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Ética, direito e política são criações humanas que, apesar das suas diferenças,
visam o objetivo de tornar possível a existência de uma vida social organizada,
justa e estável. Assim, dado que apontam na direção de um mesmo objetivo, ética
direito e política não devem ser vistas como realidades separadas, numa perspetiva
de exclusão, mas numa perspetiva de interação e complementaridade.
Quanto à relação entre ética e direito, deve dizer-se que, apesar de distintas,
tanto uma como o outro agem através de normas. Trata-se, porém, de normas de
diferente natureza:
As normas éticas:
a) Não são imposições exteriores (seja de Deus, seja do Estado), mas
obrigações vindas de dentro, do interior, uma vez que são imposições
do sujeito (da sua consciência moral) a si mesmo;
b) São, normalmente, regras não escritas (se bem que muitas tenham
passado a escrito em documentos como a Declaração Universal dos
Direitos Humanos);
c) Não têm caráter coercivo (não há o recurso à ameaça ou à coação física
para impor o seu cumprimento);
d) O seu não cumprimento determina comportamentos imorais e não
ilegais.
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As normas jurídicas ou do direito:
a) São exteriores ao sujeito (criadas por legisladores) e o seu cumprimento
é obrigatório;
b) São regras objetivamente escritas e inscritas em códigos normativos (o
Código Penal ou o Código Civil, p. ex.);
c) Possuem caráter coercivo (a sua infração implica a sujeição a sanções
legais, como multas, penas de prisão, etc.);
d) O seu não cumprimento determina comportamentos ilegais, sujeitos a
punições legais.
Ainda sobre a relação entre a ética e o direito, há, como adiante se verá, quem
defenda que a ética constitui o fundamento do direito, uma vez que as normas
jurídicas não valem por si mesmas, mas pelos valores em que se fundam e para cuja
realização apontam (por exemplo, as regras de trânsito valem na medida em que visam
a realização de valores como a segurança rodoviária e a vida), pelo que uma regra cujo
cumprimento seja um obstáculo à realização de valores é sentida como ilegítima e
injusta e tende a ser desrespeitada e contestada (p. ex., um sinal de trânsito mal
colocado que por isso dificulta mais do que facilita a circulação em segurança, tende a
não ser respeitado; leis como a da censura, são sentidas como ilegítimas e injustas, pois
impedem a realização dos valores da liberdade e da dignidade humanas).
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7.2. John Rawls e a Organização de uma Sociedade Justa
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(o facto, também aleatório, de umas pessoas nascerem com mais competências físicas ou
intelectuais do que outras) e sem depender das escolhas dos sujeitos, determina o seu
futuro na sociedade. É por isso que na situação de equidade descrita por Rawls, os
bens sociais (oportunidades, cargos, benefícios, riqueza) devem ser distribuídos de
forma imparcial e igual, só sendo admitida a desigualdade nessa distribuição se a
mesma beneficiar os menos favorecidos.
Considerando que uma sociedade justa deve ser organizada de acordo com
certas regras/princípios que promovam a imparcialidade e a equidade na
distribuição de bens sociais básicos como direitos, deveres, oportunidades, cargos,
benefícios, riqueza, etc., Rawls desenvolve uma teoria deontológica da justiça, isto é,
uma teoria assente em princípios de justiça universais, imparciais e impostos com a
força de imperativos categóricos.
A tarefa que então se coloca prende-se com a resposta às três questões seguintes:
quem escolhe os princípios de justiça? Em que condições são escolhidos? Que
princípios são esses?
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Interessados em promover os seus interesses próprios, mas desconhecendo quem
são e o que serão na sociedade real, os parceiros escolherão princípios de justiça
imparciais, isto é, princípios que não beneficiem ninguém em detrimento de alguém.
Na escolha dos princípios de justiça os sujeitos guiar-se-ão pela regra do
maximin, segundo a qual em partilhas desiguais, a mais justa é aquela em que o
aumento das vantagens dos mais beneficiados é compensado pela diminuição das
desvantagens dos menos favorecidos. Com efeito, manda o bom senso que em
situações de incerteza e desconhecendo aquela que nos irá calhar, se maximize a pior e
não a melhor parte.
