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Isto não é Filosofia

Isto não é um Curso de História da Filosofia


Prof. Vitor Ferreira Lima
Licenciado em Filosofia (UFRRJ)

Sumário
Introdução ..................................................................................................................................... 2
1. Origens ..................................................................................................................................... 2
1.1 Aspectos comuns à ciência ............................................................................................ 2
1.2 Aspectos comuns à mitologia ......................................................................................... 3
1.3 A racionalidade nascente ................................................................................................ 4
2. Conceitos-chave ..................................................................................................................... 5
2.1 Physis ................................................................................................................................. 6
2.2 Kosmos............................................................................................................................... 6
2.3 Arkhé................................................................................................................................... 7
3. Escola de Mileto ...................................................................................................................... 7
3.1 Tales de Mileto .................................................................................................................. 8
3.2 Anaximandro de Mileto .................................................................................................... 8
3.3 Anaxímenes de Mileto ..................................................................................................... 9
Conclusão ................................................................................................................................... 10
Bibliografia .................................................................................................................................. 10

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Introdução

Neste capítulo, veremos o que é considerado pela História da Filosofia o início


do pensamento racional ocidental. Veremos como nasce nossa concepção de
racionalidade e o quanto, na origem, há traços que preservam a tradição anterior e que
a negam, avançando a discussão em outras abordagens.
Veremos, primeiro, as origens dos pensadores pré-socráticos e o que eles
guardam de traços com a ciência e com a mitologia, apontando também o que os
distingue enquanto filósofos e não como poetas e cientistas.
Após isso, analisaremos conceitos-chave para entender a que tipo de problemas
tentaram resolver e qual a visão de mundo que partilhavam para oferecer suas
respostas.
Fecharemos com a apresentação do que se considera ser a primeira escola de
pensamento do Ocidente, encabeçada por três célebres homens: Tales, Anaximandro
e Anaxímenes, todos da cidade jônica de Mileto.
Agora, inicia o trajeto que culminará no pensamento científico e no pensamento
filosófico dos dias atuais, ambos guardiões da razão tal qual a conhecemos. Você está
preparado(a)?

1. Origens
1.1 Aspectos comuns à ciência

As origens da Filosofia se confundem com as origens da Ciência. Por extensão,


também se confundem com o que chamamos hoje de racionalidade, em contraposição
a discursos baseados na autoridade, na imaginação e na linguagem
predominantemente alegórica e não fundamentalmente conceitual. Nesse sentido,
Filosofia não é uma disciplina fechada que engloba conteúdos a serem aprendidos, mas
uma abordagem investigativa da realidade, em que o uso de argumentos e
conceitos é fundamental.
Por essa origem comum, acontece de os pensadores pré-socráticos serem
referidos como os primeiros cientistas. As similaridades são tantas que se fizeram sentir
até bem recentemente.
Em primeiro lugar, uma palavra central na Filosofia Antiga é logos, vocábulo
grego que pode significar “palavra”, “discurso”, “argumento”, “explicação” ou, de modo
mais geral, “teoria” e “razão”. É a raiz de várias disciplinas atualmente: Biologia,
Psicologia, Antropologia etc. – todas elas, ainda que bem diferente de como se
organizam hoje, faziam parte dos estudos dos filósofos.
Em segundo lugar, o que chamamos de Física, Química e Biologia hoje já foi
classificado como Filosofia Natural até meados do séc. XIX. Uma célebre obra do
naturalista português Alexandre Rodrigues Ferreira, chamada “Viagem Filosófica pelas

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capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá” do séc. XVIII, é um exemplo
claro dessa inter-relação. O livro não trata de investigações existenciais; limita-se a
expor desenhos realistas das espécies de animais com as quais se deparava o viajante,
a fim de fornecer um inventário para posterior pesquisa.
Em terceiro lugar, o mais alto título acadêmico para muitas especialidades
científicas no mundo anglo-saxão é PhD, que significa Philosophy Doctor.
A partir do séc. XIX, as ciências foram se tornando independentes da Filosofia e
constituindo os seus próprios campos, com métodos, jargões e objetos de estudo cada
vez mais específicos. À Filosofia restaram algumas questões mais abrangentes,
principalmente as relativas à realidade, ao conhecimento à avaliação das condutas
humanas. Tais preocupações podem ser enquadradas nas seguintes áreas,
respectivamente:

• Ontologia (O que é como é composta a realidade?)


