo Hesíodo forneceram
as bases para as especulações cosmogônicas e teogônicas, declamando
de que forma teve início a vida dos deuses e do mundo. “A teogonia é
também uma cosmogonia, na medida em que narra como todas as coisas
surgiram do caos para compor a ordem do Cosmo.” (ARANHA; MARTINS,
2009, p. 32). Essa tendência de pensamento ofertou a matéria-prima
fundamental, de onde os primeiros filósofos propriamente ditos partiram
a fim de pautar suas atenções.

O ponto comum entre os filósofos pré-socráticos era a concentração


acerca do uno. Concentravam-se em detectar, diante do fluido de todas as
coisas, aquilo que dera origem aos múltiplos, atribuindo a alcunha de arkhé
para identificar o elemento comum constitutivo de todas as coisas. As
respostas encontradas pelos filósofos deste período variavam, mas tinham,
como já detectado, a preocupação com o elemento fundante, trocando-
se, não obstante, as especulações cosmogônicas – fundamentadas em
mitos – como as encontradas nas epopeias de Homero e Hesíodo, para
as pesquisas cosmológicas – em que há uma distanciamento do mito e
procura mais intensa das razões.

Glossário

Em grego significa princípio, início de todas as coisas, de onde advém


também a palavra “arqueologia”.

22
< voltar

Para Tales de Mileto, a arkhé era a água. Pitágoras, por sua vez, cria
que o número era a essência fundante de todas as coisas. Discordando
dele, estava Anaximandro, para quem o fundamento dos seres era uma
matéria indeterminada (apeiron). Para Anaxímenes, era o ar, que pela
rarefação e condensação transforma todas as coisas. Anaxágoras
advogava a tese de que as sementes de todas as coisas foram ordenadas
por uma mente inteligente e cósmicas, chamada nous. Já os filósofos
Leucipo e Demócrito trouxeram pela primeira vez na história a ideia
de átomos, defendendo que estes seriam os elementos primordiais e
indivisíveis. (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 41)

Os pré-socráticos perfazem uma passagem do pensamento mítico,


em que as respostas para as perguntas fundamentais tinham esteio
nas compreensões acerca dos deuses para uma civilização em que se
começou a procurar respostas baseadas na razão. O modus operandi da
engrenagem do pensamento foi a grande virada presente neste período,
que renovou o mecanismo do pensar humano. Essa foi a marca que abriu
espaço para uma nova cosmovisão, marcando, assim, formalmente o
início daquilo que se chamou filosofia.

1.4.3 A Paideia Grega


A paideia não é uma palavra de fácil compreensão. Analisando sua
etimologia, percebe-se a semelhança com o termo grego próprio para
“crianças”, ou paidós. Possui, outrossim, proximidade com outro termo
grego paideúo que se traduz pela arte ou ofício de “ensinar”. Neste texto, o
termo será articulado como sendo o sistema de formação integral existente
em determinados períodos na Grécia, com vistas à formação de um cidadão
ideal. Sendo assim, de acordo com os períodos analisados, há variações
acerca do que fosse almejado dos cidadãos gregos, exatamente por isso
fala-se em paideia homérica, em Hesíodo, socrático-platônica e aristotélica.

A paideia homérica é marcada principalmente pelo conceito de


kalokhagatia, termo advindo da junção de duas palavras adjetivas gregas:
kalós (belo) e agathós (bom, virtuoso). Tal conceito fora inicialmente
customizado por Heródoto e Aristóteles para se referir ao conceito de
areté homérica, isto é, o padrão do homem exemplar, excelente, vinculado

23
< voltar

temporalmente ao citado período histórico. No período homérico, agathós


está ligada à figura de uma pessoa nobre e corajosa. Da mesma sorte, o
conceito de kalós, em Homero refere-se à estética física singularmente,
sem se misturar a quaisquer virtudes morais, intelectuais ou éticas, é a
beleza exteriormente analisada (LISBOA et al., 2013, p. 94).

Na paideia hesiodiana, tem-se um vetor mais direcionado para a


competência humana auferida em um determinado ofício por intermédio
da conquista pessoal. Ou seja, distintamente do que é observado no ideal
homérico, em Hesíodo, profere-se menos importância às aderências
elitistas e classistas. Hesíodo aplaude menos os nobres e mais as
conquistas alcançadas por meio do trabalho e exercício da justiça. Daí
dizer-se que enquanto a areté homérica é aristocrática, a hesiodiana é
meritocrática. Em Homero, há tendência na manutenção do status quo
ante, o que não se percebe na paideia de Hesíodo.

Saiba Mais

Tal termo tem sua origem no grego aristós, que significa “excelente”,
“mais preparados”.

Em Sócrates e Platão, a proposta de paideia tem características


particulares, dentre as quais a construção de uma virtude moral para a
construção de uma pólis saudável. A virtude e o cultivo de uma estrutura
pessoal austera é predicado fundamental. Se em Homero a coragem
e a nobreza eram exaltadas, se em Hesíodo a excelência do trabalho e
competência pessoal são marcas fundamentais, na paideia socrático-
platônica há um intenso interesse na formação humana para desenvolver
uma função política, educando o homem por meio do logos para se
desincumbir satisfatoriamente das tarefas sociopolíticas. O foco da
paideia socrático-platônica não está no indivíduo, mas na comunidade.
(LISBOA et al., 2013, p. 142)

Na paideia aristotélica, percebe-se também uma preocupação social,


pois o filósofo defende que a comunidade educa para a comunidade.
Há, portanto, um ritmo cíclico. A educação se inicia na comunidade

24
< voltar

para retornar como benefício a ela própria. De tal arte, existe um


subdimensionamento da importância da individualidade para fomentar o
cultivo de uma mentalidade de viés mais comunitária. Para Aristóteles,
o homem conquista as virtudes por meio da prática da phronesis, isto é,
do exercício da prudência e da moderação, utilizando-se do logos para
alcançar o exercício equilibrado das virtudes. (LISBOA et al., 2013, p. 142)

1.5 A Relação da Filosofia com outras Áreas do


Conhecimento
A filosofia não é uma disciplina isolada em si mesma. Ela tem
relação com outras áreas do conhecimento, tendo muitas delas nascido
de desdobramentos da filosofia. Veja, a seguir, algumas áreas do
conhecimento e como se dá a relação que têm com a filosofia.

1.5.1 Filosofia e Mito


Já foi visto o imbricamento entre a filosofia e as narrativas mitológicas,
principalmente no processo de surgimento daquela. Os épicos gregos
concederam os arcabouços estruturais para o surgimento dos processos
presentes na filosofia. Homero e Hesíodo impulsionaram o fornecimento
de matéria-prima para o surgimento de um tipo de pensamento humano
até então inexistente. As teogonias dos primeiros gregos, por exemplo,
engrenaram o pensamento dos pré-socráticos na direção do arkhé.
“Podemos observar a diferença entre o pensamento mítico e a filosofia
nascente: a cosmologia racional distingue-se da cosmogonia mítica de
Hesíodo”. (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 41)

Mudou-se, tão somente, os protagonistas. Os deuses e heróis


presentes nos mitos antigos cederam espaço para as elaborações
menos fantásticas e mais racionais, cumprindo, assim, tarefa de grande
relevância para o desabrochar filosófico. A partir de tal ruptura, os
filósofos pré-socráticos customizaram suas reflexões. Houve, portanto,
uma permuta no entronizamento das personagens fundantes. Os deuses
foram eclipsados, surgindo, a partir de então, elaborações mentais mais
racionalistas. As premissas da racionalidade foram assumindo importância
cada vez maior dando ensejo a imponentes conteúdos filosóficos

25
< voltar

Não obstante, esta ruptura não procedeu a separação radical dos


conteúdos anteriores. Há estudiosos que defendem que muitas das teorias
presentes entre os pré-socráticos são variações dos relatos míticos.
Explica-se: para os primeiros pré-socráticos, por exemplo, os opostos
(quente e frio, seco e úmido) são formados a partir de um estado inicial de
indistinção, que vão se equilibrando reciprocamente. Tal exegese, mutatis
mutandis, se assemelha aos relatos de Hesíodo presentes em sua obra
Teogonia, segundo “os quais Gaia gera sozinha, por segregação, o Céu e
o Mar; depois da união de Gaia com Urano resulta a geração dos deuses”
(ARANHA; MARTINS, 2009, p. 41). Isto é, a mecânica da estrutura criativa
– unidade que forja seres distinto e antagônicos – permanece.

Mas, certamente, foi a vinculação conjugal entre os conteúdos


da cognição humana com a racionalidade que procedeu ao corte
entre a sociedade mítica e a filosófica. Esta tem por norma diretiva o
questionamento, as perguntas e inquirições, enquanto vinga nos conteúdos
mitológicos a inviabilidade da “questão”. O mito existe sem quaisquer
preocupações em se autoprovar. No mito, não há problematizações.
A realidade está posta e disposta sem possibilitar problematizações.
O mito parte de pressupostos e argumentos circulares cujas causas
fundamentam os efeitos e vice-versa. “No mito a inteligibilidade é dada, na
filosofia ela é procurada” (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 41)

Há quem pense que a filosofia rejeita o que está para além do


cognoscível. Aranha e Martins, por exemplo, defendem:
A filosofia rejeita o sobrenatural, a interferência de agentes
divinos na explicação dos fenômenos. Ainda mais a filosofia
busca a coerência interna, a definição rigorosa dos conceitos;
organiza-se em doutrinas e surge, portanto, como pensamento
abstrato. (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 41).

Afirmar, entretanto, que a filosofia rejeite o sobrenatural não parece


adequado. Inicialmente, porque o metafísico não deixar de ser sobrenatural.
Platão defendia a existência de um mundo metafísico, um cosmos ideático,
que não passa de uma existência metafísica, isto é, que está fulcrada em
conteúdos que estão além da física, portanto, sobrenatural. Ademais, o
próprio Sócrates, como Platão descreve em sua “Apologia a Sócrates”,
esclarece que este acreditava na imortalidade da alma, o que de per si,

26
< voltar

invoca questões sobrenaturais. Além disso, elenca o fato de Sócrates


informar que este falava sobre “demônios”, afirmando que se acreditava
neles, que seriam filhos bastardos dos deuses, consequentemente, e por
corolário lógico, também acreditava nos deuses.

Dica

Para uma construção mais elaborada, ler o texto complementar indicado


na plataforma com o título: “Sócrates” (Coleção os Pensadores, 1987).

1.5.2 Filosofia e Ciência


A filosofia e a ciência são duas categorias de pensamento que
constantemente dialogam entre si. A primeira concede, a priori, para a ciência
materiais para que se processem suas investigações e descrimine seus
achados. Viés inverso, a ciência produz suas sínteses as quais permitem
que a filosofia se debruce sobre os novos objetos, pensando, questionando e
conceituando a respeito de tais descobertas. Por exemplo, a epistemologia é
uma das áreas da filosofia. Seu objeto de estudo é o próprio “conhecimento”.
Responde à pergunta acerca da possibilidade de se conhecer alguma coisa,
até que ponto se pode fazê-lo e os seus respectivos limites. Isto é, a filosofia
trabalha, pensa e trata a respeito de uma premissa para se fazer ciência. Por
outro lado, as descobertas científicas, tal como a bússola, verbi gratia, concede
à filosofia novos objetos acerca dos quais deve se deter.

A ciência se utiliza de um tipo de pensamento que investiga os


fenômenos (pahinomenon) da natureza criando conhecimento a partir de
uma metodologia determinada. É um conhecimento, portanto, sistemático e
metódico. É sistemático porque procura organizar e dialogar com as várias
partes que o compõem, seguindo uma linha de raciocínio coerente. É metódico
(met-hodós) porque segue uma trilha, um caminho determinado para
alcançar o resultado esperado. Tradicionalmente, o método científico pode ser
caracterizado por cinco passos: a observação, a formulação de hipóteses, a
experimentação ou testagem, a generalização e elaboração da teoria.

27
< voltar

Para Chauí: “Antes de mais nada, a ciência desconfia da veracidade


de nossas certezas, de nossa adesão imediata às coisas, da ausência
de crítica e da falta de curiosidade” (CHAUÍ, 2012, p. 20-21). Percebe-se
claramente na citação que esta atitude em muito se confunde com a do
filósofo Sócrates, que afirmava que a única certeza que possuía era a de
não saber qualquer coisa, e, por isso, tentava encontrar resposta para
suas dúvidas. Neste âmbito, também, percebe-se uma aderência de um
tipo de conhecimento no outro.

Ademais, há partes da filosofia, como, por exemplo, a filosofia da


ciência, cujo objeto é pensar exatamente acerca das ideias de onde os
cientistas partem para proceder seus respectivos trabalhos, além de
perquirir acerca de seus métodos e resultados, filosofando acerca das
ciências e utilizando métodos científicos, inclusive, para pensar sobre
a filosofia. Tal imbricamento sempre fez parte da filosofia. Na Grécia,
Aristóteles questionava acerca da origem da vida a partir de algo inanimado
e analisava o mundo animal, classificando as diversas espécies, o que se
aproxima muito da Física e Biologia. Ademais, as próprias metodologias
científicas da indução foram divulgadas por filósofos ingleses

1.5.3 Filosofia e Religião


A filosofia sempre permaneceu rodeada pela questão religiosa.
Os épicos gregos, com suas mitologias, não deixavam de conceituar
conteúdos religiosos, isto é, as diferentes sortes de relações que
havia entre os homens e seus deuses. Os pré-socráticos, por sua vez,
tomaram por base as ilações anteriores para proceder as mecânicas de
seus pensamentos. O pensador Werner Jaeger considerava a filosofia
pré-socrática como uma verdadeira teologia natural, pois reagia por meio
do pensamento humano para buscar o fundamento último da unidade do
mundo. (JAEGER, 1993, p. 42)

Os socráticos, ao contrário do que se costuma defender, não


eram avessos a Deus ou aos deuses, questionavam antes as estruturas
comumente divulgadas a seu respeito. Arruda Aranha ensina:

28
< voltar

Toda a estrutura teórica da filosofia aristotélica desemboca no


divino, numa teologia. A descrição das relações entre as coisas
leva ao reconhecimento da existência de uma ser superior e
necessário, ou seja, Deus. Porque, se as coisas são contingentes
– não tem em si mesma a razão de sua existência – é preciso
concluir que são produzidas por causas exteriores a elas. Ou
seja, todo ser contingente foi produzido por outro ser, que
também é contingente, assim por diante. Para não ir ao infinito na
sequência de causas, precisa-se admitir uma primeira causa, por
sua vez incausada, um ser necessário (e não contingente). (...)
Esse Primeiro Motor Imóvel (...) é também um puro ato. Segundo
Aristóteles, Deus é Ato Puro, Ser Necessário, Causa Primeira de
todo existente. (ARANHA, 2009, p. 159)

Percebe-se, assim, a intensa vinculação que a filosofia antiga e clássica


tinha com religião. A própria palavra “teologia” como se compreende nos
dias hodiernos13 foi criada por intermédio da linguagem filosófica de Platão
e Aristóteles. Tanto a filosofia patrística quanto a medieval fomentarem
essa parceria. “Platão foi o primeiro a usar a palavra theología. Introduziu-a
na República (II, 379 a) para significar a maneira de apresentar os deuses ao
nível da verdade filosófica.” (COSTA PINTO, 2010, p. 541)

E não se diga que a filosofia moderna e contemporânea rejeitou


tal ligação, pois até mesmo os sequazes14 da visão eminentemente
materialista do cosmos utiliza os referenciais religiosos para proferir
seus ideários e pensamentos, o que não enseja uma separação, antes
o exercício de um diálogo, crítico bem verdade, mas conversacional,
inferindo, destarte, a existência de uma relação.

13 Que existe ou ocorre atualmente; atual, moderno, dos dias de hoje. (Dicionário
eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2009.6).

14 Que ou aquele que segue, que acompanha; que ou aquele que professa as ideias
de um filósofo, as crenças de uma religião. (Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa 2009.6).

29
< voltar

Síntese do Capítulo
Neste capítulo, foi apresentada uma introdução à filosofia, indicando
o que seja essa área do conhecimento humano, pontuando acerca do
nascimento do termo filosofia, que, como visto, indica alguém que procura
o conhecimento, a sabedoria. Percorreu-se, ainda, os mais expressivos
períodos tradicionalmente existentes na filosofia, que pode ser partida em
filosofia antiga (pré-socráticos até o período helenístico); filosofia patrística
(Novo Testamento e sua interpretação pelos pais da Igreja); filosofia do
medievo; filosofia renascentista (redescobrimento de obra dos clássico);
filosofia iluminista (excessivo prezo pela razão e autonomia humana) e
filosofia contemporânea (inicia-se no período mil-oitocentista). Discorreu-
se, outrossim, sobre o início da filosofia a partir dos pré-socráticos e
sua busca pelo arkhé que tomaram emprestadas as estruturas literárias
dos mitos homéricos e hesiodenos para proceder a elaboração de seus
pensamentos. Após o que, foram expostas as paideias gregas existentes:
a homérica (marcada principalmente pelo conceito de kalokhagatia);
a hesiodiana (direcionada para a competência humana); a socrático-
platônica (fundamentada na virtude política) e a aristotélica (prática da
phronesis, isto é, do exercício da prudência e da moderação). Por fim,
foi sublinhada a relação da filosofia com outras áreas do conhecimento
humano: filosofia e mito, filosofia e ciência, filosofia e religião.

30
2. Os Clássicos
< voltar

2. Os Clássicos

Introdução
Nesta etapa do estudo, o aluno terá acesso aos pensamentos dos
filósofos chamados “clássicos”: Sócrates, Platão e Aristóteles. Sócrates
foi o filósofo que procedeu significativa virada no pensamento humano,
deixando de focar na physis para pensar acerca do homo. Já foi visto
que os pré-socráticos – filósofos que precederam a Sócrates – tinham
por objeto destrinchar o mundo natural criado, analisando suas origens
e causas. Platão foi quem fez Sócrates conhecido para o mundo, haja
vista este pensador não ter o costume de escrever suas elucubrações e
pensamentos. Porém, para Platão, isso não foi suficiente, agregou ainda
conceitos importantes para o pensamento filosófico, tal como a categoria
do “ideal”. Por fim, o último dos filósofos clássicos foi Aristóteles, também
conhecido como o estagirita, natural de uma cidade na antiga Macedônia.
Distintamente de Platão, Aristóteles reputava grande importância à
empiria, isto é, à experiência do mundo concreto para a obtenção do
conhecimento. Para ele, o conhecimento advém do que é posto e não
do ideal como propugnava Platão. Aristóteles é também conhecido por
sistematizar o conhecimento, dividindo-o em áreas.

