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Prof.

Anderson Pinho

medieval
FILOSOFIA MEDIEVAL (agora baseada nas relações de suserania e vassalagem
estabelecida entre o senhor feudal e os seus servos)
fosse organizada, legitimando assim, uma sociedade
A Idade Média abarca um período tão extenso hierarquizada, desigual e sem mobilidade social.
que é difícil caracterizá-la sem incorrer no risco da Definida pelo critério de sangue, quem nascia nobre
simplificação. Afinal, são mil anos (de 416 a 1455), entre morria nobre, quem nascia servo, morria servo.
a queda do Império Romano do Ocidente e a tomada Nesse contexto, a Igreja exerce enorme
de Constantinopla pelos turcos. influência, na medida em que mantém o monopólio do
A Alta Idade Média, período que se sucedeu à saber, pois são os monges os únicos letrados em um
queda do Império, é caracterizada por um estado de mundo onde nem os servos nem os nobres sabem ler.
desagregação da antiga ordem e pela divisão do Império Desde a invasão dos bárbaros, a cultura greco-
em diversos reinos bárbaros. latina permanecera por muito tempo confinada aos
mosteiros, ressurgindo lentamente após o século VIII,
no período conhecido como renascimento carolíngio,
ocasião em que Carlos Magno mandou fundar inúmeras
escolas junto às igrejas e mosteiros.
Dessa forma, os intelectuais pertencem às
ordens religiosas e, consequentemente, as principais
questões filosóficas referem-se às relações entre fé e
razão, sendo que esta se encontra sempre subordinada
àquela.
Se a fé é o conhecimento mais elevado e o
critério mais adequado da verdade, a filosofia não é a
busca da verdade, pois esta já foi encontrada, mas a ela
cabe apenas o trabalho de demonstração racional dessa
Mas, antes da queda, numa tentativa verdade.
desesperada de salvar o Império Romano, em 380 o No entanto, não devemos considerar todo o
imperador Teodósio torna o cristianismo, que já era a período medieval (sécs. V a XV, portanto mil anos)
seita religiosa com o maior número de seguidores, a como sendo de obscuridade. Em vários momentos, há
religião oficial. Desse modo, estabelece-se a ligação expressões diversas de produção cultural às vezes tão
entre Estado e Igreja, pois esta legitima o poder do heterogênea que se torna difícil reduzir o período àquilo
Estado, atribuindo-lhe uma origem divina. que se poderia chamar pensamento medieval.
Não deu muito certo! O Império caiu, mas a Uma constante se faz notar no pano de fundo
Igreja Católica (do grego καθολικος /katholikos = desse pensamento: a tentativa de conciliar a razão e a fé.
universal) Apostólica, e agora, Romana, emergiu e se A temática religiosa predomina a preocupação
tornou a maior instituição do mundo (até hoje). O apologética, isto é, na defesa da fé cristã e no trabalho
desejo de unidade de poder, de restauração da antiga de conversão dos não-cristãos.
unidade perdida, se expressa na difusão do cristianismo A máxima predominante é "Crer para
que representa, na Idade Média, o ideal de Estado compreender, e compreender para crer". A filosofia,
universal. embora se distinguindo da teologia, é instrumento
Nesse cenário de fragmentação, a Igreja surgia desta, é serva da teologia.
como um elemento de união, crescendo no vácuo que De início os religiosos têm receios quanto à
foi deixado pelo desaparecimento do império. Assim, a produção dos gregos, por serem eles pagãos, mas com
religião surge lentamente como elemento agregador dos as devidas interpretações e adaptações segundo a fé
inúmeros reinos bárbaros formados após sucessivas cristã, o pensamento medieval é fertilizado inicialmente
invasões; seus chefes são pouco a pouco convertidos ao pelo pensamento de Platão (nas obras da patrística,
cristianismo, e a Igreja se transforma em soberana sobretudo de Santo Agostinho) e depois pelo de
absoluta da vida espiritual do mundo ocidental. Aristóteles (no pensamento de Santo Tomás).
Ponte entre o homem e Deus, ela teria a última Apesar do risco de simplificação, divide-se a
palavra (a única) sobre como deveria ser a vida de seu Idade Média em duas tendências fundamentais: a
rebanho e sobre o que era o bem e o mal, o certo e o filosofia patrística e a escolástica.
errado, o justo e o injusto. Seria, portanto, a dona da
mente e, por conseguinte, dos corpos das pessoas. 1. A PATRÍSTICA (Séc. II ao VII)
Poderosa não apenas do ponto de vista
espiritual, mas também político, ninguém melhor do Na decadência do Império Romano, surge a
que ela para dizer como Deus queria que a sociedade partir do século II a filosofia dos Padres da Igreja,
conhecida também como patrística, isto é, dos
primeiros dirigentes espirituais e políticos do Agostinho de Hipona, fez parte da vertente filosófica
cristianismo, após a morte dos apóstolos. conhecida como “Patrística”. Durante parte da sua vida
A patrística resultou do esforço para conciliar a foi tido como pagão.
nova religião com o pensamento filosófico dos gregos Construindo sua
e romanos, pois somente assim seria possível combater espiritualidade e seu
as heresias e justificar a fé para convencer os pagãos da pensamento com base em
nova verdade e convertê-los a ela. suas próprias vivências, teve
A filosofia patrística liga-se, portanto, à influência de sua mãe Mônica
evangelização e à defesa da religião cristã contra os (mulher de forte fé), mas não
ataques teóricos e morais que recebia dos antigos. somente dela, também o
A patrística introduziu ideias desconhecidas bispo Ambrósio, Cícero
para os filósofos greco-romanos: a ideia de criação do (convertendo-o à filosofia),
mundo a partir do nada, de pecado original do homem, Plotino e Porfírio (o
de Deus como trindade una, de encarnação e morte de pensamento neoplatônico), o Maniqueísmo e a Bíblia
Deus, de juízo final ou de fim dos tempos e ressurreição (particularmente as Cartas de Paulo) são exemplos de
dos mortos, etc. modelos culturais que influenciaram Agostinho.
Precisou também explicar como o mal pode Agostinho apropriou-se de muitos elementos
existir no mundo, uma vez que tudo foi criado por da filosofia platônica para fundamentar sua explicação
Deus, que é pura perfeição e bondade. da doutrina cristã. Muitos autores afirmam que Santo
Introduziu, sobretudo com Santo Agostinho, a Agostinho cristianizou Platão.
ideia de “homem interior”, isto é, da consciência moral Assim como Platão julgava o intelecto superior
e do livre-arbítrio da vontade, pelo qual o homem, por à matéria, Santo Agostinho pregava a superioridade da
ser dotado de liberdade para escolher entre o bem e o alma ante o corpo, e sendo a alma um presente de Deus,
mal, é o responsável pela existência do mal no mundo. devíamos nos voltar inteiramente à Ele.
Para impor as ideias cristãs, os padres da Igreja Já no fim de sua vida, o filósofo lutou contra as
católica as transformaram em verdades reveladas por heresias. Dentre suas principais obras, podemos citar:
Deus (por meio da Bíblia e dos santos) que, por serem Os Solilóquios, A Trindade, A Cidade de Deus e Confissões.
decretos divinos, seriam dogmas, isto é, verdades O modo como Agostinho pensava o equilíbrio
irrefutáveis e inquestionáveis. entre fé e razão permitiu compreender que elas são
Com isso, criou-se uma distinção entre verdades complementares: a fé não substitui tampouco elimina a
reveladas ou da fé e verdades da razão ou humanas, ou inteligência, mas a estimula; do mesmo modo também
seja, entre verdades sobrenaturais e verdades naturais, ocorre com a relação entre a inteligência e a fé, onde a
as primeiras introduzindo a noção de conhecimento primeira fortalece a segunda. Assim, não via como
recebido por uma graça divina, superior ao simples antagônicas fé e razão, mas afirmava que para se
conhecimento racional. Dessa forma, o grande tema da compreender era necessário crer, subordinando,
filosofia patrística é o da possibilidade ou portanto, a razão à fé.
impossibilidade de conciliar a razão com a fé. “Alma” e “Deus” são as bases da filosofia
A esse respeito, havia três posições principais: agostiniana. Na relação alma-Deus, o ponto central é o
1. os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a conceito de “verdade”, que pode ser ilustrado pela
fé superior à razão (diziam eles: “Creio porque seguinte passagem: “não busques fora de ti (...); entra
absurdo”); em ti mesmo. A verdade está no homem interior”.
2. os que julgavam fé e razão conciliáveis, mas Santo Agostinho acreditava que a Verdade
subordinavam a razão à fé (diziam: “Creio para plena não poderia ser encontrada utilizando apenas a
compreender”); razão, mas o pensamento humano deveria estar
3. os que julgavam razão e fé irreconciliáveis, “iluminado” – ele acreditava que “a fé precede a razão”.
mas afirmavam que cada uma delas tem seu campo
próprio de conhecimento e não devem se misturar (a A doutrina da Iluminação
razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal A teoria (doutrina) de Santo Agostinho possui
dos homens no mundo; a fé, a tudo o que se refere à determinada inspiração platônica, no entanto, ele
salvação da alma e à vida eterna futura). substitui a teoria da reminiscência (ou anamnese) de
Platão – que diz que as ideias já estariam em nossa alma
1.1 SANTO AGOSTINHO e, portanto, caberia aos indivíduos trazê-las à mente –
para elaborar a sua Teoria da Iluminação.
Aurélio Agostinho (354 – 430), o primeiro Para Agostinho, as ideias são a verdadeira
grande doutor da igreja foi um cidadão romano da realidade, são “pensamentos eternos de Deus”, são
cidade de Tagaste, uma província romana no norte da imutáveis, e estão na mente do Deus criador, na
África. Conhecido popularmente como Santo inteligência divina. Ele as entende como formas
fundamentais, como se fossem os modelos dos quais o Espírito Santo. A doutrina trinitária de Agostinho
são feitas todas as coisas. Assim, toda coisa foi criada apresenta a Trindade segundo o qual tudo aquilo que
conforme uma razão ou ideia própria. cada Pessoa é, é em relação a um ou a ambos.
