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A HISTORICIDADE E OS MOVIMENTOS
Lucas Emmanuel Plaça
O Cultural e a Situação
1
Autores como Bronislaw Malinowski, em “Una teoria cientifica de la
cultura”, resplandecem elementos de uma escola funcionalista.
colonial – por parte dos Jesuítas – e, sobretudo, as reminiscências
civilizacionais realizadas pelos mesmos teriam – como o é
aparentemente, por uma série de autores – de ser excluídas.
Ora, a cultura brasileira, no seu sentido real, conformando o
seu produzir-se, pode ser, neste seu primeiro estágio de
nascituro, eideticamente vislumbrada como uma forma inicial da
continuidade civilizacional ibérico-europeia, da que também
continuava os símbolos adquiridos pelo salto do Cristianismo,
através da procedência da traditio2, historiologicamente
considerada. O condensarem-se destes arquétipos histórico-
civilizacionais, consumando-se, a pouco e pouco, pelo trabalho
social e espiritual dos Jesuítas, desde sua chegada até sua
expulsão, com efeito, se resplandece nas mais diversas áreas do
país; assim como relatado, não foram poucas às vezes em que
povos de origens tão distintas, coadunados nestas relações,
almejaram-se em uma unificação em defesa e em
prosseguimento de seus valores. Vários fatos demonstram que,
mesmo quando a cultura brasileira estava em formação, ela já
carregava em si uma bagagem civilizacional tremenda e
profundamente reproduzida3. A língua e a literatura, a filosofia e
a teologia, e uma série de outros elementos que adentram o
Brasil neste tempo, conformam o espírito e a mentalidade da
sociedade que só poderá agir e se desenvolver neste plano
existencial, quando os seus fundamentos culturais estão
interligados e abertos para com a própria realidade.
Isto é, os alicerces do cristianismo, desde seus tempos mais
2
Traditio, do Latim, “Tradição”.
3
Mário Ferreira dos Santos, aproveitando dos conceitos de Spengler n’A
Decadência do Ocidente, expõe a diferenciação entre “cultura” – como
produzir-se – e civilização – como produto.
remotos, ao condensar a dinâmica social no que tange o homem
(traditio), e o homem no que tange a esfera transcendental e
contemplativa (filosofia e teologia), atualizava o fato cultural
como um intercâmbio entre o ser e a realidade; o espírito
brasileiro, portanto, carregando uma indicação simbólica de
todas aquelas caraterísticas essenciais, consagrava-se como em
um terreno de cultura intelectual e de tradição do conhecimento
filosófico, enquanto não se permitia transgredir os limites reais
impostos pela própria reciprocidade de ideias.
A consistência existencial é constantemente atualizada pelas
noções e cosmovisões cristãs da realidade, da qual, por causa de
resplandecer seu espírito, seus reais fundamentos e a
intencionalidade mesma do amor ao próximo, fora integrando
povos em um coeficiente comum de tradições, em um corpo
cultural rígido, mas sensato, que a princípio nada conheciam de
tais noções e de tais alicerces. Em evidência, nada demoraria
para que esta forma cultural, um verdadeiro organismo de
aspirações espirituais, desse por iniciado o seu combate em
frente a situações – criadas pelo espírito moderno – que
barrassem e que pouco se interligassem para este aspecto
fundamental da sociedade e da moral; é daí que surgem as
primeiras figuras, a princípio religiosas – no início, como
Nóbrega, Anchieta e mais adiante quando surge o célebre e
influente Antônio Vieira – que, se por um lado publicamente
tentam amenizar a situação política, social e econômica –
quando, neste caso há evidências que demonstram que no fundo
estes eram completa e exaustivamente avessos à tal situação –
outros começam já a criar tremendas e fortes críticas contra os
maus-tratos e, sobretudo, a escravidão. O horizonte de
consciência da sociedade é fortemente marcado por esta
dificuldade; e o legado cultural e espiritual jesuíta influi com
mais força diante destes aspectos. A sociedade e seu espírito que
se encontra a partir do século XVII em diante, é uma da qual sua
fisionomia assume esta forma, e suas condições irão sempre
clamar pela falta de uma unificação concreta desta forma; em
outras palavras, essa forma potencial-cultural sempre esteve
diante de problemas políticos muito fortes e muito substanciais
para o desenvolvimento real da sociedade. De suas características
mais marcantemente presentes, esteve na falta de uma unidade
que os condensasse; ora, realmente, não bastava um condensado
– relativamente simples de um todo cultural – destes mais
diversos povos. A necessidade de um simbolismo, de um vetor
que desse sua direção, sustentado necessariamente no espírito da
sociedade política concedido pela tradição luso-brasileira, era,
desde seu início, a principal necessidade política no que
concerne o fato cultural no Brasil.
O espírito político, a intenção monárquica, desde dentro a
formação cultural, trazia consigo linhas de significado ideais,
atraindo a pouco e pouco a atenção do corpo social para esta
ausência da formalidade política, do qual teria de se contentar
concretamente as irregularidades governamentais particulares de
que tinham efeito; e sob distância extensiva, a corte portuguesa
pouco poderia influir, quanto mais condensar a representação
simbólica da sociedade brasileira. Ora, Eric Voegelin na Nova
Ciência da Política, estabelecendo a diferenciação do significado
político da representação, contendo, por alto: a) o significado
usual, como sendo um vínculo de simplicidade entre a sociedade
mesma e o poder estabelecido (Instituições Representativas), b) o
significado existencial, do qual pode se resplandecer como fato
histórico, entre o sentir da sociedade representada pelo poder
autenticamente existente, e c) o significado simbólico, do qual o
próprio sentido da representação tem de estar interligada a
historicidade das sociedades políticas e, como tal, nada mais é
que o valor do símbolo da ordem transcendente. A maioria dos
intelectuais, analistas políticos e historiadores da política
brasileira, não nos concedem uma benéfica compreensão desta
correspondência da própria sociedade, quando em frente à
realidade transcendental. Seria preferível que não se fizesse
somente descritivamente; pois, desde logo, percebemos que a
consistência cultural do Brasil já continha estes valores de cunho
transcendental, e que voltavam seus olhares para o mesmo
constantemente. Esta última concepção da representação,
simbólica, era a única da qual, em realidade, esvaziava a conduta
natural do homem político, entrando em uma verdadeira tensão
cultural pela razão de sua inexistência concreta e factual.