2.1 A Virada Socrática


A figura de Sócrates é de tal tamanho que forjou a periodização da
filosofia em “pré-” e “pós-” socrática. A grande virada da atenção dos homens
para si mesmos aconteceu no momento em que Sócrates leu as seguintes
inscrições no templo de Apolo, localizado na cidade de Delfos: “Conhece-te
a ti mesmo e conhecerá o universo e os deuses”. A partir deste momento,
passou a focar basicamente sua atenção nas questões pertinentes à
humanidade, tais como: a justiça, a beleza, o amor, a amizade. Exatamente,
por isso, o período inaugurado pelo filósofo é também chamado de fase
antropológica, isto é, concernente ao conhecimento do próprio homem.

32
< voltar

Mas como toda mudança gera inicialmente espanto, não foi outra
coisa que aconteceu em relação a Sócrates, que fora acusado de corromper
a juventude e não acreditar nos deuses. Muitas das perseguições movidas
contra o filósofo eram fruto de inveja em relação às atenções sociais que
despertara, sendo frequentemente convidado para celebrações públicas e
eventos festivos particulares.

Com o retorno da democracia, anos depois, a relação do filósofo com


as autoridades não melhorou. Após um libelo15 premeditado e forjado de
blasfêmia contra os deuses, Sócrates foi levado ao tribunal. Infelizmente,
nesta situação específica Sócrates não convenceu seus julgadores, ao
contrário, sua prosa elegante e contundente acirrou ainda mais os ânimos
do júri, após irritar a maioria do júri, dizendo, entre outras coisas, que em
vez de julgado deveria ser declarado herói, Sócrates acabou condenado à
morte. (VIEIRA, 2019, p. 3)

Em seu texto “Apologia a Sócrates”, Platão relata detalhes do


processo movido contra o filósofo, sua defesa e a condenação que sofrera:
compelido a ingerir um cálice contendo um veneno mortal chamado cicuta.
A Grécia perdia, assim, uma de suas figuras mais elevadas. O prezo pela
manutenção do status quo, que pretende de todas as maneiras agrilhoar16
o “novo” em todas as instâncias conduziu à morte um dos maiores homens
de todos os tempos, celebrado como patrono da filosofia.

2.1.1 Humanismo Socrático


O humanismo socrático é a guinada que coloca o homem como
centro do pensamento filosófico. Sócrates centrava suas reflexões nos
problemas humanos. O homem pensava e era pensado ao mesmo tempo.
Enquanto os pré-socráticos buscavam pensar sobre questões a respeito
da natureza, Sócrates estava mais interessado nas atinentes ao ser
humano e às características a ele pertinentes. Acreditava que somente

15 Acusação (‘apresentação escrita ou oral’). (Dicionário eletrônico Houaiss da língua


portuguesa 2009.6).

16 Impor repressão, constranger, reprimir (Dicionário eletrônico Houaiss da língua


portuguesa 2009.6).

33
< voltar

seria possível ao homem alcançar a felicidade se conhecesse um pouco


mais acerca dele mesmo. O que subjaz, portanto, no conceito de Sócrates
acerca da felicidade é que esta seria fruto de algum tipo de conhecimento
sobre si mesmo.

Para o pensador, a grande atenção da filosofia deveria ser para as


questões que permeiam internamente a humanidade e não aquelas que
estão no exterior, na natureza. Os homens, portanto, deveriam, segundo
as exortações do filósofo, disciplinar seus olhos para enxergarem mais
o interno do que o exterior. Os verdadeiros tesouros não poderiam ser
encontrados em regiões estranhas ao próprio homem, mas estava antes
nele próprio, prontos para serem descortinados.

Discordando dos antigos filósofos e poetas, a proposição de


Sócrates vetorizava na direção da necessidade de o homem conhecer a si
mesmo. Antes de querer conhecer a natureza ou querer persuadir outras
pessoas, cada um deveria, primeiro e antes de quaisquer coisas, promover
o autoconhecimento, condição sine qua non para todos os outros
conhecimentos verdadeiros. Exatamente, por isso, o período socrático é
também chamado de antropológico, isso é, voltada para o conhecimento
do homem. (CHAUÍ, 2010, p. 44)

2.1.2 Método Socrático


Método é o caminho a ser trilhado para o alcance de determinado
fim. A palavra é composta de dois radicais gregos: meta e hodós. O
primeiro liga-se ao fato de algo que está além, um final, um objetivo. O
segundo concerne à ideia de caminho, trajeto, trilha. No estrito rigor
etimológico, portanto, método pode ser definido como o desenvolvimento
de algumas etapas necessárias para se alcançar um determinado objetivo.
A metodologia socrática consistia basicamente em dois processos, que
utilizava ao conversar com todas as pessoas, sem distinção de status
social, idade: a ironia, a maiêutica e conceituamentos.

A ironia socrática era um pouco diferente daquilo que se entende por


tal nestes dias. Atualmente, o termo refere-se ao fato de se proferir uma
chacota ou gozação ou fazer um comentário elogioso quando todos sabem

34
< voltar

que a realidade é diametralmente oposta. Em grego, ironia consiste no fato


de se perguntar algo fingindo não conhecer, mas não numa dimensão
vaidosa ou negativa, mas com o objetivo específico de dar início a uma
etapa necessária para o conhecimento. “Diante do oponente, que se diz
conhecedor de determinado assunto, Sócrates afirma inicialmente nada
saber. Com hábeis perguntas, desmonta suas certezas até que reconheçam
a própria ignorância”. (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 152)

Após o reconhecimento de que seu interlocutor não sabia aquilo que


pensava saber, numa dinâmica, portanto, desconstrutiva, que implicava na
destruição da doxa (opinião), Sócrates inicia o processo positiva, ao que
deu o nome de Maiêutica. Esta etapa consistia em fazer brotar de dentro
do interlocutor – como se fazia no processo de parto de uma gestante
– as respostas para os problemas e interrogações postas por meio do
diálogo, buscando, assim, a episteme, isto é, os conceitos verdadeiros,
sem ensiná-los, mas fazendo que o interlocutor o descortinasse.

Saiba Mais

Em grego, significa parto, prática que era desempenhada pela mãe de


Sócrates.

O conceituamento, neste escrito, será tratado como uma das


etapas da metodologia socrática, que pretende definir uma situação ou
característica moral específica, em vez de fornecer exemplos concretos
a respeito. Por exemplo, ao perguntar o que era beleza, geralmente,
os interlocutores respondiam dando exemplo de algo belo, mas ela
não estava perguntando acerca de exemplos, mas de conceitos. Ou
perguntava acerca do que fosse a coragem, ao que alguns poderiam
dizer em resposta: “é um soldado que não foge da batalha”. Mas aqui se
percebe, ainda, que a resposta cita um exemplo e não uma definição de
coragem, pois há soldados que se recolhem da batalha para lutá-la em
melhores condições de vencer, sem que essa fuga, possa ser considerada
como falta de coragem. (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 153)

35
< voltar

Bem verdade, que muitas vezes não se chegava a um consenso


a respeito de um tema específico. Após inúmeros questionamentos
investigativos não eram “paridos” novos conceitos. Aqui tem-se o que se
costumou denominar de aporia, “sem poros”, em grego, para significar
uma questão que não logrou alcançar ser solucionada, não encontrando,
assim, poros, passagem do lugar de ignorância para o de conhecimento.

2.1.3 Sócrates e os Sofistas


As palavras gregas sophos, sophia, costumam ser traduzidas por
“sábio” e “sabedoria”, respectivamente, e foram utilizadas, desde o tempo mais
remotos, para denotar um indivíduo que se diferenciava por sua inteligência,
habilidades intelectuais ou espirituais. Por exemplo, já em Homero, um
construtor de navios experiente era chamado de “experimentado em toda
a sophia”, assim como o deus Apolo era sophos na lira (GUTHRIE, 1991).
Segundo Arruda Aranha e Pires Martis, a palavra quer dizer:
Do grego sophós, sábio, ou melhor, professor de sabedoria.
Posteriormente o termo adquiriu o sentido pejorativo pra
denominar aquele que emprega sofismas, ou seja, alguém que
usa de raciocínio capciosos, de má-fé, com intenção de enganar.
Sóphisma significa ‘sutileza de sofista. (ARANHA, 2009, p. 151)

Os sofistas surgiram na Grécia como educadores que ensinavam a


arte da oratória a fim de defender seus pontos de vista na ecclesia, isto é,
nas assembleias dos cidadãos. O ideal da educação da Grécia clássica já
não é a areté homérica, do bom guerreiro, do herói e valente, mas do bom
cidadão, é a excelência do exercício cívico e citadino. Para isso, os jovens
deveriam ser educados para estarem aptos a exercerem seu respectivo
múnus público colocado em prática, principalmente, quando debatiam
suas ideais nas assembleias públicas (CHAUÍ, 2012). Matar defende:
Os sofistas surgem nesse cenário em que a arte da
argumentação torna-se essencial. Mestres da oratória, eles
ensinam a desenvolver argumentos a favor e contra uma mesma
posição. Viajaram por toda a Grécia, fazendo conferências e
fundando uma forma de ensino itinerante e remunerada. São os
primeiros professores que temos notícia na história, e prezavam
a erudição. Essa nova forma de educação, que se inicia com os

36
< voltar

sofistas, deveria acompanhar o homem desde a infância até a


idade adulta. A dialética, a poética, a linguagem, a retórica e a
gramática ocupam lugar de destaque com os sofistas. (MATAR,
2010, p. 57).

Percebe-se, assim, que os sofistas não estavam muito preocupados


com a verdade em si, pois a considerava relativa, de acordo com a doutrina
de Protágoras, que defendia que o homem é a medida de todas as coisas,
ou seja, o que está posto é que cada homem entende a realidade, dando
sua medida a ela, portanto, a verdade se relativiza na medida em que é
pautado por cada indivíduo. Por outro lado, há quem acredite que eles
foram mal interpretados nos seus conceitos. “Os sofistas sempre foram
mal interpretados por causa das críticas de Sócrates, Platão e Aristóteles”
(ARANHA; MARTINS, 2009, p. 151). Contudo, devido ao que se conhece,
até o momento, é possível que a pecha17 de um grupo que se interessava
mais pelos formatos do discurso e pelo convencimento do que pelas
essências das coisas e suas verdades venha a prevalecer.

Eles fazem parte da época clássica, sendo alguns deles interlocutores


do próprio Sócrates. Os mais conhecidos deles eram: Portágoras, de
Abdera, Górgias, entre outros. Da mesma forma que se observou com
os pré-socráticos, somente sobraram restos dos escritos, fragmentos de
suas obras, feitos pelos filósofos posteriores (ARANHA; MARTINS, 2009,
p. 151). Portanto, o que se conhece deles deve ser analisado com o devido
cuidado haja vista tais peculiaridades.

Distintamente, Sócrates era um defensor da verdade, combatia


dialeticamente com seus interlocutores a fim de descobrir e fazer entender
que opiniões nãos bastam, mas é preciso ter conhecimento sobre os
objetos discutidos. Conforme lembra Gallo:
Em sua prática, Sócrates caminhava pelas ruas de Atenas,
principalmente pela praça do mercado, onde circulava mais
gente, e conversava com as pessoas. Em geral, fazia perguntas
que levavam o interlocutor a cair em contradição, em seguida,
a pensar sobre a inconsistência de sua opinião, inicialmente
considerada certa e verdadeira. Por isso, dizemos que sua prática

17 Defeito moral; vício, falha, imperfeição. (Dicionário eletrônico Houaiss da língua


portuguesa 2009.6).

37
< voltar

era discursiva (baseada na fala) e dialógica (fundamentada no


diálogo). (GALLO, 2014, p. 17).

Neste aspecto, outrossim, já se vislumbra mais uma distância entre


os sofistas e o Grande filósofo. Aqueles eram homens do palco e dos
grandes discursos. Anelavam antes o aplauso da plateia e a vitória no
debate, do que agregavam às pessoas o conhecimento verdadeiro. Tal
situação pode ser contextualizada, na medida em que, atualmente, nas
mídias social, mutatis mutandis, ocorre algo similar, ou seja, as pessoas
não estão preocupadas em ofertar a verdade, muitas vezes somente
opinião, e, pior, não raras vezes estão preocupadas com as curtidas e os
comentário dos seus respectivos posts.

Ao contrário, o anseio de Sócrates era auxiliar a pessoas a


descobrirem a verdade, muito mais do que ganhar uma discussão.
Inclusive, no seu processo maiêutico, Sócrates iniciava a aproximação com
as pessoas colocando-se não como detentor da verdade ou mais sábio
do que elas, mas como alguém que perguntava, interrogava, questionava,
até fingindo muitas vezes não ter o conhecimento que possuía. Neste
aspecto, a abordagem socrática é radicalmente distinta daquela proferida
pelos sofistas.

No estrito rigor, o que os sofistas pregavam é que, como cada um


tem sua verdade, ela é, pois, relativa e não dogmática, não podendo ser
aplicada como regra para todos os homens. De acordo com o magistério
de Chauí (2012, p. 51), pode-se absorver alguns ensinamentos acerca
desta escola filosófica:
Que diziam e faziam os sofistas? Diziam que os ensinamentos dos
filósofos cosmologistas estavam repletos de erros e contradições
e que não tinha utilidade para a vida da pólis. Apresentavam-se
como mestres de oratória ou de retórica, afirmando ser possível
ensinar aos jovens tal arte para que fossem bons cidadãos.
Que arte era essa? A arte da persuasão. Os sofistas ensinavam
técnicas de persuasão para os jovens, que aprendiam a defender
a posição ou opinião A, depois a posição ou opinião contrária,
não A, de modo que, numa assembleia, soubessem ter fortes
argumentos a favor ou contra uma opinião e ganhassem uma
discussão. (CHAUÍ, 2012, p. 51).

38
< voltar

A proposta sofista, percebe-se, era “vitorial”, isto é, o que contava para


os sequazes18 desta escola não era a certeza do argumento, mas a vitória
de uma discussão. Não tinham, assim, preocupação com a veracidade
mas com a “vitoricidade”, o desejo era sair da assembleia com o troféu
argumentativo, de quem conseguiu defender melhor um determinado
ponto de vista, como se estivessem numa partida esportiva, em que
não se importasse seguir as regras mas que a vitória era perseguida a
qualquer custo.

2.2 A Filosofia Platônica


Ao contrário de Sócrates, Platão escreveu sua filosofia. No rigor
mais estrito, escreveu duas filosofias: a de Sócrates e a sua própria,
uma vez que foi Platão o maior divulgador da filosofia socrática. Seus
Diálogos costumam trazer Sócrates como o interlocutor principal e
mais importante, motor propulsor fundamental para sua ocorrência e
engrenagem, abrangendo uma gama substancial e distintos temas.

Ao presenciar o suplício de seu mentor, Sócrates, Platão elabora, em


sua obra, “A república” conceitos acerca do ideal de governantes que um
determinado país deveria produzir. Para ele, a sociedade deveria ser dividida
em classe, competindo aos filósofos a responsabilidade pela governança
da nação. De acordo com sua concepção, para o estado ser gerido de
maneira escorreita19, deveria delegar autoridade ao “reis-filósofos”, pois
este seriam os verdadeiros baluartes da correção, do bem e da justiça,
sendo perfeito instrumento para conduzir a comunidade humana.

Percebe-se, pois, que Platão, certamente por ter visto a democracia


condenar à morte o maior dos filósofos que já existiu, possuía, em
verdade, expressivas reservas em relação ao respectivo sistema político
de governo. Ademais, como membro de um tradicional clã da sociedade

18 Que ou aquele que segue, que acompanha; que ou aquele que professa as ideias
de um filósofo, as crenças de uma religião. (Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa 2009.6).

19 Escorreito: que não tem defeito, falha ou lesão. (Dicionário eletrônico Houaiss da
língua portuguesa 2009.6).

39
< voltar

ateniense, presenciou eventos que despertaram sua desconfiança


em relação ao regime democrático. Defendia, assim, que no lugar da
democracia se instaurasse um governo aristocrático, isto é, operado por
aqueles que eram considerados mais capazes de fazê-lo.

É também na obra “A República” que Platão escreve sua famosa


alegoria conhecida como o “Mito da Caverna”. A história conta a história
de alguns indivíduos que cresceram dentro de uma caverna, não tendo
acesso ao mundo exterior. Tudo que podiam enxergar eram as sombras
projetadas contra a parede que estava diante deles. Estas sombras, na
verdade, eram reflexos projetados do mundo exterior, de tudo aquilo que
passava pela entrada da caverna. O núcleo pedagógico desta história
está no fato de que se alguém se soltasse dos grilões que lhe prendia
e enxergasse a vida como ela é, com suas cores distintas e espaços
abrangentes, e retornasse para a caverna para contar o que vira para os
presos, seria tido por louco. Essa história serve de modelo para Platão
construir posteriormente sua teoria das ideias.

2.2.1 A Academia Platônica


O termo “academia” deriva da alcunha Akademos, nome de um herói
grego que tem suas façanhas narradas nos épicos originais da região.
À época, dava nome a uma localidade situada nos arredores de Atenas,
onde Platão, por meio da herança deixada por seu pai, comprou uma
gleba para dar início ao treinamento de seus discípulos, naquela que mais
tarde fora considerada a primeira Universidade da história. Como as ideias
de seu fundador, a academia platônica possuía viés elitista. Nem todos
possuíam credenciais para pertencer aos seus quadros. Era requerido dos
candidatos, principalmente, que pudessem se sustentar durante todo o
período em que estivessem sendo treinados. Bem verdade, Platão não
cobrava honorários para ministrar as aulas, seguindo as pegadas de seu
mentor, Sócrates, mas não dispensava que todos os alunos tivessem
condições de sustento e autonomia financeira.

Em Atenas, naquele período, o trabalho era considerado um exercício


para as camadas menos austeras do sistema grego. Eram basicamente

40
< voltar

os escravos e a escória social que despendiam seu tempo em tais


misteres20. Os membros das classes mais abastadas nutriam a prática do
“ócio”, que era compreendida de maneira virtuosa. Os homens “ociosos”
eram os privilegiados que tinham tempo para investir nas discussões
políticas e nos estudos. Deste fato, advém o termo “negócio”, composto
de dois termos “nec” (advérbio de negação) e “otium” (folga, férias), que
indicam exatamente os cidadãos que praticavam atividades distintas da
política e dos estudos.