Mas, como o homem conhece as ideias? A alma O filósofo tentou compreender a Trindade, no
humana conhece as ideias através da inteligência, da entanto, considerava que nossa mente é limitada e, por
alma racional, que é a coisa mais próxima de Deus, e é isso, não seria possível compreendê-la. Sobre isso, há
iluminada pela luz inteligível. Agostinho utiliza o sol uma lenda que diz que Agostinho passeava na praia
para exemplificar e nos diz que, assim como o sol existe, pensando no mistério da Trindade e encontrou um
resplandece e ilumina, também Deus existe, é inteligível menino, que era anjo, e havia cavado um buraco na
e torna inteligíveis todas as outras coisas. areia. O menino jogava água várias vezes nesse buraco,
Portanto, notamos que Deus, enquanto Suma a fim de colocar toda a água do mar ali. Agostinho então
verdade, ilumina, e que a mente de Deus possui os lhe disse que aquilo era impossível, e ele lhe respondeu
modelos (ou seja, as ideias) de todas as coisas. Deus, que “seria mais fácil transferir toda a água do mar para
no momento da criação, “participa às coisas a aquele buraco do que compreender o mistério da
capacidade de manifestar-se pela verdade, e às mentes a Trindade”.
capacidade de colhê-las”. Sendo assim, na doutrina A criação das coisas, dizia o bispo de Hipona, se
agostiniana, é Deus quem ilumina o intelecto do dá “do nada” (ex nihilo), mas uma realidade pode derivar
homem, e que permite que o espírito humano seja capaz de outra de três modos, a saber: por geração, onde se
de conhecer. origina da própria substância do gerador (por exemplo,
o pai que “gera” o filho), criando algo de idêntico ao
Deus gerador; por fabricação, onde a coisa que é fabricada
O filósofo tinha Deus como a fonte da verdade, ou deriva de algo, uma matéria, preexistente fora do
seja, entendia que a verdade se encontrava em Deus. Ao fabricante (por exemplo, as coisas/artefatos que o
afirmar que “Deus é Verdade”, Santo Agostinho homem produz); por criação a partir do nada. Em
demonstra que a existência da Verdade condiz com a outras palavras, o homem sabe gerar e produzir, mas
demonstração da existência de Deus. Sendo assim, não sabe criar, pois é um ser finito – ao passo que Deus
podemos considerar que, ao procurar a verdade, o “cria” o cosmo do nada e, ao fazer isso, cria o próprio
homem está procurando Deus. tempo juntamente com o mundo.
Agostinho forneceu algumas provas da existência
de Deus, dentre elas entender que a perfeição do Tempo
mundo estava ligada ao seu criador e que os seres Sobre o tempo, Agostinho se perguntava: “o que
humanos admitem que Deus é o criador do mundo. Se fazia Deus antes de criar o céu e a terra?”. Com essa
o criador do universo é Deus, então, se pode conhecê- indagação, ele começou a analisar o tempo, e pôde
lo. O entendimento de Agostinho a respeito de Deus afirmar que, antes de Deus criar o céu e a terra, não havia
não possuía um sentido aristotélico, ou seja, o sentido tempo. O tempo é criação de Deus, e existe no espírito
de motor imóvel para explicar o cosmo, com intenções humano, porque é nele que se encontram o passado, o
intelectuais. O sentido é de “desfrutar” Deus, de amá- presente e o futuro. Os tempos são três: o presente do
lo, de ocupar o vazio interior (do espírito), de ser feliz e passado (memória); o presente do presente (intuição); o
acabar com as inquietudes. presente do futuro (espera). O tempo presente pode dirigir-se
Santo Agostinho pensou em atributos essenciais de ao passado por meio da memória/lembrança, e ao futuro através
Deus, são eles: Ser, Verdade, Bem e Amor – no entanto, da espera.
esses atributos não devem ser pensados como Portanto, a ideia de antes e depois, assim como a ideia de
“propriedade”, mas possuem o sentido de coincidir medir os tempos se originaram com a consciência humana. O
com a essência dele. Um Deus que, conforme a Bíblia, tempo pertence ao homem, que é a criatura, e não ao Criador.
é “Aquele que é”. Tempo e eternidade são dimensões distintas. O tempo presente é
um contínuo “deixar de ser”, enquanto que a eternidade “existe
Trindade sempre”. Sendo assim, Deus é eterno, e não depende do tempo
Deus é essencialmente Trindade: é Pai, Filho e para existir.
Espírito Santo. Essas três Pessoas são inseparáveis, são Já dissemos aqui que Deus criou o mundo do nada.
“o único verdadeiro Deus”. Agostinho distingue cada A fim de explicar a criação, Agostinho utilizou a teoria
uma delas segundo a relação. O Pai, o Filho e o Espírito das Ideias de Platão, que se transformam em “verbos de
Santo são, cada um, Deus, e os três são um só Deus. Deus”: Deus criou o mundo segundo a razão,
Isso pode ser entendido da seguinte forma: cada um elaborando um modelo como seu pensamento (as
deles é substância e, os três juntos são uma só Ideias são estes pensamentos, são eternas e imutáveis).
substância. A relação entre as Pessoas é mútua, onde o Ou seja, Deus criou todas as coisas através do Verbo,
Pai “tem” o Filho, mas não é o Filho; do mesmo modo, que é o princípio de tudo. As razões seminais (entendidas
o Filho tem o Pai, mas não o é – e assim acontece com como germes, sementes, cópias das ideias) também são
utilizadas por Agostinho para explicar a criação. As a si mesmo é o mal, pois gera um desprezo por Deus;
sementes, ao longo do tempo, vão se desenvolvendo de já o amor a Deus constitui o bem. Santo Agostinho
diversos modos em diversas circunstâncias. Deus criou considerava que a essência do homem era o amor, e
a matéria, assim como todas as possibilidades de pensou em duas cidades: a “Cidade terrena”, que
concretização dela, incluindo suas razões seminais. pertence àqueles que vivem segundo o homem, e a
“Cidade celeste/divina”, que pertence àqueles que
O problema do mal vivem segundo Deus, destinados à salvação. O homem
Se Santo Agostinho entende que Deus é Bem, e se bom não tem os bens finitos como fins e objetos de
tudo provém de Deus, então de onde provém o mal? Se fruição, ele é aquele que ama do modo justo, que ama
todo bem, por mínimo que seja, vem de Deus, então conforme o juízo de Deus. O amor do homem é o que
quem é o autor do mal? O filósofo buscou analisar a determina seu destino terreno e ultraterreno.
problemática em três âmbitos: o do mal metafísico-
ontológico, que está ligado à nossa finitude,
contingência, desordem em tudo que existe, e à
imperfeição; o do mal moral, que se refere ao pecado
– que, por sua vez, depende da má vontade (aqui,
devemos saber que é da natureza da Vontade tender ao
Bem supremo, ocorre que, às vezes, a vontade pode
preferir bens inferiores, consistindo em uma escolha
incorreta. O homem recebeu de Deus a vontade livre, e
o mal consiste no mau uso dela, ou seja, é fruto das
ações humanas); por último, temos o mal físico, que se
refere às doenças, ao sofrimento, à morte e é
consequência do pecado original (portanto, do mal moral).
Cabe ressaltar que, para Agostinho, o pecado original
foi o primeiro desvio da vontade e que, após isso, o
homem passou a necessitar da graça divina.
O mal, assim sendo, é de responsabilidade do
homem, que é livre e pode responder pelas escolhas que
faz e pelas consequências delas. Agostinho não
pretendia deixar ser atribuído a Deus a responsabilidade
pelo mal e pelo pecado. Por isso, o pecado que o
homem comete é culpa totalmente dele. O bispo de
Hipona reafirma sempre a bondade de Deus.

Cidade de Deus
Contemporâneo do declínio do Império
Romano, Agostinho respondeu à acusação de que fora
o cristianismo o culpado pela queda, e pôs a culpa no
paganismo. Percebam que a boa vida não é mais aquela voltada
Sua resposta veio na obra Cidade de Deus, para o desenvolvimento da racionalidade humana
onde, segundo ele, há a cidade espiritual de Deus e a dentro de uma comunidade política, cujo Bem era
cidade material dos homens. Elas não coexistem encontrado por meio da razão e ensinado por meio de
separadamente, mas no plano de nossa existência a um processo educacional virtuoso, como teorizaram os
depender de nossa vontade de viver uma vida de gregos.
pecado na cidade terrena dos homens, ou se voltar para Agora, o conhecimento do bem não dependia
deus e viver em sua graça como um de seus servos. mais de uma instrução racional, mas apenas da vontade
Na obra “Cidade de Deus”, Santo Agostinho individual de cada um, por meio do livre-arbítrio, de
discursou contra os pagãos a favor da religião cristã, viver uma vida voltada para Deus. E a compreensão de
utilizando uma representação da sociedade humana como vivê-la é obra da graça divina que ilumina o
dividida em polos opostos: um bom (cidade celestial) e coração de quem estiver aberto para isso.
outro mau (cidade terrena). A cidade celestial é o oposto
da terrena, e ambas são movidas por amores também
opostos.
Agostinho descreve o mundo dividido da seguinte
forma: o dos homens (ou seja, o mundo terreno) e o
dos céus (ou seja, o mundo espiritual). Para ele, o amor
2. A ESCOLÁSTICA tiveram um viés de realismo moderado. De acordo com ele,
o universal (homem, animal, etc.) só existe enquanto
No século VIII, o imperador franco Carlos universal no intelecto, sendo, portanto, incorpóreos.
