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PROJETO DE DISSERTAÇÃO

A RENOVAÇÃO NOS CONCEITOS DE TRADIÇÃO, HISTÓRIA E


MEMÓRIA E O DISCURSO DO PATRIMÔNIO NO BRASIL (1930-1950)
RESUMO

Pensar sobre a ampla temática acerca da identidade nacional brasileira, ou melhor, da


construção desta identidade, nos implica necessariamente em pensar o que representaram as
décadas de 20 e 30 do século XX. Certamente se trata de um período profíquo em colocar em
voga novas questões e novos problemas, e colocar em xeque antigas interpretações1. Não
seria, no entanto, possível ou mesmo exequível elencarmos este problema em sua totalidade
como um objeto de pesquisa, num sentido em que este é demasiado vasto para um só
trabalho. Assim sendo é preciso que enxerguemos alguns dos problemas e perguntas que
emanam deste grande campo, na tentativa de melhor balizarmos esta situação. E é neste
sentido que venho a elencar um problema que emerge destas discussões, que apresentarei a
seguir após um pequeno preâmbulo, que permitirá ao leitor compreender o contexto que cerca
o problema.

As primeiras décadas do século XX no Brasil são o cenário de transformações


profundas em diversas categorias analíticas das ciências sociais brasileiras como um todo, de
maneira que essas mudanças com toda certeza foram catalisadoras do grande processo de
reinvenção nacional. A elaboração de um novo sentido da história brasileira permitiu que se
empreendesse uma gama de ações e debates que visaram a elaboração do que seria uma
cultura genuinamente nacional, autóctone e popular. Devemos apontar ainda que esse é o
momento auge do movimento modernista, que também foi parte central desse processo e
dialogou enormemente tanto com intelectuais públicos e abnegados quanto com aqueles
intelectuais orgânicos, ou seja, a serviço do Estado. Dado este quadro geral se faz necessário
apontar a emergência da figura de Gilberto Freyre, que veremos a partir de agora ter sido
autor de maior importância para este contexto.

A partir de Casa-Grande & Senzala, que representou a substituição do conceito de


Raça pelo de Cultura como chave interpretativa e pela alteração que empreendeu nos
conceitos de Tradição, História e Memória2, veremos como se lançou a busca pela cultura
nacional no passado, mas não qualquer passado, se tratou de um passado orientado pelas
próprias perspectivas freirianas. Este passado representado pela tese conservadora de Freyre

1
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira: (1933-1974): pontos de partida para uma revisão
histórica. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2008.
2
VELOSO, Mariza. Gilberto Freyre e o horizonte do modernismo. Sociedade e estado, v. 15, p. 361-386, 2000.
se irradiou por inúmeros setores da sociedade civil, e se obteve êxito em fincar raízes foi
porque encontrou terreno fértil.

Gilberto Freyre além de lograr em obter um enorme prestígio, também veio a ocupar
cargo como membro no Gabinete do Serviço do Patrimônio Histórico e Artistíco Nacional, o
SPHAN. Este que foi encarregado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas a iniciar um longo
processo de salvaguarda de bens que seriam insígnes, e de certa forma contariam uma história
sobre a nação. Iniciaram-se diversos processos de constituição de inventários e tombamentos
de itens caros a trajetória brasileira através do tempo, para então elaborar uma alegoria sobre a
“brasilidade”3. A elaboração dessa alegoria esteve sob intervenção direta dos intelectuais de
Estado e de Freyre, e ambos compartilhavam um certo viés modernista. Estiveram também no
Gabinete do SPHAN e no conselho de Membros Consultivos nomes como Rodrigo M. F. de
Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Afonso Arinos de Melo Franco, Mário de Andrade e
Manuel Bandeira. Esclarecido o contexto do objeto, iniciarei agora o contorno sobre o que é o
objeto em si.