2.2.2 O Mundo das Ideias


Platão foi um dos primeiros pensadores que tentou organizar um
sistema acerca do conhecimento, erigindo um compilado de teorias para
expressar seu pensamento. Uma das categorias que Platão elenca é
exatamente o mundo das ideias, um local imaginário e abstrato em que
todas as coisas que existem no mundo dos sentidos, isto é, o mundo
concreto, lugar onde habitamos e interagimos, tem sua forma ideal.

Para utilizar uma ilustração que facilite a compreensão, é como


se para cada categoria, temas ou objetos que existam no mundo real,
também chamados de fenomênicos, haja um modelo ideal abstrato. Desta
forma, todos os cavalos que existem são uma cópia da imagem de um
cavalo ideal que todos carregam em suas próprias abstrações. Quando
se comenta acerca da justiça, há uma ideia inata presente nos seres
humanos do que seja o ideal de justiça, de onde derivariam os simulacros
presente no mundo concreto.

Para fundamentar sua tese acerca do mundo das ideias, Platão se


instrumentaliza de outra teoria, chamada de “Teoria da Reminiscência”,
elaborando uma série de especulações acerca da origem dos ideais.
Para o filósofo, o espírito dos homens já teria contemplado os modelos
originais de todas as coisas, mas, ao tomar forma humana e se instalar em
um corpo, os indivíduos se esqueceriam de tudo aquilo que contemplara
anteriormente. Contudo, os sentidos, ao detectarem a realidade concreta,

20 Ocupação, serviço, ofício. (Dicionário Aulete Digital. Disponível em: http://www.


aulete.com.br/mister. Acesso em: 15 jul. 2020.

41
< voltar

lembram-se vagamente do que experenciaram no estágio anterior


pré-encarnado.

Ao escrever acerca da “Teoria da Reminiscência”, defendida por


Platão, Aranha e Martins afirmam:
Platão supõe que o puro espirito já teria contemplado o mundo
das ideias, mas tudo se esquece quando se degrada ao se tornar
prisioneiro do corpo, considerado “o túmulo da alma”. Pela teoria
da reminiscência, Platão explica como os sentidos são apenas
a ocasião para despertar na alma as lembranças adormecidas.
Em outras palavras, conhecer é lembrar. (ARANHA, 2009, p.155)

Ora, conhecer é lembrar exatamente porque, segundo a tese


platônica, os humanos conhecem todas as coisas do mundo dos sentidos,
isto é, do mundo concreto, por meio das lembranças dos ideais.

A teoria platônica, neste sentido, defende a ideia de que o mundo


real não passa de uma semelhança, um simulacro do mundo verdadeiro
que está para além da dimensão em que todas as pessoas existem. Na
dimensão do fenômeno, ou seja, do que existe de concreto, todas as coisas
existem em multiplicidade, ao passo que no mundo ideal aproximam-
se do uno. Isso é, por mais variados que sejam as cadeiras, todas elas
derivariam de uma cadeira ideal presente no mundo abstrato.

Saiba Mais

A palavra advém de um termo que significa “o que se apresenta”,


“aparente”.

2.2.3 Platão e o Cristianismo


Sem dúvida, há relações de afinidade entre as doutrinas platônicas e
o cabedal da dogmática cristã. Contudo, distintamente do que se advoga
tradicionalmente, esta relação é menos densa do que se supõe, não sendo
possível defender a ideia de que o cristianismo derivou do platonismo, e
que as teorias cristãs são mormente fruto do filósofo Platão. Pensar desta

42
< voltar

maneira é proclamar a defasagem do melhor entendimento ou da doutrina


platônica ou das ideias defendidas pelo cristianismo. Apesar disso, pode-se
encontrar similitudes não obstante sejam eminentemente tangenciais.

Certamente, tanto o cristianismo quanto o platonismo defendem a


ideia de uma realidade metafísica, no que seja pertinente à existência de
outra forma de realidade, distinta daquela que se percebe por intermédio
dos sentidos humanos. Para Platão, contudo, esta outro dimensão era
uma abstração a que deu o nome de “mundo das ideias”, enquanto para
o cristianismo esta dimensão distinta se manifesta em variadas formas,
tais como a realidade do mundo espiritual, habitado por seres angelicais
e diabólicos e também pela existência do céu, onde os santos habitam
juntamente com Deus.

Ademais, tanto o platonismo quanto o cristianismo advogam


juntamente que o corpo humano carrega em si tônus depreciativo. Uma
espécie de limitador das capacidades humanas. Contudo, neste aspecto,
também, a proposta platônica envereda por vieses distintos da cristã.
Para o cristianismo, o corpo em si nem sempre foi contextualizado
depreciativamente. O corpo original de Adão e Eva era dotado de perfeição.
Além disso, na habitação final dos crentes, todos terão corpo e este não
possuirá quaisquer máculas. Outra distinção é que para os cristãos haverá
um estado futuro metafísico que não terá qualquer relação com o que se
entende por ideal, qual seja a dimensão do inferno.

Por outro lado, a dogmática ortodoxa presente no cristianismo


não contempla a tese defendida por Platão acerca da reminiscência. A
alma das pessoas é formada por Deus no momento da concepção, não
havendo um estado pré-encarnado em que os espíritos humanos fazem
estada antes de passar a habitar em determinado corpo.

Tanto para Platão quanto para o cristianismo, a alma é imortal.


Não obstante, os encaminhamentos que ambas as escolas ensejam
a tal princípios as afastam substancialmente. Para Platão, a alma
imortal reencarna repetidas vezes na existência concreta, tendo, assim,
contemplado, reiteradamente, as características presentes no mundo
das ideias e também no mundo concreto dos sentidos. Em oposição a tal
desdobramento, o cristianismo advoga que a alma é eterna, mas a partir de

43
< voltar

seu nascimento, sem, contudo, poder reencarnar sucessivamente. Desta


forma, o platonismo seria mais semelhante, neste sentido, às doutrinas
percebidas no espiritismo.

Portanto, percebe-se que há semelhanças entre os ideários


platônicos e cristãos, mas que tais paralelas são superficiais e menos
densas do que muitos supõem. Ao se proceder a uma mais expressiva
verticalização no que é defendido por ambas as escolas, aparecem
enormes distinções e antagonismos entre elas, não se podendo proceder
ao diagnóstico de que o cristianismo tenha absorvido a ideologia platônica
para proceder a construção de seus edifícios teológicos.

2.3 Ideias Aristotélicas


Aristóteles, juntamente com Sócrates e Platão, exerceu grande
influência no período clássico da filosofia grega. Suas ideias são festejadas
ainda hoje tanto no Ocidente quanto no Oriente, tendo caminhado numa
direção oposta à do seu antecessor, Platão, principalmente no que
concerne às categorias presentes no “mundo das ideias” platônicas. Para
Aristóteles, os conceitos e definições não poderiam tomar como padrão
uma determinada abstração, mas nascer a partir da realidade concreta,
por meio da situação em que os seres humanos se deparam.

É bastante conhecida a pintura de Rafael Sanzio, denominada


Scuola di Atene, Escola de Atenas, em que se percebe claramente Platão
e Aristóteles, lado a lado, como se tivessem conversando. Enquanto o
primeiro aponta para o alto em referência ao mundo das ideias, Aristóteles
faz referência ao mundo concreto, de onde, segundo toda sua doutrina
filosófica, deve surgir as definições e os conceitos existentes.

44
< voltar

FIGURA 1 – A Escola de Atenas

Legenda: SANZIO, Rafael. A Escola de Atenas, Afresco. Stanza della Segnatura, Vaticano.
#pracegover: representação de um prédio grandioso, com arquitetura grega clássica,
repleto dos filósofos e pensadores mais relevantes na História até aquele momento,
reunidos em grupos, conversando entre si.

2.3.1 Aristóteles e seu Tempo


Aristóteles nasceu na cidade de Estagira, na Macedônia, mas mudou-se
para Atenas, onde foi aluno da academia de Platão desde a idade de 17 anos.
Entretanto, foi além do pensamento de seu tutor, apresentando contrapontos
às doutrinas tradicionais defendidas na academia platônica, mormente
as relacionadas ao idealismo tão festejado entre os estudantes de Platão.
Certamente, por isso, não fora escolhido para suceder o mestre no comando
de sua academia, apesar de ser um dos seus alunos mais ilustres.

Para Aristóteles, a experiência com o mundo concreto era


fundamental para a construção de seu sistema de conhecimento, era a
regra canônica para definir conceitos. Segundo o princípio defendido por
Aristóteles, a verdade não estava acima dos homens, mas a sua volta

45
< voltar

(KIM, 2016, p. 56). Exatamente por acreditar em tais pontos de vista, é


considerado por muitos o pai do conhecimento empírico e da análise.
Pois costumava decompor em partes os elementos complexos, a fim de
separá-los para conhecê-los melhor.

Ele costumava afirmar que era amigo de Platão, mas ainda mais
afeiçoado à verdade. Após a morte de Platão, em 347 a.C., viajou por
diversas regiões, tendo sido contratado para dar aulas para Alexandre,
Magno, filho de Felipe da Macedônia, futuro conquistador que disseminou
a cultura grega por todo o mundo conhecido até o momento. Quando
regressou a Atenas, fundou o Liceu, uma espécie de escola filosófica que
ficava ao lado do templo de Apolo Lício, de onde surgiu o nome do instituto.
O método de estudos praticado no liceu é chamado de peripatético (do
grego peri, “à volta de” e patéo “caminhar”), devido ao fato de os estudantes
caminharem enquanto estudavam. (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 157)

Diferente de seu tutor, Platão, Aristóteles era extremamente metódico


e sistemático, tendo vinculado seu conhecimento ao que se conhece pelos
sentidos, ou seja, a verdade está posta diante de um mundo que somente
se conhece por meio dos sentidos inatos dos homens. As propostas
de Aristóteles modificavam completamente as teorias de Platão, pois
defendia que não se nasce com capacidades inatas, ao contrário, estas
são adquiridas pela experiência.

As teorias do estagirita, como o filósofo também é conhecido, foram


amplamente divulgadas no mundo antigo, haja vista o fato de Aristóteles
ter sido o preceptor de Alexandra, o Grande, líder que conquistou quase
todo o mundo conhecido à época, maior responsável pela disseminação
da cultura grega, processo também conhecido como helenização. Desta
forma, onde a cultura grega se estabelecia, as doutrinas defendidas pelo
filósofo ganhavam perpetuidade.

2.3.2 A Lógica Aristotélica e Silogismo Científico


Como já fora visto, as premissas das ideias platônicas residem,
principalmente, na “Teoria da Reminiscência”, segundo a qual aquilo que
se conhece se faz por meio das lembranças que os indivíduos trazem

46
< voltar

do que presenciaram espiritualmente no estágio pré-encarnado, quando


contemplaram o mundo das ideias. Para Platão, portanto, conhecer não
passa de detectar sobriamente por meio de insigths o que já se sabia.
Por outro lado, as doutrinas aristotélicas destoam radicalmente desses
conceitos. Para o filósofo de Estagira, a origem do conhecimento se
dá a partir dos sentidos e não das lembranças. Partindo das imagens
detectadas pelo mundo sensível, o intelecto elabora conceitos universais.
(ARANHA; MARTINS, 2009, p.157)

Desta forma, como Aristóteles estava convicto de que a verdade está


vinculada ao que se encontra na terra e não numa dimensão metafísica
ultratemporal, ele iniciou um processo de investigação dos seres vivos.
Começou a colecionar espécimes de plantas e animais, classificando-
as de acordo com suas características. A partir daí, montou um tipo de
sistema organizado para efetivar as divisões destes seres vivos em classe.

No processo de classificação de uma espécie, Aristóteles formulou


uma maneira sistemática de lógica que colocou em prática para
demonstrar se pertencia ou não a certas categorias. Por exemplo, uma
característica comum aos animais répteis é o sangue frio. Desta maneira,
se um animal possui em seus veios sangue quente, não poderá ser
classificado como réptil. Da mesma forma, uma característica comum a
todos os mamíferos é que amamentam seus respectivos filhotes. Assim,
se um animal é mamífero, ele amamentará seus filhos (KIM, 2016, p. 62).

Desta maneira, foi sendo construída uma forma lógica para


determinar a qual grupo pertenceria um determinado animal. Aristóteles
observou um padrão uniforme nesta forma de pensamento: três
proposições que consistiam em duas premissas, de onde surgira
logicamente uma conclusão (KIM, 2016, p. 56). Se As=Bs e C=A, então,
C=B. Essa forma de raciocínio é o silogismo, primeiro método formal de
lógica concebido. O mais famoso silogismo existente é o “Silogismo de
Aristóteles”, que infere:

Todos os homens são mortais;

Sócrates é um homem;

Logo: Sócrates é mortal.

47
< voltar

Síntese do Capítulo
Neste capítulo, foi visto a história e as ideias principais dos três
filósofos mais importantes do período clássico, quais sejam: Sócrates,
Platão e Aristóteles. Em relação a Sócrates, estudou-se acerca da virada
de uma escola filosófica que tinha como objeto a natureza para outra cujo
objeto era o próprio homem, bem como a estrutura metódica aplicada pelo
filósofo e sua distinção em comparação aos sofistas. No que diz respeito
a Platão, teceu-se comentário acerca de sua academia e conceitos
que tomavam por base o mundo das ideias, além de aduzir pontos de
encontro e contraste em relação ao cristianismo. Já no que respeita ao
filósofo estagirita, foi tratado sobre as distinções de sua filosofia com
aquela defendida por seu mentor, Platão, bem como sua importância para
o desenvolvimento da lógica.

48
3. A Relação entre a Filosofia
e a Teologia
< voltar

3. A Relação entre a Filosofia e a Teologia

Introdução
A relação entre teologia e a filosofia esteve pareada desde os
inaugurais do conhecimento. Em verdade, a própria filosofia, nalguma
dimensão é filha da teologia admitida lato senso, haja vista os pré-socráticas
partirem das cosmogonias e teogonias dos épicos fantásticos dos poetas
gregos, principalmente Homero e Hesíodo.

Saiba Mais

Para conhecer mais acerca da cosmogonia e teogonia, confira o vídeo


“Cosmogonia e Teogonia: Passagem do Mito ao Logos” do canal
“Semblantes da Filosofia” disponível no YouTube.

Diante deste fato, o imbricamento entre as duas áreas do


conhecimento sempre esteve presente.

Por outro lado, o conhecimento teológico, como admitido


hodiernamente, não se realiza ao arrepio dos conceituas filosóficos,
principalmente no sentido epistemológico. As categorias, classes,
inferências, deduções, induções e sistematizações são produtos
filosóficos, características próprias da filosofia. Os entrelaçamentos das
respectivas matérias não podem ser desvencilhados.

3.1 Fides Quaerens Intellectum


A teologia cristã não pode começar de um prisma distinto da fé. Isso
porque esta é fundamental para entender conceitos e realidades que não
podem ser testadas e provados por meio de experimentos. Não é possível
a existência de um cristianismo que dispense a existência prática da fé.
Ao contrário, segundo Hebreus, capítulo 11:1-3, o autor sagrado escreve:

50
< voltar

Ora, a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas


que não vemos. Pois foi por meio dela que os antigos receberam
bom testemunho. Pela fé entendemos que o universo foi formado
pela palavra de Deus, de modo que o que se vê não foi feito do
que é visível. (Nova Versão Internacional)

Existem definições que não podem ser testificadas utilizando os


conceitos tradicionais das metodologias praticadas, por exemplo, na
ciência, pelo menos neste momento, tais como a realidade do pós-morte,
os milagres e outros movimentos sobrenaturais ocorridos, a existência
de um mundo espiritual ativo e invisível às pessoas. Nada disso pode ser
comprovado pelos homens. E ainda que algumas destas situações um
dia venham a ser desveladas, certamente haverá outras que não o serão.

Em revés oposto, paradoxalmente, no primeiro livro de Pedro, ele


deixa claro que são necessárias, também, explicações a fim de que
pessoas possam entender cada vez mais acerca da esperança trazida
pelo Evangelho:
Antes, santifiquem Cristo como Senhor no coração. Estejam
sempre preparados para responder a qualquer que lhes pedir a
razão da esperança que há em vocês. Contudo, façam isso com
mansidão e respeito, conservando boa consciência, de forma
que os que falam maldosamente contra o bom procedimento de
vocês, porque estão em Cristo, fiquem envergonhados de suas
calúnias. (1 Pe. 3.15-16)

Disso ressai, destarte, a importância de se almejar alcançar um


cristianismo responsivo, isto é, que pretenda oferecer explicações acerca
daquilo que afirma suas doutrinas, respondendo possíveis perguntas
referentes à fé. Se alguma pessoa desejar entender o motivo da esperança
que há para os cristãos, estes devem estar preparados para proferir uma
explicação razoável.

O desejo de penetrar os insondáveis conteúdos divinos, in tontum,


é desafio superior ao possível, porque isto é enormemente superior
à inteligência humana, mas buscar entender aquilo que se crê é uma
possiblidade legítima. A consequência natural da fé é o entendimento
(ROMIO, 2016, p. 32). Bem verdade, frise-se, que o entendimento e a
compreensão acerca de Deus serão sempre parciais, meros quinhões,
nunca sua integralização.

51
< voltar

Como ser semelhante ao Criador, o homem detém habilidades


outorgadas pelo próprio Deus que permitem o crescimento de sua relação
com ele, inclusive do ponto de vista da compreensão racional. Fides
quaerens intellectum foi o lema por meio do qual se fez conhecido um
dos grandes precursores da escolástica, Anselmo de Cantuária.

Saiba Mais

Para conhecer mais acerca de Anselmo, confira o arquivo “Anselmo, de


Cantuária” no “para ir além” na plataforma.

Tangenciando um pouco dos rigores da patrística, assumindo uma


filosofia com mais aderência aos conteúdos aristotélicos, as estruturas
do pensamento racional ganharam maior relevância. A fé de fato é um a
priori, mas pode ser conciliada, satisfatoriamente, com a razão humana, a
fim de que se possa entender melhor o que se acredita.

Há quem entenda, entretanto, que este mote, Fides quaerens


intellectum, (a fé que deseja entendimento) já era doutra forma defendido
por Agostinho, mas certamente a divulgação neste novo molde foi fruto das
ideias do Arcebispo de Cantuária. A fé de fato anseia pela compreensão,
e tal certamente, também, é o intuito de Deus. Fosse diferente, seria
dispensável todos os conteúdos didáticos e pedagógicos consignados no
corpo escriturístico. Isso não importa defender uma assertiva racionalista,
mas a conjunção saudável e equilibrada entre a ratio e a fides.