Magno começou a estimular e difundir o ensino ao Se abstrai dos homens singulares suas características
construir escolas que seriam dirigidas pela Igreja, comuns para se obter os universais – pois não existe o
retirando dos mosteiros o monopólio do ensino. “homem universal” na realidade, apenas homens
singulares.

De consolatione philosophiae
Nessa obra, Boécio considerou que a filosofia
pode mostrar ao homem a verdadeira felicidade (que é
Deus ou o sumo Bem), bem como pode afastá-lo de
bens fictícios, que são os bens materiais. Ele afirmava
que não é nas coisas terrenas que se deve buscar a
felicidade, pois o bem não se encontra nas riquezas, nos
prazeres, no poder, nem nas honras ou glórias. Em
outro sentido, não se pode negar que a bem-
aventurança exista, pois os bens “imperfeitos”
A cultura greco-romana passa a ser divulgada participam, de certo modo, do perfeito. Seria preciso
nos moldes romanos, ou seja, passa a ser ensinado reconhecer que a felicidade é Deus, e ambos são o sumo
gramática, retórica, e dialética (trivium), além de Bem. Portanto, a filosofia nos ensina a crer na
geometria, aritmética, astronomia e música (quadrivium), providência divina, mesmo com a presença do mal, pois
todas elas, é claro, sob um viés teológico. mostra o caminho da realidade para o bem.
Essa nova fase do pensamento da Igreja é
chamado de escolástica e tem como principal O problema do mal e a liberdade
expoente Tomás de Aquino. Se o mundo é governado por Deus, como existe
o mal e por que os maus ficam impunes? Boécio
21. SEVERINO BOÉCIO enfrenta esse problema nos dizendo que a Filosofia
observa que todos aqueles que se afastam da
Boécio (480 – 524) nasceu em Roma e foi honestidade são pessoas infelizes, mas ele também se
considerado pelos estudiosos como “o último dos atenta para o fato de que as coisas andam ao contrário,
romanos e o primeiro dos escolásticos”, sendo seu por exemplo, os bons sofrem enquanto os maus se
pensamento fundamental durante o surgimento da apropriam da recompensa que cabe à virtude – uma
Idade Média. Ele tinha a pretensão de que os latinos confusão de valores. A Filosofia permite que Boécio
conhecessem a cultura grega, e compreenda os princípios que regulam tais
para isso, fez traduções e acontecimentos. Tal princípio é a Providência, que se
comentários às obras de lógica trata da razão divina, que se encontra no supremo ser,
de Aristóteles (como as que governa a todos e é senhor de todas as coisas. Já a
Categorias, De interpretatione, realização dos acontecimentos no tempo e no espaço
Organon), assim como das obras diz respeito ao que foi chamado destino pelos antigos,
de Platão, comentou também uma disposição própria das coisas mutáveis, onde a
os Tópicos de Cícero. Sua obra providência mantém cada coisa associada à sua ordem.
mais famosa é o De consolatione Os homens, no entanto, acham que tudo está confuso,
philosophiae. Boécio também mas não dão conta dessa ordem, que se dispõe
compôs tratados teológicos como: De Trinitate; Utrum conforme uma norma apropriada, orientando-as para o
Pater et Filius et Spiritus Sanctus de divinitate substantialiter bem. Nada é feito visando o mal, mas este ocorre
preadicentur; Quomodo substantiae in eo quod sint, bonae sint; devido a um desvio, um “erro de avaliação” ao se
Liber contra Eutychen et Nestorium. procurar o bem.
Então, se a providência governa o mundo,
Os universais como isso se concilia com a liberdade humana? Boécio
Ao comentar o Isagoge de Porfírio, Boécio responde que o conhecimento divino implica no
encontrou questões acerca dos universais, tais como: se conhecimento simultâneo de todos os acontecimentos,
eles existem ou não, se eles são ou não corpóreos, e caso dos passados e dos futuros. Em outras palavras, em
sejam incorpóreos, se estão ou não unidos às coisas Deus se encontram presentes os acontecimentos
sensíveis. Não foram encontradas soluções de Porfírio futuros no modo como acontecem (pois dependem do livre-
sobre essas questões, mas Boécio propôs algumas que arbítrio presentes em sua contingência). Deus conhece as
coisas futuras de acordo com a natureza que cada uma isto é, na realidade). Anselmo sustenta que, se o ateu
delas terá: necessárias ou livres. pensa Deus, então Deus está em seu intelecto – do
contrário, não poderia negar nem pensar sua existência.
2.2 ANSELMO DE AOSTA Portanto, o argumento ontológico é assim chamado em
função da análise da ideia de Deus, que está presente na
Anselmo nasceu em mente, e que, por isso, se deduz sua existência também
Aosta (1033 – 1109). Era de fora da mente. Ou seja, a ideia de Deus se inclui,
família nobre, entrou no simultaneamente, a existência.
mosteiro beneditino de Os argumentos de Anselmo sofreram críticas e
Santa Maria de Bec, na também consensos. Uma das críticas foi feita pelo
Normandia, onde se tornou monge Gaunilon, que refutou a ideia da passagem do
prior e abade. Suas obras mundo ideal para o mundo real, e um dos consensos foi
mais famosas eram o feito por Leibniz, que refez o argumento afirmando que
Monologion (“Solilóquio”) e o “o ser necessário, se é possível, existe; mas é possível,
Proslogion (“Colóquio”), além logo existe”.
dessas, temos De veritate (“A
verdade”), o De libertate Deus e o homem
arbitrii (“O livre-arbítrio”), dentre outras. Todo o As reflexões de santo Anselmo giram em torno
pensamento de santo Anselmo se refere e se baseia na de Deus e o homem, e um dos temas abordados nesse
ideia de Deus. Para ele, uma coisa é falar da existência contexto é a relação entre conhecimento e palavra. A
de Deus e outra é falar de sua natureza – essa distinção palavra (ou conceito) é mais ou menos verdadeira,
fica clara no Monologion, em que ele formula as provas a dependendo do grau de semelhança com a coisa. O
posteriori da existência de Deus, e depois elabora o conhecimento humano é medido pelas coisas, se baseia
argumento ontológico, no Proslogion. Santo Anselmo sobre o conceito. Já a palavra divina é medida das
demonstra a existência de Deus tanto a posteriori como coisas, porque é o seu modelo.
a priori. O pensamento reto exprime a realidade como
As provas a posteriori da existência de Deus ela é. Além disso, há uma retidão da vontade e da
Tais provas demonstram como, a partir do liberdade, onde a liberdade é a capacidade de agir
mundo, se chega a Deus. A primeira se refere à retamente identificando-se com a vontade do bem e
bondade, em que se afirma que a existência de coisas com a boa vontade. A liberdade humana possui o
boas remonta à Bondade absoluta; a segunda diz objetivo de conservar a retidão que, por sua vez, deve
respeito à variedade de grandezas, que exige uma suma ser amada e buscada por si mesma. Retidão da vontade
grandeza, da qual as outras participam; a terceira está e retidão do intelecto (em outros termos, justiça e
alicerçada no conceito de causa: tudo o que é existe por verdade) se encontram e se fundem. Mesmo nos casos
causa de alguma coisa, assim, todas as coisas existem em em que a vontade pode se corromper, perdendo a
virtude de um Ser supremo; a quarta considera os graus retidão e se tornando serva de vícios, ela ainda conserva
de perfeição, que devem remeter a uma perfeição sua liberdade, que é a capacidade de agir de acordo com
primeira, suma, absoluta. Santo Anselmo pretendia o bem e de não pecar.
difundir a verdade de Deus, necessitando de um Anselmo pensava em como conciliar a
argumento mais simples para os leitores, algo que liberdade humana com a onisciência divina. Responde
gerasse uma certeira convicção da existência de Deus. ele que Deus prevê as coisas no modo como
Vejamos agora qual foi esse argumento. acontecerão, porque essa previsão se encontra na
eternidade (onde não há mutação) e a realização (ou
A prova a priori da existência de Deus ou acontecimento livre) possui lugar no tempo. Sendo
“argumento ontológico” assim, a liberdade humana não está em divergência com
Como sabemos, uma prova a priori significa a presciência divina. Anselmo entende que Deus pensa
dizer que ela não depende da natureza das coisas; tem na eternidade os eventos que se acontecerão no tempo
início, então, o argumento ontológico. Resumindo, Deus é e no modo em que se desenvolverão: se forem
“aquilo do qual nada de maior se pode pensar”. Essa necessários e se forem livres. Diz Anselmo que “se um
prova pressupõe que a existência real é uma perfeição, acontecimento se cumprirá sem necessidade, Deus, que
e se Deus possui todas as perfeições, também, prevê todo acontecimento futuro, deve prever também
necessariamente, possui a existência. Desse modo, não isso. Mas o que Deus prevê será necessariamente assim
seria possível pensar Deus como existente no como Deus prevê. Portanto, é necessário que algo seja
pensamento, mas não na realidade, pois ele não seria o sem necessidade”. O filósofo relembra que a liberdade
maior. Esse argumento engloba até os ateus, que se identifica com a vontade e, dessa maneira, com a
afirmam que Deus não existe (ao afirmar isso, o ateu retidão.
quer dizer que Deus não existe fora do seu intelecto,
Razão e fé A fé auxilia o movimento lógico da razão e de
No prólogo do Proslogion, Anselmo recorre a seus conceitos. Monge Gaunilon (assim como santo
Deus com as seguintes palavras, que se tornaram Tomás) observava que, quando falamos o nome
emblemáticas: “Eu não tento, Senhor, mergulhar em “Deus”, não costumamos ir para além do som físico das
teus mistérios, porque minha inteligência não é palavras, em especial no caso dos ateus. Por isso, não é
adequada; desejo, porém, entender um pouco da tua possível sustentar que se pode deduzir a existência de
verdade, que o meu coração já crê e ama. Não procuro Deus a partir do conceito de Deus. No fundo,
compreender-te para crer, mas creio para poder te sucintamente, Gaunilon lançava a concepção realista
compreender”. Isso quer dizer que santo Anselmo dos conceitos de Anselmo e o deixava em posição de
desejava esclarecer com a razão o que já se possui com assumir que tinha a fé como fundamento.
a fé.