• Epistemologia (O que é e como atingir o conhecimento?)
• Ética (O que é o bem e como devemos agir?)
Ainda que tais nomes não constituíssem campos consolidados de investigação
filosófica à época dos helênicos, é possível entender o que fizeram os antigos com base
no que propuseram a cada uma dessas questões. Podemos, assim, entender como
encaravam os problemas, como respondiam a eles e como suas respostas podem ou
não ser aceitas hoje.
Parte da jornada do estudo filosófico implica compreender adequadamente um
problema, as teses que tentam solucioná-lo e os raciocínios e conceitos usados para tal
tarefa. Assim, você, enquanto estudante, ganha compreensão não apenas do que
disseram homens que viveram há 2.500 anos, mas adquire sobretudo clareza sobre o
que você próprio pensa a respeito de problemas perenes da trajetória intelectual
humana.

1.2 Aspectos comuns à mitologia

No entanto, não apenas de semelhanças com a Ciência surge a Filosofia. Há


inúmeras outras semelhanças com a Mitologia. Em diversos pontos, é possível traçar
paralelos entre o que disseram os primeiros pensadores filosóficos o que já diziam os
poetas e rapsodos, de um lado, e os sacerdotes, de outro. A base cultural comum dos
primeiros filósofos, dos poetas, rapsodos e sacerdotes eram as histórias contadas sobre
as divindades e o modo como criaram o mundo de então. Nesse sentido, tanto no
conteúdo, quanto na forma do que falavam os pré-socráticos é possível encontrar
elementos tipicamente mitológicos.
O primeiro deles é certa referência aos deuses. Heráclito, reputado como um
dos iniciadores do pensamento dialético racional, utiliza em seus fragmentos referência
a divindades. O recurso comunicacional serve bem ao propósito do filósofo: encontrar
um princípio que governe tudo e todos, tal qual uma divindade.
“Deus é dia e noite, inverno e verão guerra e paz, abundância e fome” (Heráclito, Fr. 67)

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O segundo elemento é o uso de uma linguagem alegórica e poética.


Parmênides, considerado o fundador das investigações sobre Ontologia, escreve um
poema – que, aliás, é tudo que nos chegou de sua produção – em que uma deusa lhe
mostra o caminho da verdade.
“Os cavalos que me conduzem levaram-me tão longe quanto meu coração poderia desejar, pois
as deusas guiaram-me, através de todas as cidades, pelo caminho famoso que conduz o homem
que sabe.” (Parmênides, Fr. 1)

O terceiro elemento é, vez ou outra, alusão ao sobrenatural. O próprio


Sócrates, para mencionar um filósofo que é posterior aos estudados nesta aula, inicia
sua narrativa assim. Ao menos do que sabemos por meio de Platão, a trajetória filosófica
de seu mestre começa com ele tentando interpretar justamente uma sacerdotisa de
Apolo que dissera ser ele o homem mais sábio de Atenas.
“Como testemunha de minha sabedoria – se é de fato uma e qual é – vou apresentar o deus de
Delfos.” (Platão, Apologia de Sócrates, 20-21)

Tudo isso indica que, em seu nascedouro, a Filosofia se confunde tanto com a
Ciência, quanto com a Mitologia. É preciso ter isso em mente ao analisar o que e como
pensaram os homens que estudaremos a seguir.

