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Filosofia da Religião

Novembro / 2021
Professor autor: Dr. Jonathan Menezes
Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Depto. Marcon
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Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR


86055-670 Tel.: (43) 3371.0200
SUMÁRIO - Filosofia da Religião
UNIDADE I - Filosofia e religião: o sagrado e seus mitos
1. Introdução...........................................................................................................................04
2. A Filosofia..........................................................................................................................05
3. A Filosofia da Religião.......................................................................................................07
4. A Religião............................................................................................................................11
5. O Sagrado...........................................................................................................................17
6. Os Mitos..............................................................................................................................24
7. Conclusão...........................................................................................................................32

UNIDADE II - A experiência religiosa – entre a fé e a dúvida


1. Introdução...........................................................................................................................37
2. Experiência histórica..........................................................................................................39
3. Experiência religiosa mística.............................................................................................43
4. Entre a fé e a dúvida...........................................................................................................52
5. Os paradóxicos da fé.........................................................................................................57
7. Conclusão...........................................................................................................................61

UNIDADE III - Religião e modernidade


1. Introdução...........................................................................................................................37
2. Experiência histórica..........................................................................................................39
3. Experiência religiosa mística.............................................................................................43
4. Entre a fé e a dúvida...........................................................................................................52
5. Os paradóxicos da fé.........................................................................................................57
7. Conclusão...........................................................................................................................61

UNIDADE IV - Religião e desconstrução pós-metafísica


1. Introdução...........................................................................................................................96
2. Raciovitalismo: o ato de crer e de pensar.............................................................................99
3. Desconstrução pós-metafísica ou pós-moderna.............................................................102
4. Abertura: a arte de perder chãos......................................................................................110
5. Interpretações filosóficas e teológicas da morte de Deus.........................................116
7. Conclusão.........................................................................................................................126

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Unidade 1: Filosofia e religião: o sagrado e seus mitos
Introdução
Nesta unidade de abertura de nosso curso, gostaria de investir esforços
para tratar de três coisas basilares: a primeira é entender o que é e o que
estuda a Filosofia da Religião, ou seja, qual é o seu objeto; a segunda é
definir qual método ou caminho pretendo adotar neste estudo; a terceira
é explorar algumas categorias da religião, a saber: o conceito de religião,
de sagrado e de mitos.

Ao final, objetivo que saiamos convencidos das razões pelas quais essa
disciplina pode ser útil e importante para o “fazer” teológico, e cientes
do que isso irá requerer de cada um de nós. Sim, pois gostaria que nos
víssemos em um trabalho conjunto, em que me proponho a formular
questões e oferecer alguns caminhos para os problemas epistemológicos
que iremos enfrentar, tentando, com isso, auxiliá-lo/a na busca por
soluções possíveis, que não serão dadas de “mão beijada” aqui.

Isto significa que este curso não oferece respostas? Sim, oferece, mas com
elas, e até mais do que respostas, ele oferecerá perguntas, favorecendo
o pensamento aporético (ver Glossário abaixo). Eventualmente, você
poderá perceber que uma posição ou perspectiva em particular está
sendo apresentada ou privilegiada. E esta é mais uma razão para que
você, ao invés de “fechar o filtro” e parar de dar atenção às ideias,
desenvolva melhor sua criticidade, tanto para poder avaliar as formas de
reflexão aqui expostas, como para formular sua própria reflexão sobre os
assuntos em questão. Combinado?

Glossário: Aporético vem de aporia e indica uma dificuldade ou


dúvida racional diante da impossibilidade objetiva de uma resposta
ou conclusão definitiva a respeito de algo (ver mais a respeito na
Unidade 4 deste curso).

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Objetivos

1. Entender quais são os objetos de estudo da Filosofia da Religião;

2. Reconhecer o método de estudo a ser utilizado;

3. Identificar a importância desse tipo de estudo para a teologia e vida


cristãs.

A Filosofia
Ao favorecer o pensamento aporético, como expliquei acima, quero
provocar a fome de pensar. Mas, você poderia perguntar, em que vamos
pensar? E esta pergunta nos conduz ao coração da Filosofia da Religião.
Estudando teologia na FTSA você já deve ter percebido à esta altura que
o tema da religião é estudado por vários campos do saber: antropologia,
história, sociologia, psicologia. Assim sendo, qual é o diferencial da
filosofia em relação aos outros campos no estudo da religião?

A filosofia se ocupa da vida, é um amor à sabedoria que desemboca em


modos de conceber, interpretar e dar significado à vida. Sua tarefa é a
de fazer perguntas e promover uma reflexão profunda sobre temas e
problemas que atingem qualquer ser humano. Como diz Thomas Nagel
(2011, p. 2), “ela [a filosofia] se faz pela simples indagação e arguição,
ensaiando ideias e imaginando possíveis argumentos contra elas,
perguntando-nos até que ponto nossos conceitos de fato funcionam”.
De que se serve, portanto, a filosofia? De perguntas ou problemas e
conceitos criados para tentar dar conta deles. Ela também subsiste
pela contestação desses mesmos conceitos, na desconfiança diante do
óbvio, e da provisoriedade das ideias.

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Saiba mais: Mas, afinal, o que é a filosofia?
Se perguntarmos a dez filósofos, “o que é a filosofia”, ouso dizer que três
ficarão em silêncio, três darão respostas pela tangente, e as respostas
dos outros quatro vão ser tão desencontradas que só mesmo outro
filósofo para entender que o silêncio de uns e as respostas dos outros
são todas abordagens possíveis à questão proposta (Iglesias, in
Rezende, 2008, p. 12).

O que pretendo sob o título de filosofia, como fim e campo de minhas


elaborações, sei-o, naturalmente. E contudo não o sei... Qual o
pensador para quem, na sua vida de filósofo, a filosofia deixou de ser
um enigma?... Só os pensadores secundários que, na verdade, não
se podem chamar filósofos, estão contentes com suas definições
(Husserl, 2001, p. 143).

Toda a esfera da vida pode ser objeto da filosofia. Há algumas razões


para isso:

Primeiro, todas as coisas podem ser examinadas e questionadas a nível


filosófico e científico. A filosofia começa com o espanto do filósofo
diante da realidade (espantado, ele lança perguntas). Remetendo ao que
disse Platão: “A única coisa que precisamos para nos tornarmos bons
filósofos é a capacidade de nos admirarmos com as coisas” (Gaarder,
1996, p. 10). As explicações, por sua vez, são da ordem do provisório:
trata-se de um convite à reflexão, que nasce da impossibilidade (e cresce
nela) de explicar o porquê de todas as coisas.

Segundo, enquanto as ciências focam particularidades, a filosofia se


ocupa do universo todo. Mas há coisas que as ciências não estudam e
que acabam sendo objetos da filosofia, como: o valor da vida, a natureza
do bem e do mal, a origem e o valor da lei moral, etc. Alguns objetos, porém,
são mais caros: lógica, epistemologia, metafísica, cosmologia, ética,
teodicéia, política, estética. Seu método é o arrazoague ou discussão, a
justificativa ou indagação lógica, racional. Serve-se todo tempo do logos
6 | Filosofia da religião | FTSA
– razão. Um exemplo está no método socrático chamado de maiêutica
(que literalmente significa “parteira”), que consiste em “parir” ideias
complexas a partir de perguntas simples e articuladas dentro de um
contexto ou assunto.

Terceiro, o fim da filosofia é o chamado “o saber pelo saber”: apreço


pelo saber em si e na “verdade” que está escondida nas coisas e que
se descortina parcialmente no olhar investigativo, nos conhecimentos
profundos.

Portanto, se desde os primórdios, na antiguidade clássica, a filosofia


incorpora e elabora questões cruciais à vida humana, Deus e a religião
não poderiam ficar de fora. Sempre foram temas da filosofia ocidental.
De algum modo, toda filosofia pressupõe uma filosofia de Deus ou da
religião. No entanto, a filosofia da religião, como ramo relativamente
recente da filosofia, tem contornos e objetos próprios.

A filosofia da religião
Segundo Paul Tillich (1973, p. 16), “a filosofia da religião é a teoria da
função religiosa e suas categorias”; ou podemos pensar simplesmente
com John Hick (1970, p. 11), que ela é a “reflexão filosófica sobre
a religião”. Com efeito, apesar de sua estreita aproximação com as
diferentes formas de teologia – na verdade, o modo como teólogos
significam a experiência de Deus é um dos objetos de sua preocupação
–, ela se diferencia delas no sentido de que a teologia se funda na relação
ser humano-Deus e numa leitura filosófica da revelação.

A filosofia da religião (como campo do saber, e não necessariamente do


modo como a estudaremos aqui) não deve ser religiosa nem aceitar a
revelação (Tillich, 1973, p. 10). Ou seja, enquanto uma pessoa, movida
talvez pela moral religiosa, pode se perguntar se é certo ou errado se ter
relações sexuais pré-matrimoniais, o filósofo pergunta: “O quê ou quem
define o certo e o errado nessa questão” – parafraseando aqui a Thomas
Nagel (2011, p. 3).

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Esta disciplina se ocupou, historicamente, em pensar filosoficamente
os mais diferentes problemas relacionados com Deus e a religião,
problemas como a existência de Deus, o bem e o mal, o destino humano,
ou os atributos de Deus. Por vezes se aproximou da apologética e da
teologia natural, cuja preocupação principal é defender a razoabilidade
da fé e de Deus no mundo, podendo assumir, em casos extremos, um teor
quase proselitista. Quero não apenas evitar tal abordagem nesse curso,
como adotar uma atitude crítica em relação a ela; não abordarei também
temas ligados à natureza de Deus e seus atributos, simplesmente por
entender que ela não contribui muito para o que consta na ementa desse
curso, isto é, estudar a “diversidade do fenômeno religioso”, ao mesmo
tempo em que se aproxima do que muito provavelmente você já viu nas
disciplinas de Teologia Fundamental ou Sistemática.

Sendo assim, em que me concentrarei? Basicamente na própria religião


como prática humana – seus elementos básicos, e até certo ponto sua
diversidade – e, mais particularmente, na fé, linguagem e experiência
religiosas. Como diz Severino Croatto (2001, p. 22), “a filosofia da religião
fala de Deus e do ser humano religioso. É um saber, não um compromisso.
Não substitui o ato religioso, mas reflete criticamente a respeito dele”.

Abaixo, trato em pontos nossa metodologia de trabalho com a filosofia


da religião.

1. Quais são seus objetos? Deus e o ser humano religioso, ele diz, mas eu
diria: Deus como constructo ou em função do ser humano religioso, suas
experiências e modos de significação do sagrado. A filosofia metalógica
(ver Glossário abaixo) da religião estuda o fenômeno religioso dentro do
qual o conceito de Deus é muito importante. Entretanto, como defende
Tillich (1973, p. 67), só fala de Deus a partir do significado que este recebe
em uma ação religiosa. Logo, embora a moderna filosofia da religião
tenha se construído a partir de uma série de especulações filosóficas e
teológicas sobre o ser de Deus e seus atributos, para os propósitos deste
curso penso que seja mais interessante pensar nos sentidos, nomes e
imagens de Deus nas diferentes religiões, cujas premissas e resultados
são inevitavelmente antropomórficos (ver Glossário abaixo), isto é, levam
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a uma personificação do divino. Mas será que estas personificações
ainda são “Deus” ou conseguem se referir a ele?

Glossário
Metalógica. Definida como “estudo da metateoria da lógica”.
Enquanto a lógica estuda os sistemas lógicos podem ser utilizados
para a produção de argumentos verdadeiros, a metalógica “estuda
as propriedades dos sistemas lógicos” (WIKIPEDIA, 2015), isto é,
os sistemas e linguagem formais e suas interpretações, utilizados
para a constituição de um objeto – como, por exemplo, “a religião”.

Antropomórficas. Referente a antropomorfismo, que significa a


transformação de tudo em ser humano ou à sua imagem.

Para Wilkinson e Campbell (2014, p. 92), a linguagem e, por conseguinte,


as ideias, conceitos, metáforas, ou imagens que utilizamos para descrever
Deus, sempre resultará em fracasso. Mas esse é, para eles, o problema
com a crença: o crente sempre tentará descrever Deus de alguma forma,
e normalmente se utilizará de frases, que são sempre inadequadas
como expressão da realidade. O que coloca, também, o problema da
linguagem: existe alguma linguagem que seja “adequada” para se falar
de Deus? Em outras palavras, existe algum “falar” que possa ser fiel a
quem Deus, o Eterno, é? Um dos postulados da filosofia da religião está
em reconhecer esta inadequação e problematizar o uso destes conceitos
também usando outros conceitos. Afinal, quem pode fugir deles?

Nesse sentido, gostaria de recomendar, aos que desejos se aprofundar


neste assunto, a leitura do livro A palavra humilhada, de Jacques Ellul
(1984). Ali ele apresenta, por exemplo, a ideia de que a linguagem ou a
palavra é um cativeiro, do qual somos prisioneiros e não podemos nos
livrar. Toda tentativa de encerrar a verdade (ou Deus) numa palavra torna-
se um atentado contra a própria verdade; resulta, como Nietzsche bem
apontou, na “morte de Deus” (como melhor veremos na unidade 4).
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2. Em que ela consiste? Em um saber, não um compromisso. Ou seja,
embora fale de Deus e da religião, o produto é um saber racional,
articulado e lógico. Isto para dizer que o filósofo da religião pode até
ser um crente, mas quando filosofa, não o faz a partir do pressuposto
da defesa de sua crença, mas de sua problematização. De outro modo,
um filósofo que se diz descrente, por exemplo, pode falar de Deus
(como um personagem), de modo apaixonado, sem que isso resulte
necessariamente num compromisso com Deus ou com uma religião.
Luiz Felipe Pondé, em seu livro Os dez mandamentos e mais um, admite
se encaixar nesta última categoria. Ele começa o livro dizendo: “Este
livro foi escrito por um homem que não recebeu o dom da fé. Caminho
nos campos do Senhor, como diz a Bíblia, como um cego em um jardim.
Aqui está, contudo, a chance de fazer minha teologia. A teologia de um
homem sem fé” (Pondé, 2015, p. 9).

Por minha vez, gostaria de convidá-los a fazer um pouco mais do que


o filósofo profissional: a pensar que podemos refletir com paixão, não
ignorando os questionamentos existenciais sobre a fé que nos atingem
diretamente. Ou seja, a função da filosofia da religião aqui é a de também
nos ajudar a refletir sobre nossa própria experiência religiosa, não para
nos afastar, pelo contrário: é para nos levar a uma profundidade maior na
fé. E isso não pode acontecer se não nos lançarmos no risco de questionar
nossos próprios pressupostos e noções fundantes.3. A que ela nos leva,
portanto? A uma reflexão crítico-filosófica sobre as práticas religiosas,
de um modo mais amplo, e mais específica e pessoalmente a investigar
e problematizar o que consiste a minha e a sua religião, mesmo que nem
todos gostem de usar este nome. Reconhecendo isto, o caminho pelo
qual gostaria que andássemos consiste em analisar realidades em que
o ato religioso se manifesta, mesmo que numa pretensa irreligiosidade,
através de perguntas filosóficas tais como: qual é o sentido da fé? Para
que serve Deus? O que é e para que serve a religião? Para começar, vamos
nos debruçar sobre esta primeira pergunta no próximo tópico.

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A Religião
Religião é um sopro humano na busca pelo incondicional. Essa
é a definição que usarei como ponto de partida. De onde a retiro?
Primeiramente, da ideia de que a religião nasce do desejo ou busca pela
transcendência (ou pelo infinito) que há em todo ser humano. Eclesiastes
chama isso de um senso de “infinito” que há no coração humano: “Deus
pôs a eternidade no coração do homem sem que este saiba as obras que
Deus fez do princípio até fim” (Ec 3.11). De acordo com Harold Kushner
(1999, p. 25), “Deus plantou em nós uma fome que não pode ser saciada,
uma fome de sentido e significado”. Essa “eternidade no coração”,
expressa bem essa fome pelo inexplicável, indizível, pelo que está além
de nós; é o senso de vazio e escuridão diante de uma infinitude que não
cabe dentro de nós, mas que desejamos desesperadamente: viver, e
viver eternamente! Como diz Pondé (2015, p. 23), “somos seres feitos de
abismos”.

A busca pela transcendência na contemporaneidade assume outras


facetas, mas expressa o mesmo anseio. Segundo John Stott (1998, p.
246), consiste no anseio “pela realidade suprema, que se encontra além
do universo material. É um protesto contra a secularização, isto é contra
a tentativa de eliminar Deus de seu próprio mundo”. Trata-se de uma
reabertura que vemos crescer no mundo atual de um espaço, que vinha
sendo ocupado pelo racionalismo, o progresso e a ciência, por exemplo,
como conquistas modernas, para a experiência do transcendente. Daí
advém o renascer da espiritualidade, ou melhor, das espiritualidades,
em um renovado senso do divino, do mistério e do temor. Neste tempo
vemos o florescer da religiosidade como expressão espontânea e busca
de relacionamento das pessoas com Deus através de ritos, performances
e adorações, e menos da religião institucional e seus mecanismos de
controle ou domesticação. O senso de infinito (ou a eternidade) no
coração humano nos conduz ao transcendente.

Minha definição aqui pretende convergir tanto com a visão clássica


romântica de Friedrich Schleiermacher (2000, p. 35), para quem a religião,
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em sua essência humana, “é sentido e gosto pelo infinito”, como a de
Paul Tillich (1973, p. 61), que a define como “a orientação do espírito
ao significado incondicional”. Em outro lugar, o autor define religião
como “preocupação suprema (ultimate concern), manifesta em todas as
funções criativas do espírito bem como na esfera moral na qualidade
de seriedade incondicional que essa esfera exige” (Tillich, 2009, p. 45).
“Gosto pelo infinito”, “orientação para o incondicional”, e “preocupação
suprema”: todas essas expressões indicam tanto uma origem ontológica,
como um telos (fim último) para a religião.

Mas isso, é claro, não é tudo. O texto de Eclesiastes também diz que
isto se dá sem que o ser humano conheça as obras ou o percurso de
Deus do princípio até o fim, exceto, acrescento, por aquilo que Deus
mesmo deixou, seus rastros, primeiramente no universo criado. Ou
seja, o ser humano tateia pelo infinito, mas só consegue encontrá-lo
através de expressões finitas. Em Romanos, o apóstolo Paulo diz que
“os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina,
têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas
criadas...” (Rm 1.20). Quer dizer, parte do que de Deus se pode conhecer
está, desse modo, manifesto na vida que pulsa em nós e além de nós, na
natureza. Pode-se inferir, então, que a religião nasce, em segundo lugar,
do seguimento humano pelo caminho em que se encontram os vestígios,
os rastros, ou as pegadas do divino ou do incondicional.

Como seres humanos, somos, contudo, condicionais. Pertencemos à


humana condição: mortal, limitada e, biblicamente falando, pecaminosa
ou concupiscente. O pecado é o que, originalmente, segundo Gênesis
(3.1-7), nasceu de uma tentativa do homem e da mulher originais de se
igualar a Deus na ciência do bem e do mal e, por conseguinte, foi o que
os afastou da presença desse mesmo Deus, deixando sua companhia
no jardim para viver à sua própria sorte. A fim de reencontrar Deus, o ser
humano precisa, deste evento em diante, buscá-lo desesperadamente,
desejando se “religar” a Deus. Para tanto, ele necessita de guias, de
referenciais, de mediadores humanos. Dessa maneira, a religião, em

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terceiro lugar, nasce da necessidade da religação e, por conseguinte, de
mediação entre o divino e o humano.

Religião é, na expressão latina, religare, prática normalmente sustentada


pela ação ritual, como o sacrifício, por exemplo. Para atravessar o fosso
que separa Deus e suas criaturas é necessário construir pontes; daí a
ideia de pontificante ou sumo pontífice, que é o construtor de pontes,
identificado com “os especialistas do sagrado [sacerdotes, xamãs,
padres, pastores], que dentro da comunidade estão preparados para
realizar as ações rituais e têm capacidade tradicional para executar
as cerimônias que asseguram aos restantes membros a proteção dos
poderes divinos ou demoníacos, mais que naturais” (Bazán, 2001, p.
46). Havendo a necessidade de mediação e ordem, a religião migra do
campo subjetivo da busca pelo incondicional, para o campo objetivo
(condicional) das práticas, dos sistemas de crenças e valores, da tradição
e da institucionalização. Daí a necessidade que muitos estudiosos viram
na separação entre religião institucional (o sagrado domesticado) e
religiosidade (a religião “primitiva”, o sagrado selvagem, usando aqui o
termo de Roger Bastide).

Nesse sentido cabe a distinção entre “religião” e “revelação”. Religião


também pode ser entendida, nos termos gerais aqui expostos, como
o esforço ou conjunto de esforços humanos plasmados no sentido
de alcançar a Deus. Religião é negócio humano. Já revelação é a
automanifestação de Deus, pelos meios que lhe aprouver, ao ser humano
e por amor a ele. Revelação é negócio divino. É, na definição de Tillich
(1987, p. 98), “a manifestação daquilo que nos diz respeito de forma
última. O mistério revelado é de preocupação última para nós porque é o
fundamento de nosso ser”. Como ele explica em outro lugar:

“Revelação” se refere a uma ação divina, “religião” a


uma ação humana. “Revelação” é um acontecimento
(happening) absoluto, singular, exclusivo e
autossuficiente; “religião” tem a ver com feitos
meramente relativos, sempre recorrentes e nunca
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exclusivos. “Revelação” significa a entrada de uma nova
realidade na vida e no espírito; “religião” nos remete a
uma dada realidade de vida e a uma função necessária
do espírito. “Religião” tem a ver com cultura; “revelação”
com aquilo que se encontra além da cultura (Tillich,
1973, p. 9, tradução minha).

Ora, se religião não é revelação, e se revelação é um ato que provém


de Deus e, num primeiro momento, não tem aparentemente nada a ver
com capacidades e esforços humanos, qual é então o ponto de contato
que efetiva a revelação como algo inteligível ao ser humano, já que
um dos propósitos é o de “mostrar” algo a ele? Eis que então entra a
função da razão e cultura humanas nesse processo. Como expressa
Tillich (1973, p. 10, tradução minha), “se a revelação é a irrupção do
Incondicional no mundo do condicional, não é possível impedir que ela
se condicione, convertendo-se em uma esfera junto a outras esferas,
a religião lado a lado com a cultura”. Em outras palavras, para que a
revelação fosse inteligível ao ser humano, Deus escolheu formas
ordinárias para manifestar o extraordinário. Há, portanto, uma correlação
entre eles. Disso, depreende-se, como observa Tillich (1987, p. 99), que a
revelação mantém os eventos subjetivo e objetivo, natural e sobrenatural,
ordinário e extraordinário em interdependência ou tensão dinâmica. Em
suas palavras, “revelação não é real sem o lado receptivo, e não é real
sem o lado doador”, sendo Deus o doador e o ser humano e sua cultura
específica os receptores.

Razões próprias e ambiguidades da religião

A religião pode ter muito de Deus ou dos deuses – seu caráter, valores,
exigências e verdade –, mas também tem muito do humano. Torna-
se problemática precisamente quando o humano pretende reduzir o
incondicional ao condicional, ou melhor, igualá-los. É óbvio que se há
algo de Deus que pode ser dito, é porque ele se revelou. E, também,
se algo dessa revelação pode ser apreendido, é porque o verbo se
encarnou. Entretanto, a confusão se arma quando queremos controlar
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ou monopolizar o conteúdo e a ação do verbo. Logo, o verbo, que na
linguagem joanina, é amor e vida, pode se degenerar, na forma religiosa,
em ódio, violência e morte. Mas por que isso acontece? Aqui entra o que
chamo de razões próprias e ambiguidades da religião.

Parodiando o conhecido dito de Blaise Pascal, a religião tem razões


que a própria razão desconhece. Ela envolve o intelecto, é claro, mas
menos o intelecto que o coração, e menos o coração que as entranhas.
Um religioso vive por certos princípios, e na defesa apaixonada desses
princípios os perde muitas vezes de vista, sendo capaz de afirmá-los
como confissão, mas negá-los, consciente ou inconscientemente, como
prática. As práticas religiosas, desse modo, nem sempre se coadunam
com as teorias provenientes de uma determinada religião.

Nesse sentido, vale apelar para a polêmica, mas contundente, afirmação


de John Caputo de que “a religião é para os amantes, apaixonados pelo
impossível, que fazem com que o restante de nós pareça vago”, ao que
ele completa dizendo que:

Na religião, o amor de Deus está exposto habitualmente


ao perigo de confundir-se com a profissão de alguém ou
o ego de alguém, ou o gênero de alguém, ou a política de
alguém, ou a ética de alguém, ou o esquema metafísico
favorito de alguém, ao qual este se sacrifica de maneira
sistemática. Então, ao invés de fazer sacrifícios pelo
amor de Deus, a religião se inclina a fazer um sacrifício
do amor de Deus. (Caputo, 2005, p. 121, tradução minha)

Pode-se depreender desta fala de Caputo que toda forma de religião é


um tipo de antropomorfismo; fala-se do “amor de Deus”, da “vontade dos
deuses”, do sacrifício “para Deus”, mas, no fim, o que isto significa? Como
não atrelar as experiências e significações do sagrado com as paixões
e idiossincrasias do humano, do profano, do mundano? Ademais, outra
razão própria da religião é que, ao que parece, ela mexe não apenas com
os gostos, preferências ou meras opiniões das pessoas, mas, em grande
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parte, com o “tudo ou nada” de sua existência. É isso que Caputo expressa
no livro Truth (2013), onde ele reflete sobre a verdade e sua relação com
a religião. Em suas próprias palavras:

Religião envolve nossas mais profundas convicções e


mais apaixonadas crenças sobre nascimento e morte,
doença e saúde, infância e velhice, amor e inimizade,
guerra e paz, misericórdia e compaixão. Por essa razão
é que pessoas religiosas são capazes de investir a vida
toda trabalhando em favor dos pobres e dos doentes,
dedicando-se às vítimas da AIDS na África, por exemplo,
e também porque, em contrapartida, são igualmente
capazes de incendiar um lugar colocando-o abaixo em
um acesso de intolerância. A religião é irredutível tanto
a um quanto ao outro e remover a raiva é remover a
paixão; mas se você remover a paixão, remove também
a religião. Conquanto haja religião, bem como paixão,
a chance para a justiça sempre virá acompanhada do
risco da injustiça (Caputo, 2013, p. 61, tradução minha).

É essa ambiguidade da religião que pode tornar artificial e até inútil, em


certos casos, o discurso sobre “paz” ou “tolerância” entre as religiões ou
convicções semelhantes, caso não se reconheça que a violência, a guerra,
a disputa, a intolerância, ódio e injustiça sempre fizeram parte da história
das religiões em todo o mundo tanto quanto, ou mesmo em decorrência
das diferentes práticas e preceitos sobre o amor, a tolerância, o respeito,
a justiça, equidade, paz, e assim por diante. Não são os deuses que estão
em guerra, mas os seus seguidores. Eliminar esta ambiguidade – parece-
me que este é o ponto de Caputo – é o mesmo que remover a religião.

A percepção é que, considerando as “razões próprias” e as ambiguidades


da religião, conforme analisadas há pouco, as pessoas em suas crenças
estão dispostas a tolerar umas as outras, mas “até certo ponto”, ou seja,
até o ponto em que, por exemplo, a tolerância não significa ter de negociar,
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ou mesmo minimizar em nome da convivência ou do bem comum,
convicções “fortes” de fé. Daí a recorrência a ideia de John Caputo sobre
a religião como sendo não um processo racional, mas um negócio feito
“para os amantes”, que se entregam passionalmente à causa, custe o
que custar.

Por essa razão, parte fundamental do discurso dos ateístas militantes


converge na direção de que se abolirmos a religião do mundo, haveria
menos guerras, menos violência, menos intolerância. A história
contemporânea das religiões no Brasil, porém, parece seguir em outras
direções, que reverberam tanto no desejo de mais religião, por um lado,
quanto no anseio por menos religião, sem perder, porém, o elemento da
transcendência. Embora se encontrem em categorias diferentes, ambos,
porém, parecem partilhar do mesmo processo de “reencantamento do
mundo”. Isto significa que, apesar de tudo, ao que parece, o ser humano
não consegue se desvencilhar ao todo, por mais que queira, da religião.
O que ela tem de tão especial? É o que continuarei analisando a seguir.

O Sagrado
Sigo neste tópico com uma história mais ou menos conhecida. O livro de
Êxodo, no capítulo 3, relata que Moisés levava uma vida pacata em Midiã
pastoreando o rebanho de seu sogro, Jetro. Certo dia, Moisés conduzia
o rebanho por um monte chamado Horeb, quando o anjo apareceu em
uma chama no meio de uma sarça, que ardia, mas não era consumida.
Curioso do fato, Moisés tentou aproximar-se para ver o que era aquele
fenômeno – uma sarça que ardia, mas não queimava – e de repente
ouviu seu nome sendo chamado, era uma voz que dizia: “Não chegue
mais perto. Tire as sandálias de seus pés. Você está sob um lugar santo”,
ou sagrado (Êx 3.5).

Em seguida, a voz se identificou como sendo do Deus de Abraão, Isaque


e Jacó. Então o texto diz que Moisés escondeu a face, temendo olhar
para aquela manifestação de Deus. A palavra hebraica para “santo” aqui é
qo.desh, que significa separado para um propósito específico, diferente,
| Filosofia da religião | FTSA | 17
singular, e depois foi aplicada a lugares (como Kadesh-Barnea, cidade
do extremo sul de Judá), a coisas e à própria condição da pessoa-em-
Deus – expressa na conhecida frase “sede santos, pois eu sou santo”
(cf. Lv 11.44, 1Pe 1.16), que também nos dá a conhecer que o “santo”
ou separado é o distinto ou singular. O ato de ter que tirar as sandálias
do pé parece indicar que não se deve pôr em contato o “impuro” com o
santo, ou do profano com o sagrado – e é apenas sintomático dessa
antiguidade que muitas religiões, até hoje, adotem esta prática.

Isso nos conduz à questão: o que torna um lugar, evento ou coisa santo/
sagrado? No caso acima narrado, “o que torna santo o lugar é o fato de
Deus estar ali, falando com Moisés, afirmando ser o Deus de Abraão,
Isaque e Jacó. Assim, como Deus ‘esteve com’ essas pessoas, agora
Deus ‘está com’ Moisés, tornando a presença divina conhecida e sentida
por meios visuais e auditivos” (House, 2005, p. 115). Nesse sentido
estrito, o sagrado é marcado pela e depende da epifania (a manifestação
do divino), uma vez que Deus é “O Santo”.

Desse modo, sagrado (falando de lugares ou objetos) é tudo aquilo que


é tocado pela natureza e presença divinas e prova do assombro próprio
desse encontro. Este assombro, na terminologia de Rudolf Otto (2007,
p. 44), recebe o nome de mysterium tremendum, ou o sentimento do
“mistério arrepiante”, que se traduz, como vimos, no emudecimento e
humilhação de Moisés diante do Santo ou do Sagrado. No pensamento
de Otto, o santo ou o sagrado aparece na figura do numinoso ou inefável,
que literalmente significa aquilo que não pode ser dito, nem conhecido,
pois foge ao acesso e compreensão racionais. É o que Tillich chama
de “incondicional”. Aqui a experiência com o sagrado é irracional, pois
irredutível tanto ao entendimento quanto à linguagem. O problema que o
texto bíblico traz para a gente, contudo, é: sendo inefável, por que Deus
escolhe uma expressão audível e visível (voz e sarça) para se manifestar?
Isso nos conduz à relação entre sagrado e profano (outras implicações
dessa reflexão, veremos na primeira parte da Unidade 2).

