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Introdução à história da filosofia

A. C. Grayling
A histó ria da filosofia, tal como hoje é vista por estudantes e professores de filosofia, é uma construçã o retrospectiva. É
escolhida a partir do fluxo mais vasto da histó ria das ideias de modo a fornecer os seus antecedentes à s preocupaçõ es
filosó ficas de hoje. Tem de se fazer notar este facto mais que nã o seja para evitar confusõ es com as pró prias palavras
“filosofia” e “filó sofo”. Ao longo de quase toda a sua histó ria, “filosofia” tinha como significado geral “investigaçã o racional”
apesar de, a partir do início dos tempos modernos, na Renascença, e até ao século XIX, ter passado mais em particular a
significar aquilo a que agora chamamos “ciência”, apesar de um “filó sofo” ser ainda alguém que investigava fosse o que
fosse. Daí o que o Rei Lear diga a Edgar: “Deixai-me primeiro falar com este filó sofo: o que causa a trovoada?” Na lá pide de
William Hazlitt, entalhada em 1820, o famoso ensaísta é descrito como “o primeiro (sem rival) Metafísico do seu tempo”,
porque nessa altura o que agora chamamos “filosofia” chamava-se “metafísica”, para distingui-la do que agora chamamos
“ciência”. Esta distinçã o era muitas vezes assinalada pelos ró tulos “filosofia moral”, para significar o que agora chamamos
“filosofia”, e “filosofia natural” para significar o que agora chamamos “ciência”.
A palavra “cientista” foi introduzida muito recentemente, em 1833, dando à palavra relacionada “ciência” o sentido
comum que agora tem. Depois dessa data, as palavras “filosofia” e “ciência” assumiram os seus significados actuais, à
medida que as ciências se afastavam mais e mais da investigaçã o geral ao se especializarem e se tornarem cada vez mais
técnicas.
Na filosofia contemporâ nea, as á reas principais de investigaçã o sã o a epistemologia, a metafísica, a ló gica, a ética, a
estética, a filosofia da mente, a filosofia da linguagem, a filosofia política, a histó ria dos debates nestas á reas de
investigaçã o, e o exame filosó fico dos pressupostos, métodos e teses de outros campos de investigaçã o na ciência e na
ciência social. Na sua maior parte, e certamente no caso das três primeiras, estas sã o o grosso do estudo da filosofia nas
universidades do mundo angló fono e na Europa actual.
E correlativamente, estes sã o os campos de investigaçã o que determinam que vertentes da histó ria geral das ideias sã o
seleccionadas como a “histó ria da filosofia” actual, deixando assim de lado a histó ria da tecnologia, da astronomia, da
biologia e da medicina, da Antiguidade em diante, a histó ria da física e da química a partir do século XVII, e a emergência
das ciências sociais como disciplinas definidas a partir do século XVIII.
Para ver o que determina as vertentes da histó ria das ideias que sã o seleccionadas como “histó ria da filosofia”,
precisamos consequentemente de deitar um olhar retrospectivo através das lentes dos vá rios ramos da filosofia
contemporâ nea anteriormente elencados, e isto exige um entendimento preliminar do que eles sã o.
A epistemologia ou “teoria do conhecimento” é a investigação da natureza do conhecimento e de como este é
adquirido. Investiga as distinçõ es entre conhecimento, crença e opiniã o, procura especificar as condiçõ es em que é
justificado afirmar que se sabe algo, e examina e oferece respostas aos desafios cépticos ao conhecimento.
A metafísica é a investigação da natureza da realidade e da existência. O que existe, e qual é a sua natureza? O que
é a existência? Quais sã o os tipos mais fundamentais de seres? Há tipos diferentes de existência ou de coisa existente?
Existem entidades abstractas fora do espaço e do tempo, como os nú meros e os universais, além das coisas concretas no
espaço e no tempo, como as á rvores e as pedras? Existem entidades sobrenaturais como as divindades além do domínio
natural? A realidade é uma coisa ou vá rias? Se os seres humanos sã o na sua totalidade parte da ordem causal natural do
universo, poderá haver algo como o livre-arbítrio?
A metafísica e a epistemologia sã o centrais para a filosofia como um todo; sã o, digamos, a física e a química da filosofia;
compreender os problemas e questõ es destas duas á reas de investigaçã o é bá sico para a discussã o de todas as outras á reas
da filosofia.