Tanto isto se resplandece que tivemos as primeiras figuras,
bem como Tiradentes quando, de frente para com a situação
nociva em Minas Gerais – mas que, no fundo, era mais geral do
que se pensava – não resplandece senão uma verdadeira
confusão histórica e intelectual em sua presente atuação, do qual
se por um lado entende-se – por fundamentos históricos – que
este homem continuava e disseminava os princípios cristãos, por
outro o mesmo servirá de personagem-cabide para justificação
de uma série de atos revolucionários pelas regiões mais diversas.4
No entanto, os ânimos desta e de outras situações, como já
vimos, não foram revolucionárias em essência; se o fato social,
de frente com a política, por um lado revoltava-se, era mais pela
falta de uma substancialidade cristã e simbólica dentro do
4
Iremos investigar, com cuidado, estes aspectos mais adiante.
funcionalismo político, e dentro da concepção mesma de
representação. Sem a instauração concreta deste tipo, a cultura –
ou o ciclo cultural – pode, ao longo de sua trajetória, mediante
influências que não são legítimas e que não lhe são propriamente
adaptadas, perder elementos da sua consistência formal – que é
dinâmica, que age factualmente em prol de uma instauração
legitimamente monárquica e/ou imperial – e reduzir seu
horizonte de potencialidade historial.
Destarte, sabe-se que o produzir-se cultural brasileiro
acompanhou, de perto temporal e às vezes fisicamente
(mediante os embates) uma série de outros processos. Levanta-se
a questão mesma do processo de secularização da sociedade
moderna, que surge, curiosamente, ao mesmo tempo
(praticamente no mesmo século) que fora encontrado a Terra de
Santa Cruz. E este mesmo processo, esse desenvolver-se, não
teve seu influir rápida e facilmente no que concerne o Brasil; a
Europa, em diversas ocasiões das quais citamos anteriormente,
esteve de frente para com certas situações criadas que, a
princípio, mal saberiam catalogá-las em sistematização. E isto
retém certas razões historiológicas próprias, referentes ao
desenvolvimento mesmo das sociedades-políticas, e o fundo em
que se baseiam suas ordens civilizacionais e existenciais. Este
processo, portanto por vezes um tanto despercebido de sua
substancialidade, encara, por trás da superficialidade dos
acontecimentos e dos fatos históricos brutos, já a tão
considerados como atomísticos e sem agentes reais, não só a
secularização de cunho social, as rupturas religiosas e as quebras
culturais resplandecidas: na verdade, este aspecto já advém
também de outros, que não são única e exclusivamente de cunho
gnóstico do pensamento moderno5. Mas, também, temos o
principal deslocamento do transcendente para o imanente –
sobretudo, dentro da política – e que então se repassa e difunde-
se no espírito social e histórico através de mitos que representam
a deificação de entidades e valores meramente temporais.6
II
5
Existe certa correspondência das próprias entidades e sociedades que
foram afetadas.
6
Ver: A Nova Ciência da Política, Eric Voegelin.
imediatos7, bem como os mediatos8, passam a ter outras
características que não são bem as mesmas que estavam em
atuação predominante anteriormente. Isto é, apesar da pós-
mudança da sede do vice-reinado, da Bahia ao Rio de Janeiro
em 17639, que mui naturalmente veio a dar por iniciado um
condensar cultural mais profundo ao longo dos fatos, nós vamos
encontrando um verdadeiro debruçar do espírito e das ações
políticas, bem como as de que participam a própria sociedade
inter-relacionada, Portugal e Brasil, a assuntos diplomáticos, de
negócios e de administração que não conseguem desta vez
ultrapassar os limites marcados pela territorialidade, pelo
funcionalismo público e, sobretudo, pela marca dada pelos
conflitos Ibéricos anteriores. Tais conflitos, bem como nos
referimos, com efeito, não se referem somente à parte militar
ou diplomática, da qual os entraves portugueses e espanhóis
tiveram ali sua conformação ao longo de muitas datas; em
específico, mais propriamente aos conflitos idealísticos, no
campo da história das ideias, em que a cientificidade real são
substituídas por valores que se afirmam modernizantes, e que,
portanto não podem compactuar com o real desenvolvimento
das sociedades, pelo exame da traditio; onde, pela aspiração dos
ideais iluministas, visa-se extirpar os conhecimentos da tradição
filosófica e, sobretudo, da teologia, enquanto reduz toda a gama
de produção intelectual à tudo aquilo que o espírito português,
por tanto tempo, teve evitado: os exageros modernos da ciência,
que afloraram-se nas escolas racionalistas e empiristas. Desde a
sistematização dos elementos de uma filosofia “natural”, em
7
Pentadialeticamente, a “série social”.
8
Idem, a série “historial”.
9
Ver: História do Brasil, João Armitage, página 38.
Portugal, com Marquês de Pombal, temos uma série de
mudanças e aspectos que se afloram pelas bases educacionais e
os meios intelectuais, desabrochando, por fim, na estrutura
política mesma.