Ainda seguindo a narrativa sobre Moisés e a sarça ardente, pode-se dizer


18 | Filosofia da religião | FTSA
que a manifestação divina, mais que uma epifania, foi uma hierofania.
Mas quem disse isso e o que significa?

Quem disse isso – ou melhor, um dos estudiosos que trabalhou com esse
conceito – foi o historiador das religiões Mircea Eliade em O sagrado e
o profano (1996), livro que se tornou um referente indispensável para os
estudos da religião. A tese de Eliade neste livro é de que, (1) primeiro, o
sagrado precisa ser concebido em sua integralidade, isto é, não apenas
como o “totalmente outro” (metafísico, sobrenatural) de Rudolf Otto,
que se manifesta também no natural e racional. (2) Segundo, que uma
definição preliminar do sagrado é que ele é “oposto ao profano”, sendo
sua intenção no livro explorar e ilustrar as variantes desta oposição.
(3) Terceiro, que o “profano”, como modus operandi de um mundo
dessacralizado ou secular, é uma descoberta relativamente recente, e
remete ao homem não religioso das sociedades modernas. “Secular”
ou “profano”, nesse sentido, significa em tese ser livre ou autônomo em
relação ao sagrado e à religião, diferenciando-se, assim, dos homens das
sociedades arcaicas, que eram existencialmente religiosos.

Entretanto, para Eliade, seria um ledo engano dizer que, porque não
aceita mais as ingerências da religião ao modo arcaico, o homem e a
mulher “secularizados” tenham uma existência inteiramente profana ou
dessacralizada. E isto nos conduz, (4) em quarto lugar, à ideia central de
seu livro de que “o sagrado e o profano constituem duas modalidades
de ser no Mundo, duas situações existências assumidas pelo homem ao
longo da sua história” (Eliade, 1996, p. 20). Há uma ligação entre ambos
na vida, ainda que um se defina por ser uma negação ou antítese do outro.

Não se pode achar, como defende Eliade (1996, p. 27), nem uma existência
profana em “estado puro”, nem o sagrado em “estado puro”. No primeiro
caso, é porque “seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que
tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue
abolir completamente o comportamento religioso” (Ibid.). No segundo
caso, como o autor defende em outro lugar, “um dado religioso ‘puro’,
fora da história, é coisa que não existe, pois não existe um dado humano
| Filosofia da religião | FTSA | 19
que não seja, ao mesmo tempo, um dado histórico” (Eliade 1989, p. 22).

Por isso, talvez seja possível dizer que, para Eliade, em toda epifania há
uma hierofania – que etimologicamente significa que “algo sagrado se
nos revela”. Isto não significa que Deus ou O Sagrado seja ou esteja em
tais objetos. Como explica:

A pedra sagrada, a árvore sagrada, não são adoradas


como pedra ou como árvore, mas justamente porque são
hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não é nem pedra,
nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere. Nunca será
demais insistir no paradoxo que constitui toda hierofania,
até a mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto
qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser
ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico
envolvente (Eliade, 1996, p. 18).

Seguindo o que diz Eliade, o sagrado não é exclusivo das religiões e dos
religiosos; na verdade, não é necessário ser religioso para que se tenha
uma existência marcada pelo sagrado. Isto se dá, também, com algumas
categorias religiosas, tal como o “mito”, sobre o qual veremos na próxima
unidade. O problema da hierofania nos conduz, porém, à última pergunta:
pode o sagrado ser domesticado?

Os símbolos e simulações do sagrado

Sabemos, através de Tillich (2009), que sagrado-em-si é o incondicional,


que não se reduz a nada nem a ninguém; não pode ser domesticado ou
manipulado. A relação com esse sagrado, porém, coloca diante de nós o
problema da manifestação, isto é: para se fazer conhecido, esse sagrado
precisa se revelar em formas ou conteúdos que são inteligíveis à razão e
experiência humanas. Contudo, na medida em que se manifesta de forma
ordinária, o sagrado já não se encontra mais em “estado puro”, deixou
de ser o sagrado-em-si transformando-se no sagrado-para-nós. Este
último é o sagrado transmutado em linguagem ou forma humana. Tillich
20 | Filosofia da religião | FTSA
defende que, por ser fenômeno humano, a linguagem é contaminada
com o condicional, de modo que:

Não existe linguagem sagrada caída de um céu


sobrenatural para ser encerrada nas páginas de um
livro. O que existe é a linguagem humana, baseada em
nosso encontro com a realidade, em evolução ao longo
do tempo, usada para as necessidades cotidianas, para
expressão e comunicação, literatura e poesia, bem
como para mostrar a preocupação suprema (Tillich,
2009, p. 89).

Assim, a linguagem não é o espelho da realidade do sagrado; fala mais


do ser humano do que do ser divino, nesses termos. Minha linguagem
é prostituída; volta e meia incorpora novos amantes e novos parceiros/
as, sem mesmo se dar conta. E não há nada que passe por seu filtro
sem ser afetado e que, portanto, possa ser expresso em estado puro:
nem as coisas do mundo, muito menos as coisas do céu. As ideias, os
conceitos, os símbolos são, assim, formas de depuração da realidade e
não o seu reflexo. Quanto mais ciente disso me faço, menos pretensiosos
serão meus atos de fala ou mesmo minha teologia. A teologia, mais que
qualquer outra modalidade de saber, deveria estar ciente do estado de
depuração a partir do qual ela surge; pretende falar de Deus, mas todo
significado que dá para esta palavra não passa de uma mirada através
de uma brecha ou um pequeno buraco na parede que dá uma visão
(apequenada) para fora. Admitir isso não é uma forma de relativizar a
verdade, mas de preservá-la (como veremos mais ao longo deste curso).

Nossa linguagem participa da verdade, mas não pode ser “a verdade”.


Assim também se dá com a linguagem simbólica ou com os símbolos
religiosos, que, como assevera Tillich (2009, p. 102, 103), “abrem
determinado nível da realidade, oculto, que não pode ser aberto de outra
maneira” e, assim, “produzem a experiência da dimensão humana da
profundidade. E deixam de existir quando perdem essa função”. Ele ainda
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afirma que essa realidade suprema é a realidade do sagrado, de modo
que os símbolos são símbolos do sagrado: “participam na santidade do
sagrado”, mas esta participação não os iguala ou identifica ao sagrado.
“O transcendente absoluto está além de todos os símbolos que o
representam” (Ibid., p. 102).

Ou seja, Tillich admite que estes símbolos religiosos participam de algo


fora deles. Pense, por exemplo, na pomba, que simboliza o Espírito Santo
descendo sobre nós; ou, para voltar ao exemplo original, pense naquela
sarça ardente, como expressão do “Eu Sou” falando com Moisés. Tanto a
pomba quanto a sarça são linguagens simbólicas: participam da realidade
(de Deus e do Espírito), na medida em que nos remetem à qualidade de
sua manifestação, mas não são Deus ou o Espírito em si. Os símbolos
cumprem bem sua função enquanto não se dá um status maior para eles
do que este, a saber, o de participação na realidade a qual se referem.

Entretanto, como observa Tillich (2009, p. 103), a religião tem uma natureza
ambígua: é “construtiva e destrutiva ao mesmo tempo. A religião é santa
e pecadora”; afinal, como vimos no tópico anterior, religião é negócio
humano. Como não carregaria as ambiguidades próprias de seu artífice?
Por essa razão é que, mesmo o exercício da religião, que supostamente
produz a experiência da dimensão humana da profundidade, é carregado
pelo pecado original: aceitando a oferta da serpente, tentamos usurpar
o lugar do absoluto. E isto se dá, por exemplo, quando absolutizamos os
símbolos do sagrado e, assim fazendo, eles se transformam em ídolos.
Tudo o que tenta ocupar o lugar de Deus no coração humano é um ídolo;
até mesmo pessoas podem ser, que dirá símbolos.

Por isso, Tillich (2009, p. 104) encerra sua linha de argumento alertando
que “sobre todas as atividades sacramentais da religião, com seus objetos
sagrados, livros doutrinas e ritos santos, paira o perigo da ‘demonização’.
Tornam-se demoníacos quando são elevados ao status do sagrado
imaginando-se incondicionais e absolutos”. A natureza do símbolo, bem
como sua função numa dada religião, é maculada toda vez que este
22 | Filosofia da religião | FTSA
ocupa o lugar do absoluto. Logo, ele já não é mais símbolo do sagrado,
mas um ídolo. Não se trata mais do original, e sim de sua simulação.

Simular, na acepção de Jean Baudrillard (1991, p. 9), “é fingir ter o que


não se tem”. O símbolo passa a ser simulação toda vez que pretende
ou promete ter o que não tem; parte do princípio da equivalência ou de
igualação do não igual, como dizia Nietzsche. O problema é que esse
princípio de igualação que rege a simulação é, por consequência, um
princípio de aniquilação. Dizer que uma imagem é igual à realidade seria
o mesmo que aniquilar a realidade. Em termos teológicos, dizer que
um símbolo, que nos remete (por participação) ao sagrado ou a Deus,
equivale a seu referente (Deus), significa a abolição ou morte de Deus3.
Tentar domesticar o sagrado, por assim dizer, é o mesmo que transformá-
lo naquilo que ele já não é mais: num demônio ou num ídolo.

Em contrapartida, pelas razões acima expostas e caso se queira evitar a


idolatria, Severino Croatto defende que é preciso aceitar que:

A linguagem da religião, ou mesmo da Bíblia, é


simbólica. É um preconceito inexplicável entender o
simbólico como irreal. Tem lugar quando se confunde
o objeto convertido em símbolo com aquilo a que esse
mesmo objeto remete e que pertence a um âmbito
transfenomenal, inalcançável se não se revela de
alguma maneira no ser humano. Se bem observada,
esta condição simbólica da linguagem religiosa rompe
com a univocidade ou uniformidade das linguagens
impostas dogmaticamente. As novas experiências
de Deus correspondem a novos símbolos e a um
novo discurso da fé e da teologia, do querigma ou
proclamação. Se um novo discurso e novos símbolos
não são gerados, é sinal de que Deus está oculto porque
não há uma fé vivente que o descubra e expresse com
novas linguagens (Croatto, 2002, p. 17, tradução minha).

| Filosofia da religião | FTSA | 23


Os Mitos
Como vimos no tópico anterior, o sagrado tem tanto uma dimensão
transcendente quanto imanente, e não pode ser entendido fora dessa
intersecção. Pode ser inapreensível e não domesticável em sua natureza
inteira (infinita, inefável), mas somente se constitui como tal na medida
em que é reconhecido, nas hierofanias. Desse modo, há o sagrado-
em-si e o sagrado-para-nós, conforme ressaltei anteriormente. Agora
pretendo desenvolver uma das dimensões da linguagem religiosa. Meu
interesse particular está nos mitos: o que são? Que tipo de práticas eles
engendram ou regras de funcionamento social que ajudam a gerir? Que
crenças comuns gravitam em torno do mito? Como se dá sua aceitação
ou rechaço no mundo moderno? Algumas perguntas que devem nos
guiar na reflexão adiante.

Gênesis e o mito cosmogônico

Gênesis aponta para um ser humano que foi criado a fim de gozar das
benesses de um universo, fundado ex nihilo (do nada) para ser a sua
morada. Deus disse: “façamos o homem à nossa imagem, segundo
a nossa semelhança”. E assim se fez. “Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus ele o criou; criou-os macho e fêmea”. Os
termos “imagem e semelhança” definem o ser humano, em seu estado
original, com relação a Deus. Eles foram feitos do material divino e
dele possuem a centelha que aquece seus corpos e os movem para
a vida. No tempo mítico, Deus não estava longe de suas criaturas, em
especial, da humanidade que espelhava seus traços. Como diria Paulo, o
apóstolo, na Divindade (Javé) eles tinham a vida, o movimento e o ser, e
eis que afirmaram alguns dos poetas gregos a quem Paulo cita para os
atenienses: “Pois nós somos de sua raça” (Atos 17.28).

E Deus gerara seres de sua raça e da própria criação; do solo, pó da terra,


ele molda o homem; com seu Espírito (rúah) ele confere o sopro de vida
(nefesh), que anima a vida carnal do homem, de modo que ele se torna
um ser vivo, vivo para governar a própria vida que pulsa, rasteja, cresce

24 | Filosofia da religião | FTSA


e gravita a seu redor. A imagem e semelhança divinas refletem-se na
capacidade do homem de criar e dominar: “Sede fecundos e prolíficos,
enchei a terra e dominai-a. Submetei os peixes do mar, os pássaros dos
céus e todo animal que rasteja sobre a terra!”.

Eis o homem em sua condição mítica e primitiva: com mais privilégios


que os próprios anjos, ele é colocado sobre um jardim, o jardim do Éden
(do “prazer”), para ali ser mordomo-beneficiário de tudo o que Deus fez, e
que viu “que era muito bom”. Mas o homem não podia estar só, isso não
era bom aos olhos do Criador. Do próprio homem, fez-se a mulher, sua
companheira e ajudadora; ligados “umbilicalmente” e espiritualmente,
ambos tornam também “uma só carne”, vivenciando os prazeres da
existência e em harmonia entre si, com o restante da criação e, o mais
fundamental, em perfeita sintonia com seu Deus.

Este mito remete, pois, à criação do humano na terra, conforme relatos


cosmogônicos do livro de Gênesis. É rico em detalhes, figuras e
representações que, per si, geram um modelo, um paradigma correlativo
à origem do universo. Nele está implícita a ideia de relacionamento sem
rupturas entre o ser humano e a divindade, o imanente e o transcendente.
Sua produção se dá a partir de diferentes testemunhos de algumas
tradições literárias (em especial, a sacerdotal) do povo hebreu, dando
sustentação e fundamentação a toda a cultura religiosa e política
posteriormente formada.

Eis a função do mito, na visão de Mircea Eliade, em seu livro O Sagrado


e o Profano: revelar como uma realidade veio à existência, contando-se
uma história sagrada. Nesse sentido, a recorrência perene do homem
religioso a um “tempo sagrado” significa uma tentativa de restauração
de um estado temporal e cósmico em sua origem ou princípio (arché),
precedente ao estado existencial profano. Conforme elucida Eliade
(1996, p. 72), “é o eterno presente do acontecimento mítico que torna
possível a duração profana dos eventos históricos”.

Em outra obra, Origens, Eliade informa que nas línguas europeias a palavra
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“mito” indica, maiormente, “ficção” – imaginação, história fantasiosa.
O autor, porém, se propõe, no capítulo da obra em que analisa o misto
cosmogônico e a “história sagrada”, a estudar culturas em que o mito
significa verdade a respeito de algo, revela a realidade de algo.

O mito tem a característica primordial de contar como qualquer coisa se


originou – o homem, o mundo, uma instituição, e assim por diante.

Segundo Eliade (1989, p. 97), o “mito cosmogônico” tem precedência


sobre os demais, posto que nele se baseiam todos os demais mitos
de origem. É, nesse sentido, exemplar ou paradigmático. Conforme
analisa, “esta história sagrada primordial, reunida pela totalidade de
mitos significativos, é fundamental porque explica, e por isso mesmo
justifica, a existência do mundo, do homem e da sociedade” (Ibid., p. 97).
Esta é a razão, prossegue o autor, porque a mitologia é considerada, ao
mesmo tempo, uma verdadeira história: “ela relata como surgiram as
coisas, fornecendo o modelo exemplar e também as justificações para
as atividades do homem” (Ibid., p. 97).

Eliade ainda focaliza o exemplo dos povos Dayak, de Bornéu (ilha asiática).
Como para outros povos primitivos, o mito cosmogônico influencia os
princípios que governam a existência cotidiana desses povos, de modo
que a história sagrada é “re-vista” na vida da comunidade e na existência
individual de cada membro. “O que aconteceu no princípio descreve
simultaneamente a perfeição original e o destino de cada indivíduo”
Ibid., p. 99). Ainda baseado nesse exemplo, pode-se aferir, por fim, que
os mitos de criação do mundo (cosmogonias) são muito similares entre
muitos povos primitivos. Nota-se, na seguinte descrição de Eliade, uma
patente similaridade (em alguns aspectos) entre o mito Dayak e o mito
cosmogônico do Gênesis:

No princípio, diz o mito, a totalidade cósmica


encontrava-se ainda indivisa na boca da cobra d’água
enrolada. Surgem então duas montanhas e das suas
colisões repetidas nasce a realidade cósmica: as
26 | Filosofia da religião | FTSA
nuvens, os montes, o Sol e a Lua, etc. as montanhas são
as sedes das duas divindades supremas e são também
essas mesmas divindades. Elas, contudo, só revelam
as suas formas no final da primeira parte da criação.
Na sua forma antropomórfica, as duas divindades
supremas, Mahatala e sua mulher, Putir, procedem à
obra cosmogônica e criam o mundo superior e o mundo
inferior. Mas falta ainda um mundo intermédio, e a
humanidade para o habitar. A terceira fase da criação é
levada a cabo por dois calaus, macho e fêmea, que são
na realidade idênticos às suas divindades supremas
(Ibid., p. 99 - grifo meu).

Percebe-se que um dos aspectos que indicam similaridade entre os


referidos mitos é a indicação de uma “terceira fase” da criação, em que
as divindades criam macho e fêmea, para levar a cabo essa fase, e criam-
nas “idênticas” às divindades, à sua “imagem e semelhança”. Ambos
os mitos, portanto, relembram aquilo que Mircea Eliade, Rudolf Otto e
outros estudiosos da religião já observaram: a religiosidade, o anseio
pelo eterno e transcendente, é uma expressão inata ao ser humano.
Há uma referência a isso no Antigo Testamento, em Eclesiastes 3.11,
quando se diz: “Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também
pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir
as obras que Deus fez desde o princípio até o fim”.

Ou seja, além da beleza do universo, Deus permite ao homem ter um


senso limitado e parcial acerca do devir histórico, permanecendo
veladas, porém, a intencionalidade e ação divinas no que tange ao futuro
de sua criação. O homem tem um relance, uma chama acesa em seu
coração, mas não a plenitude da revelação dos tempos. Assim, coloca-se
em suspenso, pasmado e tateante diante do mistério da eternidade e de
sua própria existência, mantendo apenas aquela chama animada, lá no
fundo, que o mantém unido ao sagrado.

A alma humana contém a atração pelo numinoso, na linguagem de


| Filosofia da religião | FTSA | 27
Otto; segundo os autores Paim, Prota e Rodriguez (1997, p. 20), “a alma
humana possui o instinto religioso. Ele se revela nesse impulso interior,
nessa busca tateante, nessa ‘saudade do absoluto’ que a tantos homens
persegue”. E é precisamente essa “saudade do absoluto”, que faz com
que os homens criem e recriem o tempo todo seus mitos, fazendo-os
ressurgir com novas facetas, porém, em torno desse pathos ancestral.
“O homem”, expõe Eliade (1996, p. 89), “só se torna verdadeiro homem
conformando-se ao ensinamento dos mitos, imitando os deuses”.

Mitologia moderna: religião ‘sem Deus’

Nesse tópico pretendo fazer convergirem dois pontos de vista: o de


Mircea Eliade com o de Roger Bastide. Embora em instâncias de
pesquisa diferentes, ambos se ocupam de um só objeto mais amplo: de
religiões e de homens. E aqui quero focar especificamente a mitologia
moderna. A expressão parece estranha, à medida que todos sabem que
um dos intentos da modernidade foi o de romper com os mitos erigidos
até então, apresentando, em contrapartida, uma nova plataforma que
tornaria obsoletas quaisquer buscas por referenciais de vida na religião
tradicional (de matriz cristã) ou, caso se prefira, no universo transcendente
(ou das religiosidades). Bastide (2006, p. 97) afirma: “se há uma época
que entrou em guerra contra os mitos, essa época é a nossa”.

Tentava-se criar, portanto, o homem a-religioso ou secularizado, isto


é, que não cria nem tinha a necessidade sequer de recorrer à hipótese
da existência desse Deus (o Absoluto), que supostamente inventou o
cosmos. Assim, num mundo até então orientado por crenças, dogmas e
teologias, busca-se implantar um novo governo: o do homem, por meio
da razão e da ciência; de uma humanidade que, pela técnica, caminhava
irremediavelmente ao progresso. Estava em curso, como diz Eliade
(1996, p. 165), a dessacralização da morada humana, parte integrante
da transformação do mundo nas sociedades industriais do Ocidente
moderno. O sagrado era visto como um obstáculo à emancipação do ser
humano, à conquista de sua liberdade. O homem só seria verdadeiramente
livre quando matassem o último deus.
28 | Filosofia da religião | FTSA
Contudo, com a ávida intenção de fazer implodir os deuses e os mitos,
o homem moderno cria outros mitos. Um deles é apontado por Eliade:
de uma existência totalmente dessacralizada. Mesmo o homem
a-religioso conserva traços de uma vida religiosa, ainda que sejam
traços imemoriais ou inconscientes. Não existe vida profana em “estado
puro”, como nos apontou Eliade (1996, p. 27) em discussão anterior. Em
outras palavras, um homem “profano”, queira ou não, conserva traços
comportamentais religiosos de seus antepassados, embora não lhes
atribua uma significância propriamente religiosa. Isso quer dizer que
muitos dos que se autodeclararam “sem-religião”, ainda continuaram
se comportando religiosamente através de “mitologias camufladas” e
“ritualismos degradados” (Ibid., p. 166).

Dessa forma, Roger Bastide (2006, p. 97) inicia seu ensaio sobre a
mitologia moderna, fazendo alusão à observação de Karl Marx de que
“nossa civilização, longe de destruir os mitos, multiplicou-os”; e, também,
cita Bérgson: “o homem é uma máquina de inventar deuses”. De fato,
ao tentar abolir todos os deuses e mitos criados pelas religiões, a
modernidade acabou inventando muitos outros, erigindo para si uma
religião própria, porém, uma religião “sem Deus”. Mata-se o Deus cristão,
o Senhor criador do Universo, para edificar altares “religiosos” (sem ser)
a novos deuses, como a razão e a ciência. Como ressalta Bastide, o
objetivo era de desmitificar tudo.

E na verdade só criaram mais um mito, o da


desmitificação, infinitamente mais mistificador que os
outros todos que se queria abolir. Pois o homem não
pode viver sem mitos; o mito está, de certa forma, na raiz
ontológica de seu ser, e todo indivíduo que se respeite
irá sempre negar-se a se deixar castrar para ser bem
mais domesticado. (...) A ciência não destruiu esses
mitos, destruiu apenas a sua ordenação; logrou apenas,
em seu esforço obstinado de negação, cumprir o papel
das Bacantes, dispersando mundo afora os membros
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arrancados de Dioniso, Orfeu e Osíris... Só logrou matar
a mitologia “culta”, deixando-a perpetuar-se em estado
“selvagem” e, por conseguinte, ainda mais passível de
irromper dentro de nós com toda a sua fúria por estar
agora “incontrolada” (Ibid., p. 97-98).

“E como não haver uma criação incessante de mitos, se é verdade que


a mitologia é uma necessidade ontológica do homem?”, indaga o autor
(Ibid., p. 99-100). Ele continua: “Ao homem, que já não pode apoiar-se em
mais nada, pois nada mais tem sentido, só resta apoiar-se em si mesmo
e fazer jorrar de sua revolta novas flores míticas” (Ibid., p. 103). O mito do
progresso, sem dúvida, é um dos motores que movem o homem moderno.
Ele cria a ilusão de que humanidade progride não mais guiada pela
providência divina, mas por seu próprio esforço e inteligência. Arranca
os homens de seu desespero, gerando sentido ao presente ao futuro.
Ele não é mais “ordenado” no universo, mas agora “ordena”. Descobre-se,
portanto, nos termos de Bastide, uma nova arquitetura mítica.

Esse autor retraça o caminho da mitologia moderna em três etapas, que


resumirei abaixo:

(a) Um primeiro esforço se dá a partir da ciência. Inicia-se aqui o processo


de cultivo do prazer com o natural sem a necessidade de ou referência ao
sobrenatural (materialismo cientificista). A matéria e as leis físicas passam
a ser suficientes para explicar a realidade. Os progressos espetaculares
alcançados pela ciência, a partir do século XIX, introduzem o homem num
universo mítico e “fabuloso”; é a criação de uma nova religião, em que
o homem se religa ao mito, no entanto, sem a interferência dos deuses.
“Parece que, subitamente, a ciência supera o homem que a construiu e
torna-se pura divagação do espírito, aproxima-se da magia”. Bastide afirma
que o mecanismo de fabricação de mitos consiste, nesse particular, “em
dissociar um elemento do discurso conceitual do conjunto que lhe dá o
seu verdadeiro sentido, retendo apenas a ‘fulguração’ e transformando-o
em ‘imagens violentas’ – a violência aqui provindo da ruptura voluntária
introduzida na coerência da linguagem científica” (Ibid., p. 104).

30 | Filosofia da religião | FTSA


(b) Um segundo esforço se dá a partir da técnica. Nesse caso, a
máquina é, literalmente, o fabricante de novos mitos. Já não há como
impedir o progresso. A via é de transformação tecnológica do mundo,
o crescimento econômico, a expansão de fronteiras da natureza para o
“bem da humanidade”. Tudo passa a ser objeto de manipulação em nome
da civilização moderna, do “desenvolvimento” (que também é mito).
Como explica Bastide, “a princípio, o homem tentou manter a sua antiga
mitologia dentro desse novo clima. Tentou dar às cidades artificiais e às
maquinas invasoras os mesmos significados simbólicos a que estava
habituado” (Ibid., p. 105).

Entretanto, alguns resultados dessa mitificação da técnica, dessa criação


de novos símbolos, da substituição ou aniquilação do arcaico, têm sido
catastróficos: o século XX representa o cemitério das mitologias e das
utopias modernas. O preço da exploração e tecnologização da vida tem
sido o colapso geral do ambiente e da natureza. Os mitos da técnica
não conseguiram, assim, exorcizar por completo o pavor do ser humano
moderno, nem tampouco conferir as “respostas” que se buscava.

(c) Por fim, um terceiro esforço, segundo Bastide, é de ordem sociológica.


Trata-se da “fabricação das utopias”. O movimento das utopias é paralelo
ao do desenvolvimentismo; caminha na contramão dos valores erigidos
em torno do mito do progresso, rejeitando e contrapondo, ideologicamente,
o modelo de sociedade, até então, proposto. Bastide defende que as
utopias “não passam, na verdade, de mitos da sociologia, da marca da
recusa do homem em aceitar a época em que vive tal qual moldada pela
história” (Ibid., p. 107). Tem, no entanto, a mesma finalidade da mitologia
natural: “transcender a sua finitude acrescentando um suplemento de
significação às coisas”. Enquanto a mitologia natural transpõe esse
suplemento ao além místico, a utopia situa seu suplemento no além
histórico: o futuro (Ibid., p. 108). A revolta inerente ao mito das utopias,
porém, não lhe garantiram um futuro muito promissor, na análise de
Bastide.

A constatação desse sociólogo nesse artigo é a de que os significados


| Filosofia da religião | FTSA | 31
míticos não foram instintos da história, mesmo numa existência cada vez
mais dessacralizada. Num mundo cada vez mais fragmentado, restam,
por sobre as demais, de acordo com Bastide, as “mitologias pessoais”,
através das quais os mitos permanecem vivos:

Sobrepondo-se, fusionando-se também nos momentos


de crise ou abalos em nossas estruturas sociais. Aquilo
que Nietzsche, com efeito, invocara com todo desejo, “a
morte de Deus”, só podia terminar com a multiplicação
dos antigos deuses voltando à tona, ou com a criação
de novos deuses – a “ciência”, a “técnica” – de ora em
diante reivindicando para si o privilégio de holocaustos
sangrentos... O homem continuará sendo, sim, uma
fábrica de mitos, o que não é grave enquanto o mito
continuar sendo a expressão de nossa luta contra
a incompletude, e de nossa necessidade de “ser”
plenamente. (Bastide, 2006, p. 109-110)

Conclusão
Nesta unidade demos os primeiros passos no estudo da filosofia da
religião, focando em algumas compreensões elementares. Defendi
a ideia inicial de que a religião é “um sopro humano na busca pelo
incondicional”. Isto significa que há algo no ser humano que o move
em direção ao infinito, ao Eterno, ao desconhecido, mesmo que não
seja possível explicar as razões para isso. Ora, mas isso não garante o
contato ou o alcance. Afinal, como pode o condicional e o que há de mais
incerto atingir ou incondicional, ou o que há de mais certo e necessário
no universo?

A resposta é: não é possível. Na visão de Eclesiastes, isso se deu de


propósito: temos essa eternidade no coração, mas não sabemos nada
sobre os caminhos do Espírito, que sopra onde quer. Mas o Eterno
é gracioso, e resolve se revelar. O incondicional toca parcialmente
o condicional através da revelação. A religião, embora diferente da
32 | Filosofia da religião | FTSA
revelação, é também e paradoxalmente resultante dela. Daí sua relação
com a cultura; não se encontra Deus em um vazio sociocultural, e sim nos
termos de uma cultura e tempo específicos. Por fim, vimos com Caputo
que, como envolve o incondicional, a religião é coisa para os amantes,
e pode virar um negócio de vida ou morte, sem grandes garantias do
que vem primeiro ou tem a primazia. O Deus bíblico é o Deus da vida; as
construções e práticas religiosas ao longo do tempo, porém, pintaram-no
também como Deus da guerra, da intolerância e da morte. Muitas pessoas
se afastaram de Deus por causa disso. E, ainda assim, a religião não foi
extinta; pelo contrário, cresce cada vez mais a necessidade dela. Pode
ser exatamente porque a sede pelo incondicional nunca cessa, apesar
dos descaminhos do religioso condicional. Isso é uma pista pelo menos.

Em seguida, vimos que, quando falamos de sagrado, falamos do inefável


e do incondicional, que não pode ser acessado nem condicionado pelo
ser humano, pois é totalmente distinto. Em segundo lugar, avançamos
para o campo da manifestação do sagrado, e assim aprendemos que
sagrado e profano são “duas modalidades de ser” que formam a essência
da religião, no entendimento de Mircea Eliade. Num primeiro plano, o
sagrado se define em oposição ao profano e vice-versa. Num segundo
plano, concebeu-se que não há uma existência sagrada ou profana em
estado puro, de modo que o sagrado se revela no profano e o profano não
perde inteiramente, por mais que pretenda, sua dimensão sacral.

Sabemos, assim, que o sagrado pode se manifestar em objetos, lugares


ou pessoas, nas chamadas hierofanias. O que diretamente colocou diante
de nós o problema de saber se esse sagrado pode ser ou não contido ou
domesticado. A filosofia da religião de Paul Tillich ajudou no sentido de
mostrar que, na linguagem religiosa, criadora de símbolos do sagrado, o
que temos não é o sagrado-em-si, mas o sagrado-para-nós, transmutado
em experiência e linguagem humanas. E que toda vez que tomamos
símbolos como a coisa-em-si, mudamos seu status, transformando-o em
um ídolo ou demônio, nos dizeres de Tillich. As palavras finais do último
tópico (uma citação de Severino Croatto) oferecem para gente o que pode
ser considerada a linha mestra deste curso: tudo o que realmente temos
| Filosofia da religião | FTSA | 33
é linguagem. Logo, a filosofia da religião não tem Deus como objeto, mas
a linguagem, a experiência e os símbolos do sagrado.

