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A SANTIDADE NO VELHO TESTAMENTO

Nenhuma doutrina bíblica importante tem a sua expressão plena no Velho Testamento. Mas,
por outro lado, não há qualquer doutrina bíblica importante que não tenha o seu alicerce no Velho
Testamento. Não podemos transpôr para o Velho Testamento o significado pleno do Novo. Mas
não devemos jamais ignorar a base do Velho Testamento para a fé cristã.

I. GÉNESIS
O conceito bíblico de santidade tem a sua expressão mais antiga no primeiro livro da Bíblia.
Génesis cobre uma época na história religiosa da humanidade que pode muito bem ser chamada o
período patriarcal, quando a comparamos com os períodos sacerdotal e profético que se seguem.
Os primeiros capítulos de Génesis (especificamente 1—11) têm sido objecto de severa análise
crítica. Mas estes capítulos oferecem dados teológicos de importância inigualável.
É desta porção da Palavra de Deus que aprendemos da natureza distinta da raça humana, das
origens e dos efeitos perduradores do pecado, e dos primeiros requisitos do Deus de Abraão, Isaque
e Jacó, o qual age em graça redentora para com um povo rebelde. George A. F. Knight comenta:
Os primeiros capítulos de Génesis não relatam uma série de mitos cósmicos arcaicos,
agora espiritualizados, feitos para servirem como história antiga da origem do mundo. Estes
capítulos são uma exposição teológica, em linguagem pictórica como é característica do
povo hebraico, das razões por que Israel foi chamado do Egipto num momento histórico que
ocorreu neste mundo de carne e osso, espaço e tempo. . . É com o propósito moral de Deus
que se preocupa o Velho Testamento, tanto como a Sua relação com a humanidade que Ele
de facto criou.
Portanto, o relato de Génesis “não pertence à esfera da ciência natural, mas sim à história do
homem”.
A. Génesis 1 -- 2
Os relatos da criação em Génesis 1 e 2 lançam o alicerce do conceito bíblico da “criatura sobre
a qual incide o interesse salvador de Deus”. O termo reservado no Velho Testamento para o acto
criador imediato de Deus (bara,criar) é usado sete vezes nestes capítulos: duas com referência aos
“céus e terra” (Gén. 1:1; 2:4); uma com referência a “todo o ser vivente que move” (Gén. 1:21,
vida consciente); três vezes em referência à espécie humana:
E criou Deus o homem à sua imagem:
à imagem de Deus o criou;
macho e fêmea os criou (Gén. 1:27).
E finalmente uma vez num sumário de toda a criação (Gén. 2:4).
O termo chave em 1:27 é claramente a palavra “imagem” (tselem). O que mais distingue os
seres humanos das espécies animais é a imago dei, a “imagem de Deus” (Gén. 1:26-27; cf. 9:6).
Tem-se debatido muito o significado deste conceito, mas parece referir-se claramente à dignidade
dos seres humanos, que estão diante de Deus num relacionamento “Eu-tu”, e que O representam no
domínio sobre o resto da criação (Gén. 1:28). Incluem-se no conceito as ideias de raciocínio, auto-
consciência moral e auto-direcção (liberdade), imaginação e, pelo menos, um poder limitado de
criatividade. Cuthbert A. Simpson escreve:
A imagem inclui semelhança. . . em poderes espirituais – o poder de pensar, o poder de comunicar, o
poder de auto-transcendência. Não há dúvida que estes conceitos ficaram até certo ponto inarticulados
na mente do autor; mas estavam presentes. Ele procurou descrever em termos concretos – os únicos

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termos que, como semita, conhecia – aquilo que só pode ser descrito em termos abstractos, e mesmo
assim inadequadamente.
Em Génesis 2, no relato mais pormenorizado da criação do homem, encontra-se um versículo
chave: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da
vida: e o homem foi feito alma vivente” (v. 7). Aqui o homem é visto como uma criatura de dois
mundos. Vive na encruzilhada do divino e do terrestre, do eterno e do temporal. Física e
biologicamente ele é “pó da terra”. Quanto à personalidade e à psicologia possui o “fôlego da vida”
soprado pelo Senhor Deus para que seja uma “alma vivente”.
A inocência humana e a harmonia com Deus são descritas na linguagem pictórica tão
característica desta porção do Velho Testamento. Deus fala directamente a Adão e Eva (Gén. 1:28-
30; 2:16-17; 3:9 ff.). Ele lhes dá acesso a todas as árvores do jardim para se alimentarem, com
excepção da “árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gén, 2:9, 17). Há pelo menos a
implicação de comunhão diária com o Criador (3:8-9).
A imagem de Deus é, portanto, moral (inocência, santidade, comunhão com o Criador) e
natural (intelecto, imaginação, auto-direcção moral e psicológica, imortalidade). A ideia da
imagem divina, como indica William Temple, implica tanto a semelhança como a disparidade em
relação a Ele:
No sentido em que tanto Deus como o homem são seres espirituais, eles são da mesma
espécie; na medida em que ambos são racionais, também são da mesma espécie. Mas como
Deus cria, redime e santifica, enquanto que o homem é criado, redimido e santificado, eles são de
espécies diferentes. Deus não é criatura; o homem não é criador. Deus não é um pecador
redimido; o homem não é redentor para o pecado. Neste ponto, a diferença é completa.
É esta semelhança com Deus, resultando numa comunhão real com Ele, que serve de pano de
fundo da ideia da imagem divina. Na Bíblia, o homem nunca é confundido com Deus. As
Escrituras nunca falam da “deidade do homem”. J. N. Scofield diz que “o homem é ‘teomórfico’,
isto é, como Deus, em vez de Deus ser ‘antropomórfico’, como o homem. O ser humano foi feito
como Deus para exercer a sua autoridade sobre tudo que foi criado”.
Em vista da confusão que muitas vezes se gera, é importante afirmar que a semelhança entre
Deus e o homem não reside em termos físicos. A auto-revelação de Deus é dirigida através de
seres humanos, e esta revelação é sempre espiritual. “A essência da revelação divina deu-se sempre
no reino intangível do espírito.”
B. A Queda, Génesis 3
A situação idílica descrita em Génesis 2 não continuou. Génesis 3 introduz o tema bíblico tão
prevalente do pecado humano e das suas consequências. A importância deste tema dificilmente
pode ser exagerada. Daí declarações como: “Génesis 3 é uma das interpretações mais profundas
jamais descritas da situação humana”; e “Este capítulo constitui o eixo à volta do qual gira toda a
Bíblia”.
“A história da Queda também pode ser apreciada por causa da sua perceptividade psicológica e
profundidade teológica”, diz Simon J. De Vries. “A narrativa acerca do Paraíso ajuda-nos a
compreender a verdadeira natureza do pecado. O pecado é possível apenas porque o homem foi
criado à imagem de Deus. Ele tem uma liberdade de auto-afirmação que é dom de Deus. O pecado
tem lugar quando o homem usa esta liberdade para se rebelar contra Deus, procurando ser
independente do Seu controle”.
H. Orton Wiley apela para que em Génesis 3 se reconheça o equilíbrio entre o facto e o
simbolismo:
Sem dúvida que este relato histórico da queda contém um elemento grande de simbolismo.
As condições existentes na história paradisíaca do homem tinham um grau de singularidade
2
provavelmente muito mais bem compreendido pelos nossos primeiros pais do que por nós.
Factos como o jardim circunscrito, a árvore sacramental da vida, a árvore mística de
conhecimento, o mandamento único e positivo que representava toda a lei, o tentador na forma de
uma serpente, a defesa chamejante do Éden perdido – eram emblemas que possuíam um
profundo significado espiritual, além de serem factos. Ao defender o carácter histórico do relato
moisaico da queda, não devemos deixar de fazer justiça ao seu rico simbolismo.
1. Pecado como Intrusão
Aqui o pecado é visto como uma intrusão na vida e na natureza humanas. Não faz parte dessa
natureza como foi criada e planeada por Deus. Esta passagem, bem como o facto de que o Novo
Testamento afirma a encarnação, contraria todos os pontos de vista que considerem o pecado como
sendo o produto da finitude do homem ou essencialmente relacionado com o corpo físico. Adão e
Eva não se tornaram humanos por desobedecerem a Deus. Pelo contrário, tornaram-se menos do
que a sua humanidade deveria ter sido. No Novo Testamento, o conceito do Filho de Deus
encarnado – “santo, irrepreensível, puro” (Heb. 7:26), mas ao mesmo tempo completamente
humano (I Tim. 2:5) – reafirma o ensino de Génesis 3 em que o pecado não é uma parte essencial
da experiência humana.
Aqui também vemos a tentação chegando por meio de desejos que em si próprios podem ser
inocentes. Alguns alegam que pessoas com um coração puro ficariam para além da tentação porque
o pecado não encontraria nada em que se basear. A prova de que assim não é reside no facto da
tentação e queda de pessoas criadas sem qualquer mancha de pecado. Ao invés, “cada um é tentado
quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência. É só quando “havendo a
concupiscência concebido” (por ser fecundada pelo consentimento da vontade) que ela “dá à luz o
pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte” (Tia. 1:14-15).
2. Pecado como Escolha
Temos aqui uma sugestão do conceito bíblico do pecado como uma escolha ou um acto. A
escolha colocada diante de Adão e Eva foi clara e enequívoca: “Da árvore da ciência do bem e do
mal, não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente correrás” (Gén. 2:17). Todas
as outras árvores do jardim estavam à sua disposição. Apenas uma estava fora do seu alcance. O
pecado, neste caso e caracteristicamente através de todas as Escrituras, não é uma questão de
finitude ou uma falha inevitável. É uma questão de desobediência, de rebelião contra Deus, duma
tantativa de “ser como Deus” (3:5) e, portanto, independente de Deus. Como se diz que James Orr
afirmou, “o pecado, como a Bíblia o vê, consiste na revolta da vontade da criatura, o abandono da
sua lealdade à vontade soberana de Deus e o levantamento duma falsa independência, a adopção de
uma vida-para-si-mesmo em lugar de uma vida-para-Deus.
3. Pecado como Condição
O acto de desobediência, de reivindicação duma falsa auto-soberania, trouxe afastamento e
alienação de Deus. Adão e Eva esconderam-se, como nunca antes tinahm feito, da Presença de
Deus no Jardim. Ainda capazes de ouvir a voz de Deus – embora agora com medo em vez de
alegria –perderam o relacionamento para o qual tinham sido criados e foram expulsos do jardim
com o seu acesso à árvore da vida. A morte física havia de se seguir (Gén. 3:19), mas o aviso de
2:17, “No dia em que dela comeres, certamente morrerás”, concretizou-se na alienação de Deus que
a Escritura chama morte espiritual (Efé. 2:1, 5; Col. 2:13).
O pecado que causou “privação” da santidade em que o homem fora criado resultou na
depravação dos descendentes de Adão. É o Novo Testamento que nos informa mais
especificamente dos efeitos radicais do primeiro pecado (precisamente Rom. 5:12-21); mas há uma
sugestão desta consequência terrível na afirmação de Gén. 5:3 de que Adão “gerou um filho à sua
semelhança, conforme à sua imagem”. A imagem era ainda a imagem de Deus (v. 1), mas era
também a imagem de Adão sem o relacionamento santificador com o Criador, privada e portanto
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depravada – como uma vara separada da videira que é corrompida não pela adição de qualquer
coisa mas pela perda de algo vital (João 15:6).
Uma doutrina completa daquilo que os teólogos chamam pecado original tem de depender
doutros dados de evidência bíblica que serão considerados em profundidade no volume dos
alicerces teológicos. Aqui, basta notar que os descendentes de Adão herdaram a imagem de Deus,
mas uma imagem danificada e corrompida pela perda do relacionamento com o Criador,
relacionamento este que Adão gozava antes da sua desobediência.
C. Génesis 4 – 11
O resultado foi que para Caim o pecado (Heb., chattah – a primeira vez na Bíblia que um
termo específico é usado para o pecado) é descrito como jazendo à porta (Gén. 4:7). O contrário à
susceptibilidade de Caim para o pecado é visto em Enoque (5:22-24). Duas vezes se diz que
Enoque “andou com Deus”. “A expressão ‘andou com Deus’ descreve uma vida devota, levada em
comunhão estreita com Deus”. As palavras “e não se viu mais” são interpretadas em Heb. 11:5
como sendo “transladado, para não ver a morte”, isto é, ele foi removido deste mundo sem
experimentar a morte física.
Em Gén. 6:5 continua-se a considerar a natureza e as consequências do pecado. O mal
universal do homem é atribuído ao facto que “toda a imaginação dos pensamentos do seu coração
era só má continuamente”. E ainda outra vez em Gén. 8:21: “A imaginaçao do coração do homem
é má, desde a sua meninice”.
O termo traduzido “imaginação” é yetser. Às vezes é traduzido por “inclinação” ou
“intenção”. O seu significado é “formar, moldar”; denota “propósito ou impulso”. Deriva de uma
raiz que significa “espremer, apertar, moldar ou determinar”. É usada no sentido de propósito,
mente ou trabalho. Propensão, tendência, impulso, direcção, movimento ou motivação são sentidos
que se lhe aproximam.
“Imaginação”, usada por J. F. Almeida para traduzir yetser, pode transmitir uma ideia errada.
Como diz Lawrence Toombs, “a palavra hebraica traduzida ‘imaginação’ sugere planos
deliberados, e a frase usada por Yahweh para condenar a raça pode ser assim parafraseada: “Os
desígnios e os esquemas dos homens nas deliberações privadas da sua vida interior eram sempre e
em todo o lugar contrários ao propósito de Deus”. Neste contexto, significa a tendência em
direcção ao mal bem enraizada no coração humano.
Embora yetser seja usado raramente no sentido de tendência para o mal, excepto em Gén. 6:5 e
8:21 (cf. Deu. 31:21; I Cró. 26:9; 29:18; Isa. 26:3), mais tarde estes versículos tornaram-se muito
importantes no pensamento judaico para explicar a presença do mal moral na criação de Deus: “O
pecado é o resultado do homem fixar a sua imaginação em si próprio, ou em outra pessoa ou coisa,
em vez de Deus”.
Importa também notar que a proibição do homicídio exarada no concerto com Noé, depois do
dilúvio, é baseada no facto de que “a imagem de Deus”, embora embotada ou corrompida, não é
destruída:
Quem derramar o sangue do homem,
pelo homem será derramado o seu sangue
porque Deus fez o homem à sua imagem (Gén. 9:6)

D. Génesis 12 – 50
Com a chamada de Abraão (Gén. 12:1-3), a Bíblia inicia um novo capítulo na história do
pecado humano e da redenção. Abraão, “o pai dos fiéis”, é uma personagem chave no pensamento
velho testamentário. O verdadeiro Deus foi conhecido repetidas vezes como “o Deus de Abraão”
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ou, em conjunto com o seu filho e neto, “o Deus de Abraão, Isaaque e Jacó”. A chamada de Deus
foi uma chamada à fé: para deixar a casa dos seus antepassados, sair para uma terra que Deus havia
de lhe mostrar, com a promessa de bênção para ele próprio e de que nele todos os povos serão
abençoados (v. 3).
1. Abraão, o Irrepreensível
Vinte e quatro anos mais tarde Deus apareceu de novo a Abraão. Desta vez a ordem foi:
“Anda em minha presença e sê perfeito” (Gén. 17:1). Como foi Noé antes dele (6:9), Abraão seria
“perfeito na sua geração”. “Numa era anterior, Enoque ilustrara a primeira parte deste mandamento
’Anda em minha presença’ por uma vida de total obediência, aceitável a Deus (Gén. 5:24). Noé
também foi chamado perfeito (ver. 6:9), significando que ele era um homem de uma só vontade,
um homem de integridade. Abrão teria de ser como estes homens de Deus.”
O termo hebraico traduzido por “perfeito, irrepreensível”, significa “sem mancha, completo,
cheio, sincero, são, inteiro”. George Allen Turner escreve:
No total, há 6 sinónimos da mesma raiz hebraica (TM), e estes encontram-se pelo menos
204 vezes no Velho Testamento. Em cerca de 58 destes casos referem-se a homens que são
chamados “perfeitos”, “maduros”, “sadios”, “sinceros”, “irrepreensíveis”. Os termos sugerem a
perfeição, a totalidade, a rectidão. Realçam a importância da sanidade espiritual no homem de
Deus.
Uma segunda palavra do Velho Testamento frequentemente traduzida por “perfeito” é shalem,
“completo, inteiro, perfeito, saudável, cheio de força, paz ou prosperidade”. Ela é frequentemente
usada para descrever um coração “perfeito”, “totalmente verdadeiro”, “totalmente dedicado” (I Reis
8:61; cf. 11:4; 15:3; etc.)
J. G. S. S. Thompson sumariza a evidência total do Velho Testamento, notando que de 230
vezes em que aparecem os sinónimos para a perfeição, 72 referem-se ao carácter ou à natureza do
homem. Ele escreve acerca de Gén. 17:1:
“Perfeito” quer dizer moralmente irrepreensível e denota integridade. E a frase, “anda em
minha presença” quer dizer “vive conscientemente na minha presença”. Isto sugere progresso
na conduta ética, consistente com uma consciência progressiva da presença de Deus. A
aspiração é agradar a Deus em cuja presença se anda continuamente.
A ideia de perfeição encontra-se não apenas no Velho Testamento; ela também aparece no
Novo Testamento e na doutrina cristã da salvação. Esta ideia tem uma história longa e contínua no
pensamento cristão. Precisamos no entanto do aviso de H. W. Perkins:
Estamos a discutir, e não podemos realçar demasiado este facto, não a produção dum
homem perfeito, mas a união com um Deus perfeito. A grande inclinação ética dos profetas
fez com que eles insistissem na santidade e na justiça como sinais da Sua perfeição. . .
A perfeição que o homem deve procurar obter foi considerada como sendo derivada.
Provinha de se andar com Deus e só podia ser retida pela comunicação constante com o Seu
Espírito. Era ética em vez de cerimonial, e na sua melhor e mais elevada expressão, tanto em
Deuteronómio e Levítico como nos Testamentos, manifestou-se como amor para com Deus e
o próximo, amor este em que Jesus pôs o Seu selo.
J. Baines Atkinson sumariza o que ele chama as “três mensagens permanentes” da perfeição no
Velho Testamento:
“A primeira verdade é que a perfeição é uma condição moral relativa e não absoluta. Gén 6:9;
Isa. 18:5.” É a perfeição de um rebento, não de uma flor ou fruto.
“A segunda verdade é que a perfeição é uma condição do coração em relação a Deus. Deu.
18:9-12; Sal. 18:21-23; 101:2; 119:80; II Cró. 25:2; Fil 3:9; I Reis 15:3, 14; I Cró. 28:9.”

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“A terceira verdade acerca da perfeição no Velho Testamento é que às vezes a palavra está
relacionada com andar. Gén. 17:1; Sal. 15:1-2; 84:11; II Reis 20:3; Gén. 6:9. Cf. I João 1:7.”
2. Jó – um Parêntesis
Quanto à vida religiosa, Jó pertence ao período patriarcal. Diz-se que ele era “sincero, recto e
temente a Deus, e desviava-se do mal” (Jó 1:1; cf. 1:8; 2:3). Ao mesmo tempo que o Livro de Jó
sobressai no Velho Testamento como uma crítica clássica à ortodoxia fácil que igualava a justiça
com a prosperidade material, ele é também uma lição de piedade. Mostra que uma pessoa pode ser
irrepreensível ou perfeita diante de Deus e sofrer a perda dos seus haveres e entes queridos; ser
gravemente afligida fisicamente; ser mal compreendida e julgada pelos outros – acusada de
hipocrisia e pecado; ficar mentalmente confusa, espiritualmente deprimida, sustentada apenas pela
esperança em Deus – “ainda que me mate, nele esperarei” (13:15); e ter apenas uma luz limitada –
“Falei do que não entendia; coisas que para mim eram maravilhosíssimas, e que eu não
compreendia” (42;3), Turner escreve:
Visto nesta perspectiva o Livro de Jó, além de ser excelente poesia acerca do problema do
sofrimento injusto, é um tratado sobre a perfeição. Nele encontramos as afirmações mais
enfáticas da perfeição e as negações mais categóricas da sua possibilidade entre os homens.
Tanto nas secções de prosa como nas poéticas Jó é apresentado como “piedoso e justo”
(literalmente perfeito e direito), “que teme a Deus e que se desvia do mal”. Esta reivindicação,
qua nas secções de prosa é admitida com certas reservas por Satanás, é negada vigorosamente
pelos amigos de Jó.
3. Jacó e José
Como acontece com Abraão, a vida de Jacó revela a sua experiência com Deus desenvolvendo-
se em duas fases. O primeiro encontro registado entre Jacó e o Divino foi em Betel (Gén. 28:10-
22). Ali, fugindo da ira do seu irmão traído Esaú, Jacó encontrou-se com “o Senhor, o Deus de
Abraão, teu pai, e o Deus de Isaque” (v. 13). Ali ele recebeu a promessa que fora antes dada a
Abraão (v. 14; 12:3), e ali ele votou servir ao Senhor como seu Deus e lhe oferecer o dízimo de
tudo que Deus havia de lhe dar.
Vinte anos mais tarde, regressando a casa com a sua família e haveres (Gén. 32:24-32), Jacó
lutou com o anjo que lhe tornou real a presença de Deus (v. 30; 35:9-13; e Osé. 12:3-4). O seu
nome Jacó (“quem agarra o calcanhar” – 25:26; “suplantador” – 27:36) é mudado para Israel –
“pois como príncipe lutaste com Deus e com os homens e prevaleceste” (32:28).
José (Gén. 37:2-36; 39:1—50:26) tem sido frequentemente considerado como o exemplo mais
elevado da vida santa, uma personificação da piedade mais verdadeira de todo o período patriarcal.
Ele é um dos poucos personagens do Velho Testamento acerca dos quais nenhum mal é apontado.
A sua vida e conduta parecem-se muito com as de Jesus, o qual é o padrão perfeito da vida santa.
José foi perseguido, traído pelos próprios irmãos, vendido pelo preço dum escravo; contudo,
triunfou da tentação, teve um espírito de perdão e até sustentou aqueles que o haviam maltratado.
II. ÊXODO E DEUTERONÓMIO
A sequência Êxodo-Levítico-Números introduz o que temos visto ser o conceito “sacerdotal”
da santidade. É o conceito do “Templo”, o qual contrasta com o ideal profético ou da “sinagoga”.
Este conceito sacerdotal da santidade é em grande parte posicional, cúltico ou cerimonial. Realça a
ideia de santidade como “posto à parte, separado, dedicado a Deus”. Embora os conceitos éticos e
espirituais nunca se encontrem completamente ausentes, a ênfase maior está na purificação
cerimonial.
A. Êxodo
Num certo sentido o Êxodo é um livro chave do Velho Testamento, comparável aos
Evangelhos do Novo Testamento. É o “livro da redenção”. Começa com a libertação dos israelitas
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da escravidão do Egipto, evento esse que veio a ser o âmago da fé de Israel. Depois contém o
relato do estabelecimento do concerto no Sinai e do culto do Tabernáculo que sustentou este
concerto. Deus, que é “glorificado em santidade, terrível em louvores, obrando maravilhas” (Êxo.
15:11), requer que aqueles que Ele tem livrado da morte sejam santificados (13:2); e pelo Seu
concerto faz deste povo a Sua “propriedade particular” entre “todos os povos. . . um reino
sacerdotal e um povo santo” (19:5-6; cf. 22:31).
1. O Êxodo
Em si o evento do Êxodo é de uma importância sem paralelo no Velho Testamento. H. H.
Rowley vê nele o núcleo unificador de toda a Bíblia, no sentido em que o Novo Testamento
descreve um “Novo Êxodo” sob Cristo, nossa Páscoa. G. Ernest Wright vê-o como “o centro da fé
de Israel” e o “acto supremo do amor divino e da graça”. Torna-se a afirmação central nas
confissões de fé de Israel: o Deus de Israel é o Senhor “que te tirou da terra do Egipto, da casa da
servidão” (Êxo. 20:2). “Que mais era preciso para identificar ou descrever Deus? Nesta afirmação
está adequadamente implícito o Seu total controle sobre a natureza e o homem; também está
implícita a Sua actividade na história humana com o propósito de lutar contra a injustiça dos fortes
e mesmo fazer com que o pecado destes O sirva e O louve; e bem assim o Seu amor redentor que
salva e usa os fracos deste mundo para realizar os Seus propósitos até entre os fortes”.
O Êxodo aconteceu como resultado dos eventos à volta da primeira páscoa, de que o festival
judaico deriva o nome, significando “passar por cima”. Derramando e aspergindo o sangue dum
cordeiro, os primogénitos de Israel foram livres da morte que sobreveio aos lares egípcios (Êxodo
12).
2. Consagração
O resultado foi que aqueles que foram redimidos tinham de ser “santificados”; “Santifica-me
todo o primogénito, o que abrir toda a madre entre os filhos de Israel, de homens e de animais:
porque meu é” (Êxo. 13:2). Esta santificação foi um acto de separação ou de consagração:
“Apartarás para o Senhor tudo o que abrir a madre, e tudo o que abrir a madre do fruto dos animais
que tiveres; os machos serão do Senhor (v. 12). Como Leo G. Cox excreve: “Santificar, como
usado aqui e frequentemente através do VT, significa consagrar ou separar para Deus, contrastando
com o significado do NT que inclui a pureza moral (Efé. 5:25-27; Heb. 9:13-14). Neste sentido
velho-testamentário mais amplo, santidade é usado tanto para pessoas como coisas”.
A santificação ou consagração dos primogénitos constituiu a base para a separação da tribo de
Leví como a tribo sacerdotal de Israel ( Núm. 3:41). Assim, enquanto que a nação como um todo
era uma nação santa (Êxo. 19:5-6), os levitas eram santos num sentido especial, como
representantes daqueles cujas vidas haviam sido redimidas pelo sangue do cordeiro pascal.
O conceito de santidade em Êxodo-Levítico é ensinado através do ritual e das cerimónias do
culto velho testamentário. A ideia principal não foi a da imanência ou da proximidade de Deus,
mas da Sua transcendência majestosa. Santidade é separação do secular e do profano. É tudo que
se relaciona directamente com a adoração a Deus e com a manutenção do relacionamento de Israel
com Deus, dentro do concerto. “A essência do concerto é a promessa de Deus, apoiada pela dádiva
da libertação que lhes concedera, em como Israel será a sua propriedade peculiar e o Seu
instrumento... promessa esta que depende da fidelidade e obediência de Israel”.
O Decálogo (Os Dez Mandamentos) e o Código do Concerto (Êxo. 20:1-23:33) ilustram a
conjunção do que é cerimonial e do que é ético, característica deste período. Neles há
mandamentos tanto morais como cúlticos. Embora na lei e no concerto hajam sem dúvida
elementos que têm a ver com a colectividade, muitas das suas prescrições dizem respeito
directamente à responsabilidade e acção individuais. Especialmente os Dez Mandamentos

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constituem em todos os tempos a norma não negociável da ética bíblica e do padrão divino para o
viver santo.
Êxo. 31:13 introduz um ponto incidental mas impressionante, obscurecido nalgumas traduções.
O Senhor Se identifica como “O Senhor que vos santifica” – “o Senhor que vos faz santos”
(Yahweh meqqaddishkem). Este nome composto ocorre sete vezes em Levítico, no Código de
Santidade (20:8; 21:8,15,23; 22:9,16,32), e uma vez em Ezequiel 20:12.
B. Levítico
O Livro de Levítico é desconcertante para muitos leitores cristãos modernos. Nele são tratados
os pormenores do culto no tabernáculo e no templo. Grande parte do livro trata daquele aspecto do
regulamento velho testamentário que terminou com a vinda de Cristo (Rom. 10:4). Mesmo assim
faz parte da revelação divina e não pode ser posto de parte como se não fosse relevante. Nathaniel
Micklem mostrou que as divisões principais de Levítico podem ser resumidas em tópicos que são
sempre pertinentes ao cristão: o culto (1:1-7:38); o ministério (8:1-10:20); a dedicação da vida
nacional – leis da purificação (11:1-15:33); a expiação (16:1-34); e o Código de Santidade (17:1-
26:46). “Assim, Levítico é um manual de culto”.
As próprias leis do sacrifício são dadas para “distinguir entre o santo e o profano, entre o
imundo e o limpo (10:10). O facto de que a purificação é necessária para se ser aceite diante dum
Deus santo é uma lição que a igreja nunca deve esquecer.
O objecto do culto é constituir um “povo santo”. O que se chama o Código de Santidade
constitui a divisão maior do Livro de Levítico (17:1-26:46). Esta secção importante é uma mistura
de regulamentos éticos e cerimoniais. Micklem comenta:
A princípio o Código de Santidade parece consistir duma mistura de elementos heterogéneos.
Assim, trata do sangue dos animais sacrificados, da ética sexual, de moralidade em geral, de
regulamentos acerca de corte do cabelo, de regras relacionadas com as árvores de fruto, de feiticeiros,
dos deveres aos pais, do calendário eclesiástico, do óleo para as lâmpadas, de blasfémia, dos sábados,
do ano de jubileu, do tratamento dos servos, da idolatria, das promessas e ameaças divinas. Mas todos
estes diferentes elementos se relacionam com o conceito dum povo santo numa terra santa, os servos
dum Deus santo: Portanto, santificai-vos e sede santos, pois Eu sou o Senhor que vos santifica
(20:7).
A motivação que é mantida constantemente diante do povo para que este seja santo é a
santidade de Deus (Lev. 11:44; 19:2; 20:26; 21:8; cf. I Ped. 1:15-16). “Fala a toda a congregação
dos filhos de Israel, e diz-lhes: Santos sereis, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (19:2).
“Portanto, santificai-vos, e sede santos, pois Eu sou o Senhor, vosso Deus. E guardai os meus
estatutos, e cumpri-os: Eu sou o Senhor, vosso Deus” (20:7-8). “E ser-me-eis santos, porque Eu, o
Senhor, sou santo, e separei-vos dos povos, para serdes meus” (v. 26). Aqui a ideia é
principalmente de separação, um relacionamento distinto com Deus, uma santidade cerimonial.
Mas o número de princípios éticos e morais incluídos no Código de Santidade faz com que seja
impossível excluir os conceitos mais profundos de rectidão que mais além nas Escrituras se
tornaram a característica quase exclusiva da santidade. O facto de que Pedro podia usar 19:2 como
base da santidade “em toda a vossa maneira de viver” (I Ped. 1:15) é um prenúncio da pureza moral
tão essencial à ideia bíblica, completamente desenvolvida, da santidade das pessoas.
J. Baines Atkinson cita o falecido rabino chefe, Dr. Hertz, quanto a Levítico 19:
Assim, a santidade não é tanto uma ideia abstracta ou mística, mas antes um princípio regulatório
da vida diária de homens e mulheres. As palavras “sereis santos” são a nota principal de todo o
capítulo. . . Desse modo a santidade atinge-se não fugindo do mundo, nem pela renúncia das relações
humanas familiares e sociais como fizeram os monges, mas pelo espírito no qual cumprimos as
obrigações da vida nos seus pormenores mais simples e comuns; desta maneira – praticando a justiça,
amando a misericórdia e andando humildemente com o nosso Deus – a vida quotidiana é transfigurada.

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Outro comentarista judaico, S. R. Hirsch, reflectindo sobre as palavras “Porque eu sou
santo”, diz:
Isto contitui a base do vosso dever de vos santificardes, bem como a garantia da vossa capacidade
de atingir a santificação de vida. Santidade é a própria essência do Ser Divino; e ao soprar em vós o
Seu Espírito, Ele vos fez participantes da Sua natureza divina e vos dotou do poder de atingir a
santidade. “Porque Eu sou santo, sereis santos e podeis ser santos”.
Attkinson acrescenta: “Quase podemos pensar que foi João Wesley quem disse estas palavras”.
C. Deuteronómio
Em Deuteronómio principia uma ênfase verdadeiramente profética a respeito do
relacionamento geral do homem com Deus, particularmente à santidade. Há aqui uma transição
para a ênfase crescente no amor e na lealdade do coração necessários para que sejam válidos os
sacrifícios cereminoniais. “Aqui, mais do que em qualquer outro livro do Pentateuco, Deus declara
o Seu amor pelo Seu povo (7:13; 10:15; 23:5) e o Seu anseio pelo amor deste povo (6:5; 30:6).
G. Ernest Wright mostra que a despeito do nome (“a segunda lei”) Deuteronómio não é
basicamente um livro de regulamentos para a vida exterior. “É uma mensagem, uma proclamação e
exposição da fé da nação, que inclui a lei como a expressão da vontade de Deus que deve ser
obedecida; mas em si mesmo o livro não é primordialmente uma lei. É um evangelho dum Deus
redentor que salvou um povo da escravidão e os uniu a Si mesmo através de um concerto.”
1. A Propriedade Especial de Deus
A resposta de Israel à direcção divina deve ser baseada no facto de que Deus tem separado este
povo de todos os outros povos, para ser a Sua propriedade especial: “Porque povo santo és ao
Senhor teu Deus; o Senhor teu Deus te escolheu, para que lhe fosses o seu povo próprio, de todos
os povos que sobre a terra há (7:6). “Santo”, diz G. Ernest Wright, “é usado aqui num sentido
derivado. Correctamente falando, a santidade é um atributo especial de Deus, o qual O distingue
como Deus em relação a todas as coisas criadas. Todavia, Deus escolhe conferir a santidade a
objectos e pessoas especiais que estão separados e relacionados com Ele duma forma que outros
não estão”. “O seu povo próprio” é a tradução de uma palavra (segullah, às vezes traduzido
peculiar), que “se aplica a algo que pertence particularmente a um indivíduo, contrastando com o
património geral de uma família.
O mesmo pensamento ecoa em 14:2: “Porque és povo santo ao Senhor teu Deus, e o Senhor te
escolheu, de todos os povos que há sobre a face da terra, para lhe seres o seu povo próprio” (cf. v.
21 e 26:19). Embora esta posição especial de Israel não pudesse ser conquistada, ela podia ser
perdida. Precisava de ser mantida pela obediência e comunhão com Deus: “O Senhor te confirmará
para si por povo santo, como te tem jurado, quando guardares os mandamentos do Senhor teu Deus,
e andares nos seus caminhos” (28:9).
2. O Amor em Deuteronómio
Deuteronómio apresenta a famosa Shema (da primeira palavra hebraica, “Ouve”),
tradicionalmente recitada duas vezes ao dia pelo judeu devoto: “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus
é o único Senhor. Amarás pois o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de
todo o teu poder” (6:4-5). Jesus citou estas palavras como o primeiro e grande mandamento,
acrescentando entendimento a coração e alma (implícito no hebraico) e juntando-lhe como segundo
mandamento a citação de Lev. 19:18: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mar. 12:29-31).
Jack Ford e Alex Deasley mostram que “a essência da santidade é o amor”. “O Shema”, dizem
eles, “sumariza nestes termos o dever supremo do homem. Deus ama o Seu povo e busca o seu
amor. Ele deseja que eles O sirvam com alegria. Ele tornará possível este amor, removendo tudo o
que o impede, de forma a podermos amar ao Senhor com todo o nosso coração” (30:6).

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Wright mantém que pelo uso do temo “amor” Deuteronómio evita o legalismo da obediência
baseada na necessidade e no dever. O amor torna-se a raiz de toda a obediência. Deuteronómio é o
primeiro a usar o amor como a atitude primária que o povo deve ter para com Deus. “O nosso
relacionamento com Deus é desta forma expresso pelas emoções humanas mais íntimas e
calorosas”. Todavia, não devemos por isso sentimentalizar Deuteronómio. “O homem não pode
amar a Deus da mesma forma como ama outro ser humano. O amor a Deus envolve um temor
santo ou reverência (v. 13), e exprime-se naquela devoção e lealdade únicas que se traduzem em
serviço sincero e obediente. Amor a Deus sem obediência não é amor (cf. I João 4:7-21)”.
A importância principal deste conceito de amor apresentado em Deuteronómio será visto na
ênfase do Novo Testamento sobre o amor. Uma das definições de santidade mais característica de
João Wesley foi “amar a Deus com todo o coração, alma, entendimento e força; e ao próximo
como a ti mesmo”; e a Dra. Mildred Wynkoop acertadamente afirma que “o amor é o carácter
intrínseco essencial da santidade, e esta não existe separada do amor. É assim que estão bem
ligadas, e de certo modo se pode dizer que são a mesma coisa. Pelo menos Wesley
consistentemente definiu a santidade, bem como a perfeição, como sendo amor”.
3. A Circuncisão do Coração
Outra ênfase encontrada em Deuteronómio e intimamente ligada ao amor é a “circuncisão do
coração”: “Circuncidai, pois, o vosso coração, e não endureçais a vossa cerviz” (10:16); “E o
Senhor teu Deus circuncidará o teu coração, e o coração da tua semente; para amares ao Senhor teu
Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma, para que vivas” (30:6). Ecoado por Jeremias –
Circuncidai-vos para o Senhor,
e tirai os prepúcios do vosso coração (4:4) –
este conceito é agarrado por Paulo e aplicado à vida cristã: “Mas é judeu o que o é no interior, e
circuncisão a que é do coração, no espírito, não na letra, cujo louvor não provém dos homens, mas
de Deus” (Rom. 2:29); “Porque a circuncisão somos nós, que servimos a Deus em espírito, e nos
gloriamos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne” (Fil. 3:3); “E estais perfeitos nele, que é a
cabeça de todo o principado e potestade; no qual também estais circuncidados com a circuncisão
não feita por mão no despojo do corpo da carne, a circuncisão de Cristo; sepultados com ele no
batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos” (Col.
2:10-12).
A condição oposta é “o coração incircunciso” (Lev. 26:41; Jer. 9:26). “Lábios incircuncisos”
(Êxo. 6:12, 30) e o “ouvido incircunciso” (Jer. 6:10) são também mencionados. Assim,
“circuncidar” é uma metáfora usada para descrever a remoção de algo que é considerado
prejudicial ou um impedimento – “o sinal duma mudança interior, efectuada por Deus”. No pleno
contexto novo testamentário, o que é removido é “o corpo da carne” ou “a natureza pecaminosa”
(Col. 2:11) – uma das muitas descrições que Paulo faz do pecado original.

III. OS LIVROS HISTÓRICOS


Josué continua onde Deuteronómio pára no relato da bastante adiada posse da Terra Prometida.
A ênfase em Josué, diz Hugh J. Blair, é tripla: A fidelidade de Deus, a santidade de Deus, e a
salvação de Deus. A santidade de Deus é demonstrada no Seu julgamento da pecaminosidade
grosseira dos habitantes originais de Canaã, e na Sua insistência em que os instrumentos deste
julgamento sejam santos. “Vez após vez se diz que esta é uma guerra santa, e que Israel há-de ter
êxito na tarefa que lhe foi dada somente à medida que se separar de todo o mal.”
Jos. 3:5 usa “santificar” em relação à preparação do povo para entrar em Canaã, um termo que
neste contexto é traduzido por “consagrar” ou “santificar”. “Santificai-vos, porque amanhã fará o
Senhor maravilhas no meio de vós”.

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É notável que o Novo Testamento pelo menos duas vezes usa a travessia de Israel para Canaã –
particularmente em relação à derrota em Cades-barneia (Núm. 13:1-14:45) – como um tipo da vida
cristã mais elevada (Hebreus 3 – 4; Judas 5). “Cades”, como já se notou, é a forma portuguesa do
hebraico qadesh – “santidade”, “consagração”.
É preciso proceder com cautela ao ver na história do Velho Testamento a verdade revelada no
Novo. Mas há pelo menos um valor de ilustração na analogia entre a libertação de Israel da
escravidão do Egipto e a experiência cristã da justificação; e, por outro lado, entre a ordem de
tomar posse da Terra Prometida e a chamada de Deus à santidade. Griffith Thomas cita o poema:
Chegaram às portas de Canaã,
Mas nunca penetraram!
Chegaram mesmo à soleira,
Mas no seu pecado morreram.
No dia seguinte teriam entrado,
Mas Deus fechara-lhes a porta;
Choraram e se aventuraram,
Mas, ai! Era tarde demais.
Também nós continuamos chegando
Ao lugar da encruzilhada:
Um caminho vai à Terra Prometida,
O outro endurece o coração.
Que a conquista de Canaã não se realizou sem batalhas, vitórias e derrotas pode também
ilustrar o facto de que a experiência da santidade cristã não é necessariamente uma vida tranquila,
sem perturbação. Nem tão pouco é uma conquista terminada logo que se entre. “Era, porém, Josué
já velho, entrado em dias; e disse-lhe o Senhor: Já estás velho, entrado em dias, e ainda muitíssima
terra ficou para possuir” (13:1).
O Livro de Juízes é um relato da maneira como os propósitos de Deus falharam na vida do Seu
povo em Canaã por causa de:
(1) Presunção e auto-confiança: “Quando Israel cobrou mais forças, fez dos cananeus
tributários, porém não os expeliu de todo” (1:28).
(2) A falta de atenção e descuido de uma nova geração: “E outra geração após deles se
levantou, que não conhecia ao Senhor, nem tão-pouco a obra que fizera a Israel” (2:10).
(3) Relativismo e laxidão na conduta: “Naqueles dias não havia rei em Israel; cada qual fazia
o que parecia direito aos seus olhos” (17:6).
Mas mesmo aqui a acção e o poder do Espírito de Deus são vistos numa linda frase no
hebraico, usada mias duas vezes (I Cró. 12:18; II Cró. 24:20): “Então o espírito do Senhor
revestiu-se com Gedeão” (Juí. 6:34, tradução literal).
Os livros de Samuel e de Reis relatam a transição da teocracia para a monarquia, e traçam as
peripécias do reino até ao exílio babilónico. É descrito o surgimento da ordem profética em Israel.
Relevante para a nossa compreensão do significado da santidade é a descrição do carácter moral e
religioso dos reis de Judá e Israel como tendo um coração que foi ou não foi perfeito (shalem) para
com ou diante do Senhor (I Reis 8:61; 11:4; 15:3; II Reis 20:3; I Cró. 12:38; 28:9; 29:9,19; II
Cró. 15:7; 16:9; 19:9; 25:2). A referência ao Rei Asa é especialmente instrutiva, pois é feita uma
distinção entre a realização imperfeita de Asa e o seu coração perfeito (I Reis 15:14).

IV. OS SALMOS E OS PROVÉRBIOS


A literatura poética e de sabedoria contribui também para a nossa compreensão da santidade.
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A. Os Salmos
Os Salmos incorporam elementos de santidade tanto sacerdotais como proféticos, mas
reflectem predominantemente a ênfase profética com o seu aspecto moral e ético. O Livro dos
Salmos dá-nos uma visão mais clara da verdadeira natureza da piedade do Velho Testamento. Nele
se descreve o tipo de carácter possível àqueles que andam com Deus. O facto de o Livro dos
Salmos ser o hinário tanto do povo do Novo Testamento como do Israel do Velho Testamento
testifica da sua profundidade espiritual. O comentário de A. F. Kirkpatrick continua a ser
apropriado:
Os Salmos representam o lado íntimo e espiritual da religião de Israel. São a expressão variada da
intensa devoção das almas piedosas a Deus, dos sentimentos de confiança, esperança e amor que
atingem o seu clímax em tais Salmos como o 23, 42, 43, 63 e 84. São a voz polifónica da oração no
seu sentido mais amplo, a alma dirigindo-se a Deus em confissão, petição, intercessão, meditação,
acção de graças e louvor, tanto público como privado. Oferecem a prova mais completa, se esta fosse
necessária, de quão falsa é a noção de que a religião de Israel era um sistema formal de cerimónias e
ritos externos.
Os Salmos estão impregnados de um profundo sentimento da santidade de Deus e de um
encanto reverente pela Sua casa e pelo Seu “santo monte”. Por todo o lado há um sentido de
consagração, abertura, total dependência de Deus e dedicação fiel em obediência. Há uma
profunda convicção do horror do pecado e da perda de comunhão com Deus. Há confiança no
amor de Deus e na Sua boa vontade, e fé perante a oposição e a adversidade.
Notável também é a atmosfera de oração presente nos Salmos – trazendo tudo na vida interior e
exterior ao escrutínio divino. O amor e o anelo por Deus, a confiança n’Ele, o gozo da Sua
presença e a alegria na comunhão com o Senhor, tudo isto é manifesto. Estranho aos ouvidos
modernos é o deleite do salmista na lei do Senhor (1:2; 119, 36 vezes, além de muitos sinónimos).
A lei do Senhor não é uma legislação áspera e restritiva imposta ao homem a partir do exterior.
Como nota Ringgren:
O termo hebraico para “lei” significa “instrução” ou “mostrar o caminho”. Por outras palavras, a
lei revela a vontade de Deus e mostra ao homem a maneira como ele deve andar em obediência diante
do seu Deus. Mas a lei não é vista aqui como uma lista de deveres difíceis ou um fardo pesado.
Antes pelo contrário, é uma revelação graciosa para o bem estar do homem, uma instrução na vontade
de Deus pela qual o salmista sente profunda gratidão. Ele ama a lei de Deus e nela sente prazer.
1. Salmo 15
Os Salmos acrescentam muito ao nosso conhecimento da natureza da santidade de Deus e do
que Ele exige dos Seus seguidores. Alguns descrevem o Salmo 15 como “uma liturgia que
especifica as qualidades exigidas para se ser admitido” no monte santo de Deus, o Templo. Exige-
se integridade, rectidão e verdade. Proíbe-se o falso testemunho, o mal contra o próximo e que se
envergonhe um amigo. Só pode “habitar no teu santo monte” (v. 1) aquele que despreza o réprobo
mas honra os que temem a Deus, aquele que é fiel à sua palavra mesmo que isto o prejudique (v. 4),
que não empresta com usura e não aceita subornos. “Quem faz isto nunca será abalado” (v. 5).
2. Salmo 24
O Salmo 24 combina “mãos limpas e um coração puro” (v. 4), conceito repetido no Novo
Testamento (Tia. 4:8: “Alimpai as mãos, pecadores; e vós de duplo ânimo, purificai os corações”):
Quem subirá ao monte do Senhor,
Ou quem entrará no seu lugar santo?
Aquele que é limpo de mãos e puro de coração,
que não entrega a sua alma à vaidade,
nem jura enganosamente (vv. 3-4)

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“O autor bíblico usa bar (puro) no sentido moral”, diz Mitchell Dahood, em contraste com o
uso legal ou cerimonial da palavra. A ideia dum coração puro encontra-se frequentemente no Novo
Testamento (Mat. 5:8; Actos 15:8-9; I Tim. 1:5; et al.). Para o lebab do Velho Testamento, assim
como para o kardia do Novo, “coração” significa toda a vida interior subjectiva – não apenas os
sentimentos ou propósitos.
3. Salmo 29
O Salmo 29 é o salmo lido na Festa de Pentecostes, memorável no Novo Testamento como a
ocasião do derramamento do Espírito Santo sobre os discípulos de Jesus que O aguardavam (Actos
2). Embora traduzido de várias formas, o v. 2 chama o povo de Deus a adorar ao Senhor “na
beleza da sua santidade”, “em vestido santo”, “na majestade da santidade” ou “na beleza da
santidade”.
4. Salmo 37
O Salmo 37 faz referência ao “homem sincero” (tam), empregando “recto” como sinónimo:
Nota o homem sincero e considera o que é recto
porque o futuro desse homem será de paz.
Este é um dos três salmos (37; 49; 73) que debatem o problema da prosperidade do ímpio em
relação à adversidade que frequentemente aflige os justos. A resposta encontra-se no facto de que
ambas são temporárias: a morte põe termo à alegria do ímpio, mas a pessoa sincera (“perfeita,
total, completa”) e pacífica tem um futuro segundo o propósito de Deus (vv. 38-40).
5. Salmo 51
O Salmo 51 é uma das passagens mais penetrantes do Velho Testamento em relação ao pecado
humano e à salvação. Classificado como um salmo de penitência, revela um reconhecimento claro
da natureza dupla do pecado: actos de transgressão que precisam de ser perdoados e uma realidade
mais profunda que requer purificação. O salmo não é um tratado teológico. É o choro convulsivo
dum coração profundamente perturbado. Não faz uma análise cuidadosa da diferença entre actos
pecaminosos e natureza pecaminosa, entre a necessidade de perdão e o pedido de pureza. Mas,
passando pela compreensão do problema mais profundo, progride naturalmente do grito pedindo
perdão para a oração por pureza e a promessa de louvor e serviço. G. Campbell Morgan escreve:
A alma penitente grita por perdão na base da confissão. De repente a intensidade da convicção
aumenta ao se traçar o acto pecaminoso até à sua origem na poluição da natureza humana. Isto produz
um grito mais profundo. Como o primeiro foi por perdão, o segundo é por pureza, por limpeza de
coração e renovação de espírito. A oração continua, buscando as coisas que se seguem a tal
purificação, manutenção da comunhão e um sentido de alegria. Olhando para a frente com esperança,
uma canção antecipa aquele serviço de acção de graças que há-de brotar de tal perdão e pureza.
O salmista lamenta as suas transgressões (vv. 1, 3), os seus pecados e as suas iniquidades (v. 9).
“Contra ti, contra ti somente pequei, e fiz o que a teus olhos parece mal” (v. 4). Mas o problema é
ainda mais profundo do que os seus acts de pecado. Ele grita:
Lava-me, completamente, da minha iniquidade
e purifica-me do meu pecado (v. 2).
Eis que em iniquidade fui formado,
e em pecado me concebeu minha mãe.
Eis que amas a verdade no íntimo
e no oculto me fazes conhecer a sabedoria (vv. 5-6).
A natureza da cura para este problema mais profundo, o do pecado interior, é identificada com
clareza:
Lava-me. . . e purifica-me (v. 2).
13
Purifica-me com hissope e ficarei puro:
lava-me, e ficarei mais alvo do que a neve (v. 7).
Cria em mim, ó Deus, um coração puro,
e renova em mim um espírito recto.
Não me lances fora da tua presença,
e não retires de mim o teu Espírito Santo.
Torna a dar-me a alegria da tua salvação,
e sustém-me com um espírito voluntário.
Então ensinarei aos transgressores os teus cmainhos,
e os pecadores a ti se converterão (vv. 10-13).
Lawrence E. Toombs escreve acerca da palavra traduzida no verso 7 por “lavar”:
Na língua hebraica há duas palavras para “lavar”. A primeira aplica-se à lavagem do corpo, aos
utensílios da cozinha e, em geral, a qualquer objecto que possa ser mergulhado em água ou a que se
possa derramar água por cima. A segunda é praticamente uma palavra específica para lavar roupas
batendo-as com um pau ou contra uma pedra submersa na água. O salmista escolhe propositadamente
esta segunda palavra, rejeitando por implicação a metáfora dum chuveiro tépido e sabão perfumado, que
fazem sair a sujidade enquanto o banhista se delicia. Ele sabe que o pecado está tão profundamente
entrincheirado na sua natureza, que Deus poderá bem ter de o bater fortemente para que o mal saia.
Tal purificação, afirma o salmista, garante a presença de Deus e a habitação contínua do Seu
Espírito Santo (v. 11). Esta é uma das três vezes (cf. Isa. 63:10-11) em que o Velho Testamento
usa o título exacto “Espírito Santo” em referência ao Espírito de Deus ou Espírito do Senhor.
“Embora a expressão Espírito Santo seja pouco frequente no Velho Testamento, a sua substância
é comum”.
O gozo da salvação e o ser sustentado com “um espírito voluntário” hão-de produzir resultados
(v. 12); os caminhos de Deus serão ensinados aos transgressores, e pecadores serão convertidos (v.
13) – resultados paralelos são encontrados no Evangelho de São João em relação à vinda do
Espírito Santo na Sua plenitude sobre os discípulos (João 14-17).
6. Salmos 73, 93, 110
O Salmo 73 já foi citado com referência ao problema dos ímpios que prosperam e os justos que
sofrem. Este salmo começa com uma afirmação sumária repetida na conclusão (v. 28):
Verdadeiramente bom é Deus para com Israel,
para com os limpos de coração (v. 1).
Os puros de coração são abençoados com a visão do Senhor (Mat. 5:8; Heb. 12:14) e um sentido
da bondade de Deus, embora temporariamente a sua piedade possa parecer ter sido vã (v. 13).
A noção constante da santidade da casa de Deus (neste contexto, o Templo) permeia os Salmos
e torna-se evidente em 93:5:
Mui fiéis são os teus testemunhos;
a santidade convém à tua casa,
Senhor, para sempre.
O Templo e a colina onde está situado são santos porque estão separados do secular e do profano.
Assim também deve ser o povo que ali adora.
O Salmo 110, certamente uma das passagens messiânicas mais importantes do Velho
Testamento, é citado 21 vezes no Novo Testamento com referência a Cristo e ao Seu Reino e, o que
é mais notável, é citado pelo próprio Jesus. Uma característica da vida no Reino é a obediência
voluntária do povo de Deus em face da Sua santidade:

14
O teu povo se apresentará voluntariamente
no dia do teu poder;
com santos ornamentos,
como vindo do próprio seio da alva,
será o orvalho da tua mocidade (v. 3).
Os comentaristas diferem quanto ao sujeito da frase “com santos ornamentos”, mas parece fazer
referência a Deus. A consagração é sempre o acto duma vontade rendida livremente. Um serviço
relutante, embora seja melhor que a desobediência, nunca satisfaz os requisitos da santidade divina.
7. “Santos” nos Salmos
Referências aos “santos” são abundantes nos Salmos. Duas palavras frequentemente usadas no
Velho Testamento constituem a base desta tradução. Uma delas é chasid, derivado de chesed, e
significa “o amor e a lealdade do concerto”, “benigno, piedoso, virtuoso” – traduzido “santos”. É
usado nos Salmos 16 vezes com este sentido. Diz-se que os “santos” cantam louvores ao Senhor
(30:4), amam-nO (31:23), compartilham o gozo de esperar no Seu nome (52:9), alegram-se
(132:9,16), etc. Eles não estão abandonados (37:28), congregam-se diante do Senhor (50:5), são
abençoados com a paz (85:8), preservados (97:10) e a sua morte é preciosa à vista de Deus
(116:15), etc.
O outro termo traduzido por “santos” é qadosh, “aqueles que são separados, postos à parte,
santos”. Os salmistas usam-no cinco vezes, duas vezes em relação à “assembleia” ou “concílio”
dos santos (89:5,7). Descrevem-se como sendo “os ilustres em quem está todo o meu prazer”
(16:3). Eles devem temer ao Senhor porque “não têm falta alguma aqueles que O temem” (34:9).
O Salmo 106, um dos grandes salmos históricos, faz referência a Aarão como qadosh, “o santo do
Senhor” (v. 16), “que foi consagrado ao Senhor”.
Portanto, enquanto que o conjunto do povo do concerto pode ser descrito como “santo”, parece
claro que alguns de entre esse grupo são “santos” duma forma especial. A sua piedade ou
santidade não é apenas uma questão de separação cerimonial ou da existência do concerto.
Relaciona-se com a piedade pessoal e a sua adoração e lealdade a Deus. Esta nota torna-se mais
persistente na literatura do período profético.
B. Provérbios
O Livro de Provérbios é uma fonte principal para quem queira compreender a ética do Velho
Testamento. Como toda a literatura de sabedoria hebraica, este livro mantém que a existência é
fundamentalmente racional e moral. A conduta pessoal, e não a experiância religiosa, é o seu tema
principal. Mas o estilo de vida que é ensinado nos Provérbios é motivado pelo “temor do Senhor”
(1:7; 9:10) e representa os ideais de honestidade, integridade, veracidade, humildade, prudência,
pureza sexual, liberalidade, disciplina, trabalho, compaixão, justiça e paz com o próximo.
Estando tão preocupado com a conduta, Provérbios é extraordinariamente sensível ao lugar
chave ocupado pelo “coração” como a fonte motivadora da vida, “a sede e o símbolo da
inteligência e da vontade”:
Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração,
porque dele procedem as saídas da vida (4:23).
O coração perverso (de iqqesh, “distorcido, torto, falso”) é a fonte do mal na vida (6:14;
11:20; 12:8) avah, “torto”, “perverso”, “maligno”; 17:20). Tal coração maquina “pensamentos
viciosos” (6:18); tem “pouco valor” (10:20); é enganador (12:20); e é propenso à apostasia
(14:14).
Por outro lado, o coração pode ser compreensivo (2:2; 8:5), sábio (2:10; 10:8; 11:29; etc.),
tranquilo (14:30); justo (15:28); limpo (20:9); puro (22:11) – e
15
O crisol é para a prata, e o forno para o ouro;
mas o Senhor prova os corações (17:3).
O facto de o coração ser o centro de comando da vida é também afirmado por Jesus em Mat.
15:18-20 e Mar. 7:20-23.

