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CAPÍTULO I

O homem, imagem de Deus

Sendo o homem, enquanto criatura, imagem de Deus, não podemos


chegar a uma antropologia teológica prescindindo de uma teologia da
criação. Precisamente porque esse homem «imagem de Deus» é, antes de
mais, criatura. O seu contexto nativo e originário é a inteira criação,
enquanto acontecimento do amor gratuito de Deus. Como a própria
Escritura já o assinala e a reflexão teológica o reproduz, a doutrina sobre a
criação está em função da antropologia teológica1. Assim, antes de
procedermos a um desenvolvimento propriamente antropológico da
condição criatural do homem, procuraremos apresentar as principais linhas
de uma teologia da criação, tanto em sua fundamentação bíblica como em
seu desenvolvimento sistemático.

1. A teologia da criação
O conceito de criação é um conceito muito próprio e praticamente
exclusivo da teologia cristã. Porém, ele tem também um uso não teológico.
Podemos falar de criação quando queremos referir o trabalho ou a produção
artística, algo que antes não tinha qualquer existência. Mas em sentido
propriamente teológico, a palavra criação expressa o modo como, segundo
a revelação bíblica, o mundo e todas as coisas têm em Deus a sua origem, o
seu fundamento originário e a sua meta definitiva. Num sentido activo,
pode designar a acção criadora de Deus, e num sentido passivo a totalidade
do mundo criado2. O conceito bíblico de criação não tem apenas um
1
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, «Sobre la estructura, método y contenidos...», 353.
2
Cf. P. SMULDER, «Creación», in Mysterium Salutis, II, Barcelona 1972, 4.
Importa distinguir o conceito teológico de criação do conceito moderno de natureza.
Este último aparece no humanismo da Renascença indicando uma nova cosmovisão e
um nova antropologia: O mundo, desencantado e privado de mistério, é reduzido a uma
realidade física, perfeitamente conhecida e decifrada, tanto em suas causas como nos
seus efeitos, pela razão humana. A uma cosmovisão mecanicista do mundo como
natureza alia-se uma antropologia optimista, em que o homem se apresenta como aquele
que tem domínio sobre a natureza, porque lhe conhece as leis e pode, pela sua ciência e
técnica, corrigir os seus defeitos.

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sentido protológico, relativo à origem do mundo e do homem, mas também
escatológico, pois Deus cria as criaturas para n’Ele se finalizarem e se
realizarem. A origem é portadora de uma vocação escatológica, de uma
promessa de plenitude. E esta unidade intrínseca de protologia e
escatologia dá-se em Cristo, o Filho de Deus, por quem tudo foi criado e
para quem todas as criaturas se orientam. A cristologia será, pois, a nossa
chave hermenêutica de uma teologia da criação.

1.1. Fundamentação bíblica

A fé no mistério da criação é, relativamente, um momento posterior


na experiência crente de Israel. Radica na experiência da Aliança de Israel
e do alargamento desta aos outros povos e a todo o universo. Resulta da
consciência da universalidade da gratuidade de Deus, que não é apenas o
Deus de Israel (um Deus etnocêntrico e privado), mas o criador do céu e da
terra. Todavia a criação relaciona Deus mais com a história do que com a
natureza, pois foi nas vicissitudes da sua história que o Povo foi tomando
consciência de um Deus, que por ser transcendente, não poderia ser apenas
o Deus do Povo.
Indicamos três pressupostos que orientarão a nossa leitura dos textos
bíblicos sobre a criação. Antes de mais, importa assinalar como primeiro
aspecto, que a criação pertence à etiologia de Israel (a explicação mítico-
poética/simbólica) das suas origens através de um alargamento do conceito
de eleição, agora aplicado a todos os povos e a todas as criaturas. Como
segundo aspecto, devemos sublinhar que o acontecimento da criação
pertence ao mistério da revelação de Deus e que, como tal, escapa por
completo a toda a compreensão humana, não sendo observável em si
mesmo. Isto nos leva a não interpretar como realidade história os textos das
origens, mas sim como narrativas de uma verdade salvífica experimentada
na história humana. No terceiro e último aspecto salientamos uma
compreensão dinâmica e evolutiva de criação, que, de modo nenhum, se
reduz ao momento original. A criação aconteceu no princípio como
continua a acontecer no presente, e continuará a acontecer no futuro, pois
aguardamos a plenitude da criação quando Cristo for tudo em todos (cf. 1
Cor 15,28ss).

