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Abril/ 2019

Professor: Dr. Jorge Henrique Barro


Coordenadoria de Ensino a Distância: Dr. Marcos Orison Nunes de Almeida
Projeto Gráfico e Capa: Departamento de desenvolvimento institucional
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por:

Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR


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SUMÁRIO

Teologia Bíblica da Missão

Unidade 1 - Definições e contextos da missão


1. O que é missão...................................................................................................05
2. Definição de termos relacionados a missão.....................................................13
3. Os contextos da missão......................................................................................18

Unidade 2 - Bíblia, teologia e missão - Parte I


1. A Bíblia como a base da missão......................................................................37
2. As dimensões da missão...................................................................................45
3. Missão centrípeta e centrífuga..........................................................................55

Unidade 3 - Bíblia, teologia e missão - Parte II


1. A missão no Antigo Testamento........................................................................64
2. A missão no Novo Testamento..........................................................................77

Unidade 4 - A prática da missão


1. A igreja misssional............................................................................................92
2. O Reino de Deus e a sua justiça.......................................................................102

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1 - Participação na disciplina por meio da realização dos exercícios;
2 - Exercício integrativo - Resumo da disciplina, 1500 palavras;
3 - 2 Provas objetivas (5 questões cada);
4- Leitura de textos complementares (100 páginas);
Consulte o “Programa de curso” e veja mais detalhes!

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UNIDADE I - INTRODUÇÃO A MISSÃO INTRODUÇÕES E
CONTEXTOS DA MISSÃO

Introdução
Nesta unidade refletiremos sobre os desafios e contextos da missão
hoje. Podemos classificar os desafios em duas categorias: ad intra e
ad extra. Ad intra são os desafios internos da própria igreja e, por ad
extra, os desafios externos que o mundo (país, cidade, sociedade, bairro,
comunidade etc) lança sobre a igreja.

Por mais incrível que possa parecer, o maior desafio para a missão é a
própria igreja. Assim como Israel, como povo eleito de Deus, não entendeu
o projeto de Deus e teve dificuldades para ser um instrumento dele, a ponto
de precisar ser levado ao cativeiro babilônico por um período de 70 anos,
também as igrejas nem sempre entendem o que é a missão de Deus.

Por isso, antes de falarmos dos desafios externos e dos contextos da missão,
olhemos esse desafio interno (ad intra) para discernir o que não é missão.

1. O que não é missão


Já são mais de dois mil anos de história do movimento cristão ou do
cristianismo. Dois mil anos através dos quais compartilhou-se a mesma
fé, no mesmo Cristo ressurreto, por meio de pessoas que fazem parte da
mesma igreja, o grande Corpo de Cristo – visível e invisível – espalhado por
toda a terra, mas que são diferentes, que vivem em épocas diferentes, que
habitam em lugares diferentes, com formas de pensar, de sentir, de julgar
que também são diferentes. Imagine todas essas pessoas pensando sobre
temas bíblicos e extra bíblicos e com suas percepções culturais distintas.

Por exemplo, o próprio Cristo, em quem todos nós, como cristãos, cremos,
não é entendido sem controvérsias – a dupla natureza, humana e divina,
é um dos exemplos. A Bíblia é muito clara ao falar das ações que ele fez
e ensinou. A Bíblia pode até ser clara, mas nós, que a lemos com nossos
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óculos culturais – cosmovisão – corremos o risco de não entender a
total clareza com a qual ela fala. O que isso significa? Significa que nossa
mente, mesmo sendo iluminada pelo Espirito, não é capaz de dar conta
de modo integrativo de toda a revelação expressa na Palavra, isto é, não
possuímos as chaves que nos conduzem à interpretação absoluta e
única da Palavra de Deus. Assim, ainda que conheçamos a Cristo hoje,
prosseguimos em conhecê-lo todos os dias.

Isso pode ir um pouco contra o que você já aprendeu até hoje, mas não é, e
vou tentar explicar o porquê. Pense comigo: se tudo passa, mas a Palavra
de Deus nunca passará; se ela é viva e eficaz e mais cortante que uma
faca de dois gumes; se ela é lâmpada para nossos pés e luz para nossos
caminhos; se é nosso prazer noite e dia, e tantas outras referências que
sobre ela conhecemos por meio dela mesma, isso implica afirmar que: 1)
a Palavra de Deus é maior que as nossas palavras; 2) nossa capacidade
de expressá–la está condicionada pelo nosso espaço e tempo, o que
implica em dizer que temos nossos próprios condicionamentos culturais;
3) por isso, ela se renova permanentemente à medida que mudamos

Isso é apenas para que você comece a pensar sobre a questão. O que
importa, agora, é refletir sobre esse desafio ad intra: o que é, afinal de
contas, missão? Como definir uma prática que tem quase cinco mil anos
de história – começando em Gênesis – e que está desgastada por tantas
controvérsias, nomenclaturas, termos, e pior, os modismos? Como
podemos dizer o que é e o que não é missão, quando tantos biblistas,
teólogos, missiólogos, pastores, missionários e agências missionárias
fazem afirmações tão diferentes, e às vezes até opostas, sobre a
compreensão da missão?

Antes de prosseguir, é fundamental que você defina o que compreende


ser missão. Quando afirmamos o que não é missão é nosso dever e
responsabilidade fazer isso não em função do que achamos ou gostamos,
mas sim à luz de referenciais que cremos e que estejam firmados na Palavra
de Deus. Ou seja, se você afirma que missão não é, significa que você está
convicto do que missão é. E qual é, então, sua definição de missão?
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Exercício de reflexão - 01

Defina com suas palavras o que é missão.


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1.1. Algumas percepções possíveis


Definir é estabelecer limites e delimitar, que busca indicar o verdadeiro
sentido, a significação precisa de algum assunto e/ou objeto de estudo.
Há um risco a correr quando a tarefa se refere ao ato de definir. Foi
precisamente pensando nisso que David Bosch disse que “a missão
permanece indefinível; ela nunca deveria ser encarcerada nos limites
estreitos de nossas próprias predileções” (Bosch, 2002, p. 26). Em outras
palavras, na tentativa de definir missão, corremos o risco de deixar
algumas itens de fora e estes podem ser essencias. Um exemplo disso
foi o derramar do Espírito Santo sobre os gentios na casa de Cornélio:

Ainda Pedro falava estas coisas quando caiu o Espírito Santo sobre
todos os que ouviam a palavra. E os fiéis que eram da circuncisão, que
vieram com Pedro, admiraram–se, porque também sobre os gentios
foi derramado o dom do Espírito Santo; pois os ouviam falando em
línguas e engrandecendo a Deus. Então, perguntou Pedro: Porventura,
pode alguém recusar a água, para que não sejam batizados estes
que, assim como nós, receberam o Espírito Santo? E ordenou que
fossem batizados em nome de Jesus Cristo. Então, lhe pediram que
permanecesse com eles por alguns dias (At 10:44–48).

Note a expressão “também sobre os gentios”, destacada no texto. Isso


fica ainda mais evidente quando Pedro precisou dar explicações sobre
tal fato, ou seja, de que já era do conhecimento dos apóstolos, e dos
irmãos que estavam na Judéia, que também os gentios haviam recebido
a palavra de Deus, pois o próprio Pedro havia entrado na casa de homens
incircuncisos e tinha comido com eles. O apóstolo fez uma longa
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justificativa do que aconteceu e ao fim disse: “Pois, se Deus lhes concedeu
o mesmo dom que a nós nos outorgou quando cremos no Senhor Jesus,
quem era eu para que pudesse resistir a Deus?” (At 11:17,18). Parece
que está dizendo: “Que culpa tenho eu?” É nítido o conceito de missão
por detrás de tudo isso! Os gentios estavam excluídos do amor de Deus,
e um novo paradigma missional se erguia: “E, ouvindo eles estas coisas,
apaziguaram-se e glorificaram a Deus, dizendo: Logo, também aos
gentios foi por Deus concedido o arrependimento para vida” (At 10:18).
É o paradigma da inclusividade – “também aos gentios”. Então perceba
como é possível incluir ou excluir à luz das nossas definições.

Cada vez que falamos o que a missão é, acabamos também falando


uma série de frases sobre o que a missão não é. Excluir algum elemento
essencial da missão pode produzir consequências trágicas na vida
da igreja. É necessário mais do que cuidado; é necessário uma leitura
missional de toda a Escritura.

Saiba mais
Você vai ouvir falar muito desse conceituado
missiólogo chamado David Jacobus Bosch
e, em particular, seu livro chamado Missão
transformadora: mudanças de paradigma na
teologia da missão. Sugerimos fortemente que
você compre, pois lhe será muito útil em sua
vida e ministério.
Nasceu em 13 de dezembro de 1929 e
morreu 15 de abril de 1992 em um trágico acidente automobilístico, uma
perda irreparável. Ele foi membro da Igreja Reformada Holandesa na
África do Sul (NGK). No Dia da Liberdade, 27 de abril de 2013, ele recebeu
postumamente a Ordem do Baobá do Presidente da África do Sul por sua
luta altruísta pela igualdade e dedicação ao desenvolvimento da sociedade,
e viveu os valores do não–racismo diante de sua própria cultura e igreja
que dava suporte ao apartheid, palavra do idioma africânder que significa

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separação. Esse foi o nome dado ao sistema político que esteve em vigor
na África do Sul e que exigia a segregação racial da população negra, que
vigorou entre 1948 e 1994, comandado pela minoria branca daquele país.
Juntamente com seu vasto conhecimento no campo dos estudos
bíblicos, teologia, história da igreja e missiologia, David Bosch tinha a
rara capacidade de destilar o discernimento e a sabedoria para atender
às demandas do dia. Sua ampla simpatia por todos
os que constituem a família cristã e seu dom de
comunicação fizeram dele um amigo confiável e
respeitado onde quer que fosse.
Foi um influente missiólogo, uma expressão
contracultural, um profeta entre nós, e mesmo
depois de sua morte, continua sendo um dos mais
influentes e disseminadores da missiologia cristã

Vamos tomar alguns exemplos. Se entendemos que missão é a


pregação do Evangelho em terras onde nunca se ouviu falar de Jesus
– as chamadas missões transculturais – deixamos de fora, entre outras
coisas, nossa própria cultura – missões nacionais ou culturais –, como
também todas as outras nações que já foram evangelizadas. Além disso,
deixamos de fora todas as ações que não são obrigatoriamente verbais,
bem como não definimos quem é o seu agente. Aqui é evidente que se
define a missão como missões, no plural. Você já deve ter percebido
como muitas igrejas focam mais em missões, especialmente pela
enormidade de conferências e congressos que possuem primazia sobre
os demais temais. Por exemplo, não se ouve com tanta frequência sobre
congressos de diaconia, de educação cristã, etc.

Só que existe outro extremo nessa história. Se, por um lado, corremos o
risco de fechar demais o nosso conceito de missão, também corremos o
risco de exagerarmos em sua abertura. Daí, convém lembrar a conhecida
frase do missiólogo Stephen Neil, que diz “quando tudo é missão,
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nada é missão”. Ou seja, quando banalizamos o conceito de missão e
entendemos que qualquer coisa feita pela igreja é cumprimento da obra
missionária, essa falta de intencionalidade e consciência missional leva a
uma tendência muito comum: a missão passa a ser manutenção, ou seja,
a igreja passa a lutar apenas para manter suas conquistas, voltando-se
para si e não para fora – mantenha o ad intra versus o ad extra sempre em
perspectiva. E aqui vive-se uma inversão de foco: monumento (templo)
versus movimento.

Tendo essa consciência e advertência bem diante de nós, precisamos buscar


uma definição de missão que leve em consideração toda a Escritura porque
somente ela “é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão,
para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus
seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3:16-17).
Mas antes disso, vamos discernir agora o que não é missão.

Em primeiro lugar, a missão não é da igreja, ela é de Deus! É muito comum


falarmos a missão da igreja. Mas o certo mesmo é falarmos da missio
Dei, cuja expressão significa missão de Deus em latim. Esse termo será
usado várias vezes, porque este é o que melhor expressa o conceito
de missão. Afirmar que a missão é de Deus não significa que devemos
desprezar a igreja ou que Deus realizará sua missão no mundo sozinho,
sem a nossa participação. O que significa é colocar a igreja no seu devido
lugar. E que lugar é este? O apóstolo Paulo responde:

Deus, que criou todas as coisas, para que, pela igreja, a multiforme
sabedoria de Deus se torne conhecida, agora, dos principados e
potestades nos lugares celestiais, segundo o eterno propósito
que estabeleceu em Cristo Jesus, nosso Senhor, pelo qual temos
ousadia e acesso com confiança, mediante a fé nele (Ef 3:10-12).

A igreja é um instrumento de Deus para a realização da sua missão no


mundo. É pela igreja e não por causa da ou para a igreja. Note quão
elucidadora é a preposição pela em grego:

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δια (dia) é uma preposição primária que denota o canal de um ato:
1) através de
1a) de lugar 1b) de tempo 1c) de meios
1b1) por 1c2)
1a2)
tudo, do 1b2) por
1a1) com em, 1c1) através, pelo
começo durante meio
para
ao fim de

2) por causa de

2a) o motivo ou razão pela qual algo é ou não é feito

2a5)
2a1) por 2a2) por causa 2a3) por 2a4) portanto,
por este
razão de de esta razão consequentemente
motivo.

A missão de Deus é instrumentalizada pela igreja. Ela é um canal, um


meio pelo qual o próprio Deus usa para tornar conhecida sua multiforme
sabedoria diante dos principados e potestades nos lugares celestiais,
segundo o eterno propósito que estabeleceu em Cristo Jesus. Vamos
refletir tudo isso mais à frente, especialmente esse fato de ela ser um
instrumento, mas por hora é fundamental estabelecer a compreensão de
que a missão não é da igreja, mas de Deus que por ela é servido.

Em segundo lugar, o conteúdo da missão não é a doutrina da igreja ou


da denominação, mas sim o Evangelho do reino de Deus. O conteúdo da
missão é toda a Escritura centralizada no reino de Deus, personificada e
modelada na pessoa de Jesus de Nazaré, em suas palavras (pregação)
e obras (manifestação), e realizada no poder do Espírito Santo. É do reino
que a missão trata, e este reino que Jesus veio inaugurar em nossa história.

Nos ensinamentos de Jesus, o Reino de Deus compreende todos


os anseios e os gritos de angústia do povo de Israel. Responde à
mensagem fundamental do Antigo Testamento e revela o propósito,

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o caráter e o poder do futuro domínio de Deus. Convida o povo a
responder com obediência radical. A proclamação do Reino é sempre
acompanhada por um chamado à decisão, para seguir Jesus, para
participar da missão de Deus. Para Jesus, a vinda do Reino é o domínio
transformador de um Deus compassivo” (Castro, 1986, p. 67).

O próprio Jesus deixa claro que o Evangelho do reino de Deus é o


conteúdo da missão: “Ele, porém, lhes disse: É necessário que eu anuncie
o evangelho do reino de Deus também às outras cidades, pois para isso é
que fui enviado. E pregava nas sinagogas da Judéia” (Lc 4:42-43).

Em terceiro lugar, o lócus da missão não é a igreja, mas o mundo. O


campo da missão é o mundo. Jesus disse: “Não dizeis vós que ainda há
quatro meses até à ceifa? Eu, porém, vos digo: erguei os olhos e vede os
campos, pois já branquejam para a ceifa” (Jo 4:35). Os campos estão
preparados para a colheita. É nesse mundo que a missão se realiza. E
é por amor ao mundo que ela existe. Como a igreja é parte do mundo,
pode-se também acrescentar, como afirma Andrew Kirk, “que a missão
de Deus é cumprida tanto no mundo quanto na igreja; num grau menor
na história que não foi tocada pelo Evangelho, e num grau maior onde o
Evangelho é crido e obedecido” (Kirk, 2006, p. 58).

Jamais podemos esquecer que Jesus foi enviado “porque Deus amou o
mundo” (Jo 3:16). O mundo é objeto do amor de Deus e a igreja, como um
instrumento de Deus, existe por amor ao mundo.
René Padilla disse:

De acordo com o que foi dito, qual é o papel da igreja local em


relação à missão? Lembrando as palavras de McLaren: ‘Equipar e
mobilizar homens e mulheres para a missão de Deus no mundo’ –
não exclusivamente no ‘templo’, que pode ou não existir, mas sim
em todos os campos de ação humana: em casa, na empresa, no
hospital, na universidade, no escritório, na oficina... Enfim, em todo
lugar, já que não há lugar que esteja fora da soberania de Jesus
Cristo” (Padilla, 2009, p. 19).

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Resumindo: A missão é Deus e não da igreja; o conteúdo da missão é o
Evangelho do reino de Deus e não a doutrina da igreja/denominação; e o
lócus da missão é o mundo e não somente a igreja.

Exercício de fixação - 02
Qual é o risco em definir missão como “pregar o Evangelho aos
povos não alcançados”?
a) deixar de lado as nações que já foram evangelizadas e não dar
atenção às ações não verbais da igreja.
b) priorizar estudos bíblicos missionais.
c) compreender que o conceito de missão e de missões são diferentes.
Acesse o AVA para fazer os exercícios e ver a reação do professor!

2. Definição de termos relacionados à missão

Para prosseguir, creio ser importante mencionar uma diferença que, às vezes,
as pessoas não percebem na igreja: missão é diferente de missões. Estamos
mais ou menos acostumados a falar sobre missões na igreja. Vemos e ouvimos
os testemunhos de missionários, os dados estatísticos sobre a evangelização
mundial, sobre os povos não alcançados, a chamada Janela 10/40, as
campanhas financeiras para missões, os departamentos de missões na igreja
e assim por diante. Isso tudo diz respeito a missões, diante de uma imensa
tarefa inacabada, cuja responsabilidade pesa sobre os ombros da igreja. Nada
disso deve deixar de existir ou de ser incentivado na igreja. Todavia, a missão,
no singular, da igreja, como ainda veremos na unidade seguinte, é maior e
mais ampla. Também tem a ver com o testemunho e serviço do reino em
nossa sociedade, com a edificação da nossa comunidade, com a celebração e
adoração ao nosso Deus, que por sua vez é mais do que momentos íntimos ou
comunitários de contemplação, com o ensino responsável de todo conselho
de Deus expresso nas Escrituras, entre outros.
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Missões, portanto, é uma parte importantíssima, mas não o todo, da
missão da igreja. É muito esclarecedora a análise de Chris Wright (2014),
na introdução de seu livro A Missão de Deus, sobre alguns termos que
serão recorrentes nesta disciplina.

a. Missão e Missões

Missão não está relacionada apenas com missões, pois é mais do que a
descrição de esforços e atividades missionárias de envio e sustento de
pessoas que vão, para pregar transculturalmente o Evangelho aos pagãos,
aos lugares não alcançados. David Bosch ilustra bem essa ideia quando
observa que o significado de missão, entre a maioria dos cristãos do
ocidente até os anos 1950, foi parafraseado como: “a) propagação da fé;
b) expansão do reinado de Deus; c) conversão dos pagãos; e d) fundação
de novas igrejas”. Assim, segundo ele, “o termo ‘missão’ pressupõe
alguém que envia, uma pessoa ou pessoas enviadas por quem envia, as
pessoas para as quais alguém é enviado e uma incumbência” (Bosch,
2002, p. 17).

Wright, por sua vez, demonstra certa insatisfação com abordagens sobre
a missão que reduzem sua definição por meio da menção à raiz latina da
palavra, mitto, que literalmente significa envio. Com isso, ele não pretende
negligenciar a importância desse sentido, mas chamar a atenção ao
fato de que se definimos missão somente nesses termos, excluímos
necessariamente de nosso inventário de recursos relevantes muitos
outros aspectos do ensinamento bíblico que, direta ou indiretamente,
afetam nossa compreensão da missão de Deus e de nossa participação
nela. Assim, para esse autor, missão tem a ver com a nossa participação
comprometida como povo de Deus, pelo chamado e comando de Deus,
em sua missão (missio Dei) no meio da história do mundo em prol da
redenção de sua criação (Wright, 2006, p. 23). Em suma, missão tem a ver
com a natureza e identidade, sendo a razão da igreja existir; missões tem
a ver com uma das responsabilidades da igreja que é a de levar – pregar,
proclamar – o Evangelho a outras culturas do mundo, assim chamada de
missão transcultural.
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b. Missionário
Esse termo designa a pessoa que se engaja em missões, normalmente
em outra cultura que não a sua. É uma atividade que implica em cruzar
barreiras. Missionários são tipicamente aqueles enviados por suas igrejas
ou agências missionárias. Wright também alerta que esse conceito
carrega consigo a ideia de missão como envio ou missões, como
também evoca a imagem de cristãos, ocidentais e brancos, expatriados
para países distantes. Além disso, evoca o risco de se entender que
missionários são apenas os profissionais. No entanto, o povo de Deus,
cada novo nascido, possui uma vocação comum sendo ele também um
missionário. Wright prefere descrevê-los como parceiros de missão.
Afinal de contas, missionários são mais do que pessoas enviadas para
uma tarefa específica fora de sua cultura; são pessoas que, por serem
cristãs, são chamadas a viver o Evangelho de modo digno do intento
divino de reconciliação do mundo consigo mesmo, inclusive onde estão.
Amplia-se, portanto, a ideia de missionário e de campo missionário, uma
vez que, como observa Brian McLaren (2007, p. 121), “todo cristão é um
missionário e todo lugar é um campo missionário”.

Isso não significa afirmar que não se deve ter missionários sustentados
por igreja e agências missionárias para contextos e situações específicas,
que requer inclusive competências e habilidades específicas. Por
exemplo, pessoas que vão às outras culturas onde não existem bíblias
traduzidas em suas línguas nativas.

c. Missional
Esse é um adjetivo relativamente recente que denota alguma coisa que
está relacionada com ou é caracterizada pela missão. Indica algum
substantivo que carrega qualidades, atributos ou dinâmicas da missão.
Uma igreja missional, por exemplo, é uma igreja que explora em sua razão
de ser, sua natureza, atributos ou qualidades que estão voltados para
a missão de Deus, que entende que foi chamada para uma missão no
mundo, e que Jesus não veio criar uma religião exclusivista apenas para
salvos, mas que ama o mundo e deseja sua completa e total reconciliação,
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restauração e redenção. Assim, exemplos de uma comunidade missional
podem ser percebidos ou não na visão por ela expressa, como por
exemplo: “ser uma igreja de Deus de modo autêntico e para o mundo”.
Essa frase revela, nas palavras de McLaren, uma equação missional.

d. Missiologia e Missiológico

Missiologia é o estudo da intersecção entre o Evangelho, a cultura e a


igreja. Tal estudo é multidisciplinar porque incorpora outras áreas do
saber, tais como Teologia, Antropologia, Sociologia, História, Línguas,
entre outras. Por causa dessa complexidade, a missiologia constitui sua
própria disciplina ou área de saber. Sendo uma disciplina acadêmica, toda
missiologia é teológica e toda teologia é missiológica e ambas possuem
implicações pastorais. Por isso falamos de teologia bíblica da missão,
singular e não plural.

Muito provavelmente você já deve ter visto como título de palestra ou até
mesmo um curso inteiro chamado de Bases Bíblicas da Missão. Podemos
dizer, que existe alguma inconsistência nessa ideia, pois, a Bíblia toda é a
base da missão. Elencar versículos isolados, como até mesmo os textos
da chamada Grande Comissão e afirmar que estes, e também Atos 1:8,
são as bases bíblicas da missão, é outro risco. Podemos estar fazendo
uma colcha de retalhos da Bíblia e dar prioridade e preferências para
determinados textos em função de outros. Uma das consequências é
que não se sabe o que fazer com os textos poéticos como Provérbios,
Cantares, Salmos, Jó. Qual o lugar, por exemplo, de Cantares na missão
de Deus? Portanto, não devemos falar de bases bíblicas da missão, mas
sim a Bíblia como a base da missão. Afinal, “toda a Escritura é inspirada
por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para
a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e
perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2 Tm 3:16-17). A Bíblia ,
“toda a Escritura”, é o tratado missional de Deus.

Um missiólogo, ou missiologista, deve pensar a missão de uma


maneira bíblica e integral, porque busca compreender os propósitos do
Deus Criador visando uma perspectiva mais profunda dos anseios de
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homens e mulheres como seres criados à sua imagem. A missiologia
é a teologia prática. Sendo a missiologia o estudo bíblico teológico da
missão, ela é uma disciplina que, em suas elaborações e rigores, procura,
segundo Bosch (2002, p. 26), “olhar o mundo a partir da perspectiva do
compromisso com a fé́ cristã”, e por outro lado discernir como o mundo
influencia a fé cristã. Este é um processo hermenêutico: a influência na
comunidade de fé e, por sua vez, a comunidade de fé é chamada para
influenciar o mundo por meio dos valores bíblicos. Para isso, cruza as
barreiras entre o mundo da fé e não-fé. De acordo com Chris Wright (2006,
p. 25), o termo missiológico deve ser usado toda vez que tal aspecto
bíblico teológico ou reflexivo estiver implicado. Sobre isso, van Engen
(2007, p. 3) diz que “a missiologia é um todo unificado; é uma disciplina
em si, centrada em Jesus e em sua missão. Como a igreja participa da
missão de Jesus Cristo, ela participa da missão de Deus no mundo de
Deus, por meio do poder do Espírito Santo”.

Esse breve aporte aos usos e designações desses conceitos será de


extrema importância para o restante desse curso, pois, desde já, você
tem ferramentas para identificar o que efetivamente está se dizendo
quando se aplica tais termos ao estudo da teologia bíblica de missão.

Acesse o AVA para assistir o vídeo: Teologia Bíblica da Missão


com o profº Antônio Carlos Barro.