Assim, cobertos pelo véu de ignorância os indivíduos, desconhecendo a sua
condição na futura sociedade, tenderão a, jogando pelo seguro, optar por viver numa
sociedade que seja o mais possível justa para todos, pelo que escolherão,
racionalmente, princípios de justiça que promovam a equidade, isto é, que aumentem
ou maximizem as vantagens daqueles que na sociedade em construção venham a ser
os menos favorecidos, uma vez que nada garante a nenhum dos sujeitos da posição
original que não vá ser ele a encontrar-se nessa situação.
Contra as conceções teleológicas (do grego telos, que significa fim), que elegem
à partida um bem a alcançar e definem a justiça como o meio para lá chegar, como
é o caso, por exemplo, do utilitarismo, que estabelece um bem – a felicidade para o maior
número –, que deve ser perseguido e ao qual a justiça se deve subordinar, Rawls defende
uma conceção processual e deontológica da mesma justiça, que, sem estabelecer à
partida um qualquer fim moral que deva ser alcançado, define antes um quadro de
procedimentos equitativos, que torna justa toda a escolha, seja qual for o resultado
a que conduza, desde que as regras procedimentais tenham sido seguidas. Trata-se,
no fundo, de algo semelhante ao que acontece nos jogos de sorte e de azar, em que os
jogadores não sabem como é que no final serão repartidos os ganhos e as perdas, mas,
dado que as regras foram fixadas antecipadamente, considerarão justa a repartição que
vier a acontecer, seja ela qual for. É que o que aqui é considerado justo ou injusto não
é o resultado, mas o próprio procedimento.
É no contexto desta perspetiva que vê a justiça como um processo, um
constructo, resultante das deliberações e escolhas dos sujeitos, efetuadas em condições de
equidade, que os princípios de justiça escolhidos pelos parceiros não são justos em
função de nenhum critério ou conceção particular de bem, mas em função do
procedimento equitativo que presidiu à sua escolha.
Assim, portanto, sem apresentar à partida uma qualquer conceção de bem
que deva ser alcançada e defendendo o primado do justo/justiça sobre o bom/bem,
Rawls define um conjunto de regras que legitimam a prossecução por todo e
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qualquer indivíduo da sua própria conceção do bem e da vida boa, desde que no
quadro e no respeito pelo definido nas regras previamente acordadas e aceites.
Como se verá, na esfera da justiça de Rawls não têm lugar nem valores
intolerantes, nem projetos de vida que se revelem incompatíveis com os dos outros
sujeitos.
Os Princípios de Justiça
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O princípio da igual liberdade (primeiro princípio), pretende que a sociedade
deve assegurar a cada membro o mais amplo conjunto de liberdades básicas
(liberdade de pensamento, liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade
religiosa, direito de eleger e de ser eleito, direito de propriedade, etc.), que seja
compatível com o mesmo grau de liberdade para todos os outros.
De acordo com este princípio, uma sociedade justa deve proporcionar a todos
e a cada sujeito o mais amplo conjunto de liberdades (políticas, económicas, cívicas,
etc.) e direitos (direito de não ser preso arbitrariamente, de votar, de ser eleito, etc.) que
for possível, desde que as liberdades e os direitos de uns não colidam e impeçam os
dos outros. Assim, garantindo a possibilidade de cada sujeito escolher a sua própria
conceção de bem e definir e modificar, o seu projeto individual de vida, este princípio
não admite a existência de desigualdade no que respeita à distribuição daquilo que
se prenda com o valor liberdade.
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desigualdade contribuir para o aumento da produtividade dos trabalhadores e se,
gerida de forma justa, a riqueza assim produzida se traduza na melhoria da saúde
financeira da empresa e em maiores benefícios para todos os que nela trabalham.
A forma mais comum de fazer reverter para os membros menos favorecidos
da sociedade os benefícios da desigualdade económica é através do sistema de
impostos, nomeadamente, fazendo com que as pessoas com maiores rendimentos
paguem percentagens mais elevadas nos impostos que lhes são cobrados.
