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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
DISCIPLINA: INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

Fichamento Bibliográfico de parte do capítulo5 do livro Introdução à história da filosofia:


dos pré-socráticos a Aristóteles, volume 1, de Marilena Chaui

Aluno: Raquel Pereira Guimarães


Matrícula: 232012043

Referência: Chaui, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a


Aristóteles, volume 1 / Marilena Chamo -2. ed., rev. e ampl. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.

Parte: Espanto, Aporia e Diálogo (p.328-334)


Citação Página
"Todos os homens desejam por natureza saber" 328

“Que [a filosofia] não é uma ciência prática, é evidente pelos que primeiro
filosofaram. Pois os homens começam e começaram sempre a filosofar
movidos pelo espanto (to thaumázein) [...]. De sorte que, se filosofaram para
fugir da ignorância, é claro que buscavam o saber em vista do conhecimento, e
não em vista de alguma utilidade”.

“Tà thaumázein é o espanto cheio de admiração. Admirar é mirar, olhar


para contemplar.”
“A filosofia, espanto admirativo, é contemplação ou saber teórico, especulação
ou saber especulativo.”
“A filosofia é desejo de conhecer e 329
prazer no conhecimento”. (é um fim em si mesma)

“De fato, como lemos no final do trecho da Metafísica acima citado, o espanto
admirativo nos faz reconhecer nossa ignorância e desejar fugir dela.”
“[...]embora o desejo de conhecer seja uma tendência natural dos humanos, a
abertura da Metafísica também afirma que a filosofia, nascida do espanto, não é
um impulso espontâneo, mas nasce de uma pressão sobre nossa alma, causada
por uma aporia, isto é, por uma dificuldade que nos parece insolúvel.”
“Assim, o espanto faz com que, de aporia em aporia, os filósofos não cessem 330
de dialogar com o mundo e com as coisas”.
“Encontramos no espanto admirativo, isto é, na aporia e na história das aporias, 331
a primeira razão para que a obra aristotélica se realize como investigação e
exposição de todos os saberes: onde houver uma aporia, há filosofia e por isso
a filosofia concerne à totalidade dos saberes.
A segunda razão para que a filosofia, com Aristóteles, surja como pluralidade e
totalidade dos conhecimentos decorre de sua ideia do que seja o objeto
filosófico por excelência: o ser. Ora, escreve ele no Livro IV da Metafisica: "O
ser se diz de muitas maneiras", isto é, possui muitos sentidos e muitas maneiras
de ser, cabendo à filosofia conhecer todas elas.”

“[...] o conjunto dos saberes teoréticos divide-se em três grandes saberes ou


ciências teoréticas: a física (que estuda os seres que possuem em si mesmos o
princípio de seu movimento e de seu repouso, isto é, as causas de todas as suas
transformações qualitativas, quantitativas, de lugar e tempo, de geração e
perecimento); as matemáticas (que estudam os seres imóveis, isto é, não
sujeitos às transformações ou ao devir, ainda que não existam separadamente
dos seres físicos dos quais são as superfícies, as figuras, os volume etc.); e a
filosofia primeira (próte philosophía), a mais alta das ciências teoréticas (que
estuda o ser enquanto ser, sem determiná-lo neste ou naquele aspecto, e
enquanto imóvel, isto é, não submetido ao devir).”
“Com estas palavras, Aristóteles inicia a distinção clássica entre as duas
grandes modalidades da ação humana: a ação que tem seu fim em si mesma e a
ação que tem como fim a fabricação de uma obra. Trata-se da distinção entre a
práxis* e a poíesis*. A poíesis é a arte ou técnica: agricultura, metalurgia,
tecelagem, carpintaria, olaria, navegação, pintura, escultura, arquitetura,
medicina, todos os artesanatos, poesia, dança, retórica. A práxis compreende a
ética e a política. Ora, na Metafisica, Aristóteles afirma que o ser e o saber mais
excelentes são aqueles que são livres, isto é, aqueles que não dependem de
outros para existir e que têm em si mesmos seu próprio fim. A mesma ideia
aplica-se às ciências práticas: são mais excelentes as ações cujo fim se encontra
nelas mesmas e menos excelentes aquelas cujo fim lhes é exterior. A práxis,
sendo a ação que tem em si mesma seu fim, é, portanto, superior à poíesis, na
qual a ação é realizada em vista de outro ou em vista de outra coisa, tendo seu
fim fora de si, ou seja, na obra. E, na práxis, a política é superior à ética. Aliás,
a política é superior a todas as outras formas de ação [...].”
“A filosofia, totalidade de todos os saberes:- teoréticos e práticos -, possui 333
como pontos extremos mais altos a filosofia primeira, cujo objeto é o ser
enquanto ser e cuja finalidade é o saber pelo saber, e a política, cujo objeto são
as ações humanas que visam ao bem humano.”
*as ciências teoréticas não constituem a totalidade do saber, pois o objeto de seu estudo
existe de forma independente (p. 331 e 332);

Referência: Chaui, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a


Aristóteles, volume 1 / Marilena Chamo -2. ed., rev. e ampl. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.