Exercício de aplicação - 03
A partir dos conceitos de missão, missões e missionário acima,
pense na realidade da sua igreja. Qual é a importância de relacionar
os conceitos com sua a realidade, no sentido missional? Cite
exemplos.
Acesse o AVA para fazer os exercícios e ver a reação do professor!

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 17


3. O contexto da missão: uma perspectiva urbana
A missão de Deus, realizada por meio do seu povo, sempre será exercida
e desenvolvida em contextos específicos que possuem suas demandas
e desafios específicos. Estudar tais contextos e desafios é uma tarefa
imprescindível que deve ser levada a sério visando a eficácia da missão.
É conhecida a frase, atribuída ao teólogo suíço Karl Barth (1886–1969),
que disse: “É preciso segurar numa mão a Bíblia e na outra o jornal”. Com
isso quis dizer que jamais devemos negligenciar o estudo das questões
contextuais contemporâneas sempre em diálogo com a Palavra de
Deus. Qual o risco de não se fazer isso? O risco é o de uma mensagem
descontextualizada. Por isso a contextualização se tornou um tema
indispensável no estudo da Missiologia. Isso se aplica à interpretação
das Escrituras: um bom missiólogo não despreza o fato de que o texto
tem seu contexto, tanto do autor original quanto em sua comunicação ao
leitor atual.

Muitos são os contextos da missão: urbano, rural, indígena, ribeirinhos,


transculturais, ciganos, etc. Para o nosso exercício momentâneo de
reflexão missiológica, focalizaremos aqui – não por preferência, mas
urgência – o contexto urbano brasileiro.

Quando falamos e refletimos sobre a missão, seguramente temos que


considerar o “onde” da mesma, e isso chamamos de contexto. Ignorar o
contexto da missão é ignorar sua possibilidade de pertinência e relevância.
Precisamos relembrar constantemente que Jesus era conhecido como
“Jesus de Nazaré” (Lc 4:34; 18:37; 24:19) e que “Pilatos mandou preparar
uma placa e pregá-la na cruz, com a seguinte inscrição: “Jesus Nazareno,
o rei dos Judeus” (Jo 19:19).

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3.1. O contexto urbano brasileiro
O Brasil hoje é majoritariamente urbano. Os números demonstram que:

Saiba mais

No ano de 1900,
15% da população Brasileira vivia em cidades.
No ano de 1950, passou para 28%.
No ano de 1975, passou para 41%.
A projeção para o ano 2000 era de 55% da população, e foi 83%.
Esse gráfico demonstra que 16% refere–se à população rural e 84%
a urbana.

É comum aceitar que o processo da aceleração da urbanização brasileira


se deu a partir de 1950. “A urbanização brasileira, só começou a ocorrer
no momento em que a indústria tornou-se o setor mais importante da
economia nacional. Assim, representa um dos aspectos da passagem
de uma economia agrário-exportadora para uma economia urbano-
industrial, fato que só ocorreu no século XX e intensificou-se a partir de
1950”1.
Surge assim o processo de metropolização, que trata da concentração
demográfica nas principais áreas metropolitanas do país. A tabela a
1 Metropolização e problemas sociais urbanos. Extraído de <http://www.algosobre.
com.br/geografia/metropolizacao–e–problemas–sociais–urbanos.html>. Acessado em
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 19
seguir traz os dados da população brasileira colhidos nos Censos do
IBGE de 2000 e 2010:

Total Rural Urbana Masculino Feminino


2000 169.799.170 31.845.211 137.953.993 83.576.015 86.223.155
2010 190.732.694 29.852.986 160.879.708 93.390.532 97.342.162
+20.933.524 –1.999.225 +22.925.715 +9.814.517 +11.119.007

Comparando os números, destaca-se o aumento de mais de 20 milhões


no total da população, cerca de 2 milhões por ano nesses últimos 10
anos. Vemos também a diminuição de quase 2 milhões de habitantes
nas áreas rurais.

Os dados do gráfico abaixo demonstram a população urbana versus a


rural em todos os Estados do Brasil. Perceba que o Brasil é 84% urbano2.

Os três estados mais urbanos do Brasil são: Distrito Federal (96,62%), Rio
17 MAI 2011, 17h11.
2 IBGE – Censo 2010 – www.ibge.org.br
20 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
de Janeiro (96,71%) e São Paulo (95,88%). Os três estados mais rurais
são: Maranhão (36,93%), Piauí (34,23%) e Pará (31,51%). A conclusão é
clara: os mais urbanizados estão no eixo sul-sudeste e os mais rurais no
eixo norte-nordeste.

O fenômeno chamado urbanização tem trazido muitas consequências


para as cidades e seus habitantes. Para muitos as cidades são símbolos
negativos da vivência humana.

3.2. Cidade: símbolo de caos, desordem social e


artificialidade
Para a maioria das pessoas, a cidade não passa de um espaço geográfico
para se viver. Este espaço, muitas vezes hiperlotado, é sinônimo ou
símbolo de anarquia, de caos, de desordem social e de vida artificial.
Existem pelo menos quatro atitudes carregadas de sentimentos e ações
como consequências desta visão negativa e situação:

a) Despersonalização
O sentimento de que na cidade as pessoas não passam de um número,
de um dado estatístico.

b) Medo com ansiedade


Na cidade as pessoas morrem de medo e vivem apavoradas. Têm medo de
roubos, assaltos, delinquências, trânsito, risco de desemprego, não conseguir
uma vaga para o filho estudar, morrer na fila do SUS, não ter comida, ser
despejado da casa. As pessoas vivem debaixo de pressão o tempo todo.

c) Intimidação
São tantos os problemas e, na maioria das vezes, maiores do que a
nossa capacidade de resolver que ficamos intimidados, acuados, e
quase nada conseguimos fazer. Sentimos que não temos capacidade
de resolver os problemas da violência urbana ou dos desafios que
existem em uma favela, etc.
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 21
d) Individualização
Muitos dizem e praticam o “cada um por si e Deus por todos”. A
individualização é uma proposta da secularização: a religião sem igreja.
Quantas pessoas dizem: “eu não vou à igreja, mas leio a Bíblia, rezo, oro,
sou muito ligado a Deus”. Pessoas que beiram o sincretismo religioso,
que procuram mostrar que todas as religiões são boas são pessoas que
vivem uma religião individual, ao estilo selfservice.

e) Insensibilidade
O volume dos problemas sociais, o aumento da pobreza urbana que
vai encurralando as pessoas para os morros e periferias da cidade,
a crescente população de mendigos, indigentes, usuários de drogas,
pedintes, crianças nas ruas que vão se tornando parte da geografia e do
cotidiano das pessoas que já não mais sofrem ou têm compaixão. São
tantas mazelas que provocam a perda de sensibilidade e de humanidade.

f) Impotência
A impotência é o sentimento ou a sensação de incapacidade diante da
imensidão dos desafios e problemas. As pessoas passam a se justificar
alegando não conseguirem cuidar de seus pórpios problemas quanto
mais os dos outros.

g) Indiferença
A insensibilidade gera a indiferença. Indiferença é o estado de não se
importar que leva a pessoa à apatia. Neste sentido, a parábola do Bom
Samaritano é muito familiar para nós.

Ninguém sai desses estados e sentimentos intrapsíquicos com


pensamento positivo. Apenas a Palavra de Deus é poderosa, pela força
do Espírito, de nos tirar dessa letargia e nos mover para ações concretas
transformadoras. Quantos não foram as situações de pavor e medo que
o povo de Deus se encontrava e receberam a palavra de encorajamento:
não temam.
22 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
Estamos refletindo esse tema da questão urbana pelo fato de que o
principal locus atual, mas não único, da missão é o contexto urbano.
Muito me encanta a citação de João Batista Libânio, que disse:

“Aí estão os dados estatísticos. O Brasil já caminha para uma população


79 por cento urbana. A igreja rural tende a desaparecer. É verdade que
os arquétipos rurais, o imaginário agrário acompanham ainda muitas
pessoas da primeira geração que migrou para as cidades. Pouco a pouco,
os nascidos do mundo urbano criam novo horizonte de pensar e de agir.
A teologia e a pastoral não podem desconhecer tais mudanças. Desafia–
nos construir uma matriz teológica urbana que responda a perguntas
diferentes. O Cristianismo em seus primórdios proliferou antes em áreas
urbanas. Tem uma conaturalidade com esse mundo. Sua ruralização veio
depois. E impregnou–o de tal que hoje nos parece difícil pensa–lo fora
desse paradigma. A teologia da cidade continua ainda mais um desejo
que uma realidade, mais um programa que uma realização, mais uma
proposta que um fato. Tem sido mais trabalhada pela pastoral e menos
pela sistemática. Talvez porque não aparece claramente sua identidade.
A cidade atual e a moderna confundem–se em muitos aspectos.
Modernização – a modernidade tecnológica – e urbanização massiva
caminham juntas” (Libânio, 2012, p. 13).

A cidade se constitui um dos principais objetos de estudo hoje para a


concretude e realização da missão e ministérios. Não basta colocar uma
igreja em um bairro, abrir suas portas, e esperar que o povo venha. É
necessário estudar profundamente a geografia, onde a igreja e ministério
estão inseridos.

No desenvolvimento da Teologia Bíblica de Missão perceba que ela,


teologia, é um ato segundo – uma perspectiva muito defendida pelo
teólogo Gustavo Gutiérrez (FONTENELE, 2016). O ato primeiro é do próprio
Deus que age e intervém na história da humanidade. É, portanto, a partir
do agir de Deus – a misso Dei – no mundo que tudo o que fazemos se
torna uma resposta a esse agir. Entendida desta forma, a teologia jamais
será um fim em si mesma, mas antes um instrumento. Não se estuda
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 23
teologia com a finalidade de se tornar um erudito ou obter um título. A
educação teológica é um instrumento que visa capacitar as pessoas para
a missio Dei. Só existe teologia porque existe a missão. Sem missão não
há necessidade de teologia, como também, a necessidade da igreja.

Exercício de aplicação - 04

Quais são as principais consequências da urbanização que você


percebe em sua cidade (positivas e negativas)?

Acesse o AVA para fazer os exercícios e ver a reação do professor!

3.3. Sem necessidade não há missão


Isso fica muito claro na compreensão que o próprio Jesus tem sobre o
motivo de ter sido enviado pelo Pai ao mundo. Jesus, como agente de
Deus e de sua missão, tem plena consciência de que fora enviado. Foi
enviado para suprir as necessidades das pessoas:

“Sendo dia, saiu e foi para um lugar deserto; as multidões o


procuravam, e foram até junto dele, e instavam para que não os
deixasse. Ele porém lhes disse: É necessário que eu anuncie o
evangelho do Reino de Deus também às outras cidades, pois para
isso é que fui enviado. E pregava...” (Lc 4:43-44).

O dia nem quase havia rompido e um bando de gente já estava atrás


de Jesus: “as multidões o procuravam” (Lc 4:42). E tendo-o achado,
“insistiram que não as deixasse”. A resposta de Jesus a essa multidão é
o texto de Lucas 4:43. O apelo da multidão pode ser um símbolo ou uma
representação de um dos grandes desafios que se percebe na igreja hoje
ou que tem perpassado a sua história. O que notamos é a tendência

24 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


ad intra em sobreposição ao ad extra, ou seja, a tentação de privatizar
aquele que é de todos.

Essa mesma tentação é percebida no episódio do Monte da Transfiguração.


Sabemos que a fé se alimenta no relacionamento particular com Jesus:
“tomou Jesus consigo a Pedro e aos irmãos Tiago e João e os levou,
em particular, a um alto monte” (Mt 17:1). Esse é o aspecto do secreto:
“Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta,
orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te
recompensará” (Mt 6:6). Pedro deseja que esse momento especial seja o
centro da sua relação com o mestre: “Então, disse Pedro a Jesus: Senhor,
bom é estarmos aqui; se queres, farei aqui três tendas; uma será tua,
outra para Moisés, outra para Elias” (Mt 17:4). No enanto, o locus da sua
manifestação está no público. Tão logo desceram do monte, no espaço
público, surge uma situação de possessão demoníaca:

“E, quando chegaram para junto da multidão, aproximou-se dele


um homem, que se ajoelhou e disse: Senhor, compadece-te de
meu filho, porque é lunático e sofre muito; pois muitas vezes cai no
fogo e outras muitas, na água. Apresentei-o a teus discípulos, mas
eles não puderam curá-lo. Jesus exclamou: Ó geração incrédula e
perversa! Até quando estarei convosco? Até quando vos sofrerei?
Trazei-me aqui o menino. E Jesus repreendeu o demônio, e este
saiu do menino; e, desde aquela hora, ficou o menino curado” (Mt
17:14-18).

De certa forma, podemos afirmar que é no público que a missão


acontece, mas é no privado que a fé é nutrida. A multidão queria reter
Jesus para ela, queria que Jesus fosse seu refém, de suas necessidades,
sem perceber as necessidades das outras pessoas que ali não gozavam
do mesmo privilégio. Assim, a resposta de Jesus está encharcada de
teologia bíblica da missão. Olhemos com mais cuidado essa resposta de
Jesus que revela os seguintes elementos da missão:
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 25
a) A importância: “é necessário”

A principal visão que precisamos ter e desenvolver é esta: “Porque


Deus amou a cidade”. A cidade é alvo do amor de Deus. Deus amou
tanto as pessoas e suas cidades que enviou seu único Filho para que
elas encontrassem esperança. E Jesus compreende esse amor do Pai e
engaja-se em sua missão nos centros urbanos. Se a multidão vê Jesus
como uma oportunidade para o isolamento, numa atitude de egoísmo e
desprezo para com os que estão de fora, Jesus olha a necessidade dos
outros de forma inclusiva. “O egoísmo não é amor por nós próprios, mas
uma desvairada paixão por nós próprios” (Aristóteles). Jesus entende
e vê a vida humana por meio da necessidade. A multidão não vê a
necessidade do outro, apenas a dela. Jesus, além de ver, se percebe como
o agente de Deus para a cidade. Da mesma forma que o apóstolo João
nos informa: “E era-lhe necessário atravessar a província de Samaria” (Jo
4:4). Jesus ainda disse: “Estai vós de sobreaviso, porque vos entregarão
aos tribunais e às sinagogas; sereis açoitados, e vos farão comparecer
à presença de governadores e reis, por minha causa, para lhes servir de
testemunho. Mas é necessário que primeiro o evangelho seja pregado
a todas as nações” (Mc 13:9-10). “É necessário que façamos as obras
daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém
pode trabalhar” (Jo 9:4), disse Jesus em seu senso de que a necessidade
está diante de nós, seus discípulos.

O que justifica a missão? A necessidade. Entender isso é fundamental


para justificar a presença da igreja e dos cristãos em uma determinada
cidade. Deixar de se envolver e de se perceber como um instrumento
de Deus para suprir as necessidades das pessoas é deixar de realizar a
missão de Deus. E, normalmente, as necessidades vêm carregadas de
problemas, dificuldades, crises, dores, e tantas outras coisas. Jesus é
a resposta de Deus para as necessidades do mundo. Se os discípulos
de Jesus e sua igreja se recusarem a abençoar as pessoas em suas
necessidades, nada mais resta, se não, ser “pisado pelos homens” (Mt
5:13). Devemos, portanto, por mais difícil que seja, ver as necessidades
26 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
das pessoas como oportunidades missionais. E nos dias de hoje, diante
de tantas necessidades e problemas, a porta está escancarada para
realizarmos a missão de Deus. Suprir as necessidades não é sinônimo
de fazer os caprichos das pessoas e nem mesmo fazer por elas. Fazer
por elas ou no lugar delas é gerar dependência e paternalismo. Nosso
desafio é fazer com elas.

O que justifica a missão é a necessidade. Se não houver necessidade


(espiritual, material, emocional etc), não há necessidade da missão.

b) O agente: “que eu”

Só existe missão porque existem necessidades. Missão é sempre


resposta à necessidade. Quem age primeiro é Deus. Mas se há
necessidade, alguém precisa supri-la. Jesus se coloca como o agente de
Deus: “é necessário que eu”. Existem dois tipos de cristãos: os que não
percebem a necessidade dos outros — neste caso aqui representados
por essas multidões — e os que percebem a necessidade dos outros —
representados por Jesus. Ou imitaremos as multidões ou imitaremos
Jesus. A igreja só é missional quando todas as pessoas que dela
participam se percebem como agentes da missão. Cada discípulo é
um agente da missão de Deus no mundo, e isso, onde estiver. É esse eu
missional, esse “Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1:27). Se cada
discípulo não tiver a consciência — “é necessário que eu” — a missão
trunca, paralisa e se torna dependente dos pastores e missionários
profissionais. Cada pastor tem a responsabilidade de conscientizar,
educar e capacitar cada pessoa para que ela diga: “eu um missionário(a)”.
E a missão acontece majoritariamente no ad extra, nessa geografia da
Parábola da Grande Ceia: “sai depressa para as ruas e becos da cidade”
(Lc 14:21) e “sai pelos caminhos e atalhos” (Lc 14:23). Nenhuma geografia
pode escapar ou ficar de fora da esfera do agente missional: ruas, becos
da cidade, caminhos e atalhos. A direção é que este agente missional
saia e depressa, porque “ainda há lugar” e “para que fique cheia a minha
casa” (Lc 14:23).
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 27
c) O método: “anuncie”

“É necessário que eu anuncie”. Esse “anuncie”, em algumas versões


“pregue”, em grego, é ε�αγγελίσασθαί (euangelisasthai). Esse anúncio
não pode ser interpretado como sendo apenas palavras. Ao estudar
os relatos de Lucas sobre o ministério urbano de Jesus e da igreja
primitiva ficamos perplexos ao vê-lo em ação: “Jesus começou a fazer e
a ensinar” (At 1:1). Ele é “poderoso em obras e palavras, diante de Deus
e de todo o povo” (Lc 24:19). Seu anúncio é integral: obra e palavras em
Jesus são inseparáveis. A transformação da cidade acontece por meio
da manifestação concreta do amor de Deus e poder transformador do
Evangelho. O Evangelho é o próprio Jesus. Ele é a boa notícia manifestada
em atitudes e em palavras. Quando agimos em nome de Jesus estamos
pregando por meio do nosso testemunho de vida imitando-o. Quando
anunciamos Jesus estamos pregando por meio de palavras de vida
baseadas nele.

É bem perceptível a força dessa bênção que o apóstolo Paulo deu à Igreja
em Tessalônica. Em suas palavras, lemos: “Que o próprio Senhor Jesus
Cristo e Deus nosso Pai, que nos amou e nos deu eterna consolação e
boa esperança pela graça, dê ânimo aos seus corações e os fortaleça
para fazerem sempre o bem, tanto em atos como em palavras” (2 Ts
2:16-17).

d) O conteúdo: “o Evangelho do reino”

É o Evangelho do reino que transforma, tanto as pessoas como as cidades.


Jesus disse: “Quando entrarem numa cidade e forem bem recebidos,
comam o que for posto diante de vocês. Curem os doentes que ali houver
e digam-lhes: O reino de Deus está próximo de vocês” (Lc 10:8-9). O
evangelho do reino não trata de distração, mas de atração. Somente ele
tem o poder de atrair as pessoas para Deus. Só o evangelho do reino –
βασιλεία tο� Θεο� (basileia tou Theou) – cujo centro é a cruz, tem o poder
de transformar. Infelizmente, existem comunidades que já abriram mão
da cruz na sua pregação do Evangelho. Pode até ser Evangelho, ou seja,
28 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
não deixa de ser uma notícia, que distrai as pessoas, mas certamente não
é o Evangelho do reino que atrai as pessoas para Deus por meio da cruz.
Jesus disse de forma muito enfática que este e não outro Evangelho é
que deve ser pregado: “E este evangelho do reino será pregado em todo
o mundo como testemunho a todas as nações” (Mt 24:14). Ninguém tem
o direito de inventar conteúdos novos. Já nos foi indicado: é o Evangelho
é este, do reino de Deus. As formas como esse Evangelho é anunciado
e manifestado fica por conta da nossa criatividade, desde que não seja
motivo e escândalo para o próprio Evangelho.

e) A inclusividade: “também às outras cidades”

O desejo e pedido das multidões é justamente o contrário: serem


exclusivas. A exortação de Deus com as pessoas sempre foi essa:
enquanto ele busca a humanidade, o ser humano busca a si mesmo.
Dois exemplos de inclusividade nos são dados pelo próprio Jesus na
sinagoga de Nazaré: a viúva de Sarepta e Naamã, o sírio. Jesus acabara
de reafirmar sua identidade missional, confirmada na unção do Espírito,
para servir especialmente aos excluídos e desfavorecidos do seu
tempo. Os judeus, assim como as multidões, achavam que eles eram os
destinatários exclusivos da missão. Estavam errados, e Jesus tratou logo
de desenganá-los dessa ilusão. A missão de Deus é para todos. E a raiva
tomou conta dos corações das pessoas (Lc 4:28-29). Mas Jesus em sua
vocação missionária não desiste. Ele “passou por entre eles e retirou-
se. Então ele desceu a Cafarnaum, cidade da Galiléia, e, no sábado,
começou a ensinar o povo” (Lc 4:30-31). Ele não mudou o foco porque
sabia exatamente seu propósito de vida.

f) A finalidade: “pois para isso é que fui enviado”

“Para isso” implica em vocação, propósito e senso de destino. Jesus se


percebe enviado com esse propósito. A obra não é de Jesus, mas do
Pai. E Jesus tem uma profunda compreensão da missio Dei. A missão
é de Deus, que convoca seus agentes para realizá-la. Assim, Jesus é
aquele “que andava de cidade em cidade e de aldeia em aldeia, pregando
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 29
e anunciando o Evangelho do reino de Deus” (Lc 8:1) e como resultado
vinha “ter com ele gente de todas as cidades” (Lc 8:4).

Jesus é nosso modelo de missão para e com a cidade. Seu ministério


aconteceu nas cidades e regiões do seu tempo: Galiléia (Lc 4:41-9:50);
Samaria-Judéia (Lc 9:51-19:27) e Jerusalém (Lc 19:28-24:53). E Ele nos
convida para andar e visitar as cidades que tanto abençoou com o poder
do Evangelho.

Exercício de fixação - 05

Considerando o conteúdo acima, quando falamos em missão,


devemos considerar:
a) As necessidade que eu quero atender; o que os outros podem
fazer; o anúncio do Evangelho integral.
b) O que eu percebo como necessidade; o que eu posso fazer;
somente o anúncio da vida espiritual.
c) O que a igreja percebe como necessidade; o que nós, como
missionários, podemos fazer; o anúncio do Evangelho de modo
integral.
d) O que eu percebo como necessidade; o que os outros cristãos
podem fazer; somente o anúncio da vida espiritual.

Acesse o AVA para fazer os exercícios e ver a reação do professor!

Conclusão
Surge deste modo uma pergunta básica: para qual contexto a teologia
responde? Obviamente que para todos porque o Evangelho do reino não
faz acepção de pessoas e nem de geografias e contextos. Contudo,
deve ficar claro para nós que o contexto emergente que produz um
volume enorme de desafios são os contextos urbanos. E em particular,

30 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


as cidades, metrópoles e megalópoles do mundo ques estão nos dois-
terços-do-mundo: Ásia, África e América Latina.

Saiba mais

A população mundial deve crescer em mais de 2,2 bilhões de


pessoas até 2050, de acordo com estudo da ONU, e mais da
metade deste crescimento (1,3 bilhão) deve acontecer na África
subsaariana. A Índia, a China e a Nigéria vão impulsionar o reforço
da urbanização, representando 35% do crescimento da população
urbana entre 2018 e 2050. Cerca de 55% da população mundial
vive atualmente em cidades. O estudo estima que nas próximas
décadas esse número suba para 68%. A expressão “dois terços
do mundo” passou a ser utilizada no lugar da expressão “terceiro
mundo”. Terceiro mundo carregou conceitos pejorativos, como
sendo países de categoria inferior por estarem em continentes
subdesenvolvidos. Busca–se com essa mudança de nomenclatura
colocar o peso não nos aspectos econômicos mas populacional,
ou seja, dois terços da população do mundo estão na América
Latina, África e Ásia.

https://nacoesunidas.org/mundo–tera–22–bilhoes–de–
pessoas–a–mais–ate–2050–indica–onu/

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 31


[...] enquanto na Europa e América do Norte a urbanização levou séculos,
estimulada pela industrialização e aumento constante da renda per
capita, no mundo em desenvolvimento ocorrerá no espaço de duas ou
três gerações. Em muitos países em desenvolvimento, o crescimento
urbano está sendo impulsionado não pela oportunidade econômica, mas
por altas taxas de nascimento e um afluxo maciço de habitantes rurais
que procuram escapar da fome, pobreza e insegurança. A maioria das
cidades que mais crescem no mundo encontra–se nos países de baixa
renda da Ásia e África com populações jovens. Nos próximos 10 anos,
o número de habitantes urbanos na África Subsaariana deverá crescer
quase 45%, de 320 milhões para 460 milhões. Kinshasa, capital de um
dos países mais pobres do mundo, hoje é a megalópole futura que mais
cresce no mundo. Em 2025, a população urbana dos países menos
desenvolvidos da Ásia terá crescido de 90 milhões para cerca de 150
milhões, e Dhaka deverá ser a quinta maior cidade do mundo, com 21
milhões de habitantes (FAO, 2012, p. 1).

Como não levar em consideração essas consequências e desafios da


urbanização? Esse fenômeno resultará ainda mais em altos níveis de
pobreza, desemprego e insegurança alimentar. Estima–se que em todo o
mundo um bilhão de pessoas vivam em favelas, sem acesso a serviços
básicos de saúde, água e saneamento. Cerca de 30% da população
urbana do mundo chamado em desenvolvimento, ou seja, 770 milhões
de pessoas, está desempregada ou são trabalhadores pobres, com renda
abaixo da linha de pobreza.