Estando encarregados da fabricação desta nova identidade nacional pelo viés do


patrimônio, e estando presente o próprio Freyre dentro do mais alto gabinete da instituição,
qual foi o papel deste autor e sobretudo ator social? Em que medida sua renovação nos
conceitos de tradição, história e memória se fez influente nas escolhas do patrimônio
histórico? Em que medida estas ideias podem ser encontradas como reflexo no patrimônio?
Entendendo, em primeiro lugar, que a ideia de reflexo aqui deve ser entendida não de
maneira como a coisa se apresenta, descolada do seu sentido original4, mas sendo o reflexo a
própria coisa em si. Ainda, se quisermos balizar estas questões pela noção de “cronotopo”,
formulada por Bakhtin, podemos obter novas perspectivas de indagações. O patrimônio
cultural enquanto “cronotopo” está dotado de uma função simbólica e narrativa, e é capaz de
trazer o tempo passado para um presente vivo e real, onde os nós do tempo-espaço são
amarrados e desamarrados a todo momento5. Estes conceitos freirianos renovados seriam
marcados então

3
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os Arquitetos da memória: Sociogênese das práticas de preservação do
patrimônio cultural no Brasil (Anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.
4
ADORNO, Theodor W. The Jargon of authenticity. London: Routledge & Kegan Paul, 1975.
5
BAKHTIN, Mikhail. The dialogic imagination. Texas University press, 1985.
por uma ambiguidade, estariam na narrativa, e ao mesmo tempo fora dela, representam a
realidade e ao mesmo tempo são a realidade, transmitidos pelo próprio patrimônio6

O objeto explicado de maneira direta pode ser visto como essa relação discrusiva e
objetiva entre Gilberto Freyre, suas ideias e o SPHAN. Nesse sentido, partimos da indagação
de como, quando e onde estes conceitos freirianos renovados de tradição história e memória
foram fatores direcionantes na lógica de salvaguarda patrimonial e construção alegórica da
nação. O SPHAN, para além de uma discussão sobre patrimonio e preservação, difundia
tabém uma ideia sobre a cultura nacional, correlata a de Freyre. As categorias do autor nesse
sentido também prefiguram uma nova realidade histórica que, pode mostrar a investigação, se
imprimiu no patrimônio histórico e artístico nacional. Estando impressas estas categorias no
patrimônio brasileiro, o que este enquanto ferramenta pedagógica nos conta sobre a nação? E
pensando num viés de análise historiográfica, o que este patrimônio, impregnado destes
conceitos renovados, pode nos dizer sobre o momento em que foi elegido como tal?

Para empreender uma investigação minuciosa que dê conta de responder a estas


questões, é preciso num primeiro momento explorar através de uma bibliografia, as redes de
sociabilidades envolvidas e que dão conta de explicar as relações de modo objetivo. Tanto os
intelectuais de Estado quanto o próprio Freyre estão certamente inseridos conjuntamente no
horizonte modernista, porém urge a necessidade da construção de uma rede discursiva
precisa, num sentido em que esta seria capaz de também nos fornecer fecundos subsídios
para esta pesquisa. Lançar mão da construção desta rede discursiva significa entender como a
emergência de ideias correlatas possibilitou a possível incorporação das teses e dos conceitos
freirianos nas instituições, e mais precisamente no SPHAN.

Assim selecionei uma massa documental que corresponde primeiramente na revista do


SPHAN, onde se encontram uma série de publicações de diferentes e relevantes nomes desta
instituição. A revista nos permitiria enxergar quais as teorias e as ideias circulavam dentro
desta instituição, mais precisamente quais os elementos da tese freiriana estariam presentes,
num sentido em que ela contém uma grande riqueza textual. Em segundo plano, mas não
menos importante, os periódicos em que Gilberto Freyre contribuiu com alguns escritos, eles

6
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: Os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996.
teriam a função de entender a operacionalização dos conceitos a serem estudados num veículo
de enunciação para as massas.

ADEQUAÇÃO DO PROJETO DE DISSERTAÇÃO AO PROGRAMA

O presente projeto de pesquisa, nos termos de sua adequação ao programa de pós


graduação, se vê ancorado em alguns pontos chave da ementa da terceira linha de pesquisa,
Poder, Linguagens e Instituições. Empreender um esforço de investigação do objeto aqui
pretendido implicaria em balizar a temática invariavelmente por dois eixos, que podem
conferir consonância com os quadros em que se prentende inserir a pesquisa.