Uma das principais características, mas das quais todas
podem envolver-se em um pano de fundo que regerá boa parte
dos processos intelectuais, de formação e de estudo da própria
realidade, está inserido propriamente já na concepção moderna
da ciência política, levando consigo a sua gênese desde o
pensamento de Nicolau Maquiavel; ainda não é bem
compreensível como que o tema da descrição10 das sociedades
políticas e de seu desenvolvimento cultural profundo, matéria
que por alto só permite penetrar no fenômeno da
existencialidade mesma dos fatos, conseguiu, na própria
América Portuguesa e sua correlacionada, das quais traziam
consigo uma verdadeira densidade histórica, consideradas em
historicidade espiritual, substituir, a pouco e pouco a percepção
em profundidade intensiva da história.
A procedência, apontada pela afirmativa anterior, é
facilmente encontrada, não no pensamento histórico desta
circunstância, mas nas manifestações possíveis de sua
historiografia; João Armitage, longe de admirar a crescente
vertente metodologista, é obrigado a atualizar, no entanto, os
documentos oficiais e toda uma série de elementos que estavam
ao seu alcance direto; e a massiva maioria das documentações,
10
A investigação científico-moderna da Política, desde as suas
concepções filosóficas, passa a residir-se, ao longo dos séculos, em uma
cosmovisão própria que gera em seu produzir-se uma série de métodos
que permitam a catalogação dos fatos políticos sem a necessidade de
adentrar a substancialidade real dos acontecimentos e dos processos.
quando referidas aos interesses da corte portuguesa, segundo
todas as suas notas e particularidades essenciais, não revelam
senão já uma espécie de ruptura ou, dependendo dos agentes do
processo histórico – dos quais consideramos: 1-) ora os
criadores, que manifestam-se na alta cultura, abraçando os
deveres de uma ética aristotélica, devidamente manifestados em
produções literárias e filosóficas, 2-) ora os agentes sócio-
políticos – uma verdadeira estranheza para com a participação
real do ser diante do desenvolvimento luso-brasileiro
considerado em sua historicidade. A procedência dos fatos
políticos que ali identificamos internamente ligados à
cosmovisão meramente processual e atomística da realidade
histórica, bem como o depósito exagerado de importância e
atenção no que tange os aspectos funcionais, as diretrizes, os
regimentos e os assuntos econômicos desde dentro aos aspectos
da administração e do governo português, puderam desde logo
serem identificados em meados do século XVIII, mais
precisamente na década de 1760 em diante; pois, é a partir
deste momento, tendo em vista a necessidade formal de uma
maior precisão nos controles econômicos e políticos, somados à
transição da sede do vice-reinado, que se coadunam a
necessidade administrativa em que seus dirigentes e todo o
funcionalismo interno têm de estar aptos a colaborar para com
os novos termos: em suma, com uma nova cosmovisão que
exigiu o reducionismo no que se refere à procedência do fato
“político”, para com seus partícipes.
Em evidência, não é somente a partir deste momento em
que os problemas – ou, insuficiências – levando seu caráter da
representação às superfícies das aparências documentais,
registros e de uma formidável atenção para com os assuntos
econômicos, eram existentes; ademais, já mutualmente
relacionados para com os embates que o espírito cristão já
formalizado, e o caminhar da aspiração monárquica simbólica e
concretamente, desde a absorção e engrandecimento dos
arquétipos e alicerces tradicionais do conhecimento gerado
desde o tempo medieval, encontráveis no produzir-se político e
literário da colônia, na América Portuguesa11.
Neste caso, realmente, há certas causas remotas12, pelo
próprio produzir-se econômico, sob seus aspectos próprios dos
quais se referem à escravidão, em concomitância para com a
expulsão dos Jesuítas, que deverão influir nos aspectos culturais
e ideais desta conjuntura, que permitirá o agregar de elementos
estranhos; elementos, estes, propriamente do pensamento
moderno, levando a sua cientificidade e suas manifestações
políticas às últimas consequências. Tem-se agora, portanto, os
critérios para uma visão mais profunda e extensista, das
condições que o Brasil, neste momento, estará enfrentando;
mas, na investigação dos fatos, não encontraremos o real influir
que estas causas remotas – do próprio pensamento moderno,
em face da tentativa de extirpação dos alicerces fundamentais
da filosofia e de uma teologia política, personificada
anteriormente pela Companhia de Jesus – tiveram por
realizado. Pois, nenhum fato histórico – no sentido hegeliano –
pode ser dado como atomístico separado e abstraído de seus
agentes reais.
11
No primeiro volume, assim o fizemos: catalogamos, sobretudo, o
produzir-se interno da cultura brasileira, da qual sua existência na sua
tensão entre um ser em formação nacional e um ser em continuidade,
pelos seus laços, de Portugal.
12
Escola Aristotélica.
A procedência destes elementos pode ser encontrada na
seguinte asserção do próprio João Armitage, onde “[...] o ciúme
do Governo Português o movia constantemente a ter receio do
engrandecimento de qualquer entidade, ou corporação que para
o futuro pudesse opor-se ao exercício de sua dominação; e para
este fim não só os empregados civis e eclesiásticos eram mais
oprimidos do que na Metrópole, como também se embaraçava
sistematicamente o aumento dos grandes proprietários. Os bens
de raiz só podiam ser vinculados em virtude de permissão
expressa do soberano; e todas as manufaturas, com exceção das
de açúcar, eram severamente proibidas [...]”13. Se levado em
conta o espírito britânico desde a Gloriosa, onde seu escopo
político afasta-se magistralmente dos aspectos Ibéricos – o que,
para uma explanação mais completa, no momento não nos seria
benéfico pela falta de espaço e pelo assunto que tratamos –
somado às limitações já de certo modo expostas, temos, ainda, a
mesma imagem de Portugal desde o fato de Tiradentes, com um
agravante maior: o reducionismo político afasta-se cada vez
mais de uma afetividade eclesiástica, uma das classes mais
importantes na consagração histórica da sociedade-política
Ibérica.14
Isto, em evidência, também dizia respeito à situação em
que se encontrava o Brasil.15 Neste caso, nos períodos de
13
Ob. Cit. Página 44.