1.3 A racionalidade nascente

Se essas eram as semelhanças, qual era o traço distintivo dos filósofos? A


Historiografia costuma defender que a distinção se deu quanto aqueles que tentavam
explicar a realidade passaram progressivamente a preferir o logos ao mythos.
Mythos, do grego, quer dizer “palavra”, “discurso”, “narrativa”. Hoje, é associada
ao mundo imaterial, a estórias fantasiosas ou a alguém considerado extraordinário. Esse
último sentido se associa aos personagens das narrativas antigas – Hércules, Aquiles,
Heitor etc. O primeiro sentido, no entanto, deriva de um preconceito estabelecido em
nossa cultura em grande medida devido ao racionalismo que inicia na Filosofia.
Tal preconceito não tem início na Filosofia Antiga, mas na Medieval e na
Moderna. Entre os medievais, a ideia era a de que verdadeira só era a narrativa da
Bíblia, as demais não passavam de ilusão. Entre os modernos, o princípio era o de que
verdadeiro era apenas o discurso cada vez mais dominante da Ciência, os demais não
passavam de mistificação. Contemporaneamente, é difícil acreditar sem ressalvas tanto
neste, quanto naquele.
O que é relevante dizer é que mesmo a Mitologia apresenta sua racionalidade.
Isso quer dizer que o mythos, enquanto discurso, não é caótico, desordenado, sem
fundamentos. Ao contrário, segue nexos causais, num raciocínio encadeado e se baseia
em autoridades consideradas extremamente confiáveis na comunidade.
A Teogonia, do poeta grego antigo Hesíodo, é uma evidência do grau de
organização e complexidade interna que pode atingir uma narrativa desse tipo. Ao
fornecer a genealogia dos deuses, Hesíodo narra um mundo que faz sentido
internamente e, para muitos de seus concidadãos, fazia pleno sentido também
externamente.

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A diferença que se aponta, então, não é aquela comum que afirma que a
Filosofia e racional e que o Mitologia é irracional. Ambas guardam racionalidades se por
isso entendemos linguagem encadeada e que corresponde a uma dada realidade. A
diferença é na abordagem aos problemas que tenta resolver.
Enquanto a Mitologia faz majoritariamente referência aos deuses, seus
nascimentos, reproduções e mortes para explicar o mundo, a Filosofia nascente passa
a lançar mão de explicações cada vez menos dependentes de divindades e cada vez
mais relacionadas a elementos materiais do próprio mundo.
Enquanto a Mitologia faz uso de uma linguagem metafórica e alegórica para
explicar a realidade, a Filosofia nascente prefere usar conceitos e argumentos para
dar conta de explicações da realidade, fiando-se na qualidade dos raciocínios e não
na autoridade do poeta que narra uma história.
Por fim, enquanto a Mitologia não encontra problemas em apelo ao
sobrenatural, mesmo que isso não se coadune com outras crenças mitológicas e com
elas conflite diretamente, a Filosofia nascente passa a cada vez mais solicitar
explicações naturais para a natureza que precisa ser compreendida.
Em resumo, os filósofos nascentes tentavam descrever a realidade com

• Elementos materiais do próprio mundo,


• Conceitos e argumentos e
• Explicações naturais.
À medida que isso ocorria, eles estavam privilegiando outro tipo de discurso – o
logos. Trata-se de uma palavra grega também com significados muito amplos. Como já
vimos, pode querer dizer “palavra”, “discurso”, “argumento”, “explicação”. Pode também
dizer “razão” e “princípio organizador”. Hoje, ela é usada tanto em Ciência quanto em
Filosofia para designar a Lógica, campo dos estudos que trata de como construímos
raciocínios e como podemos avaliá-los. Atualmente, pensar logicamente é sinônimo de
pensar racionalmente. Devemos isso à Filosofia.