Esses pobres urbanos gastam a maior parte de sua renda com


alimentação. Porém, muitas vezes seus filhos apresentam níveis de
desnutrição tão altos quanto os das áreas rurais. Para sobreviver, milhões
de favelados cultivam seus próprios alimentos em cada pedaço de terra
disponível: em seus quintais, ao longo dos rios, estradas e ferrovias e sob
as linhas de transmissão de energia.
32 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
O crescimento das favelas ultrapassa o crescimento urbano por uma
ampla margem. Em 2020, a proporção da população urbana pobre poderá
chegar a 45%, ou 1,4 bilhão de pessoas. 85% dos pobres da América
Latina, e quase metade dos pobres da África e Ásia, se concentrarão em
áreas urbanas.

Já sem tem nome para isso: a nova bomba demográfica. Esse é um


desafio ou pesadelo não apenas para os governos como também
para a educação teológica e a missão da igreja: aglomerados urbanos
degradados e empobrecidos, com grandes populações vulneráveis de
pessoas socialmente excluídas, jovens e desempregadas e, claro, no
entorno de tudo isso, a criminalidade e violência urbana.

Quando percebo essas realidades percebo também o quanto temos sido


egoístas como igreja. Enquanto o mundo está vivendo um processo de
uma nova bomba demográfica muitas igrejas vivem e se preocupam,
com elas mesmas, seus membros seus templos e suas denominações e
instituições.

Parafraseando, talvez de modo impróprio, o que disse Jesus: “Hoje


haverá culto para refletirmos o que a Palavra tem a nos dizer. Vocês
sabem interpretar as escrituras, mas não sabem interpretar os sinais dos
tempos” (Mt 16:3). Os sinais dos tempos estão dizendo que devemos
levar em consideração os espaços urbanos.

O Congresso de Lausanne III, em 2010, realizado na Cidade do Cabo,


percebeu a importância de destacar as cidades como um dos maiores
desafios para a missão: “What Is God’s Global Urban Mission?”

(https://www.lausanne.org/content/what-is-gods-global-urban-mission).

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 33


Glossário
Dois terços do mundo
Terminologia que passou a ser utilizada no lugar da expressão “Terceiro
Mundo”. Terceiro mundo carregou conceitos pejorativos, como sendo
países de categoria inferior por estarem em continentes subdesenvolvidos.
Busca-se com essa mudança de nomenclatura colocar o peso não
nos aspectos econômicos mas populacional, ou seja, dois terços da
população do mundo estão na América Latina, África e Ásia.
Missão
A natureza/identidade e razão de existir, em nosso caso, da igreja.
Missiologia, Missiológico
Missiologia é o estudo da intersecção entre o evangelho, a cultura e a
igreja. Tal estudo é multidisciplinar porque incorpora outras áreas do
saber, tais como Teologia, Antropologia, Sociologia, História, Línguas,
entre outras.
Missional
É um adjetivo que denota alguma coisa que está relacionada com ou é
caracterizada pela missão. Indica algo que carrega qualidades, atributos
ou dinâmicas da missão.
Missionário
No senso comum, são tipicamente aquelas pessoas enviadas por suas
igrejas ou agências missionárias para lugares normalmente distante
da igreja enviadora. Em nossa perspectiva missiológica, são todos os
cristãos em resposta à missio Dei, agindo em seus contextos de vida.
Missões
Esforços e atividades missionárias de envio e sustento de pessoas
que vão pregar o evangelho, implicando cruzar fronteiras geográficas e
culturais. Também chamada de missão transcultural.
Urbanizacão
É o processo-fenômeno que está ligado ao crescimento populacional
e territorial das cidades no qual as pessoas deixam as áreas rurais,
agrícolas e indígenas em direção aos centros urbanos.

34 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


Referências
BOSCH, David. Missão transformadora.: mudanças de paradigma na
teologia da missão. São Leopoldo: EST; Sinodal, 2002.

CASTRO, Emílio. Servos livres: missão e unidade na perspectiva do reino.


Rio de Janeiro: CEDI, 1986.

FONTENELE, Regina. “Gustavo Gutiérrez avalia atualidade da Teologia da


Libertação e o papado de Francisco”. In Missões: a missão no plural. Texto
acessado em 14/03/2019 e disponível em http://www.revistamissoes.
org.br/2016/02/gustavo-gutierrez-avalia-atualidade-da-teologia-da-
libertacao-e-o-papado-de-francisco/

KIRK, Andrew. O que é missão: teologia bíblica de missão. Londrina:


Descoberta, 2006.

LIBÂNIO, João Batista. As lógicas da cidade: o impacto sobre a fé e sob


o impacto da fé. 2.ed. São Paulo: Editora Loyola, 2012.

MCLAREN, Brian. Uma ortodoxia generosa: a igreja em tempos de pós–


modernidade. Brasília: Palavra, 2007.

PADILLA, C. René. O que é missão integral? Viçosa: Ultimato, 2009.

WRIGHT, Christopher J. H. A missão de Deus: desvendando a grande


narrativa da Bíblia. São Paulo: Edições Vida Nova, 2014

FAO – Food and Agriculture Organization of United Nations. Criar cidades


mais verdes. Roma: FAO, 2012.

VAN ENGEN, Charles. Misión en el camino: reflexiones sobre la teologia


de la misión. Grand Rapids: Baker Book House Company, 2007.

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 35


36 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
UNIDADE II - BÍBLIA, TEOLOGIA E MISSÃO – PARTE 1
Introdução
Nesta unidade refletiremos sobre missio Dei, Bíblia, teologia e missão.
Temos alguns desafios no Brasil relacionados à missão. O primeiro é
justamente compreender o significado de missão. Por isso refletimos
na Unidade I o que não é missão. O segundo desafio é compreender o
que é missio Dei. O terceiro é discernir o relacionamento entre Bíblia e
missão, tanto no Antigo como no Novo Testamento. E, em quarto lugar,
entender qual é a compreensão clássica da integralidade do Evangelho.
Estes temas serão tratados nesta e na próxima unidade.(ou nessa e nas
próximas unidades) Elas estarão se referindo ao processo hermenêutico-
metodológico que tem por finalidade interpretar. Na Unidade I utilizamos
o momento observar, ou seja, a partir do que vemos, em nossos contextos
e realidades, somos convocados, à luz da Palavra de Deus, a interpretar,
para que o próximo momento do círculo hermenêutica aconteça, o agir.
Assim, toda ação é contextual e refletida visando a transformação.
Essa é a intencionalidade do método, ou seja, um processo de missão
transformadora contextual à luz da Palavra de Deus.
Nessa unidade, trataremos de aspectos mais amplos da missão, como a
definição de Teologia da Missão, suas dimensões e uma maneira geral de
caracterizarmos e diferenciarmos a missão do ponto de vista do Antigo e Novo
Testamento. Na próxima unidade, ainda construindo a relação entre Bíblia,
teologia e missão, observaremos alguns conteúdos textuais das Escrituras.

Exercício de aplicação - 06

Esse exercício consiste em tentar encontrar a palavra missão — em


Português — na Bíblia e entender o seu uso e significado nas Escrituras.
Como existem várias versões de traduções do texto, para que tenhamos
um mesmo resultado, realize essa busca no seguinte site: http://biblia.
com.br/joaoferreiraalmeidarevistaatualizada/. Indique em quais textos
a palavra aparece e qual o significado da mesma naquele texto. A seguir,
sintetize o qual o conceito teológico da palavra missão em função
daquilo que encontrou.

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 37


1. A Bíblia como a base da missão
Podemos deizer que não existe uma base bíblica para missão e sim
que a Bíblia toda é a base da missão. Em primeiro lugar, a Teologia
Bíblica da Missão é teologia porque fundamentalmente envolve reflexão
sobre Deus e as coisas de Deus. Procura compreender a sua missão,
suas intenções e propósitos, seu uso dos instrumentos humanos e sua
ação, por meio do seu povo, que atua no mundo por ele criado. Assim,
a Teologia da Missão lida com todos os temas teológicos tradicionais
da Teologia Doutrinária ou Sistemática. Por outro lado, difere no modo
como os teólogos sistemáticos trabalharam classicamente através dos
séculos. A diferença surge na orientação missiológica multidisciplinar de
seu pensar e fazer teológico.

1.1. O aspecto teológico da missão


A Teologia Sistemática é considerada a organizadora do pensamento
teológico através dos séculos. Seu eixo teológico foi organizado em sete
áreas clássicas — que dependendo da tradição teológica pode variar:
(1) Teontologia, (2) Antropologia, (3) Cristologia, (4) Soteriologia, (5)
Eclesiologia, (6) Pneumatologia e (7) Escatologia. A Teontologia é área
da sistemática que estuda Deus, Deus Pai ou o Criador para alguns. A
Antropologia ou Antropologia Teológica estuda a criação com especial
atenção para o ser humano. A Cristologia se ocupa do estudo da pessoa
de Jesus Cristo. A Soteriologia é o estudo da salvação promovida por
Deus. A Eclesiologia estuda o fenômeno da igreja. A Pneumatologia é
o estudo do Espírito Santo. E finalmente, Escatologia é o estudo das
chamadas últimas coisas ou da esperança futura.

De modo geral, a Teologia Sistemática desenvolvida na história da igreja


não se preocupou em desenvolver uma perspectiva missiológica. Assim,
a Missiologia surgiu, mais recentemente, como uma disciplina isolada.
Minha intenção aqui é advogar a urgente necessidade de perceber um
possível fluxo missiológico por trás das áreas da Teologia Sistemática.

Pensemos assim: o princípio de todas as coisas é Deus (Teontologia), que


38 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
apesar do pecado do ser humano, demostra sua graça e misericórdia para
com a ser humano e humanidade (Antropologia). Por meio de Cristo, sua
vida, obra, morte e ressurreição (Cristologia), a humanidade, junto com toda
a criação, é redimida e salva (Soteriologia). Os salvos recebem o Espírito da
promessa, passam a ser templos do Espírito, empoderados para cumprir
os planos de Deus no e a favor do mundo (Pneumatologia), passando a
ser membros do novo povo de Deus, a comunidade de fé, chamados a
viver em comunhão, santidade e em comunidade missional (Eclesiologia).
Finalmente, a marca distinta desta comunidade missional é a esperança
do Reino que vem, vivendo na tensão do “já-ainda não” (Escatologia), até a
consumação dos séculos. Esse é um resumo das setes áreas.

No gráfico, apresento esse fluxo missiológico, demonstrando que a


Teologia deve ser apta a seguir a ação misericordiosa de Deus em Cristo
Jesus, o Verbo – transcendente - que se fez carne e habitou entre nós –
imanente. Por isso, a Teologia é sempre um ato segundo, como discurso
humano, pois o ato primeiro é o agir de Deus na história. Assim sendo, a
Teologia é uma resposta ao agir de Deus, um meio, nunca um fim. Fica
claro que a Teologia é um serviço e está a serviço de Deus e seu reino.

Este fluxo missiológico indica a finalidade da Teologia; ela deve estar a


serviço da missão de Deus (missio Dei). Este precisamente foi, e continua
sendo, o equívoco hermenêutico de muitos teólogos sistemáticos: não
perceber a teologia como um instrumento a serviço da missão. Qual é

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 39


o sentido da Teologia sem a Missiologia? Como, por exemplo, estudar a
Cristologia e a Eclesiologia sem a perspectiva missiológica? Ou ainda, a
quem serve esta Teologia? Teologia sem missão é reflexão estéril, sem
relação com a práxis de Jesus e da igreja. Por outro lado, uma Missiologia
que não seja teológica será imatura, inconsequente e sem fundamento
sólido. Assim, é urgente o repensar sobre elementos integrativos nas
disciplinas missiológicas e teológicas. Devemos desenvolver uma teologia
missiológica e uma missiologia teológica. A reflexão e práxis missiológica
precisam de fundamentos teológicos, assim como os fundamentos
teológicos precisam motivar, encorajar e impulsionar a missão. Este divórcio
entre Teologia e Missiologia já causou muitas consequências negativas.
Por exemplo, a reflexão teológica sem implicações missiológicas nada
mais é do que domesticação e institucionalização doutrinária.
Desde já é necessário que você vá aprendendo a fazer integrações e
diálogos entre Teologia e Missiologia. Pensar a Teologia na perspectiva da
Missiologia é imprescindível, porque você perceberá em sua caminhada
que raramente algo foi escrito nas sistematizações a partir da perspectiva
missiológica. Se a Teologia não está a serviço da missão da igreja, ela
está a serviço de quem? Ouso dizer que estaria a serviço de teólogos,
denominações e confissões e doutrinas. Chegou o momento de fazer
teologia não para a tradição eclesiástica, pois isso é manutenção do status
quo, mas essencialmente com a igreja, como servos submissos da missio
Dei, de uma igreja a caminho nas sendas do reino.

Se o desafio é repensar a Teologia na perspectiva da Missiologia, propomos


o seguinte fluxo, utilizando aqui expressões em latim:

40 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


Este gráfico nos mostra a centralidade da Trindade na tarefa missional. É
a partir da Trindade que devemos desenvolver uma Missiologia Trinitária,
ou seja, missio Dei (missão de Deus), missio Christi (missão de Cristo), e
missio Spiritu Sancti (missão do Espírito Santo). Isto implica em concluir
que a missão do povo de Deus (missio ecclesiarum) é consequência, um
ato segundo, da missão Trinitária, que é o ato primeiro. A igreja, portanto,
não vive para si mesma – ela é uma serva da Trindade em missão, vivendo e
encarnando as boas novas do Evangelho, tanto em obras como em palavras,
como peregrina e forasteira. Como nos exorta Pedro, a que sigamos em
“santo procedimento e piedade, esperando e apressando a vinda do Dia de
Deus” (2 Pe 3:11-12) porque “segundo a sua promessa, esperamos novos
céus e nova terra, nos quais habita justiça” (2 Pe 3:13), claramente uma
referência a expectativa do reino que virá (missio adventus).

Portanto, a reflexão da Teologia sem a perspectiva Missiológica é a morte


da própria missão. É na práxis missiológica, a partir da reflexão bíblica e
contextual, que a igreja diz para veio e existe. E, existindo assim, glorifica
a Trindade em seu compromisso de encarnação missional.

Exercício de fixação - 07

É possível dizer que existe uma base bíblica para missão?


( ) Sim ( ) Não

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Missiologia - Profº Marcos Orison

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 41


1.2. O aspecto bíblico da missão
Em segundo lugar, a Teologia Bíblica da Missão é bíblica devido ao seu
compromisso de permanecer fiel às intenções, perspectivas e propósitos
da Palavra de Deus. A Teologia da Missão mostra uma preocupação
fundamental sobre a relação da Bíblia com a missão, tentando permitir
que as Escrituras não apenas forneçam as motivações fundamentais
para a missão, mas, essencialmente, questione, molde, oriente e avalie os
esforços missionais. Isso porque, paradoxalmente, existem motivações
impuras na realização da missão. Por isso o renomado missiólogo
holandês Johannes Verkuyl nos alerta de que nem tudo o que a igreja
faz tem uma intenção missional. É possível realizar a obra de Deus com
intenções impuras e com maus propósitos, seja de forma consciente
ou inconsciente. Verkuyl indica quatro motivações impuras que a igreja
pode assumir na pretensa realização da missão:
- a motivação imperialista: é a tentativa de usar outra pessoa ou
povo como um meio para alcançar o seu próprio objetivo.
- o motivação cultural: frequentemente ao comunicar o
evangelho a cultura do comunicador vem acoplada e já não se
distingue entre o que é evangelho e o que é cultura.
- o motivação comercial: é a relação entre comércio e fé, ou seja,
ter uma igreja guiada por interesses comerciais e mercantilistas.
- o motivação do colonialismo eclesiástico: é o processo de
imposição do modelo da igreja mãe sobre as igrejas nativas,
não dando a oportunidade para que essas igrejas tenham suas
características respeitadas e encorajadas.
Você provavelmente já encontrou algumas dessas motivações sendo
expressas por igrejas em sua caminhada. E por que esses motivos
impuros, entre outros, existem? Por causa do abandono da orientação
bíblica e sua relação com a missão. A missão, para ser fiel a Deus, é aquela
revelada nas Sagradas Escrituras e não conforme uma denominação ou
eu e minha comunidade queremos. Fidelidade a Deus e sua Palavra não é
apenas no púlpito por meio da pregação. Essa Palavra deve permear tudo
o que somos, pensamos e fazemos.
42 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
Agora você pode entender porque começamos essa unidade com
aquele exercício. Você percebeu que a palavra missão, por si só, não é
encontrada na Bíblia. Por outro lado, há várias referências paulinas sobre
envio, ou seja, ser enviado ao mundo para cumprir a missão de Deus.
Uma das razões de não encontramos a palavra missão na Bíblia é porque
sua origem é latina (mitto). Mas não por isso, o princípio do envio está
presente. Aliás, toda a Sagrada Escritura é a revelação da história da
missão de Deus. Novamente, toda a Bíblia, Antigo e Novo Testamento, é
a revelação da missão de Deus no mundo. Sempre enfatizaremos isso:
a missão de Deus, não a missão da Igreja, ou a sua ou a minha missão.
Pois, finalmente, é a missão de Deus que nosso Senhor Jesus veio para
dar testemunho, e consequentemente, é a missão de Deus que a Igreja
proclama no mundo hoje. É a missão de Deus que compartilhamos.

1.3. O aspecto da missão em si


Em terceiro lugar a Teologia Bíblica da Missão é sobre a missão. Ou
seja, ela é especialmente orientada para a missão. Nem a Teologia nem
a Missiologia podem restringir-se apenas à reflexão. Como Johannes
Verkuyl afirmou,
A missiologia nunca pode ser um substituto para a ação e participação.
Deus chama participantes e voluntários em sua missão. Em parte, o
objetivo da missiologia é se tornar uma “estação de serviço” ao longo
do caminho. Se o estudo não leva à participação, seja em casa ou
no exterior, a missiologia perdeu seu humilde chamado... Qualquer
boa missiologia é também uma missiologia viatorum - “missiologia
peregrina” (1978: p. 6,18).

A Teologia da Missão, então, deve desembocar em uma ação missional


biblicamente informada e contextualmente apropriada. A conexão íntima
entre reflexão e ação é absolutamente essencial para a Missiologia. Ao
mesmo tempo, se nossa ação missiológica não transforma nossa reflexão,
podemos vir a ter grandes ideais, mas elas podem ser irrelevantes, ou
inúteis, às vezes até mesmo destrutivas ou contraproducentes. Portanto,
nossa orientação missional, que surge como fruto de nossa Teologia da
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 43
Missão deve se traduzir em ação. E a ação missional sempre ocorre em
um contexto. Nossa peregrinação em missão é a caminho, que exige
refletir sobre uma hermenêutica do contexto, que por sua vez exige uma
releitura das Escrituras que provoque novas ideias e ações missionais.
Uma das formas mais úteis de interligar a reflexão à ação é através do
processo conhecido como práxis. Embora tenha havido vários significados
diferentes descritos para esta ideia, parece que a formulação de Orlando
Costas é uma das mais construtivas:
[...] é fundamentalmente um fenômeno praxiológico. Trata-se de
uma reflexão crítica que se realiza na práxis da missão [...] [Ocorre]
na concreta situação missionária, como parte da obediência
missionária e participação da Igreja na missão de Deus, e ela
mesma se atualiza nessa situação [...] Seu objetivo é sempre o
mundo... homens e mulheres em suas múltiplas situações de vida
[...] Em referência a esta ação de testemunho saturada e conduzida
pela soberana ação redentora do Espírito Santo [...] o conceito de
práxis missionária é utilizado. A missiologia surge como parte
de um compromisso de testemunho ao evangelho nas múltiplas
situações da vida (1976: p. 8).

O conceito de práxis nos ajuda a entender que não apenas a reflexão,


mas profundamente a ação também fazer parte de uma Teologia Bíblica
de Missão que busca descobrir como a igreja pode participar da missão
de Deus no mundo. A ação deve ser em si mesma teológica e bíblica e
serve para informar a reflexão, que por sua vez interpreta, avalia, critica e
projeta um novo entendimento na ação transformadora. Resumindo, toda
teologia é bíblica e a toda a narrativa bíblica é missional.

Exercício de reflexão - 08

Ao fazer uma breve análise da práxis missional em sua igreja, o


quanto você considera que ela está próxima ou afastada da visão
bíblica de missão? Quanto ela aproxima a igreja do mundo ou se
afasta dele?
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44 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


2. As dimensões da missão
A missão possui grande aproximação com o tema da salvação. Contudo,
precisamos atentar para o fato de que fruto da influência dualista
e dicotômica, a salvação para muitos, hoje, significa apenas salvar
almas. Das muitas palavras hebraicas usadas para salvação, yasha —
salvar, ajudar em aflição, resgatar, livrar, libertar — é a que aparece mais
frequentemente no Antigo Testamento.

Comumente, o livramento ou libertação, no discurso do Antigo


Testamento, é de natureza material, embora haja exceções importantes.
Em contraste, o emprego de soter — raiz grega aplicada ao conceito de
salvação — no Novo Testamento, embora possa incluir a preservação
material, geralmente significa uma libertação com um significado
especialmente espiritual. Além da noção de libertação, a Bíblia também
usa a salvação para denotar saúde, bem-estar e cura.

De acordo com o significado mais amplo usado nas Escrituras, o termo


salvação engloba a obra total de Deus pela qual ele busca resgatar o ser
humano da ruína, destruição e poder do pecado, concedendo-lhe a riqueza
de sua graça abrangendo a vida eterna, provisão por vida abundante agora
e glória eterna (Ef 1:3-8; 2:4-10; 1 Pe 1:3-5; Jo 3:16, 36; 10:10).

A palavra salvação comunica o pensamento de libertação, segurança,


preservação, integridade, restauração e cura. Na Teologia, no entanto,
seu principal uso é denotar uma obra de Deus em favor da humanidade,
que inclui as pessoas e criação. Como tal, é uma doutrina importante
da Bíblia que inclui os conceitos de redenção, reconciliação, propiciação,
convicção, arrependimento, fé, regeneração, perdão, justificação,
santificação, preservação e glorificação. Por um lado, a salvação é descrita
como a obra de Deus que resgata o ser humano de seu estado perdido,
que por si só, jamais conseguiria sair, sendo exclusivamente uma obra de
Deus por meio do mediador Jesus Cristo. Também descreve o estado de
uma pessoa que foi salva e que é vitalmente renovada, fazendo parte da
herança dos santos. Não podemos esquecer e nem mesmo negligenciar
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 45
a salvação da criação, apontada pelo apóstolo Paulo em Romanos: “A
ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus.
Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por
causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será
redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos
de Deus” (Rm 8:19-21).

Portanto, precisamos, ainda que de modo resumido e condensado,


entender que a salvação engloba a obra total de Deus formulada,
entendida e incentivada pelo Apóstolo Paulo:

[...] o qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a


criação; porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus
e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações,
sejam principados, sejam potestades; tudo foi criado por ele e para
ele. E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por
ele. E ele é a cabeça do corpo da igreja; é o princípio e o primogênito
dentre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência, porque
foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse e que,
havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele
reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão
na terra como as que estão nos céus (Cl 1:15-20).

A palavra missão, no sentido que aqui será refletido, não está na Bíblia.
Quando a palavra aparece, e poucas vezes, é no sentido de uma tarefa
particular, como por exemplo, a missão dos espias (Js 2:14, 20). Isso
gera algumas dificuldades porque, uma vez que não existe uma definição
explícita, a mesma se torna implícita e passível de interpretações.
E é justamente aqui que muitos problemas surgem. Toda definição e
interpretação implicam e resultam em práticas em função do que se
definiu e interpretou. Se, por exemplo, definimos a missão da igreja
como salvar almas, isso definirá o método, as práticas e os resultados
esperados. O método será pregar verbalmente, cuja ênfase recairá no

46 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


ir por todo o mundo — prática — para que as pessoas se convertam —
resultado. Toda definição corre o risco de incluir e excluir elementos.
Neste exemplo, a definição de missão está certa no que inclui, mas
equivocada no que exclui.

Como já afirmado, é necessário compreender que a Bíblia, e não textos


isolados, é a base da missão. Ela é a peça missional de Deus. Uma
coletânea de 66 livros que formam uma única peça. A Palavra veio a existir
para revelar o plano de Deus para a humanidade e sua criação. Ela revela
os propósitos de Deus para mundo e a isso chamamos de missio Dei.

É fundamental entender o que significa a missão de Deus, porque é ela


que determina a missão do povo de Deus no Antigo Testamento, e a de
Jesus e da igreja no Novo. Consequentemente, isso determina a nossa
missão hoje. Isso porque nem tudo o que é feito em nome da missão é de
fato a missão de Deus. Assim, como podemos definir a missão de Deus? É
necessário começar pelo princípio de tudo: a narrativa da criação no livro
de Gênesis. Ali encontramos o projeto original, o ambiente harmônico em
que tudo o que Deus fez era bom. Esse ambiente era marcado por quatro
dimensões de relacionamentos que devem ser percebidas como alvo da
missão-salvação: (1) o relacionamento de Deus com o ser humano; (2)
do ser humano com o próximo; (3) do ser humano consigo mesmo e (4)
do ser humano com a criação.

