Você está na página 1de 94

Copyright © 2021 P&B Publicações

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou armazenada em um sistema de reprodução ou transmitida de qualquer
forma ou por qualquer meio: eletrônico, fotocopia, gravação ou outro, sem a permissão expressa por escrito do editor, salvo em
citações breves, com indicação da fonte.

ISBN: 978-65-87066-02-8
1ª_edição: 2021
Revisão: Adria Michelle Marcuz Silva
Capa e Diagramação: Equipe P&B Publicações
TEOLOGIA DA TRADUÇÃO
Sobre a possibilidade da tradução bíblica

Willian Orlandi
Dedico esses ensaios à minha esposa, que diariamente traduz o amor de Deus ao meu coração.
Sumário

Introdução
Parte I: Fundamentos
1. “E disse Deus...”: A Trindade e a tradução
2. Profetas e apóstolos: Uma prática Bíblica
3. A Grande Tradução
4. A Tradução e o Pentecostes
Parte II: Alguns problemas e tópicos da Tradução
5. Breve História da Tradução
6. Desconstrução e tradução
7.Tradutor traidor? Por uma ética da tradução
8. YHWH, Jeová ou Senhor? Os paradoxos da Blasfêmia e a apoteose do significante
9. Hermenêutica Feminista e a tradução Bíblica
10. Tradução e crítica textual: O texto de Mateus como estudo de caso
Parte III: Tradução Bíblica na prática
11. Qual Bíblia? Qual tradução?
12.Justificados ou aceitos? Um breve estudo em Romanos
13. Inspiração verbal e a tarefa do tradutor: A convicção de Agur
14. Conclusão
Introdução

Os ensaios reunidos nesse volume irão proporcionar um diálogo sobre o fundamento da


possibilidade teórica e prática da tradução bíblica. O empenho teológico nessas páginas visa à
igreja de Cristo, sua edificação e entendimento. A teologia feita para a glorificação de Deus via
edificação da Sua igreja (e não a teologia meramente para acadêmicos) é o ponto alto do fazer
teológico.
Para a maioria dos cristãos, a possibilidade da tradução bíblica é algo pressuposto como
certo. Lemos nossas Bíblias em casa e na igreja, e raramente alguém se pergunta se a tradução
que está lendo continua sendo a Palavra de Deus, ou um mero produto humano. Entretanto,
quando esses questionamentos chegam (e não há respostas adequadas) é que os problemas
começam. Como pastor, já enfrentei essa problemática várias vezes e não sou o único. Amigos
pastores de todo o nosso país me relatam a mesma dificuldade. Fortes crises de fé e até mesmo
apostasia são resultados causados pela nossa falta de reflexão sobre o assunto. Muitos não
chegam tão longe ao ponto de negar a tradução de toda a Escritura, mas negam a tradução de
pequenas partes, como por exemplo, os nomes de Deus e de outros personagens e passagens
bíblicas.
Assim, ainda não sei se estou ensaiando sobre algo óbvio ou demasiadamente óbvio. Seja
como for, ambos justificam nosso empenho. As coisas óbvias precisam ser criticamente
analisadas de tempos em tempos. Precisam ser desafiadas e fundamentadas cada vez mais sobre
um solo mais fértil, sobre alicerces mais firmes. Se estivermos diante de algo demasiadamente
óbvio, nosso estudo se faz ainda mais necessário, pois tudo o que é demasiadamente óbvio vem
ao nosso encontro com excesso de luz, e esse excesso pode não ser visto por olhos destreinados
ou preguiçosos.
Temos muitos livros sobre a natureza das Escrituras e ainda mais livros sobre sua
interpretação. A exageração retórica de Kierkegaard – de que há 30.000 interpretações bíblicas
diferentes – talvez não seja nenhum exagero. Mas quando chegamos ao campo da tradução
bíblica, poucas palavras bradam dos microfones teológicos. Precisamos fundamentar nossa teoria
e prática da tradução bíblica dentro da cosmovisão cristã. Hoje, várias seitas religiosas
fundamentam-se na ideia de que não podemos fazer traduções da Bíblia. Os nomes de Deus, por
exemplo, devem ser mantidos em hebraico, pois são absolutos e eternos, e assim foram revelados
à humanidade. Até mesmo alguns “teóricos” da tradução fantasiam com a doutrina da
intraduzibilidade, como veremos.
Este pequeno livro é constituído de alguns ensaios para começarmos a refletir sobre esse
importante tema da tradução bíblica. Não me propus a escrever uma “teoria da tradução” (obra
que terei de deixar para o futuro), mas meramente ensaios que irão argumentar que, dentro da
cosmovisão cristã, a tradução não é somente possível, mas criada e ordenada pelo próprio Deus.
O livro quase forma um quiasmo à antiga moda hebraica, mas não foi intencional (isso pode
cocorrer quando o autor esta imerso na literatura judaica). Das três partes, a primeira e a última
tratam de questões bíblico-teológicas, enquanto o núcleo do nosso trabalho (parte 2) trata de
alguns temas e problemas relacionados à possibilidade da tradução. Assim, o livro seguirá dessa
maneira: na primeira parte, iremos estabelecer os fundamentos teológicos da tradução. Veremos
a relação da tradução com a Trindade (capítulo 1), com a prática de Jesus e dos apóstolos
(capítulo 2), com a Grande Comissão de Jesus para seus seguidores (capítulo 3) e com a descida
do Espírito no Pentecostes (capítulo 4). Na segunda parte do livro, analisaremos alguns
problemas relacionados com a teoria e prática da tradução. Começaremos com uma breve
história da tradução (tanto bíblica, como de textos em geral) para termos consciência do processo
histórico que passou a tradução, sabendo assim seu “status quæstionis” (capítulo 5).
Dialogaremos de forma crítica com a Desconstrução e sua teoria da tradução (capítulo 6).
Prosseguiremos com ensaios sobre a ética na prática da tradução (capítulo 7), sobre possibilidade
da tradução dos nomes de Deus na Bíblia (capítulo 8) e dialogaremos com a hermenêutica
feminista e sua influência sobre as traduções bíblicas (capítulo 9). Terminaremos a segunda parte
com um estudo sobre o texto do evangelho de Mateus, mostrando não somente que temos acesso
ao original (não adulterado), mas que o próprio Mateus usava frequentemente a tradução grega
do Antigo Testamento em suas citações (capítulo 10). A terceira e última parte irá tratar de
questões práticas. Veremos quais traduções em português são adequadas para nossa leitura e
iremos expor a falácia de que há apenas uma tradução bíblica correta (capítulo 11). No capítulo
12, iremos ver como as traduções podem errar ao ponto de mudar o sentido da passagem,
trazendo consequências para a vida de fé de indivíduos e comunidades de fé. Como estudo de
caso, analisaremos Romanos 3.24 e a melhor tradução para o termo “justificação”. No último
ensaio, antes da conclusão, veremos de perto a confissão de Agur em Provérbios 30 e a
implicação da inspiração das Escrituras para as suas traduções (capítulo 13). Concluiremos com
um resumo e aplicação do conteúdo visto (capítulo 14).
O que tenho visto no Brasil, tanto os seguimentos religiosos que advogam o não uso de
traduções (especialmente para nomes bíblicos), como a crença “fundamentalista” de que há uma
única tradução da Bíblia que seja digna (seja ela qual for), estão enraizados na falta de
conhecimento desses dois imensos campos do saber: Teologia e Linguística. Esse livro busca dar
ferramentas e abrir possibilidades de diálogos sobre essas questões, bem como suprir a lacuna
em nossa bibliografia de língua portuguesa sobre o assunto. Mas desde já confesso minhas
limitações. Apesar da minha formação em Teologia e em Linguistica, a teoria da tradução não é
(no momento) a área principal dos meus interesses acadêmicos. Por isso, humildemente espero
que as páginas a seguir ao menos despertem um interesse inicial pelo assunto, tanto para leigos
como para especialistas, para futuros diálogos sobre a tradução bíblica e a tradução em geral.
Apenas uma palavra final. Escrevo de uma perspectiva cristã, dentro da herança da reforma
protestante. Portanto, pressuponho a Bíblia como palavra inspirada e inerrante de Deus, única
regra de fé e prática da vida cristã. Por isso, partiremos da Bíblia para a própria Bíblia e suas
traduções. Teremos no final, uma teologia da tradução.
Parte I: Fundamentos
1. “E disse Deus...”: A Trindade e a tradução

“O tradutor deve ser como seu autor; não é sua função excedê-lo”. Samuel Johnson.

O fundamento da fé cristã é a auto revelação do Deus Trino. Confessamos e cremos que os


atos e as palavras redentoras de Deus na história, que culminam em Jesus Cristo, foram
registrados de forma escrita pelos profetas (Antigo Testamento) e pelos apóstolos (Novo
Testamento) . Sabemos que o Antigo Testamento foi escrito em Língua Hebraica (com algumas
1

porções em Aramaico) e o Novo Testamento foi escrito em Grego (Koinê). Esses idiomas estão
muito distantes no tempo e no espaço de nossos dias e de nossas vidas. Mas não eram distantes
para os primeiros leitores. O antigo Hebraico era a Língua do povo de Israel até algum tempo
antes da era Cristã.
Os primeiros leitores liam o que chamamos hoje de Antigo Testamento, com a mesma fluência
que nós brasileiros lemos as obras de Machado de Assis. Mesmo quando o hebraico foi
substituído pelo aramaico, os judeus aprendiam seu antigo idioma apenas para lerem a Palavra de
Deus. Quando nos movemos para o Novo Testamento não é diferente. O Grego Koinê era o
grego comum falado pelo povo, em contraste com o sofisticado “Grego clássico” dos poetas e
filósofos. Até mesmo as obras de autores como Lucas e o autor da carta aos Hebreus, com seus
textos gramaticalmente sofisticados, eram para ser entendidos pelas pessoas mais simples e
humildes .
2

Podemos começar a esboçar algumas perguntas. Dada essas informações, podemos afirmar que
o público-alvo (os primeiros leitores) não precisava de traduções? Obviamente, a segunda
geração de Israelitas que saíram do Egito não precisava traduzir a Torá (os cinco livros de
Moisés) para o hebraico que eles falavam, nem precisavam aprender outro idioma para lerem a
Palavra de YHWH, pois ela já fora revelada e escrita no idioma que eles conheciam. Muito
menos a igreja em Roma precisava consultar um Dicionário Teológico de Grego para entender as
palavras de Paulo para aquela comunidade. Será então que a prática da tradução não é algo
“Bíblico”? Teremos todos que aprender grego, hebraico e aramaico para que possamos ter acesso
às Escrituras?

A Trindade e a Tradução
Comecei esse primeiro capítulo declarando o fundamento da fé Cristã: A Trindade
revelada nas Escrituras. Entretanto a “fé Cristã” não é algo apenas cúltico, limitado à adoração
dominical. Muito menos se limita ao subjetivismo credal, ensinado por Schleiermacher desde o
movimento Romântico. A fé Cristã é o todo de uma visão de mundo. Atrevo-me a dizer que é a
cosmovisão mais completa, abrangente, coerente e prática dentre todas as visões de mundo. A
dicotomia fé/razão (ou ciência) imposta a nós pelo iluminismo não pode ser aceita como uma
verdade incontestável. A modernidade baniu a religião da esfera pública para a esfera privada,
esquecendo-se que todo pensamento teórico flui de nossas convicções religiosas .
3

Portanto, nossas convicções a respeito de Deus influenciam radicalmente nosso


entendimento sobre o todo da realidade. E a tradução não está fora disso. Nosso entendimento
sobre quem Deus é fundamenta nosso entendimento sobre o que é a tradução textual. Mas como?
Veremos agora qual é a relação entre Trindade e tradução.
Disse Deus: Haja tradução! Revelação como tradução
O ato criador de Deus no primeiro capítulo do livro de Gênesis é mediado por sua
palavra falada. A Creatio ex nihilo foi uma comunicação semântica Onipotente e Criativa. A
criação do Universo foi uma prática de tradução. Foi a tradução dos insondáveis pensamentos de
Deus em palavras criadoras. Foi uma tradução perfeita e boa. Só pode ser assim por causa dos
atributos Divinos. Sua Onipotência garantiu que Ele faria tudo o que lhe agradava. Sua
Onisciência e Onipresença garantiram que Ele soubesse de toda a extensão de Sua obra e assim,
a totalidade criacional estava plenamente supervisionada por olhos Oniscientes e por uma
Presença que permeia e interpreta a tudo.
Outra doutrina que caminha de mãos dadas com a doutrina da Criação é a Revelação. São
inseparáveis, pois apenas sabemos da criação mediante a revelação, e a revelação só é possível
porque houve criação (obviamente!). O Deus criador não é um deus que se esconde atrás das
nuvens ou da poeira estelar. Ele é ativa e constantemente presente em Sua criação. Ele não
apenas se faz presente, mas também se revela à humanidade por meio de palavras que esta
entenda. Assim, o único motivo de Deus ter se revelado primeiro na língua hebraica e depois na
língua grega é porque eram os idiomas que Seu povo o entenderia. Não há nada de especial ou
transcendente nos idiomas da Bíblia que poderiam conferir um status de primazia ou
superioridade em relação aos outros idiomas. A revelação não faz sentido se não for inteligível.
Seria lúdico – se não fosse blasfemo – pensarmos que a “Língua Original” de Deus era o
hebraico. O livro pseudoepígrafo intitulado “Jubileus”, escrito por volta do século II a.C., é uma
recontagem do livro de Gênesis, pelo ponto de vista de um fariseu do judaísmo do segundo
templo. Nesse livro há vários acréscimos a história original de Gênesis. Uma delas é que a língua
hebraica era fala já por Adão, e era a língua da criação por excelência. É óbvio que essa história é
mero fruto de orgulho nacionalista com vistas a exaltar o povo judeu (e seu antigo idioma) sobre
as outras nações (e outras línguas).
Portanto, se nem Adão, nem os anjos e muito menos Deus falavam originalmente hebraico,
seguese que a própria revelação foi um ato de tradução. Deus, em sua imensa misericórdia,
traduziu seus Pensamentos e Palavras em palavras que pessoas simples (os Israelitas, os
romanos, etc.) pudessem entender. Nas palavras de João Calvino: “Nas Escrituras, Deus balbucia
a nós, fala-nos como uma ama fala a um bebê”.
Concluímos que Deus, tanto na Criação como na Revelação, sanciona a prática da tradução,
pois Ele mesmo traduziu-se benevolentemente para que Sua imagem pudesse conhecê-lo.

No princípio era a tradução: O texto encarnado e a redenção do significado


Terminamos a seção anterior refletindo sobre a revelação de Deus. As Escrituras nos
ensinam que o clímax dessa revelação é Jesus Cristo. Na carta de Paulo aos Filipenses, o
apóstolo nos ensina que Jesus, sendo igual a Deus, tornou-se homem (2.5-11). Sendo Jesus a
suprema revelação de Deus, Ele se torna a suprema manifestação da prática de tradução. Deus
traduziu-se a tal ponto à humanidade, que se tornou humano, se tornou a própria mensagem
traduzida de Deus para os homens. Assim, o fundamento último da prática da tradução é a
própria Encarnação do Filho de Deus.
Dois textos do novo Testamento deixam isso claro como cristal. O primeiro deles é João
1.1-18. No prólogo desse Evangelho, temos algumas descrições de quem Jesus é e do que Ele
fez. Seguindo a prática judaica de estrutura textual em quiasmo, João escreveu sobre:
A. A função de Jesus na Criação (1.1-5);
B. O testemunho de João Batista sobre Jesus (1.6-8);
C. A encarnação do verbo e o privilégio de se tornar filho de Deus (1.9-14);
B´. O testemunho de João Batista sobre Jesus (1.15);
A´. A função de Jesus na Revelação (1.16-18)

Jesus é identificado como a Palavra (Λόγος) de Deus, que estava presente com Deus na
Criação e de fato criou todas as coisas juntamente com o Pai. Essa primeira parte (1.1-5) alude ao
texto de Gênesis 1, o qual a própria tradução criadora de Deus – expressa no verbo dizer – não é
ninguém se não o próprio Jesus.
Jesus não é apenas a tradução criadora de Deus, mas também o ápice da revelação Divina:
“Ninguém jamais viu a Deus. O Deus unigénito, que está no seio do Pai, esse o deu a conhecer”.
Jesus fez uma tradução (ἐξηγέομαι: interpretação, revelação, exegese) de Deus para a
humanidade.
Após o testemunho de João Batista (1. 6-8; 15), o ponto central desse prólogo é a
encarnação de Jesus (1.9-14). Aquele que cria todas as coisas e revela plenamente a Pessoa
Divina se fez homem para que pudéssemos ver sua Glória e receber sua Graça. Negar a
possibilidade da tradução textual é não compreender o que a encarnação do Filho de Deus
significa em sua plena extensão.
O segundo texto, muito semelhante ao primeiro, é Hebreus 1.1-4. Novamente temos um
quiasmo que nos auxiliará na compreensão textual:
A. O contraste do Filho com os profetas (1.1-2a);
B. O Filho como herdeiro Messiânico (1.2b);
C. A obra criativa do Filho (1.2c);
D. A tripla relação mediatória entre o Filho e Deus (1.3a-b);
C. A obra redentora do Filho (1.3c);
B. O Filho como Rei Messiânico (1.3d);
A. O contraste do Filho com os anjos (1.4).

Assim temos novamente Jesus como o Filho/Rei messiânico, herdeiro de todas as coisas,
Criador e Redentor, possuindo um relacionamento único com Deus, o Pai. O propósito em
começar essa carta/homilia mostrando que Jesus é a palavra final de Deus e que ele é superior
aos anjos é mostrar que, se no AT as pessoas morriam por não obedecer a Palavra de Deus
mediada pelos profetas (esp. Moisés) e pelos anjos, quanto maior castigo sofrerão aqueles que
rejeitarem a Palavra suprema e final de Deus que é Cristo.
Não olhamos apenas para a encarnação do Verbo como fundamento da prática da tradução
textual, mas podemos olhar também para a cruz e ressurreição de Cristo, pois o tornar-se carne
sempre teve como propósito a morte vicária e o retorno triunfante à vida. Na cruz, temos a mais
plena revelação/tradução de quem Deus é. Os atributos Divinos são revelados de forma suprema
na morte do Filho. Ao ressuscitar após três dias, essa demonstração suprema de Deus foi
vindicada publicamente como verdadeira.
A cruz ensina que, na leitura bíblica em suas traduções, a virtude da humildade
Cristocêntrica deve estar presente. Vale lembrar que na cruz de Cristo, Pilatos ordenou que
escrevessem “Jesus Nazareno, Rei dos judeus”, em hebraico, em grego e em latim (Jo. 19. 19-
20). Essa ironia presente na crucificação, notadas pelos escritores dos evangelhos, foi traduzida
de tal forma que todos ali presentes pudessem ler e entender. Assim deve ser levada a mensagem
da cruz, traduzida para a língua de onde estiver. A ressurreição mostra que, se foi possível esse
ato supremo da tradução da pessoa Divina para as pessoas, de modo que todos, de todas as
línguas e nações conseguirem entender claramente, assim também é possível a prática da
tradução textual. O Cristo ressurreto sustenta todos os significados do Universo pela palavra do
Seu poder, e sustenta o significado da Sua Palavra escrita e suas traduções fiéis.

Não sabemos traduzir como convém:


O auxílio do Espírito
Paulo nos ensina em Romanos 8.26-27 que não sabemos orar como convém, mas O Espírito
nos ajuda em nossas fraquezas, intercedendo por nós com gemidos inexprimíveis. E por que o
Espírito pode fazer isso? Porque Ele conhece o Pai e vice versa, ou seja, por causa desse
conhecimento absoluto e pericorético intratrinitário, O Espírito pode comunicar orações em
nosso favor ao Pai, e traduzir a Obra do Pai e do Filho (ver João 14-16) a nós. A obra principal
do Espírito é glorificar a Jesus (Jo.16.14), isto é, comunicar a verdade sobre quem Jesus é, o que
Ele fez e disse para sua igreja. Em outras palavras, o Espírito traduz o Filho para nós.
A intraduzibilidade do discurso (oração) do Espírito em nós acontece devido à própria
transcendência do Seu Ser. Somente um Ser transcendente pode comunicar significados que
transcendam a mera capacidade de seres imanentes como nós. Portanto, sendo a Trindade
plenamente transcendente, não apenas quantitativa, mas qualitativa e substancialmente, todas as
Pessoas da Divindade conhecem entendem o discurso transcendental das outras (duas) Pessoas.
Como veremos na parte 2, advogar a intraduzibilidade pode ser uma tentativa de divinizar o
humano e atribuir características transcendentes à obra humana (como a comunicação escrita
e/ou verbal).
Um tema pouquíssimo discutido na academia é sobre o papel do Espírito na interpretação
bíblica, e outro menos discutido ainda é o papel do Espírito no processo de tradução da Bíblia.
Uma lição que podemos aplicar por analogia é a seguinte: Assim como o Espírito pode
interceder por nós adequadamente por conhecer o Pai absolutamente, assim também os
tradutores que conhecem melhor os autores que irão traduzir farão um trabalho melhor e mais
adequado. A equipe que se propuser a traduzir as Escrituras devem dominar as línguas originais,
exegese e Teologia Bíblica e, acima de tudo, devem conhecer a Deus pessoalmente e orar sempre
pelo auxílio do Espírito nessa nobre e necessária tarefa.
O extenso trabalho de Gordon Fee sobre Cristo e o Espírito Santo nas cartas de Paulo
demonstraram que para a igreja primitiva, a Trindade era um pressuposto. Sabemos disso pelos
textos que falam claramente sobre a Trindade e por aqueles que falam sobre a obra da salvação
na vida dos crentes e da igreja em termo trinitários. A comunidade de fé experimentava a obra
redentora do Deus Trino, uma experiência inegável e transformadora, e por isso sabiam que Deus
era Pai, Filho e Espírito. Por termos tal Deus, relacional e comunicativo em Si mesmo e que se
traduz para sua criação, a igreja sempre praticou a tradução dos seus textos sagrados,
pressupondo a possibilidade da tradução assim como pressupunha seu Deus. Isso é o que
veremos no próximo capítulo.
2. Profetas e apóstolos: Uma prática Bíblica
“Tradução é o outro lado da tapeçaria”. Cervantes.

O uso do Antigo Testamento no Novo Testamento e a possibilidade da tradução

Como já vimos, o Antigo Testamento (ou Tanach) foi escrito em Hebraico com algumas
porções em Aramaico. Por volta do século II AC (ou entre o primeiro e o terceiro século a.C.),
surgiu a tradução do Antigo Testamento para a língua grega. Essa tradução é chamada de
Septuaginta (a partir de agora, LXX) devido à tradição dizer que setenta e dois rabinos (seis de
cada tribo de Israel) terminaram essa tradução em setenta e dois dias. Não temos como saber o
quanto esses dados são historicamente confiáveis, mas o importante foi o próprio ato de tradução
que possibilitou a leitura desses livros para inúmeras pessoas do mundo helenístico que não
sabiam o hebraico.
Jesus e os apóstolos basearam tudo o que ensinavam e criam no AT. Assim sendo, os
documentos do NT estão repletos de citações, alusões e ecos do AT. E o mais surpreendente é
que mais de dois terços dessas citações eram feitas a partir da LXX e não do texto hebraico.
A conclusão mais óbvia que podemos chegar é que Jesus e os apóstolos acreditavam ser
possível a prática da tradução bíblica. Algumas pessoas leigas dizem que as traduções bíblicas
não são a Palavra de Deus, no máximo elas “contêm” a Palavra de Deus. Evidentemente, a
doutrina da inspiração Divina das Escrituras se refere aos textos originais. Mas isso não quer
dizer que as traduções não sejam a Palavra de Deus. Fílo de Alexandria, o filósofo judeu do
primeiro século, acreditava que a LXX também era inspirada por Deus. Nós, diferente de Fílo,
não acreditamos que as traduções sejam inspiradas, mas que elas são a Palavra de Deus
traduzida para determinado idioma, isto é, a Escritura não deixa de ser a Palavra de Deus
quando é traduzida fielmente para outro idioma.

Encarnação novamente: Dois estudos de caso


Para demonstrar nosso ponto, iremos analisar duas passagens no NT que citam o AT.
Entretanto essas citações são diretamente da tradução grega do AT (LXX), e essas traduções
“divergem” em algum ponto do texto hebraico.
Veremos uma citação no evangelho de Mateus e uma na carta aos Hebreus, ambas
referindo-se ao fato de Jesus ter encarnado, se tornado homem. Quando tratamos da
intertextualidade bíblica, especialmente o uso do AT no NT, os dois livros mais complicados de
interpretação nesse quesito são Mateus e Hebreus. Por isso, uma análise mais detalhada se faz
necessária.

Tradução e o nascimento virginal de Jesus


Em Mateus 1.22-23 lemos:

“Ora, tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que fora dito da parte do Senhor pelo
profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, o qual será chamado EMANUEL,
que traduzido é: Deus conosco”.
Após estabelecer a genealogia de Jesus (1.1-17), Mateus passa a relatar seu nascimento.
José estava noivo de Maria quando descobriu que ela estava grávida. Por ser justo e não querer
envergonhá-la (1.18-19), José intenta em deixá-la secretamente (mostrando um rompimento de
noivado). Um anjo interrompe os planos de José, dizendo que o filho no ventre de Maria fora
gerado pelo Espírito Santo (1.20). O anjo instrui José a não temer e a colocar o nome desse
menino de Jesus (Yaweh salva), pois este salvaria o povo de Deus do cativeiro espiritual que eles
estavam, isto é, do pecado (1.21). Finalmente temos a citação de Isaías 7.14 para mostrar que era
necessário que o Messias nascesse de uma virgem.

O contexto do AT
Dois reis da terra do norte – Rezim da Síria e Peca de Israel - ameaçavam atacar Judá (7.1).
O Senhor dirige-se a Acaz, que era o rei de Judá da época, para que este lhe pedisse um sinal
para confirmar que Deus destruiria esses dois reis (7.10-11). Acaz recusa dizendo que não iria
tentar o Senhor (7.12). Superficialmente, a resposta de Acaz parecia piedosa, entretanto foi
repreendido por Deus através de Isaías. Rezim e Peca se aliaram não somente para conquistar
Judá, mas principalmente para resistirem a uma nação ainda maior: a Assíria. Acaz, recusando a
aliança com os dois reis do norte, talvez tenha pensado que correria menos riscos ao fazer aliança
com o rei da Assíria, em vez de confiar em Deus (por isso provavelmente ele negou pedir um
sinal a Deus).
Nesse contexto, surge a famosa profecia do nascimento de uma criança, gerada por uma
mãe que estava na idade para se casar, isto é, era jovem. A palavra hebraica é “´almâ” cujo
significado básico é “jovem”. Antes que essa criança saiba diferenciar bem e mal, serão
assolados os domínios dos dois reis (7.15-16). Antes dessa notícia, esses dois reis seriam
substituídos por um reino ainda pior – a Assíria.
Mas afinal, quem é essa criança profetizada? Somos inclinados a fazer a ponte diretamente
para Cristo. Entretanto a maioria das profecias no AT não é assim. Elas primeiramente falam de
algo que se cumpriria próximo a palavra profética, e depois – devido à contínua falha em se
cumprir totalmente a profecia – gera-se a expectativa de um cumprimento glorioso no futuro. Foi
assim com a promessa em 2 Samuel 7, no qual o filho de Davi construiria um templo para Deus e
reinaria para sempre sobre o trono de Davi. Sabemos que Salomão, filho de Davi, edificou o
templo, mas pela sua morte, não reinou para sempre. Assim, 2Sm. 7.14 é uma profecia cumprida
em Cristo, filho de Davi, verdadeiro construtor do templo (seu corpo e sua igreja), e pela sua
ressurreição, reina eternamente. Podemos dizer que Salomão cumpriu apenas parcialmente a
promessa de Deus a Davi, sendo assim um tipo, uma sombra de Cristo.
O mesmo acontece aqui. O filho prometido precisava nascer naquela época. A interpretação
mais provável e mais embasada no texto é que ele seria o filho de Isaías, chamado de Maer-
Salal- Has-Baz (Rápido despojo, presa segura). Em 8.3, que fala sobre esse filho, faz alusão a
7.14, e 8.4 retoma 7.15-16. Esse mesmo menino é chamado de Emanuel em 8.8 e em 8.10
explica-se que esse nome significa “Deus conosco”. Em 9.1-7, promete-se outro filho, para um
futuro mais distante, mas nunca claramente diferenciado do filho dos capítulos 7-8. Esse filho
será chamado de Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai Eterno e Príncipe da paz (9.6).

A tradução para o grego


Não há alusões a esse versículo (7.14) de Isaías na literatura judaica do segundo templo. A
Septuaginta traduz álmâ (jovem) para parthenos, que quase invariavelmente significa virgem.
Podemos especular, com certo cuidado, que alguns judeus esperavam um cumprimento da
profecia de Isaías 7-9 em um futuro Rei-Messias, que nasceria miraculosamente, caso contrário,
não teria necessidade de traduzir “jovem” para “virgem”.

Considerações hermenêuticas
Podemos concluir nossa análise dizendo que a profecia de Isaías 7.14 tinha duplo
cumprimento. Enquanto alguns teólogos não veem nenhum elemento futuro (sendo totalmente
cumprida no filho de Isaías) e outros interpretam como sendo apenas relacionada a Cristo,
podemos andar por uma via média (ou pelas duas vias ao mesmo tempo), afirmando seu
cumprimento parcial no filho de Isaías, que por sua vez não pode suprir todas as expectativas,
apontando assim para um futuro Filho, que iria realmente trazer de forma climática, a presença
de Deus para Seu povo (Emanuel).
Podemos afirmar também que a sacerdotisa que concebeu de Isaías tipificava Maria, que não
somente estava na idade para casar (jovem), mas era literalmente virgem. Para Mateus, algo tão
notório como um nascimento virginal só poderia fazer parte dos planos de Deus, sendo
anunciado já em Isaías. Notamos também que a rejeição da mensagem de Deus em Isaías 7-9
resultaria em juízo, assim como a rejeição de Jesus nos evangelhos traria uma condenação ainda
maior.
Jesus nasceu para nos libertar de nossos verdadeiros inimigos, e não são Rezim, Peca, Acaz
ou a Assíria, mas sim nossos pecados, o diabo e a morte. Mateus segue a tradução grega de
Isaías, um passo interpretativo que descrevia com maior exatidão a realidade dos eventos do
nascimento de Cristo. Maria era jovem (o que não contradiz o texto de Isaías), mas era jovem a
tal ponto de ainda ser virgem (a tradição atribui cerca de 15 anos de idade quando Maria
concebeu a Cristo, mas não temos como ter certeza sobre isso). É possível que a mulher de Isaías
ainda fosse virgem na época da profecia, e que depois o profeta se relacionou com ela e por isso
ela engravidou. Como o cumprimento escatológico sempre excede as expectativas iniciais, Maria
era virgem ao receber a notícia de sua gravidez através do anjo, entretanto, ela permaneceu
virgem até o nascimento de Jesus, que foi concebido miraculosamente. Este ato miraculoso de
Deus, o Espírito Santo se tornou um dos fundamentos para a doutrina da impecabilidade de
Cristo, uma das qualificações para a obra redentora que Ele realizou.

Tradução e o corpo de Cristo


Outra passagem que iremos analisar é Hebreus 10.5 que diz:

“Por isso, entrando no mundo, ele diz: Tu não quiseste sacrifício e oferta, mas me
preparaste um corpo”.

A carta/Homilia aos Hebreus foi provavelmente escrita para cristãos judeus que estavam
sofrendo perseguição no século primeiro (d.C.). Para encorajá-los à perseverança na fé, o autor
exalta a pessoa e obra de Jesus, mostrando que Cristo é melhor do que o antigo sistema religioso
judaico, pois este era uma sombra, cuja realidade é Jesus, o Messias. O autor mostra que Cristo é
superior aos anjos – seres celestiais que entregaram a Lei a Moisés no Monte Sinai – e por isso
sua mensagem é superior, digna de muito mais atenção, pois quem recusa o evangelho sofrerá
muito mais do que aqueles que recusaram a Torá (capítulos. 1-2). Cristo é superior a Moisés e
Josué, pois lidera o novo povo de Deus até o descanso da nova criação (capítulos. 3-4). Cristo é
superior aos sacerdotes do AT, sendo da ordem de Melquisedeque e não da ordem de Arão
(capítulos. 5-7). Finalmente, Cristo é retratado como superior aos sacrifícios do AT, sendo ele
mesmo o sacrifício final pelos pecados, e é mediador de uma nova e superior Aliança, em relação
à aliança mosaica (capítulos 8-10).
Em 10.1-4, o autor mostra que os sacrifícios do AT jamais poderiam aperfeiçoar os
adoradores, e sua necessidade de repetição contínua apontava para isso. Para fundamentar seu
argumento, o autor cita o Salmo 40.6-8.
O Salmo 40 é dividido em duas partes: A primeira, dos versos 1-10 é um cântico de ações
de graças e a segunda parte (11-17) é um cântico de lamento. Esse Salmo fazia parte de uma
liturgia régia. Assim os versos citados em Hb. 10.5-7 podem se referir ao rei e sua submissão a
Deus, mostrando que a verdadeira adoração deve ser baseada num coração sincero e fiel e não
meramente nas formalizações externas dos sacrifícios.
Na tradução grega do Sl. 40.6, lemos: “... um corpo me preparaste...” (σῶμα δὲ κατηρτίσω
μοι), que é exatamente a citação em Hebreus 10.5. Entretanto o texto hebraico diz: “... abristes os
meus ouvidos...”. Como explicar essa diferença? Alguns apontam para uma possível leitura
errada dos tradutores da LXX (de ΗΘΕΛΗΣΑΣΩΤΙΑ para ΗΘΕΛΗΣΑΣ (Σ)ΩΜΑ). Entretanto,
uma “leitura errada” ser citada depois como sendo a leitura correta causaria certas dificuldades
doutrinárias e de fato não é uma explicação convincente e apurada. Alternativamente, podemos
entender que a LXX fez uma leitura interpretativa do Salmo, usando a técnica do pars pro toto,
isto é, das partes para o todo. Assim, a expressão “abristes meus ouvidos” aponta para a total
submissão do rei à Lei de Deus, fazendo-o um servo de Deus (era costume furar as orelhas dos
escravos naquela época). Assim o ouvido torna-se um exemplo do que ocorre com o corpo todo,
e de fato, todo o ser do adorador (por isso a tradução “um corpo me preparaste”).
A expressão inicial de Hb. 10.5 (entrando no mundo...) pode ser entendida tanto como a
encarnação de Jesus como sua morte na cruz. Seja como for, o corpo de Jesus fora preparado por
Deus. Corpo este que fora totalmente submisso a Deus e aos seus mandamentos, sendo por isso
“preparado” para a morte vicária que cessaria todos os outros antigos sacrifícios a Deus. Assim,
a preparação do corpo é uma interpretação correta e ampliada de “abrir os ouvidos”, pois ambas
apontam para a obediência de Jesus a Deus como um servo ao seu Senhor. A própria continuação
da citação do Salmo 40 em Hebreus 10 entende dessa maneira:

6 não te agradaste de holocaustos e ofertas pelo pecado. 7 Então, eu disse: Estou


aqui, no rolo do livro está escrito a meu respeito, para fazer, ó Deus, a tua vontade. 8
"Tendo dito acima: Tu não quiseste e nem te agradaste de sacrifícios, ofertas, holocaustos e
ofertas pelo pecado, que se oferecem segundo a lei;" 9 agora disse: Estou aqui para fazer a
tua vontade. Assim, ele invalida o primeiro, para estabelecer o segundo. 10 É nessa vontade
que fomos santificados pela oferta do corpo de Jesus Cristo, feita de uma vez por todas

Conclusão
Os dois textos que analisamos, tanto em Mateus como em Hebreus, mostram um fenômeno
que ocorre em todo o NT: em geral, os apóstolos preferiam citar a LXX ao texto hebraico, mesmo
quando a LXX aparentemente divergia do texto original e faziam isso consciente de que estavam
citando a Palavra de Deus, mesmo ela estando traduzida para o grego. De fato, a tradução
interpretativa de Isaías 7 e do Salmo 40 mostram um entendimento correto do texto pelos
tradutores, e deixou mais claro os eventos messiânicos da vida de Jesus. Longe de distorcerem o
texto original, a LXX interpretou corretamente e traduziu a Palavra de Deus com fidelidade para
que milhões de pessoas que não sabiam o hebraico pudessem conhecer a vontade revelada de
Deus em seu próprio idioma (foi o que aconteceu com a Vulgata, tradução para o latim, e as
demais traduções, que veremos ao decorrer do livro).
Não afirmamos, como Fílo, que a LXX foi diretamente inspirada por Deus, sendo inerrante e
suficiente. Apenas o texto original possui tal status. Entretanto, reitero que a LXX, e as demais
traduções fiéis das Escrituras, são a Palavra de Deus traduzida para outros idiomas.
3. A Grande Tradução

“Sem a tradução eu estaria limitado às fronteiras do meu próprio país. O tradutor é meu aliado mais importante.
Ele me introduz para o mundo”. Ítalo Calvino.

