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FILOSOFIA DO DIREITO - 1º Período - DIREITO

Material de Apoio/Direcionador
Prof.: Renata Felipe

Bibliografia utilizada:

• REALE, Miguel. Introdução à Filosofia, São Paulo, Saraiva, 2002.


• ANTISERI, D.; REALE, G. História da Filosofia. Vol. 1 a 3. 7 ed. São Paulo: Paulus,
1991.
• CHAUI, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1993.

FILOSOFIA do DIREITO

➢ 1 – Introdução: Conceito da Palavra Filosofia

A palavra filosofia A palavra filosofia é grega. É composta por duas outras:


philo e sophia. Philo deriva-se de philia, que significa amizade, amor fraterno, respeito entre
os iguais. Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos, sábio. Filosofia significa,
portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber. Filósofo: o que ama a sabedoria,
tem amizade pelo saber, deseja saber.

Assim, filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é,


deseja o conhecimento, o estima, o procura e o respeita. Atribui-se ao filósofo grego Pitágoras
de Samos (que viveu no século V antes de Cristo) a invenção da palavra filosofia. Pitágoras
teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens
podem desejá-la ou amá-la, tornando-se filósofos.

Dizia Pitágoras que três tipos de pessoas compareciam aos jogos olímpicos
(a festa mais importante da Grécia): as que iam para comerciar durante os jogos, ali estando
apenas para servir aos seus próprios interesses e sem preocupação com as disputas e os
torneios; as que iam para competir, isto é, os atletas e artistas (pois, durante os jogos também
havia competições artísticas: dança, poesia, música, teatro); e as que iam para contemplar os
jogos e torneios, para avaliar o desempenho e julgar o valor dos que ali se apresentavam. Esse
terceiro tipo de pessoa, dizia Pitágoras, é como o filósofo.

Com isso, Pitágoras queria dizer que o filósofo não é movido por interesses
comerciais - não coloca o saber como propriedade sua, como uma coisa para ser comprada e
vendida no mercado; também não é movido pelo desejo de competir - não faz das idéias e dos
conhecimentos uma habilidade para vencer competidores ou “atletas intelectuais”; mas é
movido pelo desejo de observar, contemplar, julgar e avaliar as coisas, as ações, a vida: em
resumo, pelo desejo de saber. A verdade não pertence a ninguém, ela é o que buscamos e que
está diante de nós para ser contemplada e vista, se tivermos olhos (do espírito) para vê -la.

➢ 2 – Para que Filosofia?

A filósofa brasileira Marilena Chaui, apõe em sua obra o seguinte


questionamento: “Afinal, para que Filosofia?” E ela mesma, discorre sobre o tema, como
veremos a seguir.

Entende a professora Marilena, discorrer sobre o tema, pois, percebe claramente


que não é costumeiro ouvir ninguém perguntar, por exemplo, “Para que matemática ou
física?”, “Para que biologia ou psicologia?”, “Para que astronomia ou química?” “Para que
pintura, literatura, música ou dança?” Mas todo mundo acha muito natural perguntar: “Para
que Filosofia?”

Os estudantes de Filosofia, costumam ouvir uma resposta irônica para esta


pergunta: “A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”.
Ou seja, a Filosofia não serve para nada. Por isso, nos dizeres da professora Marilena, costuma
chamar-se de “filósofo” alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da lua, pensando
e dizendo coisas que ninguém entende e que são completamente inúteis.

Bem destaca Marilena, quando diz que, em nossa cultura e nossa sociedade,
costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade
prática e muito visível e de utilidade imediata, de modo que quando se pergunta “Para quê?”,
o que se quer saber é: “Qual a utilidade?” “Para que serve isso?”

Pensando nisto, fica fácil entender porque ninguém pergunta “Para que
Ciências?”, pois todo mundo imaginava ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica,
isto é, na aplicação dos conhecimentos científicos para criar instrumentos de uso, desde o
cronômetro, o telescópio, o microscópio e a luz elétrica, a geladeira, o automóvel.

Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da
compra e venda de obras de arte (tidas como mais importantes quanto mais altos forem seus
preços no mercado), como porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem ser
valorizados para o elogio da humanidade.

Segue discorrendo Marilena, ao afirmar: Ninguém todavia consegue ver para


que serviria a Filosofia, donde dizer-se: “Não serve para coisa alguma”.

Parece porém, que o senso comum, não enxerga algo que os cientistas sabem
muito bem. As ciências pretendem ser ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a
procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, por meio de
instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-
os e aumentando-os.
Ressalta a filósofa que, todas as essas pretensões das ciências pressupõem que
elas admitem a existência da verdade, a necessidade de procedimentos corretos para bem usar
o pensamento, o estabelecimento da tecnologia como aplicação prática de teorias, e, sobretudo,
que elas confiam na racionalidade dos conhecimentos, isto é, que são válidos não só porque
explicam os fatos, mas também porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados.

Verdade, pensamento racional, procedimentos especiais para conhecer


fatos, aplicação prática de conhecimentos teóricos, correção e acúmulo de saberes: esses
objetivos e propósitos das ciências não são científicos, são filosóficos e dependem de questões
filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a Filosofia quem as
formula e busca resposta para elas.

Assim, o trabalho das ciências, pressupõe, como condição, o trabalho da


Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientista e
filósofos sabem disso, a maioria das pessoas continua afirmando que a Filosofia não serve
para nada.

Perguntaram , certa vez a um filósofo: “Para que Filosofia?”. E ele respondeu:


“Para não darmos nossa aceitação imediata às coisas, sem maiores considerações.”

➢ 2.1 – A atitude crítica

Ainda baseando-nos no entendimento de Marilena Chaui, ressaltamos seu


apontamento ao explicar a atitude crítica que todo ser humano que pretende compreender a
filosofia, deveria ter: a primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer
não aos “pré-conceitos”, aos “pré-juízos”, aos fatos e às idéias da experiência cotidiana, ao
que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido.

A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma interrogação


sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós
mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê e como disso tudo e de nós próprios. “O
que é?”, “Por que é?” . Essas são indagações fundamentais da atitude filosófica.

A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que


chamamos de atitude crítica. Por que crítica?

A palavra “crítica” vem do grego e possui três sentidos principais:

1) capacidade para julgar, discernir e decidir corretamente as coisas;


2) exame racional de todas as coisas sem preconceito e sem pré-julgamento;
3) atividade de examinar e avaliar detalhadamente uma ideia, um valor, um costume, um
comportamento, uma obra artística ou científica.
A atitude filosófica é uma atitude crítica porque preenche esses três significados
da noção de crítica, a qual, como se observa, é inseparável da noção de racional. E o que é
racional? Racional significa respeitar certas regras de coerência do pensamento para que um
argumento ou debate tenham sentido, chegando a conclusões que podem ser compreendidas,
discutidas, aceitas e respeitadas por outros.

➢ 3 – A ciência

A autora Marilena Chaui, destaca as três principais concepções de ciência ou


ideais de cientificidade:

→ a Racionalista: cujo modelo de objetividade é a matemática;


→ a Empirista: que toma o modelo de objetividade da medicina grega e da história natural do
século XVII; e
→ Construtivista: cujo modelo de objetividade advém da ideia de razão como conhecimento
aproximativo.

➢ 3.1 – Concepção Racionalista

Estende-se dos gregos até o final do século XVII – afirma que a ciência é um
conhecimento racional dedutivo e demonstrativo como a matemática, portanto capaz de
provar a verdade necessária e universal de seus enunciados e resultados, sem deixar nenhuma
dúvida.

O objeto científico é uma representação intelectual universal, necessária e


verdadeira das coisas representadas, e corresponde à própria realidade, porque esta é racional
e inteligível em si mesma. As experiências científicas são realizadas apenas para confirmar as
demonstrações teóricas e não para produzir o conhecimento do objeto, pois este é conhecido
exclusivamente pelo pensamento.

O objeto científico é matemático, porque a realidade possui uma estrutura


matemática, ou como disse Galileu, “o grande livro da natureza está escrito em caracteres
matemáticos.”

➢ 3.2 – Concepção Empirista

Vai da medicina grega e Aristóteles até o final do século XIX – e afirma que a
ciência é uma interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos que permitem
estabelecer induções e que, ao serem completadas, oferecem a definição do objeto, suas
propriedades e suas leis de funcionamento.

Ensina Marilena que, a teoria científica resulta das observações e dos


experimentos, de modo que a experiência não tem simplesmente a função de verificar e
confirmar conceitos, mas a de produzi-los. Eis porque nesta concepção, sempre houve grande
cuidado para estabelecer métodos rigorosos, pois deles dependia a formulação da teoria e a
definição da objetividade investigada.

Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto,


embora o realizassem de maneiras diferentes. Ambas consideravam que a teoria científica era
uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal como esta é em si
mesma. A ciência era uma espécie de Raio-X da realidade. A concepção racionalista era
hipotético-dedutiva, isto é, definia o objeto e suas leis e disso deduzia propriedades, efeitos
posteriores, previsões.

A concepção empirista era hipotético-indutiva, isto é, apresentava suposições


sobre o objeto, realizava as observações e experimentos e chegava à definição dos fatos, às
suas leis, suas propriedades, seus efeitos posteriores e a previsões.

➢ 3.3- Concepção Construtivista

A concepção construtivista – iniciada em nosso século – considera a ciência uma


construção de modelos explicativos para a realidade e não uma representação da própria
realidade. O cientista combina dois procedimentos – um vindo do racionalismo, outro vindo
do empirismo – a eles acrescenta um terceiro,vindo da ideia de conhecimento aproximativo e
corrigível.

Como o racionalista, o cientista construtivista exige que o método lhe permita e


lhe garanta estabelecer axiomas, postulados, definições e deduções sobre o objeto científico.
Como o empirista, o construtivista exige que a experimentação guie e modifique axiomas,
postulados, definições e demonstrações. No entanto, porque considera o objeto uma
construção lógico-intelectual e uma construção experimental feita em laboratório, o cientista
não espera que seu trabalho apresente a realidade em si mesma, mas ofereça estruturas e
modelos de funcionamento da realidade, explicando fenômenos observados. Não espera,
portanto, apresentar uma verdade absoluta e sim uma verdade aproximada que pode ser
corrigida, modificada, abandonada por outra mais adequada aos fenômenos São três as
exigências de seu ideal de cientificidade:

1) que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios que orientam a
teoria;

2) que os modelos dos objetos (ou estruturas dos fenômenos) sejam construídos com base na
observação e na experimentação;

3) que os resultados obtidos possam não só alterar os modelos construídos, mas também
alterar os próprios princípios da teoria, corrigindo-a.
➢ 4 – O Senso Comum

Senso comum é o saber vulgar; é o saber que todas as pessoas tem. É o


conhecimento transmitindo de geração em geração pela família; pela sociedade; é o famoso
saber popular. Em outras palavras, é um conjunto assistemático de conhecimentos de diversas
naturezas.

Para Marilena Chaui, o Senso Comum possui algumas características.


Citaremos algumas, pela autora apontadas:

→ são subjetivos: exprimem sentimentos e opiniões individuais e de grupos, variando de uma


pessoa para outra, ou de um grupo para o outro, dependendo das condições em que vivemos.
Ex.: se eu for artista, verei a beleza da árvore; se for marceneira, sua qualidade; Se for hindu,
uma vaca será sagrada para mim; se for dona de um frigorífico, estarei interessada na
qualidade e quantidade de carne que poderei vender;

→ por serem subjetivos, levam a uma avaliação qualitativa das coisas conforme os efeitos
que produzem em nossos órgãos dos sentidos ou conforme os desejos que despertam em nós
e o tipo de finalidade ou de uso que lhes atribuímos, ou seja, as coisas são julgadas por nós
como doces ou azedas, belas ou feias, com sabor ou sem sabor;

→ agrupam-se ou distinguem-se conforme as coisas e os fatos nos pareçam semelhantes ou


diferentes;

→ não se surpreendem nem se admiram com a regularidade, constância, repetição e diferença


das coisas, mas ao contrário, a admiração e o espanto se dirigem para o que é imaginado como
único, extraordinário, maravilhoso. Justamente por isso, em nossa sociedade, a propaganda e
a moda estão sempre inventando o “extraordinário”, o “antes nunca visto”.

➢ 5- Bom Senso

Aristóteles define o bom senso como sendo o “elemento central da conduta ética,
uma capacidade virtuosa de achar o meio termo e distinguir a ação correta, o que é em termos
simples, nada mais do que bom senso.

Em palavras mais simples, quando diz-se que um indivíduo age com bons senso,
significa que ele utiliza de argumentações e atitudes racionais para fazer julgamentos e
escolhas assertivas. A semelhança entre o bom senso e a filosofia é que ambos procuram por
respostas, mas a diferença é que o bom senso é formado culturalmente e a filosofia, com
análise da razão.

Para Descartes (René Descartes (1596-1650); filósofo e matemático francês,


criador do pensamento cartesiano, sistema filosófico que deu origem à filosofia moderna
Bom Senso é a qualidade de nosso espírito que nos permite distinguir o verdadeiro do falso,
o certo do errado. “O bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída”, dizia Descartes.
Às vezes, o filósofo denomina também o Bom Senso de luz natural. Na maioria dos casos,
chama-o simplesmente de razão, instrumento geral do conhecimento que é capaz de “julgar e
distinguir bem o verdadeiro do falso”. Essa faculdade da razão é natural e comum em todos
os homens.

A consciência é a razão. A razão, como consciência moral, é a vontade racional


livre que não se deixa dominar pelos impulsos passionais, mas realiza as ações morais como
atos corretos, ditados pela inteligência ou intelecto.

Para muitos filósofos porém, a razão não é apenas a capacidade moral e


intelectual dos seres humanos, mas também uma propriedade ou qualidade primordial das
próprias coisas, existindo na própria realidade (natureza, sociedade, história) porque esta é
racional em si mesma. Razão designa agora, a ordenação necessária das próprias coisas.

Fala-se portanto em:

_Razão objetiva: a realidade é racional em si mesma;


_Razão subjetiva: a razão é uma capacidade intelectual e moral dos seres humanos;

A razão objetiva é a afirmação de que o objeto do conhecimento ou a realidade


é racional; a razão subjetiva é a afirmação de que o sujeito do conhecimento e da ação é
racional. Para muitos filósofos, a Filosofia é o momento do encontro, do acordo e da harmonia
entre as duas razões ou racionalidades.

• Princípios racionais:

→ Princípio da Identidade: o enunciado pode parecer surpreendente: “A é A” ou “O que é,


é”. O princípio da identidade é a condição do pensamento e sem ele não podemos pensar. Ele
afirma que uma coisa, seja ela qual for (um ser da natureza, uma figura geométrica) só pode
ser conhecida e pensada se for percebida e conservada com a sua identidade. Onde é usado?
Na chamada “carteira de identidade” (o nosso RG) com a qual se afirma e se garante que “A
é A”.

→ Princípio da não-contradição ou Princípio da contradição: cujo enunciado “A é A e é


impossível que, ao mesmo tempo e na mesma relação, seja não-A”. Assim, é impossível que
a árvore que está diante de mim seja e não seja, ao mesmo tempo, uma mangueira; que o
triângulo seja e não seja;

→ Princípio do Terceiro Excluído: “A é ou x ou Y e não há terceira possibilidade”. Por


exemplo: “Ou este homem é Sócrates ou não é Sócrates”; “Ou faremos guerra ou faremos
paz”. Este princípio define a decisão de um dilema - “ou isto ou aquilo” - no qual as duas
alternativas são possíveis e cuja solução exige que apenas uma delas seja verdadeira.

→ Princípio da razão suficiente: que afirma que tudo o que existe e tudo o que acontece tem
uma razão (causa ou motivo) para existir ou acontecer, e que tal razão (causa ou motivo) pode
ser conhecida pela nossa razão. O Princípio de razão suficiente costuma ser chamado de
Princípio da Causalidade para indicar que a razão afirma que para tudo o que existe ou
acontece há uma causa (nada é sem causa, costuma-se dizer para referir-se ao princípio da
razão suficiente). Ou seja, esse princípio afirma a existência de relações ou conexões internas
entre as coisas, entre fatos, ou entre ações e acontecimentos. Pode ser enunciado da seguinte
maneira. “Dado A, necessariamente se dá B”. E também: “Dado B, necessariamente houve
A.” Isso não significa que a razão não admita o acaso ou ações e fatos acidentais, mas sim
que ela procura, mesmo para o acaso e para o acidente, uma causa.

➢ 6 – Ideologia

Segundo Marilena Chaui, à medida que, numa formação social, se estabiliza, se


fixa e se repete uma forma determinada da divisão social, cada indivíduo passa a ter uma
atividade determinada e exclusiva que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo
estágio das forças produtivas e pela forma da propriedade. Cada um, por causa da fixidez e
da repetição de seu lugar e de sua atividade, tende a não percebê-los como instituídos
socialmente e considerá-los naturais (exemplo: quando alguém julga que faz o que faz porque
tem talento ou vocação natural para isso; quando alguém julga que, por natureza, os negros
foram feitos para serem escravos).

