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7 – Ética, Direito e Política – Liberdade e Justiça Social; Igualdade e

Diferença; Justiça e Equidade [Filosofia Política]

7.1 Ética, Direito e Política


7.1.1 Definição de Conceitos

Ética, direito e política são criações humanas que, apesar das suas diferenças,
visam o objetivo de tornar possível a existência de uma vida social organizada,
justa e estável. Assim, dado que apontam na direção de um mesmo objetivo, ética
direito e política não devem ser vistas como realidades separadas, numa perspetiva
de exclusão, mas numa perspetiva de interação e complementaridade.

De uma maneira geral e muito brevemente, pode dizer-se que:

a) A ética ou a moral é o sistema de princípios, valores e normas que orientam


e regulam a ação humana no sentido daquilo que é correto e, como tal, deve
ser feito, bem como a reflexão crítica e fundamentadora sobre esse sistema
de princípios, valores e normas.
b) O direito é o conjunto de leis e normas que, inscritas nos diferentes códigos
jurídicos, visam regular a v i d a social e responder com justiça às infrações
e aos conflitos que aquela comporta.
c) Por sua vez, a política consiste nos processos e meios de acesso ao poder de
Estado e ao exercício da governação, tendo em vista a promoção do bem
comum.

7.1.2. Diferença e relação entre ética direito e política

Quanto à relação entre ética e direito, deve dizer-se que, apesar de distintas,
tanto uma como o outro agem através de normas. Trata-se, porém, de normas de
diferente natureza:
As normas éticas:
a) Não são imposições exteriores (seja de Deus, seja do Estado), mas
obrigações vindas de dentro, do interior, uma vez que são imposições
do sujeito (da sua consciência moral) a si mesmo;
b) São, normalmente, regras não escritas (se bem que muitas tenham
passado a escrito em documentos como a Declaração Universal dos
Direitos Humanos);
c) Não têm caráter coercivo (não há o recurso à ameaça ou à coação física
para impor o seu cumprimento);
d) O seu não cumprimento determina comportamentos imorais e não
ilegais.

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As normas jurídicas ou do direito:
a) São exteriores ao sujeito (criadas por legisladores) e o seu cumprimento
é obrigatório;
b) São regras objetivamente escritas e inscritas em códigos normativos (o
Código Penal ou o Código Civil, p. ex.);
c) Possuem caráter coercivo (a sua infração implica a sujeição a sanções
legais, como multas, penas de prisão, etc.);
d) O seu não cumprimento determina comportamentos ilegais, sujeitos a
punições legais.

7.1.4. A Ética como Fundamento do Direito

Ainda sobre a relação entre a ética e o direito, há, como adiante se verá, quem
defenda que a ética constitui o fundamento do direito, uma vez que as normas
jurídicas não valem por si mesmas, mas pelos valores em que se fundam e para cuja
realização apontam (por exemplo, as regras de trânsito valem na medida em que visam
a realização de valores como a segurança rodoviária e a vida), pelo que uma regra cujo
cumprimento seja um obstáculo à realização de valores é sentida como ilegítima e
injusta e tende a ser desrespeitada e contestada (p. ex., um sinal de trânsito mal
colocado que por isso dificulta mais do que facilita a circulação em segurança, tende a
não ser respeitado; leis como a da censura, são sentidas como ilegítimas e injustas, pois
impedem a realização dos valores da liberdade e da dignidade humanas).

7.1.5. Enquadramento Jurídico e Ético da Ação Política

Quanto à política e nomeadamente à ação política, também esta tanto deve


obedecer às leis do direito (sendo estas mesmas uma criação política, porquanto são
políticos, governantes e deputados quem faz as leis), como ir ao encontro dos princípios
fundamentais da ética. Com efeito, a política não deve ser vista como um fim em si
mesmo, mas como um meio ao serviço das pessoas e da sociedade, pelo que,
obedecendo às leis do direito, deve pautar-se por princípios que visem a criação e a
defesa de sociedades livres, democráticas e justas, onde a liberdade, o bem-estar e a
dignidade dos cidadãos, sejam os valores supremos.
No núcleo da atividade política encontra-se o Estado, constituído por todo um
conjunto de instituições – Governo, Assembleia da República, autarquias, repartições
públicas, etc. – através das quais, no âmbito do ordenamento jurídico que os regula, têm
lugar o exercício do poder político e da autoridade, tendo em vista a concretização das
finalidades definidas como boas pela comunidade.

