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ABORDAGEM INTRODUTÓRIA À FILOSOFIA E AO

FILOSOFAR

1. O que é a Filosofia? – Uma Resposta Inicial


a) A Falta de Unanimidade Relativamente a uma Definição de Filosofia

Não há unanimidade ou consenso relativamente a uma definição de filosofia.


No limite poderia dizer-se que há tantas definições de filosofia quantos os filósofos. O
que se verifica é que, ao contrário do que se observa em disciplinas de todos
conhecidas, como a matemática, a história, a física ou a geologia, que têm por objeto
de estudo um conjunto mais ou menos definido e preciso de fenómenos,
respetivamente, os objetos matemáticos, os factos históricos os fenómenos físicos e os
fenómenos geológicos, da filosofia não se pode dizer que o seu objeto de estudo são
os fenómenos filosóficos, uma vez que em si mesmos tais fenómenos não existem.
Por outro lado, enquanto naquelas ciências existe um corpo definido,
sistematizado, objetivo e por todos aceite de saberes que se podem aprender,
guardar e ensinar, e a partir dos quais se pode construir uma definição precisa e unívoca
de cada uma dessas disciplinas, o mesmo não se verifica em filosofia, onde tal corpo
constituído de conhecimentos não existe. É que, sendo um saber pessoal – cada
filosofia traduz a pessoa, isto é, a visão do mundo, as crenças e as convicções de cada
filósofo –, a filosofia movendo-se no âmbito de uma certa subjetividade, oferece-nos
diferentes teorias e explicações para os problemas, sem que qualquer delas se
apresente como a única verdadeira, eliminando as outras como falsas. Isso, porém, não
significa que, apesar de fundadas em argumentos racionais e objetivos, as diferentes
teorias filosóficas, sempre passiveis de análise, de discussão e de crítica, sejam todas
verdadeiras ou tenham idêntico valor.

b) Aproximação à Filosofia pela Via da Etimologia

Assim sendo, e porque definir a filosofia dizendo que ela é aquilo que os
filósofos fazem, não faz sentido para estudantes que se estão a iniciar no estudo dessa
disciplina, porquanto desconhecem os filósofos e não sabem nem quem são, nem o que
fizeram, disseram e escreveram, é usual tentar-se uma primeira aproximação à filosofia
pela via da sua definição etimológica. Ora, a palavra filosofia resulta da junção de dois
vocábulos gregos: philos, que, derivado de philia, significa amor ou amizade, e sophia,
que significa saber ou sabedoria. A filosofia será então, literalmente, o amor da
sabedoria e o filósofo é aquele que amando o saber, o conhecimento e a verdade os
deseja e procura através de uma pesquisa racional, argumentativa e crítica.
Em todo o caso, apesar da pertinência de que se reveste, a abordagem da
filosofia pela via etimológica revela-se insatisfatória, pois trata-se de uma forma vaga
de apresentar a filosofia, uma vez que também os cientistas, os artistas e os religiosos
têm gosto pelo conhecimento e se interessam pela verdade.
Neste ponto, porém, e em resposta à objeção acabada de fazer, poder-se-ia
dizer que se é verdade que em todas aquelas atividades se procura o conhecimento e a
verdade, tal pesquisa é feita de formas diferentes: com base na realização de
experiências, no caso das ciências empíricas (física, biologia, etc.); através do talento e
da sensibilidade estética, no caso da arte; valorizando a fé, no caso da religião e,
finalmente, pelo uso da razão, no caso da filosofia. É claro que em todas estas
disciplinas está presente o pensamento, mas aquilo que distingue a filosofia das outras
atividades, é que esta é uma pesquisa pura e exclusivamente racional. Neste sentido,
pode até dizer-se que, como nas ciências, também na filosofia se realizam experiências,
só que estas, no caso da filosofia são experiências mentais.