O primeiro deles relaciona-se com a dimensão dos estudos da linguagem, que aqui,
assim como entende também o programa, não se trata apenas de um meio de comunicação ou
de se fazer entender, mas de uma ferramenta capaz de prefigurar uma realidade histórica e
social. O núcleo duro do trabalho a ser executado se configuraria em uma tarefa de desnudar
um regime discursivo, para então entendermos como se operacionalizaram as ferramentas de
representação nele presentes, e que puderam sobrevier ao tempo sendo capazes inclusive de
manter vivas as possibilidades de um projeto político.

O outro eixo de consonância faz referência ao fato de que o estudo a ser realizado por
este trabalho envolve uma concepção muito precisa das ideias de representação e reflexo.
Estas duas categorias estarão presentes em todo momento, e entende-las de uma maneira
superficial solapa qualquer perspectiva de execução de um trabalho antenado com a
contemporaneidade destes estudos. Nesse sentido, ao trabalhar com a face representativa do
patrimônio não se entende que ela carrega um reflexo da sua produção como a ideia de uma
imagem vulgarizada e distorcida, mas uma imagem capaz de estruturar a construção de
possibilidades dos sujeitos. A representação do passado pelo viés do patrimônio também não
pode ser concebida de maneira a separar do símbolo a sua potência criadora no espaço social,
que estaria vinculada certamente as noções e conceitos que mediaram sua escolha.

Para a escolha do orientador, a primeira opção será pelo Prof. Dr. Marcelo Santos de
Abreu. Sendo uma de suas áreas de atuação os usos públicos do passado, entendo que há
muita sinergia com algumas das propostas do projeto, já que este tem como fundamento
central a transposição de certos conceitos para o patrimônio e a eventual transposição ao
público, tendo em vista que ele possui uma importante dimensão pedagógica. É preciso ainda
ter em vista que as transformações empreendidas por Gilberto Freyre não ficaram de maneira
alguma restritas a um certo campo acadêmico ou intelectual, mas atuaram na sociedade de
maneira a prefigurar uma certa realidade histórica. Freyre é entendido aqui, antes de tudo,
como um intelectual público e que seu trabalho pode e será trazido para o campo analítico da
História Pública.

Já para escolha em segunda opção, elegi o Prof. Dr. Arnaldo José Zangelmi, tendo
como área de atuação Movimentos Sociais, Identidade e Memória e História oral. A escolha
pelo Dr. Zangelmi se deu pois esta proposta de investigação tem como um pano de fundo a
própria ideia que se construiu sobre a identidade, história e memória nacional pelo viés do
patrimônio, e sobre como a renovação feita por Freyre a impactou severamente. E para muito
além do fator de área de atuação, penso que o trabalho do professor em “Lembrar em Aruega:
esquecimento, silêncio e história”, de maneira brilhante elaborou um pensar sobre memória e
historicização de um processo específico, e que penso ter muito a contribuir.

DELIMITAÇÃO DO TEMA

O lançamento da obra Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, inaugurou no


Brasil uma série de questões, que se desenharam desde a escolha e o tratamento das fontes até
um novo quadro teórico e analítico. No entanto o objeto aqui proposto se conforma em como
a renovação nos conceitos de tradição, história e memória empreendidos pelo autor fincou
raízes na Intelligentsia brasileira de época, mais precisamente no Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, o SPHAN. E mais além, como este fincar de raízes numa
instituição de Estado possibilitou a constituição de um novo olhar, uma nova lógica e
sobretudo a prefiguração de uma nova realidade histórica através do patrimônio. Freyre
apresentou uma noção de memória e tradição arraigada a um passado ainda presente, vivo,
vivido e reificado7, em que nele poderiam ser encontradas as minúcias originárias de uma
cultura autóctone e popular.