Havia uma pretensão de que as coisas que 2.3 ABELARDO
fossem reveladas não fossem meramente impostas por
meio da autoridade da Escritura, mas também Pedro Abelardo (1079 –
transparecesse com a utilização do raciocínio. Anselmo 1142) nasceu em Le Pallet, na
confiava muito na razão humana, que ele acreditava que França, e foi considerado a
era capaz de explicar os mistérios da fé cristã, figura mais célebre do século
demonstrando coerência, conveniência e necessidade: XII. Tinha bastante crítica em
se esclarece com a razão o que se possui com a fé. relação aos seus mestres,
Sendo assim, a expressão do pensamento de santo principalmente acerca da
Anselmo é credo ut intelligam, em que a fé é entendida natureza dos universais e ao
como a garantia da verdade da razão. uso da dialética. Ministrou
Anselmo fez duas afirmações que ficaram bem aulas na escola de Notre-
conhecidas, a saber: fides quaerens intellectum (em que se Dame (primeiro núcleo de
demonstra a necessidade de que a fé busque suas uma universidade livre na França). Abelardo teve teses
confirmações no âmbito da razão) e credo ut intelligam condenadas e rejeitadas, sendo consideradas como
(em que se afirma a prioridade da fé em relação à razão). “desvios”, o que fez com que ele recorresse ao papa
Dito isso, é possível compreender a ideia de que a fé se para uma avaliação mais justa. Seus escritos tinham
ilumina com a inteligência. A razão serve para iluminar caráter ético (podemos citar Ethica seu Scito te ipsum),
as verdades da fé através de argumentações dialéticas, lógico (destacando-se Dialectica e Glosas literais),
ou seja, por meio de normas e métodos coerentes. teológico (Theologia christiana; Sic et non) e autobiográfico
(por exemplo, Historia calamitatum; Epistolarium; Poesias).
Concepção realista dos universais
Em Anselmo há uma defesa da concepção A dúvida
realista dos universais. O problema dos medievais Abelardo elabora um princípio no qual afirma
consiste em estabelecer qual seja o estatuto ontológico que é sob o estímulo da dúvida que se empreende a
dos universais: se eles são algo como ideias pesquisa, e que por meio da pesquisa podemos chegar
transcendentes, ou pensamentos de Deus etc., ou se ao conhecimento da verdade. A dúvida constitui-se
eles são apenas conceitos mentais, se são palavras como ponto de partida (trata-se da dúvida metódica), é
insignificantes, ou se existe uma solução que se interpõe uma “fase inicial” e, para superá-la, seria preciso impor
entre as várias posições. regras, tais como: analisar o texto linguisticamente,
Explica Anselmo que as coisas boas, existentes, verificando as implicações histórico-linguísticas dos
grandes etc., não seriam possíveis se não existissem as termos; verificar a autenticidade daquilo que foi escrito, tanto
ideias correspondentes a tais coisas na mente divina, no que se refere ao autor como a possíveis alterações;
como modelos da criação. Portanto, as coisas boas, fazer exame crítico de textos duvidosos, baseando-se em
existentes etc., não seriam possíveis se não houvesse o textos autênticos e em possíveis correções; não confundir
pressuposto da bondade, do ser etc., que significam opinião citada no texto com opiniões pessoais do autor, nem
ideias universais e arquetípicas, situadas na mente divina e interpretar como solução aquilo que o autor demonstra como
sobre as quais se formou aquilo que foi criado. problema. Com essas regras, Abelardo pretendia fornecer
O realismo teológico faz uma investigação racional caráter científico à investigação, mas também sabia que
sobre os mistérios da fé cristã. Isso implica dizer que a nem sempre essas regras seriam suficientes para
posse das verdades reveladas através da fé torna entender o significado dos textos bíblicos.
possível que a razão seja frequentemente vinculada ao
seu conteúdo, e que sua investigação percorra o “Intelligere” e “comprehendere”
movimento lógico que parte da fé para evidenciar seu Depois de conhecermos essas regras,
conteúdo e iluminar suas relações. poderemos agora entender o papel que a ratio critica
(uma espécie de razão como pesquisa) tinha nas
questões que se referem a Deus. Com o conceito da universais que se aplicam a uma pluralidade de
inatingibilidade da natureza divina, Abelardo propôs indivíduos, em outras palavras, é o problema da relação
que o objetivo fosse a verossimilhança, quer dizer, algo entre as palavras e as coisas, entre linguagem e realidade.
que fosse acessível à razão humana e não contrária à Os universais podem ser: ante rem (antes das coisas
Sagrada Escritura. Isso significa que Abelardo tinha sensíveis, pois existem em si e por si), post rem (na
consciência dos limites da razão, mas também desejava mente como conceitos abstratos), in re (nas coisas
que o discurso filosófico facilitasse e tornasse acessível sensíveis, como conotações ontológicas), como puros
o discurso teológico. Portanto, a ideia era a de que a nomes (sem relação estrutural com as coisas).
razão corrobora a fé. Nesse contexto, ele faz a distinção As soluções oferecidas para o problema foram:
entre intelligere e comprehendere. Intelligere, afirma 1) a solução do realismo exagerado (de Escoto
ele, é obra conjunta da ratio e da fides (fé), enquanto que Eriúgena e Guilherme Champeaux), segundo o qual os
o comprehendere é dom de Deus. A razão impede que a fé termos universais são res, ou seja, os universais existem
seja reduzida a palavras vazias e mecânicas e a graça em si, são ante rem (antes das coisas), possuem função
divina possibilita que nós nos deixemos invadir pelas de modelo em relação aos indivíduos concretos, o que
verdades. implica dizer que o conhecimento das ideias é o
conhecimento da realidade, de forma indireta;
Ética 2) a solução nominalista (de Roscelino de
Sobre a vida moral, Abelardo elaborou um Compiègne), em que o universal se trataria de um
tratado denominado Ethica seu Scito te ipsum (algo como nome, apenas, para designar uma multiplicidade de
o “conhece-te a ti mesmo” socrático) e pensou na indivíduos. Aqui, temos uma posição cética, pois anula
consciência como centro de irradiação da vida moral, qualquer valor aos universais, afirmando que não existe
ou “consensus animi” como fundamento da moral. nenhuma ligação substancial entras as palavras e as
Abelardo diferencia o plano da instintividade, que é pré- coisas;
moral e se refere às inclinações, impulsos e desejos 3) a solução moderada de Abelardo, que é o
naturais, do plano consciente e racional, que é moral e se conceitualismo. Ele considera que os universais existem
refere às intenções, propósitos e iniciativa do sujeito. em nossa mente (post rem) como conceitos, obtidos
Assim, existem impulsos que são involuntários e por abstração. O intelecto separa dos entes semelhantes
instintivos (pré-morais) e a moralidade se origina um modo de ser comum, que será o conceito universal
quando a consciência dá seu consenso. para este grupo de indivíduos. A essência das coisas não
Os atos morais são qualificados de acordo com é captada, só seu status communis e, além disso, Abelardo
a intenção de quem opera. O destaque para o elemento entende que não podemos conhecer a realidade em si
intencional, que determina a vida moral, é feito em (uma vez que só é conhecida por Deus), mas nossos
função de três objetivos, a saber: 1) a necessidade de próprios conceitos, que demonstram apenas parte da
interiorizar a vida moral, que reside na alma – Abelardo realidade. O status communis indica um modo de ser, ou
entendia que no interior se cumpre o bem ou o mal condição de natureza comum aos indivíduos da mesma
antes mesmo de se concretizarem em atos específicos; espécie.
2) há uma convicção de que nosso corpo não é mau 4) o realismo moderado de santo Tomás é uma
nem fonte do mal; 3) contestar a prática de julgar fácil posição mediana entre o platonismo e o aristotelismo,
e de forma categórica a vida do próximo sem conhecer em que os universais possuem tríplice valor. A ideia era
seus fins e objetivos – somente Deus pode avaliar, com a de que o universal existe ante rem na mente de Deus
base na verdade, nossas intenções e examinar a culpa (como modelo/arquétipo, tal como queria Platão), in re
com juízo perfeito. como forma das coisas (presentes nos corpos
individuais, que configuram as formas aristotélicas) e
“Intelligo ut credam” post rem como conceito mental (abstratos e
Intelligo ut credam é a expressão que resume o posteriores às coisas, como presumia Aristóteles).
pensamento de Abelardo e surge do entendimento de Veremos que toda essa problemática acerca dos
que a ratio (dialética, lógica), que possui autonomia universais influenciou os diversos estudos sobre a
própria e regras específicas, pode levar à fé. Por ser linguagem e a lógica nos séculos seguintes.
autônoma, a dialética é uma filosofia racional, mas “o
fim do itinerário filosófico é Deus”. Abelardo considera
ainda que a razão não dá explicações conclusivas. 2.4 A FILOSOFIA ÁRABE
O pensamento de Aristóteles foi difundido no
O problema dos universais
Ocidente pelos árabes, em particular Avicena e
A relação entre linguagem e realidade é o
Averróis. A seguir, veremos o aristotelismo presente no
elemento essencial da questão dos universais. O
pensamento de cada um deles.