Deve notar-se que o objetivo dos princípios de justiça não é eliminar as
desigualdades económicas e sociais, uma vez que, para além de estas serem, como se
viu, inevitáveis, a sua existência pode ser benéfica, uma vez que favorece a motivação
para o trabalho e o aumento da produtividade (se as pessoas ganhassem o mesmo
salário quer trabalhassem com empenho ou sem empenho, a tendência, sem a
existência de qualquer estímulo que a contrariasse, seria a de todos trabalharem
menos e com menos empenho). Os princípios de justiça também não visam abolir as
desigualdades derivadas das escolhas livres dos sujeitos (ex.: desigualdades
derivadas da escolha da frequência de cursos que dão acesso a profissões melhor ou
pior remuneradas). Aquilo que aqueles princípios visam corrigir são, quer as
desigualdades decorrentes da lotaria social dos nascimentos, isto é, do facto de os
indivíduos nascerem aleatoriamente em contextos sociais mais ou menos favorecidos,
sem que, por essa razão, tenham idênticas oportunidades de acesso a bens sociais como
educação e cultura; quer as que decorrem da lotaria natural dos nascimentos, isto é,
do facto de os indivíduos serem à partida providos de caraterísticas, talentos e dotes
naturais (inteligência, destreza física, capacidade artística, deficiências físicas ou
intelectuais, etc.), que, de forma arbitrária e, portanto, sem que nisso haja da sua parte
qualquer mérito ou demérito, acabam por se traduzir em desigualdades económicas e
sociais.
Para evitar que haja conflitos entre os três princípios de justiça, Rawls
estabelece uma hierarquia, de tal forma que o primeiro, o princípio da igual liberdade,
tem prioridade sobre os outros dois e o segundo, o da igualdade de oportunidades, tem
prioridade sobre o terceiro, o princípio da diferença. Assim, porque a liberdade tem
prioridade sobre a igualdade de oportunidades e sobre o bem-estar económico, na
sociedade justa não seria permitido que alguém, aceitasse prescindir de alguma das
suas liberdades em troca de maior bem-estar económico, por exemplo, aceitasse
mudar de religião, a fim de poder obter um melhor emprego.
Pela prioridade absoluta que concede à liberdade, à igual liberdade para todos
os sujeitos, John Rawls é um liberal. Porém, dado que a liberdade é apenas condição
necessária, mas não suficiente da justiça, pelo que tem de ser complementada pela
igualdade, Rawls é um liberal igualitário (não confundir com igualitarista, conceção
que, como foi referido, pode conduzir a uma situação de nivelamento por baixo).
Efetivamente, com as preocupações sociais que manifesta, pondo o acento na
solidariedade social e visando a articulação entre liberdade e igualdade, Rawls é
defensor da necessidade da correção de uma distribuição demasiado desigual da
riqueza e dos benefícios sociais, considerando, como se viu, que a desigualdade, só
será moralmente justa se dela também poderem beneficiar os menos favorecidos.
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Rawls: Esquema Síntese
Os princípios de justiça:
• Princípio da igual liberdade;
• Princípio da igualdade de oportunidades;
• Princípio da diferença;
• Articulação e hierarquia dos princípios;
• A justiça como equidade. Rawls como liberal igualitarista.
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Críticas de Michael Sandel e Robert Nozick a Rawls
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desvinculados de todo o laço social e, portanto, do mundo real, na ausência de
qualquer noção de bem comum que os mobilize, não estariam em condições de fazer
quaisquer escolhas.
Rawls argumentaria que aquilo que pretende com a ficção da posição original
é garantir a imparcialidade na escolha dos princípios de justiça, obrigando os sujeitos
a fazer as suas escolhas de uma forma puramente racional e em função dos seus interesses
pessoais (se bem que não saibam ainda exatamente quais são). Só que, para além do
facto de que essa escolha se baseia no pressuposto egoísta que privilegia a
pluralidade do bem individual e a separação das pessoas em relação à sua
interdependência comunitária e ao bem comum, Sandel considera que para que uma
escolha seja uma boa escolha (e só poderá ser justa se for uma boa escolha, donde a
anterioridade do bom face ao justo) não basta que seja imparcial. A sua avaliação como
boa ou má é uma questão moral, que só pode ser decidida por referência ao que a
comunidade considera como o seu bem comum. Ora, o véu de ignorância ao trazer as
pessoas para uma situação anterior à moral, impede os sujeitos, qualquer avaliação
do ponto de vista ético.