7
NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de História: a viagem, a memória, o ensaio: sobre Casa-grande & senzala e a
representação do passado. São Paulo: UNESP, 2011.
Estando incumbido esse órgão da preservação patrimonial e salvaguarda de bens
notáveis e insígnes da história brasileira, este funcionava sob uma certa lógica, a da
construção da memória e da alegoria sobre a nação, devidamente orientada pelo projeto de
poder vigente8. Sendo assim, a busca no passado por uma cultura brasileira genuinamente
popular e autóctone não foi uma tarefa autruísta ou ingênua, mas devidamente guiada por uma
gama de novas noções que surgiam num novo horizonte discursivo, que se tornou possível
através de um conjunto de condições próprias de um tempo e espaço.

Gilberto Freyre, de maneira objetiva, não integrou diretamente os quadros desse


movimento intelectual, mas certamente que possuiam ideias correlatas, eles estiveram ligados
quase que por uma espécie de Zeitgeist, um espírito de época, foram homens antenados à um
tempo9.

Alguns textos que trabalharam essa dimensão, de maneira interessante, procuraram


inserir Freyre dentro desse grande movimento a partir do surgimento de ideias correlatas dos
dois lados. É nesse sentido que busco me apoiar nesta perspectiva, pois estando Freyre dentro
do Gabinete do SPHAN, possivelmente houveram diálogos e compartilhamento de certas
ideias, e estando esse gabinete ocupado também por célebres nomes do movimento
modernista brasileiro houveram certos influxos de pensamentos. Ainda, existem trabalhos que
já se ocuparam da tarefa de estabelecer ligações objetivas, pessoais e redes de sociabilidade
entre os membros do gabinete, e que são capazes de desvelar essa dimensão imediata das
relações10, eles podem servir de subsídio para a pesquisa, mas de forma alguma se lançaram
no estudo que se pretende neste projeto.

Ao consultar a bibliografia sobre o tema, pude perceber que não houve ainda o esforço
da construção do que seria uma série discursiva precisa, que desse conta de encaixar, ou
melhor, relacionar de maneira concreta as ideias correntes no SPHAN e a renovação
conceitual que Freyre lançou mão. O que se percebe é que as novas noções de tradição,
história e memória freirianas podem ser, de maneira opaca, visualizadas no que foi elegido
enquanto patrimônio, mas paira nesse aspecto uma espécie de lacuna. Assim, seria produtivo

8
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os Arquitetos da memória: Sociogênese das práticas de preservação do
patrimônio cultural no Brasil (Anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.
9
VELOSO, Mariza. Gilberto Freyre e o horizonte do modernismo. Sociedade e estado, v. 15, p. 361-386, 2000.
10
SILVA, André Fabrício; FAULHABER, Priscila. Narrativas sobre o patrimônio: Rodrigo Melo Franco de Andrade,
redes de sociabilidade e a escrita do patrimônio na Revista do Patrimônio (1937-1945). Anais do Museu
Histórico Nacional, v. 51, p. 150-173, 2019.
trazer algumas noções de Bourdieu para esta investigação. O autor entende que as produções
discursivas não se transpõe para a classe do real a não ser por um trabalho político de
mobilização, que sem dúvidas o Serviço do Patrimônio logrou em fazer com a tese freiriana.11

É ai que se pretende com este projeto, primeiramente, o levantamento e a construção


dessa rede discursiva que abarcou Gilberto Freyre e suas ideias, e serviu de ponte para sua
influência na academia SPHAN. E adiante, a investigação dos limites da possível influência
que exerceram essas novas noções conceituais descritas acima, sobretudo no que foi elegido
enquanto patrimônio nacional. E por fim, uma investigação da forma em que este patrimônio
enquanto linguagem e objeto didático possivelmente ainda carrega desses conceitos
renovados.

Podemos ainda fazer o esforço de transformar este objeto em indagações como: Quais
os limites das ideias freirianas no Gabinete do SPHAN? Como os conceitos renovados de
Tradição, História e Memória influenciaram na escolha do patrimônio que viria a constituir a
alegoria sobre a nação? Como os processos de tombamento carregam essas noções? O que o
Patrimônio, enquanto objeto didático e pedagógico, ainda carrega destes conceitos renovados?