V. OS PROFETAS
Na literatura profética encontramos as normas essenciais da teologia do Velho Testamento. Os
profetas e os sacerdotes são muitas vezes contrastados e considerados como estando basicamente
em oposição uns aos outros. Um ponto de vista mais equilibrado vê na ênfase profética não um
repúdio do culto do Templo, mas um aprofundamento e espiritualização do seu significado. Não
foi contra o ritual em si que os profetas falaram. Mas contra o ritual sem rectidão, a degeneração
do ritual para um formalismo oco. Os profetas do Velho Testamento compreenderam
profundamente a santidade, tanto relacionada com Deus como também com os seres humanos. O
próprio facto de que desde os tempos dos profetas a santidade invariavelmente sugere bondade,
integridade pessoal e rectidão moral é um tributo mudo à perspicácia desses homens.
A ideia de uma norma para o carácter nunca esteve totalmente ausente do ideal da santidade
aplicada a pessoas. Mas tornou-se distintivo do pensamento dos profetas. Hermann Schultz
escreveu acerca deste período do desenvolvimento da teologia do Velho Testamento:
Considerava-se que um relacionamento adequado com Jeová dependia totalmente da
integridade moral. A vontade de Deus exprimia-se pelos grandes requisitos fundamentais de
moralidade. . . uma vida diária de justiça, bondade e verdade. . . Aos olhos de Deus, as
cerimónias sagradas não têm qualquer valor, excepto como expressões de fé, humildade e
obediência. Tal é o peso das mensagens proféticas desde Amós e Oséias aos profetas do Exílio.
Apresentando uma ideia semelhante, Harold H. Rowley escreve: “Em Israel a princípio só se
percebeu em parte, mas com o passar do tempo tornou-se cada vez mais claro que os que adoram a
Deus devem tornar-se naquilo que Ele é. Assim, a religião de Israel é ética na sua essência e não
apenas nas suas exigências”. Semelhantemente, Walter Eichrodt diz: “O homem que pertence a
Deus deve possuir uma natureza especial que, englobando ao mesmo tempo o exterior e o interior,
a pureza ritual e a pureza moral, corresponde à natureza do Deus santo”.
A. Isaías
Isaías está em primeiro lugar entre os profetas maiores, não só no tempo mas também na
eminência. Com justa razão ele tem sido chamado “o profeta evangélico”, e o livro que tem o seu
nome é descrito como “o evangelho segundo Isaías”.
Profundamente consciente do estado pecaminoso do seu povo, Isaías nunca perdeu a nota de
redenção e esperança. Ele proclama a palavra da promessa como sendo um oráculo de Deus:
E voltarei contra ti a minha mão;
e purificarei inteiramente as tuas escórias;
e tirar-te-ei toda a impureza (1:25).
1. Isaías 6
O relato que o profeta faz em 6:1-8 da sua chamada específica é uma passagem crucial na
compreensão da santidade tanto de Deus como das pessoas. Como Procksch nota, “O conceito da
santidade é central em toda a teologia de Isaías. O trisagião da sua visão inicial (Isa. 6:3)
permaneceu como a norma da sua imagem de Deus”. Anteriormente considerámos esta passagem
como ela se relaciona com a santidade de Deus (cap. 1). Agora vamos vê-la em relação à santidade
conferida aos homens.

16
Isaías tinha começado o seu ministério de profeta antes da morte do rei Uzias (i:1). Mas no
ano em que o rei morreu o profeta teve uma experiência em que viu a Deus “assentado sobre um
alto e sublime trono; e o seu séquito enchia o templo” (6:1). Deus fica muito acima de tudo o que
é terrestre, profano e pecaminoso (Sua transcendência), mas também Ele está tão perto que
podemos quase estender a mão e tocar n’Ele (Sua imanência).
A nota tónica da experiência soa no grito do serafim: “Santo, Santo, Santo é o Senhor dos
Exércitos” (v. 3). A reacção do profeta não foi devida à sua sensação de finitude na presença do
Infinito. Foi a noção da sua impureza na presença da santidade. A visão do Senhor trouxe um
anelo pela purificação pessoal. Ludwig Köhler escreve: “Aqui a santidade é o oposto do carácter
pecaminoso. Deus é santo porque não tolera o pecado; Ele descobre-o, repreende-o, recusa
participar dele, castiga-o ou, então, expiando-o, perdoa-o. O pecado separa o homem do Deus
santo”. O grito de Isaías foi: “Ai de mim, que vou perecendo porque eu sou um homem de lábios
impuros, e habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o rei, o Senhor
dos Exércitos!” (6:5).
A confissão aqui não é de rebelião, de desobediência activa e consciente contra Deus. Esse
problema foi resolvido quando Isaías se tornou profeta. O problema não residia no que ele tinha
feito, mas no que ele era: impuro por natureza quando medido à luz da santidade de Deus. Como
escreveu Richard C. Trench:
Quem soltou este grito foi alguém que antes não tinha consciência da sua iniquidade,
guardando o mistério da fé numa consciência pura; mas nessa luz terrível ele viu e declarou-se
um homem desfeito, viu em si manchas que antes nem suspeitara, viu o seu próprio pecado e o
do seu povo, de modo que soltou esse tremendo grito de angústia. E, contudo, esse momento
com todo o seu horror foi a transição para uma vida verdadeira.
Considerando o seu ofício profético, foi adequada a preocupação de Isaías com os lábios.
“Impuro” (tame) não quer dizer necessariamente blasfemo ou moralmente corrompido. É
basicamente um termo cerimonial e quer dizer “não sagrado”, “não consagrado”, “não santificado”.
Quando tocado pela brasa celestial (v. 7), os lábios de Isaías se tornaram no seu instrumento
principal. Jesus disse: “Da abundância do coração fala a boca” (Mat. 12:34; Luc. 6:45). A
purificação dos lábios simboliza a purificação do coração: “A tua iniquidade foi tirada, e
purificado o teu pecado” (v. 7; o termo usado quer dizer literalmnete “coberto, expiado”).
João 12:41 liga a visão de Isaías à Pessoa de Cristo: “Ele viu a sua glória e falou dele”. Na
tradição judaica, o trono de Deus, que Isaías viu, ficava no lugar santíssimo do Templo, atrás do
véu ou cortina. Ninguém a não ser o sumo-sacerdote, e mesmo este só uma vez por ano, tinha
permissão de entrar no lugar santíssimo. A cortina ocultava-o da vista de todos, tanto dos
sacerdotes como do povo.
Mas quando Cristo morreu, “o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo” (Mat. 27:51).
Nisto o autor aos Hebreus vê um profundo significado espiritual: “Tendo, pois, irmãos, ousadia
para entrar no santuário, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou,
pelo véu, isto é, pela sua carne, e tendo um grande sacerdote sobre a casa de Deus, cheguemo-nos,
com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé, tendo os corações purificados da má consciência,
e o corpo lavado com água limpa” (10:19-22). Portanto, a experiência de Isaías torna-se no Novo
Testamento um protótipo significativo da percepção da santidade de Deus.
Quando os lábios do profeta foram tocados, os seus ouvidos também foram abertos e ele ouviu
a voz do Senhor dizendo: “A quem enviarei e quem irá por nós?” A sua resposta foi imediata:
“Eis-me aqui, envia-me a mim”. Ele nem sequer parou para perguntar: “Para onde?” A mensagem
que lhe foi dada para proclamar é citada frequentemente no Novo Testamento (Mat. 13:14; Mar.
4:12; Luc. 8:10; Act. 28:26-27; Rom. 11:8) e é provavelmente mais bem compreendida na
tradução reflectida pela Septuaginta: “Vai e diz a este povo:
17
Ouvireis sempre, mas nunca compreendereis;
vereis sempre, mas nunca percebereis;
O coração deste povo está endurecido;
mal ouvem com os ouvidos, e fecharam os seus olhos
-- vv. 9-10; cf. Act. 28:27-27
2. Isaías e a Santidade de Deus
Através de todo o livro é bastante evidente que a santidade é o tema principal de Isaías. Já
mencionámos anteriormente o seu título distintitivo para o verdadeiro Deus, “o Santo de Israel”
(1:4; 5:19, 24; 10:20; 12:6; passim – um total de 30 vezes). Este Deus santo deve ser
“santificado” pelo Seu povo através do reconhecimento e louvor da Sua santidade (5:16; 8:13;
29:23), e o Seu nome deve também ser santificado (29:23). Ele é três vezes santo (6:3). O Seu
braço, isto é, a manifestação do Seu poder, é santo (52:10); o Seu nome é santo (57:15); o Seu
Espírito é santo (63:10-11).
Tudo que é distintamente relacionado com Deus é santo; a Sua cidade, Jerusalém (48:2; 52:1);
o Monte Sião (27:13; 56:7; 57:13; etc); a Sua habitação (64:11); e o Seu dia, o sábado (58:13).
Mesmo os espólios de Tiro, postos à parte para o uso do povo de Deus, são designados qodesh.
Duma forma semelhante, o povo de Deus é santo. Deve santificar-se (66:17). O seu
remanescente (4:3) será uma “semente santa” (6:13). A nação antes do exílio é conhecida como
“teu povo santo” (63:18; ou “o povo da tua santidade”). O próprio regresso do exílio é visto como
sendo típico da era messiânica em que a vida humana é vista como um deserto recuperado, cheio de
vida e de alegria (35:1-7), do qual se diz:
E ali haverá um alto caminho,
um caminho que se chamará o caminho santo;
o imundo não passará por ele,
mas será para aqueles; os caminhantes,
até mesmo os loucos, não errarão.
Ali não haverá leão,
nem animal feroz subirá a ele,
nem se achará nele;
Mas os remidos andarão por ele
e os resgatados do Senhor voltarão,
E virão a Sião com júbilo:
e alegria eterna haverá sobre as suas cabeças:
Gozo e alegria alcançarão,
e deles fugirá a tristeza e o gemido (35:8-10)
O Bispo J. Paul Taylor faz uma aplicação apropriada da metáfora “caminho santo” à vida
cristã. Diz ele:
Os crentes não são inteiramente santificados apenas para terem segurança no mundo
vindouro, mas também para serviço neste mundo. A plena salvação não é um beco sem saída
que pára à porta da casa do homem santificado. Não é a casa onde ele mora, mas sim uma auto-
estrada em que caminha, o caminho da santidade que corta as montanhas e as faz terreno plano,
que passa pelos vales e os enche, atravessa desertos e faz com que estes se regozijem e floresçam
como a rosa, que penetra o descampado para transformar a habitação dos dragões em habitação
de Deus, um lugar donde jorram águas para satisfazer a sede de homens moribundos.
Aqueles que andam neste caminho serão chamados “O Povo Santo”, “Os Redimidos do
Senhor” (62:12).
3. Isaías e a Época do Espírito
18
Isaías interpreta a tragédia de Cades-barneia como uma rejeição do Espírito Santo por parte do
povo. Aqueles que antes conheciam a bondade e o louvor do Senhor; que tinham presenciado a
Sua misericórdia e compaixão; que tinham sido conhecidos como o povo de Deus; dos quais Ele
era o Salvador, aflito pela sua aflição, salvando-os pelo anjo da Sua presença; aqueles que tinham
sido redimidos por amor e misericórdia, “levantados” e “carregados todos os dias da antiguidade”
(63:7-9), são descritos da seguinte forma:
Mas eles foram rebeldes,
e constristaram o seu Espírito Santo;
pelo que, se lhes tornou em inimigo,
e ele mesmo pelejou contra eles.
Todavia, se lembrou dos dias da antiguidade,
de Moisés, e do seu povo, dizendo:
Onde está aquele que o fez subir do mar
com os pastores do seu rebanho?
Onde está o que pôs no meio deles o seu Espírito Santo? -- vv. 10-11
Aqui, como em Sal. 51:11, o Espírito é designado pelo que se torna o termo mais característico
do Novo Testamento, o “Espírito Santo”. Em Isaías descobrimos uma nova nota: A nova era de
libertação será caracteristicamente a “época do Espírito”.
O Espírito de Deus, o Espírito do Senhor, “o seu Espírito” e “meu Espírito” são termos que
aparecem frequentemente nas páginas do Velho Testamento. O Espírito de Deus move-Se sobre as
águas enquanto a terra está ainda sem forma e vazia, envolvida em trevas (Gén. 1:2). O Espírito de
Deus não contende para sempre com o homem (6:3). A sabedoria de José é atribuída por Faraó ao
“espírito de Deus” (41:38). Bazaleel foi cheio “do Espírito de Deus, de sabedoria, de entendimento
e de ciência, em todo o artifício” (Êxo. 31:3) para fazer o trabalho necessário para a construção do
tabernáculo no deserto.
O Espírito de Deus vem sobre Balaão (Núm. 24:2) e reside em Josué (27:18). O “Espírito do
Senhor” vem sobre Otniel (Juí. 3:10), Gideão (6:34), Jefté (11:29), Sansão (13:25; 14:6,19; 15:14),
Saúl (I Sam. 10:6, 10; e sai dele, 16:14), e vem sobre David (16:13). O Espírito de Deus estava
“sobre” os mensageiros e sobre Saúl (19:20, 23). O Espírito do Senhor “falou” através de David (II
Sam. 23:2) e através de Miquéias (I Reis 22:24). Obadias receava que Elias fosse arrebatado pelo
Espírito do Senhor (18:12); e no fim da sua carreira profética alguns pensaram que ele foi
“elevado” pelo Espírito do Senhor (II Reis 2:16). O Espírito de Deus veio sobre Jaaziel (II Cró.
20:14) e Zacarias, o filho de Joiada (24:20). Jó descobre que o Espírito de Deus é o seu fôlego, a
Fonte da vida (Jó 27:3 – “alento” é “espírito”), e o mesmo acontece com Eliú (33:4).
O Salmista ora para que o “Santo Espírito” não seja retirado dele (Sal. 51:11) e vê no Espírito
o poder que cria a vida para o mundo animal (104:24:30). A rebelião de Israel em Meribá foi
contra o Espírito de Deus (106:33). O Espírito do Senhor é igual à Sua presença (139:7) e guia o
povo de Deus por uma terra plana (143:10).
Embora aprareçam elementos de poder moral e espiritual nestas muitas referências ao Espírito
de Deus ou Espírito do Senhor, elas tratam principalmente do Espírito como a agência activa de
Deus na natureza e da Sua função em revestir o povo escolhido de sabedoria ou de força física..
É com Isaías que a obra do Espírito vem a ser mais distintamente ética e espiritualmente
redentora. O Espírito está intimamente ligado à época vindoura de libertação. É verdade que há
em Isaías uma referência ao regresso dos exilados da Babilónia. Mas ao mesmo tempo ela é um
vislumbre de uma era nova e messiânica:
Porque brotará um rebento de Jessé,
e das suas raízes um renovo frutificará.
19
E repousará sobre ele o espírito do Senhor,
o espírito de sabedoria e de inteligência,
o espírito de conselho e de fortaleza,
o espirito de conhecimento e de temor do Senhor (11:1-2).
No que veio a ser conhecido como a primeira das “Canções do Servo”, o Servo é apresentado
como “Aquele que tem sobre Si o Espírito”:
Eis aqui o meu Servo, a quem sustento,
O meu Eleito, em quem se compraz a minha alma;
Pus o meu espírito sobre ele;
Juízo produzirá entre os gentios (42:1).
Isaías 62:1-2 é a fonte da profecia que Jesus aplicou à Sua pessoa no Seu discurso na sinagoga
(Luc. 4:18-19):
O Espirito do Senhor Jeová está sobre mim;
porque o Senhor me ungiu,
para pregar boas novas aos mansos (v. 1).
Numa passagem que se refere mais proximamente a Ciro, mas cuja referência final é a Cristo
(48:12-16), o orador diz:
“Não falei em segredo, desde o princípio;
desde o tempo em que aquilo se fez, eu estava ali”.
E agora o Senhor Jeová me enviou o seu Espírito (v. 16).
Não só ficará o Espírito sobre o libertador, mas Ele será derramado sobre o povo. A desolação
continuará
Até que se derrame sobre nós o espírito lá do alto;
Então o deserto se tornará em campo fértil,
E o campo fértil será reputado por um bosque.
E o juízo habitará no deserto,
e a justiça morará no campo fértil.
E o efeito da justiça será a paz,
E a operação da justiça, repouso
E segurança para sempre (32:15:17).
A promessa é repetida em 44:3:
Porque derramarei água sobre o sedento,
e rios sobre a terra seca;
Deramarei o meu Espírito sobre a tua posteridade,
e a minha bênção sobre os teus descendentes.
O “derramar” do Espírito (Joel 2:28; Act. 2:17) indica abundância, e a promessa aos
descendentes foi citada por Pedro no dia de Pentecostes em Act. 2:39. E de novo em Isa. 59:21:
“Quanto a mim, este é o meu concerto com eles, diz o Senhor: o meu Espírito, que está sobre ti, e
as minhas palavras, que pus na tua boca, não se desviarão da tua boca, nem da boca da tua
posteridade, nem da boca da posteridade da tua posteridade, diz o Senhor, desde agora e para todo o
sempre”.
B. Jeremias
Jeremias viveu nos dias trágicos do colapso final de Judá e os princípios do exílio babilónico.
Ele viu mais claramente do que qualquer outro do seu tempo que a nação como um todo estava
condenada por causa da sua idolatria e vacilação de coração. Mas ele tinha a mesma fé de Amós e
20
Oséias de que Deus ainda havia de redimir e restaurar o Seu povo. O antigo concerto falhou; mas
Deus havia de fazer um novo concerto com o Seu povo.
Há tristeza no uso do tempo passado:
Israel era santidade para o Senhor,
e as primícias da sua novidade. . .

Porque o meu povo fez duas maldades:


A mim me deixaram, o manancial de águas vivas,
E cavaram cisternas,
cisternas rotas que não retêm as águas (2:3,13)
Jeremias viu claramente que o problema do pecado não é um problema das circunstâncias nem
das influências externas, mas o problema duma natureza caída e depravada: “Enganoso é o
coração, mais do que todas as coisas, e perverso: quem o conhecerá?” (17:9).
Mas há esperança dum novo dia em que Deus há-de operar no Seu povo para cumprir a Sua
justiça:
“Eis que dias vêm”, diz o Senhor, “em que farei um concerto novo com a casa de
Israel e com a casa de Judá. Não conforme o concerto que fiz com seus pais, no dia em
que os tomei pela mão para os tirar da terra do Egipto; porquanto eles invalidaram o meu
concerto, apesar de eu os haver desposado”, diz o Senhor. “Mas este é concerto que farei
com a casa de Israel, depois daqueles dias”, diz o Senhor: “Porei a minha lei no seu
interior, e a escreverei no seu coração; e eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo”
(31:31-33).
Convém notar que o autor aos Hebreus aplica esta promessa à morte expiatória de Cristo pela qual
Ele “. . . aperfeiçoa para sempre os que são santificados” (Heb. 10:14; cf. vv 15-16).
C. Ezequiel
Ezequiel, contemporâneo de Jeremias que vivia entre os exilados em Babilónia, vê a era
vindoura como um tempo de purificação de todas as impurezas:
“E eu santificarei o meu grande nome, que foi profanado entre as nações, o qual profanastes no
meio delas; e as nações saberão que eu sou o Senhor, diz o Senhor Jeová, quando eu for santificado aos
seus olhos. . . Então espalharei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as imundícias e de
todos os vossos ídolos, vos purificarei. E vos darei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito
novo, e tirarei o coração de pedra da vossa carne, e vos darei um coração de carne” (36:23, 25-27).
Como tem sido mencionado, no seu livro A Perfeição Cristã João Wesley apoiou-se bastante
nesta passagem do Velho Testamento para a doutrina da inteira santificação. Não é o único verso
do Velho Testamento que ele citou, mas a verdade é que o usou mais do que qualquer outro.
J. Kenneth Grider escreve acerca do v. 23: “Todos os atributos de Deus, tanto metafísicos
como morais, estão condensados na Sua santidade. Isto é o que Ele é – Santidade. O grande nome
(23) de Deus é aqui usado como sinónimo de Seu santo nome (22)”.
D. Joel
A promessa da época vindoura do Espírito é repetida outra vez por Joel na famosa passagem
citada por Pedro como sendo cumprida no dia de Pentecostes:
E há de ser que, depois,
Derramarei o meu Espírito sobre toda a carne,
E vossos filhos e vosssa filhas profetizarão,
Os vossos velhos terão sonhos,
Os vossos mancebos terão visões.
21
E também sobre os servos e sobre as servas
naqueles dias derramarei o meu Espírito (2:28-29; cf. Act. 2:16-18)
E. Zacarias
A secção final de Zacarias é uma das passagens supremamente cristológicas do Velho
Testamento. Ela contém a promessa do Espírito como em Isaías, Ezequiel e Joel: “E sobre a casa
de David, e sobre os habitantes de Jerusalém, derramarei o Espírito de graça e de súplicas; e
olharão para mim, a quem traspassaram; e o prantearão, como quem pranteia por um unigénito; e
chorarão amargamente por ele, como se chora amargamente pelo primogénito” (12:10).
O oráculo de Zacarias 12 continua no capítulo 13: “Naquele dia haverá uma fonte aberta para
a casa de David, e para os habitantes de Jerusalém, contra o pecado e contra a impureza” (v. 1). G.
N. M. Collins escreve: “Este versículo exibe as duas grandes doutrinas do evangelho – a
justificação e a santificação (Henderson). A graça do Espírito de Cristo é necessária a esta, assim
como àquela é necessária a virtude do sangue de Cristo”. Justificação significa deixar o nosso
pecado, a rectificação dum relacionamento errado com Deus, de forma que pela fé somos
restaurados a favor dum Deus santo e justo. Santificação no sentido mais amplo significa inteira
renovação moral da nossa natureza caída, começando com a ‘lavagem da regeneração e da
renovação do Espírito Santo’ (Tito 3:5) e sendo completada pelo baptismo com o Espírito Santo e
fogo (Mat. 3:11; Act. 1:4-5; 15:8-9)”.
Em 13:9 a figura muda da fonte para o fogo, pelo que o remanescente (“a terça parte”) será
refinado como prata ou ouro:
E farei passar esta terceira parte pelo fogo,
E a purificarei, como se purifica a prata,
E a provarei, como se prova o ouro.
Ela invocará o meu nome,
E eu a ouvirei; direi: É meu povo;
E ela dirá: O Senhor é meu Deus.
Numa passagem cheia de imagens pitorescas, a época vindoura é vista como uma época de
santidade geral: “Naquele dia se gravará sobre as campaínhas dos cavalos: SANTIDADE AO
SENHOR: e as panelas de Jerusalém e Judá serão consagradas ao Senhor dos Exércitos. . . “
(14:20-21). Como nota Collins:
Nos versículos finais da profecia é-nos apresentado um quadro de Jerusalém totalmente consagrada
a Jeová – um quadro em que a cidade santa é o símbolo da Igreja Cristã reinando no mundo. A
distinção entre o secular e o sagrado desaparece, pois tudo e todos são consagrados aos propósitos do
Senhor. As campaínhas dos cavalos têm a mesma inscrição da mitra do Sumo Sacerdote, as panelas e
os vasos mais comuns serão santos como as bacias diante do altar; tudo será consagrado a propósitos
santos.
F. Malaquias
O Velho Testamento termina com a mesma expectativa tão familiar nos escritos dos profetas.
Malaquias apresenta o oráculo divino de esperança em que se declara que o Messias refinará e
purificará o Seu povo: “Eis que envio o meu anjo, que preparará o caminho diante de mim; e, de
repente, virá ao seu templo o Senhor, a quem vós desejais; eis que vem, diz o Senhor dos
Exércitos.
“Mas quem suportará o dia da sua vinda? E quem subsistirá quando Ele aparecer? Porque será
como o fogo do ourives, e como o sabão dos lavandeiros. E assentar-se-á, afinando e purificando a
prata; e purificará os filhos de Leví, e os afinará como ouro e como prata; então ao Senhor trarão
ofertas em justiça” (3:1-3). Como diz William M. Greathouse a respeito de Malaquias: “O pequeno

22
livro que procede da mão deste profeta testifica de um pregador vigoroso e destemido que zelou
pela sinceridade do culto e pela santidade de vida”.
Antes de deixarmos o Velho Testamento, é necessário olhar para trás. Que é a santidade no
Velho Testamento? Em primeiro lugar ela é a natureza inerente, essencial, do Deus único e
verdadeiro. No sentido absoluto, só Ele é santo. Mas, do mesmo modo, tudo e todos que são
levados a uma relação com Ele compartilham de alguma maneira dessa santidade. A palavra
também significa separado do profano, posto à parte como possessão especial do Senhor.
Tal separação é tanto obra humana como divina. “Santificar” é um verbo aplicado
frequentemente aos agentes humanos: “Santifica-me todo o primogénito. . . (Êxo. 13:2 e 19:22;
28:41; Jos. 3:5). Mas o verbo é também usado quando o agente é Deus: “. . . Eu sou o Senhor que
vos santifica” (Êxo. 31:13; Lev. 20:8; 21:15; etc). Embora o Velho Testamento tenha outra frase
normalmente traduzida “consagrar” (literalmente, “encher a mão”), quando usado acerca dos
agentes humanos “santificar” significa o que agora deve ser chamado “consagrar”.
Aplicada às pessoas, no Velho Testamento a santidade aparece em três conceitos principais: o
patriarcal, o sacerdotal e o profético. O conceito patriarcal de santidade, expresso em Génesis e em
Jó, significa andar sem culpa para com Deus (e.g., Enoque em 5:22, 24; Noé em 6:9; Abraão em
17:1; Jó em 1:1,8; 2:3). O conceito sacerdotal ou o conceito do templo, aplicado tanto a pessoas
como a coisas, realça a santidade cerimonial cujo significado principal é ser separado, posto à parte,
dedicado ou considerado sagrado.
Devemos novamente realçar que o conceito sacerdotal de santidade não exclui o elemento
moral. Isto é visto claramente em Levítico 19, o coração do código sacerdotal de santidade. Aqui,
juntamente com as injunções cerimoniais (vv. 5-8, 19, 21-28, 30) há exortações claramente éticas
(vv. 15, 17-18, 20, 29, 33-36) – ambas exprimindo o significado do mandamento “santos sereis,
porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (v. 2).
O conceito profético ou da sinagoga representa a moralização cresente da ideia de santidade. A
sua expressão mais clara é vista na experiência de Isaías (Isa. 6:1-8).
É pela ênfase profética que a santidade vem a incluir a justiça moral ou a bondade de carácter e
conduta. Peter T. Forsyth escreve:
A própria história da palavra santidade no Velho Testamento demonstra a transcendência gradual
da ideia de separação pela de pureza. Segue um caminho em que a ideia quantitativa de tabu é
substituída pela ideia qualitativa de pureza absoluta e activa. O que é religioso torna-se ético, não só
para se tornar mais religioso, mas a religião da consciência e do mundo. O único Deus só pode ser o
Deus santo.
E Bowman acrescenta: “Finalmente, o Novo Testamento agarra apenas o lado profético da
definição do termo e o perpetua. Todos os cristãos devem ser santos (Rom. 1:7), isto é, eticamente
santos, separados, consagrados ao serviço de Deus (Mar. 6:20; João 17:11; Apo. 3:7), para que
possam ter comunhão com um Deus santo (Act. 9:13; Rom. 1:7); Heb. 6:10; Apo. 5:8). Veremos
agora este desenvolvimento no Novo Testamento.

23
3

A SANTIDADE NOS EVANGELHOS

O Novo Testamento começa com quatro documentos que são absolutamente singulares. São
chamados tradicionalmente Evangelhos. Num sentido restrito constituem um Evangelho
quádruplo: individualmente são chamados “O Evangelho Segundo São Mateus; ou Marcos; ou
Lucas; ou João”.
Argumenta-se com frequência que os Evangelhos não são biografias, e no sentido normal desta
palavra é verdade que não são. Descrevem somente a actividade de Jesus que podia ser
comprimida num mês. Duma vida que durou aproximadamente 12.000 dias, e um ministério activo
de mais de 1.270 dias, as narrativas dos Evangelhos relatam eventos que aconteceram em apenas 34
dias diferentes. Dos 879 versículos de João, 237 pertencem a um só dia na vida de Jesus. E um
terço dos Evangelhos é dedicado completamente à última semana da Sua vida terrestre.
Mas não se deve dar ênfase demasiada a este ponto. Embora na terminologia neo-testamentária
moderna os Evangelhos sejam kerygma – a proclamação das boas novas de Cristo ao mundo – são
uma proclamação que gira à volta de uma vida. Evangelísticos por natureza – o depósito literário
de uma Igreja que prega – são o reconhecimento do facto de que no evangelismo o elemento vital é
a simples história do que aconteceu no ministério de Jesus.
Há uma certa selectividade na escolha dos materiais incluídos nos Evangelhos (João 21:25).
Mas o propósito dessa selectividade é baseado numa Pessoa: “Jesus pois operou também em
presença de seus discípulos muitos outros sinais, que não estão escritos neste livro. Estes, porém,
estão escritos para que creais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida
em seu nome” (João 20:30-31). L. Harold DeWolf escreve num parágrafo eloquente:
No meio da tirania deste mundo, opressão e medo, a certa altura começou uma história
maravilhosa e espalhou-se de aldeia em aldeia e de nação em nação como um fogo descontrolado.
Aqueles que a contaram chamaram-lhe “as boas novas” e estavam tão cheios de maravilha e
alegria, que mesmo as ordens mais severas e os castigos mais duros dos imperadores não podiam
impedir que a contassem. Tão revolucionária era a sua mensagem e o seu poder que os guardiões
da velha ordem disseram uns aos outros: “Eles estão a virar o mundo de cabeça para baixo!” E
assim era. Pela influência da sua fé os escravos foram libertos, opressores cruéis foram
destronados, os pobres eram auxiliados, os doentes curados, faziam-se rir e cantar as crianças como
nunca antes, e os tímidos encaravam a morte com serenidade triunfante e mesmo com uma intensa
alegria.

I. O CARÁCTER DE JESUS
Nos Evangelhos a santidade gira principalmente à roda do quadro que apresentam do carácter
de Jesus. Surgem dois factos inescapáveis: Jesus de Nazaré possuía inteiramente a natureza de
Deus – o Verbo Eterno feito carne, habitando entre os homens (João 1:1,14); e Cristo Jesus foi
verdadeiramente humano em tudo que Deus intencionou que a humanidade fosse e em que se pode
tornar pela Sua graça. Jesus é “o Homem que é a medida de todas as coisas”, num sentido não
pretendido por Protágoras quando pela primeira vez cunhou esta frase.
Muito tem sido dito acerca da alegada diferença entre o “Jesus da história” e o “Cristo da fé”.
Porém, W. D. Davies afirma com razão: “Parece-me essencial que não deveria haver qualquer
incongruência entre o Jesus da história e o Cristo da fé. O problema da sua congruência não pode
ser silenciado ou arquivado. Se forem incongruentes, embora ainda seja possível uma teologia da
Palavra, dificilmente poderá haver uma teologia da Palavra feita carne, e é exactamente com esta
teologia que o Novo Testamento nos confronta”. Ou, como escreve Jesse B. Weatherspoon: “Se

24
começarmos com a história, chamamos-Lhe ‘Jesus Cristo o Senhor’; se começarmos com a
teologia, chamamos-Lhe ‘o Senhor Jesus Cristo’. O ‘Cristo da fé’ é o ‘ Jesus da história’.
Que Jesus Cristo é Senhor é a fé central do Novo Testamento. Esse facto afirma a Sua
divindade. Como escreve Balmer H. Kelly:
A proclamação de que Jesus e só Ele é o Senhor da vida é a ideia básica dos Evangelhos e,
na verdade, de todo o Novo Testamento. Devemos-lhe toda a lealdade e toda a honra. Os
próprios Evangelhos são a expressão desta fé central da Igreja, pois situam num lugar, a
Palestina, e num tempo definido, o governo do procurador Pôncio Pilatos, Aquele que ocupa tão
cabalmente o lugar de honra e adoração normalmente só reservado a Deus, que não pode haver
qualquer dúvida quanto à sua igualdade com Deus e às reivindicações absolutas do Seu Reino.
Mas o facto de que Ele é Senhor também tem uma repercussão directa na vida cristã. Como
diz William Barclay:
Chamar Jesus Senhor é afirmar que Ele é o nosso dono absoluto, e confessar que lhe
devemos obediência total. Chamar Jesus Senhor é afirmar que Ele é o nosso Mestre absoluto,
e confessar que lhe devemos submissão absoluta. Chamar Jesus Senhor é afirmar que ele é o
nosso rei absoluto e confessar que lhe devemos lealdade absoluta. Chamar Jesus Senhor é
afirmar a sua deidade absoluta, e confessar que lhe devemos reverência absoluta.
Nenhuma definição de santidade pode ser maior do que a semelhança a Cristo. Nenhuma
apresenta ao crente um ideal mais completo. Jesus foi uma Pessoa de um magnetismo inigualável.
O Seu amor, compreensão, humor, humildade, compaixão, coragem e perdão têm deixado na
consciência colectiva da humanidade uma marca que não pode ser apagada. O que há de mais
elevado e mais nobre na conduta ou carácter humano é descrito como sendo semelhante a Cristo.
Jesus juntou a firmeza e a mansidão, a clemência e o poder de decisão. Nada havia n’Ele que
se aproximasse da auto-compaixão, espírito de vingança ou desejo de obter fama. A Sua
personalidade e os Seus ensinos irradiam o puro amor de Deus – um amor que é alegre, sereno,
paciente, amável, bom, fiel, manso e disciplinado (Gál. 5:22,23).
Ao mesmo tempo, Jesus foi sujeito a toda a gama de emoções humanas. Ele conhecia o peso da
tristeza (João 11:35). Sabia o significado de um espírito perturbado (12:27). A sua experiência
com a ira mostra-nos que há uma dimensão da ira humana que não é pecaminosa (Efé. 4:26),
embora por vezes não nos seja fácil discernir a linha divisória (Col. 3:8). O elemento de pecado
entra na ira quando esta fica descontrolada, quando é usada para ferir outros e quando se lhe dá
abrigo no coração (e.g., “Irai-vos e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira” Efé. 4:26).
Nenhum outro protótipo podia Paulo ter tido em mente quando escreveu o seu “Hino ao
Amor”, senão a imagem de Cristo Jesus: “O amor é paciente, é benigno. O amor não inveja, não
se vangloria, não se ensoberbece. Não se porta inconvenientemente, não busca os seus próprios
iteresses, não se irrita, não suspeita mal. O amor não se alegra com a injustiça, mas se regozija com
a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (I Cor. 13:4-7).
O carácter de Jesus apresentado nos Evangelhos está constantemente perante os Seus
seguidores como o ideal que eles devem seguir. O propósito do ministério da Igreja é “o
aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; até que
cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a varão perfeito, à medida da
estatura completa de Cristo” (Efé. 4:12-14).
A nossa mente deve ser a mente de Cristo: “De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que
houve também em Cristo Jesus” (Fil. 2:5). “Mas nós temos a mente de Cristo” (I Cor. 2:16).
“Porque para isto sois chamados; pois, também, Cristo padeceu por nós, deixando-nos o exemplo,
para que sigais as suas pisadas.
O qual não cometeu pecado

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nem na sua boca se achou engano.
O qual, quando o injuriavam, não injuriava, e quando padecia não ameaçava, mas entregava-se
àquele que julga justamente” (I Ped. 2:21-23). “Porque já estais mortos, e a vossa vida está
escondida com Cristo em Deus” (Col. 3:3).
Assim, Jesus é tanto o ideal para além do crente como a norma dentro dele. Se a justificação é
Cristo por nós perante o Pai, a santificação é Cristo em nós pelo Espírito. Na prática, “chegar à
medida da plenitude de Cristo” (Efé. 4:13) é um ideal para a vida inteira, sempre à nossa frente.
Quanto à motivação, Cristo em nós é a dinâmica que purifica e molda a Sua imagem em nós.
Como escreveu Herbert H. Farmer: “A chamada e o privilégio do discípulo cristão é ter cada vez
mais em todos os seus relacionamentos com as pessoas aquilo que não é possível ao homem não
reconciliado, nomeadamente, a mente de Cristo. Ele é chamado a ser santificado pelo Espírito na
comunhão da igreja”.
Cristo é tão humano que nos pode tocar, e tão divino que nos pode redimir. Como diz
Atanásio: “Ele tornou-se o que nós somos, para que pudesse fazer-nos o que Ele é”. “Às duas
interrogações: Que oferece Deus ao homem? e Que exige Deus do homem? o Novo Testamento
oferece uma só resposta: a Vida de Cristo.
Senhor e Mestre de todos nós,
Não importa nosso emblema ou nome,
Seguimos Teu traçado, ouvimos Tua chamada,
Medimos as nossas vidas pela Tua.

II. OS EVANGELHOS SINÓPTICOS


E. C. Blackman diz que nos três primeiros Evangelhos
O homem não é tanto avisado contra as acções pecaminosas, mas sim exortado à pureza do coração
onde o pecado aberto se origina (Mat. 5:21-32; 6:22-23; 7:17-18; 12:34-35). Jesus compreendia a
Sua missão como sendo a de purificar daquela poluição interior que infecta a vida, brota em actos
malignos contra o próximo e torna os homens inaptos para a comunhão com Deus. A tal propósito Ele
devotou a Sua vida até ao sacrifício último, a morte, crendo que Deus tornaria esse sacrifício potente
para a emancipação e santificação que o homem precisa (Mat. 26:28; Mar. 10:45; 14:21-24).
A. Mateus
O Evangelho segundo Mateus é o Evangelho do Messias. Há uma lógica subtil no arranjo dos
quatro Evangelhos no Novo Testamento. Mateus constitui a ligação com o Velho Testamento.
Como observa A. M. Hunter:
Foi um verdadeiro instinto que colocou o Evangelho Segundo Mateus em primeiro lugar.
Este Evangelho, com a sua insistência em que Cristo veio cumprir as profecias antigas, serve para
nos lembrar que há um propósito divino que vem sendo cumprido através de dois testamentos, e
um Povo de Deus cuja história vem sendo contada desde Abel até à Era Apostólica. Ele martela
numa tese principal – que o Cristianismo não é um acidente, mas a consumação do propósito
salvador de Deus a favor do Seu Povo, o qual começou na dispensação do Velho Testamento.
1. Os Dois Baptismos, Mat. 3:11-12
Mateus inicia o seu relato do ministério de Jesus com uma descrição da pregação do precursor
João Baptista. A apresentação de Jesus por João Baptista exprime-se em termos semelhantes nos
outros três Evangelhos (Mar. 1:8; Luc. 3:16-17; João 1:33) e é ecoada duas vezes em Actos (1:5;
11:16). “E eu, em verdade vos baptizo com água, para o arrependimento; mas aquele que vem
após mim é mais poderoso do que eu, cujas alparcas não sou digno de levar; ele vos baptizará com
o Espírito Santo e com fogo. Em sua mão tem a pá e limpará a sua eira e recolherá no celeiro o seu
trigo e queimará a palha com fogo que nunca se apagará” (Mat. 3:11-12).

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O pleno significado destas palavras e o seu sentido para a vida cristã podem ser vistos apenas
em conexão com os eventos do Dia de Pentecostes. É suficiente aqui notarmos que as palavras de
João introduzem uma comparação e um contraste entre o seu baptismo e o que Jesus havia de
administrar. Ambos são descritos como actos de baptismo, com a conotação inescapável de eventos
ou ocorrências que têm lugar num dado momento. Contrasta-se a água e o fogo, o arrependimento
para “perdão dos pecados” (Mar. 1:4) e o Espírito Santo. Ao contrário do que por vezes se pensa
erradamente, o contraste não é entre o baptismo na água feito por João e o baptismo na água em
nome de Cristo. Mas sim entre o baptismo com água e o baptismo com o Espírito Santo e fogo.
A consequência do baptismo de Cristo com o Espírito será uma purificação da eira, recolhendo
o trigo no celeiro e queimando a palha com fogo que não se apaga. Há uma interpretação
escatológica destas palavras que as relaciona com o julgamento final. Porém, o contraste
escatológico habitual não é entre o trigo e a palha, mas antes entre o trigo e o joio (Mat. 13:24-43).
Talvez seja preferível uma interpretação existencial que vê na palha uma parte separável do próprio
grão de trigo, mas sem valor, que deve ser queimada pelo fogo do Espírito Santo consumidor do
pecado. Como escreve William Barclay: “A insensatez da vida, a carência da vida, a futilidade da
vida e o mundanismo da vida, os quais caracterizam tantos de nós, procedem da falha em se
submeter àquele baptismo do Espírito que somente Cristo pode dar”.
Arnold E. Airhart escreve:
Apenas a palha é queimada, e isto só para que o trigo – os valores genuínos da personalidade
– possa ser recolhido e posto em uso. Há uma potencialidade nas nossas personalidades que só
Deus pode discernir. Na vida dos crentes há possibilidades da graça, talentos dormentes,
tesouros escondidos, mas grande parte é inútil porque ainda está dentro do folhelho duma
natureza não santificada. O baptismo com o Espírito Santo será a base para a realização das
potencialidades da personalidade conhecidas do Espírito, mas doutra forma perdidas para sempre.
Em relação à obra do Espírito Santo, o elemento tempo sugerido pela metáfora do baptismo
não deve ser negligenciado. O baptismo nunca pode ser parcial, um processo que se extende e
nunca se completa. Enquanto que o estudo do relacionamento do baptismo com o Espírito Santo e
a inteira santificação tem de esperar até chegarmos ao Livro de Actos, as palavras de J. Paul Taylor
são aqui apropriadas:
É mais trágico do que se pode dizer quando por causa de alguma teoria alguém é levado a
adiar a hora da completa libertação, pois o âmago do problema não são relógios ou calendários,
mas a carnalidade. A mesma natureza carnal que faz com que o pecador adie o perdão também faz
com que o crente adie a purificação. Se o pecador pudesse receber o perdão por alguns pecados de
cada vez, ele não se rebelaria tanto. (Talvez isto explique em parte a atracção do Romanismo.) E
se os crentes pudessem ser santificados aos poucos não levantariam tanta objecção, pois poderiam
sempre guardar um pouco do “eu” pecaminoso. Mas não somos perdoados por fracções nem
somos santificados por secções. Em ambos os casos é tudo ou nada, portanto em ambos é
instantâneo.
2. Os Puros de Coração, Mat. 5:8
Mateus, nos capítulos 5 – 7, dá-nos o relato mais completo do Sermão da Montanha (cf. Lucas
6). Iniciando o sermão estão as bem-aventuranças, as nove cores do espectro da verdadeira luz e
vida cristãs. De interesse especial para o nosso estudo é a sexta bem-aventurança: “Bem-
aventurados os puros de coração porque eles verão a Deus” (5:8).
Todo o sermão, incluindo a possibilidade de se ser “puro de coração”, tem por vezes sido
interpretado como se referindo a uma época futura do Reino. Mas todas as outras qualidades
mencionadas nas bem-aventuranças são aspectos da vida actual – os pobres de espírito, os que
choram, os que têm fome e sede de justiça, os perseguidos. Seria totalmente arbitrário negar a
possibilidade da pureza de coração à luz do uso que Cristo faz do tempo presente.

27
Ralph Earle escreve: “A pureza do coração é o fim e o somatório de todas as bem-
aventuranças anteriores. A possibilidade de tal rectidão está claramente implícita; mas, é também
aparente, tanto nas Escrituras como na experiência universal, que ninguém é originalmente puro
(Jer. 17:9); corações podem ser puros apenas se forem purificados. Nem tão-pouco pode a cultura
humana erradicar as profundezas da corrupção; é necessária uma obra da divina graça”.
O conceito bíblico dum coração puro tem as suas raízes no Velho Testamento (e.g., Sal. 24:4;
51-10) e está declarado explicitamente no Novo Testamento (Act. 15:8-9; I Tim. 1:5; II Tim.
2:22; Tia. 4:8; I Ped. 1:22). A psicologia e a psiquiatria modernas têm chamado a atenção para
áreas da personalidade humana variavelmente chamadas o subconsciente, o inconsciente ou a
fronteira da consciência. Estes conceitos têm implicações quanto ao significado da pureza de
coração. Nisto é apropriado o aviso de J. Baines Atkinson:
Somos veementemente aconselhados pelos escritores modernos de que não podemos
testificar de que todo o pecado tem sido completamente removido do coração por não sabermos
realmente o que está no coração. Aceitamos prontamente este conselho e diremos que temos
pedido a Deus que faça o que Ele quer dizer com purificar o coração de todo o pecado, e cremos
que Ele já o fez; e parámos aí, sem mais definições. Tanto o meu testemunho como o de Deus
referem-se não tanto ao meu estado, como à Sua obra redentora.
Tudo o que está incluído em “puro de coração” pode ser determinado apenas quando todo o
conceito bíblico de santificação nos tiver sido apresentado. Nas Escrituras, o coração é a fonte
interior da vida individual, o manancial de todas as energias físicas, intelectuais, emocionais e
volitivas e, consequentemente, a parte do homem pela qual ele tem contacto com o divino.
A frase do Soren Kierkegaard é bem conhecida: “Ser puro de coração é desejar uma só coisa”.
J. B. Phillips usa a paráfrase “totalmente sincero”. R. V. G. Tasker diz: “Os puros de coração são
os que têm uma só mente, que estão livres da tirania do eu dividido e que não tentam servir a Deus
e ao mundo ao mesmo tempo. Dos tais é impossível que Deus Se esconda”. William Barclay
traduz a frase da seguinte maneira:
BEM-AVENTURADO O HOMEM CUJOS MOTIVOS SÃO
COMPLETAMENTE PUROS, POIS ESSE HOMEM UM DIA VERÁ A DEUS.

A conotação não é a ausência de faltas, mas a ausência de culpa.


