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Novembro / 2021
Professor autor: Dr. Jonathan Menezes
Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Depto. Marcon
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por:
Ao final, objetivo que saiamos convencidos das razões pelas quais essa
disciplina pode ser útil e importante para o “fazer” teológico, e cientes
do que isso irá requerer de cada um de nós. Sim, pois gostaria que nos
víssemos em um trabalho conjunto, em que me proponho a formular
questões e oferecer alguns caminhos para os problemas epistemológicos
que iremos enfrentar, tentando, com isso, auxiliá-lo/a na busca por
soluções possíveis, que não serão dadas de “mão beijada” aqui.
Isto significa que este curso não oferece respostas? Sim, oferece, mas com
elas, e até mais do que respostas, ele oferecerá perguntas, favorecendo
o pensamento aporético (ver Glossário abaixo). Eventualmente, você
poderá perceber que uma posição ou perspectiva em particular está
sendo apresentada ou privilegiada. E esta é mais uma razão para que
você, ao invés de “fechar o filtro” e parar de dar atenção às ideias,
desenvolva melhor sua criticidade, tanto para poder avaliar as formas de
reflexão aqui expostas, como para formular sua própria reflexão sobre os
assuntos em questão. Combinado?
A Filosofia
Ao favorecer o pensamento aporético, como expliquei acima, quero
provocar a fome de pensar. Mas, você poderia perguntar, em que vamos
pensar? E esta pergunta nos conduz ao coração da Filosofia da Religião.
Estudando teologia na FTSA você já deve ter percebido à esta altura que
o tema da religião é estudado por vários campos do saber: antropologia,
história, sociologia, psicologia. Assim sendo, qual é o diferencial da
filosofia em relação aos outros campos no estudo da religião?
A filosofia da religião
Segundo Paul Tillich (1973, p. 16), “a filosofia da religião é a teoria da
função religiosa e suas categorias”; ou podemos pensar simplesmente
com John Hick (1970, p. 11), que ela é a “reflexão filosófica sobre
a religião”. Com efeito, apesar de sua estreita aproximação com as
diferentes formas de teologia – na verdade, o modo como teólogos
significam a experiência de Deus é um dos objetos de sua preocupação
–, ela se diferencia delas no sentido de que a teologia se funda na relação
ser humano-Deus e numa leitura filosófica da revelação.
1. Quais são seus objetos? Deus e o ser humano religioso, ele diz, mas eu
diria: Deus como constructo ou em função do ser humano religioso, suas
experiências e modos de significação do sagrado. A filosofia metalógica
(ver Glossário abaixo) da religião estuda o fenômeno religioso dentro do
qual o conceito de Deus é muito importante. Entretanto, como defende
Tillich (1973, p. 67), só fala de Deus a partir do significado que este recebe
em uma ação religiosa. Logo, embora a moderna filosofia da religião
tenha se construído a partir de uma série de especulações filosóficas e
teológicas sobre o ser de Deus e seus atributos, para os propósitos deste
curso penso que seja mais interessante pensar nos sentidos, nomes e
imagens de Deus nas diferentes religiões, cujas premissas e resultados
são inevitavelmente antropomórficos (ver Glossário abaixo), isto é, levam
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a uma personificação do divino. Mas será que estas personificações
ainda são “Deus” ou conseguem se referir a ele?
Glossário
Metalógica. Definida como “estudo da metateoria da lógica”.
Enquanto a lógica estuda os sistemas lógicos podem ser utilizados
para a produção de argumentos verdadeiros, a metalógica “estuda
as propriedades dos sistemas lógicos” (WIKIPEDIA, 2015), isto é,
os sistemas e linguagem formais e suas interpretações, utilizados
para a constituição de um objeto – como, por exemplo, “a religião”.
Mas isso, é claro, não é tudo. O texto de Eclesiastes também diz que
isto se dá sem que o ser humano conheça as obras ou o percurso de
Deus do princípio até o fim, exceto, acrescento, por aquilo que Deus
mesmo deixou, seus rastros, primeiramente no universo criado. Ou
seja, o ser humano tateia pelo infinito, mas só consegue encontrá-lo
através de expressões finitas. Em Romanos, o apóstolo Paulo diz que
“os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina,
têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas
criadas...” (Rm 1.20). Quer dizer, parte do que de Deus se pode conhecer
está, desse modo, manifesto na vida que pulsa em nós e além de nós, na
natureza. Pode-se inferir, então, que a religião nasce, em segundo lugar,
do seguimento humano pelo caminho em que se encontram os vestígios,
os rastros, ou as pegadas do divino ou do incondicional.
A religião pode ter muito de Deus ou dos deuses – seu caráter, valores,
exigências e verdade –, mas também tem muito do humano. Torna-
se problemática precisamente quando o humano pretende reduzir o
incondicional ao condicional, ou melhor, igualá-los. É óbvio que se há
algo de Deus que pode ser dito, é porque ele se revelou. E, também,
se algo dessa revelação pode ser apreendido, é porque o verbo se
encarnou. Entretanto, a confusão se arma quando queremos controlar
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ou monopolizar o conteúdo e a ação do verbo. Logo, o verbo, que na
linguagem joanina, é amor e vida, pode se degenerar, na forma religiosa,
em ódio, violência e morte. Mas por que isso acontece? Aqui entra o que
chamo de razões próprias e ambiguidades da religião.