Gostaria ainda de sugerir que um recorte espacial muito restrito do problema não seria
muito adequado, pois o Serviço do Patrimônio teve atuação em todo território nacional,
certamente que em algumas regiões mais do que outras, mas ainda sim estabelecer um recorte
tão artificial seria colocar uma barreira nesta investigação. Ainda, é possível enxergar que o
espaço onde está localizado o problema pode ser considerado um espaço sócio-histórico,
sendo um dos objetos de análise um discurso, e sua eventual transposição a prática de
conservação patrimonial12. Como algumas das fontes estabelecidas foram as revistas do
SPHAN e diversos periódicos, seria imprudente estabelecer esta barreira, visto que as próprias
fontes versam sobre diversas regiões do Brasil. Em se tratando de estabelecer um recorte
temporal, podemos encontrar uma tarefa mais fácil. A pretensão de análise das fontes se daria
do início da década de 1930 até o final da década de 1940, onde os discursos acerca do
patrimônio e da cultura nacional encontraram um outro momento e um outro debate. Não se
trata aqui de um marco arbitrário, mas um que tem em vista o fim de um momento muito

11
BOURDIEU, Pierre. Espaço social e espaço simbólico. In: Razões práticas. Campinas: Papirus, 1996.
12
ARÓSTEGUI, Júlio. La investigación histórica: Teoría y método. Historia contemporánea, 1996.
específico e o início de um outro dotado de diferentes características, que responde muito
mais a produção lançada pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o ISEB.

JUSTIFICATIVA

Os estudos sobre o patrimônio histórico no Brasil certamente são hoje um campo de


pesquisas consolidado, tendo a partir da década de 1990 despontado estudos que se
apresentaram como uma novidade dentro de um antigo tema. O quadro acadêmico que se
ocupou e ainda se ocupa desta temática vêm contribuindo para a totalidade do conhecimento
científico a partir do estabelecimento de novas perspectivas teóricas e novas interpretações,
que tendem cada vez mais abrir caminhos para novos olhares. As investigações acerca do
patrimônio histórico não se limitam mais a uma discussão dos bens em si ou dos processos de
tombamento, elas conseguiram transpor essa barreira de maneira a alargar os limites da
temática, que hoje inclui trabalhos que versam sobre os regimes discursivos e as
possibilidades de transformação da realidade concreta a partir dos símbolos e das narrativas.

A proposta de trabalho apresentada aqui, desse modo, se insere num campo de


interesse vasto e dialoga tanto com aqueles trabalhos já célebres quanto com aqueles que
ainda estão tomando corpo na academia. Seria então o caso de mapear quais são os principais
interlocutores que permitem que essa pesquisa não fique encastelada ou isolada, mas que seja
capaz de ter utilidade para outros pesquisadores. José Reginaldo Santos Gonçalves
estabeleceu uma pesquisa sobre os discursos do patrimônio cultural brasileiro mobilizando
um aparato teórico que foi eficaz em balizar a temática de uma maneira em que bastante me
apoio13. Uma análise das ideias correntes de época certamente seria capaz de fornecer
subsídios para a construção de uma interpretação das políticas de conservação, porém sem
um aparato teórico adequado não se é capaz de trazer à tona os respectivos motores de ação
que engatilharam toda uma sequência de procedimentos e operações. Tanto o trabalho de
Reginaldo quanto este visam um estudo dos discursos enquanto mobilizadores de
transformação social, não fazendo uma separação artificial entre o mundo simbólico e o
mundo concreto.

13
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: Os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996.
Um outro trabalho já consagrado nesse campo de estudos é o texto de Márcia Chuva.
A autora lançou mão de um vasto estudo sobre aquelas origens das práticas de preservação
patrimonial no Brasil, datadas dos primeiros anos do Estado Novo de Getúlio Vargas e sob a
intervenção do Ministério da Educação de Gustavo Capanema14. Certamente é um trabalho
importantíssimo sob o ponto de vista da formulação dos problemas colocados para a pesquisa
aqui proposta, pois a autora consegue fazer uma conexão entre o passado que se pretendia
recuperar pelo Estado em sincronia com a visão do passado cultural brasileiro que enxergava
movimento modernista. A conjunção destes dois setores fundamentalmente relevantes na
década de 1930 certamente que forneceu uma rica interpretação e sobretudo explicação deste
momento de construção de uma identidade nacional genuína.