Além das afirmações bíblicas acerca da pureza de coração, há outras referências à purificação
do indivíduo (I Tim. 5:22; Tito 2:14; I João 1:7; 3:3).
3. A Perfeição Cristã, Mat. 5:48
O emprego no Velho Testamento dos termos normalmente traduzidos por “perfeito” (tam,
tamim, shalem) foi já notado. Ali, o sentido correcto é “inteiro, completo, são, justo ou sem culpa”.
A palavra principal no Novo Testamento é teleios. Encontra-se pela primeira vez no Sermão da
Montanha: “Sede vós, pois, perfeitos como é perfeito o vosso Pai que está nos céus” (Mat. 5:48).
A referência paralela em Luc. 6:36 é “Sede misericordiosos como também é misericordioso o vosso
Pai”. Em nenhum destes casos se sugere que o humano deva ser igual ao divino. A semelhança é
qualitativa, enquanto que a disparidade é quantitativa.
A perfeição de Mat. 5:48 é a perfeição evangélica e não uma perfeição absoluta. Teleios
significa “totalmente crescido, maduro, tendo alcançado o fim designado (telos) para o seu
desenvolvimento”. William Barclay escreve:
Nada tem a ver com o que chamamos de perfeição abstracta, filosófica, metafísica... Uma
coisa é perfeita se realiza plenamente os propósitos para os quais foi planeada, desenhada ou
feita. . . Teleios é o adjectivo formado do substantivo telos. Telos significa um fim, um
propósito,um alvo, um objectivo. Uma coisa é teleios se realiza o propósito para o qual foi
desenhada; um homem é perfeito se cumpre o propósito para o qual foi criado e veio ao mundo.
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O contexto esclarece a área em que a perfeição deve ser compreendida. É em relação ao amor
imparcial pelo próximo, que abrange mesmo os inimigos (vv. 42-47). Como nota Lee G. Cox:
Jesus disse que devemos ser tão perfeitos como o nosso Pai Celestial. Creio que é
significativo o uso do termo “Pai”. Ele sabia que não podemos ser como Deus nos Seus atributos
absolutos. Deus sabe todas as coisas, e nunca erra no Seu juízo. Ele pode todas as coisas, por
isso nunca falha na sua realização. Jesus não se referia a este tipo de perfeição.
Mas Ele disse: “Como vosso Pai”. A paternidade de Deus significa que Ele nos ama, e é
misericordioso, amável e paciente. Ele oferece a outra face, anda a segunda milha, é tão bom
para os maus como é para os bons. Está claro pelo contexto deste versículo que Jesus está a falar
do amor, especialmente o amor para com aqueles que nos fazem mal. Neste aspecto, devemos
ser tão perfeitos como é o nosso Pai.
“Perfeição cristã” foi um termo frequentemente usado por João Wesley, um termo que ele
costumava explicar e defender. Duas passagens bem conhecidas extraídas de A Perfeição Cristã
ajudarão a estabelecer o ponto de vista de Wesley, uma posição a que havemos de regressar mais
tarde. Passagens semelhantes são encontradas através dos seus outros escritos. Wesley está a falar
da perfeição evangélica e não de uma perfeição absoluta. É dinâmica, não estática: a perfeição de
um rebento ou de um bébé, não de uma pintura ou de uma estátua:
O melhor dos homens ainda precisa de Cristo como sacerdote, para expiar as suas omissões,
as suas falhas (como alguns dizem impropriamente), os erros de julgamento e de prática, os seus
defeitos de vária ordem. . . Eu creio que não há nesta vida tal perfeição que exclua estas
transgressões involuntárias que percebo serem naturalmente derivadas da ignorância e de erros
inseparáveis da mortalidade. Portanto, perfeição impecável é um termo que nunca uso, para não
parecer contradizer-me a mim próprio. Creio que uma pessoa cheia do amor de Deus ainda está
sujeita a tais transgressões involuntárias.
Olhe para ela perfeição cristã outra vez; examine-a de todos os lados e com toda a atenção.
Sob um ponto de vista ela é pureza de intenção, dedicando toda a vida a Deus. É dar-Lhe o
coração; um desejo e um propósito governando todo o nosso ser. É devoção a Deus não de uma
parte, mas de toda a nossa alma, todo o nosso corpo e todos os nossos bens. Sob outro ponto de
vista, é o sentimento que houve em Cristo, capacitando-nos a andar como Ele andou. É a
circuncisão do coração, tirando toda a impureza, toda a poluição tanto exterior como interior. É a
renovação do coração em toda a imagem de Deus, a semelhança plena d’Aquele que o criou.
Ainda, sob outro ponto de vista, é amar a Deus com todo o coração e ao nosso próximo como a
nós mesmos. Agora considere-a sob qualquer um destes pontos de vista (pois não há diferença
real), e esta é a única e total perfeição em que eu tenho acreditado e ensinado por quarenta anos,
desde 1725 a 1765, como o prova a grande colecção dos meus escritos.
Há uma afirmação mais recente de R. Gregor Smith relacionada com Mat. 5:48:
Ser perfeito significa, portanto, ser completo, são ou verdadeiro; e ser perfeito como o Pai nos
Céus é perfeito (Mat. 5:48, a principal referência no Novo Testamento) significa estar totalmente
voltado para Deus, com toda a vontade e ser, como Ele está voltado para nós. Esta é uma resposta
de obediência e de um esforço levado a cabo pela fé. É a chamada para purificar o nosso coração e
desejar uma só coisa. O mandamento situa-se numa situação religiosa, não simplesmente numa
situação moral de procurar melhorar a nossa conduta por um esforço crescente ou algo
semelhante. . .
“Sede perfeitos” é a ordem de Deus, brotando da Sua própria vida, a qual pode causar no
nosso coração apenas uma resposta, a da fé. A nossa obediência de fé não é o começo de um
progresso vago num caminho moral sombrio, mas a aceitação da graça, a qual é sempre total,
completa, perfeita; e na força deste encontro vós vivemos. “Perfeito” é algo que pertence a Deus
e que nos vem pelo contacto com Ele, não como uma propriedade, mas como um dom. Tudo o
que Deus é e possui é perfeito: nunca fica incompleto ou sem realização. O nosso
relacionamento com Ele determina a nossa participação neste tipo de totalidade.

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Todas as citações acima indicam a necessidade de qualificar o uso de “perfeito” ou “perfeição”
com um adjectivo como “cristã”, “evangélica” ou “o amor perfeito”. No Novo Testamento, as
referências à perfeição cristã que mais se aproximam de uma definição quase invariavelmente a
definem em termos de amor. Harold William Perkins esclarece este ponto:
Este dom pode ser chamado Perfeição Cristã, já que deve ser recebido por alguém que segue e crê
em Jesus Cristo. Ou pode ser chamado Perfeição Evangélica, visto que nos é apresentado como parte e,
na verdade, a mais nobre do Evangelho. Por outras palavras, aceitamos primeiro que Deus pode e quer
comunicar a Sua perfeição ao homem e, depois, que Ele já o fez numa pessoa histórica.
A perfeição bíblica não é estar sem falta, mas sim estar sem culpa. É perfeição do coração e
não da “cabeça” ou da “mão”. Diz respeito à intenção, não à inteligência; ao amor e não à vida; à
pureza, não à actuação. Tem a ver com a libertação do pecado, não da ignorância, do erro, das
enfermidades, tentações ou da necessiadade constante de vigilância e oração.
B. Marcos
Se Mateus é o Evangelho do Messias, Marcos é o Evangelho do Conquistador Poderoso.
Como nota Ralph Earle: “Para os Romanos, Marcos apresenta Jesus como o Conquistador
Poderoso. Ele O mostra dominando a natureza, os demónios, a doença e a morte. . . Marcos
apresenta um quadro gráfico, vivo e cheio de força do ministério de Jesus Cristo na terra”.
1. A Fonte de Pecado, Mar. 7:18-23
Marcos dá ênfase especial a uma declaração de Jesus que também foi citada por Mateus (15:15-
20). Cristo identifica o coração como a fonte da corrupção moral da vida humana. Ele nega a
poluição a partir do exterior, que foi a preocupação da santidade cerimonial. A fonte do mal está
dentro do homem: a depravação de um coração carnal. Jesus disse aos discipulos: “Não
compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não pode contaminá-lo porque não entra no
coração, mas no ventre, e é lançado fora, ficando puras todas as comidas?
“E dizia: O que sai do homem, isso contamina o homem. Porque do interior do coração dos
homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as prostituições, os homicídios, os furtos, a
avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfémia, a sobreba, a loucura. Todos
estes males procedem de dentro e contaminam o homem” (Mar. 7:18-23).
A dimensão em que a redenção provida por Cristo purifica o mal do coração, que é mais
enganoso que todas as coisas e perverso (Jer. 17:9), continuará a ser descoberta. Embora a sua
resposta seja ambígua, Reinhold Niehbur põe bem o problema: “A questão é se a graça de Cristo é
primariamente poder para a rectidão, que sara o coração pecaminoso de forma a conseguir daí em
diante cumprir a lei do amor; ou se é primariamente a certeza da misericórdia divina para com o
estado pecaminoso que o homem nunca consegue vencer completamente.
William Barclay comenta:
Com efeito, Jesus estava a dizer que coisas não podem ser limpas ou imundas no sentido religioso
do termo. Apenas pessoas podem ser realmente contaminadas; e o que as contamina são as suas
acções, as quais são produto do seu próprio coração. Esta era uma doutrina nova e devastadora para os
judeus. Tinham, e ainda têm, um sistema de coisas que são puras e impuras. Com essa proclamação
devastadora, Jesus declarou tudo isso irrelevante, e que a impureza nada tinha a ver com o que uma
pessoa ingere, mas sim com o que sai do coração.
2. O Amor Total, Mar. 12:28-34
Tanto Mateus (22:34-40) como Lucas (10:25-28) contam a história do encontro de Cristo

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com o escriba inquiridor, a qual é narrada em Mar. 12:28-34:
Aproximou-se dele um dos escribas que os tinha ouvido disputar, e sabendo que lhes tinha
respondido bem, perguntou-lhe: Qual é o primeiro de todos os mandamentos?
E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor
nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda
a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças: este é o primeiro
mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não
há outro mandamento maior do que estes.
E o escriba lhe disse: Muito bem, Mestre, e com verdade disseste que há um só Deus, e que
não há outro além dele; e que amá-lo de todo o coração, e de todo o entendimento, e de toda a alma,
e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo é mais do que todos os holocaustos e
sacrifícios.
E Jesus, vendo que havia respondido sabiamente, disse-lhe: Não estás longe do reino de
Deus. E já ninguém ousava perguntar-lhe mais nada.
Tanto o “primeiro” como o “segundo” mandamento são citações do Velho Testamento (Deu.
6:4-5 e Lev. 19:18). Mas ninguém jamais os tinha juntado, para fazer deles um sumário de toda “a
Lei e os Profetas” (Mat. 22:40). Jesus faz da “lei” do amor a lei suprema do Reino. O Reino de
Deus e a Sua justiça são o alvo supremo dos Seus seguidores (Mat. 6:33), e o amor é o princípio
motivador do Reino.
A ordem aqui – amor primeiro a Deus e em segundo lugar amor ao próximo – é adequada e
essencial. Não podemos amar o próximo como a nós mesmos se não amamos a Deus mais do que a
nós próprios. Mas a ética do Novo Testamento insiste do princípio ao fim em que o amor ao
próximo é a pedra de toque e a evidência do amor a Deus. Grande parte da cristandade evangélica
tem dado muita ênfase ao amor a Deus e pouca ao amor pelo próximo. Ambos têm de dominar e
caracterizar a ética de santidade.
A. Elwood Sanner escreve: “O mandamento exige uma resposta integral do ser humano total.
É este o amor perfeito da perfeição cristã”. O amor é exigente, mas também galardoador. Um
amor puro a Deus salvaguarda todos os amores humanos. Oswald Chambers escreve:
“Amarás o Senhor teu Deus te todo o teu coração” – a soberana preferência da nossa personalidade
por Deus. Posso eu dizer diante de Deus: “Pois em todo o mundo não há outro senão Tu, meu Deus,
não há outro senão Tu”? Será a verdade? haverá ali uma mulher? haverá ali um homem? ou um
filho? ou um amigo? “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração”. Dizes: “Mas isto é duro
demais”? A razão porque é tão duro é que uma vez que a graça poderosa de Deus absorva totalmente o
meu coração, todos os outros amores da minha vida estão salvaguardados; mas se o meu amor a Deus
não é dominante, o amor poderá ser apenas lascívia. No mundo quase toda a crueldade brota de não se
compreender este facto. A lascívia, na sua forma mais elevada ou mais baixa, significa simplesmente
que eu busco numa criatura o que somente Deus pode dar, e torno-me cruel, vingativo, ciumento e
malévolo para aquele de quem exijo isso que só Deus pode dar.
C. Lucas
Lucas é o Evangelho para os gregos, como Mateus é o Evangelho para os judeus, e Marcos
para os romanos. Renan elogiou-o como “o livro mais belo do mundo”. Consistente com o facto
de Lucas ser o autor do Livro de Actos e um estreito associado de Paulo, o Evangelho dá uma
ênfase particular ao Espírito Santo (e.g., 1:15, 35, 41, 67; até 11 vezes) e à alegria (e.g., 1:14, 44;
2:10; 6:23; até 10 vezes).
1. Santidade e Justiça, Luc. 1:73-75
Lucas cita a profecia de Zacarias, pai de João Baptista, como antecipando o cumprimento da
redenção (1:68) e a efectivação do concerto com Deus (v. 72):
E do juramento que jurou a Abraão, nosso pai,
31
de conceder-nos que, libertados da mão dos nossos inimigos,
O serviríamos sem temor, em santidade e justiça,
perante ele, todos os dias da nossa vida (1:73-75).
A conjunção da santidade e da justiça é significativa. A sua duração é “todos os dias da nossa
vida”, não um estado futuro e celestial. João Wesley comenta assim esta passagem: “Eis a
substância da grande promessa de que seremos sempre santos, sempre felizes; que, sendo libertos
de Satanás e do pecado, de todo o temperamento ímpio ou mal disposto, amaremos e serviremos a
Deus alegremente através de cada pensamento, palavra e obra”. Como escreve Charles Childers:
As promessas de Deus e o seu cumprimento na obra redentora de Cristo incluem a santidade
e a justiça para os Seus filhos. Nestes dois termos temos o aspecto da vida cristã que aponta para
o homem e o que aponta para Deus. Servir a Deus em santidade é servir com uma natureza
interior conformada à natureza e à vontade de Deus; servi-lO em justiça é servir em rectidão em
todos os relacionamentos humanos e terrestres. Devoção aceitável a Deus inclui não só o fervor
religioso mas também a ética sã.
A possibilidade de tal rectidão interior e exterior constitui o âmago do Evangelho. Qualquer
coisa menos do que isto é inconcebível, e é contraditória tanto ao carácter como às ordens de
Deus. Também o amor de Deus não é compatível com um plano de salvação que possa deixar o
homem num nível mais baixo que a liberdade pessoal tanto dos actos como do princípio do
pecado. Todos os dias da nossa vida. Eis a resposta a toda a disputa sobre o plano divino para
o viver santo. Estas não são apenas bênçãos celestiais futuras guardadas para o povo de Deus,
mas privilégios que podemos gozar agora. Nem tão-pouco esta graça interior precisa de ser
espasmódica; ela deve ser um modo de vida estabelecido.
2. Oração e Pureza, Luc. 11:2
Karl Barth chama a atenção para uma variação textual significativa na Oração Dominical
encontrada em Lucas (11:2):
Uma leitura alternativa do texto da Oração Dominical encontrada em São Lucas (Codex
Bezae) acrescenta à petição “Venha o teu reino” as palavras : “Que o Espírito Santo venha
sobre nós e nos purifique”. Embora apenas os textos aceitos de Mateus e Lucas sejam autênticos,
esta alternativa é interessante e oferece um comentário apropriado ao texto. Se oramos pela
vinda do Reino de Deus, estamos também a pedir que o Espírito Santo entre em nós.
3. O Dom do Pai, Luc. 11:13
Lucas relata a promessa de Cristo acerca do dom do Espírito concedido pelo Pai: “Pois se vós,
sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais dará o Pai celestial o Espírito
Santo àqueles que lho pedirem?” (11:13). Esta é uma das sete vezes antes da semana da Paixão em
que se menciona Jesus falando do Espírito Santo (Mat. 10:20; 22:43 paralelo em Mar. 12:36;
Mar. 3:29; Luc. 4:18; João 3:5-6; 6:63; 7:37-39). A passagem paralela em Mateus relata a
promessa como “dará boas coisas aos que lhe pedirem” (7:11). Para Lucas, o Espírito Santo é o
dom de um Pai aos Seus filhos, um dom que estes têm de pedir”. Childers comenta:
Vemos aqui que o Espírito é concedido em resposta à oração, e que o Pai está ansioso por
no-lo dar. Ele é a melhor de todas as “boas coisas” e o cristão sábio pedi-lO-á antes de tudo o
mais. Precisamos do Espírito Santo na Sua plenitude santificadora, e precisamos d’Ele como o
Paracleto e Advogado que habita em nós. Em Lucas este discurso aparece mais tarde no
ministério de Jesus e mais próximo do Pentecostes que a passagem de Mateus, a qual está
inserida no Sermão da Montanha. Portanto, Jesus já pode ser mais específico quanto às
necessidades dos discípulos.
4. A Promessa do Pai, Luc. 24:49
Lucas relata também a promessa do Senhor ressurrecto aos Seus discípulos: “E eis que sobre
vós envio a promessa do meu Pai; ficai, porém, na cidade de Jerusalém, até que do alto sejais
revestidos de poder” (Luc. 24:49). A “promessa do meu Pai” é repetida em Act. 1:4-5 e
32
relacionada com a declaração de João acerca do baptismo de Cristo com o Espírito, contrastando-o
com o seu próprio baptismo com água. É certamente verdade que estas palavras se referem
primariamente ao Pentecostes vindouro, como evento histórico. Mas ao mesmo tempo podem ter
uma aplicação existencial que aponta para a necessidade de cada discípulo ter a plenitude
capacitadora do Espírito.
III. O EVANGELHO DE SÃO JOÃO
João escreveu o Evangelho do Filho de Deus. Ele escreve para toda a comunidade cristã, quer
seja judaica, romana ou grega. O seu Evangelho é enquadrado em duas das declarações mais
majestosas do Novo Testamento acerca da deidade absoluta de Jesus Cristo (1:1 e 20:28). A. J.
Macleod escreve: “As notas dominantes do Evangelho são a vida, a luz e o amor. Cristo vem para
dar aos homens uma vida mais ampla, mais abundante. Ele é a luz que estava no mundo, em
conflito com a escuridão, e a fonte da verdadeira vida do homem. O sacrifício da Sua vida pelo
mundo foi a expressão do amor de Deus pelos homens”.
Dwight E. Stevenson dá um vislumbre significativo do carácter do quarto Evangelho:
No quarto Evangelho o leitor encontra Jesus na Palestina durante três anos dum ministério activo e
muito humano. Nestas mesmas páginas ele também encontra o Cristo de todos os povos, o Eterno
Contemporâneo da humanidade. Aqui ele descobre factos históricos que se tornam símbolos sem
tempo, e símbolos da eternidade que se enraízam em factos históricos concretos. É um livro que pode
ser lido a dois níveis: pelo estranho que pela primeira vez encontra Jesus como personagem histórica, e
pelo crente dedicado levado a uma comunhão mais profunda com o seu Semhor vivo.
A. Antes da Última Ceia
A apresentação de Jesus por João Baptista como o “Cordeiro de Deus” é relacionada com
“tirar o pecado do mundo” (1:29). Raymond E. Brown vê no uso do singular (“o pecado”) um
contraste com o uso do plural em I João 3:5, onde se encontra “tira os pecados”. Diz ele: “O plural
refere-se aos actos pecaminosos enquanto que o singular se refere à condição pecaminosa”.
1. Aquele que baptiza com o Espírito, João 1:33-34
A versão que João apresenta da promessa dum segundo baptismo (com o Espírito Santo: Mat.
3:11; Mar. 1:8; Luc. 3:16) torna explícito o que está implícito nos Sinópticos. Jesus Cristo é
Aquele que administra o baptismo com o Espírito Santo. João Baptista diz: “Eu não o conhecia,
mas o que me mandou a baptizar com água, esse me disse: Sobre aquele que vires descer o
Espírito, e sobre ele repousar, esse é o que baptiza com o Espírito Santo. E eu vi, e tenho
testificado que este é o Filho de Deus” (1:33-34). O baptismo com o Espírito é, duma forma
especial, o baptismo de Cristo ministrado pelo Pai em Seu nome.
O baptismo de João é “com água apenas e não pode purificar o povo de Deus. Pode apenas
fazer conhecida a necessidade universal da santificação. O baptismo de João pode só dirigir os
homens a Cristo”. William Barclay escreve:
. . . o baptismo de Jesus foi um baptismo do Espírito. . . Quando o Espírito toma posse dum
homem, certas coisas acontecem.
(i) A sua vida é iluminada. Vem-lhe um conhecimento de Deus. A vontade de Deus se
torna clara. Ele sabe qual é o propósito de Deus, o significado da vida, qual o seu dever. Algo
da luz e sabedoria divinas cai sobre ele.
(ii) A sua vida é fortalecida. O conhecimento sem poder é um pesadelo e é frustrante. Mas
o Espírito de Deus dá-nos não só o conhecimento para sabermos o bem, mas também o poder
para o realizarmos. O Espírito torna-nos adequados para encarar a vida.
(iii) A sua vida é purificada. O baptismo de Cristo com o Espírito seria um baptismo de
fogo (Mat. 3:11; Luc. 3:16). A escória das coisas más, a contaminação com o que é baixo, a
mistura com o que é vil, é queimada e purificada até que o homem seja limpo e puro.
2. Rios de água pura, João 7:37-39
33
João dá-nos uma promessa significativa feita por Jesus na altura da Festa das Luzes: “E no
último dia, o grande dia da festa, Jesus pôs-se em pé e clamou, dizendo: Se alguém tem sede,
venha a mim e beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrrão do seu
ventre” (7:37-38).
O comentário de João é: “E isto disse ele do Espírito que haviam de receber os que nele
cressem; porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido glorificado” (v.
39). O facto de que o Espírito Santo estava no mundo e bem activo desde a Criação é bem
comprovado nas Escrituras. Mas há ainda uma dimensão da Sua presença e da Sua obra que só
podia ter lugar depois da Cruz e da Ressurreição. Barclay usa uma analogia apropriada:
A energia nuclear tem sempre existido; faz parte da estrutura do mundo, mas só se tornou
disponível ao homem no século vinte. Semelhantemente, devemos pensar que o Espírito tem sempre
existido em toda a Sua graça e poder, mas que a obra de Jesus abriu as barragens e o Espírito, em todo
o Seu esplendor, ficou ao alcance do ser humano. . . Assim como a vida e a morte de Jesus abriram aos
homens o amor de Deus, a Sua ressurreição e ascensão abrem aos homens a graça e o poder do Espírito.
O Jesus encarnado traz-nos o amor de Deus; o Cristo ressurrecto põe ao nosso dispor o poder do
Espírito eterno.
V. Raymond Edman vê na abundância sugerida pelos “rios de água viva” não a concessão
do Espírito no novo nascimento (João 3:3-8), ms um dom subsequente do Espírito àqueles que já
são crentes:
A maneira profunda como Deus lida com os Seus filhos varia quanto aos pormenores, mas nos
casos individuais o padrão geral parece ser semelhante. Em todos surge uma consciência de se estar a
falhar, de não se ser tudo que se deveria ser para o Senhor; então, há um encontro definido com o
Salvador ressurrecto, numa rendição total do coração, a qual é na verdade uma morte para o eu. Segue-
se uma apropriação pela fé da vida ressurrecta, pela presença permanente do Espírito Santo. O
resultado é uma vida transbordante assemelhada pelo Senhor Jesus a “rios de água”.
B. Os Discursos da Última Ceia
Em João 13 – 17, nos Discursos da Última Ceia, temos os ensinamentos mais fundamentais
acerca do Espírito Santo e o Seu lugar na vida cristã. Aqui está o melhor antídoto para a tendência
de considerar o relacionamento “com o Espírito Santo em termos de uma doutrina a ser acreditada
em vez de uma Pessoa e um poder a ser experimentado”. “No Novo Testamento, o Espírito de
Cristo não é algo para ser cultivado, mas Alguém para ser recebido”. Lycurgus M. Starkey Jr.
escreve:
Sem o Espírito Santo o Cristianismo degenera numa fútil tentativa humanista de se atingir a
bondade, a religião do “esforço próprio” contra a qual se tem ouvido tantas queixas justificadas. A vida
cristã chama-nos a obedecer a Deus em vez dos homens; amar os amigos e os inimigos para além de
todas as barreiras do preconceito humano; ser perdoador e benigno; oferecer a outra face e suportar a
animosidade dos outros com paciência; cooperar em vez de competir; aceitar as adversidades da vida
com coragem. Sem o Espírito Santo, tal vida é impossível. Na verdade, sem o Deus trino presente e
actuante, é impossível existir a igreja como uma comunidade testificadora que descobre a sua unidade
em Cristo e traz toda a sociedade à submissão ao governo de Deus. Contudo, todas as coisas são
possíveis quando Deus está presente e activo, trabalhando através do Espírito Santo na mente e na
experiência da igreja.
1. As Declarações Acerca do Paracleto
Nos Discursos da Última Ceia, o âmago do ensino de Cristo acerca do Espírito Santo encontra-
se nas cinco “Declarações Acerca do Paracleto” (14:15-17, 26-27; 15:26-27; 16:7-11, 13-14).
“Paracleto” provém do termo grego Parakletos, variavelmente traduzido por “Consolador”,
“Conselheiro” ou “Ajudador”. Em 14:26, o Parakletos é identificado especificamente com o
Espírito Santo. A dificuldade em traduzir este termo é uma prova da sua riqueza e diversidade de
significado. A palavra significa literalmente “um que é chamado para ficar ao lado”. W. E. Vine
34
diz que significa “chamado para estar ao lado de alguém, isto é, dar-lhe auxílio e é primariamente
um adjectivo verbal sugerindo capacidade ou aptidão para ajudar. Foi usada no tribunal para
designar um assistente legal, um conselheiro para a defesa, um advogado; portanto, é um que
defende a causa de outrem, um intercessor, um advogado, como se diz de Jesus em I João 2:1. No
sentido mais lato, significa um que socorre, um consolador”. Barclay escreve:
Os gregos usaram a palavra de diversas maneiras. Um parakletos podia ser uma pessoa chamada
para depor no tribunal a favor de alguém; podia ser um advogado chamado para defender a causa de
alguém quando a acusação pudesse resultar numa pena severa; podia ser um perito chamado para dar
conselho numa situação difícil. Podia ser um indivíduo chamado quando, por exemplo, uma
companhia de soldados estivesse deprimida e desanimada, para instilar coragem nas suas mentes e
corações. O parakletos é sempre alguém chamado para ajudar quando a pessoa que o chama está em
dificuldades, aflição, dúvida ou confusão. O Espírito Santo vem a nós, toma a nossa incapacidade e
capacita-nos a encarar a vida. O Espírito Santo substitui derrota por vida vitoriosa.
Parakletos “é usado como nome próprio. . . para designar um agente inteligente, não uma
qualidade ou influência”. As declarações acerca do Paracleto fornecem evidência neotestamentária
substancial quanto à personalidade do Espírito Santo. Samuel K. Mikolaski escreve:
No Novo Testamento são dignas de nota duas linhas de evidência. Primeiro, há aquelas passagens
em que o pronome pessoal é claramente usado em relação ao Espírito Santo, isto é, as passagens em
que se diz “Ele” (e.g., Mar. 3:20-30; Luc. 12:12; João 14:26; 15:26; 16:7-15; Act. 8:29; 10:19-20;
13:2; 15:28; 16:6,7; 20:28; Rom. 5:5). Segundo, há outras passagens com o pronome neutro, que
permitem uma interpretação pessoal mas não exigem tal interpretação (e.g., Mat. 1:18; 4:1; 12:28;
Luc. 1:15; João 3:9; Act. 1:8; Rom. 8:26-27). As passagens em que o pronome é neutro podem ser
explicadas em termos daquelas em que o pronome é masculino, mas é simplesmente impossível
explicar aquelas em que o pronome é masculino em função daquelas em que o pronome é neutro.
a. Outro Consolador, João 14:15-18. A primeira Declaração Acerca do Paracleto é de certa
maneira a mais significativa das cinco. Jesus disse: “Se me amardes, guardareis os meus
mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para
sempre; o Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece;
mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei
para vós (14:15-18).
Deve-se notar que a promessa é dada àqueles que amam a Deus e guardam os Seus
mandamentos. A conjunção do amor e da obediência é constante através do Novo Testamento, e
particularmente nos escritos de São João (vv. 21, 23-24; 15:10, 13-14, etc.). Obediência sem amor
é legalismo; amor sem obediência é sentimentalismo. Nem um nem outro se qualifica como
verdadeiro discipulado.
Embora o Ajudador viesse a ser o dom do Pai em resposta à oração de Jesus, Ele é conhecido
dos discípulos e está com eles.
Num sentido, estas palavras são uma predição específica do Pentecostes, que teria lugar cerca
de 50 dias mais tarde. Mas há um sentido mais vasto em que elas se aplicam a todos os crentes.
Ao orar pelos discípulos, como prometera Jesus disse: “A minha oração não é somente por estes.
Rogo também por aqueles que hão de crer em mim pela mensagem deles” (17:20). Quando a
promessa foi cumprida pela primeira vez, Pedro ampliou o seu alcance para incluir todos os
discípulos de Cristo em todas as gerações. “A promessa vos diz respeito a vós, a vossos filhos, e a
todos os que estão longe; a tantos quantos Deus nosso Senhor chamar (Act. 2:39).
Aquele que eles tinham conhecido, e que estivera com eles, virá numa nova forma para estar
“neles”. Que os termos “com” e “em” não devem ser interpretados num sentido espacial, isto é,
equivalentes a “fora” e “dentro”, é demonstrado pelo versículo 23, em que a promessa cumprida
tornará real a presença do Pai e do Filho “com” no original os discípulos. O que está à vista é um
relacionamento novo, estabelecido, permanente. R. B. Rackham diz:
35
A mudança está no relacionamento entre o Espírito Santo e o espírito humano. Este
relacionamento tornou-se totalmente novo. Anteriormente, o Espírito Santo actuara no homem a partir
do exterior; como descreveu o profeta Ezequiel: “a mão do Senhor estava sobre mim”. Mas agora o
Espírito Santo opera do interior. Habita no homem. Antes do Pentecostes, as Suas manifestações
tinham sido passageiras e excepcionais; agora a sua Presença no coração do homem é permanente, pois
“habita” nele.
Além disso, “o mundo não o pode receber”. Na acto da convicção (16:8-9) e no novo
nascimento (3:3-8; Rom. 5:9), há uma concessão do Espírito. Mas “receber” o Espírito é só
possível àqueles que O conhecem, que O possuem, e que amam a Cristo e guardam os Seus
mandamentos. Identificar o nascimento através do Espírito com o baptismo ou a plenitude do
Espírito corresponde a questionar o testemunho de Jesus acerca dos Seus discípulos, ou duvidar da
relevância dos Evangelhos para a vida cristã nos nossos dias. “O Espirito Santo não entra à força
no coração; Ele espera ser recebido”. Neste sentido especial e mais profundo, “recebê-lO” é o
privilégio daqueles que O conhecem no novo nascimento e portanto “não são deste mundo” (João
17:14-16; cf. vv. 6,9).
b. O Ensinador, João 14:26-27. A segunda Declaração Acerca do Paracleto dá ênfase à
posição do Espírito Santo como “ensinador” e “aquele que faz lembrar” o que Jesus ensinou, e
também ao Seu dom de paz: “Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu
nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito. Deixo-
vos a minha paz, a minha paz vos dou: não vo-la dou como o mundo a dá. Não se turbe o vosso
coração, nem se atemorize” (14:26-27).
Não há dúvida de que estas palavras tiveram uma aplicação especial ao grupo apostólico. Por
seu intermédio os ensinamentos de Jesus seriam preservados e comunicados ao mundo. Mas há
aqui uma promessa mais ampla quanto à iluminação que o Espírito dá aos discípulos do Senhor
Jesus em todas as épocas. A Sua instrução concorda com os ensinamentos de Jesus. Ele glorifica a
Cristo (16:14). “Todas as nossas conclusões devem ser comparadas com aquilo que Jesus disse”.
Barclay disse muito bem:
Até ao fim do tempo o cristão precisa de aprender, pois até ao fim do tempo o Espírito
Santo estará a dirigi-lo mais e mais profundamente na verdade de Deus. Não há na vida
qualquer época em que o cristão possa dizer que sabe toda a verdade. Não há na vida cristã
qualquer desculpa para uma mente fechada. O crente que sente que não há nada mais para
aprender é aquele que ainda não começou a compreender o que significa a doutrina do Espírito
Santo.
O Espírito Santo comunica o dom de paz que Cristo dá ao Seu povo (Gál. 5:22). A palavra
traduzida por “deixar” pode ter o significado de “legar”. Nun belo comentário, Matthew Henry
escreve que, quando Jesus voltou para o céu, Ele legou a Sua alma ao Pai, o Seu corpo a José de
Arimateia, a Sua roupa aos soldados, a Sua mãe ao apóstolo João. Mas aos Seus discípulos Jesus
deixou um legado não feito de prata nem de ouro, mas de valor muito além de qualquer coisa que o
mundo pudesse dar. Ele deixou a Sua paz.
Na Bíblia, paz significa mais do que a ausência de perturbação. “Significa tudo que contribui
para o nosso bem”. Quanto a isso, Raymond E. Brown nota um jogo de palavras na saudação
hebraica tradicional, Shalom (paz), que encerra o pensamento de totalidade, sanidade, saúde e bem-
estar. “A paz que Jesus nos oferece é a paz . . . que nenhuma experiência da vida pode roubar. É a
paz que nenhuma tristeza, perigo ou sofrimento pode diminuir. É a paz independente das
circunstâncias exteriores”.
c. A Testemunha, João 15:26-27. A terceira Declaração Acerca do Paracleto ainda descreve
mais a relação do Espírito com Jesus: “Mas, quando vier o Consolador, que eu da parte do Pai vos
hei-de enviar, aquele Espírito de verdade, que procede do Pai, ele testificará de mim. E vós
também testificareis, pois estivestes comigo desde o princípio” (15:26-27). O Espírito testifica de
36
Cristo, por uma persuasão interior de que o que Cristo ensinou é verdade. E no poder do Espírito
os discípulos também testificam de Cristo (Act. 5:32).
d. Convencendo o Mundo, João 16:7-11. A quarta Declaração Acerca do Paracleto descreve a
função do Espírito em convencer o mundo e em preparar o coração incrédulo para receber o
Salvador. “Todavia digo-vos a verdade, que vos convém que eu vá; porque, se eu não for, o
Consolador não virá a vós; mas, se eu for, enviar-vo-lo-ei. E, quando ele vier, convencerá o
mundo do pecado, e da justiça e do juízo. Do pecado, porque não crêem em mim; da justiça,
porque vou para meu Pai, e não me vereis mais; e do juízo, porque já o príncipe deste mundo está
julgado” (16:7-11).
Embora o mundo não possa “receber” o Espírito Santo como os discípulos podem, o Espírito
exerce um ministério de “convicção” (literalmente, “provando estar em erro”). Isto pode ser um
testemunho aos discípulos acerca do mundo e um testemunho ao mundo acerca de si próprio. A
convicção do Espírito tem três objectos: o pecado, definido essencialmente como incredulidade; a
justiça, exemplificada em Cristo e demonstrada pela Sua ressurreição e ascensão; e o julgamento,
porque Satanás e o reino das trevas foram julgados definitivamente na cruz e no túmulo vazio.
e. Revelando Cristo, João 16:12-15. A última Declaração Acerca do Paracleto retorna ao
ministério do Espírito em revelar Cristo mais adequadamente. A vinda do Espírito não tem o
propósito de preencher a ausência de Cristo, mas tornar real a Sua presença. “Ainda tenho muito
que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora. Mas, quando vier aquele Espírito de verdade,
ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido,
e vos anunciará o que há-de vir. Ele me glorificará, porque há-de receber do que é meu, e vo-lo há-
de anunciar. Tudo quanto o Pai tem é meu; por isso vos disse que há-de receber do que é meu e
vo-lo há-de anunciar” (16:12-15). “Glorificar” quer dizer honrar, magnificar, adornar com brilho,
vestir de esplendor, ou fazer com que a dignidade e o valor sejam conhecidos.
Andrew Murray comenta: “O grande dom do Pai, por quem Ele obteve a salvação e a trouxe a
nós, é o Filho. Por outro lado, o grande dom do Filho, que Ele nos manda vindo do Pai para nos
ministrar uma salvação interior e eficaz, é o Espírito Santo. Como o Filho revela e glorifica o Pai,
assim o Espírito revela e glorifica o Filho”.
Já temos anteriormente notado a aplicação histórica de palavras como estas. Tiveram uma
aplicação directa no trabalho do grupo apostólico em comunicar à sua e a todas as gerações futuras
as palavras e ensinamentos de Jesus. Mas têm também uma aplicação existencial. A obra do
Espírito não terminou com a morte dos apóstolos. Continua até ao fim dos tempos em crentes
humildes e abertos ao ensino. Barclay escreve:
Revelação quer dizer tomar as coisas de Jesus e mostrar-nos o seu significado. A
grandeza de Jesus é nunca se Lhe poder chegar ao fim. Ninguém jamais descobriu todo o
significado dos Seus ensinamentos. Ninguém sabe tudo que significam para a vida e
crença, para o indivíduo e para o mundo, para a sociedade e para a nação. Revelação é
uma abertura constante do sentido e do significado de Jesus Cristo.
2. A Oração Sacerdotal
O encontro da última ceia terminou com o que veio a ser conhecido como a “oração
sacerdotal” de Cristo. É uma oração por Si próprio (17:1-5); pelos Seus discípulos (vv. 6-19); e
pelos crentes (vv. 20-26). É claramente uma das passagens mais majestosas das Escrituras, e leva-
nos directamente ao cerne da preocupação de Cristo, na ocasião da Sua partida, pela obra que viera
realizar e pelas pessoas que a continuariam. “Jesus fala ainda no contexto da ceia; mas pelo tom
daquilo que diz e pelo tempo dos verbos, sentimos que Ele já atravessou a soleira do tempo para a
eternidade e já está a caminho da casa do Pai, ou pelo menos a meio caminho entre este mundo e a
presença do Pai”.

37
Vêm-se claramente os pontos que mais preocupam a Cristo. Ele ora para que aqueles que lhe
foram entregues sejam guardados e santificados, que sejam todos um, que o mundo creia, e que
todos os Seus compartilhem a Sua glória na presença do Pai.
Embora ainda antes do Pentecostes e da plena inauguração da época do Espírito, Jesus dá um
testemunho impressionante do estado espiritual dos Seus discípulos. Notam-se três pontos
principais:
(1) Os discípulos receberam e foram obedientes à Palavra de Deus. “Manifestei o teu nome
aos homens que do mundo me deste; eram teus, e tu mos deste, e guardaram a tua palavra. . .
Porque lhes dei as palavras que tu me deste, e eles as receberam” (vv. 6,8).
(2) Cristo tinha sido glorificado neles (veja as traduções modernas). “E neles sou glorificado”
(v. 10). Barclay comenta: “É o doente que traz honra ao médico; é o estudante que ele instuiu que
traz honra ao professor; é o atleta que ele treinou que traz honra ao treinador. São os homens que
Jesus resgatou, redimiu e fez bons que trazem honra ao Seu nome. O homem maligno que foi feito
bom, o homem que foi fortalecido para viver a vida cristã, nisto consiste a honra de Jesus”.
(3) Eles não eram do mundo “como” Ele não era do mundo. Este ponto já foi realçado em
14:17, e é repetido aqui com ênfase: “Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que
me deste, porque são teus” (v. 9); “Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os aborreceu, porque não são
do mundo, assim como eu não sou do mundo” (v. 14); “Não são do mundo, como eu do mundo
não sou” (v. 16).
Eis a base da distinção entre “estar no mundo” e “ser do mundo”. Os discípulos estavam no
mundo e haviam de ficar no mundo: “E eu já não estou mais no mundo; mas eles estão no mundo,
e eu vou para ti. Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um, assim
como nós” (v. 11). “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal” (v. 15).
Cristianismo não é isolamento do mundo, mas isolamento da corrupção do mundo.
A oração de Jesus é: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade. Assim como tu me
enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E por eles me santifico a mim mesmo, para
que também eles sejam santificados na verdade” (vv. 17-19). A palavra traduzida aqui por
“santificar” é hagiazein, do adjectivo hagios, normalmente traduzido por “santo”. São registadas
apenas três vezes em que Jesus usou esta palavra antes desta ocasião: em relação ao Templo e ao
ouro nele existente (Mat. 23:17); ao altar e ao que se oferecia sobre ele (Mat. 23:19); e em João
10:36, referindo-se à Si próprio como sendo santificado pelo Pai e enviado ao mundo.
Aqui, o emprego de hagiazein ilustra um aspecto já notado na palavra correspondente no Velho
Testamento, qodesh: santificar tem um significado duplo. Significa pôr à parte ou consagrar para o
uso divino; e no caso de pessoas, libertar do pecado ou da poluição moral. Por vezes um
significado, por vezes o outro, pode ter a proeminência, mas ambos são uma parte essencial de
qualquer definição bíblica do termo. No que respeita à sequência no tempo, a consagração vem
primeiro. Mas a moralização da ideia de santidade, que ocorreu através do período do Velho
Testamento e se estendeu ao Novo Testamento, torna a ideia de purificação essencial ao sentido
bíblico total de santificação.
O que é verdade acerca de qodesh é ainda mais evidente nas definições de hagiazein. Thomas
Sheldon Green dá como seu significado essencial “separar, consagrar, limpar, purificar, santificar,
considerar ou reverenciar como santo”. A forma do verbo é um imperativo aoristo, significando
“consagrar, dedicar, santificar, tratar como santo, reverenciar, purificar”. “O facto de que o verbo é
um imperativo aoristo indica claramente que a santificação dos discípulos seria uma experiência
num ponto de tempo. ‘Não pode ter o significado dum processo incompleto mas sim um acto
definido de santificação’ (H. Orton Wiley, The Epistle to the Hebrews, p. 326)”. Richard S. Taylor
escreve:

38
A petição para que o Pai “santifique” os discípulos é proferida no tempo aoristo. Embora esta
forma do verbo em si não seja prova duma obra instantânea, ela é no entanto prova duma obra
completa e definida, que não pode ser interpretada como uma santificação gradual que nunca se
completa; portanto a sua realização através de uma experiência crítica como o Pentecostes é
fortemente sugerida. Mas no verso 19 há uma forma ainda mais forte: “. . . que sejam
santificados” é o tempo perfeito, exprimindo com clareza o propósito do nosso Senhor de que eles
fossem levados a um estado de santificação que evidentemente pode ser conseguido e
constantemente mantido.
Jesus usou o termo “santificar” tanto em relação a Si próprio como em relação aos Seus
discípulos. No versículo 19 vê-se claramente a diferença entre os dois significados: “E por eles me
santifico a mim mesmo, para que também eles sejam santificados na verdade”: Aqui a santificação
do Salvador significa consagração, separando-Se para o sacrifício expiatório da cruz. Aquele que o
Pai já tinha consagrado consagra-Se ou santifica-Se a Si próprio.
Mas Jesus Se consagra para que algo possa ser feito em e pelos Seus discípulos: “que eles
sejam verdadeiramente santificados”. Aqui o verbo encontra-se na voz passiva. Neste sentido a
santificação não é coisa que os discípulos possam fazer por si próprios. É algo que tem de ser feito
por eles pelo Pai (v. 17) como consequência desta auto-dedicação de Cristo à cruz expiatória e
purificadora.
Embora Henry Alford dê à obra um aspecto gradual, também nota: “ Quanto a eles, tratava-se
estritamente de santificação, fazer santo; mas no que LHE dizia respeito, era a pura e inteira
consagração, a submissão à vontade santa do Pai, a inteira possessão da Sua humanidade sem
pecado pela Verdade viva e expressiva de Deus, que devia ser ao mesmo tempo a causa eficaz da
santificação dos discípulos e o seu Modelo”.
O facto de que a verdade e a Palavra são agentes na santificação dos discípulos também sugere
que está em causa algo mais do que a auto-dedicação. Da mesma forma que a Palavra de Deus é
um instrumento na regeneração (I Ped. 1:23), assim também o é na santificação. É pela Palavra
que a luz chega (I João 1:7). A Palavra não é passiva mas poderosa (Heb. 4:12). Expressa no
evangelho e unida à fé, ela é “o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê” (Rom. 1:16).
Os resultados antecipados pela oração de Cristo sugerem que a santificação é mais do que um
acto humano de consagração. Jesus ora pelos Seus discípulos para que “tenham a minha alegria
completa em si mesmos” (v. 13). Ele ora: “Não os tires do mundo, mas que os livres do mal” (v.
15). Ele ora pela unidade do Seu povo – a verdadeira ecumenicidade: “que todos sejam um, como
tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti. . . que eles sejam perfeitos em unidade (vv. 21-23). Jesus ora
para “que o mundo creia que tu me enviaste. . . e que os tens amado a eles como me tens amado a
mim” (vv. 21, 23). Um resultado final é escatológico: “Pai, aqueles que me deste quero que, onde
eu estiver, também eles estejam comigo, para que vejam a minha glória que me deste; porque tu
me hás amado antes da fundação do mundo” (v. 24).
3. “Recebei o Espírito Santo”, João 20:21-23
João 20 contém o relato do aparecimento do Cristo ressurrecto aos Seus discípulos. Depois de
os cumprimentar, Jesus disse: “Paz seja convosco; assim como o Pai me enviou, também eu vos
envio a vós. E, havendo dito isto, assoprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo.
Àqueles a quem perdoardes os pecados lhes são perdoados; e àqueles a quem os retiverdes lhes são
retidos” (vv. 21-23).
Não se pode inferir por esta passagem que o dom do Espírito foi aqui plenamente concedido,
pois Jesus já dissera: “Se eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, se eu for, enviar-vo-lo-ei”
(16:7). Aqui há tanto uma concessão do Espírito como uma antecipação do Pentecostes. Samuel
Chadwick escreve:

39
Eles [os apóstolos] já tinham recebido o dom do Espírito para a salvação. No cenáculo, no
primeiro dia da ressurreição, o Senhor ressurrecto assoprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito
Santo”. Pentecostes foi um segundo dom, que confirmou e completou o primeiro com uma Presença
que os encheu e um poder transbordante. É a plenitude que faz a diferença.
O verso 23 também não trata dum rito sacerdotal de absolvição. Antes, a pregação no poder do
Espírito Santo esclarece as condições para o perdão dos pecados e torna possível a fé para a sua
aceitação. Como nota A. J. Macleod, “o poder autorgado é o de declarar com autoridade o perdão
baseado na morte expiatória de Cristo. Intrinsicamente, eles tinham a Sua autoridade por causa da
presença do Espírito na vida deles. A autoridade não é dada apenas aos que são especialmente
ordenados, mas toda a Igreja tem uma autoridade derivada da presença do Espírito na sua vida e do
ensino da cabeça”.

40
4

A SANTIDADE NO LIVRO DE ACTOS

Os Actos dos Apóstolos ficam precisamente no coração do Novo Testamento e foram


chamados por Adolf Harnack o seu “livro pivot”. Tem sido sugerido que um título mais apropriado
seria “Actos do Espírito Santo”, pois nos seus 28 capítulos contém quase 60 referências ao Espírito
Santo. F. F. Bruce escreve:
Do lado teológico, o tema dominante de Actos é a obra do Espírito Santo. . . O Espírito
controla toda a obra; Ele guia os mensageiros, tais como Filipe no capítulo viii e Pedro no
capítulo x; Ele dirige a Igreja de Antioquia a separar Barnabé e Saulo para a obra à qual Ele
mesmo os chamou (xiii.2); Ele os guia de lugar em lugar, proibindo que preguem na Ásia ou
que entrem na Bitínia, mas indicando claramente que deviam passar à Europa (xvi.6-10). . . Ele
é a testemunha primária da verdade do Evangelho (v. 32).