c) A Filosofia como Atividade Crítica: Problemas, Teorias e Argumentos. O


Objeto e o Método da Filosofia

Dado que, ao contrário das ciências, a filosofia não existe em si como um corpo
mais ou menos constituído e objetivo de conhecimentos, e porque, como dizia o grande
filósofo alemão Immanuel Kant, “não se pode aprender filosofia, mas apenas a filosofar”,
uma maneira, certamente mais adequada, de aproximação à filosofia, consiste em
apresentá-la como sendo trabalho, prática, atividade, atividade reflexiva (baseada na
razão ou, melhor, no exercício de um pensamento organizado, consciente e intencional)
e crítica, isto é, atividade que consiste em pensar de forma consequente, quer dizer,
de forma racional, argumentativa e lógica acerca de determinados problemas,
problemas decorrentes da relação do homem com a realidade, muitos deles questões
básicas que se prendem com o sentido do ser (porque é que existe o ser e não o nada?),
o sentido do mundo (o que é tudo isto? De onde veio o mundo e as coisas que o
constituem?) e o sentido da vida (porquê o sofrimento? Porquê a morte? Existe o bem?
Porquê o mal?), procurando para eles respostas racionais (as teses e as teorias),
baseadas em argumentos racionais e sempre passíveis de análise, avaliação e discussão.
Por outras palavras, pode dizer-se que a filosofia é a atividade que consiste na
problematização e na discussão crítica dos problemas, e também dos conceitos, dos
argumentos e das teorias com que se abordam e se responde aos problemas
filosóficos.

Enquanto atividade crítica, a filosofia – “que emerge como um conjunto de


interrogações cuja resposta não é imediatamente dada pelo senso comum ou pelas
restantes ciências”1 – formula problemas filosóficos e constrói respostas
sistematizadas para esses problemas, que constituem as teses e as teorias filosóficas.
Essas teses e teorias, por sua vez, são constituídas por argumentos filosóficos, isto é,
por argumentos que visam a adesão racional e não simplesmente emocional dos sujeitos.
De uma maneira geral, pode dizer-se que os problemas suscitados pela relação do
homem com a realidade, bem como os conceitos, as teorias e os argumentos com que
os filósofos pensam esses problemas e a realidade a que se referem, constituem, no
seu conjunto, o objeto ou o conteúdo próprio da filosofia. A este respeito poder-se-ia,
talvez, dizer que se do objeto da filosofia fazem parte todos os problemas decorrentes do

1
Aires Almeida e António Costa, Avaliação das aprendizagens em filosofia – 10.º/11.º Anos, Sociedade
Portuguesa de filosofia, Centro para o Ensino da filosofia, p. 13.
questionamento filosófico e dado que o questionamento filosófico nada deixa de fora, a
filosofia, no limite, questiona a totalidade do ser ou do real.

Mas em filosofia, não basta saber colocar problemas, fazer perguntas


filosóficas e formular respostas apresentando opiniões. Estas devem ser
fundamentadas, isto é, justificadas através de conceitos e argumentos racionais.

Em todo o caso, nem as teorias nem os argumentos devem ser tomados como
dogmas, isto é, como verdades absolutas e indiscutíveis. Pelo contrário, devem ser
permanentemente submetidos ao confronto de ideias, ou seja, à interrogação, à
análise, à discussão e à crítica. Ora, é precisamente a discussão crítica dos problemas,
dos conceitos, das teorias e dos argumentos que constitui o método da filosofia, isto
é, o modo, a maneira ou o conjunto de processos de que a filosofia se serve para estudar
os assuntos que constituem o seu objeto.

Assim e de forma genérica, pode caraterizar-se a filosofia pelas seguintes


notas: é uma atividade reflexiva ou concetual (realiza-se exclusivamente através da
razão, do pensamento puro e da utilização racional de conceitos), problematizadora (faz
perguntas, formula problemas referentes, nomeadamente ao sentido das coisas, do ser, do
conhecer e do agir), argumentativa (não se limita a formular problemas, mas procura
para eles respostas, as teses e as teorias filosóficas, baseadas em argumentos racionais) e
crítica (avalia a validade e o valor dos conceitos, das teorias e dos argumentos que
formula, submetendo-os à análise e à discussão).