O Sagrado
Sigo neste tópico com uma história mais ou menos conhecida. O livro de
Êxodo, no capítulo 3, relata que Moisés levava uma vida pacata em Midiã
pastoreando o rebanho de seu sogro, Jetro. Certo dia, Moisés conduzia
o rebanho por um monte chamado Horeb, quando o anjo apareceu em
uma chama no meio de uma sarça, que ardia, mas não era consumida.
Curioso do fato, Moisés tentou aproximar-se para ver o que era aquele
fenômeno – uma sarça que ardia, mas não queimava – e de repente
ouviu seu nome sendo chamado, era uma voz que dizia: “Não chegue
mais perto. Tire as sandálias de seus pés. Você está sob um lugar santo”,
ou sagrado (Êx 3.5).
Isso nos conduz à questão: o que torna um lugar, evento ou coisa santo/
sagrado? No caso acima narrado, “o que torna santo o lugar é o fato de
Deus estar ali, falando com Moisés, afirmando ser o Deus de Abraão,
Isaque e Jacó. Assim, como Deus ‘esteve com’ essas pessoas, agora
Deus ‘está com’ Moisés, tornando a presença divina conhecida e sentida
por meios visuais e auditivos” (House, 2005, p. 115). Nesse sentido
estrito, o sagrado é marcado pela e depende da epifania (a manifestação
do divino), uma vez que Deus é “O Santo”.
Quem disse isso – ou melhor, um dos estudiosos que trabalhou com esse
conceito – foi o historiador das religiões Mircea Eliade em O sagrado e
o profano (1996), livro que se tornou um referente indispensável para os
estudos da religião. A tese de Eliade neste livro é de que, (1) primeiro, o
sagrado precisa ser concebido em sua integralidade, isto é, não apenas
como o “totalmente outro” (metafísico, sobrenatural) de Rudolf Otto,
que se manifesta também no natural e racional. (2) Segundo, que uma
definição preliminar do sagrado é que ele é “oposto ao profano”, sendo
sua intenção no livro explorar e ilustrar as variantes desta oposição.
(3) Terceiro, que o “profano”, como modus operandi de um mundo
dessacralizado ou secular, é uma descoberta relativamente recente, e
remete ao homem não religioso das sociedades modernas. “Secular”
ou “profano”, nesse sentido, significa em tese ser livre ou autônomo em
relação ao sagrado e à religião, diferenciando-se, assim, dos homens das
sociedades arcaicas, que eram existencialmente religiosos.
Entretanto, para Eliade, seria um ledo engano dizer que, porque não
aceita mais as ingerências da religião ao modo arcaico, o homem e a
mulher “secularizados” tenham uma existência inteiramente profana ou
dessacralizada. E isto nos conduz, (4) em quarto lugar, à ideia central de
seu livro de que “o sagrado e o profano constituem duas modalidades
de ser no Mundo, duas situações existências assumidas pelo homem ao
longo da sua história” (Eliade, 1996, p. 20). Há uma ligação entre ambos
na vida, ainda que um se defina por ser uma negação ou antítese do outro.
Não se pode achar, como defende Eliade (1996, p. 27), nem uma existência
profana em “estado puro”, nem o sagrado em “estado puro”. No primeiro
caso, é porque “seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que
tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue
abolir completamente o comportamento religioso” (Ibid.). No segundo
caso, como o autor defende em outro lugar, “um dado religioso ‘puro’,
fora da história, é coisa que não existe, pois não existe um dado humano
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que não seja, ao mesmo tempo, um dado histórico” (Eliade 1989, p. 22).
Por isso, talvez seja possível dizer que, para Eliade, em toda epifania há
uma hierofania – que etimologicamente significa que “algo sagrado se
nos revela”. Isto não significa que Deus ou O Sagrado seja ou esteja em
tais objetos. Como explica:
Seguindo o que diz Eliade, o sagrado não é exclusivo das religiões e dos
religiosos; na verdade, não é necessário ser religioso para que se tenha
uma existência marcada pelo sagrado. Isto se dá, também, com algumas
categorias religiosas, tal como o “mito”, sobre o qual veremos na próxima
unidade. O problema da hierofania nos conduz, porém, à última pergunta:
pode o sagrado ser domesticado?
Entretanto, como observa Tillich (2009, p. 103), a religião tem uma natureza
ambígua: é “construtiva e destrutiva ao mesmo tempo. A religião é santa
e pecadora”; afinal, como vimos no tópico anterior, religião é negócio
humano. Como não carregaria as ambiguidades próprias de seu artífice?
Por essa razão é que, mesmo o exercício da religião, que supostamente
produz a experiência da dimensão humana da profundidade, é carregado
pelo pecado original: aceitando a oferta da serpente, tentamos usurpar
o lugar do absoluto. E isto se dá, por exemplo, quando absolutizamos os
símbolos do sagrado e, assim fazendo, eles se transformam em ídolos.
Tudo o que tenta ocupar o lugar de Deus no coração humano é um ídolo;
até mesmo pessoas podem ser, que dirá símbolos.
Por isso, Tillich (2009, p. 104) encerra sua linha de argumento alertando
que “sobre todas as atividades sacramentais da religião, com seus objetos
sagrados, livros doutrinas e ritos santos, paira o perigo da ‘demonização’.
Tornam-se demoníacos quando são elevados ao status do sagrado
imaginando-se incondicionais e absolutos”. A natureza do símbolo, bem
como sua função numa dada religião, é maculada toda vez que este
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ocupa o lugar do absoluto. Logo, ele já não é mais símbolo do sagrado,
mas um ídolo. Não se trata mais do original, e sim de sua simulação.