Não somente a Trindade Santa ratifica a possibilidade e a prática da tradução e o próprio


Jesus e seus apóstolos praticavam a tradução, mas também seria impossível (humanamente
falando) o cumprimento do plano de Deus e da ordem de Jesus sobre a expansão do seu
evangelho, do seu reino e da sua igreja sem a tradução das Escrituras. Veremos agora como a
Grande Comissão valida a prática da tradução bíblica.

Jesus e a Grande Comissão


Na conhecida conclusão do evangelho escrito por Mateus, lemos:

“Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu


e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e
do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho
ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século” (Mt. 28. 18-
20; ARA).

Nossa intenção não é uma exposição extensa e detalhada sobre cada palavra da Grande
Comissão (para isto, recomendo a série de livros: “A grande comissão é bem maior do que você
imagina”, de Yago Martins), mas apenas entender o texto panoramicamente e aplicar sua
relevância para a tarefa da tradução bíblica.
A autoridade de Jesus como Messias foi atestada de forma pujante em todo o evangelho
mateano. Entretanto, os eventos da paixão, precedentes à Grande Comissão, colocaram em
cheque o entendimento humano a tal autoridade. Jesus ressurge corporalmente dentre os mortos e
declara que lhe foi dada (passivo Divino) toda autoridade, não somente na terra, mas também nos
céus.
Para uma melhor compreensão desse texto, precisamos começar nossa leitura destacando
pelo menos dois importantes panos de fundo para essa passagem.
Primeiramente, há uma forte tipologia mosaica presente nesse texto. Os evangelhos de
Mateus e de João são os dois documentos no NT que mais desenvolvem uma tipologia mosaica
(talvez por estarem de olho em seu público alvo mais judaico?). Jesus é o Grande e Novo
Moisés, supremo mediador entre Deus e Seu povo, o grande profeta superior a Moisés, a quem
devemos ouvir. É possível que os cinco grandes discursos de Jesus ao longo desse evangelho
relembrassem seus primeiros leitores dos cinco livros de Moisés. Os sinais que Deus fez através
de Moisés validavam seu ministério profético, assim como os sinais e maravilhas de Jesus
comprovavam a veracidade de seu ministério messiânico. Tanto Jesus (em Mateus), como
Moisés (em Deuteronômio), terminam seus ministérios sobre um monte. Deus chama Josué
através de Moisés assim como Jesus chama seus discípulos.
O segundo pano de fundo é a autoridade do filho do homem de Daniel 7.14, que diz:

“Foi-lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de
todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino
jamais será destruído” (ARA).

Jesus possui tal autoridade do “filho do homem” da profecia de Daniel. Esses são os dois
principais panos de fundo desses maravilhosamente profundos e difíceis três versos finais de
Mateus. Estruturalmente falando, podemos ver um claro quiasmo nesses versos, o qual
seguiremos em nossa exposição:
A. (Toda) Autoridade (28.18);
B. Discipulado (19a);
C. Batismo trinitário (19b);
B´. Ensino (20a);
A´. (Oni) Presença (20.b).

1. Autoridade, presença e tradução


A primeira dupla de nosso quiasmo (A, A´), revela o paralelismo Divino-messiânico de
Jesus. Ele possui toda autoridade e estará todos os dias com seus seguidores. A esfera de domínio
de Jesus como Messias consiste no céu e na terra. Em seu extenso trabalho (Heaven and Earth in
the Gospel of Matthew, 2007) sobre o significado de “céu” (e com seu par, “céu e terra”),
Jonathan T. Pennington conclui resumindo os cinco principais significados mateanos da
expressão (que aqui poderemos apenas citar, mas não desenvolver): (1) a expressão “céu e terra”
em Mateus enfatiza a extensão do domínio de Deus; (2) está baseada no Antigo Testamento; (3)
corrobora as declarações cristológicas no evangelho; (4) fundamentam a natureza radical do
ensino e da ética de Jesus e; (5) legitima e encoraja os leitores de Mateus de que eles realmente
são o verdadeiro povo de Deus.
Se a base textual dessa autoridade está em Daniel 7, esta base está fundamentada no relato
da criação de Gênesis. O homem era para exercer o domínio sobre a criação de Deus sob Sua
vontade. Os animais da criação são simbolicamente transformados em bestas opressoras em
Daniel, mas até sobre eles o filho do homem (de Adão) exerce autoridade. Jesus, como novo
Adão e Filho do Homem, ao morrer e ressuscitar recebe toda a autoridade do Pai. “Céus e terra”
é um hebraísmo para se referir à totalidade da criação, como no início de Gênesis. Jesus inaugura
um novo Gênesis em sua própria pessoa e obra redentora. Em Mateus, “céu e terra” enfatiza o
conflito, a tensão relacional entre esses dois reinos, entre Deus e a humanidade. Esse
contraste/conflito será resolvido no escathon (fim dos tempos), quando os céus e terra serão
unidos na pessoa de Jesus. Entretanto, a tensão ao mesmo tempo começa a se resolver, mas ainda
continua, pois o escathon já começou com a primeira vinda de Jesus e será consumado apenas
em sua segunda vinda. Portanto a autoridade de Jesus é uma autoridade Divina-messiânica,
profetizada e atestada no AT, que além de validar a obra messiânica de Jesus, também configura
a identidade do povo de Deus. Essa identidade não é estática, mas missional. Por isso, a
autoridade de Jesus é o próprio fundamento e motivação para a grande comissão dos apóstolos e
da igreja.
Jesus termina esse discurso dizendo que estará com seus discípulos todos os dias,
cumprindo cabalmente o significado do nome dado a ele no começo do evangelho: Emanuel,
Deus conosco. Ele está com seu povo exercendo sua autoridade, razão pela qual nem a morte, o
diabo e o inferno podem prevalecer contra sua igreja.
O que isso tem a ver com a tradução? Apliquemos das seguintes maneiras. Primeiramente, a
autoridade de Jesus fundamenta a grande comissão, que visa estender o domínio salvador de
Jesus a todos os povos e línguas. Isso é atestado em Daniel 7.14, onde o domínio que o Filho do
homem recebe é para que “... todos os povos, nações e línguas o servissem”. Uma das formas de
trazer todas as línguas debaixo do senhorio de Cristo é traduzir as palavras de Cristo para todas
as línguas. Jesus não está dizendo que todas as línguas precisam ser anuladas para que haja
apenas o hebraico e o grego. Muito pelo contrário, cada povo deve servir a Jesus em seu próprio
idioma, o que torna a tarefa da tradução indispensável. Em segundo lugar, nós temos ciência de
quem é Jesus e de que Ele está conosco através da leitura devota de sua Palavra. A igreja de
Cristo jamais conheceria seu Salvador e sua onipresença consoladora e capacitadora se não
fossem as traduções bíblicas.

2. Ensino, obediência e tradução


A segunda parte do quiasmo (B, B´) contem a ordem de Jesus para a ida dos discípulos a
fim de fazerem mais discípulos em todas as nações, ensinando-lhes a obedecer todas as coisas
que Jesus havia ordenado. Ensino e obediência traduzem-se em discipulado.
O campo desse discipulado inclui todas as nações. Mateus usa a expressão “todas as
nações” quatro vezes, com três propósitos diferentes: (1) universalidade do testemunho (Mt.
24.14; 28.19); (2) universalidade do ódio contra os discípulos de Jesus (Mt. 24.9) e; (3)
universalidade do julgamento final (Mt. 25.32). Todos esses três usos deixam claro que Jesus
(através do relato de Mateus), sempre implica o sentido de universalidade da raça humana
quando fala de todas as nações. A expressão não é uma generalização ou exageração retórica,
mas significa literalmente a totalidade das nações, dos povos da Terra.
John Nolland, em seu comentário de Mateus (NIGTC, 2005), demonstrou que, embora
discipulado e ensino sejam duas coisas distintas em Mateus, a função de ensino possui um lugar
de importância no discipulado. Portanto, ainda que não possamos reduzir o discipulado ao mero
ensino, o verso 20 mostra que sem ensino não há discipulado real. Nas palavras de D. A. Carson,
“batizar e ensinar não são o meio de fazer discípulos, mas essas ações caracterizam o fazer
discípulos” (Comentário de Mateus, Shedd Publicações, 2011).
A tradução textual não é o tema e nem é mencionada na grande comissão. Entretanto, como
vimos no capítulo anterior, o fato de Jesus e os apóstolos traduzirem e usarem traduções do
Antigo Testamento e citarem como sendo a palavra de Deus (traduzida), torna implícito que a
prática da tradução e a grande comissão andam de mãos dadas.
Nosso estudo termina no centro do quiasmo. A fórmula trinitária do batismo é imperativa. O
batismo, expressão pública da entrada de uma pessoa no reino de Deus, i.e., na igreja, encontra
seu fundamento na confissão do nome da Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Uma realidade
espiritual interna traduz-se em manifestação externa e pública e o nome de Deus é traduzido em
seu significado histórico-redentivo último. Aba, ben e ruah, foram traduzidos do hebraico por
Jesus quando falou essa declaração em aramaico, que por sua vez fora traduzido para o grego por
Mateus. A tradução possibilita o entendimento e a confissão pública da fé salvadora na
Santíssima Trindade.

Conclusão
A história da igreja e a história das missões da igreja cristã abundantemente evidenciam
que, aonde o evangelho chegava, os missionários aprendiam a língua nativa daquele local e se
empenhavam não somente na pregação, mas também na tradução da Bíblia (ou de partes dela)
para aquele idioma alvo.
Paul Eagle (em 1985) resume bem a importância da tradução textual:

“À medida que este mundo encolhe como uma laranja passada e todos os seus
povos e todas as suas culturas se aproximam mais (embora relutantes e cheios de suspeita),
é possível que a frase crucial para os nossos anos restantes na Terra seja simplesmente:
TRADUZIR OU MORRER. A vida de toda criatura na Terra pode um dia depender da
tradução instantânea e correta de uma palavra”.

O peso da frase de Eagle se múltipla infinitamente quando aplicada à fé cristã. A


proclamação do evangelho, de modo fiel e claro, é o meio pelo qual Deus concede vida aos
pecadores espiritualmente mortos. Podemos dizer que, ou o evangelho é traduzido, ou a
humanidade morre sem esperança. A vida de toda criatura na Terra não apenas pode depender,
mas de fato depende da tradução correta da Palavra de Deus. Lutero dizia que se as línguas não
permanecessem, o evangelho pereceria. Não apenas as línguas originais do evangelho, mas
também suas traduções. O evangelho pereceria, pois o evangelho é a proclamação da verdade (da
pessoa e obra de Cristo), e proclamação é linguagem que precisa ser entendida, e quando for
necessário, traduzida. Portanto, a tradução é uma obra importante a ser feita na história da
redenção, enquanto Deus executa soberanamente seu plano salvador, Ele chama e capacita
pessoas para a difícil e gratificante tarefa da tradução bíblica. Traduzir ou morrer, eis a questão!
4. A Tradução e o Pentecostes

“Uma grande era de Literatura é, talvez, sempre uma grande era de traduções”. Ezra
Pound.

O presente capítulo não tem por objetivo enveredar para os diversos e intermináveis debates
a respeito da continuidade ou cessação dos dons espirituais, ou sobre a natureza e significado do
dom de línguas. No entanto, será impossível prosseguir sem o autor se posicionar a respeito de
algumas poucas questões. Vale ressaltar que a argumentação desse capítulo em relação à
tradução bíblica não depende estritamente de nossas posições exegéticas concernentes a esta ou
aquela passagem.
Dito isto, podemos prosseguir para o nosso alvo. O AT prometeu um derramar do Espírito
de Deus no fim dos tempos (cf. Ez. 36. 26-27; Ez. 37.14; Ez. 39.29; Is. 32.15; Is. 44.3; Jl. 2.28-
3.2 (At. 2.17-18)). Essas promessas foram cumpridas na descida do Espírito em Pentecostes,
como Lucas relatou em Atos 2. É evidente que a vinda do Messias e a vinda do Espírito
inauguraram o fim dos tempos, a era escatológica. Pedro, ao explicar o fenômeno, cita Joel 2,
acrescentando que isso aconteceria “... nos últimos dias” (At. 2.16-17).
O Espírito desceu como “línguas de fogo e como um som de vento impetuoso” (At. 2.2-3).
Ao receberem O Espírito, os discípulos de Jesus começaram a falar em outras línguas. O sentido
mais claro e evidente de “outras línguas” (Gr. ἑτέραις γλώσσαις) é que eles começaram a falar
em outros idiomas. Mas independente do leitor concordar ou não com essa interpretação, o texto
deixa claro que as pessoas que ouviam os discípulos de Jesus, ouviam-nos em seus próprios
idiomas:

“Habitavam então em Jerusalém judeus, homens piedosos, de todas as nações que há


debaixo do céu. Ouvindo-se, pois, aquele ruído, ajuntou-se a multidão; e estava confusa,
porque cada um os ouvia falar na sua própria língua. E todos pasmavam e se admiravam,
dizendo uns aos outros: Pois quê! não são galileus todos esses que estão falando? Como é,
pois, que os ouvimos falar cada um na própria língua em que nascemos? Nós, partos,
medos, e elamitas; e os que habitamos a Mesopotâmia, a Judeia e a Capadócia, o Ponto e a
Ásia, a Frígia e a Panfília, o Egíto e as partes da Líbia próximas a Cirene, e forasteiros
romanos, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes - ouvimo-los em nossas línguas,
falar das grandezas de Deus (Atos 2.5-11)”.

Reitero que nosso argumento não depende da interpretação da expressão “outras línguas”,
pois quer o leitor entenda que sejam outros idiomas humanos, quer entenda que eram línguas
estáticas (como praticada pelos movimentos carismáticos hoje), todos nós podemos concordar
que quem ouvia, entendia em seu próprio idioma nativo.
Desse modo, as “grandezas de Deus” (τὰ μεγαλεῖα τοῦ Θεοῦ) eram proclamadas a todos os
povos presentes, e ao longo da história da igreja, proclamadas de fato a todos os povos. Temos
então uma ratificação da parte do próprio Deus, não apenas permitindo a tradução das suas
Palavras para todos os idiomas do mundo, mas de fato ordenando e realizando essa tradução para
a proclamação do evangelho.
Como vimos no capítulo anterior, a grande comissão só é possível por causa das traduções
(e vice-versa). De nada iria adiantar alguém pregar o evangelho em grego para um público de
fala portuguesa. Ninguém entenderia nada e mataria a missão evangelizadora.

Pentecostes como reversão de Babel


O pano de fundo de Atos 2 é muito rico. Sem contar a cadeia de citações bíblicas no sermão
de Pedro, temos na descida do Espírito, todo o ensino do AT sobre a vinda do Espírito. Além
disso, Greg Beale sugere que Êxodo 19 e Isaías 30.27-30 estão por trás da forma teofânica da
descida do Espírito como “vento impetuoso e línguas como de fogo”.
Podemos inferir também que a reversão da maldição de Babel em Gênesis 11 encontra um
eco distante em Atos 2. A confusão das línguas em Babel foi resultado do pecado de unificação
dos povos. Essa unificação pode ter sido uma forma daquele povo “escapar” de um novo dilúvio,
o que mostraria uma falta de confiança na Palavra de Deus que disse que não destruiria a terra
com água novamente. Está também implícita que esse ato de unidade é uma rebeldia contra o
mandamento de Deus para a humanidade crescer e encher a terra (Gn. 1.26-28). Seja como for,
aquela unificação e construção da torre foi uma atitude pecaminosa, punida com maldição por
Deus. Essa maldição começou a ser revertida com a inauguração da nova era através da descida
do Espírito. Finalmente o mandado de Gn. 1.26-28 começou a ser cumprido por aqueles que
estavam unidos ao Messias pela fé. A igreja se multiplica, não com filhos naturais, mas com
espirituais, em obediência a Palavra do Evangelho, espalhando o Éden aos confins da Terra.
Deus reuniu em Atos 2 representantes dessas nações dispersas para se unirem em Jerusalém
para que eles recebessem a benção de entenderem linguagens diferentes, como se todas essas
línguas fossem uma, e o resultado foi que todos ouviram a mesma mensagem.
Os estudiosos do Antigo Oriente Médio mostraram que essas Torres (como a de Babel)
eram como “Torres-templos”, muito comum na antiga Mesopotâmia. O propósito dessas torres
era “forçar” as divindades a descerem na terra para abençoar o povo. Eram como portais entre o
céu e a terra, locais onde as divindades poderiam até mesmo “tomar banho”.
Portanto, se um eco longínquo de Gn. 11 está presente em Atos 2, isso mostra que não é o
homem que obriga Deus a descer sobre a terra, em um templo feito por mãos humanas, mas sim
que Deus soberanamente desce sobre seu povo, inaugurando o novo e verdadeiro templo, feito
pelo próprio Deus, que é seu próprio povo.
Muitos críticos da reforma acusam os reformadores de terem iniciado uma verdadeira Babel
interpretativa, um subjetivismo hermenêutico absoluto que impossibilita o diálogo teológico.
Acredito que é exatamente o contrário. O Sola Scriptura e a prática da tradução bíblica da
reforma protestante salvou a igreja de se tornar uma torre de Babel. Ao se unirem em um só
lugar, o povo de Gênesis 11 estava desobedecendo à palavra de Deus que havia ordenado que o
ser humano se espalhasse, crescesse e se multiplicasse sobre a Terra. Algo análogo ocorria na
época de Lutero. A Instituição Romana, ao não traduzir a Bíblia em latim (Vulgata) para a língua
de seus fiéis, estava impedindo o crescimento da verdade do evangelho e do corpo de Cristo.
Quando Deus desceu na reforma, Ele não confundiu as línguas, mas libertou Sua palavra do
cativeiro monolinguístico e, com as traduções, Seu povo voltou a crescer numérica e
espiritualmente. A Babel hermenêutica não foi construída na reforma, antes, os reformadores
lutaram contra a Babel espiritual e institucional da época.
O apóstolo Paulo pensava de forma análoga sobre o dom de línguas. Em 1Coríntios 14,
Paulo argumenta que a profecia edifica a igreja, enquanto o dom de línguas edifica apenas o
próprio falante, e que, exatamente por esse motivo, o dom de profecia seria superior. Paulo diz:

“6 Ora, irmãos, se eu for até vós falando em línguas, que benefício vos trarei, se
não vos falar por meio de revelação, ou de conhecimento, ou de profecia, ou de ensino? 7 O
mesmo acontece com as coisas que não têm vida e emitem som, como a flauta e a harpa. Se
não formarem sons distintos, como se saberá o que se toca na flauta e na harpa? 8 Porque,
se a trombeta tocar de modo incerto, quem se preparará para a batalha? 9 Assim também
vós, se com a língua não pronunciardes palavras que se podem compreender, como se
entenderá o que dizeis? Pois estareis como que falando ao vento. 10 Por exemplo, há muitos
tipos de línguas no mundo, e nenhuma delas sem sentido. 11 Se, pois, eu não souber o
sentido da língua, serei estrangeiro para quem fala, e quem fala será estrangeiro para mim.
12 Assim também vós, já que estais desejosos de dons espirituais, procurai desenvolver os
que servem para a edificação da igreja. 13 Por isso, aquele que fala em uma língua, ore para
que a possa interpretar (1Co. 14. 6-13; A21)”.

Paulo preferia falar cinco palavras compreensíveis à igreja, do que falar dez mil palavras em
outra língua que ninguém entenderia (1Co. 14. 19). Por isso, quem falasse em outra língua no
contexto público da igreja, necessariamente precisaria de alguém para interpretá-lo (1Co. 14.27).
Essa interpretação (em grego, διερμηνεύω), significa tradução, explicação, ou seja, interpretar
uma língua à outra. O alvo é a edificação da igreja por meio do entendimento da verdade. Era o
mesmo argumento dos reformadores e de todos os que defendem a prática da tradução bíblica.
Concluímos que a tradução da mensagem do evangelho para todos os idiomas é um evento
escatológico, capacitado pelo Espírito, ordenado por Jesus e ratificado por Deus, Pai.
Confessamos que Jesus, através da sua morte, comprou para Deus homens de toda tribo, língua,
povo e nação (Ap. 5.9). Assim, a não tradução da Bíblia para outros povos é como a unificação
da Babel, um ato explícito de rebeldia contra o mandamento Divino de pregação universal das
boas novas de Jesus. É negar a ação capacitadora do Espírito e acreditar no mito da superioridade
de uma língua sobre as outras. Como Ezra Pound uma vez disse, “uma grande era de Literatura é,
talvez, sempre uma grande era de traduções”. De modo infinitamente mais significativo, a grande
e nova era inaugurada pela descida do Espírito é a grande era das traduções da Palavra de Deus
para todos os povos. As grandezas de Deus foram imediatamente traduzidas para todos os
idiomas que contemplaram essa inauguração escatológica, e são traduzidas até hoje para centenas
de outros idiomas, até que toda língua confesse que Jesus é o Senhor, para a glória de Deus Pai.
Parte II: Alguns problemas e tópicos da Tradução
5. Breve História da Tradução

“Tradução é a arte da falha”. Humberto Eco.

A teoria e a prática da tradução textual possui uma história rica e ampla. Não iremos aqui
destrinchar todas as ruas dessa cidade-Tradução, mas iremos ter um rápido passeio por suas
principais avenidas. Desde as primeiras obras traduzidas que conhecemos, até tempos recentes, a
teoria e prática da tradução sempre teve um objetivo prático: proporcionar para pessoas de
determinada língua a possibilidade de lerem obras em outros idiomas. Além desse objetivo
comunicacional e cultural, pressupunha-se a intertraduzibilidade universal de todos os idiomas,
isto é, todas as línguas poderiam ser traduzidas para qualquer outra língua. Assim, tradução é
uma função básica, fundamental da linguagem. Esses conceitos básicos e tradicionais foram
questionados pelos desconstrucionistas recentemente, mas iremos tratar dessas questões no
próximo capítulo.

A letra mata, mas o espírito...


O primeiro tradutor europeu que conhecemos é Lívio Andrônico, no século III a.C., poeta,
dramaturgo e ator romano, que além de ter escrito a primeira obra literária em latim, também
traduziu a Odisseia de Homero, em versos, do grego para o latim.
Mais tarde, dentro dessa longa tradição de tradução, Cícero (106–43 a.C.) aprimora a teoria
da tradução (que praticamente não existia antes dele). Segundo ele, não devemos traduzir
“verbum pro verbo”, isto é, palavra por palavra, conceito empregado depois por Horácio em Ars
Poetica (10 a.C.). Cícero também faz distinção entre a tradução propriamente dita, realizada pelo
intérprete (interpres), e aquela tradução realizada pelo orador, uma forma superior que subiu ao
reino da retórica e da imitatio – o que chamaríamos hoje de adaptação.
A partir da morte de Alexandre o Grande em 323 a.C., a cultura grega está reinando
absolutamente, com ampla difusão, se infiltrando em todas as culturas locais, casando com elas e
procriando uma miríade de filhos helênicos. Ninguém escapou de suas suaves garras, nem a
milenar cultura judaica. Os escritos judaicos foram naturalmente traduzidos do hebraico para o
grego entre o século III e II a.C. A pedra de Roseta, um fragmento de uma estela de granodiorito
do Antigo Egito, foi traduzida para o grego em 196 a.C. Ainda que Cristo falasse em aramaico, e
os apóstolos fossem todos judeus, o Novo Testamento foi escrito em grego.
O Império Romano não escapa à regra. As famílias mais ricas, ainda que bilíngues,
sempre priorizavam o grego. Os escritos em latim, tanto em filosofia quanto em literatura, não se
comparavam com os gregos. Assim, as traduções das obras gregas para o latim visavam
estabelecer o latim como língua superior, imitando o que havia de melhor na cultura helênica,
estabelecendo a supremacia de Roma no reino intelectual. Esse objetivo foi alcançado
paulatinamente, estendendo- se por toda a Idade Média e além. A supremacia do Latim foi
suplantada depois da Idade Média pelas línguas vernáculas, especialmente o francês.
Jerônimo (347 – 420 d.C.) traduziu a Bíblia para o latim, versão conhecida como Vulgata.
Vivendo por um tempo como eremita no Adriático, estudou filosofia e retórica, aprendeu latim,
um pouco de grego e depois um pouco de Hebraico. Traduziu o Antigo Testamento a partir do
texto hebraico e não de sua tradução do grego – que até então, era o texto-fonte para as
traduções. Ele conhecia a decisão do concílio de Jâmnia no início do segundo século, de rejeitar
a LXX por conter erros de tradução e heresias helenísticas. Sua tradução diretamente do hebraico
contrariou os estudiosos da época, que sempre preferiam a LXX, até mesmo Agostinho,
semelhante à Fílo, a considerava inspirada. Estudiosos modernos desconfiam do conhecimento
de hebraico de Jerônimo, e alguns suspeitam que o texto fonte de sua tradução fosse a famosa
Hexapla, uma versão do AT em seis colunas lado a lado, organizada por Orígenes, que
originalmente tinha 6.000 páginas em 50 volumes e continha uma coluna em hebraico, outra
chamada “Secunda” (hebraico transliterado em grego), a terceira coluna era a versão de Áquila
de Sinope, a quarta era a versão de Símaco, o Ebionita, a quinta era uma recensão da LXX e a
última coluna era a versão de Teodócio.
Quando Jerônimo traduzia algum texto não sagrado, ele não traduzia palavra por palavra,
mas ideia por ideia (como vimos em Cícero). Já as Escrituras, ele preferia palavra por palavra,
pois até mesmo a ordem das palavras sagradas era um mistério (para ele). Assim, Jerônimo fez
uma distinção entre o texto sacro e os textos pagãos. Essa ideia tem influência de Fílo de
Alexandria, que também preferia a tradução palavra por palavra, visto que essa era a única forma
de não alterar o texto inspirado.

A mulher insensata: bela, mas infiel


O grego foi dando lugar ao latim, e esse por sua vez ao francês. O poeta francês Joachim du
Bellay, em sua obra de 1549 (La Défense et illust. de la langue française) com influência de
Cícero, defendia que a imitação aos clássicos não deveria ser algo servil, pelo contrário, deveria
servir à língua francesa. Esse tipo de tradução – que não era a tradução palavra por palavra, nem
a de ideia por ideia – era uma licença para transformar o original através da “imitação”. Isso é o
que chamo de adulteração mimética, análogo à mulher adúltera do livro de Provérbios, tão
sedutora quanto infiel.
Era muito comum fazer traduções de traduções. Traduziam-se os clássicos gregos e latinos a
partir do francês (língua mais conhecida da época) para o inglês, por exemplo. O conceito de
autoria e originalidade do Romantismo ainda não existia oficialmente. Assim, as distinções entre
original e tradução, autor e tradutor eram como muros de papel, se é que existia algum muro. O
plágio se torna uma praga a ser combatida somente no século 18. Os tradutores não eram vistos
como traidores, pois a infidelidade era muito relativa. Em meu julgamento, creio que a
criatividade usada a partir dos aspectos linguístico e estético, quebrava algumas leis do aspecto
ético, aquela responsabilidade moral e pactual que o tradutor deve ter para com o autor e sua
obra. Obviamente a estética não deve ser banida em nome da ética, mas todos os aspectos da
tradução devem trabalhar harmoniosamente.
Lutero (1483 – 1546), com sua tradução da Bíblia para o alemão, não foi meramente mais
uma tradução corriqueira na história, mas o próprio nascimento da língua alemã moderna, algo
parecido com o que Dante fez com o italiano. A imitatio dos latinos não encontrou lugar na mesa
de Lutero, visto que não se deve adulterar a Palavra de Deus. Entretanto ele disse:

Não é às palavras da língua latina que devemos perguntar como se deve falar
alemão, como fazem esses asnos; mas é à mãe em seu lar, às crianças nas ruas, ao homem
do povo na praça do mercado que é preciso perguntar, lendo em seus lábios como eles
falam, e é depois disso que se deve traduzir, porque assim eles compreenderão e se darão
conta de que lhes estamos falando em alemão.

Lutero, diferente de Jerônimo, entendia que uma tradução literal não era necessariamente
“palavra por palavra”. Em 1530, ele escreveu: “Eu não me afastei muito deliberadamente das
letras, antes tomei o maior cuidado, no exame de uma passagem, para ficar tão próximo quanto
possível dessas letras, sem delas me afastar muito livremente. [...] preferi forçar a língua alemã,
antes que me afastar das palavras”.
William Tyndale (1434 – 1536) foi um pastor protestante e acadêmico inglês, mestre em
Artes na Universidade de Oxford. Muito influenciado por Lutero, Tyndale também queria que a
Bíblia fosse lida por todas as pessoas. John Wycliffe havia traduzido as Escrituras do latim para
o inglês em 1388, mas Tyndale empreendeu sua tradução a partir das línguas originais das
Escrituras. Franklin Ferreira (ecoando Tony Lane) caracteriza Tyndale como “o fora-da-lei de
Deus” porque ele tinha que, literalmente, contrabandear suas traduções para o povo ter acesso a
elas, pois era impossível pelas vias legais.
No início do século XVII, o rei Tiago I (James) reuniu 50 estudiosos para fazerem uma
nova tradução da Bíblia em língua inglesa. Essa tradução ficou conhecida como a Versão
Autorizada do Rei Tiago (em inglês, Authorized King James Version). O que a tradução de
Lutero foi para a língua alemã, a Bíblia King James foi para o inglês, isto é, um grande
monumento da literatura inglesa, cuja influência sobre a língua e cultura inglesa é imensurável.
O texto possuía uma prosa compacta, ricas imagens e um incrível poder de ação sobre o povo.
Era marcado por um estilo mais oral que a tradução do latim, que nutriu a imaginação moral e
intelectual do povo inglês, que a lia diariamente. Os esforços do mártir Tyndale frutificaram cem
por um, visto que aproximadamente 80% do Novo Testamento da King James derivaram da
tradução do santo “criminoso”.

O período contemporâneo: Século XVII ao XIX


Dryden, em 1680, rejeita a tradução como imitação em seu prefácio às Epístolas de Ovídio.
Marcadamente moderno, ele distingue três formas da tradução: A metáfrase, que é a tradução
literal; a tradução propriamente dita; e a paráfrase, que é a imitação. A primeira era na maioria
das vezes inadequada, a segunda deveria se concentrar mais no sentido do que nas palavras, e a
imitação era uma perversão tal, que se tornava outra obra – diferente da original. Com isso,
Dryden dá um tiro de bala de prata na noção de “Belas infiéis” na tradução.
Conforme a análise de Michael Oustinoff, a tradução no século XIX era marcadamente
literal. Vemos isso de forma explícita na tradução feita em 1836 por Chateaubriand, da obra
“Paraíso Perdido”, de Milton. Entretanto, traduções assim não eram um literalismo mecânico
feito com um mero dicionário, pois havia muita dinâmica nelas. Goethe no “Divã ocidental-
oriental” (1819), também distinguiu três tipos de tradução: A primeira era uma tradução cujo
alvo era transmitir a obra original tal como era, como por exemplo, a tradução da Bíblia feita por
Lutero; a segunda era traduzir a obra como se ela tivesse sido escrita na língua e cultura
receptora, substituindo a obra original. A terceira categoria era uma síntese das duas primeiras,
um tertium quid, cujo significado original é transportado ao seio da língua tradutora.

Período contemporâneo: Século XX


As teorias modernas da tradução começam com o estruturalismo. Roman Jakobson (1896 –
1982), pensador russo e um dos mais importantes linguistas do século XX, dividiu a área da
tradução em três subáreas: tradução intralingual, que é a reescrita de uma língua para a mesma
língua; tradução interlingual, a tradução propriamente dita; e a tradução intersemiótica, ou
transferência, que é a tradução de sinais de uma língua para outros sistemas de sinais (como arte
e música). Essa divisão amplia o campo da tradução indefinidamente, abarcando toda a rede
intersemiótica de língua e cultura e, conforme Edwin Gentzler, ela toca todas as disciplinas e
discursos.
Seguindo o rastro apenas da segunda divisão – a tradução propriamente dita – vemos que
desde 1960, há cinco abordagens sobre a tradução que são influentes até hoje: 1. A oficina norte-
americana de tradução; 2. A “ciência” da tradução; 3. Os primeiros estudos da tradução; 4. A
teoria dos polissistemas e; 5. A desconstrução (esta última, veremos no próximo capítulo).