52
< voltar

Figura 2 – Anselmo de Cantuária

Legenda: Anselmo de Cantuária.


Reprodução. Disponível em:
h t t p : / / w w w. s t a u g u s t i n e s h o u s e .
org/2018/04/21/saint-anselm-of-
canterbury-archbishop/. Acesso em:
10 ago. 2020.

#Pracegover: Imagem em estilo de


vitral, com um homem de barba e
cabelos brancos, segurando um cetro,
com roupas ornamentadas e uma
coroa clerical.

3.1.1 Homem: ser racional e de fé


Não obstante, como imagem e semelhança de Deus, o ser humano
é por essência um ser curioso e racional, anseia pelo descortinamento da
realidade, por explicar racionalmente algumas questões, dando respostas
para os enigmas que lhe são postos. Tal exercício é virtuoso e muitas vezes
frutífero. Bem verdade, que não haverá de responder satisfatoriamente
todos os mistérios pois a capacidade de compreensão humana estará
sempre aquém da grandiosa mente de Deus.

O próprio Deus incentiva a compreensão de seus mistérios bem


como sua divulgação para aqueles que desejam conhecê-lo melhor. Não foi
a esmo que Jesus se fez carne. Tornar-se carne tem relação, também, com
o intuito de promover a facilitação de um diálogo. Ouve-se melhor quem

53
< voltar

estar perto, quem fala a mesma língua, que vive no mesmo lugar, tendo um
sotaque parecido. Quando Deus quis impedir um determinado projeto, fez
com que línguas distintas surgissem. Por isso o projeto da Torre de Babel
não sucedeu satisfatoriamente. Mas quando falou ao mundo por Jesus, de
uma maneira que o povo entendesse, o sucesso foi certo.

No capítulo primeiro do livro de Hebreus, o autor sagrado atesta:


Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias maneiras
aos nossos antepassados por meio dos profetas, mas nestes
últimos dias falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu
herdeiro de todas as coisas e por meio de quem fez o universo.
O Filho é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do
seu ser, sustentando todas as coisas por sua palavra poderosa.
Depois de ter realizado a purificação dos pecados, ele se assentou
à direita da Majestade nas alturas, (Hebreus 1:1-3)

Deus já havia, portanto, é o que ressai da interpretação do trecho


acima, falado de várias maneiras aos antepassados por meio dos profetas,
mas nos últimos tempos falou por meio do filho. Entende-se com isso
que foi uma comunicação mais esclarecedora, a fim de permitir um maior
entendimento. O desejo de Deus é ser compreendido.

O homem possui, ao mesmo tempo duas dimensões, que não


podem ser desassociadas. A primeira é a razão. O homem é um ser que
raciocina, pensa, especula, abstrai. Isso por ser a imagem e semelhança
de seu criador. Diante dessa questão, é natural nutrir o desejo por
conhecer e entender situações nas mais variadas áreas da existência,
inclusive no que respeita às questões vinculadas ao sobrenatural, ao que
está além dos fenômenos do concreto. O homem é eminentemente um
sujeito de crenças e de fé. Raríssimas são as comunidades humanas
confessionalmente ateias. Pode até existir uma política formal nestes
moldes, mas no recôndito social, poucas pessoas defenderão a viabilidade
de tal política.

Ademais, as questões da fé não se relacionam tão somente às


atinentes aos deuses e sua relação com os homens, mas a tudo aquilo
em que se acredita sem ter presenciado realmente. Segundo o ensino de
Hebreus, fé a certeza do que não se vê. Ora, se o oxigênio nunca fora visto
por alguém, para tê-lo como existente, no maior rigor, deve ter fé neste

54
< voltar

fato. Por exemplo, quando alguém informa acerca de algum fato antigo
ou novo que ainda não foi visto, há duas opções, acreditar ou duvidar.
Se os cientistas informassem que acabaram de descobrir um novo
planeta, apesar de ninguém tê-lo visto, sequer um vez, o fato de acreditar
nesta informação importa na efetivação de uma posição de fé naquilo
que os cientistas estão afirmando. Ou quando um médico receita um
medicamento, se está crendo que, mesmo sem conhecer os ingredientes
químicos do mesmo, ainda que não se saiba quais suas ações específicas
e como ele age, ao se consumir o medicamento, se está tendo fé nas
palavras do técnico.

3.1.2 A filosofia como órganon para o teólogo


É muito comum, nos círculos acadêmicos, principalmente entre os
alunos pertencentes aos quadros de teologia, afirmar que a filosofia deve
servir como instrumental para a teologia, como veículo a funcionar para elevar,
à guisa de catapulta, os conceitos teológicos para o alto a fim de aderir maior
visibilidade e clareza. A razão de ser de tal pensamento é a ideia de que, por
tratar diretamente de Deus, a teologia deveria possuir naturalmente uma
esfera de santificação incomparável a qualquer outra matéria.

Como o objeto da teologia cristã é a tentativa de se aproximar do


conhecimento acerca de Deus, mediado por Jesus Cristo, tendo como
maiores instrumentos os livros sagrados e canônicos, considerados
inerrantes, esta não poderia ser comparada com qualquer outra matéria
fruto de pensamentos e especulações humanos. Por outro lado, deve-se
ter o cuidado para esses conceitos não soarem como uma espécie de
pedantismo vinculados ao orgulho que sempre foram desprezados por
Jesus. No Evangelho de Mateus, capítulo de número 20:24-28, está escrito:
Quando os outros dez ouviram isso, ficaram indignados com os
dois irmãos. Jesus os chamou e disse: “Vocês sabem que os
governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes
exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Pelo
contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá
ser servo, e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo; como
o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir
e dar a sua vida em resgate por muitos”.

55
< voltar

Quando se afirma que a filosofia funciona como serva da teologia,


o que se está afirmando de fato é que os conceituais teológicos, de modo
geral, não podem ficar à mercê dos filosóficos. Isso porque a sacralidade
dos seus escritos é também conteúdo de fé, inspirados por Deus conforme
diz o apóstolo Paulo ao escrever a Timóteo. “Toda a Escritura é inspirada
por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a
instrução na justiça,” (2 Tm. 3.16).

Isto é, o que diferenciam os escritos filosóficos daqueles contidos nas


escrituras é que estes têm, na sua formação, veios de sobrenaturalidade.
É, exatamente, este aspecto meta-humano que concede o fato de tal
literatura ser fundamental para a manutenção dos conceitos doutrinários
estabelecidos pela igreja. Não sendo assim, os tais poderiam ser
considerados mais um escrito humano qualquer, podendo ser modificado,
revogado ou negado a qualquer tempo.

Bom salientar que tal economia teológica não tem a finalidade de


preservar uma política de preservação do status quo, como se tal doutrina
tivesse por objetivo engrenar uma defesa desarticulada de uma fé imatura.
Ao contrário, são as próprias escrituras que ensinam os conceitos de sua
derivação divina, como costuma observar em 2 Pedro:1:20-21: “Antes
de mais nada, saibam que nenhuma profecia da Escritura provém de
interpretação pessoal, pois jamais a profecia teve origem na vontade
humana, mas homens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito
Santo.” Tal conceito é ratificado em Mateus 22:29: “Jesus respondeu:
“Vocês estão enganados porque não conhecem as Escrituras nem o poder
de Deus!”. Também em João 17:17, percebe a grandeza das assertivas
bíblicas relacionados com sua singularidade concernentes aos seus
inerrantes conceitos: “Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade.”
E “Jesus respondeu: “Vocês estão enganados porque não conhecem as
Escrituras nem o poder de Deus!” (Mateus 22.29).

3.1.3 O desafio da fé
A fé não é exatamente como um salto no escuro, como alguns já
defenderam. Um salto no escuro, ao modo kierkegaardiano, soa como um
exercício de imprudência, muito mais do que uma operação de fé, algo
que gera medo, sem segurança ou estabilidade. Saltar no escuro não tem

56
< voltar

qualquer relação com a fé, a não ser que este pulo tenha sido fruto de
uma orientação divina. Ai sim, tal conceito poderia se aproximar de uma
fé verdadeira. Caso contrário, poderia ser considerado parecido com a
proposta de Satanás, que desafiou Jesus a se lançar do pináculo do templo.

Não obstante, compreende-se o que o filósofo almejava lecionar. Seu


ensino concerne à necessidade de se acionar desbaseando-se unicamente
no raciocínio humano, fazendo absorção de conteúdos existentes noutros
foros também legítimos. A fé é um atributo presente nas mais variadas
culturas e sociedades. Uma comunidade que não acredita em uma certa
divindade, se existir, pertence ao campo da exceção.

A fé verdadeira tem lastro e fundamento, que reside sobre os pilares


da Palavra de Deus, é um jogar-se de cabeça, não no escuro, mas em
estradas onde há lâmpada para os pés e luz para o caminho, com ensina a
escritura. Saltar onde há promessas de Deus gera paz e descanso. A fé, em
extrema simplificação, é acreditar que aquilo que foi afirmado por Deus é
verdadeiro, ainda que todas as circunstâncias estejam afirmando o inverso.

Na tradição bíblica, um personagem que exemplifica de modo


contundente essa categoria é Noé. Ele acreditou nas palavras de Deus,
num movimento inverso ao praticado por Adão, que ignorou os comandos
divinos para seguir seu próprio entendimento. Noé acreditou mesmo
contra todas as possibilidades, pois um dilúvio naquela região e naquele
tempo era muito pouco provável.

Há quem somente acredite no que pode ser visto, no que pode


ser visualizado, compreendido, concebido, demonstrado. É a lida do
matemático que somente entende que dois mais dois seja quatro. Mas o
que não pode ser explicado, por outro lado, alcança-o também, pois terá
que lidar com o infinito: a não racionalizável dízima periódica.

Saiba Mais

Dízimas periódicas são números decimais em que, a partir de alguma


casa decimal, um algarismo ou grupo de algarismos passa a se repetir
infinitamente. Por exemplo: 0,33333…

57
< voltar

Há conceitos que parecem líquidos e certos, mas que trazem consigo,


ao mesmo tempo, suas próprias interrogações, como a incoerência da
existência de retas em um mundo redondo.

3.2 A Revelação da Verdade


Deus escolheu se revelar. O desejo partiu dele. Não foi algum mestre
ou estudioso que decidiu pesquisá-lo para, daí, fornecer um tratado
acerca de sua natureza, características, atributos, entre outros pontos. Ao
contrário, foi o Senhor que desejou que as pessoas O conhecessem, e,
para isso, elaborou mecanismos para que se fosse possível cumprir o seu
desejo. Não tivesse Deus o intento de que os homens o conhecessem,
certamente jamais o fariam. Trocando em miúdos, Deus deseja se revelar,
fazer-se, portanto, conhecido.

Tal conceito já produz um expressivo imbricamento entre a teologia


e a filosofia, uma vez que o próprio conhecimento é objeto dos estudos
filosóficos. A epistemologia é a área da filosofia que trata acerca do
conhecimento e está presente em toda a tradição filosófica, com seus
problemas que ainda desafiam, na atualidade, importantes pensadores,
que se questionam acerca do que seja possível conhecer.

O conhecimento pode ser definido como o resultado da relação


entre o sujeito que conhece (cognoscente) e o objeto a ser conhecido. O
conhecimento, desta forma, poderia ser definido a partir do exame que o
sujeito faz dos objetos estudados. Bom que se diga que os “objetos” em
questão não são meramente coisas concretas, mas quaisquer realidades
existentes e possível de serem pensadas, como por exemplo: fatos,
fenômenos, seres vivos, e até mesmo Deus.

A teologia é a parte deste conhecimento que pretende inferir ideias e


noções acerca de Deus. Exatamente, por isso, será sempre uma tentativa
ousada, mas sempre frustrada devido à magnanimidade do objeto. Pode-se
possuir, na melhor das hipóteses, porções pequenas de conhecimento
acerca de Deus, mas tais partes são, não obstante, indispensáveis para o
teólogo, pois o próprio Deus anela que os homens tenham conhecimento
acerca de si. Caso contrário, não se revelaria.

58
< voltar

No seu dicionário, Prado e Silva define o termo revelar como


a “divulgação ou declaração de coisa que estava em segredo ou era
ignorada” (1964, p. 198). E não é distinto seu significado teológico. O
Deus absconditus do qual falavam os reformadores é também um Deus
revelatus, isto é, que anseia deixar o esconderijo. Se Deus quisesse manter-
se numa caverna, não teria criado os homens, ao contrário, permaneceria
plenamente satisfeito como estava. Mas ele desejou inaugurar uma
relação. Entretanto, não há relacionamento com quem não se conhece, e
não se conhece quem não se revela.

Por outro lado, Deus poderia muito bem ter formado criaturas
sem estender a elas o privilégio de conhecê-lo, como aquele que pinta
um quadro, mas não está muito preocupado em que a obra venha a
discernir ou ter compreensão acerca do artista. Mas que lições podem
ser absorvidas a partir da ideia de Deus ter feito seus filhos, permitindo
que o compreendessem? Será que existe alguma razão nisso? Seria sinal
para os homens?

Sem dúvida, a arte criada por Deus – o ser humano – era distinta
de qualquer outra forjada. Para aqueles que fez a partir de sua imagem e
semelhança, o criador concebeu atributos semelhantes ao que Ele próprio
possuía, tais como inteligência, pessoalidade, individualidade, liberdade
etc. Sendo uma pequena cópia de Deus, os seres humanos tiveram acesso
às suas características, dentre as quais o conhecimento.

Muitos advogam que o conhecimento somente se tornou integrado


aos seres humanos após a queda. Antes os humanos viveriam num
estágio de completa ignorância, sem percepção da realidade ou do mundo
a sua volta. Tal conceito não se harmoniza com o melhor entendimento
bíblico. No período anterior à queda, Adão já conversava com Deus, o que,
de per si, importa a detenção de uma porção de conhecimento, haja vista
não ser possível a comunicação aberta com seres não pensantes. Sem
pensamento e conhecimento, a linguagem humana restaria inviabilizada.
Além do que, extrai-se do texto de Gênesis, que os humanos entenderam
aquilo que poderia ou não realizar, chegando, inclusive, a proceder
processos de classificação, como no caso de dar nomes aos animais.

59
< voltar

Tudo isso faz perceber que o ser-humano não iniciou seu processo
cognitivo anteriormente ao pecado, mas no momento em que fora criado.
O que o pecado fez foi deformar o entendimento e a liberdade humana. O
que deveria ser claro para o homem, tornou-se embaçado a começar com
a figura de Deus, que poderia ser visto na viração do dia, mas, depois do
pecado, permaneceu à revelia das vistas humanas. O pecado transformou
aquilo que Deus tinha feito “muito bom” em “mais ou menos”. O pecado, na
verdade, misturou pitadas de sujeira na massa pura produzida por Deus.

Guardadas as proporções devidas, é como se o padeiro juntasse à


farinha de trigo, que utiliza para produzir seus pães, um punhado de lama e
algumas pedrinhas. O trigo ainda existe, o pão está feito, mas, aqueles que
o experimentam, percebem não estar tão bom. Ao mesmo tempo em que
supre a fome, sente gostos diferentes, e, algumas vezes, quebra os dentes
devido às pedras que foram misturadas na massa. Foi isso que o pecado
fez com os homens. Da mesma forma que Deus construiu a perfeição, o
diabo fez a imperfeição, ou melhor, incentivou os humanos a construí-la.

Neste curso, a revelação de Deus será dividida em: revelação geral e


revelação especial. A primeira está relacionada com tudo aquilo que foi realizado
por Deus e que pode ser visto no mundo natural, observável nos céus, na terra,
nas leis naturais e até mesmo nas estruturas humanas. Já a revelação especial
é aquela que permite ao homem o conhecimento mais profundo e vertical
de Deus. Por meio dela, as pessoas têm acesso a especificidades acerca de
Deus que não teriam condições de fazê-lo por meio da mera experiência e
observação. Esta distinção será vista nos tópicos seguintes.

3.2.2 Revelação geral


Por revelação geral compreende-se tudo aquilo que se pode conhecer
de Deus por meio da natureza e do mundo criado, sem quaisquer outros
mediadores além da mente humana e sua sensibilidade. Como Deus foi o
criador de todas as coisas, apesar de o mundo criado não ser mais como
o era no tempo que antecedeu ao pecado, ainda se pode perceber os
atributos de Deus a partir da análise de sua obra. Como no exemplo dado
anteriormente, a massa, apesar de agora estar misturada com ‘sujeirinhas’
e ‘pedrinhas’, ainda existe resquícios da parte original.

60
< voltar

Por exemplo, quando se observa a beleza do céu turquesa, as


cores marinhas das águas do mar, recheada de pedras e que promovem
mergulhos deliciosos, as diversas variedades de animais dotados de
características completamente distintas e belas ao mesmo tempo, como
a elegante girafa, o poderoso leão e o hipopótamo, facilmente se percebe
a competência estética do criador. Isso para não se falar da criação do
próprio planeta, do sol e inumeráveis estrelas que pontilham o céu durante
à noite com num show de imagem.

Todos os artistas possuem suas características pessoais e maneiras


de agir próprias. Não se faz necessário ser um profundo conhecedor de
Da Vince para perceber que uma tela foi trabalhada por ele. É discernível
rapidamente que uma escultura foi fruto dos cinzeis de Michelangelo,
pois guardam suas peculiaridades. É assim também em relação a outros
artistas, como os escritores, tomando como exemplo. Um poema de
Castro Alves é completamente diferente do de Fernando Pessoa, que é, por
sua vez, muito diferente do de Vinícius de Moraes ou Mario Quintana. Da
mesma maneira, pode-se contemplar com clareza características de Deus
ao observar aquilo que criou, pois carrega em si as marcas da divindade.

Seja o menor átomo ou a mais distante galáxia, ao serem observadas,


alguma manifestação de Deus poderá ser vista por intermédio delas.
Assim, Deus outorga revelação e testemunho de si mesmo na criação,
provisão contínua, sustento e cuidado de todo o universo, inclusive no
próprio homem. O cosmos como um todo, tanto em suas estruturas como
nos seus respectivos movimentos é um canal de autodesvendamento de
Deus (WILLIAMS, 2011, p. 28).