2. Conceitos-chave

Tudo o que sabemos dos pré-socráticos nos veio ou através de fragmentos do


que escreveram, ou por meio do que escreveram sobre eles outros filósofos e
pensadores. A tradição antiga diz que Tales de Mileto conseguiu prever um eclipse do
sol. Embora nada saibamos sobre isso em detalhes, esse acontecimento marca o início
da passagem do discurso mitológico para o discurso lógico, tanto filosófico, quanto
científico. Tales foi o primeiro de uma série de pensadores conhecidos como pré-
socráticos.
O termo pré-socrático vem dos estudiosos clássicos do séc. XIX, que defendiam
uma ruptura fundamental entre os objetivos e métodos desse grupo de pensadores e
Sócrates (470-399 a.C). Para eles, as investigações de Sócrates em ética
representaram uma revolução no pensamento ocidental. No entanto, muitos pré-
socráticos eram na verdade contemporâneos do jovem Sócrates. Além disso, alguns
pré-socráticos, como Demócrito, também mostravam preocupações éticas em suas

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reflexões. Isso quer dizer que, enquanto um rótulo que se pretenda exato, o termo “pré-
socrático” pode enganar. Ainda assim, para designar um grupo de pensadores definido
pode ainda ser útil.
Esse grupo de pensadores não pertence a apenas uma escola de pensamento.
Ao contrário, diferem consideravelmente em suas visões. Ainda assim, compartilham
certo modo de encarar a realidade que justifica estudá-los no mesmo grupo. A seguir
estudaremos alguns conceitos-chave que permeiam todos eles.

2.1 Physis

A palavra physis deu origem à palavra Física. Ela pode ser traduzida sem muito
cuidado por “natureza”. Por que sem muito cuidado? Porque essa concepção de
natureza não se confunde com a concepção de natureza da qual partiam os poetas,
rapsodos e sacerdotes. Para estes, a natureza só existia porque havia elementos além
do natural para lhes garantir a existência – os deuses. Em contrapartida, physis
expressa uma concepção de natureza que não apresenta uma causa para além da
própria natureza e de seus elementos e princípios.
Assim, physis é

• Totalidade do que existe (o material e o mental),


• Totalidade que origina a si mesma e se explica por si mesma.
Isso significa que essa concepção de natureza abarca tudo o que existe e
pressupõe que tudo o que existe pode ser explicado a partir de seus próprios elementos.
Basta que para isso se encontrem as causas e se consiga identificar o nexo causal que
permeia aos fenômenos e eventos da realidade. Aristóteles chamava os primeiros
filósofos de physiólogos, isto é, estudiosos da physis.

2.2 Kosmos

Em sentido semelhante, a palavra kosmos expressava também uma concepção


de totalidade do que existe. Hoje a palavra subiste em outras. Um exemplo é a
Cosmologia, ramo da Astronomia que estuda a estrutura e a evolução do universo em
seu todo, preocupando-se tanto com a origem, quanto com sua evolução. Outro
exemplo é a palavra “cosmético”. Esta nos fornece de modo mais claro o que os gregos
entendiam quando usavam kosmos em seu sentido original.
O cosmético é um produto que se destina a melhorar a aparência de uma
pessoa, feita para corrigir defeitos e harmonizar partes de seu corpo. Seu sentido,
portanto, está relacionado à ordem e à beleza. Aliás, a beleza aqui já é entendida
enquanto ordem. Vale dizer, só pode haver beleza quando há também, harmonia e
ordenação. kosmos designa, por assim dizer, o universo, mas um universo harmônico,
ordenado, hierarquizado – e, por isso mesmo, belo.

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Para os gregos, o universo, sendo ordenado, harmônico, só estava à espera da


descoberta de seu princípio ordenador e harmonizador para ser plenamente
compreendido.

2.3 Arkhé

Há uma citação famosa de Friedrich Nietzsche, que foi um dos estudiosos dos
pré-socráticos:
“A filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposição: a água é
a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la
a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo
sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; e,
enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está
contido o pensamento: Tudo é um.”