Por último, sugeri que os mitos retornam e sobrevivem graças ao


homem, cujo referencial de existencialidade depende da recriação de
mitologias. Geração vai, geração vem, e os mitos parecem adaptar-se
(e não ser abolidos por) às transformações dos tempos. Mas, embora
transcendam as temporalidades – enquanto remetem a uma história
sagrada, paradigmática, meta-temporal – são ressignificados nas épocas
e vivências concretas dos homens, isto é, indicam uma experiência
histórica e remetem a um clima social e às regras de funcionamento
uma determinada cotidianidade, à medida que alteram a cosmovisão e o
“sentido da história” para os seres humanos.

Nesse sentido, é necessário ao filósofo da religião, que, antes, estude


e compreenda a história (e os mitos) que envolvem dado fenômeno
religioso, a fim de que, como consequência, apreenda sua contribuição
para a cultura em seu todo. Ao estudar um fenômeno religioso, o
pesquisador se depara com uma série de elementos pouco apreensíveis
por categorias racionais e históricas. Todavia, nem mesmo isso deve
impossibilitar uma filosofia da religião, pois, como elucida Mircea Eliade
(1989, p. 22):

Um dado religioso “puro”, fora da história, é coisa que


não existe, pois não existe um dado que não seja, ao
mesmo tempo, um dado histórico. Toda experiência
religiosa é expressa e transmitida num contexto
histórico particular. Mas admitir a historicidade das
experiências religiosas não implica que elas sejam
redutíveis a formas não-religiosas de comportamento.
Afirmar que um dado religioso é sempre um dado
histórico não significa que ele seja redutível a uma
história não-religiosa – por exemplo, a uma história
econômica, social ou política.

34 | Filosofia da religião | FTSA


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36 | Filosofia da religião | FTSA


Unidade 2: A experiência religiosa – entre a fé e a dúvida
Introdução
Essa segunda unidade trata da experiência religiosa, em primeiro lugar,
e o modo como ela engloba também as experiências de fé e dúvida do
ser humano, em segundo lugar. No âmbito do tema da “experiência”, será
uma tentativa de reunir e refletir sobre dois temas que, na minha opinião,
estão interrelacionados, embora não de uma maneira óbvia: a “experiência
histórica sublime”, tal como defendida pelo filósofo da história holandês
Frank Ankersmit, e a experiência religiosa. A experiência histórica é um
dos temas mais importantes da obra de Ankersmit – e foi um dos tópicos
de meu livro recentemente publicado sobre a trajetória intelectual desse
autor, chamado Frank Ankersmit: a metamorfose do historicismo (2021).

A experiência histórica no sentido ankersmiteano é um tipo raro e


complexo de experiência, totalmente diferente das experiências que
temos em nosso cotidiano, que são mais como “vivências”; ela pressupõe
a possibilidade de o historiador estar em contato direto com um passado
que já se foi há muito tempo. Por outro lado, há a experiência religiosa,
que é um tipo muito mais comum, pelo menos porque ouvimos mais
frequentemente sobre experiências dessa natureza. Estou pensando
aqui no tipo de experiência que normalmente tem (na mente das pessoas
ao menos) a ver com coisas sublimes e extraordinárias, como milagres
ou epifanias, que podem acontecer na vida daqueles seres humanos
que estão em busca de uma vida espiritual, e se veem, repentinamente,
tomados ou assombrados pelo Sagrado. Esse “assombro” é algo que
místicos de diferentes eras, como João da Cruz e Teresa de Ávila,
garantem ter experimentado. Contudo, mesmo os místicos – que estão
mais próximos da tradição apofática que da catafática (ver Glossário
abaixo) – tentaram encontrar palavras para expressar sua experiência ou
o caminho de sua relação com o divino de modo didático a seu público.
Pode, porém, uma experiência sublime ser expressa em linguagem?
Inversamente falando, há uma experiência que já não seja, em si mesma,
linguisticamente constituída?
| Filosofia da religião | FTSA | 37
Glossário
Apofática e catafática. Usei os termos de origem grega acima me
referindo a eles como tradições, mas também podemos tratá-los
como teologias. Assim, a “teologia catafática” é a forma mais
comum, que se baseia em afirmações que se podem fazer sobre o
ser de Deus ou a natureza divina a partir de sua própria revelação;
é também chamada de “via afirmativa”. Já a “teologia apofática” se
origina da tradição mística, partindo do ressuposto de que sobre
Deus não é possível dizer nada; se fala de Deus, assim, não é a
partir do que é, mas do que não é (“via negativa”); resiste, porém, à
proposições, assumindo a contemplação como “lugar” de encontro
com o divino.

Enquanto alguns estudiosos da linguagem no século XX afirmam que


não há experiência fora da linguagem – que, por sua vez, “percorre todo o
caminho” (goes all the way down), como diria Richard Rorty –, Ankersmit
defende que “a experiência está onde a linguagem não está”. Para ele, ter
uma experiência histórica significa ir além da “prisão da linguagem” (nas
famosas palavras de Nietzsche). Então, a perspectiva ankersmiteana
sobre a experiência está claramente em desacordo com a chamada
virada linguística – embora ela mesma não consiga escapar dos confins
da linguagem.

Mas seria o mesmo com a experiência em um sentido religioso ou


místico? O que os interessados em entender as possibilidades e os
limites da experiência religiosa podem aprender com a experiência
histórica sublime? Nessas questões me debruçarei na primeira parte
dessa unidade. Numa segunda parte, trataremos da experiência de fé e
sua relação com a dúvida. O objetivo dessa parte, então, será entender
melhor (filosofica e teológicamente) a fé: o que ela é? De que maneiras ela
pode se expressar? E, por fim: que relação possível há entre fé (enquanto
certeza) e as incertezas do viver? A ideia aqui é explorar essas perguntas
a partir do horizonte cristão, que já é suficientemente complexo.
38 | Filosofia da religião | FTSA
Objetivos
• Definir experiência histórica e verificar sua relação com a experiência
religiosa;

• Analisar as principais características e modos de expressão da


experiência religiosa ou mística no horizonte cristão;

• Definir fé e identificar alguns de seus modos de expressão;

• Refletir sobre os chamados “paradoxos da fé”.

Experiência histórica
Primeiramente, quero falar sobre Frank Ankersmit e sua noção de
“experiência histórica” – como ela vem à tona em sua obra, e o que ele
quer dizer com isso. Depois, falarei brevemente sobre a experiência
religiosa e algumas de suas variantes, pensando particularmente em que
medida o problema colocado por Ankersmit pode afetar ou iluminar as
discussões sobre a experiência no âmbito das relações com o sagrado.
Em último lugar, farei algumas considerações sobre a pergunta: podem
os extremos se tocar? Em outras palavras, como podemos lidar com a
aporia que parece nos colocar numa encruzilhada do tipo ou-ou: ou se
tem uma experiência sem a mediação linguística, ou se tem mediação
linguística – descrição, interpretação, representação – sem poder
acessar as dimensões da experiência? Em que medida é possível falar
em um justo meio entre a linguagem e a experiência? Para além das
especulações teóricas, o que a prática (histórica e religiosa) nos diz?

Comecemos por Frank Ankersmit e a experiência histórica. Brevemente


falando, Frank Ankersmit é um filósofo da história holandês contemporâneo,
vivo e ainda ativo, que tem uma vasta e respeitada obra na área. Para
quem está pouco familiarizado com o que um filósofo da história faz,
podemos dizer que ele/a basicamente investiga filosoficamente o
trabalho dos historiadores, fazendo perguntas tais como “o que fazem
os historiadores quando escrevem história?” ou “como os historiadores
| Filosofia da religião | FTSA | 39
podem ser bem-sucedidos em contar uma história confiável sobre o
passado?”. Ao fazer perguntas dessa natureza, ele quer se aproximar
do trabalho dos historiadores mais do que fazer especulações sobre a
natureza da história em si ou chegar a um entendimento de seu curso
como um todo (um curso universal), como a filosofia da história clássica
(de Kant, Hegel, Marx e cia) pretendeu fazer.

Assim, em uma primeira fase de seu trabalho intelectual, Ankersmit


dedicou-se ao que chamou de “lógica narrativa” ou a “semântica da
linguagem do historiador”. Ele então entendia que, ao escrever história
(de forma essencialmente narrativa) é como se o historiador nos
introduzisse a partes do passado através de pedaços de linguagem, o que
nos daria não necessariamente o passado em si (tal como foi), mas uma
representação linguística dele – que mais tarde ele chamou de historical
representation. E não há nenhuma dimensão do trabalho historiográfico
que não seja mediado pela linguagem – isto é, ele é linguístico ou
representacionalista do começo ao fim. Assim, para entender o que
acontece no nível do texto histórico, a filosofia da história de então (dos
1980s) deveria ser linguisticamente orientada.

Na década de 1990, porém, Ankersmit começa a levantar dúvidas sobre


esse modelo, representado pela famosa frase de Richard Rorty de que
“language goes all the way down” (a linguagem percorre todo o caminho).
Será que existe um outro caminho ou um outro meio de acessarmos
o passado senão (apenas) por meio da representação linguística?
Para responder a esta pergunta, Ankersmit recorre a uma rota antiga,
desprezada pelos filósofos da linguagem e historiadores em geral, que
é a rota da experiência (que eu chamei, em livro já citado, de “rota 66”
da filosofia da história). Isto, reconhecendo de antemão, com Ankersmit,
que “a experiência não tem título de nobreza: é a mais ‘proletária’ entre as
concepções filosóficas; uma prototípica ‘perdedora’” (Ankersmit, 2017, p.
268). Essas reflexões de cerca de dez anos sobre essa rota esquecida ou
marginalizada da experiência foram compiladas em um livro chamado
Sublime Historical Experience (2005), que partiu de um descontentamento
40 | Filosofia da religião | FTSA
com essas teorias linguisticamente orientadas (como a virada linguística,
o pós-estruturalismo, o desconstrucionismo, e como a própria obra prévia
de Ankersmit). O que elas têm em comum, segundo Ankersmit (2016, p.
352), “é a convicção da impossibilidade de um acesso direto ao passado;
o passado ficou escondido atrás da barreira impenetrável da linguagem”.
Já seu interesse pelo que ele chama de “experiência histórica” advém
precisamente da possibilidade que ela vislumbra de se restabelecer um
contato direto com um foragido passado.

Como isto é possível? Em sua obra (não apenas Sublime Historical


Experience, mas outros ensaios e entrevistas), Ankersmit indica uma
variedade de caminhos para responder a essa difícil questão, partindo
de duas convicções básicas: (a) de que é possível ao historiador ter algo
como uma “experiência histórica”, um contato direto com o passado, que
primordialmente lhe era apenas objeto de estudo; e (b) de que “onde a
experiência está, a linguagem não está” e vice-versa.

Um dos meios de explanação do conceito se dá pela oposição entre


dissociação e associação. Para explicar a ideia de Ankersmit, podemos
usar o tema da identidade ou a figura do “eu”. Se entendermos nossa
identidade como uma construção, podemos dizer que ela está ligada à
arte da associação, isto é, você normalmente se reconhece a partir da
associação com um “eu”, que por sua vez está associado com um gênero,
uma família, um nome, uma nacionalidade, uma cultura, uma profissão,
bem como a uma série de preferências e gostos adquiridos ao longo da
vida. Este é seu “eu associativo”, por assim dizer. A experiência humana,
porém, vai nos mostrando que temos também um “eu dissociativo”, não
plenamente identificado com e pelas funções, relações e performances
que desempenha no mundo da vida. Um “eu” difícil de ser descrito ou
nomeado linguisticamente e que raramente emerge à superfície (até
porque se vê ofuscado pela personagem). Alguns místicos e estudiosos
da psicologia, porém, deram-lhe o nome de “eu profundo” ou “verdadeiro-
eu”, confundindo-se às vezes com o que também chamamos de “alma” ou
psiquê. Somente por meio da arte da dissociação de nossas identidades
| Filosofia da religião | FTSA | 41
previamente assumidas é que podemos entrar em contato imediato com
esse eu, cujo nome verdadeiro só pode ser pronunciado pelo Eterno,
conforme postulam místicos como Thomas Merton (2017).

Ou seja, conforme Ankersmit (2005, p. 228), enquanto nossas identidades,


concepções de mundo, história e escrita da história (eu incluiria aqui
também a religião e a teologia) são “produtos da associação”, a experiência
histórica seria um produto da dissociação: de nossas identidades, do
contexto, da linguagem, como se estivéssemos fora de nós mesmos.
De modo que, nesses momentos, morremos mortes parciais e somos
reduzidos apenas a este “eu” da experiência. Por isso ele associa a
experiência histórica a uma experiência de perda: você entra em contato
direto com o passado, mas, quando se torna consciente desse encontro,
é quando este se perde novamente. É um “flash momentâneo” na mente
dos historiadores – acompanhado por uma absoluta convicção de
autenticidade, provocada pela “linha de uma crônica, uma pintura ou os
acordes de uma velha canção” – que, num piscar de olhos, enxergam
o passado e a história “por dentro” (Ankersmit, 2012, p. 188). Quando
se põem a representar historicamente aquela parte do passado, porém,
já estão olhando-a “por fora”. Em outras palavras, quando representa o
passado, o historiador tem um papel ativo, mas quando é tido por uma
experiência histórica, permanece ele (sua língua, imaginação e contexto)
em estado de passividade.

Ankersmit chama de “experiência histórica” o que seu compatriota Johan


Huizinga chamou de “sensação histórica”. Nas palavras de Ankersmit:

A sensação é momentânea e tem pouca ou nenhuma


duração; é abrupta e não pode ser prevista. É
acompanhada por uma sensação de ansiedade e
de alienação: a experiência direta ou sensação da
realidade provoca a perda da naturalidade até mesmo
dos objetos mais triviais. Isso explica por que a
sensação é tão enigmática e por que as palavras
certas parecem falhar para descrever seu conteúdo:
42 | Filosofia da religião | FTSA
a experiência aqui precede a linguagem e toda a
complexa teia de associações que estão incorporadas
na linguagem. [...] A sensação produz uma fissura
na ordem temporal para que o passado e o presente
estejam momentaneamente unidos de uma forma que
nos é familiar, por exemplo na experiência do ‘déjà vu’.
(Ankersmit, 2005, p. 132)

Experiência religiosa ou mística


Possíveis conexões entre a sensação ou experiência históricas e
experiências de ordem religiosa ou mística fogem ao escopo dos interesses
de Ankersmit. Entretanto, ele abre uma brecha para uma correlação quando
afirma que, precisamente por resistir a quaisquer esquemas cognitivos
ou categorias pré-existentes na mente subjetiva (como queria Kant), a
experiência histórica “possui todas as características de uma revelação...,
descritas em formulações que, às vezes, fazem fronteira com o místico”
(Ankersmit, 2005, p. 252). A pergunta a ser feita aqui é: em que medida essa
revelação transcende, de fato, os limites da linguagem e da consciência
humanas, a se considerar que, como declara o princípio tomista, “Quidquid
recipitur ad modum recipientis recipitur” (o que quer que seja recebido,
é recebido de acordo com a maneira do receptor)? Ou, como interpreta
Raimon Panikkar (2015, p. 57), “a revelação não está no revelans, nem no
revelatum, mas no revalanti (aquele que a recebe), no receptor”.

Para lidar com essa questão, antes é preciso lembrar que, nos estudos
(teológicos e filosóficos) da experiência, a experiência religiosa designa,
de modo geral, a experiência de pessoas com o sagrado mediada pelos
ritos, palavras, simbologias e liturgias religiosas; ou seja, ela se dá mais
por meio da associação que por meio da dissociação, como exposta
por Ankersmit. Essa experiência em sentido mais amplo, porém, tem
variações que envolvem a dissociação, levando o “eu” da experiência a um
profundo desvanecimento de si mesmo como ego, como na “experiência
mística” (Bingemer, 2013), “transcendental” (Merton, 1993), e também
chamada de “experiência de Deus” (Panikkar, 2015).
| Filosofia da religião | FTSA | 43
Saiba mais
Há um intercâmbio entre os três termos, como se pode notar pelas
definições seguintes, respectivamente por Maria Clara Bingemer,
Thomas Merton e Raimon Panikkar:

Entendemos aqui por experiência mística aquilo que a filosofia e a


teologia consensuam na sua definição: trata-se de uma consciência
da presença divina, percebida de modo imediato, em atitude de
passividade, e que se vive antes de toda análise e de toda formulação
conceitual. Trata-se da vivência concreta do ser humano que se
encontra, graças a algo que não controla ou manipula, frente a um
Mistério ou uma Graça misteriosa e irresistível, que se revela como
Alteridade pessoal e age amorosamente, propondo e fazendo uma
comunhão impossível segundo os critérios humanos e que só pode
acontecer gratuitamente e por Graça. (Bingemer, 2013, pos. 4221)

A experiência correspondente é o que aqui denominamos


‘experiência transcendente’ ou a iluminação da sabedoria
(sapientia, Sophia, Prajna). Atingir essa experiência é penetrar
a realidade de tudo, é apreender o sentido da própria existência,
encontrar nosso lugar próprio nas estruturas e planos, e relacionar-
se perfeitamente com tudo que está numa relação de identidade e
amor. (Merton, 1993, p. 94)

A experiência de Deus tem a ver, obviamente, com esta experiência


do eu profundo, mas não se esgota nela. (...) É uma experiência
ôntica e ontológica: é a experiência que, enquanto experiência,
me ultrapassa; os papeis se invertem: eu não sou sujeito da
experiência, mas me situo no interior da experiência mesma. É,
no fundo, a experiência mística, a experiência da profundidade,
do infinito, da liberdade que há em tudo e em todos. Por isso a
experiência de Deus confere liberdade por um lado, e humildade
por outro. (Panikkar, 2015, p. 58).

44 | Filosofia da religião | FTSA


As percepções sobre a experiência de Deus (ficarei com este
conceito) acima variam em sua formulação de como podemos
concebê-la, mas coincidem na ideia de que ela é tanto misteriosa
quanto graciosa, não dependendo da vontade ou da intencionalidade
do sujeito. Trata-se de uma experiência passiva, com uma mínima
ou nenhuma participação da pessoa, a quem a experiência
simplesmente acontece de maneira inesperada, não programada
ou provocada. Parecem concordar também com a noção de
Raimon Panikkar (2015, p. 43) de que a experiência compreende
quatro momentos distintos:

• A experiência pura, momento vivido, experiencial, imediato.

• A memória desse momento, que nos permite falar dele, agora


não mais como a experiência pura, mas filtrada pela recordação.

• A interpretação que fazemos da experiência, que nos leva a


descrevê-la como dolorosa, sensível, amorosa, de Deus etc.

• Sua recepção no mundo cultural que não criamos, mas que


nos é dado e que confere à experiência uma ressonância particular.

A visão dos místicos ou estudiosos da mística aqui exemplificados


coincide com a de Ankersmit, de que o momento da experiência ou da
sensação é como um “beijo estático” entre o historiador e o passado, ou,
no caso da experiência de Deus, entre a pessoa e o divino. É imediata,
mas não inconsciente (já que a pessoa é capaz de se lembrar ao menos
de relances desse sublime encontro); não é provocada pela pessoa, que
se encontra passiva no momento da experiência, mas sua consciência
está ativa enquanto ela é atravessada pelo “toque” da experiência. Ainda
que os estágios da rememoração, da interpretação e da ressonância
da experiência não se confundam com seu estado “puro”, em que
medida podemos chamá-la de “pura” enquanto a consciência do “eu”
da experiência permanece ativa? E como poderia ser transformada pela
| Filosofia da religião | FTSA | 45
graça e o amor experimentados no instante místico se não pudesse fazer
sentido do conteúdo da experiência?

É aqui que hermeneutas e estudiosos da linguagem colocam suas


principais objeções, não apenas dizendo que há uma consciência alerta
enquanto a pessoa “sofre” a experiência, mas de que tal experiência
não pode ser, de modo algum, imediata, pois já é, desde a origem,
interpretação, ou seja, já pressupõe, desde o princípio, “um mundo
compartilhado de interpretações”, como defende Frederico Pieper (2011,
p. 374). Ele argumenta ainda que, para que seja possível este encontro
entre o humano e o que ele chama de “entes” é necessário que haja uma
abertura ou uma clareira, e é a linguagem a responsável por abri-la, de
modo que se pode dizer que “o sagrado e aquele que o experimenta
compartilham de um mundo” (Pieper, 2011, p. 373).

Está claro que a visão de Pieper, por sua filiação à hermenêutica, entra
em choque tanto com a perspectiva de Ankersmit, quanto a de boa parte
dos místicos, para quem a experiência de Deus é sempre experiência do
indizível (ou o que não pode ser expresso em palavras). Entendo que a
compreensão bíblica endossa essa perspectiva de Pieper e, ao mesmo
tempo, cria problemas para ela, fazendo também coro com os místicos.
Na experiência cristã, há sim uma “abertura de clareira”, mas não é a
linguagem propriamente quem produz essa abertura, mas o próprio
Verbo Divino (Cristo), que, segundo João, “se fez carne e habitou entre
nós” (Jo 1.14). Ou seja, a Palavra se encarnou e se revelou, com graça e
verdade, inclusive por meio de palavras e de linguagem. Nesse caso, há
um receptor da revelação de Deus que, em primeira instância, é o próprio
Deus encarnado. Na medida, porém, que seu testemunho ganha corpo
e se expande, envolve naturalmente outros receptores. E a Mensagem,
assim, como relembra o princípio tomista, é recebida “de acordo com a
maneira do receptor” – não o fosse, aliás, não haveria quatro evangelhos
entre tantas outras formas de representação da vida e da obra de
Jesus Cristo nos Novo Testamento (e fora dele). Nesse sentido, dizer
que o Verbo se fez carne implica em dizer, igualmente, que o verbo se
relativizou, à medida que se sujeitou à interpretação. E, como provocou
46 | Filosofia da religião | FTSA
de Gianni Vattimo (2016, p. 58), “somente um Deus relativista poderia
nos salvar”, isto é, um Deus kenótico, que se esvazia de sua divindade
e, assim, nos convida a também nos esvaziarmos de nós mesmos em
nossa experiência dele – experiência “de Deus” e não “sobre Deus”, como
enfatizou Panikkar –, e, consequentemente, a esvaziar nossa teologia de
suas pretensões à absolutização.

Aqui reside, ao mesmo tempo, o problema que a experiência cristã cria


para a perspectiva de que o sagrado e o humano compartilham do mesmo
mundo. Sim, compartilham, mas na forma kenótica ou esvaziada, em que
há tanto um processo de desnudamento como de ocultação do Divino.
O Deus que se esvazia é tanto “Deus Emmanuel” quanto é o “totalmente
outro” de Rudolf Otto; é o Deus que se revela e, ao mesmo tempo, o Deus
que se oculta. Pois como poderia Deus revelar-se ao humano senão por
meio de uma ocultação de sua potência divina? O Deus kenótico é o
Deus impotente. Daí, a experiência de Deus ser um convite para perder-
se por amor a fim de se achar (cf. Mt 16.25), ou, como disse Panikkar,
um misto de liberdade e de humildade. Desse modo, como completa ele,
“não se deve ter medo de perder-se; o medo da perda total de si mesmo é
uma prova evidente de que este ‘si mesmo’ que tem medo não é o real e
autêntico ‘tu’. O tu repousa confiante no eu” (Panikkar, 2015, p. 59).

Nesse aspecto, se há uma necessária e imensurável ocultação do divino


em toda experiência de Deus – para o bem, aliás, da própria humanidade
–, é preciso aquiescer à percepção dos místicos de que há uma dimensão
da experiência que permanece inacessível ao domínio da linguagem ou
aos esquemas cognitivos do ser humano. Se narrar o que foi possível
memorizar da experiência provém da liberdade inerente à experiência
de Deus – da qual gozaram os místicos de diferentes épocas, que não
se furtaram em testemunhar parte daquilo que viram –, reconhecer que
nem tudo o que se viu, sentiu e experimentou pode ser dimensionado em
termos de linguagem é produto da humildade inerente à toda imitação
do Cristo. Não estou seguro se isto nos permite dizer, com Ankersmit,
que “a linguagem está onde a experiência não está”, mas, pelo menos,
| Filosofia da religião | FTSA | 47
reconhecer que existem mistérios na experiência de Deus que aguçam
os sentidos sem, contudo, se reduzirem a eles.

Uma das histórias de C. S. Lewis em seu clássico O grande abismo


(2006) – livro que narra a fabulosa viagem do escritor-narrador de ônibus,
ao lado de outros personagens, passando pelo céu e o inferno –, pode
ajudar a ilustrar e ampliar este ponto. Compartilho trechos dela abaixo:

– Silêncio agora! – disse de repente o Professor. Estávamos de pé junto


a alguns arbustos e além deles vi um dos Seres Sólidos e um Fantasma,
que aparentemente tinham acabado de encontrar. O perfil do Fantasma
parecia vagamente familiar, mas logo me dei conta de que aquilo que eu
vi na Terra não era o homem em si, mas fotografias dele nos jornais; ele
havia sido um pintor famoso.

– “Deus” – exclamou o Fantasma, olhando a paisagem ao redor.

– Deus o quê? – perguntou o Espírito [os entes do céu (J.M.)].

– Como assim “Deus o quê”? – quis saber o Fantasma.

– Em nossa gramática, Deus é um substantivo.

– Ah... compreendo! Estava me referindo... bem, a tudo isto. É... é....


gostaria de pintar isto.

– Eu não me preocuparia tanto com isso no momento se fosse você.

– Escute, aqui não é permitido que a pessoa pinte?

– Primeiro, é preciso olhar.

– Mas, já olhei. Acabei de ver o que quero fazer. Deus! Queria ter trazido
meu material comigo!

– O Espírito sacudiu a cabeça, espalhando luz de seus cabelos ao fazê-lo.

48 | Filosofia da religião | FTSA


– Esse tipo de coisa não serve para nada aqui – disse ele.

– Como assim? – perguntou o Fantasma.

– Quando você pintava na Terra, ao menos nos primeiros anos, era porque
captava vislumbres do Céu no cenário terreno. O sucesso de sua pintura
devia-se ao fato de levar outros a apreciarem esses vislumbres também;
aqui, entretanto, você está diante da coisa em si. É daqui que saem as
mensagens. Assim, não há vantagem alguma em nos contar sobre este
país, pois já o vemos. Na verdade, podemos vê-lo melhor que você. (...)
– Em quanto tempo acha que eu poderia começar a pintar? – perguntou
o Fantasma.

O Espírito deu uma risada. – Não percebe que jamais pintará se estiver
pensando sobre isso?

– Como assim?

– Ora, se estiver interessado neste lugar só porque quer pintá-lo, jamais


aprenderá a vê-lo.

– Mas é exatamente assim que um verdadeiro artista se interessa pelo


lugar.

– Não – disse o Espírito – você está esquecendo que não foi assim que
tudo começou. A luz em si foi seu primeiro amor, e você apreciava a
pintura apenas como um meio de falar da luz.

– Oh, isso foi há séculos – disse o Fantasma. – A gente supera essa fase.
Você, naturalmente, não viu meus últimos trabalhos. Ficamos cada vez
mais interessados na pintura em si.

– É verdade. Eu também tive de me libertar disso. Tudo não passava de


uma armadilha. Tinta, cordas de instrumentos musicais e pinturas eram
necessárias lá embaixo, mas elas são também perigosos estimulantes.
Todo poeta, musicista, pintor, se não for pela Graça, afasta-se por amor
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às coisas que conta, pelo amor de contá-las, até que, no Inferno Profundo,
só consegue se interessar por Deus por causa do que fala sobre Ele.
(Lewis, 2006, p. 94-97)

Podem os extremos se tocar?

Creio que essa parte da história de Lewis pode trazer uma riqueza de
insights para responder à questão acima, e aqui gostaria de partilhar, à
guisa de considerações finais sobre este tópico, algumas delas.

1. Há um “ver” da experiência que é sucedido pela atitude de espanto,


maravilhamento e reverência, como quando o Fantasma (o pintor)
exclama: “Deus”, quando se depara com a paisagem do contraforte
(foothills) das montanhas do céu (o céu de Lewis não poderia ser menos
antropomórfico que quaisquer outros projetados pela imaginação
humana). Nesse momento, o extremo da beleza divina se toca com o
outro extremo (da percepção e consciência humana), sem que, porém,
visão e paisagem se confundam. A reverência permanece como antídoto
contra a pretensão do olhar.

2. Há um “impulso” posterior, e demasiadamente humano, de querer


expressar em palavras, ou de forma pictórica, a sensação provocada
pela experiência. Começamos, talvez, descrevendo o que sentimos no
momento – denotando que a experiência se dá com nossos sentidos
ativos, isto é, que ela não nos desumaniza de modo algum – e, em
seguida, tentando partilhar de algum modo aquilo que foi visto. Tanto a
expressão “Deus”, quanto o desejo de pintar a experiência, por parte do
Fantasma, são indícios desse impulso (no caso dele, quase instantâneo
– viu parte do céu e logo quis pintar).

3. Há um “alto lá” inerente à experiência de Deus – representado pelo


alerta do Espírito na história de Lewis –, recordando-nos que nem tudo
na experiência foi feito para ser representado, pintado, expresso ou
narrado. Há um mistério na experiência feito apenas para a sensação.
É claro que, no caso dos personagens da história, eles já estavam no

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céu, já viam a “coisa em si”, de modo que essa visão deveria bastar. É
como se o Espírito dissesse: “O que você vê é para seus olhos apenas.
Não faz sentido pintar aqui”. O desejo de pintar que ele tinha, enquanto
ser vivente na terra, vinha, segundo o Espírito, dos “vislumbres do Céu
no cenário terreno”. Temos esses vislumbres, assim, tanto por meio de
nossa experiência terrena comum, por assim dizer, como por meio de
experiências incomuns ou sublimes do transcendente. De todo modo,
tudo o que temos são vislumbres. Ou, seguindo a intuição ankersmiteana,
seria melhor dizer: esses vislumbres “nos têm”, no sentido de que somos
por eles tomados.

4. Há um “brilho” na experiência de Deus que remonta ao “brilho original”


de nossa existência em Deus, o que também chamamos de “primeiro
amor”. Quando afirma, nas palavras do Espírito, que “a luz foi seu primeiro
amor” e que “você apreciava a pintura apenas como um meio de falar da
luz”, Lewis parece nos remeter à nossa “primeira inocência”, um estágio
da caminhada humana com Deus em que nossas obras, de qualquer
natureza, eram uma forma livre e leve de dar “testemunho da luz”, nunca
a própria luz (cf. Jo 1.6-8), ou como dizem os budistas, eram apenas “o
dedo que aponta para a lua”. Em dado momento, porém, começamos a
confundir o dedo com a lua, e a narrar as obras como se elas fossem
a própria luz. É quando nosso ímpeto de “falar de Deus” se torna tão
primordial que perdemos nosso interesse no próprio Deus – o que é uma
das grandes tentações do fazer teológico.