14
Toda a tradição da Ordem dos Templários e as mais diversas formas de
afirmação do Cristianismo, desde os tempos mais remotos de Portugal,
sempre estiveram intimamente interligadas.
15
Realocamos esta citação por questões práticas; pode parecer-lhes
estranho, ou no mínimo como sendo uma ação anacrônica de nossa parte,
intitular a América Portuguesa deste momento já como sendo “Brasil”;
mas as razões, bem como estamos expondo, não são de quesito
transição do século XVIII ao XIX, mais precisamente entre
1790 a 1801 no governo Conde de Resende, tornava-se cada vez
mais percebível os efeitos da cisão anterior; “[...] a educação
havia feito muito pouco progresso; os conhecimentos dos
eclesiásticos eram geralmente limitados a um mau latim; e o
indivíduo feliz que reunia o conhecimento deste e do francês,
era olhado como um gênio tão transcendente, que de grandes
distâncias vinham pessoas consultá-lo. A ciência política era
desconhecida pela quase totalidade dos habitantes do Brasil. As
história da Grécia e Roma, o Contrato Social de Rousseau, e
alguns poucos volumes escritos de Voltaire e do Abade Raynal,
que haviam escapado à vigilância das autoridades, formavam as
únicas fontes de instrução [...]”. Um verdadeiro estrago, um
retrocesso; de um lado, os anseios da própria estrutura Política
em afastar os tipos revolucionários; de outro, através das
brechas encontradas no caminho do conhecimento, tendo de
substituir as instruções transcendentes e os valores universais
pelos valores mundanos e imediatos através do avanço nos
degraus da política e da sociedade.
Seria-nos muito estranho enunciar uma sistematização dos
conhecimentos de uma ciência social da época, da qual desse
um profundo exame das relações sociais e de suas categorias em
face de uma política desfavorecida. Na verdade, é bem possível
dizer de que este estudo, engatinhando nos meios intelectuais e
atraindo a atenção dos homens eruditos, por influência nada
poderiam realizar senão uma verdadeira confusão de matéria de
16
Nestes termos, jamais se deve confundir o adentrar filosófico no
campo da história com a subdivisão dela: Teleologia dos fatos ou
conjunturas.
17
Este assunto, tratamos, conformando apenas o “produzir-se literário”,
no volume anterior.
18
Cito-os, ambos, por terem uma diferença temporal imensa,
demonstrando por alto de que a disparidade entre os conceitos históricos
e os desenvolvimentos de cada situação, levados pelos indivíduos e
grupos, ainda não estão plena e profundamente resolvidos e penetrados.
foram os únicos quanto a esta situação. Sob este aspecto, vale
salientar de que quando Silva Alvarenga fora submetido a um
interrogatório a respeito de suas aspirações e os documentos de
que tratavam a Sociedade Literária, no ano de 1795 – em plena
atuação Conde de Resende – e quando o mesmo negou as
acusações de conter e disseminar ideias revolucionárias19, logo
fora demonstrado seus pertences, livros de Abade Mably e
Rayal, dos quais incitavam ideias expressamente republicanas e
antimonárquicas; este fato, para muitos, era o que demonstrava
o verdadeiro anseio da sociedade brasileira, considerada em um
sistema de classes, como também considerada quando
desenvolvida uma cosmovisão que explicasse a situação no
critério de real-ideal. Isto é o que dá a compreensão de
ninguém menos que Caio Prado Jr., nas seguintes asserções “[...]
esta conspiração [referente ao aspirar ao governo republicano
pelos movimentos, adendo e grifo nosso] representa um dos
fatos mais profundos e de maior significação social em nossa
história. Consistiu numa articulação revolucionária, realizada
entre as camadas populares da capital baiana, e em que se
envolveram escravos, libertos, soldados e modestos artesãos. O
nome que lhe foi dado veio precisamente dos vários alfaiates
(uma das principais profissões artesanais da época) que
tomaram parte no movimento. Ao lado destes setores
populares, aparecem alguns intelectuais. Entre eles, Cipriano
Barata [...]”20. A máxima da filosofia da história materialista está
expressa nesta assertiva, da qual, somente compreenderá o nexo
de causa e efeito dos elementos revolucionários à priori de uma
19
Ver: Obras Poéticas, Silva Alvarenga.
20
Ver: Evolução Política do Brasil, Caio Prado Júnior.
revolução social genuinamente brasileira; mas, há um
condensar de matéria mais profunda que jamais poderá ser
limitada aos critérios de “classe, raça ou Estado”21. Isto,
curiosamente, foi possível de ser levantado por Armitage; no
entanto, conseguiu Oliveira Lima uma maior precisão, em sua
obra Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira que, como
a própria epígrafe assim menciona, o autor se interessa pela
formação de um ideal nacional, não propriamente interligado
ao sistema político como tal, muito menos nos aspectos
existenciais da Monarquia; assim levanta de que “[...] nunca
teorias tão atraentes haviam ressoado aos ouvidos dos que
sonhavam com o progresso da espécie humana, e para quem o
futuro parecia ter reservado, não mais vagas esperanças, mas
soberbas realidades. Os filósofos franceses do século XVIII
imaginavam muito a América como uma terra admiravelmente
dotada pela natureza, mas que gemia sob a opressão de ferozes
metrópoles. [...]”22.
Neste caso, finalmente temos os elementos históricos
brutos dos fatos, que podem ser facilmente identificados na
estrutura desta formação da mentalidade revolucionária; como
vemos, não é propriamente o espírito da cultura brasileira que,
no seu desenvolvimento, incita e passa a ter, como dado per se,
o “fenômeno da autoconsciência de classes” ou o arquétipo de
uma filosofia natural e especulativa que fundamente todas as
notas e particularidades da necessidade de uma revolução
21
No caso do critério de classe, já evidenciamos de que seria uma pérfida
presunção imputar aos revolucionários de então alguma aspiração
genuinamente sistematizada de uma ciência social.