A lógica — a ciência do raciocínio válido e sólido — é o instrumento geral da filosofia, como a matemá tica é o
instrumento da ciência. No Apêndice apresento um esboço das ideias bá sicas da ló gica e explico os seus termos principais.
A ética, como disciplina do currículo de filosofia, é a investigaçã o dos conceitos e teorias do bem, do correcto e do
incorrecto, da escolha e açã o morais.
Porém, a palavra “ética” também denota, ainda que indirectamente, a perspectiva e as atitudes dos indivíduos ou das
organizaçõ es com respeito aos seus valores, à maneira como agem e como se vêem a si pró prios.
A estética é a investigação da arte e da beleza. O que é a arte? Será a beleza uma propriedade objectiva das coisas
naturais ou feitas pelos seres humanos, ou é subjectiva, existindo apenas nos olhos do observador? Poderá uma coisa ser
esteticamente valiosa independentemente de ser bela ou nã o e independentemente de ser ou nã o uma obra de arte? Serã o
os valores estéticos das coisas naturais (uma paisagem, um pô r-do-sol, um rosto) diferentes dos que atribuímos aos
artefactos (uma pintura, um poema, uma peça musical)?
A filosofia da mente é a investigação da natureza dos fenómenos mentais e da consciência. Já fez parte integrante
da metafísica porque esta ú ltima, ao investigar a natureza da realidade, tem de considerar se esta é apenas material, ou se
além disso tem aspectos nã o-materiais como a mente, ou se é apenas mental como defendem os filó sofos “idealistas”.
A filosofia da linguagem é a investigaçã o de como se atribui significado a sons e marcas de um modo que permite a
comunicaçã o e dá corpo ao pensamento, tornando até possível, talvez, na verdade, o pensamento, acima de um certo nível
rudimentar. Qual é a unidade do significado semâ ntico — uma palavra, uma frase, um discurso? O que é o pró prio
“significado”? O que sabemos — ou sabemos como fazer — quando “sabemos o significado” de expressõ es de uma
linguagem? Há realmente uma linguagem como o inglês, ou há tantos idiolectos de inglês quantas as pessoas que os falam,
tornando assim uma linguagem de facto uma colecçã o de idiolectos que nã o sã o completamente coincidentes? Como
interpretamos ou compreendemos o uso alheio da linguagem? Quais sã o as implicaçõ es epistemoló gicas e metafísicas da
nossa compreensã o da linguagem, significado e uso da linguagem?
Por boas razõ es, as filosofias da mente e da linguagem unificaram-se numa ú nica investigaçã o geral na filosofia
académica mais recente, o que é ubiquamente atestado pelos títulos dos livros e cursos universitá rios.
A filosofia política é a investigação sobre os princípios da organização social e política, e sua justificação.
Pergunta-se qual é a melhor maneira de organizar e administrar uma sociedade, o que legitima as formas de governo, em
que bases se apoiam as reivindicaçõ es de autoridade no estado ou numa sociedade, e quais sã o as vantagens e
desvantagens da democracia, comunismo, monarquia e outras formas de organizaçã o política.
A história da filosofia, tal como é vista retrospectivamente através das lentes das investigaçõ es anteriores é uma parte
essencial da pró pria filosofia, porque todas essas investigaçõ es evoluíram ao longo do tempo como uma grande conversa
— digamos — entre pensadores que vivem em diferentes séculos e em diferentes circunstâ ncias, mas que contudo se
entregam à s mesmas questõ es fundamentais; e portanto conhecer o historial destes debates é crucial para compreendê-
los. Isto poupa-nos o trabalho de reinventar a roda uma vez e outra, ajuda-nos a evitar erros e a reconhecer ciladas,
permite-nos ganhar com os trabalhos dos nossos predecessores, e dá -nos materiais para usar ao tentar compreender o
tema em questã o, e para formular as perguntas certas.1
O exame filosófico dos pressupostos, métodos e teses dos outros campos de investigação é o que se quer dizer
com rótulos como “filosofia da ciência”, “filosofia da história”, “filosofia da psicologia” e afins. Toda a investigaçã o
repousa em pressupostos e usa metodologias, e é necessá rio ter consciência de ambos. As questõ es filosó ficas sobre a
ciência, por exemplo, sã o formuladas pelos pró prios cientistas e nã o apenas pelos filó sofos; as questõ es filosó ficas sobre o
estudo da histó ria sã o igualmente levantadas por historiadores ao discutir os seus métodos e objectivos. Considere-se mais
em particular cada uma por sua vez, como se segue.