Quando os extremos se confundem é que eles se chocam em nossa


experiência de Deus. E, assim, podemos nos tornar ótimos intérpretes
da experiência de fé, por um lado, privando-nos, por outro, de qualquer
experiência de fé – vivendo um ateísmo prático, ou o que Fabrice Hadjadj
(2017) chamou de “fé dos demônios”. Afinal, julgamos ter amadurecido
a ponto de dizer que nosso interesse original pela luz foi “superado”,
como disse o Fantasma, de modo que nosso foco recaiu cada vez mais
na pintura e menos em sua fonte inspiradora. Ao mesmo tempo, nesse
“brilho” há também um chamado para um retorno, o que os místicos

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chamam de “segunda inocência”. Em que a luz volta a ser nosso interesse
primordial, e a brilhar através de nossas experiências, sem que elas mesmas
sejam enaltecidas. Os extremos voltam a se tocar sem se confundir. Então,
poderemos dizer com o apóstolo Paulo: “Fui crucificado com Cristo; assim,
já não sou em quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20, NVT).

Entre a fé e a dúvida
Quando o meu coração estava amargurado e no íntimo
eu sentia inveja, agi como insensato e ignorante; minha
atitude para contigo era a de um animal irracional.
Contudo, sempre estou contigo; tomas a minha mão
direita e me susténs. Tu me diriges com o teu conselho,
e depois me receberás com honras. A quem tenho nos
céus senão a ti? E na terra, nada mais desejo além de
estar junto a ti. O meu corpo e o meu coração poderão
fraquejar, mas Deus é a força do meu coração e a
minha herança para sempre (Sl 73.21-26, NVI).

À luz do texto bíblico acima, gostaria de te convidar para uma breve


reflexão sobre a fé hoje. Em seguida, prosseguiremos com definições
filosóficas sobre fé, em diálogo com Paul Tillich e Sören Kierkegaard.

Pois bem, uma das coisas que mais me preocupa hoje quando o assunto
é “fé” é o pouco espaço que nossas definições e percepções mais ou
menos comuns deixam para o lado incerto e fraco da fé. Sobretudo
porque, ainda que o conceito de fé tenha um aspecto doutrinário ou
quase definitivo – e se não respeitar aquilo, não será considerado fé – o
fato fundamental é que a fé não existe fora da pessoa. E, como pessoas,
adotamos, criamos, defendemos e obedecemos a convicções, mas
também somos abalados em relação a elas, o que denota uma dupla
condição de fragilidade: (a) primeiro a condição da vida humana; (b) a
condição de nossas certezas, que muitas vezes se abalam na medida
em que invariavelmente nosso mundo se abala. A questão no caso é:
somos treinados a lidar com a ambiguidade óbvia que nos constitui
como humanos e, como tal, também atinge nossa própria fé?

52 | Filosofia da religião | FTSA


Os salmos são cheios dessas ambiguidades, como este que lemos acima,
cuja autoria é atribuída a Asafe. Ao que tudo indica, este homem andava
com Deus, buscando e apreciando seus conselhos; mas, no meio dessa
trajetória, cometeu alguns deslizes próprios de quem, mesmo sendo de
fé, é gente, é humano; e o que possivelmente o tornava um homem de
Deus não era apenas o fato de que ele foi um “escolhido” de Deus, mas de
que também, a despeito de suas dúvidas, inquietações, medos e outros
sentimentos demasiadamente humanos, ele prosseguia escolhendo
Deus. E escolher Deus implica em admitir sua fome do Eterno, mas
também ser honesto com Ele, e saber que Ele “é” e continua “sendo” a
despeito de nós não sermos, e que Ele permanece ao nosso lado, apesar
de nossos desvios e fraquezas.

É disso que, a meu ver, trata esse texto, em que o salmista admite ter
sido tomado pela inveja e amargura em seu coração em relação aos
arrogantes e ímpios, mas prósperos; que pisam nos outros e só pensam
em si mesmos, mas, a despeito disso, parecem se dar bem em tudo: não
adoecem, estão sempre fortes, oprimem os outros, agem como quem
pode se apossar da terra, como se esta fosse só deles; além disso, ainda
zombam de Deus, não se preocupam com nada e só vão aumentando
sua riqueza. O salmista então é tomado pela insensatez e conclui que
toda a sua busca por se manter reto e puro, em agir corretamente e temer
a Deus, foi inútil, pois o fez penar ainda mais enquanto esses pérfidos aí
gozam de todas as benesses que ele, pelo bem realizado, deveria estar
gozando. Quer dizer, quem não se sentiria injustiçado? Quem não se veria
tentado e duvidar do caminho da retidão, isto é, dos caminhos de Deus?
Quem não passaria pelo vale da insensatez e da amargura como passou
o salmista por um momento, que não sabemos quanto tempo durou?
É isto que chamo de “mundo abalado”; perdemos nosso chão, e vemos
como nossas convicções podem ser solapadas e se perder nestas horas.

Mas o salmista não era insensato ao todo; simplesmente porque, diante


de Deus, ele admitiu fraquejar, reconheceu seus minutos de bobeira e
insensatez; mas mesmo neles, percebeu que não saiu do lado de Deus
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- ou que Deus não havia debandado. Por isso ele decidiu que melhor é
continuar andando com Deus. O sentido de sua fé era maior que a própria
fé, pelos modos pelos quais ela se constrói, pelos invólucros frágeis nos
quais ela, muitas vezes, se sustenta. O coração humano é enganoso,
como defendeu Jeremias. Por ele passam torrentes de pensamento,
impulso e volição que podem nos afastar tanto do centro de quem somos,
como da própria fé. Por isso, como diz o salmista, ele pode sim fraquejar,
e é bom que ele fraqueje, pois é fraquejando que reconhecemos nossas
fragilidades, vulnerabilidades, defeitos; e quando sabemos disso, fica
talvez mais fácil entender que somos apenas humanos, e que a força do
nosso coração vem não dele, mas de quem o fez e faz pulsar, ou seja,
Deus – isto para quem é de fé. Falemos mais sobre em que ela consiste
agora.

Em que consiste a fé?

Em Temor e tremor, Kierkegaard (2012, p. 17) dizia que ainda que se


possa formular sistematicamente toda a substância da fé, “não quer
dizer com isso que se alcance a fé, como se nós a penetrássemos ou
tivesse ela se introduzido dentro de nós”.

Essa frase diz algumas coisas: primeiro, que em toda definição de fé há


uma indefinição mais ou menos explícita; isto é, quanto mais tentemos
definir a fé, mais ela permanece indefinível. Segundo, que fé não é
essencialmente um “conhecimento”, pois como ele diz no livro Migalhas
filosóficas, todo conhecimento passa pelo plano temporal e histórico, e,
se a fé envolve uma relação com o Eterno, então seria absurdo falar que
ela é um conhecimento (Kierkegaard, 2008, p. 91). Terceiro, que saber
qualquer coisa sobre a fé, no sentido histórico, não faz de ninguém uma
pessoa de fé, no sentido existencial.

É útil aqui a definição pessoal de fé de Hermann Hesse:

A fé, como eu a entendo, não é fácil de traduzir em


palavras. Talvez possa ser assim expressa: Creio

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que, apesar do seu absurdo patente, a vida ainda sim
tem um sentido; eu me resigno a não poder perceber
este sentido com a razão, mas estou pronto a servi-
lo, mesmo que para tal tenha que me sacrificar. A voz
desse sentido, ouço-a em mim mesmo, nos instantes
em que estou completa e verdadeiramente vivo e alerta.
O que a vida exige de mim nesses instantes, quero
tentar realizar, mesmo indo contra os padrões vigentes
e as leis comuns. Ninguém pode ter essa crença sob
imposição, nem se forçar a ela. Só se pode vivê-la”
(Hesse, 1971, p. 7).

Posso saber muito de teologia ou ter um conhecimento bíblico invejável,


por exemplo; e ainda assim não ser um crente: ela em nada afeta meu viver.
Posso ter sido testemunha ocular de manifestações miraculosas, que
suspostamente apontem para a existência de Deus (como muitos foram
no tempo de Jesus, segundo relatos do Novo Testamento), e nem por isso
poderia ser considerado um discípulo (Ibid., p. 88), isto é, alguém cuja vida
é seguir os rastros do mestre Jesus. Amá-lo e confiar nele significa fazer o
que ele manda, guardando sua palavra (Cf. Jo 14.21; 15.14).

Kierkegaard se expressou bem a esse respeito quando analisou a


situação do “discípulo contemporâneo”, isto é, daquele que, por viver na
época em que Jesus se encarnou, pôde presenciar muitos de seus ditos
e feitos. No entanto, o ponto de Kierkegaard é que o fato de conhecer
uma circunstância histórica – como aquela da Palestina nos dias de
Jesus –, pode fazer de alguém uma testemunha ocular, mas de forma
alguma o transforma automaticamente em um discípulo, “o que aliás se
pode ver pelo fato de que para ele este saber não significa nada mais que
algo histórico”, ao passo que a fé, ainda que seja um paradoxo que une o
que nosso autor chama de “eternização do histórico” e a “historicização
da eternidade”, ou seja, ainda que o incondicional se manifeste de modo
histórico, a fé essencialmente fala daquilo que está além da história
(Kierkegaard, 2008, p. 88, 91).

| Filosofia da religião | FTSA | 55


Mas isto ainda deixa sem resposta a pergunta principal aqui: o que é a
fé? Partirei da definição de Paul Tillich (1957, p. 24) em Dinâmica da fé:

Fé, como estar tomado por aquilo que nos toca incondicionalmente, é
um ato central da pessoa inteira. Se acontecer que apenas uma das
funções que constituem a pessoa é identificada com a fé, desfigura o
sentido da fé.

Sabemos três coisas por aqui: é ser tomado pelo que nos toca
incondicionalmente; trata-se de um ato da pessoa inteira, ou seja, tudo
o que há em mim é orientado pela fé; ela deixa de ser fé quando envolve
apenas parte do que eu sou. Nos termos de Kierkegaard (2010, p. 88), a
fé é uma paixão, que penetra na totalidade do ser. Então, toda tentativa
de dar significados à fé, retomando Tillich (1957, p. 10): “de derivá-la de
alguma outra coisa; pois essas tentativas já pressupõem fé”.

Isso significa que a fé, que se manifesta antes de tudo no “centro do eu


pessoal, no qual percebemos o incondicional, o infinito, e por ele somos
possuídos” (Ibid. p. 10), acaba gerando nesse ser, curioso do sentido da
vida, o desejo de derivá-la em outras coisas. Que outras coisas são essas?
Com base na reflexão de C. S. Lewis (2005, p. 184-185) em Cristianismo
puro e simples, podemos falar em pelo menos dois sentidos a partir dos
quais se compreende fé:

Crença: um conjunto de credos centrais que formam a base da fé de


alguém. Trata-se da fé que é aceita e defendida a partir de doutrinas
consideradas verdadeiras. Há uma diferença, portanto entre a fé, no
sentido apontado por Tillich, e a fé como “crença”.

Virtude: consequência do caráter do crente. Trata-se da fé que vive e age


a partir de um conjunto de orientações de cunho moral, como fazer o
bem ou ser misericordioso. Lewis, porém, pergunta: o que há de moral
ou imoral em se acreditar ou não em determinados princípios de fé?
Acredita-se não porque vê nisso um dever, mas porque crê que aquela fé
(e ele está falando propriamente aqui de suas “evidências” ou conteúdos)

56 | Filosofia da religião | FTSA


é verdadeira. Não crer não faz da pessoa que descrê alguém imoral
necessariamente. Entretanto, para pessoas de fé, é “inevitável que
surjam boas ações” (Lewis, 2005, p. 198).

O homem e a mulher de fé, contudo, ainda são assaltados pela


possibilidade do fracasso no cumprimento de sua virtude e, como
consequência, pelo difícil encontro com quem são de verdade. Como
bem lembra Lewis (Ibid., p. 189, 190), essa tentativa, porém, é positiva
no sentido de que “nenhum homem sabe realmente o quanto é mau
até se esforçar muito para ser bom”; de tal modo que “a principal lição
que aprendemos quando tentamos praticar as virtudes cristãs é que
fracassamos”. É precisamente esse fracasso (bem desenvolvido e
reconhecido por Paulo em Romanos 7), numa perspectiva bíblica, que
pode reconduzir o fiel aos braços do incondicional e de sua graça, que
nos possibilita tanto o perdão quanto a reconciliação.

Os paradoxos da fé
Na famosa definição de Hebreus, a fé é “a certeza daquilo que
esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Hb 11.1). Tomada
fora do contexto e de modo descomplicado, essa definição pode
enganar um pouco no aspecto dessa “certeza” e dessa “convicção”
sobre a qual fala o texto. Que tipo de certeza é essa? Em que se baseia
tal convicção? A tese de Hebreus 11, no verso 1, perde muito de seus
sentidos possíveis se desatrelada de todo o texto. Minha intenção não
é fazer uma exposição do texto, e sim apontar alguns paradoxos da fé
importantes nele.

O primeiro é o paradoxo da fé entre a certeza e a incerteza. Do que a


fé pode ser certa? Daquilo que, do ponto de vista humano, aparenta
ser o mais incerto. A fé, por exemplo, é certa da existência de Deus,
não porque Deus tenha se mostrado de maneira clara por meio de
evidências ou provas, e sim porque, na linguagem de Tillich, esta pessoa
foi tomada pelo incondicional e o eterno. Como diz Kierkegaard (2012,

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p. 77): “A fé é antecedida por um movimento de infinito; é apenas então
que ela surge, nec inopinate, em razão do absurdo”. Tillich (1957, p. 65),
de modo semelhante, também afirma que “todo ato de crer pressupõe
participação naquilo para que está dirigido. Sem uma experiência anterior
do incondicional não pode haver fé no incondicional”.

O cientista tem provas de uma realidade na medida em que essa realidade


se dá a investigar, e então ele tem uma certeza objetiva. O médico pode
chegar a ter certeza sobre as origens de uma doença X, porque os exames
que ele fez provaram que ela veio da ação de uma bactéria Y. Na fé não é
assim. A fé não é apenas certeza do mais incerto, como certeza que se
sustenta sob condições incertas. Hebreus diz que quando Deus chamou
Abraão, por exemplo, este se dirigiu “a um lugar que mais tarde receberia
como herança, embora não soubesse para onde estava indo” (11.8).
Abraão partiu na certeza da promessa, no entanto, sem saber. Creu para
essa existência, mas não obteve o que esperava nessa existência. Creu
porque foi movido pelo incondicional, e porque teve a coragem da fé e
o risco de suportar suas eventuais dúvidas e incertezas. E, como diz
Tillich (1957, p. 15), “é suportando corajosamente a incerteza que a fé
demonstra o mais fortemente o seu caráter dinâmico”.

O segundo é o paradoxo da fé entre o visível e o invisível. Já disse


anteriormente que o fundamento da fé (o incondicional) se encontra
além da concreticidade dos fatos, portanto, além do que os olhos podem
ver, de modo que a testemunha ocular, digamos, de um milagre, não
necessariamente se torna um discípulo. Hebreus diz que a fé é “prova
das coisas que não vemos”. Então “fé”, nesse sentido mais estrito,
significa confiança naquilo que não se pode ver, ao que não se tem
acesso imediato.

Tomemos o exemplo de Moisés (11.23-29). O texto diz que, ao abandonar


as riquezas e pompas do palácio no Egito, Moisés “permaneceu firme
como quem vê o que é invisível” (v. 27). Ora, a própria ideia de “ver o
invisível” já é um paradoxo. Logo, os olhos que “viram” não são estes
humanos, mas os da fé, que se cria a partir da visão do inexistente porque
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“vê além”. Aqui facilmente alguém pode se recordar do que Jesus disse
a Tomé, segundo o evangelho de João. Depois que este o viu e tocou
em sua mão e em seu lado, declarou “Senhor meu e Deus meu”. Vendo
aquilo, Jesus replicou: “Porque me viste, creste? Bem-aventurados os
que não viram e creram” (Jo 20.26-29). “Assim, a fé crê no que não vê”
(Kierkegaard, 2008, p. 118)

O terceiro é o paradoxo da fé entre a promessa e a realização. Chegamos


a culminância dos outros dois paradoxos: o discípulo, que tem a confiança
certa nas condições mais incertas, que crê naquilo que não vê, mas
espera ansiosamente, deve também, como os “heróis da fé” de Hebreus,
acreditar e viver segundo orienta a promessa, sabendo, porém, que pode
não chegar a experimentá-la em vida. Quando pensamos na figura do
herói no sentido hollywoodiano, a imagem que mais comumente surge
é de poder, luta, com eventuais contratempos, mas sabendo que, no
fim, o triunfo é certo, pois o herói sempre vence. Sem muita consciência
projetamos essa imagem na vida, e não diferente na vida de fé. Nutrimos
a certeza de que aquele que plantou o bem, lutou para alcançá-lo,
trabalhou duramente para sua conquista, ao final, será recompensado.
Entretanto, a realidade é mais complexa que isso. Eclesiastes tentou nos
alertar a esse respeito ao concluir que a vida é miserável, fugaz, cheia de
sofrimento e sem sentido; que a sabedoria pode trazer vida, mas nem por
isso o sábio está garantido em comparação com o tolo, às vezes a vida
vira do avesso, e vemos o sábio sofrendo muito enquanto o tolo, apesar
de suas tolices, só se dá bem. Ele também diz que sol nasce para todos
e o fim é o mesmo para todos, pobres ou ricos, sábios ou tolos, justos ou
injustos. E que, durante a vida, “cedo ou tarde, a má sorte atinge a todos.
Ninguém pode prever a desgraça. Como peixes capturados numa rede
cruel ou pássaros numa gaiola, os homens e as mulheres são capturados
pelo mal acidental e repentino” (Ec 9.11-12, A Mensagem).

Podemos discordar, ficar bravos e profundamente incomodados com


Eclesiastes, e com certa dose de razão, afinal, geralmente não somos
preparados para lidar com as más notícias – nem pela família, tampouco
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pela sociedade ou pela religião –, apenas com as boas, como se o otimismo
e o pensamento positivo nos garantissem vitória e vida longa. Contudo, de
nada adianta espernear, fechar os olhos ou negar a realidade. Quem pensa
que a vida de fé pode blindá-lo contra o sofrimento, facilmente envereda
pela rua do engano e da ilusão. Primeiro, porque não há nenhuma garantia
cósmica de que ter fé é ter proteção e segurança; segundo, porque não
há nenhuma garantia bíblica, no sentido global, que sugira isso. Muito
pelo contrário. Andar nos caminhos da fé, por sua própria natureza e
pela natureza da vida, implica em enfrentar dificuldades várias, como
foi o caso dos anti-heróis de Hebreus. Experimentaram, sim, a proteção
divina em algumas circunstâncias e até viram algumas promessas sendo
cumpridas, mas também “enfrentaram abusos, açoites e, sim, algemas e
prisões”; alguns “foram apedrejados, serrados ao meio, assassinados a
sangue frio”. Vaguearam pela terra, sem teto, força ou amigos, “vivendo
como podiam nas periferias cruéis do mundo”, que, como diz o autor, não
era digno deles! (11.32-38, A Mensagem).

E o autor de Hebreus finaliza claramente expressando o paradoxo em


questão: “Entretanto, nenhum desses exemplos de fé puseram a mão
na recompensa prometida. Deus tem um plano melhor para nós: que
nossa fé se junte à deles, para formar um todo completo, como se a vida
de fé que eles tiveram não fosse completa sem a nossa” (11.39-40, A
Mensagem). Caminhar na fé, segundo Hebreus, implica em lançar-se
nos paradoxos sem seguro de vida ou de triunfo. Aliás, Kierkegaard foi
taxativo e um tanto duro a esse respeito, seguindo a lógica ilógica de
Hebreus, quando disse que:

Em verdade, se ocorresse à fé alguma vez a ideia de


avançar assim, triunfalmente en masse, então ela não
precisaria autorizar alguém a cantar refrões satíricos,
porque de nada adiantaria proibi-lo a todos. Mesmo que
os homens emudecessem, ouviríamos sobre esta louca
procissão uma risada estridente como aqueles sons
zombeteiros que a natureza faz ouvir no Ceilão; pois a

60 | Filosofia da religião | FTSA


fé que triunfa é a mais ridícula de todas as coisas. Se a
geração contemporânea de crentes não teve tempo de
triunfar, nenhuma outra o conseguirá; pois a tarefa é a
mesma, e a fé é sempre militante; mas enquanto ainda
houver luta haverá a possibilidade de derrota, e por isso,
no que concerne à fé, jamais se triunfa antes do tempo,
ou seja, jamais se triunfa no tempo [...]. (Kierkegaard,
2008, p. 152-153, grifo meu).

Que vantagem há na fé? Que proveito ela, porventura, traz? Afora as


promessas falsas provenientes de uma falsa piedade – porque apartada
da vida real –, a resposta honesta pode ser: nenhuma! E quem disse que
a fé tem a ver, primordialmente, com vantagem e com proveito? Se algum
proveito há na fé – claro que estou falando aqui da fé cristã – esse não
está primeiramente voltado para a pessoa em si, mas para o próximo da
fé, tanto no presente, quanto no futuro, pois a fé que vive no paradoxo
se concretiza de várias formas já, só que plantando sementes para a
eternidade. O final do capítulo 11 de Hebreus é sugestivo de que a fé do
discípulo não é fé em si ou para si, mas é fé para a posteridade, é a fé que
cresce e amadurece nos outros. É, nesse sentido, uma dádiva, um bem
comunitário, um tipo de fé que se forja na junção do si mesmo e do/com
o outro. Ali germina, ali cresce, e dali se expande para a eternidade.

Conclusão
A fé é um fenômeno complexo para a Filosofia da Religião. Sobretudo
porque ela pode se expressar fenomenalmente, mas normalmente não
se retém em fenômenos, expandindo-se para o terreno do indizível. Por
isso, foi conveniente trabalhar com Kierkegaard e Tillich nesta unidade,
pois foram filósofos que compreenderam essa dimensão anterior ou
precedente da fé, que dogma religioso nenhum pode expressar ao todo
ou reter; na verdade, segundo Tillich, todo conteúdo ou reflexão sobre
a fé no sentido cristão já pressupõe a existência da fé. Pois, mais que
um conhecimento, a fé é um sopro do incondicional movendo-se no
coração do condicional e do humano. Instiga menos palavras e mais
| Filosofia da religião | FTSA | 61
ações, embora todo esboço de fé no ser envolve alguma reflexão sobre
a fé. Kierkegaard apropriadamente a definiu como um paradoxo, e o
texto de Hebreus, como vimos, pode ser muito instrutivo sobre alguns
dos paradoxos derivados da vida na fé, e que geram uma reflexão mais
profunda sobre seus múltiplos significados.

À luz do que discutimos na primeira parte desta unidade, posso também


dizer que a fé, em suma, é um desafio. Como permanecer crendo quando
“Deus” – ou seja, a ideia, seus sistemas ou as grandes narrativas de
referência – está morto e a religião em ruínas? É preciso muito mais que
o anseio por consolo e alento para manter a fé de espíritos honestos
viva; antes, é preciso a coragem de assumir-se como um não-ser sem
fé, um não-ser sem Cristo. E que não quer a fé como refúgio do mundo,
mas como modo de ser-ver-viver-agir no mundo. Quer, portanto, uma fé
humana, uma fé mundana. Mais que o “salto no escuro” de Kierkegaard,
crer é querer crer, como o homem que a Jesus disse: “creio, mas ajuda-me
na minha falta de fé”; crer é crer que se crê (Vattimo, 2018) ou acreditar
em acreditar, e é ter razões mais profundas que as que, pelas limitações
próprias de nossa finitude, cabem na razão, razões da sensibilidade
última de cada ser, razões nem sempre explicáveis ou demonstráveis.

Permanecer na fé, contra todos os questionamentos que eventualmente


fazemos aos seus conteúdos, como diz Tillich (1957, p. 24), é um ato
de coragem, e mostra que a fé é bem maior que os invólucros que
inventamos para contê-la; em suma, é ser possuído por “aquilo que
nos toca incondicionalmente”. Envolve a pessoa inteira. Não somente
a razão, tampouco só as emoções. Não apenas convive com a dúvida
existencial, mas se alimenta dela. Sua única certeza é a do incondicional.
Seu principal mote é o impulso de viver, a despeito da própria morte.

Em resumo: fé é aquilo que, mesmo manquejando, se mantém quando


todos os seus adornos perdem sua razão de ser, e quando só resta o que
Tillich (2009) chama de “certeza ontológica” ou “elemento incondicional
da fé”, absoluto que não se retém em linguagem nem pode ser enquadrado
em conceito algum, mas que, na falta de um nome melhor e condizente,
62 | Filosofia da religião | FTSA
e enquanto dele é preciso falar, concordo em prosseguir chamando-o de
‘O eterno’, ‘Deus’, ou simplesmente “Paizinho”. Mas, se a fé humana está
sempre em construção, inacabada, seu próximo passo talvez seja menos
palavra e rito, e mais silêncio e ação ou vida. Quem sabe já estejamos
caminhando nessa direção. Tomara que sim.

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64 | Filosofia da religião | FTSA


Unidade 3: Religião e modernidade
Introdução
Nesta unidade quero explorar, em termos gerais, a questão paradoxal
sobre o que ou em que criam/creem os modernos. Para tanto, certamente
terei de responder algumas perguntas, tais como: Quem foram/são os
modernos? O que é a modernidade? Quais são suas bases e o que vem
estabelecer? E, mais particularmente, qual é a sua relação com a crença,
com o tema ou a ideia de Deus e com a religião? Isto para começo de
conversa, e suponho que o máximo que poderemos alcançar aqui é “um
começo”, já que se trata de um tema tão vasto e que pode ser explorado
sob diferentes perspectivas.

Isto já é indicativo de que aqui adoto uma perspectiva ou ponto de vista


e, dessa forma, deixo tantos outros de lado. Meu interesse ou ponto de
chegada nesta reflexão reside no universo da crença e da religião. E daqui
me vejo inclinado a dizer que é um equívoco pensar que os modernos ou
a modernidade representam um período em que não se cria em mais
nada, ou ainda, que não se cria mais em Deus. Digo isso por duas razões:
primeiro, porque, como veremos, ainda que na modernidade a crença
num Deus criador e provedor do universo e da vida tenha sido posta
em cheque, isto não implicou no fim da religião e de sua influência. Em
muitos aspectos, ela cresceu ainda mais nesse período que, digamos,
compreende os séculos XIX e XX, sobretudo.

Segundo, porque o descarte de Deus protagonizado por pensadores


modernos não implica em dizer que eles saíram do universo da credulidade
para o da incredulidade. Apenas que, ao invés de erigir seus altares para
Deus, eles passaram a erigir altares para outros “deuses” que a própria
modernidade criou para si sob o pretexto da não crença, da não religião e
da racionalidade pura. Minha intenção aqui é expor e analisar pontos de
vista sobre o que aqui chamo de “crença dos modernos”, e pensar de que
maneira, até hoje, ainda somos ou não afetados por isto. A discussão
pode render, e diante da enormidade dessa tarefa e o pouco espaço que
temos, serei mais pontual na narrativa que segue.
| Filosofia da religião | FTSA | 65
Objetivos
• Conhecer alguns dos paradigmas da era que antecede aos modernos;

• Analisar a sustentação das bases, “crenças” e críticas modernas;

• Verificar o caráter “religioso” do adeus à religião pelos modernos.

• Empreender uma crítica da crítica moderna à religião.

O universo da crença entre os pré-modernos


Antes de falar dos modernos, precisamos ter ou relembrar uma noção
básica sobre o que existia antes deles ou do universo que tentaram
sobrepor. Não farei um salto muito grande ao passado, não é necessário.
Concentrar-me-ei em apenas delinear, a partir da Idade Média, qual era o
centro e sentido de existência das pessoas, e qual era o papel específico
da religião nisto tudo. Pense nisso como uma introdução bastante
limitada, porém necessária para o que vem adiante.

A Idade Média foi um período da história de consolidação da crença


em Deus e do cristianismo como instituição no ocidente europeu. Digo
“crença”, tendo em mente aqui a distinção feita (e já mencionada na
unidade 2) por Harvey Cox entre o que ele chamou de “era da fé” e “era
da crença”. A “era da fé” começou com Jesus e os discípulos, e cresceu
com os seguidores para os quais a fé era a vida vivida no Espírito do
Cristo, com esperança e segurança no estabelecimento do reino de
Deus, “uma nova era de liberdade, cura e compaixão que Jesus tinha
demonstrado”. Já a “era da crença”, vem depois, marcadamente no
II século de existência da igreja, quando seus líderes começaram a
formular programas de orientação aos novos recrutas de Jesus, que não
o conheceram pessoalmente, nem aos seus discípulos. Segundo Cox, “a
ênfase na crença começou a crescer quando essas instruções primitivas
foram transformadas em catecismos, substituindo a fé em Jesus por
declarações a seu respeito” (Cox, 2009, p. 5).
66 | Filosofia da religião | FTSA
Isto foi criando uma classe especializada de teólogos que passaram a
ser os intérpretes oficiais da fé cristã, e a formular seu credo próprio em
concílios como o de Niceia (325 d.C.) e o de Calcedônia (451 d.C.). O
primeiro foi convocado pelo imperador Constantino, que investiu esforços
para a institucionalização do cristianismo – o que veio a se oficializar
somente em 380 d.C., com Teodósio I, que a tornou religião oficial do
império – e naquele concílio foi instituído o credo apostólico. O segundo
decidiu temas importantes, como a dupla natureza de Cristo (humana e
divina), segunda pessoa da Trindade. Segundo Cox (2009, p. 7), a era da
crença resistiu duramente a cerca de 1500 anos, ou seja, a Idade Média
toda e encontrando seu discutível eclipse com a Revolução Francesa
e o Iluminismo, ambos ambientados na Europa do século XVIII. Antes,
porém, alguns atribuem à Reforma Protestante e ao Renascimento o
papel de crítica e transição em relação a este antigo modelo, para o novo
paradigma que viria surgir com o Iluminismo.

A visão de mundo pré-iluminista ou pré-moderna foi marcadamente


influenciada e orientada pela religião cristã e sua visão sobre Deus, o
mundo e o ser humano. Segundo Stanley Grenz (2008, p. 93), de Agostinho
até a Reforma, o campo intelectual e dominante da sociedade foi regido
por teólogos que, mesmo discordando em vários pontos, coincidiram em
sustentar a crença de que a realidade era um todo ordenado, tendo Deus
como seu Criador, redentor e único regente. Este Deus governa em seu alto
e sublime trono, nas alturas e acima da terra, mas penetrou nos negócios
humanos para promover a nossa salvação, e depois revestiu alguns
homens com uma autoridade especial para que tudo fizessem em nome
dele aqui na terra (aqui sintetizei a ideia de Deus do chamado “teísmo”).

Aqui entra, por exemplo, o papel da ordem e da hierarquia que dominam a


igreja institucionalizada até os dias de hoje. A igreja passou a ser o reino,
e fora dela não se pode obter salvação, parafraseando o famoso dito de
Orígenes. Todo o universo e seus mistérios, a vida e a morte, o espaço e
o tempo, eram explicados a partir de Deus, que “continuava a operar na
vida dos seres humanos, dirigindo o fluxo da história e, de modo mais
| Filosofia da religião | FTSA | 67
significativo ainda, agindo na igreja, por intermédio da graça que era
comunicada por meio de atividades eclesiásticas” (Grenz, 2008, p. 94).