d) Antidogmatismo, Convicções fortes e Crítica em Filosofia

Em filosofia não há dogmas (crenças, opiniões ou doutrinas tomadas como


verdades absolutas e indiscutíveis), ela é o oposto do dogmatismo (dogmático é aquele
que aceita de forma acrítica uma teoria, tomando-a como verdade absoluta, sem que tenha
razões válidas para tal) do qual, tanto quanto da ignorância e dos preconceitos
(crenças admitidas como verdadeiras, sem que se tenham razões válidas que as
justifiquem), ela nos pretende libertar. Por isso, perante uma teoria filosófica (e
também perante as crenças aceites de forma acrítica pelo homem comum no seu
quotidiano), aquilo que o filósofo deve fazer é criticá-la, isto é, perguntar-se se ela é
verdadeira, submetendo-a à análise à discussão. A crítica filosófica (diferentemente
do sentido que comummente se atribui à palavra quando ela é entendida negativamente
como dizer mal de algo ou alguém) permite-nos não só avaliar a verdade das teorias
filosóficas através do questionamento dos argumentos que as sustentam, como ainda,
sob a forma de autocrítica, permite-nos questionar e avaliar a solidez e justeza das
nossas próprias verdades, das nossas crenças e opiniões, as quais, sem esse
questionamento não passariam de simples preconceitos.

Isto entende-se melhor se tomarmos um exemplo concreto: a generalidade das


pessoas aceita acriticamente a validade da crença de que não se deve matar. Mas,
tomada mais de perto, verifica-se que esta crença encerra problemas que há que
discutir. Por exemplo, porque é que não se deve matar? Será que não se deve matar em
nenhuma circunstância? Nem sequer em legítima defesa? Vê-se assim como o
questionamento filosófico nos permite aferir da solidez e do valor do fundamento das
nossas crenças.

Mas sendo a filosofia um saber eminentemente pessoal, isso não significa que
em filosofia tudo seja subjetivo e que todas as opiniões e todas as teorias se
equivalham. Pelo contrário, há boas e más teorias filosóficas, há teorias verdadeiras
e teorias falsas, sendo que o valor de uma teoria depende da solidez e bondade dos
argumentos que a sustentam. Significa isto, por outras palavras, que em filosofia se
considera que a melhor teoria é aquela que se funda nos melhores argumentos.

Devendo nós tanto quanto possível adotar na nossa vida uma postura crítica,
isso não significa que deixemos de ter convicções firmes a respeito dos assuntos que
nos importam, mas sim que, defendendo com argumentos racionais essas convicções,
devemos, apesar de tudo, manter o nosso espírito aberto e admitir que, de boa fé,
podemos estar enganados, e dispormo-nos a mudar de opinião se, à luz da discussão
e da análise crítica, verificarmos que os nossos argumentos não eram de facto os
melhores.

e) Filosofia ou Filosofias? – A Filosofia só Existe no Plural

Do que vem sendo dito, pode concluir-se que a filosofia considerada em si


mesma, como realidade autónoma e autossuficiente, não existe, não passa de um
conceito abstrato e vazio. Aquilo que verdadeiramente existe é o filosofar e filosofar,
enquanto exercício rigoroso de concetualização, problematização e de argumentação, não
é mais do que pensar por si, isto é, é usar cada um por si próprio a sua razão de um
modo autónomo, livre e crítico.

Esta ideia de que a filosofia não existe fora da sua prática e de que esta é
sempre um exercício pessoal (na medida em que reflete a personalidade daquele que
filosofa) e argumentativo da razão, permite que se entenda por que razão não existe
filosofia mas sim filosofias, no limite, tantas filosofias quantos os filósofos. Dois
nomes maiores da história da filosofia são especialmente claros no que a este ponto
diz respeito: Sócrates, que se recusava ele próprio a responder e a ensinar, limitando-se
a, através de perguntas adequadamente colocadas, ajudar o interlocutor a pensar por si
mesmo e a descobrir o saber que procurava, e Kant, que defendia que não se pode
aprender filosofia, mas apenas a filosofar.

Fernando Saldanha

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