Os que produzem ideias separam-se dos que produzem coisas, formando um


grupo à parte. Pouco a pouco, à medida que vão ficando cada vez mais distantes e separados
dos trabalhadores materiais, os que produzem idéias começam a acreditar que a consciência
e o pensamento estão, em si por si mesmos, separados das coisas materiais, existindo em si
por si mesmos.

Ou seja, como têm a experiência de formar um grupo social a parte, julgam-se


independentes da própria sociedade e passam a acreditar na independência entre a consciência
e o mundo material, entre o pensamento e as coisas produzidas socialmente. Conferem
autonomia à consciência e às ideias e, finalmente, julgam que as ideias não só explicam a
realidade, mas a produzem.

Surge a ideologia como afirmação da independência das ideias e da capacidade


de as ideias criarem a realidade, ou, como muitos costumam dizer, na crença de que “as ideias
é que movem o mundo.”

A ideologia torna-se propriamente ideologia quando não aparece na forma do mito, da religião
e da teologia. Com efeito, nestes, a explicação sobre a origem dos seres humanos, da
sociedade e do poder político encontra a causa criadora ou produtora fora e antes dos próprios
humanos e de sua ação, localizando a causa originária nas divindades.

A ideologia propriamente dita surge quando, no lugar de divindades,


encontramos ideias como causas da sociedade e das relações sociais: o homem, a pátria, a
família, a escola, o progresso, a ciência, o Estado, o bem, o justo, etc.

Para Marilena, é possível dizer que a ideologia é um fenômeno moderno,


substituindo o papel que, antes dela, tinham os mitos e as teologias. Com a ideologia, a
explicação sobre a origem dos homens, da sociedade e da política encontra-se nas ações
humanas, entendidas como manifestação da consciência ou das ideias. Assim, por exemplo,
julgar que o Estado não se origina da vontade de Deus, mas das ideias de estado de natureza,
direito natural, contrato social e direito civil é supor que a consciência humana,
independentemente das condições históricas materiais, pensou nessas ideias, julgou-as correta
e passou a agir por elas, criando a realidade designada e representada por elas.

7) - Porque o homem sentiu desejo de filosofar?

Os antigos respondiam que tal necessidade está estruturalmente radicada


na própria natureza do homem. Como escrevia Aristóteles: “Todos os homens aspiram ao
saber”. E ainda: “Exercer a sabedoria e conhecer são desejáveis pelos homens em si mesmos:
com efeito, não é possível viver como homem sem essas coisas.

Assim, a raiz da filosofia é precisamente esse “maravilhar-se”, surgido


do homem que se defronta com o Todo (totalidade), perguntando-se qual a sua origem e
fundamento, bem como o lugar que ele próprio ocupa nesse universo. Sendo assim, a filosofia
é inapagável e irrenunciável, precisamente porque não se pode extinguir a admiração diante
do ser, nem se pode renunciar à necessidade de satisfazê-la.

Por que existe tudo isso? De onde surgiu? Qual é a sua razão de ser? Por
que existe o homem? Por que eu existo? São problemas que o homem não pode deixar de
propor; problemas que mantém o seu sentido preciso mesmo depois do triunfo das ciências
particulares modernas, por que nenhuma delas foi feita para resolvê-los, já que as ciências
respondem somente as perguntas sobre a parte e não a pergunta sobre o sentido do todo.

UNIDADE 2 – A FILOSOFIA NO TEMPO

1 – Conceito e objetivo da filosofia antiga

1.1 – As conotações essenciais da filosofia antiga

Segundo a tradição, o criador do termo “filo-sofia”, foi Pitágoras, o que


embora não sendo historicamente seguro, é verossímil. Termo cunhado por um espírito
religioso que pressupunha só ser possível aos deuses uma sofia (“sabedoria”), ou seja, uma
posse certa e total do verdadeiro; um amor ao saber, nunca saciado totalmente.
Desde o seu nascimento a filosofia apresentou de modo bem claro três
conotações, respectivamente relativas a 1) o seu conteúdo, 2) o seu método e 3) o seu
objetivo.

1) No seu conteúdo, a filosofia pretende explicar a totalidade das coisas, ou seja, toda a
realidade, sem exclusão de partes ou momentos dela. Assim, a filosofia distingue-se das
ciências particulares que assim se chamam exatamente porque se limitam a explicar partes ou
setores da realidade, grupos de coisas ou de fenômenos. Pergunta-se: “Qual é o princípio de
todas as coisas?”. Portanto, a filosofia se propõe como objeto a totalidade da realidade e do
ser precisamente descobrindo qual é o primeiro “princípio”, isto é, o primeiro por que das
coisas.

2) Quanto ao método, a filosofia visa ser “explicação puramente racional daquela totalidade”
que tem por objeto. O que vale em filosofia é o argumento da razão, a motivação lógica, o
logos. Não basta à filosofia constatar, determinar dados ou reunir experiências: ela deve ir
além do fato e além das experiências, para encontrar a causa precisamente através da razão.
É justamente esse caráter que confere cientificidade à filosofia. Enquanto as ciências
particulares são pesquisa racional de realidade e setores particulares, a filosofia como
dissemos, é pesquisa racional de toda a realidade.

Com isso, fica também esclarecida a diferença da arte e religião: a grande arte e as grandes
religiões, também visam captar o sentido da totalidade do real, mas o fazem respectivamente,
uma com o mito e a fantasia, outra com a crença e a fé; ao passo que a filosofia procura a
explicação da totalidade do real, precisamente ao nível do logos.

3) Objetivo: puro desejo de conhecer e contemplar a verdade. Em suma, a filosofia grega é


amor desinteressado pela verdade. Como escreve Aristóteles no filosofar, “os homens
buscaram o conhecer a fim de saber e não para conseguir alguma utilidade prática”. Com
efeito, a filosofia só nasceu depois que os homens resolveram os problemas fundamentais da
subsistência, libertando-se das mais urgentes liberdades materiais. Conclui Aristóteles:
“Portanto, é evidente que nós não buscamos a filosofia por nenhuma vantagem estranha a
ela. Aliás é evidente que, como consideramos homem livre aquele que é fim em si mesmo, sem
estar submetido a outros, da mesma forma, entre todas as outras ciências, só a esta
consideramos livre, pois só ela é fim em si mesma.”

 E é fim em si mesma, porque tem por objetivo a verdade procurada, contemplada e


desfrutada como tal. Então, pode-se compreender a afirmação de Aristóteles: “Todas
as outras ciências podem ser mais necessárias do que esta, mas nenhuma será superior”.
Uma afirmação que foi adotada por todo o helenismo.

 A contemplação da filosofia não é vazia. Embora não se submetendo a objetivos


utilitaristas, ela possui uma relevância moral e também política de primeira ordem. Ao
se contemplar o todo, mudam-se necessariamente todas as perspectivas usuais, muda
a visão do significado da vida do homem e se impõe uma nova hierarquia de valores.
Em resumo, a verdade contemplada infunde uma enorme energia moral. E, como
veremos, com base precisamente nessa energia moral foi que Platão quis construir o
seu Estado ideal. Veremos adiante.
2 - FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA

A filosofia é considerada pela quase totalidade dos estudiosos como uma


criação própria dos gregos.

✔ Atenção! A Idade Antiga é caracterizada por duas importantes divisões e civilizações:


a civilização oriental e a civilização ocidental. Na civilização oriental, os povos mais
estudados e que tiveram maior impacto na sociedade são os egípcios, mesopotâmicos,
hebreus, fenícios e persas. Já na civilização ocidental, os destaques são para os gregos
e romanos.

Enquanto todos os outros componentes da civilização grega, encontram


uma correspondência junto aos demais povos do oriente (crenças, cultos religiosos,
manifestações artísticas de diversas naturezas, conhecimentos e habilidades técnicas de
diversos tipos, instituições políticas, organizações militares, etc), já no que se refere à filosofia,
nos encontramos diante de um fenômeno tão novo, que não apenas não tem uma
correspondência precisa quanto a esses povos, mas também não encontramos algo que lhe
seja estreita e especificamente análogo.

Sendo assim, a superioridade dos gregos em relação aos outros povos,


nesse ponto específico é caráter, não puramente quantitativo, mas qualitativo, porque o que
eles criaram instituindo a filosofia, constitui uma novidade que, em certo sentido, é absoluta.

Em função de suas categorias racionais, foi a filosofia que tornou


possível o nascimento da ciência, e em certo sentido, a gerou. E reconhecer isso, significa
reconhecer aos gregos o mérito de ter dado uma contribuição verdadeiramente excepcional, à
história da civilização.