As quatro dimensões da missão de Deus ficam assim representadas:

Desde já é fundamental perceber que a missão de Deus tem a ver com


relacionamento. Para a maioria das igrejas, líderes eclesiais e pessoas,
quando se pensa em missão pensa-se em atividades, projetos, programas,
eventos. É claro que não há nada de errado em utilizar essas ferramentas.
Porém, são ferramentas que devem visar os relacionamentos. Vejamos
cada uma das dimensões de relacionamentos.

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 47


2.1. Dimensão pessoal: relacionamento de Deus com o ser
humano
Estou chamando a primeira dimensão de pessoal. Acredito que muitos
teriam a tendência de chamar de espiritual, no entanto, nós ocidentais
somos profundamente influenciados por uma visão dualista da vida e da
teologia que contribuem para essa outra possível identificação. Exemplo:

• pensamos que a salvação só trata da alma e não do corpo

• valorizamos menos as coisas materiais que as consideradas


espirituais. Por exemplo, podemos pensar que o nosso trabalho é para
ganhar dinheiro e sustentar a família e não para glória de Deus e sua
missão, por isso nos referimos a ele como trabalho secular, por não
entendermos que ele possa ser considerado uma vocação espiritual;

• vemos a vida na terra como algo irreal ou de pouco importância,


porque nossa pátria é o céu;

• pensamos que a beleza nesta vida – — natureza, pessoas, arte,


música, etc. –— é menor que a beleza espiritual;

48 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


Assim, se chamarmos essa dimensão de espiritual corremos o risco
de dar a chance da interpretação de que as demais dimensões não são
espirituais. E essa tem sido a interpretação da maioria das pessoas, que ao
pensarem e agirem assim, são mais docéticas e gnósticas do que cristãs.

Voltando, então, ao nosso tema, a narrativa da criação — ou narrativas


— que encontramos no livro de Gênesis procura criar o pano de fundo
introdutório de todo o drama humano que se desenvolverá ao longo da
revelação bíblica. O primeiro relato aponta para a transformação do caos
— uma terra sem forma e vazia (Gn 1:2) — em um ambiente harmônico
em que Deus, o criador, cria cada coisa e a coloca em seu devido lugar
de for ordenada. A expressão “e viu Deus que isso era bom” se repete
váias vezes até que ao criar os seres humanos o texto diz que o que havia
sido criado “era muito bom” (Gn 1:31). Embora essa primeira narrativa
não descreva uma relação específica entre Deus e os seres humanos,
podemos inferir que tudo funcionava de maneira perfeita.

O relato seguinte, que inicia no capítulo 2, descreve a criação de uma


maneira mais humanizada, se podemos dizer assim. Ao invés do caos e
da intervenção impessoal de Deus, lemos que tudo ocorre em torno da
ideia de um jardim ou um lar campestre, onde havia um espaço próprio
para a plantação, porém, não havia plantas nem quem as plantasse (Gn
2:5). A partir daí, o que se constrói é a ideia de um Deus próximo que põe
a mão na massa (barro) para formar o ser humano e lhe sopra no nariz
o fôlego de vida. Esse contraste entre o primeiro e o segundo relato, que
trabalha a proximidade de Deus do ser humano, fica mais evidente nos
detalhes que seguem:

- Deus planta um jardim com todo o alimento necessário ao ser humano


(Gn 2:9);

- Deus “percebe” a carência de companhia do ser humano e a provê (Gn


2:18, 21);

- Deus “andava” pelo jardim e “conversava” com o ser humano (Gn 3:8, 9).
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 49
Essa relação entre Deus e o ser humano, assim descrita, harmoniosa, é
quebrada com a queda do ser humano. Sem entrarmos na profundidade
da discussão teológica desse tema, que não é o nosso objetivo aqui, o
relato fala de uma desobediência direta a uma ordem divina: “não comer
do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2:17). Esse ato
pode ser interpretado como um desejo humano por autonomia e completa
independência de qualquer coisa que o restrinja. Gerado em seu orgulho
ou soberba egocêntrica, o desejo se traduz como a inclinação para ser
como Deus, ou ser o seu próprio Deus, não tendo ninguém acima de si
que o governe. Como lemos na narrativa, a tentação propunha que os
seres humanos seriam “como Deus”, conhecedores do bem e do mal —
conhecimento total — (Gn 3:5).

Ao desejarem ser Deus, os seres humanos quebram essa harmoniosa


relação criador-criatura. O texto descreve esse novo estado como sendo
um misto de vergonha e medo, levando-os a se esconderem daquele
que carinhosamente os havia criado e providenciado tudo para a sua
sobrevivência em plenitude (Gn 3:10).

2.2. Dimensão social: relacionamento do ser humano com


seu próximo
A segunda dimensão trata do relacionamento harmônico do ser humano
com seu próximo. Esse relacionamento entre os seres humanos é
elaborado em torno da narrativa em torno do casal Adão e Eva. Como já
mencionado rapidamente no tópico anterior, lemos no relato da criação
a seguinte afirmação do criador: “Não é bom que o homem esteja só;
far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea” (Gn 2:18). Embora o relato
que segue seja construído em torno de Adão e Eva e da relação homem
e mulher, essa afirmação vai além desse âmbito, considerando a máxima
de que não é bom – constrastando inclusive com as expressões “e
viu Deus que isso era bom” – que o homem esteja só. Sabemos que o
ser humano é um ser social em sua essência. Não apenas isso, desde
50 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
o seu nascimento somos dependentes do cuidado materno e de um
ambiente familiar que fornece as condições para o nosso crescimento
e desenvolvimento. É pelo auxílio, cooperação, companheirismo e
solidariedade que as sociedades se estabelecem. Dificilmente alguém
cosegue sobreviver sozinho e isolado mesmo em ambientes desertos e
inóspitos. Por isso, as Escrituras também afirmam:

Melhor é serem dois do que um, porque têm melhor paga do


seu trabalho. Porque se caírem, um levanta o companheiro;
ai, porém, do que estiver só; pois, caindo, não haverá
quem o levante. Também, se dois dormirem juntos, eles
se aquentarão; mas um só como se aquentará? Se alguém
quiser prevalecer contra um, os dois lhe resistirão; o cordão
de três dobras não se rebenta com facilidade (Ec 4:9-12).

Interessante notar a sutileza com que o texto apresenta a harmonia da


relação ao dizer “Ora, um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus e
não se envergonhavam” (Gn 2:25). A expressão demonstra uma relação
expressa pela liberdade e franqueza sem espaço para a vergonha,
que é exatamente a sensação de desconforto e inconformidade na
convivência. O contraste dessa expressão não é necessariamente a
pecepção da nudez que ocorre na queda (Gn 3:10), mas a acusação e
tentativa de transferência de responsabilidade, que quebra a noção de
companheirismo e cumplicidade: “A mulher que me deste por esposa, ela
me deu da árvore, e eu comi” (Gn 3:12).

O efeito da queda, do pecado, afeta não apenas a relação do ser


humano com Deus, mas, simultaneamente, a relação do ser humano
com o seu próximo. Aquela relação harmônica de companheirismo e
interdependência é rompida. O ápice dessa história é apresentado logo
no capítulo seguinte do livro de Gênesis quando o autor introduz a história
do primeiro assassinato (Gn 4:8). Esse ato representa o maior atentado
contra a criação por ser um ato contra aquilo que temos de mais valioso:
a vida humana.
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 51
2.3. Dimensão intrapsíquica: relacionamento harmônico
do ser humano consigo mesmo
Essa é uma dimensão pouco trabalhada e mencionada: ninguém que
não esteja em paz e harmonia consigo mesmo pode estar bem com
Deus, seu próximo e o meio ambiente. A área psíquica ainda encontra
resistência em alguns ambientes evangélicos. Para alguns, isso soa
como misticismo, exoterismo ou até espiritismo.

No entanto, não podemos esquecer ou negligenciar aquilo que a narrativa


da criação informa sobre o ser humano: “Então formou o Senhor Deus
ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o folego de vida, e
o homem passou a ser alma vivente” (Gn 2:7). O Dicionário Bíblico
Strong traduz a expressão alma — no original hebraico, ‫( שׂפנ‬nephesh)
— da seguinte forma: ser, vida, criatura, pessoa, apetite, mente, ser vivo,
desejo, emoção, paixão e por isso é aquele que respira, a substância ou
ser que respira, o ser interior do homem, ser vivo, ser pessoa ou indivíduo,
que tem apetites, emoções, paixões e atividade da mente, quer sejam
atividades duvidosas, de vontade, ambíguas, relacionadas ao seu caráter.

Talvez esse fundamental detalhe já possa ter passado despercebido da


leitura da narrativa, que esse ser humano formado é uma alma vivente. A
palavra alma aparece 382 vezes na Bíblia — versão Revista e Atualizada.
Destas,119 aparecem nos Salmos. Isso por si só é indicativo, por ser o
livro dos Salmos um compêndio de alegrias e lamentos, alívios e dores,
razão e emoção. Sendo um dos livros poéticos, nada melhor do que a
alma para representar a fala das experiências humanas. A alma, por
exemplo, expressa:
• luta com tristezas - “até quando estarei eu relutando dentro de
minha alma, com tristeza no coração cada dia?” (Sl 13:2);
• angustia – “conheceste as angústias de minha alma” (Sl 31:7);
• esperança por livramento – “Empunha a lança e reprime o passo aos
meus perseguidores; dize à minha alma: Eu sou a tua salvação” (Sl 35:3);

52 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


• consciência do pecado – “SENHOR; sara a minha alma, porque
pequei contra ti” (Sl 41:4);
• anseio pelo relacionamento com Deus – “Como suspira a corça
pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha
alma” (Sl 42:1);
• compreensão dos ensinos divinos – “A minha alma tem observado
os teus testemunhos; eu os amo ardentemente” (Sl 119:167);
• alegria - “Aleluia! Louva, ó minha alma, ao SENHOR” (Sl 146:1).

No Novo Testamento, a palavra nephesh é traduzida por psyché, daí a


expressão psíquica, que representa essa esfera interior do ser humano.
Quando olhamos para o relato da criação, não vemos desajustes dessa
ordem até o momento da queda, quando lemos que a confusão e medo
tomam conta da vida humana: “tive medo e me escondi” (Gn 3:10). Esse
drama é aumentado quando o autor fala sobre como se dá a dinâmica
do pecado: “Então lhe disse o Senhor: Por que andas irado? e por que lhe
descaiu o semblante? Se procederes bem, não é certo que serás aceito?
Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo
será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo” (Gn 4:6-7). O quadro é de um
ser humano que está irado, com o semblante caído, cujo desejo que
surge em seu interior é contra ele mesmo, e que passará o resto de sua
vida nessa luta interna de tentar dominar os seus desejos para que não
se tornem em pecado.

2.4. Dimensão ecológica: relacionamento do ser humano


com a criação
O primeiro relato da criação, que se encontra no primeiro capítulo de
Gênesis, apresenta detalhes a formação da natureza — do cosmos —
que servirá como ambiente para o desenvolvimento do ser humano. Ali,
lemos sobre a água, os astros, a terra, as plantas, e as várias espécies de
animais. Comparativamente, o texto que descreve a criação da natureza
é bem maior que o que descreve o ser humano o que deveria nos levar a
considerar a sua importância teológica. No segundo relato, a natureza ou
ambiente para o desenvolvimento da vida humana é descrito como um
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 53
jardim, também em detalhes, novamente com a descrição da geografia,
plantas e animais. Estamos falando aqui do habitat humano, sua casa,
cuja palavra em grego é oikos, que dá origem às palavras eco e ecologia.
Nos dois relatos encontramos oredenanças divinas para os seres
humanos de como deveriam se relacionar com a natureza. A
primeira ordenança é: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a
terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves
dos céus, e sobre sodo o animal que rasteja pela terra” (Gn 1:28).
Partindo da ideia de que a criação vive um estado de harmonia,
a multiplicação do gênero humano com a força para a sujeição e
domíno da terra não pressupõe uma ação que coloque em risco a
sua própria sobrevivência. Vemos aí o conceito de sustentabilidade.
A sujeição e domínio imagina-se sendo racional e inteligente e não
de forma destrutiva ou maldosa. Ela, no fundo, tem que contribuir
para que a avaliação divina de que tudo é muito bom prevaleça
sobre qualquer circunstância ou decisão humana.
A segunda ordenança é assim registrada: “Tomou, pois, o Senhor
Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden o cultivar e o guardar
(Gn 2:15). As expressões cultivar e guadar indicam um ação mais
cuidadosa do que o sujeitar e dominar do relato anterior. O foco aqui
é agrícola e pastoril, e tem a ver com a imagem do jardim. Obviamente
não se imagina uma ação que seja contra a própria subsistência e
desenvolvimento. Aqui temos a relação com o conceito de mordomia.
O ser humano iá cuidar do jardim cujo dono é o criador, ainda que em
seu próprio benefício. Essa é a sua missão.
Mais uma vez esse projeto original é afetado pela queda e podemos ver
a sua consequência nos resultados do pecado: “maldita é a terra por
tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua
vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do
campo. No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra [...]”
(Gn 3:17-19). Sem nos aprofundarmos muito no texto, vemos claramente
que a relação entre o ser humano e a natureza é diretamente afetada
pela queda, fugindo da intenção original do criador. Aquela harmonia
quebrada torna-se agora um alvo de restauração.
54 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
Exercício de fixação - 09

Quais são as quatro grandes dimensões que precisam ser


reconstruídas através da Missio Dei:
Acesse o AVA para fazer os exercícios e ver a reação do professor!

3. Missão centrípeta e centrífuga


Observando a Bíblia como um todo, considerando a revelação que temos
no Antigo Testamento, centrado na experiência do povo de Israel com Deus,
e a que temos no Novo Testamento, centrado na pessoa de Jesus Cristo
e sua igreja, podemos caracterizar a maneira como se encara a missão de
forma distinta. Não é incomum se ouvir dizer que não há missão no Antigo
Testamento e que ela se inicia apenas no Novo Testamento, especialmente
com a chamada Grande Comissão. A essa altura de nosso estudo já temos
bons argumentos para contrapor essa percepção.

Alguns teólogos e missólogos, a partir do século XX, disseminaram uma


maneira particular de caracterizar a missão, conforme revelada nos dois
Testamentos, usando uma nomenclatura originada da Física: centrípeta e
centrífuga. Na Física, entende-se por força centrípeta aquela que empurra
um corpo, em movimento circular, em direção ao centro deste círculo
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 55
imaginário. Já a força centrífuga é aquela que age sobre um corpo fazendo-o
movimentar se para fora da trajetória circular, como que se afastando do
centro na direção tangencial. De forma ilustrativa temos o seguinte:

Na figura, as setas verdes indicam a força centrípeta, que aponta para o


centro, e atua sobre o corpo azul durante seu movimento circular. As setas
alaranjadas representam a força centrífuga, que aponta para fora do centro,
tangenciando a trajetória do movimento circular realizada pelo corpo azul.
Aplicando esse conceito ao tipo de missão referente aos dois Testamentos,
os teólogos caracterizaram a missão do Antigo Testamento como centrípeta
e a do Novo como centrífuga. Agora, vamos entender o que isso significa.

Exercício de aplicação - 10
Conte agora em quantas pessoas você ou a sua comunidade
evangelizaram sob uma perspectiva centrífuga ou centrípeta?
Descreva uma dessas experiências e o que você pensa sobre ela
após estudar esses dois conceitos.
Acesse o AVA para fazer os exercícios e ver a reação do professor!

3.1. Missão centrípeta no Antigo Testamento


A maneira como a missão de Deus se manifestou no Antigo Testamento
denominamos como missão centrípeta. A razão para essa caracterização
é porque entende-se que Israel funcionava como uma força de atração
56 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
das outras nações para que elas viessem a conhecer ao Deus Javé.
Elaborando um pouco mais essa ideia, a compreensão é de que a nação
de Israel deveria ser um modelo para as outras nações do mundo de
então que, vendo como aquela sociedade se estruturava em torno da
Lei, questionariam os motivos de serem bem-sucedidos. A resposta
imediata seria a aliança de fidelidade com Javé. Embora tenhamos
relatos de personagens bíblicos como José, Jonas, Daniel e Ester que
testemunharam em países estrangeiros, na compreensão de Christopher
Wright, “Israel não recebeu o mandato divino de enviar missionários às
nações” (Wright, 2014, p. 22).
Note como esse conceito aparece em Isaías 66:19-21:
Porei entre elas um sinal e alguns dos que foram salvos enviarei
às nações, a Társis, Pul e Lude, que atiram com o arco, a Tubal e
Javã, até às terras do mar mais remotas, que jamais ouviram falar
de mim, nem viram a minha glória; eles anunciarão entre as nações
a minha glória. Trarão todos os vossos irmãos, dentre todas as
nações, por oferta ao SENHOR, sobre cavalos, em liteiras e sobre
mulas e dromedários, ao meu santo monte, a Jerusalém, diz o
SENHOR, como quando os filhos de Israel trazem as suas ofertas
de manjares, em vasos puros à Casa do SENHOR. Também deles
tomarei a alguns para sacerdotes e para levitas, diz o SENHOR.

No texto, alguns “dos que foram salvos”, ou seja, sobreviventes, foram


enviados às nações, em uma missão do tipo centrífuga, para que
“anunciassem entre as nações a minha glória”. No entanto, esse esforço
tinha com objetivo trazer “os vossos irmãos, dentre todas as nações, por
oferta ao Senhor”, o que caracteriza uma finalidade centrípeta, sendo o
centro a nação de Israel ou, mais especificamente, o monte Sião, onde
estava edificada a cidade de Jerusalém, onde se encontrava o Templo.

Johannes Blauw (1966, p. 39) indica que foi Bengt Sundkler quem
chamou a atenção para essa convicção de que Jerusalém era o centro
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 57
do mundo e, de certa forma, justificando a limitação do ministério de
Jesus às ovelhas perdidas de Israel (Mt 10:5b-6), evitando uma missão
aos gentios (apud Blauw 1966, p. 146-147). Sundkler comentou: “O
universalismo centrífugo é atualizado por um mensageiro que atravessa
fronteiras e passa suas notícias àqueles que estão longe; centrípeta por
uma força magnética, atraindo povos distantes para o lugar da pessoa
que está no centro” (1965: 14-15).

Blauw aplica o sentido centrípeta da missão de Israel, em que as nações


iriam para Sião (Is 2:2-4), como uma “expectação escatológica que
será cumprida apenas no fim dos tempos” (1966, p. 40). Ele entendia
que “nunca, em todo o período do Antigo Testamento, houve qualquer
atividade missionária deliberada” e que “não há pensamento sobre
missão no Antigo Testamento no sentido centrífugo em que este surge
no Novo Testamento” (1966, p. 34). Walter C. Kaiser, em contraste, vê o
papel centrípeta como “testemunho passivo” e o papel centrífugo como
“testemunho ativo” (2000, p. 9). Porém, o significado de uma teologia de
missão centrípeta vai mais fundo do que um testemunho passivo. Os
missionários que vão para as nações de modo centrífugo precisam de
uma força centrípeta para atrair as nações assim que lá chegam.

Christopher Wright faz dois pontos dignos de nota na questão centrípeta


e centrífuga. Ele entende “que Israel definitivamente contava um senso
de missão, não no sentido de ir a algum lugar, mas de ser alguma coisa”,
“eles seriam uma luz e uma testemunha às nações” (2014, p. 528).
Sua conclusão é que “a missão centrífuga da igreja neotestamentária
também contava , por um lado, com uma teologia centrípeta: as nações,
na verdade, estavam sendo reuidas, não para serem trazidas a Jerusalém,
ao templo físico ou a Israel como nação, mas a Cristo, como o centro, e
ao novo templo de Deus” (2014, p. 549-550).

Resumindo, todo esse movimento centrípeta encontrado no Antigo


Testamento está relacionado ao plano de Deus de revelar seu caráter às
nações colocando Israel na encruzilhada do mundo antigo dando todas
as condições para ser uma nação modelo para as outras nações do
58 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
mundo. Com isso Israel atrairia as nações para Deus, muitas das quais
seriam incorporadas à aliança divina. Assim declara o profeta:
Pouco é o seres meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e
tornares a trazer os remanescentes de Israel; também te dei como
luz para os gentios, para seres a minha salvação até à extremidade
da terra. Assim diz o SENHOR, o Redentor e Santo de Israel, ao que é
desprezado, ao aborrecido das nações, ao servo dos tiranos: Os reis
o verão, e os príncipes se levantarão; e eles te adorarão por amor do
SENHOR, que é fiel, e do Santo de Israel, que te escolheu (Is 49:6-7).

A ideia aqui é o verbo vinde — venham e vejam:


Nos últimos dias, acontecerá que o monte da Casa do SENHOR será
estabelecido no cimo dos montes e se elevará sobre os outeiros, e
para ele afluirão todos os povos. Irão muitas nações e dirão: Vinde, e
subamos ao monte do SENHOR e à casa do Deus de Jacó, para que
nos ensine os seus caminhos, e andemos pelas suas veredas; porque
de Sião sairá a lei, e a palavra do SENHOR, de Jerusalém (Is 2:2-3).

3.2. Missão centrifuga no Novo Testamento


No Novo Testamento o verbo muda a direção. O vinde dá lugar ao ide —
vão e façam discípulos, como encontramos na chamada Grande Comissão
(Mt 28:18-20). A palavra no grego εκκλησια traduzida como igreja já revela
o caráter centrífugo do Novo Testamento. Ekklesia é definida como uma
assembleia ou congregação convocada. Por exemplo, Atos 11:26 diz que
“por todo um ano, se reuniram [Paulo e Barnabé] naquela igreja (ekklesia)
e ensinaram numerosa multidão. Em Antioquia, foram os discípulos, pela
primeira vez, chamados cristãos”. Em 1 Coríntios 15:9 Paulo diz que se
considerava “o menor dos apóstolos” e até mesmo de não ser “digno de
ser chamado apóstolo” porque ele tinha consciência de haver perseguido
a “igreja (ekklesia) de Deus”. Igreja, portanto, é formada de ek e klesia, ou
seja, a assembleia comissionada de dentro para fora. É a congregação
daqueles a quem Deus chamou “a fim de proclamardes as virtudes daquele
que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1 Pe 2:9).
A palavra no Novo Testamento também foi usada para se referir a
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 59
qualquer assembléia de pessoas. Em seu discurso ao Sinédrio, Estevão
chama o povo de Israel de “a congregação (ekklesia) no deserto” (At 7:38).
E em Atos 19:39 refere-se a uma “assembleia (ekklesia) regular”, uma
convocação de cidadãos para discutir os assuntos legais. No entanto,
na maioria dos contextos, a palavra ekklesia é usada para se referir às
pessoas que compõem a comunidade de cristãos.

Essa definição e uso da palavra ekklesia nos revela a importância de


entender a missão centrífuga da igreja como sendo aqueles que são
chamados por Deus de dentro para fora. É a igreja que faz diferença no
mundo, sem se impregnar dos valores do mundo. Assim como no Antigo
Testamento, Israel é chamado para ser um “contraste”, conceito muito
usado por Michael W. Goheen:
Uma importante dimensão da eclesiologia missional de Lucas
é revelada aqui: a igreja tem início como Israel restaurado, uma
comunidade transformada, com uma missão para seu próprio povo
[...] Israel precisa ser restaurado ao seu papel de ser uma atraente
comunidade de contraste. Esse é o chamado missional de Israel que
define a igreja desde o seu começo (ênfase minha) (2014, p. 161).

Sem contraste a igreja é um desastre. O ser precede ao dizer e fazer.


Em meu livro Discipulado missional, enfatizo o que Jesus, Paulo, João e
Pedro afirmaram que somos:

Jesus disse:
• vós sois o sal da terra (Mt 5:13)
• vós sois a luz do mundo (Mt 5:14)
• vós sois testemunhas destas coisas (Lc 24:48)
• vós são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros (Jo 13:35)
• vós sois os ramos (varas) (Jo 15:5)
• vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando (Jo 15:14)
• vós sois os filhos dos profetas e do pacto que Deus fez com vossos
pais (At 3:25)
60 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
Paulo disse:
• vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual para nós foi feito por Deus
sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção (1 Co 1:30)
• vós sois lavoura de Deus e edifício de Deus (1 Co 3:9) • vós sois de
Cristo, e Cristo, de Deus.
• vós sois corpo de Cristo, e individualmente seus membros (1 Co 12:27)
• vós sois filhos de Deus mediante a fé́ em Cristo Jesus (Gl 3:26)
• vós sois um em Cristo Jesus (Gl 3:28)
• vós sois guiados pelo Espirito (Gl 5:18)
• vós sois luz no Senhor
• vós sois filhos da luz e filhos do dia (1 Ts 5:5)

João disse:
• Filhinhos, vós sois de Deus (1 Jo 4:4)

E Pedro disse:
• vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo
de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas
para a sua maravilhosa luz (1 Pe 2:9) (Barro, 2013, p. 73-74).

Assim é a ekklesia de Deus, um contraste em meio as trevas. De forma


ilustrativa temos a seguinte figura que resume a ideia de missão centrípeta
e centrífuga:

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 61


Referências
BARRO, Jorge H. Discipulado missional: andar como Ele andou. Londrina:
Descoberta, 2013.

BLAUW, Johannes. A natureza missionária da igreja. São Paulo: ASTE,


1966.

BOSCH, David J. Missão transformadora. São Leopoldo: EST & Editora


Sinodal, 2002.

COSTAS, Orlando E. Theology of the crossroads in contemporary Latin


America: missiology in mainline Protestantism -1969-1974. Amsterdam:
Rodopi, 1976.

SUNDKLER, Bengt. Jesus et les paiens. Revue d’histoire et de philosophie


religieuses 16, 1936, pp. 462-499.

SNYDER, Howard A. La salvación de toda la creación. Buenos Aires:


Ediciones Kairos, 2016.

