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FILOSOFAR
Assim sendo, e porque definir a filosofia dizendo que ela é aquilo que os
filósofos fazem, não faz sentido para estudantes que se estão a iniciar no estudo dessa
disciplina, porquanto desconhecem os filósofos e não sabem nem quem são, nem o que
fizeram, disseram e escreveram, é usual tentar-se uma primeira aproximação à filosofia
pela via da sua definição etimológica. Ora, a palavra filosofia resulta da junção de dois
vocábulos gregos: philos, que, derivado de philia, significa amor ou amizade, e sophia,
que significa saber ou sabedoria. A filosofia será então, literalmente, o amor da
sabedoria e o filósofo é aquele que amando o saber, o conhecimento e a verdade os
deseja e procura através de uma pesquisa racional, argumentativa e crítica.
Em todo o caso, apesar da pertinência de que se reveste, a abordagem da
filosofia pela via etimológica revela-se insatisfatória, pois trata-se de uma forma vaga
de apresentar a filosofia, uma vez que também os cientistas, os artistas e os religiosos
têm gosto pelo conhecimento e se interessam pela verdade.
Neste ponto, porém, e em resposta à objeção acabada de fazer, poder-se-ia
dizer que se é verdade que em todas aquelas atividades se procura o conhecimento e a
verdade, tal pesquisa é feita de formas diferentes: com base na realização de
experiências, no caso das ciências empíricas (física, biologia, etc.); através do talento e
da sensibilidade estética, no caso da arte; valorizando a fé, no caso da religião e,
finalmente, pelo uso da razão, no caso da filosofia. É claro que em todas estas
disciplinas está presente o pensamento, mas aquilo que distingue a filosofia das outras
atividades, é que esta é uma pesquisa pura e exclusivamente racional. Neste sentido,
pode até dizer-se que, como nas ciências, também na filosofia se realizam experiências,
só que estas, no caso da filosofia são experiências mentais.
Dado que, ao contrário das ciências, a filosofia não existe em si como um corpo
mais ou menos constituído e objetivo de conhecimentos, e porque, como dizia o grande
filósofo alemão Immanuel Kant, “não se pode aprender filosofia, mas apenas a filosofar”,
uma maneira, certamente mais adequada, de aproximação à filosofia, consiste em
apresentá-la como sendo trabalho, prática, atividade, atividade reflexiva (baseada na
razão ou, melhor, no exercício de um pensamento organizado, consciente e intencional)
e crítica, isto é, atividade que consiste em pensar de forma consequente, quer dizer,
de forma racional, argumentativa e lógica acerca de determinados problemas,
problemas decorrentes da relação do homem com a realidade, muitos deles questões
básicas que se prendem com o sentido do ser (porque é que existe o ser e não o nada?),
o sentido do mundo (o que é tudo isto? De onde veio o mundo e as coisas que o
constituem?) e o sentido da vida (porquê o sofrimento? Porquê a morte? Existe o bem?
Porquê o mal?), procurando para eles respostas racionais (as teses e as teorias),
baseadas em argumentos racionais e sempre passíveis de análise, avaliação e discussão.
Por outras palavras, pode dizer-se que a filosofia é a atividade que consiste na
problematização e na discussão crítica dos problemas, e também dos conceitos, dos
argumentos e das teorias com que se abordam e se responde aos problemas
filosóficos.
1
Aires Almeida e António Costa, Avaliação das aprendizagens em filosofia – 10.º/11.º Anos, Sociedade
Portuguesa de filosofia, Centro para o Ensino da filosofia, p. 13.
questionamento filosófico e dado que o questionamento filosófico nada deixa de fora, a
filosofia, no limite, questiona a totalidade do ser ou do real.
Em todo o caso, nem as teorias nem os argumentos devem ser tomados como
dogmas, isto é, como verdades absolutas e indiscutíveis. Pelo contrário, devem ser
permanentemente submetidos ao confronto de ideias, ou seja, à interrogação, à
análise, à discussão e à crítica. Ora, é precisamente a discussão crítica dos problemas,
dos conceitos, das teorias e dos argumentos que constitui o método da filosofia, isto
é, o modo, a maneira ou o conjunto de processos de que a filosofia se serve para estudar
os assuntos que constituem o seu objeto.
Mas sendo a filosofia um saber eminentemente pessoal, isso não significa que
em filosofia tudo seja subjetivo e que todas as opiniões e todas as teorias se
equivalham. Pelo contrário, há boas e más teorias filosóficas, há teorias verdadeiras
e teorias falsas, sendo que o valor de uma teoria depende da solidez e bondade dos
argumentos que a sustentam. Significa isto, por outras palavras, que em filosofia se
considera que a melhor teoria é aquela que se funda nos melhores argumentos.
Devendo nós tanto quanto possível adotar na nossa vida uma postura crítica,
isso não significa que deixemos de ter convicções firmes a respeito dos assuntos que
nos importam, mas sim que, defendendo com argumentos racionais essas convicções,
devemos, apesar de tudo, manter o nosso espírito aberto e admitir que, de boa fé,
podemos estar enganados, e dispormo-nos a mudar de opinião se, à luz da discussão
e da análise crítica, verificarmos que os nossos argumentos não eram de facto os
melhores.
Esta ideia de que a filosofia não existe fora da sua prática e de que esta é
sempre um exercício pessoal (na medida em que reflete a personalidade daquele que
filosofa) e argumentativo da razão, permite que se entenda por que razão não existe
filosofia mas sim filosofias, no limite, tantas filosofias quantos os filósofos. Dois
nomes maiores da história da filosofia são especialmente claros no que a este ponto
diz respeito: Sócrates, que se recusava ele próprio a responder e a ensinar, limitando-se
a, através de perguntas adequadamente colocadas, ajudar o interlocutor a pensar por si
mesmo e a descobrir o saber que procurava, e Kant, que defendia que não se pode
aprender filosofia, mas apenas a filosofar.
Fernando Saldanha