1.1.1. Os principais textos do AT

a. As narrativas das origens (Gn 1-2,4a)


A princípio com a intenção de ser o livro das origens de Israel, os
primeiros onze capítulos dos Génesis converteram-se no livro das origens

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do mundo e dos antepassados do género humano. E a narrativa que vamos
ter em conta (Gn 1,2,4a), apresenta uma visão mais universalista. Esta
universalização da fé de Israel foi expressa através de um recurso literário
muito em voga nos povos do Médio-Oriente antigo, as cosmogonias
(relatos que procuram explicar a origem do mundo) e as etiologias (relatos
que procuram explicar as origens dos lugares ou das pessoas). Os autores
sagrados, ao adoptarem esses géneros literários, assimilaram muito das
compreensões cosmogónicas dos povos vizinhos, como é próprio de todo o
intercâmbio cultural. A ideia de criar mundo separando o céu e a terra (cf.
Gn 1,6) é a mesma do começo da epopeia de Guilgamesh. A ideia de
conceber as águas como anteriores ao céu e à terra (cf. Gn 1,2) é comum
aos dois textos e reflecte a abundância da mesma na zona da Mesopotâmia.
Também em muitos textos antigos, os inimigos opostos à acção criadora
dos deuses eram representados por serpentes3.
Mas se há muitas semelhanças entre os textos bíblicos das origens e
as literaturas vizinhas, encontramos também uma radical oposição. Israel
utilizou os géneros literários envolventes submetendo-os a uma depurada
crítica. Encontramos nos textos bíblicos uma total desantropomorfização
dos mitos ambientais, que nos Génesis se reduzem a puras cosmogonias,
sem nada de teogonia (luta dos deuses entre si). O homem não é criado
pelos caprichos dos deuses, mas pela absoluta vontade e iniciativa divinas.
No poema babilónico Enuma Elish, Murdok cria o homem com o sangue
de um deus culpado. De igual modo encontramos nos textos bíblicos, em
relação aos textos vizinhos, uma total ausência de dualismo. Segundo uma
concepção dualista, o bem e o mal são originários de dois princípios
ontológicos semelhantes mas rivais, «dois espíritos gémeos». Na Bíblia,
tudo depende da vontade e da iniciativa criadora de Deus, que tudo cria
com bondade. Nem sequer a expressão «céus e terra» é indício de
dualismo, pois indica totalidade; nem a figura da serpente é oposição à
criação boa, pois quando entra em acção a criação já está concluída. Os
autores das narrativas genesíacas procederam a uma séria desmitificação,
ainda que se tenham servido de uma linguagem mítica, criticamente posta
ao serviço da expressão da fé javista. E essa linguagem jamais poderá ser
compreendida com critérios científicos, pois pertence à ordem do
simbólico, cujo princípio orientador é teológico, enquanto expressão da
vontade de Deus.
Este texto é um poema litúrgico, com a finalidade de sancionar a
semana de sete dias e de fundamentar o descanso no sétimo, para o louvor
do Senhor. Além disso pretende também ser norma para o ritmo diário da
oração hebraica: Ao entardecer, recordando a obra salvadora da saída do
3
Seguimos, no nosso desenvolvimiento dos textos bíblicos, J. GONZÁLEZ
FAUS, Proyecto de hermano, Santander 1987, 33-78; J. L. RUIZ DE LA PEÑA,
Teología de la creación, Santander 1986, 27-87.