VERKUYL, Johannes. Contemporary missiology: an introduction. Grand


Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 1978.

WRIGHT, Christopher J. H. A missão de Deus: desvendando a grande


narrativa da Bíblia. São Paulo: Vida nova, 2014.

62 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 63
UNIDADE III - BÍBLIA, TEOLOGIA E MISSÃO – PARTE 2

Introdução
Nesta unidade, ainda pensando na fundamentação bíblico-teológica
da missão, vamos trabalhar alguns textos e temas do Antigo e Novo
Testamentos. Como vimos na unidade anterior, a bíblia é a base da
missão. Ela é essencialmente missiológica em sua intencionalidade
reveladora, por isso, depois de termos feito uma abordagem mais ampla
e genérica, mergulharemos mais a fundo em alguns textos que nos
ajudam a compreender a centralidade da missão na bíblia. Mais que isso,
minha proposta é que aprendamos a ler os textos bíblicos com os olhos
da missão e que esse exercício interpretativo nos ajude a reafirmar o
nosso compromisso com a missão de Deus.

Para aqueles que quiserem se aprofundar no tema da Teologia Bíblica


da Missão, sugiro dois livros bastante interessantes e que procuram
percorrer as Escrituras mostrando os principais aspectos relativos ao foco
missional do povo de Israel e da igreja: (1) Missão Integral: uma teologia
bíblica, de Timóteo Carriker; e (2) A missão de Deus: desvendando a
grande narrativa da bíblia, de Christopher Wright — o texto de Wright já
foi utilizado na unidade anterior. A ficha bibliográfica completa dos dois
livros você pode encontrar ao final da unidade.

1. A missão no Antigo Testamento


Antes de investigarmos alguns períodos que compõem a história de
Israel, quero iniciar, mais uma vez, com um texto da narrativa da criação
para falar da missão de Deus. É importante relembrar que a missão está
diretamente relacionada à teologia da salvação, ou seja, falar de missão
só faz sentido após a queda, tendo como referência o estado ideal e
harmônico descrito na criação e as quatro dimensões de relacionamentos.
Assim, um texto muito bonito que indica a intenção e interesse de Deus
pelo resgate do ser humano caído — a missio Dei – ocorre logo no início
da bíblia e imediatamente após a queda: “E chamou o Senhor Deus ao
homem, e lhe perguntou: Onde estás?” (Gn 3:9).
64 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
O que esse texto nos mostra é postura carinhosa de Deus diante de um
quadro de caos. A narrativa é construída debaixo da tensão da tentação,
queda e suas imediatas consequências. A desobediência à ordem divina,
que tinha como punição automática a morte, é seguida por um estado
de medo, vergonha, confusão mental e fugas por parte do ser humano.
Vamos tentar fazer um exercício de abstração, imaginando o que poderia
ter acontecido logo após a desobediência. Talvez, Deus poderia ter
simplesmente aparecido diante deles e cumprido aquilo que havia alertado,
ou seja, poderia ter acabado com a vida de Adão e Eva, ali, sem diálogo
ou qualquer outra explicação. Deus apreceria como um juiz aplicando a
condenação diante da desobediência, e de forma justa, afinal, eles sabiam.
A questão, no entanto, é que acabar com a vida humana não é um plano
divino original. O seu plano é a criação do ser humano e um projeto de vida
harmônico. A queda é um desvio de percurso. Assim, acabar com a vida
humana seria um contrassenso. No entanto, o que fazer?

O que a narrativa nos mostra é um Deus que se aproxima do ser humano


com uma pergunta. Esse ato de aproximação é um ato missionário.
Poderíamos dizer que Deus envia-se a si mesmo para dialogar com o ser
humano e, mais a frente, resgata-lo. Essa aproximação é descrita como,
ao mesmo tempo, simples e estratégica. Perceba que o texto anterior diz
que Deus “andava no jardim pela viração do dia” (Gn 3:8). Não lemos que
Deus tenha agido de modo que saísse da rotina, do comum, do ordinário,
do esperado. O ser humano sim, havia quebrado a normalidade. Mas
Deus, de maneira sutil, sem apelar para a ira ou para uma manifestação
extraordinária, que talvez provocasse uma reação que piorasse ainda
mais o quadro caótico e de temor em que se encontrava o ser humano,
andando entre eles, como de costume, pergunta: Cadê vocês?

Essa pergunta simples e até natural – mesmo considerando que Deus


já soubesse onde eles estavam, por ser Deus – dá a oportunidade ao ser
humano de reagir, refletir, mesmo que de forma confusa, se explicar e
assumir responsabilidade. Esse modelo de aproximação me parece ser
algo que se estabeleceu como padrão divino. Mesmo que dominado por
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 65
uma perspectiva centrípeta, podemos notar que no Antigo Testamento
Deus usa os seus mensageiros, seus representantes – missionários
– como forma de se aproximar dos seres humanos que compõem os
povos e as nações.

1.1. A missão nos patriarcas


Certamente, a maior referência patriarcal é Abraão. É com ele que
nasce a aliança de Deus com um povo que iria se formar por meio da
sua descendência. Como indica Christopher Wright, “a aliança de Deus
com Abraão é provavelmente a tradição bíblica mais importante para
uma teologia da missão e uma hermenêutica misional da Bíblia” (2014,
p. 195). Na história de Abraão podemos ver alguns elementos claros de
envio missionário:

E disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de


teu pai, e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande nação, e
te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção: abençoarei
os que abençoarem, e amaldiçoarei os que te amaldioarem; em ti serão
benditas todas as famílias da terra (Gn 12:1-3).

O chamado de Abraão envolve deixar para trás a segurança e conforto de


um estado e situação conhecidos ou controlados, para algo totalmente
novo e desconhecido. O objetivo desse movimento, ou envio divino, é
muito grande e nobre: “abençoar todas as famílias da terra”. Para Michael
Goheen,

“Bênção” é um termo bíblico com ricas ressonâncias, significando a


revogação da maldição do pecado e a restauração da plenitude da
criação [...] Desse modo, o autor de Gênesis pretende deixar claro que
Deus quer reverter em Abraão os efeitos do pecado: “A nova palavra
de grande poder [‘abençoar’], que em Gênesis 12.1-3 forma a essência
da aliança abrâmica, deve anular a maldição dos capítulos 1 a 11 de
Gênesis”. A bênção restaura todo o bem que Deus havia generosamente
concedido à criação no início (e.g. Gn 1.22,28) e assim prenuncia sua obra
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de redenção subsequente para o desenvolvimento dos seres humanos
no relacionamento com Deus, uns com os outros e com a criação não
humana (2014, p. 50).

Essa é a missão que está diante de Abraão e de sua descendência que,


aliás, inclui a todos nós, igreja de Cristo (Rm 9:8). Como visto na unidade
anterior, a missão de Deus é ampla e envolve todos os aspectos da vida
humana. Ela não se limita à salvação da alma com vistas a um céu futuro,
mas busca regatar o estado de plenitude de vida perdido na queda.

Exercício de fixação -11


Há um aspecto muito importante de ser lembrado todos os dias em
nossa vida missionária, qual seja:
a) O aspecto de fidelidade que se deve manter às escrituras
b) O aspecto geográfico, em que haja um deslocamento da zona
de conforto
c) O aspecto relacional, em que aproximamos outros seres
humanos de Deus
d) O aspecto centrípeto, através do qual atraímos pessoas para
dentro do corpo de Cristo

Acesse o AVA para fazer os exercícios e ver a reação do professor!

Um detalhe interessante é levantados por alguns missólogos sobre o


chamado de Abraão ou sobre a maneira como entendemos a missão a partir
da sua aliança com Deus. Esse detalhe tem a ver com o conceito de eleição.
A história de Abraão mostra que ele era um homem comum e que a sua
escolha por Deus não foi porque ele tinha alguma característica especial
que justificasse ter sido eleito. A bíblia indica que ele era um homem de fé
exemplar (Hb 11:88ss), mas o relato da sua escolha não fala que essa teria
sido essa a razão para que ela ocorresse. Por isso, não há na missão lugar
para um sentimento de orgulho, de sectarismo e de exclusivismo. O que se
aprende, ao contrário, é que o chamado de Abraão é para realizar um serviço.
Ele tem um objetivo a ser alcançado e para isso foi chamado.
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 67
Texto de apoio
Então, a eleição de Abraão não teve como alvo exclusivo a bêncção
dele próprio. Este, além de receptor, teria o papel de “mediador”
no plano salvífico de Deus (Von Rad 1972:160) para todas as
famílias da terra. Israel, herdeiro desta promessa para Abraão por
descendência (Gênesis 13.14-16; 15.5,7,18; 17.4-8; 18.18; 22.17-
18; 26.2-4,24; 28.3-4, 13-15; 22.12; 35.9-12; 48:16), também seria
um canal, não um “depósito” das bênçãos de Deus no seu desígnio
último para as nações (Peters 1972:94). Quando Deus escolheu
Abraão, não abandonou as nações, mas o fez a favor delas.
Johannes Verkuyl recoda a colocação de A. de Grost, “Israel é a
palavra de abertura na proclamação da salvação de Deus, não o
Amém” [tradução] (1978:91). Po causa deste papel mais amplo, o
termo “particularismo” que é muito usado entre alguns estudiosos,
não é muito apropriado para definir o propósito e lugar e Israel. Por
certo, a salvação e o serviço de Deus foram dirigidos para um povo
escolhido, mas também este povo teria um propósito maior como
instrumento no alcance das nações.

CARRIKER, Timóteo. Missão integral: uma teologia bíblica. São


Paulo: Sepal, 1992. p. 48.

Isso serve de alerta para igreja hoje. Como responsáveis pela missão de
Deus não podemos agir como especiais, melhores, únicos abençoados,
detentores — depósitos — da bênção divina, como se fossemos
merecedores dela. A missão que temos é a de sermos mediadores da
bênção de Deus para todas as famílias, e nesse caso, aqueles que são
considerados pagãos. Somos chamados para um serviço inacabado, o
mesmo chamado de Abraão.
68 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
1.2. A missão na tradição mosaica
Se a principal referência dos patriarcas é Abraão, o maior personagem
do Antigo Testamento é Moisés. É em torno dele que se constrói a maior
parte da tradição religiosa de Israel. Não necessariamente em torno
de sua pessoa e história, mais daquilo que representou para a tradição
da Lei ou da Torá. Um exemplo claro disso é a acusação que os judeus
apresentaram contra o apóstolo Paulo: “Ouvindo-o, deram eles glória
a Deus e lhe disseram: Bem vês, irmão, quantas dezenas de milhares
há entre os judeus que creram, e todos são zelosos da lei; e foram
informados a teu respeito que ensinas todos os judeus entre os gentios
a apostatarem de Moisés, dizendo-lhes que não devem circuncidar os
filhos, nem andar segundo os costumes da lei” (At 21:20-21). Repare na
expressão “apostatarem de Moisés” que significa que a figura de Moisés,
ou o seu nome, absorveu tudo aquilo que se referia às leis presentes
nos textos do Antigo Testamento como também os costumes que foram
construídos em torno delas pelos diversos grupos religiosos — fariseus,
escribas, saduceus, etc.
Olhando pela perspectiva missiológica, Moisés também se configura em
um importante elemento na construção da missão do Antigo Testamento.
Veja como Timóteo Carriker analisa a importância de Moisés:
Moisés se destaca como uma figura tão significante para a ideia de
missão no Velho Testamento, que H. H. Rowley o declara o primeiro
missionário que conhecemos (1945). De fato, a ideia de ser enviado
por Deus para uma tarefa de resgate, tão essencial ao conceito
neotestamentário de missão, só se evidencia mais explicitamente
no chamado de Moisés. Iahweh “envia” (’ehyeh shelâhani, Êxodo
3.12,13,14) Moisés. Todavia, a ideia de que Deus chama um homem
para se seu representante, que assume um papel de administração
(Adão), de julgamento e renovação (Noé), ou de maldição e
bênção (Abraão), já precede o chamamento de Moisés. Cada uma
dessas figuras pressupõe, explicita e avança a missão daquele
que o antecedeu. Por isso, nós não consideramos Moisés como o
primeiro missionário e, sim, como uma explicação significante dos
“missionários” protótipos qu o precederam (1992, p. 60-61).

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 69


Moisés é chamado e enviado por Deus para uma tarefa missionária
específica. Na análise de Wright, a redenção promovida por Javé é
bastante abrangente, ela inclui as dimensões política, econômica,
social e espiritual (2014, p. 278-282) da opressão imposta pelo faraó do
Egito — denominada escravidão. Essa faceta da missão de Deus é, às
vezes, ignorada. A narrativa não trata da salvação de pecados, mas de
um situação de opressão de um sistema político, que também inclui o
elemento religioso. De acordo com o texto, o povo descendente de Jacó
e, obviamente, de Abraão, não conhecia a Deus, agora identificado como
Javé (Ex 3:13; 6:2-3). A relação com Javé desse misto de gente que
habitava no Egito (Ex 12:38), chamado de povo de Israel, será estabelecida
por meio de uma aliança que se inicia no Sinai (Ex 19), em renovação da
aliança anterior estabelecida com Abraão. É a retomada da missão de
abençoar as famílias da terra debaixo de uma nova configuração.
De maneira prática, a missão do povo de Israel se torna a de cumprir a Lei,
os mandamentos divinos, que tem por objetivo construir um sociedade
modelo como referência para todas as nações.

Texto de apoio
A lei refletia o caráter salvador compassivo de Iahweh, especialmente
através das suas provisões em relação à exploração econômica (o
uso apropriado da terra), à injustiça social (os direitos dos escravos)
e ao bem-estar dos mais fracos (o estrangeiro, o órfão e a viúva) [...] A
lei também evitava a injustiça social. Não era como nas sociedades
politeístas. Os escravos judeus eram protegidos pela lei (Êxodo 21.2-
27; Levítico 25.25-55). Os mestres hebreus devem lembrar que foram
escravos no Egito e que Iahweh os remiu (Deuteronômio 15.15).
De fato, o escravo deve ser tratado como qualquer outro obreiro
(Levítico 25.39-40) e o ano do jubileu oferecia-lhes a oportunidade
de liberdade (Êxodo 21.3; Deuteronômio 15.12-18) juntamente com
o direito de levar consigo parte da produção da terra. Desta forma
havia sempre ampla possibilidade do escravo se integrar econômica
e socialmente na sociedade geral, livre de dívidas e suprido para as
necessidades fundamentais da vida.
70 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
Finalmente, a lei providenciava o bem-estar dos mais fracos e
vulneráveis da sociedade: os ófãos, as viúvas e os estrangeiros. O
não-israelita que estabelecia residência sob a proteção de Israel,
e não o estrangeiro passageiro, possuía certos direitos, privilégios
e responsabilidades (Deuteronômio 14.29; Salmo 146.9; Êxodo
22.29). O israelita não deve oprimí-lo (Êxodo 22.21,23) e, sim, amá-
lo (Deuteronômio 10.19). Uma das razões pela observação do
sábado era para refrescar o peregrino (Êxodo 23.12). As espigas do
vinhedo e do campo deveriam ficar para ele (Levítico 19.10; 23.22;
Deuteronômio 24.19-21). Ele era incluído na provisão feita para as
cidades de refúgio (Números 35.15). Sendo ele indefeso, Deus seria
a sua defesa e julgaria o seu opressor (Jeremias 7.6; 22.3). Tinha
praticamente o mesmo nível que o israelita (Levítico 24.22), era
contado junto com Israel na participação da aliança (Deuteronômio
29.9,11). E na visão de Ezequiel da era messiânica, participava na
herança de Israel (47.22-23).

As viúvas e os órfãos eram considerados pessoas carentes e


necessitadas, incapazes de se proteger ou suprir suas próprias
necessidades. Assim, mereciam consideração especial e
tratamento justo (Êxodo 22.22-24; Deuteronômio 10.18; 24.17-21;
Malaquias 3.5). Já frequentemente esquecidos, Deus os fez objeto
especial da sua preocupação (Salmos 68.5,6; 146.9; Provérbios
15.25).

Em resumo, a lei refletia o próprio caráter de Iahweh como um


Deus compassivo, misericordioso e libertador. A sua justiça deve
ser o padrão para a comunidade do seu povo, que assume para
si esta característica profundamente redentora como resposta de
compromisso, de gratidão e de obediência à aliança que Iahweh
havia feito com ela.

CARRIKER, Timóteo. Missão integral: uma teologia bíblica. São


Paulo: Sepal, 1992. p. 72-74.

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 71


1.3. A missão na monarquia e no profetismo
O período da monarquia em Israel, que inclui a maioria dos escritos
proféticos, é o mais conturbado do Antigo Testamento, considerando o
conteúdo dos textos produzidos. As muitas disputas e guerras, internas
e externas à comunidade de Israel, servem de oportunidade para a
intervenção profética e aprendizado para o povo de Deus, naquele tempo
e hoje. Isso é o que chamamos de aprendizado pela via negativa, ou
seja, o aprendizado pelos erros. Ao longo das histórias dos reis e reinos
temos mais histórias de erros do que de acerto. Por isso mesmo é que
encontramos a constante intervenção divina, por meio de seus profetas,
para chamar a atenção dos líderes e do povo para o seu pecado.

Michael Goheen faz um comentário interessante sobre o início da


monarquia em Israel:
O livro de Juízes termina com o clamor por um rei (Jz 21.25). No
período tribal, “ameaças tanto internas quanto externas constituíam
imporantes obstáculos para a história bíblica por impedirem Israel
de cumprir a missão para a qual Deus o havia escolhido. A pergunta
que o livro de Juízes nos deixa é se a monarquia poderia por fim
a essas ameaças”. Um rei poderia capacira Israel a a cumprir a
sua vocação missional? Embora o clamor do povo por um rei seja
atendido na hisória de Samuel, inicialmente há pouca esperança de
que um rei suprirá o que Israel necessota para se tornar de fato
bênção para as nações, uma vez que Israel deseja ter um rei como
o têm as outras nações (1Sm 8.5). A razão dada pelos israelitas
denuncia sua apostasia, um abandono de seu chamado missional:
“Queremos um rei sobre nós, para que sejamos como todas as
demais nações, e para que o nosso rei nos julgue, nos lidere e lute
as nossas batalhas” (1Sm 8.19,20, grifo do autor). Eles queiam ser
“como todas as demais nações” — exatamente o que Deus havia
chamado Israel a não ser (2014, p. 77).

Uma grande responsabilidade, então, passa a recair sobre o rei. A figura


de liderança que antes era ocupada por um profeta ou juiz, ou seja, na
72 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
fronteira do âmbito caristmático e religioso, agora passa para o âmbito
político. Com todos os problemas que envolveram a liderança do primeiro
rei, Saul, que não consegue perpetuar a sua descendência no poder, logo
surge a figura de Davi. Davi acaba por reunir o perfil carismático que o
povo estava acostumado em sua história. Ele, rapidamente, como uma de
suas primeiras decisões resolve construir uma casa para Deus ao lado da
sua — um templo ao lado do palácio. Assim, ele cosegue retomar a fé em
Javé, como identidade nacional, que havia caído no esquecimento durante
o tempo dos Juízes. O templo assume um papel primordial na construção
da monarquia, centralizando na capital o poder político e religioso.
Em torno de Davi, então, surge a imagem de um herói que haveria de
liderar o povo ao status de uma grande nação, podendo, assim, ser um
exemplo para as outras nações. Essa seria, portanto, a retomada da
missão de Israel. A aliança com Abraão é reconfigurada como sendo uma
aliança com Davi e um reino eterno (2Sm 7:8-17). É também em Davi, ou
melhor, de um descendente seu, que se constrói a principal referência da
esperança messiânica no Antigo Testamento (Is 55:3-5).

Todo esse projeto, no entanto, sofre percalços ao longo do período


monárquico. A liderança, e o povo em geral, não consegue levar adiante
a sua missão. O principal pecado cometido durante esse período é o
abandono de Javé. De modo mais específico, o não cumprimento das
suas leis, seus mandamentos e sua vontade, em suma, da sua missão —
missio Dei. É nesse ambiente que entra em cena a representativa figura
do profeta de Javé, aquele que é a sua voz direta aos líders e ao povo. O
profeta cumpre o papel de denunciar, chamar à responsabilidade, apelar
para o arrependimento e conversão, e anunciar o iminente castigo, que é
a consequência da desobediência e permanência no erro. Dessa forma,
poderíamos pensar no profeta como o guardião da missão.

Basta ler os vários livros dos profetas para perceber o tipo de mensagem
que eles trazem para o povo de Deus. Talvez o tema mais comum,
que tem associação com o princípio da Lei, seja o da justiça, e, por
consequência, do juízo, do tornar-se justo ou justificado. Apenas como

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 73


um exemplo representativo dessa função tão importante para o tema
missão, conforme entendida nesse período, cito o profeta Isaías:

Visão que Isaías, filho de Amoz, teve a respeito de Judá e


Jerusalém, nos dias de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias, reis de
Judá. Escutem, ó céus, e ouça, ó terra, porque o SENHOR é
quem fala: “Criei filhos e os fiz crescer, mas eles se revoltaram
contra mim” [...] Ai desta nação pecadora, deste povo carregado
de iniquidade! São descendência de malfeitores, filhos que
praticam o mal. Rejeitaram o SENHOR, desprezaram o Santo
de Israel, voltaram para trás [...] “Quando vocês estendem as
mãos, eu fecho os meus olhos; sim, quando multiplicam as
suas orações, não as ouço, porque as mãos de vocês estão
cheias de sangue. Lavem-se e purifiquem-se! Tirem da minha
presença a maldade dos seus atos; parem de fazer o mal!
Aprendam a fazer o bem; busquem a justiça, repreendam o
opressor; garantam o direito dos órfãos, defendam a causa
das viúvas.” O SENHOR diz: “Venham, pois, e vamos discutir
a questão. Ainda que os pecados de vocês sejam como o
escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que
sejam vermelhos como o carmesim, eles se tornarão como
a lã. Se estiverem dispostos e me ouvirem, vocês comerão
o melhor desta terra. Mas, se recusarem e forem rebeldes,
vocês serão devorados pela espada; porque a boca do
SENHOR o disse.” (Isaías 1:1-20)

1.4. A missão no exílio, pós-exílio e no profetismo posterior


O exílio do povo de Israel na Babilônia é considerado um castigo por sua
desobediência a Javé (Jr 25:8-9). Como comentado no tópico anterior,
mesmo diante dos alertas e apelos proféticos para que houvesse
arrependimento, a insistência no erro é tida como a causa da conquista
da nação de Israel por Nabucodonosor. Os fatos mais graves resultantes
dessa guerra de conquista foram a destruição da terra e o cativeiro de
parte da população na Babilônia.

74 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


Exercício de aplicação - 12
Se considerarmos que a missão na tradição mosaica inclui as
dimensões política, econômica, social e espiritual e o exílio é
entendido como um castigo ao povo que estava descumprindo a
missão dada através da Lei, logo concluídos que essas dimensões
estavam sendo preteridas.
O que você sugere, como práxis missional, para que na sua
comunidade todas essas dimensões (política, econômica, social e
espiritual) sejam atendidas de igual forma?
Acesse o AVA para fazer os exercícios e ver a reação do professor!

Se pensarmos que essa conquista resultou na destruição da cidade de


Jerusalém e do Templo, isso poderia indicar o fim da missão de Israel.
Lembre-se que caracterizamos a missão no Antigo Testamento como
centrípeta, que tinha como principal objetivo atrair os outros povos à
Israel, mais especificamente à Jerusalém e para o reconhecimento e
adoração a Javé no seu templo. Logo, a destruição do centro imaginário
da missão de Israel poderia significar o seu fim.

Mas não é isso o que vemos. O período do exílio e do pós-exílio configura


uma transição do modelo de missão centrípeta para centrífuga. Mesmo
que esse período tenha durado em torno de 400 anos, com a experiência
do que se chamou de silêncio profético, após Israel cair sob o domínio
de várias nações, sem jamais se reerguer plenamente, é sob o império
romano que Jesus surge no cenário dando novo impulso para a missão.

Contudo, antes de entrarmos na missão no Novo Testamento, vale a pena


observarmos alguns importantes conteúdos missiológicos que surgem
no período do exílio e pós-exílio. Se ollharmos para a situação desde
uma perspectiva ligeiramente diferente, podemos concluir que o povo
exilado funcionou como um povo missionário na Babilônia. Por um lado,
o povo foi levado pelos babilônicos, por outro, ele foi enviado por Javé.
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 75
O objetivo permaneceu o mesmo: servir de testemunhas do Deus Javé,
criador e sustentador da vida, que quer abençoar as todas as nações na
demonstração prática de uma comunidade modelo que cumpre a sua Lei
e, assim, promove a justiça sobre a terra.

Durante o tempo do exílio vemos a crise que havia se instaurado na mente


do povo sendo, mais uma vez, necessária a intervenção profética. Jeremias
vai chamar a atenção do povo para a importância da sua participação na
sociedade babilônica como parte dessa missão que prevê a demonstração
e influência do relacionamento que tinham com Javé:
Assim diz o SENHOR dos Exércitos, o Deus de Israel, a todos os
exilados que eu deportei de Jerusalém para a Babilônia: “Construam
casas e morem nelas; plantem pomares e comam o seu fruto.
Casem e tenham filhos e filhas; escolham esposas para os filhos de
vocês e deem as suas filhas em casamento, para que tenham filhos
e filhas. Aumentem em número e não diminuam aí na Babilônia!
Procurem a paz da cidade para onde eu os deportei e orem por ela
ao SENHOR; porque na sua paz vocês terão paz. Porque assim diz
o SENHOR dos Exércitos, o Deus de Israel: Não se deixem enganar
pelos profetas e adivinhos que vivem no meio de vocês. Não deem
ouvidos aos sonhadores, que sempre sonham segundo o desejo de
vocês. 9 Porque eles profetizam falsamente em meu nome; eu não
os enviei”, diz o SENHOR (Jr 29:4-9)

Javé nesse período é descrito pelos profetas como o Deus de toda a criação
e de todas as nações. A expectativa do seu ungido, ou messias, também
ganha esses contornos. A razão para isso foi porque o povo de Israel havia
desenvolvido um sentimento de favoritismo e exclusivismo com relação
às bênçãos de Javé. Mesmo depois do retorno do exílio, os judeus não
aprenderam a lição e continuaram com essa pespectiva reduzida da
missão. Basta vermos o resultado do judaísmo no tempo de Jesus.