Ruptura moderna: a religião nos limites da razão


Era da razão: é como costuma ser chamado o período que sucede ao do
Renascimento europeu e marca uma ruptura, ainda que não completa,
mas certamente radical, com os valores e crenças estabelecidos e
consolidados por mais de mil anos da história do Ocidente cristão. A
Renascença, que literalmente significa “renascimento” ou “reavivamento”,
havia sido um período em que se viu um reavivar do espírito clássico ou
da herança cultural da antiguidade, mais particularmente das civilizações
grega e romana, que, para os renascentistas, eram notáveis inspirações
para uma evolução nas artes, na filosofia e nas ciências. O humanismo
foi um de seus principais ideais e ressaltava a beleza, grandeza moral, e a
inteligência do ser humano (o “homem natural”), em franca oposição com,
ao menos, boa parte da visão medieval, em que o homem era diminuído
em relação à criação, imbuído de um sentimento de culpa por causa
de seu pecado e de eterna dívida para com Deus. Exaltou a busca do
conhecimento conforme a visão científica e questionou veementemente
a autoridade da igreja (Grenz, 2008, p. 92).

Entender esta transição é de suma importância para a compreensão dos


rumos da religião na modernidade. Paul Tournier, em seu livro Mitos e
neuroses (2002), apresenta uma analogia interessante e didática sobre
isso. Primeiro, ele compara a Antiguidade à infância da humanidade, em
que o infante descobre sem muito esforço e espontaneamente a beleza
da arte, da poesia, das questões filosóficas, e do lúdico – aliás, quase
tudo para ele é lúdico. Depois a humanidade passou pela Idade Média,
que ele compara com a idade escolar, entre os 8 e 15 anos, tempo em
que a criança aceita sem questionamentos a autoridade dos pais e dos
professores, pois de tudo sabem e em tudo são perfeitos. É a idade da
religião aprendida, seguida e não questionada. Depois vem o período do
Renascimento, representado pela adolescência, em que aquele infante
cresce, começa a amadurecer em algumas áreas e a se embriagar com
68 | Filosofia da religião | FTSA
experiências e saberes novos. Esta nova experimentação do corpo
e do mundo, o faz questionar e levantar-se contra as autoridades que
antes respeitava candidamente, reclamando o direito de pensar por si e
de conduzir-se a si próprio, rejeitando qualquer forma de subordinação
(Tournier, 2002, p. 14-15).

A analogia de Tournier para por aí. Mas eu prossigo pensando a partir


dela, porque agora preciso falar do Iluminismo ou da Idade da Razão,
cuja chegada representou um distanciamento ainda maior do ideário e
cosmovisão medievais, e uma consolidação da desconstrução promovida
pelos renascentistas, estabelecendo um novo pensamento não somente
na filosofia, mas também na ciência. Segundo Grenz, foi de fundamental
importância para esta virada, ainda no período do Renascimento, a
afirmação de Nicolau Copérnico (1473-1543) de que a terra não era o
centro do universo, colocando o sol como centro do sistema solar.
Posteriormente, Galileu Galilei (1564-1642), famoso cientista italiano,
levaria adiante o heliocentrismo copernicano, teoria que seria condenada
como herética pela Inquisição, que também condenou Galileu. Esta
e outras descobertas “solaparam paulatinamente o modelo medieval
do cosmo como estrutura de três andares em que o céu localizava-se
espacialmente acima da terra e o inferno na parte inferior dela” (Grenz,
2008, p. 100). E, diga-se de passagem, é impressionante como essa
remota e improvável visão medieval ainda tem um forte apelo simbólico
sobre a visão do “mundo espiritual” de muitos crentes – o céu (e Deus)
está “lá em cima”, e o inferno (e o Diabo) “lá embaixo”, e todas as imagens
dantescas decorrentes disso, que ainda pintam a Deus como um ser
irado e punitivo, definitivamente distante da humanidade.

O período iluminista (século XVIII), seguindo a trilha de Tournier, pode


ser comparado à fase adulta da humanidade, de emancipação ou
independência em relação a seus referenciais anteriores; Deus e a religião
não estão mais no comando e oferecem todas as respostas; o ser humano
independente, guiado pela razão e instrumentalizado pela ciência, ocupa
agora o proscênio da história, que passa a ser reinterpretada à luz dessa
| Filosofia da religião | FTSA | 69
virada, que muitos chamaram de “virada antropocêntrica”, em que Deus
desocupa o centro das explicações da realidade e o ser humano o assume.
Entra-se numa nova era em que a religião de nossos pais cada vez mais
deixa de ser a nossa religião; como contrapartida, fundamos uma nova
religião (para nós mesmos, oculta talvez), que não é a religião de Deus
ou da igreja, e pode ser chamada de religião da humanidade, onde os
mitos, as crenças e superstições improváveis do passado dão lugar à
razão e ao saber científico, que se fundam nos princípios científicos e
de objetividade, ou seja: acredita-se apenas naquilo que a razão pode,
em tese, dar conta, e no que pode ser comprovado por métodos de
verificação e verossimilhança.

Não me deterei em analisar e detalhar as correntes de pensamento e


pensadores iluministas, pois esse não é o foco aqui. Quero, porém,
concentrar-me no conteúdo e na visão iluminista de modo geral,
mencionando um exemplo ou outro apenas. Stanley Grenz aponta
algumas características ou marcas fundantes do pensamento iluminista,
sobre as quais passo a discorrer a seguir:

1. Razão. Já disse anteriormente que o iluminismo também é visto como


“era da razão”. Não a razão como as capacidades mentais do ser humano
apenas – ainda que a exaltação destas capacidades esteja implícita –, mas
a razão como estrutura da mente humana que permite com que esta possa
discernir a estrutura do mundo externo. Aqui temos uma influência forte
de Immanuel Kant (1724-1804), que, diferentemente de John Locke (1632-
1704), entendia que não era a experiência da realidade que determinava a
estrutura racional, mas a estrutura racional é o que nos permite ter alguma
experiência da realidade. Nas palavras de Grenz (2008, p. 103):

O princípio iluminista da razão, portanto, supunha


a existência de uma habilidade humana capaz de
conhecer a ordem fundamental de todo o universo. Foi
sua crença na racionalidade objetiva do universo que
deu aos intelectuais da Idade da Razão a confiança
de que as leis da natureza são inteligíveis e de que o
70 | Filosofia da religião | FTSA
mundo pode ser transformado e submetido à atividade
humana. Foi também sua devoção à harmonia do
mundo racional e às obras da mente humana que
tornaram o exercício da razão crítica tão importante
para os pensadores do Iluminismo.
2. Natureza. Os intelectuais iluministas enfatizavam que toda forma de
conhecimento precisava estar alicerçada e resultasse da própria natureza
das coisas, e que o universo é regido pelas leis da natureza. Ainda que
acreditassem na natureza como “obra de Deus”, a descoberta de seu
funcionamento e suas leis não é produto da fé em Deus, mas da razão,
capaz de ler cientificamente “o livro da natureza”.
3. Autonomia. A elevação destes dois princípios anteriores, que
promoveram a “virada antropocêntrica”, acabou provocando um terceiro:
o da autonomia desse ser humano racional, que assume e reivindica
sua identidade antropocêntrica e individualista. Não mais se apelaria
para as autoridades externas do passado (a Bíblia ou o magistério da
igreja), mas a uma autoridade interna ao homem, proveniente do uso da
razão. O iluminismo, nesse sentido, é a libertação desse ser humano das
tutelas que antes o cercavam, utilizando a definição de Kant. Em suma,
representa sua saída da condição de menoridade (dependência) para a
de maioridade (independência).

Saiba Mais
Leiamos a explicação original de Kant (1983, p. 41, tradução minha):
“O iluminismo é a saída do homem de sua menoridade autoimposta.
Menoridade é a inabilidade de usar o próprio entendimento sem
a ajuda de outro. Esta menoridade é autoimposta quando sua
causa reside não na ausência de entendimento, mas na ausência
de coragem e determinação para utilizá-lo sem a guia de outro.
Sapere aude! [Ouse saber!]. ‘Tenha a coragem de utilizar seu próprio
entendimento’ 12 – este é o lema do iluminismo”.

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4. Progresso. O forte otimismo em relação ao futuro, como resultado
desta visão, bem como dos avanços científicos e tecnológicos atingidos
na Europa ocidental graças às revoluções (científica e industrial),
promoveram a crença de que o mundo caminhava para se tornar o
melhor dos mundos, e de que a marcha da humanidade era uma marcha
inevitável para o progresso. Isso distingue, por exemplo, a virada do século
XIX para o XX, da do século XX para o XXI; enquanto a primeira é marcada
pelo otimismo e uma forte confiança no futuro promissor, a segunda,
diante das catástrofes vivenciadas no século XX, é permeada por uma
desconfiança e pessimismo em relação ao futuro. Os iluministas, “apesar
dos altos e baixos da história, estavam convictos de que, de modo geral,
o processo histórico do mundo estava direcionado para o alto e para
frente” (Grenz, 2008, p. 107).

Estes quatro pilares, junto com outros também marcantes, como a própria
confiança na ciência, na harmonia do universo e nas utopias sociológicas
(como o marxismo), foram constituindo aquilo que chamamos de
cosmovisão moderna ou modernidade, marcada pelo desejo por controle,
autonomia e poder, e pela construção de uma identidade antropocêntrica,
cujos atrativos são, para nós, hoje, absolutamente óbvios, como coloca
Charles Taylor (2010, p. 358): “Uma sensação de poder, de capacidade, no
fato de conseguir ordenar nosso mundo e a nós mesmos e, na medida em
que esse poder estava relacionado com a razão e ciência, uma sensação
de ter produzido grandes ganhos em conhecimento e compreensão”.
Tudo isso fez elevar uma crença fundamental dos modernos e que
resume tudo: “de que o conhecimento, inevitavelmente, leva ao progresso
e que a ciência, associada à educação, libertará a humanidade de nossa
vulnerabilidade à natureza e a todas as formas de escravidão social”
(GRENZ, 2008, p. 120).

Finalmente, se a crença moderna pode ser resumida nessa confiança


quase inabalável na razão e conhecimento humanos e sua capacidade
de desvendar os mistérios do universo, onde fica o papel da religião?
A religião permanece tendo, dentro da visão moderna (iluminista), um
papel, mas este é quase que inteiramente secundário, subordinado aos
72 | Filosofia da religião | FTSA
pilares anteriormente elencados. Se para Kant, “nenhuma realidade
que transcenda o espaço e o tempo pode ser conhecida pela empresa
científica” (Grenz, 2008, p. 115), que se fundamenta na experiência
sensível, então a religião deve assumir um papel naquilo que ele chamou
de “razão prática”, associada com o campo moral da vida humana. Isto,
apenas na medida em que ela não ultrapassa os limites da razão, e desta
se faz serva – o saber não pode ser suprimido para dar lugar à fé, porque
a fé só tem lugar onde a razão é suprimida. A noção de “pecado original”,
por exemplo, não tem lugar aqui. O ser humano não é impulsionado
por uma pecaminosidade que lhe é inerente, nem deve ser guiado pela
mão divina a fim de superá-la. Pelo contrário, o homem, guiado pela
razão, deve estabelecer para si uma conduta moral que se torne uma
experiência universal, isto é, válida para todos, não porque alguém “disse
que é (ou tem que ser) assim”, mas porque sua própria consciência o diz
em função de seu “dever”.

Daqui, Kant traz à luz o que ele chamou de “imperativo categórico”, ou um


princípio formal do dever, que assim ele resume: “Assim age de modo que a
máxima de tua ação possa tornar-se uma lei universal” (Kant, 2010, p. 159).

Como se pode perceber, o imperativo categórico de Kant pode ser


interpretado como uma releitura iluminista de uma das regras de ouro de
Jesus Cristo no sermão do monte: “Assim, em tudo, façam aos outros o
que vocês querem que eles lhes façam; pois esta é a Lei e os Profetas”
(Mt 7.12). E isto prova que os princípios religião cristã ainda faziam parte
da mentalidade iluminista, só que reinterpretados de acordo com seus
propósitos e pressupostos humanistas e racionalistas: uma religião da
humanidade, como destaquei anteriormente.

Falando propriamente da crítica cristã à modernidade, lembro aqui a tese


defendida por Vinoth Ramachandra em seu livro A falência dos deuses
(2000). Citando G. K. Chesterton, o autor diz que “quando um homem
volta as costas para Deus, não é que ele apenas não crê em nada, mas é
que ele crê em tudo” (Ramachandra, 2000, p. 31). Esta frase é indicativa
de como as coisas funcionam no mundo moderno: no abandono de
| Filosofia da religião | FTSA | 73
Deus, os modernos prosseguiram criando e estando permeados por uma
avalanche de outros deuses ou ídolos. Como ele defende, “a adoração de
qualquer ídolo provoca o surgimento de seu contra-ídolo com o passar do
tempo” (Ibid., p. 245). O aporte desse autor se concentra no que ele chama
de “idolatria”, tendo como alvo precisamente os credos modernos. A tese
por ele declarada revela o tom combativo e crítico à modernidade, pois
parte da “convicção de que o descarte do Deus da revelação bíblica, (...)
tem aberto o caminho para o surgimento de novos deuses que, tal como
seus antigos equivalentes, acabam por destruir seus devotos” (Ibid., p. 31).

Esta análise de Ramachandra se assemelha a de Roger Bastide, na medida


em que o último defende a ideia de que não é possível que o homem
viva sem criar mitologias, pois isso é uma necessidade ontológica (i.e.,
de seu próprio ser). Ele continua: “Ao homem, que já não pode apoiar-
se em mais nada, pois nada mais tem sentido, só resta apoiar-se em
si mesmo e fazer jorrar de sua revolta novas flores míticas” (Bastide,
2006, p. 103). O mito do progresso, sem dúvida, é um dos motores que
movem o homem moderno. Ele cria a ilusão de que humanidade progride
não mais guiada pela providência divina, mas por seu próprio esforço e
inteligência. Arranca os homens de seu desespero, gerando sentido ao
presente a partir de uma projeção futura. Ele não é mais “ordenado” no
universo, mas agora o “ordena”. Descobre-se, portanto, nos termos de
Bastide, uma nova arquitetura mítica.

Entretanto, alguns resultados dessa mitificação da razão e da técnica,


dessa criação de novos símbolos, da substituição ou aniquilação do
arcaico, foram (e ainda são) catastróficos: o século XX representa o
cemitério das mitologias e das utopias modernas. O preço da exploração
em nome da ideologia do progresso tem sido o colapso geral do ambiente
e da natureza. O ídolo da ciência (o progresso) gerou seu próprio contra-
ídolo: a falta de sentido. Os mitos da técnica não conseguiram, assim,
exorcizar por completo o pavor do ser humano moderno, nem tampouco
conferir as “respostas” que se buscava. A constatação de Bastide é a
de que os significados míticos não foram instintos da história, mesmo
74 | Filosofia da religião | FTSA
numa existência cada vez mais dessacralizada. Num mundo cada vez
mais fragmentado, restam, de acordo com este sociólogo, as “mitologias
pessoais”, pelas quais os mitos permanecem vivos.

Crítica moderna à religião


Nosso estudo sobre em que creem os modernos começou postulando que
é um equívoco pensar que no princípio da modernidade filosófica, com
o Iluminismo, estava a descrença como mola mestra. É claro que Deus
como fundamento passa a ser uma ideia questionada, questionamento
que se consolida com o que chamamos de “virada antropocêntrica”:
Deus deixa o centro para que a razão (ou o homem racional) o ocupe.
Entretanto, mesmo questionada, a religião continuou desempenhando
certo papel no período iluminista, como vimos no exemplo de Kant e
seu imperativo moral – um papel secundário, é verdade, mas o objetivo
dos iluministas em geral não era o de aniquilar com a religião. A maioria
daqueles filósofos possuía uma origem religiosa, cristã, sobretudo; a
diferença é que a religião passa a ser interpretada não mais sob uma
base “espiritual”, mas racional e moral. Mais que isso: mesmo com o
lento processo de secularização (queda da influência da religião na
sociedade), constatou-se que, muitas vezes, houve uma troca de deuses
ou de profissão de fé: sai a fé em Deus e nas doutrinas religiosas, entra a
fé nas leis da natureza, na ciência, na razão e no progresso; em suma: fé
na humanidade, uma religião da humanidade.

Neste tópico, quero propor um exame dos avanços dessa perspectiva


iluminista em pensadores que se encontram na transição do século XIX
para o século XX; ainda podem ser considerados modernos porque são
frutos de culturas e civilizações europeias ocidentais modernas, mas
em certos aspectos foram críticos da modernidade e dos filósofos do
Iluminismo, sobretudo em sua postura com relação ao conhecimento e
em relação à religião. Eles representam não só o avanço da desconfiança
em relação aos valores tidos como “absolutos”, mas a emergência do
ateísmo “como negação de Deus e afirmação da essência do homem”
(Zilles, 1991, p. 129). Ora abraçam a razão e a ciência, ora se colocam
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na contramão destas, propondo um novo tipo de racionalidade, cada um
a partir de sua própria base. Não veremos todos os pensadores que se
interpuseram nesta corrente; quero nessa unidade trazer à discussão
apenas quatro: Feuerbach, Marx, Freud e Nietzsche.

A ideia é que examinemos brevemente a crítica que cada um fez à religião,


tentando observar pontos de encontro e desencontro entre o que cada
um diz, e finalmente chegar a uma base relativamente comum sobre o
que aqui chamo de crítica moderna à religião. O convite é que façamos
isso, em primeiro lugar, de maneira aberta, tentando compreender as
críticas em si e se apropriar delas de modo crítico-construtivo. Do ponto
de vista da fé, tendemos a ser defensivos em relação às críticas ateístas,
e a reproduzir visões de consenso (normalmente superficiais) sobre elas,
ou mesmo a construir apologéticas. Entretanto, como diz Alessandro
Rocha (2010, p. 128, 130), para se elaborar uma filosofia da religião é
preciso atentar para os possíveis significados da crítica e propor um
diálogo; mais que isso, “é preciso traduzir criticamente suas ideias para o
presente, desmascarar ídolos construídos pela própria fantasia humana
e desfazer a ignorância não esclarecida no campo religioso”. Em suma, é
preciso fazer um duplo movimento crítico, ou seja: em primeiro lugar, de
reconhecimento das dimensões em que essas críticas à religião são, de
fato, plausíveis tanto quanto, em segundo lugar, estabelecer uma crítica
sobre a crítica da religião.

Feuerbach: a religião é espelho do homem

Ludwig Feuerbach é um dos precursores de uma geração pós-iluminista


em que a religião (cristã) já não serve mais aos propósitos da razão ou a
propósito algum: trata-se de um elemento derivado do próprio ser humano
e que precisa ser extirpado caso esse queira de fato experimentar a
emancipação preconizada pelos iluministas. Pois, de acordo com Urbano
Zilles (1991, p. 99), “para algumas ideologias modernas não há libertação
do homem sem negação de Deus. Postulam total autonomia econômica
e política do homem, sem nenhuma referência a valores religiosos ou
metafísicos. Todas as ideologias partem do pressuposto de que a
76 | Filosofia da religião | FTSA
religião é expressão e causa da alienação humana. Nesta linha situa-se o
ateísmo de Feuerbach e Marx”. Feuerbach é um dos primeiros filósofos a
se declarar ateísta, e sua crítica viria ser expandida – e, em certa medida,
até mesmo repetida, como veremos mais adiante – pelos chamados
“mestres da suspeita”: Marx, Nietzsche e Freud. O que Feuerbach faz
basicamente é retirar o absoluto de Deus e da religião e transferi-lo ao
próprio homem, por isso proclama uma “nova religião”, ateia por sinal
(Ibid., p. 99). Como ele faz isso?

Em primeiro lugar, propagando um materialismo no qual existem apenas


o homem e a natureza e nada além disso. Somente o ser é real. Propõe,
nesse sentido, uma “antropologia relacional”, na qual a razão tem
papel importante – fugindo, é claro, do idealismo de seu mestre, Hegel,
postulando que o ser não vem do ideal ou do pensamento, mas, porque
há o ser, há também a razão, o pensamento –, mas com ela também
interagem a afetividade, a sensualidade e a vontade (Estrada, 2003, p.
152). Feuerbach propõe, assim, o que na filosofia moderna chamamos
de “giro antropocêntrico”, isto é: a compreensão da vida, da religião e de
Deus se dá num movimento ascendente (do homem para Deus) e não
descendente (de Deus para o homem). Em outras palavras, a realidade
fundamental é a natureza, e é, ao mesmo tempo, criada pelo homem, ou
melhor, por sua consciência.

Em segundo lugar, e seguindo o ponto anterior, propondo que o segredo


da religião é a antropologia. Seu livro, A essência do cristianismo (1841),
é considerado um texto fundante da crítica ateísta à religião e um
dos clássicos da filosofia da religião. Seu foco principal, contudo, é o
cristianismo. O método de Feuerbach passa por perguntar de onde surge
a religião, e uma síntese da resposta que ele deu pode ser: a religião é um
produto da essência humana, isto é, de sua consciência; uma revelação
de seus anseios e desejos mais íntimos e primitivos. Dessa forma, como
dito, ele reduz a teologia à antropologia, equivalendo “essência de Deus”
com a humana. Os atributos de Deus se referem sempre ao homem; sua
vontade é, na verdade, um reflexo da vontade humana. Assim, “a projetar
a si mesmo, o homem aliena-se de si mesmo, gerando a divisão em si
| Filosofia da religião | FTSA | 77
mesmo. A alienação religiosa, segundo ele, é tomar como Deus algo que,
na verdade, é apenas expressão do próprio homem, ilusão, ídolo” (Zilles,
1991, p. 103). Abaixo segue um trecho e amostra da crítica de Feuerbach.

“A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si


mesmo, o conhecimento de Deus é o conhecimento que o homem
tem de si mesmo. Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo
homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa. O que é
Deus para o homem é o seu espírito, a sua alma e o que é para o
homem seu espírito, sua alma, seu coração, isto é também o seu Deus:
Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem; a
religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem,
a confissão de seus mais íntimos pensamentos, a manifestação
pública de seus segredos de amor. [...] A religião é a essência infantil
da humanidade; mas a criança vê a sua essência, o ser humano, fora
de si – enquanto criança é o homem um objeto para si como um outro
homem. O progresso histórico das religiões é apenas que o que era
considerado pelas religiões antigas como algo objetivo, é tido agora
como algo subjetivo, i.e., o que foi considerado e adorado como Deus
é agora conhecido como algo humano. A religião anterior é para a
posterior uma idolatria: o homem adorou a sua própria essência. [...]
E a nossa intenção é exatamente provar que a oposição entre o divino
e o humano é apenas ilusória, i.e., nada mais é que a oposição entre
a essência humana e o indivíduo humano, que consequentemente
também o objeto e o conteúdo da religião cristã é inteiramente
humano. A religião, pelo menos a cristã, é o relacionamento consigo
mesmo, ou mais corretamente: com a sua essência...”.

Ludwig Feuerbach, A essência do cristianismo, 1842.

Marx: a religião é o ópio do povo

Karl Marx, por sua vez, parte da crítica de Feuerbach; concorda com
ele que a religião não faz o homem, mas o homem quem faz a religião.
78 | Filosofia da religião | FTSA
Opõe-se, porém a ele, por considerar que suas críticas se assentam
mais na esfera abstrata da religião, ao passo que, para Marx, “a origem
da religião está nas relações sociais pervertidas que geram a alienação
do homem a nível prático em teórico” (Estrada, 2003, p. 167). No livro A
Ideologia Alemã, escrito em 1845 em parceria com seu amigo Engels,
Marx promove sua emancipação das teias do pensamento hegeliano e
da filosofia alemã como um todo, assentada na ideologia de Hegel, como
é o caso do próprio Ludwig Feuerbach, “objeto” particular das críticas de
Marx nessa obra.

Inicialmente, como dito, Marx se vale do vocabulário e da crítica de Feuerbach


à teologia e à religião, que, na verdade, consiste numa humanização de
todos os atributos supostamente divinos. Deus e a religião não passam de
construtos humanos; nascem da consciência e representações humanas,
finitas. Vai além, contudo, ao ponderar que “toda crítica filosófica alemã de
Strauss a Stirner limita-se à crítica das representações religiosas”, como se
toda relação dominante fosse uma relação religiosa, de tal modo que tudo
se converteu em culto e o “mundo foi canonizado” (Marx; Engels, 1976,
p. 24, 25). Ele foi bastante enfático ao chamar essa crença comum no
domínio da religião, enquanto princípio “fundamental” de interpretação da
realidade, de “fantasias” e “ilusões da consciência”.

A verdadeira revolução do pensamento, na visão de Marx, não pode


acontecer senão por uma revolução a partir da práxis, que provém não
do embelezamento de pressupostos metafísicos, mas de pressupostos
reais, a partir das condições materiais de vida produzidas pela ação
de indivíduos reais. Esses pressupostos, segundo Marx, “são, pois,
verificáveis por via puramente empírica” (Ibid., p. 27). O primeiro deles
é a existência de indivíduos humanos vivos. A história existe porque
existem os homens, e ela se modifica ou se desenvolve pela ação dos
homens, tão logo eles começam a produzir seus meios de vida. Para
Marx, os homens não se distinguem dos animais por sua capacidade de
pensar ou por sua consciência, como acreditava Feuerbach, mas por sua
capacidade de produzir. “O que os indivíduos são, portanto, depende das
condições materiais de sua produção” (Ibid., p. 28).

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Com isso, sua interpretação da realidade e da história passa a ser
sumariamente social e econômica, emancipando-se, desta feita, de uma
visão idealista do mundo. A história (o que inclui a religião) passa a ser
analisada a partir de um viés social e, mormente, econômico, como ele
mesmo defende: “a história da humanidade deve sempre ser estudada
e elaborada em conexão com a história da indústria e das trocas”
(Ibid., p. 42). A interpretação marxista da realidade social encontra seu
fundamento principal na base de produção material e organizacional
dos indivíduos em uma determinada sociedade. Assim, ele estabelece
uma “ruptura” clara com a base ideológica hegeliana anterior: as ideias
e representações existem em função de uma atividade material que
as precedem. A ideologia nada mais que é um reflexo dos processos
iniciados na materialidade das ações. A superestrutura (as ideias ou a
consciência) está para a estrutura (mundo material), e não o inverso.
A consciência é gerada pela, e não geradora da vida material. Logo,
“não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência” (Ibid., p. 37).

A condição de existência dos homens e de sua história, portanto, está


intimamente atrelada à materialidade. Por isso, não pode existir uma
problematização da consciência (sã, pura, da qual supostamente surge a
religião), sem antes haver uma problematização das condições materiais
de vida, geradoras da consciência humana. A religião, portanto, não é
reflexo da consciência, mas das condições e estruturas materiais e
socioeconômicas do capitalismo. A religião aliena o homem de sua
condição, desviando a atenção desse mundo e sua transformação para
outro mundo, para o além, servindo como uma espécie de calmante, e
por isso é o “ópio do povo”. Essa relação deve ser esclarecida a partir
da realidade concreta em que o homem subsiste. A religião é expressão
da alienação do homem, mas não é a sua origem ou seu fundamento;
pelo contrário, é resultante de determinantes históricos, sociais e
econômicos. Como explica Urbano Zilles (1991, p. 127, 128), “a essência
da alienação do homem encontra-se no contexto econômico, no tipo de
relações de produção geradas no mundo capitalista. Aí há duas classes
sociais: os proprietários dos meios de produção e os não proprietários”,

80 | Filosofia da religião | FTSA


isto é, o proletariado. Marx acreditava (no sentido utópico, e aqui aparece
sua filosofia da história), que destruindo essa relação econômica de
exploração, destruir-se-ia com ela também a religião. Ou seja, “para
eliminar a alienação religiosa é preciso eliminar todas as condições de
miséria que a originam” (Ibid., p. 128), o que para ele ocorreria com a
crítica das ideologias, especialmente a burguesa, a eliminação de uma
sociedade de classes e a definitiva implantação do comunismo. O reino
de Deus dá lugar ao reino dos homens.

“A religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a


religião: este é o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a
autoconsciência e o autossentimento do homem que ainda não se
encontrou ou que já se perdeu. Mas o homem não é um ser abstrato,
isolado do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a
sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram a religião, criam
uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo
invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio
enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade espiritualista, seu
entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão
geral de consolo e de justificação. É a realização fantástica da
essência humana porque a essência humana carece de realidade
concreta. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a
luta contra aquele mundo que tem na religião seu aroma espiritual.
A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de
outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida,
o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação
carente de espírito. É o ópio do povo. A verdadeira felicidade do povo
implica que a religião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória
do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é
a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões.
Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da crítica do vale de
lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade”.

Karl Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1843.

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Freud: a religião é ilusão infantil

Freud, famoso escritor considerado “pai da psicanálise”, também era


ateísta e dirigiu, em algumas de suas obras, algumas críticas à religião
– em grande parte uma extensão das críticas feitas anteriormente por
Feuerbach, Marx e Nietzsche. Boa parte delas ele as condensa em um
ensaio chamado O futuro de uma ilusão (1927) – sobre o qual gostaria
de discorrer brevemente aqui.

O olhar de Freud sobre a religião está em íntima conexão com seu


conceito de “repressão”. Ele começa o ensaio falando sobre a repressão
proveniente da cultura. A cultura humana é vista por Freud como aquela
parte da vida humana que se elevou acima da condição dos animais, ou
seja, é a força contrária à força da natureza. Para ele, cultura abrange
“por um lado, todo o saber e toda a capacidade adquiridos pelo homem
com o fim de dominar as forças da natureza e obter seus bens para a
satisfação das necessidades humanas e, por outro, todas as instituições
necessárias para regular as relações dos homens entre si e, em especial,
a divisão dos bens acessíveis” (Freud, 2014, p. 37, grifo meu). Freud
supõe que, graças às imperfeições das formas da cultura, sobretudo
pelo uso indevido de seus bens, a cultura pode se transformar em algo
“imposto a uma maioria recalcitrante por uma minoria que soube se
apropriar dos meios de poder e coerção” (Ibid., p. 39). A cultura exerce o
papel de domínio da natureza, segundo Freud, e não diferente a religião.
Para ele a religião não passa de uma neurose obsessiva. Como explica
Zilles (1991, p. 145), “a neurose é a fuga do adulto ao mundo infantil”. Os
conflitos que não foram resolvidos naquela fase, ressurgem dos porões
do subconsciente na fase adulta. E a religião seria, para ele, uma forma
de regressão da pessoa a seu estado infantil.

Ainda de acordo com Zilles (1991, p. 146),

Nessa regressão, o pai exerce papel importante devido


82 | Filosofia da religião | FTSA
ao complexo de Édipo. Representa fase decisiva entre
os 4-6 anos de idade. No seu relacionamento carinhoso
com a mãe, a criança sente o pai como rival. Divide o
amor da mãe com o pai que, não raro, transforma-se
no desejo de matá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a criança
sabe que precisa do pai. Com isso constitui-se o conflito
entre amor e ódio, afeição e hostilidade, admiração e
medo do pai.