Parte: Os campos do saber (p. 346-351)


Citação Página
“No entanto, o fato de as ciências possuírem em comum o procedimento - 346
méthodos*- de busca dos princípios e das causas, não as toma iguais, pois
diferem conforme a natureza do ser ou objeto que investigam, ou, como diz
Aristóteles no Livro IV da Metafísica, há uma só ciência para cada gênero de
ser. Essa diferença da natureza das coisas investigadas faz com que os
princípios e as causas em cada ciência sejam diferentes dos das outras e
permitem classificá-las em três grandes grupos: teoréticas, cujo fim é a
verdade, práticas, cujo fim é o bem humano, e produtivas ou poiéticas, cujo fim
é uma obra.”
“As ciências teoréticas são aquelas que investigam os princípios e as causas de 347 e 348
seres ou coisas que existem na natureza independentemente da vontade e da
ação humanas e cujo curso se desenvolve naturalmente e por si mesmo, sem
nenhuma participação dos homens.”
“Temos, então:
• a física, ou ciência dos seres que possuem em si mesmos o princípio do
movimento e do repouso. São ciências físicas teoréticas: a ciência da natureza
(que nos séculos vindouros seria chamada de filosofia natural e que nós, hoje,
chamamos de física), a biologia (estudo dos animais e das plantas) e a
psicologia (pois a psykhé é um tipo de movimento e de repouso).
• as matemáticas, ou ciência dos seres imóveis e separados de qualquer matéria,
tendo apenas formas, mas essas formas só existem, de fato, impressas na
matéria. As matemáticas estudam, assim, aquelas coisas ou aqueles seres que,
embora tenham existência nas coisas físicas, podem ser estudados em si
mesmos, sem relação com a materialidade em movimento. São ciências
matemáticas teoréticas: a aritmética (que estuda os números e suas operações),
a geometria (que estuda pontos, linhas, superfícies e figuras), a música ou
acústica (que estuda os ritmos e as proporções dos sons) e a astronomia (que
estuda os astros imperecíveis).
• a filosofia primeira ou teologia ou metafisica. Quando a ciência teorética se
refere ao "estudo dos primeiros princípios de todos os seres", ou ao "estudo do
ser enquanto ser" sem nenhuma determinação particular, ou sem nenhuma
referência a um determinado tipo de ser, o termo empregado por Aristóteles é
filosofia primeira. Quando se refere aos primeiros princípios de todas as
coisas, ao ser imutável que é princípio do mundo, ao ser absolutamente
necessário, às "causas das coisas visíveis entre as coisas divinas", Aristóteles
usa o termo theologikhé, que significa conhecimento das coisas divinas.
Finalmente, quando os editores classificaram a obra, distinguiram o estudo da
"substância imóvel e independente" e o estudo das substâncias móveis que são
o objeto da física, empregando a expressão meta ta physika*, isto é, os entes
além da física."
“As ciências práticas, ao contrário das teoréticas, são aquelas cujo princípio ou 349
causa é o homem como agente da ação e cuja finalidade é o próprio homem.”

“Como a causa ou princípio da ação é a vontade racional, as ciências práticas


diferem das teoréticas porque, além de não serem contemplativas, seu objeto
não é necessário e sim possível, e não é universal e sim particular.”

“As ações verdadeiramente racionais e refletidas são aquelas que se realizam


para alcançar um fim, o Bem. [...] A regra do Bem determina que é bom ou é
um bem aquilo que contribui para aumentar ou conservar a independência ou
autarquia do agente. A regra do Bem enuncia que tudo que tome o agente
menos dependente de outros ou de outras coisas é bom ou um bem. O Bem é a
medida da independência e da autossuficiência de alguém.”
“As ciências práticas são: 350
• a ética, que estuda a ação do homem enquanto alguém que deve ser preparado
para viver na Cidade, estabelece os princípios racionais da ação virtuosa, isto é,
da ação que tem como finalidade o bem do indivíduo enquanto ser sociável que
vive em relação com outros;
• a política, que estuda a ação dos homens enquanto seres comunitários ou
sociais, procurando estabelecer, para cada forma de regime político, os
princípios racionais da ação política, cuja finalidade é o bem da comunidade ou
o bem comum.”