A palavra arkhé pode ser compreendida a partir do modo como o filósofo alemão
interpreta seus antecessores. Os pensadores da antiguidade se preocupavam com a
origem das coisas, procediam com progressivo apelo ao mundo natural e por meio de
conceitos e tentavam explicar a multiplicidade a partir da unidade. Assim, a palavra que
concentra a busca pela origem, pelo conceito e pela unidade é arkhé.
Ajuda também na compreensão do vocábulo notar as palavras que hoje ainda
se usam e que dela derivam. Um exemplo é arqueologia, ciência que estuda a cultura
dos povos originários. Outro exemplo é monarquia, forma de governo em que o poder
está na mão de um só indivíduo. Arkhé, então, tem um duplo sentido de origem e
governo.
Por isso, costuma-se traduzir a palavra por princípio. Afinal de contas, princípio
é aquilo que origina, dado que significa também “início”. Igualmente, governa, posto que
também denota regras gerais a partir das quais guiamos nossa conduta. A arkhé, então,
é o princípio que origina e governa a realidade (a physis e o kosmos).
Como dissemos antes, os filósofos discordam entre si, embora possam ser
enquadrados no mesmo grupo quanto a suas principais preocupações. Não costumam
discordar quanto a ideia de physis, tampouco de kosmos. Quanto à arkhé, no entanto,
a discordância é tremenda. É o que veremos a seguir.

3. Escola de Mileto

Mileto era a mais importante cidade de uma região grega antiga chamada de
Jônia. Ali nasceu a Filosofia, tal qual a tradição nos legou. No mundo de então, era
famosa por ser um centro comercial e marítimo, cujos navegadores circulavam por toda
a região do Mar Mediterrâneo e mantinham intensas trocas comerciais e culturais com
diversos povos. É nela que se encontram os mais antigos filósofos pré-socráticos: Tales,
Anaximandro e Anaxímenes. Todos os fragmentos de autores clássicos que citarmos
dos filósofos em questão são retirados do livro Os filósofos pré-socráticos (Editora
Cultrix, s/d), de organização de Gerard Bornheim.

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3.1 Tales de Mileto

A informação é escassa sobre a vida de Tales de Mileto. Como já dissemos, é


conhecido um feito a ele atribuído: o eclipse total do sol de 28 de maio de 585 a.C. A
partir desse evento é que se calculam as datas prováveis dos anos de seu nascimento
e de sua morte – respectivamente, 624 a.C e 547 a.C. Sabe-se que participou da vida
militar de sua cidade, como era comum aos cidadãos de então, e que empreendeu
viagem ao Egito.
A escassez de dados se estende a suas ideias. Quem o considera fundador da
Filosofia é o próprio Aristóteles, um dos grandes clássicos entre os filósofos gregos e o
primeiro a fazer um retrospecto sistemático da História da Filosofia. O discípulo de
Platão divulga a doutrina atribuída a Tales de que a água é o elemento primordial de
todas as coisas.
Atribui-se a Tales a afirmação de que “todas as coisas estão cheias de deuses”.
É-lhe também atribuída uma teoria para explicar as inundações do Rio Nilo no Egito,
bem como a solução de diversos problemas da Matemática, especialmente da
Geometria. É importante saber, no entanto, que tudo o que nos sobrou de Tales foram
relatos que outros pensadores disseram. De sua própria autoria nada existe.
A seguir, dois trechos de relatos de pensadores do mundo antigo a respeito de
Tales de Mileto:
1.
“A maior parte dos filósofos antigos concebia somente princípios materiais como origem de todas
as coisas [...]. Tales, o criador de semelhante filosofia, diz que a água é o princípio de todas as
coisas (por esta razão afirmava também que a terra repousa sobre a água).” (Aristóteles,
Metafísica, I, 3)