22
Ver: Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira. Oliveira Lima,
página 130.
republicana: pelo contrário, trata-se propriamente daqueles
elementos estranhos de que, por fundamentos historiológicos,
tratamos há pouco.
A sociedade contém elementos historiais próprios que
permitem tanto o influir de outros pensamentos, como também
construir abstratamente relações eidéticas entre os mesmos.
Isto quer dizer que, realmente, uma vez que a compenetração
do símbolo moderno da ciência, como sendo o louvor à razão e
o deificar dos valores mundanos, adentra o campo de um fato
histórico, as raízes de sua coadunação para com um ciclo
cultural – ou, meramente, aquilo que podemos considerar como
um estágio social de frente para com a situação política – é
possível de serem identificadas única e exclusivamente pelos
agentes reais que as produzem; mas isto definiria uma distinção
histórica: a) aqueles que consagram a permanência do
pensamento cultural cristão e monárquico, e b) aqueles que
incitam à nova cosmovisão da realidade. No caso examinado, da
Sociedade Literária – e que esta por sua vez tem relação
histórica com uma série de outros grupos do mesmo tipo-
sociológico – é percebível de que, não só a forma literária, mas
propriamente a estrutura perceptiva e os fundamentos
epistemológicos e doutrinários são completa e exaustivamente
análogos aos da República das Letras, de que dizia Voltaire23.
Não somente ela, mas tanto a sociedade literária como as outras
incitações intelectuais, manifestadas concretamente nos
movimentos de massa na América Portuguesa e também em
Portugal, retém fortes inspirações da literatura filosófica
moderna francesa, na qual intensivamente interna como
23
Voltaire e a República das Letras.
molduras de ação histórica que influíram na Revolução
Francesa de 1789. Este agregar, por sua vez, avança numa certa
estrutura de ideias que novamente não está devidamente clara;
a posição de historiadores como Luís Henrique Dias Tavares,
em Introdução ao Estudo das Idéias do Movimento
Revolucionário de 1798, referente aos objetivos da Conspiração
dos Alfaiates, na Bahia, semelhante à de Otávio Tarquínio de
Sousa, procuram dar um entendimento sincrético no que tange
as possibilidades intelectuais e formais dos revolucionários
franceses e as realizações dos movimentos realizados no Brasil;
tanto tentam realizar, que as asserções “[...] não devemos
colocar as idéias sociais acima das idéias de Independência e
República. No texto dos boletins, nas declarações dos
revolucionários [...] o que podemos perceber é que esperavam
da República a igualdade de direitos [...]. Os revolucionários
não podiam ter a concepção socialista, -- que concebe a
igualdade como a abolição das classes sociais [...]”24, neste
sentido, temos uma certa comprovação de que o escopo da
cientificidade social não estava nem um pouco clara; mas a
permanência de objetivos da aspiração republicana-francesa,
paradoxalmente, permanecia.
Como tal, tais elementos só poderiam adentrar através de
sociedades de pensamento político semelhante e que
dispusessem de meios semelhantes; a passagem do
transcendental ao imanente vemo-la primeiramente aqui. Não
é, portanto, que a expulsão concreta das produções jesuítas,
como sendo o fator do fundo existencial da cultura brasileira,
ou a decadência anamnésica científico-política representada
24
Ob. Cit. Página 30.
pelos governos internos e pela própria Coroa, fora a gênese
concreta da criação de uma nova cosmovisão; em realidade, tal
já estava em formação nos princípios da modernidade25. Mas
que, na passagem dos séculos, trouxe, através da minúcia de
seus espíritos, a justificativa de uma área antitética às ações
culturalmente arraigadas ao sentir e existir cristão, eclesiástico
e político tradicional. Este aspecto, quando analisado sob a
estrutura da mentalidade revolucionária em formação,
encontra-se resplandecidos na análise de Eric Voegelin, na obra
citada anteriormente, como também nos volumes de História
das Idéias Políticas; mas, chegando à concomitância de noções
históricas concretas e efetivas, bem como assinala Oliveira
Lima: “as idéias republicanas no Brasil são, pode dizer-se sem
risco de incorrer em inexatidão, o resultado direto das suas
sociedades secretas, algumas delas disfarçadas com o nome de
academias, devendo englobar-se nessas instituições de caráter
revolucionário as lojas maçônicas, importadas do estrangeiro
[grifo nosso], rebentos de árvores européias, ou meras criações
originais, americanas. [...]”. Deste modo, a situação que
catalogamos passa, cada vez mais, a ficar pontualmente mais
clara.
Ora, a existencialidade do histórico indica formal e
materialmente a sua contingência essencial; nos princípios
ontológicos da história26, vemos que a exclusividade dos fatos
demonstra de que a realidade temporal dos acontecimentos, as
25
Se houver este correspondente, será dado por fora, no produzir-se
histórico da própria civilização europeia. O Brasil, no seu produzir-se,
encontra-se numa outra fase de ideias.