2.1 – As formas de vida grega que prepararam o nascimento da filosofia

Os estudiosos concordam que, poder compreender a filosofia de um povo


e de uma civilização, é necessário fazer referência: 1) à arte; 2) à religião; 3) às condições
sociopolíticas desse povo;

2.1.1 – Arte: Os poemas homéricos e os poetas gnômicos

Antes do nascimento da filosofia, os poetas tinham imensa importância


na educação e na formação espiritual do homem entre os gregos, muito mais do que tiveram
entre outros povos. O helenismo inicial buscou alimento espiritual predominantemente nos
poemas homéricos, ou seja, na Ilíada e na Odisséia (que como se sabe, exerce nos gregos
uma influência análoga a que a Bíblia exerceu entre os hebreus, não havendo textos sacros na
Grécia), em Hesíodo e nos poetas gnômicos dos séculos VII e VI aC.

✔ Atenção!: Homero (século IX ou VIII a.C) considerado o maior e mais antigo dos
poetas gregos, foi o fundador da poesia épica. Ele é autor das obras primas Ilíada e
Odisséia, os dois maiores poemas da literatura grega. A Ilíada descreve os
acontecimentos da guerra de Tróia, que teria ocorrido no século VIII a.C e as aventuras
entre os guerreiros gregos e troianos. A Odisséia, descreve as aventuras do herói
Ulisses, em sua volta para a ilha de Ítaca após a guerra de Troia.

Ora, os poemas homéricos apresentam algumas peculiaridades que os


diferenciam de outros poemas que se encontram na origem de outros povos e suas civilizações,
contendo já algumas das características do espírito grego que se mostrariam essenciais para a
criação da filosofia.

a) Embora ricos em imaginação, situações e acontecimentos fantásticos, os poemas homéricos


(Ilíada e Odisséia) só raramente caem na descrição do monstruoso e do disforme (como ao
contrário, ocorre frequentemente nas manifestações artísticas dos povos primitivos. Isto
mostra que, a imaginação homérica já se estrutura com base em um sentido de harmonia, de
proporção, de limite e de medida, coisas que a filosofia elevaria inclusive à categoria de
princípios ontológicos.

b) Em Homero, a arte da motivação chega a ser uma verdadeira constante; a ação não se
estende como uma fraca sucessão temporal: o que vale para ela em cada ponto é “o princípio
da razão suficiente e cada acontecimento recebe uma rigorosa motivação psicológica”.(W.
Jaeger). E esse modo poético de ver as razões das coisas é que prepara aquela mentalidade
que, em filosofia, levará à busca da “causa” e do “princípio”, do “por que” ultimo das coisas.

c) Outra característica dos poemas homéricos, é a de procurar apresentar a realidade em sua


inteireza, ainda que de forma mítica: deuses e homens, céu e terra, guerra e paz, bem e mal,
alegria e dor, a totalidade dos valores que regem a vida do homem (basta pensar no escudo de
Aquiles, que emblematicamente representava “todas as coisas”. O tema clássico da filosofia
grega – qual é a posição do homem do universo – também está presente em Homero a cada
momento.

Os poetas líricos ou gnômicos, também fixaram de modo estável um


outro conceito: a noção de limite, ou seja, a ideia de nem muito nem pouco, isto é, o conceito
de justa medida, isto é, a conotação mais peculiar do espírito grego.

“Jubila-te com as alegrias e sofre com os males, mas não em demasia.” Arquílogo.
“Sem zelo demais: o melhor está no meio; e ficando no meio, alcançarás a virtude”. Teógnes.
“Nada em excesso”. Sólon.
“A medida é uma das melhores coisas”., ecoa uma das sentenças dos Sete Sábios, que
recaptulam toda a sabedoria grega cantada especialmente pelos poetas gnômicos. E o conceito
de “medida” constituiria o centro do pensamento filosófico clássico.
Saliente-se ainda uma última sentença, atribuída a um dos antigos sábios
e inscrita no portal do templo do oráculo de Delfos, consagrado a Apolo: “Conhece-te a ti
mesmo”. Essa sentença, muito famosa entre os gregos, tornar-se -ia inclusive não apenas o
mote do pensamento de Sócrates, mas também o princípio basilar do saber filosófico grego
ate os últimos neoplatônicos.

✔ Atenção! Mote → significado: é o verso ou conjunto de versos que é utilizado como


desafio poético, para a criação de uma composição poética; estrofe, que desenvolve a
ideia sugerida pela estrofe.

2.1.2 – A religião pública e os mistérios órficos

O segundo componente ao qual precisa-se fazer referência para


compreender a gênese da filosofia grega, como já dissemos, é a religião. Mas, quando se fala
de religião grega é necessário distinguir entre a religião pública, que tem o seu modelo na
representação dos deuses e do culto que nos foi dado por Homero e a religião dos mistérios.

Homero e Hesíodo foram os poetas mais importantes para a


mitologia e cultura da Grécia Antiga. Isso porque eles deixavam os registros mais completos
sobre o que a sociedade grega pensava e acreditava. As obras de Homero e Hesíodo são
clássicos da mitologia grega e narram a história de deuses, heróis e da criação do mundo.
Apesar das diferenças, os dois autores apresentam seus personagens como modelos de virtude
para a civilização grega, por isso suas obras têm um objetivo educacional.

Religião pública: Para Homero e para Hesiodo, que constituem o ponto de referência das
crenças próprias da religião pública, pode-se dizer que tudo é divino, porque tudo o que ocorre
é explicado em função da intervenção dos deuses:
→ os fenômenos naturais são promovidos por Nume;
→ os raios e relâmpagos são arremessados por Zeus do alto do Olimpo;
→ as ondas do mar são provocadas pelo tridente de Poseidon;
→ o sol é levado pelo áureo carro de Apolo.

 A vida social dos homens, a sorte das cidades, das guerras e da paz são imaginadas
como vinculadas aos deuses de modo não acidental, e por vezes até essencial.

 Esses deuses são forças naturais personificadas em formas humanas idealizadas ou


então são forças e aspectos do homem, sublimados e aprofundados em esplêndidas
semelhanças antropomórficas. São homens amplificados e idealizados , sendo assim
diferente só por quantidade e não por qualidade.

→ Zeus é a personificação da justiça;


→ Atena, da inteligência;
→ Afrodite, do amor.
É por isso que os estudiosos classificam a religião pública dos gregos como uma
forma de naturalismo. Assim, o que ela pede ao homem não é – e não pode ser – que ele mude
a sua natureza, ou seja, se eleve acima de si mesmo, mas ao contrário, que ele siga a sua
própria natureza. Fazer em honra dos deuses aquilo que está em conformidade com sua
própria natureza é tudo o que pede do homem. E da mesma forma que a religião pública grega
foi naturalista, também a primeira filosofia grega foi naturalista. E mais: A referência à
“natureza”, continuou sendo uma constante do pensamento grego ao longo de todo o seu
desenvolvimento histórico.

Mistérios órficos: Nem todos os gregos consideravam suficiente a religião pública, por isso,
em círculos restritos, desenvolveram-se os mistérios, tendo suas próprias crenças específicas
(embora inseridas no quadro geral do politeísmo) e suas próprias práticas. Entre os mistérios,
os que mais influíram na filosofia foram os mistérios órficos.

 Orfeu, poeta trácio é fundador presumido do orfismo, cujos traços históricos são
inteiramente recoberto pela névoa do mito. O orfismo foi importante pois, introduz na
civilização grega um novo esquema de crenças e uma nova interpretação da existência
humana. Enquanto a concepção de Homero, considerava o homem como mortal,
colocando na morte o fim total de sua existência, o orfismo proclama a imortalidade
da alma e concebe o homem segundo um esquema dualista que contrapõe o corpo à
alma.

Crenças básicas do Orfismo:

a) No homem se hospeda um princípio divino, um demônio (alma) que caiu em um corpo em


virtude de uma culpa original.
b) Esse demônio, não apenas preexiste ao corpo, mas também não morre com o corpo, estando
destinado a reencarnar-se em corpos sucessivos, através de uma série de renascimentos, para
expiar aquela culpa original.
c) Com seus ritos e suas práticas “a vida órfica” é a única em condições de pôr fim ao ciclo
das reencarnações, libertando assim, a alma do corpo.
d) para quem se purificou (os iniciados nos mistérios órficos) há um prêmio no além (da
mesma forma que não há punição para os não iniciados.

 A ideia dos prêmios e castigos de além túmulo, evidentemente, nasceu para eliminar o
absurdo que frequentemente se constata sobre a terra, isto é, o fato de que os virtuosos
sofrem, e os viciosos gozam. A ideia de reencarnação (metempsicose), ou seja, da
passagem da alma de um corpo para o outro, como nota E. Dodds, talvez tenha nascido
para explicar, a razão pela qual sofrem aqueles que parecem inocentes.