Gênesis aponta para um ser humano que foi criado a fim de gozar das
benesses de um universo, fundado ex nihilo (do nada) para ser a sua
morada. Deus disse: “façamos o homem à nossa imagem, segundo
a nossa semelhança”. E assim se fez. “Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus ele o criou; criou-os macho e fêmea”. Os
termos “imagem e semelhança” definem o ser humano, em seu estado
original, com relação a Deus. Eles foram feitos do material divino e
dele possuem a centelha que aquece seus corpos e os movem para
a vida. No tempo mítico, Deus não estava longe de suas criaturas, em
especial, da humanidade que espelhava seus traços. Como diria Paulo, o
apóstolo, na Divindade (Javé) eles tinham a vida, o movimento e o ser, e
eis que afirmaram alguns dos poetas gregos a quem Paulo cita para os
atenienses: “Pois nós somos de sua raça” (Atos 17.28).
Em outra obra, Origens, Eliade informa que nas línguas europeias a palavra
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“mito” indica, maiormente, “ficção” – imaginação, história fantasiosa.
O autor, porém, se propõe, no capítulo da obra em que analisa o misto
cosmogônico e a “história sagrada”, a estudar culturas em que o mito
significa verdade a respeito de algo, revela a realidade de algo.
Eliade ainda focaliza o exemplo dos povos Dayak, de Bornéu (ilha asiática).
Como para outros povos primitivos, o mito cosmogônico influencia os
princípios que governam a existência cotidiana desses povos, de modo
que a história sagrada é “re-vista” na vida da comunidade e na existência
individual de cada membro. “O que aconteceu no princípio descreve
simultaneamente a perfeição original e o destino de cada indivíduo”
Ibid., p. 99). Ainda baseado nesse exemplo, pode-se aferir, por fim, que
os mitos de criação do mundo (cosmogonias) são muito similares entre
muitos povos primitivos. Nota-se, na seguinte descrição de Eliade, uma
patente similaridade (em alguns aspectos) entre o mito Dayak e o mito
cosmogônico do Gênesis:
Dessa forma, Roger Bastide (2006, p. 97) inicia seu ensaio sobre a
mitologia moderna, fazendo alusão à observação de Karl Marx de que
“nossa civilização, longe de destruir os mitos, multiplicou-os”; e, também,
cita Bérgson: “o homem é uma máquina de inventar deuses”. De fato,
ao tentar abolir todos os deuses e mitos criados pelas religiões, a
modernidade acabou inventando muitos outros, erigindo para si uma
religião própria, porém, uma religião “sem Deus”. Mata-se o Deus cristão,
o Senhor criador do Universo, para edificar altares “religiosos” (sem ser)
a novos deuses, como a razão e a ciência. Como ressalta Bastide, o
objetivo era de desmitificar tudo.
Conclusão
Nesta unidade demos os primeiros passos no estudo da filosofia da
religião, focando em algumas compreensões elementares. Defendi
a ideia inicial de que a religião é “um sopro humano na busca pelo
incondicional”. Isto significa que há algo no ser humano que o move
em direção ao infinito, ao Eterno, ao desconhecido, mesmo que não
seja possível explicar as razões para isso. Ora, mas isso não garante o
contato ou o alcance. Afinal, como pode o condicional e o que há de mais
incerto atingir ou incondicional, ou o que há de mais certo e necessário
no universo?
DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
HARRIS, Sam. Carta a uma nação cristã. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
IGLESIAS, Maura. O que é filosofia e para que serve. In: REZENDE, Antonio
(Org.). Curso de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
Experiência histórica
Primeiramente, quero falar sobre Frank Ankersmit e sua noção de
“experiência histórica” – como ela vem à tona em sua obra, e o que ele
quer dizer com isso. Depois, falarei brevemente sobre a experiência
religiosa e algumas de suas variantes, pensando particularmente em que
medida o problema colocado por Ankersmit pode afetar ou iluminar as
discussões sobre a experiência no âmbito das relações com o sagrado.
Em último lugar, farei algumas considerações sobre a pergunta: podem
os extremos se tocar? Em outras palavras, como podemos lidar com a
aporia que parece nos colocar numa encruzilhada do tipo ou-ou: ou se
tem uma experiência sem a mediação linguística, ou se tem mediação
linguística – descrição, interpretação, representação – sem poder
acessar as dimensões da experiência? Em que medida é possível falar
em um justo meio entre a linguagem e a experiência? Para além das
especulações teóricas, o que a prática (histórica e religiosa) nos diz?
Para lidar com essa questão, antes é preciso lembrar que, nos estudos
(teológicos e filosóficos) da experiência, a experiência religiosa designa,
de modo geral, a experiência de pessoas com o sagrado mediada pelos
ritos, palavras, simbologias e liturgias religiosas; ou seja, ela se dá mais
por meio da associação que por meio da dissociação, como exposta
por Ankersmit. Essa experiência em sentido mais amplo, porém, tem
variações que envolvem a dissociação, levando o “eu” da experiência a um
profundo desvanecimento de si mesmo como ego, como na “experiência
mística” (Bingemer, 2013), “transcendental” (Merton, 1993), e também
chamada de “experiência de Deus” (Panikkar, 2015).
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Saiba mais
Há um intercâmbio entre os três termos, como se pode notar pelas
definições seguintes, respectivamente por Maria Clara Bingemer,
Thomas Merton e Raimon Panikkar:
Está claro que a visão de Pieper, por sua filiação à hermenêutica, entra
em choque tanto com a perspectiva de Ankersmit, quanto a de boa parte
dos místicos, para quem a experiência de Deus é sempre experiência do
indizível (ou o que não pode ser expresso em palavras). Entendo que a
compreensão bíblica endossa essa perspectiva de Pieper e, ao mesmo
tempo, cria problemas para ela, fazendo também coro com os místicos.