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7.2. John Rawls e a Organização de uma Sociedade Justa

A Justiça como Equidade

Vendo a justiça mais como uma caraterística das instituições do que do


comportamento individual – “a justiça é a primeira virtude das instituições, sociais, como
a verdade o é em relação aos sistemas de pensamento” – é importante que se comece por
precisar que a justiça de que Rawls se ocupa não é nem a justiça comutativa, que está
presente nos negócios e regula as relações de compra e venda, nem a justiça legal, aquela
que se pratica nos tribunais e se prende com o cumprimento da lei, mas sim a justiça
distributiva, aquela visa a distribuição equitativa de bens sociais como direitos, deveres,
benefícios e riqueza.
Tendo como objetivo a organização de uma sociedade justa, isto é, de uma
sociedade concebida como um sistema bem ordenado de cooperação, tendo em vista
o benefício de todos os cidadãos, concebidos como pessoas livres e iguais, Rawls
considera que a igualdade deve ser parte integrante da justiça. Há, porém, diferenças
e desigualdades tanto biológicas como económicas e sociais que são inevitáveis e, por
isso, existem em todas as sociedades, mesmo nas sociedades justas (para além das
desigualdades de género – homens e mulheres – e das desigualdades biológicas – pessoas
mais ou menos fortes, mais ou menos inteligentes, com deficiência ou não deficiência –,
há outras desigualdades, nomeadamente económicas, que são inevitáveis. Imagine-
se, por exemplo, um patrão que para pôr fim às desigualdades na sua empresa, decide
atribuir a todos os trabalhadores o mesmo salário, por exemplo, 1000 euros. Logo após o
recebimento dos primeiros salários, as desigualdades iriam reaparecer, uma vez que o
dinheiro recebido seria utilizado de diferentes maneiras – uns gastá-lo-iam todo no jogo
e na boémia, outros fariam poupanças, outros fariam investimentos, etc. –, levando a que,
pouco tempo depois, apesar de receberem o mesmo valor, uns acabassem por ter mais
dinheiro do que outros). Assim, não sendo possível a absoluta igualdade, Rawls,
procurando conciliar desigualdade e justiça, defende que numa sociedade justa não
deve haver grandes desigualdades. De qualquer forma, permanece a questão de saber
como justificar a presença de uma certa desigualdade na implementação da justiça.
Na resposta a esta questão, Rawls entenderá a igualdade não no sentido de
igualdade aritmética, nem no sentido igualitarista, que poderia conduzir a um
nivelamento por baixo, mas no sentido de equidade, considerando que o que é igual
deve ser tratado de forma igual e o que é diferente deve ser tratado de forma
diferente (por exemplo, as pessoas com deficiência não devem ser tratadas em todas as
situações da mesma maneira que as pessoas sem deficiência, devendo antes ser-lhes
concedidas certos benefícios e prioridades, de modo a compensar as desvantagens de que
são vítimas). Com a sua ideia de justiça como equidade, Rawls, visa corrigir a
injustiça de uma desigualdade de origem, que, resultante de uma como que lotaria
social (o facto aleatório de as pessoas nascerem em famílias ricas ou pobres) ou natural

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(o facto, também aleatório, de umas pessoas nascerem com mais competências físicas ou
intelectuais do que outras) e sem depender das escolhas dos sujeitos, determina o seu
futuro na sociedade. É por isso que na situação de equidade descrita por Rawls, os
bens sociais (oportunidades, cargos, benefícios, riqueza) devem ser distribuídos de
forma imparcial e igual, só sendo admitida a desigualdade nessa distribuição se a
mesma beneficiar os menos favorecidos.
Considerando que uma sociedade justa deve ser organizada de acordo com
certas regras/princípios que promovam a imparcialidade e a equidade na
distribuição de bens sociais básicos como direitos, deveres, oportunidades, cargos,
benefícios, riqueza, etc., Rawls desenvolve uma teoria deontológica da justiça, isto é,
uma teoria assente em princípios de justiça universais, imparciais e impostos com a
força de imperativos categóricos.
A tarefa que então se coloca prende-se com a resposta às três questões seguintes:
quem escolhe os princípios de justiça? Em que condições são escolhidos? Que
princípios são esses?