Com esse novo esquema de crenças, o homem via contraporem-se pela


primeira vez dois princípios em contraste e luta: a alma (demônio) e o corpo (como tumba ou
lugar de expiação da alma. Rompe-se assim a visão naturalista: o homem compreende que
algumas tendências ligadas ao corpo, devem ser reprimidas, ao passo que a purificação do
elemento divino em relação ao elemento corpóreo torna-se o objetivo do viver.
 Sem orfismo não se explicaria Pitágoras nem Heráclito, nem Empédocles e sobretudo
não se explicaria uma parte essencial do pensamento de Platão e, depois, de toda a
tradição que deriva de Platão,o que significa que não se explicaria uma grande parte
da filosofia antiga, como poderemos ver melhor mais adiante.

 Importante salientar: os gregos não tiveram livros sacros ou considerados frutos de


revelação divina. Consequentemente não tiveram uma dogmática fixa e imutável.
Como vimos, os poetas constituíram os veículos de difusão de suas crenças religiosas.
Além disso (e esta é uma outra consequência da falta de livros sagrados e de uma
dogmática fixa), na Grécia também não pôde subsistir uma casta sacerdotal custódia
do dogma (os sacerdotes tiveram escassa relevância e escassíssimo poder na Grécia,
porque, além de não possuírem a prerrogativa de conservar dogmas, também não
tiveram a exclusividade das oferendas religiosas e de oficiar sacrifícios).

2.1.3) Condições sociopolítico-econômicas que favoreceram o surgimento da filosofia

Já no século passado os estudiosos acentuaram a liberdade política de


que os gregos se beneficiavam aos povos orientais. O homem oriental era obrigado a uma
cega obediência ao poder religioso e político. No que se refere à religião, já fora citado acima
da liberdade que os gregos desfrutavam. No que tange a situação política a questão é mais
complexa. Entretanto, também se pode dizer que nesse campo, os gregos gozavam de uma
situação privilegiada porque foi o primeiro povo da história, que conseguiu construir
instituições políticas livres.

Nos séculos VII a VI a.C., a Grécia sofreu uma transformação


socioeconômica considerável:

→ de país predominantemente agrícola, passou a desenvolver de forma sempre crescente a


indústria artesanal e o comércio, tornando-se necessário criar centros de distribuição
comercial;
→ as cidades tornaram-se florescentes centros comerciais, acarretando um forte crescimento
demográfico;
→ o novo segmento dos comerciantes e artesãos alcançou pouco a pouco uma notável força
econômica, passando a opor-se a uma concentração do poder político que estava nas mãos da
nobreza fundiária;

Como nota E. Zeller, na luta que os gregos empreenderam para


transformar as velhas formas aristocráticas de governo, em novas formas republicanas, “todas
as forças deviam ser despertadas e exercidas: a vida pública abria caminho para a ciência. O
sentimento da jovem liberdade devia dar ao espírito do povo grego, um impulso fora do qual
a atividade científica não podia permanecer. Assim, se o fundamento do florescimento
artístico e científico da Grécia foi construído contemporaneamente à transformação das
condições políticas e em meio a vivas disputas, então não se pode negar a conexão entre os
dois fenômenos. Ao contrário, entre os gregos, precisamente, a cultura é inteiramente e do
modo mais agudo, aquilo que será sempre na vida sadia de qualquer povo; ao mesmo tempo
fruto e condição da liberdade.”

 A filosofia nasce primeiro nas colônias e não na mãe-pátria. Mais precisamente nas
colônias orientais da Ásia Menor (em Mileto) e logo depois nas colônias ocidentais
da Itália meridional – e só depois refluiu para a mãe-pátria. Isso aconteceu porque, com
sua operosidade e com seu comércio, as colônias alcançaram primeiro uma situação de
bem-estar e, devido à distância da mãe-pátria, puderam construir instituições livres
antes que ela.

 Portanto, foram as condições sociopolítico-econômicas favoráveis das colônias que,


juntamente com os fatores ilustrados anteriormente, permitiram o surgimento e o
florescimento da filosofia, que depois, passando para a mãe-pátria, alcançou seus mais
altos cumes em Atenas, ou seja, na cidade em que floresceu a maior liberdade de que
os gregos jamais gozaram. Assim, a capital da filosofia grega foi a capital da liberdade
grega.

2.2) Os naturalistas Pré-Socráticos

Os filósofos naturalistas ou pré-socráticos, foram aqueles que


antecederam Sócrates. Como alguns dos pré-socráticos viveram na mesma época de Sócrates,
a principal definição para eles, é que eles possuíam a reflexão filosófica diferente de Sócrates,
isto é, a investigação dos pré-socráticos era voltada para a natureza, enquanto a reflexão de
Sócrates era voltada para o ser humano. Os pré-socráticos, desenvolveram suas teorias entre
os séculos VII e século V antes de Cristo.

Os pré-socráticos, foram os primeiros a romper com a explicação


mitológica. Eles buscavam explicar a natureza de forma racional e lógica, ou seja, utilizando
a razão. Os pré-socráticos, observando a natureza (Physis) e nela encontravam padrões ou leis
que a regiam (que chamaram de Cosmos); dessa forma, olhando racionalmente para a natureza
e para as leis que regem o universo, os pré-socráticos vão em busca da Arché, a substância
primordial do Universo. É a substância que deu origem a tudo. É o princípio de tudo. Os
filósofos discordavam a cerca de qual era a Arché, mas todos buscavam uma explicação
racional e sistemática das características do Universo, que é a Cosmologia. Essa busca, visava
substituir a antiga explicação sobre a origem do Universo baseada nos Mitos, que é a
Cosmogonia.

Principais filósofos pré-socráticos:

Tales de Mileto: É considerado por Aristóteles como sendo o primeiro filósofo, pois
foi ele, quem deu origem à utilização da razão para explicar o universo, sua origem e
tudo o que neles existe. Para Tales, a Arché era a água, ou tudo o que era úmido. Para
ele, a água é a substância primordial, pois tudo aquilo que é vivo e traz vida é úmido.
A inexistência de umidade, a completa seca, corresponderia à não existência, à morte.
 Anaximandro: Era discípulo de Tales. Para ele, a Arché, era algo que era além dos
limites do observável, ou seja, que não se situa em uma realidade ao alcance dos
sentidos: sua arché era o Apeiron, isto é, o indeterminado, o ilimitado, o infinito;
podendo ser conhecido somente pela existência do pensamento.

Anaxímenes: Era discípulo de Anaximandro. Ele tentou fazer uma síntese dos dois
pensamentos, isto é, um meio termo da água e do apeirón: sua conclusão era de que a
Arché, era o AR, que não era palpável como a água e nem era abstrato ou
indeterminado como o apeirón: o ar também é infinito e ilimitado, segundo seu
entendimento e podia estar em todos os vazios do universo.

Pitágoras: Para ele, a Arché eram os números. Para ele, a natureza era feita de
relações e proporções matemáticas; tudo o que existe, pode ser quantificado,
contabilizado e traduzido em números, ou seja, todas as coisas são números, logo, as
proporções harmoniosas entre as coisas, é que regiam o universo.

 Heráclito: Era o autor da famosa frase: “Não nos banhamos duas vezes no mesmo rio”,
por este estar sempre em movimento. Ele dizia que todo o universo muda e se
transforma infinitamente a cada instante. Essa constante transformação das coisas é
chamada de DEVIR -> para o ele o fluxo constante da vida, era movido pela luta
constante de forças contrárias: a alegria e a tristeza; o belo e o feio; a justiça e a injustiça;
o racional e o irracional. É por esta luta constante que o mundo se modifica e evolui.
Para Heráclito, o Arché era o fogo: ele considerou todas as coisas como transformações
do fogo, pois ele expressa de modo exemplar as características de mudança contínua,
do contraste e da harmonia. Para ele, o fogo tudo transforma.

 Parmênides: Para ele, a Arché é o SER. Para ele, “o Ser é, o Não Ser, não é”. Ser é
tudo aquilo que existe e tudo o que existe na natureza é um ser. Para Parmênides, o que
muda é o não ser, o que não existe, pois mudar é justamente não ser mais aquilo que
era e tornar-se aquilo que ainda não é, não sendo portanto absolutamente nada.
Parmênides, opunha-se ao mobilismo defendido por Heráclito, que defendia que tudo
estava e constante transformação: para ele, a mudança que observamos nas coisas,
eram apenas aparências, um erro de nossa percepção, pois o que é real é imutável; a
essência das coisas é imutável e imóvel. Desta forma, tudo possui uma essência, que é
imutável e uma aparência, que é mutável. Para Parmênides, a essência (imutável) se
conhece pela VERDADE ou ALETHEIA e a aparência (mutável) se conhece pela
opinião ou DOXA. Então, para Parmênides, tudo o que existe, possui o SER dentro de
si.