O que tem isso a ver com a religião? Qual sua “origem” ou “essência”?
São perguntas que Freud se propõe a responder. E sua resposta pode
ser sintetizada da seguinte forma: esse ser neurótico não quer encarar o
mundo ou a realidade em sua dureza peculiar, suas incertezas e perigos,
nem ter de lidar com o fato indelével de sua própria mortalidade. Busca,
assim, em seu universo de desejos meios através dos quais possa
encontrar consolo e amparo, e ali encontra sua nostalgia de “um pai
onipotente que o console e proteja, em sua angústia pela dureza da vida”
(Ibid., p. 147). Encontra esse pai em Deus, que vai exigir dele renúncia a
seus impulsos interiores em troca de amor e proteção.

A religião, assim, é como uma “ilusão infantil”, que ensina a seus adeptos
– e aqui Freud está pensando particularmente no cristianismo – a
permanecerem tranquilos, uma vez que “tudo o que acontece neste mundo
é a realização dos propósitos de uma inteligência superior que, mesmo
por caminhos e descaminhos difíceis de entender, acaba por guiar tudo
para o bem, ou seja, para a nossa satisfação” (Freud, 2014, p. 63). Além
disso, a providência divina paira sobre o universo e não somente garante
proteção a seus filhos aqui na terra, como lhe dá a certeza de que “todos
os pavores, sofrimentos e rigores da vida estão destinados à extinção: a
vida após a morte, que continua nossa vida terrena assim como a parte
invisível do espectro se une à visível, traz toda a completude de que talvez
tenhamos sentido falta aqui” (Ibid., p. 64).

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“Acho que preparamos suficientemente o caminho para uma resposta
a ambas as perguntas. Ela será encontrada se voltarmos nossa atenção
para a origem psíquica das ideias religiosas. Estas, proclamadas
como ensinamentos, não constituem precipitados de experiência ou
resultados finais de pensamento: são ilusões, realizações dos mais
antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua
força reside na força desses desejos. Como já sabemos, a impressão
terrificante de desamparo na infância despertou a necessidade de
proteção - de proteção através do amor -, a qual foi proporcionada
pelo pai; o reconhecimento de que esse desamparo perdura através
da vida tornou necessário aferrar-se à existência de um pai, dessa
vez, porém, um pai mais poderoso. Assim o governo benevolente de
uma Providência divina mitiga nosso temor dos perigos da vida; o
estabelecimento de uma ordem moral mundial assegura a realização
das exigências de justiça, que com tanta frequência permaneceram
irrealizadas na civilização humana; e o prolongamento da existência
terrena numa vida futura fornece a estrutura local e temporal em
que essas realizações de desejo se efetuarão. As respostas aos
enigmas que tentam a curiosidade do homem, tais como a maneira
pela qual o universo começou ou a relação entre corpo e mente, são
desenvolvidas em conformidade com as suposições subjacentes a
esse sistema. Constitui alívio enorme para a psique individual se os
conflitos de sua infância, que surgem do complexo paterno - conflitos
que nunca superou inteiramente -, são dela retirados e levados a uma
solução universalmente aceita”.

Sigmund Freud, O futuro de uma ilusão, 1927.

A teoria de Freud, assim como a de Feuerbach e Marx, teve também um


teor de profecia em relação à religião. Enquanto “neurose obsessiva
universal da humanidade”, como esse psicanalista a classificou, que
teria sua origem no complexo de Édipo e na relação com o pai, a religião
haveria de desaparecer tão logo se consumasse o processo de libertação
84 | Filosofia da religião | FTSA
total do ser humano em relação ao complexo de Édipo, o que culminaria
em um processo de emancipação e crescimento do ser humano e a
consequente dispensa em relação aos serviços da religião. Freud mesmo
compreendia que, naquela época (final da década de 1920, período pós-
Primeira Guerra Mundial), já se podia constatar “o declínio da influência
religiosa” (Ibid., p. 121), ou seja, cada vez menos pessoas perseguiam
aquela “ilusão”. Quem se encarregaria de sepultar definitivamente a
religião? De acordo com ele, em primeiro lugar, seria o encontro do
ser humano com a “vida hostil”, e, em segundo lugar, a própria ciência
(no caso dele, a Psicanálise) teria o papel de “aumentar nosso poder e
permitir que organizemos nossa vida” (Ibid., p. 132). Então ele indaga:
seria isso também uma ilusão? Não. Segundo ele, a ciência havia logrado
êxitos o bastante para que se comprovasse não ser uma mera ilusão.

Nietzsche: a rejeição do Deus teísta

Friedrich Nietzsche foi um filósofo e filólogo alemão, nascido em 15 de


Outubro de 1844 em Röcken, uma localidade próxima de Leipzig. Ele era
filho e neto de pastores, portanto, nasceu no seio do protestantismo.
Quando criança, seus colegas de escola o chamavam de “pequeno
pastor”, devido a esse legado. Na juventude, ele se especializou em grego,
alemão, latim, em estudos bíblicos, até que foi se dedicar aos estudos de
teologia e filosofia, em Bonn. Porém, influenciado por seu dileto professor
Ritschl, foi para Leipzig e resolveu largar essa formação e partir para os
estudos em filologia (sua principal formação). Considerava a filologia
não apenas como história e estudo das formas literárias, mas como
estudo das instituições e das ideias. O afastamento de seu berço original
(o protestantismo) se evidenciou na vida de Nietzsche como “ruptura”,
graças à leitura de filósofos como Fichte e Arthur Schopenhauer, e
de poetas como Hölderlin e Lord Byron. A partir de então, ele começa
a encontrar asilo numa leitura da existência como tragédia – coisa
que teve a ver também com sua leitura dos gregos. Minhas principais
perguntas são: que religião Nietzsche rejeita e por quê? Que tipos de
representações de Deus lhe foram projetadas pelos cristãos de sua
| Filosofia da religião | FTSA | 85
época? Em que medida essas críticas não representam outra forma de
excesso e autodestruição?

Segundo Nietzche, o remédio do cristianismo para os males da


humanidade é apontar a imagem de um Deus que é amor, consolo, abrigo.
Mas, ao mesmo tempo, para que a coisa não seja assim tão gratuita,
tão fácil, e para que haja a necessidade da religião, ele precisa nutrir e
propagar a existência da doença como mal moral inerente ao homem.
Nesse sentido, o homem jamais se livrará do “corpo desta morte” e
de suas intermináveis culpas escravizantes a menos que se renda ao
remédio curador do cristianismo, expresso nos sacramentos, nos ritos,
nas penitências e disciplinas – é claro que Nietzsche desconsidera aqui
uma teologia da graça de Deus, até porque dificilmente a tenha encontrado
na versão de cristianismo que carrega em mente em sua crítica. Como ele
acreditava, “o cristianismo nasceu para aliviar o coração, mas agora deve
primeiro oprimi-lo, para mais adiante poder aliviá-lo” (Nietzsche, 2005,
p. 90). A religião que ele rejeita é do Deus da lei, da ira, do castigo, do
juízo e da condenação. Do Deus produto das mentes humanas mórbidas
e achatadas pela ideia de justiça contra a maldade que lhe é própria e
contra tudo o que sua consciência afetada transforma em maldade, até
as coisas bonitas, dádivas de Deus, mas que justiça alguma, a não ser a
justiça graciosa do Filho, poderia redimir.

Logo, se essa ideia de Deus é geradora das mais cruéis e contraditórias


mitigações da alma humana, a conclusão mais lógica para Nietzsche
foi: “Acabando a ideia de Deus, acaba também o sentimento do ‘pecado’,
da violação de preceitos divinos, da mácula numa criatura consagrada a
Deus” (Ibid., p. 96). Pense, por um instante, na plausibilidade da crítica. A
maneira como concebemos, entendemos e nos relacionamos com Deus;
as ideias e imagens que forjamos e apresentamos aos outros acerca
Dele, serão determinantes para a maneira como eles/as o receberão, seja
com gratidão e alegria, com tristeza, medo e decepção, ou com adagas
a fim de apunhalar e “matar” Deus, extirpando-o de vez de suas vidas.
Podemos condenar ou ignorar tal atitude toda vez que ela acontece? O

86 | Filosofia da religião | FTSA


que ou quem garante que as representações de Deus que a religião emite,
ainda hoje, não são brechas para tal atitude crítica ou de rejeição? Sendo
assim, quem, de fato, estaria sendo rejeitado: Deus ou a ideia?

Um dos maiores paradoxos envolvendo “o Deus cristão” reside, ainda


de acordo com esse filósofo, no fato de neste se encontrar, ao mesmo
tempo, a origem da vida e do prazer e, no discurso dogmático de muitos
cristãos, o meio mais eficaz de sua depreciação. Religião e prazer, nesse
sentido, nunca se cruzam tampouco se fundem. No cristianismo, o corpo
foi relegado a ser apenas um instrumento imperfeito através do qual
Deus quer que nossas almas sejam elevadas por meio do ascetismo,
isto é, da negação desta vida, deste corpo e deste mundo, sendo assim
conduzidas à perfeição e galardão que encontraremos noutro plano,
noutra vida, no mundo suprassensível também conhecido como “céu”;
em contrapartida, o destino daqueles que se entregaram às paixões
deste plano, da carne, do vinho, da alegria e do prazer, é perecer no fogo
eterno, também conhecido como “inferno”. Desse modo, quase sempre
no Ocidente cristão, ou especialmente desde Agostinho, a moral religiosa
se desenvolveu como uma espécie de flagelo do prazer, incitando-nos a
ver as coisas naturais como profanas e rechaçáveis, dando valor apenas
às sobrenaturais, ou àquilo que se enquadra dentro de tal ou qual padrão
moralmente aceito.

Essa foi uma questão crucial para a ruptura de Nietzsche com o


cristianismo, ao qual ele chamou de platonismo para o povo. Para
ele, a religião da clemência, piedade, castigo, penitência, redenção,
remissão de pecados, juízo final, etc., seria como um mundo de ficções.
Em suas palavras: “Depois que o conceito ‘natureza’ foi inventado
como contraconceito para ‘Deus’, ‘natural’ tinha de ser a palavra para
‘reprovável’ – aquele inteiro mundo de ficções tem sua raiz no ódio contra
o natural” (Nietzsche, 1999, p. 355). Em, Além do bem e do mal, pode-
se encontrar crítica semelhante quando esse autor diz que os “homens
espirituais” da Europa, em nome de Deus e dos princípios cristãos, foram
os responsáveis pela deterioração dos valores e da raça europeia, ao
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desprezarem a natureza e, ao mesmo tempo, oferecer a ela consolos
molestos, que rebaixavam os demais a uma condição inferior.

1. “Deus; é porque olha nesse espelho claro que o seu ser lhe parece tão
turvo, tão incomumente deformado. Depois o angustia o pensamento
do mesmo ser, na medida em que este paira ante sua imaginação
como a justiça punidora: em todas as vivências possíveis, grandes ou
pequenas, acredita reconhecer a cólera e as ameaças dele, e mesmo
pressentir os golpes de açoite de seu juiz e carrasco. Quem o ajudará
nesse perigo, que, em vista de uma duração imensurável da pena,
supera em atrocidade todos os outros terrores da imaginação?”.

2. “Inverter todas as apreciações de valores, era isso que elas


deviam fazer! Enfraquecer os fortes, diminuir as grandes esperanças,
tornar suspeita a felicidade que reside na beleza, abater tudo o
que é soberano, viril, conquistador e dominador, esmagar todos os
instintos que são próprios ao tipo de ‘homem’ mais elevado e melhor
sucedido, para nisso subsistir a incerteza, a miséria da consciência,
a destruição de si, transformar até mesmo todo o amor pelas coisas
terrenas e pela dominação na terra em ódio contra o mundo terreno
– essa é a tarefa que se impôs a Igreja e que deveria se impor até
que enfim, para ela, ‘renúncia ao mundo’, ‘renúncia aos sentidos’ e
‘homem superior’ se tivessem fundido num só sentimento”.
1. Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano, 1878.
2. Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal, 1886.

Nietzsche, contudo, foi incapaz de reconhecer que o Deus bíblico pode


ser interpretado de outra forma, não como inimigo do natural, mas criador
e amante crônico de tudo o que é natural, a começar pelo ser humano.
Afinal, Ele criou e com o propósito de amar. Como poderia Deus ser a
antítese daquilo que foi formado à sua imagem e semelhança? Talvez
o problema de Nietzsche, assim, não seja tanto com (o ser de) Deus,
que concedeu muitas coisas boas para que o homem delas gozasse,

88 | Filosofia da religião | FTSA


mas com o próprio homem, ou melhor, com o homines religiosi, que,
por causa do coração humano corrompido que não soube (e ainda não
sabe) gozar equilibradamente as dádivas proporcionadas por Deus, não
apenas condenou os atos, como também as coisas em si (sexualidade,
prazer, humanidade, natureza, etc.), que Deus havia declarado que eram
“muito boas” no Princípio.

Com a queda, as coisas que originalmente eram boas foram corrompidas


pelo pecado. Não a coisa em si, mas o uso que dela se faz. A lei de Deus
veio para coibir o “mau uso” da coisa em si. Mas, o pecado gerou o “mau
uso” da lei, que deveria servir à vida, mas acabou militando contra ela.
Logo, o que era para coibir o mau uso, acabou coibindo a coisa em si, pelo
fato do ser humano não conseguir, por si mesmo, vencer o mau uso (vide
Rm 7). O pecado (outro ser que habita nos membros do humano), desse
modo, provou-se mais forte que a própria lei. Assim, Deus, através de
Jesus Cristo, fez-se lei e propiciação em lugar do ser humano carregando
um fardo que era seu. De tal modo que esse mesmo ser humano é
chamado a sair do estado da lei (e do pecado) para o estado da graça,
que não é nem a negação e nem o fim do pecado, mas a redenção do
pecador – “A minha graça te basta!”, foi a resposta de Deus ao pedido
de Paulo para que arrancasse dele o espinho na carne. Assim, a graça é
essa dádiva de Deus, única capaz de conduzir o homem de novo ao bom
uso daquilo que Deus declarou bom.

O contrário dessa visão, para Nietzsche, fez de Deus uma ideia a ser
abolida, e do cristão, apenas um judeu de confissão ‘mais livre’ (Nietzsche,
1999, p. 363). Ele também critica essa tendência da igreja de seu tempo
de açoitar, condenar, difamar e suspeitar de tudo o que fosse Humano,
Demasiado Humano:

É fácil ver como os homens se tornam piores por


qualificarem de mau o que é inevitavelmente natural
e depois o sentirem sempre como tal. É artifício da
religião, e dos metafísicos que querem o homem mau e
pecador por natureza, suspeitar-lhe a natureza e assim
| Filosofia da religião | FTSA | 89
torná-lo ele mesmo ruim: pois assim ele aprende a
se perceber como ruim, já que não pode se despir do
hábito da natureza (Nietzsche, 2005, p. 102).

Conclusão: para uma crítica da crítica


Chegando ao final dessa unidade – que expressou, ao modo de síntese,
algumas das críticas mais conhecidas sobre a religião na modernidade,
e que estão na base de seu ateísmo –, pode-se claramente perceber que
cada uma dessas críticas tem algo de igualmente assertivo e impreciso
sobre a religião, especialmente considerando que talvez nunca tenha
se falado tanto de religião, em termos cotidianos e de estudos sobre
religião, e é claro que é possível observar – fazendo aqui uma síntese
das críticas – que ela ainda é recheada de antropomorfismo, alienação
e ilusões, tão próprias do ser humano como seu artífice. No entanto,
e precisamente pelas razões anteriormente apontadas, por mais
sofisticados que fossem esses pensadores em suas áreas, não é muito
difícil rebater com segurança muitas de suas críticas – que, aliás, vêm
sendo requentadas por alguns ateístas até hoje. Em primeiro lugar,
porque, seguindo aqui o raciocínio de Júlio Zabatiero (2010) sobre uma
filosofia da religião em “tom pós-metafísico”, tem-se tornado cada vez
menos cabível que se fale em uma “essência” ou “origem” da religião,
que nos permitiria falar dela em sentido unívoco e universal. Em segundo
lugar, e como resultado, porque cada vez mais se fala em religião em
termos de pluralismo de discursos, de crenças e de práticas, isto é, a partir
de leituras particularizadas e estudos de caso particulares – como os
realizados por antropólogos, sociólogos e historiadores da religião. Logo,
o repertório, vocabulário e as interpretações sobre a religião são cada vez
mais polissêmicos, permeados por uma riqueza teórico-metodológica e
por uma plurivocidade.

Falando da crítica, um problema comum da modernidade científica foi a


separação entre a razão e as “paixões” do ser humano, dentro das quais
se colocam a fé e a religião. Uma pergunta, no entanto, fica: é possível
remover as paixões sem levar consigo o próprio humano, isto é, sem
90 | Filosofia da religião | FTSA
provocar a sua abolição? Isso me faz lembrar a crítica de C. S. Lewis em A
abolição do homem. Dizia ele que: “Numa batalha, não são os silogismos
que vão manter os relutantes nervos e músculos em seus postos na
terceira hora de bombardeio. O mais rude sentimentalismo... em relação
a uma bandeira, país ou regimento será bem mais útil” (Lewis, 2005,
p. 22). Enfim, para Lewis, além de “cerebrais” (racionais) e “viscerais”
(passionais), precisamos de “homens de peito” (íntegros, magnânimos
na atitude, no sentimento), pois “o peito” é o elemento intermediário que
transforma o homem em homem, enquanto, “pelo intelecto ele é apenas
espírito, e pelo seu apetite ele é apenas animal” (Ibid., p. 23).

Ora, raciocinava-se: as teorias científicas e ideias inteligentes, em si,


podem até convencer com clareza suficiente sobre diversos fatos da
natureza, mas, como disse Oscar Pfister (2003, p. 51), não nos fariam
“atingir aquela moralidade que proporciona à vida dignidade e verdadeira
saúde interior”. Em outras palavras, não são capazes de, por si mesmas,
formar “homens de peito”, na acepção de Lewis, no máximo, homens que,
para fins mais “sublimes”, correm o risco de ignorar a parte do meio, pois,
como reitera Lewis (ora se referindo a certos racionalistas de sua época),
“não é o excesso de pensamento que os caracteriza, mas uma carência
de emoções férteis e generosas. Suas cabeças não são maiores que
as comuns: é a atrofia do peito logo abaixo que faz com que pareçam
assim” (Lewis, 2005, p. 23).

Como exercício duplamente crítico, tanto de uma parcela do que foi e é a


religião, quanto, depois, da crítica de Nietzsche, um bom começo quem
sabe pode ser o de reconhecimento. De fato, faz parte da artimanha de
alguns religiosos – que perderam, ou sequer (e talvez convenientemente)
nunca encontraram o estado da graça, sobre o qual falei há pouco – a
de suspeitar da natureza e até mesmo rechaçá-la. É claro, alguém pode
dizer que isso é devido à própria crença na doutrina cristã do pecado
original, que apregoa a concupiscência inerente à natureza humana, e
diante disso nada podemos falar, a menos que, para nós (e aqui falo
propriamente a cristãos) ela seja falsa. Não sendo falsa, ela significa
| Filosofia da religião | FTSA | 91
alguma coisa na interpretação cristã da humanidade - ainda que tenha
infelizmente esquecido que a narrativa da Criação em Gênesis começa
com a “bênção original”, por assim dizer, não com o pecado. Por isso,
dizer que o ser humano é pecaminoso não significa, necessariamente,
jogar fora toda a beleza, o prazer e a alegria de ser gente. Então, parece
que a crítica de Nietzsche tem alguma razão, mas é imprecisa pelo
mesmo motivo pela qual as de Feuerbach, Marx e Freud são: trata-se de
um vaticínio generalizante, que diz alguma coisa sobre o cristianismo,
mas não diz tudo, e nem poderia – até mesmo considerando que ele fala,
especialmente, ao contexto europeu.

Um segundo passo pode ser o de ampliação de nossos horizontes sobre


as “relíquias à beira-mar” (Yancey, 2004) que podem ser encontradas
se olharmos com atenção em meio aos restos de um grande naufrágio
(Chesterton, 2008). Essas relíquias representam precisamente aquilo
que muitos ascetas cristãos rejeitaram veementemente como sendo
“mau” e “pagão”, e o que Nietzsche e os hedonistas desejaram em
excesso: o prazer, a gratidão e a afirmação da vida. Philip Yancey louva
a oportunidade de, em momentos sombrios de sua vida religiosa, ter
encontrado em pessoas como G. K. Chesterton (1874-1936) um ponto de
equilíbrio e novas razões para crer que todas as coisas provêm de Deus e
devem ser recebidas e gozadas como dádivas que Ele doou liberalmente
ao mundo (Yancey, 2004, p. 58).

Chesterton, em seu celebrado livro Ortodoxia, publicado originalmente


em 1908, critica a atitude de Nietzsche como o supremo afirmador da
vontade, comparando-o a Tolstoi, que ele vê do lado oposto. Chesterton
vê na afirmação incondicional da vontade de Nietzsche como um
paradoxo, pois, segundo ele, “aquele que não quer rejeitar nada, quer a
destruição da vontade; pois a vontade não é apenas a escolha de alguma
coisa, mas também a rejeição de quase tudo”. Ou seja, aquele que nunca
diz não à sua própria vontade, aniquila essa vontade e rejeita, com isso,
tudo o mais. Afirmar tudo pode ser o homônimo oculto de negar tudo. O
mesmo se poderia dizer na postura de quem rejeita tudo, pois isso não
92 | Filosofia da religião | FTSA
é propriamente uma escolha; escolhe-se com base em critérios, sendo
o mais comum deles o que chamamos de “bom senso”. Negar tudo é o
mesmo que escolher nada tanto quanto é o aceitar tudo. E, ao eliminar-
se a escolha, elimina-se também a singularidade e o discernimento.
Chesterton rejeita as duas posturas como coisas que não levam a lugar
algum, terminando no vazio. Dizia ele que:

A insensata adoração do desregramento e adoração


materialista da lei acaba no mesmo vazio. Nietzsche
escala montanhas assustadoras, mas no fim acaba
chegando ao Tibete. Senta-se ao lado de Tolstoi na terra
do nada e do Nirvana. Eles estão desolados – um porque
não pode agarrar nada, o outro porque nada pode largar.
A vontade tolstoiana é congelada pelo instinto budista de
que todas as ações especiais são más. Mas a vontade do
seguidor de Nietzsche é igualmente congelada por sua
visão de que todas as ações especiais são boas; pois,
se todas as ações especiais são boas, nenhuma delas
é especial. Ambos se encontram numa encruzilhada:
um deles odeia todas as estradas e o outro gosta de
todas elas. O resultado é... bem, há coisas que não são
difíceis de imaginar. Eles ficam parados na encruzilhada.
(Chesterton, 2008, p. 72)

Chesterton, em contrapartida, tenta enxergar a vida como mais do que


um prazer; ela é, para ele, “um excêntrico privilégio” – e foi isso que o
reconduziu, outra vez, do ateísmo para a fé. Esse autor (2008, p. 107-108)
dizia: esse universo e essa vida são realmente “uma joia”, um milagre,
algo ímpar e que assim devem ser tratados. E que, apesar dos defeitos
óbvios desse mundo, ele tem um propósito; e se tem um propósito e
sentido, e eles são belos, deve ter alguém muito gracioso que lhes deu
origem. Assim, prossegue ele:

Considerei que a forma apropriada de agradecer a ele


é alguma forma de humildade e limitação: deveríamos
| Filosofia da religião | FTSA | 93
agradecer a Deus pela cerveja e o vinho francês não os
bebendo em excesso. Devíamos também obediência ao
que quer que nos tenha criado. E por fim o sentimento
mais forte: entrara na minha cabeça uma vaga e vasta
impressão de que, de algum modo, todo bem era uma
sobra a ser guardada e tida como sagrada proveniente
de alguma destruição primordial. O homem salvara seu
bem como Crusoé salvara seus bens: ele os salvara de
um naufrágio. (Chesterton, 2008, p. 108)

O desafio posto por Chesterton, portanto, pode nos ajudar a pensar


melhor sobre a crítica de Nietzsche, bem como sobre nossa relação com
a vida: ela não está nem para o prazer desmedido, nem pela negação
total, mas para o gozo consciente, recheado de gratidão e de zelo, uma
vez que as nossas coisas são também as de Deus, e vice-versa. Como
seres humanos, cometemos excessos, é claro, e isso não deveria ser
encarado de modo tão claudicante, como um absurdo. Mas os excessos
e os extremos, no fim das contas, têm-se provado inimigos da vida, e
não o contrário, porque a levam para o precipício da destruição ou para o
marasmo da conservação.

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| Filosofia da religião | FTSA | 95


Unidade 4: Religião e desconstrução pós-metafísica
Introdução
Na última unidade tivemos a oportunidade de examinar pontos de vista
variados sobre a razão da descrença em Deus, do rechaço à religião, da
não razoabilidade da fé, dentre outras coisas que se podem achar sobre
isso entre os pensadores modernos. O parâmetro foram as críticas dos
“mestres da suspeita”, Marx, Nietzsche e Freud, além de Feuerbach, cujo
pensamento de alguma forma foi seminal para os demais. É claro que
aqui foram deixados de fora inúmeros outros exemplos, por falta de
espaço. Não há dúvida, porém, de que a contribuição desses pensadores
é fundamental para a compreensão da crítica ateísta que permaneceu
no século XX, tomando mais corpo a partir de sua segunda metade. Em
resumo, alguns dos postulados estudados foram:

Feuerbach. A religião é fruto de antropomorfismo, e explica-se melhor


pela antropologia que pela teologia. Pois Deus é uma criação proveniente
da consciência humana, em função de seus desejos e carências; em
suma, é uma projeção do próprio homem, de modo que, ao se olhar para
o homem verá o seu Deus e vice-versa.

Marx. A religião é resultado da alienação humana – e não o seu


fundamento, como pensam alguns. É um produto das condições
materiais e socioeconômicas, que geram a alienação das massas e, com
ela, a necessidade da religião. Por isso, é o “ópio do povo”.

Nietzsche. A religião representa uma atrocidade contra a humanidade,


pois é inimiga da vida; oprime para depois oferecer o amargo remédio da
“libertação”, que carrega consigo o germe de seu oposto, a escravidão.
Promove uma ideia de Deus que inquieta e humilha as gentes, fazendo-as
se sentirem más, culpadas e pecadoras.

Freud. As doutrinas religiosas são ilusões, “realizações dos mais antigos


e prementes desejos da humanidade”, sendo a força desses desejos –

96 | Filosofia da religião | FTSA


como o ódio edipiano e, ao mesmo tempo, desejo de proteção em relação
à figura do “Pai” – aquilo que dá origem e mantém a ideia de Deus.

Muito próxima das ideias acima elencadas está a do filósofo, que recebeu
o prêmio Nobel de literatura em 1950, Bertrand Russel, no ensaio (de
1929) intitulado Por que não sou cristão. Ali ele defende que a religião
está embasada no medo-pavor: do mistério, da derrota, da morte e do
que vem depois dela – aliás, ateístas contemporâneos, como o falecido
Christopher Hitchens e Lawrence Krauss, defendem que a crença em
Deus está intimamente atrelada com o pavor da morte. Além disso, tanto
em Freud como em Russel se pode notar uma confiança quase cega nas
possibilidades que a ciência oferece de conferir sentido a questões (do
mundo físico) que a religião não pode responder, porque é irracional e
altamente voltada para o “celeste porvir”. Russel é ainda mais explícito
que Freud, quando afirma que “a ciência pode ajudar-nos a superar este
modo covarde com o qual a humanidade tem vivido por tantas gerações”,
e convida seus leitores a “ver o mundo como ele é” e a “conquistar o mundo
pela inteligência” (Russel, 2014). O problema dele e de outros pensadores
modernos reside exatamente aí: na medida em que querem pôr fim na
metafisica pelo viés da religião, não renunciam à metafísica pelo viés da
ciência, pois só uma visão essencialista da realidade pode sustentar que
ela pode ser conhecida “tal como ela é”. Fica evidente, como já destaquei
antes, que se trata de uma substituição de crença: sai o Deus déspota
e suas doutrinas aterrorizantes, não confiáveis e improváveis, e entra, a
inteligência e ciência humanas, com um projeto não menos messiânico
de salvar a humanidade do estado de menoridade em que se encontra.

Glossário
Metafísica. Há diferentes entendimentos para a palavra, o mais
usual é de que se trata da investigação filosófica da “natureza,
constituição e estrutura da realidade”. Uma de suas preocupações
tradicionais é a existência de entidades não-físicas (por isso meta,
no sentido de “além”), como o divino, o sobrenatural, ou “a natureza

| Filosofia da religião | FTSA | 97


do espaço e tempo”. É também conhecida como “primeira filosofia”
ou “estudo do ser enquanto ser” ou entidade. É usada para se referir
tanto à investigação de estados de coisas e entidades consideradas
“transcendentes” na experiência humana, ou mesmo para um tipo
de epistemologia que ainda se ocupa de dizer como as coisas são
em sua essência. (ver: Audi, 1995, p. 489-491)

Meu convite, porém, foi para que tomemos as críticas desses ateístas
não de um lugar e prisma reacionário e defensivo, mas autocrítico,
perguntando-nos: em que medida essas críticas reverberam, mesmo
que parcialmente, no modo de ser religioso e religião ainda hoje? Que
posturas ou práticas poderiam surgir daí? Um dos riscos óbvios, para
aqueles/as que são de fé, é o de se cair na trama dos argumentos,
sentir-se enfraquecido/a ao ponto de colocar em xeque a própria fé no
incondicional ou, pelo menos, a expressão confessional ou crença que
ela abraça, de escanteio.

O desejável – pensando aqui em termos de uma filosofia da religião


em “tom pós-metafísico” –, porém, é que seja um exercício saudável de
dupla criticidade: (1) a crítica dos pressupostos ateístas e o que há de
plausível e implausível neles; (2) a crítica dos pressupostos da própria
religião, que pode incluir tanto um olhar analítico e fenomenológico,
quanto pessoal, isto é, uma reflexão sobre nossas próprias crenças – por
isso, propositadamente, não exclui o plano pessoal de concepção da fé
nem os privei de minhas próprias interpretações até aqui. E a ideia nessa
unidade é a de tentar fazer uma síntese sobre o que significa permanecer
crendo, escolhendo a fé, diante das eventuais desconstruções pelas
quais passamos em meio a um universo de descrença e ceticismo,
ou mesmo de dúvidas e incertezas que nos cercam, tanto no plano
intelectual (teológico e filosófico) quanto no plano existencial, e por fim,
analisar como nos comportaremos, na fé ou mesmo fora dela, como
humanidade diante do anúncio da “morte de Deus”, feito pela figura do
Louco, de Nietzsche, ainda no século XIX?
98 | Filosofia da religião | FTSA
Objetivos
• Compreender o papel da razão na significação e testemunho da fé;

• Descobrir um novo tipo de racionalidade, orgânica e vital, na expressão


da fé;

• Refletir sobre a necessidade e (arte) de perder chãos, de desconstrução


para uma nova construção;

• Reconhecer os interditos e possibilidades que a “morte de Deus” pode


oferecer à religião e à fé em meio à desconstrução pós-moderna/pós-
metafísica.