A Escolha dos Princípios de Justiça: A Posição Original e o Véu de Ignorância

Influenciado pelas teorias contratualistas do século XVII, e com base numa


conceção processual da justiça, que vê esta como uma construção artificial levada a
efeito pelos sujeitos através das escolhas que livremente fazem, Rawls vê esta como um
processo decorrente de um contrato fictício, a-histórico, livremente estabelecido
entre todos os indivíduos, concebidos como sujeitos igualmente livres, racionais e
dignos, colocados numa situação original de absoluta igualdade e imparcialidade. A
finalidade deste contrato é o estabelecimento de uma sociedade justa, assente em
princípios, instituições e normas que promovam a liberdade e a igualdade entre todos os
cidadãos.
De acordo com esta ideia, os princípios de justiça, que não vêm de Deus nem
de nenhum ditador, são escolhidos e contratualmente aceites por todos os indivíduos
reunidos numa situação imaginária de igualdade e imparcialidade a que Rawls dá o
nome de posição original.
Na posição original, os sujeitos, as partes contratantes, no fundo os verdadeiros
fundadores da sociedade, deliberam, sob um véu de ignorância, sobre os princípios de
justiça que deverão regular a sua sorte e o seu futuro na sociedade real. O véu de
ignorância, uma espécie de amnésia geral que cai sobre os indivíduos, é essencial
uma vez que é ele que garante a imparcialidade da situação, porquanto os impede de
conhecer não apenas as suas características individuais (se serão homens ou mulheres,
ricos ou pobres, doentes ou saudáveis, muito ou pouco inteligentes, desta ou daquela etnia
ou religião etc.), como também qual será o seu lugar na hierarquia da futura
sociedade.

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Interessados em promover os seus interesses próprios, mas desconhecendo quem
são e o que serão na sociedade real, os parceiros escolherão princípios de justiça
imparciais, isto é, princípios que não beneficiem ninguém em detrimento de alguém.
Na escolha dos princípios de justiça os sujeitos guiar-se-ão pela regra do
maximin, segundo a qual em partilhas desiguais, a mais justa é aquela em que o
aumento das vantagens dos mais beneficiados é compensado pela diminuição das
desvantagens dos menos favorecidos. Com efeito, manda o bom senso que em
situações de incerteza e desconhecendo aquela que nos irá calhar, se maximize a pior e
não a melhor parte.
Assim, cobertos pelo véu de ignorância os indivíduos, desconhecendo a sua
condição na futura sociedade, tenderão a, jogando pelo seguro, optar por viver numa
sociedade que seja o mais possível justa para todos, pelo que escolherão,
racionalmente, princípios de justiça que promovam a equidade, isto é, que aumentem
ou maximizem as vantagens daqueles que na sociedade em construção venham a ser
os menos favorecidos, uma vez que nada garante a nenhum dos sujeitos da posição
original que não vá ser ele a encontrar-se nessa situação.

Uma Conceção Processual da Justiça

Contra as conceções teleológicas (do grego telos, que significa fim), que elegem
à partida um bem a alcançar e definem a justiça como o meio para lá chegar, como
é o caso, por exemplo, do utilitarismo, que estabelece um bem – a felicidade para o maior
número –, que deve ser perseguido e ao qual a justiça se deve subordinar, Rawls defende
uma conceção processual e deontológica da mesma justiça, que, sem estabelecer à
partida um qualquer fim moral que deva ser alcançado, define antes um quadro de
procedimentos equitativos, que torna justa toda a escolha, seja qual for o resultado
a que conduza, desde que as regras procedimentais tenham sido seguidas. Trata-se,
no fundo, de algo semelhante ao que acontece nos jogos de sorte e de azar, em que os
jogadores não sabem como é que no final serão repartidos os ganhos e as perdas, mas,
dado que as regras foram fixadas antecipadamente, considerarão justa a repartição que
vier a acontecer, seja ela qual for. É que o que aqui é considerado justo ou injusto não
é o resultado, mas o próprio procedimento.
É no contexto desta perspetiva que vê a justiça como um processo, um
constructo, resultante das deliberações e escolhas dos sujeitos, efetuadas em condições de
equidade, que os princípios de justiça escolhidos pelos parceiros não são justos em
função de nenhum critério ou conceção particular de bem, mas em função do
procedimento equitativo que presidiu à sua escolha.
Assim, portanto, sem apresentar à partida uma qualquer conceção de bem
que deva ser alcançada e defendendo o primado do justo/justiça sobre o bom/bem,
Rawls define um conjunto de regras que legitimam a prossecução por todo e