As próprias escrituras testificam que a criação reverbera a existência


de Deus, sendo, inclusive, instrumento pedagógico para anunciar as obras
de suas mãos, como pode se observar no Salmo 19:
Ao regente do coro: Salmo de Davi. Os céus proclamam a glória
de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um
dia declara isso a outro dia, e uma noite revela conhecimento a
outra noite. Sem discurso, nem palavras; não se ouve a sua voz.
(Salmo 19:1-3).

61
< voltar

O texto elucida que, mesmo sem quaisquer discursos e palavras,


o conhecimento de Deus torna-se revelado por meio das obras de suas
mãos. Seus projetos e empreendimentos testificam acerca dele.

O Novo Testamento não deixa tal ensino escondido, mas insiste no


mesmo diapasão, demonstrando que a criação pode muito ensinar acerca
do criador. O livro de Romanos é de clareza matutina acerca do tema:
“Pois os seus atributos invisíveis, seu eterno poder e divindade, são vistos
claramente desde a criação do mundo e percebidos mediante as coisas
criadas, de modo que esses homens são indesculpáveis;” (Rm. 1:20).
Percebe-se, portanto, que a obra pode muito ensinar acerca do seu autor.

Não é dispensável tratar acerca da forma como o homem se


aproxima desta revelação, uma vez que, ao tornar-se pecador, adquiriu
disfuncionalidade particulares, defeitos inerentes, que dificultam a própria
compreensão das verdades reveladas. No dizer de Williams:
A recepção dessa revelação geral é distorcida e turvada por causa
do pecado do homem. Se as pessoas fossem piedosas e justas,
então certamente o que Deus revela por meio da revelação geral
poderia fornecer uma base para a teologia natural. Mas, uma vez
que se afastaram de Deus, eles não conseguem conhecer Deus
por meio do entendimento natural. (2011, p. 30-31)

Desta forma, devido à Queda, muitos atributos que pertenciam


ao homem tornaram-se maculados, contaminados de defeitos e ruídos.
Exatamente devido a esta novel situação, a cognição humana não alcança
absorver variados ensinamentos.

Contudo, isso não é impeditivo para que, sob a graça e poder de Deus,
os cristãos se esforcem ao máximo para desvendar os mistérios divinos
proclamados por meio do mundo criado, até porque o próprio entendimento
da revelação especial perpassa pela mesma dificuldade, haja vista ser o
exegeta o mesmo homem caído, que não raras vezes infere e conceitua
princípios menos corretos por intermédio da mediação escriturística.

A revelação de Deus por meio do mundo criado é outorgada a


todas as pessoas. Qualquer um pode contemplar a criação e se espantar,
percebendo que não poderia ter sido outro ser além de Deus, o criador
deste mundo incomparável. Certamente, a outra opção que tenta explicar

62
< voltar

a existência de um universo tão incrível, magnânimo e recheado de


diversidade, exige muito mais fé do que acreditar que tudo o que existe
adveio da obra de um Criador primeiro e todo poderoso.

A revelação geral de Deus, que se dá por intermédio daquilo que


se pode observar por meio da natureza, não é menos assertiva do que a
revelação especial, como muitos podem pensar. Em ambas, pode haver
equívocos interpretativos. Fato importante a ser ponderado é que quando
Deus está revelando algo, ele o faz com competência e sem possibilidade
de erros. Isso é, quando Ele se revela na natureza, faz da mesma forma
como se observa nas Escrituras: sem erros. O que difere é, tão somente,
a operacionalidade do intérprete. Talvez, faça-se necessário instrumentos
técnicos e teóricos distintos para discernir a revelação geral da especial,
tais como: utilização da sensibilidade, conhecimento profundo das
ciências, aparelhos tecnológicos, contemplação e oração. Já na revelação
especial, a aparelhagem é um tanto mais literária, sem dispensar, do
mesmo modo, a fundamentalidade das práticas devocionais.

Isso impulsiona o fomento a todo tipo de pesquisa que anseie melhor


desvendar a criação de Deus. Pois, desta forma, mais subsídio se terá
para compreendê-lo melhor. Os cristãos não podem temer conhecer mais
acerca daquilo que fora formado por Deus. O receio pode ser uma espécie
de interrogativa relacionada a própria fé. Bem verdade, que, neste aspecto,
torna-se necessário o conhecimento profundo acerca da temática, com
vistas a não serem enganados por meias verdades ou sofismas. Mas se
deve, por outro lado, estar aberto aos novos conhecimentos filosóficos
e científicos, que, apesar de não ter a força para rasurar as escrituras,
podem servir para a elucidação de pontos ainda incertos ou para fornecer
melhores subsídios para realizações exegéticas.

1.1.1 Revelação especial


Por revelação especial entende-se um determinado tipo de
aproximação divina a fim de conceder aos interessados maiores
detalhamentos acerca de Deus, suas características e atributos, além de
fornecer subsídios para a compreensão de sua relação com os seres-

63
< voltar

humanos. Tais indicadores não poderiam ser diagnosticados por meio da


revelação geral, devido a sua peculiaridade específica.

Diante desta perspectiva, calhou a Deus proferir, por meio das Escrituras
sagradas, movimentos para construção de uma porção de sua biografia
que pudesse ser compreendida pelos discípulos. Isso porque tudo que se
possa apreender de Deus será sempre parcial. Integralmente, somente Ele
se conhece e pode fazê-lo. Por meio da revelação geral, Deus demonstra sua
grandeza, por intermédio da especial ele toma seus filhos no colo.

Uma compreensão completa e total de Deus seria utópica. Por


mais que se conhecesse acerca dele, por mais que se pesquise e se
aprofunde, ainda assim, o ser-humano estará a léguas de distância de
entendê-lo plenamente. Assim diz o apóstolo Paulo: “Porque parcialmente
conhecemos e parcialmente profetizamos; mas, quando vier o que é
completo, então o que é parcial será extinto.”. (1 Cor. 13.9-10). O próprio
autor sagrado, utilizado para, por meio da inspiração divina, manifestar
a revelação de Deus, reconhece que tudo que conhecia acerca de Deus
ainda era bastante miúdo.

Bem verdade que a vontade de Deus é que todos o conheçam


cada vez mais, não se satisfazendo com relacionamentos superficial e
distantes. Oseias, 6:3, declara: “Conheçamos e prossigamos em conhecer
o SENHOR; como o sol nascente, a sua vinda é certa; ele virá a nós
como a chuva, como a primeira chuva que rega a terra.” (Oseias 6:3). Da
mesma forma que os santos continuam a buscar santificar-se apesar da
compreensão de que nunca deixarão de serem pecadores.

As escrituras, mormente os originais, são inerrantes e inspiradas por


Deus em todas as suas partes, mas a interpretação pode sofrer modificações
e mudanças, desde que pautadas em sistemas lícitos de hermenêutica,
ou seja, que leve a sério as categorias citadas anteriormente: inerrância e
inspiração. O que está fechado é o cânon, não a iluminação do Espírito.
Acerca destes pontos, a seção seguinte tratará com mais pormenor.

Portanto, conhecendo as criaturas que formou, almejando dar mais


estabilidade a sua fé, Deus buscou fornecer documentos que fossem
provenientes dele próprio, isto é, inspirados por Ele, a fim de que as

64
< voltar

pessoas pudessem ter a revelação acerca de Deus, pelo menos daquilo


que Ele acreditava ser questões de maior importância. As escrituras são
um compêndio das questões relevantes e importantes, pois se Deus fosse
registrar tudo o que fizera ao longo do tempo, no mundo todo não caberiam
as enciclopédias. O evangelista João afirmou: “Jesus realizou ainda muitas
outras coisas; se elas fossem escritas uma por uma, creio que nem no
mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos.” (João 21:25).

Certamente, o outro motivo que ensejou o processo de documentar


a revelação especial de Deus, ou seja, as Escrituras Sagradas, foi a
capacidade de perpetuação que a linguagem escrita possui. Enquanto
aquilo que é marcado pela oralidade não possui perpetuidade, como reza
o ditado: “quem conta um conto aumenta um ponto”. O que está escrito
permanece. Verba volant scripta manent, (palavras faladas voam para
longe, palavras escritas permanecem).

Isto é, até mesmo por uma política estratégica, a revelação de


Deus foi mantida por escrito, a fim de permitir maior perpetuidade e
permanência às palavras de Deus. Além disso, as inscrições por meio
de palavras consignadas em manuscritos, permitem o acesso a maiores
informações e detalham mais robustamente peculiaridades específicas.

Mas a revelação especial de Deus, isto é, a Bíblia, não é um livro


comum, até mesmo por não ser um livro, mas diversos compêndios
reunidos como numa biblioteca, que possui estilos literários diferentes,
tais como poesia, narrativas, histórias, evangelhos, a relatar eventos do
passado, mas também prever acontecimentos futuros, episódios que ainda
hão de acontecer. Essas características fazem da Bíblia um livro único.

Há quem defenda que a revelação especial fora escrita visando a


um povo único, qual seja: os escolhidos. Afirma Williams:
A revelação especial é, antes de tudo, particular. Deus revela a
si mesmo para um povo específico, o povo que forma a história
bíblica. Deus é conhecido de maneira adequada e verdadeira, não
por meio de um estudo geral da criação, da humanidade e da
história, mas por meio de sua relação com um povo escolhido.
Esse povo de Deus são os filhos de Abraão por descendência
quer natural, quer espiritual.

65
< voltar

Contudo, tal pensamento pode engrenar uma interpretação de que a


revelação especial seria uma espécie distinta da categoria “revelação” e não
é. Tanto a geral quanto a particular fazem parte do mesmo processo de Deus
de pretender se apresentar aos seres humanos, o que distingue é a forma
particular com que os sujeitos vão se comportar ao se deparar com as distintas
formas revelativas. Alguém poderá olhar para o sol e achá-lo grande demais,
quente demais, enquanto o cristão, ao enxergá-lo, percebe a grandiosidade da
criação. Um descrente pode ler uma passagem do Evangelho e dar risada,
outros percebem a sabedoria que subjaz no evento. Portanto, a revelação está
acessível a todos, a compreensão é que é limitada.

3.2.3 Hermenêutica bíblica e a inerrância


A palavra hermenêutica advém de um personagem mitológico grego
chamado Hermes, referente a mercúrio no panteão romano, responsável
por ser o tradutor ou porta-voz dos deuses para os homens. Segundo
Köstenberger: “O termo deriva do deus grego Hermes, arauto e mensageiro
dos outros deuses. Constam do seu currículo habilidades relacionadas ao
comércio, às viagens, à invenção e à eloquência” (2015, p.57).

Isto é, por meio de Hermes, as pessoas tinham “acesso” às


ideias e recados proveniente dos outros deuses, principalmente, Zeus,
considerado o mais poderoso do rol de divindades presentes no panteão
grego. Exatamente por esse motivo, a ciência da interpretação ganhou
o nome de hermenêutica, mecanismo por meio do qual o leitor tem a
oportunidade de conhecer um determinado conteúdo divino.

Nas escrituras, há uma passagem bastante peculiar que ilustra aquilo


que se está afirmando. Um episódio em que Paulo e Barnabé estavam na
cidade de Listra, e, após Paulo ter curado, milagrosamente, um homem
com problemas nos pés, os cidadãos da cidade acreditaram que ele era o
próprio deus Hermes, pois era ele que se comunicava com o povo:
Vendo o que Paulo fizera, as multidões começaram a gritar em
língua licaônica: Os deuses desceram até nós em forma de
homens. A Barnabé chamavam Zeus, e a Paulo, Hermes, pois
era ele quem dirigia a palavra. O sacerdote de Zeus, cujo templo
ficava de frente para a cidade, trouxe para as portas touros e

66
< voltar

coroas de flores e, juntamente com as multidões, queria oferecer-


lhes sacrifícios. (Atos 14.11-13)

Em outras traduções das escrituras, os deuses a que Paulo e


Barnabé foram comparados ganham outros nomes: Mercúrio e Júpiter,
respectivamente, uma vez que estas são as referências romanos dos
deuses gregos: Hermes e Zeus.

Apesar de outras ciências, mormente aquelas que trabalham


diretamente com a interpretação como, por exemplo, as ciências
jurídicas, fazerem a utilização da ferramenta hermenêutica, é na teologia
que a hermenêutica guarda sua maior originalidade, pois por meio desta
ferramenta o fiel discerne quais sejam as ideias e vontades de Deus. Mas
o termo também tem uma relação intimista com a filosofia, já que fora
empregado por Aristóteles na obra “Peri Hermeneias”, uma das mais
antigas peças de filosofia remanescente da tradição europeia que trata do
relacionamento entre linguagem e lógica (KÖSTENBERGER, 2015, p. 57).

A revelação de Deus tem sua importância fundamental, sem ela


não se teria acesso aos substratos pedagógicos provenientes de Deus.
Entretanto, a revelação não cumpre por si só o seu papel, uma vez que
as escrituras necessitam ser compreendidas, como acontece com todos
os conteúdos literários. A revelação mal interpretada pode trazer grandes
malefícios aos cristãos e às igrejas.

C.S Lewis ensina que não poderia haver um tipo de culinária cristã,
no sentido, por exemplo, de uma forma adequada de fritar um ovo de
acordo com o correto conteúdo bíblico (LEWIS, 2019, p. 22). Para fritá-
lo, deve-se tomar o próprio ovo, algumas colheres de óleo ou manteiga,
uma frigideira e fogo. Pronto. Esta é a forma para cristãos e pagãos. Da
mesma maneira, acontece com a hermenêutica. Deve-se analisar os
textos literários canônicos da mesma maneira que se analise outros textos
literários. Precisa-se perquirir o contexto histórico, analisar as figuras de
linguagem, os tipos literários específicos: narrativas, histórias, poesias,
sapiência, os destinatários, a cultura da época etc.

67
< voltar

Figura 3 – Lendo (Reading)

Legenda: FONTE: GRÜTZNER,


Eduard von. Lendo (original:
Reading). 1889. 1 original
de arte: colorida. Nashville,
Tennessee, Estados Unidos.
Coleção: Art in the Christian
Tradition (Vanderbilt University).
Disponível em: http://diglib.
l i b r a r y. v a n d e r b i l t . e d u /
act-imagelink.pl?RC=56044.
Acesso em: 11 ago. 2020.

#Pracegover: A imagem mostra


uma pintura com um homem
barbudo sentado, de semblante
feliz, segurando e lendo um
grande livro.

Há, contudo, a necessidade de se adicionar tão somente um tempero,


qual seja a inerrância. Tudo o que está escrito nas literaturas canônicas foi
realizado sob a inspiração de um Deus, que, por essência, não pode errar.
Portanto, o que foi registrado no consignado bíblico foi fruto da vontade
de Deus e não de mente deste ou daquele escritor. Retirar tal conceito da
hermenêutica bíblica é esvaziar todo o conteúdo do cristianismo. Pois se
há algum conceito não inspirado, como não questionar todo o resto?

Diante disso, assim como a ação do Espírito Santo é de fundamental


importância na inspiração dos autores bíblicos para redigirem o consignado
bíblico, faz-se oportuno salientar a semelhante relevância em relação à
iluminação para que as Escrituras sejam legitimamente compreendidas. De

68
< voltar

outra forma, o ruído no entendimento dos ensinos reunidos na Bíblia pode


prestar um desserviço à comunidade cristã. Para se proceder a compreensão
mais exata possível, necessário se torna a ação de Deus, mas também as
ferramentas científicas que animem e incentivem o bom entendimento.

3.3 Definição de “Palavra de Deus”


Uma das definições mais utilizadas pelos cristãos é “Palavra de
Deus”. Mas será que todos possuem a ideia exata do que ela seja de fato?
Será que a compreensão é precisa? Todos a compreendem da mesma
maneira ou pode estar havendo alguns ruídos de comunicação acerca da
definição? É sobre isso, que se irá tratar nesta seção do texto, a fim de
facilitar a compreensão dos alunos acerca do que seja realmente essa
categoria tão divulgada, mas talvez não muito bem assimilada. Há alguns
significados distintos acerca do termo “Palavra de Deus” encontrado nas
escrituras sagradas. Vale à pena analisar com mais detalhamento os
variados conceituais.

3.3.1 Qual a definição de Palavra de Deus


O termo “Palavra de Deus” é polissêmico, uma vez que pode ser
utilizado para se referir a situações e categorias distintas. A polissemia, por
si só, costuma engendrar ruídos de comunicação, o que é muito comum
quando se menciona um vocábulo que possui significações diferentes.
Não raras vezes, uma expressão é colocada pelo comunicador em um
sentido e entendido em outro sentido pelo interlocutor. Há determinadas
palavras que precisam ser analisadas de acordo com seu contexto, caso
contrário pode haver defeito de comunicação.

Glossário

Adjetivo. Relativo à polissemia; que tem mais de um significado. Quando


referente a algo, significa dizer que este algo pode ter significados
diferentes que estão relacionados ao contexto em que se apresentam e
por quem são falados.

69
< voltar

Por exemplo, se alguém profere a palavra “livro”, todos irão


compreender imediatamente do que se está falando, mesmo que não se faça
uma verticalização mais expressiva acerca do contexto em que a palavra
fora expressa. Por outro lado, se alguém falar “manga”, será necessária a
compreensão do contexto para que o ouvinte possa perceber claramente
do que se está falando, pois há diversos significados para a palavra. Há
“manga” de camisa, há uma fruta chamada “manga” e, ainda, pode-se estar
referindo a um pequeno pedaço de terra, onde pastam os animais.

Muitas discussões foram travadas, historicamente, na filosofia


e na teologia, que não tinham relação com conteúdos específicos, mas
sim devido à utilização que grupos distintos davam a um mesmo termo.
Ou seja, o debate não chegava a um fim, pois eles somente estavam se
referindo a um significante comum, mas cujo significado era diferente.
Exatamente, por isso, não conseguiam se entender mutuamente.

Isso aconteceu com o termo “Palavra de Deus”, que dependendo do


contexto pode estar se referindo a conteúdos distintos. Exatamente por
isso, faz-se necessário, ainda que superficialmente, discernir alguns usos
que as escrituras fazem referente a este termo respectivo, a fim de evitar
ao máximo dificuldades comunicativas.

3.3.2 O Cristo como “A palavra”


O primeiro significado que será analisado acerca do termo “Palavra
de Deus”, encontrado nas escrituras, diz respeito ao Filho de Deus, Jesus
Cristo. Ele é considerado como sendo a “Palavra de Deus”. No começo do
Evangelho de João, Capítulo 1:1-4, como exemplo, está escrito.
No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus,
e era Deus. Ela estava com Deus no princípio. Todas as coisas
foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe
teria sido feito. Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens.