Uma breve conclusão que podemos tirar nesse processo de construção


da Teologia Bíblica da Missão, começando no Antigo Testamento, é que
a intenção missional de Deus é constante, afinal o seu amor e fidelidade
76 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
não mudam. Embora seus instrumentos missionários na história, mais
especificamente o povo de Israel, falhe, de modo geral, em permanecer
constante em seu engajamento com a missão, sempre vemos aqueles
que permanecem fiéis e conseguem dar continuidade a esse processo. É
por essa razão que hoje somos os herdeiros da missio Dei.

2. A missão no Novo Testamento


O evento mais importante que caracteriza a passagem daquilo que
chamamos de Antiga e Nova Aliança ou Antigo e Novo Testamento é a
pessoa de Jesus. O nascimento de Jesus, ou melhor, a encarnação de
Deus é o marco dessa nova maneira de enxergarmos a Deus e sua missão.

É muito comum ouvirmos dizer que devemos modelar a missão da igreja,


e também a nossa, na pessoa de Jesus. E de fato Jesus é o principal
paradigma da missão. Mas, o que exatamente significa assumir o fato de
que precisamos modelar nossa prática missional na pessoa de Jesus?
O apóstolo João disse que “Aquele que diz que está nele também deve
andar como ele andou” (1Jo 2:6). Essa parte do nosso estudo procura
responder a essa pergunta.

A principal base encarnacional da missão da igreja não é um conceito


filosófico. Também não é um princípio teológico abstrato. Isso, sem
esquecer que é o Jesus Nazareno, este que o apóstolo Pedro chama de
“a pedra principal da esquina, eleita e preciosa” (1 Pe 2:6).

David Bosch, falando dessa singularidade de nossa fundação para a


missão, diz: “[...] não podemos refletir de maneira íntegra sobre o que a
missão poderia significar hoje em dia a menos que nos voltemos para
o Jesus do Novo Testamento, já que a nossa missão está amarrada à
pessoa e ao ministéro de Jesus” (2002, p.41). Jesus é o modelo insuperável
da missão, que é libertadora e integral. Libertadora quanto ao seu
propósito que é a liberdade de toda opressão (Jo 8:32). Integral quanto
ao seu alcance pois que cobre todas as dimensões do ser humano e
criação em geral.
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 77
2.1. A missão na perspectiva de Jesus
Um dos textos mais significativos para entendermos a missão a partir da
perspectiva de Jesus é aquele que foi registrado por Lucas:

Então, pela virtude do Espírito, voltou Jesus para a Galileia, e a sua


fama correu por todas as terras em derredor. E ensinava nas suas
sinagogas e por todos era louvado. E, chegando a Nazaré, onde
fora criado, entrou num dia de sábado, segundo o seu costume, na
sinagoga e levantou-se para ler. E foi-lhe dado o livro do profeta
Isaías; e, quando abriu o livro, achou o lugar em que estava escrito. O
Espírito do Senhor é sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar
os pobres, enviou-me a curar os quebrantados do coração, a
apregoar liberdade aos cativos, a dar vista aos cegos, a pôr em
liberdade os oprimidos, a anunciar o ano aceitável do Senhor. E,
cerrando o livro e tornando a dá-lo ao ministro, assentou-se; e os
olhos de todos na sinagoga estavam fitos nele. Então, começou
a dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta Escritura em vossos ouvidos. E
todos lhe davam testemunho, e se maravilhavam das palavras de
graça que saíam da sua boca, e diziam: Não é este o filho de José? E
ele lhes disse: Sem dúvida, me direis este provérbio: Médico, cura-te
a ti mesmo; faze também aqui na tua pátria tudo o que ouvimos ter
sido feito em Cafarnaum. E disse: Em verdade vos digo que nenhum
profeta é bem recebido na sua pátria. Em verdade vos digo que
muitas viúvas existiam em Israel nos dias de Elias, quando o céu
se cerrou por três anos e seis meses, de sorte que em toda a terra
houve grande fome; e a nenhuma delas foi enviado Elias, senão a
Sarepta de Sidom, a uma mulher viúva. E muitos leprosos havia em
Israel no tempo do profeta Eliseu, e nenhum deles foi purificado,
senão Naamã, o siro. E todos, na sinagoga, ouvindo essas coisas,
se encheram de ira. E, levantando-se, o expulsaram da cidade e
o levaram até ao cume do monte em que a cidade deles estava
edificada, para dali o precipitarem. Ele, porém, passando pelo meio
deles, retirou-se (Lc 4:16-30)

78 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


Acesse o AVA e assista o vídeo: Jesus na Sinagoga de Nazaré
- Meno Kalisher (56m18s)

https://www.youtube. com/watch?v=P_YQQOJbSYg

O evangelista Lucas apresenta de maneira longa o início do ministério


público de Jesus e, particularmente, seu ministério na Galileia, dedicando
quase seis dos 24 capítulos do livro. Essa seção começa em 4:14, onde
diz que “Jesus voltou para a Galileia no poder do Espírito”, e vai até 9:50,
quando ele deixa a Galileia para ir a Jerusalém — “manifestou o firme
propósito de ir a Jerusalém” (9:51). Esta região é a terra de Jesus e sua
população na época chegou a três milhões. Naquele tempo a Galileia
estava sob o controle dos romanos. Nazaré, que é o lugar exato onde
se encontra Jesus em Lucas 4, é uma cidade com não mais do que 22
mil habitantes. “Em Nazaré da Galileia vivia José com a sua família, o
trabalhador que deve ter pertencido à classe dos trabalhadores por conta
própria” (Oyin Abogunrin, 2000, p. 1255).

Voltando ao texto de Lucas 4, a apresentação dos fatos segue uma


ordem mais teológica do que cronológica. O mais seguro é pensar que
passagem resume três incidentes separados na vida de Jesus: (1) a
reunião na sinagoga (4:16-22); (2) a admiração do povo (4:23-24); e (3)
a menção de Elias e Eliseu, com a consequente raiva e rejeição de seu
auditório de compatriotas (4:25-30). O evangelista se propõe a demonstrar
a universalidade da mensagem, ou seja, para todas as pessoas sem
exclusão, de Jesus e o caminho da missão que o Pai lhe havia dado.
Lucas, não sem intenção, destaca o comportamento contraditório dos
fiéis que, depois de haverem admirado Jesus (4:22), quiseram mata-lo
naquela hora: “para dali [cume do monte] o precipitarem” (4:29).

A intenção teológica de Lucas é clara e precisa para o nosso interesse

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 79


de descobrir algumas características do modelo missionário de Jesus.
Darío López, um teólogo pentecostal peruano diz:

A perspectiva teológica de Lucas é clara: A partir do mundo dos


pobres tece uma visão integral da missão cujo horizonte aponta
para uma transformação de todas as coisas, se articula um
discipulado radical marcado por uma fé inabalável em o Deus da
vida, a afirmação do valor da vida humana inegociável como um
dom de Deus, se constitui a paz e se afirma a dignidade de todos
os seres humanos como criação de Deus. E conclui que dessa
maneira, se amplia o horizonte missionário abrindo-se às novas
situações e alarga o alcance da missão libertadora do carpinteiro
de Nazaré (2004, p. 50).

2.2. Âmbito multifacetado e orientado à libertação


Nos parágrafos seguintes trataremos da amplitude dessa missão de
Jesus e de seu enfoque libertador A primeira coisa que observamos
ao ler o relato de Lucas é que para Jesus a missão tem um alcance
multifacetado, ou seja, apresenta vários aspetos, orientado por um único
objetivo: libertar de toda opressão. Os pobres, os presos, os cegos e os
oprimidos são os quatro grupos específicos mencionados, juntamente
com um grupo geral a quem é proclamado o “ano aceitável do Senhor”.

Nestes dois versos, 19 e 20, encontramos o centro do texto. A variedade


das necessidades e a diversidade dos grupos indicam desde já que a
missão redentora não seria reduzida a abstrações da alma humana —
sua missão teria concretude histórica e nada do humano ficaria fora do
seu interesse. Para Jesus, o ano aceitável do Senhor “consiste em pregar
a boa nova aos pobres, o que se traduz em ações concretas, que envolve
os planos sociais, políticos, econômicos e religiosos. Essas ações têm
como fim o reestabelecimento de uma condição perdida ou oprimida. O
ministério público de Jesus dará conta constantemente do cumprimento
desta missão” (Mansilla, 1999, p. 141).

80 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


Vejamos os destinatários da missão de Jesus, as ações a eles
relacionadas e quais dádivas receberiam:

Este é o modelo missionário que aprendemos de Jesus: multifacetado,


pluridimensional e inclusivo. Os ouvintes da sinagoga de Nazaré souberam
desde o início. Toda a região da Galileia foi testemunha do alcance
multifacetado do ministério de Jesus: ensinou com autoridade (Lc 4:31-
32), libertou dos demônios (4:33-37), curou os enfermos (4:38-41), pregou
as boas novas do reino de Deus (4:42-44), pastoreou seus discípulos em
meio a muitas dificuldades (5:1-11), acercou-se dos enfermos indesejáveis
de seu tempo e os tocou com amor (5:12-16), se fez amigo dos cobradores
de impostos (5:27-32), debateu com seus opositores teológicos (5:33-39),
infringiu as tradições religiosas e defendeu a dignidade do ser humano
(6:1-11), desenvolveu uma liderança compartilhada junto a doze homens
comuns (6:12-16), optou pelos desvalidos do mundo (5:20-22), falou com
valor profético contra os poderosos de sua época (6:23-29), argumentou
contra o legalismo hipócrita (6:37-42), enfim, foi mestre, pastor, profeta e
redentor de todos e tudo.

Exercício de aplicação - 13

Escreva com suas palavras como a missão de Deus no Antigo


Testamento atinge sua máxima concretude em Jesus.

Acesse o AVA para fazer os exercícios e ver a reação do professor!

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 81


2.3. Paixão pelo reino

O que motivou e animou a Jesus para servir desta maneira? Jesus foi
movido por uma grande paixão chamada o Reino. O texto de Lucas 4:43
relaciona a proposta da sinagoga de Nazaré com a proclamação do reino
de Deus, e diz de maneira conclusiva que “para isto fui enviado”. Jesus
tinha, pois, muitas tarefas para cumprir, porém só um objetivo a alcançar:
o Reino de Deus e sua justiça (Mt 6:33).

O reino de Deus é o governo soberano de Deus sobre a criação. Deus se


propõe abarcar a totalidade da vida humana e a totalidade da criação
porque ele é Rei e Senhor de tudo. Por isso, também, quer restaurar as
diferentes relações entre Deus e os seres humanos, e a comunidade
e a criação, por meio da instauração da Shalom que é “a plenitude e a
abundância da vida em suas expressões físicas, emocionais, espirituais,
políticas e sociais” (Padilla e Yamamori, 2001, p. 267-268).

O Pai que o enviou é criador e dono de tudo; por isso o enviou para redimir
tudo. Nisto está pensando o apóstolo Paulo quando ensina que Cristo foi
enviado para que “reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que
estão na terra quanto as que estão no céu” (Cl 1:20), e para que Cristo
seja, finalmente, “tudo e está em todos” (Cl 3:11).

Por isso a integralidade da missão só se pode compreender desde a


perspectiva teológica do senhorio de Deus sobre toda a vida e para toda
a Criação. Não é possível reduzir o domínio de Deus a alma humana e
sua preocupação ao que acontece ao interior da Igreja. Se Deus é dono
de toda a vida e senhor de tudo o que foi criado, a Igreja deve orientar sua
missão nessa mesma dimensão holística. É razão teológica antes que
metodológica ou programática; é assunto de senhorio e não de mercado
eclesiástico como às vezes se quer apresentar quando se diz que deve
ser integral “para ampliar o cardápio de ofertas religiosas” e satisfazer a
clientela-membresia.

82 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


2.4. Cenário diversificado, dirigido pelo Espírito
Regressando ao texto de Lucas, agreguemos que, além do alcance
multifacetado e libertador do modelo missionário de Jesus, também
se distingue um cenário diverso. Multifacetado tem a ver com as áreas
da missão — pobreza, catividade, cegueira e opressão, para usar as
mencionadas na sinagoga —, porém a diversidade se refere aos cenários
humanos: judeus e gentios, homens e mulheres, adultos e crianças,
poderosos e oprimidos, excludentes e excluídos. A primeira característica
aponta para o conteúdo, a segunda para o contingente. Vamos visualizar
isso nesse gráfico:

O texto do Evangelho nos chama a atenção por sua diversidade. Lucas


centra agora sua atenção na universalidade da missão de Jesus. Depois
do sucedido na sinagoga e da admiração das pessoas pelas “palavras
de graça que lhe saiam dos lábios”, segue um incidente, talvez, como já
se notou, ocorrido em outro momento: Jesus cita Elias e Eliseu, e isto
desata a fúria e a rejeição (4:25-30). Porém, o que aconteceu? Por que
depois dos aplausos eles queriam mata-lo? O que foi que Jesus falou?
É quase seguro que entre a admiração da sinagoga e a reação adversa
haja passado algum tempo e que as pessoas haviam tido noticias acerca
da fama de Jesus e dos milagres realizados em diferentes lugares. Então
se perguntam: “Não é este o filho de José?”. Os milagres inquietaram a
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 83
população nazarena e despertaram a curiosidade por quererem saber se
também em seu povo se fariam tais proezas. Ciúmes? Talvez.

O povo, então, faz um pedido a Jesus: “Faze aqui em tua terra o que
ouvimos que fizeste em Cafarnaum. Continuou ele: Digo-lhes a verdade:
Nenhum profeta é aceito em sua terra” (4:23-24). Porém os adverte que
“o profeta realiza em nome de Deus os prodígios, mas é, portanto, sujeito
às exigências dos homens” (De Tuya, 1977, p. 83).

Tal foi o caso de Elias (1Rs 17:18-24) e de Eliseu (2Rs 5:1-16). Estes
profetas do Antigo Testamento realizaram seus milagres fora das
fronteiras de Israel. Elias, para remediar uma fome devastadora foi à casa
de uma viúva em Sarepta, na região de Sidom. Eliseu curou de lepra a
Naamã, um sírio, ainda que no mesmo tempo houvesse muitos leprosos
em Israel. Esta referência histórica da missão fora das fronteiras de Israel
desatou as reações conhecidas. Além disso, naquele sábado quando leu
o texto do profeta Isaías, Jesus suprimiu a segunda parte de um dos
versículos que diz “o dia da vingança do nosso Deus” (Is 61:2), com sua
óbvia conotação de castigo dos pagãos. Quando Jesus se apresentou
como o libertador de todas as opressões, seus compatriotas o aprovaram,
porém quando o mesmo redentor declarou que sua missão era universal,
arremeteram contra ele. Ao que parece sua universalidade causou tantos
problemas como seu messianismo.

William Barclay, um teólogo escocês e professor da Universidade de


Glasgow, afirmou (1994, p. 69):

O que enfureceu foi o elogio que Jesus pareceu dedicar aos gentios.
Os judeus estavam tão convencidos de que eram o povo escolhido
de Deus que depreciavam a todos os demais. Alguns inclusive
diziam que “Deus havia criado os gentios para usar-lhes como
lenha no inferno”. E aqui estava este jovem Jesus, a quem todos
conheciam, pregando como se os gentios fossem os favoritos de
Deus. Começava a ameaça-los a ideia de que haviam coisas na
nova mensagem que nem se lhes havia ocorrido falar (1994, p. 69).

84 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


Exercício de Fixação - 14
Reflita na leitura e assinale a alternativa de qual parece ser o
principal obstáculo para o cumprimento da missão de Deus?
a) Falta de pessoas envolvidas
b) Ambiente inadequado
c) Sentimento de exclusivismo e egoísmo
Acesse o AVA para fazer o exercício e veja a reação!

2.5. Libertação sem distinção


Os habitantes da Galiléia, nos informa Lucas, também testemunharam
como Jesus assumiu sua missão universal indo ao encontro de todos os:
compatriotas (4:16-30); endemoninhados (4:31-37); leprosos (4:12-16);
paralíticos (4:17-26); publicanos (4:27-32); pessoas do exército romano
(7:1-10); viúvas (7:11-17); discípulos de outros mestres (7:18-35); fariseus
(7:36-50); mulheres (8:1-3); entre outros.

Para todos houve um toque de cura, ou uma palavra renovadora, um ensino


estimulante, uma vida restaurada. Com razão de sobra exclamaram: “Hoje
temos visto maravilhas” (4:26). A compreensão integral e libertadora da
missão da Igreja tem um claro sentido universal, assim como um convite
urgente para que a comunidade de fé saia das fronteiras do seu abrigo
eclesial e vá à busca dos “leprosos da Síria e das viúvas de Sarepta”.

Os destinatários da missão transpassam todas as fronteiras, quer sejam


geográficas, culturais, raciais, sexuais, religiosas ou ideológicas, entre
outras. Isso desagradou a Jonas, enfureceu os nazarenos, transtornou
a comunidade cristã de Jerusalém (At 11:1-18) e ainda inquieta a igreja
do século 21 que resiste em abraçar sem medo e entregar-se aos outros
com o amor do Filho. Prova disso é a dificuldade que mostra a Igreja para
se aproximar de outros potenciais parceiros de missão. É necessário
aqui a colaboração fraterna – para evitar a expressão corporativa de
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 85
“aliança estratégica” –, com organizações da sociedade civil para trabalhar,
por exemplo, na defesa dos direitos humanos ou instituições públicas,
cuidando para não cair nas armadilhas da politicagem local. Os projetos
podem ser de assistência social ou de desenvolvimento local, entre muitos
outros, ou com redes intereclesiásticas ou intereligiosas para servir juntos
na construção de uma cultura de paz, ou em programas para crianças, ou
em resposta a situações de emergência nacional – prevenção, mitigação
e resposta. Aqui estão alguns exemplos que devemos reconhecer a
necessidade de agir de forma responsável para as muitas necessidades
do nosso mundo e sermos agentes eficazes do reino de Deus.

2.6. Universalidade e particularidade


De nenhuma maneira esta abertura universal diminui a identidade particular.
No cumprimento da missão surge uma tensão dialética entre o geral e o
concreto, entre o global e o regional, entre inclusivo e exclusivo, entre
o universal e o particular. Estes não são extremos antagônicos, mas sim
valores complementares entre si e, ainda mais, eles precisam um do outro.
Este é o caso de uma comunidade de fé que pratica a dimensão ecumênica
da Igreja, mas não por isso perde a sua identidade religiosa-confessional
ou denominacional. Ambas são necessárias para a missão. Sem um, o
outro é fraco. O modelo de Jesus ilustra com precisão essa tensão. Ele
empreendeu as ações do Reino com alcance universal (Mt 28:19; At 1:8),
mas sem deixar suas raízes de nazareno. Ele era um membro da comunidade
particular, identificado como o filho de uma das famílias vizinhas, que ia à
sinagoga “como era seu costume” (Lc 4:16), e que conhecia com destreza
de provinciano os ditos populares: “Médico, cura a ti mesmo” (Lc 4:23). O
universal, em vez de minar o particular, o reafirmava.

Não é possível a missão integral sem essa tensão dinâmica. Hoje, a fúria
da globalização neoliberal tenta roubar identidades particulares tais como
costumes, linguagem, folclore e tradições, com a finalidade de padronizar
os mercados. Por sua parte, os fundamentalismos religiosos, políticos e
ideológicos lutam por reduzir tudo a uma parcela local, com a finalidade
de alimentar os ódios dogmáticos. A igreja, inspirada no modelo de Jesus,
86 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
tem outra alternativa para sua missão: o amor planetário ou universal do
criador em harmonia com o enraizar contextual do Filho. Missão não é
uma tentativa de conquistar os mercados da alma, nem de destruir as
identidades com a desculpa de estabelecer a fé entre os pagãos, nem de
globalizar uma doutrina como se posiciona um produto comercial. Jesus
nos mostra um caminho “mais excelente” (1Co 12:31).

A opção nazarena de Jesus é a chave para entender antigos temas,


ainda que nunca resolvidos, latino-americanos de missiologia como
enculturação, inserção, acomodação, contextualização ou encarnação.
Termos diferentes que apontam para a mesma verdade e testemunha
o esforço para comunicar o que Jesus nos ensinou com sua vida, que
foi inserido em sua comunidade para redimi-la. Já dizia Irineu no século
2 que “o que não é assumido não é redimido”. “O modelo cristão de
inserção é, naturalmente Jesus Cristo” por meio de sua encarnação em
favor da humanidade.

Tanto o alcance multifacetado da missão, que refletimos no primeiro


tópico, como o cenário diverso, ao que nos referimos depois, formam
parte do modelo missionário libertador de Jesus de Nazaré. É uma
libertação de todos, sem reserva alguma, e para todos. Resta acrescentar
que, em Jesus, essa libertação integral está ligada à ação soberana do
Espírito. Sem Espírito não há libertação; sem ele a liberdade é ilusória.

No texto de Lucas, Jesus reconheceu a ação determinante do Espírito


Santo. Ele voltou para a Galileia “no poder do Espírito” (4:14); sua presença
estava sobre ele —“o Espírito do Senhor está sobre mim” (4:18) — e era
quem “o havia ungido”. René Padilla, comentando este texto, observa
que: “a unção do Espírito significa a realização da missão do Messias, o
Ungido de Deus. Para ele, a unção e missão são inseparáveis, e que, além
disso, a missão que resulta dessa unção é um trabalho orientado para as
pessoas mais vulneráveis da sociedade” (2003, p. 129).

Sem o Espírito, a missão não pode ser integral, nem libertadora. Sem o
Espírito, aquele sábado em Nazaré teria sido tudo igual ao que ditava a
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 87
tradição litúrgica na sinagoga daquela província. Teria havido profeta, mas
sem profecia. Sem o Espírito nada teria acontecido na Galiléia. Jürgen
Moltmann diz: “O Espírito faz de Jesus o ‘Reino de Deus em pessoa’: Na
força do Espírito Jesus expulsa os demônios e cura os enfermos. Na
força do Espírito ele acolhe os pecadores e leva aos pobres o Reino de
Deus” (1999, p. 68).

Como falar de uma missiológica integral sem uma pneumatologia


transformadora? Esta relação é ainda uma dívida pendente na teologia
evangélica na América Latina. Se não se desenvolve uma teologia
do Espírito que seja, ao mesmo tempo bíblica, contextual, integral e
libertadora, se corre o risco de reduzir sua ação aos espaços litúrgicos
da sinagoga e manipular sua atividade para satisfazer aos que pedem, na
mesma sinagoga, que se faça em Nazaré sinais como os de Cafarnaum.

E os pobres, os presos, os cegos e os oprimidos? Qual é a boa notícia de


libertação que lhes comunica o Espírito? A pneumatologia integral que
necessitamos não despreza as contribuições do movimento pentecostal
que tem estado presente em nossas terras por pouco mais de um século.
O pentecostalismo oferece uma riqueza espiritual e missionária que
deve ser levada em conta quando se fala sobre o Espírito na América
Latina. Também, por outro lado, outros movimentos latino-americanos
têm percorrido um longo caminho tratando de responder o que significa
o Espírito para a causa dos empobrecidos. Estas duas perspectivas
proporcionam um ponto de partida para a tarefa proposta. Estas duas
tentativas oferecem um ponto de partida para a tarefa proposta.

Exercício de aplicação - 15
Cite exemplos de como sua igreja ou comunidade pode se
envolver com a missão no sentido da libertação, universalidade e
particularidade.
Acesse o AVA para fazer os exercícios e ver a reação do professor!

88 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


Conclusão: simplesmente imitar o Rei
Lucas 4 nos tem servido como ponto seguro de referência para pensar o
modelo de missão integral de Jesus. Quanto ao alcance de sua missão
foi dito que é multifacetado e orientado pelo objetivo de libertar tudo o
que oprime e escraviza o ser humano. Quanto ao cenário de sua missão
afirmamos que ele foi diverso e focado na direção do Espírito, que foi
quem ungiu Jesus. Este modelo de Jesus fornece as bases da nossa
missão. Também nisto, “aquele que afirma que permanece nele, deve
andar como ele andou” (1Jo 2:6).

Falar de missão integral libertadora é apenas um recurso pedagógico


para destacar os diferentes aspectos dessa missão e sublinhar que
está orientada para a vida plena e livre (Jo 8:32, 10:10). A verdade é que
deveríamos falar apenas de missão, e missão sem adjetivos, uma vez
que há apenas uma: a missão de Deus (missio Dei), entendida “como um
movimento de Deus para o mundo” e a Igreja “como um instrumento para
essa missão”, conforme compreendeu o missiólogo David Bosch.

De Jesus aprendemos também que a missão integral libertadora é,


antes de tudo, um fiel e obediente seguimento: “A minha comida é fazer
a vontade daquele que me enviou e concluir a sua obra” (Jo 4:34). É
moldar nossas ações dentro do projeto maior do reino de Deus, para que
o Senhor seja glorificado e seus propósitos se cumpram “assim na terra
como no céu” (Mt 6:10).