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qualquer indivíduo da sua própria conceção do bem e da vida boa, desde que no
quadro e no respeito pelo definido nas regras previamente acordadas e aceites.
Como se verá, na esfera da justiça de Rawls não têm lugar nem valores
intolerantes, nem projetos de vida que se revelem incompatíveis com os dos outros
sujeitos.

Que Princípios Serão Escolhidos? A Recusa do Princípio da Maior Felicidade.

Que princípios deverão ser escolhidos na posição original? – Uma


possibilidade seria a adesão de Rawls ao utilitarismo e a adoção do princípio da maior
felicidade.
Rawls recusa, porém, a perspetiva utilitarista, não só em virtude do seu
caráter teleológico, isto é, por colocar a justiça ao serviço de um fim (telos) moral
unívoco (a maior felicidade para o maior número), facto que está pouco de acordo quer
com a ideia de liberdade, quer com o pluralismo (cada sujeito é livre de procurar o seu
próprio bem) que caracterizam as democracias liberais do ocidente, como ainda pelo
facto de, admitindo o utilitarismo que a felicidade de muitos possa justificar o
sacrifício de alguns, a aplicação prática do princípio da maior felicidade traduzir-
se-ia na existência de sociedades muito desiguais e, por isso, injustas.
Os princípios a escolher deverão ser princípios que, beneficiando, de acordo
com a regra maximin, os menos favorecidos, promovam a igualdade. Assim, por
exemplo, não escolherei princípios que permitam a escravatura, a discriminação
racial ou o desamparo das pessoas com deficiência, uma vez que não tenho qualquer
garantia de que na sociedade real eu não venha a integrar qualquer desses grupos.
Nestas condições, manda a prudência que me prepare para o pior. Escolherei, por
isso, princípios que conduzam a uma sociedade na qual eu ou quem quer que se
venha a encontrar numa situação desfavorável tenha, apesar de tudo, condições que
lhe permitam uma vida minimamente digna.

Os Princípios de Justiça

Com base nos pressupostos enunciados, os princípios de justiça que serão


escolhidos e deverão possibilitar a cada sujeito a realização dos seus projetos de vida
individuais, serão basicamente três (em uma Teoria da Justiça, o autor apresenta
apenas dois princípios de justiça, sendo que o segundo e o terceiro aqui referidos
constituem, respetivamente, a segunda e a primeira parte em que Rawls desdobra o seu
segundo princípio), o primeiro especialmente dirigido à distribuição dos direitos
cívicos e políticos dos cidadãos, e os outros dois, mais direcionados à regulamentação
económica e social da sociedade:

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O princípio da igual liberdade (primeiro princípio), pretende que a sociedade
deve assegurar a cada membro o mais amplo conjunto de liberdades básicas
(liberdade de pensamento, liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade
religiosa, direito de eleger e de ser eleito, direito de propriedade, etc.), que seja
compatível com o mesmo grau de liberdade para todos os outros.
De acordo com este princípio, uma sociedade justa deve proporcionar a todos
e a cada sujeito o mais amplo conjunto de liberdades (políticas, económicas, cívicas,
etc.) e direitos (direito de não ser preso arbitrariamente, de votar, de ser eleito, etc.) que
for possível, desde que as liberdades e os direitos de uns não colidam e impeçam os
dos outros. Assim, garantindo a possibilidade de cada sujeito escolher a sua própria
conceção de bem e definir e modificar, o seu projeto individual de vida, este princípio
não admite a existência de desigualdade no que respeita à distribuição daquilo que
se prenda com o valor liberdade.