problema dos universais se refere à determinação do
fundamento e do valor dos conceitos e termos
AVICENA AVERRÓIS

Avicena (980 – 1037) Averróis (1126 – 1198)


nasceu na Pérsia e escreveu nasceu em Córdoba
obras que iam da medicina à (Espanha). Foi médico,
lógica, bem como tratavam jurista, comentador de
sobre religião, física, música. Aristóteles e metafísico, e
Dentre elas, sua principal obra dentre seus escritos, teve
foi O livro da cura, que se tornou grande destaque o Tratado
referência para a cultura decisivo sobre a concordância
ocidental. O neoplatonismo, os entre filosofia e religião, o
elementos da religião islâmica e os traços aristotélicos Grande comentário, A conjunção entre intelecto material e
integravam sua filosofia, fazendo com que ela fosse intelecto separado e A eternidade do mundo. Seus comentários
inserida facilmente no ambiente medieval. sobre Aristóteles foram feitos segundo os dogmas do
O filósofo fez a distinção entre ente e essência, Islã – Averróis chegou a afirmar que a doutrina
afirmando que os entes existem de fato, podendo ser aristotélica coincidia com a suprema verdade, e que a
entendidos como a realidade concreta, e a essência é verdadeira filosofia era a de Aristóteles.
abstrata e universal, é o “o que é” de um ente. Para As divergências entre teólogos e filósofos eram
exemplificar, podemos utilizar o “homem”, que compreendidas por ele mais como diferenças de
corresponderia ao ente, e a “humanidade”, que interpretação do que como oposição, como se alguns
corresponderia à essência. Enquanto é fato que o princípios fossem negados por uns e defendidos por
homem existe, a ideia de humanidade não implica a outros. Ele também entendia que, se ambas ensinam a
manifestação da existência. verdade, não tem como haver incompatibilidade
Assim, Avicena ainda diferencia o ente em substancial entre elas e, caso haja algum desacordo,
possível e necessário. Possível é o que existe, mas deve-se interpretar o texto religioso com base na razão.
poderia não existir, pois não tem em si sua razão de ser, Averróis também destaca que os “motores dos
apenas uma causa que o fez ser; necessário é o que não céus” e o “motor supremo”, enquanto inteligências,
pode deixar de ser, porque tem em si sua razão de ser. movem como causas finais (como bem ou perfeição)
Essa diferença é fundamental para compreender a cada céu. Contrariando Avicena, a relação entre o
separação entre mundo e Deus: o mundo é possível e motor supremo e os motores intermediários não era de
provém de Deus, mas Deus é necessário, e ser eficiência, mas de finalidade. Ele defendia que a
necessário também significa ter a capacidade de gerar a eternidade do mundo se originava da eternidade do Motor
primeira Inteligência (que produz a segunda, e assim em Imóvel como causa final do mundo, e isso condiz com
diante, até a décima). Sobre a relação entre mundo e a concepção aristotélica de Deus como atividade
Deus, Avicena considera que o mundo é contingente e necessária e eterna.
necessário, ao mesmo tempo.
O mundo não tem a sua possibilidade de forma O intelecto humano
absoluta, pois essa possibilidade está acompanhada de A tese da unicidade do intelecto possível desenvolvida
certa necessidade. Por derivar de Deus, o mundo não por Averróis pressupõe que o intelecto é único para
possui em si a existência, logo, é possível, mas também é toda a humanidade, e não é misturado com a matéria.
necessário na medida em que Deus (que lhe dá existência) Por conhecer os universais, o intelecto possível não pode
age conforme sua natureza (ou seja, Deus não pode ser individual (não pode ser forma do corpo,
deixar de criar o mundo). individualizado pela matéria), mas uno (universal) para
Deus também produz necessariamente a toda a humanidade. Se diz que a inteligência humana é
primeira Inteligência (motriz do primeiro céu), e cada potencial porque necessita da inteligência divina (que é
Inteligência vai produzindo as outras, criando também denominada agente) para passar da potência ao ato
os céus dos quais são forças motrizes. A décima (portanto, para conhecer). A inteligência agente é a de
inteligência realiza a passagem da potência ao ato do Deus.
intelecto possível; ela não gera outra realidade, atua de O saber não tem fim com o indivíduo, ele faz
forma direta sobre o mundo terreno. No âmbito parte de toda a humanidade. O intelecto possível é
gnosiológico, ela atualiza o intelecto possível (humano independente, podendo ser considerado como uma
e individual), e isso se dá através da irradiação dos “bagagem” de conhecimentos, de ideias, que estão para
princípios primeiros (assim, temos o intelecto habitual) e além do indivíduo e que vão crescendo, até se
dos conceitos universais que aprendemos por abstração concretizarem completamente – quando acontecer isso,
(temos, então, o intelecto em ato) e também pela elevação ou seja, quando o intelecto possível for atualizado pelo
do intelecto individual ao supremo intelecto agente intelecto divino, os dois se fundirão e esse processo se
(intelecto santo). tratará da união mística das religiões.
Essa tese agitou bastante os medievais em face incorporaram ideias próprias no pensamento de
do contraste com a fé na imortalidade pessoal. Ora, se Aristóteles. Dentre seus escritos, destacam-se: Sobre os
o intelecto possível não faz parte da alma humana, mas Vegetais e as Plantas, Sobre os Minerais e Sobre os Animais
se liga temporariamente a ela, então Averróis nega a (os científicos); a Metafísica, e as paráfrases da Ética, da
imortalidade pessoal. Esse pensamento foi tido como Física e da Política de Aristóteles (os filosóficos);
difícil de conciliar com a religião cristã. Comentários às Sentenças, de Pedro Lombardo, a Summa de
creaturis e o De Unitate intellectus (contra os averroistas).
2.5 A FILOSOFIA HEBRAICA DE Nota-se que
MAIMÔNIDES Alberto era um
admirador da filosofia e
Moisés Maimônides da ciência aristotélica, o
(1135 – 1204) nasceu em que fez com que ele
Córdoba, mas se estabeleceu incluísse o aristotelismo
no Cairo, onde fez parte do no pensamento cristão, e
comércio de pedras preciosas que se tornasse contra
e ministrou aulas públicas, o quem, na opinião dele,
que lhe proporcionou a fama “blasfemava” o
de filósofo, teólogo e pensamento de Aristóteles. Não só Aristóteles, mas
médico. Ao se tornar médico também Agostinho era considerado por ele outro
da corte, deixou a prática do grande mestre. Ambos foram fundamentais para que
comércio e se dedicou aos estudos. Maimônides Alberto elaborasse a distinção entre filosofia e teologia,
também foi influenciado pelas doutrinas de Aristóteles, visto que são diferentes os princípios, o sujeito, o objeto
e sua obra mais conhecida foi Guia dos perplexos – nesta e o fim de que elas tratam. Assim, ao analisar a
obra, ele tinha a pretensão de demonstrar que a Bíblia existência de Deus, as perspectivas, os resultados e as
(fé) e a filosofia (razão) são conciliáveis. finalidades serão diferentes.
Maimônides entendia que era possível tanto
demonstrar a existência de Deus como compreender Distinção entre filosofia e teologia
que Deus é uno e incorpóreo. Para ele, o mundo não é De acordo com Alberto, existem, pelo menos,
eterno, pois, caso fosse, também seria necessário, e Deus cinco diferenças entre o conhecimento filosófico e o
não teria a liberdade para criá-lo. Então, se o mundo conhecimento teológico, a saber: 1) enquanto que na filosofia
não é eterno, é contingente (isso se explica porque as se utiliza somente a razão, na teologia (com a fé) se vai
coisas existentes não possuem, em si mesmas, as razões além da razão; 2) na filosofia, as premissas devem ser
de sua própria existência). Deus era entendido como a evidentes, na teologia há uma “inspiração divina” que
causa final e eficiente de todo o universo. permite a existência de perspectivas que, antes, seriam
Ao falar sobre o intelecto agente, Maimônides impensáveis; 3) a filosofia parte dos dados, da
aproxima-se de Averróis, pois afirma que esse intelecto experiência do que foi criado, e a teologia/fé parte da
é único e separado para todos os homens, que possuem revelação, do Deus que revela; 4) a razão não nos diz o
singularmente o intelecto passivo, e conhecem pela que é Deus, enquanto que a fé, dentro de alguns limites,
ação do intelecto ativo. Isso resultaria no entendimento pode nos dizer; e 5) a filosofia é puramente teorética, e
de que a imortalidade não cabe ao homem em a fé acarreta certo envolvimento afetivo, uma vez que a
particular, uma vez que a diferença dos indivíduos existência do homem estaria relacionada ao amor de
desaparece com a “corrupção do corpo”, restando Deus.
somente o puro intelecto. Assim, Maimônides nega a Tais diferenças se devem ao fato de que o
imortalidade do homem como indivíduo, mas afirma teólogo se serve da ratio superior (da qual Agostinho é o
que ele seria imortal enquanto parte do intelecto ativo. mestre), capaz de alcançar as causas eternas das coisas, e o
filósofo se serve da ratio inferior (da qual Aristóteles é o
2.6 ALBERTO MAGNO mestre), que se detém das coisas. Em outras palavras, a
teologia está alicerçada na Revelação (que “desperta”
Não se sabe exatamente se Alberto nasceu em problemas desconhecidos), na sabedoria, enquanto que
1193 ou 1206, mas sua morte ocorreu no ano de 1280. a filosofia tem suas bases no raciocínio, na razão, na
Exerceu a docência em Paris, demonstrou interesse ciência. Alberto considera possível desenvolver tanto
tanto pelas ciências naturais quanto pela teologia, e uma como outra, a sapientia, fundamentada na ratio
pertenceu à ordem dominicana. O termo “Magno” foi superior iluminada pela fé, e a scientia, que considera as
concedido a ele devido seu pensamento científico, coisas delimitadas em si, de acordo com suas causas
filosófico e teológico obter grande destaque enquanto imediatas.
vivia. Ao estudar o pensamento de Aristóteles, Alberto
Magno procurou se distanciar dos árabes, que
2.7 SANTO TOMÁS DE AQUINO A metafísica
O filósofo distinguiu ente e essência. O ente é
Nascido em qualquer coisa que exista, e pode ser lógico (isso significa
Roccasecca, Tomás de que nem tudo o que é pensado existe no modo como é
Aquino (1225 – 1274), pensado – quer dizer, os conceitos não devem ser
também conhecido como considerados como “concretos” na realidade) e real
“doutor angélico” ou (tudo o que existe é ente, mas de modo analógico, por
“doutor universal” pela exemplo: Deus é o ser, mas o mundo tem o ser). Tomás
Igreja Católica, fez parte da de Aquino faz uma distinção entre essência e existência:
ordem dos dominicanos, toda a realidade (ou seja, Deus e o mundo) é ente (pois
estudou na universidade de tanto Deus como o mundo existem). Afirmar que Deus
sua cidade natal, na de é o ser, mas o mundo tem o ser implica dizer que em
Bolonha e foi discípulo de Deus o ser se identifica com sua essência, enquanto
Alberto Magno que o que na criatura se distingue. A essência indica “o que
indicou para ensinar em Paris, maior universidade é” uma coisa, ou seja, os dados que tornam os entes
europeia daquela época. (Deus, os animais, os homens, etc.) distintos entre si.