26
Ver: Filosofia e História da Cultura, Vol. 1, Mário Ferreira dos
Santos.
suas sucessões, se dão pela irreversibilidade interna e a
reversível condição das constâncias reais, portanto mutáveis; a
percepção histórica da realidade, seja sob suas notas de uma
historicidade plena, seja pelos fatos do acontecer humano social
e culturalmente considerado, tem de estar fundada e sustentada
nestes elementos já adquiridos e consagrados pelo salto para
dentro do ser medieval – e que do qual Mário Ferreira dos
Santos os considera como sendo apodíticos. No entanto, a
intelectualidade do iluminismo, sobretudo as escolas
revolucionárias francesas, sobrecarregada de tensões
historiológicas e perceptivas que não permitiam o debruçar do
espírito para com este elemento fundamental da história
somado ao critério filosófico-moderno das aspirações e dos
axiomas universalistas e generalistas, virtualizaram os critérios
e fundamentos ontológicos da historicidade real, enquanto
atualizavam aspectos abstraídos do real desenvolvimento das
sociedades-políticas. Este fato intelectual é o que ocasionará e
dará possibilidades meramente idearias a fundação da
concepção teleológica da história; Voegelin, em um breve
exame deste ponto, dizia que este elemento já estava presente
em Kant, do qual “[...] expressou algumas preocupações,
confessando um “pasmo”, de que as gerações precedentes à
fundação final deveriam ser meras estações transitórias da
razão; úteis e talvez necessárias no caminho da perfeição, mas
não tendo nenhum valor absoluto em si mesmas [...]”27; nesta
formulação de sentido, a formação de uma percepção
teleológica da história implicará na passagem dos valores reais-
históricos para o contingente futuro: nos termos teleológicos, os
27
Ver: Anamnese, Eric Voegelin, página 70.
reais valores históricos estão, de antemão, dados pelo
desenvolvimento da razão, depositados no hipotético futuro, ou
na atualidade de sua realização.
A relevância filosófica que os intelectuais da República das
Letras depositam numa forma de razão histórica, fora profunda
o bastante para transfigurar-se – não necessariamente de modo
dialético – em movimentos de ações revolucionárias e de
mudanças da ordem da estrutura social estabelecida
tradicionalmente; a Sociedade Literária, bem como os
movimentos republicanos que agora ocorrem, não realizam
senão esta mesma inversão dos valores dados na história. A
proclamação de um ser republicano ou de um ser
revolucionário, no sentido teleológico, seria o equivalente em
enunciar a autoconsciência da realidade mundana e histórica,
contendo o poder e dever moral da alteração dos malefícios
sociais e políticos – no caso dos movimentos franceses e
brasileiros, a Monarquia – mesmo que isto exclua e extirpe
todos os arquétipos das criações e dos estágios alcançados
anteriormente pelo ser humano; neste sentido, o caráter
messiânico28 das tentativas revolucionárias, justifica-se a
despeito do traditio, que aceitam as criações axiomáticas da
liberdade e de estruturas políticas estranhas pela falta de uma
penetração antropológica e soteriológica do ser.29
28
Sentido em que Voegelin emprega os movimentos de massa
revolucionários.
29
O Voegelin expressa estes tipos gnósticos como sendo não somente
uma “revolta contra o Logos, mas também uma revolta contra o homem”;
enunciamos estes elementos, como necessários, pois se trata justamente
da falta de uma boa compenetração dos símbolos transcendentes, e o
estudo metafísico, no que concerne a ciência política e histórica, que
estes tipos revolucionários vieram a surgir.
Os revolucionários, de então, fogem do produzir-se real da
sociedade, vislumbram seu ciclo cultural por fora, para no fim
tentarem aprisioná-la com seus ideais, tentando torná-la do
modo como suas cosmovisões assim entendem, demonstrando,
nada mais nada menos, do que um espírito de arrogare ante
todo o desenvolvimento filosófico, bem como uma abertura
mais precisa ao transcendente alcançado pelo cristianismo.
Portanto, neste caso concreto destes pequenos processos
revolucionários, a herança cultural da busca de uma ordem
unitária regida pelo todo do tecido social fundamentado pelo
senso de reminiscência, entrelaçados através da continuidade
do processo civilizacional e pelo enriquecimento dos traços
simbólico-filosóficos e teológicos que, por exclusividade e
constância histórica, adentra o campo da sociedade-política
através da sistematização dos princípios jus-naturais30 da
existência, são constantemente tentadas a substituição pela
força ludibriante do contratualismo-social jus-racional, que
encontra sua afirmação de validade quando em face das aporias
políticas concretamente estabelecidas.
Mas, as profundezas da historicidade cristã jus-natural, não
poderão ser completa e exaustivamente extirpadas de sua
methéxis real pela independente ação factual da imanência dos
valores, não conformando senão uma visão artificialista da
sociedade-política e da própria estrutura da realidade. Das
raízes reais, que relevam dimensões antropológicas e noções
antropogeográficas, até os estágios e graus do conhecimento da
história e a anamnese de qual situação, estado e papel está
30
O Princípio Jus-Natural está presente desde a sistematização
filosófico-teológica de São Tomás de Aquino, como sendo a participação
eterna para com Deus.
inserido o ser neste momento, apesar de não ter sido tão
obstaculizado na esfera da existência pelos movimentos de
massa – dos quais, sem dúvida causaram certo estrago de
percepção histórica – tais elementos perdurarão, porém, com
um novo hiato.
O Caráter Cultural Simbólico
II
34 No sentido do Livre-Arbítrio.
sistemática ou, por outras palavras, da erudição filológica á
reflexão metafísica. Fonseca é, no próprio juízo de Suarez, o
autor de uma tradução tão "elegans et dilucida, ut fere sine
expositore a quo vis intelligi possit", e como crítico do texto da
Metafísica de Aristóteles não faltam louvores ao seu labor
gigantesco (A. Carlini; Ramón Ceñal, etc.); e Suarez, por seu
turno, aparece aos olhos da crítica contemporânea, sobretudo
depois do juízo de Martin Grabmann (1917), como o verdadeiro
instaurador da investigação objectiva e sistemática da
Metafísica, sem se vincular directamente á letra de Aristóteles
[...]”35. Neste sentido, o próprio Joaquim de Carvalho tem de
reconhecer que Pedro da Fonseca “não foi apenas um notável
intérprete do pensamento de Aristóteles porque também deu
expressão vigorosa e original a urna atitude metafísica que deve
ser situada a par da de Suarez, na linha em que historia e
sistema se conjugam para investigarem os temas filosóficos mais
necessários á fundamentação da Teologia”36, quando no exame
das grandezas filosóficas encontradas neste setor. Portanto, sua
linha de significação estará, de fato, interligada aos processos da
intelectualidade Jesuíta.