“As ciências produtivas se referem a um tipo particular de ação humana: a ação


fabricadora. Essa ação, como vimos, chama-se, em grego, poíesis e por isso as
ciências produtivas também são conhecidas com o nome de ciências poiéticas.
A poíesis difere da práxis porque nela o agente, a ação e o produto da ação são
termos diferentes e separados, ou, como diz Aristóteles, a finalidade da ação
está fora dela, na obra, no artefato, num objeto ou numa ação dirigida a um
outro (como o médico que age em vista do doente ou o poeta que escreve uma
tragédia em vista do espectador). As ciências produtivas ou poiéticas lidam não
só com o possível (o que pode ser ou deixar de ser) e com o particular (o que
existe num tempo e num lugar determinados), mas sobretudo com o
contingente, como vimos ao estudar a concepção grega de técnica. São
conhecimentos e atividades que se realizam para vencer o acaso.”
“As ciências mais altas e nobres são as teoréticas ou contemplativas, tanto 351
porque correspondem ao que há de mais próprio em nós (o desejo de conhecer),
tendo seu fim em si mesmas, como por causa de seus objetos (universais e
necessários). A seguir, vêm as ciências práticas e, por último, as produtivas
(não nos esqueçamos de que a sociedade grega é escravista. Nela predominam
os valores aristocráticos, mesmo quando o regime político é democrático, por
isso o trabalho manual - as técnicas - não é uma ocupação elevada, mesmo
quando realizado por um homem livre, e não há, na língua grega, uma palavra
para designá-lo, usando-se o vocábulo pónos, que significa pena, fadiga,
esforço e dor)”

Referência: Chaui, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a


Aristóteles, volume 1 / Marilena Chamo -2. ed., rev. e ampl. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.

Parte: A ética e o justo meio (p. 440-462)


Citação Página
“Aristóteles é o fundador da filosofia prática porque demarcou o campo da 440
ação humana e distinguiu, pelo método e pelo conteúdo, o saber prático e a
técnica fabricadora, assim como o saber teorético e o prático. A ética é uma
ciência prática ou uma ciência da práxis humana, isto é, um saber que tem por
objeto a ação.”

“Temos aqui a distinção entre as ciências práticas e as produtivas, isto é, as


atividades que possuem nelas mesmas os seus fins (a ética e a política) e
aquelas cujo fim é uma obra diferente das próprias atividades realizadas para
produzi-las (as artes ou técnicas). Apesar dessa diferença, há um aspecto
comum a todas as atividades humanas: têm como finalidade um bem. No caso
da ética, esse bem é o do indivíduo que se prepara para viver com os outros na
pólis, pois, escreve Aristóteles, o bem propriamente humano é a finalidade da
política”
“Qual é o bem ético do indivíduo, fim ao qual todo indivíduo aspira? A vida 441
feliz, o bem viver e o bem agir, ou a felicidade (eudaimonía*). Como alcançá-
la? Eis a primeira questão da ética.”

“Por que a felicidade (eudaimonía) é o conteúdo do bem ético ou a finalidade


da ação moral? Um bem, diz Aristóteles, é mais perfeito do que outros quando
procurado por si mesmo e não em vista de outra coisa, e a felicidade é um bem
deste gênero, diferentemente da honra, da riqueza, do prazer e da inteligência,
que são buscados como meios para outros fins. Um bem é mais perfeito do que
outros pelo seu grau de autossuficiência (autárkeia), isto é, quando o
escolhemos por ele mesmo e não em vista de outra coisa ou, como escreve
Aristóteles, "aquilo que, à parte de todo o resto, toma a vida desejável e não
carece de nenhum outro" é um bem mais perfeito do que qualquer outro. E a
felicidade é um bem desse gênero, pois ela não é buscada em vista de outra
coisa e sim as outras coisas é que são buscadas como meios para ela.”
“Para cada ser, diz Aristóteles, o bem é de natureza diferente e "se há alguma 442
coisa que seja o fim de todos os nossos atos, essa coisa será o bem realizável, e
se houver várias coisas, serão elas". Ora, os fins se distinguem conforme sejam
fins para outra coisa ou fins para si mesmos. Sendo a felicidade um fim em si
mesma e para si mesma, ela é o Bem Supremo e, como tal, é um bem prático e
não teorético, é uma ação e não uma ideia contemplativa.”
“Ao contrário, as ações humanas são possíveis e não necessárias, pois 443
decorrem de uma deliberação e de uma escolha voluntária entre alternativas
contrárias, de sorte que os efeitos são variáveis e múltiplos, dependendo da
escolha feita. [...] Além disso, por envolver deliberação e escolha, as ações
humanas se referem ao tempo futuro, e vimos que Aristóteles coloca os juízos
referentes ao futuro como juízos possíveis (hipotéticos e disjuntivos) e não há
ciência teorética (universal e necessária) do possível, pois este é contingente.”