Ou seja, o filho de Deus é a Palavra, pois era Ele quem estava com
Deus no princípio, tendo participado da criação de todas as coisas.
Mas, ainda assim, alguém poderia questionar se esta palavra que está
consignada no texto acima seria mesmo Jesus Cristo, pois não declara

70
< voltar

explicitamente isso. Contudo, mais adiante, no mesmo texto, para não


abrir quaisquer possibilidades de dúvidas, o escritor sagrado afirma:
Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós. Vimos
a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de
graça e de verdade. João dá testemunho dele. Ele exclama: “Este
é aquele de quem eu falei: Aquele que vem depois de mim é
superior a mim, porque já existia antes de mim”. (João 1:14-15)

Ora, diante do trecho sobrescrito, pode-se perceber que João


estava realmente se referindo a Jesus Cristo, pois foi Ele que se tornou
carne e viveu entre os homens, tendo sido acerca dEle que João viera
dar testemunho. Portanto, não parece restar dúvidas acerca de quem o
Apóstolo João estava se referindo.

Esta passagem do Evangelho de João, o contido em Apocalipse


19:13 e, talvez, o texto de 1 João. 1:1, são alguns escritos que se referem a
Jesus como a “Palavra de Deus”. Mas esses não são os significados mais
comuns do termo “Palavra de Deus” (GRUDEM, 1999, p. 23).

3.3.3 As Escrituras como ponto definitivo


Contudo, há outros significados importantes para o termo “Palavra
de Deus” também encontrado nas Escrituras. Por exemplo, quando o
próprio Deus fala emitindo decretos, como no momento da criação:
“Disse Deus: Haja luz; e houve luz” (Gn. 1:3). Ou quando criou o mundo
animal: “Produza a terra seres viventes, conforme a sua espécie: animais
domésticos, répteis e animais selváticos, segunda a sua espécie. E assim
se fez” (Gn. 1:24).

Outras vezes, não significando decretos, mas orientações dadas ao


próprio homem de caráter pessoal. Deus às vezes dialoga com pessoas,
comunicando-se diretamente com elas. Esses casos são exemplos de
“Palavra de Deus” de aplicação pessoal e encontram-se em variadas partes
das Escrituras (GRUDEM, 1999, p. 24). Exemplos disso é encontrado em
Gênesis 2: 16-17: “E o Senhor Deus ordenou ao homem: “Coma livremente
de qualquer árvore do jardim, mas não coma da árvore do conhecimento
do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você
morrerá”. Aqui o próprio Deus fala.

71
< voltar

Entretanto, há também nas escrituras passagens em que Deus


não fala diretamente, mas inspira homens a proferir palavras proféticas,
isto é, advindas da boca do próprio Deus. Frequentemente, Deus chama
profetas para proferir suas mensagens, e embora sejam palavras faladas
por homens, revelam a palavra de Deus (GRUDEM, 1999, p. 25). Como
exemplo, pode-se citar Salmo 46:10: “Parem de lutar! Saibam que eu sou
Deus! Serei exaltado entre as nações, serei exaltado na terra.”

Por fim, o termo “Palavra de Deus” também é utilizado para se referir


às próprias escrituras sagradas, considerada a “Revelação Especial” de
Deus aos homens. Desde os tempos remotos, Deus costumava colocar
suas palavras de forma escrita, como afirma Grudem:
Além das palavras de Deus em forma de decreto, da palavra de
Deus de aplicação pessoal e das palavras de Deus comunicadas
por lábios humanos, também encontramos nas Escrituras
várias situações em que as palavras de Deus são colocadas de
forma escrita. O primeiro exemplo se encontra no relato sobre a
dádiva das duas tábuas de pedra em que foram escritos os Dez
Mandamentos.

Inclusive, este texto escrito por Moisés foi colocado dentro da Arca
da Aliança, que simbolizava a presença de Deus. Isso reflete a íntima
relação existente entre a presença de Deus e sua palavra. A Palavra de
Deus é a maneira por meio da qual os homens o conhecem. Ao retirar e
reduzir sua importância é ao próprio Deus que se está desonrando. Ora,
para se conhecer alguém é necessário que Ele se comunique. Portanto,
sem a comunicação de Deus não se pode conhecê-lo.

Mais adiante, Isaías foi orientado a escrever para deixar registrado


suas palavras para o futuro: “Agora vá, escreva isso numa tabuinha para
eles, registre-o num livro, para que nos dias vindouros seja um testemunho
eterno.” (Is. 30:8). Ao falar com Jeremias, disse Deus: “Assim diz o Senhor,
o Deus de Israel: ‘Escreva num livro todas as palavras que eu lhe falei.”
(Jer. 30:2). Nos Salmos, pode-se contemplar também o ensino acerca das
escrituras como sendo a “Palavra de Deus”: “Guardei no coração a tua
palavra para não pecar contra ti. Bendito sejas, Senhor! Ensina-me os teus
decretos. Com os lábios repito todas as leis que promulgaste. (Salmos
119:11-13). “A tua palavra é lâmpada que ilumina os meus passos e luz

72
< voltar

que clareia o meu caminho. Prometi sob juramento e o cumprirei: vou


obedecer às tuas justas ordenanças.” (Salmos 119:105-106).

No Novo Testamento, o apóstolo Paulo afirma em 1 Cor. 14:37:


“Se alguém pensa que é profeta ou espiritual, reconheça que o que lhes
estou escrevendo é mandamento do Senhor.” Na Primeira Carta de Pedro,
capítulo 1:20-21, está escrito: “Antes de mais nada, saibam que nenhuma
profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois jamais a
profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte
de Deus, impelidos pelo Espírito Santo.”. 2 Timóteo 3:16 diz: “Toda a
Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redargüir,
para corrigir, para instruir em justiça; Para que o homem de Deus seja
perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra.” Estas palavras
são consideradas também “Palavras de Deus”.

Há grande benefício em ter as palavras de Deus por escrito. Em


primeiro lugar, consegue-se preservar com muito mais eficácia aquilo que
Deus disse para as gerações seguintes, o que seria muito mais impreciso se
fosse deixado a cargo da tradição oral. Além disso, se está escrito pode ser
analisado e melhor discernido, a fim de facilitar a compreensão mais exata.
Importante frisar também que os conteúdos literários podem ser repetidos
com mais facilidade e em maior número de vezes, facilitando, assim, sua
absorção. Por último, estando as palavras de Deus registradas por escrito,
haverá possibilidade de alcançar mais pessoas e não meramente aquelas
que a conseguiram memorizar (GRUDEM, 1999, p. 26).

73
< voltar

Síntese do Capítulo
Neste capítulo, foi visto acerca da relação entre a filosofia e a teologia,
imbricamento sempre presente, mas que precisa ser balanceado a fim de
não apagar a revelação de Deus, colocando em seu lugar as ideias dos
homens. A teologia deve se valer da filosofia, como instrumento para a
melhor percepção da fé, uma vez que Deus fez o homem racional, ansioso
por compreender cada vez mais questões relacionadas à fé. A filosofia
é instrumento valioso para a compreensão teológica, mas pode lhe
prestar um desserviço na medida em que se tornar um fim em si mesma,
desprezando a revelação de Deus e a fé.

Glossário

Imbricamento. Sobreposição de algo sobre outra coisa, como as telhas


de um telhado. Representa ter uma ligação entre duas coisas.

Se Deus não desejasse se revelar, os homens não poderiam


conhecê-lo, pois seus caminhos são altos demais para os humanos.
Mas, ao criar o ser-humano, Deus quis que ele o conhecesse. Por tal
motivo, revelou-se, por meio da criação e das escrituras. O termo
teológico técnico para a revelação que Deus faz de si mesmo por
intermédio daquilo que criou, chama-se Revelação Geral, ao passo que
se dá o nome de Revelação Especial à maneira que Deus se revela por
meio das Escrituras: a Palavra de Deus.

74
4. O Teólogo-Filósofo
< voltar

4. O Teólogo-Filósofo

Introdução
Já foi demonstrado ao longo deste estudo, o íntimo relacionamento
entre teologia e filosofia, tendo esta, inclusive, derivado daquela, uma
vez que o piso comum, o gérmen da filosofia inicial se deu a partir das
tentativas de racionalizar os mitos. A partir dos pré-socráticos, passou-se a
buscar a arkhé, a substância primeiro donde teria derivado todas as outras,
o que remonta, também, a busca pela essência primeira, o Uno, gerador da
multiplicidade, que não está à margem dos pensamentos teológicos.

O termo teologia, que significa discurso sobre Deus, não tem sua
criação consignada nas escrituras sagradas. Desde a Antiguidade, foi
usado basicamente com três sentidos: a) mitológico, como nos discursos
homéricos, no qual se fala dos deuses; b) filosófico-cosmológico, passando
a ser usado como equivalente à “filosofia primeira” ou metafísica; c) cultual
público, no sentido do que se diz dos deuses públicos e oficiais. Devido à
origem pagã do termo, os primeiros discípulos não homiziaram sua aberta
utilização, passando, ulteriormente, a ser adotado por Justino, Clemente e
Orígenes, entre outros, tornando-se de uso corrente a partir do século IV para
determinar a doutrina sobre o Deus uno e trino. Na Idade Média, passou a
ter o significado de explicação da revelação divina (ZILLES, p. 107, 2013).

Em Sócrates e Platão, percebe-se também que elucubrações


relacionadas às divindades marcaram de cores intensas seus
pensamentos. Sócrates, como explicitado por Platão em sua “Apologia
a Sócrates”, acreditava na imortalidade da alma humana, o que, de
per si, invoca questões também teológicas. Além disso, falava acerca
dos “demônios”, afirmando que se acreditava neles, que seriam filhos
ilegítimos dos deuses, consequentemente, cria neles. Em Platão, o “Mundo
das Ideias” ou “Teoria das Formas”, vinculava, outrossim, a filosofia com
a teologia. A teologia agostiniana, no mesmo ritmo, foi intensamente
marcada pela filosofia de Plotino, neo-platonista. Tais ocorrência clareiam
a constante parceria entre esses dois ramos do conhecimento.

76
< voltar

Diante disso, soa bastante razoável acreditar na viabilidade do


relacionamento entre teologia e filosofia, casamento que pode dar certo,
tendo alguns pressupostos em mente. Neste capítulo, é analisada a figura
do teólogo-filósofo, pontuando acerca de suas respectivas motivações,
objetivos e desafios, que são naturalmente enfrentados por todos aqueles
que anseiam por conhecer mais a Deus e sua vontade, fazendo uso da fé
e da razão para a concretização de seu intento. Pois a fé é fundamental,
mas a razão é necessária.

Sem fé é impossível agradar a Deus (cf. Hb. 11.6), mas as Escrituras


também incentivam a explicação da fé aos incrédulos, como testifica
1 Pedro 3:15: “Antes, santificai ao Senhor Deus em vossos corações;
e estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a
qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós,”. Ou seja,
a instrumentalização da razão para a explicação da fé cristã não pode
jamais ser negligenciada.

4.1 Motivações
As escrituras sagradas animam os cristãos a procederem a
construção de pontes entre a fé e a razão. Os seres humanos são por
inerência seres racionais, distintos das plantas e dos animais. Os homens
e mulheres foram criados como imagem e semelhança de um Deus que
raciocina. Portanto, o relacionamento entre Deus e os homens não pode
estar à margem dos signos de racionalidade. Isso pode acontecer, talvez,
no relacionamento entre Deus e os animais ou entre Deus e os outros
seres vivos, se é que essa relação existe de alguma forma. O que está
claro é que Deus cuida e protege de todo ecossistema.

Mas ao se relacionar com pessoas dotadas de racionalidade, a


divindade não se esquiva em levar a sério tal característica. O contrário
seria como se alguém quisesse cair no mar e não se molhar. Ora, o mar é
naturalmente composto de água, que, normalmente, molha. Ou como se
alguém quisesse ter um cachorro em sua casa mas não tivesse que se
relacionar com o fato de que precisará alimentá-lo, percebê-lo por perto e
sentir seu cheiro. A racionalidade faz parte do ser humano. Deus o fez dessa

77
< voltar

maneira, e se relacionará com ele levando tal característica em consideração.

Infelizmente, muitos interpretam o relacionamento entre fé e razão


de modo depreciativo. Como se a razão pudesse causar uma redução da
fé. Mas, ao contrário, a razão não diminui a fé, mas a exalta, pois não
existiria fé sem que houvesse razão. Caso se pedisse a um animal para
ter fé, isso se tornaria inviável, haja vista não possuir padrão racional a ser
negado, em determinada proporção, para adotar uma atitude de fé. Ou
seja, nalguma dimensão, a fé não pode existir sem a razão. Ao contrário, a
fé precisa da razão para também existir.

No entanto, entende-se o receio de alguns teólogos em relação ao


relacionamento entre fé e razão. Esse temor existe pelo fato de muitos
idolatrarem o racional em detrimento do sobrenatural e da fé. Isto é, ao
exaltarem a dimensão racional da realidade, terminam por subdimensionar
o outro aspecto tão importante da fé. Essa atitude foi bastante comum em
variados períodos da história da igreja, inclusive esteve presente também
entre os próprios apóstolos, como relata o evangelista João:
Tomé, chamado Dídimo, um dos Doze, não estava com os
discípulos quando Jesus apareceu. Os outros discípulos lhe
disseram: “Vimos o Senhor! “ Mas ele lhes disse: “Se eu não vir
as marcas dos pregos nas suas mãos, não colocar o meu dedo
onde estavam os pregos e não puser a minha mão no seu lado,
não crerei”. Uma semana mais tarde, os seus discípulos estavam
outra vez ali, e Tomé com eles. Apesar de estarem trancadas as
portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: “Paz seja
com vocês! “ E Jesus disse a Tomé: “Coloque o seu dedo aqui;
veja as minhas mãos. Estenda a mão e coloque-a no meu lado.
Pare de duvidar e creia”. Disse-lhe Tomé: “Senhor meu e Deus
meu! “ Então Jesus lhe disse: “Porque me viu, você creu? Felizes
os que não viram e creram”. (Jo. 20:24-29)

No excerto acima, percebe-se um caso típico em que a razão


sobrepujou a fé. Essa atitude deve ser rechaçada como o próprio Jesus
ensinou. Mas isso não retira a viabilidade de uma relação harmônica entre
ambas as categorias, que podem conviver em saudável harmonia.

Nas questões mais básicas da teologia há necessidade do aspecto


racional. Jesus, por exemplo, é um homem histórico, no sentido de ter
vivido neste mundo, com carne humana, tendo falado a língua dos homens

78
< voltar

daquela região. Certamente, ele utilizava o aramaico para se comunicar.


Por que será que ele não utilizou o português? Certamente, devido ao fato
de não existir ainda como língua separada do latim. Contudo, se falasse
um idioma que não fosse compreendido, sua vida e ensinamentos não
fariam sentido. Ou seja, Jesus precisava utilizar o sistema racional do
homem, que Ele mesmo criou, a fim de cumprir os seus propósitos.

No mesmo diapasão, pode-se perceber que se conhece a vida de


Jesus por meio dos escritos sagrados. As escrituras testificam a seu
respeito. Os sessenta e seis livros contidos na Bíblia Sagrada relatam
acerca de Deus e suas ações. Não seria possível compreender a própria
literatura sagrada não fossem os processos racionais empregados para
decifrar os códigos e sinais alfabéticos. Portanto, resta-se esclarecido
o fato de que a razão é indispensável para a cognição em relação ao
divino. O defeito que se relaciona ao tema concerne não ao processo de
convivência saudável entre fé e razão, mas a perpetuação de elaborações
de sobreposição da razão sobre a fé.

4.1.1 Compreensão dos pressupostos geracionais


O teólogo-filósofo não pode deixar de dar atenção ao cotidiano
natural da vida. É nesta seara que opera o seu labor pensante. Ele trilha sua
existência no mundo concreto, para onde deve manter focado um dos seus
olhos. Ao passo que o outro deve se manter direcionado para as Escrituras,
o instrumento pedagógico por excelência do cristão. Agostinho falava
acerca de dois mundos: a cidade de Deus e a dos homens (AGOSTINHO,
1996). Neste limiar, o cristão passa sua existência, relacionando-se com
ambas as estruturas e mecânicas ao mesmo tempo.

Desta forma, o teólogo-filósofo é convocado para se estabelecer como


arauto a fornecer respostas para sua geração. Muitos engrenam discussões
pretendendo elucidar o que não está sendo perguntado, elaborando tratados
que vão ao encontro de uma necessidade específica não de sua geração,
mas das anteriores. Não que isso seja inviável. Importantes contribuições
podem ser ofertadas, agregando ao discutido anteriormente, mas parece
que maior relevância deve ter o que está na agenda atual. Pois o cristianismo
é sempre divulgado para uma geração específica.

79
< voltar

A pauta principal do teólogo-filósofo não pode ficar reduzida aos


conteúdos fossilizados na história. Mas deve avançar àqueles que são
trazidos à baila pela geração atual. Para cada geração, um novo pensador
deve surgir. Isso não desemboca, contudo, na construção de novos
pensamentos, mas numa nova forma de proceder aos antigos, a fim de
que se ganhe relevância para a geração atual.

Bom frisar, inobstante, que não se processa respostas sem se


conhecer as perguntas, e não se tem acesso com clareza às perguntas
sem a compreensão mais exata sobre os pressupostos erigidos nos mais
variados âmbitos: filosóficos, sociais, econômicos, políticos, teológicos.
Cada geração tem os seus pressupostos por meio do qual procede a
interpretação do que se é posto. Desta forma, não entendendo os a priori
não se poderá compreender eficazmente as perguntas realizadas nem se
processar respostas adequadas.

Glossário

Inobstante. Não obstante, apesar de, ainda que. Exemplo: o julgamento,


inobstante pedido de transferência, será firmado apenas por advogados
de uma das partes.

Os pressupostos são como óculos por meio do qual as pessoas


leem determinadas realidades. Talvez, a ilustração dos óculos não seja a
melhor, uma vez que os óculos costumam trazer uma visão mais acurada
àqueles que os utilizam. Melhor seria considerar os pressupostos como
concepções prévias, como alguém que acaba de conhecer uma pessoa,
tendo antes somente escutado falar a seu respeito. Assim, todo processo
de abordagem deste novel relacionamento, até que se prove contrário,
terá sido construído pelos comentários anteriores, isto é, os pressupostos
que foram colocados antes da relação em si.