Se Santo Agostinho cristianizou Platão, Tomaz Diferente de Deus, que se identifica com o ser, as coisas
de Aquino cristianizou Aristóteles ao usar sua teoria possuem aptidão para ser (potência de ser), o que
filosófica para explicar a fé e até mesmo a existência de permite compreender que o mundo (e seus
Deus, que era o principal objeto de suas reflexões. Ele componentes) é contingente. O mundo não existe por
acreditava que a teologia não extinguia o saber sua própria virtude, mas em virtude de outro, que é
filosófico, nem que a fé substituía a razão. Deus. A metafísica de Tomás de Aquino apresenta a
A influência de seu pensamento penetrou toda problemática do que é o ser, ou por que existe o ser e
a Europa a ponto dele ser considerado o conselheiro não o nada, e considera que essa questão se encontra no
dos conselheiros dos reis. Ou seja, o mestre dos âmbito do mistério.
mestres. Uno, verdadeiro e bom são as conotações do
Suas principais obras são a Suma contra os Gentios, ser, são chamados também de “transcendentais” (isto é,
Comentários sobre Aristóteles e a Suma Teológica (com várias propriedades que competem a todo ser), sendo assim, o
indagações teológicas e artigos, bem como rigor ser é uno, verdadeiro e bom. É uno porque é indivisível, não
filosófico, a Suma Teológica tornou-se a obra mais contraditório e é participável; é bom porque a bondade
influente de São Tomás de Aquino). de Deus permite que ele crie amando (já o homem ama
Se em Santo Agostinho o lema era “crer para as coisas porque são boas), e indica também o grau de
entender”, aqui é “entender para crer”. Mas apesar de perfeição do ser – Tomás de Aquino diferencia ainda o
dar uma valorizada na razão, ele também a entendia bem honesto (desejado por si mesmo), o bem útil (no
como a serviço da fé. sentido de ser um meio para conseguir algo) e o bem
deleitável (desejado pelo prazer que oferece); é
“Filosofar na fé” verdadeiro porque todo ente é inteligível, racional, e é
Há, em Tomás de Aquino, duas teses aceitas por expressão de Deus, que o pensou para criá-lo.
fé, são elas: Deus é o ser verdadeiro, é supremo e Diferente de Aristóteles, que aponta para uma
perfeito; todo o resto é resultado da sua criação, livre e horizontalidade dos seres entre si e para uma analogia
consciente. Para ele, Deus é a fonte de todo o ser, ele é em relação à substância e aos acidentes, Tomás de
o criador das formas do ser e do “ser dos seres” (logo, Aquino possuía interesse pela relação entre Deus e o
nada foge à sua ação). Assim, as provas da existência de mundo. Para o filósofo, não há identidade entre Deus e
Deus, que já descrevemos anteriormente, são físico- as criaturas, mas também não há uma diferença
metafísicas, em função da relação com o ato criador. As absoluta. Pois bem, ele entendia que existia uma relação
criaturas não são o ser, mas têm o ser por meio do ato causal. de analogia, onde aquilo que se atribui das criaturas
Deus é o ser por essência, enquanto que as criaturas são pode-se predicar de Deus (o que sugere uma
por participação. Deus expõe seu ser fora de si através do semelhança), mas a diferença se dá no modo e na
amor, da liberdade e da consciência (ele criou as intensidade. Ocorre que, para alguns, essa analogia se
criaturas por amor, é o Deus do amor). Havendo aproxima mais da diferença do que da identidade, quer
questionamentos sobre a origem do mal (físico e dizer, afirmam que há mais diferenças entre Deus e as
moral), Tomás de Aquino se diferencia da filosofia criaturas do que algo que possa os aproximar na
antiga, que afirmava que o mal é o não-ser. Para ele, o identidade.
mal está mais para uma desobediência a Deus, do não
reconhecimento de que se depende de Deus, em virtude As cinco vias para provar a existência de Deus
da liberdade da criatura racional. Tomás de Aquino pensou em cinco provas (ou
vias) para demonstrar a existência de Deus. Antes de
falarmos quais são elas, é preciso ressaltar que, para ele, que ela pode ser vivida ainda nesse mundo, mas a
Deus é o fundamento de tudo, e é alcançado a partir do felicidade que ele defende é uma felicidade mais alta, o
mundo. Deus é o primeiro na ordem ontológica, mas conhecimento de como Deus é em si mesmo.
não na ordem gnosiológica – o que significa dizer que
ele vem depois das criaturas, sendo alcançado através Política
do mundo, que se reporta ao seu autor. Dito isso, Na época dele os reinos já estavam fortalecidos,
saberemos agora quais são as cinco vias de Tomás de pois as cruzadas haviam deixados os nobres senhores
Aquino. feudais empobrecidos e dependentes de um poder mais
A primeira via é a via do movimento. Essa via centralizado. Com isso, ele pôde desenvolver teorias
parte da ideia de que tudo o que se move deve ser sobres as leis internacionais, aquelas que regulam as
movido por outro (como uma passagem da potência ao ato), relações entre os reinos, e sobre a melhor forma de
pois algo não se move por si mesmo. Para não cair em governo. Não preciso nem dizer que era a monarquia,
um regresso ao infinito que não explicaria nada, apenas não é mesmo?!!!
deslocaria o problema, sem encontrar uma razão última Ele entendia que os reinos, orientados pela
do movimento, seria preciso admitir um primeiro Igreja, guiavam seus súditos até certo pondo, quando
Motor, um imutável, que é Deus. então a Igreja os orientavam para a felicidade eterna.
A segunda via é a via da causa eficiente. Aqui, O pensamento de São Tomás de Aquino, por
a relação de causa e efeito possibilita a compreensão de ser o que de melhor a Igreja produziu na idade média,
que não há efeito sem causa, ou seja, se reconhece que influenciou suas ações durante séculos. Foi o que os
nenhuma coisa pode ser causa de si mesma. e que jesuítas, responsáveis pela educação dos jovens,
deveria existir uma causa eficiente primeira, a causa de ensinaram nos mosteiros, escolas e universidades. E foi
todas as causas, que não é causada, que é Deus. sobre o seu aporte teórico que caíram as críticas de
A terceira via é a via da contingência. Se as cientistas renascentistas como Galileu, e filósofos como
coisas são contingentes (no sentido de que as coisas Descartes e Thomas Hobbes.
podem não ser), em algum momento não existia nada
na realidade. Existem coisas que podem ser e não ser, A Teoria do Direito
pois se geram e se corrompem. Nascer, crescer e morrer Inicialmente, Tomás de Aquino afirma que o
tornam as criaturas contingentes (possíveis). No homem é natureza racional, entendido como um ser
entanto, se tudo fosse possível, em dado momento no capaz de conhecer, que conhece o fim das coisas, mas
tempo nada teria existido e, portanto, agora nada não o fim último de todas as coisas: Deus. Além de ser
existiria. Tomás de Aquino afirmava que era preciso que dotado de razão, também possui livre-arbítrio, e uma
existisse na realidade algo necessário, uma causa que não disposição natural que permite compreender os
é contingente, pois está sempre em ato. Para ele, essa princípios das boas ações, assim como ele pode também
causa era Deus. rejeitá-los, resultando no pecado. O homem peca
A quarta via é a via dos graus de perfeição. quando viola as leis universais e a lei de Deus. Agora
Segundo essa prova, existem vários graus de perfeição, saberemos de quais leis Tomás de Aquino estava
do menor ao maior, por exemplo: o fogo é máximo no falando.
calor, e é causa de todas as coisas quentes. Desse modo O filósofo apresenta quatro tipos de leis que
também deveria haver algo que fosse a causa de ser de governam o mundo: lei eterna, lei natural, lei humana e lei
todos os entes, que fosse verdadeiro, nobre e bom em divina (essa está acima das demais). A lei eterna
grau máximo. Tomás de Aquino entendia que era Deus. representa o plano racional de Deus, a ordem de todo
A quinta via é a via do finalismo. Entende-se o universo, e é por meio dela que a inteligência divina
aqui que algumas coisas atuam como se tendessem para rege todas as coisas para seu fim. O homem participa
um fim, com regularidade e ordem. A causa disso não dessa lei eterna apenas em parte, como natureza
poderia ser os próprios entes, os corpos físicos, que racional – e essa participação é denominada por Tomás
carecem de conhecimento, e seria necessário o de Aquino como lei natural. Por serem racionais, os
conhecimento do fim. Estas coisas são ordenadas para homens conhecem a ideia principal da lei natural, que é
um fim porque estão dirigidas por um ser inteligente. a de que se deve fazer o bem e evitar o mal. O bem
Aquele que é dotado de conhecimento (inteligente) e implica em seguir os ensinamentos universais da
que também é causa finalizante é Deus. natureza (por exemplo, a união de homens e mulheres),
assim como implica viver em sociedade.