I. O BAPTISMO COM O ESPÍRITO E A SANTIFICAÇÃO


O intérprete da teologia de Actos é confrontado imediatamente por um conflito básico quanto à
hermenêutica (os princípios de interpretação bíblica): se o livro é uma história de salvação ou uma
ênfase dispensacionalista. O livro de Actos tem recebido uma atenção renovada em termos da sua
relação com a experiência cristã. Eruditos das várias escolas teológicas têm-se voltado de novo
para Actos, alguns francamente em reacção à enfase pentecostal e carismática do século vinte.
Entre outros, John R. W. Stott tem argumentado que Actos é história e experiência, e nem uma
nem outra pode ser usada como teologia. Que Actos é história e experiência é um ponto bem
assente. Mas não temos de concluir necessariamente que por isso não tem significado teológico.
Os teólogos bíblicos são quase unânimes na convicção de que grande parte da teologia das
Escrituras está enraizada na história. De Génesis até Apocalipse, Deus fala através dos Seus actos
poderosos na história da salvação.
Muito do debate centra-se no significado do baptismo com o Espírito nos Evangelhos e em
Actos. Já notámos as referências nos Evangelhos a Cristo como Aquele que baptiza com o Espírito
Santo (Mat. 3:11-12; Mar. 1:7-8; Luc. 3:15-18; João 1:32-34). Cada uma destas referências
aparace no contexto do ministério de João Baptista.
O próprio Jesus usou a mesma terminologia em Actos 1:5: “João baptizou com água, mas vós
sereis baptizados com o Espírito Santo, não muito depois destes dias”. A frase ocorre pela última
vez em 11:16, quando Pedro apresenta um relatório à igreja de Jerusalém acerca da sua visita à casa
de Cornélio: “E lembrei-me do dito do Senhor, quando disse: João certamente baptizou com água;
mas vós sereis baptizados com o Espírito Santo” (Act. 2:4).
Isto quer dizer, com efeito, que as referências explícitas ao baptismo com o Espírito
desapareceram do Novo Testamento a partir do Pentecostes. Quando a promessa de Jesus se
cumpriu, descreveu-se o facto como “e todos foram cheios do Espírito Santo” (Act. 2:4, itálico
acrescentado). “Cheio de” ou “cheio com” torna-se então a maneira normal de descrever o
revestimento espiritual dos crentes (4:8, 31; 6:3, 5; 7:55; 9:17; 11:24; 13:9; Efé. 5:18). Diz-se
que o Espírito é “derramado” sobre os crentes (2:33; 10:45), “recebido” (2:38; 8:17), “dado”
(8:18; 15:8); ou que “Ele caiu sobre” as pessoas (10:44; 19:6).
Não se pode encontrar uma explicação muito fácil para esta mudança de terminologia, senão
que o termo “baptismo” tem a tendência de realçar o aspecto momentâneo da obra do Espírito,
enquanto que “plenitude” tende a dar ênfase ao Seu ministério progressivo ou constante. Claro que
não há qualquer contradição necessária entre a terminologia “baptismo” e a de “plenitude”. Ambas
descrevem bem a experiência cristã normal Não se pode manter uma condição de plenitude se não

41
houver primeiro um enchimento. E a experiência inicial não teria valor perdurável sem a plenitude
constante.
A. Posições Principais
O assunto principal gira à volta de uma questão: se existe um ponto em que o baptismo com o
Espírito se relaciona com a experiência cristã dos nossos dias, e qual este ponto. Embora a questão
não seja nova, tem recebido recentemente um lugar proeminente. O propósito de Lucas em
escrever Actos não foi, certamente, dar um ordo salutis, uma ordem da salvação. O seu interesse é
apologético, a defesa do cristianismo contra a suspeita de ser uma insurreição contra o Império
Romano. Mas onde ele toca na evidência relativa à sequência da salvação, o relato de Lucas é
exacto, digno de confiança e cheio de significado.
Podemos notar quatro posições principais:
(1) Diz-se que o baptismo com o Espírito é colectivo e dispensacional, sem qualquer aplicação
directa à experiência cristã pessoal. O Pentecostes é visto como a inauguração duma experiência
distintivamente cristã que tem pouca ou nenhuma relação com a fé bíblica que a precedeu. O
baptismo com ou em o Espírito é visto como uma experiência corporativa em vez de individual. É
a igreja que é baptizada com o Espírito Santo uma vez por todas, e os crentes individuais são
incorporados no Corpo que foi constituído no Pentecostes e baptizado com o Espírito. O baptismo
com o Espírito seria considerado corporativo e eclesiástico, relacionado com todo o Corpo de
Cristo, e de maneira nenhuma individual ou pessoal. Portanto é um evento que ocorreu uma vez
por todas no Pentecostes, e desde então não mais se repetiu.
Embora haja muitas variações, esta parece ser em geral a posição da Igreja Reformada. Tanto
quanto se pode dizer que a conferência de Keswick representa uma posição oficial, essa foi a
posição tomada por essa reunião histórica acerca da “vida mais elevada”. A. S. Wilson nota o
relato de F. B. Meyer no “Christian” de Londres, em 1925:
Os líderes do movimento Keswick há alguns anos realizaram uma conferência, da qual me
lembro muito bem, para decidir se devemos ou não referir o dom pentecostal como um baptismo.
Depois de cuidadosa consideração do assunto, foi finalmente decidido que seria mais sábio limitar a
frase aos eventos importantes de Actos II e X, reservando as palavras “cheios” ou “ungidos” para a
experiência dos crentes individuais. Não houve a intenção de obrigar alguém, na plataforma ou fora
dela, a abandonar o uso da frase; mas, regra geral, tomou-se a posição de que o Espírito Santo foi
dado à Igreja durante a presente dispensação e dado de uma vez para sempre; de forma que cada
membro do Corpo de Cristo pode reivindicar a sua porção nesta unção gloriosa. “Tendes a unção do
Santo”.
(2) Um segundo ponto de vista brota do primeiro e com ele tem uma relação estreita. É a ideia
de que o baptismo com o Espírito se realiza individualmente na conversão ou regeneração, quer
seja ou não seguida subsequentemente pela experiência da plenitude. Isto pareceria descrever a
posição de João Wesley, pelo menos antes das suas discussões com John Fletcher a partir de 1770 –
embora ele pudesse querer dizer o que descreveremos como a terceira posição. O grau em que
Wesley, no seu sexto Check to Antinomianism,aceitou a identificação que Fletcher fez da perfeição
cristã com o baptismo com o Espírito é ainda um ponto sob discussão. Nas suas Explanatory Notes
Upon the New Testament, Wesley comenta a promessa de Jesus em Actos 1:5 (“Sereis baptizados
com o Espírito Santo”): “E assim são todos os verdadeiros crentes, até ao fim do mundo”. Os
eruditos têm sempre reconhecido que Wesley não relacionou consistentemente o baptismo com o
Espírito e a perfeição cristã ou inteira santificação.
Este ponto de vista parece descrever também a posição de John R. W. Stott, Frederick D.
Bruner, Michael Green e James D. G. Dunn – e neste, sem ênfase num enchimento subsequente.
(3) Um terceiro ponto de vista considera o baptismo com o Espírito Santo como abarcando
toda a experiência cristã individual, desde a regeneração, mas não completamente alcançada
42
até que haja uma purificação da natureza moral. Isto seria uma interpretação razoável do
comentário de Adam Clark a respeito de Actos 1:5: “Cristo baptiza com o Espírito, para a
destruição do pecado, a iluminação da mente e a consolação do coração. . . pois esta promessa
refere-se claramente à comunicação do Espírito Santo no Pentecostes que se seguiu. . . para
iluminar, regenerar, refinar e purificar o coração”. Tal ponto de vista pode ser chamado
“holístico” e é mantido por alguns eruditos wesleyanos da actualidade.
(4) O quarto ponto de vista identifica o baptismo com o Espírito Santo como um
acontecimento que ocorre na vida do cristão depois da conversão ou regeneração. Este é o ponto de
vista que muitos representantes de Keswick teriam, a despeito da opinião de Meyer acima citada. É
o ponto de vista geralmente mantido pelos pentecostalismo. Como foi expressa por John Fletcher,
Charles G. Finney, Asa Mahan, Phoebe Palmer (decerto com muitas variações individuais) e a
partir dos meados do século 19 por quase todos os pregadores da inteira santificação, esta
interpretação tem-se tornado virtualmente o padrão do movimento moderno de santidade.
B. Princípios de Interpretação
Os dados principais que tratam da possível identificação do baptismo com o Espírito Santo
com a santificação vêm duma consideração das ocasiões registadas no livro de Actos nas quais o
Espírito foi derramado ou veio sobre indivíduos ou grupos. Tem-se reivindicado que todos estes
casos se relacionam com a iniciação ou introdução de pessoas na vida cristã, e portanto esse
baptismo deve ser identificado com a conversão ou regeneração. Por outro lado, mantém-se que
em nenhum caso se diz que o Espírito Santo foi “dado” ou “derramado” sobre pessoas que não
tenham mostrado previamente pelo menos alguma evidência de vida espiritual.
O debate relaciona-se, pelo menos parcialmente, com a hermenêutica e com certas
pressuposições existentes mesmo que seja só marginalmente na mente dos exegetas. Usando o
termo num sentido amplo e impreciso, uma interpretação dispensacional de Actos conduz à opinião
de que antes do Pentecostes não podia haver uma experiência verdadeiramente cristã, já que a obra
do Espírito Santo é essencial à experiência cristã e o Espírito Santo não foi “dado” até Jesus ter sido
glorificado, começando assim a época do Espírito.
Que a obra do Espírito Santo é essencial à experiência cristã, é algo aceite por todos. Mas a
ideia de que o Espírito se tornou activo na experiência humana só depois do Pentecostes não é tão
certa. Aqui a interpretação dispensacional parece impôr limites que não podem ser defendidos em
vista da soberania do Espírito, e vão em direcção contrária a passagens como Sal. 51:11; Isa.
63:10; Luc. 11:13; João 3:5-8; 14:17; 20:21-22.
Pentecostes tem o seu lugar importante, como veremos em breve. Porém, essa importância é a
duma plenitude, não um sinal de radical descontinuidade. Duma maneira nova e num novo grau, a
graça e o poder do Espírito Santo se puseram à disposição do povo de Deus. Mas esse novo
aspecto tinha sido antecipado no Velho Testamento e nos Evangelhos (Isa. 32:14-17; 44:1-5; Eze.
36:22-28; Joel 2:28-32; Zac. 12:10-14; Luc. 11:13; João 14:15-17; 15:26-27; 16:5-15) – um
ponto que Pedro realça no seu sermão pentecostal (Act. 2:16-36).
Enquanto que a interpretação dispensacionalista enfatiza a descontinuidade em cada novo passo
do plano de Deus para a redenção, a história da salvação realça a continuidade. Encontra no
próprio Velho Testamento modelos de piedade e vê toda a Escritura como um registo do concerto
da graça de Deus, o qual é progressivo. A progressão é tal que se pode chamar “velho” à porção do
concerto que apontava para Cristo e culminava n’Ele, e “novo” à porção que exprime a plena
revelação do plano divino. Mas o antigo concerto foi também uma parte integral da história da
salvação. Do Génesis ao Apocalipse, as Escrituras estão permeadas pela continuidade do propósito
salvador. É verdade que H. Orton Wiley por vezes usava uma linguagem dispensacional. Mas
devemos prestar atenção à limitação que ele indicou:

43
O Pentecostes marca uma nova dispensação da graça – a do Espírito Santo. Mas esta
nova economia não deve de modo algum ser interpretada como suplantando a obra de Cristo,
antes ministrando-a e completando-a. O Novo Testamento não apoia a noção duma economia
do Espírito separada da do Pai e da do Filho, a não ser neste sentido – que é uma revelação da
Pessoa e trabalho do Espírito Santo, e portanto a revelação final da Santa Trindade. . . Assim
como o Filho revelou o Pai, o Espírito revela o Filho e O glorifica.
Não é sem significado que quando Paulo quis ilustrar a sua grande doutrina de justificação pela fé,
os modelos que escolheu foram Abraão e David (Rom. 4:1-25; Gál. 3:6-9). É pelo menos possível
que, no período de transição coberto pelo Novo Testamento, aqueles que andaram com Deus em fé
obediente pudessem passar directamente da sua condição sob o velho concerto para a plena bênção
do novo.
Grande parte da discussão acerca do estado espiritual dos discípulos de Actos 2, dos
samaritanos, de Cornélio e dos discípulos de Actos 19, é toldada pela suposição de que em cada
caso o derramamento do Espírito Santo foi a primeira concessão do Espírito que qualquer dessas
pessoas jamais teve. Há pouca justificação nas Escrituras para se limitar a obra do Espírito a esses
poucos episódios esporádicos. Há evidência de que o Espírito tanto parece operar discretamente
quanto com som de um vento veemente ou línguas de fogo. Nisto a perspicácia de Richard S.
Taylor é incisiva e de importância vital:
Há uma recepção tríplice do Espírito: (1) Ele é “recebido” incógnita e involuntariamente
no despertamento e convicção; (2) Ele é recebido como o Agente não identificado do nosso
novo nascimento, quando conscientemente aceitamos Cristo como Salvador; (3) Ele é
recebido consciente e voluntariamente pelo filho regenerado de Deus, como uma Pessoa de
direito próprio, para nele viver e reinar plenamente como o Outro Eu de Cristo.
C. Outras Considerações
Há algumas indicações indirectas duma possível identificação do baptismo com o Espírito
Santo como o meio pelo qual a inteira santificação ocorre.
(1) Existe uma sobreposição ou intersecção básica entre o significado de “santificar” e o de
“baptizar”. Cada um dos termos tem uma área de significado distinta do outro. Mas cada um tem
também uma área de significado idêntica à do outro. “Santificar” é normalmente definido como
“tornar sagrado ou santo; libertar do pecado; purificar”. “Baptizar” define-se normalmente como
“administrar o sacramento do baptismo; purificar ou limpar espiritualmente; dedicar”. A
sobreposição de significado ocorre em relação a purificar ou limpar.
Isto é em parte sugerido pelo uso neotestamentário do termo “Santo” referindo-se ao Espírito.
Paul S. Rees escreve: “ O Professor D. W. Dillistone, após uma pesquisa cuidadosa dos dados
bíblicos, sugere que nestas palavras – adjectivo e substantivo – temos um símbolismo duplo
profundo: ‘Santo. . . o símbolo da pureza intensa’, e ‘Espírito. . . o símbolo duma graça ilimitada”.
No ministério de João Baptista em João 3:25-26, purificar (embora num sentido ritualista) é
identificado com baptizar. É pouco honroso para o Espírito Santo pensar-se que Ele pode baptizar
ou encher o coração humano sem o purificar de todos os resíduos do pecado.
(2) Tanto o baptismo com o Espírito como a inteira santificação são operados pelo mesmo
agente, o Espírito Santo. Isto é óbvio na própria frase “baptismo com ou em o Espírito Santo”.
Virtualmente todas as escolas de pensamento reconhecem que o Espírito Santo é o agente na
santificação. Tanto Paulo como Pedro usam a frase “santificação do Espírito” (II Tes. 2:13; I Ped.
1:2). Paulo fala do seu ministério como trabalhando com o propósito de “que seja agradável a
oferta dos gentios, santificada pelo Espírito Santo” (Rom. 15:16).
(3) Parece haver ainda uma identificação mais positiva em Actos 15:8-9. Admite-se que a
experiência de Cornélio possa apresentar algumas ambiguidades para o intérprete moderno. Mas

44
quando Pedro relatou o “Pentecostes Gentílico” aos cristãos judeus de Jerusalém, uns 15 anos
depois do evento ter ocorrido, ele disse: “Deus, que conhece os corações, deu testemunho a favor
deles, concedendo-lhes o Espírito Santo, assim como também a nós. E não fez diferença alguma
entre eles e nós, purificando os seus corações pela fé”. Wesley disse de Cornélio, antes da visita de
Pedro: “Está certo, no sentido cristão, Cornélio era ainda um incrédulo. Ainda não tinha fé em
Cristo”. E, contudo, uma das descrições frequentes que Wesley faz da perfeição cristã, é o
“coração purificado pela fé”.
(4) Importa reconhecer que tanto as Escrituras como a teologia usam diferentes termos para
identificar ou descrever a mesma experiência. O encontro redentor inicial pelo qual a pessoa se
torna cristã é conhecido por conversão, novo nascimento, regeneração, justificação, salvação,
adopção, nova criação, tornar-se filho de Deus. É também chamado “santificação inicial” e “o
nascimento do Espirito”.
De maneira semelhante, a crise subsequente por que passa o cristão na vida espiritual é
conhecida como santidade, inteira santificação, a plenitude do Espírito, perfeição evangélica ou
cristã, amor perfeito, pureza de coração, o descanso da fé, o homem espiritual, plena salvação,
circuncisão do coração, a plenitude da bênção de Cristo e o baptismo com o Espírito.
Em muitos casos os diversos termos reflectem aspectos diferentes de cada um dos ministérios
do Espírito no coração do homem. De modo algum se pode dizer que estes termos indicam obras
diferentes da graça de Deus.
Embora haja argumentos significativos no sentido da identificação do baptismo com o Espírito
Santo e a inteira santificação, podemos contudo admitir que o caso não esteja de todo encerrado.
No Novo Testamento o termo “baptismo” é por vezes usado com um significado amplo, e é
concebível que tal possa ser o caso quando empregue em relação à obra do Espírito.

II. AS PASSAGENS CHAVES EM ACTOS


Há sete passagens chaves no Livro de Actos a respeito da santidade, quando esta é
compreendida como o resultado do baptismo ou plenitude do Espírito Santo no seu sentido total.
A. As Promessas de Cristo Antes da Ascensão, Actos 1:4-8
Jesus ordenou aos Seus discípulos que “esperassem a promessa do Pai, que (disse ele) de mim
ouvistes” (v. 4). A “promessa do Pai”remonta ao Velho Testamento:
Até que derrame sobre nós o espírito lá do alto;
então o deserto se tornará em camo fértil,
e o campo fértil será reputado por um bosque (Isa. 32:15).
Derramarei o meu Espírito sobre a tua posteridade,
e a minha bênção sobre os teus descendentes (44:3).
“Então espalharei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e
de todos os vossos ídolos, vos purificarei. E vos darei um coração novo, e porei dentre de vós um
espírito novo; e tirarei o coração de pedra da vossa carne, e vos darei um coração de carne. E porei
dentro de vós o meu espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os
observeis” (Eze. 36:25-27).
E há-de ser que, depois,
derramarei o meu Espírito sobre toda a carne,
e vossos filhos e vossas filhas profetizarão,
os vossos velhos terão sonhos,
os vossos mancebos terão visões.
E também sobre os servos e sobre as servas
45
naqueles dias derramarei o meu Espírito (Joel 2:28-29).
“E sobre a casa de David, e sobre os habitantes de Jerusalém, derramarei o Espírito de graça e
de súplicas” (Zac. 12:10).
As passagens de João 14:16-17, 26; 15:26; 16:7, indicam que os discípulos ouviram do
próprio Jesus a substância destas promessas.
Jesus identificou a vinda do Espírito Santo com o cumprimento da comparação e constraste
apresentados por João quanto ao baptismo com água e com o Espírito, este descrito como sendo de
fogo: “Porque, na verdade, João baptizou com água, mas vós sereis baptizados com o Espírito
Santo, não muito depois destes dias” (Act. 1:5). O baptismo com o Espírito é tipicamente o
baptismo de Cristo: “De sorte que, exaltado pela dextra de Deus, e tendo recebido do Pai a
promessa do Espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes e ouvis” (2:33).
O propósito da vinda do Espírito não é restaurar o velho reino a Israel, mas antes estabelecer o
novo Reino. As opiniões diferem quanto ao significado das palavras de Cristo nos Evangelhos:
“Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui estão, que não provarão a morte, até que vejam
vir o Filho do homem no seu reino” (Mat. 16:28); ou como a citação é dada por Marcos: “Em
verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte sem que vejam
chegado o reino de Deus, com poder” (Mar. 9:1; cf. a fraseologia semelhante de Lucas: “até que
vejam o reino de Deus” – 9:27). Alguns mantêm que estas palavras se referem à transfiguração que
ocorreu uma semana depois. É mais provável e a terminologia é mais natural se elas se referirem à
vinda do Espírito Santo quase um ano mais tarde.
A concessão do Espírito Santo reforçará o testemunho dos discípulos: “Mas recebereis a
virtude do Espírito Santo que há-de vir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas, tanto em Jerusalém
como em toda a Judeia e Samaria, e até aos consfins da terra” (Act. 1:8). O poder não é apenas
“para testemunhar”; é poder para “ser minhas testemunhas”. O testemunho dos lábios tem de ser
apoiado pelo testemunho do carácter e da vida.
B. Pentecostes, Actos 2:1-4, 37-39
A segunda passagem principal é o relato do Pentecostes e a sua extensão “a todos os que estão
longe; a tantos quantos Deus, nosso Senhor, chamar” (v. 39). É claro, mesmo à superfície, que o
Dia de Pentecostes teve um significado histórico profundo. Foi o princípio duma nova era, a
inauguração da “era do Espírito”, e o pleno estabelecimento da Igreja Cristã. Foi também a
proclamação oficial e pública de Jesus como o Cristo e o Senhor. “Pentecostes foi o selo de Deus
sobre Jesus como Messias, e o cumprimento da Sua promessa a Israel.”
A vinda do Espírito Santo foi evidência inevitável da exaltação de Jesus à dextra de Deus: “De
sorte que, exaltado pela dextra de Deus, e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo,
derramou isto que vós agora vedes e ouvis (Act. 2:33). Ainda mais, Pedro diz: “Saiba pois com
certeza toda a casa de Israel que a esse Jesus, a quem vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo
(v. 36). Neste contexto pode haver pouca dúvida acerca do significado de “Senhor” (Kurios). Era
o termo usado no Velho Testamento grego para traduzir Yahweh, o nome pessoal de Deus. William
M. Greathouse comenta:
Ao ser baptizado, Jesus foi identificado como Messias; pela Sua ressurreição e entronização,
foi empossado como Messias. Como Cristo glorificado Ele foi “declarado Filho de Deus, em
poder” (Rom. 1:4; cf. II Cor. 3:17-18). No Seu baptismo Ele foi revelado como Portador do
Espírito. No Dia de Pentecostes, Ele se tornou no Baptizador com o Espírito Santo (João 1:33;
Act. 2:32-33).
Historicamente, o Pentecostes tem dois lados vitalmente importantes. Foi a inauguração e
proclamação da Igreja como Corpo de Cristo, a perpetuação da sua incarnação no mundo; e foi a

46
instituição dum novo concerto com a sua promessa de renovação interior e purificação para o povo
de Deus, o cumprimento daquilo que estava implícito no antigo concerto.
1. A Inauguração da Igreja
H. Orton Wiley escreve:
O Pentecostes foi o dia natalício da Igreja Cristã. Assim como Israel, redimido do Egipto, foi
transformado numa nação-igreja pela concessão da lei do Sinai, assim também, de indivíduos
redimidos por Cristo, nosso Cordeiro pascal, o Espírito Santo formou a Igreja do Dia de
Pentecostes. Isto foi efectuado pela dádiva duma nova lei, escrita nos corações e nas mentes dos
redimidos.
Portanto, o Espírito não é somente o elo que une o indivíduo a Cristo; Ele é o elo que une os
membros do Corpo uns aos outros e à Cabeça viva. “O Espírito é a vida do Corpo; e desde a Sua
inauguração no Pentecostes, o Espírito Santo tem a sua ‘Sé’ ou assento na Igreja”.
Wiley também indica que na sua vida corporativa a Igreja é um reino da Incarnação bem como
um reino do Espírito. “A Igreja não é apenas uma criação independente do Espírito, mas uma
ampliação da vida incarnada de Cristo”.
2. O Estabelecimento do Novo Concerto
É quanto à instauração do novo concerto que o Pentecostes se relaciona mais de perto com o
tema deste estudo. Os profetas do Velho Testamento prometeram uma concessão do Espírito do
Senhor que seria o selo branco da era messiânica. O dom do Espírito seria universal e permanente.
Ele permaneceria sobre o Servo-Messias (Isa. 11:1-2; 42:1-4) e depois sobre todo o povo de Deus
(32:14-17; 44:3; Joel 2:28-29).
O efeito desta vinda do Espírito seria profundamente moral e espiritual. Estabeleceria e
proporcionaria justiça, rectidão, paz, sossego, confiança (Isa. 32:16-17), bênção (44:3) e renovação
interior, banindo a culpa e santificando a natureza (Eze. 25-27). Embora no contexto imediato
Jeremias não explique o papel do Espírito, há pouca dúvida de que o novo concerto do qual ele fala
(Jer. 31:31-34), escrito na mente e no coração, seja a mesma herança espiritual da qual Joel contou
na famosa profecia citada por Pedro no Dia de Pentecostes (Joel 2:28-29; Act. 2:16-21).
Nas palavras do credo de Niceia, o Espírito Santo é “o Senhor e Doador da vida”. Ele é “o
Espírito de santidade”, que pelo novo nascimento dá início à santidade, a purificação que é
aperfeiçoada na inteira santificação (II Cor. 7:1) e que, vista positivamente, é a restauração
progressiva da imagem de Deus em nós, pelo “Senhor que é o Espírito” (II Cor. 3:17-18).
Pentecostes é a realização das promessas de Jesus em João 14-16, nas Declarações Acerca do
Paracleto, e o cumprimento inicial da Sua oração em João 17, relacionada com essas declarações:
“Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade. . . Por eles me santifico a mim mesmo para que
também eles sejam santificados na verdade” (vv. 17-19).
O Espírito Santo, residente no mundo desde a criação (Gén. 1:2) agora vem a ser o Presidente
da Igreja. O baptismo com o qual o Messias havia de baptizar o Seu povo (cf. Mat. 3:11, etc) é o
baptismo com o Espírito. No Pentecostes, Aquele que estava sempre presente no mundo vem para
um novo relacionamento. Aquele que era a vida regeneradora dos discípulos de Cristo tornou-se o
seu Senhor santificador. Como diz Greathouse:
O Espírito que veio no Pentecostes (e que nos vem a nós que cremos em Cristo) é principalmente o
Espírito santificador cuja obra distintiva é purificar o coração dos crentes e aperfeiçoá-los no amor de
Deus, assim cumprindo a promessa do novo concerto (Eze. 36:25-27; Jer. 31:31-34). “Ele vos
baptizará com o Espírito Santo e com fogo”, João Baptista anunciou (Mat. 3:11; Luc. 3:16). Aqui,
João ecoa o voto de Malaquias, de que o Mensageiro do concerto havia de “purificar os filhos de Leví e
afiná-los como ouro e prata” para que pudessem “oferecer ao Senhor uma oferta em justiça” (Mal. 3:1-
3).
47
3. Sinais Inaugurais
O significado do Pentecostes é ainda atestado pelos grandes sinais históricos que
acompanharam o derramamento do Espírito. Há toda a evidência de que estes foram sinais
“inaugurais”, marcando um novo estádio na revelação plena de Deus, e não para serem repetidos na
mesma forma.
(1) “Veio do céu um som como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em
que estavam assentados” (2:2). Aqui, sugere-se poder, simbolizando o poder prometido (1:8) e
mais tarde exemplificado. Esta foi uma manifestação colectiva: “Encheu toda a casa”.
(2) “Línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles” (2:3).
Aqui, sugere-se pureza. Nas Escrituras o fogo é um símbolo importante da manifestação da
presença de Deus e da limpeza e purificação que essa presença efectua. Esta foi uma manifestação
individual, pessoal: “Pousaram sobre cada um deles”.
(3) “Começaram a falar noutras línguas conforme o Espírito Santo lhes concedia que
falassem” (2:4). Aqui, sugere-se produtividade – habilidades concedidas pelo Espírito, as quais
resultaram na edificação do Corpo de Cristo. Da sua ocorrência em pontos estratégicos do Livro de
Actos, quando o Evangelho entrou em áreas ainda intocadas (e.g., Cornélio, o prosélito romano de
Act. 10:46; os discípulos de Éfeso em Act. 19:6, convertidos do paganismo cru), é evidente que
este dom de línguas representa a pregação universal do evangelho.
Poucos milagres nas Escrituras têm sido mais debatidos do que o fenómeno das línguas
descrito em Actos 2 (e repetido em 10:46 e 19:6). Tem-se defendido que o milagre foi no ouvir e
não no falar. Claro que foi um milagre de comunicação – não houve “interpretação”, e as palavras
foram compreendidas – e Lucas parece querer dizer que os discípulos falaram línguas que não
aprenderam, mas que foram inteligíveis àqueles que estavam presentes vindos das diversas zonas
geográficas citadas nos versos 9 e 10.
Para além do que seria necessário ao registo histórico, três vezes Lucas deixa claro que as
línguas faladas foram compreendidas. “Ajuntou-se uma multidão, e estava confusa, porque cada
um os ouvia falar na sua própria língua” (v. 6). O seu assombro não foi porque ouviram “línguas
desconhecidas”. “E todos pasmavam e se maravilhavam, dizendo uns aos outros: Pois quê! Não
são galileus todos esses homens que estão falando? Como, pois, os ouvimos, cada um na nossa
própria língua em que somos nascidos?” (v. 8). “Todos os temos ouvido em nossas próprias
línguas falar das grandezas de Deus” (v. 11).
Não há virtualmente qualquer base para se identificar o Pentecostes com o fenómeno da
glossolália, quer na sua expressão moderna, quer como alguns interpretam a referência ao dom de
línguas em I Cor. 12 e a sua expressão perturbadora em I Cor. 14. Embora os estudiosos estejam
divididos quanto à natureza da manifestação descrita em I Cor. 14, todo o capítulo é perfeitamente
inteligível quando compreendido como se referindo ao uso de línguas estranhas que exigiam
tradução para o dialecto local.
Nem tão pouco há qualquer indicação de que este fenómeno constitua um aspecto permanente
do evangelismo. Foi um sinal não para os discípulos, de que estes foram cheios do Espírito Santo,
mas para os incrédulos (“infiéis, I Cor. 14:22), i.e., para o mundo, de que o evangelho é para todos
os povos de toda a língua “e todas as nações debaixo do céu” (Act. 2:5).
Esta impressão é apoiada pelo facto de que num período de 20 anos, as três vezes em que se
menciona que se falou noutras línguas representam episódios em que o Evangelho saiu para fora do
círculo em que antes estava contido. Actos 2 relata a proclamação da Palavra a uma audiência
predominantemente judaica – judeus da diáspora que tinham viajado até Jerusalém para assistirem à
festa do Pentecostes. Actos 10 relata a extensão do Evangelho aos gentios que eram prosélitos do

48
Judaismo, representados por Cornélio e pelos da sua casa. Actos 19, o “Pentecostes de Éfeso”,
relata um encontro com aqueles que se converteram do puro paganismo.
É justo dizer que no sentido histórico ou dispensacional o Pentecostes nunca foi repetido nem o
poderá ser. Qualquer época histórica tem apenas um início. Os sinais que marcam o seu princípio
– como a nuvem, o trovão e o terramoto que acompanharam a dádiva da lei no concerto do Sinai –
não se repetem, embora continue a era que iniciaram.
Que o Pentecostes tem um sentido existencial como modelo para os cristãos através dos séculos
parece ser sugerido por Pedro nos versos 37-39. Na sua resposta à pergunta do povo: “Que
faremos, varões irmãos?” (v. 37), Pedro disse: “Arrependei-vos e cada um de vós seja baptizado
em nome de Jesus Cristo, para perdão dos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo (v. 38).
O facto de que o baptismo com água deve interpor-se em relação ao perdão dos pecados sugere
um intervalo, por mais breve que seja, entre o arrependimento e perdão e o “dom do Espírito
Santo” no sentido do Pentecostes. Ao traduzir o verso 38, Moffatt indica este intervalo inserindo a
palavra “então”: “Então recebereis o dom do Espírito Santo”.
No seu significado pessoal e subjectivo, o Pentecostes tem sido, pode ser e é repetido: em
Samaria (8:14-17); em Damasco (9:17-18); em Cesareia (10:44-46); e em Éfeso (19:1-6). Acerca
disto, William Barclay escreve:
O Velho Testamento e o pensamento judaico contêm muito acerca do Espírito, mas em
geral é correcto dizer-se que o poder e a actividade do Espírito se relacionavam com
acontecimentos extraordinários e anormais. As grandes proclamações e as grandes visões
dos profetas, as súbitas manifestações do esplendor de Deus, foram obras do Espírito; mas
no Novo Testamento o Espírito tornou-Se ainda mais precioso, pois o Espírito é a força
motriz, o controlador e sustentador da vida diária e da actividade quotidiana.
C. O Avivamento Samaritano, Actos 8:5-25
James D. G. Dunn descreve os eventos relatados em Actos 8 como “o Enigma de Samaria”. É
um enigma apenas para alguém que, como o Dr. Dunn, opere com a pressuposição de que a obra do
Espírito Santo é limitada ao momento crítico do “derramamento”, e que tal derramamento
representa sempre a primeira e a única obra do Espírito no coração do crente.
Se aceitarmos o relato tal qual é apresentado, o avivamento em Samaria tende a refutar a
objecção de que a experiência dos discípulos no capítulo 2 não foi típica, visto que a sua vida
espiritual se situou entre duas “dispensações”: a do Filho, antes do Pentecostes, e a do Espírito, no
Pentecostes e depois dele.
Quando a Igreja foi dispersa durante a feroz perseguição em Jerusalém, Filipe, o diácono, foi a
uma cidade em Samaria “e ali proclamou a Cristo” (v. 5). Os espíritos maus foram expulsos,
muitos foram curados, e “houve grande regozijo naquela cidade” (v. 8). Um grande número de
pessoas creu “em Filipe, que lhes pregava acerca do reino de Deus e do nome de Jesus Cristo, e se
baptizavam, tanto homens como mulheres” (v. 12).
“Os apóstolos, pois, que estavam em Jerusalém, ouvindo que Samaria recebera a Palavra de
Deus, enviaram para lá Pedro e João. Os quais, tendo descido, oraram por eles, para que
recebessem o Espírito Santo. (Porque sobre nenhum deles tinha ainda descido; mas somente eram
baptizados em nome do Senhor Jesus.) Então lhes impuseram as mãos, e receberam o Espírito
Santo” (v. 14-17).
Neste caso há uma tentativa muito evidente por parte do escritor de comunicar que esses
cristãos tinham uma fé genuína, certificada pelo baptismo, antes do Espírito Santo “vir sobre” eles.
Também não há qualquer dúvida acerca da Sua vinda quando Pedro e João oraram por eles e lhes
impuseram as mãos. Tão evidente foi este acontecimento que Simão, que praticara a magia e se
juntara ao novo movimento cristão, ofereceu dinheiro pelo poder de induzir o enchimento do
49
Espírito Santo. Por isso ele foi severamente repreendido por Pedro (vv. 9-11, 13, 18-24), e o seu
nome tomou um significado infame (“simonia”) ao passar a designar qualquer tentativa de comprar
posições ou privilégios eclesiásticos. Mas considerar Simão como exemplo típico dos outros
crentes samaritanos seria tão injusto como julgar os outros apóstolos pelo carácter de Judas
Iscariotes.
D. A Conversão de Paulo, Actos 9:1-19
A conversão cristã de Saulo teve lugar na estrada, fora de Damasco, quando identificou como
Jesus de Nazaré Aquele que o encontrara ali, e O chamou de “Senhor”. É possível que a palavra
“senhor” (Kurios) pudesse ser usada pelos gregos do mesmo modo como usamos hoje esta palavra.
Mas, para o judeu, Kurios era o título usado no Velho Testamento grego para o único Deus
verdadeiro, e a confissão cristã mais antiga era “Jesus é Senhor” (Rom. 10:8-10). Na sua defesa
diante da turba em Jerusalém Paulo indica a sua submissão a Cristo no caminho para Damasco
através da pergunta: “Senhor, que farei?” (Act. 22:10). Quando perante Herodes Agripa ele
testificou da sua conversão (Act. 26:2-29), indicou a visão da estrada para Damasco como sendo o
lugar onde acontecera – embora em testemunho anterior (22:12-16) também se tenha referido à
subsequente visita de Ananias.
Ananias, instruído para ir ter com Saulo, estava relutante até ter a garantia de que “Ele está
orando” (9:11). “E Ananias foi e entrou na casa, e, impondo-lhe as mãos, disse: Irmão Saulo, o
Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, me enviou, para que tornes a ver e sejas
cheio do Espírito Santo. E logo lhe caíram dos olhos como que umas escamas, e recuperou a vista;
e, levantando-se, foi baptizado. E, tendo comido, ficou confortado. E esteve Saulo alguns dias
com os discípulos que estavam em Damasco” (9:17-19).
E. O Caso de Cornélio, Actos 10:1-11:18; 15:6-11
Às vezes isto se chama o Pentecostes gentílico ou o Pentecostes de Cesareia. Admitimos que
há ambiguidades no relato. A razão de Lucas fornecer os pormenores da experiência de Cornélio é
o seu interesse pela missão gentílica da Igreja. Isto se torna claro pela sequência dos repetidos
relatos do evento (11:1-18; 15:6-11). A missão de Pedro a Cornélio consistia em apresentar-lhe a
mensagem pela qual ele e toda a sua casa seriam salvos (11:14). Deus lhes concedeu o mesmo dom
que dera à Igreja de Jerusalém cerca de dois anos atrás (v. 17). A Igreja de Jerusalém aceitou isto
como evidência de que “até aos gentios deu Deus o arrependimento para a vida”! (v. 18).
No Concílio de Jerusalém, convocado uns 13 anos mais tarde para decidir a situação dos
gentios convertidos fora das leis cerimoniais do judaismo, Pedro de novo relatou a sua visita a
Cesareia. O dom do Espírito Santo foi evidência de que Deus “aceitara” os crentes gentios e “não
fizera distinção” entre os crentes judeus e os gentios, de maneira que. . . ambos os grupos “são
salvos pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo” (15:8-11). Novamente isto foi recebido pelo
concílio como indicação da extensão do evangelho ao mundo gentílico: “Simão relatou como
primeiramente Deus visitou os gentios, para tomar deles um povo para o seu nome” (15:14).
Donald S. Metz nota que “Cornélio é apresentado como exemplo por inferência, em vez de
exemplo por afirmação directa”. Seria demais manter que, antes da chegada de Pedro, Cornélio
fosse um discípulo cristão no sentido pleno. Mas, por outro lado, ele não era um inconverso típico.
São-nos dadas diversas achegas acerca do estado espiritual de Cornélio. Ele era “piedoso e
temente a Deus” (10:2). As suas “orações e esmolas têm subido para memória diante de Deus” (v.
4). Pedro foi avisado a não chamar impuro o que Deus purificou (v. 15). A oração de Cornélio foi
ouvida e respondida (v. 31), e Pedro disse: “Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de
pessoas; mas que lhe é agradável aquele que, em qualquer nação, o teme e obra o que é justo” (vv
34-35).

50
Dirigindo-se a Cornélio, Pedro continua: “A palavra que ele enviou aos filhos de Israel,
anunciando a paz por Jesus Cristo (este é o Senhor de todos), esta palavra, vós bem sabeis, veio por
toda a Judeia, começando pela Galileia, depois do baptismo que João pregou” (10:36, 37). Tal
conhecimento podia ter sido adquirido pelo ministério de Filipe em Cesareia (8:40; 21:8). A vinda
do Espírito Santo sobre Cornélio e a sua família foi “. . . como também sobre nós ao princípio”
(11:15). Era a evidência de que Deus, “que conhece os corações, lhes deu testemunho, dando-lhes
o Espírito Santo, assim como também a nós; e não fez diferença alguma entre eles e nós,
purificando os seus corações pela fé” (15:8-9).
A importância duradoura do testemunho de Pedro está em identificar claramente o efeito do
Pentecostes como a purificação ou limpeza dos corações daqueles sobre os quais o Espírito Santo
vem. O fenómeno de falar em línguas, que ocorreu em Cesareia (10:46) como tinha acontecido em
Jerusalém, não é mencionado por Pedro. Este facto pode dificilmente ser explicado se o falar em
línguas fosse, como alguns mantêm, “a evidência do baptismo com o Espírito Santo”. Para Pedro,
20 anos depois do Pentecostes, o que essencialmente identifica o baptismo ou o enchimento com o
Espírito Santo é a pureza de coração. Como escreve Ralph Earle:
Pedro afirmou que duas coisas aconteceram tanto aos judeus no Pentecostes como aos gentios
em Cesareia: foram cheios do Espírito Santo, e os seus corações foram purificados. Assim,
afirmamos com Pedro que quando uma pessoa se enche com o Espírito Santo, ela não recebe
apenas poder (1:8), mas é também purificada do pecado (15:8-9). . . Quando o Espírito enche o
coração de alguém, Ele necessariamente o purifica; pois Ele é o Espírito Santo, o Espírito que
santifica.
O termo katharizo, “purificar”, encontra-se no aoristo, que significa uma acção completa e
vista como uma unidade. É o mesmo termo usado em Mat. 3:12, “limpar”; Mat. 5:8, “puros de
coração”; II Cor. 7:1, “purificar”; Efé. 5:26, “purificar”; I João 1:7, “purificar”. É usado
ocasionalmente no Novo Testamento no sentido cerimonial, mas a sua aplicação habitual relaciona-
se com a purificação do pecado, da corrupção ou da conspurcação moral – e sempre quando o
coração é o objecto de tal purificação.
F. Os Discípulos em Éfeso, Actos 18:24-19:6
Às vezes chama-se a isto o Pentecostes de Éfeso, e representa o terceiro estádio na penetração
do evangelho no mundo gentílico. Com a menção do baptismo de João há novamente um problema
dispensacional. Mas é bem clara a evidência de conversão antes do enchimento com o Espírito.
Diz-se que Paulo tinha ministrado em Éfeso e que ele deixara Priscila e Áquila ali quando foi a
Jerusalém (18:19-20). Apolo pregou ali e é descrito como “varão eloquente e poderoso nas
Escrituras” (v. 24). Apolo “era instruído no caminho do Senhor e fervoroso de espírito, falava e
ensinava deligentemente as coisas do Senhor, conhecendo somente o baptismo de João. Ele
começou a falar ousadamente na sinagoga; e, quando o ouviram Priscila e Áquila, o levaram
consigo, e lhe declararam mais pontualmente o caminho de Deus” (18:25-26).
Quando Paulo regressou a Éfeso, “achando ali alguns discípulos, disse-lhes: Recebestes
porventura o Espírito Santo quando crestes?” (19:2). A tradução exacta desta pergunta tem sido
assunto dum extenso debate. As possibilidades são: “Tendes recebido o Espírito Santo desde que
crestes?”; e: “Recebestes vós porventura o Espírito Santo quando crestes?”
Há diferenças teológicas técnicas entre estas traduções alternativas. Mas em qualquer dos
casos a resposta seria “não”, e não se levanta qualquer problema quanto à fé das pessoas
envolvidas. São chamadas discípulos (cf. 11:26), “o nome mais distintivo para os cristãos no Livro
de Actos”. Everett F. Harrison nota que o termo “discípulo” é usado 30 vezes em Actos, “sempre
no sentido de um membro da comunidade cristã”. Embora o baptismo de João ficasse aquém do
pleno significado do baptismo cristão, era no entanto “um baptismo de arrependimento para a

51
remissão dos pecados” (Mar. 1:4), e foi o baptismo recebido por Jesus e pelos Seus discípulos. F.
F. Bruce comenta:
Que estes homens eram cristãos deve ser depreendido pelo facto de que Lucas os
descreve como sendo “discípulos”; este é o termo que ele habitualmente usa para os cristãos,
e se tivesse querido dizer que eram discípulos de João Baptista e não de Jesus (como alguns
deduzem do versículo 3), ele teria afirmado isto explicitamente. É possível que tivessem
conhecido o Cristianismo através duma fonte semelhante àquela pela qual Apolo o conhecera;
ou poderiam tê-lo conhecido do próprio Apolo durante os seus primeiros tempos em Éfeso,
quando ainda conhecia apenas o baptismo de João.
De qualquer maneira, a pergunta de Paulo, “Recebestes já o Espírito Santo quando
crestes?, sugere fortemente que ele os considerava verdadeiros crentes em Cristo.
A confissão dos discípulos de Éfeso quanto a ignorância acerca do Espírito Santo poderia ser
traduzida melhor: “Não, não temos ouvido ainda que o Espírito Santo tenha sido dado” (19:2). A
isto pode-se comparar a declaração de Dwight L. Moody de que, durante sete anos após a sua
conversão, ele fora tão ignorante do minsitério do Espírito Santo como o haviam sido os discípulos
de Éfeso.
Com a explicação de Paulo, os efésios “foram baptizados no nome do Senhor Jesus” (19:5).
Então, “impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo; e falavam línguas e
profetizavam” (v. 6). Se, como defendem alguns, os efésios não se tornaram pessoas
completamente regeneradas até que “veio sobre eles o Espírito Santo”, Paulo teria administrado o
baptismo cristão a pessoas não completamente cristãs. É verdade que isto tem sido feito muitas
vezes desde então. Mas não podemos aceitar que fosse Paulo a começar tal prática.
A pergunta de Paulo foi: “Recebestes já o Espírito Santo quando crestes?” (v. 2). Jesus disse:
“O mundo não o pode receber” (João 14:7). “Receber” (lambano) é usado 10 vezes no Novo
Testamento com referência ao Espírito Santo, e todas as vezes de uma forma que indica uma vida
espiritual anterior. Já vimos que há uma concessão essencial do Espírito na regeneração, que é
“nascer do Espírito” (João 3:3-5). Mas no seu sentido neo-testamentáio pleno, “receber” o Espírito
é evidentemente uma experiência subsequente à regeneração.
G. A Pregação e o Testemunho de Paulo, Actos 20:32; 26:18
O termo “santificar” ou “santificado” ocorre como tal apenas duas vezes no Livro de Actos,
ambas dos lábios do Apóstolo Paulo. G. Abbott-Smith define a palavra grega como significando
“fazer santo, consagrar, santificar. . . 1. Dedicar, separar, pôr à parte para Deus. . . 2. Purificar,
fazer o carácter conformar-se a tal dedicação”.
Na sua despedida dos anciãos da igreja de Éfeso, Paulo diz: “Agora pois, irmãos, encomendo-
vos a Deus e à palavra da sua graça; a ele que é poderoso para vos edificar e dar herança entre
todos os santificados” (Act. 20:32). Uma frase semelhante é usada na explicação do Apóstolo ao
Rei Agripa acerca do propósito da sua mensagem aos gentios, tal como Cristo lha havia confiado:
“Para lhes abrires os olhos, e das trevas os converterdes à luz, e do poder de Satanás a Deus; a fim
de que recebam a remissão dos pecados, e sorte entre os santificados pela fé em mim” (26:18).
Aqui de facto temos o propósito da santificação, indicando tudo que Deus faz no sentido da
renovação interior do coração remido. Mas há também um significado mais explícito. Diz-se desta
santificação que ela é uma herança – possessão por direito daqueles que fazem parte da família – e
diz-se também que é “pela fé em” Cristo Jesus. Sobre este último ponto, V. Raymond Edman
escreve:
A verdadeira vida, porém, não se atinge por ficar parado à Cruz, ansiando por uma vida melhor.
Tem de haver uma apropriação do Espírito Santo pela fé, para encher a vida com a presença do Senhor
Jesus. Obtém-se esta vida pela fé e não pelas obras. As Escrituras perguntam: “. . . recebestes o
Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé?” (Gál. 3:2). Assim como a salvação é pela fé,
52
também a vida transformada é pela fé. Assim como pela fé recebemos o Senhor Jesus como Salvador,
também pela fé recebemos a plenitude do Espírito Santo. Assim como aceitamos o Senhor Jesus como
aquele que levou os nossos pecados, também aceitamos o Espírito Santo como aquele que leva a nossa
carga. Assim como aceitamos o Salvador como a punição pelos nossos pecados do passado, aceitamos
o Espírito Santo como o poder para os pecados inatos do presente. O Salvador é a nossa expiação, o
Espírito Santo é o nosso advogado. Na salvação recebemos a novidade de vida, pelo Espírito Santo
descobrimos a vida mais abundante. Em cada caso a apropriação é pela fé e somente pela fé, totalmente
independente de qualquer emoção da nossa parte.

53
4
A SANTIDADE EM ROMANOS
A Epístola de Paulo aos Romanos, às vezes chamada “o quinto evangelho”, está situada no
Novo Testamento em primeiro lugar entre as cartas do apóstolo, e em todo o sentido é a maior
delas. Foi uma sã perspicácia que colocou Romanos à testa das epístolas, pois é um resumo
introdutório do que se segue. Foi preparada e enviada a Roma como introdução ao ensinamento do
apóstolo, em preparação para a visita que esperava fazer quando passasse a caminho de Espanha
(1:8-15; 15:23-29).
Romanos foi escrito num período crítico da vida de Paulo. Ele sentiu que o seu trabalho na
Ásia Menor, Macedónia e Grécia havia terminado. Restava-lhe apenas levar uma oferta das igrejas
gentílicas para a igreja em Jerusalém, e depois tencionava seguir mais para o oeste. A direcção
ocidental começada pela chamada a passar à Macedónia haveria de se manter.
O tempo de espera em Corinto para a recepção da oferta deu oportunidade a Paulo para
escrever os pontos principais da sua doutrina de salvação. O seu propósito era apresentar a
finalidade da sua mensagem e ao mesmo tempo eliminar quaisquer ideias erradas tanto da parte dos
judeus como dos círculos antinomianos.
A influência do Livro de Romanos na Igreja é um testemunho eloquente da sua estatura
teológica. Tem sido um factor chave na maior parte dos movimentos espirituais que têm acertado o
rumo da história do Cristianismo. Foi uma passagem de Rom. 13:12-14 que iniciou a conversão de
Agostinho de Hipona. É bem conhecida a importância capital de Rom. 1:17, “o justo viverá da fé”,
para Lutero e a Reforma Protestante. Enquanto João Wesley escutava a leitura do Prefácio de
Lutero ao Livro de Romanos, numa pequena congregação morávia na Rua Aldersgate em Londres,
o seu coração foi “estranhamente aquecido”, e ele veio a conhecer pessoalmente que Deus, por
amor a Cristo, perdoara os seus pecados. E um livro chave na mudança da teologia do século 20,
do seu rumo humanista liberal para a neo-ortodoxia, foi o comentário sobre o Livro de Romanos,
escrito por Karl Barth em 1914.

I. A ESTRUTURA DO LIVRO
O esboço de Romanos é ao mesmo tempo simples e vasto. O livro divide-se em quatro partes:
(1) A doutrina da justificação, 1:1—5:11: Como o perdão é possível em face do facto que
“todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus”.
(2) A doutrina da santificação, 5:12—8:39: Como é possível a natureza pecaminosa ser
mudada: “Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para
santificação e, por fim, a vida eterna” (6:23).
(3) A doutrina da eleição, 9:1—11:36: A salvação como um dom da graça de Deus. Não
pode ser ganho; mas pode ser perdido pela incredulidade.
(4) A doutrina da consagração, 12:1—16:27: O “aspecto do comportamento”, apresentado
pelo evangelho, que se segue ao “aspecto da fé”; a aplicação prática do evangelho à vida.
Norman P. Grubb faz uma observação interessante quanto à estrutura das duas primeiras
secções de Romanos e a sua relação com a experiência cristã:
Para a maioria esta revelação mais profunda tem de vir como uma segunda experiência.
Muito raramente podemos ver o nosso pecado exterior e o nosso íntimo duma só vez. A prova
mais clara disto é que a exposição profunda de Romanos 6—8 é-nos dada separadamente e
subsequentemente aos capítulos 1—5. Não é que haja duas salvações separadas. Há um só
Salvador, um processo glorioso de restauração através da Sua morte, ressurreição e ascensão, um
só Espírito Santo. O aspecto duplo não é por causa d’Ele. Mas para a maioria de nós tem de

54
haver uma apropriação dupla das duas grandes libertações que emanam de um só Calvário, a
libertação do pecado e da ira (1—5), e a libertação do pecado e do eu independente (6—8). É
concebível que possam ser experimentadas ao mesmo tempo, pois estão à nossa disposição. Mas
uma apropriação simultânea, que produza uma verdadeira experiência de ambas e não um simples
assentimento mental é estraordinariamente rara. Neste sentido, há uma “segunda bênção”, uma
inteira santificação subsequente à justificação, uma união íntima de acordo com Gál. 2:20.
Abordando o relacionamento da justificação com a santificação dum ponto de vista diferente,
Claude Thompson cita o teólogo escocês John Baillie: “Uma justificação que não resulta na
santificação não é de forma alguma uma justificação verdadeira. Isto é, se é apenas uma boa árvore
que produz bom fruto, então a nossa falha persistente em nos tornarmos mais santos devia pôr em
dúvida até a nossa própria reconciliação com Deus”.
Thompson acrescenta: “Baillie torna-se quase wesleyano quando prossegue neste ponto de
vista: ‘De tudo que eu sei, nada há que eu saiba com uma maior convicção do que o facto de que
não devo ficar satisfeito com coisa alguma que seja menos que perfeita’”.
Como se nota acima, 5:12—8:39 representa a passagem clássica de São Paulo sobre a
santificação. Deve-se dizer que o apóstolo inclui todo o processo da transformação interior que
começa com a regeneração e a santificação inicial e continua, através da inteira santificação, para a
redenção final tanto do corpo como da alma (a glorificação).
Frederick Godet divide a secção em três partes: A Santidade em Cristo, 5:12—6:23; A
Santidade sem a Lei, cap. 7; e A Santidade pelo Espírito Santo.