80
< voltar

O teólogo-filósofo necessita compreender que muito daquilo que ele


sabe não passa de informações que foram divulgadas anteriormente por
algum ente. Isso porque alguns conceitos são tão divulgados e populares
que não há como discernir com acuidade a fonte donde proveio. São
os conceitos geracionais, que faz parte da ideologia corrente em uma
determinada época. E cada teólogo-filósofo deve compreender este fato,
mas não se submeter automaticamente a tais pressupostos. Antes, deve
ter a coragem de analisar até mesmo os pressupostos para detectar se
estão ou não de acordo com os ensinos das escrituras, pois a Revelação
Especial de Deus não está nos postulados de uma determinada geração,
antes nas sagradas escrituras.

4.1.2 Facilitação do processo apologético


A apologética pode ser compreendida como processo por meio do
qual se defende alguma coisa. Na teologia, teve seu nascimento com os
pais apologetas, cristãos que defendia sua fé diante de variadas filosofias
em voga no seu tempo. Dentre eles, pode-se citar Justino que escreveu
diversas obras focadas em defender o cristianismo, entre as quais
destacam-se suas “Apologias”.

Já foi dito que não se consegue vencer um determinado inimigo


que não se conhece. O primeiro passo para alguém ser bem-sucedido
numa determinada batalha é ter acesso às estratégias dos adversários,
conhecendo melhor seus movimentos de ataque e mecanismos de
defesa. Exatamente por tal motivo, alguns países fazem uso do espião,
indivíduo cujo foco é acessar informações confidenciais de um país para
entregar ao outro.

Como todos os cristãos são chamados nalguma proporção a


explicar as razões de sua fé, como salienta o Apóstolo Pedro: “Antes,
santificai ao Senhor Deus em vossos corações; e estai sempre preparados
para responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão
da esperança que há em vós,” (1 Pedro 3:15), todos os discípulos precisam,
além de conhecer as doutrinas básicas do cristianismo, ter ciência das
filosofias que são contrárias a sua fé. Com isso, sua resposta será mais

81
< voltar

efetiva e persuasiva, uma vez que conhece os ensinos antagônicos, e,


também, aqueles que corroboram sua tese de defesa.

Zilles defende de maneira aguçada a motivação para que os cristãos


se enveredem de maneira mais efetiva no conhecimento filosófico. Afirma:
Os cristãos têm uma mensagem a transmitir aos que ainda não
são cristãos. Para isso os padres perceberam a necessidade de
existir uma comunidade de linguagem entre cristãos e pagãos.
Logo os evangelizadores tomaram consciência de que, no
mundo pagão, não havia apenas idolatria, mas também um
verdadeiro desejo de Deus, “sementes de verdade”. Justino de
Roma (100-165), natural da Palestina, no Diálogo com o judeu
Trifão, afirma que, “de fato, a filosofia é o maior e o mais precioso
bem diante de Deus, para o qual somente ela nos conduz e
nos associa. Na verdade, santos são aqueles que consagram à
filosofia a própria A teologia busca palavras e razões na filosofia. A
filosofia grega passou a ser vista como um rebento da sabedoria.
Enfim, tudo isso porque sobre um fundo de racionalidade comum,
é possível o diálogo entre o filósofo e o teólogo, definindo-se o
último por sua maior sabedoria (2013, p. 114-115)

A possibilidade de convencer por meio da razão aos seus


questionadores deve servir de grande incentivo e motivação para que o
discípulo possa estudar as ideias e filosofias vigentes e aquelas que foram
festejadas no passado. Isso porque as filosofias costumam ser retomadas
constantemente em outras roupagens. Algumas novidades não são tão
novas assim, podendo ser um recauchutamento de pensamentos antigos.
Desta maneira, ao conhecer as fontes de onde derivaram algumas ideias,
mais claro restará o conceito sob discussão, e, portanto, mais efetiva será
a defesa que fará de sua respectiva fé cristã.

4.1.3 Robustecimento da fé pessoal


Ademais, não se pode deixar de salientar que o conhecimento da
filosofia desenvolverá o robustecimento da fé pessoal do estudioso. O cristão
verdadeiro não tem medo de discutir, pois sua convicção é inabalável. Ele
sabe que Deus é o Deus da verdade, e todas as coisas que são verdadeiras
pertencem a Ele. Ao tomar conhecimento da filosofia, principalmente de
sua história, etapas, mudanças e retomadas, perceberá que a matéria

82
< voltar

possui pontos fortes mas também áreas recheadas de fragilidade. Verá que
muitos filósofos se contradisseram e que as muitas novidades filosóficas
não passam de um conteúdo semelhantes em novas cores.

Desta forma, entenderá que a filosofia variou ao longo do tempo de


acordo com seus respectivos pensadores, e que não é tão seguro colocar
sua confiança na falha percepção humana. É muito mais seguro acreditar
na revelação de Deus entregue por meio de homens inspirados por Ele, do
que nas inspirações humanas dadas à revelia dos comandos divinos. Ao
perceber as enormes contradições e a gama variada de escolas presentes
na filosofia, o estudante verá que é preciso mais fé para acreditar nelas do
que a necessária para crer nos escritos sagrados.

Glossário

Revelia. Vem do mesmo significado de rebeldia. Ato contrário.

Isso não importa afirmar que não haja espaço para a utilização da
filosofia no âmbito teológico, muito pelo contrário. Como matéria que
anela buscar a verdade, muitos insumos poderão fornecer ao estudo
teológico. A partir de seus conceitos e ideias, a filosofia pode até mesmo
elucidar ou retificar pontos que pareciam completamente resolvidos na
teologia. Mas, para isso, estas ideias precisam estar em harmonia com as
escrituras, e muitas vezes estão, mas os pressupostos que foram sendo
construídos pela teologia normal, isto é, a tradicional, ofuscou a verdade,
agora elucidada corajosamente pela filosofia.
O estudante também verá que muitas ideias presentes na filosofia
apoiam a existência de um Deus maior e até mesmo do Deus cristão,
além de perceber que muitas visões filosóficas contrárias ao que advoga
o cristianismo foram eficazmente contestadas por outros filósofos. Isso,
por outro lado, não importa afirmar que o teólogo terá respostas claras
para todas as questões ou poderá elucidar definitivamente cada debate,
pois muitas vezes deverá ter a humildade necessária para afirmar “não

83
< voltar

sei”, “ainda não entendo”, enfrentando os paradoxos e aporias com


tranquilidade. O estudo da filosofia dará mais força à fé daquele que já a
tem, mas pode tirar o lampejo efêmero da psuedo fé que resta em alguns.

Glossário

Situação sem solução, contradição insolúvel.

Todas estas questões irão lançar o teólogo para mais perto de Deus,
fazendo-o crer de maneira mais consistente naquilo que a Bíblia afirma. É
lançando o guerreiro no combate que ele sairá mais forte e preparado. A
filosofia é um instrumento que pode ser muito útil para o desenvolvimento
da fé, pois, teoricamente, seu objeto é a verdade. Essa parceria pode
muito bem dar certo se houver divisões corretas de competências entre
os objetos sobre os quais tem responsabilidade de falar com autoridade.

4.2 Desafios
Não se pode ser ingênuo a ponto de acreditar que a relação da
teologia com a filosofia não pode ser nalgumas situações bastante
complicada, como já visto anteriormente. Mas não é por isso que seja
inviabilizada. O mundo é recheado de complexidades e paradoxos. A
existência de desafios não torna um empreendimento impossível. Fosse
assim nada poderia ser feito na vida, pois em todas as matérias humanas
os pontos mais comuns são os dilemas e as dificuldades.

Um punhado de filosofia pode até colocar alguns pontos de


interrogação na teologia, mas sua porção abundante somente prova os
postulados consignados nas escrituras, demonstrando que, em verdade,
a Bíblia tem razão em tudo o que ensina. Isso dará ainda mais fundamento
para a fé pessoal do estudante, que perceberá a validade e inteireza
daquilo em que colocou sua confiança, animando-o a perseverar firme no
seu chamado específico.

84
< voltar

Glossário

Postulados é o plural de postulado. O mesmo que: premissas, axiomas,


máximas. Princípio ou fato não demonstrado que se admite como
verdadeiro.

É claro que existe o risco de, ao se tomar contato com a filosofia,


deixar-se persuadir por uma escola específica, ou seja, pelos punhados
filosóficos da “filosofia pequena” sem se aprofundar em distintas vertentes
e outras variantes. Mas as conquistas são precedidas pelas guerras e
riscos. O incentivo a uma fé isolada ou enclausurada no seio dos dogmas
eclesiais, que não se dá ao que é externo e contrário ao que defende
o cristianismo, não discutindo publicamente com os pensamentos
diferentes, pode até ser mais seguro, mas certamente será mais frágil.

Mas é a religião que precisa de segurança não os cristãos. Estes


estão convictos pois sabem em quem tem crido, como ensina o apóstolo
Paulo ao escrever ao seu discípulo Timóteo:
Por essa causa também sofro, mas não me envergonho, porque
sei em quem tenho crido e estou bem certo de que ele é poderoso
para guardar o meu depósito até aquele dia. Retenha, com fé e
amor em Cristo Jesus, o modelo da sã doutrina que você ouviu
de mim. (2 Tm. 1:12-13)

Os cristãos estão convencidos de que seguem ao Cristo, filho de


Deus, Senhor da vida. Por isso, tornam-se inabaláveis em seus conceitos.
E com o Espírito no coração, a boa filosofia na mente e a Bíblia na mão,
pode convencer com elegância, gentileza, respeito e educação aqueles
que requisitarem a motivação de sua fé.

4.2.1 Idolatria da razão


Sem dúvida, um dos grandes inimigos da fé cristã é o
superdimensionamento da razão. Entenda-se que não seja a razão em
si mesma, instrumento outorgado por Deus para ser utilizado de modo

85
< voltar

saudável pelas pessoas. Geralmente, as dificuldades surgem do exagero.


Não é à toa que a moderação é considerada a rainha das virtudes. Tudo
em demasia é demasiadamente ruim. Ou como reza o ditado popular:
“Tudo demais é sobra.”

A razão é de suma utilidade para os homens. É atributo advindo


da divindade. Utiliza-se a razão para se fazer o manuseio da linguagem,
para a compreensão dos signos literários, para absorção de conceitos e
definições, para se relacionar em diversos aspectos da vida. Uma vida
irracional, isto é, destituída de uma maior atenção à racionalidade, no
mínimo, não poderia ser considerada humana. Poderia muito bem fazer
parte de outras espécimes de seres vivos, mas jamais seria legitimamente
empregado para os homens e as mulheres.

Contudo, o exagero sempre descamba para a idolatria e o pecado.


Dependendo da posologia, uma droga pode se tornar remédio que cura ou
entorpecente, que, no extremo, pode até matar. A morfina, por exemplo,
aplicada no tempo e doses certas, pode servir como instrumento divino,
que cura as dores mais forte, mas se utilizada intempestivamente e em
doses exageradas pode causar males.

Glossário

Intempestivamente. De maneira intempestiva; que está fora do tempo


próprio: saiu intempestivamente daquela festa.

O mal costuma ser o excesso em relação a algo que moderadamente


até poderia ser considerado legítimo, senão perceba-se: o que é o orgulho
além da excessiva alto-estima? O que é a glutonaria senão o uso exagerado
de alimento, fundamental para a saúde humana? O que é a avareza senão
o desejo exagerado pelo acúmulo de alguns recursos que todos precisam
para sobreviver dignamente?

Ao comentar acerca deste tema C. S. Lewis, importante literato e


dramaturgo inglês, afirma:

86
< voltar

Prazer, dinheiro, poder e segurança são, em essência, coisas boas.


A maldade consiste em persegui-las usando o método errado, ou
da forma errada, ou com muita intensidade. O que quero dizer
é que uma maldade, se você a examinar de perto, acaba se
revelando como a busca por algum bem, mas da maneira errada.
Chamamos uma perversão sexual de sadismo; mas é preciso ter
primeiro a ideia de uma sexualidade normal antes de poder falar
dela como perversão; e você pode ver qual é a perversão porque
pode explicá-la a partir da normalidade. Para ser mau, é preciso
desejar coisas boas, e, depois, persegui-las da forma errada:
haver a ocorrência de impulsos que foram originalmente bons
para estar em condições de pervertê-los. (LEWIS, 2017, p. 76-77)

Da mesma forma, utilizando o mesmo princípio, é o que acontece


com a razão, que, em si, é um presente de Deus para os seres humanos,
mas se ela mesma torna-se uma espécie de deusa entronizada no panteão
social, pode acontecer processos disfuncionais.

4.2.2 Humildade teológica


A palavra humildade teve um caminho interessante até chegar ao
significado atual. Os romanos empregavam principalmente dois vocábulos
para designar a terra ou o solo: tellus e humus. O primeiro chegou até nós
apenas por via erudita, através do adjetivo telúrico, enquanto o segundo,
humus, deu origem à palavra portuguesa correlata: húmus. Do termo humus
provém o adjetivo humĭlis, que, em latim, designava aquilo que estivesse
perto do solo ou, por extensão de sentido, tudo o que tivesse pouca altura.
Servia para qualificar pessoas, animais, plantas e qualquer objeto. No
português, deram ensejo aos adjetivos húmile e húmil, hoje cultismos.
Doutra sorte, humilis, em latim, gerou também a palavra humilĭtas, que
quer dizer pouca altura, pequeno. (NEVES, 2017, sem página).

A teologia certamente é a área do conhecimento que mais deveria


se portar com humildade, haja vista estar constantemente diante de um
objeto de grande complexidade, não comparável a quaisquer outros.
O teólogo, portanto, deve caminhar em perene genuflexão, pedindo a
Deus que o ilumine e permita compreender eficazmente sua revelação.
Não pode ser outra a postura regular de alguém que almeja proceder a
estudos relacionados a Deus. Os temas celestiais não são descortinados

87
< voltar

pela inteligência humana, mas pela graça do Estudado, que permite aos
homens diagnosticar tópicos a seu respeito.

Glossário

Genuflexão. Ação de dobrar o joelho ou os joelhos, de ajoelhar. Em


algumas igrejas ainda é comum haver um móvel de madeira geralmente
acolchoado chamado de genuflexório, utilizado na realização de
casamentos, onde os noivos ajoelham.

O teólogo não pode deixar a compreensão de que está diante de um


objeto inatingível, que nunca poderá ser descortinado por completo, que
será sempre mais do que se pode imaginar, terá sempre mais atributos dos
já atribuídos, mais características do que as já discriminadas. A teologia
é sempre uma tentativa frustrada pelo descobrimento completo. Não
obstante, pode-se absorver os parciais, as parcelas permitidas, as porções
reveladas. Ou seja, querendo o todo, achar-se-á sempre pequenas partes
que, por si só, já são por demais grandiosas e preciosas. É como a alegria da
falência vitoriosa do astronauta, que, pesquisando novas galáxias, termina
por encontrar um novo planeta. E isso não é menos que um mundo.

Não raras vezes, o estudante de teologia irá se aprofundar em


assuntos ignorado por muito, temas não muito comuns aos cristãos
regulares, e tal pode se transformar em instrumento de orgulho, o que
costuma prejudicá-lo grandemente. O livro de Provérbio afirma: O orgulho
vem antes da destruição; o espírito altivo, antes da queda.” (Prov. 16.18).
O teólogo que deseja fugir de tais perigos deve caminhar de joelhos, a fim
de que Cristo permaneça de pé dentro dele.

4.2.3 Manutenção da filosofia como serva da teologia


O estudo da filosofia é viável e lícito, pois muitos filósofos encontraram
porções da verdade em suas respectivas especulações. Mas como afirma
Thomás de Aquino, o teólogo não recorre à filosofia por ela mesma, haja

88
< voltar

vista existir um vínculo de subordinação da filosofia à teologia. Esta deve


sempre emitir as ordens (AQUINO, Apud ZILLES, 2013, p. 117). Ou seja,
mesmo o teólogo escolástico que utilizou de maneira pródiga a estrutura
teórica de Aristóteles, considerou verdadeira a necessidade de condicionar
as verdades da filosofia aos ditames teológicos contidos na Revelação
Especial de Deus.

Por outro lado, num rápido vislumbre inicial, parece que o apóstolo
Paulo deprecia o cabedal teórico da filosofia em alguns de seus textos.
Observe-se, por exemplo, o trexo a seguir exposto:
Pois a mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo,
mas para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus.
Pois está escrito: “Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei
a inteligência dos inteligentes”. Onde está o sábio? Onde está o
erudito? Onde está o questionador desta era? Acaso não tornou
Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto que, na sabedoria de
Deus, o mundo não o conheceu por meio da sabedoria humana,
agradou a Deus salvar aqueles que crêem por meio da loucura
da pregação. Os judeus pedem sinais miraculosos, e os gregos
procuram sabedoria; nós, porém, pregamos a Cristo crucificado,
o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os
gentios (1 Cor. 1:18-23)

Em um primeiro olhar, parece que o apóstolo Paulo esteja


desprezando por completo a utilização da filosofia pelos cristãos. Frases
do tipo: “Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos
inteligentes” ou “Acaso não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?
Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por meio da
sabedoria humana”. Mas realmente o que o apóstolo estava enfocando
pode se resumir na seguinte assertiva: “Visto que, na sabedoria de Deus,
o mundo não o conheceu por meio da sabedoria humana, agradou a Deus
salvar aqueles que crêem por meio da loucura da pregação”. A sabedoria
humana é temerária e contraproducente somente quando se levanta e
deseja fundamentar-se por si mesmo à revelia de Deus.

Mas o conhecimento filosófico, quando bem estruturado dentro de


seus limites específicos, pode tornar-se bastante útil para o teólogo. Ora, o
próprio apóstolo Paulo conhecia os filósofos Epimênides, Cleanto e Arato,
como pode se observar no texto abaixo:

89
< voltar

Então Paulo levantou-se na reunião do Areópago e disse:


“Atenienses! Vejo que em todos os aspectos vocês são muito
religiosos, pois, andando pela cidade, observei cuidadosamente
seus objetos de culto e encontrei até um altar com esta inscrição:
AO DEUS DESCONHECIDO. Ora, o que vocês adoram, apesar de
não conhecerem, eu lhes anuncio. “O Deus que fez o mundo e
tudo o que nele há é o Senhor do céu e da terra, e não habita
em santuários feitos por mãos humanas. Ele não é servido por
mãos de homens, como se necessitasse de algo, porque ele
mesmo dá a todos a vida, o fôlego e as demais coisas. De um
só fez ele todos os povos, para que povoassem toda a terra,
tendo determinado os tempos anteriormente estabelecidos e os
lugares exatos em que deveriam habitar. Deus fez isso para que
os homens o buscassem e talvez, tateando, pudessem encontrá-
lo, embora não esteja longe de cada um de nós. ‘Pois nele
vivemos, nos movemos e existimos’, como disseram alguns dos
poetas de vocês: ‘Também somos descendência dele’. “Assim,
visto que somos descendência de Deus, não devemos pensar
que a Divindade é semelhante a uma escultura de ouro, prata ou
pedra, feita pela arte e imaginação do homem. (Atos 17:22-29)

Portanto, resta esclarecida a questão de que a teologia e a filosofia


podem muito bem caminhar com mãos entrelaçadas, contanto que a mão
que puxe a outra pertença à teologia, caso contrário todos os regramentos
bíblicos poderão ser relativizados por novas ideias e pensadores, perdendo
a estabilidade de seus conceitos, ficando à mercê não da mente reveladora
de Deus, mas na interpretação dos homens, que se tornariam senhores
das escrituras e não submissos aos seus regramentos.