Na experiência cristã, há sim uma “abertura de clareira”, mas não é a
linguagem propriamente quem produz essa abertura, mas o próprio
Verbo Divino (Cristo), que, segundo João, “se fez carne e habitou entre
nós” (Jo 1.14). Ou seja, a Palavra se encarnou e se revelou, com graça e
verdade, inclusive por meio de palavras e de linguagem. Nesse caso, há
um receptor da revelação de Deus que, em primeira instância, é o próprio
Deus encarnado. Na medida, porém, que seu testemunho ganha corpo
e se expande, envolve naturalmente outros receptores. E a Mensagem,
assim, como relembra o princípio tomista, é recebida “de acordo com a
maneira do receptor” – não o fosse, aliás, não haveria quatro evangelhos
entre tantas outras formas de representação da vida e da obra de
Jesus Cristo nos Novo Testamento (e fora dele). Nesse sentido, dizer
que o Verbo se fez carne implica em dizer, igualmente, que o verbo se
relativizou, à medida que se sujeitou à interpretação. E, como provocou
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de Gianni Vattimo (2016, p. 58), “somente um Deus relativista poderia
nos salvar”, isto é, um Deus kenótico, que se esvazia de sua divindade
e, assim, nos convida a também nos esvaziarmos de nós mesmos em
nossa experiência dele – experiência “de Deus” e não “sobre Deus”, como
enfatizou Panikkar –, e, consequentemente, a esvaziar nossa teologia de
suas pretensões à absolutização.
– Mas, já olhei. Acabei de ver o que quero fazer. Deus! Queria ter trazido
meu material comigo!
– Quando você pintava na Terra, ao menos nos primeiros anos, era porque
captava vislumbres do Céu no cenário terreno. O sucesso de sua pintura
devia-se ao fato de levar outros a apreciarem esses vislumbres também;
aqui, entretanto, você está diante da coisa em si. É daqui que saem as
mensagens. Assim, não há vantagem alguma em nos contar sobre este
país, pois já o vemos. Na verdade, podemos vê-lo melhor que você. (...)
– Em quanto tempo acha que eu poderia começar a pintar? – perguntou
o Fantasma.
O Espírito deu uma risada. – Não percebe que jamais pintará se estiver
pensando sobre isso?
– Como assim?
– Não – disse o Espírito – você está esquecendo que não foi assim que
tudo começou. A luz em si foi seu primeiro amor, e você apreciava a
pintura apenas como um meio de falar da luz.
– Oh, isso foi há séculos – disse o Fantasma. – A gente supera essa fase.
Você, naturalmente, não viu meus últimos trabalhos. Ficamos cada vez
mais interessados na pintura em si.
Creio que essa parte da história de Lewis pode trazer uma riqueza de
insights para responder à questão acima, e aqui gostaria de partilhar, à
guisa de considerações finais sobre este tópico, algumas delas.
Entre a fé e a dúvida
Quando o meu coração estava amargurado e no íntimo
eu sentia inveja, agi como insensato e ignorante; minha
atitude para contigo era a de um animal irracional.
Contudo, sempre estou contigo; tomas a minha mão
direita e me susténs. Tu me diriges com o teu conselho,
e depois me receberás com honras. A quem tenho nos
céus senão a ti? E na terra, nada mais desejo além de
estar junto a ti. O meu corpo e o meu coração poderão
fraquejar, mas Deus é a força do meu coração e a
minha herança para sempre (Sl 73.21-26, NVI).
Pois bem, uma das coisas que mais me preocupa hoje quando o assunto
é “fé” é o pouco espaço que nossas definições e percepções mais ou
menos comuns deixam para o lado incerto e fraco da fé. Sobretudo
porque, ainda que o conceito de fé tenha um aspecto doutrinário ou
quase definitivo – e se não respeitar aquilo, não será considerado fé – o
fato fundamental é que a fé não existe fora da pessoa. E, como pessoas,
adotamos, criamos, defendemos e obedecemos a convicções, mas
também somos abalados em relação a elas, o que denota uma dupla
condição de fragilidade: (a) primeiro a condição da vida humana; (b) a
condição de nossas certezas, que muitas vezes se abalam na medida
em que invariavelmente nosso mundo se abala. A questão no caso é:
somos treinados a lidar com a ambiguidade óbvia que nos constitui
como humanos e, como tal, também atinge nossa própria fé?
É disso que, a meu ver, trata esse texto, em que o salmista admite ter
sido tomado pela inveja e amargura em seu coração em relação aos
arrogantes e ímpios, mas prósperos; que pisam nos outros e só pensam
em si mesmos, mas, a despeito disso, parecem se dar bem em tudo: não
adoecem, estão sempre fortes, oprimem os outros, agem como quem
pode se apossar da terra, como se esta fosse só deles; além disso, ainda
zombam de Deus, não se preocupam com nada e só vão aumentando
sua riqueza. O salmista então é tomado pela insensatez e conclui que
toda a sua busca por se manter reto e puro, em agir corretamente e temer
a Deus, foi inútil, pois o fez penar ainda mais enquanto esses pérfidos aí
gozam de todas as benesses que ele, pelo bem realizado, deveria estar
gozando. Quer dizer, quem não se sentiria injustiçado? Quem não se veria
tentado e duvidar do caminho da retidão, isto é, dos caminhos de Deus?