II. A SANTIDADE EM CRISTO


A primeira divisão, santidade em Cristo, começa por tratar da condição que requer a mudança
interior que é a santificação. Romanos 1:1—5:11 tratou do catálogo dos pecados humanos, do
perdão e da reconciliação que vêm com a justificação pela fé em Cristo à parte das obras da lei. A
partir de 5:12 a terminologia de Paulo muda. Desde 5:12 até 8:10 o apóstolo usa o substantivo
singular pecado (hamartia) 39 vezes, das quais em 28 o substantivo é usado juntamente com o
artigo definido, “o pecado”.
A. M. Hills cita Whedon, Alford, Godet, Lange, e Sanday e Headlam para sustentar a tese de
que “‘o pecado’. . . significa uma forma especial de pecado, nomeadametne ‘o pecado inato’, ‘o
pecado herdado’, a natureza pecaminosa’, ‘a depravação’”. Não se refere aos pecados cometidos,
mas ao pecado herdado: “a rebelião pela qual a vontade humana se levanta contra a vontade
divina”. William Greathouse comenta: “Até este ponto Paulo tem tratado principalmente do
pecado como culpa; agora ele introduz a ideia do pecado como rebelião”.
A. O Problema, 5:12—6:1
Aqui, o argumento de Paulo é que esta condição humana veio à existência através de um
homem, Adão (5:12-14). Como já foi notado, o estado pecaminoso dos seres humanos é uma
condição corrupta que resultou da perda da comunhão pessoal com Deus. Diferentes teólogos
reconhecem aquilo a que geralmente se chama“pecado original”. O conceito está bem enraizado
nos credos históricos, e a sua linguagem persiste nas produções modernas. Visto por outro prisma,
Daniel Day Williams escreve:
Se quisermos compreender correctamente o problema do pecado, temos de ver que ele representa
uma corrupção da raiz do nosso ser. O que designamos “pecados”, más acções específicas, devem ser
consideradas principalmente como sintomas da desordem fundamental que jaz bem fundo no espírito.
Esta condição corrupta é a causa da morte tanto espiritual – a alma separada de Deus, a Fonte
da vida eterna – como física. No entanto a morte reinou desde Adão até Moisés, até sobre aqueles
que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão, o qual é a figura daquele que havia de vir”
(v. 14). A morte espiritual e a mortalidade que resultaram do pecado de Adão não devem ser
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consideradas um castigo infligido aos culpados, pois abrangem os bebés e as crianças na sua
inocência, tanto quanto os adultos. São a consequência da nossa humanidade estar privada da
relação com a rectidão e a santidade de Deus, relação esta com que foi originalmente criada. O
estado de corrupcão é a origem dos actos de rebeldia: cada um de nós é “pecador por escolha e está
separado de Deus por nascimento”.
Mas a vitória que o pecado e a morte obtiveram é eliminada por Cristo. O “último Adão” (I
Cor. 15:45) levanta-Se em comparação, contraste e contradição ao primeiro Adão. À semelhança
do primeiro Adão, Cristo é Cabeça duma raça inteira – Aquele que afecta a muitos com um acto de
consequências universais (vv. 12-14). Embora o pensamento de Paulo esteja fragmentado neste
parágrafo, a intenção é clara: “Adão. . . é a figura daquele que havia de vir” (v. 14).
Mas o contraste é total. Por causa de um único acto de desobediência por parte de Adão, o
pecado e a morte reinaram sobre todos. Por causa de um único acto de obediência por parte de
Cristo, a graça de Deus e o dom da vida são oferecidos a todos (vv. 15-19). “Porque, se pela ofensa
de um só, a morte reinou por esse, muito mais os que recebem a abundância da graça, e do dom da
justiça, reinarão em vida por um só – Jesus Cristo” (v. 17).
O contraste aprofunda-se ainda mais e torna-se uma contradição. A graça inverte o que o
pecado produz. “Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para
condenação, assim também por um só acto de justiça veio a graça sobre todos os homens para
justificação da vida. Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos
pecadores, assim pela obediência de um, muitos serão feitos justos” (5:18-19). Como indica Henry
Alford, a rectidão é tão real e experiencial como havia sido o pecado.
“. . . Onde o pecado abundou, superabundou a graça; para que, assim como o pecado reinou na
morte, também a graça reinasse pela justiça, para a vida eterna, por Jesus Cristo, nosso Senhor”
(Rom. 5:20-21). O propósito de Deus é cancelar em Cristo todas as consequências do pecado de
Adão – substituindo o pecado pela justiça, e a morte, pela vida eterna.
A consequência, então, é a incompatibilidade total entre o pecado e a graça. “Que diremos
pois? Permaneceremos no pecado literalmente, poderemos continuar a pecar? para que a graça
abunde? De modo nenhum. Nós que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?”
(6:1-2). A graça e o pecado excluem-se mutuamente. Kenneth S. Wuest diz: “Aqui a pergunta
fundamental não diz respeito a actos de pecado, mas ao relacionamento do crente com a natureza
pecaminosa”. Devemos hospedar o pecado que tem reinado desde a queda de Adão? Devemos
dar-lhe abrigo? Devemos nós, que fomos justificados, continuar no mesmo relacionamento com “o
pecado” como antes de chegarmos a Cristo? A resposta é clara, vibrante: “De modo algum! Não,
não!”
B. A Provisão, 6:2-23
O princípio geral apresentado nos versículos que se seguem a 6:1-2 diz respeito ao facto de que
Cristo morreu por nós na cruz não apenas para o perdão dos nossos pecados mas também para
destruir o “corpo do pecado” (v. 6), e assim prover libertação de “o pecado” (vv. 19, 22). Como
observa Vincent Taylor, uma das falhas curiosas da teologia é não ver que a santificação deriva da
Expiação, da mesma forma que a justificação dela resulta..
Aqui, Paulo condensa dois grandes conceitos neo-testamentários: o baptismo e a morte de
Cristo. Nisto ele segue o exemplo do próprio Jesus, que faz referência à crucificação como o Seu
baptismo (Mar. 10:38; Luc. 12:50). O baptismo tem um significado duplo no Novo Testamento:
lavagem dos pecado do passado (Act. 22:16), e um novo estado de união com Cristo (Rom. 6:3).
Portanto, no Novo Testamento o baptismo envolve dois elementos: água, simbolizando a lavagem
dos pecados do passado, para se ser unido com Cristo (Act. 2:38); e o Espírito Santo, como fogo
(Mat. 3:11; Luc. 3:16; etc.), tornando real o que o baptismo com água simboliza em contemplação

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do futuro. Ser “baptizado em Cristo” significa ser baptizado com o Seu Espírito na Sua morte
(Rom. 6:3).
1. Crucificação com Cristo, vv. 4-10
O que o baptismo simboliza no seu pleno significado neotestamentário tem de ser realizado na
nossa experiência – a paixão do nosso Senhor repetida em nós. Seguir a Cristo plenamente
significa negar-se a si mesmo e tomar a cruz (Mat. 16:24). O trilho da cruz contém três estádios:
(1) Getsêmane, a consagração expressa nas palavras: “Não como eu quero, mas como tu queres”
(Mat. 26:39); (2) Gólgota, a purificação da “co-crucificação”, morrer para o pecado (Rom. 6:3-6);
e (3) o Jardim do Túmulo Vazio, dedicação à vida ressurrecta (vv. 4-5; 7-8).
Que é este “homem velho”, ou o nosso “velho eu”, que foi crucificado com Cristo? Será ele o
velho estado não regenerado, ou será ele os restos de “o pecado”, a corrupção original, herdada?
As opiniões diferem, e a evidência bíblica (comparar Efé. 4:22 e Col. 3:9) é insuficiente para dar
uma resposta dogmática. Rom. 6:6 pode ser interpretado tanto duma maneira com doutra. Efé.
4:22 parece diferenciar entre o “velho eu” e a “maneira antiga de andar”, e como é normalmente
traduzido “despojai-vos” é um imperativo para os crentes. Col. 3:9 parece identificar o “velho
homem” com a vida pecaminosa.
É pelo menos possível que não tenhamos de escolher, que o “velho homem” seja o curso
anterior da vida e a condição pecaminosa que jaz atrás dela. Aqui, Paulo não está interessado em
desenvolver as etapas da experiência cristã, mas sim traçar a totalidade da redenção, incluindo tanto
a regeneração como a inteira santificação. Ao considerar todo o potencial da santificação sob a
analogia da crucificação e ressurreição, ele trata do problema do pecado na sua totalidade sob o
símbolo de “velho homem” ou “velho eu”-
Certamente o que foi crucificado com Cristo não foi o “eu” no sentido psicológico. É a vã
auto- soberania da pessoa que vive separada de Deus. Everett Lewis Cattell exprime um aviso
quanto a isto:
Aqueles que buscam uma vida mais profunda no Espírito frequentemente defendem a
morte do eu. Sabe-se o que estes querem dizer, mas mesmo assim a terminologia é errada. O
eu nunca pode morrer. É imortal. É o centro da alma e tem de viver para sempre. Deus o criou
e não deseja que seja erradicado. Não é correcto falar-se da morte do eu, mas é perfeitamente
acertado falar-se da morte para o eu. Há um mundo de diferença. O egoísmo é o padrão de
vida que inevitavelmente resulta quando o eu está separado de Deus em qualquer grau.
Os “quatro aspectos da morte” do cristão têm sido esboçados do seguinte modo nessa
passagem:
(1) Morremos em potencial quando Cristo morreu na cruz (v.6).
(2) Morremos em propósito quando abraçamos Cristo como Salvador. Na conversão cristã
está implicado não apenas o compromisso de abandonar o pecado, mas também o de aceitar tudo
pelo qual Cristo morreu.
(3) Morremos em profissão de fé no baptismo cristão.
(4) Morremos para o pecado na experiência pessoal, como um facto real, quando a “graça
santificadora destói o ‘corpo do pecado’”.
É bom relembrar que nas Escrituras o significado essencial da morte é uma separação
completa. A morte física é a separação entre o espírito ou alma e o corpo físico. A morte espiritual
é a separação entre o eu humano e Deus, a Fonte da vida. A “segunda morte” (Apo. 20:14) ou a
morte eterna é a separação eterna entre os impenitentes e Deus. A “morte para o pecado” é uma
separação completa do pecado; assim como, pelo contrário, estar “vivo para Deus” significa estar
unido a Deus em Cristo Jesus (Rom. 6:11).
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O resultado final da nossa crucificação com Cristo é que “o corpo do pecado seja desfeito, para
que não sirvamos mais ao pecado” (6:2). Não se deve pensar no corpo do pecado em termos
físicos, como comenta C. H. Dodd:
Importa lembrarmos o sentido particular em que Paulo emprega o termo corpo, o que é
demonstrado mais claramente em I Cor. 15. Ele não se refere à estrutura de carne e sangue
em si mesma. A carne e o sangue podem passar sem deixar vestígio algum, e ainda o corpo
permanecerá idêntico a si mesmo. Assim como agora participa da substância perecível da
“carne”, poderá participar no futuro da substância imperecível da “glória” ou do
“esplendor”, e ainda ser o mesmo “corpo”. Esta é a metafísica de Paulo. O corpo é o eu
individual como um organismo (nem a carne nem o espírito em si constituem o indivíduo, e
a “alma” é meramente o princípio animador da carne ou estrutura física). Portanto, o corpo
do pecado é o eu, como organização dos impulsos pecaminosos inerentes à carne.
O termo “destruído” não deve ser enfraquecido. Neste ponto, a alternativa na margem da Nova
Versão Internacional, “deixado sem poder”, é mais uma interpretação do que tradução. Katargein
é usado de várias maneiras no Novo Testamento. O seu uso em I Cor. 6:13; 15:26; II Cor. 3:14;
Efé. 2:15; II Tes. 2:8 e Heb. 2:14 mostra a profundidade e a intensidade do termo. Herman
Cremer diz do uso que Paulo faz de katargein: “Em Paulo, o termo denota sempre uma cessação
completa e nunca parcial ou temporária. Noutros escritores significa abandono de actividade, falta
de poder; mas nele o termo corresponde a aniquilar, pôr fim, fazer desaparecer”. Quando Paulo
“fala da destruição do corpo do pecado ele quer dar ênfase ao fim da condição pecaminosa
interior”.
2. Fé e Cansagração, vv. 11-13
O que Cristo proveu por nós na cruz e na Sua vida ressurrecta é para ser realizado pela nossa
resposta activa: “Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas vivos para
Deus em Cristo Jesus nosso Senhor. Não reine portanto o pecado em vosso corpo mortal, para lhe
obedecerdes em suas concupiscências; nem tão pouco apresenteis os vossos membros ao pecado
por instrumentos de iniquidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos
membros a Deus, como instrumentos de justiça” (Rom. 6:11-13).
“Considerai-vos” (v. 11) — é logizesthe heautous. Tem-se apontado que logizomai é um termo
usado em contabilidade. Não significa algo que não seja verdadeiro. É tomar em consideração o
que realmente existe. Representa a “conclusão a que chega a fé”, descrita em Rom. 4:1-12 em
relação à justificação de Abraão. E aqui significa o apropriar-se, pela fé, da libertação do pecado e
união com Deus providenciada pela expiação e ressurreição de Cristo. Não corresponde apenas a
uma caiadura que “imputa” uma justiça que de facto não existe. É lançar um crédito na conta da
pessoa (Deus o faz, em resposta à fé), uma purificação que de facto já teve lugar.
Portanto, fé significa “aceitar” como real e actual o que Deus declarou, sem esperar a sua
evidência. A fé é a condição pela qual o coração é purificado, o espírito é santificado, a promessa
do Espírito é recebida (Act. 15:8-9; 26:18; Gál. 3:14). Não é uma questão de vencer a renitência
de Deus, mas de aceitar a Sua prontidão. Neste contexto, a fé relaciona-se com a morte do pecado
interior e com a morte do pecado exterior. Nos versos de Hartley Coleridge, a fé
. . . é uma afirmação e um acto
liga a verdade eterna ao facto presente.
Mas uma tal fé é possível apenas em conjunção com obediência à chamada para a consagração:
“Nem tão-pouco apresenteis os vossos membros ao pecado, por instrumentos de iniquidade; mas
apresentai-vos a Deus, como vivos de entre os mortos, e os vossos membros a Deus, como
instrumentos de justiça” (v. 13).
Aqui, a palavra traduzida “apresentai” é paristimi. A primeira vez que aparece, está no
presente: “Nem tão pouco apresenteis os vossos membros ao pecado uma apresentação constante,
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por instrumentos de iniquidade”. Da segunda vez, está no aoristo: “Mas apresentai-vos a Deus
desta vez, um acto decisivo”. O mesmo termo é usado em 12:1, também no aoristo: “Rogo-vos,
pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e
agradável a Deus, que é o vosso culto racional”.
Paristimi é usado no grego koiné (a linguagem comum, de todos os dias, na qual o Novo
Testamento foi escrito) em dois contextos diferentes: no sentido de recrutamento militar; e no
sentido de uma oferta ou sacrifício no altar. Em ambos corresponde a um acto decisivo, uma
dedicação final e uma transferência do controle ou soberania de toda a vida. Dougan Clark escreve
em referência ao v. 13:
A essência da consagração está na frase “apresentai-vos a Deus”. Quando alguém se
apresenta a Deus, apresenta tudo o mais. Todos os detalhes são incluídos na rendição de si
próprio: “Apresentai-vos a Deus.” A consagração não é para o serviço de Deus, nem para a
Sua obra, nem para uma vida de obediência e sacrifício, nem para a Igreja, nem para o
Trabalho Cristão, nem para a obra missionária, nem tão-pouco para a causa de Deus, mas
sim para o PRÓPRIO Deus. A consagração é a vontade e a resolução e o propósito de ser,
fazer e sofrer toda a vontade de Deus.
3. Um Novo Mestre, vv. 14-23
Estar “não debaixo da lei, mas debaixo da graça” (v. 14) significa ter um novo Senhor. Assim
como somos libertados do pecado pela morte (v. 7), mudando de metáfora, somos libertados do
pecado tornando-nos escravos em obediência à justiça (vv. 15-18). Esta é uma analogia humana,
mas como estávamos anteriormente numa contínua e progressiva escravidão ao pecado, devemos
agora apresentar os nossos corpos como escravos “à justiça, para santificação” (v. 19; hagiasmos,
“santificação, santidade”; primeira vez que Paulo usa o termo em Romanos desde a frase “Espírito
de santificação” em 1:4).
Ser servos (literalmente, escravos) do pecado e servos da justiça é algo mutuamente exclusivo
(v. 20). Cada um tem o seu fim distintivo (telos, o resultado essencial e inerente). O telos do
pecado é a morte (v. 21). O telos de se servir a Deus é santidade e vida eterna (v. 22). A morte
eterna e a vida eterna são realidades presentes e contrastantes. A morte é o “salário” – uma palavra
que significa o soldo de subsistência diária dum soldado romano. A vida eterna é o dom de Deus
“em Cristo Jesus nosso Senhor” (v. 23).

III. A SANTIDADE À PARTE DA LEI


O capítulo 7 de Romanos, grande parte do qual pertence à segunda divisão feita por Godet,
“Santidade Sem a Lei”, é notável pela sua dificuldade. Os comentaristas discordam seriamente
quanto à sua interpretação. O capítulo divide-se bastante claramente em três secções bem distintas.
Cada uma delas trata da lei num sentido ou noutro, e as diversas conotações de nomos (lei) servem
para aumentar as perplexidades. Os versos 1-6 constituem uma analogia à lei do casamento; vv. 7-
13 descrevem as consequências inesperadas da lei de Deus; e vv. 14-25 tratam da impotência da lei
e da auto-disciplina em vencerem o pecado. Estas divisões são chamadas por Greathouse:
“Libertação da Lei”, “A Função da Lei” e “A Futilidade da Lei”.

A. Libertação da Lei, 7:1-6


Os versos 1-6 com efeito completam o pensamento do capítulo 6. Somos libertos do pecado
pela morte (6:1-14); somos libertos do pecado mudando de dono (6:15-23); e somos libertos do
pecado casando com Outrem (7:1-6).

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À semelhança das duas secções que se seguem, os versículos 1-6 estão sujeitos a várias
interpretações. Uma das mais úteis é oferecida por Sandy e Headlam. Os versos 1-3 esboçam os
pontos principais da analogia. “A lei tem domínio sobre o homem só durante a sua vida” (v. 1) – a
lei rege apenas aqueles que vivem sob as condições ou nos relacionamentos que ela regula. Uma
mulher está ligada ao marido pela lei do casamento enquanto ele vive. Mas quando o marido morre
a mulher “morre” como sua esposa. Fica viúva e, como tal, está livre para casar com mais alguém.
A lei do casamento anterior já não se aplica a ela.
Nos versos 4-6 faz-se a aplicação destes conceitos. A mulher representa o crente. O marido
que morre é o velho “eu”, o princípio adâmico, crucificado com Cristo. O segundo marido é
Cristo. O propósito da união é “que demos fruto para Deus” (v. 4) e “sirvamos em novidade de
espírito e não na velhice da letra” (v. 6).
B. A Função da Lei, 7:7-13
A segunda secção trata não da lei do casamento, mas da lei de Deus, que é “santa, justa e boa”
(v. 12). Isto introduz a ideia que governa o resto do capítulo – a lei não pode santificar, como
também não podia justificar (cap. 4).
O propósito da lei é tornar conhecido o que é o pecado (v. 7). Mas a lei produz resultados
inesperados. Ela não só revela o pecado, mas também agrava e inflama a condição perversa e
pecaminosa do coração não santificado: “Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, obrou
em mim toda a conscupiscência: porquanto sem a lei estava morto o pecado. E eu, nalgum tempo
vivia sem lei, mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri” (vv. 8-9). Charles R.
Erdman escreve:
A memória de Paulo volta ao tempo em que jovem fariseu orgulhoso ele se sentia
descansado, certo de que estava a cumprir a lei de Deus, porque tão cuidadosamente
observava as expressões externas da lei. Porém, chegou o dia em que despontou na sua
mente o pleno significado espiritual da lei, especificamente do mandamento “Não
cobiçarás”. O resultado foi duplo. Primeiro, revelou a Paulo quantos desejos maus jaziam
dormentes no seu coração. Isto ele nunca havia vislumbrado. Mas houve também um
resultado ainda mais terrível. O próprio mandamento “Não cobiçarás” fez com que ele
desejasse ainda mais o que lhe era proibido. Antes de conhecer o mandamento, o pecado
estava “morto”; estava relativamente dormente, inerte e inoperante; mas quando veio o
mandamento, deu-lhe um impulso no sentido de pecar. “O pecado reviveu e eu morri”, isto
é, morri para a minha complacência e auto-satisfação. Morri para a verdadeira santidade,
felicidade e esperança; caí cada vez mais profundamente na culpa; encarei apenas miséria,
ruína e morte eterna.
C. A Futilidade da Lei, 7:14-25
À volta desta terceira divisão tem havido uma onda de forte controvérsia. Paulo continua a
usar a primeira pessoa, “eu”, “me”, “mim”, “meu”. Mas enquanto que nos vv. 7-13 ele usou a
primeira pessoa no tempo passado, agora ele a usa com o tempo presente: “Eu sou carnal”, “O que
faço não aprovo”, “Em mim não habita bem algum”, “O mal está sempre comigo”, etc.
É este uso consistente do tempo presente que dá lugar à maior parte do debate. Falava Paulo da
sua condição espiritual actual ao tempo em que escrevia? É este um quadro válido da vida
regenerada? Uma linha proeminente de estudiosos, de Lutero a Nygren, diria que sim. Mas uma
fileira ainda maior, a partir de James Arminius, discordaria. Diria este grupo que Paulo está a olhar
para trás, para as suas lutas de homem desperto mas não regenerado, para os seus esforços inúteis
no sentido de ganhar a justiça da lei pelos seus próprios esforços. Como diz C. H. Dodd:
Ele continua a argumentar, demonstrando que debaixo da graça o homem está livre do
poder do pecado. Já dissera que o crente morreu para o pecado e que avança para uma nova
esfera. Comparara-o a um escravo comprado por um novo mestre, e a uma viúva livre para

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casar de novo. Reduziria todo o seu argumento ao ridículo se agora confessasse ser, no
momento em que escrevia, um desgraçado miserável, um prisioneiro da lei do pecado (vv.
24, 23). Paulo teria considerado anormal que qualquer crente se sentisse assim, e nada há
nas suas outras confissões que nos faça supor que apesar de todo o seu sentido de luta e
insegurança ele tivesse tal experiência após a sua conversão. Concluimos, pois, que Paulo
está encerrando a discussão com a evidência inegável da sua própria experiência, em como
ele antes estava morto em ofensas e pecados, mas agora achou vida e liberdade.
Isto, então, não é o estado normal do regenerado. Em termos mais amplos, é a pessoa desperta
lutando com os impulsos pecaminosos do seu coração não regenerado, uma luta travada pela sua
própria força de vontade. Paulo não retira nada do que já dissera em 6:18,22 acerca de estar
“liberto do pecado”, nem tão-pouco contraria o que disse mais tarde em 8:1-11. William
M.Greathouse escreve:
É evidente que o homem miserável é o pecador desperto, lutando em vão pela
libertação do pecado inato. Aplicar estes versículos ao crente em Cristo seria praticamente
admitir que a graça de Cristo é tão impotente contra o pecado como era a lei. O propósito
de todo o argumento é demonstrar que a graça de Deus em Cristo pode fazer “o que a lei
não podia fazer” (8:3), mostrar que debaixo da graça o homem tem sido liberto do pecado.
Porém, podemos interpretar esta passagem em dois níveis. Há um eco desta luta na vida de
qualquer pessoa que por meio da sua própria auto-disciplina ou força de vontade se esforça por uma
vida consistentemente vitoriosa. Todos que dependem do esforço próprio para lidarem com o
pecado inato estão aqui representados. Estas palavras eliminam completamente qualquer esquema
de santificação que dependa de “supressão” ou “neutralização” como parte do auto-esforço. Esse é
simplesmente um caminho fútil. Mais uma vez, escreve Greathouse:
Uma concessão, porém, tem de ser feita. A tese de Paulo através do capítulo 7 é clara: a
lei não pode santificar. Na medida em que o crente está dependendo do seu próprio esforço
para a santificação, nessa mesma medida ele está debaixo da lei. Tendo começado pelo
Espírito, procura ser aperfeiçoado pela carne (Gál. 3:3). Só depois de desistir “das suas
próprias obras” pode entrar no descanso da santidade de coração (Heb. 4:9-10). Algo desta luta
continua até que pelo baptismo com o Espírito Santo a sua obediência é aperfeiçoada em amor.
Tanto aqui como no resto deste capítulo e no capítulo 8, o termo “lei” (nomos) toma uma nova
conotação para Paulo, como também pode acontecer connosco. Não mais representa a lei de Deus
proposta nas Escrituras, ou mesmo a lei de Deus em termos gerais. É “esta lei em mim: que
quando quero fazer o bem, o mal está comigo” (7:21). É uma “outra lei” (v. 23), “a lei do pecado”.
Barrett descreve-a como “um regulamento semelhante a uma lei, que, como uma má duplicação da
lei mosaica, pode ter o mesmo nome”. É “um poder controlador que se impõe à vontade”, uma
“tendência uniforme” ou “princípio”.
Os versos 7-25, que parecem ser uma digressão ou uma interrupção do pensamento paulino,
realmente não o são. Antes de terminar o seu argumento, ele tem de considerar a possibilidade de
haver outra alternativa a Cristo e ao Seu Espírito como fonte da santificação cristã.
Poderia a lei mosaica conseguir o fim desejado? Não, a lei não pode libertar ninguém do
pecado interior, mais do que inicialmente poderia justificar – alternativa já considerada e rejeitada
em 4:9-25. A lei revela a condição pecaminosa do coração, mas não a pode curar.
Poderia a consciência (“a lei do meu entendimento”, v. 23), o desejo de fazer o bem (v. 21), a
auto-disciplina ou a força de carácter, trazer libertação? Não, tal tentativa apenas produz
frustração. O seu resultado é o grito desesperado do verso 24: “Miserável homem que eu sou!
Quem me livrará do corpo desta morte?” Não há qualquer “coisa” que o possa fazer; é
indispensável um Libertador. A resposta está na primeira parte do verso 25: O socorro vem só de
“Deus – por Jesus Cristo nosso Senhor!” Isto é uma antecipação do cap. 8. A última parte do
versículo 25 resume o que é apresentado nos vv. 14-24: “Eu mesmo no meu entendimento”, ou
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seja, no fundo de mim mesmo, “sirvo sou servo, ou escravo à lei de Deus, mas com a carne no
grego, sarx,natureza pecaminosa à lei princípio ou poder do pecado”. A escravatura à natureza
pecaminosa pode ser destruída somente na libertação tão claramente proclamada no cap. 8.
William Barclay chama a 7:14-25 “uma demonstração de insuficiência”:
(i) Demonstra a insuficiência do conheciemnto humano. Se conhecer o bem
significasse fazer o bem, a vida seria fácil. No entanto, o conhecimento não faz do homem
mau um homem bom. . .
(ii) Demonstra a insuficiência da determinação humana. Resolver fazer algo é
muito diferente de o chegar a fazer. Existe na natureza humana uma fraqueza básica da
vontade. . . A vontade humana não fortalecida por Deus está condenada a falhar.
(iii) Demonstra a limitação do diagnóstico. Paulo sabia bastante claramente o que
estava errado; mas era incapaz de o rectificar. Era como o médico que podia diagnosticar
uma doença mas não prescrever a cura. Jesus é a única pessoa que conhece a doença e
também a pode curar. Ele não oferece criticismo, mas auxílio.

IV. SANTIDADE PELO ESPÍRITO SANTO


O choro quase desesperado de 7:24 é plenamente respondido em 8:1-11. As palavras
antecipatórias de 7:25 são seguidas e completadas pelas linhas exultantes de 8:1-11. Revela-se aqui
o poder do alto que é necessário para se experimentar tudo o que está implícito no capítulo 6 quanto
à morte para o pecado e uma nova vida de serviço em Cristo. Este poder é o do Espírito Santo,
“através do qual o Cristo crucificado e ressurrecto Se reproduz a Si Próprio no crente”.
A. O Espírito de Vida em Cristo, 8:1-2
Em Romanos, o capítulo 8 é o grande “capítulo do Espírito Santo”. Nos sete capítulos
anteriores Paulo menciona o Espírito quatro vezes (1:4; 2:29; 5:5; 7:6). Aqui, em 39 versículos
ele fala do Espírito 19 vezes. A pessoa e a obra do Espírito ocupam um lugar central na doutrina
paulina da salvação. Stephen Neill ousa dizer que “em Paulo a doutrina do Espírito Santo é bem
mais central e característica do que a sua doutrina de justificação pela fé”.
Rom. 7:14-25 trata da frustração do homem “entregue a si próprio”, procurando cumprir o
propósito de Deus. Rom. 8:1-2 abre a porta da fé e da esperança para aqueles que, por contraste,
estão “em Cristo”: “Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus”,
porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte”. O
Espírito de vida, como poder controlador (“lei”), liberta completamente do “corpo do pecado” cuja
sentença de morte foi assinada no Calvário (6:6): aquilo que torna o homem “carnal, vendido sob o
pecado” (7:14), “a lei do pecado” (7:23), “o corpo desta morte” (7:24) ou “a natureza pecaminosa”
(7:25).
Quanto ao uso que Paulo faz do termo nomos (lei) a respeito do “Espírito de vida”, Godet
indica que em 7:21,23 tem um sentido geral – o de um poder ou princípio controlador. Ele falara
do poder do pecado inato. Agora ele afirma que esse poder foi enfrentado e dominado por um
poder maior: o poder do “Espírito de vida em Cristo Jesus” (8:2). “O apóstolo deliberadamente
contrasta lei com lei, o que é o mesmo que dizer: poder com poder.” Como diz Greathouse, “Paulo
aqui dá testemunho da experiência da inteira santificação. Em Cristo ele encontrou o poder
santificador do Espírito Santo que o liberta do princípio (lei) do pecado e da morte”.
Esta ênfase na obra do Espírito Santo é o que faz deste capítulo, como diz Skevington Wood,
“o Pentecostes de Romanos”. Henry Van Dusen escreve:
De facto, o Espírito é, acima de tudo, o agente da transformação moral (“santificação”), e
tal transformação representa semelhança com Cristo, porque o Espírito Santo, o Espírito de
Deus, é o Espírito de Cristo. O carácter radical e englobante deste conceito é revelado pelo
uso alternativo de “Espírito”, “Espírito de Deus”, “Espírito de Cristo” e “Espírito Santo”,

62
como expressões sinónimas; de modo que no cerne do maior dos discursos de Paulo, o qual
funciona como eixo de todo o seu pensamento, em Romanos 8, ele declara duma forma
confusa mas correcta: “Vós, porém, não estais na carne, mas no espírito, se é que o Espírito
de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele”
(Rom. 8:9).
Greathouse escreve: “Tal como o Credo de Niceia nos convida a confessar, Ele o Espírito
Santo como o Espírito de vida é ‘o Senhor e Dador da vida’. Ele foi o Dador da vida na criação
(Gén. 1:2). Ele é o Dador da vida no novo-nascimento (João 3:5). Ele é o Dador da vida na
santificação, pondo termo à tirania da carne e libertando-nos para o amor aperfeiçoado que é o
cumprimento da lei de Deus (4)”.
B. O Que a Lei Não Podia Fazer, 8:3-4
Paulo continua, dizendo que Cristo faz pelo Seu Espírito o que a lei de Moisés não podia fazer:
“Porquanto, o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu
Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne literalmente,
‘no homem pecador’; para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a
carne, mas segundo o Espírito” (8:3-4).
Dizer que no “homem pecador” “o pecado” foi condenado não significa apenas que foi
dasaprovado. Antes, foi votado à destruição. A lei desaprovava o pecado, mas não o podia
destruir. Godet diz: “A graça não salva por proteger o pecado, mas por o destruir”. O pecado não
é desculpado mas condenado à morte. Isto é, Deus “pronunciou a sua sentença”. Greathouse
escreve:
Paulo regressa à ideia da impotência da lei para santificar (8:3a). Mas Deus resolveu a
situação. Pela encarnação e pela cruz, Deus mesmo, na pessoa do Seu Filho, pronunciou a
condenação do pecado! Ele desbaratou totalmente o inimigo no próprio campo de batalha
onde se entrincheirara – na personalidade humana (8:3b). Em Cristo, Deus tem santificado
completamente a natureza humana!
C. O Contraste Entre a Carne e o Espírito, 8:5-8
Os versos 5-8 desenvolvem o profundo contraste existente no pensamento de Paulo entre “a
carne” e “o Espírito”. A “carne” sarx, traduzido nalgumas versões por “natureza pecaminosa” e o
Espírito estão em plena oposição entre si, um ponto repetido e elaborado em Gál. 5:16-25.
O uso que Paulo faz da palavra sarx tem causado o desespero dos estudantes da Bíblia. Às
vezes ele usa este termo no sentido puramente físico, equivalente a humanidade (e.g., Rom. 1:3;
9:3). Mas das 16 vezes em que Paulo contrasta carne e Espírito ele usa sarx para denotar essa
corrupção da natureza humana que em si mesma é pecaminosa.
Se “a natureza pecaminosa” for entendida como um elemento da humanidade caída mas não
uma parte essencial ou intrínseca da natureza humana, então a expressão “natureza pecaminosa”
pode ser aceite como uma paráfrase razoável para definir sarx ou carne. Contudo, devemos ter bem
em mente que esta “natureza pecaminosa” é tratada de uma maneira decisiva e eliminada da
experiência cristã pela soberania santificadora do Espírito Santo: “Não estais na carne, mas no
Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós” (8:9); e “os que são de Cristo crucificaram a
carne com as suas paixões e concupiscências” (Gál. 5:24).
De qualquer modo, “carne” (sarx) nunca deve ser confundida com “corpo” (soma). Não é algo
material e tangível. No dizer de Barclay, “para Paulo a carne não era uma coisa física; é algo
espiritual. A carne é a natureza humana em todo o seu pecado e fraqueza, impotência e frustração;
a carne é tudo o que é o homem sem Deus e sem Cristo”. João Knox escreve:
Quando Paulo fala da “carne” ele está a referir-se ao que em nós origina a “imoralidade,
impureza, licenciosidade. . . contendas, ciúmes, ira, egoísmo. . . inveja, bebedice. . . e coisas
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semelhantes”. E que é isso senão a alienação de Deus e de nós mesmos, isto é, a nossa
“rotura” e “queda” existencial e, por conseguinte, a nossa impotência moral e
pecaminosidade?. . . “Carne” é uma maneira de, tomando como referência a nossa
experiência, se falar do “velho homem”, o homem em Adão a quem, como homens naturais,
pertencemos. “A carne” é o mundo, “velho” e “caído”, fazendo a sua presença e poder sentir-
se dentro das nossas almas.
A condição reflectida pela “carne” ou “natureza pecaminosa” opera através duma disposição
mental que tem como resultado uma vida manchada pelo pecado: “Os que vivem segundo a carne
têm suas mentes voltadas para o que a carne deseja” (8:5a, NVI). Pelo contrário, “os que vivem de
acordo com o Espírito têm suas mentes voltadas para o que o Espírito deseja” (8:5b). Gleason
Archer diz: “‘Inclinam-se’ é phroneo e significa ter algo como a disposição dominante da mente,
hábito de pensamento ou direcção moral. Qual é o teu verdadeiro interesse? Esta é a tua ‘mente’ –
phronema – a palavra usada nos versos 6 e 7.
“A inclinação da carne é morte” (8:6a). Noutro contexto, Knox escreve:
O pecado tem em si o “cheiro” da morte. Compartilha a natureza da morte. Na verdade,
representa a morte já presente em nós, não só ameaçando a nossa vida mas envenenando-a e
destruindo-a. Quem precisa que se lhe explique a natureza destrutiva da cobiça, da
embriaguês, do ciúme ou do orgulho egoísta? Mas estes são apenas manifestações, erupções
duma distorção interior e duma corrupção que é a própria Morte a trabalhar nas nossas almas.
Quando Paulo diz que “a inclinação da carne é morte”, sabemos o que quer dizer.
Porque para Paulo o pecado é sinónimo de morte espiritual, o apóstolo continua: “A inclinação
da carne é morte, mas a inclinação do Espírito é vida e paz” (v. 6). Como dum lado a morte, e
doutro a vida e a paz são realidades mutuamente exclusivas, assim também a mente controlada pela
natureza pecaminosa e a mente controlada pelo Espírito.
A essência da natureza pecaminosa é que ela é “hostil a Deus”. “Não é sujeita à lei de Deus
nem, em verdade, o pode ser” (v. 7). A característica distintiva da natureza pecaminosa é tanto a
sua falta de vontade como a sua incapacidade de se submeter à lei de Deus. Nisto há um contraste
com a natureza humana. Os impulsos e as tendências que surgem da natureza pecaminosa
conduzem sempre a actos de pecado. Não há maneira de os expressar de harmonia com a vontade
de Deus. Por outro lado, os impulsos e tendências que provêm da natureza humana são tais que
podem ser expressos de harmonia com a lei de Deus. De facto, a lei do Senhor é concedida
precisamente para dar orientação e direcção às tendências e impulsos humanos, para que estes
sejam expressos de forma construtiva e não destrutiva.
O antagonismo entre sarx (carne) e Espírito é de tal maneira total que “aqueles que estão na
carne não podem agradar a Deus” (v. 8). A. M. Hills escreve:
Aqui, esta palavra “carne” não pode significar “corpo”. Enoque possuía um corpo: “E
antes da sua transladação alcançou testemunho de que agradara a Deus”. Jesus possuía um
corpo; e o Pai disse d’Ele: “Eis o meu Filho amado, em quem me tenho comprazido”. Não;
a frase “na carne”, assim como “segundo a carne”, significam estar em sujeição a este
princípio do pecado que perverte e perturba toda a nossa sensibilidade, promovendo a
obediência a si própria em vez da obediência à razão iluminada pelo Espírito Santo. “Não
pode agradar a Deus.” Esta é a palavra definitiva. Este princípio do pecado, que infesta o
nosso ser, tem de ser condenado e executado, para que sejamos totalmente leais e agradáveis a
Deus.
D. O Espírito Que Habita, 8:9-14
Naturalmente que se levanta a questão de como se processa esta “execução”. A “condenação”
já aconteceu na Incarnação (8:3). A resposta de Paulo é dada no verso 9a: “Vós, porém, não estais
na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós”. Faz lembrar Rom. 7:5-6:
“Porque, quando estávamos na carne, as paixões dos pecados, que são pela lei, obravam em nossos
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membros para darem fruto para a morte. Mas agora estamos livres da lei, pois morremos para
aquilo em que estávamos retidos; para que sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da
letra”.
A mudança da condição de “na carne” para “no Espírito” tem lugar “se na verdade o Espírito
de Deus habita em vós”. Sanday e Headlam comentam a frase “habita em”: “Oikein en denota
uma influência estabelecida, a qual é permanente e penetrante. São Paulo considera que tal
influência do Espírito de Deus é inseparável da vida mais elevada do cristão.”
Nem tão pouco está o Espírito longe ou inacessível. Paulo comenta imediatamente: “Mas se
alguém não tem o Espírito de Cristo esse tal não é dele” (8:9b). A questão não é a presença ou
ausência do Espírito, mas a medida do Seu controle. Tudo que temos na vida espiritual possuimo-
lo pela agência do Espírito Santo, o Espírito de Cristo. Ao prometer o “Ajudador, o Espírito
Santo” (João 14:26), Jesus disse: “Ele habita convosco e estará em vós” (João 14:17). O que está
em vista nas expressões “habitar em” e “estar em” é uma nova ordem de relacionamento em que a
promessa implícita na regeneração (a santificação inicial) é plenamente realizada na inteira
santificação.
O Espírito que habita em nós não elimina a mortalidade do nosso corpo; Ele traz vida ao
espírito humano (8:10). Mas, contudo, esse Espírito é, usando os termos de Paulo em Efé. 1:14, “o
penhor que garante” a ressurreição do nosso próprio corpo (8:11).
Assim como o Espírito não nos livra da sujeição à morte física, Ele também não elimina a
necessidade de uma constante e consistente disciplina do corpo. “Somos devedores” (v. 12) – não à
natureza pecaminosa, porque viver segundo a carne é morrer espiritualmente (v. 13). O nosso
dever é “pelo Espírito, mortificar as obras do corpo”. O mesmo apóstolo que no verso 2 testifica
que ele foi liberto da “lei poder do pecado e da morte”, diz em I Cor. 9:27: “Antes subjugo o meu
corpo, e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma
maneira a ficar reprovado”. Como escreve Greathouse:
Uma experiência como esta descrita por Paulo tem os seus próprios imperativos. A
nossa obrigação é viver no plano do Espírito (8:12). Isto quer dizer que devemos continuar a
“mortificar” os impulsos do nosso corpo por viver no Espírito (8:13). Observe a terminologia
de Paulo: “A carne” cessou de existir (8:9a), “o corpo” precisa de ser conservado sob a
disciplina do Espírito” (8:13; cf. I Cor. 9:27).
Concluímos, portanto: o pecado original precisa de ser erradicado (aniquilado,
destruído); os nossos impulsos humanos devem ser subjugados (dominados, sujeitados).
Uma e outra coisa acontecem pelo Espírito.
Embora já não esteja “na carne”, “controlado. . .pela natureza pecaminosa”, o crente
santificado permanece “no corpo”, o qual é necessário manter em sujeição à lei de Deus. Significa
“mortificar” – uma separação radical – as “obras condenáveis do corpo”, isto é, os actos
contrários à lei de Deus que brotam da natureza humana com todos os seus instintos, apetites,
tendências, impulsos e necessidades. Nisto somos “guiados pelo Espírito” como é próprio dos
filhos de Deus (8:14).

E. O Espírito e as Nossas Fraquezas, 8:26


A natureza pecaminosa é hostil a Deus, e como tal o crente jamais pode estar “na carne”. A
natureza humana é sujeita à lei de Deus, e na sua fraqueza depende da ajuda do Espírito (v. 26). O
Espírito liberta-nos do pecado (v. 2), mas “ajuda as nossas fraquezas” (v. 26).

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A distinção entre pecado e “fraqueza” não se faz com facilidade, mas é essencial. Aqueles que
seguem Agostinho e Calvino tendem a associar toda a fraqueza e imperfeição humana com o
pecado. Mas o Novo Testamento, não só aqui como em outros lugares, faz uma distinção. Cristo
veio “para salvar o seu povo dos seus pecados” (Mat. 1:21), e como nosso Sumo Sacerdote Ele
pode “compadecer-se das nossas fraquezas”, incluindo o facto de sermos sujeitos à tentação (Heb.
4:15).
O termo “ajuda”, em 8:26, é esclarecedor. Quer dizer literalmente “apoiar alguém, do outro
lado”. O Espírito Santo não elimina as nossas fraquezas; Ele capacita-nos a enfrentá-las com
êxito.

V. CONSAGRAÇÃO
Romanos 12 marca a transição da doutrina para a ética, do “crer” para o “proceder”. Paulo
encerra a discussão da doutrina com um hino (11:33-36); e começa a discussão da parte ética com
uma intimação (12:1-2). Seria um erro grave separar as duas secções da epístola. A doutrina de
Paulo é mal entendida se não virmos que tem exigências éticas, e as suas directrizes éticas são em
tudo baseadas na sua teologia.
Romanos 12:1-2 ecoa a chamada à consagração antes ouvida em 6:13, 19. Na realidade, o
termo usado é o mesmo, um facto obscurecido frequentemente pela tradução. A palavra é
paristimi, usada em 6:13,19 com a conotação de uma entrega para serviço, e em 12:1 no contexto
duma oferta para o sacrifício. Nos dois contextos, o elemento comum é a transferência de posse e
de controle.
A. A Chamada para a Consagração, 12:1-2
Assim como em 6:13, aqui o apelo para a consagração é feito na base duma nova vida em
Cristo – “como vivos de entre os mortos” – e é dirigido àqueles que apreenderam a misericórdia de
Deus, que são “irmãos” por uma fé comum, e cuja oferta é “santa e agradável a Deus” e um acto de
“adoração espiritual”.
Gerald Cragg realça o paralelo entre o “sacrifício vivo” da consagração e os sacrifícios do
Velho Testamento:
Podemos reivindicar que o privilégio mais elevado da nova vida de discipulado é usar
todos os nossos poderes ao serviço de Deus; mas há exigências que não podemos evitar. Sob
a velha dispensação fora decretado que “nenhum sacrifício aleijado ou sem valor” poderia ser
oferecido a Deus; devemos aceitar um padrão igualmente exigente. Sob a lei judaica todas as
exigências ritualistas tinham de ser cumpridas; sob o evangelho cristão é um sacrilégio
apresentar a Deus vidas cujas manchas não tenham sido lavadas pelo arrependimento e pela
renovação. Como podemos aparecer diante d’Aquele que é “tão puro de olhos” que não pode
ver o mal (Hab. 1:13), se “os nossos próprios pecados ainda estão frescos em nós”? Pelo que
Paulo disse, somos do Senhor; por esta razão, devemos ser santos: sermos descuidados no
serviço de Deus é um sacrilégio mais grave do que oferecer sobre o altar um animal impuro.
Ainda mais, essa santidade que é o sinal da vida devota a Deus não é expressa na observação
de rituais esotéricos, mas nas disciplinas da experiência comum. Não é separados da vida
diária, mas sim nela, que servimos a Deus, “sem temor, em santidade e justiça, todos os dias
da nossa vida” (Luc. 1:74-75). Esta é a verdadeira adoração a Deus; é o “culto” apropriado a
seres nos quais se unem qualidades intelectuais e morais.
Oferecer o corpo significa oferecer “toda a pessoa humana, incluindo os meios de se expressar
na vida comum”.
Embora haja aqui uma analogia com o cerimonial judaico, há também uma distinção. A
consagração cristã deve ser um sacrifício vivo. Ernest Best explica:

66
Ele pede um sacrifício de natureza diferente – a própria pessoa; não basta que o crente
ofereça coisas a Deus: as suas posses, o seu tempo, os seus talentos; ele deve oferecer-se a si
mesmo. Tal sacrifício é vivo porque o crente possui uma nova vida (5:12-21; 6:1-14);
também é vivo no sentido em que um animal sacrificado morre, mas o sacrifício de si próprio,
oferecido pelo crente, é vivo e contínuo.
Tal sacrifício vivo tem consequências tanto positivas como negativas. A chamada para a
consagração é um imperativo claro e decisivo – o aoristo do verbo”oferecer, entregar ou
apresentar”. A forma gramatical significa um acto que se completou. Os resultados que se seguem
estão expressos por verbos no tempo presente, o que implica uma acção contínua. O sacrifício já
realizado vive “continuamente”.
O resultado negativo é uma descontinuidade, em espírito e em prática, em relação “ao mundo”.
Na paráfrase inesquecível de J. B. Phillips, Paulo diz: “Que o mundo que nos rodeia não vos
comprima nos seus próprios moldes”. Barclay parafraseia: “Não procureis harmonizar a vossa
vida com todas as modas deste mundo; não sejais como o camaleão que se adapta à cor do seu
ambiente; não vos deixeis levar pelo mundo; não deixeis o mundo decidir como vós deveis ser”.
Erdman diz: “A frase ‘este mundo’ ou ‘era’ significa uma esfera ou forma de vida da qual Deus é
excluído,a essência da qual é o egoísmo e o príncipe, Satanás. Quem pertence a Deus não deve ser
governado por princípios mundanos, por motivos egoístas, por impulsos pecaminosos”.
O resultado positivo da consagração é uma renovação interior – “transformai-vos pela
renovação do vosso entendimento” (12:2). Best comenta que a transformação do cristão “deve
começar no âmago do seu ser – a mente”. Franz Leenhardt escreve:
Aqui, o entendimento significa muito mais do que a faculdade de compreensão; nous
inclui a personalidade vista nos seus aspectos mais profundos, e sugere a consciência que o
homem tem da sua situação real no universo. A auto-consciência metafísica e moral será
renovada porque agora confrontará uma nova realidade. Esta realidade transcendente é Jesus
Cristo.
É esta a renovação do ser humano caído, começada na regeneração. É uma renovação na
imagem de Cristo. Levanta-se até um novo nível e continua “até à medida da estatura da plenitude
de Cristo” (Efé. 4:13). “Ora, o Senhor é Espírito; e onde está o Espírito do Senhor aí há liberdade.
Mas todos nós, com cara descoberta, reflectindo como um espelho a glória do Senhor, somos
transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor” (II Cor. 3:17-
18). Erdman diz:
Alguém que pertence a Deus . . . deve ser “transformado” por aceitar a vontade de
Cristo como o princípio controlador da sua vida e por permitir a habitação permanente do
Espírito de Cristo como o poder dominador da sua vida. O seu carácter e a sua conduta
serão determinados não por uma mera imitação de Cristo, mas pela energia transformadora
duma presença divina que nele reside, irradiando todo o seu ser.
Devido a esta renovação, escrevem Sandy e Headlam, “o princípio intelectual ou racional
jamais será uma nous sarkos (Col. 2:18 – mente carnal), mas estará cheio do Espírito” e portanto
será “renovado e purificado”.
B. Uma Oferta Santificada, 15:16,29
Em Rom. 15:16, Paulo afirma de novo a sua missão como “ministro de Jesus Cristo aos gentios
com a obrigação sacerdotal de proclamar o evangelho de Deus, para que os gentios sejam uma
oferta agradável a Deus, santificada pelo Espírito Santo”. É a obra santificadora do Espírito” (II
Tes. 2:13; I Ped. 1:2) que torna o sacrifício de consagração agradável ao Senhor. Como Wilbur T.
Dayton nota, Paulo “não considera a sua tarefa acabada quando um determinado número de pessoas
ouviram a proclamação do evangelho. O apóstolo fica com o povo até que o evangelho produza

67
fruto não só no perdão dos pecados mas também numa purificação genuína e dedicação da vida
através do Espírito Santo, o que fará da pessoa uma oferta agradável a Deus”.
Em 15:23-32, Paulo desvenda o seu plano de visitar Roma e a razão da demora. Consciente
das incertezas da vida, ele ainda diz: “E bem sei que, indo ter convosco, chegarei com a plenitude
da bênção do evangelho de Cristo” (v. 29) – uma linda descrição da experiência tão completamente
desenvolvida na carta. Gerald Cragg comenta:
A plenitude da bênção de Cristo é uma frase notavelmente feliz. Sugere, por um lado, a
multi-facetada perfeição do dom que Cristo traz ao homem. Qual a área da vida a que o Seu
toque não confere uma maior vitalidade? Há algum departamento em que Ele nos desaponte
nas nossas expectativas? Só quando os homens nos transmitem um evangelho magro e
depauperado existe alguma inconsistência entre as palavras de Paulo e a nossa própria
experiência. E, também, a frase indica a qualidade distintiva, assim como a suficiência total
do que Cristo faz por nós. Enriquecer, mas com uma satisfação que se transforma em alegria
triunfante, é a obra característica do evangelho. Além do mais, a única fonte deste tipo de
experiência é Cristo. Para os escritores do Novo Testamento, Cristo não era uma alternativa
entre outras fontes de tal bênção; não havia “nenhum outro nome. . . dado entre os homens,
pelo qual devamos ser salvos” (Act. 4:12).

68
6

SANTIDADE EM CORÍNTIOS, GÁLATAS E EFÉSIOS

Que Romanos é a palavra definitiva de Paulo quanto às doutrinas da salvação é um facto bem
aceite. Porém, transpira dos seus escritos uma intensa preocupação pastoral pelo desenvolvimento
espiritual das igrejas sob o seu cuidado. As suas outras epístolas tendem a ser peças “ de ocasião”:
isto é, foram escritas para suprir uma necessidade ou solucionar um problema nas várias igrejas a
que foram endereçadas. Mas os assuntos que surgem geralmente têm as suas raízes na área da
consagração e da vida cristã. Por esta razão, as outras obras do apóstolo (com a possível excepção
de Filémon) contribuem todas com dados que auxiliam a nossa compreensão da doutrina,
experiência e ética de santidade.