Raciovitalismo: o ato de crer e de pensar


Immanuel Kant, no ensaio chamado “Uma resposta à pergunta: o que é
o iluminismo”, sobre o qual falei brevemente na unidade passada, afirma
que nada mais é requerido para esse esclarecimento a não ser a liberdade,
talvez a mais inofensiva de todas elas, pensava ele: a liberdade para fazer
o uso público da razão em todos os meios. No entanto, contendia ele
que de todos os lados se podia ouvir vozes dizendo: “Não raciocine”! “O
oficial diz: ‘Não raciocine, apenas obedeça’; o inspetor diz: “Não raciocine,
apenas pague’; o pastor diz: ‘Não raciocine, apenas creia” (Kant, 1983,
p. 37). Em todos esses casos Kant via um movimento contrário ao da
emancipação iluminista, restrições penetrantes à liberdade. Está inclusa
aí a crítica a religião, ou mais precisamente a postura do sacerdote de
obstrução do pensamento pela via da preconização de uma fé em que
tudo o que se tem de fazer é “apenas crer”.

Ainda hoje é o que parecem querer dizer alguns sacerdotes e líderes


religiosos: creia e obedeça apenas, não questione! Em certa medida, é
possível consentir que esse “apenas crer” envolve uma dimensão da fé,
de confiança e entrega ao incondicional ou mesmo de “salto”, como diria
Kierkegaard. É quando alguém não tem muita escolha ou nada mais a
| Filosofia da religião | FTSA | 99
fazer senão render-se diante do mistério, do inexplicável e do poder divino.
É algo se vê no evangelho de Marcos no exemplo de Jairo, um dos mais
importantes membros da sinagoga. Desesperado diante da iminente
morte de sua filhinha, ele recorre a Jesus pedindo que impusesse suas
mãos sobre ela e a salvasse. Marcos apenas relata que Jesus “foi com
ele” (Mc 5.24). Depois da intercorrência de outra situação, alguns da casa
do chefe da sinagoga foram até Jairo e estranharam ele ainda incomodar
o mestre, uma vez que sua filha, segundo eles, já estava morta. O texto diz
então que Jesus, sem se importar com tais palavras, afirma àquele pai:
“Não temas, crê somente” (5.36). Que outro recurso Jairo tinha? Em tal
situação, ou era crer e esperar pelo impossível, ou simplesmente abraçar
as más notícias trazidas por aqueles homens, não crendo e, assim, e
perdendo a esperança.

Em outros contextos, “apenas crer” pode servir como instrumento de


controle e manipulação, como Kant já alertava no século XVIII; ou mesmo
para a desculpa e preguiça de pensar, afinal, como já foi dito, “pensar dói”.
Contudo, será a fé algo tão simples que possa ser traduzida, para todos
os efeitos, em um “apenas” isso ou aquilo? Acreditar apenas? Tenho
trabalhado com a noção central de Tillich, de que fé significa ser movido
por aquilo que nos toca incondicionalmente; não se retém em conteúdos,
mas os pressupõe e pode ser expressa parcialmente através deles. Pois,
para além do “salto”, ainda resta se perguntar: no que acredito? Por que
acredito? Como pontua Alister McGrath (2012, p. 19), fé é um assunto
relacional e tem a ver com confiar em Deus; não obstante, “parte da
dinâmica mais íntima da vida de fé é o desejo de entender mais a respeito
de quem e em que confiamos”. Assim, a fé, não apenas crê, mas busca
entendimento e se expressa, também, através de raciocínios, acordos,
convicções firmes e bem assentadas.

Em outras palavras, para além da dimensão do incondicional e do


inexprimível, há algo que pode e deve ser pensando e expresso; por atos,
é claro, mas também por palavras, fazendo uso da razão. Teologia, como
defende McGrath (2012, p. 19), “é uma paixão da mente, um desejo de
100 | Filosofia da religião | FTSA
entender mais sobre a natureza e os caminhos de Deus e o impacto
transformador que isso tem na vida”. Esse é o convite do apóstolo Pedro
na conhecida passagem que diz: “...antes, santificai a Cristo, como
Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a
todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós” (1Pe 3.15).
O que essa esperança expressa? Qual é seu sentido? Como ela pode falar
à condição do homem e da mulher no século XXI?

Pelo visto, o uso da razão – a despeito da cisão interposta pela


modernidade – ainda é algo importante a fé. Parafraseando McGrath
(2012, p. 21), Cristo não será santificado, nem reinará, em nossos corações
“se ele não nos guiar nossos pensamentos também”. Ele ainda afirma
que “a vitalidade da fé cristã está na empolgação e no completo prazer
intelectual causados pela pessoa de Jesus de Nazaré”. Então, se alguém
te perguntar: por que Jesus e não Maomé, Buda ou Krishina? Qual é o
sentido do que vocês, cristãos, chamam de encarnação? Não é possível,
desse modo, estar na fé – sobretudo para quem escolhe pensar e pensar
por si – sem se defrontar seriamente com questões como essas. A bíblia
fala de zelo e obediência, mas também fala de entendimento. A situação
ideal é quando o zelo caminha de mãos dadas com o entendimento.
Parafraseando o que disse na unidade 2 sobre a dúvida, se existisse
um lugar em que a o ser humano estivesse e sua racionalidade não,
poderíamos falar de uma fé sem razão – e poderíamos dizer o mesmo de
uma razão sem fé? Na prática, porém, isso é tanto uma impossibilidade
quanto um pecado contra o dom de Deus.

O contraposto a uma parte do racionalismo moderno, crítico e


supostamente irreligioso, não é o irracionalismo, mas uma racionalidade
vitalizada – que reconhece tanto os limites de seu pensamento, quanto
a pluralidade de pensamentos e interpretações que nos permeia. É
uma fé que nem “apenas pensa”, nem “apenas crê”, mas que assume a
complexidade e riqueza da experiência humana íntegra e holisticamente,
que reflete tanto quanto ama, que pensa tanto quanto sente. Une a
paixão do pensamento pelo paradoxo e pela vida. Resulta em uma fé
| Filosofia da religião | FTSA | 101
dialogal e uma racionalidade vital ou um raciovitalismo, tal como propõe
Alessandro Rocha em diálogo com Michel Maffesoli. Esse raciovitalismo
se constitui como:

Um deslocamento epistemológico em relação ao


racionalismo moderno. Tal deslocamento encontra
sua justificação e legitimidade na opção pela
integralidade da vida como espaço de racionalidade,
em contraposição à opção da razão moderna pelo
acento unidimensional de sua compreensão de
racionalidade na mente humana. (...) “Buscar uma
racionalidade orgânica”. Esta é a tarefa que estamos
propondo até aqui. Essa racionalidade nós assumimos
como raciovitalismo. Fazemos isso exatamente porque
compreendemos que o racionalismo é “particularmente
inapto para perceber, ainda mais apreender, o aspecto
denso, imagético, simbólico, da experiência vivida”.
(ROCHA, 2010, p. 115).

Desconstrução pós-metafísica ou pós-moderna


Tendo em vista o exposto até aqui, pode-se dizer que uma racionalidade
vital não é a do tipo “forte” ou rígido, tal como se vê na modernidade, mas
uma racionalidade aberta, relacional e, em muitos casos, “frágil”, não no
sentido de que pensa ou reflete mal (desleixada e irresponsavelmente),
mas de que reconhece as limitações próprias do pensamento e da
linguagem humana, bem como se esvazia da pretensão dogmática
de se impor como “o saber” entre outros, passando a se admitir como
“um saber” entre outros. Esse se tornou um postulado comum entre
pensadores pós-modernos.

Tentarei nesse tópico trazer algumas definições e características do


que se convencionou chamar de “pós-modernidade” (mesmo ciente de
todos os problemas que seu uso traz). O conceito de pós-modernidade
não é dos mais fáceis de definir. Porque se trata de um objeto que se
102 | Filosofia da religião | FTSA
insere na perspectiva do múltiplo: múltiplas abordagens, perspectivas e
nomenclaturas. A pós-modernidade pode ser (e tem sido), assim, muitas
coisas sob diferentes interpretações e enfoques.

Fora isso, ainda há a questão de que se trata de um fenômeno de


protesto, que tem muito mais desconstrução do que construção em
vista. Definição é coisa moderna. A cultura moderna é que fez com que
nos habituássemos a “pôr fim em”, fechar questão, conceituar. Nós
fizemos um pacto com os conceitos. Eles nasceram para dar conta do
mundo, para ser uma designação fiel das coisas às quais eles remetem.
Se digo, por exemplo, “Deus”, o dizer em si já me remeteria à entidade a
qual desejo designar (como veremos no último tópico dessa unidade).
Parte-se do pressuposto da correspondência entre a palavra e a coisa em
si; o conceito é igualado à realidade que ele tenta descrever.

Sobre isso, Rob Bell (2005, p. 23) disse o seguinte: “Nossas palavras não
são absolutas. Apenas Deus é absoluto, e Deus não tem a intenção de
partilhar seu absolutismo com ninguém, especialmente palavras que as
pessoas usam para falar sobre Ele. E isso é uma das coisas com a qual
pessoas têm se debatido desde o princípio: Deus é maior que nossas
palavras, cérebros, cosmovisões e nossas imaginações”.

Quem fala em “pós” está querendo dividir algo. Se uma coisa é X, e outra
que vem depois de X mais ainda não tem por certo o que é, então ela é
designada provisoriamente como pós-X. Então o prefixo da palavra pós-
modernidade, indica que estamos falando de um fenômeno que desponta
como transbordamento de algo, que vai além, no caso, da modernidade,
sem necessariamente colocar um fim nela.

Segundo François Lyotard (1993, p. xvi), simplificando ao extremo, o pós-


moderno se define pela “incredulidade em relação aos metarrelatos”
– que são os grandes relatos que buscam uma explicação universal e
correspondente à realidade. Por exemplo (e voltarei a este ponto nos
próximos tópicos): minha linguagem (conceito) dá conta da realidade
que pretendo descrever. Ou a coincidência entre a capacidade (o que eu
posso chegar a fazer) e o desejo (o que eu quero que seja feito).
| Filosofia da religião | FTSA | 103
O moderno, assim, pode ser descrito por aquele que, em geral, parece crer
nessas correspondências e o pós-moderno como aquele que desconfia,
abandona ou descrê na possibilidade de coerência plena entre elas.

Uma sociedade é moderna, segundo Zygmunt Bauman (1997, p.


10), “na medida em que tenta, sem cessar, mas em vão, ‘abarcar o
inabarcável’, substituir diversidade por uniformidade, por ordem coerente
e transparente”.

Brian McLaren (2008, p. 228) faz uma comparação interessante a partir de


um conhecido filme: Jurassic Park. O mundo de Jurassic Park é o mundo
moderno. “Um sonho de controle. Tecnologia por diversão e lucro. Mas
trata-se de um sonho torto. A natureza, por sua vez, tem uma corrente
de caos passando através dela”. É um mundo que desejava controle e
o perdeu. E o olhar crítico a esse mundo vê que ele “desencadeou os
velociraptors da degradação ambiental, os tiranossauros rexes da
opressão ética, os componentes computadorizados da lascívia e da
cobiça” (Ibid., p. 229).

A frase de Michel Quoist (1978, p. 90), cabe bem aqui: “A tragédia do


homem é que ele é limitado em seus meios e infinito em seus desejos”.
A limitação não é o problema, o problema é a pretensão à infinidade
(viver sem limites). E essa tragédia da humanidade está em sua gênese.
Mas ela tem contornos outros que não apenas o da pretensão de ser
(orgulho), que passa tanto pela incapacidade de decidir (transferência de
responsabilidade e dependência), quanto de não assumir quem ele é, ou
seja, seu destino humano.

A tragédia do humano, nesse sentido, não é apenas a de querer ser


mais, mas a de não querer se ele mesmo – o que pode resultar tanto
num desejo de “ser mais” (orgulho), como o de “ser menos” (preguiça).
Essa é a tese de Harvey Cox em seu livro Que a serpente não decida
por nós (1970), em que ele relembra que, no caso do “pecado original”,
104 | Filosofia da religião | FTSA
proveniente da oferta da serpente à Eva e, por tabela, a Adão, o orgulho
(o desejar ser como Deus) é resultado e não origem, que para ele está
na palavra latina acedia, traduzida por “preguiça” ou “apatia”. Segundo
Cox, foi a preguiça ou apatia de Adão e Eva, que deixaram que a serpente
decidisse sobre o que eles deveriam ser, que provocou o desejo. Para ele,
“o homem é aquela criatura criada para plasmar e realizar seu próprio
destino. Todas as vezes que cede esse privilégio a outrem, deixa de ser
homem” (Cox, 1970, p. 11). O caminho do arrependimento pela preguiça
está na decisão de ser quem se é, recusando terceirizar seu destino a
quem quer que seja.

Pode-se dizer que parte do ímpeto moderno seguiu essa tendência, e


parte acabou traindo quando esse ímpeto se converteu em absolutismo,
isto é, em ser mais ou se colocar além de sua potência ou possibilidades
humanas. Acabou, por fim, decretando sua própria abolição, usando
a linguagem de C. S. Lewis (2005, p. 72), ao ceder à “oferta do bruxo”,
que segundo ele corresponde à tentativa de subjugar a realidade a seus
desejos e, assim, “ao processo pelo qual o homem cede objeto atrás de
objeto, e finalmente a si próprio, à Natureza, sempre em troca de poder”.
E essa acabou sendo mais uma maneira de deixar a serpente decidir
sobre o que deveria fazer, como expressa Cox (1970, p. 12).

Voltando de novo nosso olhar ao pós-moderno, pode-se dizer que ele


se recusa a determinismos e destinos fixos, a promessas utópicas de
salvação terrena, e se concentra nas alternativas que se apresentam a
ele no momento, julgando possibilidades e decidindo quase sempre de
modo provisório. Também se configura pelo desencanto para com as
teorias modernas (são apenas teorias), para com o sujeito moderno (do
conhecimento, da potência) e sua habilidade de conhecer (na verdade,
conhecemos só em parte). A modernidade, segundo Bauman, refere-
se essencialmente à “solução de conflito”, a não admissão do erro, da
contradição e negação do conflito, pois sempre há uma “solução”.

| Filosofia da religião | FTSA | 105


Se pudéssemos usar outra comparação, o símbolo da modernidade
seria o sólido (certezas, precisão, convicções inabaláveis) e o da pós-
modernidade seria o líquido (incertezas, dispersão, convicções fluentes).
Ao mesmo tempo, não entendo que esses “pós” estejam se referindo a
algo “cronológico”, nem ao abandono total de princípios, como verdade,
fé, ou conceitos morais anteriormente estabelecidos, mas à “rejeição
de maneiras tipicamente modernas de tratar seus problemas morais”
(Bauman, 1997, p. 8), de modo absoluto, unívoco e coercitivo.

Em contrapartida, a pós-modernidade pode ser representada em dois


conceitos, utilizados por Bauman, que endereçam sua aceitação do
conflito e da pluralidade:

1. Ambivalência. Compreende o estado em que não sabemos


exatamente como agir nem prever o que vai acontecer. Ambivalente é
a situação ou pessoa que admite a falta de ajuste entre a capacidade
e o desejo, assume o limite dos seus meios frente à sua infinitude de
desejos. Ela seria também seria efeito desse “alvoroço organizador”
que a modernidade idolatrou (Bauman, 2011, 287).

2. Incerteza. Indica uma dificuldade ou dúvida racional diante da


impossibilidade objetiva de uma resposta ou conclusão definitiva a
respeito de algo. Representa, portanto, um estado que passa a ser
cada vez mais aceito pelos pós-modernos, de incerteza, apologia
do erro, e assunção da natureza inacabada de seu conhecimento
a respeito da realidade. A incerteza também se dá no campo ético,
entre “escolhas já feitas” e aquelas que “ainda serão” feitas num
mundo sem garantias prévias (Ibid., p. 369).

A essas duas palavras de Bauman, gostaria de acrescentar mais uma:


paradoxo. O paradoxo pressupõe que existe diferença, que existe o
“contrário” (a doxa), que há contradição. Numa situação pós-moderna,
pressupõe mais que isso: (1) a união ou a convivência entre os contrários
106 | Filosofia da religião | FTSA
(coexistência); (2) a possibilidade de que as coisas não saiam como elas
deveriam sair ou como esperamos que elas fossem (incerteza).

Ao mesmo tempo, podemos afirmar que a diferença entre o moderno e


o pós-moderno não está exatamente no conteúdo, mas na forma. O pós-
moderno faz uso da razão, constrói juízos e até admite algumas (“pequenas”,
como diz Bauman) certezas, porém, reconhecendo os limites de sua
razão, a provisoriedade de seus juízos e as dúvidas presentes mesmo
em suas convicções. O problema deles não é a verdade absoluta (como
já se alegou), mas o conhecimento absoluto.

E isso não tem nada a ver com “acabar com o absoluto”, porque essa é
uma impossibilidade. O absoluto é o que está alheio a tudo: é o Totalmente
Outro, o Eterno, o Incondicional. Não há razão para se precaver tanto
contra o relativismo nesse caso, pois ele não tem em vista o absoluto em
si, uma vez que esse não é passível de ser relativizado, tampouco de ser
supra-absolutizado – ficar repetido, em alto e bom som, a Deus que Ele é
absoluto (ou todo-poderoso) é tão inútil quanto tentar explicar a um peixe
que este sabe nadar. Somente o relativo pode (e deve) ser relativizado,
sobretudo quando nutre pretensões ao status de absoluto, ou de ilusões
de equivalência. No fim das contas, a supra-absolutização do absoluto
ou a tentativa de guardá-lo “a sete chaves” é apenas mais um dos efeitos
do desejo por poder que ocupa o interior da religião (e da teologia) há
bastante tempo.

Nomear ou conceituar um aspecto do Reino de Deus, por exemplo, e


então dizer “isso É o Reino”, é o mesmo que pretensamente conferir (a
tal conceito) a mesma natureza (absoluta) do reino. Por isso, a “teologia”
de Jesus era metafórica, pois, ao se referir ao reino nas parábolas de
Mateus, capítulo 13, por exemplo, ele nunca disse o que o reino é, e sim
com o que se assemelha: “O reino de Deus é semelhante a ...” um homem
que semeou a boa semente no campo (v. 24); um grão de mostarda, que
um homem tomou e plantou em seu campo (v. 31); um fermento que uma
mulher tomou e escondeu em três medidas de farinha (v. 33); um tesouro
| Filosofia da religião | FTSA | 107
escondido no campo (v. 44); um que negocia e procura boas pérolas (v.
45); uma rede, que lançada no mar colhe peixes de toda espécie (v. 47).

Diante das acusações de que gente pós-moderna não se importa com


a verdade, McLaren então parte da ideia – talvez um pouco romântica,
e quem sabe se referindo a uma parcela dos pós-modernos (são tantos,
então penso que sim) – de que “as pessoas pós-modernas se importam
tanto com a verdade que não querem fingir que uma opinião subjetiva ou
‘vista de um ponto’ seja mais do que ela realmente é. E se importam tanto
com a verdade que questionam a habilidade da linguagem de comunicá-
la suficientemente” (McLaren, 2008, p. 235).

Para isso é necessário um sacrifício: não o sacrifício da verdade, mas


o sacrifício pela verdade – se é que ainda nos importamos com ela, e
não apenas estamos interessados no poder ou status que a pretensão
de a possuir, ou que sua posse efetiva como efeito do “abuso espiritual”
ou religioso, nos confere. O sacrifício “da verdade” acontece sempre que
alguém alega tê-la encontrado, em seu estado absoluto, e a codificado
em uma linguagem; já o sacrifício “pela verdade” é um sacrifício de si
mesmo e da visão de que minha linguagem e teologia correspondem ao
modo como as coisas (Deus, sua Palavra) realmente são. O sacrifício pela
verdade é uma imitação do sacrifício de Jesus – o caminho, a verdade e
a vida –, que como Ser-Verdade se sacrificou por amor, ao contrário de
muitos dos que dizem seus seguidores, que continuam, em nome de uma
versão tremendamente distorcida dele, sacrificando o amor ao próximo
em nome da apologia da verdade: que mata, trucida e exclui.

Por fim, como destaca Richard Rorty (2007, p. 33), “dizer que devemos
abandonar a ideia da verdade como algo que está aí, à espera de ser
descoberto, não é dizer que descobrimos que não existe verdade alguma”.
Igualmente, dizer que não podemos mais aceitar critérios absolutos,
porque supostamente atribuídos pela “natureza intrínseca” de algo, não
é dizer que a partir de agora vivemos a partir de critério algum ou do
“critério de me der na telha”. Apenas admitimos que são nossos critérios,
que podem e devem ser colocados no mesmo patamar e em diálogo com
108 | Filosofia da religião | FTSA
outros critérios, em busca não de que um se estabeleça ou prevaleça
sobre outro, mas de que encontremos aqueles “consensos solidários
possíveis”, para construção de uma sociedade democrática e de direitos,
na qual os marginalizados pelo sistema também tenham voz, e não de
uma sociedade regida por parâmetros da minha religião.

“Mas eles precisam saber que Cristo é a Verdade!”, pode bradar alguém.
Concordo, mas pergunto: como é que alguém “sabe” que Cristo é “a
verdade”? Será por meio do convencimento proveniente de uma lógica
teológica ou apologética qualquer? Será por ter sido testemunha ocular do
poder de Deus? Vamos supor que um descrente X chegue a ser convencido,
pelos crentes A e B, de que “Cristo é a Verdade”. Convenceram-no de que
a verdade do cristianismo é plausível, e de que é absoluta, ou seja, de que
está acima e, portanto, torna mentirosa qualquer outra forma de saber,
religioso ou não, que reivindique ser verdade. Seria possível inferir pela
situação descrita que: já que X foi convencido por A e B de que Cristo é
a verdade, logo X é cristão? Mais do que isso: imaginemos que X tenha
também presenciado um milagre, como a cura de um paralítico, que A e
B obviamente atribuíram a Deus. Isso deve, necessariamente, levar-nos a
crer que X agora se tornou uma pessoa de fé? Pode ser que sim, pode ser
que não; mas não há garantias cósmicas, nem provas cabais de que seja
(ou tenha de ser) assim.

Afinal de contas, a vida humana, seus encontros e desencontros com


Deus e consigo mesma, tem uma dimensão de mistério, de inexplicável;
Deus, por sua vez, tem seus próprios meios de se fazer conhecido, com
ou sem nossa “santa ajuda”, e não é absolutizando nossos meios (nossa
linguagem) que garantiremos que alguém venha a conhecer ou aceitar
Deus. Estou convencido de que meu papel, ou melhor, meu modo de ser
é ser testemunha, por palavras e ações (e, no contexto em que estou
inserido, mais por ações que palavras) do Cristo que, pela graça, me fez
e me faz ser quem sou, ou seja, do Deus que “É”, apesar de eu não ser, e
que, parafraseando Tillich, me dá a “coragem de ser” apesar de não ser. O
“convencimento” é papel de Deus; a salvação também.
| Filosofia da religião | FTSA | 109
Saiba mais
Aqui podem valer muito as palavras de Michel Quoist, escritas na
década de 1960, em seu livro Construir o homem e o mundo:

Qualquer pessoa pode mudar de opinião, e algumas vezes bastante


rapidamente. Mas, raramente acontece que alguém mude de opinião
pelos argumentos de um outro que decidiu convencê-lo. Assim,
se, por uma verdadeira preocupação de difundir a verdade você
resolveu fazer alguém evoluir, não diga: vou demonstrar-lhe que
está errado, mas, vou ajudá-lo a descobrir a verdade por si mesmo.
Muitas vezes o outro estaria pronto para aceitar “a” verdade e não
a “sua” verdade. Por que você monopoliza a verdade? Ela existe
independentemente de você. Em noventa por cento dos casos,
quando você a açambarca, você a turva. Se você quiser ser bem-
sucedido em suas discussões, esqueça-se e respeite o outro. Não
seja o rico que dá uma esmola ao pobre, mas o amigo que corre em
direção ao amigo para se unir a ele, e com ele descobrir a verdade.
Trata-se de uma verdade religiosa? Então nunca se esqueça que o
cristianismo não se demonstra por meio de raciocínios ou de ideias
[sic.], pois antes de ser uma doutrina, o cristianismo é uma pessoa.
A verdade é Cristo. E não se discute Cristo, acolhe-se Cristo.
“Discutir religião” é, antes de tudo, dar testemunho e ajudar o outro
a encontrar Cristo. (Quoist, 1978, p. 163)

Abertura: a arte de perder chãos


A vida intelectual – que, como vimos, não é uma atividade distinta da vida
de fé ou “espiritual” –, como a pensa João Batista Libanio (2006, p. 81),
“só se desenvolverá se se mantiver uma atitude de abertura ao diferente,
ao novo, ao questionamento”. De acordo com ele, como filhos/as de uma
época e uma cultura específicas (na qual se insere a religião) todos/
as fazemos parte de uma tradição (ou mais que uma). Por exemplo,

110 | Filosofia da religião | FTSA


o que concebemos como “fé” (falando de seus conteúdos) é fruto de
uma vivência dentro de uma tradição, em que a experiências individuais
alimentam e são alimentadas por experiências coletivas. Entretanto,
como reitera Libanio, “viver só da tradição”, tratando-a de modo rígido
ou definitivo, “termina em um processo repetitivo. Aqui entra o que ele
chama de atitude de abertura enquanto “capacidade de assumir uma
autocrítica da própria tradição de dentro dela” (Ibid., p. 81).

Essa atitude se opõe, na visão de Libanio, tanto a uma concepção


puramente ortodoxa, que trabalha com a perspectiva excludente de
sim ou não, ou, ou; quanto também uma concepção relativista, que
desqualifica a tradição assumindo uma postura em que anything goes,
ou qualquer coisa vale, e que pode facilmente ser trocada por outra coisa
no próximo momento. Ao invés, ele propõe uma concepção dialética, que
“busca a síntese entre a tradição e a novidade da experiência, chegando
a novas formas de verdade. Retém a positividade da tradição, nega-lhe a
negatividade e assume do presente sua força crítica positiva. Vão assim
construindo novas e mais ricas sínteses de verdades” (Ibid., p. 82).

NNesse sentido, uma tradição nunca deve se impor como absoluta,


e toda vez que o faz recai no risco da idolatria e do “tradicionalismo”.
Isso, porém, aconteceu e ainda acontece na história das religiões, e
do cristianismo em particular. Basta recordar o período da Reforma
Protestante, por exemplo, que teve, como uma das razões principais de
sua ocorrência, a elevação da igreja, sua ordem, seus dogmas, à condição
de absoluta, inquestionável, acima da própria Palavra de Deus. Somente
através dela se podia conhecer o verdadeiro Deus e a legítima mensagem
das Escrituras. Contra isso se impôs o que Paul Tillich (2005, 1992)
chamou de princípio protestante. Segundo ele, “o princípio protestante é
a reafirmação do princípio profético em seu ataque contra uma igreja que
se considerava absoluta e que, por isso, se encontrava demoniacamente
deformada” (Tillich, 2005, p. 234), ou, parafraseando o que ele disse
em outro lugar (Tillich, 1992, pp. 209-221), trata-se do protesto divino e
humano contra toda tentativa de absolutizar o que é apenas relativo e
| Filosofia da religião | FTSA | 111
temporal. Quando a igreja quer igualar a si mesma, ou o que ela diz/faz,
a Deus, torna-se um ídolo ou um demônio, deixa de ser igreja – lugar de
pecadores salvos pela graça de Jesus Cristo e, por isso, conscientes de
que seus saberes e experiências são sempre “em parte” – e passa a ser
uma Babilônia ou uma sucursal do inferno.Contra essa tentação, gostaria
de propor, como exercício de reflexão, o que aqui estou chamando de
“arte de perder chãos”, cuja premissa é a de uma desconstrução sadia
e intencional de todos os solos provisórios sobre os quais assentamos
nossas crenças. Pode ser representado pela figura abaixo

Tentarei explicar o que quero dizer com essa imagem através do seguinte:
1. Na parte inferior da figura estão o chão da fé e o chão da história que,
embora distintos, não se encontram em planos diferentes. Fé é fé no
incondicional. Trata-se de chão invisível e indizível, em primeiro plano, por
isso é chão enquanto sustentação incondicional do que denominamos

112 | Filosofia da religião | FTSA


fé. Essa fé, porém, não nos desistoriciza nem nos desumaniza, mas nos
comissiona, segundo a premissa de encarnação vigente no evangelho, a
entrar na história como antecipadores da eternidade através de gestos
que Paulo chamou de “permanentes”: a fé, o amor e a esperança.

2. A caminhada humana, porém, nos impõe a busca por sentido e, assim,


a criação de sentidos possíveis para aquilo que acreditamos e sobre o
porquê de acreditarmos nessas coisas. Esses são o que poderíamos
chamar de “chãos finos e frágeis”, porque provisórios.

3. Esses, por sua vez, são constituídos por manifestações temporais e


impermanentes na esfera da cultura – ética, estética e religião. A cultura
humana, inventada e invencionista, incita a cada ser humano a dar formas
– símbolos, mitos, representações do “real”, e, par os de fé, da própria fé, da
religião e de Deus, expressas pelos conteúdos, dogmas, crenças, tradição.

4. Esses chãos, como já disse, são frágeis e provisórios – e essa é a


sua propriedade. O ato de tentar equipará-los à própria realidade ou ao
incondicional é parte do antropomorfismo, de modo que a crítica de
Feuerbach, tal como vimos na unidade 3, torna-se válida nesse caso:
a realidade (ou o incondicional) é fruto da consciência que o homem
tem (ou imagina ter) de si mesmo. A consciência que o ser humano
tem da realidade, porém, não é capaz, por mais que pretenda, dar conta
ou espelhar a própria realidade. Clément Rosset, em seu livro O real e
seu duplo (2008), desenvolve a tese de que, com relação ao real, nossa
tendência é a de suprimi-lo numa “atitude de cegueira voluntária”, que
nos faz ignorar o real, o singular, e dirigir nosso olhar para outro lugar (seu
duplo), onde o real não está. De modo que, aquilo que anunciamos como
sendo “real”, é na verdade o “outro”, visto que o real, em si, nos escapa.
A realidade não se dá a conhecer plenamente, não é inteligível em sua
essência. Na mesma medida em que é ininteligível, também é cruel (ou
seja, dura). Daí a cegueira voluntária consiste no efeito psicológico ilusivo
produzido pelo efeito do espelho: no encontro com o outro da realidade
(seu duplo, sua representação), penso estar em contato com ela mesma
(Rosset, 2008, p. 91). O mesmo pode funcionar para o relacionamento
| Filosofia da religião | FTSA | 113
da pessoa de fé com o incondicional; a ilusão, nesse caso, consiste na
pretensão de falar por Deus, ou de que a imagem verdadeira de Deus
está expressa na ideia ou na representação. É aqui que a ilusão pode se
converter, ao mesmo tempo, em manipulação e em idolatria.