Jesus é o Senhor e modelo da missão. Ele disse que da maneira como


o Pai o enviou, do mesmo modo e com o mesmo padrão ou modelo,
ele nos enviou — “Assim como o Pai me enviou, eu os envio” (Jo 20:21).
Nisso consiste a missão, em imitar o Rei. Pedro afirma: “Para isso vocês
foram chamados, pois também Cristo sofreu no lugar de vocês, deixando-
lhes exemplo, para que sigam os seus passos” (1 Pe 2:21). E também o
apóstolo Paulo: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus” (Fp
2:5). Se nós ou a igreja imitamos outra coisa ou alguém que não seja
Cristo, então somos todos idólatras.

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 89


Referências citadas
BARCLAY, William. Comentario del Nuevo Testamento (Vol. 4). Terrassa:
CLIE, 1994.

BOSCH, David J. Missão transformadora: mudanças de paradigma na


teologia da missão. São Leopoldo, Sinodal, 2002.

DE TUYA, Manuel. Biblia comentada. Profesores de Salamanca. (Tomo


Vb). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1977.

GOHEEN, Michael W. A igreja missional na Bíblia: luz para as nações. São


Paulo: Edições Vida Nova, 2014.

LÓPEZ, Dario. La misión liberadora de Jesús. 2.ed. Lima: Puma, 2004.

MANSILLA, Sandra Nancy. Un jubileo en la era de la postmodernidad. In:


Revista RIBLA, # 33. San José: DEI-RECU, 1999. p. 141

MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida: uma pneumatologia integral.


Petrópolis: Vozes, 1999.

OYIN ABOGUNRIN, Samuel. In: Comentario bíblico internacional. Navarra:


Verbo Divino, 2000.

PADILLA, René y YAMAMORI, Tetsunao (Eds.). CLADE IV. Consulta misión


integral y pobreza. Buenos Aires: Kairós, 2001. p. 267-268.

WRIGHT, Christopher J. H. A missão de Deus: desvendando a grande


narrativa da bíblia. São Paulo: Vida nova, 2014.

90 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 91
UNIDADE IV – A PRÁTICA DA MISSÃO
Introdução
Esta última unidade tem por objetivo indicar uma perspectiva mais
prática, que nos impulsione para a ação. De muitos assuntos, temas e
focos que poderia tratar, escolhi os seguintes: igreja missional e o reino
de Deus e sua justiça.

1. Igreja missional
É certo que o crescimento numérico faz parte de uma das dimensões da
missão integral da igreja. O problema é quando ele é ou se torna o todo
da missão. Para evitar essa visão estreita, faz-se necessário refletir e
entender o conceito de igreja missional. É difícil acreditar que uma igreja
não viva para realizar a missão de Deus no mundo por desobediência
consciente. O problema reside no fato que, por incrível que possa parecer,
ainda não entenderam o que significa ser uma igreja missional. Isso
revela a falta de entendimento, compreensão e razão da igreja existir. É
um problema conceitual.

Para auxiliar o que significa a ideia de igreja missional, vou apresentar


algumas sugestões de definições. A primeira definição é de Darrell Guder:
Precisamos entender que missão não é apenas uma atividade da
igreja. Em vez disso, a missão é o resultado da iniciativa de Deus,
enraizada nos propósitos de Deus para restaurar e curar a criação.
“Missão” significa “envio”, e esse tema central da Bíblia descreve a
finalidade da ação de Deus na história humana [...] Nós aprendemos
a falar de Deus como um “Deus missionário”. Assim como o pai me
enviou, também eu vos envio ao mundo” (Jo 20:21) (1998, p. 4).

A segunda definição é do missiólogo David Bosch:


Temos que distinguir entre missão (singular) e missões (plural). O
primeiro refere-se principalmente à missio Dei (missão de Deus),
isto é, a auto-revelação de Deus com Aquele que ama o mundo, o
envolvimento de Deus no e com o mundo, a natureza e atividade

92 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


de Deus, que abrange tanto a Igreja como o mundo, e em que a
igreja tem o privilégio de participar. Missio Dei enuncia a boa notícia
de que Deus é um Deus-para-pessoas. Missões (empreendimentos
missionários da igreja) se referem a formas particulares,
relacionadas com horários específicos, lugares ou necessidades,
de participação na missio Dei (2002, p. 28).

Outra definição é a de Craig van Gelder:


A igreja, como povo de Deus no mundo, é inerentemente uma igreja
missionária. É a participação plena na obra redentora do Filho
enquanto o Espírito cria, guia e ensina a Igreja a viver com pessoas
distintas de Deus. Com esse entendimento, a missão deixa de ser
uma função da igreja para descrever sua natureza essencial [...]
(2000, p. 31).

Ainda outra definição é dada por Lois Barrett, que adiante exploraremos
em mais detalhes:
A igreja missional é uma igreja que é moldada para participar na
missão de Deus, que se organiza para restaurar o mundo quebrado
e pecaminoso, para resgatá-lo e redimi-lo para Deus [...] Igrejas
missionais percebem a si mesmas não tanto como enviadoras, como
sendo [ela mesma] enviada. Uma congregação missional permite
que a missão de Deus permeie tudo o que ela faz - da adoração ao
testemunho, formando membros para o discipulado. Ela preenche
a lacuna entre o alcance [para fora] e a vida congregacional [para
dentro], já que, em sua vida comunitária, a igreja encarna a missão
de Deus (2004, p. x).

Stephanie Lutz Allen, uma pastora norte-americana, compartilha a sua


experiência em tentar buscar ser uma igreja missional:
Este repensar “como fazer” me levou a explorar o movimento da
igreja missional. Como uma co-pastora, eu tinha trabalhado duro
para revigorar uma velha e tradicional igreja presbiteriana. Focar nas
melhores práticas e novos métodos era insuficiente por si mesmo.

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 93


Quando eu tentei concentrar nas pessoas para reverter nosso
declínio, os membros da igreja pensaram que eu (e outros membros
da equipe) só queríamos uma igreja maior para acariciar nossos
egos. Quando eu tentei adicionar música contemporânea para que
pudéssemos “atrair os jovens”, isso causou raiva nas pessoas que
não podiam entender por que os jovens não gostavam de suas
músicas. Quando eu enfatizei o objetivo de “atrair os jovens”, as
pessoas começaram a perguntar mais sobre por que a igreja existe
e como o evangelho poderia/deveria ser traduzido para a língua
do coração de pessoas que estão fora de nossas paredes, e foi aí
que comecei a ter menos resistência. Agora, como uma consultora,
quando eu dialogo com líderes da igreja ,vejo a necessidade de
não se concentrar em métodos e funções da igreja como ponto
de partida, mas no chamado bíblico para ser uma igreja, e onde se
encaixa dentro de nossa história comum (s/d, p.4)

Sua experiência é vista como um tipo de conversão em que devemos nos


perguntar se o nosso foco são os programas e atividades da igreja ou
se temos uma perspectiva mais profunda relacionada aos propósitos de
Deus para o mundo. Essa crucial pergunta deve nos conduzir a entender
o conceito de igreja missional.

Exercício de Fixação - 16
Qual a diferença entre missão e missões:
Missão e missões são a mesma coisa, as missões servem para
explicar a missão.
a) Missão significa a Missio Dei, ou seja, a missão de Deus
como um todo. E missões são as ações particulares que as
comunidades fazem num determinado tempo e lugar.
b) Missão é ir aos povos não alcançados pregar o Evangelho de
Cristo, como ordenado pela grande comissão.
Acesse o AVA para fazer os exercícios e ver a reação do professor!

94 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


1.1. Aprofundando o conceito de igreja missional
Uma igreja missional é definida como uma busca constante de estar
envolvida com a missão de Deus no mundo. O povo de Deus é sempre visto
como o povo enviado em missão. E, nos modelos tradicionais de grandes
corporações, os enviados são os missionários pagos, por vezes chamados
de profissionais. Na igreja missional, todos se percebem como participantes
neste chamado. A missão é de Deus. A igreja é criada para ser um sinal e
instrumento de Deus em favor do mundo. Essa atividade de Deus no mundo
diz respeito tanto à restauração das pessoas com ele, como das pessoas
com outras pessoas e ainda das pessoas com toda a criação.

No modelo tradicional de igreja, ela envia missionários enquanto no


modelo da igreja missional ela mesma é enviada. Não se pensa tanto em
destino, mas em uma jornada. Utilizando a definição dada por Lois Barret,
citada acima, tentemos elaborar um pouco mais esse conceito em três
aspectos importantes:

1.1.1. Deus como sujeito da ação


Barret afirma que a “igreja missional é uma igreja que é moldada para
participar na missão de Deus, que se organiza para restaurar o mundo
quebrado e pecaminoso, para resgatá-lo e redimi-lo para Deus” (2004,
p. x). Assim, o sujeito da missão não é a igreja, mas Deus. E Deus tem
uma missão, na qual a igreja participa e jamais o contrário. A localização
da missão de Deus não é principalmente a igreja, mas o mundo. Deus é
ativo no mundo que ele mesmo criou, redimindo e sustendo-o. A igreja
tem uma vocação para participar da atividade de Deus, em nome de toda
a criação. Isso está em contraste com a igreja como o sujeito ativo da
missão. É a igreja que tem a missão de levar Deus ao mundo? Ou é Deus
que já atua no mundo e na vida individual das pessoas? Deus já está
atuando no mundo, e somos convidados para nos unir a ele naquilo que
ele já está fazendo. Deus está sempre atuando, não apenas no mundo,
mas na vida das pessoas de modo individual. Deus se preocupa com a
vida humana em toda a sua complexidade. Por exemplo, quando uma
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 95
criança está se esforçando para aprender a ler, porque ela tem dislexia,
Deus se preocupa com o seu aprendizado para que ela possa ter vida
em plenitude. Deus está com ela em sua luta. Se você fosse o tutor
desta criança com dislexia, estaria participando naquilo que Deus estaria
fazendo na vida dela. Se você fosse o tutor dela é porque o amor de Deus
o levou a fazê-lo, e seu trabalho seria uma expressão viva de que Deus
está com essa criança e se preocupa com ela.

Assim, a ideia é de que a missão de Deus é restaurar a totalidade da


criação. A igreja participa como sinal e instrumento dessa missão. Por
outro lado, o conceito, então, não é que a missão da igreja seja levar o
amor de Deus ao mundo. Deus ajuda a igreja a viver a sua missão. Isto
pode soar um tanto ou quanto semântico ou mera troca de palavras, mas
essa distinção é fundamental. Isto significa que o que fazemos dentro das
paredes da igreja não é a totalidade da obra de Deus, mas sim o preparo
do povo de Deus para a obra dele no mundo. É uma questão de mudança
de foco, do institucional, ou de sobrevivência, para olhar a atividade de
Deus, dentro e fora de nossos muros institucionais. Ela muda o nosso
foco não apenas ao perguntar como podemos restaurar as pessoas para
ele através dos ministérios oferecidos nas instalações da igreja, mas
também para o que Deus já está fazendo em nossa comunidade e como
podemos ser parte disso.

Como vimos, uma forma de articular que Deus é o sujeito ativo da


missão é o termo missio Dei. Esta frase em latim aparece muitas vezes
na literatura missional. É traduzido como missão de Deus. Deus criou o
mundo, de modo que toda a criação pudesse experimentar a plenitude
no relacionamento com Ele. O pecado entrou no mundo e, com ele a
corrupção individual e coletiva. Em outras palavras, nós pecamos como
pessoas individuais e quando nos organizamos em grupos e sociedades,
uma sinergia de pecado entra em vigor. O Deus-Pai enviou Jesus ao
mundo para resgatar esse mundo caído. Jesus veio anunciar o reino de
Deus ou o que muitos chamam de o reinado redentivo de Deus.

Como o Pai enviou o Filho, o Filho e o Pai enviam o Espírito ao mundo


e ele impulsiona a igreja, enviando-a ao mundo como participante com
96 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
Deus na redenção de toda a criação. A igreja existe para proclamar e
manifestar o reino de Deus e experimentar em sua própria vida a presença
deste reino, caracterizada pela justiça, amor e misericórdia. Quando nos
preocupamos com o outro, experimentamos, conscientes ou não, uma
antecipação deste reino, em que o amor é a maneira de vivermos juntos.
A vida congregacional interna assume um novo significado quando ela
tem como foco preparar o povo de Deus para participar da atividade de
Deus em favor do mundo.

Esta distinção liberta-nos de ver nossos esforços sendo canalizados para


igreja-edifício, manutenção-institucional e números-resultados. Percebe-se
como movimento e não monumento. Não fica apaixonada pela numerolatria,
em ficar contando quantas pessoas estão no edifício ou assistem aos
programas. Antes, a preocupação é se as pessoas estão sendo equipadas,
formadas, e guiadas para participar da e na missão de Deus no mundo. Tal
enfoque reconhece que a igreja aponta para o reino de Deus. Assim, ela não
é o fim último, mas um meio para o fim, que é o reino e a glória de Deus.
Em outras palavras, não estamos construindo a igreja como instituição, mas
vivendo como um sinal transformador do reino de Deus.

Igrejas grandes e pequenas podem ser missionais. Não há um único modelo


de ser igreja. Cada igreja vai procurar estar nessa jornada rumo a um
ministério missional dentro de seu contexto, no lugar que Deus a colocou.

Exercício de reflexão - 17

Ao olhar para sua vida missionária e para a de sua comunidade,


você percebe que são participantes da missão de Deus ou que têm
tentado fazer Deus ser participante da missão de vocês?

Acesse o AVA, faça o exercício e veja a reação!

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 97


1.1.2. Repensando a história
O segundo aspecto ressaltado por Barret é que “igrejas missionais
percebem a si mesmas não tanto como enviadoras, como sendo [ela
mesma] enviada” (2004, p. x). Esta definição também aponta para um
afastamento da igreja como uma agência que predominantemente
envia missionários para outras partes do mundo; e os que ficam, oram
e financiam estes. O movimento missional procura repensar o desafio
de que toda a igreja é enviada, e não uns poucos. É certo que existe a
necessidade de preparar pessoas para as missões transculturais e isso
jamais deverá deixar de ser realizado. A questão é que na história da
igreja é isso que se tem compreendido como a totalidade da missão.
Ou seja, que as missões, no plural, é a missão da igreja. Missões
transculturais são uma das atividades da igreja missional e não a única
atividade. A igreja missional vive para a missão e as missões são uma
das suas dimensões. Outras dimensões são o ensino, o serviço, a
comunhão e a adoração.

Quando o Império Romano declarou o cristianismo como sendo sua


religião oficial no quarto século, a igreja passou primariamente a ser um
movimento missionário institucional-estatal, estabelecida e protegida
pelo estado. Essa constantinização da igreja, contando com a proteção
e prestígio do Estado, ficou conhecida como cristandade. Ou seja, uma
adesão cultural. Daí surge o nominalismo que é a identificação do cristão
em função de uma tradição ou denominação. Assim, em vez de discípulos,
os cristãos são reconhecidos por sererm membros de igreja. Via de regra,
essa membresia constrói um corpo estático que perde seu caráter de
peregrino. O dinamismo missional — “e sereis minhas testemunhas tanto
em” (At 1:8) – é sufocado pelo clericalismo e institucionalismo. Conclusão,
a igreja passa a ser um lugar, um prédio, onde as pessoas vão e não o que
elas são. Contudo, nós não vamos à igreja, nós somos a igreja.

Essa situação exige uma resposta de luto que aceita a desestabilização


desse status por amor a Deus, seu reino e sua missão. Quem não existe
para a missão existirá para a manutenção. Faz-se necessário abraçar
98 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
essa mudança, caso contrário, esse sal da terra que somos, não “servirá
para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens” (Mt 5:13).
O caminho de Jesus nunca foi o de manutenção do status quo, antes
conduziu seu ministério a partir das margens, isto é, da Galileia, em vez
de um lugar de poder privilegiado, ou seja, de Jerusalém.

1.1.3. Missão como a natureza essencial da Igreja


Barret fala sobre a necessidade da igreja ser moldada para participar
na missão de Deus: “Uma congregação missional permite que a missão
de Deus permeie tudo o que ela faz – da adoração ao testemunho – ,
formando membros para o discipulado. Ela preenche a lacuna entre o
alcance [para fora] e a vida congregacional [para dentro], já que, em sua
vida comunitária, a igreja encarna a missão de Deus” (2004, p. x). Missão
não é uma função da igreja, mas seu propósito de existir. Missão como
apenas uma função pode ser vista na maneira como muitas igrejas têm
um departamento de missão, que normalmente supervisiona o dinheiro e
o trabalho dos missionários enviado para terras estrangeiras. Missão não
se trata de departamento, mas de sua essência e a igreja não existe para
outra finalidade. Ela é povo missional de Deus onde todos são preparados
e equipados para participar na missão de Deus no mundo.

Culto, governo e a formação espiritual de adultos e crianças tomam um


novo significado. Estes aspectos da vida comunitária da igreja nunca
deixarão de existir e, na verdade, se tornam ainda mais importantes. Nós
nos reunimos em classes e pequenos grupos para desenvolver a nossa
própria fé, adorar e culturar a Deus, discernir a nossa vocação, e planejar
juntos como vamos viver nosso chamado em nossa comunidade e em
nossas esferas de influência. O governo da igreja está principalmente
perguntando como a congregação pode viver o seu propósito no
ritmo da comunhão e do envio. Isso altera as conversas que temos ao
redor das reuniões. Em vez de apenas perguntarmos se o orçamento
está equilibrado, passamos a perguntar se o orçamento reflete nosso
propósito como uma igreja missional.
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 99
A igreja missional é aquela que vive como um sinal da presença de Deus
no mundo através de todas as suas atividades internas e externas. As
atividades e práticas internas, tais como adoração, estudo da Bíblia,
ministérios com as crianças e jovens, o cuidado um do outro, assumem
um significado mais profundo. O foco dessas atividades internas está
em ajudar as pessoas a desenvolverem sua fé e identificarem sua
vocação ou dom para o serviço. Um serviço que é vivido em ministérios
nas instalações da igreja e mais além.

Na igreja missional, o papel dos pastores é “preparar os santos para


a obra do ministério” (Ef 4:12). Trata-se do ministério comum a todos:
“Tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por
meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação” (2Co 5:18).
Todo discípulo tem esse ministério, da reconciliação das pessoas com
Deus, com elas mesmas, com o outro e com a criação. Quem prepara os
santos para essa obra são os pastores e mestres. É claro que você, como
discípulo maduro de Jesus, pode e deve buscar essa preparação, mas os
pastores e mestres não podem se esquecer dessa tarefa, porque “todo o
corpo, ajustado e unido pelo auxílio de todas as juntas, cresce e edifica-
se a si mesmo em amor, na medida em que cada parte realiza a sua
função” (Ef 4:16). A tarefa prioritária de um pastor é mobilizar, capacitar e
supervisionar o povo de Deus para que seja um povo missional.

Para isso, é fundamental discernir o papel e a presença da liderança na igreja.


Infelizmente ainda funcionamos com a mentalidade do líder burocrático,
eleito para atuar na igreja. Ninguém deveria ser líder na igreja se não fosse
a serviço da missão de Deus. Isso passa fundamentalmente pela visão
pastoral. É, sim, responsabilidade pastoral mobilizar, treinar e capacitar a
liderança com tal e para tal visão. Uma liderança que não está a serviço de
Deus e sua missão tende a ser causadora de problemas e dona da igreja.

Citei aqui a experiência da pastora Stephanie Lutz Allan que afirmou que
100 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
“queríamos uma igreja maior para acariciar nossos egos”. Como é fácil
desviar os motivos pelos quais a igreja existe. Pensamos que estamos
realizando a missão, mas estamos inflando nosso ego para termos uma
igreja maior, mais vibrante, mais tudo. A grande pergunta que alguém
que se converteu à perspectiva missiológica será sempre a mesma: para
que?. Para que queremos um culto mais vibrante? Para que realizaremos
um acampamento de carnaval? Para que iremos reformar a igreja? Para
que criaremos uma nova programação aos jovens? Para que dizimamos?
E assim por diante. Uma igreja, um pastorado, uma liderança que não
pergunta para que não se converteu à missão de Deus. Pense nisso tudo
e reflita você mesmo. Caso você seja um pastor, para que o é? Caso seja
um líder, para que o é? Se sua igreja não é uma igreja missional, ela existe
para que? É impossível participar da vida de Deus sem que também
participemos da sua missão.

Concluindo, Deus tem uma missão para com o mundo e quer realizá-la
através de você e sua Igreja. Nossa missão é cumprir a missão de Deus
no mundo. Lembre-se: igreja não é aonde você vai; igreja é o que você é:
“vós sois”. Lembre-se mais, você já está em missão, você já foi enviado:
“assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”. Você é um agente
missional de Deus para a transformação das pessoas e do mundo. Sem
isto, sua igreja jamais será uma igreja missional.

Exercício de fixação - 18

É correto afirmar que ao ir à Igreja eu me torno apto a participar da


missão de Deus?

( ) Sim ( ) Não

Acesse o AVA para fazer os exercícios e ver a reação do professor!

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 101


2. O reino de Deus e a sua justiça
Como cristãos, acreditamos que a Bíblia aponta para a história da
renovação e restauração do justo domínio-governo de Deus sobre toda a
criação. É a história da batalha de Deus contra o pecado e a injustiça por
amor ao mundo que ele criou e ama. É a história que envolve seu povo
eleito em sua jornada ao participar de sua missão redentora. Nossas
respostas às perguntas da justiça pública e da ação política devem ser
encontradas nesta história.

2.1. A justiça na perspectiva bíblica


Quando a criação de Deus foi corrompida pelo pecado, Ele partiu em uma
longa jornada rumo à redenção. Deus escolheu Abraão e prometeu fazer
dele um canal de bênção redentora para todas as nações. O caminho
para que essa bênção se tornasse concreta nas vidas das famílias da
terra deveria se dar pela constante prática da justiça, a partir de Abraão e
sua descendência: “Abraão será o pai de uma nação grande e poderosa,
e por meio dele todas as nações da terra serão abençoadas. Pois eu o
escolhi, para que ordene aos seus filhos e aos seus descendentes que se
conservem no caminho do Senhor, fazendo o que é justo e direito, para
que o Senhor faça vir a Abraão o que lhe havia prometido” (Gn 18:18-19).
Em outras palavras, a bênção ocorreria à medida que as pessoas que
descendessem de Abraão se tornassem um modelo atraente de justiça,
dando testemunho para as nações – missão centrípeta – que o Senhor
era o Deus vivo e justo.
Quando Deus redimiu Israel do Egito, ele chamou seu povo para ser uma
nação santa, uma luz para as outras nações que demonstrariam o seu
amor e a sua justiça:
Logo Moisés subiu o monte para encontrar-se com Deus. E o Senhor
o chamou do monte, dizendo: “Diga o seguinte aos descendentes
de Jacó e declare aos israelitas: ‘Vocês viram o que fiz ao Egito e
como os transportei sobre asas de águias e os trouxe para junto
de mim. Agora, se me obedecerem fielmente e guardarem a minha
aliança, vocês serão o meu tesouro pessoal dentre todas as nações.

102 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


Embora toda a terra seja minha, vocês serão para mim um reino de
sacerdotes e uma nação santa’. Essas são as palavras que você dirá
aos israelitas” (Êx 19:3-6).

Os israelitas deveriam ser uma comunidade radiante e atraente, um


showroom, uma vitrine para o mundo para mostrar como viver a aliança com
o Senhor que transforma os povos. Eles deveriam ser um reino sacerdotal
para mediar as bênçãos de Deus para as nações. E, assim, Deus entregou a
Torá para eles, a Lei, para orientar suas vidas para encarnar o amor e a justiça.
Este pacto no Sinai era o centro de tudo: o restante do Antigo Testamento é
realmente apenas um comentário sobre esse Israel que não consegue ser
uma luz para as nações. E os profetas surgem e denunciam sua rebelião para
com essa aliança. Provavelmente nenhum profeta tem o tom mais grave do
que Amós. Numa época em que os ricos viviam no luxo ostensivo (3:12,
4:1, 6:4-6), onde os pobres eram ignorados e a eles se negava a justiça (2:7,
5:12, 6:6), onde as práticas comerciais estavam preocupadas apenas com o
lucro (2:6-7, 5:11-12), onde a promiscuidade sexual abundava (2:7), onde os
líderes políticos estavam mais preocupados com a sua notoriedade do que
com a justiça (6:1) — tudo soa muito parecido com os nossos próprios dias
– Amós vem com palavras muito afiadas: “Eu odeio seus cultos. Mostrem-
me uma comunidade verdadeiramente justa!”. Leiamos:
Eu odeio e desprezo as suas festas religiosas; não suporto as suas
assembleias solenes. Mesmo que vocês me tragam holocaustos e
ofertas de cereal, isso não me agradará. Mesmo que me tragam as
melhores ofertas de comunhão, não darei a menor atenção a elas.
Afastem de mim o som das suas canções e a música das suas liras.
Em vez disso, corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro
perene! (Am 5:21-24).

Amós talvez ainda acreditasse que Israel pudesse ser curado e cumprisse
seu chamado, por isso os chama ao arrependimento. Mas Isaías vê juízo
vindouro sobre Israel por sua infidelidade. Contudo, isso não significa
o fim da missão de Deus. Alguém ainda poderia ser levantado e este
finalmente traria justiça às nações:
Eis o meu servo, a quem sustento, o meu escolhido, em quem tenho
prazer. Porei nele o meu Espírito, e ele trará justiça às nações. Não
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 103
gritará nem clamará, nem erguerá a voz nas ruas. Não quebrará o
caniço rachado, e não apagará o pavio fumegante. Com fidelidade
fará justiça; não mostrará fraqueza nem se deixará ferir, até que
estabeleça a justiça sobre a terra. Em sua lei as ilhas porão sua
esperança (Is 42:1-4).