Historicamente, na medida em que se logra a conquista de
uma metafísica mais atualizada em Portugal, sobretudo, pela de
St. Tomás de Aquino, e que o debruçar do espírito filosófico se
dá por uma constante da inteligência tradicional – onde,
constante e gradativamente pode-se identificar uma linha
rígida na investigação da realidade – e da qual logo se apoia nos
35
Ver: “Pedro da Fonseca, precursor de Suarez na renovação da
metafísica (JOAQUIM DE CARVALHO, pela Universidade de
Coimbra)”.
36 Idem.
princípios e nos lanços simbolizados já alcançados pelos
esforços anteriores, necessariamente tal é o arquétipo fundado
no espírito da cultura intelectual no Brasil; desde o Ratio
Studiorum – por conseguinte, desde o início da formação
intelectual – tinha-se a perfeita “obrigação de se seguir S.
Tomás conforme todo o rigor tomístico como em sua Escola se
ensina”37; o desejo de ampliar o horizonte de consciência,
como, por exemplo, no intérprete tomista renomado, João de S.
Tomás, em Cursus Philosophicum, traz a marca do
medievalismo português e se transfere, desde dentro, aos
primeiros colégios jesuítas. O condensar da esfera cristã e social
neste período se, por um lado se dava pela concretização física
de Igrejas – carregando a simbólica interna e externamente
considerada – por outro, a permissão do especular filosófico e o
debruçar do espírito sobre a traditio também estava inclusa: e
estes recebem, desde os primeiros momentos,
desenvolvimentos de grande valor, como através de Manoel do
Desterro, contendo alguns tomos de Philosophia Scholastica. A
prova de que havia correspondentes fora do tomismo, mas que
participavam também da esfera simbólica do cristianismo é
facilmente encontrado nos escritos de Frei Gaspar da Madre de
Deus, que realçava a filosofia platônica; e, neste aspecto, surge
um ponto importante.
Desde a tentativa de sistematização filosófica de Pedro da
Fonseca (que não deve ser entendida como sistematização no
sentido moderno do conhecimento) até a passagem para a
esfera religiosa e cultural do Brasil, o principal traço
II
62
Ver: A Monarquia Brasileira – José Murilo de Carvalho, acerca do
desenvolvimento das monarquias absolutistas e parlamentaristas.
63
É o caso em que já investigamos, pela cultura simbólica, no capítulo
anterior. A data que se pode estipular segue, ainda, até os finais da
influência direta da Companhia de Jesus.
fechamento, por sua vez, exige – ou, melhor dizendo, fortalece
– a cosmovisão instaurada pelo esforço teorético anterior, seja
pela preservação das monarquias tradicionais, seja pelo
fortalecimento das monarquias absolutistas. A dificuldade de
diferenciar e identificar os problemas políticos e espirituais
reais se devem, em larga medida, pela modalidade subjetivista –
também fortalecida pelo símbolo da nova ciência – em que a
realidade política aparece como objeto, fora de um todo
unitário integral do ser, no sentido da participação na
existência e, sobretudo, fora do seu critério puramente
histórico. Neste sentido, a experiência histórica fica em
segundo plano, e os lógoi da existência política não poderia
mais ser investigada senão pela especulação e investigação que a
nova ciência proporcionaria.
É por este motivo, e não outra razão historicista que
objetivaria enunciar tal fato como sendo o desenvolvimento
normal no curso da história humana linear, que o fluxo de
percepção histórica da existência da sociedade-política e, da
própria civilização, recai em um verdadeiro descompasso entre
a história das instituições e da ciência, da filosofia e da própria
espiritualidade cristã. “Nos tempora sumus”; a história e o
tempo, desde St. Agostinho, se por um lado já traziam em si
uma vastíssima tensão, condensada no símbolo cristão da tensão
do homem entre eternidade e tempo, por outro se resolvia na
medida em que a percepção da história como tal era verossímil
e apreensível limitadamente e quando considerada como
apenas uma das partes em que o homem se situa na existência;
“in consideratione creaturatum non est vana et peritura
curiositas exercenda; sed gradus ad immortalia et semper
manentia faciendus”64. O estudo da história, e o que se extrai
dela, na ciência medieval parte-se deste postulado. No entanto,
no esquecimento do terreno dos princípios ou, no caso da
gênese da doutrina liberal, onde afugenta o homem para
princípios axiológicos subjetivos, o critério espiritual não mais
tem relevância além dos casos onde o conflito religioso e
institucional ocorrera; não é senão nesta instauração dogmática
que a percepção histórica do liberalismo se funda como
ideológica. A partir de uma deformação de um potencial
“história espiritual”, só era cogitada na medida em que fossem
considerados os agentes de determinados grupos religiosos, ou,
para exemplificar, a “história espiritual” só poderia ser
considerada no sentido institucional e, quando muito, espiritual
apenas para seus adeptos. A ideia de uma “Igreja Cristã
Universal” parecia, para os modernos e, em especial, para os
primeiros liberais, uma ilusão, uma utopia, incapaz de
reconciliar os laços anteriores.
Esta perspectiva não se dá no início por um embate puro
entre a Igreja e a ideologia liberal. Mas a sua base negativa (de
negação) já estava presente. Em “Time, History and the
Writing of History: the Order of Time”, Hartog, expõe que por
volta do século XVIII – com a data simbólica da revolução
francesa – houve a instauração de um novo regime d'historicité:
“[...] Entendidos como uma expressão da experiência temporal,
regimes não marcam meramente o tempo de forma neutra, mas
antes organizam o passado como uma sequência de estruturas.
Trata-se de um enquadramento acadêmico da experiência
64
Ver: De Vera Religione, Santo Agostinho.