5. Nietzsche e seu perspectivismo trouxe para gente a ideia de que


tanto a realidade, quanto o que chamamos de “verdade”, são criações
da linguagem. A linguagem coloca diante de nós um mundo de
possibilidades e de impossibilidades. A palavra pronunciada coloca uma
parcela do mundo em movimento, mas nunca é a expressão exata desse
mesmo mundo. Isso é o que Jacques Ellul (1984, p. 21) chama de “bendita
incerteza do discurso; é o que lhe confere toda a riqueza”. O discurso,
completa ele, é sempre ambíguo, jamais transparente. Posso me esforçar
para que o outro compreenda exatamente o que estou dizendo, contudo,
“não sei, exatamente, o que o outro está entendendo daquilo que digo”
(Ibid.). Mas é no meio desses buracos, insucessos e mal-entendidos da
linguagem que, segundo Ellul, reside uma nova expansão da vida, em que
se recomeça incessantemente, e se deve trabalhar na interpretação do
discurso e do texto num movimento sempre em construção e, por isso,
sempre susceptível de múltiplas definições. Como expressa Ellul:

A confusão da linguagem impede a posse do ser, seu


cativeiro. Eis-me diante de um instrumento de infinita
riqueza, inesperada, de uma polifonia desencadeada
pela menor frase. A ambiguidade do discurso, e
mesmo sua ambivalência, mesmo a oposição entre o
momento em que é enunciado e o momento em que é
recebido, produzem as mais intensas atividades sem
as quais seríamos formigas, abelhas, tornar-nos-íamos
ressequidos, esvaziados de nosso drama e da nossa
tragédia. Nascem aí o símbolo, a metáfora, a analogia.
(Ibid., p. 21).

6. As possibilidades impossíveis da linguagem deveriam, assim, nos


114 | Filosofia da religião | FTSA
conduzir a uma tarefa mais honesta, humilde, dependente daquilo que
somos e temos – e, por isso, impeditiva do atrofiamento dogmático –, e
da graça de Deus e, por tudo isso, alegre e celebrativa. Eis o extraordinário,
diria Ellul: é uma benção para o ser humano viver assim, cativo da
linguagem, distante da completude e, ao mesmo tempo, em busca dela,
pois do contrário, acrescentaria eu, não seriamos seres humanos e sim
deuses, ou semideuses. Isso é redenção e não desgraça, sobretudo
quando se pode assumir jubilosamente a provisoriedade desses “chãos”
da linguagem e permitir que eles se desmanchem e se refaçam num
movimento dinâmico. Esses chãos estão para a queda assim como o
peixe está para a água. O objetivo, porém, é perder o chão sem cair no
abismo, e essa é uma arte bastante arriscada que somente os corajosos
e aventureiros se dispõem a aprender e se permitem desenvolver. Deixar
o chão ruir pode ser, ao invés da “ilusão voluntária” de quem os iguala à
realidade, um mergulho consciente e voluntário. Ora, não foi assim com
a encarnação do Cristo? Não foi um mergulho (ou enfraquecimento)
voluntário na humanidade e na história?

7. Em conclusão, é possível pensar que esse mergulho voluntário tem


tanto uma dose de imanência quanto de transcendência (pensando
naqueles dois chãos primários da figura), em que recebemos tanto um
banho de realidade quanto da fé no incondicional e, a partir daí, fazemos
uma revisão de paradigmas, de pressupostos, de nossos chãos. Aqui
reside um aspecto muito importante: um chão cai para que outro seja
construído – portanto, não se trata de desconstrução pura e simples que
redunda num vazio. E isso se dá num movimento dinâmico – como as
águas do rio que correm para o mar e de lá voltam a correr (Ec 1.7). Nesse
sentido, pode-se pensar que nunca voltamos os mesmos de cada novo
mergulho, de cada nova imersão e experiência. A esperança – falando
propriamente contra o dogmatismo e a intolerância – é que voltemos
mais maduros, melhores, mais tolerantes e generosos. É isso que se
espera de uma filosofia da religião, bem como de uma teologia, em “tom
pós-metafísico”.

| Filosofia da religião | FTSA | 115


Interpretações filosóficas e teológicas da morte de Deus
“Os deuses também se decompõem. Deus morreu! Deus continua morto!
E fomos nós que o matamos” (Nietzsche, 2008, p. 150).

Os vínculos e convicções religiosas, associadas a preconceitos históricos,


fizeram e fazem com que muitos, até hoje, interpretem essa afirmação de
Nietzsche de modo literal, isto é, como decreto de morte ao “Deus da
fé”. A reflexão filosófica para a qual o/a convido nesse tópico, porém,
pretende contradizer esse senso comum por entender que ele faz bem
pouco sentido. Pois, como veremos:

1. Não se trata de uma afirmação categoricamente ateísta, mas


filosófica. E a questão é mais simples do que parece, e pode revelar
uma grande incoerência nos pressupostos e na militância ateísta até
hoje: se Deus não existe – como alegam os ateístas, muitos deles
única e exclusivamente com base na falta de evidências – como se a
falta de evidência para a existência de algo já fosse evidência para a
inexistência desse algo –, então não faz sentido declarar a sua morte;

2. Logo, Nietzsche não “mata Deus”, apenas declara a sua morte. E


não foi uma morte tranquila, natural, uma “morte morrida”, mas foi
trágica e processualmente um assassinato, uma “morte matada”.
Essa morte declarada seria, nesse sentido, de “uma representação
linguístico-religiosa de Deus” (Rocha, 2010, p. 149).

O que significa, portanto, a morte de Deus, quem é esse Deus que morre e
para quem ele morre? Ademais, o que isso tem a ver com o tema religião
e pós-modernidade? É o que tentarei responder nesse tópico, através de
um diálogo com filósofos e teólogos pós-modernos e a partir da versão
da morte de Deus nietzschiana, entendendo, como expôs Charles Taylor
(2010, p. 658-659), “que essa expressão é usada numa variação incontável
de versões”, sendo uma delas proveniente do processo de libertação pela
ciência, e considerando que “no mundo moderno, deram-se condições,
nas quais não é mais possível crer em Deus do modo honesto, racional,
sem confusões ou falsificações ou reserva mental”.
116 | Filosofia da religião | FTSA
Cenário da morte de Deus

Em 8 de abril de 1966, a revista norte-americana Time, uma das mais


conhecidas e lidas do mundo, trazia na capa a pergunta: “Deus morreu?”
(Is God dead?). John T. Elson assinou o artigo da capa, que ele levou
cerca de um ano para terminar, tempo que passou entrevistando líderes
religiosos e teólogos. Depois de publicado, esse número “se tornou
símbolo da tumultuosa década de 1960” (Mohler, 2009). Causou um
rebuliço somente equalizado pela afirmação de John Lennon, anos
depois, de que os Beatles eram mais populares que Jesus.

O editor da revista recebeu mais de 3.500 cartas de leitores (sacerdotes


e religiosos em sua maioria) furiosos pelo conteúdo do artigo, e aquele
número acabou se tornando recorde de vendas da revista em mais de
vinte anos, provando que o tema “Deus” ainda causava espécie mesmo
entre aqueles que anunciavam sua morte – bem, se não causasse, não
haveria razão de ser para tal anúncio. Em 2008, a Los Angeles Times
nomeou a “Is God dead?” como uma entre as 10 capas de revista que
mais chocaram o mundo.

Sobre o que tratava o artigo? Gostaria de começar citando um trecho:

Deus está morto? Essas três palavras representam


uma intimação para uma reflexão sobre o sentido
da existência. Não mais se trata de uma questão de
zombaria dos céticos para os quais a descrença é o
teste da sabedoria e Nietzsche é o profeta que ofereceu
a resposta correta há um século. Dentro do próprio
cristianismo, agora confidentemente se renovando
tanto na forma quanto no espírito, um pequeno grupo
de teólogos radicais argumentaram que devemos
aceitar o fato de que Deus está morto e seguir a vida
sem ele. Como essa questão se diferencia da antiga
afirmação de que Deus não existe e nunca existiu? A
tese de Nietzsche era de que homens autocentrados
| Filosofia da religião | FTSA | 117
e batalhadores mataram Deus e estabeleceram isso.
A atual turma da morte de Deus acredita que, de
fato, Deus está absolutamente morto, mas propõe
esposar e escrever uma teologia sem theos, sem
Deus. Pensadores cristãos menos radicais sustentam
que pelo menos o Deus moldado segundo a imagem
do homem, o Deus sentado no céu, está morto e que
– como tarefa central da religião hoje – eles buscam
imaginar e definir um Deus que possa tocar as emoções
e envolver as mentes humanas (Elson apud. Mohler,
2009, tradução minha).

O artigo sinalizava mudanças significativas que vinham ocorrendo na


Europa e nos Estados Unidos nessa época, e revelou ao grande público
um movimento teológico que estava crescendo e que ficou conhecido
como teologia radical ou da morte de Deus, que tinha como alguns de
seus representantes os teólogos Thomas J. Altizer e William Hamilton,
que juntos escreveram o livro A morte de Deus (1967). Afirma que, nesse
caso, não eram ateístas ou céticos que encabeçavam o movimento, mas
teólogos, que constatavam a morte de Deus, na cultura e na religião, e
postulavam uma teologia desintoxicada das imagens e ideias de Deus
provenientes do teísmo e da prática cristã tradicional, que falasse de
Deus em outros termos, de uma maneira nova, menos transcendente
e mais imanente, e que pudesse aproximar esse Deus teísta – o Deus
da providência, que de longe governa o mundo e dita como as coisas
são e têm que ser aqui embaixo – das mentes e corações de homens e
mulheres vivendo em uma situação secular. Não se tratava, obviamente,
de mudar quem Deus é, mas de transfigurar sua imagem de modo que
fizesse sentido a esse ser humano secular.

A secularização, como vimos, pressupõe (como um de seus sentidos


possíveis) um mundo desencantado em relação a um mundo anterior,
sustentado pelos valores da religião. Na segunda metade do século XX,
após adventos como o nazismo, a II Guerra e o holocausto, a civilização
118 | Filosofia da religião | FTSA
europeia e ocidental vivia as consequências da tragédia que a acometeu;
ruíram-se as esperanças e o solo moderno que pregavam o progresso,
um futuro melhor para a humanidade, o controle do ser humano sobre
a história. Entrava em colapso também outro modelo, o da cristandade
– que começara com Constantino no século IV e tinha como ideal a
construção de uma sociedade “à imagem e semelhança da igreja”, sendo
que a fé cristã deveria “impregnar todos os aspectos da vida social, cultural
e religiosa e inclusive política” (Caputo; Vattimo, 2010, p. 21 – tradução
minha). Esse ideal cai precisamente quando o modelo de civilização nele
assentado mostra seu poder destrutivo. Essa postura crítica tem, como
matriz, ainda o ceticismo moderno em relação à religião e particularmente
o cristianismo. Em parte, é um resultado tardio desse ceticismo.

Logo, acompanhou esse colapso o nascimento de uma nova cultura, mais


secular, que cada vez mais se recusava a prosseguir vivendo sob a égide
do Deus da cristandade, abrindo precedentes para uma era “pós-religiosa”
ou “pós-cristã”. Esses teólogos da morte de Deus consideravam o teólogo
alemão Dietrich Bonhoeffer como uma espécie de profeta do movimento,
já que, no final de sua vida, já na prisão da Gestapo (a polícia de Hitler), ele
começou a renovar seu modo de pensar teológico e a esboçar ideias sobre um
“cristianismo sem religião”. Esse esboço se deu através de cartas diversas,
trocadas com seu amigo Eberhard Bethge, onde ele falava com sinceridade
sobre como via a situação do cristianismo naquela época e depois foram
reunidas no livro Resistência e submissão. Eric Metaxas (2011) afirma que
uma das principais passagens sobre esse tema pode ser achada em uma
carta de Bonhoeffer a Bethge em 30 de abril de 1944, e cita a passagem:

O que me vem incomodando sem cessar é a questão:


o que o cristianismo realmente é, ou, na verdade, quem
Cristo realmente é para nós hoje em dia. É findado o
tempo em que todas as coisas podiam ser ditas por
meio de palavras, quer teológicas, quer piedosas, e
assim é o tempo da introspecção e da consciência –
e, portanto, o tempo da religião em geral. Movemo-nos

| Filosofia da religião | FTSA | 119


em direção a um tempo sem religião; hoje, da forma
que são, as pessoas são simplesmente incapazes de
ser religiosas. Mesmo os que se descrevem como
“religiosos” não agem em conformidade com isso, e é
de presumir, portanto, que a religião à qual se referem
é algo bem diferente (BONHOEFFER apud. METAXAS,
2011, p. 501).

A crítica de Metaxas à interpretação dada pelos teólogos da morte de Deus


para o “cristianismo sem religião” é que, “o que Bonhoeffer quis dizer com
‘religião’ não era o cristianismo verdadeiro, mas o cristianismo imitativo
e abreviado contra o qual passou a vida lutando” (Ibid., p. 502). De fato,
em anotações posteriores, que datam de agosto de 1944, Bonhoeffer
(2003, p. 500) sustentava a ideia de que a “expulsão de Deus para fora
do mundo” seria fruto do próprio descrédito da religião, por viver sem
Deus. Fala muito de Deus, mas vive sem Ele. Quando ele fala de “religião”,
refere-se a um cristianismo de certa espécie, uma vez que, segundo ele,
“o cristianismo surge do encontro com um ser humano concreto: Jesus”,
mas ainda admite que essa é uma experiência de transcendência. A
alternativa para viver esse encontro genuinamente, naquele contexto,
seria (acreditava Bonhoeffer) viver um cristianismo sem religião, uma
vez que a religião, deduz-se, ao invés de aproximar, afastava as pessoas
de Cristo. Ele chegou a falar, ainda, de um “cristianismo inconsciente”,
em que a mão esquerda não sabe o que a direita faz; ou seja, é um tipo
de cristianismo que aparece pela atitude de vida e não pelo alarde das
palavras e atos anunciados.

Na introdução do livro Despues de la muerte de Dios, de Caputo e


Vattimo, Jeffrey Robbins sustenta que as palavras de Bonhoeffer, como
uma voz profética, converteram-se num elo entre, por um lado, uma fé
desencantada diante do horror provocado por sua própria impotência e
fracasso moral no mundo e, por outro lado, uma sensibilidade cultural e
religiosidade emergente forçada a recolher os destroços e imaginar um
futuro alternativo, que se despertaria após a morte de Deus e o colapso da
120 | Filosofia da religião | FTSA
cristandade. Nesse sentido, “para Bonhoeffer, esse esforço para redimir
o cristianismo das comodidades da religião era uma aposta arriscada,
sem garantias, que cortaria a relação entre o chamado de Cristo aos
discípulos e a associação do cristianismo com os centros de poder, e a
identificação cultural com os adornos culturais da civilização” (Robbins
in Caputo; Vattimo, 2010, p. 23, tradução minha).

A teologia da morte de Deus causou grande burburinho no meio teológico


e algum impacto na cultura, bastante difícil de mensurar na verdade, mas
até o final dos anos 1960 já havia perdido muito de seu vigor original,
graças ao surgimento de novos movimentos de espiritualidade pós-
modernas ao estilo “nova era”, mostrando que Deus até podia estar morto
para alguns acadêmicos, teólogos e filósofos, mas dificilmente morreria
na experiência religiosa de pessoas comuns. Tanto que, em 1969, a
Time, seguindo as tendências do momento (afinal, o objetivo é vender
revista tanto quanto, ou menos que, formar opinião), lançou um número
cujo título de capa era “Is God coming back to life?” (Deus está voltando
à vida?). O editor à época fez referência ao sucesso da capa de 1966
sobre a morte de Deus, mas que, naquele instante, ela se encontrava em
declínio uma vez que os teólogos da morte de Deus caíram em silêncio,
enquanto ministros de todas as denominações embarcavam em novas e
dinâmicas maneiras, trazendo o divino de volta à existência. Se aqueles
teólogos estavam silentes, afirmam Robbins e Crockett (2015, p. 2), o
pastor e evangelista Billy Graham estava em alta e sua notoriedade na
América do Norte e no mundo todo só crescia, ao passo que ele se tornou
conselheiro espiritual de uma sucessão de presidentes por cerca de 50
anos, começando com Dwight Eisenhower até George W. Bush. A morte
de Deus, nesse sentido, parece ter sido abafada por um “reavivamento”
pelo qual passou o cristianismo, bem como com o surgimento de novas
expressões de religiosidade pós-modernas. Mas isso não implica que
esse movimento e sua filosofia tenham morrido. A seguir pretendo
explicar por quê.

A morte de Deus em um sentido (nietzschiano) pós-moderno

| Filosofia da religião | FTSA | 121


Antes de entrar no assunto desse tópico propriamente, quero voltar um
pouco à discussão sobre a secularização. A teologia da morte de Deus
pretendia ser uma teologia secular, no sentido de que afirma este mundo
em que o verbo se fez carne e nossa experiência humana comum, bem
como fala de Deus em uma linguagem não-metafísica, ou seja, a partir
de uma linguagem assumidamente humana e, por isso, limitada. Esse
é um dos pressupostos defendidos por uma das expressões teológicas
contemporâneas chamada de “teologia secular radical” ou simplesmente
“teologia radical”, que retoma e amplia as noções defendidas pela
teologia da morte de Deus, como vimos, e também pela teologia secular,
que também surgiu nos anos 1960, de John A. T. Robinson e Harvey Cox.
Segundo Mike Grimshaw (2015, p. 4), a teologia secular radical engloba
tanto a ideia de um Deus que é totalmente ou “radicalmente outro”,
quanto a compreensão de que esse Deus, que é Santo (único), também
necessita de um “não santo ainda” (not yet holy), pois, como ele explica:

Sem um não santo ainda não há Deus, e uma linguagem


que não possa falar do santo e do não santo ainda é a
linguagem do ídolo. Essa linguagem do santo e do não
santo ainda é, portanto, uma linguagem iconoclasta2,
uma linguagem da criação que se posiciona contra o
ídolo da natureza, uma linguagem do Verbo feito carne.
Essa é a linguagem do sempre agora [ever now] contra
o ídolo da história, uma linguagem que é a linguagem
da ética universal, de uma fé e esperança “que consiste
em mudar o mundo ao invés de mudar de mundo,
desse mundo como arena da fé ao invés de objeto de
seu desprezo (Ibid., p. 4, tradução minha).

A linguagem do sempre agora não se prende nem ao passado, nem ao


futuro; é uma linguagem forjada a partir da vivência do presente e na busca
de transformação desse mundo, de modo que o interesse na eternidade
reside em que ela possa ser vivenciada, ainda que parcialmente, nesse
sempre agora. Ou seja, para os teólogos radicais, ser “secular” e ser
122 | Filosofia da religião | FTSA
“cristão” (com ou sem religião) não são coisas separadas, assim como
Deus e o mundo. Deus não é o mundo, mas se faz presente nele por
meio de seu Espírito, e de seus filhos e filhas. Antes de tudo, “secular”
(saeculum), como expressa Grimshaw (2015, p. 3), significa “uma
experiência temporal da condição humana dentro de um determinado
espaço”. Nesse contexto, para a teologia secular, a secularização
representa não a expulsão de Deus e da experiência com o sagrado para
fora do mundo, mas uma nova inclusão na qual a vida nesse mundo e
a “vida com Deus” não circulam em vias opostas; e a morte de Deus –
ou seja, a morte de uma ideia e de toda pretensão de falar de Deus em
termos absolutos – é o que possibilita esse renovado reencontro. Logo,
como explica ele:

A teologia secular, portanto, é a hermenêutica, em


relação a uma tradição, dessa experiência temporal
de ser gente no aqui e agora do tempo e do espaço.
Preocupada com o aqui e agora, preocupada com
uma experiência humana partilhada, o secular, com
o seu devir cultural e societário ao qual chamamos
secularização, é aquele que dá ao mundo sua dignidade
intrínseca uma vez que ele emerge e é expresso por
meio de um engajamento com esse mundo e com essa
vida. Nisso ele é uma expressão de fé e esperança
oposta a posição secularista niilista e negadora que tão
frequentemente se opõe a qualquer expressão de fé e
esperança nesse e desse mundo e nossa vida (Ibid., p.
3, tradução minha).

Assim, essa experiência da teologia radical é ao mesmo tempo secular e


pós-secular. Secular no sentido de afirmação desse mundo e dessa vida;
pós-secular, porque não aceita que a presente condição de secularização
venha no sentido de banir as novas expressões de experiência com o
sagrado ou de espiritualidade, palavra tão em voga. Esse movimento
pós-secular, como destaca Caputo (2005, p. 81, tradução minha), “tem

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conseguido se autoconvencer de que Deus veio ao mundo para se colocar
à parte do neoplatonismo cristão” (que abraçou, desde a antiguidade, a
metafísica), e “permanece completamente estupefato pela constatação
de que a metafísica medieval tem perdido sua força entre os pensadores
contemporâneos”.

Em que sentido e como entra, para os pós-modernos, a questão da morte


de Deus nessa discussão? Isso passa, em primeiro lugar, por entender
que Deus é esse rejeitado por Nietzsche – e talvez seja interessante que
você retorne à unidade 3 e à discussão sobre a crítica desse filósofo ao
cristianismo para relembrar algumas coisas. Por hora, gostaria de citar
uma passagem de seu livro A gaia ciência, que pode ser esclarecedora
nesse momento e para fins dessa discussão. Leiamos Nietzsche:

Considerar a natureza como se fosse uma prova da


bondade e da providência divinas; submeter a história
ao crédito de uma razão divina, como testemunho
constante de uma ordem moral do universo e de uma
finalidade; interpretar nosso destino, como o fizeram
durante tanto tempo os homens piedosos, vendo nele
sempre a mão de Deus que dispensa e dispõe tudo em
vista da salvação de nossa alma: aí estão as maneiras
de pensar que hoje estão ultrapassadas, que têm contra
elas a voz de nossa consciência que, no julgamento de
toda consciência delicada, passam por inconvenientes,
desonestas, por mentira, feminismo, covardia – e essa
severidade, mais que qualquer outra coisa, faz de nós
bons europeus, herdeiros da mais longa e da mais
corajosa vitória sobre si mesma que a Europa já tenha
conquistado (Nietzsche, 2008, p. 269, grifos meus).

Aqui se pode notar um Nietzsche bastante orgulhoso do serviço que ele,


como “bom europeu”, acreditava prestar à Europa – já no final do século
XIX – ao constatar a “morte de Deus”. Considerava isso um ato de bravura
e coragem que viria salvar a Europa da pusilanimidade dos “homens
124 | Filosofia da religião | FTSA
piedosos”. Então, voltemos à pergunta do começo: que Deus é esse que
ele declara como “morto”? Pela primeira parte da passagem pode-se inferir
que é ao “Deus moral”, aquele que servia como fundamento e justificativa
para todas as ações dos religiosos, inclusive as más ações, e que, além de
ter criado o universo, deveria levar o crédito também por colocar sua mão
em todas as coisas e determinar o destino da humanidade. Na perspectiva
de Harvey Cox (1970, p. 10), Nietzsche percebeu corretamente que um
Deus vampiro que não permita ao homem ser um criador deve ser morto, e
de bom grado realizou ele mesmo o deicídio”.

Fica claro aqui que Nietzsche não briga com Deus, mas briga com uma
ideia de Deus sustentada pelo teísmo, ou seja, com uma teologia – até
por isso ele se refere a “maneiras de pensar” ultrapassadas. Esse parece
ser um mal congênito da teologia em tom metafísico (essencialista):
fala-se de Deus tendo-se a ilusão de poder expressar o original. Quando
fala de um atributo de Deus, por exemplo: “Ele é Todo-Poderoso”, é como
se aquele atributo, isto é, aquela linguagem, nos conduzisse diretamente
a essência do eterno. De igual modo, dizer “Deus”, “O Eterno”, “Majestoso”
ou “Rei dos Reis” não é menos problemático, uma vez que o nome quer
se remeter à “coisa em si”, e logo nos vemos face a face, de novo, com o
problema da idolatria. Além de tudo, toda linguagem que tenta aprisionar,
dar conta ou falar em termos absolutos sobre algo, é uma linguagem
exclusiva: não admite outras interpretações, leituras ou experiências.
Apenas aquela (a sua) expressa, de fato, quem Deus é, o que diz em sua
Palavra, e qual é a sua vontade para a humanidade. Ao que parece, o
que a assunção teológica da morte de Deus quer fazer é precisamente
denunciar essa pretensiosidade de se estabelecer uma fala normativa e
única sobre Deus, e liberar uma nova experiência e um novo falar, não em
termos metafísicos, mas metafóricos.

Desse modo, a interpretação que filósofos contemporâneos dão a


famosa declaração de Nietzsche difere bastante da do senso comum.
Nietzsche, embora fosse ateu, não estaria declarando a “morte de Deus”
(o eterno ser), afinal, para ele, Deus não existia, e esta seria outra forma
| Filosofia da religião | FTSA | 125
de absolutização, o que em sua filosofia ele tanto condenava. Como
explica Alessandro Rocha (2010, p. 52), “Nietzsche não declara a morte
de Deus; ele constata sua morte”. A morte de Deus, nesse sentido, é a
morte do fundamento, a morte da metafísica, a constatação de morte de
tudo o que, sendo relativo, coloca-se diante de nós, ou pior ainda, por nós
mesmos, na condição de absoluto: a lei, a física, a gramática, os dogmas,
a verdade. Nesse aspecto pode-se notar uma aproximação muito clara
entre a morte de Deus e o que Tillich chamou de “princípio protestante”.

De acordo com John Caputo (2005, p. 80, tradução minha), “a declaração


da ‘morte de Deus’ tem como finalidade decapitar tudo aquilo que se
atreva a se colocar a si mesmo em Maiúsculas, o que incluía não apenas
a fumaça e o incenso dos mistérios cristãos, como qualquer coisa que
reivindique ser a Palavra Final”. E hoje, como ainda ressalta Caputo (Ibid.,
p. 94), o pluralismo religioso e a proliferação das mais estranhas e quase
inomináveis crenças de todo tipo, não serve para rechaçar, mas para
confirmar a “morte de Deus” no sentido nietzschiano. E como defende
Rocha (2010, p. 150), “a constatação da morte de Deus”, do modo
como vimos até aqui, pode ser “uma grande benção para a teologia
e a espiritualidade, à medida que liberta seu discurso das amarras
da metafísica platônica, que cristalizada, gestou tão somente uma
discursividade excludente”.

Conclusão
Fica patente que, ao invés ou antes de brigar com a morte de Deus pós-
moderna, é preciso primeiro perguntar: que Deus? Se for o Deus do levita
e do sacerdote, posso dizer que também estou fora, que me fiz ateu
desse Deus. Mas essa é uma questão difícil e nos conduz ao coração de
uma questão já amplamente aceita pelos filósofos e outros estudiosos
da religião, mas não muito pelos teólogos cristãos: a de que, quando
falamos de Deus, inevitavelmente construímos uma imagem, uma ideia
ou conceito não à sua semelhança, mas à nossa. E isso, como vimos
no início desse curso, tem um nome: antropomorfismo, ou a atribuição
de características humanas à deuses, ou mesmo à natureza e seus
126 | Filosofia da religião | FTSA
componentes. Não se pode atribuir isso (apenas) ao antropocentrismo,
em que o homem é “a medida de todas as coisas”; antes, eu diria, é um
produto inevitável da tentativa de falar qualquer coisa sobre o ser de
Deus (dentre elas, o próprio entendimento de que ele é “um ser”), em
descobrir como ele é ou dizer como ele age. Nesse sentido, a “morte de
Deus” parece ser inevitável.

Diante do exposto, é possível pensar que, talvez, a possibilidade que se


apresenta para que a fé bíblica sobreviva no mundo de hoje é que “Deus”
– ou um Deus de certo tipo – morra. Deus é mais efetivo quando seu
nome é menos usado, e quando só o amor aparece – como Bonhoeffer
bem depreendeu do “óbvio ululante” do Sermão do Monte ao propor um
“cristianismo inconsciente”, em que se assume jubilosamente que não
devemos alardear palavras ou feitos, de modo que é prudente que a mão
esquerda não saiba ou pelo menos não se lembre do que a direita faz.
Pois, no fim das contas, são os atos de fé, amor e esperança que nos
unem e glorificam a Deus e não as palavras.

Por isso, minha sugestão final é que não nos apressemos tanto em brigar
com a ideia da “morte de Deus”, tampouco em condenar impiedosamente
a descrença e o abandono de Deus, ou em tentar refutar a todo custo
o ateísmo. Hoje consinto que talvez a crença seja mais perigosa que a
descrença. Pois é a crença em Deus, o uso do nome de Deus, os atos em
nome de Deus, que muitas vezes dão razão de sobra para a descrença;
de fato, constituem-se na pedra de toque do ateísmo. Podem inspirar fé,
não nego isso – e aqui reside o valor da espiritualidade, da comunidade
e da tradição –, mas também inspiram coisas muito ruins e destrutivas.
Deus não precisa ser “salvo” do anticristo, do antideus ou do antirreino;
na perspectiva da fé cristã, eles já estão derrotados. Deus precisa ser
o radicalmente outro de Deus, ou melhor, de nós, que inventamos,
emulamos, usamos, manipulamos e, como corolário, matamos Deus. E
esse Deus que nós matamos precisa mesmo morrer e permanecer morto,
pelo bem de Deus e pelo bem da humanidade.

O que muita gente não se dá conta é que Deus permanece mais vivo

| Filosofia da religião | FTSA | 127


que nunca toda vez que “Deus”, a ideia, morre. Isso passa inclusive pela
tese defendida por Gianni Vattimo (2004, p. 12), de que, à luz do que ele
chama de situação pós-moderna, com a morte deste “Deus fundamento
último”, torna-se possível reencontrar com mais vigor a fé cristã. Porque,
segundo ele, “se Deus morreu, ou seja, se a filosofia tomou consciência
de não poder postular, com absoluta certeza, um fundamento definitivo,
então, também não existe mais a ‘necessidade’ de um ateísmo filosófico”.

Observação final
A conversa com meu amigo e ex-professor Gabriel Giannattasio (como
você deve ter notado) foi mais longa que o previsto, dada a natureza do
tema e as inúmeras conexões que ele nos levou a fazer. Extrapolando
os limites de tempo que normalmente estipulamos para os vídeos
compartilhados por unidade nas disciplinas, decidi encerrar esta unidade
deixando, como sugestão, que você prossiga assistindo à segunda parte
de nossa conversa. Nela começo provocando Gabriel sobre as possíveis
implicações do tema da “morte de Deus” para nossa história recente.
Essa é a parte da conversa em que tocamos em assuntos mais polêmicos
e sensíveis (de cunho político e ideológico), e em que discordamos
(respeitosamente e, talvez, não tão visivelmente) quanto aos riscos e
possibilidades que o tema nos oferece hoje. Espero que esta conversa
fique registrada, primeiro, como uma nota de possível indecidibilidade
quantos aos rumos que a humanidade está tomando no século XXI –
afinal, apenas podemos supor, imaginar e recomendar (sob nosso ponto
de vista) o que seja melhor para ela, nunca impor; segundo, como uma
nota de esperança, de que é possível tratar com seriedade e leveza temas
difíceis, e discordar sobre eles mantendo o tom de respeito ao outro, um
ser humano como eu. Para tanto, seguramente é preciso que haja boa
vontade de ambas as partes. Isso nunca foi problema em minha relação
com meu amigo Gabriel, um pensador denso, transgressor e polêmico,
sim, mas, acima de tudo, um ser humano admirável, por quem tenho
amizade, respeito e gratidão.

128 | Filosofia da religião | FTSA


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