I. AS CARTAS AOS CORÍNTIOS


A correspondência com a igreja de Corinto demonstra tão claramente como qualquer outra e
mais que quase todas, a tensão que podia existir entre a potencialidade da experiência cristã e a sua
realização. Como diz Bethune-Beker, “embora São Paulo se dirija aos cristãos do primeiro século
como ‘santos’ ou ‘santificados’, está claro nas cartas que lhes escreveu que eles eram santos apenas
em potencial, e que lhes aplicava o termo no sentido de separados (chamados de entre os outros
homens) para um propósito santo, em vez de serem possuidores duma santidade pessoal”.
Assim como em Rom. 1:7, também em I Cor. 1:2; II Cor. 1:1; Efé. 1:1; Fil. 1:1; e Col. 1:2,
todos os cristãos são chamados “santos”. “À igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados
em Cristo Jesus, chamados santos. . . “ (I Cor. 1:2) é a maneira de Paulo se dirigir a uma igreja em
que existiam falhas éticas patentes, bem como aberrações doutrinárias prejudiciais. O termo
traduzido “santos” é hagioi e significa literalmente “os que são santos”.
Paul S. Reese realça que hoje o termo “santo” sugere alguém que foi canonizado pela Igreja
Católica Romana, ou que é purificado e demonstra uma piedade extraordinária. Contudo, no Novo
Testamento, “santo” descreve alguém que foi resgatado, chamado do mundo para a comunhão do
Espírito, um membro do Corpo de Cristo.
A. Uma Ênfase Cristológica, I Cor. 1:30
A ênfase cristológica é preservada no comentário de Paulo em I Cor. 1:30: “Mas vós sois
d’Ele (Deus) em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação,
e redenção”. É importante estabelecermos claramente a verdade de que assim como Cristo é a
nossa sabedoria, nossa justiça e nossa redenção, assim também Ele é a nossa santificação, a nossa
santidade.
H. J. Stolee, um erudito luterano que não concordaria com a maneira de Wesley interpretar a
santidade, faz soar uma nota essencial quando diz: “A verdadeira santidade é activa, mas. . . não
brota de qualquer actividade. O Cristo entronizado é a fonte. O discípulo cheio do Espírito é o
mais humilde e contudo o mais corajoso. Aos seus próprios olhos ele é “menos que o menor”. A
sua vida está cheia do Espírito porque está cheia de Cristo”.
Nunca devemos perder o sentido da centralidade de Cristo no conceito da santidade cristã. Não
há tensão entre Cristo e o Espírito Santo. O Pai, o Filho e o Espírito estão todos envolvidos em
todos os estádios da experiência cristã. Como escreve Samuel Chadwick:
A plenitude de Deus está em Cristo e Cristo vive nos homens pelo Seu Espírito Santo. Ele
próprio é o dom. Traz consigo todas as bênçãos da Graça, Sabedoria e Poder, mas Ele é ao
mesmo tempo o Abençoador e a Bênção. Há na alma um sentido bem real de uma Presença
divina verdadeira. O Espírito torna real a Presença divina. Este é o mistério coroador e a glória
da Graça. A religião cristã não é uma série de doutrinas acerca de Cristo, nem tão-pouco uma
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regra de vida baseada nos ensinamentos e no exemplo de Cristo. Também não é uma tentativa
sincera e zelosa de viver segundo a mente e o espírito de Cristo. É Vida, e essa Vida é a Vida de
Cristo. É a continuação da Vida do Senhor ressurrecto no Seu Corpo que é a Igreja, e no crente
santificado. “Cristo vive em mim” é a essência da religião cristã como apresentada no Novo
Testamento. Não é um sistema, mas uma Presença; o Espírito de Cristo habitando no espírito do
homem.
B. Certeza, I Cor. 2:12
É notável que Wesley tenha citado I Cor. 2:12 frequentemente como evidência da certeza da
perfeição cristã. “Mas nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que provém de
Deus, para que pudéssemos conhecer o que nos é dado gratuitamente por Deus”. No Novo
Testamento, o “testemunho do Espírito” quanto à inteira santificação não é tão claramente afirmado
como o testemunho do Espírito concernente a uma relação filial com Deus, o qual é declarado por
Paulo em Rom. 8:16. E contudo as palavras aqui citadas, como mais tarde I João 3:24; 4:13,
oferecem um apoio bíblico à existência de tal certeza.
C. Uma Classificação, I Cor. 2:14-33
Em I Cor. 2:14-3:3, vimos uma classificação implícita de níveis espirituais, quando Paulo se
refere a três classes de pessoas: (1) naturais ou não espirituais, sem o espírito (2:14); (2) carnais,
ou da carne, ou “mundanas” (3:1-3); e (3) “espirituais” (2:15-16).
A pessoa “natural” ou “não espiritual” e “sem o Espírito” é a pessoa separada da graça
salvadora de Deus. “Carnais” ou “da carne” ou “mundanos” são os “infantes em Cristo” (3:1) cuja
deficiência espiritual é revelada por inveja e contendas entre si, e pela sua conduta como “meros
homens” (v. 3). A pessoa “espiritual” é a condição ideal, capaz de aceitar e discernir as coisas que
vêm do Espírito de Deus, possuindo “a mente de Cristo” (2:14,16).
D. Templos de Deus, I Cor. 3:16-17; 6:19-20
O conceito dum “templo de Deus” humano aparece duas vezes nos primeiros capítulos de I
Coríntios. Em 3:16-17 o plural é usado e significa toda a igreja: “Não sabeis vós que sois o templo
de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o
destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo”.
Em 6:19-20, o corpo físico do crente é identificado como “um templo do Espírito Santo”, um
incentivo poderoso para a pureza sexual (cf. vv. 12-18): “Ou não sabeis que o vosso corpo é o
templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?
Porque fostes comprados por bom preço; glorificai pois a Deus no vosso corpo e no vosso espírito,
os quais pertencem a Deus”. Como diz Donald Metz, “quando o Espírito Santo reside num templo,
este pertence a Deus. . . O Espírito Habitador é Dom de um Deus santo, e não pode habitar num
santuário poluído”.
E. Um Corpo, I Cor. 12:13
O capítulo 12 de I Coríntios trata dos dons do Espírito em relação à unidade da Igreja. Um dos
versículos tem sido muito importante no debate acerca do baptismo com o Espírito. I Cor. 12:13
por vezes é interpretado como se indicasse que o baptismo com o Espírito ocorre na regeneração,
ao ser o crente introduzido no Corpo de Cristo: “Pois todos nós fomos baptizados em por no
original, N. do T. um Espírito formando um corpo, quer judeus, quer gregos, quer servos, quer
livres, e todos temos bebido de um Espírito”.
Admitimos que “por um Espírito” pode ser traduzido “em um Espírito” ou “com um Espírito”.
Porém, “por um Espírito” é a tradução mais fiel. Contudo, algumas Bíblias traduzem “em um
Espírito”, mas inserem uma vírgula, tentando ser fiéis ao contexto: “Pois todos nós fomos
baptizados em um só Espírito, formando um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer servos, quer
livres; e a todos nós foi dado beber de um só Espírito” Edição Contemporânea de Almeida. O
70
Espírito é o Agente, não o veículo deste baptismo aqui mencionado; e, pela “lavagem da
regeneração” (Tito 3:5) simbolizada pelo baptismo com água, todos os crentes são inseridos em um
Corpo. Aqui, se “Espírito” for o veículo do baptismo (como denota a tradução “com” ou “em”),
então haverá uma tremenda confusão de figuras de linguagem quando se sugere que todos “bebem”
de um Espírito. A ideia de que “bebemos do Espírito” tem afinidades com João 7:37-39.
F. O Hino ao Amor, I Coríntios 13
O capítulo 13 de I Coríntios é um clássico de Paulo, o seu “Hino ao Amor”. É o “caminho
mais excelente” (12:11). Foi considerado por João Wesley como um quadro da perfeição cristã.
Num sentido fiel à melhor teologia do Novo Testamento, “Cristo” ou “santidade” são sinónimos de
agapë (amor), e quer Cristo quer “a santidade” podem tomar o lugar de “amor” através de todo o
capítulo.
O comissário Samuel Logan Brengle, do Exército de Salvação, escreveu:
Quer saber o que é a santidade? É amor puro. Quer saber o que é o baptismo do Espírito
Santo? Não é um mero sentimento. Não é uma sensação de felicidade que se desvanece durante
a noite. É um baptismo de amor que traz cada pensamento à submissão ao Senhor Jesus; que
lança fora todo o temor; que queima toda a dúvida e incredulidade como o fogo queima a palha;
que faz com que o indivíduo seja “manso e humilde de coração; que faz alguém odiar a
impureza, a mentira e o engano, a língua lisonjeira e todo o mal, com um ódio completo; que faz
do Céu e do Inferno realidades eternas; que torna alguém paciente e manso com o rebelde e
pecaminoso; que faz o crente “puro, pacífico, moderado, tratável, cheio de misericórdia e de
bons frutos, sem parcialidade e sem hipocrisia”; que leva o crente a uma perfeita e constante
simpatia com o Senhor Jesus Cristo na Sua obra e tarefa de trazer um mundo perdido e rebelde de
novo a Deus.
Numa ilustração penetrante, tirada de uma analogia química, Henry Drummond diz: “As
almas são adoçadas não por ser retirada a acidez, mas por se acrescentar algo – um grande Amor,
um novo Espírito, o Espírito de Cristo. Cristo, o Seu Espírito, penetrando o nosso, adoça, purifica,
transforma tudo. Só isto pode erradicar o mal”.
O Bispo J. Paul Taylor cita um parágrafo memorável de Henry Howard:
Não há déspota como o amor. O amor não tolera rivais, nem aceita a rejeição, nem
efectua compromissos. O amor não pode ser intimidado, ameaçado ou subornado para
abandonar o seu objectivo. Esperará com paciência que nenhuma oposição pode desgastar,
nehuma insolência desencorajar, e nenhuma indiferença amargurar. O seu engenho é
infinito, seus recursos inesgotáveis, a sua resistência é sem fim. Não foge da dor, das
lágrimas, do sangue, para ganhar os seus fins benéficos. Continua a seguir o objecto do
seu desejo com pé firme, com ardor inextinguível e esperança imperecível.
Archibald Hunter reconhece a dificuldade que há em definir agape, o termo do Novo
Testamento que é traduzido “amor”, ou pelo menos a dificuldde em encontrar uma palavra nas
línguas modernas para comunicar o seu significado. Ele escreve:
Num mundo em que “caridade” quase se tornou uma palavra “feia”, e “amar” pode cobrir tudo
desde Hollywood até ao céu, talvez a palavra “cuidar” seja menos inadequada. Mas o significado de
agape não está em dúvida. Como eros no grego é o amor que deseja apaixonadamente e, no sentido
mais baixo, cobiça; e philia significa amizade, afeição mútua entre pessoas que têm o mesmo
sentimento; assim agape é o amor que tenta não possuir mas dar. É um amor que não se poupa a si
próprio.
G. Pureza e Perfeição, II Cor. 7:1
O primeiro verso de II Coríntios 7 apresenta o que Daniel Steele chamava “o paradoxo
wesleyano” – que a santificação é tanto instantânea como progressiva: “Ora, amados, pois que

71
temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aprefeiçoando a
santificação no temor de Deus”.
Aqui, “purifiquemo-nos” encontra-se no aoristo e indica um acto visto como completo e
terminado. “Aperfeiçoando”, por outro lado, é o particípio presente e sugere um processo contínuo.
Gramaticalmente, é possível argumentar que o aoristo de “purificar” controla o tempo de
“aperfeiçoar”, e que ambos devem ser considerados como instantâneos e completos. Muitos
interpretam-nos deste modo.
Outros eruditos wesleyanos interpretam a passagem no sentido de um acto instantâneo seguido
de um processo. “Santidade” é hagiosun, uma forma gramatical que normalmente sugere a
manifestação da santidade (hagiasmos) na conduta pessoal. Steele escreve: “O dever de . . .
aperfeiçoar a santidade é uma obra progressiva”. J. Harold Greenlee traduz o versículo assim:
“Purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, completando a santidade. . .” Frank
G. Carver escreve:
Nesta passagem de Coríntios o particípio presente aperfeiçoando enfatiza o progresso ético
prático em direcção à plenitude da semelhança com Cristo (cf. 3:18; I João 3:2). Isto fará
constantemente parte da vida diária daqueles que vivem no temor de Deus (cf. 5:10-11). Há
aqui um paradoxo. Aqueles que em Cristo Jesus têm entrado num relacionamento santificado
com Deus (cf. I Cor. 1:2, 30; Heb. 2:11; 10:10, 14, 20; 13:12), têm de tentar alcançar o ideal
ético desse relacionamento; a santidade é tanto um dom como uma tarefa. Significa: Torna-te
no que és!
Definida como a purificação do pecado interior, a santidade é aperfeiçoada no instante da
inteira santificação. Definida como conformidade com a natureza de Cristo, a purificação é a
qualificação essencial no processo de atingir a “plenitude de Cristo” (Efé. 4:13).
H. Consagração, II Cor. 8:5
Um parêntese interessante sobre a natureza da consagração cristã aparece na discussão de Paulo
acerca da oferta levantada nas igrejas gentias para a comunidade cristã de Jerusalém. Paulo escreve
acerca dos macedónios que “não somente fizeram como nós esperávamos, mas a si mesmos se
deram primeiramente ao Senhor, e depois a nós, pela vontade de Deus” (II Cor. 8:5). A
consagração inclui a auto-dedicação in toto ao Senhor – um acto decisivo num dado momento.
Depois seguem-se resultados contínuos – “depois a nós em relação à obra do Reino, pela vontade
específica de Deus”.
I. A Perfeição, II Cor. 13:9
Uma passagem de carácter diferente acerca da “perfeição” aparece em 13:9: “Porque nos
regozijamos de estar fracos, quando vós estais fortes; e o que desejamos é a vossa perfeição”.
Aqui, “perfeição” não é teleios, como em Mat. 5:48. É katariz, e significa “tornar apto, completo
(artios). . . orientar ou arranjar correctamente . . . suprir o que é necessário”.
A implicação de tais palavras é afirmada por H. L. Goudge no seu Comentário à Epístola de I
Coríntios:
Diz-se frequentemente que “aqui não se pode ser perfeito”. Ora, é verdade que aqui não
podemos atingir a nossa estatura espiritual completa. . . . É também verdade que de facto
“todos tropeçamos em muitas coisas” (Tiago 3:2). Mas não é de forma alguma verdade que
um certo nível de pecado seja inevitável. Todos os pecados, vistos individualmente, poderiam
e deveriam ter sido evitados pelo cristão. O que é inevitável não pode ser considerado pecado
no verdadeiro sentido. Grande parte da linguagem popular nega que a salvação de Deus seja
completa. Mas isto é contrário ao ensino universal das Escrituras (Isaías 60:21; Jeremias
31:33-34; Romanos 8:1-5), que nos asseguram que as nossas falhas são devidas não a
qualquer deficiência na obra da salvação quanto ao seu lado divino, mas à nossa falta em
corresponder a essa obra (II Cor. 6:1). . . A salvação de Deus traz sempre o poder de Lhe
72
obedecer. Se realmente somos incapazes de o fazer, não nos encontramos de modo algum
num estado de salvação.
Expressões semelhantes encontam-se em Vincent Taylor: “Sem dúvida o Novo Testamento
ensina a necessidade absoluta da perfeição ética e espiritual ou, se preferirmos, a sua obtenção. O
Novo Testamento nada sabe duma reconciliação com Deus que não almeje isto apaixonadamente”.
As falar dos ensinos de Wesley, W. E. Sangster diz: “A sua reivindicação de que o tom geral do
Novo Testamento indica a necessidade de uma perfeição ética e espiritual pareceu-nos
indisputável”.

II. GÁLATAS
Gálatas é a defesa apaixonada da liberdade cristã feita por Paulo contra aqueles que continuam
a lutar a favor das provisões cúlticas e cerimoniais do Velho Testamento. Tradicionalmente a carta
tem sido agrupada com Romanos, I e II Coríntios, e a sua data estabelecida por volta de 55 da nossa
era. Alguns estudiosos mantêm que foi escrita antes, e que é a primeira das epístolas de Paulo.
Dizem que Gálatas foi escrita nas vésperas do Concílio de Jerusalém, cerca do ano 50 d.C. Neste
caso, “Galácia” (1:2) seria a província política em vez da área geográfica deste mesmo nome, e as
igrejas incluiriam Perge, Pisídia, Antioquia, Icónio, Listra, Derbe, etc. (cf. Act. 14:21-25). Como
escreve A. M. Hunter:
Mas o argumento verdadeiramente forte para se crer que a carta foi escrita antes do
Concílio é o seu silêncio total acerca do decreto apostólico de Actos 15. Este decreto,
resolveu o assunto em questão na Galácia, isto é, que os crentes gentios não precisavam de ser
circuncidados. Se Paulo estivesse a escrever depois do Concílio, tudo que seria necessário
para silenciar a controvérsia era citar tal decisão.
A. Crucificado com Cristo, Gál. 2:20
O conceito de crucificação com Cristo encontrado em Rom. 6:6 ocorre outra vez em Gál. 2:20
– “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que
agora vivo na carne vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por
mim”. Macgregor comenta: “Quando os homens morrem com Cristo na cruz, Ele começa a viver
neles pelo Espírito”. Raymond T. Stamm escreve:
A crucificação com Cristo significa três coisas: (a) Participação nos benefícios da morte
de Cristo, incluindo a liberdade da lei, perdão dos pecados do passado e uma urgência
fervorosa em nunca mais pecar (Rom. 4:24-25; II Cor. 5:14,15; Col. 2:12-15, 20; 3:1-4).
(b) Uma comunhão moral e espiritual com Cristo na sua morte e ressurreição, a qual provoca
uma determinação da vontade do crente e a sujeita à “mente de Cristo”, substituindo a lei
como orientação para a vida (II Cor. 10:3-6; Fil. 3:10; Rom. 6:1-11). (c) Uma cooperação
com Cristo no Seu sofrimento redentor, a qual requer que o cristão complete “o que resta das
aflições de Cristo”, por amor do Seu corpo, a Igreja (Col. 1:24-25; 3:5; Rom. 8:17).
Neste caso, comparada com “fui ou mesmo “tenho sido” crucificado com Cristo”, a tradução
“já estou crucificado com Cristo” representa melhor os resultados contínuos da crucificação
implicados no tempo perfeito do verbo original.
Muitos comentaristas aplicariam estas palavras à experiência inicial da salvação. Mas o
contexto, como também em Romanos 6, regista a impossibilidade de se continuar a pecar na vida
justificada: “Pois, se nós, que procuramos ser justificados em Cristo, nós mesmos também somos
achados pecadores, é porventura Cristo ministro do pecado? De maneira nenhuma” (Gál. 2:17).
Em vez de reedificar o que foi destruído e assim tornar-se transgressor da lei, morre-se para a lei
pela crucificação com o Salvador (vv. 18-20).
De novo, como em Rom. 6, o que é crucificado não é o “eu”, o qual é o cerne da
personalidade. Como escreve E. Stanley Jones:

73
O mundo falso, anormal, do pecado e do mal, o falso eu organizado à volta do
egoísmo, tem de morrer. Quando Paulo disse: “Já estou crucificado com Cristo”,
significava que esse mundo falso e esse falso eu estavam crucificados. Não que o seu
próprio eu, o eu real, tivesse sido aniquilado ou apagado, pois logo a seguir diz: “E vivo,
não mais eu”. Fora purificado pela crucificação do eu falso, esse corpo da morte que se lhe
agarrara.
O que tem de morrer, comenta Richard E. Howard, não é “a personalidade essencial, ou o que
por vezes se chama a auto-crucificação. É o velho eu, miseravelmente depravado pelo pecado. A
terminologia de Paulo é estranha ao modo moderno de pensar, mas ainda descreve uma verdade
bem conhecida na experiência humana”.
Num testemunho eloquente, Jones escreve: “Eu depus aos Seus pés um eu do qual me
envergonhava, que não podia controlar, com o qual não podia viver; e, para minha admiração, Ele
tomou esse eu, formou-o de novo, consagrou-o para o propósito do Seu Reino e devolveu-mo: um
eu com o qual posso agora viver alegre, jubilosa e confortavelmente
Paul S. Rees cita o valor experimental de Gál. 2:20 na vida de Prebendary Webb-Peploe da
Igreja Anglicana:
Escutem esse distinto ministro da Igreja Anglicana, Prebendary Webb-Peploe, que por
muitos anos com as suas exposições eruditas das Escrituras arrebatou os milhares que
frequentavam a convenção de Keswick, no Distrito de Lagos, Inglaterra: “Por muitos anos
eu fui um ministro e fiel pregador da doutrina da justificação, mas não tinha alegria
permanente, nem descanso no meio da tribulação, nem calma nas perturbações da vida; eu
estava carregado e sobrecarregado, até que senti que teria um esgotamento”. Então veio-me
uma nova luz de Deus, e respondi em fé a essa luz. Houve o testemunho dado pessoalmente
por Sir Arthur Blaclwood. E houve o texto iluminado na parede: “A minha graça te basta”.
Veio depois a reacção instantânea e irritadiça da alma frustrada: “Não basta, não!” E o
grito silencioso e desesperado: “Senhor, faz com que a Tua graça seja suficiente!” Seguido
da Voz Interior que repreendia: “Louco, como te atreves a pedir a Deus que faça o que já
fez?” E, a seguir, a rendição: “Oh Deus, o que dizes na Tua palavra eu creio e, baseada
nela, avançarei”. Vindo também a palavra reveladora e tranquilizadora de Gálatas 2:20:
“Não eu, mas Cristo vive em mim”.
Finalmente – a libertação! A libertação de uma mente dividida e de um coração aflito!
Disse Webb-Peploe: “Quando veio a verdade – ‘não eu, mas Cristo vive em mim’ – o
descanso da fé tornou-se uma realidade prática na minha vida”.
B. Fé e a Promessa do Espírito, Gál. 3:2-3, 14
A função da fé em experimentar tudo que está incluído na “promessa do Espírito” está indicada
em Gálatas 3. Com perguntas retóricas em que as respostas estão implícitas, Paulo inquire: “Só
quisera saber isto de vós: recebestes o Espírito pelas obras da lei, ou pela pregação da fé? Sois vós
tão insensatos que, tendo começado pelo Espírito, acabeis agora pela carne?” (vv. 2-3). Pelo
contrário, Deus nos resgatou “para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios por Jesus Cristo, e
para que pela fé nós recebamos a promessa do Espírito” (v. 14).
C. A Carne e o Espírito, Gál. 5:17-24; 6:14
Gálatas 5 inclui uma afirmação clássica da luta entre “a carne e o Espírito”, a qual, com
Romanos 7, é considerada frequentemente como sendo normativa para a vida cristã mais elevada:
“A carne sarx cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro,
para que não façais o que quereis” (v. 17). Aqui, sarx (“carne”) não significa corpo ou natureza
física, como se pode ver pela lista detalhada que o apóstolo fornece das “obras da carne”:
“Prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas,
dissensões, heresias, invejas, homicídios, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas, acerca

74
das quais vos declaro, como já antes vos disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o reino
de Deus” (vv. 19-21).
Em total contraste com os “actos da natureza pecaminosa” está “o fruto do Espírito: “amor,
gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança” (vv. 22-23).
A crucificação referida em 2:20 emerge de novo em 5:24 onde o objecto da crucificação é a
“natureza pecaminosa com todas as suas paixões e concupiscências”. Tal crucificação diz respeito
“àqueles que são de Cristo Jesus”. Pertencer a Jesus Cristo no seu sentido pleno inclui três estádios:
(1) Somos de Cristo pela criação – Ele nos fez; (2) somos de Cristo pela Cruz, por redenção – Ele
nos comprou; e (3) somos de Cristo pela consagração – a auto-submissão daqueles que já estão
“vivos dentre os mortos” (Rom. 6:13).
Assim como Rom. 7:14-25 deve ser interpretado de acordo com o seu contexto em Romanos 6
e 8, assim também Gál. 5:17 deve ser interpretado de harmonia com o v. 24. A luta interior –
respeitante à “natureza pecaminosa” – termina quando essa natureza é crucificada. Pensar em
“crucificação” apenas como um “morrer” contínuo que nunca resulta em “morte” definitiva é
perder o sentido bíblico e também o sentido natural do termo.
Em Gál. 6:14 Paulo, pela terceira vez, volta ao conceito de crucificação – “Mas longe esteja de
mim gloriar-me, a não ser na cruz de Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para
o mundo”. Pela cruz, o mundo tornou-se uma coisa morta, e o cristão crucificado “morre para” o
mundo.

III. EFÉSIOS
Efésios e Colossenses têm sido chamadas “as Espístolas gémeas”. Aproximadamente metade
dos versículos de Efésios têm um paralelo em Colossenses. É possível que Efésios seja uma carta
circular escrita um pouco depois de Colossenses, e que desenvolve mais completamente algumas
das suas ideias. Como aparece nas nossas Bíblias, é a primeira das “Epístolas da Prisão” – também
incluindo Filipenses, Colosssenses e Filémon – oriundas de Roma, perto do ano 60 d.C.
A ênfase principal de Efésios é a Igreja, ênfase esta desenvolvida sob três metáforas, cada uma
relacionada com o Espírito:
(1) A Igreja é o edifício ou templo de Deus, para ser a Sua habitação através do Espírito (2:20-
21).
(2) A Igreja é o Corpo de Cristo – para crescer na unidade do Espírito vivificador até à
plenitude de Cristo (1:23; 2:14-16; 4:4, 12, 16; 5:23, 30).
(3) A Igreja é a Noiva de Cristo, “amada por Ele até à entrega sacrificial, purificada por um
baptismo que resulta em consagração sem mácula (um baptismo de água que representa o baptismo
interior do Espírito)” (5:25-27; cf. 1:13-14; 3:16; 5:23, 30; 6:18).
A. O Espírito Santo em Efésios
Efésios dá ênfase especial à obra do Espírito Santo na Igreja. Doze vezes em seis curtos
capítulos, e pelo menos uma vez em cada capítulo, Paulo fala do Espírito. Como crentes, somos
“selados com o Espírito Santo da promessa. O qual é o penhor da nossa herança, para redenção da
possessão de Deus, para louvor da sua glória” (1:13-14). Paulo pede: “Que o Deus do nosso
Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de
revelação” (v. 17).
Todos nós “temos acesso ao Pai por um Espírito” (2:18), e “somos edificados para morada de
Deus em Espírito” (v. 22). O “mistério de Cristo. . . agora tem sido revelado pelo Espírito” (3:4-5).
Paulo ora para que Deus, “segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que sejais corroborados

75
com poder pelo seu Espírito no homem interior; para que Cristo habite pela fé nos vossos corações”
(vv. 16-17).
Devemos “guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” porque “há um só corpo e um só
Espírito” (4:3-4). Devemos não entristecer “o Espírito Santo de Deus, no qual estais selados para o
dia da redenção” (4:30), “mas devemos encher-nos do Espírito” (5:18). Na nossa armadura cristã
temos “a espada do Espírito que é a palavra de Deus”, e devemos orar “em todo o tempo com a
oração e súplica no Espírito” (6:17-18).
B. Escolhidos para Ser Santos, Efé. 1:4
Efésios 1:3-14 tem sido chamado “Um Hino de Salvação”. Dá ênfase à origem da bênção da
salvação, v. 3; à salvação decretada antes do princípio do tempo, vv. 4-6; e à salvação efectuada
no tempo, vv. 7-14.
O propósito eterno de Deus para o Seu povo é declarado firmemente: “Como, também, nos
elegeu nele, antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis, diante dele
em amor” (1:4). A escolha (eleição) não é incondicional e arbitrária, pois “os eleitos não são
constituídos por decreto absoluto, mas pela aceitação das condições da chamada de Deus”.
Como escreve E. F. Scott, “Aqueles que são ‘santos’ também devem ser moralmente
irrepreensíveis. A sua eleição por Deus impõe-lhes a obrigação de levar uma vida que o Próprio
Deus poderá aprovar”. Willard H. Taylor comenta:
Santo (hagios) expressa o propósito positivo da escolha de Deus em relação à experiência
humana. Aqui, pretende-se mais do que a santidade cerimonial; isto é, mais do que uma mera
diferença oriunda de separação para Deus. Santo expressa uma diferença moral interior, que
prevalece quando a graça de Deus opera no coração. Este facto está plenamente indicado na segunda
palavra que descreve o resultado de sermos escolhidos por Deus, a qual é irrepreensíveis (amonos). .
. . Santo refere-se à qualidade espiritual interior, enquanto que irrepreensíveis se refere à conduta
exterior da vida.
C. Oração pela Igreja, Efé. 3:14-21
Em 3:14-21, a grande oração de Paulo pela Igreja inclui quatro petições directamente
relacionadas com o cumprimento do propósito de Deus para que os crentes sejam “santos e
irrepreensíveis”. A primeira é que o Pai “vos conceda que sejais corroborados com poder, pelo seu
Espírito, no homem interior” (v. 16). Taylor observa:
A frase que sejais corroborados é um infinitivo aoristo (krataiothenai), que sugere
uma crise ou acção realizada num dado momento. Paulo parece estar a falar daquela
segunda experiência do crente, em que “o Espírito Santo da Promessa, o Senhor do
Pentecostes, o Espírito Conselheiro e Forte”, purifica e dá poder ao coração. Isto não é
uma obra superficial. Acontece no homem interior, no “eu verdadeiro e permanente”.
Este poder é “para que Cristo habite em vossos corações pela fé” (v. 17). William Barclay diz:
“A palavra que Paulo usa para ‘Cristo habitar’ nos nossos corações é o termo grego katoikein, o
qual é usado para designar uma morada permanente e não temporária”. Moule comenta que neste
sentido a vinda de Cristo é “tão profunda e tão grande que practicamente corresponde a uma nova
vinda, não a dum Visitante que pouco se detém, mas a dum Dono que reside em Sua própria casa”.
O crente assim habitado por Cristo através do Espírito será “arraigado e fundado em amor e
poderá perfeitamente compreender, juntamente com todos os santos, qual a largura, e o
comprimento, e a altura, e a profundidade . . .do amor de Cristo, que excede todo o entendimento”
(vv. 17-19). Charles Hodge, Calvinista ferrenho, escreve: “Este amor de Cristo, embora ultrapasse
o nosso entendimento, é ainda assim um objecto de conhecimento experimental. Podemos saber
quão excelente, quão maravilhoso, quão livre, quão desinteressado, quão longânimo é, e que é

76
infinito. . . .Os que deste modo conhecem o amor de Cristo purificam-se a si mesmos, assim como
ele é puro”.
A petição final é que “sejais cheios de toda a plenitude de Deus” (v. 19). Francis W. Beare diz:
“Esta é a petição culminante desta oração, o climax de todas as dádivas que o escritor deseja para os
seus leitores. A sua essência é que a vida deles deve avançar em tudo do parcial para o completo,
que eles devem atingir a plenitude que pertence a Deus e que Este outorga através de Cristo”. Ser
“cheios do Espírito” (5:18) e “cheios de toda a plenitude de Deus” (v. 19) representa a “plenitude
da bênção do evangelho de Cristo” que Paulo menciona em Rom. 15:29.
D. Um Apelo Geral, Efé. 4:17-24
O “Apelo Geral” de Paulo em 4:17-24 tem sido interpretado de várias maneiras. As diferenças
de interpretação mais significativas têm a ver com os termos “velho eu” e “novo eu”, ou “velho
homem” e “novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira justiça e santidade”; e com a
interpretação dos infinitivos “despojar” e “revestir-se”. O problema levanta-se porque o infinitivo
grego pode ser entendido como uma simples declaração ou ter a força de um imperativo.
A Versão de Almeida traduz os infinitivos como imperativos: “Que, quanto ao trato passado,
vos despojeis do velho homem, que se corrompe pelas concupiscências do engano; e vos renoveis
no espírito do vosso sentido; e vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em
verdadeira justiça e santidade” (vv. 22-24). A Nova Versão Internacional, por outro lado, traduz
esta passagem de forma a manter a ambiguidade do original: “Quanto à antiga maneira de viver,
vocês foram ensinados a despir-se do velho homem, que se corrompe por desejos enganosos, a
serem renovados no modo de pensar e a revestir-se do novo homem, criado para ser semelhante a
Deus em justiça e santidade provenientes da verdade” – “a santidade que não é uma ilusão”
(Phillips, Cartas às Igrejas Novas).
A questão é se Paulo está a descrever a mudança da vida não regenerada para a vida cristã,
como algo já efectuado, ou se está a exortar os cristãos a tratarem decisivamente da natureza
corrompida, através de uma experiência de inteira santificação. Os infinitivos “despojar” e
“revestir” são aoristos, sugerindo uma acção definida, que pode ser datada. Archibald Hunter diz:
“As metáforas provêm de vestir e despir, e no grego original os tempos dos verbos referem-se a
uma mudança que deve ter lugar de uma vez por todas”. Vestir-se “do novo homem, que segundo
Deus é criado em verdadeira justiça e santidade”, parece-se muito com uma referência àquilo que
Paulo descreve em I Tess. 5:23 como ser santificado “em tudo”.
Portanto, o “despojar” e o “revestir” são acções definidas que resultam num processo contínuo
sugerido pelas palavras “vos renoveis no espírito do vosso sentido” (v. 23). Àcerca de “despojar (v.
22) e “revestir (v. 24), Beare diz: “Ambos os infinitivos são aoristos e fazem referência a uma
mudança que se opera uma vez para sempre; vos renoveis, por outro lado, é um infinitivo presente
e significa um processo contínuo (cf. II Cor. 4:16: ‘O homem interior se renova de dia em dia’)”.
Taylor diz: “Um versículo paralelo, da autoria de Paulo, é Rom. 12:2: ‘E sede continuamente
transformados pela renovação da vossa mente’ (tradução literal). Esta renovação não resulta do
esforço humano; é obra do Espírito Santo sobre o espírito humano. A transformação acontece
quando o indivíduo se submete à liderança do Espírito”.
E. Cheios do Espírito, Efé. 5:18
A exortação “enchei-vos do Espírito” (5:18) está no tempo presente e podia ser traduzida
“Continuai sendo cheios do Espírito”. Está na voz passiva – o enchimento é para ser recebido, não
alcançado; e é plural – todos os crentes devem ser cheios. “Que o Espírito tome a posse total.”
Não se pode dizer que esta exortação seja parte de uma passagem distintamente teológica. Pelo
contrário, fica no meio dum parágrafo que trata dos assuntos mais práticos e comuns da vida cristã:
cuidar da maneira como se vive; não ser insensato, mas sábio; aproveitar todas as oportunidades;
77
entender qual a vontade de Deus; renunciar à embriaguês; falar uns aos outros com salmos, hinos
e cânticos espirituais; e dar ao Pai constante acção de graças. Taylor observa:
A experiência diária do crente deve corresponder a ser cheio do Espírito. A forma enchei-vos
é um imperativo presente e pode ser traduzida “sede continuamente cheios do Espírito”. Mas é
lógico que um crente não pode continuar a estar cheio, a não ser que numa dada altura tenha sido
cheio, como aconteceu no dia de Pentecostes. Comenta Ralph Earle: “Esta não é uma experiência
transitória, mas permanente”. Os verbos no presente que aparecem em 19-21 sugerem que aqui
Paulo não está a chamar os leitores à experiência instantânea da inteira santificação, mas sim à vida
subsequente, na qual o Espírito Santo nos enche momento a momento, já tendo sido “selados com o
Espírito da promessa” (1:13; cf. 4:20).
F. O Amor Santificador de Cristo, Efé. 5:25-27
Na exortação de Paulo à submissão mútua no lar (5:21-6:9) há uma declaração do propósito e
do efeito do amor de Cristo pela Sua Igreja: “Vos, maridos, amai vossas mulheres, como também
Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a
lavagem da água, pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga,
nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível” (5:25-27).
Os gramáticos diferem quanto à interpretação do aoristo “purificar” em relação ao verbo
principal “santificar”. Algumas versões, incluindo a tradução de Taylor, traduzem-no “tendo
purificado”. Beare e outros coordenam “purificar” com “santificar”, ou tornar santo. E diz que “o
aoristo expressa uma acção coincidente”. Henry Alford diz: “Hagiase santificar e katharisas
purificar podem ser contemporâneos; de facto, no Novo Testamento este é o uso mais comum do
particípio passado associado ao pretérito prefeito dos verbos finitos”. E continua dizendo que,
como a santificação é um processo gradual (na sua opinião), a purificação tem de a preceder.
Os eruditos de persuasão wesleyana, que preferem a acção antecedente da purificação,
relacionam esta com a santificação inicial, a lavagem da “depravação adquirida”. Esta
interpretação é realmente necessária se “a lavagem da água pela palavra” for identificada com o
baptismo com água ou com aquilo que o baptismo com água significa. É pelo menos possível,
porém, que neste caso a água seja usada como símbolo do Espírito Santo em relação ao poder
santificador da Palavra mencionado por Jesus em João 17:17.
A preferência de Taylor por “havendo purificado” já foi notada. Ele também escreve:
A frase pela palavra não pode significar nem a fórmula do baptismo nem a confissão do
que o recebe; ela refere-se ao evangelho, ou à palavra de Deus. Deve ser ligada à palavra
santificar e não a purificar. De harmonia com esta análise, a trandução seria: “Cristo
santifica a Sua Igreja pela palavra, tendo-a já purificado com a lavagem da água”. Em João
17:17 relata-se que Cristo orou: “Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade”. A
palavra de Deus é o meio ou instrumento por que se realiza a purificação mais profunda que
vem após a conversão. Esta segunda bênção é administrada pelo Espírito Santo quando o
convertido aceita pela fé a morte meritória de Cristo.
De qualquer modo, salientam-se duas verdades importantes: (1) A santificação da Igreja é uma
das razões para a auto-entrega de Cristo na Cruz (cf. Heb. 13:11). Somos santificados pelo Seu
sangue, tanto quanto justificados por esse sangue, como se vê em Rom. 5:8. (2) O efeito da
santificação é tornar o seu objecto “radiante”, “santo e irrepreensível”. Isto não significa ausência
de “falhas”, uma condição que não existe nesta vida. É viver sem ter a culpa do pecado no coração
ou na vida.

78
7

SANTIDADE EM FILIPENSES, COLOSSENSES, TESSALONICENSES


E EPÍSTOLAS PASTORAIS

I. FILIPENSES
A carta de Paulo à igreja em Filipos é uma das mais calorosas e pessoais de todo o Novo
Testamento. Foi escrita como expressão de gratidão pela generosidade dos filipenses em ministrar
às necessidades do apóstolo durante o seu encarceramento romano. Bengel afirmou que ela podia
ser resumida em duas frases: “Eu regozijo-me. . . Regozijai-vos”.
Embora escrita da prisão, Filipenses deixa transparecer uma atmosfera de serenidade e louvor.
Archibald Hunter diz que lhe faz lembrar uma carta escrita por Martin Niemoller, de um campo de
concentração alemão para um amigo na Grã Bretanha: “Antigamente eu costumava ser um
sustentador do Evangelho; agora esse Evangelho está a sustentar-me”.
Conquanto Filipenses não trate primariamente de doutrina ou ética, contém ambos os
elementos. Certamente que uma das passagens cristológicas mais notáveis saídas da pena de Paulo
é a passagem “kenótica” em 2:3-20.
A. Aos Santos, Fil. 1:1
Como acontece em seis das nove cartas de Paulo dirigidas às igrejas (constrastando com as que
se destinam a indivíduos), o apóstolo dirige-se aos destinatários como santos (1:1; cf. II Cor. 1:1;
Efé. 1:1; Col. 1:2; ou chamados para ser santos, Rom. 1:7; I Cor. 1:2). John Allen Knight
salienta que,
literalmente, “santos” (hagios) refere-se àqueles que foram postos à parte para servir a Cristo,
separados e diferentes do mundo. Pertencem a Deus e devem ser como Ele. São a Sua
possessão adquirida e a Sua propriedade particular. O termo é equivalente a crentes ou
pessoas regeneradas, e indica os que foram “lavados” do pecado e colocados no caminho do
amor, da maturidade moral e espiritual (I Cor. 6:9-11; I Ped. 1:2). . . Neste sentido, todos os
crentes experimentam a santificação inicial (I Cor. 1:2; 6:11). “É o Espírito quem santifica;
mas Ele faz isto enquanto nos enraíza e nos edifica em Cristo. Portanto, os santos são
santificados pelo Espírito, ou do Espírito; mas são santificados (ou santos) em Cristo Jesus”.
A inteira santificação ocorre quando o coração é limpo de todo o pecado e cheio com o
Espírito Santo (Act. 15:8-9).
“No seu sentido neo-testamentário “santos” não se refere a pessoas portadoras de halos, mas
sim a cristãos consagrados.”
B. A Mente de Cristo, Fil. 2:5-11
Ernest F. Scott chama a estes versículos “a grande passagem que é glória principal da Epístola
aos Filipenses”. A sua referência principal é, evidentemente, a cristologia inigualável da passagem
“kenótica”, nos vv. 6-11. A NVI dispõe estes versículos em forma poética, sugerindo que Paulo
poderia estar a citar um hino cristão antigo.
O apóstolo introduz a elevada teologia desta passagem com palavras que têm um valor muito
prático: “Haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (v. 5), ou “Seja a
atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus” (NVI). Esta era uma das descrições frequentemente
usadas por João Wesley para a perfeição cristã. O termo traduzido “sentimento” é phronein e
“significa a atitude ou disposição geral da mente”. “Denota uma disposição geral da mente em vez
de um pensamento ocasional acerca de determinado assunto”.
Há aqui um paralelo com Rom. 8:6-7, onde o mesmo termo (phronema) é usado na frase “a
mente do Espírito”. A inclinação do Espírito é a inclinação de Cristo e deve caracterizar o cristão.
79
Scott diz, referindo-se aos crentes a quem Paulo escrevia: “Como cristãos, do que necessitam é de
uma disposição interior que os dirija em tudo que fazem”.
C. A Perfeição: Alvo e Experiência, Fil. 3:12-15
Em Fil. 3:12-15, Paulo contrasta uma perfeição que é um alvo a ser alcançado só na
ressurreição, com uma maturidade ou perfeiição que é possível agora: “Não que já a tenha
alcançado i.e., a ressurreição dos mortos, ou que seja perfeito; mas prossigo para alcançar aquilo
para o que fui também preso por Cristo Jesus. Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja
alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando
para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prémio da soberana vocação de Deus
em Cristo Jesus. Pelo que todos quantos já somos perfeitos teleios, o mesmo termo traduzido
‘perfeito’ no v. 12, sintamos isto mesmo”.
A tradução e o comentário que João Wesley faz do v. 12 são muito úteis: “Não que eu. . .seja
já aperfeiçoado – há uma grande diferença entre um que é perfeito e aquele que é aperfeiçoado. O
primeiro está apto para a corrida (v. 15); o outro, pronto para receber o prémio”. E. F. Scott diz:
“A palavra também descreve algo que se torna naquilo para que de facto foi criado”.
Paul S. Rees excreve a respeito do termo “perfeito” (teleios) do v. 15:
Não a perfeição absoluta: isso seria fantástico. Não a perfeição legal: isso seria retornar à
lei e afastar-se da graça. Não a perfeição de serviço: isso seria fechar os olhos à inépcia e
dificuldades que são óbvias. Não a perfeição de comportamento: isso seria ignorar uma centena
de defeitos. Não a perfeição impecável: seria insinuar um estado idêntico ao do nosso Senhor,
“que nunca pecou”.
O que é então? Chamemo-lo perfeição de afecto e disposição. É dom do próprio Deus aos
Seus filhos totalmente consagrados, os quais, renunciando à satisfação de si mesmos ou à dos
homens, são imbuídos de um intenso e ardente desejo de Lhe agradar em todas as coisas.
Nos versículos que imediatamente precedem o v. 12, há a sugestão de uma das muitas coisas
que a perfeição cristã pode significar: unicidade de propósito. “Desejar uma só coisa” é o bem
conhecido equivalente de Sören Kierkegaard para “puro de coração”. Quando essa única coisa é a
vontade de Deus, a definição não está longe da verdade. A entrega total à vontade de Deus e a
aptidão para a realizar estão bem próximas do âmago da santidade bíblica. Como notou Oswald
Chambers, “a perfeição não significa plena maturidade e a totalidade do potencial humano, mas
perfeita aptidão para fazer a vontade de Deus”. E. Stanley Jones comenta acerca deste mesmo
ponto:
O homem que não pode dizer: “Esta coisa faço”, tem de dizer “Nestas muitas coisas eu
toco”. Porque as forças da sua alma não estão fundidas numa só – ele apenas consegue tocar
nas coisas em vez de as fazer. O Espírito Santo elimina o conflito assim como a
contaminação. Os raios difusos do sol, sem se concentrarem, não conseguem atear um fogo;
mas quando através de uma lente se concentram num ponto, incendeiam esse ponto.

II. COLOSSENSES
Colossenses é uma carta dirigida a uma igreja ameaçada por uma heresia que depreciava a
unicidade da obra de Cristo e impunha aos crentes um falso ascetismo. Por isso Paulo põe uma
ênfase dupla na pessoa e na obra de Cristo (cc. 1-2) e nas implicações da nova vida n’Ele (cc. 3-4).

A. O Propósito da Reconciliação, Col. 1:22-23

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Em Col. 1:22-23, Paulo declara como propósito da reconciliação com Deus “perante Ele vos
apresentar santos, e irrepreensíveis, e inculpáveis, se, na verdade, permanecerdes fundados e firmes
na fé, e não vos moverdes da esperança do evangelho . . .” John B. Nielson escreve:
Estas palavras estabelecem a santidade escriturística. A rectidão e a santidade bíblicas
residem no motivo ou intenção. Paulo (Rom. 13:10; Gál. 5:14) concorda com Jesus (Mar.
12:28-31). As três palavras santos, irrepreensíveis e inculpáveis indicam uma condição
espiritualmente perfeita, bem como uma posição; são praticamente sinónimas. Quando o
motivo é puro, quando o amor é o único princípio que guia a conduta, o crente é
irrepreensível, inculpável, santo. A inteira santificação é “Amor Entronizado”.
Francis Beare comenta estes versículos: “Ao novo relacionamento com Deus corresponde a
transformação interior daqueles que Cristo apresenta ao Pai. As palavras pertencem ao vocabulário
cerimonial. Cristo nos apresenta a Deus, e nós nos oferecemos livremente como ‘sacrifício vivo,
santo e agradável a Deus, que é o nosso culto racional’ (Rom. 12:1)”.
B. Apresentando Todo o Homem Perfeito, Col. 1:28
O propósito da pregação e ensino de Paulo é “para que apresentemos todo o homem perfeito
em Cristo” (v. 28). A frase repetida três vezes, “todo o homem” (admoestando a todo o homem,
ensinando a todo o homem, para que apresentemos todo o homsm) é provavelmente uma referência
indirecta a uma noção gnóstica de que só uns poucos eram capazes de atingir o grau mais elevado
de espiritualidade ou de perfeição. Em contraste, Paulo realça o potencial de todos serem “perfeitos
em Cristo” – não, saliente-se, perfeitos “em si mesmos”, mas na sua relação com Cristo.
C. Circuncisão Espiritual, Col. 2:9-15
Com o conceito de perfeição está ligada uma ideia de plenitude. Para o crente, a plenitude está
ligada à plenitude de Deus em Cristo: “Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da
divindade; e estais perfeitos nele, que é a cabeça de todo o principado e potestade; no qual
também estais circuncidados com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo da carne
tou sömatos tës sarkos, lit., o corpo da carne, i.e., a natureza pecaminosa: a circuncisão de Cristo;
sepultados com ele no baptismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o
ressuscitou dos mortos” (2:9-12).
O conceito de circuncisão espiritual ou circuncisão do coração já foi encontrado em Deut.
10:16 e 30:6, onde está associado à libertação de um espírito rebelde (“não endureçais mais a vossa
cerviz”) e a viver e amar a Deus de todo o coração e alma (“o Senhor teu Deus circuncidará o teu
coração, e o coração da tua semente, para amares ao Senhor teu Deus com todo o teu coração e com
toda a tua alma, para que vivas”).
Aqui como em Rom. 6, a referência ao baptismo parece envolver algo mais do que apenas o
baptismo com água. O pleno significado da morte de Cristo e a vida ressurrecta que se lhe segue
implica uma experiência pessoal do baptismo com o Espírito, só administrado por Cristo ao Seu
povo.
De qualquer modo, há uma clara afirmação quanto a “despojar-se” (a mesma palavra usada em
2:15 acerca de “principados e potestades”, e em 3:9 acerca do “velho homem”) da “natureza
pecaminosa”. Aqui o “despojar-se” ou “despir-se” é o efeito da “circuncisão efectuada por Cristo”,
não uma “circuncisão feita por mãos de homens”. A circuncisão torna-se um símbolo de
purificação, e purificação é a condição da totalidade ou plenitude de Cristo na vida do crente.
E. F. Scott escreve: “O rito material da circuncisão é apenas o símbolo de uma condição que
deve ser realizada no interior do homem; esta circuncisão mais elevada consiste no ‘despojar-se do
corpo da carne’, i.e., de toda a natureza carnal”. F. F. Bruce diz: “Esta é uma purificação interior,
que para Paulo era a verdadeira circuncisão”. Nielson escreve: “Circuncisão é uma figura da

81
graça da nossa santificação”. Vincent comenta: “Na circuncisão espiritual através de Cristo toda a
natureza carnal corrupta é afastada, como uma roupa que é removida e posta de lado”.
A totalidade da nossa libertação está relacionada com o triunfo de Cristo na Cruz: “Quando
vós estáveis mortos nos pecados, e na incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente com
ele, perdoando-vos todas as ofensas, havendo riscado a cédula que era contra nós nas suas
ordenanças, a qual de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a na
cruz. E, despojando os principados e potestades, os expôs publicamente e deles triunfou em si
mesmo (2:13-15); ou na vívida paráfrase de Phillips: “E depois, tendo extraído o ferrão a todos os
poderes e autoridades que se juntavam contra nós, expô-los despedaçados, vazios e derrotados pela
sua própria vitória triunfante!”
D. A Vida Ressurrecta, Col. 3:1-14
As implicações éticas da vida ressuscitada são expostas parcialmente em 3:1-14. Elas
envolvem “mortificar” dar morte a os pecados que se expressam através do corpo – “os vossos
membros que estão sobre a terra: a prostituição imoralidade sexual, a impureza, o apetite
desordenado, a vil concupiscência desejos maus e a avareza, que é idolatria” – e “despojar-se”
daquilo a que se chama pecados do espírito: “da ira, da cólera, da malícia, da maledicência, das
palavras torpes da vossa boca” (vv. 5, 8). É digno de nota que os verbos traduzidos “mortificar” e
“depojar-se” estão no tempo aoristo, com a sua inevitável sugestão de um acto crucial, decisivo.
A expressão de Paulo nos versos 9-10 é paralela de Efé. 4:22-24: “Não mintais uns aos outros,
pois que já vos despistes do velho homem com os seus feitos, e vos vestistes do novo, que se renova
para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou”.
Aqui, pela terceira e última vez, Paulo usa a debatida expressão “homem velho”. Como temos
visto, ela pode ser tomada tanto como a totalidade da vida velha não regenerada ou como a
“natureza” pecaminosa, condição do coração não santificado. Na verdade, pode representar as duas
coisas: “a totalidade da vida pecaminosa antiga assim como a causa ou raiz donde brota tal vida”.
O facto que em 2:11 Paulo usa a expressão “despojo” a respeito de “corpo da carne” ou “natureza
pecaminosa” parece indicar que ele se refere tanto à natureza carnal como à vida de pecado. Em
qualquer dos casos, “mortificar” e “despojar-se” tanto do pecado físico como do pecado espiritual
corresponde a despojar-se do velho homem e revestir-se do novo.
A renovação resultante, descrita em Efé. 4:25 como uma natureza ou condição criada “segundo
Deus. . . em verdadeira justiça e santidade”, é apresentada em Col. 3:10 como sendo “a imagem
daquele que o criou”. A alusão parece dizer respeito à renovação ou restauração do que é
comummente chamado “a imagem moral de Deus”, a qual foi perdida ou pelo menos desfigurada
pela Queda.
Os aspectos negativos da ética da vida ressurrecta são equilibrados com os positivos: “Revesti-
vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de entranhas de misericórdia, de benignidade,
humildade, mansidão, longanimidade; suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos uns aos
outros, se algum tiver queixa contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós
também. E, sobre tudo, revesti-vos de amor, que é o vínculo da perfeição” (vv. 12-14).
O uso no original grego do mesmo verbo (endusamenoi, endusasthe) traduzido no v. 10 por
“vos vestistes” e no v. 12 por “revesti-vos”, sugere que “misericórdia, benignidade, humildade,
mansidão, longanimidade”, é uma descrição dos aspectos éticos e de disposição da nova natureza
“que se renova para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou”. É aparente o
paralelo com o fruto do Espírito descrito em Gál. 5:22-23: benignidade, bondade, paciência e,
acima de tudo, amor.