Quem não passaria pelo vale da insensatez e da amargura como passou
o salmista por um momento, que não sabemos quanto tempo durou?
É isto que chamo de “mundo abalado”; perdemos nosso chão, e vemos
como nossas convicções podem ser solapadas e se perder nestas horas.
Fé, como estar tomado por aquilo que nos toca incondicionalmente, é
um ato central da pessoa inteira. Se acontecer que apenas uma das
funções que constituem a pessoa é identificada com a fé, desfigura o
sentido da fé.
Sabemos três coisas por aqui: é ser tomado pelo que nos toca
incondicionalmente; trata-se de um ato da pessoa inteira, ou seja, tudo
o que há em mim é orientado pela fé; ela deixa de ser fé quando envolve
apenas parte do que eu sou. Nos termos de Kierkegaard (2010, p. 88), a
fé é uma paixão, que penetra na totalidade do ser. Então, toda tentativa
de dar significados à fé, retomando Tillich (1957, p. 10): “de derivá-la de
alguma outra coisa; pois essas tentativas já pressupõem fé”.
Os paradoxos da fé
Na famosa definição de Hebreus, a fé é “a certeza daquilo que
esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Hb 11.1). Tomada
fora do contexto e de modo descomplicado, essa definição pode
enganar um pouco no aspecto dessa “certeza” e dessa “convicção”
sobre a qual fala o texto. Que tipo de certeza é essa? Em que se baseia
tal convicção? A tese de Hebreus 11, no verso 1, perde muito de seus
sentidos possíveis se desatrelada de todo o texto. Minha intenção não
é fazer uma exposição do texto, e sim apontar alguns paradoxos da fé
importantes nele.
Conclusão
A fé é um fenômeno complexo para a Filosofia da Religião. Sobretudo
porque ela pode se expressar fenomenalmente, mas normalmente não
se retém em fenômenos, expandindo-se para o terreno do indizível. Por
isso, foi conveniente trabalhar com Kierkegaard e Tillich nesta unidade,
pois foram filósofos que compreenderam essa dimensão anterior ou
precedente da fé, que dogma religioso nenhum pode expressar ao todo
ou reter; na verdade, segundo Tillich, todo conteúdo ou reflexão sobre
a fé no sentido cristão já pressupõe a existência da fé. Pois, mais que
um conhecimento, a fé é um sopro do incondicional movendo-se no
coração do condicional e do humano. Instiga menos palavras e mais
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ações, embora todo esboço de fé no ser envolve alguma reflexão sobre
a fé. Kierkegaard apropriadamente a definiu como um paradoxo, e o
texto de Hebreus, como vimos, pode ser muito instrutivo sobre alguns
dos paradoxos derivados da vida na fé, e que geram uma reflexão mais
profunda sobre seus múltiplos significados.
Referências bibliográficas
ANKERSMIT, Frank. A escrita da história: a natureza da representação
histórica. 2ª ed. Londrina: EDUEL, 2016.
VATTIMO, Gianni. Crer que se crê. É possível ser cristão apesar da Igreja?
Petrópolis: Vozes, 2018.
Saiba Mais
Leiamos a explicação original de Kant (1983, p. 41, tradução minha):
“O iluminismo é a saída do homem de sua menoridade autoimposta.
Menoridade é a inabilidade de usar o próprio entendimento sem
a ajuda de outro. Esta menoridade é autoimposta quando sua
causa reside não na ausência de entendimento, mas na ausência
de coragem e determinação para utilizá-lo sem a guia de outro.
Sapere aude! [Ouse saber!]. ‘Tenha a coragem de utilizar seu próprio
entendimento’ 12 – este é o lema do iluminismo”.
Estes quatro pilares, junto com outros também marcantes, como a própria
confiança na ciência, na harmonia do universo e nas utopias sociológicas
(como o marxismo), foram constituindo aquilo que chamamos de
cosmovisão moderna ou modernidade, marcada pelo desejo por controle,
autonomia e poder, e pela construção de uma identidade antropocêntrica,
cujos atrativos são, para nós, hoje, absolutamente óbvios, como coloca
Charles Taylor (2010, p. 358): “Uma sensação de poder, de capacidade, no
fato de conseguir ordenar nosso mundo e a nós mesmos e, na medida em
que esse poder estava relacionado com a razão e ciência, uma sensação
de ter produzido grandes ganhos em conhecimento e compreensão”.
Tudo isso fez elevar uma crença fundamental dos modernos e que
resume tudo: “de que o conhecimento, inevitavelmente, leva ao progresso
e que a ciência, associada à educação, libertará a humanidade de nossa
vulnerabilidade à natureza e a todas as formas de escravidão social”
(GRENZ, 2008, p. 120).
Karl Marx, por sua vez, parte da crítica de Feuerbach; concorda com
ele que a religião não faz o homem, mas o homem quem faz a religião.
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Opõe-se, porém a ele, por considerar que suas críticas se assentam
mais na esfera abstrata da religião, ao passo que, para Marx, “a origem
da religião está nas relações sociais pervertidas que geram a alienação
do homem a nível prático em teórico” (Estrada, 2003, p. 167). No livro A
Ideologia Alemã, escrito em 1845 em parceria com seu amigo Engels,
Marx promove sua emancipação das teias do pensamento hegeliano e
da filosofia alemã como um todo, assentada na ideologia de Hegel, como
é o caso do próprio Ludwig Feuerbach, “objeto” particular das críticas de
Marx nessa obra.