A oficina norte-americana
Até 1970 nos Estados Unidos, a tradução era relegada a uma atividade secundária, indigna
de uma atenção acadêmica mais séria. Segundo Gentzler, em 1964, Engle havia contratado um
diretor interino para o que se tornaria a primeira oficina de tradução nos EUA, oferecendo
crédito acadêmico para traduções literárias. Esse projetou cresceu e se expandiu para diversas
Universidades americanas renomadas (como Yale, Princeton, entre outras).
Essas oficinas de tradução declaravam-se “ateóricas”. Essa ingênua crença na neutralidade
científica é herança dos falidos iluminismo e positivismo. Geralmente, elas reforçavam uma
ideologia humanista relativamente conservadora. O primeiro e melhor exemplo da metodologia
das oficinas é I. A. Richards, em seu Practical Criticism. Richards se orgulhava por não ter uma
metodologia predeterminada. Embora sua abordagem aparentemente favorecesse múltiplas
leituras, libertadoras e individualistas, o alvo dele era o exato oposto, a saber, proporcionar uma
compreensão “perfeita”, que reduziria a multiplicidade de respostas a um todo unificado e
correto. Essa fé na capacidade humana de perfeição mediante treinamento está longe de ser algo
neutro (e possível).
Embora nesse livro estejamos defendendo a prática da tradução, pressupor que podemos
atingir uma tradução perfeita é não levar em conta os efeitos do lapso radical do coração
humano. Além disso, aplicado à tradução bíblica seria um projeto autodestrutivo, pois cada
tradução clamaria para si o status de versão “perfeita e definitiva”, e seriam necessárias apenas
duas traduções diferentes com esse discurso – e com inevitáveis diferenças – para colocar por
terra essa pretensão de perfeição.
Ezra Pound (1885 – 1972) concentrava-se em detalhes, palavras individuais e
fragmentações, fundamentado no seu conceito de energia na língua, que se distanciava da
tradução adequada de Richards. A teoria de Pound passou basicamente por dois momentos:
primeiro um imagismo que ainda continha elementos abstratos e um segundo momento
vorticista, que se concentrava na ação e nos “detalhes luminosos”. Esse vórtice era o ponto
máximo da energia. Assim, Pound não se concentrava muito no significado do texto, e sim, em
seu “movimento”. Portanto ritmo e dicção se tornaram mais importantes que a sintaxe. Embora a
teoria de Pound seja interessante por ter percebido as analogias antecipatórias dos centros de
significados dos aspectos físico e cinemático (energia e movimento) nos textos, é inevitável cair
em antinomias quando descentralizamos os aspectos linguístico e estético dos textos e de suas
traduções. Pound é acusado (ou louvado) por ter libertado a tradução de suas amarras literalistas.
Frederic Will continuou a teoria de onde Richards parou, embora com mudanças
significativas. Acreditava na Nova Crítica e no relativismo cultural. Com ecos longínquos de
Kant (e posteriormente de alguns filósofos da linguagem), acredita também que a realidade é
criada pela linguagem e que a essência do “eu” é o amor. Assim ele reduz todo o complexo da
realidade a seu aspecto linguístico e a complexidade humana é reduzida a seu aspecto ético. Digo
que ele reduziu a realidade a seu aspecto linguístico e não somente ao eu falante, pois
paradoxalmente Will não acreditava que os símbolos eram uma mera criação humana. Will
argumenta que dar nome às coisas é a atividade fundamental do ser humano, sem a qual seríamos
selvagens. Sem dúvida, a ação de nomear foi uma das primeiras coisas que Adão fez após ser
criado (Gn. 2.19). A possibilidade de dar nome às coisas e de se comunicar significativamente
com o outro é uma das funções da Imago Dei (e só é possível porque refletimos o Deus que se
comunica), mas não é nossa atividade/propósito mais fundamental. Will “sentia por trás” da
tradução e do original a forma ideal do poema. Além dessa declaração ser completamente
subjetiva, suas conclusões não confirmam suas premissas.

A “ciência” da tradução
A ingenuidade teórica e o subjetivismo da oficina americana não proporcionaram uma
teoria própria e robusta à tradução. Até 1960, o estruturalismo iniciado por Ferdinand de
Saussure teve pouco valor para a teoria da tradução, pois as gramáticas eram descritivas e não
comparadas. Noam Chomsky, ao estabelecer uma nova teoria da gramática, teve grande
influência sobre a teoria da tradução - especialmente os livros: Syntactic Structures (1957) e
Aspects of the Theory of Syntax (1965). A gramática gerativa transformacional estabeleceu as
bases e deu credibilidade para a teoria da tradução de Eugene Nida. O foco de Nida era a
tradução Bíblica e, embora tivesse começado a escrever em 1950 e 1960, portanto um pouco
antes do Chomsky, ele encontrou no gerativismo chomskyano um fundamento linguístico para
suas reflexões sobre tradução bíblica.
A tradução bíblica tem gerado mais dados em várias línguas do que quaisquer outros textos
traduzidos, além de envolver mais tradutores diferentes do que qualquer outra atividade de
tradução.
Podemos resumir a teoria de Chomsky, in nuce, da seguinte maneira: (1) um componente-
base feito de “regras para estrutura de frase” que gera (2) uma estrutura profunda, que é mudada
por regras transformacionais, em (3) uma estrutura superficial. Nida simplifica o esquema de
Chomsky, usando apenas os dois últimos elementos em sua teoria da tradução. Tratar sobre
Chomsky e Nida (e os demais autores) de forma detalhada não é nosso propósito aqui.
Entretanto, existem diferenças entre ambos. Nida prefere fazer o movimento inverso de
Chomsky, ou seja, partir da superfície do texto original até sua estrutura profunda, transferir a
estrutura profunda para a estrutura profunda de outra língua e então gerar a estrutura superficial
na língua a ser traduzida. Infelizmente, a diferença entre exegese e tradução começa a
desaparecer na obra de Nida, visto que o modo de transmitir a mensagem é mais importante que
a explicação em si. Segundo Gentzler, a revelação se equiparou com a tradução (velho problema
de Fílo?).

Primeiros estudos de tradução


Até agora, vimos que por volta de 1970, havia dois modos de pesquisa de tradução: Uma,
com foco literário, rejeitava pressuposições teóricas e regras normativas enquanto a outra se
concentrava em questões linguísticas, arrogando para si uma robustez científica, rejeitando o
subjetivismo e soluções alógicas. André Lefevere (1945 – 1996) publicou Translation: The
Focus of the Growth of Literature Knowledge em 1978, argumentando que ambas as escolas (as
quais ele chama de hermenêutica e neopositivista, respectivamente) fundamentavam-se em
“mútuo desentendimento (intencional)”.
A “escola” analisada agora flui do formalismo russo, que buscava o conceito de
“literalidade”, focando e separando o aspecto literário dos demais aspectos como o psicológico,
antropológico, histórico, cultural, etc. Essa afirmação da autonomia da literalidade, ainda que
importante para a reflexão sobre a tradução acaba por cair em mais um reducionismo. Os
formalistas, rejeitando a ideia de estruturas profundas de Chomsky, analisam o texto tanto de
forma sincrônica, como diacrônica (para usar as categorias de Saussure). O conceito mais
conhecido dos formalistas russos é o “ostranenie”, o artifício de desfamiliarização, que colocava
o texto dentro de sua tradição, focando não o significado e o original, mas sim aqueles elementos
que tornavam o texto (nas palavras de Gentzler) especial, diferente e estranho.
Dentre seus principais teóricos, podemos destacar Jiří Levý (1926 - 1967), František Miko
(1920 - 2010), Anton Popovič (1933 – 1984) – esses do grupo checo e eslovaco de estudos da
tradução – além de James Stratton Holmes (1924 - 1986), Raymond van den Broeck e André
Lefevere.

Teoria dos polissistemas


Teóricos da tradução uniram os formalistas russos posteriores com a teoria dos
polissistemas de Itamar Even-Zohar, um sociólogo, linguista e crítico israelense, professor na
Universidade de Tel Aviv. A teoria dos polissistemas investiga o conjunto de relações,
começando com a Língua e literatura (inicialmente a hebraica), avançando até estudos culturais e
sociológicos. Um dos estudiosos de Tel Aviv mais ávidos por testar a teoria dos polissistemas foi
Gideon Toury (1942 – 2016) que desenvolveu uma teoria da tradução abrangente, que era
voltada para o texto alvo.

Conclusão
Até aqui, parece-nos que as teorias da tradução, desde seus primórdios, sempre caiu na luta
entre ser fiel ao texto, ou ao significado passado, ou ainda a estética e energia do texto e sua
transmissão. Seguindo os movimentos da Hermenêutica, cujo foco muda de autor, para o texto,
para o leitor, para a comunidade leitora, os tradutores por vezes focam no texto original, no texto
traduzido, no impacto no leitor, etc.
Todas essas teorias sobre a tradução possuem uma cosmovisão, uma filosofia ou ideologia
por trás. A maioria (se não todas) acredita na autonomia, tanto do indivíduo (quer seja o autor, o
tradutor, ou o leitor) como dos significados linguísticos em relação a Deus. Ainda aguardamos
uma teoria da tradução e da linguagem como um todo que não seja reducionista e que entenda
esses aspectos da criação dentro da cosmovisão cristã.
6. Desconstrução e tradução

“Na verdade, nada, é uma palavra esperando tradução.” Humberto Gessinger

Até aqui, vimos várias correntes teóricas sobre a tradução textual. Embora a quantidade de
teóricos seja relativamente grande, e suas metodologias e resultados possuam divergências – às
vezes irreconciliáveis – todos eles compartilhavam de pelo menos três pressupostos: 1. Há uma
diferença entre o original e a tradução (o primeiro se impõe sobre o segundo); 2. Alguma noção
de equivalência quer seja uma experiência estética, equivalência linguística, função literária,
aceitabilidade social, etc; 3. A possibilidade da tradução textual é uma realidade.
Os desconstrucionistas se dedicam a transformar essas concepções de forma radical. A
tentativa de virar o mundo de ponta cabeça é deveras uma tarefa para Hércules ou Atlas. A
estrutura essencialmente onírica desse movimento se dá em uma série de perguntas desafiantes:
1. E se o original dependesse da tradução e não vice-versa? Essa questão colocaria o
fundamento contingente do original, não em algum atributo intrínseco do original, mas
em suas próprias traduções. Assim a tradução seria o ἀρχῇ (origem) do original. Esse
movimento seria o mesmíssimo feito na raiz idólatra do coração humano, que coloca a
criatura no lugar do Criador, o vaso como superior ao oleiro e a obra de arte como a
criadora do artista;
2. E se o significado de um texto fosse determinado pela tradução e não pelo original?
Aqui passamos da origem contingente para a origem semântica. Pergunto-me sobre os
motivos-base desse tipo de pensamento teórico. Ora ateísta, ora panteísta, mas sempre
auto-divinizante. Digo isso devido à estrutura significativa da realidade. Se, como diria
Dooyeweerd, o modo de ser de tudo o que existe é significado, ou pelo menos,
significante (como prefiro), então a questão que podemos levantar é: qual é a origem
desse significado? Se a origem do significado está na própria criação, então estamos
confessando o credo panteísta. Se afirmarmos que a realidade não possui significado,
confessamos a fé ateísta. Se crermos que nós somos a origem do significado, caímos na
velha lorota da serpente. As duas últimas fés sempre andam de mãos dadas. Como é
impossível o ser humano viver sem significados (os existencialistas que o digam), pois
os significados que discernimos é o nosso lar (M. Polanyi), ateus professos praticam a
autodivinização, conferindo a si mesmos o status de criadores dos significados da
realidade. Isso nada mais é do que viver uma ilusão kantiana; Se a tradução é
determinante para o original e não vice-versa, o original é destruído, se torna, quando
muito, inútil.
3. E se o significado não tiver uma identidade fixa e determinada, e sim mudar toda
vez que passar por uma tradução? Essa pergunta parece ressuscitar o pré-socrático
Heráclito (aprox. 535-475 a.C.), para quem tudo é movimento, fluxo (πάντα ῥεῖ). O
aspecto modal cinético é absolutizado. A solução não é Parmênides, mas sim Cristo.
Confessamos que Cristo sustenta todas as coisas pela sua Palavra (Hb. 1.3), inclusive a
estabilidade dos significados linguísticos. Remover Cristo da equação é retirar a própria
possibilidade de significados estáveis, o que seria autodestrutivo, pois afirmar que não
existe estabilidade no significado pressupõe estabilidade de significado para se dizer
isso.

Muitas outras questões foram levantadas, como por exemplo: O que existe antes do
original? Uma ideia? Uma coisa? Nada? Será que nós escrevemos as traduções, ou são as
traduções que nos escrevem? Assim como Kant investigou a própria possibilidade do
conhecimento, os desconstrucionistas questionam a própria possibilidade da tradução, ao mesmo
tempo em que a elevam a outro nível. Nesse ensaio, podemos apenas iniciar pequenos esboços
de críticas (como os acima e os que virão), os quais esse autor espera que sejam suficientes para
nossos propósitos.
Embora a desconstrução não tenha criado uma teoria da tradução, ela se vale da tradução
para questionar a natureza e os limites da linguagem. Jacques Derrida afirma que a desconstrução
e a tradução estão interligadas. A tradução coloca em prática a diferença entre significado e
significante (Derrida, Positions, 1981, p. 21). Para ele, a própria filosofia se origina na tradução,
ou na tese de traduzibilidade.
Na base do pensamento de Derrida está o pressuposto de que não há um núcleo (Kernel), ou
estrutura profunda que possamos discernir, representar, traduzir ou fundamentar uma teoria. E é
aqui que as aspas entram em ação. Derrida “fundamenta” sua “teoria” desconstrucionista na não
representatividade (ainda assim representando-a?). Só o que existe são diferentes correntes de
significação, que coloca os originais e suas traduções numa relação de simbiose.
Negando a separação entre o texto-fonte e o texto-alvo, os desconstrucionistas dizem que
não existem formas independentes da língua. Assim a linguagem se refere a ela mesma e não ao
mundo externo. Temos então um regresso infinito de significações, no qual o texto original é
apenas a tradução de outra tradução e assim por diante (sabemos que o regresso infinito é uma
impossibilidade lógica e metafísica, mas tais “estudiosos” não gostam nem de uma nem da outra.

O início do movimento
A desconstrução emerge na França, no fim da década de 1960, em meio à revolução sócio-
política. Os acontecimentos de 1968 ameaçavam derrubar o regime de Charles De Gaulle (1890
– 1970) com os barris de pólvora das ideologias juvenis. Nesse ínterim, um grupo de formalistas
uniu-se a um grupo de esquerdistas para publicarem seus trabalhos no jornal Tel Quel (Paris),
nome que ficou vinculado a esse grupo. Dentre os membros que publicavam no Tel Quel, no fim
de 1960, podemos destacar Julia Kristeva, Marcelin Pleynet, Phillippe Sollers, Jean Pierre Faye,
Jacqueline Risset e Jean Ricardou, além de membros mais temporários como Roland Barthes,
Tzvetan Todorov, Pierre Boulez, Houdebine, Scarpetta e Derrida. Louis Althusser também
praticava uma forma de desconstrução (junto com uma dialética marxista e uma metodologia
científica), embora não fosse membro do grupo.
Esse grupo estava lendo tanto Karl Marx como Jacobson, não se identificando
completamente com nenhum dos dois, mas mantendo as contradições para a abertura de novas
possibilidades teóricas. Como nada acontece por acaso, maio de 1968 inevitavelmente gerou o
Tel Quel.
Kristeva e Derrida, respectivamente, afirmavam que tanto Bakhtin como Saussure não
levaram suas teorias às últimas consequências, mas reconheciam a necessidade do aparecimento
do estruturalismo para surgir a desconstrução.
Vale dizer que os desconstrucionistas estão certos ao duvidarem da validade das dicotomias
tradicionais do pensamento ocidental, como a distinção forma/conteúdo, e da estrutura
hierárquica da realidade, pregada por Platão e pela metafísica católica romana. Infelizmente
nosso espaço não permite uma discussão mais detalhada, mas iremos nos deter em três figuras
importantes: Michel Foucault (1926 – 1984), Martin Heidegger (1889 – 1976) e Jacques Derrida
(1930 – 2004).

Michel Foucault: a desestruturação do original


“O fato é que todo escritor cria seus próprios precursores. Sua obra modifica nosso conceito
do passado, assim como modificará o futuro”. Essa frase de Jorge Luís Borges foi citada por
Foucault em sua epígrafe de Language, Counter-memory, Practice (1977). O ponto introduzido
pelos desconstrucionistas é o banimento da noção de autoria. Por trás disso está uma revolta
contra todo tipo de autoridade. Os textos originais estão sendo reescritos cada vez que alguém
traduz – ou meramente lê – esse original. Em seu ensaio sobre o que é um Autor, Foucault
argumenta que se concedermos esse status de primazia ao texto original, estaríamos admitindo
uma afirmação transcendental que outorga uma origem sagrada ao texto.
Toda vez que ocorre uma tradução textual, ocorre uma violação do original, por isso é
impossível criarmos um equivalente puro. Assim, o “autor” Foucault prefere fala de “função do
autor”, ao invés de dar algum status ontológico para essa figura autoritária. Quando alguém
escreve um livro, isso não é um ato criador-original, antes, essa pessoa está imersa numa enorme
rede de influências culturais, na qual a palavra “autor” serve apenas para resumir.
No século XVIII, após a virada copernicana na Filosofia com Kant, o sujeito conhecedor se
tornou o próprio criador da realidade envolvente, através da linguagem. Foucault afirma que
após isso, nos movemos cada vez mais para dentro da própria linguagem, até que o sujeito do
discurso seja o próprio discurso. Não existe nada além da discursividade. Qualquer tentativa de
se conhecer uma ordem normativa na realidade criada é descartada. O papel da linguagem como
mediadora de realidades que transcendem a língua é negada, permanecendo apenas a ideia de que
a linguagem é auto-referencial.
O que se é dito não possui muita importância. O foco agora é o inaudito, o impensável, o
impossível, as ocultações, lacunas e contradições. O significado é enterrado num caixão escuro e
essa escuridão é tudo o que se tem para conhecer.
Para os desconstrucionistas, na tradução não existe nada além da própria linguagem,
entrando na cobiçada regressão infinita, aquela lacuna imaginada entre o significado e o
significante. Essa abertura, não para a realidade objetiva, mas para o nada absoluto, para a morte
e para as limitações da finitude são marcas da filosofia de Martin Heidegger, à qual nos
voltaremos agora.

Martin Heidegger: limitando as denominações


Em seu famoso livro Sein und Zeit (Ser e Tempo, 1927), Heidegger procura romper
(destruir) as amarras das abordagens metafísicas tradicionais. Ele investiga as próprias condições
pré-ontológicas do ser e seu significado. O projeto (mais tarde abandonado pelo autor) procura
descentralizar o processo, recomeçar os questionamentos do ser que está questionando o ser,
desestruturar a história da ontologia, entre outras coisas. A pergunta, que só ocorre dentro da
pergunta e que não possui resposta, torna-se o ponto de partida heideggeriano, que se volta cada
vez mais para dentro da linguagem. Linguagem esta que é cada vez mais desestruturada e aberta
em seus limites, para a própria ampliação dos limites categoriais do pensamento. Vemos esse
movimento em toda a trajetória do filósofo, até mesmo em sua última fase, dissertando sobre
Nietzsche e Hölderlin, mas nunca de forma descritiva e estruturada, antes, sempre num diálogo
violento para a abertura das possibilidades linguísticas.
Infelizmente nosso espaço e propósito aqui nos impedem de uma análise mais detalhada do
pensamento de Heidegger, limitando-nos às suas contribuições para a tradução. A tradução
torna-se um retorno ao pré-originário, possibilitando a experiência virginal da língua. Assim, o
pensamento pré-metafísico, a fala original, a alteridade (foucaultiana) encontram-se na
necessidade do fazer tradução. Esse fazer é a ação egóica se traduzindo para outra língua e não
meramente uma transferência linguística. O homem, que é o ser que levantou a questão do ser, é
desestruturado na língua, ocorrendo uma inversão radical: o homem é o sujeito da língua e não a
língua o sujeito do homem. Esse movimento faz com que o humano, o ser-no-mundo, desapareça
dentro da linguagem. Em vez de ser o agente da fala, o homem escuta a língua que fala por si
mesma. As palavras não revelam o Dasein (ser-aí), o ser é que encontra seu lar na língua (“a
língua é a casa do ser”).
Temos um exemplo prático de como o próprio Heidegger realiza a tradução textual. No
antigo fragmento de Anaximandro, o filósofo alemão faz uma releitura desse pensador grego,
através de traduções que desenterrassem maneiras discursivas pré-platônicas e pré-aristotélicas.
Heidegger oferece sua própria tradução (em 1975) em diálogo com as traduções de Nietzsche
(1873) e Diels (1903). Assim, ele traduz, por exemplo, ἀδικία (adikia), não como a “injustiça”
(como a maioria das traduções e o próprio significado da palavra), mas como uma ausência de
“dikia”, algo fora de lugar, desajuntado, tendo assim a palavra “disjunção” como possibilidade.
Portanto, sem a ajuda da filologia clássica, nem de apoio histórico ou psicológico, o tradutor
desenvolve um “elo”, mais forte e menos evidente, mediante um diálogo pensativo que permite
ao texto antigo ainda falar nos dias de hoje.
Heidegger acreditava que podemos recuperar o sentido original do autor, usando traduções
que causem estranheza ao leitor moderno, mas que teria o mesmo efeito que teve nos leitores
originais. Entretanto, o foco não é a intencionalidade autoral como em Schleiermacher, mas é a
recuperação da propriedade linguística em si. A palavra trás a relação do que é e não é. Assim,
não pensaríamos no Dasein (ser-aí) que é denominado, mas no Dasein que, simultaneamente,
ainda não foi denominado e nem pode ser denominado, porque não é. O paradoxo de se pensar o
indenominável é difícil, mas digno do pensamento para Heidegger. Dizer o silencioso junto com
o desaparecimento do homem como sujeito falante são os desafios de Heidegger à tradução.

Jacques Derrida: Différance e a tradução


Partindo de Heidegger em seu ensaio Différance (em Margins of Philosophy, 1982), Derrida
cria o termo différance, não para se referir ao que existe (no caso, a língua), mas sim ao que não
existe, colocando em cheque toda e qualquer ontologia que se fundamenta em uma noção de
presença.
Esse neologismo (différance) vem do latim differe, que significa procrastinar, atrasar. Esse
primeiro significado possui um horizonte temporal de sentido. Simultaneamente, esse verbo
também pode significar “divergir”, que para Derrida, trás o sentido espacial para o termo.
Somada a essa sobreposição de significado, Derrida intencionalmente muda uma letra: em vez de
escrever différence (substantivo derivado do verbo), ele escreve différance, pronuncia muito
semelhante mas com a grafia diferente. Essa troca deve causar no leitor o espanto diante de um
erro inaudito. Entretanto, para Gentzler, o “erro” de Derrida é mais do que apenas trazer o
inexistente para o subconsciente do leitor – a nova expressão evoca o gerúndio derivado do
particípio presente “différant”, que não existe na língua francesa atual. O resultado é um “não-
termo” entre um verbo e um substantivo que não existe. Com isso, Derrida queria expressar o
inexpressável, algo entre o verbo e o substantivo, entre o sujeito e o objeto, o ativo e o passivo, o
temporal e o espacial, que ao mesmo tempo é a voz média disso tudo, não sendo nada disso.
O propósito de Derrida é derrubar noções de referência, silenciando a todas elas. Embora
tenha algumas semelhanças com o formalismo, esse era muito preso na gramática e suas regras
precisas, enquanto a “teoria” derridiana é intencionalmente irresponsável, desapegada da
tradição, da filosofia, das regras linguísticas, vagando num niilismo total, ateleológica, sem
finalidade última. Enquanto Saussure, Wittgenstein e Gadamer usam a metáfora do jogo para se
referir, em um nível ou outro, às regras da comunicação, o jogo de Derrida é voraz,
indeterminado, sem propósito, sem referente, sem função nenhuma.
Aplicando isso à teoria da tradução, Derrida sugere que nós não nos atentemos para a
mensagem original, mas para os vários modos e interligações, respeitando as diferenças, os
espaços, a temporalidade, etc.
Derrida afirma que o ser não é significado. Sendo coerente com sua própria afirmação
metafísica, ele afirma que também não existe significado nos textos originais, sendo a
desconstrução uma necessária distorção dessa pretensão de significado original, e nessa distorção
na tradução, abre-se uma rede textual que proíbe e possibilita (ao mesmo tempo) a comunicação
interlingual.

Breve avaliação crítica


Já introduzimos esboços de críticas ao longo de nossa breve exposição. Cabe ressaltar
apenas mais algumas dificuldades internas e externas da desconstrução.
Em primeiro lugar, dizer que nada existe além (fora) da linguagem é não dizer nada. A
autocontradição se evidencia logo que a primeira articulação desse postulado aparece. O que
“seria” esse “nada”? O mundo, as pessoas, os animais, as pedras? Pronto! A linguagem acabou
de se referir para além dela mesma, para (então) poder negar isso. Negar a referencialidade
metafísica da linguagem é como negar a realidade, ou a própria existência. Caso fosse assim, a
linguagem seria uma impossibilidade, ou no máximo, uma inutilidade total. A própria estrutura
intermodal e significativa da totalidade do real, faz com que a linguagem inescapavelmente possa
se referir para além de si mesma. Cada estrato modal da realidade, ainda que irredutível a
qualquer outro, se comunica com antecipação ou retrocipação, com todos os demais. Isolar o
aspecto linguístico, portanto, torna-se uma impossibilidade metafísica, assim como seria, por
exemplo, isolar em absoluto o aspecto biótico, estético, jurídico, etc.
Em segundo lugar, a desconstrução – para existir e sobreviver – não pode ser aplicada a ela
mesma. Uma teoria que diz que nada é significado, está dizendo que ela mesma não significa
nada. Se ela não significa nada, ninguém deveria ter dado a menor atenção a ela. Ironicamente,
Derrida nunca deveria ter traduzido esses pensamentos em palavras, e nem ter deixado essas
palavras serem traduzidas para outros idiomas.
Em terceiro lugar, o significado morre com seu autor, que morre com seu Deus. Enquanto
Foucault relega ao autor uma mera função literária, Roland Barthes decreta a própria morte do
autor. Derrida em sua “Gramatologia”, afirma que o signo e a divindade possuem o mesmo local
e data de nascimento, colocando a teologia como o fundamento do significado (último). Roland
Barthes escreveu que a recusa de atribuir um significado fixo, tanto ao mundo quanto aos textos,
“libera uma atividade que podemos chamar de contra-teológica, propriamente revolucionária,
pois se recusar a por um fim ao significado é, no fim, recusar a Deus”. Não posso concordar mais
com essas expressões (embora eles neguem tanto a Deus como os significados). Ou Deus existe
e, por definição, é a origem e alvo último de todo significado, ou Deus não existe, e as
(in)significações se perdem num infinito “significar-para-o-nada”. Entretanto, como é possível
esses autores dizerem essas coisas significativamente? Ou eles estão se contradizendo no próprio
ato dessas afirmações, ou não estão dizendo nada. Parafraseando o ditado, “desconstrução no
olho dos outros é refresco”. Usar a própria desconstrução para descontruir a desconstrução é
suficiente, ou uma mera ironia também serve: se tudo o que importa é o leitor/tradutor, e o autor
e original não têm vez, então posso “ler” os desconstrucionistas como uma grande ironia,
ausente, inaudita, de que realmente há significados nos textos (ecoando Vanhoozer), ou posso
traduzir essas obras como afirmando o oposto que elas declaram: Deus está vivo e muito bem, o
autor é a origem da sua obra, os textos e a realidade são significados objetivos, o jogo linguístico
possui regras e propósitos e o tradutor precisa se portar responsavelmente diante da obra original
(tema do próximo capítulo).
Muitos pontos da desconstrução foram deixados de lado e muitas críticas ainda poderiam
ser feitas, bem como elogios genuínos. Vamos nos limitar a esses esboços inicias, que espero ter
instigado no leitor alguma curiosidade e consciência sobre o assunto.
7. Tradutor traidor? Por uma ética da tradução

“Ai dos feitores de traduções literárias que, ao traduzir cada palavra, enfraquecem o sentido! Este é bem o caso em que se
pode dizer que a letra mata e o espírito vivifica.”Voltaire.

Chegou até os dias atuais, um velho e injusto adágio italiano: Traduttore, traditore
(tradutor, traidor). Renato Motta, um tradutor, diz que esse adágio “é ridículo, mas tem uma
grande utilidade: ele diz muito sobre a pessoa que o usa”. Este juízo de valor sobre essa sentença
é suficiente para nos mostrar que todos (ou a maioria) os tradutores se sentem ofendidos e
injustiçados com essa infâmia que recaiu sobre eles.
A expressão italiana remonta aos dragomanos otomanos (ou tercüman). O Império Otomano
existiu entre 1299 e 1922. No seu auge, compreendia a Anatólia, o Médio Oriente, parte do norte
de África e do sudeste europeu. Foi estabelecido por uma tribo de turcos oguzes no oeste da
Anatólia e era governado pela dinastia Otomana. O dragomano precisava, ingloriamente,
transmitir aos vizires as negociações feitas em outros países. Essas negociações eram
complicadas, repletas de palavras torpes e escárnios, e não precisamos dizer que os mensageiros
arcavam com as consequências.
Diante de um dilema moral – ser castigado ou transmitir fielmente a mensagem – esses
tradutores/intérpretes-embaixadores geralmente suavizavam os significados hostis das
mensagens, para poderem escapar da ira do vizir. O lúdico é que o termo vizir é oriundo da
palavra árabe wazir, que significa “alguém que ajuda a carregar um fardo”, mas ao invés dessa
ajuda, eles acrescentavam mais um fardo ao pobre intérprete.
David Bellos, no livro “Is That a Fish in Your Ear?”, nos dá um claro exemplo daquela
situação:

[…] quando o sultão Murad II concedeu permissão para os mercadores ingleses


fazerem comércio nas terras otomanas, a carta original em turco dizia que a rainha Elizabeth
“demonstrou sua subserviência e devoção e declarou sua servidão e afeto” ao sultão. Para a
comunicação posterior com a corte inglesa, a carta foi traduzida pelo grande dragomano
para o italiano, que ainda era a língua original do império otomano. Em italiano, no entanto,
a carta não diz o mesmo: expressa a fórmula turca elaborada de forma econômica como
sincera amicizia. […] Ele (o dragomano) sabe que seu mestre nunca considerará a rainha da
Inglaterra como uma monarca de igual poder; e, como diplomata experiente, ele também
sabe que Elizabeth I possivelmente não aceitaria a expressão de “servidão” ao sultão,
mesmo em um floreio convencional.

O leitor atento já percebeu que a expressão nasceu e continua errada. Ela deveria ter
passado junto com o Império Otomano, ou melhor, não deveria ter nascido. Sua concepção se
deu na manjedoura da imoralidade – ela nasceu em pecado, e em iniquidade foi concebida.
Lembra-nos das belas-infiéis da história da tradução, infeliz paradoxo, que afirma que ou uma
tradução é bela, ou é fiel. Para se traduzir, pressupõe-se na maioria dos casos, uma boa
disposição de transmitir significados de um idioma para outro. É um ato amoroso, sacrificial, que
visa o bem do próximo. Por isso, traição ou infidelidade são expressões adequadas quando (e
somente quando) o tradutor intencionalmente muda o sentido original, com o propósito de
enganar os leitores.
Os caminhos da ética
Em geral, a juventude do século XXI possui uma sensibilidade ética mais aguçada que seus
antepassados, pelo menos aqui no Brasil. Mas essa sensibilidade carece de fundamentos, e é
nesse espaço que as ideologias entram, disfarçadas como o lobo mal se disfarçava de vovózinha,
prestes a devorar suas vítimas.
Norman Geisler, em seu livro sobre Ética, lista várias opções de propostas sobre a ética.
Podemos categorizar todos esses sistemas éticos em dois grandes grupos: o absolutismo e o não
absolutismo. Dentro da categoria não absolutista, temos o antinomismo, o situacionismo e o
generalismo. Dentro da categoria absolutista, temos o absolutismo não qualificado, o
absolutismo conflitante e o absolutismo graduado.
Dentre esses sistemas éticos, podemos diferenciar alguns fundamentos que foram propostos
ao longo da história. O primeiro fundamento que podemos descrever é “o certo está nas mãos
dos mais fortes”. Trasímaco, um antigo filósofo grego, sustentou que a “justiça é o interesse do
mais forte”. O evolucionismo darwinista, aplicado à ética, produz o mesmo efeito. Essa visão
ética – sustentada por ditadores – reduz a ética ao exercício do poder, resultando em catástrofes
de todos os tipos e níveis. Em segundo lugar, temos a proposta de que a moral são os costumes.
A ética é reduzida ao relativismo cultural e social, uma redução semelhante à anterior. Um
terceiro fundamento, contido na frase de Protágoras, é de que o homem é a medida de todas as
coisas, incluindo a ética. O relativismo agora toma proporções individuais e, se levado às ultimas
consequências, essa ética relativista gera o caos, e o caos dá a luz à destruição. Em quarto lugar,
podemos citar Aristóteles e a ética grega em geral, na qual o certo é a moderação. Ainda que seja
sábio agirmos com moderação, nem sempre fazer o certo é fazer as coisas com moderação. Há
situações em que o certo exige ações extremas. Fica a pergunta e o mesmo problema das demais:
quem decidirá o que é moderado e o que não é?
Em sexto lugar temos a proposta dos epicureus e da filosofia hedonista, na qual o certo é o
que traz prazer. Mas nem todo prazer é bom e nem toda dor é ruim. Uma sétima proposta é a dos
utilitaristas, que afirmam que o certo é aquilo que trás o bem maior, para o maior número de
pessoas, durante o maior período de tempo. Esse sentido quantitativo da ética foi defendido por
Jeremy Bentham entre outros. Essa proposta, ainda que melhor que a hedonista, não escapa ao
relativismo, pois quem será apto para decidir o que é o maior bem para o maior número de
pessoas?
G. E. Moore, em oitavo lugar, afirmou que o bem é indefinível e inalcançável. Wittgenstein
afirmou que nem sequer podemos falar sobre o bem (e o belo) por serem categorias que
transcendem a capacidade humana.
Poderíamos citar outros tipos de fundamentos para a ética. Entretanto, assim como Eric
Voegelin percebeu que podemos classificar as ideologias políticas entre transcendentais e
imanentes, e Herman Dooyeweerd classifica todas as filosofias como sendo ou transcendentais
ou imanentes, assim também ocorre com a ética. Ou afirma-se um fundamento transcendental
para a ética, o que para os cristãos é o próprio Deus, ou o fundamento da ética não passa de mero
achismo imanente, de uma subjetividade irrelevante, individual ou coletiva, fazendo com que a
ética se torne apenas questão de opinião, sendo algo inexistente em última análise.
Não é de se surpreender que, em teorias como a desconstrução de Derrida e companhia, a
ética da tradução fique em segundo plano. Ao eliminar Deus da jogada, exclui-se os significados
objetivos da estrutura da realidade, bem como da estrutura textual. Um dos milhares de
significados que morrem é o significado ético, que encontra seu núcleo no amor. A tradução que
é centrada no tradutor se torna antiética, não amorosa, irresponsável. O jogo da diferença se
perde na própria insignificância de um jogo sem regras últimas. Tudo se torna uma brincadeira,
uma sopa de letrinhas, uma ilusão.
Quando nos voltamos especificamente à tradução bíblica, é absolutamente necessária uma
teoria e prática da tradução que seja trinitária, cruciforme e responsável. Já nos debruçamos um
pouco sobre a qualidade trinitária e cruciforme, portanto nos resta uma breve meditação sobre a
responsabilidade do tradutor-leitor-intérprete.