“[...] Por três motivos principais: em primeiro lugar porque o homem tem uma
vontade deliberativa para escolher a ação; em segundo, porque a escolha se
refere ao futuro e este é meramente possível e não necessário; e, em terceiro,
sobretudo, porque o homem é um ser misto, pois é, por natureza, tanto um ser
dotado de vontade racional como um ser que possui apetites, inclinações e
tendências irracionais, podendo por isso haver contrariedade e mesmo
contradição entre o que a vontade quer e o que o apetite incita ou excita, sem
que se possa determinar de antemão qual deles será mais forte e qual será o
efeito da ação.”
O que é o desejo (órexis, se movido por algo exterior; hormé, se impulsionado 444
do interior)? É nossa inclinação natural para buscar o prazer e fugir da dor,
[....], o desejo é a marca de nossa passividade, realizando movimentos internos
à nossa alma e movimentos internos e externos ao nosso corpo para obter o que
causa prazer e afastar o que causa dor. É a paixão, o páthos*. [...] A paixão é
um acidente, pois as categorias se dividem em dois grandes grupos: a
substância e os acidentes ou predicados atribuídos a ela, entre os quais se
encontram a paixão e a ação. Ora, uma paixão é um acidente ou um predicado
que tem a peculiaridade de ser sempre contingente.”

“Se nos lembrarmos da distinção aristotélica entre movimento natural e


violento, teremos que dizer que a paixão é um movimento natural e violento.”

“A presença da paixão como um elemento essencial da ação moral faz com que
a tarefa da ética seja educar nosso desejo para que não se tome vício e colabore
com a ação feita por meio da virtude. Em outras palavras, Aristóteles não
expulsa a afetividade, mas busca os meios pelos quais o desejo passional se
torne desejo virtuoso.”
“O desejo é uma inclinação natural, uma propensão interna de nosso ser. [...] 445
Caráter ou índole, em grego, se diz éthos* e por isso a ética se refere ao estudo
do caráter para determinar como pode tornar-se virtuoso.”

“Cada caráter ou temperamento possui desejos diferentes, pois para cada um


deles os objetos de prazer e dor são diferentes. Pelo mesmo motivo, cada
caráter determina ou causa paixões diferentes e está mais propenso a
determinadas doenças, a determinados vícios e a determinadas virtudes. No
entanto, em todos eles, o vício é sempre o excesso ou a falta entre dois pontos
extremos opostos (assim, por exemplo, temeridade é excesso de coragem; e
covardia é falta de coragem). Dizer que o vício é excesso ou falta significa
dizer que ele é hybris*, falta de medida ou de moderação.”
“Podemos então dizer que a causa material da ação é o éthos, a causa formal, a 446
natureza racional do agente, a causa final, o bem e a causa eficiente, a
educação. A unidade das quatro causas é a virtude. O que é a virtude? A
medida entre os extremos contrários, a moderação entre os dois extremos, o
justo meio, nem excesso nem falta.”
“O virtuoso é feliz porque prudente e prudente porque moderador e moderado. 447
Em si mesmos, os desejos não são bons nem maus; em si mesmas, as coisas
desejadas não são boas nem más. O desejo toma-se mau e o objeto toma-se
mau quando não se submetem à medida racional; tomam-se bons quando se
submetem a essa medida. Por isso, diz Aristóteles, não nascemos bons, mas nos
tomamos bons com os atos bons, pois atualizam nossa potencialidade para a
razão e para a felicidade.”
“Deliberamos sobre coisas que dependem de nós [...] e [a deliberação] acontece 449
nas coisas que, embora se produzam com frequência, permanecem incertas
quanto ao seu cumprimento, bem como naquilo cujo desenlace é
indeterminado.”