III. AS CARTAS AOS TESSALONICENSES

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As cartas aos tessalonicenses, embora no arranjo tradicional do Novo Testamento estejam
agrupadas com as cartas menores de Paulo, situam-se entre as primeiras que foram escritas –
possivelmente antecedidas só por Gálatas. Revelam a preocupação de Paulo, desde cedo, em que
os seus convertidos experimentassem o alcance total da redenção possível em Cristo.
As duas cartas foram provavelmente escritas muito perto uma da outra, por volta do fim do ano
50 d.C., durante a primeira parte da estadia prolongada de Paulo em Corinto. Act. 17:1-9 fala da
breve mas altamente bem sucedida missão em Tessalónica. A satisfação garantia dada por Jason e
outros amigos de Paulo (v. 9) foi provavelmente uma promessa que impedia Paulo de voltar
pessoalmente. Em seu lugar enviou Timóteo; e foi o regresso deste de Tessalónica, com boas
notícias, que ocasionou a I Carta aos Tessalonicenses (cf. 3:1-6).
O relatório de Timóteo incluía uma descrição da sólida vida espiritual dos convertidos
tessalonicenses. Também exprimia o interesse destes por mais instrução quanto à vinda de Cristo,
particularmente em relação àqueles crentes que viessem a morrer antes da Parousia (o termo
neotestamentário geralmente usado para o Segundo Advento). Por isso, a carta de Paulo gira à
volta de dois temas: a segunda vinda de Cristo (todos os capítulos terminam com uma referência a
este evento); e a preocupação do apóstolo pela completa santificação dos seus convertidos
A. A Santidade como Subsequente à Conversão, I Tes. 1:1—3:9
A Primeira Carta aos Tessalonicenses fornece algumas das mais sólidas evidências do Novo
Testamento quanto a uma segunda obra da graça a ter lugar em determinado ponto da experiência
cristã. Apoia-se no testemunho sem reserva apresentado por Paulo quanto à clara experiência de
conversão evidenciada pela igreja tessalonicense – juntamente com o seu nítido interesse por uma
obra adicional a ser feita por Deus nas suas vidas.
A vida espiritual dos discípulos tessalonicenses era vigorosa e normal. Esses crentes eram
exemplares em carácter e conduta. Através dos primeiros dois capítulos e meio, num tom de
exultante gratidão, Paulo descreve a condição espiritual da igreja:
Sempre damos graças a Deus por vós todos, fazendo menção de vós em nossas orações,
lembrando-nos sem cessar da obra da vossa fé, do trabalho da caridade, e da paciência da
esperança em nosso Senhor Jesus Cristo, diante de nosso Deus e Pai; sabendo, amados
irmãos, que a vossa eleição é de Deus; porque o nosso evangelho não foi a vós somente em
palavras, mas também em poder, e no Espírito Santo, e em muita certeza; como bem sabeis
quais fomos entre vós, por amor de vós. E vós fostes feitos nossos imitadores, e do Senhor,
recebendo a palavra em muita tribulação, com gozo do Espírito Santo.
De maneira que fostes exemplo para todos os fiéis na Macedónia e Acaia. Porque por
vós soou a palavra do Senhor, não somente na Macedónia e Acaia, mas também em todos os
lugares a vossa fé para com Deus se espalhou, de tal maneira que já dela não temos
necessidade de falar coisa alguma; porque eles mesmos anunciam de nós qual a entrada que
tivemos para convosco, e como dos ídolos vos convertestes a Deus, para servir o Deus vivo e
verdadeiro, e esperar dos céus a seu Filho, a quem ressuscitou dos mortos, a saber, Jesus, que
nos livra da ira futura.
Porque vós mesmos, irmãos, bem sabeis que a nossa entrada para convosco não foi vã
(1:2—2:1).
Vós e Deus sois testemunhas de quão santa, e justa, e irrepreensivelmente nos houvemos
para convosco, os que crestes (2:10).
Pelo que também damos sem cessar graças a Deus, pois, havendo recebido de nós a
palavra da pregação de Deus, a recebestes não como palavra de homens mas (segundo é na
verdade) como palavra de Deus, a qual também opera em vós, os que crestes. Porque vós,
irmãos, haveis sido feitos imitadores das igrejas de Deus que na Judeia estão em Jesus Cristo;
porquanto também padecestes de vossos próprios concidadãos o mesmo que os judeus lhes
fizeram a eles (2:19-20).

83
Porque, qual é a nossa esperança, ou gozo, ou coroa de glória? Porventura não o sois vós
também diante de nosso Senhor Jesus Cristo em sua vinda? Na verdade vós sois a nossa
glória e gozo (2:19-20).
I Tessalonicenses 3:6-9 exprime o conteúdo do relatório apresentado por Timóteo:
Vindo, porém, agora Timóteo de vós para nós, e trazendo-nos boas novas da vossa fé e
caridade, e de como sempre tendes boa lembrança de nós, desejando muito ver-nos, como
também nós a vós; por esta razão, irmãos, ficámos consolados acerca de vós, em toda a nossa
aflição e necessidade, pela vossa fé, porque agora vivemos, se estais firmes no Senhor ;
porque, que acção de graças poderemos dar a Deus por vós, por todo o gozo com que nos
regozijamos por vossa causa diante do nosso Deus. . .?
B. Uma Oração pela Santidade, I Tes. 3:10-13
No auge do seu regozijo, Paulo revela o seu interesse por um maior progresso dos seus amigos
tessalonicenses: “Orando abundantemente dia e noite, para que possamos ver o vosso rosto, e
supramos o que falta à vossa fé. . . E o Senhor vos aumente, e faça abundar em amor uns para com
os outros, e para com todos, como também abundamos para convosco; para confortar os vossos
corações, para que sejais irrepreensíveis em santidade diante de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso
Senhor Jesus Cristo com todos os santos” (3:10, 12-13).
O próprio Paulo podia testemunhar de conduta santa (hosiös, 2:10) e inculpável; a sua
preocupação é que os seus seguidores possam igualmente ser inculpáveis em santidade (en
hagiösunë) na presença de Deus, quando o Senhor Jesus voltar. John W. Bailey escreve:
O alvo final da oração é que o Senhor possa estabelecer os vossos corações inculpáveis
em santidade perante o nosso Deus e Pai. Uma oração semelhante e mesmo mais
envolvente encontra-se em 5:23. Mas nada está sendo desejado para esses novos discípulos
que não faça parte da própria vida do apóstolo. Os tessalonicenses conheciam quão santa e
justa e inculpavelmente os missionários tinham vivido entre eles (2:10). Por isso Paulo e os
companheiros oravam para que, assim como o próprio Deus conhecia a vida dos Seus
mensageiros (2:10), assim também os novos convertidos fossem reconhecidos por Deus
como inculpáveis em santidade, ao se apresentarem perante Ele na vinda do nosso Senhor
Jesus Cristo com todos os seus santos.
Arnold E. Airhart acrescenta uma qualificação importante:
Toda a ênfase desta oração reside na natureza íntima do carácter pessoal. Nela está
implícito que o carácter requerido para tornar os tessalonicenses aptos para se apresentarem
perante Cristo na Sua vinda é mais do que uma certa inculpabilidade de comportamento
exterior ou serviço. Antes, o requisito divino é uma inculpabilidade na devoção íntima a Deus
e pureza moral interior. Os seus corações, toda a sua personalidade, tanto interior como
exteriormente, devem ser puros diante de Deus.
Para se obter a inculpabilidade em santidade essencial à preocupação do apóstolo, os meios
indicados aqui são amor crescente e transbordante e também fortalecimento interior por parte de
Deus. É o amor divino (agapë) derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo (Rom. 5:5).
Como diz Airhart:
Este amor é o instrumento do Espírito para expulsar do coração aquilo que é impuro e
incompatível; o seu resultado necessário é a obediência total à vontade de Deus. Uma “santidade”
que vem por algum outro meio que não seja um baptismo de amor divino será espúria – hipócrita,
crítica, legalista. A verdadeira santidade será manifesta por amor uns . . . para com os outros e
para com todos. O amor divino é “o vínculo da perfeição” (Col. 3:14); é a energia de toda a
verdadeira santidade. É o caminho para a estabilidade espiritual, visto que tudo mais é transitório.
C. A Vontade e a Chamada de Deus, I Tes. 4:3-8

84
Em 4:3-8, Paulo relaciona a ideia da santificação segundo a vontade de Deus com o problema
da moralidade sexual – uma associação que não pode ser feita se a santificação, como defendem
alguns, for somente uma santidade imputada ou de posição. O conteúdo ético é inequivocamente
claro: “Porque esta é a vontade de Deus, a vossa santificação; que vos abstenhais da prostituição;
que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santificação e honra. . . Porque não nos chamou
Deus para a imundícia, mas para a santificação. Portanto, quem despreza isto não despreza ao
homem, mas sim a Deus, que nos deu também o seu Espírito Santo” (vv. 3-4, 7-8).
Uma certa ambiguidade escurece a interpretação de heautou skeuos, “o seu vaso”, no v. 4.
Alguns, incluindo João Wesley, Weymouth e algumas traduções bíblicas em inglês, interpetam
“vaso” como sendo “esposa”. Outros, incluindo Phillips, Barclay e outras traduções em inglês,
preferem “corpo”. Esta interpretação coloca estes versículos em paralelo com Rom. 12:1-2, onde
se diz que o corpo deve ser apresentado “santo e agradável a Deus”.
As expressões “a vossa santificação”, “em santificação” e “para a santificação” correspondem
no original grego a outra forma de hagiasmos, “santificação” ou “santidade”. No v. 7, “imundícia”
ou “impureza”, na Versão Contemporânea é a tradução de akatharsia, literalmente “falta de
limpeza”. Tanto a vontade de Deus como a Sua chamada são para a santidade ou santificação.
A propriedade deste aviso acerca da moralidade sexual, dado a pessoas com um claro
compromisso cristão, é-nos explicada por William Neil:
O facto é que um dos obstáculos mais difíceis que todos os pagãos convertidos tinham de
transpôr era a atitude cristã para com o sexo. Haviam crescido num mundo onde a poligamia,
a concubinagem, a homossexualidade e a promiscuidade eram aceites com naturalidade. . . .
Muitos dos cultos religiosos tinham um carácter francamente sexual, incluindo na sua
adoração rituais de fertilidade e fornicação sacramental.
Airhart acrescenta:
A satisfação ilegítima ou intemperada do apetite sexual continua como área de tentação
em todo o cristão saudável e normal, mas o cristão não santificado é perigosamente vulnerável
a tais apelos. Há um paganismo ressurgente no nosso próprio tempo, com as suas diversões
indecentes, literatura pornográfica, lassidão nos votos matrimoniais, promiscuidade, obsessão
geral com o sexo e permissividade em relacionamentos sexuais. Em tempos como estes, o
ensinamento do Novo Testamento sobre a pureza sexual é desesperadamente necessário e a
experiência neotestamentária de santificação, com a sua plena devoção à vontade de Deus, é a
resposta real. O código imoral do nosso tempo é nutrido e protegido por filosofias bem
entrincheiradas tais como o naturalismo e o evolucionismo. A dinamite do Evangelho é
necessária para quebrar estes respeitáveis paraísos do vício.
E William Barchaly comenta:
Paulo acreditava que Deus estava chamando os homens à santidade. Ele diz aos
tessalonicenses que Deus os chama a uma vida santa (I Tes. 4:7). O significado da raiz da
palavra “santo” (hagios) é diferente. Ser santo é ser diferente; é ter um padrão diferente, uma
paz e uma beleza diferentes da vida manchada, frustrada e derrotada própria do mundo. Deus
chama os homens a uma vida na qual se abre a possibilidade de uma nova vitória sobre o
pecado e uma nova graciosidade e beleza. . . Em Cristo, Deus chama os homens para obterem
aquilo que não podem ganhar, mas que podem simplesmente aceitar, maravilhados – o Seu
amor libertador e redentor. No momento em que se alcança isto, a tensão da vida desaparece.
Plillip Hughes vê na chamada de Deus uma referência ao conceito teológico de eleição. Ele
faz-nos lembrar que no Novo Testamento a eleição é para a semelhança com Cristo; e cita I Tes.
4:7, juntamente com I Pedro 1:2, onde se diz que nós fomos “escolhidos segundo a presciência de
Deus o Pai, em santificação do Espírito, para obediência a Jesus Cristo e aspersão pelo seu sangue”.
“O propósito da eleição de Deus em Cristo é que sejamos ‘conformes à imagem de seu Filho’
(Rom. 8:29)”, diz ele.
85
A Fonte da santificação ou santidade, tão importante para a pureza de coração e vida, é o
Espírito Santo – literalmente “o Espírito d’Ele, o Santo” – ou, conforme diz Phillips, “não é sem
razão que o Espírito que Deus nos dá é chamado o Espírito Santo”. O verbo traduzido “dar” está
no presente. “Assim, a ênfase está no relacionamento dinâmico e contínuo com o Espírito Santo,
mais do que no facto de Ele ter sido dado no passado.” Airhart salienta que “nisto vemos a
incompatibilidade total entre uma vida de impureza e pecado e a vida em Cristo”. O próprio
Espírito Santo é “a Fonte da verdadeira santidade”, cuja acção especial é santificar. “Se o
ministério do Espírito não for recusado (cf. 5:19) mas amorosamente recebido, Ele conduzirá
infalivelmente à inteira santificação da pessoa total.”
D. Santificados em Tudo, I Tes. 5:19-24
Paulo encerra a sua primeira carta aos tessalonicenses com uma série de instruções curtas e
claras, e outra oração incisiva pela completa santificação dos destinatários:
“Não extingais o Espírito. Não desprezeis as profecias; examinai tudo. Retende o bem;
abstende-vos de toda a aparência do mal original: formas do mal.
“E o mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo o vosso espírito, e alma, e corpo,
sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda do nosso Senhor Jesus Cristo. Fiel é o
que vos chama, o qual também o fará” (5:19-24).
O verso 23 é a passagem neotestamentária que provê o fundamento para a expressão “inteira
santificação”: “vos santifique em tudo”. É o climax da ênfase ética e experiencial da segunda
metade da epístola. É o Deus de paz que santifica: sendo paz usada aqui no seu sentido bíblico
mais profundo de saúde, sanidade, plenitude e bem-estar.
Deve-se notar que todo o contexto da oração do v. 23 atesta o significado ético ligado ao termo
“santificar” (derivado de hagiazö). Joseph Thayer afirma que santificar significa separar das coisas
profanas e dedicar a Deus, tanto como purificar externa e internamente por uma reforma da alma.
Já notámos a ênfase do Novo Testamento na santificação como purificação. Esta é proeminente.
O verbo principal (hagiasai, santificar) está no aoristo. Embora não se deva argumentar
demasiado com base na forma gramatical, ela sugere de facto “não uma acção contínua ou um
processo, mas uma acção definida e considerada completa”. Airhart salienta que isto não significa
que não haja um processo a preceder a santificação ou, depois da crise, um crescimento contínuo
em santidade. “Paulo, contudo, está orando por um acto purificador de Deus na vida desses
crentes, para que eles possam dizer: “A obra foi realizada; nós fomos e agora estamos inteiramente
santificados”.
A respeito do factor tempo na santificação, o Bispo J. Paul Taylor cita John Fletcher:
Onde está o absurdo desta doutrina da instantânea destruição do pecado interior? Se num
quarto escuro a luz duma vela pode instantâneamente expulsar a escuridão; e se ao abrir ao
meio dia as persianas de um apartamento sombrio este pode instantaneamente encher-se de
luz, por que não poderia a instantânea destruição do véu da descrença ou a repentina e plena
abertura dos olhos da vossa fé instantaneamente encher as vossas almas com a luz da verdade
e o fogo do amor; supondo que o Sol de Justiça se levante sobre vós com poder curador nas
suas asas?
O alcance da purificação prevista na oração do apóstolo é indicado por dois termos gregos,
holoteleis e holoklëron. Holoteleis é traduzido por “completamente”, “totalmente”, “em toda a
parte” ou “inteiramente”. Bailey nota que “este termo não se encontra em nenhuma outra parte da
versão grega da Bíblia, mas o seu uso nos poucos exemplos conhecidos na literatura não deixa
qualquer dúvida quanto ao seu significado. É formado de holos (todo) e telos (fim), e sugere
finalidade bem como totalidade.

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Holoklëron é um adjectivo predicativo modificando “espírito, alma e corpo”. É traduzido
“todo” e significa “completo em todas as suas partes (holos,todo; kleros,porção, parte). Não deverá
haver qualquer deficiência em qualquer parte”. Thayer define-o como “eticamente livre do
pecado”, e Arndt e Gingrich dizem que significa “sem estrago, intacto, inteiro, completo –
inculpável, são”. Aqui também a ênfase está na totalidade, inteireza; e de novo o corpo é incluído
com o espírito e a alma, como objectos de santificação (Rom. 12:1; I Tes. 4:4). Como Airhart
escreve, “a purificação deve alcançar todas as partes da natureza do homem: as suas afeições, a sua
vontade, a sua imaginação, os seus motivos. O seu corpo é incluído como o templo do Espírito
Santo (I Cor. 6:19) e como veículo e instrumento da vida pessoal (cf. Rom. 6:12-13, 19).
O propósito da inteira santificação é que o povo de Deus possa “ser guardado inculpável na ou
até à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”. O uso da expressão “ser guardado” (tërëtheië), com o
aoristo de “santificar”, indica que a inteira santificação não deve esperar até à Parousia, mas ser
uma preparação para esta. O Novo Testamento relaciona consistentemente a santidade ou
santificação com a preparação para o regresso de Cristo (Heb. 12:14; I João 3:1-3).
A oração termina com uma nota de encorajamento e confiança: Deus, que nos chama à
santidade (4:7), é fiel e fará o que o apóstolo pede (v. 24).
E. Plena Salvação, II Tes. 2:13
A segunda carta de Paulo à igreja tessalonicense teve lugar logo depois da primeira. Foi
aparentemente ocasionada por um relatório mandado ao apóstolo após a recepção da primeira carta.
Haviam surgido novos conceitos erróneos sobre a Segunda Vinda, e Paulo trata-os com franqueza.
Em II Tes. 2:13 há uma passagem importante quanto à santificação: “Mas devemos sempre dar
graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a
salvação, em santificação do Espírito, e fé da ou na verdade”.
Aqui, a salvação, na sua extensão total, é vista como dependente tanto de elementos divinos
como humanos. O elemento divino é “a obra santificadora do Espírito” (o grego diz literalmente:
“na santificação do Espírito”). O elemento humano é a “crença na verdade”. A eleição de Deus
não é arbitrária. É a graciosa provisão da salvação para aqueles que crêem (João 3:16; Rom. 1:16).
É realizada não através da nossa luta ou esforço, por mais prolongada ou sincera, mas “pela obra
santificadora do Espírito Santo”.

IV. AS EPÍSTOLAS PASTORAIS


O arranjo das Epístolas de Paulo no Novo Testamento termina com quatro cartas pessoais:
duas escritas a Timóteo, uma a Tito e outra a Filémon.
Filémon era um homem rico, dono de escravos, a quem Paulo devolveu Onésimo, um escravo
fugitivo que se converteu em Roma sob a influência de Paulo. A pequena carta não é um
documento teológico. Porém ilustra a compaixão do apóstolo e a forma como o amor cristão
haveria de minar a instituição da escravatura universalmente aceite no Império Romano.
As cartas a Timóteo e a Tito oferecem conhecimentos valiosos quanto à preocupação constante
do apóstolo pela igrejas lideradas por esses homens mais jovens. Encontramos nelas indicações
úteis quanto ao pensamento e ensinamento da Igreja Primitiva.
A. O Objectivo do Ensino São, I Tim. 1:5
Uma das preocupações de Paulo na primeira carta a Timóteo foi anular a influência dos falsos
mestres – provavelmente representando uma variedade de Gnosticismo. A carta contrasta as
“fábulas e genealogias intermináveis” (v. 4) promovidas por esses falsos mestres com o que Paulo
considera fundamental: “Ora o fim do mandamento é o amor de um coração puro, e de uma boa
consciência,e de uma fé não fingida” (1:5).
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Aqui, “fim” é telos e significa propósito ou fim desejado. Em lugar dos sofismas dos falsos
mestres, Paulo dá ênfase à primazia do amor. Isto não é algo novo; já fora encontrado não só em
Paulo, como também nos Evangelhos. A essência da piedade é agapë – amor incondicional, como
o de Deus por nós. É este tipo de amor que “está derramado em nossos corações pelo Espírito
Santo que nos foi dado” (Rom. 5:5).
O amor “vem dum coração puro”. Novamente, não temos aqui uma ideia nova. Encontramo-
la em Mat. 5:8, em Act. 15:8-9, e havemos de a encontrar outra vez em II Tim. 2:22 e I Ped. 1:22.
Kardia (coração) é a totalidade da vida interior, propósito, vontade e motivação, bem como afeição.
Deve ser puro (katharas, derivado da palavra característica no Novo Testamento para designar
lavagem, purificação, remoção). Um coração puro, por qualquer definição significativa, é um
coração liberto da mancha do pecado herdado.
O amor é também condicionado por “uma boa consciência” (syneidëseös agathës). A
consciência é um conceito importante no Novo Testamento. Ela está constantemente relacionada
com a vida moral, tanto oferecendo direcção como providenciando um impulso para a conduta
certa. Mas a consciência pode ser fraca (I Cor. 8:10, 12), cauterizada (I Tim. 4:2) ou contaminada
(Tito 1:15). Ela convence do pecado (João 8:9; Rom. 2:15). Uma consciência boa, clara e sem
ofensa é essencial na vida cristã normativa (Act. 23:1; 24:16; II Cor. 1:12; I Tim. 1:18-20; 3:9;
II Tim. 1:3; I Ped. 2:19).
O amor também depende duma “fé sincera”. No Novo Testamento há uma ligação estreita
entre o amor e a fé, e entre a fé e uma boa consciência. A fé tem um significado duplo de crença
confiante e de fidelidade. Ambos estão relacionados com a expressão de um coração puro.
B. Chamados para uma Vida Santa, II Tim. 1:8-10
A Segunda Epístola a Timóteo foi a última carta a ser escrita por Paulo. É uma calorosa
mensagem pessoal, misturada com preocupação pelo seu destinatário e um desejo ardente pelo
apoio da sua presença. A fé de Paulo encara a última prova, mas encara-a com serenidade e
triunfo.
Num contexto muito pessoal, o apóstolo escreve: “Portanto não te envergonhes do testemunho
do nosso Senhor, nem de mim, que sou prisioneiro seu; antes, participa das aflições do evangelho,
segundo o poder de Deus que nos salvou e chamou com uma santa vocação; não segundo as nossas
obras, mas segundo o seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos
tempos dos séculos; e que é manifesta agora pela aparição de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual
aboliu a morte e trouxe à luz a vida e a incorrupção pelo evangelho” (1:8-10).
Muitos dos temas característicos de Paulo aparecem nestes versos. Deus salvou-nos e chamou
para uma vida santa. A salvação e a nossa chamada santa não são produto da nossa luta ou esforço.
São provenientes da graça de Deus e do Seu propósito em Cristo concebido antes do princípio do
mundo; e agora manifesto em Jesus Cristo que pela Sua morte e ressurreição destruiu a morte e,
pelo evangelho, trouxe à luz a vida e a imortalidade. J. Glenn Gould escreve acerca da nossa “santa
vocação”:
Isto significa mais que uma santidade que existe apenas em nome ou que é meramente
imputada ao crente pela santidade suprema de Deus; quer dizer que o crente é separado dos seus
pecados e liberto da sua culpa e poder. A chamada de Deus é para se ter uma experiência e vida
que envolvem uma total consagração por parte do crente; e uma total purificação interior,
realizada por Deus.
C. Praparados para Toda a Boa Obra, II Tim. 2:19-22
Ainda preocupado com a entrada dos falsos mestre, alguns dos quais reivindicavam que a
ressurreição já tivera lugar e estavam a destruir a fé de alguns membros da igreja, Paulo escreve:

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Todavia o fundamento de Deus fica firme, tendo este selo: O Senhor conhece os que são
seus, e qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniquidade.
Ora numa grande casa não somente há vasos de ouro e de prata, mas também de pau e de
barro; uns para honra, outros, para desonra. De sorte que, se alguém se purificar destas
coisas, será vaso para honra, santificado e idóneo para uso do Senhor, e preparado para toda a
boa obra.
Foge também dos desejos da mocidade; e segue a justiça, a fé, o amor, e a paz com os
que, com um coração puro, invocam o Senhor (2:19-22).
Esta ilustração de Paulo, da casa e seus vasos, tem sido criticada como sendo despropositada.
Há uma certa ambiguidade quanto àquilo de que o crente se deve purificar, mas a ênfase da
passagem é clara. “Quanto à gramática”, diz E. F. Scott, “a expressão traduzida ‘destas coisas’
deve significar separação dos ‘vasos para desonra’ – i.e., pessoas indignas; e alguns encontrariam
aqui um aviso contra a associação com os hereges ou membros duvidosos da igreja. Mas a frase
‘purificar-se’ aponta para uma purificação interior.” Aquele que assim se purificar tornar-se-á um
“vaso para honra, santificado e idóneo para uso do Senhor, e preparado para toda a boa obra” (v.
21).
A rectidão, a fé, o amor e a paz são os alvos daqueles que invocam o Senhor com um coração
puro (v. 22). Longe de pôr em dúvida a possibilidade de um coração puro, Paulo identifica
Timóteo e os seus companheiros como pessoas cujas orações brotam de um tal coração.
D. Verdade que Conduz à Piedade, Tito 1:1-3, 15
Tito, juntamente com Timóteo, foi um dos associados ou assistentes de Paulo. O seu nome não
é mencionado em Actos, mas é-o frequentemente nas Epístolas. Desempenhara várias missões para
o apóstolo e, na altura em esta carta foi escrita, estava na ilha de Creta para cuidar da organização
das igrejas ali. Pouco depois foi enviado à Dalmácia, possivelmente como emissário do apóstolo a
partir do seu último encarceramento em Roma (II Tim. 4:10).
Paulo caracteriza o propósito do seu apostolado como sendo “segundo a fé dos eleitos de Deus,
e o conhecimento da verdade que é segundo a piedade, em esperança da vida eterna, a qual Deus,
que não pode mentir, prometeu antes dos tempos dos séculos; mas a seu tempo manifestou a sua
palavra pela pregação que me foi confiada segundo o mandamento de Deus, nosso Salvador” (1:1-
3).
O paralelo com II Tim. 1:9-11 é notável. Há a mesma ênfase no eterno propósito e promessa
de Deus, na sua manifestação temporal em Cristo e na pregação do evangelho. A fé dos eleitos de
Deus torna-as pessoas salvas, e a piedade (eusebeia) tem o seu paralelo na chamada a “uma vida
santa”. Eusebeia é um dos termos distintivos das Epístolas Pastorais (I Tim. 2:2; 3:16; 4:7,8;
6:3,5,6,11; II Tim. 3:5). Além destas referências, só se encontra em Actos 3:12 e II Pedro (1:3,6,7;
3:11). Significa “aquela piedade que, caracterizada por uma atitude orientada para Deus, faz o que
Lhe agrada”.
No contexto de rejeitar “fábulas judaicas” (1:14), Paulo diz: “Todas as coisas são puras para os
puros, mas nada é puro para os contaminados e infiéis; antes os seus entendimentos e consciências
estão contaminados” (v. 15). E. F. Scott comenta: “Significa que a purificação ritualística é, na
melhor das hipóteses, artificial. Nada conta, realmente, senão o coração puro; para aqueles que o
têm, a distinção entre a pureza e a impureza ritualística é sem significado. Há algo na pureza
interior, que tudo purifica, de forma que as leis cerimoniais perdem todo o valor”.
E. A Graça de Deus, Tito 2:11-14
Em Tito 2:11-14, Paulo volta a um dos seus temas mais queridos: “Porque a graça de Deus se
manifestou, trazendo salvação a todos os homens. Ela nos ensina a abandonar a impiedade e as
paixões mundanas, para que vivamos neste presente século sóbria, justa e piedosamente,
aguardando a bem-aventurada esperança e o aparecimento da glória do nosso grande Deus e
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Salvador Cristo Jesus, o qual a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e
purificar para si um povo todo seu, zeloso de boas obras”.
Escreve Fred D. Gealy:
A graça de Deus que tem aparecido é nada menos que o evangelho ou evento cristão na
sua inteireza, um evento que se centra e gira à volta dos dois “aparecimentos” do Salvador, o
primeiro e o final. Quando Deus primeiro apareceu como a graça, foi para se oferecer a si
mesmo por nós, para nos redimir de toda a iniquidade; quando aparecer de novo, de
acordo com a nossa bendita esperança em glória, será para nos receber como o seu próprio
povo purificado.
É de se notar que estes versos dão ênfase à renúncia à impiedade e às paixões mundanas, e à
vida disciplinada, recta e piedosa neste presente século (v. 12). Isto está em linha com o realce
dado por Zacarias, pai de João Baptista, em que a salvação messiânica nos concederá que sirvamos
a Deus em santidade e justiça perante ele todos os dias da nossa vida (Luc. 1:74-75). Há uma
salvação plena para ser experimentada nesta vida presente. Ela é possível apenas através do “nosso
grande Deus e Salvador Jesus Cristo, o qual a Si mesmo Se deu” tanto para remir-nos de toda
iniquidade” como para “purificar para si um povo todo seu, zeloso de boas obras” (vv. 13-14).
O propósito final da incarnação e sacrifício do Salvador é que Ele possa “salvar-nos dos maus
caminhos e formar para Si um povo limpo e puro, capaz de praticar boas obras (v. 14, Phillips). O
v. 12 explica o efeito de tal purificação: “Levar neste presente mundo uma vida de auto-domínio,
integridade e piedade” (Moffatt). O povo assim tornado “limpo e puro” será a propriedade especial
do Mestre – não “peculiar” no sentido moderno da palavra, como parecem sugerir algumas
traduções, mas pertencendo exclusivamente a Deus. A bondade deste povo não consiste apenas no
que ele não faz. É “zeloso de boas obras”.

90
8

SANTIDADE NAS EPÍSTOLAS GERAIS E APOCALIPSE

As cartas de Paulo são seguidas por oito cartas conhecidas como “As Espístolas Gerais”. Estas
incluem o Livro de Hebreus, anónimo, a carta de Tiago, duas de Pedro, três de João e a curta nota
de Judas. Numa terminologia notavelmente semelhante à de Paulo, mas com ênfases variadas,
acrescentam o seu testemunho à natureza e necessidade da santificação na vida cristã. O grande
apocalipse do Novo Testamento é o climax de toda a Bíblia, com sua visão dos horizontes do tempo
a esvaírem-se e da expansão interminável da eternidade.

I. HEBREUS
O Livro aos Hebreus foi escrito a cristãos que encaravam o princípio duma severa perseguição,
sendo tentados a buscar refúgio na sua antiga fé judaica. O tema do livro é a superioridade de
Cristo em comparação com o caminho vetero-testamentário da salvação. O seu propósito é
encorajar os crentes a avançar e a não recuar. Dá ênfase especial à provisão plena de Cristo para a
poluição e poder do pecado, em contraste com as limitações dos sacrifícios animais no Templo
Judaico.
Uma das contribuições principais de Hebreus ao nosso tema é a relação entre a perfeição e a
santificação. Como tem argumentado Óscar Cullmann, para o autor as duas são praticamente
sinónimas. Sente-se intensamente o imperativo da santidade, um sentido de urgência na alternativa
de “prosseguir até à perfeição” (6:1) ou “retroceder para a perdição” (10:39). E. C. Blackman
resume o ensino de Hebreus quando a este ponto:
O tema principal da Carta aos Hebreus é a obra de Cristo como sacerdote e sacrifício.
Pode ser anunciada como “a provisão para a purificação dos pecados” (1:3), implicando a
imagem de sacrifício, como em 2:17b;15:1; e em todo o argumento central dos caps. 5-10.
Mas a metáfora muda para a da santificação quando Cristo é declarado o santificador (2:11;
7:26-27; 13:12). Estas metáforas são usadas alternadamente, como vemos em 9:11-14 – um
ponto estratégico do argumento – e 9:22-23. O contraste aqui entre os ritos medianeiros
cristãos e judaicos é que enquanto estes efectuaram uma santidade exterior, Cristo oferece
uma interior (“consciência”, v. 14b) que prepara o homem para o serviço de Deus ou, mais
precisamente, para participar da própria santidade divina (hagiotes, 12:10), o que é a maior
necessidade do homem. A visão de Deus não é possível à pessoa não santificada (12:14).
“Santificação” é um sinónimo de “perfeição”, uma palavra chave nesta carta (2:10; 10:14;
11:39—12:2). Esta santificação ou perfeição é devida a Cristo, que se identificou com o
homem, fê-lo apto para estar na presença de Deus, e abriu o caminho como “percursor” (6:20;
10:19ff; cf. 3:1a).
A. Cristo e Seus Irmãos, Heb. 2:10-11
Na grande passagem da incarnação, encontrada no cap. 2, o autor estabelece a identidade de
Cristo com o Seu povo pela seguinte declaração: “Porque convinha que aquele, para quem são
todas as coisas, e mediante quem tudo existe, trazendo muitos filhos à glória, consagrasse pelas
aflições o príncipe da salvação deles. Porque, assim o que santifica hagiazö, como os que são
santificados, são todos de um; por cuja causa não se envergonha de lhes chamar irmãos” (2:10-11).
Esta passagem é digna de nota porque afirma a identidade qualitativa entre o Santificador e os
santificados. H. Orton Wiley diz: “É bem evidente, portanto, que aquele que traz muitos filhos à
glória faz assim santificando-os; e para os filhos de Deus o único caminho para a glória é pela
santificação”. F. F. Bruce comenta: “A santificação é o princípio da glória, e a glória é a
santificação levada à sua totalidade”.
Wiley faz uma declaração importante sobre o significado pleno do infinitivo hagiazein:

91
A palavra hagiazein, “santificar”, é usada tanto num sentido objectivo como subjectivo.
No sentido objectivo faz referência à obra que Cristo fez por nós expiando o pecado e
resgatando-nos. Este aspecto objectivo ou provisional às vezes é chamado “a obra completa
de Cristo”. Mas este não é o sentido total da palavra santificação, pois ela também tem um
aspecto subjectivo pelo qual significa que Cristo opera em nós pelo Seu Espírito Santo. Não é
suficiente dizer-se que Cristo providenciou uma expiação por nós; precisamos de Cristo em
nós tanto quanto precisamos da Sua redenção por nós. Não é só o que Cristo fez na Cruz que
nos salva; é também o que Ele faz em nós em virtude do que fez por nós na Cruz. Cristo não
só faz expiação pelos nossos pecados; Ele habita em nós pelo Espírito Santo; e é a Sua
presença pessoal em nós que nos santifica no sentido mais profundo da palavra hagiazein.
Aqui o termo hagios ou “santo” significa não só o acto de limpar ou purificar, mas também a
presença habitadora de Cristo no Seu templo purificado; e é esta presença no coração que nos
santifica e nos torna sua propriedade.
Richard S. Taylor escreve: “Jesus, o Deus-homem, pela incarnação agora compartilha com o
homem a paternidade de Deus como Criador; ao santificar os Seus próprios discípulos Ele
compartilha com eles a santidade do Pai. Uma parecença de família é assim estabelecida. Esta
semelhança a Deus, pela santificação, é no NT o significado mais profundo de filiação.”
B. O Repouso da Fé, Hebreus 3—4
Heb. 3:7 introduz uma extensa comparação entre o que foi dado a Israel debaixo da lei e o que
está aberto aos crentes sob a graça, no que o autor chama o “repouso” de Deus ou “o repouso da
fé”. Os crentes embarcaram num “novo êxodo”. William Niel escreve: “Não foi um mero jogo de
palavras que fez com que Jesus chamasse a Sua própria morte de “Êxodo” ou Libertação (Luc.
9:31), ou que na última ceia falasse de um “novo Concerto” (Mar. 14:24). Nem foi um alegorismo
sofisticado que sugeriu a São Paulo que Cristo foi a nossa Páscoa (I Cor. 5:7), e que o Baptismo
Cristão podia ser comparado com a Passagem do Mar Vermelho (I Cor. 10:2)”.
Mas o significado total do Êxodo não foi obtido na libertação da escravidão do Egipto. O seu
significado pleno foi alcançado na posse da terra prometida. A falta de fé em Cades-Barneia deve
ser vista como um aviso aos crentes para não cometerem pecado semelhante, falhando em entrar no
“repouso” tipificado por Canaã (3:7-19).
“Temamos pois que, porventura, deixada a promessa de entrar no seu repouso, pareça que
algum de vós fica para trás. . .Porque nós, os que temos crido, entramos no repouso. . . Porque, se
Josué lhes houvesse dado repouso, não falaria depois disso de outro dia. Portanto resta ainda um
repouso para o povo de Deus. Porque aquele que entrou no seu repouso, ele próprio repousou de
suas obras, como Deus das suas. Procuremos pois entrar naquele repouso, para que ninguém caia
no mesmo exemplo de desobediência” (4:1, 3, 8-11).
Alexander Purdy nota que o escritor interpreta e aplica Sal. 95:7-11 em duas fases: “Os seus
leitores não devem endurecer o coração como fez a geração no deserto, pois foi por causa da
incredulidade que falharam em entrar no descanso de Deus (3:12-19); a promessa do ‘repouso’
divino continua aberta ao povo de Deus, e o perigo de incredulidade é tão sério hoje como naquela
altura (4:1-13)”.
Tem havido três interpretações principais do “repouso da fé”, em Hebreus 4. Uma sustenta que
o descanso é o céu, o alvo final do cristão. A segunda é que o repouso é o caminho da salvação
pela fé, em contraste com o caminho da salvação pelas obras da lei. A terceira é que o descanso é a
vida cristã mais elevada, um sinónimo para a inteira santificação. Taylor nota que o “sábado de
descanso para o povo de Deus” tem sido percebido frequentemente como uma segunda obra da
graça.
Que o descanso não é o céu parece ser indicado pelo facto de que nós que temos crido
entrámos neste repouso (v. 3). Também não é provável que o descanso seja o caminho cristão da fé
em vez de o caminho judaico pelas obras da lei, a não ser que se conclua que os leitores não eram
92
cristãos genuínos na altura. Pelo contrário, o contraste entre Hebreus 3 e 4 é bem semelhante ao
contraste entre Romanos 7 e 8. Thomas Hewitt diz que o repouso de Canaã “é um tipo do descanso
da consagração, isto é, do descanso que resulta duma rendição da mente, da vontade e do coração
ao poder e à influência de Deus que capacitam o crente a vencer o pecado”.
O repouso em vista é obviamente não o repouso da inactividade, “a sonolência pesada que se
segue ao trabalho demasiadamente árduo, nem tão pouco . . . inação ou indolência”. Mas, como diz
F. B. Meyer, “o descanso que é possível no meio de actividade febril e trabalho esforçado; . . . o
perfeito equilíbrio no vaivém da vida; . . .um coração contente; . . . a paz que ultrapassa todo o
entendimento; . . . a calma das profundezas da natureza, as quais são imperturbadas pelos furacões
que varrem a superfície e provocam as ondes gigantescas”.
O Major Allister Smith recorda o significado chave deste conceito na vida de J. Hudson
Taylor:
Hudson Taylor, fundador da Missão do Interior da China e um dos maiores missionários
que o mundo jamais conheceu, era um crente derrotado até aprender o segredo de olhar para
Jesus para a sua santificação. Os seus olhos foram abertos pela carta dum amigo que escreveu
que a vitória veio por “viver, não por esforço ou luta; olhando para Ele; confiando n’Ele para
receber poder; . . . dependendo d’Ele para dominar toda a corrupção interior; descansando no
amor dum Salvador todo poderoso, no gozo consciente duma salvação completa, uma
salvação de todo o pecado (esta é a Sua Palavra); . . . desejando que Sua vontade seja
verdadeiramente suprema”.
Taylor compreendeu de repente que a fé não era fortalecida pelo esforço, mas sim pelo
repouso n’Aquele que é fiel. “Se não formos fiéis, Ele permanece fiel”. Confessou: “Eu
tenho lutado em vão por repousar n’Ele. Não mais lutarei. Pois não prometeu Ele viver
comigo, nunca me abandonar, nunca me falhar?”
C. Avante para a Perfeição, 6:1-3
Heb. 6:1 é no Novo Testamento um dos textos proeminentes acerca da “perfeição”. “Pelo que,
deixando os rudimentos da doutrina de Cristo, prossigamos até à perfeição teleiotëta, não
lançando de novo o fundamento do arrependimento de obras mortas e de fé em Deus, e da doutrina
dos baptismos, e da imposição das mãos, e da ressurreição dos mortos, e do juízo eterno. E isto
faremos, se Deus o permitir” (vv. 1-3).
Baseando-se no argumento apresentado em 5:14, a maioria das traduções modernas são
semelhantes à NVI, traduzindo a palavra teleiotëta por “maturidade”: “prossigamos até à
maturidade”. Não se pode negar o facto de que “maturidade” é uma tradução possível. “É justo
porém notar-se que teleios, a raiz de teleiotëta, significa “completo” e comunica a ideia de
bondade, sem fazer referência à maturidade. Em Col. 3:14, o outro lugar onde aparece teleiotëta, a
NVI traduz a palavra por “perfeito”: “elo perfeito”. No Novo Testamento, teleios é usado não só
no sentido de “maduro”, mas também em contextos em que “maduro” é impróprio como, por
exemplo, a respeito de Deus (Mat. 5:48), Cristo (Heb. 5:9), a obra expiatória de Cristo (Luc.
13:32), a “lei que dá liberdade” (Tia. 1:25), o tabernáculo celestial (Heb. 9:11), e a vontade de Deus
(Rom. 12:2).
D. Totalmente Salvos, Heb. 7:25
O capítulo 7 trata do sacerdócio de Cristo em comparação e contraste com o de Melquisedeque.
Um aspecto do sacerdócio de Cristo, único como também o foi o de Melquisedeque, é que Cristo
vive para sempre: “Portanto, pode também salvar perfeitamente os que por ele se chegam a Deus,
vivendo sempre para interceder por eles” (v. 25).
Aqui, “perfeitamente” traduz eis to panteles, um termo que significa totalidade, mais do que
duração, embora às vezes exprima isto também (Luc. 13:11). Phillips traduz a passagem deste
modo: “Isto quer dizer que pode salvar perfeitamente os que por Ele se aproximam de Deus”. A
93
Bíblia Ampliada Inglês junta as ideias de perfeição e duração: “completamente, perfeitamente,
finalmente, e por todo o tempo e eternidade”.
E. Purificado pelo Sangue, Heb. 9:13-14; 10:10, 14
Heb. 9:13-14 identifica “santificar” com purificação e realça a purificação infinitamente
melhor provida pelo sacrifício de Cristo em comparação com os sacrifícios do Velho Testamento:
“Porque, se o sangue de touros e bodes e a cinza duma novilha espargida sobre os imundos os
santifica quanto à purificação da carne, quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se
ofereceu a si mesmo imaculado a Deus, purificará as vossas consciências das obras mortas, para
servirdes a Deus?” Como nota William Barclay: “Os sacrifícios antigos purificaram o corpo do
homem da sua imundícia cerimonial; o sacrifício de Jesus purificou a alma dos homens”.
Heb. 10:10,14 declara outra vez que o próprio Jesus, na Sua completa submissão à vontade do
Pai, é a oferta pela qual somos santificados: “Na qual vontade temos sido santificados pela oblação
do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez. . . Porque com uma oblação aperfeiçoou para sempre os
que são santificados”.
Em ambos os versículos, “santificados” é uma forma de hagiazö. No v. 10 encontra-se no
tempo perfeito, descrevendo uma situação que se completou e permanece até ao presente. No v. 14
está no presente, e a NVI interpreta-o como reflectindo uma acção contínua, embora Hewitt diga
que essa expressão pode ser “iterativa, significando ‘aqueles que de geração em geração recebem a
santificação’”.
Oscar Cullmann é impressionado pela conjunção de perfeição e santificação, no v. 14.
Escreve:
Assim como o conceito de Jesus como Sumo Sacerdote se cumpre de tal forma que o que
é puramente cúltico se eleva a um nível mais alto, da mesma maneira o conceito puramente
cúltico de teleioun aperfeiçoar a ele aplicado inclui necessariamente o sentido de tornar
moralmente perfeito. Isto acontece numa vida realmente humana – em Jesus, o Sumo
Sacerdote que é aperfeiçoado; e nos irmãos, os santificados, que são aperfeiçoados por ele
(Heb. 2:11).
E acrescenta: “‘Porque, com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados’
(10:14). Teleioun (aperfeiçoar) é quase sinónimo de hagiazein (santificar). Deste modo, 2:11 diz:
‘Porque, assim o que santifica, como os que são santificados, são todos de um’”.
F. Santidade, a Graça Indispensável, Heb. 12:10, 14-17
Em 12:10, 14-17, são dados dois aspectos da santidade:
Porque aqueles os nossos pais, na verdade por um pouco de tempo nos corrigiam como
bem lhes parecia; mas este, para nosso proveito, para sermos participantes da sua
santidade. . . Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor;
tendo cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus, e de que nenhuma raiz de amrgura,
brotando, vos perturbe, e por ela muitos se contaminem. E ninguém seja fornicário ou
profano como Esaú, que por um manjar vendeu o seu direito de primogenitura. Porque bem
sabeis que, querendo ele ainda depois herdar a bênção, foi rejeitado, porque não achou lugar
de arrependimento, ainda que com lágrimas o buscou.
No v. 10, “santidade” é hagiotës, termo definido por W. E. Vine como “a qualidade abstracta
de santidade”, e em todo o Novo Testamento só usado neste verso. Aqui, como diz F. F. Bruce,
“pretende-se significar o aspecto positivo da santidade de vida”, em contraste com a obra
santificadora de purificação anteriormente mencionada no livro. Embora aqui e em II Ped. 1:4 se
usem termos diferentes para “participar” (“participantes da natureza divina”), a ideia é paralela.
Como diz Taylor, “este é o alvo e o desejo supremo de Deus para o homem, e é o objectivo de
todos os Seus feitos redentores. Não podemos compartilhar os atributos naturais de Deus, que
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pertencem somente à Deidade – como omnisciência, omnipotência, etc. No entanto, podemos ser
como Ele em santidade, visto esta ser uma qualidade moral acessível (pela graça) a todos os agentes
morais pessoais”.
Há um parelelo interessante na sequência das ideias contidas em 12:12-14 e em Isa. 35:3-8.
Em ambas as passagens há uma chamada para “confortar as mãos fracas e fortalecer os joelhos
trementes” (Isa. 35:3), seguida de referência a um “caminho de santidade” por onde os “impuros
não passarão” (v. 8).
“A paz com todos” tem um significado inesperado. Escreve William Barclay:
No pensamento e na linguagem hebraica, a paz não era definida na negativa; era
intensamente positiva. Não era apenas ausência de perturbação. Correspondia a duas coisas.
Em primeiro lugar, era tudo que contribui para o bem supremo do homem; significava o mais
elevado bem estar que se pode gozar; aquilo em que a humanidade descobre a sua paz mais
perfeita. . . Em segundo lugar, paz significa um relacionamento correcto entre homem e
homem; um estado em que o ódio é banido e em que cada um busca apenas o bem do seu
próximo; o laço de amor, perdão e serviço que deve manter unidos os homens.
Alexander Purdy acrescenta outra dimensão ao conceito de paz. É mais que “ausência de
dissensão e contenda numa irmandade”. Antes, significa “a segurança calma da vida dedicada e
purificada que terá, com certeza, as suas consequências sociais em relações humanas pacíficas”.
A associação de paz e santidade é significativa. Charles R. Erdman diz: “Para haver paz,
quase tudo pode ser sacrificado, menos a pureza”. Wiley acrescenta: “A palavra diokete, ‘seguir’,
leva consigo não só o desejo de paz, mas a prontidão em ir longe para obtê-la; e a palavra
hagiasmon, ‘santificação’, é um aviso implícito sugerindo que não devemos buscar a paz ao ponto
de comprometer ‘a santificação’ sem a qual ninguém verá o Senhor. Assim, Westcott diz: ‘O
crente busca a paz igualmente com todos, mas também busca a santidade, e esta não pode ser
sacrificada por aquela’”.
Tanto E. C. Wickham como Thomas Hewitt notam a conjunção semelhante de paz e
pureza nas bem-aventuranças de Jesus em Mat. 5:8-9:
Bem-aventurados os limpos de coração
Porque ele verão a Deus.
Bem-aventurados os pacificadores
Porque eles serão chamados os filhos de Deus.
“Sem a santificação ninguém verá ao Senhor” e, segundo F. F. Bruce, tal santidade é, “como
as próprias palavras claramente indicam, não algo extra e facultativo na vida cristã, mas algo que
faz parte da sua essência. São os puros de coração, e somente eles, que verão a Deus (Mat. 5:8).
Santificação ou santidade, devemos lembrar, é o grande termo bíblico para a totalidade da obra
do Espírito Santo em nós, pela qual somos renovados no íntimo e libertos do pecado. Começa na
regeneração ou nascimento do Espírito e é levada a um plano novo e mais alto na plenitude do
Espírito ou inteira santificação (I Tes. 5:23-24). “Embora o santificado viva no mundo”, diz
William Barclay, “num sentido ele tem de ser sempre diferente e separado do mundo. Os seus
padrões não são os do mundo, nem tão-pouco a sua conduta, a conduta do mundo. O seu ideal é
diferente; o seu galardão é diferente; o seu alvo é diferente. O seu alvo é, não estar de bem com os
homens, mas, estar de bem com Deus”. O seu “alvo supremo”, acrescenta Hewitt, “deve ser
devoção a Deus, que só por si produz a pureza de coração e vida e sem a qual ninguém verá o
Senhor”.
“Ver o Senhor” tem sido interpretado de três maneiras: (1) ver a Deus agora, em visão
beatífica (Mat. 5:8); (2) adorar a Deus de forma aceitável – o sentido típico do Velho Testamento,
onde “ver a face de Deus” é a expressão para a verdadeira adoração, e “ver a face de alguém” é ser
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bem recebido por essa pessoa (“fazer o rosto de alguém resplandecer” sobre outrem é derramar
bênção ou favor sobre esta pessoa); ou (3) escatologicamente, estar sem condenação na presença
do Filho do Homem na Sua vinda. Este último é o significado de I João 3:2-3: “. . .Qualquer que
nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é puro”. Está claro que estas
interpretações não são mutuamente exclusivas. Todas podem estar implicadas ao mesmo tempo.
Três razões são oferecidas nos versos 15-17 para nos esforçarmos por viver em paz com todos
e para sermos santos. Cada uma é introduzida pela partícula negativa më, traduzida “ de que não” e
significando “para que não”:
(1) “. . . de que ninguém ou “para que ninguém” se prive da graça de Deus” (v. 15). Isto
pode significar falhar em obter uma graça que está sendo oferecida, ou cair duma graça já obtida.
(2) “. . . de que nenhuma raiz ou “para que nenhuma raiz” de amargura, brotando vos
perturbe, e por ela muitos se contaminem” (v. 15). Estas palavras são interpretadas tanto
sociologicamente – referindo-se a alguém que causa amargura e perturba a comunhão; como
psicologicamente – o pecado interior que perturba o crente e constitui um obstáculo a muitas
pessoas na sua esfera de influência.
(3) “E ninguém seja fornicário ou profano ou, ”e para que ninguém seja devasso ou
profano”, como Esaú . . . (v. 16). Há aqui uma diferença de opinião quanto à aplicação de pornos,
que a NVI traduz “imoral”. Tomada literalmente, liga esta passagem a I Tes. 4:3-6, à discussão de
Paulo àcerca da santificação e imoralidade sexual. William Manson, por outro lado, prefere pensar
nela como relacionada com a infidelidade religiosa ou com a “uma queda espiritual da verdade de
Deus”, e “não com mera sensualidade”.
Neste sentido, “profano” quer dizer comum, não consagrado, literalmente, “aberto a todos”
como uma via pública. É usado como o oposto de “santo”. Wickham escreve: “Aqui, significa
‘sem sentido religioso’. Esaú desmontrou esta falta de sentido religioso ao tratar tão levianamente
a sua primogenitura, com o seu sentido religioso tão importante, o sacerdócio da família e todas as
misteriosas promessas que a acompanhavam”. Como tal profano, ele “foi rejeitado” – “o termo
técnico em grego para a rejeição dum candidato depois de ser examinado e desqualificado”.
Que Heb. 12:14 não deva ser interpretado num sentido estreitamente sectário deve ser óbvio.
O Céu não está fechado a qualquer que não perceba ou não aceite a definição wesleyana da inteira
santificação. Heb. 12:14 tem de ser interpretado à luz de Rom. 5:9: “Logo muito mais agora,
sendo justificados pelo Seu sangue, seremos por ele salvos da ira”. E João 1:7: “Mas, se andarmos
na luz como ele na luz está, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus Cristo, seu
Filho, nos purifica de todo o pecado”. Cada filho de Deus é provisionalmente inteiramente
santificado desde que ande “na luz”.
Ao mesmo tempo, o imperativo é claro. Nenhum cristão está espiritualmente seguro enquanto
se contentar com qualquer coisa abaixo do que Deus providenciou para ele. “Fazer todo o esforço”
implica a busca dum alvo que é atingível e vitalmente importante.
G. Santificados pelo Seu Sangue, Heb. 13:11-13
Em 13:11-13, Wickham vê a conclusão final do autor, em que o Cristianismo não é apenas
superior ao Judaísmo, mas que os dois são incompatíveis. O autor escreve: “Porque os corpos dos
animais, cujo sangue é pelo pecado trazido pelo sumo sacerdote para o santuário, são queimados
fora do arraial. E por isso também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, padeceu
fora da porta. Saiamos pois a ele fora do arraial, levando o seu vitupério”.
O ponto realçado por Paulo em Efé. 5:25-27 e pelo autor do Livro de Hebreus em 10:10,14 é
repetido aqui: A santificação é possível apenas pelo sacrifício de Cristo na Cruz. A santificação,

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bem como a justificação, foi comprada no Calvário. A expressão “o povo” é sempre usada na
Escritura com o sentido de “povo de Deus”. É pelo Seu sangue que este povo é santificado.
Em termos contemporâneos, sair “a ele fora do arraial” é uma chamada para nos auto-
identificarmos com Cristo duma forma que faz lembrar as próprias palavras do Senhor: “Se
alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz e siga-me” (Mat.
16:24). Não saímos a “algo”, mas a “Ele”.
H. A Oração de Bênção, Heb. 13:20-21
Perto do fim de Hebreus há uma oração de bênção com um profundo significado– “uma das
bênçãos mais lindas e mais inclusivas que as Escrituras contêm”: “Ora o Deus de paz, que pelo
sangue do concerto eterno tornou a trazer dos mortos a nosso Senhor Jesus Cristo, grande pastor
das ovelhas, vos aperfeiçoe em toda a boa obra, para fazerdes a sua vontade, operando em vós o
que perante ele é agradável por Cristo Jesus, ao qual seja glória para todo o sempre. Amen” (13:20-
21).
“Vos aperfeiçoe” (katartisai) é explicado por Thomas Hewitt como um termo que
podia ser usado para a reconciliação de facções diferentes, ou a reparação de ossos
fracturados. O seu significado fundamental é “reparar o que está partido” ou “restaurar o que
foi perdido”. Segundo Westcott, “inclui o conceito duma combinação harmoniosa de poderes
diferentes (Efé. 4:12), do suprimento do que está defeituoso (I Tes. 3:10), e da correcção do
que está errado. Se esta definição tripla puder legitimamente ser aplicada à palavra usada
neste verso, então, por uma simples palavra, o autor provê a solução de todos os problemas da
Igreja.
Richard S. Taylor escreve: “Isto é claramente uma capacitação espiritual para a operação,
completa e sem impedimento, da vontade de Deus. ‘Em toda a boa obra’ – um coração puro pelo
enchimento do Espírito Santo; e o aoristo sugere uma acção divina plena e completa. Que
descrição apropriada da inteira santificação como uma segunda e definitiva obra da graça!”