Responsabilidade criacional
A ética é uma rede de significados normativos inescapáveis ao ser humano. Na experiência
pré-teórica, nos envolvemos com questões éticas o tempo todo. Toda vez que opinamos sobre
certo e errado, bem ou mal, ofensas e elogios, entre vários outros julgamentos, estamos agindo
como sujeitos no aspecto ético da realidade temporal. O leitor, intérprete ou tradutor de qualquer
texto, está insuperavelmente engajado em questões éticas sobre seu próprio ato diante do
significado textual.
Não podemos reduzir a ética a outro aspecto da criação, muito menos isolá-lo de um ou
mais desses aspectos. Kant, por exemplo, quis reduzir a ética à lógica, misturando a Razão do
conhecimento puro com a Ética da vontade pura. A interdependência analógica dos aspectos
modais da realidade nos impede, por exemplo, de sermos imorais em nossos raciocínios lógicos,
e de sermos ilógicos em nossas escolhas morais. Entretanto, uma coisa não pode ser reduzida à
outra.
Do mesmo modo, não podemos reduzir a ética ao aspecto linguístico. Um jogo de signos
involuntários, insignificantes fora de si mesmos, torna-se uma desculpa para ausentar qualquer
responsabilidade ética por parte do leitor/tradutor/intérprete. Claro que os últimos escritos de
Derrida negam uma irresponsabilidade desse porte, mas estamos apenas seguindo as conclusões
lógicas de um sistema antinômico.
Há um link interessante entre Kant e os pós-modernos: a liberdade do indivíduo autônomo.
Caso não haja nada no texto, também não existe nada que possa ter direitos sobre minha vida,
minha realidade. Deus zomba de quem quer romper as correntes da realidade (Salmo 2.3-4), pois
não passa de um delírio adâmico pós-lapso. Pós-modernos são pós-lapsários e vice-versa. O
estado do homem caído sempre é fugir de sua responsabilidade criatural, quer seja apontando o
dedo a outro, quer seja moldando a realidade e os textos ao seu bel prazer.
Na direção oposta, a ética cristã (neocriacional) afirma que a função da imagem de Deus é
responder apropriadamente à realidade que a cerca. Essa é a própria definição de
responsabilidade (do latim, respondere), ou seja, responder e agir apropriadamente dentro dos
significados que nos cercam. Assim, casamos a realidade com nossas atitudes. Agimos como
sujeitos responsáveis na criação Divina, não apenas em algumas partes delas, ou em algumas
atitudes nossas, mas a totalidade do nosso ser responde à totalidade da realidade temporal.
Entretanto, a criação não é o telos, ou o objeto último da nossa responsabilidade. Deus, que é a
origem e o propósito da realidade significativa, é o alvo último das nossas ações. Nossa ética é
sempre Coram Deo. Eliminar Deus é eliminar nossa responsabilidade, pois nossas respostas se
perderiam na rede de significados internos e arbitrários, cujo rei é o acaso. No fim, precisaríamos
afirmar que, ou somos a origem absoluta dos significados da realidade, ou somos o propósito no
qual eles sempre voltam, ou ambos.
Quando voltamos nossos olhos para as traduções bíblicas, o que se aplica à realidade aplica-
se ao texto. As traduções bíblicas devem responder criativamente ao texto original. A
criatividade entra na competência comunicativa para determinado povo de determinada época. A
tradução deve fazer sentido para língua atual do seu público alvo. Assim, brasileiros do século
XXI precisam de traduções que use o português brasileiro do século XXI, e não do século XIX.
Dito isto, a responsabilidade permanece diante da não adulteração do significado original.

A traição do Novo Mundo


Até aqui temos falado sobre tradutores e traduções responsáveis. No entanto, obviamente
existem traduções que realmente traem o leitor desavisado. Esse é o caso da Tradução do Novo
Mundo das Escrituras, tradução que é usada pela seita dos “testemunhas de Jeová”.
As adulterações textuais nessa tradução fluem dos pressupostos religiosos da seita. Costumo
classifica-los como arianos modernos, embora não tenham a mesma sofisticação que Ário (256 –
336), um antigo presbítero de Alexandria antes de abandonar a fé na Trindade. Basicamente,
Ário pregava que Jesus foi criado pelo Pai (sendo primeira criatura criada), e o Espírito é apenas
uma emanação impessoal do poder divino.
Charles Taze Russel (1852 – 1916), fundador da seita, retomou muitos dos ensinamentos de
Ário. No fim da vida, após o divórcio com sua esposa e várias acusações contra seu caráter,
Russel confessou em tribunal conhecer apenas o latim, e não saber nada de grego e hebraico. Por
muitos anos, a Sociedade Torre de Vigília distribuía várias traduções bíblicas, como a King
James (com notas), a Tradução Literal de Young, a Tradução de Lesser, entre muitas outras. Em
29 de setembro de 1949, a Sociedade começou a publicar sua própria tradução, chamada de
“Tradução do Novo Mundo”.
Iremos analisar dois textos que foram intencionalmente modificados para se encaixarem no
arianismo árido da seita contra a Divindade de Cristo, ainda que a tradução como um todo seja
péssima e contenha centenas de adulterações. Esses dois textos serão: João 1.1 e Colossenses
1.16-17. No início de cada análise a seguir, colocaremos o texto grego (usaremos o Westcott &
Hort, de 2009, por ser a base da Tradução do Novo Mundo), seguida pela Tradução do Novo
Mundo (TNM), de 1986. Colocaremos também a TNM de 2005 e a Tradução João Ferreira de
Almeida Revista e Atualizada (ARA), de 1993.

(I) João 1.1


ΕΝ ΑΡΧΗ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος.

No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com o Deus, e a Palavra era [um] deus.
(TNM, 1986);
No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era um deus. (TNM,
2005);
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. (ARA)

Já nos detemos brevemente ao contexto dessa passagem no começo desse livro. A estrutura
em quiasmo nos ajuda a compreender os sentidos que o apóstolo João quer nos transmitir. O
discípulo amado inicia falando sobre a função de Jesus (A Palavra) na criação (Jo. 1.1-5), e
termina falando sobre a função de Jesus na revelação (Jo. 1. 16-18). O evangelista brevemente
fala sobre o testemunho de João Batista sobre a luz (1. 6-8) e sobre a preeminência da Palavra
(1.15) – ambas sendo o próprio Cristo. O ponto nevrálgico é 1. 9-14 que trata da encarnação da
Palavra e do privilégio de se tornar filho de Deus.
Com essa estruturação textual em mente, fica claro o paralelo entre 1.1 e 1.18 – versos das
extremidades desse prólogo: A Palavra estava com Deus (1.1), isto é, no seio do Pai (1.18) e a
Palavra era Deus (1.1), isto é, o Deus unigênito (1.18). Apenas esse paralelo estrutural já deveria
ser o suficiente para mostrar a insuperável clareza do apóstolo João, em declarar que Jesus é
Deus, e não “um deus”. Mas as evidências sintáticas e contextuais formam a jogada do xeque-
mate, em um jogo que já está ganho, antes mesmo de começar (por walkover).
Antes da análise sintática, vale a pena definirmos o que seria a “Palavra” joanina. Muitos
panos de fundo têm sido apresentados pelos estudiosos, mas podemos reduzir esse número em
apenas três: Estoicismo, Sabedoria e Antigo Testamento.
Primeiramente, alguns comentaristas entendem que o Logos de João é baseado no Logos
dos estoicos. No pensamento estoico, o Logos é a Razão impessoal, o princípio que governa todo
o Universo, habitando dentro do povo, ou pelo menos nos mais sábios dentre a massa. Zenão
(336 – 263 a.C) – fundador dessa escola de pensamento – ensinava que essa Razão universal era
deus (ou Zeus) e que todos devem se alinhar com seus desígnios. Andreas J. Köstenberger, em
seu livro “Encountering John” (1999), mostra que há pelo menos três diferenças entre João e os
Estoicos: (1) O Logos joanino não é a mesma pessoa que Deus (Pai), como no estoicismo. Ele
era Deus, mas ao mesmo tempo estava com Deus, indicando uma pluralidade na unidade Divina,
algo que transcende a simplificação estoica; (2) o Logos estoico é um princípio impessoal, uma
teoria metafísica, enquanto João descreve o Logos na narrativa de eventos históricos e como um
ser pessoal (e humano!); (3) devido à abundância constrangedora de alusões ao Antigo
Testamento, tanto nesse prólogo, como em todo o quarto evangelho, seria inesperada uma
abertura estoica, com todo o restante judaico. Portanto, ainda que João pudesse ter ciência do
conceito estoico, ele vale-se do pano de fundo do Antigo Testamento, como veremos no terceiro
ponto.
Em segundo lugar, a proposta que o pano de fundo joanino é a Sabedoria personificada da
literatura sapiencial, ganhou alguns adeptos, e certamente Ário aprovaria essa proposta. Os
paralelos são impressionantes. A Senhora Sabedoria literariamente personificada em Provérbios
8, como a Palavra de João, é preexistente e participa do ato criacional com Deus. A Sabedoria é o
veículo da auto-revelação de Deus, tanto na criação como na Lei, assim como Cristo.
O erudito judeu Samuel Sandmel, apresentou na Society of Biblical Literature, em 1961,
suas famosas advertências contra a paralelomania. Todos os que comparam literaturas podem
cair nessa falácia, que estabelece um paralelo superficial como real e dependente, sem sérias
considerações contextuais. Estaria João construindo seu prólogo de forma dependente do
conceito da Sabedoria personificada da literatura sapiencial e da posterior tradição interpretativa
nos apócrifos e pseudoepígrafos? Há sérias diferenças entre ambos, que nos impedem de
responder afirmativamente: (1) A literatura judaica nunca apresenta a Sabedoria como sendo
Divina, mas meramente como um atributo de Deus já em ação no ato criador; (2) a Sabedoria
nunca é apresentada como uma pessoa real, mas sempre como uma personificação literária para
fins didáticos ao povo judeu, o oposto da apresentação da pessoa real de Jesus Cristo no quarto
evangelho; (3) João nunca usa o termo Sabedoria (Sophia) em seu evangelho.
Resta-nos o terceiro, mais claro e mais provável pano de fundo joanino: A “Palavra” no
Antigo Testamento. Primeiramente, João 1.1 é uma clara alusão ao Gênesis 1.1. Além disso, a
terminologia desse prólogo é significativamente baseada em Gn. 1 (termos como luz, trevas,
vida). Não apenas o tema da criação é evidente em João 1.1-5, mas também a narrativa do Livro
de Êxodo (caps. 33-34) constitui a substrutura narrativa de João 1. 14-18, como veremos na
tabela abaixo:

Êxodo 33-34 João 1.14-18


Israel encontra graça aos olhos de Os discípulos recebem graça sobre
YHWH (33.14); graça (1.16);
Ninguém pode ver a face de YHWH e
viver Ninguém jamais viu a Deus (1.18);
(33.20);
A glória de YHWH passou por Moisés Os discípulos contemplaram a glória
(33.23, 34. da palavra
6-7); (1.14);
YHWH é misericordioso e compassivo Jesus é cheio de graça e verdade
(34.6); (1.14, 17);
YHWH habitava num tabernáculo Jesus “tabernaculou” entre os
(33.7); discípulos (1.14);
A Lei foi dada através de Moisés
Moisés deu a Lei (34.27-28);
(1.17);
Moisés é mediador entre YHWH e Jesus é mediador entre Deus e a
Israel (34.32- humanidade
35). (1.17-18).

João deixa muito claro qual é o seu pano de fundo. Podemos pensar também na construção
de Isaías (55. 9-11) sobre a Palavra de Deus que é enviada pelo próprio Deus para cumprir um
propósito Divino específico, cumpre esse propósito infalivelmente e retorna para Deus após
concluir sua missão. Determinar com precisão o pano de fundo, não significa que concluímos
cabalmente nossa tarefa hermenêutica, pois João - e todos os autores bíblicos - elaboram e
desenvolvem o pano de fundo de forma original (e muitas vezes inesperada). O Logos joanino
não é uma mera personificação abstrata da Palavra de Deus, mas o próprio Jesus de Nazaré.

Considerações sintáticas
Vamos nos concentrar na expressão “a Palavra era Deus”, pois aí está a discordância. O
versículo de abertura do Evangelho de João tem a “Palavra” (Λόγος) como sujeito. A sintaxe das
três partes desse verso é a seguinte:

Ἐν ἀρχῇ (objeto preposicional) ἦν (verbo finito) ὁ Λόγος (sujeito)

καὶ ὁ Λόγος (sujeito) ἦν (verbo finito) πρὸς τὸν Θεόν (objeto preposicional)

καὶ Θεὸς (predicado nominativo) ἦν (verbo finito) ὁ Λόγος (sujeito)

Tradução:

No princípio (objeto preposicional) era (verbo) a Palavra (sujeito)

A Palavra (sujeito) estava (verbo) com Deus (objeto preposicional)

E a Palavra (sujeito) era (verbo) Deus (predicado nominativo)

Com essa estrutura sintática, seria equivocado, por exemplo, traduzir a última cláusula
como “Deus era a Palavra”, pois o sujeito é sempre a Palavra. Não podemos também traduzir
como “a Palavra era divina”, pois há um termo próprio para divino no grego (theios).
Deus, na última cláusula, é um predicado nominativo. Essa função sintática no grego ocorre
quando o predicado de uma cláusula é relacionado ao sujeito dessa mesma cláusula em um
sentido igualitário. Isso nos mostra que João, ao construir seu texto dessa maneira, queria deixar
evidente a plena igualdade da Palavra com Deus, ao mesmo tempo em que acaba de fazer
distinção pessoal entre ambos (a Palavra estava com Deus).
Além do mais, é comum no Novo Testamento o predicado nominativo ser anartro (sem
artigo), mesmo sendo específico. Carson mostra que nesse mesmo capítulo temos um caso assim.
Em João 1.49 lemos: “Tu és o Rei de Israel”. No texto original, antes de Rei não há o artigo, e
não traduzimos como “um rei”. Eruditos da língua grega do NT e do Evangelho de João
mostraram que é comum um predicado nominativo que antecede um verbo ser sem artigo
(Colwell, McGaughy, Wallace, Carson, Köstenberger), o que torna ilegítimo colocar um artigo
indefinido só por causa da ausência do definido.
Estabelecemos que o predicado nominativo “Deus” é definido, mesmo sem ter o artigo
definido. Mas não somente isto, pois se João tivesse colocado um artigo definido antes de
“Deus”, a construção desse verso mostraria que o Deus da segunda cláusula é a mesma pessoa
que o da terceira. Assim, a Palavra estaria com Deus e ela mesma seria esse mesmo Deus. João
começaria seu texto com uma explícita e ridícula contradição sem sentido.
É interessante notarmos que nem mesmo os autores do texto grego usado pela TNM
concordam com a sua tradução. . Veja a opinião do próprio Westcort sobre João 1:1:

“O predicado (Deus) encontra-se na posição inicial enfaticamente, como em João 4:24. É


necessariamente sem o artigo…Nenhuma ideia de inferioridade de natureza é sugerida por essa
forma de expressão, que simplesmente afirma a verdadeira deidade da palavra…na terceira
cláusula declara-se que ‘a palavra’ é ‘Deus’, e assim incluída na unidade da divindade”

Portanto, pela natureza das verdades que João queria comunicar, seu texto só faz sentido
dentro da estrutura da teologia trinitária (que ele mesmo desenvolve ao longo do seu livro), e
uma tradução fiel a esse texto precisa manter o paradoxo do predicado definido: A palavra estava
com Deus (Pai) e era Deus (Filho)!

Considerações teológicas
Não somente a tradução tradicional está correta, mas a própria tradução do Novo Mundo
não faz sentido algum.
João, como um judeu monoteísta, jamais nomearia Jesus como “um deus” de forma
positiva. O contra argumento dos arianos é que as Escrituras declaram que várias coisas podem
ser consideradas “deuses”, até mesmo o diabo (2Co. 4.4). Entretanto, isso é apenas uma meia
verdade. As Escrituras declaram que o coração humano caído é essencialmente idólatra, podendo
considerar para si, literalmente, qualquer coisa como seu deus. Podemos idolatrar a nós mesmos,
outras pessoas, qualquer coisa na criação (como dinheiro e sexo, por exemplo), anjos, demônios
e até mesmo o diabo. Obviamente, quando isso é textualmente declarado, há sempre um tom
negativo e exortações contra tal prática. Diretamente oposto a isso, João não tem nenhuma
palavra negativa de repreensão sobre Jesus ser supostamente “um deus”, muito pelo contrário, só
há elogios, dos mais elevados, a Jesus.
Caso alguém considerasse, indevidamente, Jesus como algum tipo de divindade, João
deveria prontamente denunciar tal erro, assim como é natural em outros episódios dos
evangelhos (João Batista não é o Cristo; Jesus não é um dos profetas, etc). O que nós realmente
temos na sequência narrativa dos evangelhos é exatamente claras comprovações de que Jesus é
realmente Deus. O clímax desse evangelho é a confissão de Tomé em João 20.28: “Respondeu-
lhe Tomé: Senhor meu, e Deus meu!”. Tomé não teve um susto e expressou uma blasfêmia em
forma de espanto, antes, ele respondeu a Jesus com uma das mais belas e primitivas confissões
de fé, tantas vezes proclamada nos Salmos em direção a YHWH, agora em direção ao próprio
Messias. É muito interessante que os tradutores da TNM tenham se esquecido de adulterar esse
verso também.
Se levarmos a sério a TNM, precisaríamos confessar que Jesus é uma espécie de ídolo ou
algum tipo de divindade menor? Caso aceitássemos a primeira opção (ídolo), estaríamos
declarando que todos os cristãos são declaradamente idólatras, e se aceitarmos a segunda
(divindade menor), abriríamos mão do monoteísmo para abraçarmos o politeísmo, ou no mínimo
um “biteísmo”? Nada mais absurdo.
Além do mais, o próprio contexto imediato de João 1.1 estabelece Jesus como Criador de
todas as coisas, atividade exclusiva de Deus: “Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e
sem ele nada do que foi feito se fez” (1.3). Os arianos, desde o começo, afirmam que Jesus é a
primeira criatura criada: “Houve um tempo que Jesus não era”. Mas João é bem claro em afirmar
que todas as coisas criadas – sem exceção – foram criadas por Jesus. Se Jesus também é criado,
ele precisaria se auto criar, sem ainda existir. Não há nada em João, nem no NT, que indique que
Jesus seria uma exceção à regra. Os absurdos de um único artigo indefinido no lugar errado são
ilimitados.

Considerações finais
Como mostramos acima, o único motivo de se traduzir Jo. 1.1c como “a Palavra era um
deus” é devido ao pressuposto ariano, adotado antes da leitura e/ou tradução. Como a tradição
hermenêutica desde Heidegger tem nos mostrado, é impossível uma tarefa hermenêutica (ou
qualquer outra ação) sem nossos pressupostos. Entretanto, esses pressupostos podem e dever
mudar (ou ser temporariamente suspendidos) caso necessário. Isso torna a adulteração da TNM
algo indesculpável.
A traição se torna maior com o passar do tempo. A TNM de 2005 eliminou os colchetes dos
acréscimos indevidos da versão de 1986. Assim, os leitores dessa tradução que não souberem
grego koinê (e a maioria não sabe), nem sequer vai desconfiar de uma possível adulteração no
texto. A possibilidade da pergunta minimamente crítica é destruída junto com qualquer resquício
de honestidade.

(II) Colossenses 1.16-17;


(16) ὅτι ἐν αὐτῷ ἐκτίσθη τὰ πάντα ἐν τοῖς οὐρανοῖς καὶ ἐπὶ τῆς γῆς, τὰ ὁρατὰ καὶ τὰ
ἀόρατα, εἴτε θρόνοι εἴτε κυριότητες εἴτε ἀρχαὶ εἴτε ἐξουσίαι· τὰ πάντα δι’ αὐτοῦ καὶ εἰς
αὐτὸν ἔκτισται· (17) καὶ αὐτὸς ἔστιν πρὸ πάντων καὶ τὰ πάντα ἐν αὐτῷ συνέστηκεν.

“... porque mediante ele foram criadas todas as [outras] coisas nos céus e na terra,
as coisas visíveis e as coisas invisíveis, quer sejam tronos, quer senhorios, quer governos,
quer autoridades. Todas as [outras] coisas foram criadas por intermédio dele e para ele. 17
Também, ele é antes de todas as [outras] coisas e todas as [outras] coisas vieram a existir
por meio dele ...” (TNM, 1986);

“... pois por meio dele foram criadas todas as outras coisas nos céus e na terra, as
coisas visíveis e as coisas invisíveis, quer sejam tronos, quer domínios, quer governos, quer
autoridades. Todas as outras coisas foram criadas por meio dele e para ele. 17 Também, ele
já existia antes de todas as outras coisas, e por meio dele todas as outras coisas vieram a
existir.” (TNM, 2005);

“... pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as
invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi
criado por meio dele e para ele. 17 Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste.”
(ARA).

Considerações introdutórias
Colossenses foi umas das cartas que Paulo escreveu enquanto estava preso em Roma.
Epafras, provável líder daquela comunidade de fé, visitou Paulo na prisão para atualizá-lo da
situação da igreja colossense.
Epafras, em seu relato a Paulo, elogiou o que era para ser elogiado naquela igreja. O
primeiro capítulo da carta basicamente lida com esses elogios. Entretanto, o ponto principal da
visita de Epafras era relatar a Paulo que havia adentrado naquela igreja falsos ensinos que
deturpavam o evangelho apostólico e Paulo passa a maior parte de sua carta respondendo e
refutando esses falsos ensinos.
A extensão da pesquisa sobre a filosofia Colossense é imensa. Em 1973, J. J. Gunther listou
44 identificações diferentes sobre quem eram os oponentes em Colossos, segundo a erudição dos
séculos XIX e XX. Desde então várias outras teses foram levantadas sobre o assunto . Grosso 4

modo, podemos listar as sugestões propostas da seguinte maneira: 1. Não existia heresia em
Colossos; 2. Judaísmo Essênio e Gnosticismo (J. B. Lightfoot); 3. Helenismo (M. Dibelius, G.
Bornkamm, R. E. DeMaris, T. Martin); 3. Paganismo (C. Arnold); 4. Judaísmo (S. Lyonnet, F.
O. Francis, A. Bandstra, F. F. Bruce). Listei essas perspectivas apenas a nível introdutório, mas
nossa argumentação não dependerá da proposta de heresia que o leitor assumir como mais
provável.
Os versículos em foco (1.16-17) encontram-se no parágrafo de 1.15-20. Após a introdução
(1.1-2), Paulo ora pelos colossenses, primeiro agradecendo a Deus por eles (1.3-8), e depois
intercedendo por ele (1.9-14). Devido à estrutura literária de 1.15-20, a maioria dos estudiosos
(desde E. Norden, 1956) sugerem que esse parágrafo era um hino cristão primitivo (composto
por Paulo ou outra pessoa), ou pelo menos um poema dirigido a Cristo Jesus.
N. T. Wright, lidando com essa passagem, mostra um quiasmo ABBA tipicamente judaico.
Nesse sentido, a confissão judaica de que YHWH é Criador, Sustentador e Salvador do seu povo
é agora dirigida ao Messias. Podemos dividir esse hino/poema em duas partes: 1. A supremacia
de Cristo na criação (1.15-17), ou Cristo como Criador e; 2. A supremacia de Cristo na Redenção
(1.18-20), ou Cristo como Redentor.

Considerações textuais
A expressão “todas as coisas” em 1.16 se refere à totalidade da ordem criada. Esse ponto é
salientado por três tipos de modificadores: (I) nos céus e sobre a terra, (II) as visíveis e as
invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. A construção de
sentido por todos esses qualificadores mostram que toda a realidade criada, quer seja celestial ou
terrena, seres espirituais ou materiais, foram criados em, por e para Cristo Jesus. Sempre que
essas três preposições aparecem juntas, elas descrevem a relação entre Deus e o cosmo. Aqui está
se referindo à relação entre Cristo e o cosmo, que é a mesma entre Deus e o cosmo, pois é uma
relação entre Criador e criatura. A expressão todas as coisas aparece também em 1.17, mostrando
que Jesus é anterior a todas as coisas (totalidade criacional) e que Nele tudo subsiste.
A TNM introduz uma palavra nessa expressão: “... todas as [outras] coisas...”. A versão de
1986 foi obrigada a colocar entre colchetes, pois não há, absolutamente, nenhuma evidência
textual que aprove essa adição. Bruce M. Metzger, em seu clássico “A textual commentary on
the greek new testament” (1971), pula dos problemas textuais de Cl. 1.12 para 1.20, mostrando
que não há problemas textuais em 1.13-19.
Então, se não há base textual nenhuma para a adição, qual foi o motivo dela? Os
tradutores/intérpretes da TNM podem argumentar que a expressão “primogênito de toda a
criação” em 1.15 significa que Jesus é a primeira criatura criada e que, portanto, ele criou todo o
resto, mas não a si mesmo.
Então, se não há base textual nenhuma para a adição, qual foi o motivo dela? Os
tradutores/intérpretes da TNM podem argumentar que a expressão “primogênito de toda a
criação” em 1.15 significa que Jesus é a primeira criatura criada e que, portanto, ele criou todo o
resto, mas não a si mesmo.
Novamente, como no caso de João, se essa interpretação for correta, então Paulo estaria se
contradizendo ao expor Cristo como autor, sustentador e alvo da criação, ao mesmo tempo em
que ele se encontra dentro da criação como uma mera criatura. Mas vejamos. A palavra a
πρωτότοκος (primogênito) com o genitivo tem a mesma força que πρῶτός com o genitivo usado
em João 1.15, 30, no qual João Batista declara que Jesus é πρῶτός μου ἦν, denotando prioridade
e primazia. O termo aparece frequentemente na LXX, normalmente nas genealogias, para
expressar prioridade, mas também em outros lugares mostra primazia e relacionamento especial,
como em Ex. 4.22 onde o termo é aplicado a Israel e no Salmo 88.28 (LXX) é aplicado ao rei
davídico, demonstrando sua supremacia sobre os demais reis da terra. Em nenhum sentido
possível, Israel é a primeira nação criada, muito menos Davi o primeiro rei (ele não era o
primeiro nem entre seus irmãos de sangue). Assim, no AT, a primogenitura está muito mais
ligada à superioridade e herança, do que ao primeiro filho que nasce cronologicamente (basta ver
o conhecido caso de Jacó e Esaú). Cristo é primogênito de toda a criação. Entretanto Daniel
Wallace identifica o genitivo como um “genitivo de subordinação”, ou seja, Cristo é primogênito
“sobre toda a criação”. Portanto o significado aqui é que Cristo tem primazia e supremacia sobre
toda a criação (podendo significar também que Cristo é o herdeiro de toda a criação). Somente
assim a primeira palavra de 1.16, que liga os dois versos, faz algum sentido: “... pois (ὅτι) nele
foram criadas todas as coisas...”. O motivo de Cristo ser superior em relação ao todo da ordem
criada é exatamente porque Ele criou todas as coisas.

Considerações teológicas
Além dos problemas da crítica textual e da exegese brevemente apresentados acima, temos
sérios problemas teológicos se aceitarmos o acréscimo da palavra “outras”.
Primeiramente, temos um problema de onipotência. Todas as coisas foram criadas
por Jesus. Para um Ser poder criar todas as coisas que existem, ele necessariamente precisa ser
onipotente. A diferença entre a Onipotência Divina e as potências das criaturas não é meramente
uma questão de quantidade, mas também de qualidade. A onipotência Divina é algo
completamente único do Deus Criador, algo que ele não pode compartilhar (em essência) com
nenhuma criatura. Não pode simplesmente porque uma criatura que recebesse a Onipotência
seria divinizada (o que destruiria o monoteísmo), além de que nenhuma criatura possui estrutura
para tal poder. Assim, ou Cristo é Deus Onipotente e Criador junto com o Pai, ou ele é uma
aberração criatural que foi divinizado pelo próprio Deus. Teríamos então dois deuses, um
Criador eterno, e outro, criatura/criador-feito-no-tempo-espaço. Nada mais impossível.
Em segundo lugar, temos o problema da Onipresença. Todas as coisas foram criadas em
Cristo Jesus. Seja qual for as nuances de significados que possamos dar a essa preposição, uma
coisa é clara: para o universo ter sido criado “em” alguém, esse alguém precisa ser Onipresente.
Como a estrutura de uma criatura, que por definição está limitada pelo tempo e espaço, pode
conter em si, toda a imensidão do cosmo? Ou Jesus é Onipresente, ou a declaração paulina não
faz sentido nenhum.
Em terceiro e último lugar, temos a terceira preposição “para”, o que nos leva ao problema
teleológico. Todas as coisas foram criadas para Jesus. Ele é a finalidade, o propósito, o telos de
tudo o que existe. Somente Deus pode ser declarado como a finalidade da criação: “Porque dele,
e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente, amém” (Romanos
11.36). Se Deus tivesse localizado o propósito último da criação em uma mera criatura e não
Nele mesmo, Ele não estaria amando o mundo com um amor supremo. Convidar-nos a desfrutar
Dele próprio é a máxima do amor e cuidado Dele para conosco, pois somente Nele estamos
completos, e somente Nele achamos nosso propósito real e supremo. Portanto, ou Cristo é o
Deus Criador, único digno de ser o propósito da criação, ou estamos fadados a viver para uma
criatura como nós, que no final do dia, não poderá satisfazer nossa alma.
As três pequeníssimas preposições possuem implicações transcendentais. Em todo o AT,
somente YHWH é o Criador, sustentador e propósito último de todas as coisas. Não há
absolutamente nenhum indício que havia uma criatura primaria ajudando Deus no ato criacional
(como se Deus precisasse de ajuda). O testemunho das Escrituras é unívoco: Deus (e Deus
somente) criou todas as coisas. Ou Jesus compartilha da mesma essência Divina do Pai, ou Paulo
(e todos os apóstolos) estavam cometendo uma crassa blasfêmia ao atribuir ações Divinas a uma
criatura.

Considerações finais
Sabemos que não é meramente um problema textual ou a interpretação de uma palavra de
forma errada que levou a TNM a acrescentar uma palavra que muda o sentido do texto. É antes, a
totalidade do sistema do pensamento ariano que levou a essa e a todas as demais adulterações.
Dizer que Jesus criou todas as outras coisas, implica que ele é uma criatura e que, portanto, não
se criou, mas foi criado por Deus. Dizer que Ele criou todas as coisas é confessar que Ele é Deus,
pois somente Deus cria. O texto é totalmente claro ao dizer que Jesus criou todas as coisas, uma
simples frase que destrói completamente o arianismo. Portanto, o ato da traição é cometido para
manter vivo o sistema ariano. Como no caso de João 1.1, a versão de 2005 cobre os rastros do
crime ao tirar os colchetes, para não ser levantada nenhuma suspeita. Mas não é preciso ser um
Sherlock Holmes da hermenêutica para encontrar as evidências do crime.

Conclusão
Nossa crítica à TNM não se limita a versos dispersos que casualmente foram mal
traduzidos. A totalidade dessa tradução, completamente enviesada a priori, com pressupostos que
contrariam as verdades encontradas nos textos Sagrados é o alvo da nossa crítica. A totalidade
dessa tradução é corrupta, deixando de ser o texto Bíblico traduzido para ser outro coisa, outro
texto.
Dito isto, vale ressaltar que não há tradução absolutamente perfeita. Qualquer tradução que
se esforça para ser fiel em seu trabalho e cometa algum erro não intencional, não deixa por isso
de ser fiel.
Há inúmeras passagens, frases e palavras nas Escrituras que são difíceis de interpretar, e por
isso, difíceis de traduzir. Muitas delas não há consenso nem no nível de comentários técnicos e
avançados, nem no nível monográfico.
Temos por exemplo, problemas de crítica textual, ou seja, definir qual variação textual é a
mais próxima do original (veremos um estudo de caso no capítulo dez), o que certamente
influencia a tradução. Dentre alguns desses problemas, apenas para citar de passagem, são: a
doxologia do Pai- nosso em Mateus 6.13; se é Barrabás ou Jesus Barrabás em Mateus 27.16-17;
a conclusão de Marcos (16.9-20); o cântico dos anjos de Lucas 2.14; a cura em Betesda em João
5.3b-4; a perícope da mulher adúltera em João 7.53-8.11, as preposições “de” ou “para”
Jerusalém em Atos 12.25, entre outros.
Também temos questões ligadas à polissemia das palavras. Uma palavra pode ter vários
significados, o que torna difícil de decidir qual o melhor para o contexto. Às vezes o próprio
autor bíblico, consciente dessa polissemia, usa os diversos significados para enriquecer o seu
texto. É o caso de João 3.1-15, conversa entre Jesus e Nicodemos, na qual Jesus joga com a
palavra ἄνωθεν, que pode significar tanto “alto” (advérbio de lugar) como “de novo” (advérbio
de tempo). Como Nicodemos entendeu primeiramente a expressão como sendo (nascer) de novo
– e Jesus não o corrigiu – não há nenhum problema em traduzir dessa maneira. Mas a
ambiguidade continua, pois Jesus insiste que o novo nascimento é “do alto”, ou seja, uma ação
monergística de Deus, como os demais usos do termo no evangelho de João atestam (3.31;
19.11, 23; ver também Tiago 1.17; 3.15, 17).
Dentre vários outros problemas que podemos citar, vamos mencionar apenas este para
encerrarmos: as hápax legomena, que são palavras que aparecem apenas uma vez em um
determinado corpus textual. A carta de Paulo aos Colossenses possui uma quantidade
considerável de palavras assim, pois o apóstolo estava combatendo uma heresia naquela igreja
usando os próprios termos dos falsos mestres. Essas e outras dificuldades assombram todo e
qualquer tradutor honesto das Escrituras e de qualquer outro texto.
Concluímos que é possível a fidelidade na tarefa da tradução textual. Não somente possível,
mas condição sine qua non para tal. É impossível fazermos qualquer coisa sem nossos
pressupostos, mas esses mesmos pressupostos podem ser temporariamente suspensos ou
ocasionalmente mudados. Um muçulmano que se propõe a traduzir a Torá e um judeu que traduz
o Corão não podem mudar intencionalmente o significado do texto ao seu bel prazer. Quando
adulterações assim ocorrem aos montes, a tradução deixa sua essência própria e se torna
autônoma do texto fonte, resultando em outro texto. Portanto, a ação responsável no aspecto
linguístico/estético da tradução não escapa das leis significativas do aspecto ético. A TNM é um
exemplo de má tradução e desonestidade teológica e textual, um exemplo que pode haver sim
tradutores traidores. Mas a própria possibilidade e realidade da traição apontam para a
possibilidade e realidade de fidelidade na tarefa da tradução bíblica e textual.
8. YHWH, Jeová ou Senhor? Os paradoxos da Blasfêmia e a apoteose
do significante

“O original não é fiel à tradução”. Jorge Luis


Borges.