Porém, ambos os trabalhos não se ocuparam da tarefa que pretendo. A bibliografia


como um todo ainda não tratou de apontar uma relação entre a renovação conceitual
empreendida por Gilberto Freyre como mediadora na formulação de um discurso e uma
prática envolvendo o patrimônio. Assim, a pretensão da pesquisa se insere na historiografia
como uma nova proposta, original em sua abordagem a partir dos olhares e da teoria que ela
mobiliza.

E para além do seu lugar nos quadros da academia, este projeto também é dotado de
uma dimensão ética e social. Estando o patrimônio conectado com uma dimensão da
linguagem e do discurso, foi capaz de incorporar diversos elementos discursivos daquele
momento em que foi eleito como tal, mapear e entender estes é também uma necessidade
ética. Tanto a sociedade quanto a academia não resolveram todos aqueles problemas fulcrais
da tese de Gilberto Freyre sobre o Brasil, e é possível afirmar que os mecanismos de poder
ligados a ela conduziram inclusive as possibilidades políticas que conseguiram sobreviver à
fortuna crítica de sua obra.

Evidentemente que a proposta também encontra uma grande perspectiva de


exequebilidade, ligada a facilidade do acesso das fontes a serem consultadas bem como uma
bibliografia rica e estruturada que pode amparar a pesquisa.

14
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os Arquitetos da memória: Sociogênese das práticas de preservação do
patrimônio cultural no Brasil (Anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.
OBJETIVOS

No que tange a questão dos objetivos a serem alcançados por esta pesquisa, estarão
dispostos em tópicos o que se deseja alcançar e e em quais campos de interesse ela se penetra.

1 – Desnudar o regime discursivo em que se encontram a tese de Gilberto Freyre e o


Serviço do Patrimônio.

2 – Compreender os limites da influência e inscrição da renovação nos conceitos de tradição,


história e memória na construção alegórica da nação pelo viés do patrimônio.

3 – Empreender uma investigação sobre como estes conceitos ainda podem estar presentes
no patrimônio cultural brasileiro.

FONTES

Elencar as fontes deste trabalho, agora, será um tarefa de apontar os materiais a serem
investigados, o que se pretende com eles e como eles podem responder as perguntas o
problema.

A primeira fonte a ser estabelecida seriam as duas primeiras obras de grande porte de
Gilberto Freyre, sendo elas Casa Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936).
Ambas teriam a utilidade de fornecer os traços dessa alteração dos conceitos de tradição,
história e memória. Uma análise textual em consonância com a bibliografia a ser consultada
teria o objetivo de mapear estas ideias, num sentido de pinça-las, trabalha-las e então
estabelecer a ponte com a academia SPHAN e o patrimônio.

O segundo corpus documental selecionado foram as revistas do Serviço do


Patrimônio, nelas serão encontradas as produções textuais de seus membros, as quais poderão
ser utilizadas como material para a indentificação dos discursos e as noções correntes dentro
desta instituição. Elas representam aqueles debates internos, e podem responder algumas das
perguntas que envolvem este problema de pesquisa. Para tanto, a análise se dará nos seguintes
números da revista: n.º 1 – Ed: 1937; n.º 2 Ed: 1938; n.º 3 Ed: 1939; n.º 4 Ed: 1940; n.º 5
Ed:1941; n.º 6 Ed: 1942; n.º 7 Ed: 1943; n.º 8 Ed: 1944; n.º 9 Ed: 1945; n.º 19 Ed:1946; n.º 11
Ed:1947; n.º 12 Ed: 1955. Todos os números a serem investigados se encontram disponíveis
no endereço eletrônico do IPHAN, na internet, e deste modo são de fácil acesso e concedem
ao projeto um bom panorama de exequibilidade.