Deve a ciência ser entendida em termos realistas ou instrumentalistas — isto é, sã o as entidades referidas pelos termos
técnicos da ciência realmente coisas que existem, ou sã o apenas construçõ es ú teis que ajudam a organizar a compreensã o
dos fenó menos que sã o objecto de estudo? O raciocínio científico é dedutivo ou indutivo? Há algo como um
conhecimento científico ou, entendendo-se que toda a ciência está aberta à refutaçã o com base em provas ulteriores, deve-
se concebê-la como um sistema de teorias poderosamente provadas que sã o contudo intrinsecamente derrotá veis?
Quanto à histó ria: se nã o houver provas a favor ou contra uma tese sobre algo que ocorreu no passado, é a tese apesar
disso definitivamente verdadeira ou falsa, ou nã o é uma coisa nem outra? A histó ria é escrita no presente com base em
provas — diá rios, cartas, vestígios arqueoló gicos — que sobreviveram até ao presente (ou pelo menos é o que pensamos):
sã o parciais e fragmentá rias, e muitos dos rastos do passado perderam-se; há por isso algo como conhecimento do passado,
verdadeiramente, ou há apenas reconstruçã o interpretativa na melhor das hipó teses — e talvez, demasiado
frequentemente, apenas conjectura?

A reflexão sobre os tipos de investigações, e os tipos de questões que essas investigações suscitam, mostra que
a filosofia é a tentativa de dar sentido às coisas, de alcançar compreensão e perspectiva, em relação às muitas
áreas da vida e do pensamento nas quais a dúvida, dificuldade, obscuridade e ignorância prevalecem — o que é
dizer as fronteiras de todas as nossas empresas. Descrevo o papel da filosofia aos meus estudantes deste modo:
nós, humanos, ocupamos apenas um trecho de luz nas imensas trevas da ignorância. Cada uma das disciplinas
especiais tem o seu lugar num arco da circunferência desse trecho de luz, esforçando-se para ver na direcção das
sombras, para entrever figuras, e assim alargar um pouco mais o horizonte de luz. A filosofia patrulha toda a
circunferência, esforçando-se em especial naqueles arcos onde não há ainda qualquer disciplina especial,
tentando encontrar as perguntas certas a fazer para que possa haver a possibilidade de formular respostas.
Esta tarefa — fazer as perguntas certas — é na verdade crucial. Até aos séculos XVI e XVII os filó sofos nã o faziam com
suficiente frequência as perguntas certas e da maneira certa sobre a natureza; quando o fizeram, as ciências da natureza
nasceram, desenvolvendo-se em campos magníficos e poderosos de investigaçã o que trouxeram à existência o mundo
moderno. A filosofia deu assim à luz a ciência naqueles séculos; no século XVIII deu à luz a psicologia, no XIX a sociologia e
a linguística empírica, no século XX desempenhou papéis importantes no desenvolvimento da inteligência artificial e da
ciência cognitiva. As suas contribuiçõ es para alguns aspectos da neurociência e da neuropsicologia estã o ainda em curso.
Mas o núcleo de questões em epistemologia, metafísica, ética, filosofia política, as “filosofias de”, entre outras,
persistem; são perenes e são perguntas perenemente urgentes, porque os esforços para lhes responder fazem
parte da grande aventura do esforço da humanidade para se compreender a si mesma e para compreender o seu
lugar no universo. Algumas dessas questõ es nã o parecem ter resposta — ainda que agir com base na ideia de que nã o a
têm seja desistir demasiado depressa. Além disso, como disse Paul Valéry, Une difficultè est une lumière. Une difficultè
insurmontable est un solleil: “Uma dificuldade é uma luz. Uma dificuldade inultrapassá vel é um Sol”. Maravilhosa
expressã o! Pois ensina-nos que se aprende muitíssimo com o esforç Tradução de Desidério Murcho o para resolver até
o que nã o parece ter soluçã o — como o atesta a histó ria da filosofia.
The History of Philosophy (Penguin, 2019), pp. xv–xxi.

Tradução de Desidério Murcho

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