O que tem isso a ver com a religião? Qual sua “origem” ou “essência”?
São perguntas que Freud se propõe a responder. E sua resposta pode
ser sintetizada da seguinte forma: esse ser neurótico não quer encarar o
mundo ou a realidade em sua dureza peculiar, suas incertezas e perigos,
nem ter de lidar com o fato indelével de sua própria mortalidade. Busca,
assim, em seu universo de desejos meios através dos quais possa
encontrar consolo e amparo, e ali encontra sua nostalgia de “um pai
onipotente que o console e proteja, em sua angústia pela dureza da vida”
(Ibid., p. 147). Encontra esse pai em Deus, que vai exigir dele renúncia a
seus impulsos interiores em troca de amor e proteção.
A religião, assim, é como uma “ilusão infantil”, que ensina a seus adeptos
– e aqui Freud está pensando particularmente no cristianismo – a
permanecerem tranquilos, uma vez que “tudo o que acontece neste mundo
é a realização dos propósitos de uma inteligência superior que, mesmo
por caminhos e descaminhos difíceis de entender, acaba por guiar tudo
para o bem, ou seja, para a nossa satisfação” (Freud, 2014, p. 63). Além
disso, a providência divina paira sobre o universo e não somente garante
proteção a seus filhos aqui na terra, como lhe dá a certeza de que “todos
os pavores, sofrimentos e rigores da vida estão destinados à extinção: a
vida após a morte, que continua nossa vida terrena assim como a parte
invisível do espectro se une à visível, traz toda a completude de que talvez
tenhamos sentido falta aqui” (Ibid., p. 64).
1. “Deus; é porque olha nesse espelho claro que o seu ser lhe parece tão
turvo, tão incomumente deformado. Depois o angustia o pensamento
do mesmo ser, na medida em que este paira ante sua imaginação
como a justiça punidora: em todas as vivências possíveis, grandes ou
pequenas, acredita reconhecer a cólera e as ameaças dele, e mesmo
pressentir os golpes de açoite de seu juiz e carrasco. Quem o ajudará
nesse perigo, que, em vista de uma duração imensurável da pena,
supera em atrocidade todos os outros terrores da imaginação?”.
O contrário dessa visão, para Nietzsche, fez de Deus uma ideia a ser
abolida, e do cristão, apenas um judeu de confissão ‘mais livre’ (Nietzsche,
1999, p. 363). Ele também critica essa tendência da igreja de seu tempo
de açoitar, condenar, difamar e suspeitar de tudo o que fosse Humano,
Demasiado Humano:
Referências bibliográficas
BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem e outros ensaios. São Paulo: Cia
das Letras, 2006.
COX, Harvey. The future of faith. New York, NY: HarperOne, 2009.
ESTRADA, Juan A. Deus nas tradições filosóficas, Vol. II: da morte de
Deus à crise do sujeito. São Paulo: Paulus, 2003.
FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. 2ª ed. Porto Alegre: L&PM, 2014.
GRENZ, Stanley J. Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia do
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_______. Perpetual peace and other essays. Indianapolis, IN: Hacket P. C.,
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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Grijalbo, 1976.
________. Humano, demasiado humano. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
Muito próxima das ideias acima elencadas está a do filósofo, que recebeu
o prêmio Nobel de literatura em 1950, Bertrand Russel, no ensaio (de
1929) intitulado Por que não sou cristão. Ali ele defende que a religião
está embasada no medo-pavor: do mistério, da derrota, da morte e do
que vem depois dela – aliás, ateístas contemporâneos, como o falecido
Christopher Hitchens e Lawrence Krauss, defendem que a crença em
Deus está intimamente atrelada com o pavor da morte. Além disso, tanto
em Freud como em Russel se pode notar uma confiança quase cega nas
possibilidades que a ciência oferece de conferir sentido a questões (do
mundo físico) que a religião não pode responder, porque é irracional e
altamente voltada para o “celeste porvir”. Russel é ainda mais explícito
que Freud, quando afirma que “a ciência pode ajudar-nos a superar este
modo covarde com o qual a humanidade tem vivido por tantas gerações”,
e convida seus leitores a “ver o mundo como ele é” e a “conquistar o mundo
pela inteligência” (Russel, 2014). O problema dele e de outros pensadores
modernos reside exatamente aí: na medida em que querem pôr fim na
metafisica pelo viés da religião, não renunciam à metafísica pelo viés da
ciência, pois só uma visão essencialista da realidade pode sustentar que
ela pode ser conhecida “tal como ela é”. Fica evidente, como já destaquei
antes, que se trata de uma substituição de crença: sai o Deus déspota
e suas doutrinas aterrorizantes, não confiáveis e improváveis, e entra, a
inteligência e ciência humanas, com um projeto não menos messiânico
de salvar a humanidade do estado de menoridade em que se encontra.
Glossário
Metafísica. Há diferentes entendimentos para a palavra, o mais
usual é de que se trata da investigação filosófica da “natureza,
constituição e estrutura da realidade”. Uma de suas preocupações
tradicionais é a existência de entidades não-físicas (por isso meta,
no sentido de “além”), como o divino, o sobrenatural, ou “a natureza
Meu convite, porém, foi para que tomemos as críticas desses ateístas
não de um lugar e prisma reacionário e defensivo, mas autocrítico,
perguntando-nos: em que medida essas críticas reverberam, mesmo
que parcialmente, no modo de ser religioso e religião ainda hoje? Que
posturas ou práticas poderiam surgir daí? Um dos riscos óbvios, para
aqueles/as que são de fé, é o de se cair na trama dos argumentos,
sentir-se enfraquecido/a ao ponto de colocar em xeque a própria fé no
incondicional ou, pelo menos, a expressão confessional ou crença que
ela abraça, de escanteio.