2.
“Entre os que afirmam um único princípio móvel – por Aristóteles chamados propriamente de
físicos –, uns consideram-no limitado, assim, Tales de Mileto, filho de Examias de Hipo – que
parece ter sido ateu. Dizem que a água é o princípio. As aparências sensíveis os conduziram a
esta conclusão; porque aquilo que é quente necessita de umidade para viver, o que é morto seca,
e todos os germes são úmidos, e todo alimento é cheio de suco; ora, é natural que cada coisa se
nutra daquilo de que provém; a água é o princípio da natureza úmida, que mantém todas as coisas;
e assim concluíram que a água é o princípio de tudo e declararam que a terra repousa sobre a
água.” (Simplícius, Física, 23, 21)

3.2 Anaximandro de Mileto

Anaximandro foi discípulo e sucessor de Tales e, de certo modo, é encarado


como tendo desenvolvido o que o mestre iniciou, ainda que em caminhos bastante
diversos. As datas prováveis de nascimento e morte são 547 a.C e 610 a.C. Pouco se
conhece também de sua vida, ainda que se atribua a ele a primeira publicação de ordem
filosófica que se tenha notícia, escrevendo em prosa e não em poesia como era comum.
Para Anaximandro, o princípio de todas as coisas (arkhé) é o ilimitado (ápeiron),
isto é, não se trata de algo material e particular como a água, tal qual propunha seu

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mestre. Dele, sobreviveram fragmentos de autoria própria, dos quais interpretam-se


algumas doutrinas:
1 – Todas as coisas se dissipam onde tiveram sua gênese, conforme a necessidade; pois pagam
umas às outras castigo e expiação pela injustiça, conforme a determinação do tempo.

2 – O ilimitado (ápeiron) é eterno.

3 – O ilimitado (ápeiron) é imortal e indissolúvel.

Há uma unidade primordial, da qual nascem todas as coisas e para onde


retornam todas as coisas. Todas as coisas são limitadas e, para terem surgido,
necessitam ter se originado não em algo igualmente limitado, mas, ao contrário,
ilimitado. É deste ilimitado que provém a multiplicidade do mundo.
A seguir, dois trechos de relatos de pensadores do mundo antigo a respeito de
Anaximandro de Mileto:
1.
“Entre os que defendem um único princípio móvel e ilimitado, Anaximandro, filho de Praxíades de
Mileto e discípulo sucessor de Tales, diz que o ilimitado é o princípio e elemento das coisas, tendo
sido o primeiro a empregar a palavra princípio. Afirma que não é a água ou algum dos outros assim
chamados elementos, mas uma outra natureza diferente, ilimitada, da qual seriam formados todos
os céus e os cosmos naqueles contidos. [...] É evidente que Anaximandro, ao observar a
transformação recíproca dos quatro elementos, não quis tomar um destes como substrato, mas
um outro diferente” (Simplícius, Comentários à Física de Aristóteles, 24, 13)

2.
“Tudo é princípio ou procede de um princípio; ora, não há princípio do ilimitado, pois se tivesse
seria limitado. No mais, por ser princípio, deve ser não engendrado e indissolúvel. Porque
necessariamente tudo o que é gerado chega a um fim e há um termo a toda dissolução. Por isto,
como dizemos, não tem princípio, mas ele próprio parece ser o princípio das outras coisas, e
abraçá-las e governa-las todas, como afirmam todos aqueles que não admitem outras causas além
do ilimitado, como por exemplo, a Inteligência ou a Amizade. E é a divindade: imortal e imperecível,
como o querem Anaximandro e a maioria dos fisiólogos. (Aristóteles, Física, III, 4, 203b)