Pretender que as pessoas se libertem dos laços sociais que as formam como
pretende a ficção do véu de ignorância, é o mesmo que pretender que elas se dispam
do seu próprio ser, que é socialmente construído. Por isso, escolhas como as que Rawls
propõe, efetuadas numa situação de amoralidade, por sujeitos fictícios, desenraizados e
sem ligação a nenhuma comunidade concreta não são credíveis e não têm qualquer
valor moral, uma vez que este só pode ser aferido pela ligação de quem escolhe a
uma comunidade real e à noção de bem comum a ela inerente.
Objeto da crítica:
• Ausência da noção de bem comum, em função da qual as escolhas devem ser
feitas e avaliadas;
• A conceção demasiado liberal de liberdade/escolha de projetos particulares de
vida desligada da noção de bem comum;
• A posição original e a forma como nela são escolhidos os princípios de justiça.
Pressupostos:
• A sociedade é mais do que a simples soma dos indivíduos que a formam;
• A sociedade é anterior aos indivíduos;
• É na sociedade que é adquirida a noção de bem comum, que deve ser o critério
ético da escolha e da avaliação das escolhas individuais;
• À margem da sociedade, os indivíduos são simples abstrações metafísicas,
desencarnadas e descontextualizadas.
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A crítica:
• Dado que é anterior à sociedade, na posição original os sujeitos não estariam
verdadeiramente em condições de fazer qualquer escolha;
• Na ausência da noção de bem comum, a escolha dos princípios de justiça baseia-
se no pressuposto egoísta da salvaguarda por cada indivíduo do seu interesse
próprio;
• Para que seja eticamente boa, não basta que uma escolha seja imparcial. Essa sua
classificação é uma questão moral e o véu de ignorância transporta as pessoas para
uma situação anterior a toda a moral;
• Na ausência do critério ético de avaliação das escolhas individuais, qua seria a
noção de bem comum, a escolha dos princípios propostos por Rawls não é credível
e não tem qualquer valor moral;
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Para Nozick, esta conceção padronizada da justiça é incorreta, uma vez que a
manutenção daquele padrão (só é aceitável uma desigualdade quando esta também
beneficia os menos favorecidos) exige a constante intervenção do Estado na
redistribuição da riqueza, porquanto, por exemplo, mesmo dispondo inicialmente do
mesmo valor de salário, as pessoas ao geri-lo de diferentes maneiras (investindo-o
uns, poupando-o outros e esbanjando-o alguns), depressa criariam situações de
desigualdade, obrigando o Estado a intervir para repor o padrão inicial. Para além
disso, ao cobrar impostos mais elevados aos mais ricos para implementar benefícios
sociais para os mais pobres, o Estado, considera Nozick, não só interfere
indevidamente na liberdade dessas pessoas, violando o seu direito de propriedade,
como, contrariando o imperativo categórico de Kant e de forma injusta e inaceitável,
as trata como meros meios (para ajudar os mais pobres), não as respeitando como fins
em si mesmos.
Objeto da crítica:
• O princípio da diferença e a justiça padronizada por ele imposta.
Pressupostos:
• Libertarismo;
• Conceção minimalista do Estado;
• Ausência de funções sociais, que, a existir, implicariam que o Estado retirasse aos
mais ricos uma parte do que ganharam legitimamente, para beneficiar os menos
favorecidos.
A crítica:
• A manutenção do padrão de justiça imposto pelo princípio da diferença implica a
intervenção constante do Estado na redistribuição da riqueza, de modo a repor o
padrão inicial;
• A intervenção do Estado na vida das pessoas, viola a sua liberdade e o direito de
propriedade;
• A retirada aos mais favorecidos de parte da sua riqueza para apoiar os menos
favorecidos, viola o imperativo categórico kantiano.
Fevereiro de 2021
Fernando Saldanha
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