II. TIAGO
A carta de Tiago é o livro de sabedoria” do Novo Testamento. A sua ênfase está sobre as
aplicações práticas da fé e da experiência cristã aos assuntos da vida. Tiago trata de assuntos como
a tentação, os ricos e os pobres, a fé e as obras, o uso e o abuso da língua, a necessidade de
persistência, e a importância da oração. A carta, escreve C. L. Milton, “é principalmente uma série
de exortações à verdadeira santidade cristã de vida, isto é, ao amor perfeito a Deus e ao homem”.
Tiago “viu claramente que um verdadeiro cristão, uma vez convertido, deve estabelecer para si
mesmo o objectivo da verdadeira santidade”. Mitton vê um paralelo entre o uso que Tiago faz do
seu adjectivo favorito “perfeito” e a doutrina wesleyana da perfeição cristã.
A. Perfeitos e Completos, Tia. 1:4
Tia. 1:4 estabelece o tom da carta: “Tenha, porém, a paciência a sua obra perfeita, para que
sejais perfeitos e completos, sem faltar em coisa alguma”. Mitton escreve:
A palavra “perfeito (no grego, teleios) é uma palavra favorita de Tiago. Além do seu uso
repetido neste verso, ela ocorre também em 1:17, 25; 2:22; 3:2. Aqui, Tiago urge que os
seus leitores estabeleçam o alvo de se tornarem PERFEITOS E COMPLETOS, SEM FALTAR EM
COISA ALGUMA. Não há maneira de escapar, por mais desconcertante que isto seja, a este
apelo elevado e sem compromisso pronunciado aqui e em outras partes do Novo Testamento
quanto ao que tem sido chamado “a Perfeição Cristã” como o propósito de Deus para o Seu
povo cristão. Tiago realça esta chamada à perfeição acrescentando a palavra “completos”
(grego, holokleros) e a frase “sem faltar em coisa alguma”. “Perfeito” significa “tendo
alcançado pleno desenvolvimento”. “Completo” quer dizer “com nenhuma parte inacabada”.

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B. O Homem de Coração Dobre, Tia. 1:8
O termo “coração dobre” usado por Tiago (“o homem de coração dobre é inconstante em todos
os seus caminhos” – 1:8) é, segundo seu uso em 4:8, equivalente ao homem “carnal” descrito por
Paulo em I Cor. 3:1-3. A palavra é dipsuchos, literalmente, “possuindo duas almas”. Ele tem a
mente de Cristo, mas é influenciado pela mente carnal (Rom. 8:5-8; Gál. 5:17, 24). Ele nunca
experimentou uma resposta à oração do Sal. 86:11: “Une o meu coração”. O resultado de um
coração duplo é a instabilidade; akatastatos significa leviano, cambaleando, titubeando como um
homem embriagado. O remédio em 4:8 é a pureza de coração.
C. A Natureza da Tentação, Tia. 1:14-15
Tia. 1:14-15 define tentação e a relação desta com o pecado tanto no coração como na vida:
“Mas cada um é tentado quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência. Depois,
havendo a concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado; sendo consumado, gera a
morte”.
É duvidoso se “concupiscência” é a melhor tradução para epithumias (desejo forte de qualquer
espécie). Uma melhor tradução seria: “Mas cada um é tentado quando atraído e engodado pelo seu
próprio desejo. Depois, tendo o desejo concebido, dá à luz o pecado. . .”
Desejo em si não é pecado. Pode surgir dos instintos e das necessidades humanas. As
tentações do coração puro chegam por desejos que são uma parte natural e legítima da nossa
humanidade. É desta maneira que Jesus foi tentado. É quando a vontade do indivíduo cede ao
desejo, à custa da obediência à vontade conhecida de Deus, que o desejo concebe e dá à luz o
pecado. O resultado do pecado “completamente desenvolvido” – isto é, aceite de novo como
princípio de acção – é a morte espiritual. Leo G. Cox escreve:
Nestes versos há claramente três categorias. Primeiro, na tentação o indivíduo é atraído
pelos seus próprios desejos. Isto é verdade mesmo na vida santificada. Segundo, esta
atracção pode conceber e gerar o pecado. Torna-se então num desejo pecaminoso, como os
que se encontram no crente não inteiramente santificado ou que perdeu esta bênção. Terceiro,
quando este desejo que se tornou pecaminoso se desenvolve completamente – ganha o
consentimento da vontade – mata toda a vida espiritual. Este é o quadro do apostatado, ou do
pecador que voluntariamente transgride.
D. A Religião Pura, Tia. 1:27
Em 1:27, Tiago fala da “religião pura e imaculada para com Deus, o Pai”. “Religião” é uma
palavra raras vezes usada no Novo Testamento e sempre, à excepção daqui, com o sentido de falsa
religião. Significa a expressão exterior da piedade. Ser religioso, no sentido grego, era ser
cuidadoso nas expressões exteriores do serviço divino. Aqui, Tiago usa o termo “religião” (e
“religioso”, v. 26) como a exteriorização própria e necessária da devoção interior a Deus. Um
“coração puro” deve reflectir-se numa “religião que Deus nosso Pai aceita como pura e imaculada”
(amiantos, “livre de contaminação).
“Para o cristão”, escreve Burton Scott Easton, “guardar-se da corrupção do mundo significa
‘evitar o pecado de toda a espécie’”. E Alexander Ross acrescenta: “No desempenho de tarefas
caridosas poderá haver por vezes o perigo de poluição moral e espiritual; portanto, Tiago exorta o
crente a guardar-se imaculado do “contágio da mancha insidiosa do mundo”. Ross continua: “Não
deve haver um isolamento egoísta de todo o contacto com a miséria da humanidade, mas ao mesmo
tempo o crente tem de zelar por manter a pureza pessoal no relacionamento com outros”.
E. Sabedoria, Tia. 3:13-17
Tiago não fala só dum coração puro e duma religião pura, mas também da “sabedoria que do
alto vem que é primeiramente pura, depois pacífica, moderável, tratável, cheia de misericórdia e
de bons frutos, sem parcialidade e sem hipocrisia” (3:17). Esta sabedoria contrasta com a falsa
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sabedoria, que é terrena, animal e diabólica”, e que se evidencia pela “inveja e espírito faccioso”
(vv. 13-16)..
A sabedoria pura ama a paz, é sensível às necessidades dos outros, é tratável (paciente, não
contenciosa, “justa, equitativa, moderada, não insistindo na letra da lei”), submissa (“conciliatória”,
Moffatt; “aberta à lógica”, RSV; “disposta a ceder”, Goodspeed; lit., pronto a obedecer) cheia de
misericórdia e de bom fruto (“cheia de compaixão e produz uma colheita de boas obras), imparcial
(sem preconceitos; lit., não julgando) e sincera (sem pretensões, sem hipocrisia).
James Moffatt escreve:
Originalmente, a sabedoria era o conhecimento dos deveres e dos perigos da vida moral,
como revelados na lei de Deus; e como o estudo da lei era dirigido a fins práticos, ela
implicava qualidades práticas na vida daqueles que a ensinavam. Aqui o significado de puro
é visto melhor no uso do verbo em 4:8, ou em I Ped. 1:22f. Sugere uma vida sem mácula por
ser inspirada e influenciada do alto por Deus, livre de motivos e métodos impuros,
especialmente de agressividade e contenda.
Alexander Ross cita James A. Robertson que diz que tal sabedoria “é pura porque tem a sua
origem num Deus totalmente santo, procede do Seu santo trono e inspira sempre no seu recipiente o
desejo de viver uma vida santa”.
F. A Graça Maior de Deus, Tia. 4:5-8
Tia. 4:5 é reconhecido como um dos versos mais difíceis de toda a carta: “Ou cuidais vós que
em vão diz a escritura: o espírito que em vós habita tem ciúmes. . . ?” O ditado é apresentado como
uma citação das Escrituras. No entanto não há qualquer passagem bíblica que possa ser
reconhecida como a sua origem. É possível que Tiago esteja a resumir o que ele percebe ser a
mensagem geral das Escrituras.
A frase em si é difícil de interpretar. Os tradutores e os comentaristas não concordam quanto
ao seu significado. Alguns acham que “o espírito que em vós habita” é o Espírito Santo que no
povo de Deus luta para o manter fiel a Si. Esta é a interpretação de Weymouth: “O Espírito que
Ele fez habitar em nós tem ciúmes”; e da NVI, que diz: “O Espírito que Ele fez habitar em nós tem
intensos ciúmes”.
Outros crêem que o verso quer dizer que Deus anseia pela lealdade do espírito humano que Ele
pôs dentro de nós. Esta é a interpretação de Moffatt: “Ele anseia ciumentamente pelo espírito que
pôs em nós”; e a outra alternativa na margem da NVI: “Deus tem intensos ciúmes pelo espírito
que ele fez habitar em nós”. Outras versões em inglês também aceitam esta interpretação (RSV).
Uma terceira possibilidade é sugerida pela interpetação da Versão do Rei Tiago (inglês): “O
Espírito que habita em nós deseja invejar” e por outras versões em inglês: “O espírito que Deus
implantou no homem vira para os desejos ciumentes” (NEB); “O espírito que Deus pôs em nós
está cheio de desejos ferozes (TEV); “O Espírito que ele fez viver em nós inclina-se para a inveja”.
Este é o espírito humano, criado por Deus mas corrompido pelo pecado e controlado pelos desejos
que surgem da condição carnal da alma não santificada. “É a natureza pecaminosa que deseja o que
é contrário ao Espírito” (Gál. 5:17) ou “a natureza pecaminosa que resulta em “mentes fixas no que
essa natureza deseja, “a mente carnal que é inimizade contra Deus. . . e não é sujeita à lei de
Deus, nem em verdade o pode ser (Rom. 8:5,7).
Mitton prefere a segunda interpretação (com Moffatt e a RSV), mas admite que a terceira
(NEB, TEV) prepara mais satisfatoriamente para a “frase que se segue, pois se este verso for uma
afirmação da corrupção que infesta o coração humano, é muito apropriada a referência (no v. 6) ao
suprimento ainda mais abundante da graça de Deus para combater esse mal”.
Portanto, a resposta ao problema do espírito corrompido do homem é: “Antes dá maior ou
uma maior graça” (v. 6). É uma graça negada aos orgulhosos e auto suficientes. É concedida
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abundantemente aos humildes. O caminho para esta maior graça é: “Sujeitai-vos a Deus, resisti ao
diabo, e ele fugirá de vós. Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós. Alimpai as mãos, pecadores;
e vós de duplo ânimo, purificai os corações” (vv. 7-8).
O termo “sujeitai-vos” é uma tradução de hupotassö. É principalmente um termo militar e
quer dizer “ter um posto inferior”, ser sujeito, obedecer. É quase sinónimo do grande termo de
Paulo traduzido “oferecer”, “ceder” ou “apresentar” (Rom. 6:13, 19; 12:1), palavras que têm o
significado que normalmente atribuímos a “consagrar” ou “consagração”.
“Purificai os vossos corações” é hagnisate kardias. Hagnizö significa “purificar, limpar da
imundícia”. É usado num sentido cerimonial em João 11:55; Act. 21:24, 26; 24:18. Mas é
também usado no sentido moral, para a purificação da alma (I Ped. 1:22) ou própria pessoa (I João
3:3). É semelhante a hagnos, “puro da carnalidade”, “imaculado”, “casto”. Significa “limpo de
contaminação”. Quando usado no sentido ético, é o termo mais englobante oferecido pela língua
grega para a purificação de todo o pecado.
Um coração puro é a solução para um coração dobre: “Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a
vós. Alimpai as mãos, pecadores; e, vós de duplo ânimo, purificai os corações”. O paralelo com o
Sal. 24:3-4 é evidente: “Quem subirá ao monte do Senhor, ou quem estará no seu lugar santo?
Aquele que é limpo de mãos e puro de coração” (cf. também Sal. 73:13). “Interiormente e
exteriormente um homem tem de ser limpo”, diz William Barclay, “pois só os puros de coração
verão a Deus (Mat. 5:8)”. “Tudo no interior tem de estar do lado de Deus.” Adam Clarke escreve:
Separa-te do mundo e consagra-te a Deus: Eis a verdadeira noção de santidade. . . Estão,
portanto, implicadas duas coisas. . . 1. Que a pessoa se separa dos maus caminhos e dos maus
companheiros, e se dedica a Deus. 2. Que Deus tira a culpa da consciência e o pecado da
alma, e assim o faz santo externa e internamente. . . Como o homem é pecador, as suas mãos
precisam de ser lavadas das obras malignas. Como ele é de coração dobre, seu coração tem
de ser santificado. A santificação diz respeito ao coração por causa da poluição da mente; a
lavagem diz respeito às mãos por causa dos actos pecaminosos.

III. AS CARTAS DE PEDRO


As duas cartas de Pedro vêm aproximadamente do mesmo período de tempo que as cartas de
Paulo a Timóteo e a Tito. Foram provavelmente escritas pouco depois do ano 63 d.C., pois vê-se
nelas a ameaça duma perseguição maior, como aquela que aconteceu sob o impeador Nero. É
mesmo possível que o lugar de origem tenha sido Roma, se for válida a tradição que fixa ali o
martírio de Pedro pouco tempo depois.
A Primeira Epístola de Pedro tem sido apelidada a “Epístola de Esperança”. E também
chamada o melhor comentário jamais escrito acerca da beatitude “Bem aventurados os que sofrem
perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus” (Mat. 5:10).
A. A Obra Santificadora do Espírito, I Ped. 1:1-2
Como acontecia com Paulo, Pedro preocupava-se que os cristãos sob o seu cuidado fossem
dignos da sua alta vocação. Ele dirige-se “aos estrangeiros dispersos no Ponto, Galácia, Capadócia,
Ásia e Bitínia; eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a
obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo” (1:1-2).
Archibald Hunter nota “o tom trinitário e a simetria das palavras de Pedro” e o paralelo com II
Tes. 2:13-14. Ele chama à ideia de Deus aqui expressa “a experiência trinitária”, da qual se
originaram mais tarde as afirmações dos credos. Os cristãos primitivos, diz ele, “descobriram pela
experiência que não podiam expressar tudo o que queriam dizer pela palavra ‘Deus’ enquanto não
dissessem: ‘Pai, Filho e Espírito’”. E continua: “Os cristãos eram então, como ainda o são hoje,
pessoas que, acompanhadas pelo Filho, estão buscando, encontrando e fazendo a vontade do Pai
pela força e direcção do Espírito”.
100
John Wick Bowman observa que “a obra santificadora do Espírito” é uma frase que sugere o
ensino central da carta como um todo, o que significa que o caminho cristão é de santificação ou de
santidade como a de Deus (1:15, 16)”. “Obediência a Jesus Cristo” e “aspersão do sangue de Jesus
Cristo” sugerem temas importantes da carta. No v. 14 a obediência é contrastada com “as
concupiscências os desejos maus que antes havia em vossa ignorância”, e Bowman nota que “no
verso 22 esta obediência é relacionada à purificação ou santificação e é definida como ‘obediência à
verdade’”.
Roy S. Nicholson nota que a santificação aqui descrita inclui “tanto o processo como o
resultado dessa operação do Espírito Santo pela qual o coração do homem é purificado do mal
moral e o eu é totalmente ajustado à vontade de Deus”.
À semelhança de Paulo, Pedro reconhece o Espírito como o Agente pelo qual a santificação
ocorre no coração humano. “É o Espírito de Deus que purifica do pecado o nosso eu interior”. A
referência de Pedro à “aspersão do sangue” tem em vista o acto vetero-testamentário de espargir o
sangue do sacrifício sobre o povo, confirmando o concerto de Deus (Êxo. 24:1-8), e o ritual pelo
qual o leproso era purificado (Lev. 14:12-18).
B. Como Deus É Santo, I Ped. 1:14-16, 22
Pedro usa um imperativo do Velho Testamento que no seu contexto em Levítico se referia
tanto à santidade cerimonial como à ética, e associa-o directamente com a conduta cristã: “Como
filhos obedientes, não vos conformando com as concupiscências que antes havia em vossa
ignorância; mas, como é santo aquele que vos chamou, sede vós também santos em toda a vossa
maneira de viver, porquanto escrito está: Sede santos, porque eu sou santo” (1:14-16; cf. Lev.
11:44-45; 19:2; 20:7). James Moffatt escreve:
Santidade, “a mais profunda de todas as palavras que desafiam qualquer definição” (Lord
Morley), implica aqui como em outros lugares uma renúncia do que é mundano e corrupto,
pela força de uma compreensão superior de Deus. Sede santos porque eu sou santo
representa agora para os cristãos a chamada para reproduzirem a natureza genuína de Deus, a
Sua bondade, justiça e pureza moral.
Nem tão-pouco é aqui a conduta santa conseguida humanamente, por muito que a sua
realização dependa da nossa receptividade. Bo Reicke comenta:
A santidade não é um atributo do homem, e este não a pode atingir sozinho nem
santificar-se aos poucos e então triunfantemente apresentar os resultados a Deus. Pelo
contrário, a santidade pertence a Deus; Ele é o único que é Santo. E porque o é, o Seu povo
deve viver uma vida santa diante d’Ele. Esta doutrina de santidade centrada em Deus difere
da ideia de que o homem, pela vida santa, pode desenvolver uma personalidade santa.
Hunter comenta a citação do Velho Testamento: “O Cristianismo, não menos que o Judaísmo,
chama à santidade; mas a santidade que exige não é ritualista e exterior, mas interior – a santidade
dos ‘puros de coração’, que ‘verão a Deus’ porque são semelhantes a Ele” Pedro “compreende a
santidade ou pureza como sendo inteiramente moral”. E Allan M. Stibbs escreve: “É, portanto, a
revelação do carácter de Deus e a chamada para ser intimamente relacionado com Ele que faz da
santidade uma obrigação. Assim, na revelação bíblica a religião e a ética estão fundamentalmente
associadas”.
A ideia de pureza interior é continuada no verso 22: “Purificando as vossas almas na
obediência à verdade, para amor fraternal, não fingido; amai-vos ardentemente uns aos outros, com
um coração puro” (1:22). “Purificando as vossas almas” é, como diz Moffatt, “o outro lado da
santidade mencionada no v. 15”. Hunter parafraseia: “A vossa aceitação obediente da verdade do
evangelho purificou as vossas almas e as preparou para o verdadeiro amor dos irmãos: portanto,
deixai que o vosso amor uns pelos outros seja expontâneo e ardente”. E Reicke diz: “Assume-se

101
que esta purificação inclui ser-se liberto dos desejos maus. Pois diz-se que o seu resultado é um
amor fraternal sincero e sem engano, o qual não é possível à velha natureza carnal”.
C. O Sacerdócio Santo, I Ped. 2:4-5, 9-12
Um conceito declarado por Paulo em I Cor. 3:16 e Efé. 2:19-22 é reiterado por Pedro em 2:4-
5: “E, chegando-vos para ele – pedra viva, reprovada na verdade pelos homens, mas para com
Deus eleita e preciosa, vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e sacerdócio
santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo”. A santidade do
sacerdócio é posta num contexto moral e ético (2:1-3) e contrasta com o caminho da incredulidade
(vv. 7-8). O sacerdócio do Velho Testamento tinha de ser ritual e cerimonialmente santo; o
sacerdócio do Novo Testametno deve ser eticamente justo e pessoalmente santo.
A Igreja, sendo o “Novo Israel”, realiza num plano espiritual o que o Velho Israel devia ter
exemplificado num plano geográfico e político. Pedro aplica aos seus leitores a grande declaração
de Êxo. 19:6, e por consequência urge que eles vivam em santidade (2:11ff.) – “Mas vós sois a
geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes
daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (2:9).
D. Participantes da Natureza Divina, II Ped. 1:3-4
A Segunda Epístola de Pedro inclui duas passagens de significado especial para o nosso tema.
Uma é 1:3-4: “Visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade,
pelo conhecimento daquele que nos chamou por sua glória e virtude; pelas quais ele nos tem dado
grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas fiqueis participantes da natureza divina,
havendo escapado da corrupção, que pela concupiscência há no mundo”.
Aqui “o apóstolo faz da chamada divina a base do seu apelo para a vida santa. . . O argumento
é que Aquele que chama, capacita”. Ele realça tanto “o poder divino” como a “natureza divina”. O
poder divino – expressão hebraica para designar Deus através do Espírito Santo – tem-nos dado
tudo que é necessário para a vida e piedade, um dom concedido “pelo conhecimento” do Salvador
tanto como o Jesus da história quanto o Cristo da fé – um conhecimento tanto histórico como
existencial”.
Pelas “grandíssimas e preciosas promessas de Deus” tornamo-nos participantes de – tomamos
parte em – a natureza divina. A referência às promessas de Deus paralela a declaração de Paulo em
II Cor. 7:1: “Ora, amados, pois que temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da
carne e do espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus”. Elmer Homrighausen escreve:
Participar da natureza de Deus. . .significa uma relação íntima com o Espírito de Deus:
Seu carácter moral, Seu propósito santo, Seu amor salvador, Sua luz curadora, Seu interesse
ardente pela justiça, Sua compaixão sofredora, Sua rectidão, Seu soberania vitoriosa e
universal. Neste sentido, a vida cristã não é uma imitação de Cristo, como se fosse uma
espécie de figurino para ser copiado. . . Nós participamos da natureza de Cristo. Não
tomamos a Cristo como um modelo externo; recebemo-l’O como uma força interna. Paulo
expressa-o assim: “. . . vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gál. 2:20).
A ideia de sermos participantes da natureza divina de Cristo – a natureza que Ele compartilha
com o Pai e o Espírito – é enorme no seu alcance. B. T. Roberts oferece uma interpretação e um
aviso essenciais. Ele nos relembra que a santidade do homem é derivada. Não é inata ou original.
É a imagem da santidade de Deus. A santidade no homem, diz Roberts, “é parecida com a
santidade divina, mas fica muito aquém dela”. A semelhança está em possuir, “num grau limitado,
o ódio pelo pecado, a sinceridade, a veracidade, a justiça, o amor, a bondade e todas as virtudes que
constituem, na sua plenitude, a santidade de Deus”. Compara-se com um copo de água tirada do
oceano, possuindo todas as propriedades químicas do oceano, mas não a sublimidade, a grandeza e
o poder daquilo de que se originou.

102
Associado à participação da natureza divina vem o escape “da corrupção do mundo causada
pelos maus desejos” – “ a corrupção que está no mundo por causa da paixão” (RSV). Estas
palavras permitem uma interpretação sociológica: a sociedade é corrompida por operar nela a
epithumia – neste contexto, maus desejos. Mas essas palavras também permitem uma aplicação
subjectiva ou psicológica. Escapamos da corrupção da nossa própria natureza (como em Efé. 4:22)
pela operação interior do poder divino e uma comunicação da natureza divina.
A graça que ministra o poder divino e a natureza divina é a motivação para acrescentar “à
vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, e à ciência temperança, e à temperança paciência, e à
paciência piedade, e à piedade amor fraternal, e ao amor fraternal amor” (1:5-7). Estas virtudes são
a base de um trabalho feito por T. M. Anderson, intitulado After Holiness, What? [Depois da
Santidade, o Que Vem?] A partir do uso que Pedro faz, no v. 8, do termo “estéreis” (akarpous,
lit., sem fruto), estas virtudes constituem o seu sumário do fruto do Espírito.
E. Vidas Santas e Piedosas, II Ped. 3:9-14, 17-18
Como fez Paulo em I Tessalonicenses, Pedro coloca a chamada à santidade num contexto
escatológico. No capítulo 3, numa passagem rica, o autor faz referência ao cepticismo prevalecente
quanto ao regresso de Cristo. Ele reconhece a possibilidade de atrazos e afirma que o calendário de
Deus não é limitado como o nosso. Mas a própria demora é evidência da paciência de Deus, “não
querendo que alguém se perca, mas que todos venham ao arrependimento” (3:9).
“Mas o dia do Senhor virá como o ladrão de noite”, continua o apóstolo. “Os céus passarão
com grande estrondo, e os elementos, ardendo, se desfarão, e a terra, e as obras que nela há, se
queimarão.
“Havendo pois de perecer todas estas coisas, que pessoas vos convém ser em santo trato e
piedade, aguardando, e apressando-vos para a vinda do dia de Deus. . .?
“Pelo que, amados, aguardando estas coisas, procurai que dele sejais achados imaculados e
irrepreensíveis em paz” (3:10-12, 14).
Hunter escreve que “santo trato e piedade (v. 11) se refere a maneiras como a vida santa se
manifesta. A referência é fundamentalmente à ‘vida e piedade’ (1:3) para as quais Cristo capacita
os homens”. “Santidade de vida, adoração a Deus e serviço aos homens são as três conclusões
práticas derivadas do estudo do advento.”
A última palavra de Pedro é um aviso contra a presunção e uma exortação ao crescimento
espiritual: “Vós, portanto, amados, sabendo isto de antemão, guardai-vos de que, pelo engano dos
homens abomináveis, sejais juntamente arrebatados, e descaiais da vossa firmeza; antes crescei na
graça e conhecimento do nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo. A ele seja dada a glória, assim
agora como no dia da eternidade. Amén” (3:17-18). Segurança e crescimento estão intimamente
relacionados.
Isto tem sido dito frequentes vezes e merece ser repetido. William McDonald escreve: “A não
ser que a alma brame por mais de Deus, brame por mais da plenitude da qual se tornou participante
no momento em que foi purificada; a não ser que a fé procure e consiga ampliar-se, e o amor
aumente em intensidade, não só não haverá crescimento como não se manterá a graça já alcançada.
J. A. Wood realça o mesmo ponto: “O crente que não cresce torna-se caprichoso, lamuriento e
infeliz, como uma criança que deixou de crescer. Não será esta a razão por que tantos professores
de religião se tornam fracos, irrequietos e insatisfeitos? Na natureza, quando cessa o crescimento a
deterioração e a morte estão à porta. . . . não progredir é regredir, e retrocesso é destruição”.

IV. A PRIMEIRA EPÍSTOLA DE JOÃO

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Há muito que se notou a relação íntima entre a Primeira Epístola e o Evangelho de João.
Alguns argumentam que a epístola foi “escrita para acompanhar e servir de introdução ao
evangelho”, e outros mantêm que é um pós-escrito ao evangelho – tendo este a finalidade de
explicar como se pode ter a vida eterna, e a carta a de mostrar como se pode ter certeza dessa vida.
A Epístola de I João reflecte um fundo de controvérsia que consistia numa forma de
gnosticismo docético que ensinava que a salvação derivava dum tipo especial de conhecimento, e
que a incarnação teve lugar só na aparência. Juntas, estas ideias conduziam a uma forma extrema
de licenciosidade. A oposição de João a ambos os pontos é consistente e clara.
J. A. Robertson sugere que a epístola está organizada à volta de três definições de Deus, às
quais se acrescentam três testes da possessão da vida eterna. A primeira definição é “Deus é luz”
(1:5), e o teste é “Andamos na luz?” A segunda definição é “Deus é vida” (2:25), e a pergunta
examinadora, “Somos nascidos de Deus?” A terceira definição é “Deus é amor” (3:8), e o teste
correspondente, “Permanecemos no Seu amor?”
A. Purificação de Todo o Pecado, 1:5-10
Uma passagem importante encontra-se em 1:5-10:
E esta é a mensagem que dele ouvimos e vos anunciamos: que Deus é luz e não há nele
trevas nenhumas. Se dissermos que temos comunhão com ele, e andarmos em trevas,
mentimos e não praticamos a verdade. Mas, se andarmos na luz, como ele na luz está, temos
comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o
pecado.
Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em
nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo, para nos perdoar os pecados, e nos
purificar de toda a injustiça. Se dissermos que não pecámos, fazemo-lo mentiroso, e a sua
palavra não está em nós.
A simetria duma afirmação seguida pela refutação duma falsidade é aparente e importante para
uma interpretação correcta:
Afirmação Refutação duma falsidade
Nº 1: “Deus é luz e não há nele trevas “Se dissermos que temos comunhão com ele,
nenhumas (v. 5). e andarmos em trevas, mentimos e não
praticamos a verdade” (v. 6).
Nº 2: “Mas, se andarmos na luz, como ele na “Se dissermos que não temos pecado,
luz está, temos comunhão uns com os enganamo-nos a nós mesmos, e não há
outros, e o sangue de Jesus Cristo, seu verdade em nós” (v. 8).
Filho, nos purifica de todo o pecado”
(v. 7).
Nº 3: “Se confessarmos os nossos pecados, “Se dissermos que não pecámos, fazemo-lo
ele é fiel e justo, para nos perdoar os mentiroso, e a sua palavra não está em nós”
pecados, e nos purificar de toda a (v. 10).
injustiça” (v.9).
Como temos visto, para interpretar correctamente esta passagem é importante que se reconheça
o seu padrão. A falsidade que se segue a cada afirmação, e que é refutada, constitue em todos os
casos uma negação ou evasão da verdade que foi afirmada.
Nº 1: A verdade é que Deus é luz. A noção falsa é que alguém pode ter comunhão com
Aquele que é luz e ainda andar em trevas. Esta reivindicação é uma mentira e evidência de que o
seu autor não vive pela verdade.

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Nº 2: A verdade é que o sangue de Jesus, o Filho de Deus, nos purifica de todo o pecado. A
posição falsa é que não temos pecado do qual precisemos de ser purificados. Esta reivindicação
provém de uma auto-decepção e uma total falha em compreender a verdade.
Nº 3: A verdade é que o Deus fiel e justo nos perdoa os pecados e nos purifica de toda a
injustiça. A falsidade é que não pecámos e portanto não precisamos de perdão. Esta reivindicação
faz de Deus mentiroso (cf. Rom. 3:23), e torna evidente que a Sua Palavra não tem lugar nas nossas
vidas.
Argumenta-se frequentemente que o v. 8 destrói qualquer ideia de libertação do pecado
interior. Assim seria se não fosse o contexto e a posição que o versículo ocupa na secção em que se
encontra. O v. 8 não só contradiz a noção gnóstica de que o conhecimento exotérico purifica a
alma, como também contradiz qualquer ensinamento que faça a santificação sinónima da
justificação (como Wesley interpretava os ensinos de Zinzendorf) ou qualquer ponto de vista que
apouque o conceito bíblico do pecado inato (como faz a teologia liberal optimista).
Brooke Foss Westcott declara acerca do sangue purificador de Jesus descrito em 1:7: “O
sangue acarreta a real ausência de pecado que é essencial à união com Deus”. A ideia não é ter
apenas o perdão dos pecados, mas a remoção do pecado: “O pecado é expulso; e a acção
purificadora é exercida continuamente. . . . Aqui está-se a falar de ‘pecado’ e não de ‘pecados’: da
fonte, do princípio, e não das manifestações isoladas”.
Embora não concorde com o que entende por “perfeccionismo”, Alexander Ross escreve: “O
Deus justo nos purifica de toda a injustiça, removendo a poluição do pecado; de forma que a nova
vida de santidade começa na alma, trazendo-a à conformidade total com a imagem do Filho de
Deus (Rom. 8:29), o qual em 2:1 é chamado ‘o Justo’”.
Daniel Steele cita Henry Alford com respeito à diferença entre “nos perdoar os pecados” e “nos
purificar de toda a injustiça”: “No verso 9 ‘nos purificar de toda a injustiça’ é claramente diferente
de ‘nos perdoar os pecados’; diferente como um processo mais avançado; como, numa palavra, a
santificação é distinta da justificação”. Alford nota que os dois verbos são aoristos, o que se
explica, diz ele, “porque o propósito de Deus é realizar cada uma destas obras através de uma acção
poderosa e complexa – justificar e santificar completa e inteiramente”.
B. Libertação do pecado, 2:1-6
No segundo capítulo, João continua com a mesma ênfase:
Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis; e, se alguém pecar, temos um
Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo. E ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não
somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo.
E nisto sabemos que o conhecemos: se guardarmos os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu
conheço-o, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade. Mas qualquer
que guarda a sua palavra, o amor de Deus está nele verdadeiramente aperfeiçoado: nisto conhecemos
que estamos nele. Aquele que diz que está nele, também deve andar como ele andou (vv. 1-6).
Na opinião do apóstolo, a vida cristã normal está livre de actos pecaminosos. A frase “isto vos
escrevo para que não pequeis” pressupõe que tal vida é possível e esperada. Na vida cristã não há
permissão para o pecado. Mas, se este tiver lugar, há provisão para ele. E até essa mesma provisão
reconhece o padrão: “Se alguém pecar” não é o mesmo que “Quando pecamos”. O Dr. Samuel
Young expressa-o claramente:
Mas que faz o cristão que é vencido por um pecado? Volta depressa para Deus para obter
perdão e ajuda. Não espera por um culto público ou uma campanha evangelística. Pode ser
que procure um crente mais experiente ou o seu pastor, para com ele orar. Mas seria ainda
melhor se orasse sozinho, em vez de demorar. João disse-o claramente: “E, se alguém pecar,
temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo o justo” (I João 2:1). Isto não é provisão
para uma religião que permite o pecado; antes, é provisão para a cura do pecado. João indica
105
que Jesus é o Sacrifício de expiação pelos nossos pecados. Também revela que o que
escreveu foi para os guardar de pecar. Uma pessoa não pode pecar todos os dias e arrepender-
se todas as noites. Perderia a sua sinceridade (pois o arrependimento inclui cortar com o
pecado) ou a sanidade (pois não se pode brincar com a própria mente neste tipo de vai-vém).
O propósito de Deus é o dom e morte de Seu Filho para nos salvar dos nossos pecados.
R. Newton Flew escreve: “Mais uma vez ouvimos, como apanágio do crente, a nota austera da
liberdade absoluta do pecado. . . . Pode haver uma queda deste padrão ideal (I João 2:1). Mas isto é
evidentemente considerado um caso excepcional. A possibilidade de cumprir as exigências de
Deus é apresentada mais tarde na epístola (I João 3:22).
Daniel Steele acrescenta: “A forma verbal indica um acto isolado de pecado pelo qual a pessoa
regenerada é apanhada de repente, indo contra o verdadeiro propósito e rumo da sua vida (1:7); em
contraste com uma carreira ou estado habitual de pecado”.
Quando a 2:1-2 se relaciona a ênfase de 1:7, 9 sobre a purificação de “todo o pecado” e “de
toda a injustiça”, torna-se aparente a justeza do que diz Allister Smith:
Em I João 2:1, lemos: “Se alguém pecar, temos um Advogado com o Pai, Jesus Cristo o
justo”. É importante refugiarmo-nos imediatamente em Cristo para purificação. Quando uma
ovelha cai na lama, fica triste e clama por liberdade. Mas um porco fica contente na lama e não
procura ser libertado. Sejamos cordeiros imaculados, andando com o Cordeiro de Deus dia
após dia. Quanto mais andarmos com Ele, mais progrediremos na vida santificada, e será
menos provável que pequemos. Mas nunca poderemos dizer que não precisamos do sangue de
Cristo.
Devemos esclarecer que João não está a falar do pecado premeditado que caracteriza o coração
apostatado. Ele trata desse pecado em I João 3:8-9. Aqui temos o que os autores clássicos de
santidade chamam “o pecado de surpresa”, o resultado de ceder momentâneamente a uma tentação
forte e inesperada. Tal pecado deve ser imediatamente renunciado e confessado. Falhar nisto é cair
em contínua desobediência e incredulidade.
C. Como Cristo É Puro, 3:2-11
À semelhança de Paulo e Pedro, em 3:2-3 João coloca o imperativo da santidade num contexto
escatológico: “Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que havemos de
ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como é
o veremos. E qualquer que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é
puro”.
Os eruditos diferem quanto ao significado de “e quando ele se manifestar, seremos semelhantes
a ele, porque, assim como é o veremos”. Alguns lêem nisto a “glorificação” ou transformação da
nossa mortalidade, como em Fil. 3:21. Outros notam que esta interpretação exigiria que a forma
fosse “tornar-nos-emos como Ele”, em vez de “seremos como Ele”, e assim relacionam o v. 2 com
a conclusão do v. 3: são “os puros de coração” que verão a Deus (Mat. 5:8).
Em ambos os casos, a esperança de ver a Cristo é o incentivo supremo para alguém se
purificar. O padrão e a medida daquela pureza é “como ele é puro”. Esta é uma santidade
empírica, não uma santidade de posição.
Não se indica aqui uma auto-santidade. Embora veja neste versículo uma forma de santidade
progressiva, a despeito da forma aorista do verbo, Ross escreve: “Embora seja só o sangue que
pode purificar (1:7), sobre cada um de nós recai a responsabilidade de buscar essa purificação com
todo o nosso coração : cf. as palavras de Paulo em II Cor. 7:1”. E Westcott diz: “O papel do crente
é usar o que Deus dá”.
O verbo traduzido “purificar” e o adjectivo “puro” são respectivamente hagnizei e hagnos. O
grupo de palavras hagnos está relacionado com o grupo hagios, mas não lhe é idêntico. É usado
106
para descrever tanto a purificação cerimonial como a pureza moral e espiritual (João 11:55; Act.
21:24, 26; 24:18, comparar com Tia. 4:8; I Ped. 1:22 e I João 3:3). O sentido genérico é “puro de
contaminação, não conspurcado”. Harvey J. S. Blaney escreve:
Ninguém pode guardar-se puro pela sua própria vontade e esforço, mas pode andar
continuamente na luz; e esta luz – a verdade de Deus revelada em Cristo – serve como um
raio purificador. A luz escrutinará o íntimo do homem e, queimando, abrirá um caminho até à
sua consciência e vontade. João também ousa afirmar que somos puros como ele é puro. Ele
pode fazer esta afirmação ousada porque é Deus quem purifica. É por esta purificação que
seremos como ele é.
A polémica apresentada por João contra “a santidade pecadora” continua em 3:3-11. O âmago
da passagem é o v. 9: “Qualquer que é nascido de Deus não continua a pecar porque a sua semente
permanece nele, e não pode continuar a pecar porque é nascido de Deus”. Esta tradução representa
duma forma justa a força dos verbos empregados.
Ainda mais, o que João tem em mente é indicado pela sua afirmação de que “o pecado é
iniquidade anomia, contra a lei. Não é resultado duma fraqueza humana involuntária e
inadvertente; é uma desobediência a Deus e rebelião contra Ele. Sob a influência de Agostinho e
Calvino, na tradição reformada frequentemente se classificam como pecados todos os actos,
pensamentos e palavras que se desviam do padrão absoluto da perfeição. Esta interpretação torna
ininteligível passagens como esta e 2:1, 4; 5:18 (assim como João 8:34, 36; Rom. 5:8; 6:1, 15, 18,
22; 8:2-3; Gál. 2:17-18; I Tes. 2:10; Heb. 9:26; 10:26-29; e outras).
D. Amor Aperfeiçoado, 4:16-18
Em 4:16-18, João volta ao princípio positivo que fundamenta os capítulos 3 e 4: “Deus é
amor; e quem está em amor está em Deus, e Deus nele. Nisto é perfeito teteleiötai o amor para
connosco, para que no dia do juízo tenhamos confiança; porque, qual ele é, somos nós também
neste mundo. No amor não há temor, antes o perfeito amor lança fora o temor; porque o temor
tem consigo a pena, e o que teme não é perfeito em amor” (cf. v. 12).
Neste contexto, o temor não é a reacção instintiva ao perigo, que é essencial para o nosso bem-
estar humano, nem a reverência sugerida pela frase “o temor do Senhor” (Act. 9:31; cf. Rom. 3:18;
II Cor. 7:1). Como o contexto mostra, é o temor do julgamento de Deus – o temor do coração não
santificado na presença da santidade divina (e.g., Isa. 6:5). Tal temor é banido pelo amor perfeito.
Edwin C. Lewis comenta com discernimento o significado do “amor perfeito”:
A natureza do amor permanece sempre a mesma, mas pode sempre aprofundar-se em
qualidade e aumentar em alcance. Num dado momento, a perfeição do santo amor pode ser
obtida na experiência cristã. Atingiu-se o apogeu. Mas o tempo avança, trazendo novas
possibilidades, novas exigências, novas experiências. Se o apogeu continua onde estava, já
não é apogeu. Pode ser mantido só quando for excedido. Esta é a lógica do amor. O amor
perfeito é-o, portanto, só à medida que avança continuamente em direcção ao amor perfeito.
O resultado do verdadeiro amor é conduta semelhante a Cristo. “Neste mundo somos como
Ele” (v. 17). João realça constantemente que a única evidência genuína do verdadeiro amor é a
obediência. Este aspecto do ensinamento de Cristo apanhou o ouvido de João e é registado no
Evangelho (14:15, 21, 23; 15:10). Aparece de novo em I João 5:3. Sublinha a insistência de João
quanto a uma vida santa (2:4-6, 15:17; 3:18; 4:19-21; 5:18).
V. O LIVRO DO APOCALIPSE
O Apocalipse é um livro para tempos de crise. Foi escrito no contexto da perseguição que
surgiu da exigência de adoração ao imperador romano. É, no Novo Testamento, o exemplo
supremo do estilo literário apocalíptico: profecia acerca do fim dos tempos expressa num
simbolismo vívido mas encoberto. Notório pela variedade de interpretações que lhe têm sido
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dadas, o Apocalipse é porém bem claro na sua insistência de que por mais renhida que seja a
batalha, a vitória final da justiça é assegurada.
De harmonia com a sua ênfase, o último livro do Novo Testamento não é primariamente uma
obra doutrinária. Continua, porém, o tema dos livros anteriores, dando ênfase à santidade de Deus
e às exigências que Ele faz ao Seu povo.
A saudação é mais uma grande fórmula trinitária com uma designação única para o Espírito
Santo: “João, às sete igrejas que estão na Ásia: Graça e paz seja convosco da parte daquele que é,
e que era, e que há-de vir, e da dos sete espíritos que estão diante do seu trono; e da parte de Jesus
Cristo, que é a fiel testemunha, o primogénito dos mortos e o príncipe dos reis da terra” (1:4-5). Os
sete espíritos, como notam alguns, são operações ou aspectos do único Espírito de Deus. Estas sete
operações incluem a regeneração (João 3:5-6), o testemunho (Rom. 8:16), a santificação (II Tes.
2:13), a orientação (Rom. 8:14), a intercessão (v. 26), a cura e a ressurreição (v. 11).
As mensagens às sete igrejas (caps. 2 e 3) realçam aspectos do viver cristão num mundo
tumultuoso. Apenas duas igrejas (Smirna e Filadélfia) são louvadas sem uma nota de preocupação
(2:8-11; 3:7-13). Os perigos que devem ser evitados incluem a perda do primeiro amor (2:4), o
compromisso com o erro e o mal (vv. 14-15, 20, 23), a morte e letargia espiritual (3:1-3), e a
mornidão (vv. 15-16).
A santidade de Deus é celebrada pelas hostes celestiais duma forma que lembra a visão de
Isaías no Templo (4:6-11; Isa. 6:1-8). As multidões de remidos que adoram ante o trono de Deus
“lavaram os seus vestidos e os branquearam no sangue do Cordeiro” (7:14, cf. 9-17). As orações
dos santos (lit., os santificados) são oferecidas com incenso perante Deus (8:3-4). Quando soa o
sétimo anjo (“a última trombeta”, I Cor. 15:23-28, 52), no céu vozes altissonantes proclamam que:
Os reinos do mundo vieram a ser
do nosso Senhor e do seu Cristo,
e ele reinará para todo o sempre (11:15).
Num grande parêntese (12:1–14:30), a vitória sobre “o acusador” é vista como sendo
pelo sangue do Cordeiro
e pela palavra do seu testemunho (12:10-11).
“Aqui está a paciência e a fé da parte dos santos” (13:10) “que guardam os mandamentos de Deus e
a fé de Jesus” (14:12).
O “Cântico de Moisés” e o “Cântico do Cordeiro” também exaltam a santidade de Deus:
Grandes e maravilhosas são as tuas obras,
Senhor Deus Todo-Poderoso!
Justos e verdadeiros são os teus caminhos,
ó Rei dos santos.
Quem te não temerá, ó Senhor,
E não magnificará o teu nome?
Porque só tu és santo;
Por isso, todas as nações virão,
e se prostrarão diante de ti,
Porque os teus juízos são manifestos (15:3-4).
Na boda do Cordeiro, a Noiva é ataviada de pureza:
Porque vindas são as bodas do Cordeiro,
e já a sua esposa se aprontou.
E foi-lhe dado que se vestisse de linho fino,
puro e resplandecente;
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(Porque o linho fino são as justiças dos santos) (19:7-8).
“Bem-aventurado e santo aquele que tem parte na primeira ressurreição: sobre este, não tem
poder a segunda morte; mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com ele mil anos”
(20:6). Os redimidos são recolhidos finalmente na cidade em que “não haverá mais noite e não
necessitarão de lâmpada, nem de luz do sol, porque o Senhor Deus os alumia; e reinarão para todo
o sempre” (22:5). Mas diz-se dessa cidade celestial que “não entrará nela coisa alguma que
contamine, e cometa abominação e mentira; mas só os que estão inscritos no livro da vida do
Cordeiro” (21:27).
João é instruído a não selar “as palavras da profecia deste livro; porque próximo está o tempo.
Quem é injusto, faça injustiça ainda; e quem está sujo, suje-se ainda; e quem é justo, faça justiça
ainda; e quem é santo, seja santificado ainda “ (22:10-11).
Para aqueles que fazem o mal e são vis, o convite do versículo 17 é registado: “E o Espírito e a
esposa dizem: Vem. E quem ouve, diga: Vem. E quem tem sede, venha; e quem quiser, tome de
graça da água da vida”. O justo e o santo têm de continuar no caminho da justiça e da santidade, se
quiserem ter a certeza do galardão final.
E assim a Bíblia fecha o círculo com o ciclo completo dos tempos. Começou num jardim em
comunhão com Deus, comunhão esta estragada pela entrada do pecado e da maldição, os efeitos
devastadores do pecado. Termina num jardim com a árvore da vida, a adoração de Deus e do
Cordeiro, a expulsão do pecado, o galardão eterno da justiça e da santidade, na presença de Deus,
para sempre.

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