O princípio da igualdade de oportunidades (2.ª parte do segundo princípio),


pretende que as desigualdades económicas e sociais (salários elevados, por exemplo),
devam estar ligadas a cargos e posições sociais acessíveis a todos, com base na
igualdade de oportunidades.
De acordo com este princípio, o acesso a cargos e funções sociais deve estar
aberto a todos, de igual modo, de maneira que ninguém possa ser beneficiado ou
prejudicado seja pelas circunstâncias sociais (ex.: ter-se nascido numa família rica ou
pobre), seja pela sorte ou o azar natural (ex.: o facto de se ter nascido com mais ou
menos capacidades físicas ou intelectuais, com deficiência de algum tipo ou sem
deficiência). É claro que as posições mais vantajosas e de maior responsabilidade
devem ser entregues aos mais qualificados. Porém, a igualdade de oportunidades
exige que todos os candidatos a esses lugares tenham tido idênticas oportunidades e
possibilidades de aquisição, por exemplo no sistema escolar, das qualificações
exigidas para o desempenho daqueles cargos (note-se que o Estado apenas deve
garantir a igualdade de oportunidades, porquanto, a forma, melhor ou pior como essas
forem aproveitadas, bem como o leque maior ou menor de possibilidade de escolha daí
decorrente é apenas da responsabilidade dos indivíduos).

O princípio da diferença (1.ª parte do segundo princípio), pretende que a


sociedade deve promover a distribuição igual ou equitativa da riqueza, exceto se as
desigualdades económicas e sociais se traduzirem em maior benefício para os mais
desfavorecidos.
De acordo com este princípio, o mais polémico e aquele que tem sido objeto de
maior contestação e de mais discussão (tanto é atacado pelas posições políticas mais à
direita, que o acusam de promover o igualitarismo, como pelas posições mais à
esquerda, que veem nele a justificação das desigualdades sociais) mas que é, ao mesmo
tempo, aquele que melhor traduz a forma como Rawls entende a igualdade como
equidade, a desigual distribuição da riqueza e do rendimento só é justa e
moralmente justificável se também beneficiar os menos favorecidos. Assim,
justifica-se que numa empresa exista uma certa desigualdade salarial, se essa

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desigualdade contribuir para o aumento da produtividade dos trabalhadores e se,
gerida de forma justa, a riqueza assim produzida se traduza na melhoria da saúde
financeira da empresa e em maiores benefícios para todos os que nela trabalham.
A forma mais comum de fazer reverter para os membros menos favorecidos
da sociedade os benefícios da desigualdade económica é através do sistema de
impostos, nomeadamente, fazendo com que as pessoas com maiores rendimentos
paguem percentagens mais elevadas nos impostos que lhes são cobrados.
Deve notar-se que o objetivo dos princípios de justiça não é eliminar as
desigualdades económicas e sociais, uma vez que, para além de estas serem, como se
viu, inevitáveis, a sua existência pode ser benéfica, uma vez que favorece a motivação
para o trabalho e o aumento da produtividade (se as pessoas ganhassem o mesmo
salário quer trabalhassem com empenho ou sem empenho, a tendência, sem a
existência de qualquer estímulo que a contrariasse, seria a de todos trabalharem
menos e com menos empenho). Os princípios de justiça também não visam abolir as
desigualdades derivadas das escolhas livres dos sujeitos (ex.: desigualdades
derivadas da escolha da frequência de cursos que dão acesso a profissões melhor ou
pior remuneradas). Aquilo que aqueles princípios visam corrigir são, quer as
desigualdades decorrentes da lotaria social dos nascimentos, isto é, do facto de os
indivíduos nascerem aleatoriamente em contextos sociais mais ou menos favorecidos,
sem que, por essa razão, tenham idênticas oportunidades de acesso a bens sociais como
educação e cultura; quer as que decorrem da lotaria natural dos nascimentos, isto é,
do facto de os indivíduos serem à partida providos de caraterísticas, talentos e dotes
naturais (inteligência, destreza física, capacidade artística, deficiências físicas ou
intelectuais, etc.), que, de forma arbitrária e, portanto, sem que nisso haja da sua parte
qualquer mérito ou demérito, acabam por se traduzir em desigualdades económicas e
sociais.
Para evitar que haja conflitos entre os três princípios de justiça, Rawls
estabelece uma hierarquia, de tal forma que o primeiro, o princípio da igual liberdade,
tem prioridade sobre os outros dois e o segundo, o da igualdade de oportunidades, tem
prioridade sobre o terceiro, o princípio da diferença. Assim, porque a liberdade tem
prioridade sobre a igualdade de oportunidades e sobre o bem-estar económico, na
sociedade justa não seria permitido que alguém, aceitasse prescindir de alguma das
suas liberdades em troca de maior bem-estar económico, por exemplo, aceitasse
mudar de religião, a fim de poder obter um melhor emprego.
Pela prioridade absoluta que concede à liberdade, à igual liberdade para todos
os sujeitos, John Rawls é um liberal. Porém, dado que a liberdade é apenas condição
necessária, mas não suficiente da justiça, pelo que tem de ser complementada pela
igualdade, Rawls é um liberal igualitário (não confundir com igualitarista, conceção
que, como foi referido, pode conduzir a uma situação de nivelamento por baixo).
Efetivamente, com as preocupações sociais que manifesta, pondo o acento na
solidariedade social e visando a articulação entre liberdade e igualdade, Rawls é
defensor da necessidade da correção de uma distribuição demasiado desigual da
riqueza e dos benefícios sociais, considerando, como se viu, que a desigualdade, só
será moralmente justa se dela também poderem beneficiar os menos favorecidos.