A possibilidade e a prática da tradução Bíblica é ponto pacífico entre católicos e


protestantes. Traduzimos os nomes de Deus, os nomes dos lugares, os nomes dos personagens da
narrativa bíblica, enfim, traduzimos. Entretanto, o surgimento de algumas seitas no cristianismo
tem colocado em “cheque” (sem fundo) essa prática.
Temos por exemplo, o Movimento do Nome Sagrado (MNS), que surge de dentro do
Adventismo, inicialmente ensinado por Clarence Orvil Dodd em 1930. Tal movimento queria
restaurar a fé cristã de acordo com suas origens judaicas. Como toda seita precisa de um
distintivo único para se diferenciar dos demais movimentos “apóstatas”, para com isso se
legitimar como verdadeiro, a marca desse movimento é a preservação do nome de Deus – YHWH
- e do nome de Jesus – Yeshua – tal como estaria no hebraico. Como era de se esperar, essa seita
também se mantém em muitas leis do AT, especialmente o descanso no sétimo dia, festivais da
Torá e leis alimentares. Como Paulo adverte em sua carta aos Gálatas e aos Colossenses, voltar a
essas práticas judaicas é desprezar a Cristo (que é o cumprimento dessas coisas) e certamente
uma anátema paira sobre quem acredita nisso.
Podemos destacar também os seguintes pontos em sua pregação:

1. Foi Jerônimo, o tradutor da Bíblia para o latim como vimos, quem introduziu o nome
“Jesus” pela primeira vez na Bíblia (como se em Mateus 1.21, o grego “Ἰησοῦν”
fosse diferente do latim “Iesum”, nada mais bizarro). Uma mera leitura de
qualquer página do NT seria suficiente para essas pessoas verem esse erro;

2. O nome “Jesus” significa “deus cavalo”. Chamar o Salvador por esse nome é uma
idolatria pagã, uma adoração indireta a um ídolo. Se alguém dissesse que o
fundamento das seitas é a ignorância não estaria errado. O argumento prossegue
assim: Ie(Je) = abreviação do nome de Deus e sus = cavalo, em hebraico.
Entretanto o “sus” para cavalo é escrito com a letra “samekh” ( ‫)ס‬, enquanto o
“sus” de Jesus é escrito com a letra “shin” ( ‫)ש‬. A consoante grega “sigma” do
nome Jesus está transliterando o hebraico “shin” e não “samekh”. Qualquer
pessoa que sabe o mínimo de hebraico saberia ver essa diferença, mas uma seita
que é fundamentada num suposto conhecimento do hebraico não fez essa lição de
casa básica. Portanto, Jesus é a tradução (ou transliteração) correta para “Deus
salva” e não “deus-cavalo”. Para aqueles que falam que “Jesus” é um cavalo, esse
adjetivo os descreve perfeitamente. Se for esse o caso, as palavras de Davi se
encaixam perfeitamente para eles: “Não sejais como o cavalo, nem como a mula,
que não têm entendimento, cuja boca precisa de cabresto e freio; de outra forma
não se sujeitarão” (Salmo 32.9);

3. O nome Jesus somado é igual a 666 (segundo uma gematria do país das maravilhas). O
cálculo seria I E S V S C R I S T V S F I L I I D E I (1 + 5 + 100 + 1 + 5 +
1+50+2 + 500 + 1 = 666). Assim, o problema não seria o nome de Jesus em
grego, mas uma frase inteira em latim (Jesus Cristo Filho de Deus). Com essa
acrobacia matemática, podemos fazer quase qualquer coisa resultar “666”.
Interpretar a marca da besta de Ap. 13.18 com uma mera transliteração é o
cúmulo da eisegese;

4. Não devemos traduzir nomes próprios. Obviamente temos que ter bom senso aqui.
Seria hilário traduzirmos Bill Gates para Guilherme Portões ou Michael Jackson
para Miguel Filho de Jacó. Mas não há nada intrinsecamente errado em se
traduzir ou transliterar um nome próprio. Caso contrário, o que se aplica aos
nomes próprios deveria ser aplicado a todas as outras palavras, e assim a tradução
seria uma impossibilidade ou um erro. Não preciso argumentar muito aqui. Toda
vez que o NT cita uma passagem do AT que tenha o nome de Deus, os apóstolos
usavam a tradução do nome hebraico para o grego. O próprio Jesus fez isso com o
nome de Pedro: Ele (André) achou primeiro a seu irmão Simão, e disse-lhe:
Havemos achado o Messias (que, traduzido, quer dizer Cristo). 42 E o levou a
Jesus. Jesus, fixando nele o olhar, disse: Tu és Simão, filho de João, tu serás
chamado Cefas (que quer dizer Pedro) (João 1.42-43; grifo meu). Essa tradução
de Jesus do nome de Pedro é a base de seu “trocadilho” em Mateus 16.18 (Pedro
– pedra).

Os demais pontos não são importantes para nossa discussão aqui, mas fluem desses quatro
pontos falaciosos. Somente aqueles que conhecem o nome de Deus e de Jesus em hebraico são
salvos e os pagãos que usam traduções são falsos cristãos. Versículos bíblicos isolados são
usados como fundamentação para as doutrinas da seita (nada diferente do que qualquer outra).
Na década de 90, surge mais uma ramificação desse movimento, a organização Yaohushua,
que se diz de Jerusalém, Israel, mas com um líder filipino, Filimino Nagado, que se identifica
como “Cohanul”. A “evangelização” desse movimento é feita via chats na internet e é assim que
pessoas desavisadas tornam-se seus prosélitos.
Os testemunhas de Jeová, possuem muitas características semelhantes ao MNS. O único e
verdadeiro nome de Deus é “Jeová”, e somente aqueles que professam esse nome são suas
verdadeiras testemunhas. Por isso, não devemos traduzir Jeová para Senhor.

Os nomes de Deus
O anacronismo anda ao nosso redor buscando a quem tragar. Isso se aplica ao termo
“nome”. Dizer que o significado de “nome” é o mesmo hoje e nos tempos bíblicos é no mínimo
anacrônico. Os nomes no AT não apenas identificavam as pessoas (como hoje), mas revelavam
características dessa pessoa. Assim, Abraão significa “o pai de multidões”, a filha de Faraó deu o
nome de Moisés ao menino no cesto de junco porque ela “tirou-o das águas”, e o nome do rei
Davi significa “o amado”. Isso se aplica a todos os nomes próprios do AT. Deus, ao se revelar
àquele povo, com essa tradição, revelou os seus “nomes” dessa maneira. Portanto, Deus se
manifestou com vários nomes, pois cada um revelava uma característica divina, um de Seus
atributos.
O mais importante (no AT) é o tetragrama YHWH, quem tem uma etimologia incerta e uma
pronúncia obscura, na qual não há consenso. Vou poupar o leitor desse debate maçante de
gramática hebraica e afirmar que sabemos quem Deus é pelas suas Palavras e Ações reveladas,
em vez de especulações etimológicas. Ainda sim, podemos entender YHWH como aquele que
existe (eternamente), o Senhor (Soberano). Dentre vários outros nomes de Deus no AT, vale
ressaltar mais alguns: Yhwh-Shammah (o Senhor que está presente; Ez. 48.35); El Shaddai
(Deus todo Poderoso; Gn. 17.1-22); Yhwh-Raah (o Senhor é meu pastor; Sl. 23.1); El Elyon
(Deus altíssimo; Is. 14.13); El Olam (o Deus eterno; Is. 40.28); El Roi (o Deus que vê; Gn.
16.13); Adonai (Senhor; Sl. 97.5); Elohim, entre muitos outros. A partir da evidência textual,
nosso ponto torna-se claro como a água. Deus através de seus nomes revelou ser um Deus
onipotente, onisciente, onipresente, eterno, criador, provedor, salvador, transcendente, amoroso,
misericordioso, santo, etc.

Gnosticismo redivivus: A apoteose do significante


Considerar um nome em hebraico (uma mera língua humana), a junção de quatro
consoantes antigas (YHWH), o único nome do nosso Criador é reduzi-lo ao status de uma criatura
(moderna). Quando Deus se revelou primeiramente para Moisés, Ele simplesmente disse: Eu sou
o que sou (Ex. 3.14). Ele nos revelou vários “nomes” e isso foi um ato de Sua graça, a vontade
de se revelar aos homens (em alguns casos, nome é sinônimo de glória, que é a manifestação de
Deus).
Não podemos deixar de perceber o caráter essencialmente gnóstico dessas seitas (e da
maioria delas). A heresia gnóstica surgiu por volta do segundo século da nossa era, sempre
retornando ao longo da história com outras roupagens. Os gnósticos atribuíam o mal à própria
estrutura da criação. Considerar que algum aspecto da criação (material, por exemplo) de Deus é
inerentemente mal contraria o que Deus disse após ter criado todas as coisas: “Eis que tudo é
muito bom” (Gn. 1.31). Podemos ver esse gnosticismo, por exemplo, em todas as ideologias
políticas de nossa época (como argumenta o filósofo Eric Voegelin). O que o MNS faz é atribuir
maldade no ato de tradução dos nomes de Deus e de Jesus. A tradução, como vimos, é algo dado
por Deus na criação. Na diversidade de aspectos modais da realidade que Deus criou, o núcleo de
significado do aspecto linguístico é a comunicação por símbolos, o que necessariamente implica
a necessidade de tradução desses símbolos. Atribuir status transcendentais a um produto da
cultura humana (nesse caso, os significantes hebraicos) é um ato idólatra, pois diviniza uma
palavra e se esquece do Deus que se revelou através dessa palavra, é dar mais valor à “forma” do
que ao conteúdo, é estabelecer leis criacionais que o próprio Deus rejeita (crer em tradições de
homens e não na Palavra de Deus).
Vale ainda ressaltar o segundo aspecto gnóstico dessas seitas. No gnosticismo, somente era
salvo um grupo de iluminados que possuíam algum conhecimento secreto, esotérico de Deus.
Nesse caso, somente é salvo quem pronuncia os nomes de Deus e de Jesus em hebraico, todo o
resto da cristandade está perdido. Salvação mediante o conhecimento para um grupo seleto e
elitista foi uma das invenções mais destruidoras do diabo (ou diabolos?). O verdadeiro evangelho
de Cristo proclama a salvação pela Graça mediante a fé, para todos os que creem (Rm 3.22).
Como vimos, Deus se revela em Cristo a todos os povos de todas as línguas. Portanto, quer
alguém chame Deus de YHWH, Yaweh, Jeová, Senhor, Kírios, Lord, ou chame Jesus de Iesous,
Yeshua, ; イエス・キリスト(japonês) ou 耶稣基督 (chinês simplificado), o importante é adorar com
fé genuína, com um coração verdadeiro, o Deus verdadeiro, de forma correta. Achar que está
fazendo isso simplesmente apelando à grafia hebraica é colocar a carroça na frente dos bois, é
um enorme autoengano idólatra.

O paradoxo da Blasfêmia
O terceiro mandamento, dos dez de Êxodo 20. 1-17, diz: “Não tomarás o nome do Senhor
teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente aquele que tomar o seu nome em vão”
(20.7). Muito do zelo de pessoas que não concordam com a tradução dos nomes Divinos vem de
uma aplicação desse mandamento.
Tratar desse mandamento é muito apropriado para esses ensaios, pois ele trata da atenção
devida às representações verbais de Deus. As implicações desse mandamento são amplas (como
os demais) e não poderemos tratar de todas aqui. É oportuna a menção das implicações feitas no
Catecismo Maior de Westminster. Os puritanos (século XVII) eram grandes teólogos e
expositores da Palavra de Deus e suas aplicações das verdades bíblicas eram amplíssimas. As
perguntas 111 a 114 abordam o terceiro mandamento da seguinte maneira (referências bíblicas
foram omitidas, mas o leitor pode facilmente ter acesso a esse material):

111. Qual é o terceiro mandamento?

O terceiro mandamento é: "Não tomarás o nome teu Senhor teu Deus em vão, porque o
Senhor não terá por inocente aquele que tomar em vão o nome do Senhor seu Deus".

112. O que se exige no terceiro mandamento?

No terceiro mandamento exige-se que o Nome de Deus, os seus títulos, atributos,


ordenanças, a Palavra, os sacramentos, a oração, os juramentos, os votos, as sortes, suas obras e
tudo quanto por meio do quê Deus se faz conhecido, sejam santa e reverentemente usados em
nossos pensamentos, meditações, palavras e escritos, por uma afirmação santa de fé e um
comportamento conveniente, para a glória de Deus e para o nosso próprio bem e o de nosso
próximo.

113. Quais são os pecados proibidos no terceiro mandamento?

Os pecados proibidos no terceiro mandamento são: o não usar o nome de Deus como nos é
requerido e o abuso no uso dele por uma menção ignorante, vã, irreverente, profana,
supersticiosa ou ímpia, ou outro modo de usar os títulos, atributos, ordenanças, ou obras de
Deus; a blasfêmia, o perjúrio, toda abominação, juramentos, votos e sortes ímpios; a violação dos
nossos juramentos e votos, quando lícitos, e o cumprimento deles, se por coisas ilícitas; a
murmuração e as rixas, as consultas curiosas, e a má aplicação dos decretos e providência de
Deus; a má interpretação, a má aplicação ou qualquer perversão da Palavra, ou de qualquer parte
dela; as zombarias profanas, questões curiosas e sem proveito, vãs contendas ou a defesa de
doutrinas falsas; o abuso das criaturas ou de qualquer coisa compreendida sob o nome de Deus,
para encantamentos ou concupiscências e práticas pecaminosas; a difamação, o escárnio,
vituperação, ou qualquer oposição à verdade, à graça e aos caminhos de Deus; a defesa da
religião por hipocrisia ou para fins sinistros; o envergonhar-se da religião ou o ser uma vergonha
para ela, por meio de uma conduta inconveniente, imprudente, infrutífera e ofensiva, ou por
apostasia.

114 Quais são as razões anexas ao terceiro mandamento?

As razões anexas ao terceiro mandamento, contido nestas palavras: “O Senhor teu Deus”, e,
“porque o Senhor não terá por inocente aquele que tomar em vão o Seu nome”, são porque ele é
o Senhor e nosso Deus, portanto o seu Nome não deve ser profanado nem por forma alguma
abusado por nós; especialmente porque ele estará tão longe de absolver e poupar os
transgressores deste mandamento, que não os deixará escapar de seu justo juízo, embora muitos
escapem das censuras e punições dos homens.
Embora as aplicações sejam vastas, quero chamar a atenção do leitor para o uso
supersticioso do nome de Deus (pergunta 113). Certamente, na época em que Moisés escreveu
seus cinco volumes (como em todas as épocas), as religiões pagãs em torno de Israel usavam os
nomes de suas divindades de forma supersticiosa. As dez pragas contra o Egito no começo do
livro do Êxodo são desferidas contra as divindades dos egípcios, cada uma dessas divindades era
ligada de modo supersticioso a algum aspecto da criação. Assim, YHWH demonstra sua
soberania e superioridade em relação aos falsos deuses egípcios.
A tentação de imitar os pagãos sempre foi muito presente na nação de Israel. O desejo
mimético girardiano sempre comprometeu a fidelidade judaica ao Deus que se revelou a eles.
Como era comum o uso supersticioso dos nomes das divindades pagãs, consequentemente os
israelitas seriam tentados a usar o nome de YHWH desse modo, desonrando o único Deus
verdadeiro. E aí que o terceiro mandamento entra, com uma forte admoestação contra esse tipo
de pecado. Deus é transcendente, soberano e santo, por isso não deveria ser tratado ou invocado
de maneira leviana. Há várias formas de fazer uso supersticioso do nome Divino. Uma delas,
talvez a principal, é lidar com Deus mediante barganhas. Barganhar com Deus é, ou colocar
Deus como igual ao homem, ou colocar o homem como igual a Deus. A barganha é presente em
todas as manifestações religiosas de corações que não conhecem a Deus. Fazer algo para Deus e
depois exigir que Ele nos recompense é a cerne da destronização de Deus no coração idólatra.
Entretanto, a barganha não é a única maneira de usar o nome de Deus supersticiosamente.
Parece-me que a crença na intraduzibilidade do(s) nome(s) de Deus, ao tentar não usar esses
nomes em vão, cai na própria armadilha. Afirmar que a junção de quatro letras hebraicas (transl.
Y – H – W – H) contém intrinsecamente a totalidade do caráter do Deus infinito é no mínimo
non sequitur. Dizer que, assim como me chamo Willian, O Criador Soberano chama YHWH é
no mínimo anacrônico e não irei me repetir nesse ponto. Associar caracteres linguísticos, criados
no tempo e no espaço, criados por um determinado povo, como se fosse a única maneira de se
dirigir ao Ser Supremo e eterno é reduzi-lo às limitações humanas. Podemos perguntar qual era o
nome Divino antes da invenção da língua hebraica, e do tetragrama sagrado. Caso fosse “outro”
nome, isso relativizaria o tetragrama, caso fosse o mesmo, a língua hebraica ganharia proporções
místicas e divinas, sendo capaz de ser eterna no passado, mas incapaz de resistir à mera
progressão linguística na história humana. Caso o primeiro desses dois absurdos fosse verdade,
apenas corroboraria nossa tese. Se fosse “outro” nome, então Deus “traduziu” esse nome eterno
para o dialeto hebraico. Caso o segundo absurdo fosse verdade, por que Deus não preservou esse
“santíssimo” idioma ao longo das eras? Por que não há uma ordem para todos os povos
aprenderem o antigo hebraico? Por que nem sequer sabemos a exata pronúncia original de
YHWH? Perguntas absurdas surgem de ideias absurdas.
Concluo, portanto, que absolutizar um dos nomes de Deus, na forma como foi revelado num
determinado idioma, é tornar esse signo parte da divindade, é divinizar uma parte da criação
(ainda que tão pequena como um nome próprio hebraico). Deus não pode ser contido por apenas
um substantivo (e nem por todos juntos), pois Ele transcende toda e qualquer capacidade humana
de expressar a revelação do Ser Divino. Se Deus não tivesse escolhido os judeus e, por exemplo,
tivesse escolhido os egípcios, ou os amorreus, ou os filisteus, certamente teria se revelado no
idioma deles, e as formas YHWH, Elohim, El Shaddai, nunca teriam existido para designar o
Deus verdadeiro, ainda que o significado delas (Soberania, Divindade, Onipotência) teria sido
expresso no idioma do povo escolhido. A apoteose de um significante, ao tentar evitar a
blasfêmia, profere blasfêmias contra Deus, reduzindo-o ao nível humano. Assim, a ironia que
está presente em toda forma de idolatria aparece escancarada, e deus começa a se tornar cada vez
mais como os homens, e os homens ficam cada vez mais parecidos com esses falsos deuses, num
círculo vicioso da religião apóstata.
9. Hermenêutica Feminista e a tradução Bíblica

Introdução
Espero que esse ensaio seja moderado e sensato. Digo isso devido à intensidade das
emoções que afloram sempre que alguém, seja de qual lado for, começa a debater sobre esse
tema delicado. Talvez não agrade a nenhum dos polos da discussão, mas tal agrado nunca esteve
nos horizontes de intenções do autor.
Antes de falarmos sobre os impactos feministas na tradução bíblica, é necessário
discorremos brevemente sobre a própria hermenêutica feminista, que está por trás dessas práticas
de tradução. Depois disso, dividiremos nossa atenção em dois momentos: veremos pontos nos
quais é impossível a abertura teológica na tradução bíblica feminista, sem comprometer verdades
distintivas da fé cristã; por fim, iremos analisar com cuidado e doses extras de sabedoria, textos
que são indiferentes se os traduzirmos tradicionalmente, ou de acordo com a tradução
“feminista”.

Hermenêutica Feminista
A teologia feminista é um dos ramos da hermenêutica sociológica das Escrituras, que por
sua vez é um dos ramos das tendências interpretativas dos nossos dias. As hermenêuticas
sociológicas surgem, em parte, como reação ao mero fazer teológico academicista, que não
possui nada de relevante para o dia a dia das pessoas. Emerge com grande força no “Terceiro
Mundo”, voltando-se com ímpeto à ortopraxia, ou seja, à prática e não muito à ortodoxia
(doutrina correta).
Outro ramo da hermenêutica sociológica é a Teologia da Libertação e sua irmã evangélica, a
Teologia da Missão Integral. Como não é o nosso foco, basta dizer que essas tendências são
inadequadas, na melhor das hipóteses. A hermenêutica sociológica, tentando evitar certos
reducionismos, ela mesma cai em um (ou vários). Ela se volta para os aspectos sociológicos das
realidades textuais, mas se perde nessa análise, pois absolutiza o próprio aspecto que seleciona.
Ao fazer isso, se perde a incalculável pluriformidade de significados outros que não
sociológicos. As teologias que se casam com Marx fazem o mesmo. Uma das tragédias em se
reduzir a fé à política, é que o elemento escatológico inerente ao aspecto da fé é movido para o
aspecto político, que mediante um messianismo terreno e fadado ao lapso, tenta trazer a Nova
Jerusalém por força política revolucionária, exatamente o erro de muitos judeus na época de
Jesus (inicialmente, até mesmo dos seguidores de Jesus). Vale ressaltar, também, que é
praticamente impossível ler as Escrituras com os óculos de um pensador hostil às Escrituras
(como Marx), sem cair em falácias anacrônicas.
Os comentários acima servem para nos dar um pouco do contexto para começarmos a falar
sobre a hermenêutica feminista e seus impactos na tradução Bíblica. Muitos datam o início da
hermenêutica feminista em 1983, mas podemos com alguma segurança obter uma data mais
tardia, com a obra de Alice Walker (1944), seguida por Kate G. Cannon . Após isso, surgiram
5

inúmeras obras de autoras com esse viés, tratando dos mais variados temas, como o patriarcado,
liderança feminina, HIV e AIDS, violência, preconceitos, etc. O movimento teve grande diálogo
com a “Teologia Negra”, e muitos africanos produziram muitos livros e artigos, como por
exemplo, Gerald West, Vincent Wimbush, etc. Carolyn Osiek sugeriu algumas atitudes
diferentes no movimento em relação à Bíblia:
1. Osiek primeiramente discute a questão da “submissão” das mulheres. Dentre as
estudiosas que abordaram esse assunto, podemos listar: N. A. Hardesty (1984), Patricia
Gundry (1987), A. Michelsen (1986), V. R. Mollenkott (1988), Elaine Storkey (1985),
e
L. D. Scanzoni (1997). Essas abordagens evitam a total rejeição de textos bíblicos que
exigem a submissão feminina ao marido (como Efésios 5.22 e outros), e aderem a uma
abordagem mais “revitalizadora” desse tema;

2. As “feministas revisionistas” (como as chama Osiek), queriam (ou querem) manter o


compromisso com a fé cristã, mas rejeitam as passagens “patriarcais” das Escrituras,
como sendo culturalmente condicionadas e contingentes, além de distraírem as
atenções da verdadeira mensagem da Bíblia (nas palavras de Thiselton). Mulheres
como Rosemary Radford Ruether, Phyllis Trible, e Ann Loades lutaram para manter o
feminismo dentro da fé cristã (dentro de estudos do AT e da Teologia Sistemática),
diferente de Mary Daly e Daphne Hampson, que viam a fé cristã como incompatível
com o feminismo;

3. Osiek também lista o “feminismo da libertação” (mas a diferença é de grau e não de tipo).
Dependentes da Teologia da Libertação, esse feminismo clamava contra a opressão, e a
favor da libertação feminina. Muitos dos nomes do ponto acima aparecem aqui como
figuras de liderança, como Ruether e outras. Cheryl Exum examina Êxodo 1:8-2:10 em
um ensaio, destacando como as mulheres tomam a iniciativa na libertação do povo de
Israel. Esse movimento entende a si mesmo como usando o melhor das ferramentas
exegéticas para a interpretação da Bíblia, sempre “acham o poder libertador” que há
nos textos;
4. Continuando nas categorias de Osiek, Mary Daly e Daphne Hampson são consideradas
feministas “não cristãs”, ou “pós-cristãs”. Elas julgaram o cristianismo como
extremamente patriarcal para se reconciliar com o feminismo;

5. Muitas feministas possuem forte influencia do feminismo francês. Autores como Derrida,
Barthes, Foucault, Baudrillard, Deleuze, Beauvoir, Kristeva e Lacan (para citar alguns)
se esforçaram em mostrar que muito do que chamamos de “natureza” ou “essência”,
não passa de convenções sociais determinadas por preconceitos históricos (como a
submissão da mulher, roupas, sexualidade, loucura, etc.).

Muito pode e deve ser dito e avaliado sobre a relação do feminismo e a Bíblia (em uma obra
específica sobre o assunto). Por hora, cabe-nos pontuar alguns breves comentários sintéticos: (I)
os estudos do inicio de 1980 foram importantes para mostrar as experiências femininas nas
Escrituras. Surgiram algumas escritoras talentosas analisando as personagens femininas tanto do
Antigo como do Novo Testamento; (II) A adesão à hermenêutica da libertação não só é
assumido, mas também declarado como vantajoso. Embora elas estejam corretas ao afirmarem a
importância do pré- entendimento, o uso ingênuo e à priori dessa hermenêutica conduz a uma
seletividade de textos para analisar que leva quase que inevitavelmente a distorções e
reducionismos; (III) a rejeição do “patriarcado” falhou em proporcionar uma distinção robusta
entre bagagem cultural e verdades teológicas. Pannenberg já demonstrou que a atribuição a Deus
como “Pai” é insubstituível. A abertura ao texto da qual falava Gadamer e a alteridade que falava
Ricoeur precisam ser levadas a sério numa hermenêutica responsável. O Deus que se revela nas
Escrituras é “Outro”, diferente de nós, e um entendimento que se abre para Seu conhecimento
precisa se curvar a essa alteridade transcendente de Deus e aceitar o modo como Ele decidiu se
revelar a nós.
Atualmente não existe uma única escola de pensamento feminista. A diversidade é grande
não somente entre as pensadoras, mas também em relação às questões levantadas. Passemos
agora a analisar pontos que são inegociáveis e outros que não são tão inegociáveis assim.

Pontos inegociáveis
Carol C. Christ e muitas outras feministas encontram dificuldades com a masculinidade de
Deus e de Cristo. Carol e Mary Daly estão no espectro mais radical do feminismo, acreditando,
por exemplo, que Deus é “Fêmea”. O debate sobre o gênero gramatical está longe de acabar.
Veremos agora alguns pontos relevantes sobre o assunto.

Cristologia Sapiencial e a Senhora Sabedoria


Estudiosas feministas apontam para a figura da Sofia, a Senhora Sabedoria personificada
nos escritos sapienciais da literatura judaica como um argumento para a feminilidade de Deus
e/ou de Cristo. Quanto a essa questão, o erudito escocês do AT James Barr – que fez
contribuições para o estudo vocabular e estrutural da língua hebraica – apontou que questões
dessa natureza são no máximo irrelevantes. Esse mau uso do gênero gramatical é falacioso, pois
compara o gênero das palavras de uma língua com os gêneros de outras línguas. Barr demonstrou
que o gênero na linguagem às vezes corresponde à diferença entre feminino e masculino, e às
vezes não. Bruce Waltke – outro estudioso do AT – argumentou que a linguística moderna
concorda que o gênero gramatical serve apenas parcialmente para denotar diferenças sexuais
entre seres animados.
A Sabedoria é personificada como uma mulher em Provérbios 8 – assim como a idolatria é
personificada como uma mulher adúltera. O argumento que levaria em conta que o Messias é
uma mulher segue assim: (I) Cristo é a Sabedoria Divina; (II) a Sabedoria é retratada como uma
mulher e; (III) a Sabedoria, às vezes, possui alguns atributos Divinos. Assim, se Cristo é Deus, e
Ele próprio é retratado como uma “mulher”, a própria divindade seria feminina. As premissas
são falaciosas, pois carregam apenas meias verdades, e o perigoso non sequitur sempre está
batendo a nossa porta.
Primeiramente, a Senhora Sabedoria em Provérbios é apenas uma personificação literária e
nada mais (a própria construção do texto mostra isso). YHWH quer que seu povo busque a
sabedoria que vem dele próprio, e não a do mundo. A idolatria também é personificada como
uma mulher adúltera que leva à morte. A figura feminina é especialmente pujante para tal apelo.
Assim, um dos atributos de Deus (a Sabedoria) é literariamente personificada, com a finalidade
retórica de persuadir o povo de Deus a busca-la. Em segundo lugar, a Cristologia Sapiencial é
marcante especialmente na teologia de Paulo. Cristo é a Sabedoria de Deus em 1Co. 1.18-31 e o
pano de fundo do hino cristológico de Colossenses 1.15-20 é a Sabedoria de Provérbios 8, em
seu desenvolvimento interpretativo nos escritos judaicos do segundo templo. Entretanto, o link
entre Jesus e a Sabedoria é uma ligação tipológica e não ontológica/pessoal. Paulo vai muito
além das características da Sabedoria, ao lidar com Jesus. Apenas um exemplo será suficiente
aqui. A Sabedoria é descrita como sendo “co-criadora” e “co-sustentadora” da criação junto com
Deus. Essas duas qualidades são atribuídas a Jesus, mas Paulo acrescenta que o alvo, o propósito,
a direção teleológica da criação é Jesus. Em nenhum lugar diz que a criação foi feita para a
Sabedoria, mas Paulo deixa isso claro a respeito de Jesus: “Tudo foi criado por ele e para ele, Ele
é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por Ele” (Cl. 1.16-17). Portanto, assim
como todos os outros tipos do AT, o antítipo que é Cristo sempre sobrepuja e transcende sua
sombra. Em terceiro e último lugar, a atribuição de atributos divinos à Sabedoria se dá devido a
intrínseca unidade ontológica de Deus. Todos os seus atributos são unidos e se interpenetram
mutualmente. Assim como o amor de Deus é santo, justo, bom, e a santidade de Deus é amorosa,
graciosa, imutável, assim também a sabedoria divina é onipotente, criadora, justa, etc. Deus
revelou seus atributos como diversidade para que nossas pequenas mentes pudessem admirá-lo
apropriadamente, mas não devemos fazer uma separação radical e formal dos seus atributos, pois
todos são coerentes na unidade do Ser de Deus. Portanto, seria blasfemo dizer que a sabedoria de
Deus (ou qualquer outro atributo) não comunga com todos os outros atributos.
Dito isto, não há base textual ou lógica alguma para declarar que Deus e seu Cristo são
“mulheres”. Vamos nos mover agora para outro ponto importante.

A paternidade de Deus e a desconstrução do patriarcado


A Bíblia feminista alemã “in gerechter Sprache”, ou simplesmente “Bíblia numa linguagem
mais justa” (como chamam seus idealizadores), tem por objetivo desconstruir o que para as
teólogas feministas são textos “patriarcais” (influenciados pelo sexo masculino). Segundo elas,
termos como “Senhor”, “Deus” e até mesmo “Filho de Deus” não fazem justiça à igualdade de
gênero, pois refletem uma ideia de exclusão do sexo feminino. Antes de continuarmos, vale
ressaltar a influência da teologia da libertação, e a concepção marxista de “justiça” sendo
imposta anacronicamente à concepção bíblica.
Muitos teólogos têm criticado essa concepção. John Frame, em “A Doutrina de Deus”
(2002), argumenta que a atribuição masculina a Deus não possui conotações sexuais. Nenhuma
linha dentro do cristianismo tradicional nesses dois milênios argumentou que Deus de fato é um
homem ou uma mulher.
Para o Dr. Frame, a ênfase das passagens bíblicas que descrevem Deus no gênero
masculino, como “Juiz”, “Rei” e “Senhor”, não é resultado do “patriarcado” cultural da época,
uma vez que os escritores do Antigo Testamento, por exemplo, viviam num contexto onde
deidades femininas eram reverenciadas, (Jz. 10.6; 1 Sm. 7.4; 12.10). Portanto, a adoração pagã
era claramente voltada para junções entre deidades masculinas e femininas. Se os escritores
Bíblicos tivessem sido influenciados pela cultura de suas épocas, YHWH seria descrito como a
junção do feminino e do masculino, e não como majoritariamente masculino. A força da imagem
masculina está exatamente em não ser culturalmente condicionada, mostrando que esse foi o
modo que o próprio Deus decidiun se revelar ao seu povo, e não seria esse povo (e nenhum
outro) que determinaria o modo da revelação divina.
Ainda segundo o Dr. Frame, a revelação de Deus figuradamente como “masculino” reflete a
própria ordem da criação entre o homem e a mulher, e seus respectivos papéis criacionais.
Escritoras feministas como Elizabeth Johnson se recusam a aceitar isso como vontade de Deus,
mas isso é simplesmente o modo como a revelação foi outorgado, o significado inevitável da
totalidade do ensino bíblico.
Não por acaso, a “bíblia feminista” retraduz vários trechos bíblicos. Por exemplo, “Senhor”
é traduzido por “die Lebendige” (do alemão, “Vivente”), anulando a atribuição de senhorio a
Deus e do gênero masculino associado a Ele. O corolário que segue desse movimento é a
negação da função de liderança dos homens, na família (Efésios 5. 22-26), associadas ao
senhorio de Deus sobre sua criação.
O teólogo Wolfhart Pannenberg, em sua Introdução à Teologia Sistemática, argumentou
que é impossível substituirmos o termo “Pai” para nos referirmos a Deus. Não podemos chamar
Deus de “Mãe”, ou de “Tio” ou “Tia”. Pannenberg argumenta que o termo “Pai” tornou-se um
nome pessoal de Deus, devido ao uso singular de Jesus. O Filho dirige-se a Deus como Pai,
sendo o único que conhece de fato ao Pai, pois compartilha de seus atributos divinos. Sendo
assim, o próprio Messias nos ensina a chamar Deus de nosso Pai. Isso demonstra Sua autoridade
e providência, mas também seu relacionamento especial com Jesus e seu povo. O teólogo alemão
também demonstra que toda linguagem religiosa não é perfeitamente adequada para nomear a
Deus. É por esse motivo que usamos uma grande quantidade de palavras e símbolos para nos
referirmos a Deus, mas todas elas são extrínsecas à realidade Divina. Isso é algo crido e
confessado por toda a tradição cristã. Entretanto, como também cremos que essa é a revelação do
próprio Deus, mudar significativamente essas palavras, títulos e atributos é trocar o Deus
verdadeiro por outro deus, feito à nossa própria imagem e semelhança.

O Filho do Homem, Filho de Deus


Dois títulos centrais para toda a Cristologia do Novo Testamento são: “Filho do homem” e
“Filho de Deus”. Dado o contexto desse capítulo, não é preciso dizer que ambos os títulos trazem
um forte e incontornável tom masculino. Afinal, Jesus ao encarnar, tornou-se homem e não
mulher. Qualquer tentativa de mudar essa realidade está se colocando fora do cristianismo. Não
poderíamos, por exemplo, traduzir Filho do Homem como “prole da humanidade” e nem “Filho
de Deus” por “criança da divindade”. Essas (im)possibilidades de tradução eliminariam o tom
masculino de ambos os títulos, mas também eliminaria todo o resto. Jogaríamos fora a água, o
bebê, a família e toda a humanidade junto. Vejamos alguns motivos e exemplos.
Primeiramente, ambos os títulos estão fundamentados no Antigo Testamento e possuem
uma origem comum. “Filho do Homem” invariavelmente refere-se (no NT) à figura messiânica
de Daniel 7, que após sofrer, recebe toda a autoridade, glória e louvor, estando à destra de Deus
(sendo o representante do povo de Deus, que também sofre e é exaltado). O título “Filho de
Deus” é usado para se referir ao povo de Israel, chamado pelo próprio Deus de “filho” (cf. Êxodo
4.22 e Oséias 11.1). Portanto, Jesus é o verdadeiro Israel, o representante do povo de Deus, que
após sofrer a morte, foi exaltado pelo próprio Deus à Sua destra, recebendo toda a autoridade,
honra e glória. Ambos os títulos estão fundamentados na narrativa criacional de Adão, no início
de Gênesis. Adão é o filho de Deus que recebeu autoridade sobre a criação. Após a queda, a
promessa era que seu descendente recuperaria essa função primordial da imagem de Deus.
Portanto, a Cristologia do “Filho do Homem, Filho de Deus”, encontram-se na mesma origem
profunda de significado na Cristologia Adâmica, desenvolvida na teologia paulina. Estudiosos
têm mostrado as alusões e os ecos de Gênesis 1-3 em Daniel 7 e na narrativa do Êxodo (como já
vimos brevemente). Israel foi chamado para ser um “Adão corporativo”, mas também falhou
miseravelmente em sua missão. Apenas Jesus foi perfeitamente bem-sucedido em sua missão.
Mudar esses títulos nas traduções para serem mais neutros, resultaria na dissolução de todo o
ensino histórico-redentivo apostólico sobre a pessoa e a obra do Messias.
A Nova Tradução da Linguagem de Hoje (NTLH) fez algo parecido em Hebreus 2.6-8:

“6 Pelo contrário, em alguma parte das Escrituras Sagradas alguém afirma: “Que
é um simples ser humano, ó Deus, para que penses nele? Que é o ser mortal para que te
preocupes com ele? 7 Tu o colocaste por pouco tempo em posição inferior à dos anjos, tu
lhe deste a glória e a honra de um rei 8 e puseste todas as coisas debaixo do domínio dele.”