4.3 Devoção
Com o termo devoção quer-se afirmar acerca das práticas e
exercícios espirituais que fomentam o relacionamento dos homens com
Deus. Se o teólogo se faz disposto a estudar questões concernentes a
Deus, esse desafio excepcional somente será bem-sucedido se houver
o apoio do próprio Criador para que o projeto prospere. A grandiosidade
do empreendimento requer auxílio constante do Espírito Santo para que
possa ser levado a cabo.

90
< voltar

Portanto, o teólogo que almeje se desincumbir a contento da tarefa


de estudar as questões relacionadas a Deus carece de muita sensibilidade
aos comandos do Espírito Santo, necessitando levar uma vida que o
agrade nas mais variadas dimensões. O salmo 15:1-3, reza:
Senhor, quem habitará no teu santuário? Quem poderá morar no
teu santo monte? Aquele que é íntegro em sua conduta e pratica
o que é justo, que de coração fala a verdade e não usa a língua
para difamar, que nenhum mal faz ao seu semelhante e não
lança calúnia contra o seu próximo,

Diante disso, a teologia se distingue das demais áreas do


conhecimento por não se satisfazer tão somente com as questões de fundo
teórico, mas avançando para o desenvolvimento de uma práxis cristã que
condiga com a ética e moralidade estabelecidos nos consignados bíblicos.

4.3.1 O teólogo em oração


A oração é uma prática comum encontrada na maior parte das
religiões. Bem verdade, que seu funcionamento se dá de maneira bastante
distinta de acordo com a tradição religiosa a que se pertença. Uma oração
realizada por um muçulmano é completamente distinta da feita por um
judeu, que não se parece em nada com a de um animista. A oração cristã
também tem suas peculiaridades e características muito próprias.

No judaísmo ortodoxo, podia-se orar a Deus de modos distintos,


como relata Jeremias:
O judaísmo antigo dispunha duma grande riqueza de modos
de se dirigir a Deus. A “oração” (Tephilla, mais tarde chamada
de dezoito orações), que já na época do Novo Testamento se
rezava três vezes ao dia, por exemplo, termina cada bênção
com uma nova interpelação de Deus. A primeira bênção reza
em sua forma provavelmente mais antiga: “Louvado sejas, Javé,
Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó, Deus altíssimo,
Senhor do céu e da terra, nosso escudo e escudo de nossos pais.
Louvado seja, Javé, escudo de Abraão. (JEREMIAS, 1977, p. 102)

No Evangelho de Lucas, o narrador atesta que Jesus foi impulsionado


a ensinar seus discípulos a orar devido ao fato de João Batista ter lecionado
aos seus seguidores como deveriam se dirigir a Deus. Lucas escreve: “De

91
< voltar

uma feita, estava Jesus orando em certo lugar; quando terminou, um


dos seus discípulos lhe pediu: Senhor, ensina-nos a orar como também
João ensinou aos seus discípulos.”. (Evangelho de Lucas 11.1). A oração,
portanto, era uma prática comum tanto no judaísmo como no cristianismo.

Paulo solicita que os irmãos orassem em seu favor a fim de que seu
ministério pudesse produzir mais frutos. Em Efésio 6.18-20, afirma:
Orem no Espírito em todas as ocasiões, com toda oração e súplica;
tendo isso em mente, estejam atentos e perseverem na oração por
todos os santos. Orem também por mim, para que, quando eu falar,
seja-me dada a mensagem a fim de que, destemidamente, torne
conhecido o mistério do evangelho, pelo qual sou embaixador
preso em correntes. Orem para que, permanecendo nele, eu fale
com coragem, como me cumpre fazer.

Ou seja, o apóstolo de Tarso reconhecia a necessidade de que os


irmãos estivessem orando por ele para que, ao ensinar o evangelho, fizesse
com ousadia e coragem a fim de que o mistério da fé se fizesse conhecido.
Ademais, ele solicita que, também, se fossem realizadas orações
perseverantemente por todos os santos. Paulo reconhecia, portanto, a
necessidade de oração para o sucesso do empreendimento evangélico.

Figura 4 – Oração

FONTE: BLUNDEN, Anna E. Por apenas


uma curta hora, ou, a costureira
(original: For Only One Short Hour, or,
The Seamstress). 1854. 1 original de
arte: colorida. New Havan, Connecticut,
Estados Unidos. Coleção: Art in
the Christian Tradition (Vanderbilt
University). Disponível em: http://diglib.
library.vanderbilt.edu/act-imagelink.
pl?RC=56101. Acesso em: 12 ago. 2020.

#Pracegover: A imagem mostra uma


pintura com uma mulher loira de vestido
verde sentada próxima a uma janela de
mãos juntas orando e olhando para os
céus.

92
< voltar

Mas esta passagem não é a única em que se percebe a seriedade


do apóstolo em relação à oração. Em 1 Tessalonicense 5.25, Paulo pede:
“Irmãos, orem por nós”. Ele sabia que para quaisquer empreendimentos
no reino de Deus ser bem sucedido é mais necessário o poder do alto do
que os esforços de baixo. Não fosse a graça e o poder de Deus, nenhum
trabalho humano poderia ser realizado a contento, muito menos quando
se tem em vista um objeto espiritual.

O distanciamento entre os humanos e o criador em si só representa


uma expressiva lacuna de espaço entre ambos. É a oração que diminui a
distância entre eles. Isso também tem efeito na hermenêutica. Os exegetas
da Bíblia não podem ignorar tal fato, pensando que bastam ferramentas
corretas para que seja possível entender a relação de Deus com o mundo.
Ao contrário, a ação sobrenatural de Deus na iluminação não pode ser
dispensada (NICODEMUS, 2013, p. 27).

O salmista canta: “Abre os meus olhos para que eu veja as maravilhas


da tua lei. (Salmo 119.18). Ou seja, para que se possa compreender os
preceitos do Senhor, mister se faz que Ele mesmo conceda clareza de
mente para tal. Em seu magistério, Grudem leciona:
Não importa quão inteligente seja o aluno, se ele não continuar a
orar a Deus pedindo uma mente que compreenda e um coração
crente e humilde, e se não mantiver um andar pessoal com o
Senhor, então os ensinos das Escrituras serão interpretados
de maneira errada e desacreditados, e os erros doutrinários
surgirão como consequência, e o coração será transformado
não para o melhor mas para pior. Os estudantes de teologia
devem se dedicar logo do início a guardar sua vida de qualquer
desobediência a Deus ou de qualquer pecado conhecido que
possa romper seu relacionamento com Deus. Devem resolver
manter sua vida devocional com grande regularidade. Devem
orar continuamente, pedindo sabedoria e entendimento das
Escrituras (GRUDEM, 1999, p.13)

Percebe-se, de tal forma, a seriedade com que o estudante de


teologia deve cuidar de sua vida espiritual, mantendo a prática regular da
oração a fim de que a graça do Senhor possa mover-se para que conquiste
compreensão dos mistérios do Evangelho. A tarefa do teólogo exige que
tudo seja feito com base na oração (WILLIAMS, 2011, p. 23).

93
< voltar

4.3.2 A santidade do teólogo


Para o teólogo ser bem-sucedido no seu labor, necessário se
torna, outrossim, que permaneça em um estado de pureza que agrade
a Deus. Não basta um dia ter sido santo, uma época no passado ter
tido comprometimento com Deus. Antes, o teólogo deve estar em
constante crescimento espiritual, fazendo melhor no presente o que
realizara no passado. Sua vida deve estar numa constante ascendência,
nunca estagnada, jamais desengrenando o andor ou descendo a ladeira
da santidade, mas caminhando, a cada dia, num processo de maior
assemelhamento ao Deus da verdade.

Isso é o processo natural para quem deseja conhecer ainda mais


o Deus Santo, e que exige dos seus seguidores que também sejam
santos. O teólogo necessita de pureza de coração cada vez maior. Isso
é consequência natural da reverência, pois o Deus da teologia é Deus
santo e justo. Tecer considerações acerca de seus caminhos, exige um
coração que passa por purificação constante. Isso se aplica com mais
expressividade ainda ao teólogo. (WILLIAMS, 2011, p. 24)

O Evangelho de Mateus, capítulo 5.8, está escrito. “Bem-aventurados


os puros de coração, pois verão a Deus.”. Ora, para enxergar a Deus
se faz necessário pureza de coração. Os impuros, aqueles que vivem
desprovidos da responsabilidade com aquilo que Deus se agrada e aprova,
não poderão visualizar nem compreender mais exatamente os caminhos
de Deus. E destituído da melhor visão e do mais efetivo entendimento, o
teólogo ficará afastado das verdades divinas.

Estudar teologia, assim, é uma atividade espiritual que exige


responsabilidade com a vida de santidade. O teólogo muito mais do que
o cabedal de conhecimento que possua, é antes o próprio homem. A boa
teologia se faz com a mistura exata entre cognição e práxis, que se unem
de maneira não dissociável na vida do estudante de teologia. O teólogo
que restrinja seu labor aos horizontes de conhecimento que possua e não
cultive responsabilidade com a prática cristão não seria muito diferente
de um magistrado injusto ou um político corrupto. A prática e a teoria não
podem se divorciar.

94
< voltar

4.3.3 O conhecimento profundo das Escrituras


Já foi estudada neste texto acerca da importância das escrituras
para o fiel descortinar das verdades divinas. Há princípios, estruturas,
atributos e características de Deus que podem ser detectados por meio da
observação da natureza e do próprio ser humano. Como já visto, dá-se o
nome deste processo de revelação, que Deus permite a todas as pessoas,
de Revelação Geral, por meio da qual Deus permite seja revelado porções
acerca de si para que as pessoas o conheçam melhor.

Contudo, o que pode ser absorvido pelos homens e mulheres ainda


é muito pouco. Há características, atributos e noções que não poderão ser
diagnosticadas. Para fornecer esse conhecimento é que Deus se revelou
de maneira especial por meio das Escrituras Sagradas, onde estão postas
suas verdades completas.

A Revelação Especial de Deus é aquela concedida tão somente aos


que se debruçam nos escritos canônicos, considerando-os instrumentos
divinos de autoapresentação. Ali, Deus se mostra como em nenhum outro
lugar se dignou revelar-se. Portanto, se o objetivo do teólogo é conhecer e
estudar a Pessoa de Deus e as questões a Ele relacionadas, não pode lhe
faltar o profundo conhecimento do sumo instrumento revelativo.

Subdimensionar a importância do estudo das escrituras sagradas é


deprimir o conhecimento teológico. É como o jurista que não se debruça
no estudo da constituição ou o escritor avesso ao manuseio de seu idioma
particular. As escrituras são os pisos fundamentais do teólogo cristão,
pois, sem ela, o cristianismo pode se tornar até mesmo não-cristão, pois
desliza para longe de suas balizas fundamentais.

Conhecer as línguas originais é por demais importante. O teólogo


deveria investir no respectivo estudo. Mais importante, contudo, é conhecer
as próprias escrituras. Há quem seja versado nas línguas bíblicas, mas
pouco conheça da própria bíblia. Bom seria que fizesse os dois. Mas se
tiver que escolher, que prefira conhecer as escrituras ainda que somente
no seu idioma nativo. Isso já será uma grande conquista.

95
< voltar

Não se pode cair na armadilha, contudo, de acreditar ser possível


conhecer as escrituras in natura. Como se não tivesse que pedir a Deus
a iluminação necessária para interpretá-la, pois, como quaisquer outros
textos, as escrituras devem ser interpretadas também. Ao longo da
história, muitas foram as maneiras de interpretar as escrituras. Mas como
este texto não tem o escopo de verticalizar no respectivo tema, basta a
informação de que o sentido natural e regular do texto, geralmente, é o
que deva ser buscado.

Em seu magistério, afirma Nicodemus:


Os autores bíblicos, via de regra, usaram as escrituras existentes
fazendo uma leitura natural do seu sentido, sem alegorias ou
interpretações fantásticas. Geralmente esse uso consistia em
uma aplicação atualizada da passagem bíblica para uma nova
circunstância. (LOPES, 2013, p. 47)

Que se permita às Escrituras dizer o que regularmente tem a


ensinar. Sem se forçar o texto ou espiritualizá-lo a ponto de apagar o seu
próprio conteúdo. Os intérpretes, portanto, devem cuidar de não adicionar
princípios que não estejam consignados no texto canônico nem retirar
aqueles que, apesar de não serem populares nos seus dias, estão contidos
no compêndio bíblico.

96
< voltar

Síntese do Capítulo
Ao longo deste estudo, foi demonstrado o relacionamento imbricado
entre teologia e filosofia. O próprio termo, “teologia”, discurso sobre Deus,
não deve sua criação às escrituras sagradas, mas na própria filosofia. Era
utilizado desde a antiguidade. O casamento entre teologia e filosofia não
é contrato moderno, mas muito antigo. Neste capítulo, resta esclarecido
que a fé é fundamental, mas a razão é também por demais necessária.

As escrituras sagradas animam os cristãos a procederem a


construção de pontes entre a fé e a razão. Os seres humanos são racionais
por criação de Deus, e não plantas e animais destituídos de maior
expressividade racional. E ao se relacionar com os humanos, Deus não se
evade de levar em conta tais características, postas por Ele mesmo.

Glossário

Evade vem do verbo evadir. O mesmo que: escapa. Pode ser relacionado
a fugir de uma situação.

O teólogo-filósofo não pode ser um homem ou uma mulher de


laboratório, mas alguém que segue a um Deus transeúnico. É na vida
que se faz teologia. E esta vida é a atual, muito mais do que a antiga. É
chamado a fornecer respostas para sua geração. Não que seja inviável
as pesquisas acerca das discussões históricas existentes, é até virtuoso,
mas o foco do teólogo deve estar em sua geração.

Como todos os cristãos são convocados, em variadas situações e


proporções distintas, a explicar as razões de sua fé, todos os discípulos
precisam, além de conhecer as doutrinas básicas do cristianismo, ter
ciência das filosofias que são contrárias a sua fé. Isso facilitará seu
poder persuasivo. Precisa-se conhecer a filosofia para se proceder a uma
apologética mais competente.

97
< voltar

Além disso, o conhecimento da filosofia tornará mais forte a fé


pessoal do cristão verdadeiro. Ele verá as fraquezas e fortalezas da filosofia,
suas verdades e sofismas, e perceberá a pureza da imutável verdade
bíblica. Perceberá que filósofos se contradizem constantemente e que
muitas ideais novas não passam de antigas com novos formatos. Pouca
filosofia pode fortalecer o cético, mas a filosofia melhor descortinada
pode ser instrumento para se fazer um melhor cristão.

Por fim, o capítulo chama à atenção para a necessidade de o teólogo


ser um homem devocional, que leve à sério as práticas e exercícios
espirituais. Se ele se dispõe a estudar a Deus, será necessário auxílio
constante e uma vida que o agrade, sob pena de prestar um desserviço ao
estudo a que se propôs realizar.

Referências
Agostinho. A cidade de Deus. Volume I. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian.,
1996.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires.


Filosofando: introdução à filosofia. 4. ed. São Paulo: Moderna, 2009.

CANTON, James. O livro da literatura. São Paulo: Globo, 2016.

CHAUÍ, Marilena. 6. ed. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2012.

COSTA PINTO, José Rui da., SJ. A filosofia da religião: percurso de


identidade. Theologica, 2.ª Série, 45, 2, Braga. 2010.

DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. O que é filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1992.

FRANCISCO, Luciano Vieira. Sócrates e a verdade interior; Brasil Escola.


Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/socrates.htm.
Acesso em: 29 abr. 2020.

GALLO, Silvio. Filosofia: experiência do pensamento. São Paulo: Scipione,


2014.

GUTHRIE, W. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 1995.

98
< voltar

GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática atual e exaustiva. São Paulo:


Vida Nova, 1999.

JEAGER, Werner. La teología de los primeros filósofos griegos. Tradução


de José Gaos, Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 42.

JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento: a pregação de Jesus.


São Paulo: Editora Paulinas. 1977.

KIM, Douglas. O livro da filosofia. São Paulo: Globo, 2016.

KÖSTENBERGER, Andreas; PATTERSON, Richard. Convite à interpretação


bíblica: a tríade hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2015.

MATTAR, João. Introdução à filosofia. São Paulo: Pearson Prentice Hall,


2010.

LEWIS, C. S. Reflexões cristãs. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019.

NEVES, Gonçalo in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Disponível em:


https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-etimologia-de-
humildade-e-de-humilde/34405. Acesso em: 11 jun. 2020.

NICODEMUS, Augusto. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da


interpretação. São Paulo: Cultura Cristã. 3ª edição, 2013.

LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017.

LISBOA et al. Paideia: tópicos de filosofia e educação. Batatais: Claretiano,


2013.

LOWER, Barry. Filosofia: 50 conceitos e teorias fundamentais explicados


de forma clara e rápida. São Paulo: Publifolha, 2014.

PRADO JR., Caio. O que é filosofia? Tatuapé: Brasiliense, 1981.

ROMIO, Jocimar. Jesus nasceu e morreu: nada maior nem mais justo pode
ser pensado: a cristologia de anselmo de aosta: Dissertação (mestrado
em Teologia) - Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul. Porto Alegre 2016.

99
< voltar

WILLIAMS, Rodman. Teologia sistemática: uma perspectiva pentecostal.


São Paulo: Editora Vida, 2011.

ZILLES, Urbano. Filosofia e Teologia na Idade Média. Teocomunicação


Porto Alegre v. 43 n. 1 p. 106-129 jan./jun. 2013.

100

Você também pode gostar