“Além disso, explica Aristóteles, não deliberamos sobre os fins, mas sobre os
meios, isto é, deliberamos em vista do fim e não sobre o fim, pois este é o
objeto do desejo que o concebe como um bem.”
“A escolha é um desejo deliberado sobre o que está em nosso poder, e não um 450
desejo passional, que busca o impossível ou segue a necessidade natural.”

“Consequentemente, virtude e vício são atos voluntários, dependendo da


natureza da deliberação e da escolha preferencial, e a virtude é a preferência
voluntária racional que tem por objeto um bem verdadeiro, conforme à
natureza ou caráter do agente e conforme à medida racional determinada pelo
homem prudente. O que é um ato bom ou um ato virtuoso? É o ato que obedece
a três regras: 1) o agente conhece ou sabe o que faz; 2) o agente escolhe a ação
e a executa por si mesmo, isto é, o agente é o princípio da ação; 3) o agente
realiza a ação, graças a uma disposição interior e permanente, isto é, por
virtude, e por isso a excelência do agente é o fim da ação.”

“O helenista inglês David Ross resume o processo da ação virtuosa nos


seguintes passos sucessivos: desejo, percepção, deliberação, escolha
preferencial, ato.”

“O silogismo prático permite introduzir um conceito a que ainda não nos 451
havíamos referido, o de akrasía, a incontinência ou a impotência para governar
-se a si mesmo, a fraqueza da vontade e a força do apetite.”
“Como Aristóteles a explica? A akrasía é o poder do páthos sobre a vontade. 452
Estamos agora em condições de distinguir páthos e areté, paixão e virtude. A
paixão se move na contingência; é por ela que somos postos diante dos
contrários e é por ela que somos colocados diante de possíveis sobre os quais
ela não tem poder nenhum. [...] A razão é uma paixão refletida, contida,
subordinada a um fim pensado" (M. Meyer, "Posface", 1989, pp. 150-1). A
paixão exprime a diferença no interior do sujeito, dividindo-o em inclinações
contrárias, enquanto a virtude exprime sua identidade, sua natureza íntegra e
sua excelência. Por isso mesmo, a classificação aristotélica das virtudes
consiste em apanhar uma paixão, situar seus extremos contrários e definir a
medida racional que está conforme à natureza do agente, pois este é, antes de
tudo e sobretudo, um ser racional.”
“Quanto à prudência, poderíamos apreender [o que ela é] considerando quais 454
homens qualificamos de prudentes. É nossa opinião que é prudente aquele que
é capaz de bem deliberar sobre as coisas boas e úteis para si, [...]A prudência
não é nem ciência nem arte. Não é uma ciência porque o objeto do agir pode
ser diferentemente do que ele é; não é uma arte porque agir e fabricar são
diferentes quanto ao gênero. A prudência é uma disposição prática, estável e
razoável concernente às coisas boas e más para o homem.”

“Justamente por isso, é capaz de dar regras, normas e preceitos de conduta. A


phrónesis orienta a proaíresis, isto é, a deliberação racional ou escolha
preferencial porque é capaz de discernir o bom e o mau nas coisas e as relações
convenientes entre meios e fins. A prudência tem esse papel relevante porque
nela as três condições para que um ato seja virtuoso estão preenchidas e, por
isso, com ela percebemos melhor a finalidade da ética, qual seja, tomar um
homem agente, e o agente, autossuficiente.”
“Temos agora todos os elementos para a definição da virtude ética: é uma 455
disposição interior constante que pertence ao gênero das ações voluntárias
feitas por escolha deliberada sobre os meios possíveis para alcançar um fim que
está ao alcance ou no poder do agente e que é um bem para ele. Sua causa
material é o éthos do agente, sua causa formal, a natureza racional do agente,
sua causa final, o bem do agente, sua causa eficiente, a educação do desejo do
agente. É a disposição voluntária e refletida para a ação excelente, tal como
praticada pelo homem prudente.”

“Além das virtudes éticas, que se referem às funções sensitiva e apetitiva da


alma em sua relação com o corpo, existem virtudes que se referem apenas à
função racional ou intelectiva, e que Aristóteles denomina de virtudes
dianoéticas ou intelectuais. Em outras palavras, trata-se da areté ou da
excelência e perfeição da alma racional.”