2.3) Os Sofistas

“Sofista” é um termo que significa “sábio”, “especialista do saber”;


precisamente sábio em cada um dos problemas que dizem respeito ao homem e à sua posição
na sociedade. A sofística constitui radical inovação da problemática filosófica, deslocando o
eixo das pesquisas do cosmo para o homem. Inaugura, portanto, o período chamado
“humanista” da filosofia grega.
Esa nova orientação deve-se, além de a causas filosóficas – os filósofos da
natureza não souberam dar uma resposta satisfatória ao problema do princípio – também a
causas sócio-políticas: a crise da aristocracia e a ascensão de nova classe social. Os sofistas
proclamaram possuir a arte de educar os homens e prepara-los para a vida política,
oferecendo-lhes novas ideias e novos instrumentos.

Alguns dos principais sofistas foram: Protágoras, Górgias, Pródico.

 SÓCRATES E A TEORIA DO CONHECIMENTO

➢ 1 – Sócrates e a fundação da filosofia moral ocidental

➢ 1.1 – A vida de Sócrates e a questão socrática

Sócrates nasceu em Atenas em 470/469 a.C. e morreu em 399 a.C,


após condenação por impiedade (foi acusado de não crer nos deuses da cidade e de corromper
os jovens; mas, por trás de tais acusações, escondiam-se ressentimentos de vários tipos e
manobras políticas.

Era filho de um escultor e uma obstetra (parteira). Não fundou


uma Escola de pensamento, como os outros filósofos, realizando o seu ensinamento em locais
públicos (nos ginásios, praças públicas, etc), como uma espécie de pregador leigo, exercendo
imenso fascínio não só nos jovens, mas também sobre homens de todas as idades, o que lhe
custou inúmeras aversões e inimizades.

Sócrates nada escreveu, considerando que a sua mensagem era


transmissível pela palavra viva, através do diálogo e da “oralidade dialética”. Seus discípulos
fixaram por escrito uma série de doutrinas a ele atribuídas. Mas tais doutrinas frequentemente
não concordam entre si e, por vezes, até se contradizem.

Aristófanes caricatura um Sócrates que, como vimos, não é o de


sua maturidade última. Na maior parte de seus diálogos, Platão idealiza Sócrates e o torna
porta-voz também de suas próprias doutrinas: desse modo, é dificílimo estabelecer o que e
efetivamente de Sócrates nesses textos e o que, ao contrário, representa repensamentos e
reelaborações de Platão.
Em seus escritos Socráticos, Xenofonte apresenta um Sócrates de
dimensões reduzidas, com traços que às vezes beiram até mesmo a banalidade (certamente,
seria impossível que os atenienses tivessem motivos para condenar à morte um homem como
o Sócrates descrito por Xenofonte).
Aristóteles fala de Sócrates ocasionalmente. Entretanto, suas
afirmações são consideradas mais objetivas. Mas Aristóteles não foi contemporâneo de
Sócrates. Pôde ter-se documentado sobre o que registra, mas faltou-lhe o contato direto com
o personagem, contato que, no caso de Sócrates, revela-se insubstituível.

Por fim, os vários Socráticos, fundadores das assim chamadas


“Escolas Socráticas menores”, deixaram pouco, e esse pouco lança luz apenas sobre um
parcial de Sócrates. Desse modo, alguns chegaram a sustentar a tese da impossibilidade de
reconstruir a figura histórica” e o pensamento efetivo de Sócrates. Por alguns lustros as
pesquisas socráticas caíram em séria crise Mas hoje está abrindo caminho, não o critério da
escolha entre as várias fontes ou de sua combinação eclética, mas sim o critério que pode ser
definido como “a perspectiva do antes e depois de Sócrates”.

Expliquemos melhor. A partir do momento em que Sócrates atua


em Atenas, pode-se constatar que a literatura em geral, e particularmente a filosófica,
registram uma série de novidades de porte bastante considerável, que depois, no âmbito do
helenismo, permaneceriam como aquisições irreversíveis e pontos de referência constantes.

Mas há mais: as fontes a que nos referimos (e também outras


fontes, além das referidas) concordam na indicação de Sócrates como o autor de tais
novidades, seja de modo explícito, seja de modo implícito. Assim, podemos creditar a
Sócrates, como elevado grau de probabilidade, as doutrinas que a cultura grega recebeu no
momento em que Sócrates atuava em Atenas e que os nossos documentos a ele creditam.

Relida com base nesse critério, a filosofia socrática revela ter


exercido peso tal no desenvolvimento do pensamento grego, e do pensamento ocidental em
geral, que pode ser comparada a uma revolução espiritual.

➢ 1.2 – A descoberta da essência do homem

Depois de um período de tempo ouvido a palavra dos últimos


naturalistas, mas sem se considerar de modo algum satisfeito, como já dissemos, Sócrates
concentrou definitivamente seu interesse na problemática do homem. Procurando resolver os
problemas do “princípio” e da physys, os Naturalista se contradisseram a ponto de sustentar
tudo e o contrário de tudo (o ser é uno; o ser é múltiplo; nada se move; tudo se move; nada se
gera nem se destrói, tudo se gera e tudo se destrói), o que significa que se propuseram
problemas insolúveis para o homem.

Consequentemente, Sócrates se concentrou no homem, como os


Sofistas, mas ao contrário deles, soube chegar ao fundo da questão a ponto de admitir
malgrado sua afirmação geral de não saber (da qual falaremos adiante), que era sábio nessa
matéria; “Na verdade, atenienses, por nenhuma outra razão eu granjeei este nome senão por
causa de certa sabedoria. E que sabedoria é essa? Essa sabedoria é precisamente a sabedoria
humana (ou seja) a sabedoria que o homem pode ter sobre o homem), e pode ser que, dessa
sabedoria, eu seja realmente sábio”.

Os Naturalistas procuram responder à seguinte questão: “O que é


natureza ou a realidade última das coisas?” Sócrates ao contrário, procura responder à questão:
“O que é a natureza ou realidade última do homem?”A resposta é, finalmente precisa e
inequívoca: o homem é a sua alma, enquanto é precisamente sua alma que o distingue
especificamente de qualquer outra coisa. E por “alma” Sócrates entende a nossa razão e a sede
de nossa atividade pensante e eticamente operante.

Em outras palavras: Para Sócrates, a alma é o eu consciente, ou


seja, a consciência e a personalidade intelectual e moral. Consequentemente,, com essa
descoberta, como foi justamente salientado, Sócrates criou a tradição moral e intelectual sobre
a qual a Europa espiritualmente se construiu.

Para Sócrates, se a essência do homem é a alma, cuidar de si


mesmo, significa cuidar da própria alma mais do que do corpo. E ensinar os homens a
cuidarem da própria alma é a tarefa que Sócrates considera ter recebido de Deus.

Um dos raciocínios fundamentais de Sócrates, para provar essa


tese é o seguinte: uma coisa é o “instrumento” que se usa e outra é o “sujeito” que usa o
instrumento. Ora, o homem usa o próprio corpo como instrumento, o que significa que o
sujeito, que é o homem, e o instrumento, que é o corpo, são coisas distintas. Assim, à pergunta
“o que é o homem?”, não se pode responder que é o seu corpo, mas sim que “é aquilo que se
serve do corpo”. Mas “o que se serve do corpo é a psyché”, a alma (=inteligência), de modo
que a conclusão é inevitável: “A alma nos ordena conhecer aquele que nos adverte: “Conhece
a ti mesmo”. Sócrates levou esta sua doutrina a tal ponto de consciência e de reflexão crítica
que chegou a deduzir todas as consequências que logicamente dela brotam, como veremos.

➢ 2 – Os paradoxos da ética socrática

Aquilo que hoje chamamos de “virtude” os gregos denominavam


areté, significando aquilo que torna uma coisa boa e perfeita naquilo que é; ou, melhor ainda,
significa a atividade ou mode de ser que aperfeiçoa cada coisa, fazendo-a ser aquilo que deve
ser. (Os gregos, portanto, falavam de virtude dos vários instrumentos, dos animais, etc. Por
exemplo, a virtude do cão é a de ser um bom guardião, a do cavalo é a de correr velozmente
e assim por diante.)