Isaías e os outros profetas anteviram o dia que o Senhor viria, quando


Deus iria estabelecer seu governo sobre toda a terra (Is 2:1-4). Ele seria
realizado por seu rei escolhido no poder do Espírito Santo (Is 42:1-4). O
povo de Deus seria reunido, curado e purificado (Ez 26:14-27) para que
pudessem participar novamente na missão de Deus de libertar o mundo
inteiro da escravidão do pecado e da injustiça.
Israel sonhou e esperou por este dia até que Jesus de Nazaré veio,
anunciando que o dia que Israel estava esperando finalmente havia
chegado: “O Espírito está sobre mim”. Jesus anuncia a inauguração do
reino da justiça de Deus, para libertar os oprimidos, para trazer justiça à
terra (Mc 1:15; Lc 4:18ss). É essa boa notícia que Jesus proclama. Deus
estava intervindo na história com amor e poder através de Jesus, pelo
poder do Espírito, para restaurar toda a vida humana, na verdade, toda a
criação, para viver novamente sob o governo justo e misericordioso de
Deus. Este é um anúncio que não pode ser encaixado no âmbito privado
e pessoal, ou escondido na página de religião de um jornal. Esta é uma
notícia de primeira página, a manchete que todas as emissoras do mundo
anunciam. Deus está despertando a si mesmo e tornando-se rei de novo
na pessoa de Jesus de Nazaré.

Exercício de aplicação - 19
Esse exercício tem como objetivo provocar uma reflexão simples em
função da ocorrência de certas temáticas nas Escrituras. A ideia é
pesquisar quantas vezes a palavra justiça aparece em comparação às
palavras amor, paz, esperança, salvação e fé. Use algum programa ou site
que permita esse tipo de pesquisa. Uma sugestão é o site https://www.
stepbible.org.
Acesse o AVA para fazer o exercício e veja a reação!

104 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


O tema da justiça do reino de Deus ainda é um tema negligenciado na
missão da igreja. Alguns pensam que a justiça trata apenas daquilo que
Deus fez por nós ignorando aquilo que ele quer fazer por nosso intermédio
que é buscar a sua justiça, no sentido da sua promoção na humanidade:
“Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas
vos serão acrescentadas” (Mt 6:33). Nossa prioridade é viver o reino de
Deus em sua plenitude e compreender que esse reino é de justiça. Deus é
um apaixonado pela justiça: “o Senhor é um Deus justo” (Ed 9:15).

2.2. A justiça do reino em contraponto à justiça da


sociedade
Jesus nos apresenta uma parábola ilustrativa de como se dá a prática
da justiça no reino de Deus como referência para a nossa própria prática:
Esta é uma ilustração do Reino dos Céus: O dono de uma
propriedade saiu certa manhã para contratar trabalhadores para a
sua colheita. Ele combinou com eles de pagar um denário por dia
e mandou todos trabalharem. Duas horas mais tarde, ele estava
passando por uma praça e viu alguns homens por ali, à espera de
serviço, então mandou aqueles também para os seus campos,
dizendo que pagaria no fim do dia aquilo que fosse justo. Ao meio-
dia, e novamente perto das três da tarde, ele fez a mesma coisa. Às
cinco horas daquela tarde ele estava novamente na cidade, viu mais
alguns homens por ali, e perguntou: Por que vocês estão parados o
dia inteiro? Porque ninguém nos contratou, responderam eles. Então
vão e juntem-se aos outros nos meus campos, disse ele. À noite
ele disse ao pagador que chamasse aos homens e lhes pagasse,
começando pelos últimos. Quando os homens contratados as cinco
horas foram pagos, cada um recebeu um denário. Assim, quando
os homens contratados mais cedo vieram para receber o que era
seu, pensavam que receberiam muito mais. Porém, a eles também
foi pago um denário. Eles protestaram: Aqueles companheiros
só trabalharam uma hora, e o senhor assim mesmo pagou-lhes
exatamente a mesma quantia que pagou para nós, que trabalhamos

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 105


o dia inteiro e nos cansamos do calor”. Amigo, respondeu o homem
a um deles, eu não fui injusto com você! Você não aceitou trabalhar
o dia inteiro por um denário? Receba o denário e vá embora. É meu
desejo pagar o mesmo a todos. É contra a lei presentear o meu
dinheiro se eu quiser? Você se zanga por que eu sou bondoso. E
assim é que os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os
últimos (Mt 20:1-16).

O reino de Deus é semelhante a um proprietário que saiu de manhã cedo


para contratar trabalhadores. Ele contratou alguns e acertou com eles
aquilo que seria considerado normal, pagar o salário de um dia de trabalho.
Depois, em mais três períodos ao longo do dia ele resolveu continuar
contratando outros trabalhadores que deveriam trabalhar apenas até o
final daquele dia. No entanto, ele parecia estar inquieto porque alguns
ainda estavam desempregados. Ele saiu de novo, antes do pôr do sol,
e viu outro grupo em pé e à espera de emprego. Ele perguntou por que
eles estavam esperando o dia todo sem fazer qualquer trabalho. Eles
responderam: “Porque ninguém nos contratou”. Assim, mesmo faltando
pouco tempo para acabar aquele dia, ele também os contratou.

Jesus estava descrevendo uma situação triste e concreta para aquela


cultura. Aquela era uma sociedade irresponsável que não cuidava de
todos os seus cidadãos; uma sociedade injusta. Essas pessoas estavam
esperando desde cedo até a noite, por alguém que as contratasse,
pois, caso contrário, suas famílias poderiam passar fome. Estavam
desesperadas por trabalho. O fazendeiro-proprietário saiu várias vezes
à procura de desempregados, porque ninguém estava interessado neles.
Ele entendia o que significava estar desempregado e ficar na rua sem fazer
nada. Quando ele conversa com aqueles últimos contratados, a resposta
que recebeu foi: “ninguém nos quer, ninguém reparou que estamos aqui
esperando, ninguém nos perguntou por que nós estávamos esperando
todo o dia, e ninguém se importa conosco”. O desemprego não é apenas
um problema econômico, mas também um problema espiritual. Ela
desmoraliza pessoas. Ele destrói a personalidade dos desempregados.

106 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


É um juízo triste em nossa sociedade quando vidas humanas são
desperdiçadas porque ninguém se importa com elas. Nesta parábola,
o que é importante notar é que o fazendeiro saiu repetidas vezes para
contratar trabalhadores. Podemos ainda sugerir que o proprietário:
• Não encontra falta neles por não estarem trabalhando;
• Não diz a eles que era sua culpa estarem desempregados;
• Não diz que tinham abandonado a escola e desperdiçado as
oportunidades dadas a eles;
• Não diz que eram vagabundos;
• Não diz que não mereciam qualquer atenção das pessoas de bem
que trabalham duro na sociedade.

O fazendeiro sabia muito bem que eles estavam nessa situação porque
os poderosos da sociedade, os ricos e os influentes, mesmo os mais
instruídos e os religiosos, também eram responsáveis por aquela terrível
situação em que muitas pessoas não tinham trabalho. Nos Evangelhos,
Jesus criticou os líderes religiosos, os líderes políticos e os seus próprios
discípulos. Raramente criticou as massas. Ele sabia muito bem dos seus
defeitos, suas fraquezas. Esses desempregados não eram santos, mas
Jesus também conhecia sua situação, pois conta essa história com riqueza
de detalhes. Ele teve compaixão porque eram como ovelhas sem pastor.

No reino de Deus não há injustiça. Aqueles que trabalharam o dia inteiro


tem salário de um dia inteiro. Aqueles que trabalharam apenas uma hora
também tem o salário de um dia inteiro. Esta é a justiça do reino. Isto é o
que significa justiça. Na sociedade em que vivemos, aqueles que têm um
bom começo de vida, aqueles que são influentes e bem-educados, são os
que recebem mais. Aqueles que correm mais rápido são recompensados.
Aqueles que são fortes irão explorar os fracos. Esta é a justiça do mundo.

Na perspectiva do reino, os que são poderosos e influentes não devem ter


mais às custas dos que tem menos. A sociedade é apenas uma extensão
dos mais desfavorecidos, dos deficientes, dos pobres e dos oprimidos.
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 107
A aritmética de Deus é diferente. Ele não adiciona nem calcula os
salários como nós. Ele não corrige os salários de acordo com o número
de horas que temos trabalhado. A justiça social é uma parte integrante
da mensagem de Cristo e não diminui sua mensagem de salvação. N.T.
Wright disse:
Toda a questão dos evangelhos é que a vinda do reino de Deus
na terra como no céu é precisamente não a imposição de uma
tirania estranha e desumanizadora, mas sim o confronto de uma
tirania estranha e desumanizadora com a novidade de um Deus —
o Deus reconhecido em Jesus —que é radicalmente diferente de
todos eles, e cuja justiça que irrompe procura resgatar e restaurar
a humanidade genuína... Sim, Jesus realmente, como diz Paulo,
morreu por nossos pecados, mas a sua agenda toda de lidar com
o pecado e todos os seus efeitos e consequências nunca foi sobre
salvar almas individuais do mundo, mas sobre salvar humanos
para que eles pudessem se tornar parte de seu projeto de salvar
o mundo. “Meu reino não é desse mundo”, ele disse a Pilatos; se
fosse, ele teria liderado um movimento de resistência armada como
os outros profetas de reinos do mundo. Mas o reino que ele trouxe
foi enfaticamente para esse mundo, o que siginificou e significa
que Deus está presente no espaço público e não irá se retirar dele
novamente, ele, sim, derrotou as forças tanto da tirania como do
caos — tanto do modernismo estridente quanto do pós-modernismo
fofo, se você preferir — e estabeleceu em seu lugar uma norma
justiça restauradora e curativa... (2010, s/p)

A justiça de Deus e a crítica aos sistemas de dominação aparecem


algumas vezes no Novo Testamento. A mensagem de Jesus é centrada
no conceito de reino de Deus. As primeiras palavras de Jesus no
Evangelho de Marcos são: “finalmente chegou o tempo” e “o reino de
Deus está próximo! Afastem-se dos seus pecados e ajustem sua vida a
esta gloriosa mensagem!” (Mc 1:14). O reino de Deus carrega também
um significado político. As pessoas a quem Jesus falou viviam em reinos
governados por reis poderosos e elites ricas. As pessoas deveriam,
108 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
portanto, perceber o contraste imediato entre o reino de Herodes ou de
César e o proposto reino de Deus. Poderiam se questionar como seria a
vida na terra se Deus fosse rei e não os príncipes daquele mundo.

O reino de Deus era para esta terra e não apenas para a vida após a morte.
Por isso Jesus nos ensinou a orar: “Venha o Teu reino, seja feita a sua
vontade, assim na terra, como já no céu”. O público primário de Jesus foi
a classe camponesa e os excluídos das cidades e povoados. A Oração do
Senhor fala incisivamente sobre as situações urgentes daquela camada
da população. Vemos pelo menos dois temas interessantes:

a) “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia” - uma preocupação real


daqueles que lutavam pela sobrevivência diária;
b)“Perdoe as nossas dívidas” - geralmente os cristãos de hoje
compreendem as dívidas como pecados, mas as pessoas para
as quais Jesus falou entenderam o significado literal. A dívida
financeira era uma questão primária de sobrevivência na vida
camponesa.

As chamadas bem-aventurança, que se encontam no Sermão do Monte de


Mateus e em seu correlato no livro de Lucas. Mateus apresenta a versão
espiritualizada de Lucas. Enquanto em Mateus aparece a expressão
pobre de espírito, em Lucas aparece apenas pobre. De modo semelhante,
em Mateus lemos sobre a fome e sede de justiça, enquanto em Lucas,
lemos sobre os que estão com fome. Se é assim, a vinda do reino de
Deus implica também em alimento para o faminto.

2.3. O aspecto político do reino e da prática da justiça


Jesus é o Senhor. Esta afirmação tem um significado político, bem
como um significado religioso, como sendo um contraste com César, o
imperador romano, que também era chamado de senhor. Ou seja, afirmar
o senhorio de Cristo era negar o senhorio de César, pelo menos no sentido
absoluto de submissão. Cristo e César foram ambos também referidos
como filhos de Deus, salvador, rei dos reis e senhor dos senhores. Os
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 109
títulos de César cabem bem em Jesus em seu senhorio escatológico. O
senhorio de Cristo se contrapõe ao senhorio de César apontando para o
justo reino de Deus e os injustos reinos deste mundo.

É importante notar que os primeiros cristãos tinham uma percepção


muito negativa do Império Romano. Ele era chamado de Besta do
Abismo, a Grande Prostituta. Sua capital, Roma, era alvo de crítica e as
letras que a compõem eram popularmente usadas para formar a frase
radix omnium malorum avaritia, significando a raiz de toda cobiça má.
Aquele domíno político era a personificação da ganância por meio de
sistemas de dominação, ou seja, a raiz de todo o mal. Apesar do Império
Romano ter sido melhor que a maioria dos impérios em muitos sentidos,
suas políticas impactaram negativamente milhões de vidas. A população
sofreu com guerras brutais de conquista, ricos tributando os pobres,
camponeses que perderam suas terras para grandes proprietários, a
migração de camponeses para as cidades, aumentando a miséria urbana.

Ainda, sabemos que a cruz representa o maior símbolo da salvação que


Deus oferece por meio de Jesus. Por outro lado, não podemos esquecer
que Jesus foi executado pelo sistema de dominação do império de sua
época. Como disse Pilatos, ““Não sabe que eu tenho autoridade para
libertá-lo e para crucificá-lo?” (Jo 19:10). Esse sistema de dominação
disse não a Jesus. A cruz encarna o caminho de transformação pessoal,
mas também acusa os sistemas de dominação do mundo que são
construídos sobre poder, riqueza e avareza perversa.

Nesse sentido, sistemas sociais injustos moldam e afetam nossas vidas


e as vidas de outras pessoas. O racismo é um dos muitos exemplos.
Sistemas afetam a forma como pensamos e percebemos a nós mesmos
e aos outros. Sistemas também afetam as condições materiais de vida.
As elites ricas em nosso tempo, como nos tempos antigos, usam o poder
e riqueza para estruturar o sistema econômico em seu próprio interesse
e este sitema é mantido pelos poderes políticos.

A concentração de riqueza não é resultado do trabalho duro individual e


nem é um resultado natural e necessário de um sistema de livre mercado.
110 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
Ao contrário, é um produto do sistema econômico que favorece os ricos em
detrimento dos pobres. É óbvio que sempre há exceções, ainda que raras,
mas os ricos usam sua influência para estruturar a política em seu próprio
interesse. Este é um assunto delicado para muitos de nós, especialmente
para os que desfrutam de uma situação financeira confortável. A questão
não é a bondade do indivíduo ou virtude dos ricos ou dos pobres. A questão
é a forma como a sociedade está estruturada em torno de seus sistemas.
Como vamos usar a nossa riqueza e influência? Usaremos para trazer
mudanças ou para apoiar políticas de interesse próprio? Precisamos de
mais pessoas como João e José de Arimatéia que conviveram com Jesus,
pessoas financeiramente confortáveis, desencantadas com a injustiça
sistêmica e comprometidas com o reino de Deus.

Levar a justiça do reino de Deus a sério significa defender a política de


compaixão, ou a política do reino. Um tipo de política que suspeita dos sistemas
poderosos que formam classes ricas privilegiadas e poderosas, usando seu
poder não para defender, mas para esmagar os menores deste mundo.

Há muito preconceito, mau entendimento e, consequentemente, prejuízo


para a missão da igreja ter uma compreensão superficial sobre a natureza
do evangelho e sua presença na esfera pública. O evangelho que Jesus
pregou não possuiu apenas a dimensão da salvação individual com a
promessa de um futuro mundo espiritual. Em Jesus Cristo, o reino no
final da história cósmica foi revelado e realizado. É um anúncio que tem
por objetivo restaurar toda a história do reino de Deus sobre todas as
nações, ao longo de toda a vida humana, sobre toda a criação. E este
reinado invadiu a história no passado e continua invadindo agora. Em
nossa cultura, a Bíblia tem sido reduzida a uma história religiosa que
é relegada ao domínio privado ou âmbito pessoal da vida. No entanto,
esta Bíblia também trata da história de todo o universo, contada a partir
da perspectiva teológica. Ela começa com a criação e termina com
a renovação de toda a criação caída. A história humana na Bíblia e o
evangelho de Cristo são conteúdos públicos para todas as pessoas.

Além da história bíblica, devemos aprender com a história da igreja. Há

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 111


uma rica e variada história de engajamento público da igreja e somos
tolos se a ignorarmos. Ao olhar para o passado, podemos nos beneficiar
tanto do pensamento como da prática daqueles que vieram antes de nós
e, assim, esperançosamente evitar seus erros.

O reino já está aqui, entre nós, mas ainda não alcançou sua plenitude. O
poder do Espírito de Deus para curar, renovar e libertar já está presente,
mas a aniquilação de toda a oposição ao governo de Deus só será uma
realidade cabal no futuro:

Então virá o fim, quando ele entregar o Reino a Deus, o Pai, depois
de ter destruído todo domínio, autoridade e poder. Pois é necessário
que ele reine até que todos os seus inimigos sejam postos debaixo
de seus pés. O último inimigo a ser destruído é a morte. Porque ele
tudo sujeitou debaixo de seus pés. Ora, quando se diz que tudo lhe
foi sujeito, fica claro que isso não inclui o próprio Deus, que tudo
submeteu a Cristo. Quando, porém, tudo lhe estiver sujeito, então o
próprio Filho se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, a
fim de que Deus seja tudo em todos (1 Co 15:24-28).

Deus deu a seu povo o antegozo do reino. Vivemos no tempo da


sobreposição da velha era com a nova era, onde as forças do mal, da
injustiça e da morte coexistem com o poder do Espírito de Deus que traz
liberdade, cura e libertação. A batalha será empenhada até o julgamento
final. Lesslie Newbigin comenta sobre essa sobreposição:

O significado dessa “sobreposição das eras” em que vivemos, o


tempo entre a chegada de Cristo e sua vinda novamente, é o tempo
dado para o testemunho apostólico da Igreja até os confins da terra.
O fim de todas as coisas, que foi revelado por Cristo, é, por assim
dizer, retido até que o testemunho seja levado para o mundo inteiro a
respeito do julgamento e salvação revelado em Cristo. A implicação
de uma verdadeira perspectiva escatológica está na obediência
missionária, e a escatologia que não emite tal obediência é uma
escatologia falsa (1954, p. 153-154).

112 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA


A missão da igreja é tão grande quanto a vida humana, e isso inclui a
política. Este testemunho de que Newbigin fala não é simplesmente
evangelismo e missões. A igreja é testemunha do senhorio de Cristo
sobre toda a vida humana. Sua missão é dar a conhecer as boas notícias
sobre o domínio de Deus sobre toda a vida humana. O chamado da
igreja é para servir ao Senhor em todas as esferas de nossa vida, nossos
casamentos e famílias, nossas escolas e tecnologias, nossos trabalhos
e nosso lazer.

A procura da justiça é fundamental para a história bíblica e cristã


e central para a tarefa da política. Como já afirmamos, a justiça é um
tema central na história bíblica. É a justiça cristã que protege os direitos
humanos individuais e coletivos para expressarem-se como a imagem
de Deus. Certamente isso inclui especialmente os pobres, os mais
vulneráveis e fracos em nosso meio. Mas não pode cair no individualismo,
que caracteriza tanto a política ocidental, que protege apenas ou
principalmente os direitos dos indivíduos. Ela, a justiça cristã, também
irá proteger o espaço social para instituições como o casamento, família,
escola, empresas e muitos outros tipos de associações para florescerem
e cumprirem o chamado de Deus.

Mas se a ordem da criação é a base para a justiça, ela será ainda mais
abrangente. Ela irá incluir a natureza. Além disso, em um mundo cada
vez mais global, a justiça não deve se concentrar apenas em assuntos
internos domésticos. A justiça pública cristã vai além de uma política
de auto interesse nacional, alcançando políticas de justiça internacional.
“Toda a terra é minha”, diz o Senhor. Resumindo, a justiça cristã oferece
uma visão abrangente que reflete a amplitude do governo total de Deus
sobre toda a criação.

É triste ver que alguns cristãos não pensam e nem agem com essa
consciência e base bíblico-teológica. Em nome de um fundamentalismo
bíblico e religioso mal percebem que são promotores e propagadores de
um individualismo segregador e mantenedor dos sistemas injustos deste
mundo que avilta o propósito de Deus para a humanidade.
Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 113
Exercício de aplicação - 20
Como você pode aplicar a justiça do reino de Deus nos lugares em
que você está inserido. Pense em duas ações que você poderia
promover sozinho ou com auxílio de colegas, para melhorar a
realidade de uma pessoa ou comunidade que está esquecida pela
sociedade e elas igrejas institucionalizadas.
Acesse o AVA para fazer o exercício e ver a reação!

Conclusão
Muitos cristãos e igrejas ignoram o entendimento da missão por causa
da ausência de fundamentos bíblicos e teológicos. A responsabilidade
para fornecer estas convicções, por meio de ensino sólido, é da igreja. É,
pois, em ambientes eclesiásticos e de ensino teológico que as pessoas
podem buscar nas Escrituras os fundamentos da missão. Compaixão que
não está enraizada no evangelho, em última análise e, inevitavelmente,
levará as pessoas a negar o próprio evangelho ao cuidarem dos outros
como mera ação humana para esta vida.

A tensão entre o já e o ainda-não precisam estar em nossas mentes.


Enfatizar o já em detrimento do ainda-não resulta em pessoas que
pensam que são os nossos esforços humanos que produzem o reino,
ou, pior ainda, que o objetivo final de Deus é melhorar as condições da
vida. Por outro lado, enfatizar o ainda-não em detrimento do já resulta em
pessoas que pensam que qualquer envolvimento em questões sociais é
um desperdício de tempo, porque um dia tudo acabará. Manter os dois
juntos é a única possibilidade para que o engajamento no aqui e agora
revele nossos paradigmas celestiais, do reino por vir, o já de Deus no
ainda-não da humanidade.

Devemos reconhecer que o engajamento evangélico nesta perspectiva


114 | Teologia Bíblica da Missão | FTSA
vai assumir diferentes formas em diferentes contextos políticos, culturais
e sociais. Embora seja notória a participação na vida pública, como por
exemplo fez Abraham Kuyper — um político holandês, jornalista, estadista
e teólogo, que fundou o partido antirrevolucionário e foi primeiro-ministro
dos Países Baixos, entre 1901 e 1905 –, cujo intuito era transformar a
cultura, reconhecemos que um grande número de cristãos simplesmente
não tem esta percepção. Os cristãos do Oriente Médio e de certas partes
da Ásia, por exemplo, têm pouco ou nenhum acesso a várias instituições
de suas sociedades para realizar a transformação sonhada. Já cristãos
das Américas possuem mais possibilidades. Assim, a abordagem um-
modelo-serve-para-todos simplesmente não funciona.

Ainda devemos estar atentos para proclamar verbalmente o evangelho


sem excluir a sua manifestação concreta na sociedade. Este é o ponto em
que a nossa teologia realmente está na superfície. Ou como afirma David
Bosch, “As relações entre as dimensões evangelística e social da missão
cristã constitui uma das áreas mais difíceis da teologia e da prática da
missão” (2002, p. 480). A missão integral ou transformação holística é a
proclamação e a demonstração do evangelho. Não é simplesmente que
a evangelização e o compromisso social tenham que ser levados a termo
juntos. Na missão de Deus, nossa proclamação tem consequências
sociais quando convocamos as pessoas ao arrependimento e ao amor
pelos outros em todas as áreas da vida. Nosso compromisso social tem
consequências para a evangelização quando damos testemunho da graça
transformadora de Jesus Cristo. Se assumimos uma postura de omissão
diante do mundo, traímos a Palavra de Deus, a qual requer de nós que o
sirvamos. Se assumirmos uma postura de omissão à Palavra de Deus,
não temos nada que oferecer ao mundo. A justiça e a justificação pela
fé, a adoração e a fé política, o espiritual e o material, a transformação
pessoal e a mudança estrutural estão unidas entre si. Ser, fazer e dizer
estão no mesmo coração de nossa tarefa integral.

Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 115


Referências citadas
ALLEN, Stephanie Lutz. Cultivating mission. Extraído de www.
cultivatingmission.org. Acessado em 16 FEV 2019.

BARRET, Lois Y (Ed.). Treasure in clay jars: patterns in missional


faithfulness. Grand Rapids: Eerdmans, 2004.

BOSCH, David J. Transforming mission: paradigm shifts in theology of


mission. Maryknoll: Orbis Books, 1991.

GUDER, Darell L. Missional church: a vision for sending church in North


America. Grand Rapids: Eerdmans, 1998.

WRIGHT, N.T. The kingdom of God and the need for social justice. Extraído
de http://godspace.wordpress.com/2010/03/15/nt-wright-the-kingdom-
of-god-and-the-need-for-social-justice. Acessado em 16 de fevevreiro
2019.

NEWBIGIN, Lesslie. The household of God: lectures on the nature of the


church. New York: Friendship Press, 1954.

Politeia. Extraído de http://pt.wikipedia.org/wiki/Politica. Acessado em


12 de janeiro 2019.

VAN GELDER, Craig. The essence of the church: a community created by


the Spirit. Grand Rapids: Baker Books, 2000.

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