Sobre isso, Rob Bell (2005, p. 23) disse o seguinte: “Nossas palavras não
são absolutas. Apenas Deus é absoluto, e Deus não tem a intenção de
partilhar seu absolutismo com ninguém, especialmente palavras que as
pessoas usam para falar sobre Ele. E isso é uma das coisas com a qual
pessoas têm se debatido desde o princípio: Deus é maior que nossas
palavras, cérebros, cosmovisões e nossas imaginações”.
Quem fala em “pós” está querendo dividir algo. Se uma coisa é X, e outra
que vem depois de X mais ainda não tem por certo o que é, então ela é
designada provisoriamente como pós-X. Então o prefixo da palavra pós-
modernidade, indica que estamos falando de um fenômeno que desponta
como transbordamento de algo, que vai além, no caso, da modernidade,
sem necessariamente colocar um fim nela.
E isso não tem nada a ver com “acabar com o absoluto”, porque essa é
uma impossibilidade. O absoluto é o que está alheio a tudo: é o Totalmente
Outro, o Eterno, o Incondicional. Não há razão para se precaver tanto
contra o relativismo nesse caso, pois ele não tem em vista o absoluto em
si, uma vez que esse não é passível de ser relativizado, tampouco de ser
supra-absolutizado – ficar repetido, em alto e bom som, a Deus que Ele é
absoluto (ou todo-poderoso) é tão inútil quanto tentar explicar a um peixe
que este sabe nadar. Somente o relativo pode (e deve) ser relativizado,
sobretudo quando nutre pretensões ao status de absoluto, ou de ilusões
de equivalência. No fim das contas, a supra-absolutização do absoluto
ou a tentativa de guardá-lo “a sete chaves” é apenas mais um dos efeitos
do desejo por poder que ocupa o interior da religião (e da teologia) há
bastante tempo.
Por fim, como destaca Richard Rorty (2007, p. 33), “dizer que devemos
abandonar a ideia da verdade como algo que está aí, à espera de ser
descoberto, não é dizer que descobrimos que não existe verdade alguma”.
Igualmente, dizer que não podemos mais aceitar critérios absolutos,
porque supostamente atribuídos pela “natureza intrínseca” de algo, não
é dizer que a partir de agora vivemos a partir de critério algum ou do
“critério de me der na telha”. Apenas admitimos que são nossos critérios,
que podem e devem ser colocados no mesmo patamar e em diálogo com
108 | Filosofia da religião | FTSA
outros critérios, em busca não de que um se estabeleça ou prevaleça
sobre outro, mas de que encontremos aqueles “consensos solidários
possíveis”, para construção de uma sociedade democrática e de direitos,
na qual os marginalizados pelo sistema também tenham voz, e não de
uma sociedade regida por parâmetros da minha religião.
“Mas eles precisam saber que Cristo é a Verdade!”, pode bradar alguém.
Concordo, mas pergunto: como é que alguém “sabe” que Cristo é “a
verdade”? Será por meio do convencimento proveniente de uma lógica
teológica ou apologética qualquer? Será por ter sido testemunha ocular do
poder de Deus? Vamos supor que um descrente X chegue a ser convencido,
pelos crentes A e B, de que “Cristo é a Verdade”. Convenceram-no de que
a verdade do cristianismo é plausível, e de que é absoluta, ou seja, de que
está acima e, portanto, torna mentirosa qualquer outra forma de saber,
religioso ou não, que reivindique ser verdade. Seria possível inferir pela
situação descrita que: já que X foi convencido por A e B de que Cristo é
a verdade, logo X é cristão? Mais do que isso: imaginemos que X tenha
também presenciado um milagre, como a cura de um paralítico, que A e
B obviamente atribuíram a Deus. Isso deve, necessariamente, levar-nos a
crer que X agora se tornou uma pessoa de fé? Pode ser que sim, pode ser
que não; mas não há garantias cósmicas, nem provas cabais de que seja
(ou tenha de ser) assim.
Tentarei explicar o que quero dizer com essa imagem através do seguinte:
1. Na parte inferior da figura estão o chão da fé e o chão da história que,
embora distintos, não se encontram em planos diferentes. Fé é fé no
incondicional. Trata-se de chão invisível e indizível, em primeiro plano, por
isso é chão enquanto sustentação incondicional do que denominamos
O que significa, portanto, a morte de Deus, quem é esse Deus que morre e
para quem ele morre? Ademais, o que isso tem a ver com o tema religião
e pós-modernidade? É o que tentarei responder nesse tópico, através de
um diálogo com filósofos e teólogos pós-modernos e a partir da versão
da morte de Deus nietzschiana, entendendo, como expôs Charles Taylor
(2010, p. 658-659), “que essa expressão é usada numa variação incontável
de versões”, sendo uma delas proveniente do processo de libertação pela
ciência, e considerando que “no mundo moderno, deram-se condições,
nas quais não é mais possível crer em Deus do modo honesto, racional,
sem confusões ou falsificações ou reserva mental”.