Consequentemente, a “virtude” do homem outra não pode ser


senão aquilo que faz com que a alma seja tal como sua natureza determina que seja, isto é,
boa e perfeita. E, segundo Sócrates, esse elemento é a “ciência” ou o “conhecimento”, ao
passo que o “vício” seria a privação de ciência ou de conhecimento, ou seja, a “ignorância”.
Desse modo, Sócrates opera uma revolução no tradicional quadro
de valores. Os verdadeiros valores não são os ligados às coisas exteriores, como a riqueza, o
poder, a fama, mas somente os valores alma, que se resume, todos, no “conhecimento”.

Esta tese socrática, implicava em duas consequências, que foram


logo consideradas como “paradoxos”, mas que são importantes e devem ser clarificadas:

1) A virtude (cada uma e todas as virtudes: sabedoria, justiça, fortaleza, temperança) é ciência
(conhecimento), e o vício (cada um e todos os vícios) é ignorância.

2) Ninguém peca voluntariamente: quem faz o mal, fá-lo por ignorância do bem.

Essas duas proposições resumem tudo o que foi denominado


“intelectualismo socrático”, enquanto reduzem o bem moral a um dado conhecimento,, uma
vez que se considera impossível conhecer o bem e não fazê-lo. O intelectualismo socrático
influenciou todo o pensamento grego, a ponto de tornar-se quase um mínimo de denominador
comum de todos os sistemas.

Com efeito, a opinião corrente entre os gregos antes de Sócrates,


considerava as diversas virtudes como uma pluralidade (uma coisa é a “justiça”, outra a
“santidade”, outra a “prudência”), mas da qual não sabiam captar o nexo essencial, ou seja,
aquele algo que faz com que as diversas virtudes sejam uma unidade (algo que faça
precisamente com que todas e cada uma sejam “virtudes”). Além disso, todos viam as diversas
virtudes como coisas fundadas nos hábitos, no costume e nas convenções aceitas pela
sociedade.

Sócrates, no entanto, tenta submeter a vida humana e os seus


valores ao domínio da razão (assim como os naturalistas haviam tentado submeter o cosmo e
suas manifestações ao domínio da razão). E como, para ele a própria natureza do homem é a
sua alma, ou seja, a razão e as virtudes são aquilo que aperfeiçoam e concretiza plenamente a
natureza do homem, ou seja, a razão, então é evidente que as virtudes revelam-se como uma
forma de ciência e de conhecimento, precisamente porque são a ciência e o conhecimento
que aperfeiçoam a ama e a razão.

Mais complexas são as motivações que estão na base do segundo


paradoxo. Sócrates, porém, viu muito bem que o homem, procura sempre o seu próprio bem
e que, quando faz o mal, na realidade não o faz porque se trate do mal, mas porque espera daí
extrair um bem. Dizer que o mal é “involuntário” significa que o homem engana-se ao esperar
dele um bem e que, na realidade, está cometendo um erro de cálculo, e, portanto, se enganando.
Ou seja, em última análise, é vítima da ignorância.

Ora, Sócrates tem perfeitamente razão quando diz que o


conhecimento é condição necessária para fazer o bem (porque, se não conhecermos o bem,
não poderemos fazê-lo), mas engana-se ao considerar que, além de condição necessária, seja
também condição suficiente.

Em suma, Sócrates cai em excesso de racionalismo. Com efeito,


para fazer o bem também é necessário o concurso da “vontade”. Mas os filósofos gregos não
detiveram sua atenção na “vontade”, que se tornaria central e essencial na ética dos cristãos.
Para Sócrates, por conseguinte, é impossível dizer “vejo e aprovo o melhor, mas no agir me
atenho ao pior”, porque quem vê o melhor necessariamente também o faz. Em consequência,
para Sócrates, como para quase todos os filósofos gregos, o pecado se reduz a um “erro de
cálculo”, a um “erro de razão”, justamente a “ignorância” do verdadeiro bem.

➢ 3 – O “daimónion” socrático

Entre as acusações contra Sócrates, estava também a de que era


culpado “de introduzir novos daimónia”, novas entidades divinas. Na Apologia*, Sócrates diz,
a propósito da questão: “A razão (…) é aquela que muitas vezes e em diversas circunstâncias
ouviste dizer, ou seja, que em mim se verifica algo de divino e demoníaco, precisamente
aquilo que Melito (o acusador), jocosamente, escreveu no seu ato de acusação: é como uma
voz que se faz ouvir dentro de mim desde quando era menino e que, quando se faz ouvir,
sempre me impede de fazer aquilo que estou a ponto de fazer, mas que nunca me exorta a
fazer.”

* “Apologia de Sócrates” é uma obra literária escrita pelo filósofo


Platão, na qual o autor exprime sua versão da defesa feita por outro filósofo, Sócrates, em seu
próprio julgamento, onde está sendo acusado de corromper a juventude e de não aceitar os
deuses que são reconhecidos pelo estado, introduzindo novos cultos.

O daimónion socrático era, portanto “uma voz divina” que lhe


vetava determinava coisas: ele o interpretava como espécie de sortilégio (fenômenos
sobrenaturais) que o salvou várias vezes dos perigos ou de experiências negativas).

Os estudiosos ficaram muito perplexos diante desse daimonion, e


as exegeses que dele foram propostas são as mais díspares. Alguns pensaram que ele estivesse
ironizando, outros falaram da voz da consciência, outros do sentimento que perpassa o gênio.

Mas é importante frisar que, o daimónion nada tem a ver com as


verdades filosóficas. Como efeito, a “voz divina” interior não revela em absoluto a Sócrates
a “sabedoria humana” de que ele é portador, nem qualquer das propostas gerais ou particulares
de sua ética. Para Sócrates, os principais filósofos extraem sua validade do logos e não da
revelação divina.

Em segundo lugar, Sócrates não relacionou com o daimónion nem


mesmo sua opção moral de fundo, que, no entanto, considera provir de uma ordem divina. O
daimónion não lhe ordenava, lhe vetava.

Excluídos os campos da filosofia e da opção ética de fundo,


falamos desse tema pois trata-se de uma fato que diz respeito ao indivíduo Sócrates e aos
acontecimentos particulares de sua existência. Em suma, o damínion é algo que diz respeito
à personalidade excepcional de Sócrates, devendo ser posto no mesmo plano de certos
momentos de concentração muito intensa. Não deve ser relacionado com o pensamento e a
filosofia de Sócrates: ele próprio manteve as duas coisas distintas e separadas.
➢ 4 – O método dialético e Sócrates e a sua finalidade

O método e a dialética de Sócrates também estão ligados à sua


descoberta da essência do homem como psyché, porque tendem de modo consciente a
despojar a alma da ilusão do saber, curando-a dessa maneira a fim de torná-la idônea a acolher
a verdade. Assim, as finalidades do método socrático são fundamentalmente de natureza ética
e educativa, e apenas secundária e mediatamente de natureza lógica.

Dialogar com Sócrates levava a um “exame da alma” e a uma


prestação de contas da própria vida, ou seja, a um exame moral, como destacavam alguns de
seus contemporâneos. Podemos ler em um testemunho platônico: “Quem quer que esteja
próximo de Sócrates e em contato com ele para raciocinar, qualquer que seja o assunto tratado,
é arrastado pelas espirais do discurso e inevitavelmente forçado a seguir adiante, até ver-se
prestando contas de si mesmo, dizendo inclusive de que modo vive e de que modo viveu. E,
uma vez que se viu assim, Sócrates não mais o deixa”.

E precisamente a esse “prestar contas da própria vida”, que era o


fim específico do método dialético, é que Sócrates atribui a verdadeira razão que lhe custou a
vida: para muitos, calar Sócrates pela morte, significava libertar-se de ter que desnudar a
própria alma”.

➢ 4.1 – O “não saber” socrático

Os Sofistas mais famosos, filósofos que antecederam Sócrates,


relacionavam-se com os ouvintes na soberba atitude de quem sabe tudo. Sócrates, ao contrário,
colocava-se diante dos interlocutores na atitude de quem não sabe e de quem tem tudo a
aprender.

O significado da afirmação do não saber socrático pode ser


avaliado mais exatamente se, além de relacioná-lo com o saber dos homens, o relacionarmos
também com o saber de Deus. Como veremos, para Sócrates, Deus é onisciente, e seu
conhecimento estende-se do universo ao homem, sem qualquer espécie de restrição. Ora é
precisamente quando comparado com a estatura desse saber divino que o saber humano
mostra-se em toda a sua fragilidade e pequenez. E, nessa ótica, não apenas aquele saber
ilusório de que falamos, mas também a própria sabedoria humana socrática revela-se um não
saber.
De resto, na Apologia, interpretando a sentença do oráculo de
Delfos, segundo o qual ninguém era mais sábio do que Sócrates, o próprio Sócrates explicita
esse conceito: “Unicamente Deus é sábio. E é isso o que ele quer significar em seu oráculo: a
sabedoria do homem pouco ou nada vale. Considerando Sócrates como sábio, não quer se
referir, creio eu, propriamente a mim, Sócrates, mas somente usar o meu nome como um
exemplo. É quase como se houvesse querido dizer: ‘Homens, é sapientíssimo dentre vós
aquele que, como Sócrates, tiver reconhecido que, na verdade, sua sabedoria não tem valor.”
➢ 4.2 – A ironia socráticas

A ironia é característica peculiar da dialética socrática, não apenas


do ponto de vista formal, mas também do ponto de vista substancial. Em geral, ironia significa
“simulação”. Em nosso caso específico, indica o jogo brincalhão, múltiplos e variado de
ficções e dos estratagemas realizados por Sócrates para levar o interlocutor a dar conta de si
mesmo.