Outra fonte a ser analisada serão alguns jornais impressos de época, em que Gilberto
Freyre contribuiu por meio de diversos textos, enunciando sua tese para um mundo mais
amplo, para além dos círculos acadêmicos e institucionais. Eles serão utilizados no intuito da
indentificação dos conceitos freirianos de tradição, história e memória, e em seguida uma
análise de sua operacionalização dentro de uma lógica discursiva. Os textos a serem alvo do
trabalho fazem parte dos periódicos O Cruzeiro, Correio da manhã, Diário de Pernambuco,
Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e A Província. Eles podem ser encontrados na obra
Gilberto Freyre, Jornalista: Uma bibliografia, organizada por Lúcia Gaspar e Virginia Barbosa,
que constituiram um rico banco de dados contendo alguns dos escritos de Freyre nos jornais de
época. O livro contém 3.420 registros, de 1918 a 1987, extraídos da Biblioteca Central Blanche
Knopf, da Diretoria de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco, sendo uma fonte de também
fácil acesso.

Uma outra fonte selecionada, que apesar de não ser central, se trata do Decreto Lei
n25 de 30 de Novembro de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico
nacional. A partir dele se daria a investigação dos moldes das práticas patrimoniais, bem
como das ideias do que poderia ser considerado como patrimônio. Este decreto pode ajudar na
orientação da investigação sobre a forma institucional do discurso do patrimônio do Estado
brasileiro.

HIPÓTESES

As hipóteses levantadas, tendo um caráter provisório, terão a função de servir como


um norte durante o processo investigativo, cada uma delas será amarrada a uma ferramenta
metodológica específica.

Uma delas responde ao questionamento central da pesquisa, que diz respeito aos
limites da influência da renovação conceitual que Freyre teria lançado mão. O primeiro
entendimento é o de que, estando o Serviço do Patrimônio e Freyre extremamente próximos
devido ao compartilhamento de um discurso específico sobre o Brasil, tornou-se possível um
influxo de ideias capaz de promover uma transformação interna desta instituição. O SPHAN
teria incorporado essas novas noções uma vez que elas seriam coerentes com aqueles aspectos
chave que dirigiam a lógica de seleção do patrimônio bem como o entendimento acerca da
cultura brasileira a ser resgatada. Partir deste princípio implica em entender que as noções de
tradição, história e memória presentes na tese freiriana versaram sobre aquele mesmo Brasil
que se pretendia resgatar do esquecimento e da ação do tempo, os bens tombados fariam
referência a este discurso.

Já para a segunda tarefa deste trabalho, entender como o patrimônio enquanto


linguagem e instrumento didático carrega estes conceitos, percebe-se que a própria conjuntura
da eloboração deste discurso teria sido capaz de reificar os bens tombabados de tal maneira
que eles puderam adquirir uma pregnância das ideias do momento de sua seleção. A hipótese
estabelecida se dá no sentido de que, a escolha dos bens e dos conjuntos a serem tombados foi
operada numa estrutura discursiva que organizou as práticas e representações dos agentes, e o
patrimônio histórico elegido então carrega as carecteristicas do seu próprio momento de
criação. Ele seria também capaz de fazer resistir a fortuna crítica que passou a obra de Freyre
no século XX

PERSPECTIVAS TEÓRICO-METOLÓGICAS

As teorias pelas quais transita a presente proposta são constituídas por autores que
permitem que o objeto seja trabalhado conforme aqueles problemas estabelecidos. Como
uma das intenções é a análise da renovação dos conceitos de tradição, história e memória por
Gilberto Freyre e como ela teria sido deslocada para o discurso do patrimônio, foi preciso
estabelecer um entrecruzamento de autores que já trabalharam com esta dimensão. Assim o
quadro teórico do projeto se divide em duas perspectivas, que se segmentam em como balizar
a temática sem promover uma separação dos símbolos, significados e narrativas do mundo
concreto e como trabalhar com os discursos presentes nas fontes.