(Erfahrung) do tempo, que, em contrapartida, conforma nossos
modos de discorrer acerca de e de vivenciar nosso próprio
tempo.” Desde a Renascença até a Revolução Francesa, muitos
teóricos humanistas e liberais abraçaram a instauração de uma
nova historicidade a cerca do passado; já em meados de 1500,
Loys le Roy, humanista bem conhecido, em “De la vicissitude
ou variété des choses en l'univers”, utiliza ainda a orientação
cristã do tempo, mas agrega à ela um outro coadjuvante, o
símbolo do progresso moderno, porém baseado na História
Magistra de Cícero. A reformulação constante da historicidade
do ser, dos mais diversos grupos e de ideologias nascentes, não
demonstra somente seu interesse pela história – como muitos
teóricos da historiografia limitam-se a isto – mas também que
tal interesse revela, em Montaigne ou Tocqueville, em Locke
ou Rousseau, em Descartes ou Kant, dentro de uma linha
temporal realmente extensa, dois pontos importantes: a) a
revolução e inversão da percepção histórica não era somente
um caráter do liberalismo, mas parte essencial do espírito da
modernidade e, b) apesar de estar claro, por ocasião, é difícil
enunciar em que medida o liberalismo criou uma nova
cosmovisão da história e em que medida apropriou-se do
espírito moderno.65
Destarte, o esforço de periodização da história em “antiga,
medieval e moderna” não diz respeito à história em si mesma,
mas na verdade ao pensamento moderno ideológico, como
65
Por ora e pela extensão da matéria, teremos de nos limitar
neste elemento; pelo fato da percepção histórica do mundo antigo e
medieval através dos modernos surgirem, praticamente, como fenômenos
unitários, podemos limitar nossa investigação por aqui – apesar de
evidentemente incompleta.
também aos grupos de pressão revolucionários de tal modo, que
a existência espiritual do ser humano fora, a pouco e pouco,
sendo rejeitada. O caso das reformas religiosas são problemas
pneumáticos; o caso da experiência intelectual liberal é uma
reação ao problema espiritual; e a revolução francesa, no
sentido da historicidade do ser, é a causa última da inversão do
tempo.
III
66
Ver: História do Liberalismo Brasileiro, “O Legado das
Reformas Pombalinas”, pág 9. Antônio Paim.
sua noesis, em sua participação e na natural existência temporal e
eterna. A ambiguidade do fenômeno pombalino, no que tange a
reformulação da experiência cultural, se apresenta, porém em
outro nível de iluminação da existência, nos termos em que a
atualização cristã só se forma em critério da própria manifestação
dos regimentos políticos diante da sociedade e da cultura;
enquanto, por outro lado, o fenômeno da resistência espiritual
desgasta-se ao passo que não encontra senão na própria estrutura
política estabelecida o muro de proteção às ideologias
manifestamente revolucionárias que então surgiam.
Embora as descrições historiográficas estejam de acordo no
que concerne à manifestação pombalina acerca da ciência, a
razão da ambiguidade teorética e cultural não se apresentou em
maior número de produções – das quais, não é preciso dizer de
que há pressupostos históricos da historiografia intimamente
ligados para com esta investigação. Para elucidar este aspecto,
apesar de nenhuma motivação surgir explicitamente aos fatos do
desenvolvimento científico, tal se apresenta diante do horizonte
de consciência historiográfico: “as ciências naturais, mal vistas
ainda, eram como que bastardas a quem a generosidade e a
clemência de Pombal tinham dado morada e agasalho naquele
arrogante morgado literário que assentara em Coimbra o seu
solar. Eram ciências de plebeus e quase desconhecidas por
advenidiças e carecentes de costado genealógico”67. A visão de
Juliano Moreira acerca da situação era, a dizer, a mesma de
Fernando Azevedo, no que diz “nesse largo período de
obscurantismo interrompido apenas pelo rasgão luminoso que
67
Ver: Juliano Moreira em “O Progresso das Ciências no
Brasil”.
nêle abriu a administração do príncipe flamengo, as discussões
estéreis, de um preciosismo até o ridículo, em que se debulhava a
inteligência nas academias literárias, não deixavam lugar ao
espírito objetivo e ao exame cerrado das idéias e dos fatos”68. Não
deixar lugar “ao espírito objetivo” e ao “exame dos fatos” é a
visão tenra da mentalidade portuguesa “excessivamente literária,
robusta e obscurantista”. No entanto, ao passo em que a
descrição historiograficamente aceita limita-se ao critério
puramente extenso dos fatos, outras manifestações e fenômenos
modernizantes criavam uma nova estrutura de consciência da
realidade e da existência. Ela se inicia, talvez não precisamente,
já com a figura de Silva Avarenga, na chamada satírica O
Desertor das Letras, cujo nome traz a então percepção histórica e
o seu sentido no decorrer do produzir-se real que a historiografia
remete-se.
Do mesmo modo, a visão de um dos agentes principais na
construção do Império, José Bonifácio, partilha do mesmo nível
de percepção histórica. “Dos Brasileiros que estudaram na
Universidade de Coimbra, reformada pelo Marquês de Pombal, o
maior de todos, José Bonifácio, mineralogista notável, “o
português Andrada” que Bruhns menciona entre sábios de
reputação universal, companheiros de Humboldt, desenvolveu
intensa atividade científica, em países europeus, publicou
memórias sôbre as minas de Portugal e regeu a cadeira de
metalurgia na Universidade de Coimbra; de volta, porém, ao
Brasil, a política agitada do tempo o arrebatou às ciências, a cujos
progressos ninguém melhor podia servir, para fazer dêle um dos
69
Ob. Cit, Idem.
70 As primeiras páginas concedidas por Otávio Tarquínio de Sousa, um
de seus maiores biógrafos e intérpretes de suas idéias, ser-nos-á
benéfico em próximas ocasiões.
71 Ver: Sylvio Romero em Obra Filosófica.