“Chamando-as dianoéticas, Aristóteles quer simplesmente exprimir que essas


virtudes concernem menos ao caráter (éthos) e mais ao pensamento em geral.
Não é, pois, [como era para Platão] pela diferença entre a diánoia e o noûs,
entre o discursivo e o intuitivo, que passa a cisão essencial [da alma racional] e
sim pelo pensamento do contingente e o pensamento do necessário” (P.
Aubenque, 1963, pp. 147-8).
“Como para Platão, também para Aristóteles as virtudes intelectuais são as 456 e 457
mais desejáveis. Porém, diferentemente de Platão, o quadro dessas virtudes é
muito mais amplo, abrangendo os vários sentidos de lógos e médo. Disposições
da alma racional para o conhecimento verdadeiro no plano teorético, prático e
produtivo, tendo como referencial a existência de regras (cálculos e medidas)
para seu exercício, são virtudes dianoéticas: sabedoria prática ou prudência
(phrónesis), arte (tékhne), ciência (epistéme), inteligência (noûs) e sabedoria
(sophía). Que são elas? A sabedoria prática (phrónesis) é a disposição racional
para a boa deliberação, segundo a regra certa da virtude. A arte (tékhne) é a
disposição racional para produzir coisas em conformidade com certas regras e
modelos.”

“A ciência (epistéme) é a disposição racional para conhecer o universal e


eterno; é ensinável ou comunicável a outros. A inteligência (noús) é a
disposição racional para apreender, sem demonstração, a verdade dos primeiros
princípios de onde parte a ciência. A sabedoria teorética (sophía) é a disposição
racional nascida da união da ciência com a inteligência para o conhecimento
das coisas mais elevadas. Assim como a prudência é a condição e a forma mais
alta das virtudes éticas, assim também a sabedoria teorética é a condição e a
forma mais alta das virtudes dianoéticas.”
“Aristóteles coloca todas as virtudes, práticas e dianoéticas, sob um princípio 458
que não é platônico: o prazer. O prazer, diz Aristóteles, é como a visão: um ato
completo em si mesmo. Surge e desaparece sem geração e sem corrupção, sem
apresentar nenhuma das formas do movimento (kínesis), pois realiza-se no
instante, não é algo incompleto e inacabado, não tende para nada senão para ele
próprio.”
“Aspiramos ao prazer porque desejamos viver, e a vida é uma atividade que 459
recebe do prazer um suplemento, um "algo a mais" que aumenta a atividade e o
desejo de viver. Por isso, sem atividade não há prazer e sem prazer a atividade
diminui, tendendo mesmo a desaparecer. É esse laço entre o prazer e a vida,
entre ele e a atividade, entre ele e a perfeição do órgão e do objeto de satisfação
que permite a Aristóteles afirmar que o prazer é inseparável da virtude, que esta
é uma forma de prazer superior por ser capaz de prolongá-lo, tomando-o um
ato menos fugaz. O laço que une virtude e prazer explica, enfim, por que as
virtudes intelectuais são superiores às morais, pois nelas o prazer é mais
intenso, mais vivo, mais longo e duradouro.”
“O vínculo entre a ética e a política é constituído não só pela subordinação dos 460
bens individuais ao bem comum, mas também pela identidade da disposição do
prudente e do político, isto é, daquele que modera ou legisla, oferecendo a
medida e a regra correta. O político perfeito ou excelente é o prudente.”

“Ora, há uma virtude ética que diz respeito diretamente à lei: a justiça. "O justo
é o que é conforme à lei e respeita a equidade; o injusto é o que viola a lei e a
falta à equidade"

“Prudência e justiça nos encaminham, portanto, da ética para a política, mas,


além disso, preparam a compreensão da mais alta virtude ética, que será,
também, noutra forma, a mais alta virtude política: a amizade entre os iguais e
semelhantes, a philía*. [..] Porque akrasía e philía dizem respeito ao prazer,
mas de modo contrário (como se observa no quadro das virtudes morais, na p.
453). A primeira busca obter seu próprio prazer; a segunda, dar prazer a
outrem.”
“A amizade só existe entre os prudentes e os justos, sendo por isso condição e 461
consequência da vida justa, que é a vida na comunidade política.”
“Com efeito, juntos, os amigos formam uma unidade mais completa e mais 462
perfeita do que os indivíduos isolados e, pela ajuda recíproca e desinteressada,
fazem com que cada um seja mais independente do que se estivesse só. A
amizade é nossa parte no divino, a maneira como a ação humana imita a
autarquia divina e faz a pólis imitar a autarquia do kósmos.”

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