116 | Filosofia da religião | FTSA
Cenário da morte de Deus
Fica claro aqui que Nietzsche não briga com Deus, mas briga com uma
ideia de Deus sustentada pelo teísmo, ou seja, com uma teologia – até
por isso ele se refere a “maneiras de pensar” ultrapassadas. Esse parece
ser um mal congênito da teologia em tom metafísico (essencialista):
fala-se de Deus tendo-se a ilusão de poder expressar o original. Quando
fala de um atributo de Deus, por exemplo: “Ele é Todo-Poderoso”, é como
se aquele atributo, isto é, aquela linguagem, nos conduzisse diretamente
a essência do eterno. De igual modo, dizer “Deus”, “O Eterno”, “Majestoso”
ou “Rei dos Reis” não é menos problemático, uma vez que o nome quer
se remeter à “coisa em si”, e logo nos vemos face a face, de novo, com o
problema da idolatria. Além de tudo, toda linguagem que tenta aprisionar,
dar conta ou falar em termos absolutos sobre algo, é uma linguagem
exclusiva: não admite outras interpretações, leituras ou experiências.
Apenas aquela (a sua) expressa, de fato, quem Deus é, o que diz em sua
Palavra, e qual é a sua vontade para a humanidade. Ao que parece, o
que a assunção teológica da morte de Deus quer fazer é precisamente
denunciar essa pretensiosidade de se estabelecer uma fala normativa e
única sobre Deus, e liberar uma nova experiência e um novo falar, não em
termos metafísicos, mas metafóricos.
Conclusão
Fica patente que, ao invés ou antes de brigar com a morte de Deus pós-
moderna, é preciso primeiro perguntar: que Deus? Se for o Deus do levita
e do sacerdote, posso dizer que também estou fora, que me fiz ateu
desse Deus. Mas essa é uma questão difícil e nos conduz ao coração de
uma questão já amplamente aceita pelos filósofos e outros estudiosos
da religião, mas não muito pelos teólogos cristãos: a de que, quando
falamos de Deus, inevitavelmente construímos uma imagem, uma ideia
ou conceito não à sua semelhança, mas à nossa. E isso, como vimos
no início desse curso, tem um nome: antropomorfismo, ou a atribuição
de características humanas à deuses, ou mesmo à natureza e seus
126 | Filosofia da religião | FTSA
componentes. Não se pode atribuir isso (apenas) ao antropocentrismo,
em que o homem é “a medida de todas as coisas”; antes, eu diria, é um
produto inevitável da tentativa de falar qualquer coisa sobre o ser de
Deus (dentre elas, o próprio entendimento de que ele é “um ser”), em
descobrir como ele é ou dizer como ele age. Nesse sentido, a “morte de
Deus” parece ser inevitável.
Por isso, minha sugestão final é que não nos apressemos tanto em brigar
com a ideia da “morte de Deus”, tampouco em condenar impiedosamente
a descrença e o abandono de Deus, ou em tentar refutar a todo custo
o ateísmo. Hoje consinto que talvez a crença seja mais perigosa que a
descrença. Pois é a crença em Deus, o uso do nome de Deus, os atos em
nome de Deus, que muitas vezes dão razão de sobra para a descrença;
de fato, constituem-se na pedra de toque do ateísmo. Podem inspirar fé,
não nego isso – e aqui reside o valor da espiritualidade, da comunidade
e da tradição –, mas também inspiram coisas muito ruins e destrutivas.
Deus não precisa ser “salvo” do anticristo, do antideus ou do antirreino;
na perspectiva da fé cristã, eles já estão derrotados. Deus precisa ser
o radicalmente outro de Deus, ou melhor, de nós, que inventamos,
emulamos, usamos, manipulamos e, como corolário, matamos Deus. E
esse Deus que nós matamos precisa mesmo morrer e permanecer morto,
pelo bem de Deus e pelo bem da humanidade.
O que muita gente não se dá conta é que Deus permanece mais vivo
Observação final
A conversa com meu amigo e ex-professor Gabriel Giannattasio (como
você deve ter notado) foi mais longa que o previsto, dada a natureza do
tema e as inúmeras conexões que ele nos levou a fazer. Extrapolando
os limites de tempo que normalmente estipulamos para os vídeos
compartilhados por unidade nas disciplinas, decidi encerrar esta unidade
deixando, como sugestão, que você prossiga assistindo à segunda parte
de nossa conversa. Nela começo provocando Gabriel sobre as possíveis
implicações do tema da “morte de Deus” para nossa história recente.
Essa é a parte da conversa em que tocamos em assuntos mais polêmicos
e sensíveis (de cunho político e ideológico), e em que discordamos
(respeitosamente e, talvez, não tão visivelmente) quanto aos riscos e
possibilidades que o tema nos oferece hoje. Espero que esta conversa
fique registrada, primeiro, como uma nota de possível indecidibilidade
quantos aos rumos que a humanidade está tomando no século XXI –
afinal, apenas podemos supor, imaginar e recomendar (sob nosso ponto
de vista) o que seja melhor para ela, nunca impor; segundo, como uma
nota de esperança, de que é possível tratar com seriedade e leveza temas
difíceis, e discordar sobre eles mantendo o tom de respeito ao outro, um
ser humano como eu. Para tanto, seguramente é preciso que haja boa
vontade de ambas as partes. Isso nunca foi problema em minha relação
com meu amigo Gabriel, um pensador denso, transgressor e polêmico,
sim, mas, acima de tudo, um ser humano admirável, por quem tenho
amizade, respeito e gratidão.
BELL, Rob. Velvet Elvis. Repainting the Christian Faith. Grand Rapids,
Michigan: Zondervan, 2005.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Ensaio sobre a ilusão. 2ª Ed. Rio de
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