Ética Ligada à lei natural, temos a lei humana: esta
O primeiro motor de Aristóteles, que era a lei se refere ao direito positivo; é a lei feita pelo próprio
causa de tudo, o puro ato, São Tomás o transforma em homem (a lei jurídica). As leis jurídicas são feitas para
Deus, que tudo criou (a causa de tudo). Assim como afastarem os homens do mal, são decretadas pela
Aristóteles entendia que a felicidade poderia ser coletividade ou por quem for responsável pela
alcançada e vivida na pólis, São Tomás também entende comunidade, a fim de manter a sociedade em ordem. A
lei humana deriva da lei natural em dois sentidos: por Filosofia e teologia
dedução e por especificação das normas gerais. Para Escoto distingue as duas áreas afirmando que as
exemplificar, temos o caso da proibição do homicídio duas possuem metodologias e objetos que não se
(dedução) e a aplicação de determinada pena aos assimilam. Ele pensava que deveria ser feita uma
homicidas (especificação). Esse tipo de situação ocorre delimitação rigorosa dos âmbitos de pesquisa,
porque existem pessoas propensas aos vícios e que são estabelecendo orientações específicas da filosofia e da
difíceis de serem convencidas de algo. Assim, se faz teologia. A filosofia se ocupa do ente enquanto tal e de
necessário obrigá-las (coagir), através da força e do tudo o que a ele é redutível ou dele dedutível. Já a
temor, a evitar o mal para que, então, exista uma teologia trata dos objetos de fé. A filosofia tem um
convivência pacífica entre os homens. Isso faria com procedimento demonstrativo, o da teologia é
que elas desenvolvessem o hábito de evitar o mal por persuasivo. A filosofia dedica-se à “lógica do natural”,
vontade própria. Para São Tomás, caso a lei positiva e a teologia à “lógica do sobrenatural”. A filosofia se
esteja em desacordo com a lei natural, não se trataria ocupa do geral ou universal, enquanto a teologia ocupa-
mais de uma lei, mas da corrupção da lei, pois “não se de tudo o que Deus nos revelou sobre sua natureza
parece que possa haver lei se ela não for justa”. Na pessoal e nosso destino. A filosofia é especulativa, pois
opinião do filósofo e teólogo Tomás de Aquino, a pretende conhecer por conhecer, já a teologia é prática,
melhor forma de governo é a monarquia, pois garante pois nos diz certas verdades com o objetivo de nos
a ordem e a unidade do Estado, e a pior forma de induzir a agir corretamente.
governo é a tirania, pois atua para o mal, sendo mais
danosa. A metafísica
Por fim, ele considera que a lei natural e as leis Para evitar confusões entre elementos
positivas servem aos fins terrenos do homem. No filosóficos e elementos teológicos, Escoto considera
entanto, o homem possui um “fim sobrenatural”, que é analisar criticamente conceitos complexos, reduzindo-os a
a bem-aventurança eterna. Para atingir esse fim, tem-se conceitos simples e, para isso, ele pensa em uma doutrina
a necessidade de uma lei também sobrenatural: a lei da distinção. Existem três tipos de distinção: real (por
divina. Essa lei se encontra no Evangelho, uma espécie exemplo, Sócrates é diferente de Platão), formal
de guia para alcançar a bem-aventurança que todo (distinção entre inteligência e vontade) e modal (de
homem deseja, e que complementa os espaços e acordo com os graus de intensidade). Além destas, há a
imperfeições das leis humanas. distinção da razão, que se dá quando compreendemos
melhor o conteúdo de um conceito, sem se referir ao
2.8 JOÃO DUNS ESCOTO âmbito da realidade.
A univocidade diz respeito à essa simplicidade
João Duns Escoto em que os conceitos complexos devem ser
(1266 – 1308) nasceu no reconduzidos: o conceito mais simples, logo, é unívoco, é
povoado de Duns, na o ente enquanto pode ser predicável de tudo que existe
Escócia. Ficou popularmente de algum modo, por exemplo, Deus e o homem (que
conhecido como “Doutor existem, mas se diferem porque Deus existe no modo
Sutil”, devido a fineza e infinito e o homem de modo finito). Excluindo-se os
profundidade do seu modos de ser, o conceito de ente se aplica a ambos da
pensamento. Se formou e mesma forma. Assim, notamos que o ente unívoco
trabalhou em Oxford e Paris, possui universalidade, mas também mínima
foi aluno do convento especificidade.
franciscano de Haddington, e também estudou teologia O objeto primeiro do intelecto é o ente
em Northampton, na Inglaterra. unívoco. Escoto se questiona para quê o intelecto foi
Seus escritos são divididos em obra da feito, e responde que o intelecto foi feito para conhecer
juventude (Comentários feitos a obras da filosofia antiga) tudo o que existe, seja material como espiritual, seja
e obras da maturidade (Comentários às Sentenças de Pedro particular ou universal; o homem é capaz de
Lombardo). Além dos comentários, temos a Reportatio compreender o universo com o seu pensamento. O
que é um escrito redigido por discípulos com a intelecto humano segue o processo de abstração, para
aprovação de Escoto, que reportavam o que ele alcançar o inteligível. O conhecimento filosófico
ensinava; a Ordinatio recebeu esse nome porque foi necessita do complemento das ciências singulares e,
ditada pessoalmente por Escoto (sendo considerada sua sobretudo, da teologia.
maior obra); a Lectura que se refere às anotações do
mestre; e De primo principio, um opúsculo de Duns Deus
Escoto. Os modos essenciais do ente unívoco são os do
finito e do infinito. Mas, enquanto o ente finito é evidente, o
ser infinito necessita de uma demonstração convincente, pois ele
não possui evidência imediata. Duns Escoto lança o infinito – a noção de bem é reconduzida a Deus. O
questionamento para saber se, entre os entes existentes, direito natural reflete âmbitos mais pagãos do que
há algum verdadeiramente infinito, e se propõe a propriamente cristãos. Ao contrário do que pensavam
produzir uma demonstração da existência do ente os filósofos gregos, o mal não é erro, mas pecado,
infinito que seja a mais correta possível, com premissas deriva da vontade do homem e se difere do intelecto.
certas e necessárias. Inicialmente, ele rejeita as Escoto nos diz, na Ordinatio, que “muitas coisas
demonstrações que derivam da experiência pois, que são proibidas como ilícitas poderiam se tornar
embora sejam certas, não são necessárias. Assim, ele lícitas se o legislador as ordenasse ou, pelo menos, as
parte da possibilidade das coisas e entende que enquanto permitisse, como, por exemplo, o furto, o homicídio, o
a existência das coisas é contingente, a possibilidade é adultério e outras coisas do gênero, que não implicam
necessária: se as coisas existem ou existiram são maldade inconciliável com o fim último, do mesmo
necessariamente possíveis. modo que seus opostos não incluem uma bondade que
Escoto demonstra, então, a necessidade da necessariamente conduza ao fim último”. Os preceitos
possibilidade e se pergunta qual o fundamento disso. necessários são a unicidade de Deus e a obrigação de adorar
A razão da possibilidade não se encontra no ser somente a ele.
produzido, mas que existe e age por si mesmo, e que Aquilo que vale para Deus vale,
produz: Deus, o ente que explica a possibilidade ou a proporcionalmente, também para o homem. Duns
produtividade do mundo sem que sua existência Escoto destaca o “papel-guia da vontade”, que orienta
necessite de alguma explicação. Temos a noção de um o intelecto para certa direção e afasta-o de outra. Se o
ente primeiro, que existe em ato e é infinito (supremo e intelecto atua com necessidade natural, tendo como
ilimitado). ponto de partida a natureza do objeto, a vontade é a única
O conceito de ente infinito, ao qual o intelecto expressão verdadeira da transcendência do homem sobre o mundo
humano pode chegar, é insuficiente em si mesmo, pois das coisas. Escoto compreende que a luz do intelecto é
a essência divina não é algo que se possa ser necessária, mas não determinante, e justifica dizendo
compreendido de forma natural pelo homem, e é por que existem duas atividades diferentes (intelectiva e
meio disso que Escoto afirma que a filosofia apreende volitiva) na direção de um único objetivo. Isso quer dizer
esse assunto de modo genérico e formal (com limites), que o ato da vontade (perfeito em si mesmo), mesmo
e defende a necessidade da teologia. que seja iluminado pelo intelecto, resulta sempre da
vontade (causa principal), assim como o ato do
Haecceitas e o conceito de pessoa intelecto, mesmo sendo guiado pela vontade, procede
Escoto elabora uma teoria da individuação, que sempre do intelecto.
considera a individualidade (haecceitas) como uma Essa argumentação de Escoto leva à distinção
perfeição do ente. Diz ele que “essa entidade (a entre intelecto e vontade, que se reflete também na
individualidade) não é nem matéria, nem forma, nem natureza humana: a liberdade humana (entendida pelo
composto, no sentido que cada um deles é natureza, filósofo como a perfeição do homem) não depende do
mas é a realidade última do ente que é matéria, que é intelecto, mas da vontade. “Conhecer para amar em
forma, que é composto”. O termo haecceitas indica a liberdade”: tal é a mensagem de Duns Escoto.
formalidade ou perfeição pela qual cada ente é o que é e se
distingue de todo outro ente. Escoto reafirma o primado do 2.9 GUILHERME DE OCKHAM
indivíduo, e considera que é a realidade última que
explica a individualidade. Guilherme de Ockham
Essa teoria valoriza o conceito de pessoa nasceu na vila de Ockham,
humana, em que a individualidade é personificada ou nos arredores de Londres,
subjetivada (sua unicidade não é parte de um todo, mas na Inglaterra, em 1285, e
um “todo no tudo”; o ente pessoal é universal e morreu em 9 de abril de
concreto). A pessoa pode comunicar, condicionar e ser 1347. Tido como “o
condicionada, mas não pode perder sua identidade. No príncipe dos nominalistas”,
conceito de “pessoa”, particular e universal coincidem. ele enveredou pelas
Cada homem não é determinação do universal, pois, correntes do saber lógico,
enquanto realidade singular no tempo e que não se repete na cientifico, filosófico e
história, ele é original, porque, graças à mediação de teológico.