A noção de “cronotopo” formulada por Bakhtin no que se refere as análises de textos,


pode ser emprestada de maneira fortuita para o entendimento da função simbólica
desempenhada pelos elementos concretos do patrimônio15. Os cronotopos seriam unidades

15
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: Os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996
narrativas na quais indicadores de tempo-espaço seriam fundidos numa concretude total,
trazendo para o presente aquele passado que se pretende recuperar16. Entender o patrimônio
cultural brasileiro a partir desta noção implica em percebe-lo como intermédio pelo qual a
narrativa ganha coerência. Este é o primeiro passo para a compreensão desta convergência da
tese freiriana e o discurso do patrimônio. Outro autor que pode ser relacionado a esta leitura
do patrimônio pode ser Baudrillard, que fornece a ideia de que os objetos dentro das coleções
assumiriam uma função reguladora que daria equilíbrio e coesão de grupo, eles não se tratam
unicamente de um corpo material, mas o meio pelo qual uma subjetividade se realiza17

Ainda foi foi feita a apropriação do conceito de ilusão referencial de Barthes, que
iluminaria a leitura dos textos selecionados. Segundo o autor, aqueles elementos narrativos
que não cumprem função central na composição textual podem ser percebidos como
referentes da exterioridade do próprio texto, de maneira de que ainda que não sejam de
primeira importância eles cumprem uma função restrita, que pode fornecer indícios das
ideias do contexto de produção da própria narrativa18. Analisar os documentos sob este
aspecto implicaria numa investigação das minúcias do discurso que fundamenta a narrativa.
Já as ferramentas metodológicas a serem utilizadas, de maneira ampla respondem ao campo
dos estudos da linguística e da semiótica, mas serão selecionados procedimentos de trabalho
mais precisos.

Para a leitura das fontes a escolha das técnicas se dão por dois segmentos que estão
amarrados dialeticamente com as hipóteses que guiam a pesquisa, o primeiro responde a uma
análise de conteúdo e o segundo a uma análise do discurso. Para uma análise de conteúdo os
enunciados presentes nas fontes seriam submetidos em um primeiro momento por um análise
sistemática que classificaria o vocabulário de forma quantitativa, do ponto de vista de sua
sintaxe, semântica e de sua mensagem. Seria empreendida uma análise da frequência de certas
associações de palavras e ideias19. O objetivo seria montar um quadro de observação a partir
de uma descrição do texto, que permitiria a identificação e os momentos em que as ideias que
pretendem ser estudadas aparecem. Essa técnica nos leva a fazer uma inferência acerca dos

16
BAKHTIN, Mikhail. The dialogic imagination. Texas University press, 1985.
17
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1989.
18
BARTHES, Roland. “O efeito do real”. In: rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988
19
ARÓSTEGUI, Júlio. La investigación histórica: Teoría y método. Historia contemporánea, 1996.
elementos exteriores ao texto, que dizem respeito as propriedades não-linguísticas dos
agentes20. Os textos submetidos a análise de conteúdo permitiriam ainda uma averiguação
sobre aqueles que o produziram, suas intenções e a situação de determinado contexto social21.

O segundo aspecto metodológico diz respeito a uma análise do discurso, e se tratando


de uma operação técnica um tanto quanto vasta, será explicitado o sentido de seu uso. Será
empregada uma análise da regulação do discurso, onde o indicador seria o perfil do mesmo,
esse procedimento entraria na análise do poder e das estratégias de regulação e antagonismo22.
Esta operação se iniciaria com a descrição do próprio discurso, que seria uma questão
introdutória baseada em categoriza-lo em unidades básicas de codificação para então agrupar
os enunciados segundo suas funções em termos de matéria, forma e apreciação. Este método
tem uma profunda relação com a intenção de desnudar o discurso e a narrativa formulados
pelo Serviço do Patrimônio, para encontrar seus pontos de convergência com os discursos
renovados pela tese freiriana.

CRONOGRAMA

20
MAYNTZ, R; HOLM,K; HUBNER,P. Introduccíon a los métodos de la sociologia empírica. Madrid: Alianza, 1988.
21
ARÓSTEGUI, Júlio. La investigación histórica: Teoría y método. Historia contemporánea, 1996.
22
DIAZ BARRADO, M. P. Análisis del discurso político. Una aplicación metodológica. Mérida: Editora Regional de
Extremadura, 1989.

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