O autor aos Hebreus está citando o Salmo 8.3-6. Especificamente aqui em Hebreus 2, não
estamos lidando com uma questão de ortodoxia. Os tradutores podem habilmente argumentar
que não há conotações messiânicas no Salmo 8, e que o foco de Hebreus 2 é o fato de Jesus ter se
tornado um ser humano. Portanto, se não houver a negação de que na maioria dos outros textos
do NT (que fazem alusão a Daniel 7, por exemplo) o título deve ser mantido no masculino, não
estamos debatendo ortodoxia, mas apenas qual tradução seria melhor. Entretanto, mesmo
reconhecendo a dificuldade e apaziguando o debate, devemos ter em mente que a tradução
melhor é manter o tom masculino (de Homem e filho do homem), por algumas razões.
Primeiramente, o autor aos Hebreus decidiu assim, ao manter os substantivos (homem, filho do
homem) e os pronomes (ele) no masculino (ἄνθρωπος; υἱὸς ἀνθρώπου; αὐτόν), assim como na
LXX. Em segundo lugar, o Salmo 8, assim como as outras passagens mencionadas acima, faz
alusão à criação de Adão. A meditação do autor (Davi) se dirige à criação da terra, dos céus e das
estrelas (versos 1-3), movendo-se para a criação do ser-humano, especificamente Adão, como
representante da humanidade. Portanto, devido à intertextualidade com Gênesis 1-2, a melhor
tradução seria manter o masculino. Em terceiro e último lugar, a própria citação e aplicação do
Salmo 8 em Hebreus 2 tem completamente um tom messiânico, pois foi aplicado ao próprio
Jesus. O argumento de que o Salmo 8 não possui tons messiânicos é discutível, pois Davi, ao
meditar sobre a glória de Adão antes da queda, poderia ter gerado uma expectativa messiânica de
recuperação dessa glória, senão não faria muito sentido a meditação. Entretanto, o uso
messiânico desse Salmo no NT é inequívoco (cf. 1Co. 15.27; Ef. 1.22). A messianidade de Jesus
é inseparável de sua masculinidade, pois disso depende a história da redenção. Um homem pecou
como representante da humanidade, um homem precisaria morrer e redimir essa (nova)
humanidade. Isso de modo algum rebaixa a mulher, pelo contrário. Diferente de muitos textos
apócrifos judaicos, que colocam a culpa primeira da queda na mulher, rebaixando-a como
inferior ao homem por causa disso, a correta interpretação do AT e o ensino do NT mostram que
a culpa última foi de Adão, não rebaixando a mulher em nenhum sentido. Assim, não somente a
humanidade de Jesus, mas também a masculinidade de Jesus são boas novas para as mulheres (e
para toda a humanidade).

Despatriarcalização e desmitologização
Podemos denominar esse movimento hermenêutico de “Despatriarcalização”, um programa
de reinterpretação radical. Anthony Thiselton, em seu volume “New Horizons in hermeneutics”
(p. 452-53), mostrou os paralelos entre esse programa hermenêutico e o programa de
desmitologização de Bultmann e aqui podemos oferecer apenas um resumo desses paralelos e
uma conclusão.

1. Bultmann sempre argumentava que seu projeto interpretativo jamais teve a intenção de
impor um sistema filosófico sobre o texto bíblico. Ele insiste que o próprio texto
bíblico nos convida a essa desmitologização. Vale lembrar que Bultmann é
influenciado pela filosofia existencialista, especialmente de Martin Heidegger. Ele
afirma que os ensinamentos do NT contêm esses insights existenciais. Assim, a
confiança kerigmática era mascarada por pseudo-descrições linguísticas que usavam o
mito como veículo. O objetivo de Bultmann era comunicar a mesma mensagem dos
apóstolos para o homem moderno, mas sem as barreiras que os “mitos” poderiam
colocar sobre a modernidade. Paralelamente, Phyllis Trible distingue entre duas
funções da linguagem na interação com as metáforas e imagens bíblicas. Usando a
terminologia de I. A. Richards (1936), ela distingue entre o veículo da metáfora
(equivalente ao mito de Bultmann) e seu tenor ou confiança (equivalente ao kerigma de
Bultmann). Assim, ambos os autores dissertam que o veículo das metáforas pode
obscurecer a verdadeira mensagem dos autores bíblicos. A linguagem masculina para
descrever Deus seria um bom exemplo disso.

2. Bultmann acreditava que a linguagem desmitologizada já estava presente nas páginas


sagradas. Phyllis Trible também acreditava que a linguagem despida do patriarcado já
estava presente nas Escrituras. Ela aponta imagens “femininas” de Deus como uma
“mulher grávida” (Is. 42.14); como uma mãe (Is. 63.13); uma parteira (Sl. 22.9); e
como uma serva (Sl. 123.2). Não se leva em conta que em todas essas passagens
aparece um explícito “como” para estabelecer um paralelo comparativo (e não
identificação ontológica) das ações dessas figuras femininas e as ações divinas.

3. Para Bultmann, os autores bíblicos ainda tinham uma cosmologia primitiva, uma
cosmovisão mitológica. Essa forma de ver o mundo constituía uma pedra de tropeço
para os leitores modernos, e a única pedra de tropeço deveria ser a cruz de Cristo (1Co.
1). Paralelamente, a linguagem sociológica androcêntrica (centrada no sexo masculino)
da Bíblia seria uma pedra de tropeço desnecessária para a mulher moderna. Ambas as
hermenêuticas querem remover as falsidades que obscurecem desnecessariamente a
verdadeira mensagem.

Os paralelos são claros. Ambos estão partindo de um antigo fundamento grego, a dicotomia
entre forma e conteúdo. Bultmann, especificamente, parece estar sendo influenciado por um
“ou/ou” kierkegaardiano de enunciados descritivos e volitivos. Enquanto Bultmann escreveu seu
aclamado ensaio em 1941, I. A. Richards formulou sua teoria da metáfora em 1936, que
influenciou Phyllis Trible. Essa teoria depende completamente de uma polaridade
linguisticamente localizada, do discurso cognitivo e emotivo. Um tratamento adequado da
natureza da metáfora e da linguagem, especialmente nas obras de Max Black, Ricoeur, (e dentro
da filosofia reformacional) Elaine Botha e Daniel Strauss, precisará esperar por futuras obras.
Basta dizer que após Wittgenstein e Gadamer, a linguagem não é vista como tendo sua
identidade separada de seu conteúdo. Essas dicotomias não ajudam muito em um argumento.
Nas Escrituras, a forma é tão digna de confiança quanto o conteúdo, pois uma verdade dita em
uma poesia é tão verdadeira quanto uma escrita em uma epístola.
As afirmações de não imposição de sistemas alheios ao texto não se sustenta diante de uma
análise cuidadosa. Quer seja o existencialismo, o marxismo, o feminismo ou qualquer outro
“ismo” moderno, inevitavelmente levará a falácia do anacronismo, que sempre se impõe ao
texto. O processo hermenêutico, como enfatizado desde Schleiermacher a Gadamer e outros, é
antes de tudo, um processo de ouvir o outro enquanto outro, numa disposição de abertura para
esse entendimento, e não uma imposição de mim mesmo, dos meus pressupostos, preconceitos e
agendas. O texto não é uma tábula rasa lockeana esperando ser preenchido de significados
alheios e aleatórios a si mesmo.
Por último, a linguagem de Deus como “mulher” também pode ser usada como um contra
argumento. Se algumas feministas veem isso como uma derrocada contra o patriarcado no
próprio texto, podemos dizer que é exatamente o contrário. O argumento seria contra a cultura da
época, que possuíam deusas a rodo. Para que iríamos querer uma deusa, se o próprio YWHW,
que é descrito como “Guerreiro forte na batalha, Senhor dos exércitos”, também possui as
melhores características das mulheres, como dar à luz, cuidar, “amamentar” (espiritualmente),
etc.?
Tudo isso é apenas má teologia. É somente dentro da cosmovisão cristã, na narrativa
criação-queda-redenção, que homens e mulheres encontram sua igualdade. Ambos foram feitos
de acordo com a imagem de Deus, ambos caíram no pecado e ambos são redimidos por Cristo
mediante a fé. Deus não é nem machista, nem feminista, e atribuições funcionais diferentes nada
têm a dizer sobre status ontológico, nem sugere alguma hierarquia dos seres. Descrever Deus
majoritariamente com traços femininos distorceria a verdade da relação Criador-criatura, que o
próprio Criador estabeleceu na realidade criada.

Pontos adiáforos
Existem coisas, como acabamos de ver, que são inegociáveis à fé cristã. Entretanto, há
pontos adiáforos, periféricos que podem pacificar o diálogo do “feminismo” com a tradução
bíblica e com a Teologia cristã de forma geral.
Alguns exemplos disso podem ser tirados das escolhas de tradução da Bíblia NVT (Nova
Versão Transformadora). Essa tradução levou seis anos para ser concluída e foi coordenada pelos
biblistas Carlos Osvaldo Cardoso Pinto (1950 - 2014) e Estevan Kirchner, com uma comissão de
14 eruditos. Essa tradução é fluida e possui mais de 4 mil notas de rodapé que justificam as
escolhas dos tradutores, além de contextualizarem as passagens. Foi-se usado o método da
“equivalência dinâmica” para a tradução, que valoriza a clareza textual para o público alvo (em
vez da consagrada “equivalência formal”, que visa ser mais literal).
Para eliminar o foco “patriarcal” das traduções tradicionais, a NVT eliminou o uso de
“homem” como sinônimo de humanidade. Iremos usar apenas uma passagem como exemplo
para não nos delongarmos mais. Na NVT, Jesus não chama mais seus discípulos de “pescadores
de homens”, mas sim de “pescadores de gente”. Essa passagem se encontra em Lucas 5. 1-11,
Marcos 1. 16-20 e Mateus 4. 18-22. No final da narrativa lucana, após a confissão de Pedro,
lemos: Disse Jesus a Simão: Não temas; doravante serás pescador de homens (Lc. 5.10b, ARA,
1993). Na NVT, lemos: “Jesus respondeu a Simão: "Não tenha medo! De agora em diante, você
será pescador de gente ””. Vemos que o “tu” foi substituído por “você” e “doravante” por “de
agora em diante”. A maior fluidez da NVT é notável. Um olhar um pouco mais profundo sobre o
texto pode justificar ou não a troca de “homens” por “gente”.
A mensagem do Evangelho que Lucas escreveu para Teófilo é mostrar que o Deus Trino
cumpriu todo seu plano redentor na pessoa de Jesus Cristo. Todas as promessas de Deus foram
realizadas na pessoa e na obra messiânica de Jesus. Colocada sobre esse macro contexto, Lucas 5
mostra que Deus está atraindo pecadores a si mesmo, e Ele faz isso através dos discípulos de
Jesus. Essa promessa de Jesus começa a ser cumprida já no evangelho de Lucas, mas ganha
plena expressão e força no segundo volume do médico amado - o “Livro de Atos”. A expressão
“doravante” ou “de agora em diante” (Gr. ἀπὸ τοῦ νῦν) possui força escatológica nas cartas de
Paulo e em Lucas demonstra a mudança que ocorre na vida das pessoas ao se encontrarem com
Jesus. O termo “homens” (ἀνθρώπους) é um substantivo acusativo plural masculino. Possui a
função sintática de um objeto direto (que recebe a ação do verbo). O termo traduzido por
pescadores é ζωγρῶν que trás a ideia de uma captura que deixa a presa vida, poupando-a. O
termo funciona como um particípio perifrástico, que junto com o verbo ἔσῃ (sereis) ganha seu
propósito de circunlocução. No plano histórico-existencial do contexto de Lucas-Atos, vemos
que a tradução de ἀνθρώπους para “gente” se justifica, pois esse chamado a uma contínua e
engajada evangelização se estende tanto para homens como para mulheres. Vemos mulheres
seguindo a Jesus no Evangelho e mulheres sendo evangelizadas e convertidas em Atos. Portanto
a tradução da NVT é justificada e possui uma leitura mais fluida e agradável enquanto
permanece fiel ao significado original dessa passagem.
Entretanto, vale ressaltar que as traduções que optam por manter o termo “homem” não
estão erradas, e não são necessariamente patriarcais. Por mais que alguns queiram falar que
“anthropos” é neutro, nessa passagem ele é masculino. Ler isso “patriarcalmente” é impor os
significados de nossa época ao texto bíblico e fazer exegese ruim e excessivamente enviesada
com uma ideologia estranha ao texto. O termo ἄνθρωπος (homem) na Bíblia serve
principalmente para distinguir a humanidade das demais criaturas (animais, anjos) e do próprio
Deus. Mostra a criaturalidade da humanidade que foi formada conforme a imago Dei. Mostra
também que o “homem” é miserável, pecador, mortal e finito. Tudo isso se aplicam tanto aos
homens como às mulheres. Preferir usar “homem” em vez de “mulher” ou “humanidade” é uma
escolha representacional e não um juízo axiológico-ontológico. Isso quer dizer que o homem
representa toda a humanidade criada e caída. Isso não lhe dá nenhum status de superioridade,
pelo contrário, chama-o à responsabilidade da tragédia cósmica ocorrida no Éden.

Conclusão
Uma hermenêutica saudável, quando aplicada à tradução, deve prestar atenção nos pontos
que são essenciais e nos que são periféricos. Não deve haver uma dicotomia acentuada entre
forma e conteúdo para não caímos nos erros dos motivos-base da filosofia grega. Usar linguagem
feminina para descrever Deus, Jesus (etc), apenas para agradar ouvidos pós-modernos que não
estão realmente abertos para a mensagem do texto bíblico é quebrar o nono mandamento ao
prestar falso testemunho, o terceiro mandamento ao blasfemar e os primeiros dois mandamentos,
ao criar outro deus (ou deusa). Ao se fazer isso, destrói-se o diálogo com a fé cristã exatamente
por rejeitá-la e criar algo novo, uma quimera desfundada e despida de qualquer senso do ridículo.
Entretanto, existem passagens, como a analisada acima, que não se perde o sentido original ao
substituir “homens” por “gente” “humanidade”, “pessoas”, etc. Em tudo isso, o triálogo entre
amor, paz e verdade deve manter-se na frente, sempre hermenêutico e cuidadoso.
10. Tradução e crítica textual: O texto de Mateus como estudo de caso

“Tradução não é apenas uma questão de palavras;


é uma questão de fazer inteligível toda uma cultura”.
Anthony Burgess

A área da crítica textual do Novo Testamento visa reconstruir, o máximo e melhor possível,
o texto original dos 27 documentos que compõe esse cânon. Iremos fazer algumas reflexões e
análises do texto que conhecemos hoje como “o evangelho segundo Mateus”. Escolhi esse livro
porque muitos especulam sobre uma possível redação em aramaico que está perdida, só depois
sendo traduzida para o grego. Os pressupostos dessa afirmativa variam, como a superioridade da
língua aramaica, por ter sido a língua que Jesus falava, ou pelo desejo de se manter a grafia
YHWH (ou Jeová) nas citações ao AT – enfim, fazer uma lista dos motivos iria apenas repetir o
que já vimos até aqui.
Antes de prosseguirmos, vale ressaltar que, ainda que Mateus tivesse sido escrito em
hebraico ou aramaico, isso de modo algum seria um argumento sério contra as traduções feitas
(do nome Divino, por exemplo) no cristianismo, visto que não resta nenhuma dúvida quanto ao
restante de todo o Novo Testamento sobre este ter sido escrito em grego, fazendo citações da
tradução grega do AT, etc.

As fontes de Mateus
Mateus, Marcos e Lucas formam o que chamamos de “evangelhos sinóticos”, termo que
significa “da mesma ótica”, devido à semelhança entre esses três livros. O primeiro a usar esse
termo foi o teólogo alemão J. J. Griesbach em 1774/75. Claro que muitos notaram essas
semelhanças antes. No século II, Taciano havia combinado os quatro evangelhos em seu
Diatessarão.
Agostinho, em seu De consenso evangelistarum, percebeu a semelhança dos três primeiros
evangelhos e a distancia do evangelho de João, explicando esse fenômeno em termos de ênfase:
Mateus, Marcos e Lucas enfatizam a humanidade de Jesus, i.e., os feitos do Messias na carne
humana e na temporalidade, enquanto João enfatizou a Divindade de Jesus – sua plena igualdade
com o Pai.
Calvino em 1555 (aprox.) disse que os três primeiros evangelhos possuem uma
extraordinária harmonia, que foi resultado não de um acordo entre eles, mas da direção da
providência Divina do Espírito Santo.
Na tentativa de harmonizar a leitura dos evangelhos, a igreja cristã, durante muitos séculos,
deu primazia temporal ao evangelho de Mateus, visão que foi abandonada na teologia moderna.
Jean Le Clerc, em 1716, foi o primeiro a propor uma tese sobre a origem dos Evangelhos
Sinóticos, mas foi amplamente ignorado. Mais tarde, G. E. Lessing (1778, mas publicado em
1784) sugeriu que os Evangelhos copiaram, de forma independente, um documento escrito em
aramaico, que os pais da igreja conheciam como “Evangelho dos hebreus”, mas que agora está
perdido (o fundamento dessa tese é um dito de Papias que analisaremos abaixo).
J.B Koppe demonstrou, em 1782, que Marcos não era um resumo de Mateus (como alguns
acreditavam) e foi seguido de Griesbach, para quem Mateus ainda tinha a primazia, pois Lucas
dependia dele, enquanto Marcos dependia de ambos. Essas teses não passaram sem respostas,
mas ainda que G. C. Storr (1786) e J. G. Herder (1797) tenham defendido a prioridade de
Marcos, as teses de Griesbach dominaram os estudos críticos até 1830.
Friedrich Schleiermacher, considerado pai tanto da hermenêutica moderna como da teologia
(liberal) moderna, argumentou em 1832 – também influenciado pelo dito de Papias – que a
origem dos Evangelhos é uma fonte documental parecida com Marcos, com adições de “ditos”
(logia) de Jesus, que não era propriamente um Evangelho, mas que foi usado amplamente por
Mateus e depois Lucas.
K. Lachmann, em 1835 - seguindo o argumento de Schleiermacher - demonstrou que
Marcos provavelmente foi o primeiro Evangelho a ser escrito (embora não como a forma final
que temos). C. H. Weisse (1838) tentou mostrar que as fontes dos Evangelhos foram o Marcos
de Papias (não o nosso Marcos) e as logia de Mateus. Esses ditos de Jesus foram essenciais para
se explicar a prioridade marcana, porque explica o material textual comum entre Mateus e Lucas,
e ausente em Marcos.
A prioridade de Marcos ganhou ainda mais força, quando em 1863, H. J. Holtzmann
convenceu a maioria dos eruditos da época que havia dois documentos que eram a fonte dos três
Evangelhos Sinóticos, a saber, um Proto-Marcos e a Logia, a qual Holtzmann chamou de
Lambda, mas Harnack popularizou essa fonte com o nome de Q (abreviação da palavra alemã
Quelle, que significa fonte).
William Sanday apresentou as teses de Holtzmann ao mundo de fala inglesa e continuou
suas pesquisas a partir dessa base. Para isso, fundou um seminário em Oxford em 1894 para
prosseguir os estudos sobre os sinóticos. Esse seminário contribuiu para derrubar a distinção
entre o Proto-Marcos e Marcos, posição que convenceu imediatamente os estudiosos. Assim, a
partir de 1900, era um consenso universal (nas palavras de Gerald Bray) que Marcos foi o
primeiro evangelho e que Mateus e Lucas haviam usado Marcos de forma independente.
Gerald Bray nos proporciona um bom resumo das teses de Holtzmann e do seminário de
Oxford:
1. Marcos e Q foram as fontes básicas. Marcos era história narrativa enquanto Q era mais
teológica;
2. Mateus começou usando Marcos e depois acrescentou seu próprio material (M). Ele
organizou os ditos de Q em cinco grandes discursos;
3. Lucas começou usando seu próprio material, acrescentando extratos de Q, e depois foi
integrando Marcos em seu texto sempre que possível;
4. Concordâncias entre Mateus e Lucas contra Marcos eram explicados ou em termos de
acidente e coincidências, ou em termos de cópia de Q.

Entretanto, como Donald Carson e Douglas Moo nos alertam, o processo de composição
dos Evangelhos foi extremamente complexo e não há crítica das fontes do mundo que possa dar
conta do recado de forma definitiva. Provavelmente existem várias tradições orais e escritas na
igreja primitiva, Mateus foi testemunha ocular e com certeza fez extenso uso de sua memória.
Lucas pesquisou seu material em diversas testemunhas oculares também. Se a tradição que
Marcos se baseou em Pedro para escrever seu Evangelho for verdadeira, ainda temos em
primeira mão, mais uma testemunha ocular. Os três evangelistas ainda poderiam ter conversado
entre si sobre os materiais. Portanto a crítica das fontes serve mais como uma teoria funcional e
não como algo que definitivamente aconteceu.
O texto grego do evangelho de Mateus é o único que temos e não há evidências que sua
fonte foi um texto original desse evangelho escrito em hebraico ou aramaico. É para essa
informação que voltamos nossa atenção para concluirmos esse subtópico.
Papias (60 – 163 d.C.) foi um pai apostólico grego do século II, bispo de Hierápolis (atual
Pamukkale, na Turquia). Escreveu “Exposições dos ditos do Senhor” (Gr. Λογίων Κυριακῶν
Ἐξήγησις) em cinco volumes. Essa obra é uma importante fonte da tradição oral da igreja
primitiva, mas infelizmente só conhecemos fragmentos nas obras de Irineu de Lyon e Eusébio de
Cesaréia
A citação que interessa nosso foco está na História Eclesiástica (325 d.C.) de Eusébio
(3.39.16):

Texto grego:

"ταῦτα μὲν οὖν ἱστόρηται τῷ Παπίᾳ περὶ τοῦ Μάρκου· περὶ δὲ τοῦ Ματθαῖου ταῦτ’
εἴρηται· Ματθαῖος μὲν οὖν Ἑβραΐδι διαλέκτῳ τὰ λόγια συνετάξατο, ἡρμήνευσεν δ’ αὐτὰ ὡς ἧν
δυνατὸς ἕκαστος”.

Tradução:
“Isto é o que conta Papias sobre Marcos. Referente a Mateus, diz o seguinte:
Mateus ordenou as sentenças em língua hebraica, mas cada um as traduzia (interpretava)
como melhor podia."
Na melhor das hipóteses, não podemos saber se tal versão de Mateus em hebraico existiu de
fato, mas isso não é relevante. Carson e Moo argumentam que o Mateus canônico – em grego –
não é uma tradução do suposto original em hebraico. Primeiramente, uma simples leitura do
texto grego não dá a impressão de ter sido traduzido do hebraico. Em segundo lugar, como
vimos, Mateus se utilizou do material do Evangelho de Marcos, que foi escrito em grego. Em
terceiro lugar, é possível que Papias não estivesse falando de forma nenhuma de algum
Evangelho. As possíveis interpretações e traduções são: “Mateus συνετάξατο (‘compilou?’,
‘organizou?’, ‘compôs?’) τὰ λόγια (‘as declarações?’, ‘os ditos?’, ‘o evangelho?’) em Ἑβραΐδι
διαλέκτῳ (‘língua hebraica?’, ‘estilo hebraico’?), e cada um ἡρμήνευσεν (‘interpretou?’,
‘traduziu?’, ‘transmitiu?’) da melhor forma que pôde”. Portanto, essas “logia”, poderiam ser um
conjunto de ditos de Jesus, muito parecido com a hipótese Q; poderia ser uma compilação de
textos do AT usados na apologética e evangelismo. Além disso, ainda com a possibilidade de ser
o evangelho de Mateus, o dialeto hebraico pode ser entendido como um estilo literário permeado
de semitismos (como é o caso do texto mateano). Essas e outras propostas têm sido apresentadas
por vários teólogos, mas há também a possibilidade de Papias ter se equivocado nessa
declaração. Não somente Papias é questionável, mas o próprio relato de Eusébio sobre Papias é
duvidoso, pois ele não entendia o que Papias queria dizer em diversos pontos e fez o possível
para diminuir a importância de Papias por discordar de seu milenarismo (ver Carson e Moo,
Introdução ao Novo Testamento).
Não importa a interpretação que o leitor aceite, isso não muda nosso ponto: o Mateus
canônico, que a igreja professa como inspirado, foi escrito em grego, como veremos pela
evidência textual no próximo subtópico. Entretanto, mesmo que alguém afirme que Mateus foi
originalmente escrito em Hebraico, isso apenas reforça nosso ponto sobra a traduzibilidade
bíblica. Para se defender que o NT usava, pelo menos em Mateus, os nomes de Deus em
hebraico (somente via o texto todo nesse idioma), é preciso dizer que não temos mais tal texto
hebraico desse evangelho, temos meramente uma tradução que mudou YHWH para Kyrios por
exemplo. Essa defesa acontece apenas no campo da especulação preconceituosa, não possuindo
nenhum dado documental que a aprove.

O texto de Mateus
Iremos ver agora o texto grego de Mateus que chegou até nós. Infelizmente, devido a
diversos fatores (especialmente ao uso excessivo), não possuímos mais os autógrafos originais
dos escritores do NT. Temos, no entanto, o mais rico testemunho de cópias dentre todos os textos
antigos, e isso é extremamente importante para a reconstrução fiel do texto do NT. As cópias
manuscritas do NT foram inicialmente escritas com letra maiúscula, e os papiros foram
predominantes, pelo menos até o quarto século. O número de manuscritos encontrados cresce
continuamente. Kurt e Barbara Aland, um amável casal e os principais eruditos da critica textual
do NT no século passado, listaram na década de 80, 96 papiros, sendo 18 deles do evangelho de
Mateus. Recentemente, Wilson Paroschi (2012), listou 127, sendo 24 de Mateus. Esses números
sempre estão sujeitos a acréscimos.
É importante conhecermos os manuscritos (no presente estudo, de Mateus), suas datas e
conteúdos. O primeiro da lista desse evangelho é o p (papiro) 104 do século II (150?), contendo
o trecho de 21:34-37; 21:43,45. O p64/67 (“papiro Madalena”) do ano 200 contém 3.9-15; 5.20-
22, 25-28; 26.7-8, 10, 14-15, 22-23, 31-33. Do mesmo ano, p77 contém 23.30-39. P103, também
do ano 200 (aprox.) contém o capítulo 13.55-56 e 14.3-5. Adentrando o terceiro século, temos o
p1 (ano 250), com 1.1-9, 12, 14-20. P45 (também de 250) contém porções dos quatro evangelhos
e Atos, de Mateus especificamente, 20.24-32; 21.13-19; 24.41-26.39. Na Universidade de
Michigan está o p53, contendo 26.29-40 (além de Atos 9-10). P70 (250?) possui os seguintes
trechos: 2.13- 16; 2.22-3.1; 11. 26-27; 12.4-5; 24.3-6, 12-15. Também do ano 250, p101 possui
3.10-12; 3.16-4.3. O manuscrito 0212, do Diatessarão, contém 27. 56-57. Do ano 300 temos p37
e p102, o primeiro contendo 26.19-52 e o segundo com 4.11-12, 22-23. No manuscrito 0171, há
os textos de 10.17-23, 25-32. Na metade do século IV (aprox.. 350), temos o p25 com 18.32-34;
19. 1-3, 5-7, 9-10; o p35 com 24.12-15, 20-23; o p62 com 11.25-30; o p71 com 19.10-11, 17-18;
o p86 com 5.13-16, 22-25 e o p110 com 10.13-15, 25-27. Podemos contar mais três manuscritos
com fragmentos de Mateus: 058 (18.18-19, 22-23, 25-26, 28-29), 0231 (26.75-27.1, 3-4) e 0242
(8.25-9.2; 13.32-38, 40-46).
Os dois textos completos de Mateus são do século IV, a saber, o Códice Sinaiticus (‫ )א‬e o
Códice Vaticanus (B). Importante também são as antigas traduções, como o latim e o siríaco, por
exemplo, bem como as citações dos pais da igreja.
Essa grande nuvem de testemunho manuscrito proclamam em uníssono que o texto do
evangelho de Mateus foi escrito em grego, e não traduzido do hebraico para o grego. Portanto,
quem defende a intraduzibilidade dos nomes de Deus (por exemplo) e cita o evangelho de
Mateus como fonte, o faz apenas no âmbito da mera especulação sem fundamento (textual,
lógico) algum.

As citações do Antigo Testamento


O uso que Mateus faz das Escrituras hebraicas aumentam o peso do argumento desses
presentes ensaios. O evangelho de Mateus é saturado com o Antigo Testamento. Há pelo menos
sessenta citações e uma vasta quantidade de alusões. Iremos analisar o texto do AT disponível
para Mateus (apenas as citações, e não as alusões), e seremos amplamente informados por
diversos comentaristas, especialmente pelo massivo comentário de John Nolland pela série The
New International Greek Testament Commentary (NIGTC, 2005).
Mateus 1-2
Mateus, escrevendo em grego, conhecia muito bem a tradução do AT para o grego. É
possível que a tradução que Mateus possuía não fosse idêntica à LXX que temos hoje, mas ela
ainda é nosso melhor material disponível.
O evangelista, por vezes, depende da LXX para seus argumentos. Já na primeira citação
(1.23) isso fica evidente. Como vimos no capítulo 2 deste livro, Mateus usa a LXX para dar
suporte ao nascimento virginal de Jesus de forma mais explícita do que meramente o termo mais
amplo para “jovem” do texto hebraico de Isaías 7.14.
A próxima citação está longe da LXX, e também não tão perto do texto hebraico. Em 2.6,
Mateus cita a cláusula de 2 Samuel 5.12, com uma sobreposição verbal, vinculando-a com a
citação de Miquéias 5.1. Este estilo de citação e tradução do próprio Mateus é recorrente ao
longo de seu livro.
A próxima citação é em 2.18, na qual Mateus cita Jeremias 31.15. Essa citação está muito
mais próxima do Texto Massorético (TM) do que da LXX, ainda que possua algumas influências
dela.
Temos uma anomalia em 2.23 que diz: “E foi habitar numa cidade chamada Nazaré, para
que se cumprisse o que fora dito por intermédio dos profetas: Ele será chamado Nazareno”. Esse
fim da narrativa da infância de Jesus termina com essa citação de lugar nenhum. Nenhuma
passagem específica do AT, dos apócrifos e dos pseudoepígrafos contém essa frase. Várias
propostas foram feitas, mas podemos simplesmente dizer que, devido à fórmula conter “profetas”
no plural, Mateus tenha consciência de que ele não estava citando uma passagem em específico,
mas fazendo uma paráfrase interpretativa de várias profecias do Cânon hebraico.
O material que encontramos nessa introdução do evangelho (narrativa da infância de Jesus)
pode ser resumido em cinco pontos: 1. Uso de um tipo de LXX; 2. Uso de uma base sintática
não- septuagíntica, baseada nas divisões de palavras do TM (texto Massorético); 3. Uso de
citações compostas mediante sobreposição verbal; 4. Uma forma textual que segue o TM e não a
LXX e; 5. Uma citação que só faz sentido dentro do amplo contexto canônico de profecias
messiânicas no AT.

Mateus 3-9
A citação em Mateus 3.3 de Isaías 40.3 segue a LXX, como acontece também nos outros
evangelhos sinóticos. As quatro citações em 4.1-11 (a tentação de Jesus) também seguem a LXX
e são diferentes das citações até o capítulo 3. Essas citações não mais representam os
comentários de Mateus como narrador, mas são auto-expressões dos personagens da narrativa:
três delas são de Jesus e uma do diabo. Em Mateus. 4.15-16, temos uma citação de Isaías 9.1-2
(LXX, 8.23-9.1), que parece seguir alguma versão do TM que perdeu uma frase e, por isso,
Mateus livremente fez sua própria reconstrução, sem alterar o sentido do texto original. A
estrutura dessa citação segue a LXX, mas com alterações verbais, o que nos leva a concluir que
essa citação é uma leitura (e tradução) do próprio Mateus do texto hebraico.
Temos uma tradução literal do TM de Isaías 53.4 em Mateus. 8.17, que difere da LXX. Em
Mateus 9.13 temos uma citação breve de Oséias 6.6, o que torna difícil dizermos qual texto está
sendo refletido aqui.
Os capítulos 3-9 seguem muito a LXX, e adiciona mais dois padrões mateanos aos cinco já
vistos: 6. Um tipo de texto fundamentado na LXX, mas com alterações do próprio Mateus, o que
poderiam ser leituras independentes do evangelista; 7. Uma tradução literal do TM.
Mateus 10-18
Em Mateus 10.35-36, temos uma citação de Miquéias 7.6, e a linguagem segue o TM e não
a LXX. Em Mateus 11.10, a primeira cláusula da citação é idêntica ao texto de Êxodo 23.20, da
LXX. A segunda cláusula ecoa Malaquias 3.1, mas com a originalidade aplicativa de Mateus, não
seguindo nem o TM, nem a LXX. Como em Mateus 2.6, temos outra sobreposição verbal entre as
citações.
A citação mais extensa de Isaías 42.1-4 em Mateus 12.18-21 segue de perto o TM, mas com
alguns componentes da LXX. Em contraste, a próxima citação também é extensa, mas segue a
LXX – que é Isaías 6.9-10 em Mateus 13.14-15.
A citação do Salmo 78.2 (LXX 77) em Mateus 13.35 reflete novamente a competência
multilíngue de Mateus, pois a primeira cláusula é idêntica à LXX, mas a segunda apresenta uma
leitura própria do texto hebraico.
Em Mateus 15.8-9, temos a citação de Isaías 29.13 segue o texto da LXX, com poucas
correções a partir do texto hebraico (e essa versão da LXX reflete um texto hebraico diferente do
TM).
Essa seção de citações (10-18) é marcada pela predominância da tradução grega do AT.
Mesmo assim, a brilhante competência linguística de Mateus sempre aparece, fazendo mistos do
texto hebraico, do grego, e da própria tradução de Mateus. Podemos adicionar mais três notas em
nossa pesquisa: 8. O uso exato da LXX em citações longas; 9. Uso da LXX, mesmo quando essa
usa um texto diferente do TM, sendo essas diferenças cruciais para o uso no evangelho; 10.
Influência das aplicações intencionais de Mateus na sintaxe da citação.

Mateus 19-25
Gênesis e Êxodo abrem as citações dessa seção. Gênesis 1.27 e 2.24 são citados em Mateus
19.4, 5, seguindo a sequência de palavras da LXX. Na citação a partir dos dez mandamentos em
Mateus 19.18-19, Mateus segue a ordem do TM para os mandamentos curtos, mas usa os verbos
no futuro, como na LXX.
Em Mateus 21.5, temos uma mistura de Isaías 62.11 com Zacarias 9.9, seguindo de perto a
LXX, com algumas leituras independentes.
O clamor da multidão em Mateus 21.9 (“Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em
nome do Senhor! Hosana nas maiores alturas!”) é uma citação do Salmo 118.25-26 (LXX 117).
Embora a linguagem siga a LXX, a palavra ὡσαννά (Hosana) é uma transliteração do aramaico,
portanto nem o σῶσον δή (salva-nos) da LXX do Salmo 118, nem uma possível transliteração da
palavra hebraica hwšyʿh nʾ (que seria transliterada para o grego como ὡσιαννά (‘hosianna’)
caberiam aqui. Portanto a palavra grega é uma transliteração de um cumprimento comum da fala
aramaica na época de Jesus.
Em Mateus 21.13, temos uma combinação de Isaías 56.7 e Jeremias 7.11, novamente
seguindo majoritariamente a LXX, que segue naturalmente o hebraico. Em Mateus 21.16 é usado
a citação da LXX do Salmo 8.3.
A citação do Salmo 118.22-23 (LXX 117) em Mateus 21.42 segue exatamente a LXX, que
por sua vez traduz fielmente o TM. Temos uma paráfrase de Deuteronômio 25.5 em Mateus
22.24 com influência da LXX. Êxodo 3.6 em Mateus 22.32 segue a LXX, que novamente faz
uma tradução natural do texto hebraico. O Salmo 110.1 é usado em Mateus 22.44, conformado
com a tradução da LXX, que também é seguida na citação do Salmo 118.26 (LXX 117) em
Mateus 23.39.
Essa seção segue muita a tradução grega do AT, e adiciona apenas mais duas anotações em
nosso quadro geral: 11. Temos uma paráfrase bastante solta e; 12. Temos a influência do idioma
aramaico (falado) no texto.