Às vezes, em suas simulações irônicas, Sócrates fingia até mesmo


acolher como próprios os métodos do interlocutor, especialmente quando este homem de
cultura, particularmente um filósofo, e brincava de engrandecê-los até o limite da caricatura,
para derrubá-los com a mesma lógica que lhes era própria e amarrá-los na contradição.

Todavia, sob as várias máscaras que Sócrates seguidamente


assumia, eram sempre visíveis os traços da máscara essencial, a do não-saber e da ignorância,
de que falamos: podemos até dizer que, no fundo, as máscaras policromáticas da ironia
socrática eram variantes da máscara principal, as quais, com hábil e multiforme jogo de
dissolvências, no fim das contas sempre revelavam a principal.

Restam ainda por esclarecer os dois momentos da “refutação” e


da “maiêutica”, que são os momentos constitutivos estruturais da dialética.

➢ 4.3 – A “refutação” e a “maiêutica” socráticas

A “refutação” (élenchos) constituía, em certo sentido, a pars


destruens do método, ou seja, o momento em que Sócrates levava o interlocutor a reconhecer
sua própria ignorância. Primeiro, ele forçava uma definição do assunto sobre o qual a
investigação versava; depois, escavava de vários modos a definição fornecida, explicitava e
estacava as carências e contradições que implicava; então, exortava o interlocutor a tentar
nova definição, criticando-a e refutando-a com o mesmo procedimento; e assim continuavam
procedendo, até o momento em que o interlocutor se declarava ignorante.

É evidente que a discussão provocava a irritação ou reações ainda


piores e nos sabichões e nos medíocres. Nos melhores porém, a refutação provocava efeito
de purificação da ignorância, a tal ponto que Platão podia escrever a respeito: “(…) Por todas
essas coisas, (…) devemos afirmar que a refutação é a maior, a fundamental purificação. E
quem dela não se beneficiou, mesmo tratando-se do Grande Rei, não pode ser pensado senão
como impuro das mais graves impurezas, privado de educação e até mesmo feio, precisamente
naquelas coisas em relação às quais conviria que fosse purificado e belo no máximo grau,
alguém que verdadeiramente quisesse ser homem feliz.”

E assim, passamos ao segundo momento, o dialético. Para


Sócrates, a alma pode alcançar verdade apenas “se ela estiver grávida”. Com efeito, como
vimos, ele se professava ignorante e, portanto, negava firmemente estar em condições de
transmitir um saber aos outros ou, pelo menos um saber constituído por determinados
conteúdos. Mas, da mesma forma que a mulher que está grávida no corpo tem necessidade
da parteira para dar à luz, também o discípulo que tem a alma grávida da verdade tem
necessidade de uma espécie de arte obstétrica espiritual, que ajude essa verdade a vir à luz, e
essa é exatamente a “maiêutica” socrática.

➢ 5 – Conclusões sobre Sócrates

O discurso de Sócrates sobre a alma, que se limitava a determinar


a obra e a função da própria alma (a alma é aquilo pelo qual nós somos bons ou maus), exigia
uma série de aprofundamentos: se ela se serve do corpo e o domina, isso quer dizer que é
outra coisa que não o corpo, ou seja, distingue-se dele ontologicamente (ontológico é tudo o
que investiga a natureza da realidade e da existência; aborda questões relacionadas ao ser).

Também a ilimitada confiança socrática no saber, no logos em


geral (e não no seu conteúdo particular), foi duramente abalada pelo êxito problemático da
maiêutica. Em última análise, o logos socrático não está em condições de fazer qualquer alma
parir, mas apenas as almas grávidas. Trata-se de uma confissão cheia de múltiplas implicações,
que Sócrates porém não sabe não pode explicitar: o logos e o instrumento dialógico que se
funda inteiramente no logos não bastam para produzir ou, pelo menos, para fazer com que a
verdade seja reconhecida e para fazer com que se viva na verdade. Muitos voltaram as costas
para o logos socrático, porque não estavam “grávidos”. Mas então, quem fecunda a alma,
quem a torna gravida? É uma pergunta que Sócrates não se colocou e à qual com certeza, não
teria podido responder.

Ao identificar na alma a essência do homem, no conhecimento a


verdadeira virtude e no autodomínio e na liberdade interior os princípios cardeais da ética,
Sócrates levava à proclamação da autonomia do indivíduo enquanto tal.

➢ 6 – Acrescento para leitura, um texto da filósofa Marilena Chaui, sobre a o obra


de Sócrates:

SÓCRATES: ÉTICA E JULGAMENTO

A postura de Sócrates de ensinar as pessoas, antes de tudo, a pensar, torna-se mais bela se
verificarmos que se soma à sua concepção de ética.
A ética pode ser resumida como a busca do aperfeiçoamento do indivíduo. Uma
pessoa age eticamente quando seu ato pode levá-la a uma melhoria em seu caráter.

Para Sócrates, as pessoas agem de um modo correto, de um modo ético, porque


sabem o que estão fazendo, porque efetivamente pensaram e entenderam o significado e as
consequências de seu ato. Para ele, se uma pessoa conhece o bem, por meio do pensamento, irá agir
no sentido de concretizá-lo.

Por outro lado, as pessoas fazem coisas erradas, ou “besteiras”, como diríamos
hoje, porque não pensaram o suficiente antes de agir. O ser humano deveria controlar suas paixões,
investigar os fatos sem se iludir com as aparências ou os preconceitos, buscando conhecê-los
verdadeiramente.

Sócrates considera, assim, haver uma relação direta entre o pensamento e a


ética, sendo aquele pressuposto desta. Também poderíamos concluir que a busca socrática do
conhecimento possibilita uma ação ética que leva, por consequência, à felicidade. Assim, pensar
permite ao indivíduo, em última instância, ser feliz.

Não obstante as inferências sobre a ética feitas acima, sabemos que Sócrates
foi levado, em Atenas, a julgamento. Os cidadãos o acusaram de corromper a juventude e de cultivar
novos deuses, violando a religião da cidade. Alguns diálogos escritos por Platão contam essa história:
Eutífron, Apologia, Críton e Fédon

Sócrates foi considerado culpado e condenado à morte. Ele poderia ter proposto
uma pena alternativa e, depois, poderia ter fugido. Escolheu, todavia, morrer. Preferiu cumprir a lei a
desobedecer. Qual a razão disso?

Em sua vida, ele sempre deu exemplos de cumprimento às normas políticas de


Atenas, mesmo quando isso poderia causar constrangimentos perante os demais cidadãos. Ao
obedecer à pena de morte, daria mais uma mostra de suas concepções cívicas, deixando para seus
contemporâneos o exemplo do respeito aos preceitos normativos, ainda quando injustos.
Por outro lado, podemos focar não seus contemporâneos, mas os pósteros. A
interpretação seria outra: Sócrates sempre duvidara da verdade consensual, derivada das discussões,
em nome de uma verdade superior, somente acessível ao pensamento racional. A decisão que o
condenara foi fruto de um consenso entre os cidadãos atenienses, que o julgaram culpado.

Ele, todavia, considerava seus atos louváveis. Fizera toda uma geração de
jovens pensar. Ensinara o valor inestimável da dúvida eterna e constante. Questionara a autoridade
dos “falsos sábios”. Ao aceitar a condenação à morte, mostrava para as gerações futuras os perigos
de uma verdade meramente consensual e, portanto, equivocada. Nem sempre a verdade da maioria
corresponde à verdade absoluta, que somente pode ser descoberta por quem se disponha a pensar.
Independentemente das interpretações possíveis, o comportamento de Sócrates resulta em algo
admirável, seja enquanto lição para os demais atenienses, seja enquanto lição para nossa geração do
presente.
Sua ética, que liga a razão ao bom comportamento, é outra herança que nos
enriquece. Só o pensamento racional leva à busca da verdade; só a busca da verdade permite a
felicidade.

Referências:
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia.

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