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Rawls: Esquema Síntese

Objetivo: organização de uma sociedade justa (a justiça como


equidade):
• Justiça e igualdade;
• A igualdade como equidade;
• Necessidade de princípios de justiça (universalidade e imparcialidade).

A escolha dos princípios de justiça:


• Contratualismo;
• Posição original (caráter fictício e a-histórico; anterior à entrada na sociedade);
• Véu de ignorância (o que é e para que serve);
• Regra maximin;
• Justiça processual e não teleológica;
• Recusa do utilitarismo e do princípio da maior felicidade.

Os princípios de justiça:
• Princípio da igual liberdade;
• Princípio da igualdade de oportunidades;
• Princípio da diferença;
• Articulação e hierarquia dos princípios;
• A justiça como equidade. Rawls como liberal igualitarista.

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Críticas de Michael Sandel e Robert Nozick a Rawls

Crítica (comunitarista) de Michael Sandel


Michael Sandel rejeita a tese rawlsiana da prioridade da justiça sobre o bem
e critica este filósofo pelo facto de privilegiar o bem individual em relação ao bem
comum, considerando mesmo que nele está ausente a ideia de bem comum, que
deveria constituir o princípio e critério em função do qual as escolhas das pessoas
deveriam ser feitas e avaliadas.
Tendo em consideração aqueles pressupostos, compreende-se que Sandel se
demarque da conceção de liberdade tal como é estabelecida pelo primeiro princípio
da justiça de Rawls, o princípio da igual liberdade, que, com base na perspetiva de um
Estado neutro em relação às diversas conceções particulares de bem dos diferentes
indivíduos, expressas na escolha que fazem dos projetos de vida que pretendem
concretizar, não tem na devida conta nem a inserção comunitária destes, nem a
importância da necessária subordinação daquelas conceções particulares de bem ao
bem comum da comunidade. Trata-se, portanto, para Sandel, de uma liberdade
ainda demasiado liberal, individualista e atá egoísta, uma vez que, recorde-se, em
Rawls os sujeitos escolhem em função dos seus interesses próprios.
Sandel critica ainda a posição original de Rawls e a forma como os princípios
de justiça são escolhidos.
Michael Sandel não aceita a tese segundo a qual a sociedade é o resultado da
associação de indivíduos independentes. Do seu ponto de vista, a sociedade, que é
mais do que a simples soma aritmética dos indivíduos que a compõem, é – porquanto
envolve também as relações, os laços que se criam, a cultura, os valores, etc. – anterior
aos indivíduos, uma vez que é no seio desta que aqueles, sem que a tenham escolhido,
são acolhidos e, através do estabelecimento de diferentes laços comunitários (familiares,
étnicos, religiosos, económicos, políticos, etc.), constroem a sua identidade, moldam as
suas preferências e efetuam as suas escolhas. É deste enraizamento comunitário que
decorre a noção de bem comum que, em contraste com o bem privado, expresso nas
preferências individuais dos sujeitos atomizados, e sem poder ser reduzido à simples
soma ou combinação destas, envolve aquilo que, podendo ser partilhado, beneficia a
comunidade vista como um todo, como é o caso, por exemplo, de valores e bens como
a amizade, o bem-estar, a paz, a educação, a saúde, a cultura, as instituições e espaços
públicos, etc.. Com prioridade sobre as preferências individuais, o bem comum
deverá, segundo Sandel, constituir o critério ético em função do qual se avaliam as
preferências e a justeza das escolhas dos indivíduos.
Fora deste enraizamento comunitário, sem a mínima noção do bem comum, o
indivíduo verdadeiramente não existe, não passa de uma abstração, de um ser
metafísico desencarnado, sem sensibilidade, interesses, motivação e capacidade para
decidir.
Tendo por base estes pressupostos, Sandel considera que o modelo proposto
por Rawls para a escolha dos princípios de justiça falha redondamente, uma vez que
na posição original, anterior à entrada na sociedade, os sujeitos, absolutamente