Mateus 26-28
Temos uma citação solta de Zacarias 13.7 em Mateus 26.31, mas o texto claramente segue o
hebraico e não a LXX. A próxima citação é de Zacarias 11.13 em Mateus 27.9, com algumas
alusões de Jeremias (a quem é atribuída a citação), seguindo a LXX, que traduziu corretamente o
TM. Mateus 27.48 ecoa a LXX do Salmo 68.22. As duas próximas citações também são da LXX:
Salmo 22.19 em Mateus 27.35 e Salmo 22. 9 (numerações da LXX) em Mateus 27.43.
A próxima citação é diferente: “Eli, Eli, lamá sabactâni? O que quer dizer: Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste?”. O Salmo 22.1 em Mateus 27.46 é um texto transliterado unido
a uma tradução para o grego. A tradução que segue a citação possui similaridades com a LXX,
mas é uma tradução do próprio Mateus da transliteração. A transliteração parece ser uma forma
aramaica do texto em hebraico.
A última seção de Mateus segue mais o texto hebraico, mesmo por vias da LXX.
Adicionamos à nossa lista: 13. Citações continuadas com complexas alusões de várias partes do
AT; 14. Uso da tradução para o grego de uma transliteração aramaica do texto hebraico.

Conclusão
Temos então, pelo menos 14 abordagens para a geração das palavras nas citações. Por
questão de espaço e de propósito, deixamos de lado as alusões e os ecos veterotestamentários no
evangelho de Mateus e também não analisamos como Mateus interpretava essas citações.
Em Mateus, vimos um escritor muito capaz, que escrutinava o texto do AT e, de forma
brilhante, interpretava à luz do evento Cristo. Mateus era competente no uso de todas as formas
textuais disponíveis do AT, quer seja o texto hebraico, a tradução grega, e às vezes o aramaico.
Portanto nosso argumento é conclusivo e cumulativo: Os apóstolos usavam livremente as
traduções das Sagradas Escrituras do Antigo Testamento, e por vezes, faziam suas próprias
traduções. Os nomes de Deus e dos personagens bíblicos são traduzidos e/ou transliterados, mas
sempre preservando o significado original por trás do significante alterado.
Parte III: Tradução Bíblica na prática
11. Qual Bíblia? Qual tradução?
“Nunca pode haver uma tradução absolutamente final”.
Robert M. Grant

Unidade e multiplicidade: O benefício das várias traduções


Hoje em dia temos uma vasta quantidade de diferentes traduções das Escrituras. Além das
diferenças na tradução textual, temos ainda Bíblias de estudo de praticamente todos os
seguimentos da fé cristã. Diante desses dados, é quase inevitável criarmos preconceitos positivos
ou negativos mediante tal proliferação das versões Bíblicas. Tais preconceitos não são
necessariamente ruins, mas precisam ser reavaliados de tempos em tempos. Theodore Dalrymple
já demonstrou em sua obra “Em defesa do preconceito” que é impossível nós sermos isentos aos
preconceitos, e quando achamos que nos livramos de um, apenas trocamos por outro. Na tradição
pressuposicional isso é um ponto pacífico, e na hermenêutica filosófica, é algo “pressuposto”
desde Martin Heidegger. Sempre carregamos nossos pré-conceitos, pré-juízos e pressupostos.
Tais ideias pré-concebidas são irremediavelmente ligadas à essência religiosa do ser humano.
Tal condição permanece intacta diante de questões “pequenas” como a quantidade de
traduções bíblicas. Para uns, isso é algo totalmente ruim e inaceitável. Apenas a tradução usada
pela tradição na qual a pessoa está inserida é a “correta”. Assim, se minha denominação ou
tradição usa a tradução X (ARA, NVI, NTLH, etc.), apenas tal tradução é realmente “fiel” ao
texto original, e através dessa tradução, legitima-se minha tradição. Pode-se exclamar: “as
tradições mortas usam traduções mortas, mas minha tradição – que é viva – usa essa tradução
viva”; ou ainda: “as tradições apóstatas usam traduções infiéis, logo, como minha tradição é a
única verdadeira, apenas nós usamos a tradução verdadeira”. Meu exagero no jogo da linguagem
talvez não seja tão exagero assim no nível popular das conversas sobre o assunto.
A concepção de que a pluralidade de traduções Bíblicas é inerentemente ruim acaba caindo
em um reducionismo cujo cerne encontra-se um preconceito religioso, uma idolatria. Tal visão
pode cair num mal entendido idólatra sobre a natureza do próprio texto. Afirmar que uma
tradução é superior a todas as demais – simplesmente por ser usada em determinado contexto – é
uma forma de idolatrar essa tradução. É confundir o texto sagrado original com suas traduções
humanas posteriores. Além disso, há o reducionismo histórico, que é a própria idolatria à
tradição. Crer que uma determinada tradição é a única porta voz genuína da fé cristã é uma
atitude típica de seitas. “Toda a tradição cristã estava errada, mas Deus nos levantou nos últimos
dias como a única coluna da verdade” – dizem as seitas para se legitimarem. Não estou
debatendo se uma tradição é mais adequada ou mais precisa em sua doutrina que as outras (o que
obviamente existe), mas a questão é a singularidade exclusivista. Jesus teve uma resposta
bastante surpreendente aos fariseus em relação a essa questão:
Então os fariseus e os escribas lhe perguntaram: Por que os teus discípulos não vivem segundo a tradição dos
anciãos, mas comem pão sem lavar as mãos? Jesus lhes respondeu: Hipócritas, bem profetizou Isaías acerca de vós, como
está escrito: Este povo honra-me com os lábios; seu coração, porém, está longe de mim; em vão me adoram, ensinando
doutrinas que são preceitos de homens. Abandonais o mandamento de Deus, e vos apegais à tradição dos homens. Disse-
lhes ainda: Sabeis muito bem rejeitar o mandamento de Deus para guardar a vossa tradição (Mc. 7. 5-9).

Se, como vimos, Jesus e os apóstolos usavam a tradução grega (LXX) do AT, e às vezes
versões diferentes da tradução ao grego, e outras vezes faziam suas próprias traduções, essa
prática legitima das várias traduções diferentes. Estamos comendo a Palavra de Deus com as
mãos “sujas” pelas várias traduções dessa Palavra. Perguntar o motivo dos discípulos comerem
sem lavar as mãos (apenas para honrarem a tradição) é o mesmo que perguntar o motivo de
estarmos lendo várias traduções diferentes e não aquela que é usada em tal e tal tradição. Em seu
ensaio de 1947 C. S. Lewis, escreveu sobre a ética dos textos bíblicos, argumentou que, “se
vamos ter tradução, é necessário refazê- la periodicamente”.
Por outro lado, há a tentação pós-moderna de acharmos que todas as traduções bíblicas são
igualmente válidas e bem traduzidas. Ainda que não exista uma tradução perfeita, é muito claro
que existam traduções melhores que outras. Existem traduções que até mesmo se tornam tão
adúlteras em sua totalidade que se tornam outro texto, perdendo a característica de ser uma
tradução adequada. Esse é o caso, como vimos, da Tradução do Novo Mundo e outras traduções
que se perdem na (super) contextualização, no uso excessivo de palavras chulas e gírias, etc.
Portanto, caro leitor, não irei armar uma armadilha para cair nela. Não irei te indicar essa ou
aquela tradução. Recomendo fortemente que todos tenham o máximo de traduções diferentes que
conseguirem. De modo geral, as diferentes versões da tradução João Ferreira de Almeida são
bem adequadas, assim como a NVI, a NTLH (com algumas ressalvas), a NVT e tantas outras.
Entretanto, como veremos abaixo, por melhor que seja a tradução, ela não será melhor em todos
os textos. Portanto, voltamos à questão da unidade e diversidade. É necessária certa unidade
entre as traduções. Elas precisam passar a mesma mensagem central dos textos, ainda que com
palavras diferentes. Uma tradução não pode afirmar a divindade de Jesus, e outra negar, e ambas
serem igualmente válidas. Por outro lado, a diversidade de traduções é algo bom e digno de ser
preservado, apontando para a não perfeição (mas adequação) das traduções.
Sempre que preciso aconselhar as ovelhas do Senhor sob nossos cuidados em relação à
prática devocional da leitura diária das Escrituras e percebo que a amada pessoa está fria ou
fadigada em relação a isso, sempre aconselho a comprarem uma Bíblia nova, de preferência uma
tradução diferente da que está acostumada. Em todas às vezes, recebo respostas muito positivas e
frutíferas em relação à renovação da leitura bíblica. Não existe nada mágico em uma tradução
diferente que dê esses resultados. A questão não é mística, mas linguística! Nessas minhas
experiências pessoais (que se limitam a isso mesmo, experiências pessoais), essas ovelhas estão
lendo traduções datadas, com uma linguagem antiga e desatualizada, com palavras que nem
usamos e nem conhecemos mais. As atualizações linguísticas tornam o texto mais acessível, e o
prazer pela leitura se renova como água ao sedento.

A tradução nunca é o ponto de chegada final


Nosso reiterado argumento ao longo desses ensaios é que a tradução bíblica (e textual) é
uma possibilidade real, viável e necessária. Argumentamos também que apenas o texto original é
divinamente inspirado e inerrante, mas que mesmo assim, as traduções são as palavras de Deus
traduzidas. Através das traduções Deus salva pecadores, edifica sua igreja, alimenta suas
ovelhas, e condena o mundo incrédulo. Portanto, devido a essa dialética original-tradução, não é
difícil de imaginarmos que as traduções não são o ponto final da trajetória do nosso
conhecimento das Escrituras. Antes de concluirmos esse capítulo, veremos como essa verdade é
articulada junto com a hermenêutica (interpretação) das Escrituras e com a vida de fé
comunitária dos cristãos.

Tradução e Hermenêutica
Com ou sem tradução, lendo o NA28 ou a A21, é claro para qualquer leitor – por mais
iniciante que seja – que a mera leitura nunca é suficiente. Precisamos sempre aprofundar nossa
leitura com meditação, oração e claro, com interpretação. Não estou aqui argumentando com um
pastor ou um teólogo profissional, mas com os membros das igrejas cristãs. Todo cristão tem o
dever de conhecer a Bíblia e crescer cada vez mais nesse conhecimento (e não apenas seus
líderes). Sempre nos é útil termos boas introduções e comentários bíblicos para estarmos cientes
do contexto histórico, social, literário e cultural de cada livro sacro, para sabermos qual autor,
destinatário, situação, conflitos e propósitos de cada documento, etc. Além disso, o Sola
Scriptura nunca menospreza a tradição (apenas não a idolatra), por isso lermos a Bíblia com a
igreja de todos os tempos é tarefa indispensável. Saber o que Agostinho, Anselmo, Calvino,
Lutero, John Owen, Herman Bavinck, Donald Carson e milhares de outros irmãos e irmãs
disseram sobre aquele texto é um ótimo termômetro para sabermos se nosso coração enganoso
não está soprando algum vento de heresia em nossos olhos enquanto lemos. Enfim, a tarefa da
interpretação bíblica é inesgotável, e sempre esgota o intérprete (um suor neocriacional!).
Analisaremos apenas um exemplo que será mais do que suficientes para deixar claro como a
interpretação séria e responsável pode aprofundar e até mesmo mudar completamente nossa
leitura. Escolhemos o texto de Colossenses 2.8, especialmente a frase “elementos do mundo”,
por ser um texto de considerável dificuldade, tanto na tradução como na interpretação.

A filosofia colossense e o vazio colossal: Colossenses 2.8 e os elementos do


mundo 6

Em Colossenses 2.8-23 temos um pequeno “tratado” paulino sobre como viver uma vida
centrada em Cristo e evitar heresias mortais que minam a saúde e a legitimidade de uma vida de
fé em Cristo Jesus. A seção se divide em duas partes: Em 2.8-15 Paulo desenvolve um
argumento teológico contra o falso ensino, ensinando sobre a completude da vitória espiritual
que eles compartilhavam com Cristo; Em 2.16-23, ele retorna a esse argumento, mas acrescenta
alguns detalhes das crenças e práticas errôneas dos falsos mestres.
O verso 8 é considerado por alguns estudiosos como um dos mais difíceis de se interpretar
de todo o Novo Testamento. Lemos: “... tendo cuidado para que ninguém vos faça presa sua, por
meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do
mundo, e não segundo Cristo” (Cl. 2.8). “Tendo cuidado” traduz o verbo Βλέπω que significa
ver, olhar, e quando é seguido de uma negação (como aqui) tem o sentido de “ser cuidadoso,
prudente ou vigilante” (p. ex. em Mt. 24.4; Mc. 13.5; Lc. 21.8; At. 13.40; 1Co. 8.9; 10.12; Gl.
5.15; Hb. 12.25).
Paulo ordena (o verbo está no imperativo) que os colossenses vigiem para que “ninguém
vos faça de presa”. O verbo συλαγωγῶν só aparece aqui no grego Bíblico e raramente em outros
lugares. Significa “habilidade de enganar completamente outra pessoa” ou “levar alguém como
cativo”. Acreditar nos falsos mestres é ser enganado e levado como escravo de seus enganos, é
ser levado voluntariamente para um cativeiro intelectual, um exílio espiritual, uma babilônia
(i)moral, sentença condenatória muito mais severa e grave que os exílios do povo de Israel. Por
essa razão, Paulo precisa ser enfático, claro e preciso ao lidar com aquela heresia que estava
assolando aquela comunidade em Colossos.
Paulo descreve essa filosofia como “vazia” (κενῆς) e caracterizada pelo “engano” (ἀπάτης).
O adjetivo atributivo “vazio” trás o senso de vácuo, ausência de significado, propósito e
resultado. “Engano”, um substantivo, traduzido com um senso de adjetivo (enganoso) é a ação
que leva alguém a acreditar numa mentira. No NT, alguns exemplos de coisas que enganam são:
As riquezas (Mt. 13.22; Mc. 4.19), os desejos (Ef. 4.22) e o pecado (Hb. 3.13). Essa descrição do
falso ensino está em contraste direto com a descrição do evangelho, que é a palavra da verdade
(1.5). Enquanto essa filosofia é vazia de valor espiritual e enganosa, o evangelho é poderoso e
transformador (1.6, 23).

Paulo continua sua denúncia do falso ensino com três frases paralelas, usando a mesma
preposição. A repetição da preposição κατὰ proporciona tanto ritmo como ênfase: “... de acordo
com a tradição dos homens, de acordo com os rudimentos do mundo e não de acordo com
Cristo”. A primeira característica do falso ensino em Colossos é que ele era de acordo com a
tradição dos homens, ou seja, possuía sua gênese e continuidade na invenção subjetiva dos
pensamentos de homens pecadores. Em contraste, o ensino de Paulo era de acordo com (a
revelação de) Cristo.
A segunda característica será o nosso foco principal, pois aqui reside a dificuldade de
tradução, leitura e interpretação. A expressão “de acordo com os rudimentos (elementos) do
mundo”. O texto grego é “κατὰ τὰ στοιχεῖα τοῦ κόσμου” e possui, tradicionalmente, três
possíveis interpretações para o termo στοιχεῖα (stoicheia): 1. Princípios básicos; 2.
Elementos básicos do universo (terra, água, ar e fogo); 3. Poderes astrais. Veremos cada
uma delas.
Primeiramente alguns leem στοιχεῖα em seu sentido mais básico como “princípios básicos”.
Esse termo poderia descrever uma série de objetos em fileira, ou até mesmo as letras do alfabeto.
Seguindo essa linha, o texto de Colossenses poderia ser entendido como os ensinamentos
elementares da religião da humanidade em geral. Essa era a interpretação dos reformadores. A
tradução do NT de Lutero em 1545 traduz στοιχεῖα τοῦ κόσμου de Cl. 2.8 como “welt
Satzungen” (constituições mundanas). Lutero entendia que tanto aqui em Colossense 2.8 como
em Gálatas 4.3 (outro texto que aparece essa expressão) se referia à Lei mosaica. Outros
estudiosos que concordam com Lutero são: J. Calvino, H. A. W. Meyer, B. Weiss, J. B.
Lightfoot, W. L. Knox, R. M. Grant, C. F. D. Moule, A. J. Bandstra, E. D. Burton, F. O. Francis,
W. Carr, T. J. Sappington e G. B. Caird. A discordância entre os adeptos dessa interpretação
divergem apenas no referente da lei, uns optam pela Lei mosaica, outros pelas leis das religiões
básicas da humanidade. O ponto era que, assim os gentios cometiam idolatria com falsos deuses,
assim também os judeus poderiam idolatrar a sua tradição religiosa.
Em segundo lugar, temos a leitura de E. Schweizer: “os elementos do Universo”. Ele
acreditava que o στοιχεῖα τοῦ κόσμου paulino se referia aos elementos básicos do universo . Ele
cita o seu uso em Empédocles, Cícero, Ovídio, Fílo, Josefo, Plutarco e Hipólito. A desarmonia
desses elementos causariam os terremotos, tempestades e as erupções vulcânicas. Nessa
interpretação, os colossenses estariam temendo que suas almas não fossem capazes de
transcender esses elementos para irem ao céu após a morte. Portanto, Cristo eram quem libertava
desses elementos mundanos.
Em terceiro lugar, temos os poderes astrais. A ideia de que as estrelas controlam o destino
do Cosmos remonta à Babilônia do segundo milênio a.C. Platão falava da divindade das estrelas
(Timeu 40a-41a). Josefo dizia que os Fariseus e Essênios acreditavam no destino (Ant. 13.172).
Em alguns livros judaicos como o Testamento de Salomão (8.2) há associações entre os poderes
astrais e a στοιχεῖα. Assim alguns concluem que esse é o caso aqui em Cl. 2.8.
Ainda temos mais uma opção, preferida pelos melhores comentaristas desse texto.
Associam-se os stoicheia com seres espirituais, anjos (caídos?). Os comentários mais recentes
perceberam a relação dos poderes angelicais com as três propostas acima. Na primeira opção, os
intérpretes que entendem stoicheia como algum tipo de lei (religiosa), inclinam-se a interpretar
essa lei como impessoal (como F. O. Francis, W. Carr e T. J. Sappington). Clinton Arnold
mostra a falha dessa interpretação em não levar em conta a grande aglomeração de menções a
seres espirituais em apenas 52 versos. B. Reicke identifica a στοιχεῖα de Gl. 4 com os anjos de
Gl. 3.19. Seja como for, na época de Paulo era comum associar os anjos como os fundadores e os
guardiões da lei. Na segunda interpretação, a pesquisa de Schweizer é importante e bem
fundamentada (‘Slaves of the Elements and Worshippers of Angels’, 456–64), pois mostra como
a mentalidade da época de Paulo entendia que os anjos também “guardavam” os elementos do
Universo (como água, fogo, terra, vento, etc). Quanto a terceira possível interpretação, era
comum no judaísmo representar as estrelas como seres vivos. Estevão em At. 7.42 fala de Israel
“cultuando as hostes do céu”. Amós 5.25-27 se refere ao exílio de Israel como resultado da
adoração às estrelas. O Judaísmo em si não divinizava as estrelas, mas as relacionava com os
anjos que governavam sobre elas, ou que elas eram uma classe distinta de anjos (E. Lohse,
Colossians and Philemon, pp. 96–99).
Concluímos que os “elementos do mundo” são uma referência a seres pessoais e espirituais,
i.e., aos anjos. A cosmovisão do 1º século percebia στοιχεῖα como determinantes na vida das
pessoas. Nosso texto apresenta dois modos de se viver: Um baseado em tradições humanas que
escravizam as pessoas aos espíritos, e o outo baseado em Cristo que liberta. Enquanto os
colossenses se submetessem ao medo desses espíritos, eles estavam negando o senhorio de
Cristo. Tal percepção fica muito difícil apenas com uma tradução, ou uma leitura corrida e
superficial. A tarefa do tradutor e do intérprete mostra-se deveras difícil e multifacetada. Tais
profissionais precisam, em algum nível, estar cientes dos debates mais atuais e o que estão
dizendo sobre o texto nos melhores comentários e monografias. Precisam conhecer bem o texto e
o contexto de Colossense e os possíveis paralelos, comparando o texto com outros textos da
época, e muito mais! Tal preparação é ideal, mas nem sempre possível. Mas o leitor comum não
precisa se desesperar, nem cultivar um ceticismo irreconciliável em relação às traduções. Isso
nos leva ao nosso próximo tópico.

Tradução e a vida na comunidade de fé


O leitor das Escrituras que genuinamente professa confiança na pessoa e na obra do Messias
Jesus não precisa se desesperar porque ele não é uma ilha hermenêutica navegando no oceano
das incertezas de suas escolhas exegéticas. O recente trabalho de Kevin Vanhoozer sobre os
cinco solas da reforma destrói acusações pesadas feitas contra os reformados. Uma das mais
pertinentes para a presente argumentação é a acusação de que o Sola Scriptura ( somente as
Escrituras) leva (e levou) os leitores da bíblia a um individualismo interpretativo extremo. Como
não temos mais uma autoridade papal ou institucional para determinar o sentido dos textos
bíblicos, o protestantismo inaugura uma verdadeira Babel interpretativa, na qual ninguém se
entende, pois cada um interpreta cada passagem a seu bel prazer. Vanhoozer sabiamente
demonstra que o Sola Scriptura, corretamente entendido e vivido, em vez de levar ao
individualismo, conduz o leitor individual para ler as Escrituras com a igreja – com toda a igreja!
O Sola Scriptura não é contra a tradição, apenas não a coloca em pé de igualdade com a Palavra
de Deus. Ler as Escrituras dentro da comunidade de fé é praticar uma leitura comunitária. Essa
comunidade, comprada pelo sangue do Cordeiro, transcende tempo e espaço, pois ainda que
tenha suas manifestações locais (e temporais) ela engloba todos os crentes de todas as épocas. É
nesse contexto que ler a tradição e a história da igreja e das doutrinas torna-se saudável e
desejável, dando à tradição seu legítimo valor.
Portanto, qualquer leitor que se pretende autônomo e autossuficiente como intérprete das
Escrituras, desprezando a sabedoria de uma comunidade local, e da comunidade universal, está
longe de um entendimento correto da vivência cristã, e em vez de praticar os Solas, está os
corrompendo.

O dever dos líderes


Movemo-nos agora para a responsabilidade dos líderes das verdadeiras comunidades de fé
em Jesus. Cheirando a pragmatismo gospel, as grandes evangelizações e plantações de igrejas
em vasta quantidade (especialmente no século passado) levantaram uma enorme demanda. Quem
iria pastorear esses milhões de novos convertidos? Certamente não daria tempo de proporcionar
o devido treinamento a todos os que se viam como vocacionados ao ministério pastoral. Surge
então uma enorme quantidade de ministros leigos para suprir a demanda pastoral.
Num primeiro momento, não precisamos ser severamente críticos a isso. Muitos desses
pastores leigos (falando dos genuínos) devoram suas Bíblias em leituras devocionais e atentas,
possuem uma fervorosa vida de oração e um genuíno desejo de pastorear as ovelhas de Cristo.
Houve outros momentos na história em que uma grande quantidade de pessoas veio a Cristo pela
fé e surgiram vários líderes leigos (pensando especialmente no grande avivamento da época de
George Whitefield e dos irmãos Wesley).
Entretanto, no devido tempo, e respeitando os recursos e dons de cada ministro, todos os
líderes fiéis das igrejas cristãs precisam se aprimorar e aprofundar seus estudos teológicos. Se
acomodar e murmurar que a teologia esfria a vida cristã é condenar sua amada congregação à
superficialidade, imaturidade e até mesmo heresias podem corroer esses cristãos como um
câncer.
A reforma protestante foi um enorme marco na história da igreja e no desenvolvimento da
sã doutrina. Sua ênfase no “ad fontes” levou os reformadores a darem grande importância às
línguas originais da Bíblia. Nos seminários da época da reforma, havia uma grande depreciação
pelo estudo das línguas originais e esse desprezo perpassa a história dos estudos teológicos até
nossos dias, onde os seminaristas acham o estudo das línguas originais desnecessário para o
ministério. Em vez de ocupar os primeiros lugares na lista de prioridades, o estudo das línguas
originais é considerado uma espécie de tortura, algo que se faz para concluir o curso. Graças a
Deus esse não era o caso dos reformadores. Martinho Lutero, sobre a importância das línguas
originais para o ministério da pregação, relatou:

“Embora a fé e o Evangelho possam ser proclamados por pregadores simples sem


as línguas, tal pregação é chata e maçante. Os homens enfraquecem e, enojados, caem no
chão. Mas quando o pregador é versado nas línguas, seu discurso tem frescor e força, toda a
Escritura é tratada, e a fé se encontra constantemente renovada por uma variedade contínua
de palavras e obras”.

Não somente as línguas originais são de suma importância para a pregação, mas Lutero
acreditava que elas eram vitais para a própria preservação do evangelho. Ele diz:

“E tenhamos certeza disso, não preservaremos o evangelho por muito tempo sem as
línguas. As línguas são a bainha na qual esta espada do Espírito está contida; elas são a
caixa na qual esta joia é entesourada; elas são o vaso em que este vinho é guardado; elas
são a despensa na qual esse alimento é armazenado; e, como o próprio evangelho aponta,
elas são as cestas nas quais são mantidos esses pães, peixes e fragmentos...”.
“Por essa razão, até os próprios apóstolos consideraram necessário estabelecer o Novo
Testamento e prendê-lo rapidamente na língua grega, sem dúvida, a fim de preservá- lo para
nós, sãos e salvos como em uma arca sagrada. Pois eles previram tudo que estava por vir e
agora aconteceu; eles sabiam que, se fosse deixado exclusivamente para a memória dos
homens, desordem e confusão selvagem e terrível e uma série de interpretações variadas,
fantasias e doutrinas surgiriam na igreja cristã, e isso não poderia ser evitado nem as
pessoas simples protegidas, a menos que o Novo Testamento fosse estabelecido com certeza
em linguagem escrita. Por isso, é inevitável que, a menos que as línguas permaneçam, o
evangelho irá finalmente perecer”.

Lutero constantemente testemunhava que quando as línguas originais perdiam sua


importância, a própria sã doutrina declinava junto. Pessoalmente, Lutero valeu-se das línguas
originais para combater as heresias romanas:

“Se as línguas não me fizessem apto quanto ao verdadeiro significado da Palavra,


Eu poderia ainda ter permanecido um monge acorrentado, empenhado em pregar
silenciosamente os erros romanos na obscuridade de um claustro; o papa, os sofistas e seu
império anticristão permaneceriam inabaláveis”.

Para Lutero, a igreja deveria valorizar as línguas originais para seu próprio bem espiritual e
preservação contra heresias. Todo pregador deve se esmerar em conhecer as línguas originais
para serem mais aptos no ministério da pregação das Escrituras.
Podemos dizer o mesmo de João Calvino. Nascido em 1509, foi primeiramente treinado no
Direito e, após sua conversão, focou-se no seu treinamento para o ministério eclesiástico, que
incluía um intenso estudo das línguas originais. Estima-se que Calvino pregou cerca de 4 mil
sermões tanto no Antigo, como no Novo Testamento. Ele não usava notas em suas pregações e
traduzia o texto diretamente do original, tamanha era sua dedicação ao estudo das Escrituras. O
reformador de Genebra tinha uma paixão pelo significado literal do texto que o levava a repudiar
as interpretações alegóricas. Até mesmo sua filosofia da educação possuía um currículo baseado
nos estudos da linguagem. Como professor, Calvino treinou milhares de alunos na França,
Inglaterra, Holanda, Escócia, Alemanha, Itália e Suíça, e todos os seus alunos deveriam saber
hebraico, grego e latim.
Com o mesmo espírito de Lutero, Calvino acreditava que os falsos pregadores e hereges
sempre buscavam esconder o significado original do texto para as pessoas comuns. Pregar
corretamente o sentido dos textos originais constitui um golpe fatal no falso ensino.
Portanto, é dever imprescindível dos líderes cristãos a dedicação no estudo das línguas
originais para pregarem cada vez mais com maior fidelidade, precisão e paixão. A igreja precisa
ter acesso ao significado original dos textos bíblicos através da dedicação vital dos pastores e
professores nos estudos do texto original. Ao saberem e usarem as línguas originais das
Escrituras, o pregador: (1) exalta a Jesus Cristo e a sabedoria de Deus ao nos dar o texto
Sagrado; (2) possui maior certeza do significado do texto e de sua interpretação e aplicação para
a comunidade de fé; (2) é um grande tônico para o crescimento espiritual da igreja, uma vez que
a Palavra é exposta com fidelidade, poder e precisão e; (4) possibilita uma apologética robusta,
revigorante e precisa da fé cristã.

Expostos à exposição
Assim como é dever dos pastores conhecer as línguas originais da Escritura, também é
dever da igreja exigir tal conhecimento de seus líderes. O pastor norte-americano Mark Dever
tem se dedicado a estudar o que uma comunidade de fé precisa ser e ter para ser uma igreja
saudável. Ele sistematizou o ensino bíblico e histórico em nove marcas. A primeira marca de
uma igreja saudável, segundo Dever, é a pregação expositiva. A pregação expositiva é a
pregação que lê, interpreta e aplica o texto bíblico de forma fiel, apaixonada e poderosa.
Qualquer igreja saudável entende via experiência o motivo de Dever ter dado a primazia para
esse ponto. Sem uma pregação Bíblica não há igreja saudável, vibrante e madura. A pregação
expositiva é o próprio coração da liturgia e da igreja, bombeando vida espiritual para o corpo de
Cristo.
Com isso em mente, podemos afirmar que o coração do ministério pastoral é a plena
dedicação à oração e à Palavra de Deus (Atos 6.4). Qualquer homem que pretenda ser um líder
eclesiástico, e não queira se dedicar de corpo e alma ao estudo sério e profundo das Escrituras
precisa repensar seu chamado (e abandoná-lo). O estudo sério das Escrituras envolve
(primeiramente) o estudo das línguas originais. As igrejas locais precisam, com amor e carinho,
responsabilizar seus pastores a serem mestres das Escrituras. Os pastores não são palestrantes,
homens de negócios, organizadores de eventos, reis totalitários, psicólogos, pedreiros ou
decoradores. São homens de Deus, profetas, que precisam profetizar o evangelho de Cristo, e
para isso, precisam conhecer tanto a mensagem, como a pessoa para qual essa mensagem aponta.

Conclusão: extremos a serem evitados


Tanto o desespero quanto os extremos devem ser evitados. Por um lado, as traduções não
são perfeitas. É importante que um cristão tenha várias traduções Bíblicas para uma leitura
comparativa sempre que possível. Em um cenário ideal, encorajo a você leitor que não saiba
hebraico ou grego a buscar esse conhecimento. Nos nossos dias, temos um oceano de material e
cursos para adquirir tal conhecimento. Por outro lado, um cristão “leigo” não deve se desesperar
ou ser extremamente cético quanto às traduções. Em primeiro lugar, porque a maioria das
traduções da Bíblia é responsável e adequada. Normalmente, as traduções são feitas por equipes
de especialistas que realmente desejam ser fiéis em sua árdua tarefa para proporcionar o texto
Sagrado para a igreja de Cristo. Portanto, como argumento na primeira parte desse livro, essas
traduções são a Palavra de Deus traduzida para nosso idioma. Os reformadores e as confissões de
fé da pós-reforma afirmam que o texto original deve ser o árbitro supremo quando a igreja
estiver com alguma dúvida textual e/ou doutrinal. Mas ao mesmo tempo em que esses homens de
Deus do passado afirmaram a primazia e a inspiração somente do texto original, eles
ardorosamente labutaram por traduzir as Escrituras para vários idiomas. Isso mostra um diálogo
saudável entre original e tradução. Em segundo lugar, um cristão não precisa se desesperar
porque (pressupõe-se) ele está inserido numa comunidade de fé (igreja) verdadeira que estima a
Palavra de Deus como única regra de fé e possui homens maduros que se dedicam ao estudo das
Escrituras. Portanto, tanto a leitura individual como a comunitária das traduções bíblicas, feitas
com fé por meio do Espírito, são leituras da própria vontade de Deus revelada e, portanto, trás
edificação e crescimento espiritual.
12. Justificados ou aceitos? Um breve estudo em Romanos
“Doctrina stantis et cadentis ecclesiae”. Lutero.

A possibilidade da tradução bíblica é tanto uma graça como uma ordem de Deus.
Entretanto, essa possibilidade possui seus limites inerentes e ultrapassá-los sempre é perigoso,
para não dizer mortal. Um desses limites são as adaptações culturais para fins hermenêuticos. Por
exemplo, João Batista disse: “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo. 1.29).
Digamos que um grupo de missionários talentosos alcance alguma vila pagã que sacrifica
coelhos para apaziguar seus deuses. Digamos que essa tribo nunca tenha visto um cordeiro na
vida e que a mensagem de João (o Batista e o apóstolo) fique ininteligível. Seria válido
traduzirem esse texto por “eis o coelho de Deus, que tira o pecado do mundo”? Para responder
com a ênfase paulina – de maneira nenhuma! O pano de fundo do Batista era o Antigo
Testamento e seu público era Israel. Ele não estava dizendo que Jesus era qualquer tipo de
animal sacrificial de qualquer tribo. Ele especificamente se remeteu ao sistema sacrificial das
Escrituras hebraicas. Então ainda permanece a questão: como aquela tribo irá entender essa
mensagem? Ainda que o coelho possa ser usado num momento inicial da evangelização dessa
tribo como analogia (lembrando que analogia nunca é identidade), o trabalho de tradução não é o
único a ser feito. O ministério da pregação e do ensino é essencial. Esses missionários
precisariam ensinar o Antigo Testamento, o Novo e as doutrinas cristãs. Não é somente o animal
sacrificial que é diferente, mas todo o verso é. A noção de Deus, do pecado e do mundo é (ou
podem ser) completamente diferente para a fé cristã e uma tribo pagã. Imaginem a hipótese de
uma tradução completamente contemporânea para essa tribo fictícia: “ali está o coelho das
divindades, que joga no mato as maldades da natureza visível”. Nada mais hilário e trágico.
Nesse capítulo, iremos analisar um exemplo de tradução que pode distorcer o sentido
original do texto e trazer sérias consequências para a teologia e vida da igreja. Faremos um
brevíssimo estudo da palavra “justiça/justificação” na carta de Paulo aos Romanos, com foco em
Romanos 3.24.

