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5. Para que serve a Filosofia?

Nascida do ócio, como especulação desinteressada e sem outro fim que não
fosse o de alimentar a infinita curiosidade humana, desde a sua origem que à filosofia
ficou ligada a ideia de uma certa inutilidade, bem retratada no episódio narrado por
Platão e Aristóteles a respeito de Tales de Mileto, o primeiro filósofo grego que,
inadvertidamente, terá caído a um poço, quando, “despreocupado” com o que se
passava em seu redor, olhava os céus, sondando os seus mistérios. Este comportamento
do filósofo foi objeto de troça por parte de uma sua escrava que se riu a bom rir da
queda que observou. Na verdade, para ela, preocupada com a urgência do viver, só
eram importantes e só faziam sentido as preocupações de ordem prática e utilitária.

Ainda no século XIX, o filósofo alemão Karl Marx censurava aqueles filósofos
que, idealistas, pela filosofia se evadem do mundo e dos problemas reais com que os
homens se defrontam, apelando à necessidade de uma filosofia da ação e da praxis,
considerando que não basta interpretar o mundo de diversas maneiras, mas que
aquilo que é preciso é transformá-lo.

É certo que se se entender que só é útil aquilo que se traduz em bens materiais
e de consumo, então a filosofia é inútil, porquanto, com o seu estudo nem aprendemos
a fazer coisas, nem produzimos coisas. Mas se, por outro lado, considerarmos que
nem sempre o valor das coisas se mede pela sua utilidade prática imediata e se, para
além disso, pensarmos que o conhecimento, independentemente da sua utilidade
prática, é um valor em si mesmo – se assim não fosse, conhecimentos científicos
referentes, por exemplo, à origem do universo, à formação da Terra, à alimentação dos
dinossauros ou às civilizações antigas, seriam puras inutilidades, desperdícios, perdas de
tempo, uma vez que não servem para nada de útil –, então sim, devemos reconhecer que
a filosofia, pelas perguntas que faz, pelos problemas que levanta, pelas respostas que
vai produzindo e pelas discussões que gera, se reveste de um grande valor, uma vez
que não só melhora e alarga a nossa compreensão da realidade, fazendo de nós
pessoas mais cultas, lúcidas e críticas, como, por essa via, torna a nossa vida mais
interessante e preenchida.

Mas o estudo e o exercício da filosofia é ainda importante, se pensarmos que


o homem não é apenas um ser biológico, com interesses utilitários referentes ao que é
necessário para a sobrevivência imediata, mas que possui, para além dessa, uma
dimensão espiritual e racional, com exigências próprias, que se prendem com a
necessidade e a procura de um sentido para a vida que, indispensável a uma sua
realização plena, se traduz na necessidade de resposta a questões, claramente
filosóficas, como: quem sou eu?, o que faço aqui?, de onde vim?, para onde vou?,
que sentido tem tudo isto? A necessidade urgente de um sentido para a vida é bem
visível no facto de haver pessoas, mesmo pessoas muito ricas e, portanto, com acesso
a todos os bens materiais a que o homem pode aspirar, que, apesar disso, não se sentem

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realizados, não se sentem felizes, sentem que aquilo que fazem, que a sua vida não
tem sentido e, por isso, muitas vezes, põem voluntariamente fim a ela pelo recurso
ao suicídio.

Para além desta utilidade, por assim dizer, existencial, da filosofia (ligada à
necessidade de um sentido para a vida e ao alargamento da nossa capacidade de
conhecer e pensar sobre a realidade, o mundo, os outros e nós próprios), há outras
razões que aconselham o seu estudo:

Utilidade e Valor da Filosofia


Do estudo e exercício da filosofia, resultam vantagens como:

a) Melhora e amplia o alcance do pensamento (permite ver de forma mais clara


os problemas; conduz para além do imediato e do evidente, apontando para
dimensões mais profundas e menos visíveis da realidade);
b) Desenvolve a capacidade crítica (questiona os preconceitos; opõe-se ao
dogmatismo que é gerador de fanatismo, ódio, violência e guerra);
c) Melhora a capacidade argumentativa (o acento da filosofia na argumentação,
que é útil no dia a dia e em atividades como a política, o direito e o jornalismo);
d) Promove a liberdade e a autonomia do espírito (ensina que cada sujeito é único
e tem direito às suas opiniões, que devem ser permanentemente sujeitas à análise
e ao debate critico);
e) Melhora a capacidade de fazer opções e de tomar decisões (ao valorizar a
coerência entre o pensar e o agir, o exercício da filosofia favorece a tomada de
decisões mais ponderadas, sensatas e justas);
f) Favorece o desenvolvimento de competências cívicas (o exercício da
argumentação e da crítica, bem como o estudo da problemática ético-política,
melhoram as competências de cidadania, tonando as pessoas mais conscientes,
informadas, criticas e interventivas);
g) Gera prazer através dos desafios intelectuais que coloca (sem resolver os
problemas práticos do dia a dia, a filosofia como, por exemplo, a música, tem
valor em si mesma, e faz-nos sentir bem pelo prazer intelectual que a resposta aos
problemas que suscita gera entre aqueles que se lhe dedicam).

Para além destas razões, a filosofia é ainda importante pelo facto de que:

h) Tem um forte impacto na vida dos indivíduos (o questionamento filosófico,


pelas duvidas que suscita, remove preconceitos e abala convicções, podendo levar
a mudanças na vidadas pessoas. Ex., o questionamento de da existência de Deus
pode levar o indivíduo religioso a deixar de o ser ou vice-versa);
i) Tem um grande impacto social e político (muitos dos grandes acontecimentos
da história tiveram na sua génese ideias filosóficas. Ex,. as revoluções americana,
francesa e soviética).
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A Filosofia como Promotora da Cidadania, da Liberdade e da Paz

Dado que em filosofia não há evidências nem certezas indiscutíveis e absolutas,


ao dogmatismo dos que se deixam enredar nos preconceitos e nas opiniões vulgares das
gentes, o filosofar contrapõe a dúvida, a problematização e o espírito crítico que,
condições difíceis de um existir autêntico, se são geradores de desconforto,
insegurança, inquietação e angústia, são também geradoras de tolerância e respeito
pela diferença e pelo outro, princípios sem os quais não é possível assegurar um
mundo em que a vida, a harmonia, o diálogo e a paz, sejam os valores decisivos e
supremos. Em oposição à arrogância dogmática, a dúvida e a crítica filosóficas levam-
nos a pôr em discussão não só as opiniões dos outros mas, num esforço de autocrítica, as
nossas próprias opiniões, admitindo sempre a possibilidade de estarmos enganados
naquilo que, de boa fé nos parecia bem.

O exercício da filosofia permite-nos aprender que ninguém tem o monopólio


do bem e da verdade, mas que os homens são todos diferentes e querem coisas
diferentes, pelo que nenhum de nós tem o direito de dar e impor aos outros aquilo
que considera que é o bem para eles. Pelo contrário, aquilo em que os homens se
devem empenhar é na construção de uma sociedade e de um mundo em que
prevaleça a liberdade de cada um viver a sua própria vida e a sua liberdade, sem
interferir, diminuindo-a, com a vida e a liberdade dos outros. Nesta medida, enquanto
desenvolve competências favoráveis a uma vida pessoal e social baseada em princípios
como a liberdade, o respeito, a cooperação e a solidariedade, a filosofia apresenta-se
como um fator fundamental de promoção da cidadania e da paz.

Viseu, 20 de outubro de 2018

Fernando Saldanha

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