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desvinculados de todo o laço social e, portanto, do mundo real, na ausência de
qualquer noção de bem comum que os mobilize, não estariam em condições de fazer
quaisquer escolhas.
Rawls argumentaria que aquilo que pretende com a ficção da posição original
é garantir a imparcialidade na escolha dos princípios de justiça, obrigando os sujeitos
a fazer as suas escolhas de uma forma puramente racional e em função dos seus interesses
pessoais (se bem que não saibam ainda exatamente quais são). Só que, para além do
facto de que essa escolha se baseia no pressuposto egoísta que privilegia a
pluralidade do bem individual e a separação das pessoas em relação à sua
interdependência comunitária e ao bem comum, Sandel considera que para que uma
escolha seja uma boa escolha (e só poderá ser justa se for uma boa escolha, donde a
anterioridade do bom face ao justo) não basta que seja imparcial. A sua avaliação como
boa ou má é uma questão moral, que só pode ser decidida por referência ao que a
comunidade considera como o seu bem comum. Ora, o véu de ignorância ao trazer as
pessoas para uma situação anterior à moral, impede os sujeitos, qualquer avaliação
do ponto de vista ético.
Pretender que as pessoas se libertem dos laços sociais que as formam como
pretende a ficção do véu de ignorância, é o mesmo que pretender que elas se dispam
do seu próprio ser, que é socialmente construído. Por isso, escolhas como as que Rawls
propõe, efetuadas numa situação de amoralidade, por sujeitos fictícios, desenraizados e
sem ligação a nenhuma comunidade concreta não são credíveis e não têm qualquer
valor moral, uma vez que este só pode ser aferido pela ligação de quem escolhe a
uma comunidade real e à noção de bem comum a ela inerente.

Sandel: Esquema Síntese

Objeto da crítica:
• Ausência da noção de bem comum, em função da qual as escolhas devem ser
feitas e avaliadas;
• A conceção demasiado liberal de liberdade/escolha de projetos particulares de
vida desligada da noção de bem comum;
• A posição original e a forma como nela são escolhidos os princípios de justiça.

Pressupostos:
• A sociedade é mais do que a simples soma dos indivíduos que a formam;
• A sociedade é anterior aos indivíduos;
• É na sociedade que é adquirida a noção de bem comum, que deve ser o critério
ético da escolha e da avaliação das escolhas individuais;
• À margem da sociedade, os indivíduos são simples abstrações metafísicas,
desencarnadas e descontextualizadas.