Romanos 3.24
O debate sobre a doutrina da justificação pela fé sempre foi muito acalorado e extenso. Essa
doutrina foi um dos grandes focos da reforma protestante, ao ponto de Lutero dizer que nessa
doutrina, a igreja permanece de pé ou cai. Desde o século passado, a justificação pela fé tem sido
o tópico de maior debate e maior produção acadêmica do que qualquer outra doutrina. Desde E.
P. Sandres cunhou-se o que conhecemos como a “nova perspectiva sobre Paulo”, dando
conotações sociológicas e eclesiásticas ao termo, em vez do clássico tom jurídico dos
reformadores. Até os nossos dias, esse debate permanece em alguma medida com a obra de
teólogos como James Dunn e N. T. Wright, que desenvolveram sua própria interpretação a partir
dos insights devastadores de Sanders. Entretanto, D. A. Carson (em conversa particular) me disse
que esse debate já foi muito mitigado graças ao seu (e de seus colegas) extenso trabalho
exegético sobre a justificação no judaísmo e em Paulo. Mesmo assim, os ecos sandersianos ainda
assombram os cristãos e ainda gera inúmeras monografias de mestrado e doutorado. Um trabalho
detalhado sobre o tema exigiria alguns massivos volumes, e certamente o leitor pode encontrar
muitos (quase infindos) livros sobre o tema. Nosso foco será apenas a questão de tradução nas
Bíblias em português.
Em Romanos 3.24, Paulo nos diz que somos justificados pela graça de Deus mediante a
redenção que há em Cristo Jesus. As versões Almeida e a NVI traduzem δικαιούμενοι de forma
clássica como “justificados”. A NVT dá mais um passo hermenêutico e traduz o termo como “ser
declarado justo”, o que além de manter o tom forense, é ainda mais teologicamente acurado para
lentes protestantes. A versão destoante é a NTLH, que traduz o verso da seguinte maneira: “...
mas, pela sua graça e sem exigir nada, Deus aceita todos por meio de Cristo Jesus, que os salva”.
A nuance jurídica foi totalmente eliminada pelo termo “aceitação”, que é mais amplo e menos
carregado teologicamente.

O contexto
Seguindo a estruturação do massivo comentário de Douglas Moo (de 1996), podemos
dividir o documento mais influente da história do ocidente da seguinte maneira: temos uma
introdução em 1.1-15 e os versos 16-17 declaram o tema da carta, a saber, o evangelho de Jesus
Cristo. Segue então uma longa exposição do coração do evangelho, que é a doutrina da
justificação pela fé (1.18- 4.25). Paulo segue seu texto mostrando a segurança que um cristão
possui no evangelho, que é a esperança da glória garantida pela morte e ressurreição de Cristo e
nada pode nos separar desse amor (5.1-8.39). O evangelho proclama a salvação também para os
gentios, o que levanta um problema a ser resolvido: porque os judeus, povo de Deus no Antigo
Testamento, estão majoritariamente recusando o evangelho, enquanto muitos gentios estavam
abraçando essas boas novas com fé salvadora? Essa apologética do evangelho diante desse
problema é tratada em 9.1- 11.36. A última grande seção de Romanos fala sobre o poder
transformador do evangelho na vida prática do cristão e da comunidade cristã (12.1-15.13),
seguida da conclusão da carta em 15.14- 16.27. Paulo expõe seu evangelho para conseguir
suporte para pregá-lo na Espanha, ao mesmo tempo em que edifica as igrejas em Roma e tenta
unificar ainda mais judeus e gentios convertidos.
A ideia de justiça perpassa toda a epístola, já presente nos versos temáticos: “... a justiça de
Deus se revela no evangelho...” (1.17). Do ponto de vista dogmático e sistemático, não é errado
falarmos em justiça de Deus como um dos Seus atributos. Entretanto, o minucioso estudo de J.
A. Ziesler (de 1972) sobre o significado de “justiça” nas cartas de Paulo mostrou que nos escritos
Bíblicos, a justiça de Deus está mais relacionada com a atividade de Deus na criação, na história
e na redenção, frequentemente vinculado à manutenção de Sua aliança. Ziesler também
demonstrou que não há apenas um significado para a expressão “justiça de Deus”, e cada
passagem que ela aparece precisa ser examinada dentro do seu contexto.
Após mostrar, extensamente, que toda a humanidade caída é culpada diante de Deus e que a
antiga era (antes de Cristo) foi marcada pela justa ira de Deus (1.18-3.20), Paulo brilha a luz da
esperança, expondo a realidade doutrinal da justificação pela fé (3.21-4.25). Nosso texto está na
seção sobre justificação e justiça de Deus (3.21-26). O termo justiça de Deus é proeminente,
aparecendo nos versos 21, 22, 25, 26. Essa seção se divide em quatro partes: Paulo reforça a
ideia de que a revelação da justiça de Deus está relacionada com o Antigo Testamento (3.21); a
segunda parte mostra a igualdade da humanidade, ou seja, como todos os seres humanos,
igualmente pecadores, podem ter acesso à justiça de Deus através da fé (3.22-23); a terceira parte
demonstra que a fonte da justiça de Deus é a morte sacrificial de Jesus Cristo (3.24-25a); e
finalmente a seção termina mostrando que a morte de Jesus não apenas justifica o ímpio, mas
também “justifica” o próprio Deus, ao demonstrar o motivo pelo qual Deus pode justificar o
perverso (3.25b-26).

O texto
Cranfield demonstrou em seu comentário que o verso 24 continua o verso 23, no sentido em
que “todos” pecaram e igualmente “todos” são justificados. Entretanto, o termo “todos” não
significa universalidade (todo mundo), mas falta de particularidade (qualquer), retomando a
expressão “todos os que creem” do verso 22.
Aqui, o verbo “justificar” é usado pela primeira vez em Romanos. Esse verbo não significa
tornar justo, nem apenas ser tratado como justo, mas sim, ser declarado justo. Nas palavras de
Moo, não é mera “ficção legal”, mas uma realidade de máxima significância, ser justificado é ser
absolvido por Deus de todas as acusações que podem ser feitas contra o ímpio por causa de seus
pecados. É um veredito judicial. É a própria antecipação escatológica do julgamento final. O que
os judeus esperavam apenas para o último dia, no Dia do Senhor, a declaração de justo ou
condenado, feita pelo Supremo Juiz de toda criação, foi antecipado. Não pelas obras, mas pela fé.
Isso foi possível devido à inauguração da era vindoura feita por Jesus e pelo Espírito. Haverá sim
o julgamento final (aspecto ainda não da escatologia), mas sua declaração foi antecipada através
do evangelho. Quem crer já é declarado justo e quem não crer já é declarado culpado.
Essa justificação é totalmente livre de qualquer mérito que alguém possa vindicar ter (pois
ninguém tem mérito positivo algum), mas é efetuada totalmente pela graça de Deus mediante a
redenção efetuada por Cristo Jesus.

Conclusão
Inevitavelmente, os termos “justiça, justificar, justo” possuem, em Romanos, um
significado fortemente jurídico. Estão inescapavelmente dentro do campo semântico forensico.
Eliminar esse tom jurídico torna a mensagem mais agradável a ouvidos contemporâneos, mas
muda a própria essência da mensagem. Admitir, na tradução, o significado jurídico dessas
palavras é se comprometer com muitas doutrinas. Admite-se que Deus é justo e que Ele julga
retamente a todos. Admite-se que todos estão legalmente culpados diante de Deus e que todos
nós merecemos a condenação eterna. Admite-se que, ao morrer, Cristo recebeu a punição pelos
pecados de todos os que creem nele, e que o próprio Deus se agradou em moê-lo. No fim das
contas, admite-se o próprio e genuíno evangelho. Mudar a tradução nesse ponto é mudar a
própria mensagem e a própria realidade do que Deus fez por nós em Cristo Jesus. Obviamente,
por sermos justificados e redimidos por Cristo, Deus nos aceita. Mas essa aceitação está presente
em outras passagens, e é uma consequência da justificação, mas não podemos reduzir uma coisa
à outra.
Eliminar o tom forense do termo justiça (quer seja na tradução quer seja na teologia), é
querer derrubar a própria igreja ao negar o maravilhoso aspecto jurídico da salvação que há em
Jesus. Não é apenas uma adaptação indevida, ou trocar cordeiro por coelho, é arrancar o coração
do evangelho do peito da teologia paulina. Eis um triste exemplo de tradução ruim que muda o
sentido do texto e que trás terríveis consequências para seus leitores desatentos.
13. Inspiração verbal e a tarefa do tradutor: A convicção de Agur

“Sem tradução, estaríamos vivendo em províncias que fazem fronteira com o silêncio.” George Steiner

Neste último ensaio antes de concluirmos, iremos refletir um pouco sobre a inspiração
Divina dos Escritos Bíblicos com um breve corolário para a tradução dos mesmos. Como foi dito
no início desse livro, nós pressupomos tanto o Deus trino como a inspiração verbal das
Escrituras. Portanto, não será apresentada agora nenhuma prova lógico-matemática, nenhuma
rede complexa de evidências históricas, psicológicas, linguísticas ou qualquer outro tipo de
evidência que corrobore para nossos pressupostos. As evidências são importantes, pois nenhum
pressuposto deve ficar de pé sem o apoio de evidências concretas. Entretanto, a crença ou não na
inspiração Bíblica transcende as evidências de qualquer aspecto da realidade, pois ela se volta
para a própria origem da realidade criada. Obviamente não há um vínculo lógico causal entre a
crença no Deus criador e a crença na revelação desse Deus nas Escrituras. Mas para os
pressupostos cristãos o primeiro é inevitavelmente o mesmo que o segundo, exatamente por
pressupormos o Deus trino das Escrituras Sagradas. No mais, toda sorte de evidências estão do
nosso lado, mas a totalidade delas não convencerá um coração endurecido, por isso faço coro
com Paulo, confessando que essa fé é dom de Deus.
Então o que faremos? Iremos analisar as convicções de um antigo sábio, de uma pequena
porção das Escrituras, chamado Agur, que por sua pequenez é frequentemente esquecido por nós
- leitores da Bíblia - mas que revela fortes convicções sobre a inspiração verbal das Escrituras. O
texto é Provérbios 30.1-6, que diz assim:

“Ditados de Agur, filho de Jaque; oráculo: Este homem declarou a Itiel; a Itiel e a
Ucal: Sou o mais tolo dos homens; não tenho o entendimento de um ser humano. Não
aprendi sabedoria, nem tenho conhecimento do Santo. Quem subiu aos céus e desceu?
Quem ajuntou nas mãos os ventos? Quem embrulhou as águas em sua capa? Quem fixou
todos os limites da terra? Qual é o seu nome, e o nome do seu filho? Conte-me, se você
sabe! Cada palavra de Deus é comprovadamente pura; ele é um escudo para quem nele se
refugia. Nada acrescente às palavras dele, do contrário, ele o repreenderá e mostrará que
você é mentiroso” (Pv. 30. 1-6; NVI).

Provérbios 30 é uma das passagens mais difíceis de traduzir e interpretar do livro de


Provérbios. Estamos na última seção do livro. Se considerarmos todo o capítulo 30 como sendo
um discurso de Agur, então Provérbios termina com três seções: 1. Os ditos de Agur (Pv. 30); 2.
Os ditos do Rei Lemuel (Pv. 31.1-9) e; 3. Um poema celebrando a virtude da mulher (Pv. 31.10-
31).
Não sabemos virtualmente nada sobre Agur. Ele não é citado em nenhuma outra passagem
bíblica ou extra-bíblica e o mesmo ocorre com seu pai, Jaque. Alguns (como Tremper Longman)
argumentam que Agur era de Massá (30.1), que é provavelmente uma região árabe, ou seja, um
possível descendente de Ismael. Entretanto, Bruce Waltke habilmente demonstrou que
“hammassá” significa “oráculo”, um fardo profético. Assim sendo, Provérbios 30 (e 31, pois usa
o mesmo termo para as palavras de Lemuel), são tanto um discurso de Agur como uma profecia
(oráculo) Divina.
O verso 1 é um cabeçalho autobiográfico de Agur e mostra os destinatários desses ditos
proféticos: Itiel e Ucal. Podemos estruturar esse parágrafo conforme Waltke:
I. Introdução: a confissão autobiográfica de Agur (30.1-9);
A. Cabeçalho (30.1);
B. Confissão (30.2-9);
1. Seus ditos são inspirados (30.2-6);
2. Suas duas petições: por fidelidade e modéstia (30.7-9);
II.O conteúdo principal: sete ditos numéricos (30.10-33).

Alguns estudiosos, como W. O. E. Oesterley e Otto Plöger negam a unidade literária dos
versos 5-6 com 1-4. Entretanto, Jerry Pauls (construindo sobre a obra de Paul Franklyn),
habilmente demonstra a unidade desses seis primeiros versos da seguinte maneira:

A. Confissão humana (30.2-3);


1. Declaração #1 (30.2);
2. Declaração #2 (30.3);

B. Perguntas retóricas (30.4);


1.“Quem...” (30.4a);
2.“Qual...” (30.4b);

A´. Citações das Escrituras (30.5-6);

1. Contra-declaração #1 (30.5);
2. Contra-declaração #2 (30.6).

Agur começa sua confissão (v. 2 em diante) vinculando-a com o cabeçalho inicial (v. 1). Ele
confessa que, apesar de seu desejo em conhecer a Deus, sua razão natural falhou miseravelmente.
A sabedoria que Agur falha em ter não é meramente uma filosofia humana, mas é a sabedoria
que vem do próprio Deus, que é a própria Sabedoria. Contrário a todo o racionalismo,
especialmente do iluminismo, Agur reconhece os limites e a incapacidade intrínseca de seu
entendimento caído. Ele começa se declarando um “estúpido”. A palavra hebraica baʿar traz a
conotação de ausência do aspecto racional que distingue a humanidade dos animais. Esse termo
já apareceu em Provérbios 12.1 que diz que aquele que rejeita a repreensão é um baʿar (estúpido,
insensato). A diferença é que em 12.1 o autor está se referindo a outra pessoa e Agur está se
referindo a ele mesmo. Asafe, no Salmo 73, lutando com a ideia da prosperidade dos ímpios,
confessa a mesma coisa que Agur: “... eu estava embrutecido e ignorante, era como animal
perante Ti” (Sl. 73.22). Aqui reside o grande paradoxo da sabedoria: aqueles que a possuem, ou
antes, são possuídos por ela, veem a sim mesmos com a máxima humildade e ignorância em si
mesmo. Basta olharmos para o restante de Provérbios 30 para vermos a grandeza da sabedoria de
Agur, tanto em suas petições como em suas declarações. O contraste é entre o homem Agur
considerado em si mesmo e a pura palavra de Deus que é a fonte da verdadeira sabedoria. Ainda
que o termo “homem” (adam) nesse verso esteja se referindo à universalidade do gênero
humano, podemos também entender esse ensinamento na particularidade do primeiro homem,
Adão. Assim, o entendimento do homem no final do verso 2, colocado sob a ótica de todo o
Cânon e da história da redenção, é o próprio entendimento que Adão tinha de Deus, um
conhecimento imediato, genuíno e relacional. Ao pecar, a morte perpassou também a atitude
racional da mente humana, separando-a de Deus. Assim, o livro de Provérbios inicia dizendo que
“o temor do Senhor é o princípio do conhecimento” (1.7). Sem temor, sem conhecimento. O
simples fato de Agur reconhecer isso em confissão já é algo da graça e sabedoria de Deus dado a
esse homem. A epistemologia de Agostinho, que influenciou Calvino, John Owen e toda a
tradição reformada é que o conhecimento consiste em conhecermos a Deus e a nós mesmos. Sem
a primeira episteme não há a segunda. Agur reconhece isso no verso 3, dizendo que sua falta de
sabedoria traduz-se em falta de conhecimento do Santo (Deus).
No verso 4, Agur muda o foco do seu discurso. Da confissão de si mesmo, ele confronta
Itiel que podemos entender como um representante de todo o povo de Israel. Temos seis
perguntas retóricas no total. As quatro primeiras perguntas “quem” tem como resposta somente a
Deus. Certamente é uma alusão ao relato da criação de Gênesis, pois as perguntas estão
poeticamente relacionadas com a origem
dos céus, dos ventos, do mar e da terra. As duas últimas perguntas “qual”, perguntam sobre o
nome do Criador e de Seu filho. Nesse contexto, a resposta é “YHWH” e “Israel” que é o filho
de Deus no Antigo Testamento (o título “Filho de Deus” aplicado a Jesus significa, em muitos
contextos, que Jesus é o novo Israel).
Temos esse mesmo movimento confessional de ignorância humana para a sabedoria Divina
em Jó. 28. 12-28:
12 Mas onde se achará a sabedoria? E onde está o lugar do entendimento?
13"O homem não sabe quanto vale a sabedoria; ela não se encontra na terra dos viventes."
14 "O abismo diz: Não está em mim; e o mar diz: Não está comigo."
15 Não pode ser comprada com ouro fino, nem será trocada a peso de prata.
16 Nem pode ser avaliada em ouro fino de Ofir, nem em pedras preciosas de berilo ou safira.
17 "O ouro ou o cristal não se podem comparar com ela; nem se pode trocá-la por joias de ouro fino."
18 "Não se fará menção de coral nem de jaspe; porque a aquisição da sabedoria é superior à das pérolas."
19 O topázio da Etiópia não se igualará a ela, nem pode ser comprada com ouro puro.
20 De onde, então, vem a sabedoria?Onde está o lugar do entendimento?
21 Está encoberta aos olhos de todo vivente, oculta às aves do céu.
22 O Abadom e a Morte dizem: Ouvimos rumores sobre ela.
23 Deus conhece o seu caminho, só ele sabe onde ela fica.
24 "Pois perscruta até as extremidades da terra; sim, ele vê tudo o que há debaixo
25 "Quando regulou a força do vento e fixou a medida das águas;"
26 "quando estipulou leis para a chuva e caminho para o relâmpago dos trovões;"
27 "então viu a sabedoria e a manifestou; estabeleceu-a e esquadrinhou-a."
28 E disse ao homem: O temor do SENHOR é a sabedoria, e o afastar-se do mal entendimento.

Com essas perguntas no verso 4, Agur muda o centro de gravidade da problemática. O


grande cerne do problema do conhecimento é um problema relacional. Saber o nome de Deus e
do Seu povo é estritamente conhecer a Deus de modo relacional, pessoal.
A grande solução do problema epistemológico da humanidade é a auto-revelação de Deus
em sua palavra escrita (versos 5-6). A humanidade caída está perdida em trevas devido à sua
cegueira espiritual. A única forma de reconstruir a ponte perdida rumo à sabedoria é
humildemente se render ao texto que nosso Redentor nos deixou. Verdadeiramente, a
reconstrução dessa ponte epistêmica foi feita pelo próprio Deus ao se encarnar e inspirar sua
verdade para que ela fosse escrita pelos profetas e apóstolos, e não pelas mãos fracas e inúteis
dos homens.
No verso 5 Agur alude à confissão de Davi sobre a confiabilidade da palavra de Deus
(Salmos 18.30) e no verso 6 alude a declaração de Moisés sobre o status canônico da palavra
inspirada de Deus (Deuteronômio 4.2; 12.32; 13.13). A combinação da pergunta do verso 4 sobre
quem subiu ao céu e a alusão a Deuteronômio no verso 6 lembram sobre o enunciado de Moisés
em Dt. 30.11-14:
Porque este mandamento que hoje te ordeno não é difícil demais, nem está fora do
teu alcance. Não está no céu, para dizeres: Quem subirá ao céu por nós, e o trará, e o
anunciará para nós, para que obedeçamos a ele? Nem está do outro lado do mar, para
dizeres: Quem atravessará o mar por nós, e o trará, e o anunciará para nós, para que
obedeçamos a ele? Sim, a palavra está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para
que a cumpras.

No verso 5, aludido ao Salmo 18.30, Deus e Sua palavra são inseparáveis. A pureza da
palavra de Deus possui sua causa única em sua fonte, Deus, que é a pureza absoluta. Davi, no
Salmo, chama Deus de escudo, que foi como Deus se revelou a Abraão em Gn. 15.1. Tanto em
Gênesis como no Salmo, Deus é descrito como escudo para se referir ao fato de Deus ser o
“Guerreiro Divino” que peleja e vence as lutas de seu povo. Abraão derrotou os reis que
sequestraram seu sobrinho Ló, assim como Davi havia derrotado seus inimigos através da benção
Divina. Todo o povo de Deus pode se refugiar Nele com segurança. Isso significa correr com
confiança para a palavra de Deus e habitar nela com fé e devoção.
O verso 6 declara avidamente o status canônico da palavra inspirada. Na medida em que o
ser humano caído não possui entendimento correto e sabedoria genuína, nenhuma palavra
humana deve ser acrescentada à revelação de Deus. As filosofias racionalistas ou empiristas que
arrogam alguma autonomia ao entendimento humano declaram guerra contra a palavra de Deus e
a julga palavra por palavra, declarando aquilo que pode ou não ser verdadeiro. Agur confessa o
oposto. É Deus em sua palavra quem julga o entendimento humano (e também sua totalidade).
Dizer algo diferente das Escrituras é incorrer em erro. Isso implica que as Escrituras são a
verdade (de Deus para nós).
Em Dt. 4, Moisés exorta o povo de Israel para que este seja obediente ao Senhor. Requer-se
vida para tal obediência, que por sua vez, promete mais vida. Por isso Deus primeiramente
resgatou seu povo do Egito e depois outorgou sua Lei. Conformidade com a palavra de Deus é
seguida por vida espiritual, desobediência é seguida por morte, mesma morte do Éden. Além da
promessa da vida, obediência resulta em verdadeira sabedoria (Dt. 4.6). Essa sabedoria obediente
ao Senhor tem um propósito proclamativo, uma essência missional. Todos os povos da terra
saberiam que Israel era sábio e que esse povo servia ao Deus verdadeiro. Essa missão só era
possível por causa da palavra inspirada de Deus a Israel e a conformidade plena de Israel a essa
palavra. Agur desejava o mesmo para Itiel (Israel), evidenciando o propósito missional da
sabedoria de Provérbios.
Conclusão
A absoluta necessidade da revelação especial de Deus em palavras escritas se mostra de
forma pujante e clara na confissão da total incapacidade epistêmica e sapiencial de Agur. Mas
Agur não era um agouro. Agouro pode ser uma previsão de algo ruim, de uma tragédia fatídica.
A profecia de Agur, pelo contrário, reveste-se de esperança, mas apenas porque reconhece que
Deus se revelou para seu povo através de Sua palavra. Caso contrário, caso Agur parasse nos
versos 2-3, o agouro seria completo, infinitamente pior do que qualquer tragédia de Sófocles ou
Shakespeare. Se Deus não nos tivesse dado sua palavra, estaríamos entregue ao desespero da
escuridão, tateando no escuro, sem nunca achar nada.
A palavra de Agur é paradoxal, é de ocultação e de revelação simultaneamente. Aqueles que
quiserem entendê-lo precisarão engajar o seu ser completamente na tarefa proposta. Precisará
entender e confessar seu desentendimento universal e se refugiar na auto-revelação escrita de
Deus. O mito de Fausto mostra a tragédia do homem querer ter todo o conhecimento pactuando
com o maligno. Mefistófeles não satisfaz a sedenta alma de Fausto, mas na tragédia goetheana
Deus triunfa no final. O homem das luzes (iluminista) é o que mais se encontra nas trevas, mas
aquele que, como Agur, confessa suas trevas, encontra a verdadeira Luz na palavra do Deus que
se revela.
A tarefa do tradutor mostra-se imprescindível. Sem a tradução das palavras de Agur do
hebraico para o português, nós ainda estaríamos perdidos na condição dos três primeiros versos.
Escolhi esse texto para analisarmos antes da conclusão porque ele resume bem a tarefa do
tradutor e os argumentos desse livro. Agur afirma que toda palavra de Deus é pura. A inspiração
verbal, para alguns, é apenas imaginação fundamentalista que eternizaria tanto a palavra escrita
que impossibilitaria qualquer tradução ou inspiração. Entretanto, a Bíblia não é o Corão, e a
inspiração verbal não é tão estática e engessada como os críticos a pintam. Inspiração verbal não
significa necessariamente ditado mecânico-Divino, palavra por palavra, como na pintura de
Caravaggio sobre a inspiração de São Mateus. Houve momentos que Deus ditou sua palavra aos
profetas, mas na maioria das vezes Deus usou a experiência, intelecto, memória e pesquisa de
seus servos para inspirar suas Escrituras. Entretanto, cada palavra do produto final foi soprada
pelo Espírito de Deus. Isso deve colocar temor fé e reverência no coração de todos que se
aproximam dessa palavra inspirada. O oráculo de Agur também conclama à ética o trabalho do
tradutor e a tarefa do leitor-intérprete. Não se deve acrescentar (nem tirar) nada a palavra de
Deus. Independente da teoria da tradução que foi adotada pelos especialistas nas traduções que
temos. Se Deus disse A, não devemos traduzir por B. Se Deus disse justificação, não devemos
traduzir por aceitação, retificação, etc.
Conforme o dito de George Steiner na epígrafe desse capítulo, “sem tradução, estaríamos
vivendo em províncias que fazem fronteira com o silêncio”. Deus conversava com o homem no
jardim. O pecado, que é a rebelião da vontade da criatura contra a vontade do Criador, resultou
na separação da vida, que era exatamente esse relacionamento comunicativo com o Deus vivo.
Desde então, Deus falou várias vezes, de diversos modos à humanidade, mas voltou a se calar
por alguns séculos, até o Seu humilde nascimento no ventre de Maria. Deus então, de forma
redentora e sendo a própria palavra que anunciava, voltou a ter um relacionamento pactual,
relacional e verbal com a humanidade. Criação, queda e redenção – O Altíssimo não se calou,
nem se esqueceu, antes, traduziu-se graciosamente a cegos e surdos, devolvendo-nos a
capacidade de lermos, ouvirmos e entendermos quem Ele é. A tarefa do tradutor é
simultaneamente sublime e perigosa. Quem é capaz para isso, ou quem nos livrará dessa tarefa
mortal e vital? Damos graças a Deus através de Jesus, que capacita seus servos, olhando com
graça e misericórdia para as imperfeições de nossas mãos.
14. Conclusão
Resta-me apenas resumir e aplicar o conteúdo visto até aqui. A possibilidade da tradução
Bíblica é obvia para a maioria dos cristãos (e graças a Deus por isso!), e esse livro seria
irrelevante e desnecessário caso ninguém duvidasse disso. Mas como há hereges que desafiam e
negam essa verdade, acredito que nosso esforço inicial é justificado e pode ajudar os cristãos a
não serem enganados e a serem aptos em defender esse aspecto da verdade de Deus.
O fundamento de toda crença e prática dos cristãos é a Bíblia que revela o Deus triúno. Não
é diferente em relação à tradução textual. Vimos que a Trindade, ao se traduzir para a
humanidade, é o fundamento supremo da prática da tradução. A prática apostólica em traduzir o
Antigo Testamento do hebraico para o grego constitui o fundamento escriturístico para a prática
cristã da tradução. A grande comissão de Jesus aos apóstolos (e à igreja) faz da tradução bíblica
algo indispensável e necessário no plano de Deus. Podemos afirmar sem medo que a
possibilidade da tradução textual era um pressuposto, um axioma para Jesus, para os apóstolos e
para a igreja.
A história da tradução textual foi incrivelmente diversificada em suas teorias e práticas.
Cada teoria estava vinculada à visão de mundo de cada pensador, bem como a concepção de
linguagem, significado e ética. As duas abordagens mais comuns na tradução Bíblica hoje são as
de equivalência formal ou dinâmica, cada uma com suas ênfases, pontos positivos e negativos.

Aplicação
Algumas palavras finais para aplicação pessoal e comunitária sobre o conteúdo desse livro
serão importantes para a vida de fé de cristãos e de comunidades cristãs.

1. Confie na palavra (traduzida) de Deus


A prática da vida cristã está sempre baseada na revelação textual de Deus nas Escrituras. A
leitura diária, individual, familiar e comunitária são condições sem as quais não se pode haver
vida cristã genuína. A leitura precisa ser antecedida, guiada e terminada com orações a Deus.
Precisa ser atenta, com meditação, alegria e visando a glória de Deus na prática da Sua Palavra.
Em tudo isso precisa haver fé. Não confiança cega, mas fé. O exercício do dom que Deus dá para
que os cristãos entendam, abracem e amem as verdades Divinas.
Joachim Jeremias (1900 – 1979), um teólogo luterano alemão, queria recuperar a “ipsissima
vox Christi” (a própria voz de Jesus em aramaico) por trás da redação dos evangelhos em língua
grega. Jeremias não percebeu que os textos gregos dos evangelhos (e de toda Escritura) são a
própria voz de Jesus para Sua igreja. Ler as Escrituras no original é uma experiência
maravilhosa, mas ler as Escrituras traduzidas fielmente também é. Hoje em dia, há muito
ceticismo acadêmico em relação às traduções textuais (especialmente depois das obras de
Derrida). Entretanto, um cristão maduro não se aproximará de uma tradução bíblica com esse
ceticismo, a não ser que seja uma tradução ruim. Estar mergulhado na leitura e entendimento
correto das Escrituras preparará o cristão a não dar ouvidos a todos os erros que vimos nesse
livro (e ainda outros). O desviar-se da sã doutrina começa pela falta de comunhão com ela, pela
falta de conhecimento e prática das verdades de Deus.

2. Una-se a uma igreja saudável que traduza a Palavra de Deus através de


sua vida e culto
A igreja é a tradução comunitária, real e bela das verdades das Escrituras. Quando uma
comunidade local de cristãos ensina, vive, canta e ora as verdades Divinas, ela é a tradução do
evangelho de Cristo para o mundo e para si mesma. Estar em comunhão e serviço leal a uma
igreja local saudável é imprescindível para conhecer as Escrituras e o Deus das Escrituras. Os
líderes espirituais das igrejas cristãs precisam se debruçar no texto original das Escrituras para
poderem traduzir e proclamar Seu conteúdo à comunidade. Se você ainda não é membro de uma
igreja cristã genuína, esse livro não te adiantará em nada. Largue-o e corra para Cristo no seio de
sua noiva (depois retorne e finalize essa leitura).

3. Desenvolva uma cosmovisão bíblica capaz de traduzir a palavra de Deus


para nossos tempos
Ter uma cosmovisão consciente que está de acordo com as Escrituras não é uma tarefa fácil,
mas nosso consolo é que os verdadeiros cristãos possuem o Espírito de Cristo e, portanto, a
mente de Cristo (1Co. 2.16). É muito fácil sermos enganados por teorias polidas que são
contrárias a Palavra de Deus. Conhecer as Escrituras num contexto de igreja saudável (pontos 1 e
2) ajudam os cristãos a enxergarem todas as coisas conforme a vontade de Deus, em sintonia
com sua revelação. Precisamos viver (traduzir) o evangelho para as pessoas do nosso tempo. Isso
envolve pensarmos todas as coisas de forma cristã, inclusive a tradução textual. Não devemos
relegar a tradução textual às teorias anticristãs, e simplesmente abraçarmos a teoria que estiver na
moda. A Graça comum nas teorias de tradução (e em qualquer pensamento) sempre está
acompanhada pelos efeitos da queda, precisamos julgar todas as coisas e reter apenas o que é
bom.

4. Ore pelos missionários e pelos tradutores


Não podemos concluir esse livro sem rogar aos santos para que orem pelos missionários
espalhados ao redor do mundo. Mas lembremos de orar também pelos tradutores das Escrituras
(muitas vezes o missionário e o tradutor são a mesma pessoa). Se raramente oramos pelos
missionários, os tradutores bíblicos nem passam pelas nossas memórias. A tarefa é árdua, os
campos estão prontos para a colheita, mas os trabalhadores são poucos. Roguemos ao Senhor da
colheita para que envie mais trabalhadores nessa desafiadora seara.

5. Considere um chamado à tarefa da tradução bíblica

Talvez esse livro possa te esclarecer algumas poucas coisas, talvez possa ser o início da sua
reflexão sobre as traduções bíblicas, na teoria e na prática. Seja como for, considere se Deus te
deu dons para esse chamado da tradução bíblica. É possível que você seja resposta das orações
do ponto anterior. O tradutor nem sempre é reconhecido, nem sempre tem seu nome nas versões
(como o João Ferreira de Almeida ou o rei James). Às vezes se começa, continua e se termina no
anonimato. Mas é exatamente isso que torna a tarefa gloriosa. Gloriosa para Deus, único alvo da
glória de nossa existência. O fruto de pessoas poderem ler as Escrituras traduzidas, por si só já
faz da tarefa algo sublime. Esse é nosso chamado: fazer todas as coisas para a glória de Deus na
edificação de Sua igreja. Quer seja na tradução textual ou em qualquer outra vocação, esse é
nosso alvo.

Conclusão
Esses ensaios foram um humilde esforço de argumentar que, dentro da tradição cristã, a
prática da tradução textual fiel é algo possível, bom e indispensável. Procuramos fundamentar
essa afirmação com implicações da própria natureza e revelação do Deus Triúno, na prática de
Jesus e seus apóstolos e dos corolários da grande comissão e da descida do Espírito no
Pentecostes. Passamos rapidamente pela história das teorias das traduções e vimos exemplos
práticos dos defensores da intraduzibilidade bíblica e suas inconsistências. Terminamos
mostrando que sempre é bom termos várias traduções da Bíblia e que algumas são totalmente
ruins (como a TNM), enquanto outras possuem algumas passagens mal traduzidas (por isso a
importância das múltiplas traduções e da comunhão numa igreja local).
Termino essas páginas com um ar de insatisfação, de incompletude, de falhas, mas talvez
assim terminem todos os livros que já foram escritos pela humanidade. Somente o texto
divinamente inspirado é completo, inerrante e suficiente. Se a única coisa que você tirou dessas
páginas foi um pouco mais de admiração e valorização das Escrituras e das suas traduções, dou-
me por satisfeito. A Deus seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, por
toda a eternidade. Amém! (Ef. 3.21).
Notas
1 Ou pelo menos com o aval profético e/ou apostólico.

2 Ainda que Teófilo pudesse ter sido um gentio instruído, é certo que Lucas (e Deus!) escreveu para que
sua obra em dois volumes (Lucas-Atos) fosse usada como confirmação catequética de toda a igreja (e não apenas de
Teófilo)

3 Recomendo a leitura dos volumes de DOOYEWEERD, Herman. A new critique of theoretical thought. Grand
Rapids: P&RP, 1969.

4 Lido com todas elas de forma exaustiva em meu comentário da carta aos Colossenses, mas só irei torna-lo
público futuramente.

5 Vale lembrar que não estamos tratando do movimento feminista como um todo. As “ondas” desse movimento
remontam ao século XIII e XIX (primeira onda), especialmente na Inglaterra e EUA. Uma análise mais abrangente foge
aos nossos propósitos e espaços na presente obra.

6 A base para essa análise de Colossenses 2.8 é o meu comentário dessa carta, ainda não publicado
About The Author

Willian Orlandi

Casado com Vitória e pai da Alice. Pastor da Igreja Batista Reformada em Indaiatuba, SP.
Bacharel em Teologia pelo Seminário Martin Bucer, Licenciado em Letras (Português – Inglês)
pela PUC-Campinas, pós-graduado em Teologia do Novo Testamento pela Faculdade
UniFil/STJE. Professor de pós-graduação em Teologia Histórica, Teologia Filosófica, Teologia
Sistemática e Novo Testamento no Centro de Pós-Graduação Jonathan Edwards. Professor titular
em várias disciplinas no curso de bacharel em Teologia no Seminário Jonathan Edwards.
Coordenador pedagógico e professor no Seminário Jonathan Edwards (polo Indaiatuba-SP).
Articulista, tradutor e escritor.

Você também pode gostar