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Egipto; e ao amanhecer, recordando a aliança no Sinai. Pela oração
vespertina e laudativa, Israel mantém viva a memória quotidiana dos
acontecimentos salvíficos fundamentais.
A afirmação central do texto é a seguinte: «No princípio, Deus criou
o céu e a terra» (v. 1). «No princípio»: o começo da acção criadora de Deus
não tem pressupostos; é algo de absolutamente novo e incondicional. Nada
há de pré-existente à vontade e à acção criadoras de Deus. O verbo criar
(barah) tem na Escritura um sentido exclusivamente teológico, pois só
Deus é o sujeito da criação. A actividade divina aparece como
incondicional, sem pressupostos. Deus não cria a partir de algo pré-
existente mas da sua própria liberdade. Deste modo se afirma a origem
única de todo o criado em Deus, ao mesmo tempo que se salvaguarda a
transcendência divina, pois a criação implica uma alteridade e uma
distância entre Deus e a criatura. A criação acontece não por necessidade
mas por liberdade. A criatura não se confunde com Deus e fora de Deus
não há ser (vida). «o céu e a terra»: extremos do cosmo que significam a
totalidade da criação. Tudo o que existe tem a sua origem em Deus, fonte
de toda a realidade. «Deus disse»: O dizer de Deus não está dirigido a
nenhum destinatário (tal como criar). Deus cria através da sua palavra (do
seu dizer), que é linguagem e acontecimento. O verbo tem um valor
absoluto. O dizer de Deus é comando, mandamento, ordem. Deus ordena o
cosmos como um general ordena o seu exército através da espada da sua
palavra que separa. Deus cria corpos e seres separando-os. A criação é uma
organização na diferenciação e na diversidade, o que implica sempre
distância e diferenciação. A identidade acontece na separação, não a
confusão pois toda a confusão é caos e fim da linguagem e do sentido.
Toda a criatura depende totalmente da palavra de Deus, do seu «dizer». A
palavra divina dá origem a tudo, dá vida, ser e identidade. A palavra
nomeia, diz a realidade das coisas e dos seres, convoca-os ao seu acontecer.
A criação é uma linguagem a partir da nomeação do próprio Deus: «Deus
chamou ao firmamento “céu”» (v. 6).
«Deus disse: “Haja luz!”, e houve luz» (v. 3); «Deus disse: “Haja um
firmamento no meio das águas e que ele separa as águas das águas”, e
assim se fez». Há na narrativa uma distância entre o dizer e o fazer de Deus
(que em si mesmo são um único acto). Contudo, no texto afirma-se a causa
(a palavra de Deus) e a consequência (o acontecimento do criado: «assim
se fez». O processo da criação escapa por completo à narrativa nem
pretender ser a sua intenção. O texto bíblico pretende, sim, fundar teológica
e ontologicamente a realidade criada a partir da vontade e da liberdade de
Deus. A criação apresenta-se, assim, como um conceito limite, afirma não
afirmando, diz silenciando. A acontecimento da criação subtrai-se por
completo à visibilidade e à racionalidade humanas; é acontecimento de fé.
Há intencionalmente um carácter misterioso, algo de escondido, inacessível

28
à compreensão humana, tal como é o próprio mistério de Deus. De igual
modo se afirma a bondade do criado: «E Deus viu que isso era bom».
Assim se rejeita tanto o panteísmo (em que tudo é emanação da divindade)
como o maniqueísmo (em que se afirma dois princípios, o bom para o
espírito e o mau para matéria).