3.3 Anaxímenes de Mileto

Assim como a tradição assegura que Anaximandro foi discípulo de Tales,


também Anaxímenes é conhecido por ser discípulo de Anaximandro. É provável que
tenha nascido em 585 a.C e que tenha morrido em 525 a.C. Nada mais é conhecido de
sua vida.
Para Anaxímenes, o elemento que origina todas as coisas é ar (aér). Isso quer
dizer que retorna ao tipo de abordagem de Tales ao localizar como princípio algo
material e particular, em vez de algo meramente conceitual e não abarcável tal qual
propunha Anaximandro. Dele também sobreviveu um fragmento de autoria própria,
embora haja alguma controvérsia sobre isso:
1 – Como nossa alma (psikhé), que é ar, nos governa e sustém, assim também o sopro (pneuma)
e o ar (aér) abraçam todo o cosmos.

A relação entre alma (psikhé) e ar (aér) e o sopro vital é uma ideia que remonta
aos textos de Homero. A assimilação do universo a um ser vivo que respira coincide

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com aqueles que vieram antes do pensador. Se há vida, há alma e ar – eis a


equivalência que se faz. Quando não respiramos, morremos. Os outros elementos que
compõem a multiplicidade derivam do ar: o quente, o úmido, o seco.
A seguir, um trecho a respeito de Anaxímenes de Mileto:
“Anaxímenes, companheiro de Anaximandro, afirma, como este, uma única matéria ilimitada como
substrato; não indeterminada, como Anaximandro, mas determinada, chamando-a de ar:
diferencia-se pela rarefação ou pela condensação segundo a substância.” (Simplícius,
Comentários à Física de Aristóteles, 24, 26)

Conclusão

Os primeiros pré-socráticos (Tales, Anaximandro e Anaxímenes) estavam


preocupados em responder a problemas cosmológicos e fisiológicos, no sentido
etimológico das palavras kosmos e physis. Em outras palavras, estavam em busca de
explicar a realidade em seu aspecto mais amplo possível e não em suas particularidades
específicas. Intrigava o mistério da origem única da multiplicidade das coisas.
É Aristóteles quem, ao realizar sua própria interpretação do passado, primeiro
diz que esses pensadores estavam em busca da unicidade por meio de uma causa
material, isto é, do elemento primordial a partir do qual a realidade é constituída. Tal
conceito foi visto como arkhé. Os três discordavam quanto ao elemento que encorpasse
essa origem: o primeiro disse ser a água; o segundo, o ilimitado (ápeiron); o terceiro, o
ar (aér).
Essas respostas denotam um grau elevado de simplicidade e de economia
teórica e têm o objetivo de responder a muitas questões relativas à realidade. Devido a
isso, tais filósofos foram vistos também como precursores da ciência, uma vez que
foram autores de hipóteses explicativas dos fenômenos naturais. É claro – ou deveria
ser – que há pouco que possa ser considerado científico hoje nessas hipóteses
especulativas antigas. Isso acontece porque tanto o modo de expressão – muito próximo
ainda aos poetas –, quanto o conteúdo do que veiculam se distanciam do que hoje
consideramos método científico e discurso filosófico. É importante levar em
consideração que os pré-socráticos são figuras de transição da progressiva jornada que
nos leva do mythos ao logos, isto é, de narrativas sobrenaturais e alegóricas a
discursos conceituais e argumentativos.

Bibliografia

ANNAS, Julia. Ancient Philosophy – A Very Short Introduction. Oxford: Oxford


University Press, 2000.
BORNHEIM, Gerd A. (org.). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Editora Cultrix,
s/d.
CORDERO, Néstor Luis. A invenção da Filosofia: uma introdução à Filosofia Antiga.
Tradução: Eduardo Wolf. São Paulo: Odysseus Editora, 2011.

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OS PRÉ-SOCRÁTICOS (Coleção Os Pensadores). Fragmentos, doxografia e


comentários. Seleção de textos e supervisão do Prof. José Cavalcante de Souza.
Dados biográficos de Remberto Francisco Kuhnen. Traduções de José Cavalcante de
Souza (et. al.). 2º ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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