Cristo, dialoga com o Deus uno e trino da Escritura. Contribuiu com a lógica e com teorias físicas
defendendo a concepção do conhecimento físico de
O direito natureza especificamente empírica. Além disso,
Segundo Duns Escoto, o bem é aquilo que defendeu a ruptura entre a filosofia e a teologia.
Deus quer e impõe. Na esfera da moralidade, a ideia de Na esfera político-religiosa, defendeu a
bem como um guia operativo é dedutível do Deus autonomia do aspecto temporal em relação ao
espiritual. Ockham introduz o espirito “laico”, uma vez não-complexo (que se refere aos termos singulares e
que ele defendeu os ideais de dignidade, da criatividade aos objetos que eles designam). O conhecimento não-
e da cultura em expansão, livre de censuras, ideias que complexo pode ainda ser dividido em: intuitivo (capta a
serão desenvolvidas no Renascimento. existência ou não dos objetos, dividindo-se em sensível,
Envolvido no conflito entre o papado e o que pode ser exemplificado como “conhecer esta
império, Ockham elaborou um projeto que atingiu os mesa”, e intelectual, pois o intelecto conhece seus
fundamentos da cultura medieval, pois pretendia próprios atos e movimentos da alma) e abstrativo
redimensionar o poder do pontífice e demitizar o que (baseado no intuitivo, pode ser conhecimento do que é
era sagrado no império (Ockham chegou a ter sua abstrato ou conhecimento que abstrai algo de muitos
leitura proibida em 25 de setembro de 1339, em Paris); singulares). Há também o conhecimento intuitivo perfeito
sua ideia defendia a noção de "indivíduo" como única (que se refere à realidade presente) e o imperfeito (se
realidade concreta, assim como possuía uma tendência refere à realidade do passado). Podemos notar que o
de basear o valor do conhecimento na experiência, além empirismo de Ockham é radical.
disso, há a separação entre a experiência religiosa e o
saber racional (fé e razão), que conduziam a defesa da O universal
autonomia do poder civil em relação ao poder Ockham afirmou diversas vezes que o universal
espiritual. Esse pensamento exigia uma grande não é real – essa realidade é contraditória, é
transformação da estrutura e do espírito da Igreja. essencialmente individual. Suas ideias fazem parte do
nominalismo. Os universais são nomes, não são uma
Fé e razão realidade nem algo com fundamento na realidade.
Sobre a autonomia de fé e razão, Ockham Desse modo, compreendemos que os universais são
considerava que o plano do saber racional (com clareza termos (formas verbais) por meio das quais a mente
e lógica) e o plano da teologia (guiado pela moral e a humana estabelece relações de dimensão lógica, ou seja,
certeza da fé) são assimétricos, ou seja, são planos o alcance é apenas lógico. Os universais são “sinais
separados. Ockham demonstra que as verdades de fé abreviativos”, que indicam a repetição de múltiplos
não são evidentes por si mesmas, nem demonstráveis e conhecimentos semelhantes, produzidos por objetos
nem prováveis, isto implica dizer que as “verdades semelhantes. Um exemplo: o nome “Sócrates” se refere
reveladas” se situam num âmbito estranho ao dos a determinada pessoa, e o nome “homem” é mais
conhecimentos racionais. A filosofia vincula-se à genérico e abstrato, uma vez que se refere a todos os
teologia não por coerência racional, mas pela força de indivíduos que podem ser indicados por esse conceito
coesão da fé. (por isso, é chamado de universal). No que se refere ao
Diante disso, Ockham transforma o princípio conhecimento (ao saber, à ciência), para ele bastava um
da suprema onipotência de Deus (que é uma verdade conhecimento provável que, através de repetidas
cristã) e o coloca no lugar dos vínculos impostos pela experiências, permitisse presumir que aquilo que
metafísica. Se a onipotência de Deus é ilimitada e o aconteceu no passado teria grandes chances de
mundo é sua obra contingente, não há vinculação entre acontecer também no futuro.
Deus onipotente e os indivíduos finitos. A ligação entre
os entes individuais singulares surge da vontade divina, A Navalha de Ockham
sem necessitar de quaisquer forças metafísicas. Esse Com esta metáfora, Ockham pretendia criticar
pensamento induziu Ockham a conceber o mundo o platonismo das essências, os pilares da metafísica e a
como conjunto de elementos individuais, sem laço gnosiologia tradicional. Com a “lâmina da navalha”,
verdadeiro entre si e não ordenáveis em se tratando de vários princípios caem por terra, como o de substância,
essência. Ockham chega a negar a distinção interna de causa eficiente, de intelecto possível. Para ele, por
entre matéria e forma no indivíduo pois, caso fosse real, exemplo, o conceito de substância representa apenas
haveria um comprometimento da unidade e da uma realidade desconhecida. Nós só conhecemos das
existência do indivíduo. Assim, há um primado do coisas as qualidades ou os acidentes que a experiência
indivíduo, que tem como consequência o entendimento revela. Ockham desejava elaborar um princípio
de que o objeto próprio da ciência é formado pelo segundo o qual não fosse necessário multiplicar os entes
objeto individual, e também que há um universo e construir um mundo ideal de essências. A navalha de
fragmentado em indivíduos isolados e contingentes, Ockham permite excluir conceitos e entes supérfluos
pois dependem da livre escolha divina. (como os metafísicos), bem como acredita que não é
necessário admitir nada fora dos indivíduos, e que o
Conhecimento intuitivo e conhecimento abstrato conhecimento fundamental é o conhecimento
O conhecimento está baseado no primado da empírico.
experiência (que foi originado com o primado do Com esse pensamento crítico sobre a metafísica
indivíduo) e se distingue em: complexo (que se refere tradicional, a lógica assume outro lugar, que é mais
às proposições resultantes e compostas de termos) e autônomo e rigoroso, e é constituída por puros
símbolos. Aqui, há uma separação entre plano da física aristotélica relacionados à teoria dos projéteis
conceitual e plano real. Ockham elabora uma nova (corpos atirados no espaço), ou fez formular hipóteses
lógica, separada da realidade, com clareza na definição sobre a rotação da terra (por conta de João Buridan e
dos termos, na linguagem, em relação à realidade Nicolau de Oresme).
designada, e que exige um realismo no saber. O universo aristotélico era um sistema de causas
necessárias e ordenadas que compunham a estrutura do
O problema da existência de Deus universo, mas Ockham fez jus à metáfora da sua
Sobre o conhecimento de Deus, Ockham navalha e “eliminou” isso, superando também a
afirma que não é possível que o homem conheça a Deus hipostatização de entidades como tempo, espaço,
intuitivamente, de forma natural. Segundo ele, seria movimento, lugar natural etc., que fundava parte
preciso se basear em causas conservantes: causas que significativa da reflexão medieval. Com Ockham, se
mantém as coisas em seu ser, as quais possibilitam fecha um período e se abre outro, ou uma nova física.
inferir, da existência em ato do mundo, a existência de Os ockhamistas pensaram em um novo paradigma
Deus, como primeira e suprema causa conservante. científico que ultrapassasse o aristotelismo. Em se
Ockham deixa claro que a razão humana está tratando do método, os discípulos de Ockham opõem
em um campo restrito acerca de Deus e possui um a concepção aristotélica do conhecimento científico,
“papel irrelevante”, enquanto que a fé está num âmbito caracterizada pela universalidade e pela necessidade
mais amplo, que é o das verdades conhecidas por meio (podemos notar isso com o termo episteme utilizado por
da Revelação. A função do teólogo seria, da altura Aristóteles), o conhecimento científico do particular e
daquelas verdades, demonstrar a insuficiência da razão, o probabilismo.
não de demonstrar pela razão as verdades aceitas por Assim, vimos que a concepção ockhamista da
fé. Ockham pensa em um conceito de razão mais ciência demonstra um aspecto empírico, operacional e
rigoroso, estabelecendo seus limites, ao mesmo tempo eficaz à pesquisa que, de certo modo, antevê
em que preserva a especificidade e a alteridade das características que serão fortemente desenroladas com
verdades de fé. A síntese do pensamento de Ockham a Revolução Científica.
será credo et intelligo.

Ockham e os ockhamistas
Ockham e os ockhamistas (seus discípulos)
propuseram uma nova forma de pesquisa científica, que
tinha por base o conhecimento experimental. Para eles,
nós podemos conhecer cientificamente apenas o que se
dá por meio da experiência – fato que motiva também
a lógica, que nos permite relacionar as afirmações com
a efetiva realidade dos indivíduos (Ockham rejeita a
ideia de que entidades metafísicas sejam tidas como
concretas, como o movimento, o espaço, o tempo, etc.).
Além disso, o método de Ockham avalia que a
preocupação deveria estar voltada em como as coisas
(os fenômenos) se verificam, não que coisa são, ou
seja, não sua natureza, mas sua função.
Um outro método consiste na multiplicidade
das hipóteses explicativas. Ele não considerava possível
promover a pesquisa científica com princípios definidos
ou com estruturas necessárias. Se estamos em um
contexto de um mundo criado pela liberdade de Deus,
seria então possível examinar todas as hipóteses
explicativas, mas controlando essas hipóteses com os
dados experimentais oferecidos pelo conhecimento
intuitivo sensível. Em outras palavras, isso consistiria
em tomar em exame outras hipóteses além das que a
evidência solicita.
Ockham pensava em uma concepção do
universo como homogêneo em seus elementos
estruturais. A aceitação da pluralidade de hipóteses
possibilitou a refutação por parte dos ockhamistas a
necessidade da não-existência do vazio, ou os princípios

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