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A crítica:
• Dado que é anterior à sociedade, na posição original os sujeitos não estariam
verdadeiramente em condições de fazer qualquer escolha;
• Na ausência da noção de bem comum, a escolha dos princípios de justiça baseia-
se no pressuposto egoísta da salvaguarda por cada indivíduo do seu interesse
próprio;
• Para que seja eticamente boa, não basta que uma escolha seja imparcial. Essa sua
classificação é uma questão moral e o véu de ignorância transporta as pessoas para
uma situação anterior a toda a moral;
• Na ausência do critério ético de avaliação das escolhas individuais, qua seria a
noção de bem comum, a escolha dos princípios propostos por Rawls não é credível
e não tem qualquer valor moral;

Crítica (libertista) de Robert Nozick

Libertarista (o libertarismo é uma forma mais radical de liberalismo), defensor


absoluto da inviolabilidade dos direitos (à vida, à segurança, à propriedade, …) e da
liberdade individual, Robert Nozick considera que cada indivíduo é “proprietário de
si mesmo”, pelo que tem o direito de dispor plenamente da sua pessoa, dos seus bens
legitimamente adquiridos e da sua liberdade, como bem entender, sem que nenhuma
norma moral, jurídica ou instituição o possa limitar e muito menos privar desse poder.
Nozick apresenta-se assim, como defensor de uma conceção minimalista do
Estado, considerando que o Estado mínimo, devendo intervir o menos possível em
áreas como a economia e a vida dos cidadãos, apenas deverá exercer funções
naqueles domínios que têm a ver com a segurança e a manutenção e defesa da
liberdade individual. Assim, um governo constituído de acordo com a teoria do
Estado mínimo terá funções em áreas como a segurança, a justiça, a defesa e os negócios
estrangeiros, mas não deverá ter quaisquer funções sociais, nomeadamente nas áreas
da segurança social, da educação e da saúde.
Dos princípios de justiça de Rawls, Nozick, ao contrário de Sandel, aceitaria
o primeiro e rejeitaria os outros dois, em especial o princípio da diferença,
considerando que este ao pretender que as desigualdades só são aceitáveis se
beneficiarem os menos favorecidos, impõe uma conceção padronizada da justiça,
que justifica que, através do sistema de impostos, o Estado retire aos mais ricos uma
parte do que ganharam legitimamente e que é seu a justo título, para beneficiar os
menos favorecidos, financiando-lhes, por exemplo, o acesso à educação e à saúde.

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Para Nozick, esta conceção padronizada da justiça é incorreta, uma vez que a
manutenção daquele padrão (só é aceitável uma desigualdade quando esta também
beneficia os menos favorecidos) exige a constante intervenção do Estado na
redistribuição da riqueza, porquanto, por exemplo, mesmo dispondo inicialmente do
mesmo valor de salário, as pessoas ao geri-lo de diferentes maneiras (investindo-o
uns, poupando-o outros e esbanjando-o alguns), depressa criariam situações de
desigualdade, obrigando o Estado a intervir para repor o padrão inicial. Para além
disso, ao cobrar impostos mais elevados aos mais ricos para implementar benefícios
sociais para os mais pobres, o Estado, considera Nozick, não só interfere
indevidamente na liberdade dessas pessoas, violando o seu direito de propriedade,
como, contrariando o imperativo categórico de Kant e de forma injusta e inaceitável,
as trata como meros meios (para ajudar os mais pobres), não as respeitando como fins
em si mesmos.

Nozick: Esquema Síntese

Objeto da crítica:
• O princípio da diferença e a justiça padronizada por ele imposta.

Pressupostos:
• Libertarismo;
• Conceção minimalista do Estado;
• Ausência de funções sociais, que, a existir, implicariam que o Estado retirasse aos
mais ricos uma parte do que ganharam legitimamente, para beneficiar os menos
favorecidos.

A crítica:
• A manutenção do padrão de justiça imposto pelo princípio da diferença implica a
intervenção constante do Estado na redistribuição da riqueza, de modo a repor o
padrão inicial;
• A intervenção do Estado na vida das pessoas, viola a sua liberdade e o direito de
propriedade;
• A retirada aos mais favorecidos de parte da sua riqueza para apoiar os menos
favorecidos, viola o imperativo categórico kantiano.

Fevereiro de 2021
Fernando Saldanha

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