b. A criação no Deutero-Isaías

Próximo de Gn 1 situa-se o Deutero-Isaías, para quem a fé na criação


é a justificação histórica da fé na redenção do povo (cf. Is 44,14; 51,9ss). O
acto criador é o momento presente no qual Deus gratifica e liberta o seu
povo. O Deutero-Isaías assume a fé na criação relacionando-a com o agir
salvífico concreto de Deus no hoje da história. A história do Povo é uma
constante recriação: «Eis que vou realizar uma obra nova, a qual já começa:
Não vedes? Vou abrir um caminho no deserto e fazer correr rios na estepe»
(Is 43,19). A história é, precisamente, o lugar da recriação, enquanto nova
aliança para a justiça: «Assim diz Deus, que criou os céus e os estendeu, e
fez a imensidão da terra e de todo o que dela brota, que deu o alento aos
que a povoam e o sopro de vida aos que se movem sobre ela. Eu, Iahweh,
te chamei para o serviço da justiça, tomei-te pela mão e te modelei, eu te
pus como aliança dos povos, como luz das nações» (Is 42,5-6). Iahweh deu
ao homem a história para fazer dela um caminho de libertação: «Abrir os
olhos aos cegos, tirar do cárcere os prisioneiros e da prisão os que vivem
nas trevas» (Is 42,7).
A acção criadora de Deus é o fundamento da eleição do povo; o
Deus que criou Israel é o mesmo Deus que o elegeu: «E agora ouve, Jacob,
meu servo, Israel, a quem escolhi. Assim diz Iahweh, aquele que te fez, que
te modelou desde o ventre materno e te socorre» (Is 44, 1-2; 42,5-6).
Salvação e criação são dimensões da única acção de Iahweh: «Mas agora
diz Iahweh, aquele que te criou, ó Jacob, aquele que te modelou, ó Israel,
não temas, porque eu te resgatei» (Is 41,1). Iahewh, o Deus único e único
salvador, é também o único criador: «Eu sou Iahweh e fora de mim não há
nenhum salvador» (Is 43,11); «Eu sou Iahweh, o vosso santo, o criador de
Israel, o vosso rei» (Is 43,15). O salvador é o Senhor do universo, aquele
que domina a natureza. O mesmo Senhor do universo é o Senhor da
história: «Assim diz Iahweh, o teu redentor, aquele que te modelou desde o
ventre materno, eu, Iahweh, é que tudo fz, e sozinho estendi os céus e
firmei a terra» (Is 44,24).

A criação nos Escritos Sapienciais

c. A festa da criação nos Salmos

29
Encontramos nos Salmos a mesma experiência de fé de
universalização da salvação à criação. Pois o Deus que salvou o povo é o
mesmo que o criou e que, de novo, o salvará o futuro. Aquele que vem em
auxílio do povo é o que fez o céu e a terra: «Ergo os olhos para os montes:
De onde virá o meu auxílio? O meu socorro vem de Iahweh que fez o céu e
a terra» (Sl 121,1-2). Pelo seu cruzamento entre criação e salvação, são
particularmente importantes os salmos 19, 125 e 136. No salmo 19 o louvor
do salmista associa-se ao louvor da criação: «Os céus cantam a glória de
Deus, e o firmamento proclama a obra e suas mãos» (Sl 19,1). O salmo 135
celebra a bondade de Iahweh, tanto pela eleição de Israel como pela
criação. Aquele que «fez de Israel o seu próprio bem» (v. 4) faz,
igualmente, «tudo o que deseja, no céu e sobre a terra, nos mares e nos
abismos» (v.6). A grande ladainha de acção de graças que é o salmo 136,
na continuação do anterior, celebra também as bondade de Iahweh
(«Celebrai a Iahweh, porque é bom, porque o seu amor é para sempre»: v.
1), tanto pelas maravilhas da criação (vv. 4.9) como pela gesta salvífica na
historio do povo (libertação do Egipto, travessia do mar, caminho pelo
deserto, conquista da terra: vv. 10-24). O mesmo Deus criador e salvador
recebe um único louvor do seu povo. Tal como «o céu foi feito com a
Palavra de Iahweh» (v. 6), «Iahweh é o auxílio e o escudo do povo» (v.20;
cf. Sl 89).
Por seu lado, o salmo 104 canta o esplendor da criação de Deus. É um
grito de admiração pelas maravilhas que Deus cria: «Quão numerosas são
as tuas obras, Iahweh, e todas fizeste com sabedoria! A terra está repleta
das tuas criaturas» (Sl 104,24). E o salmista termina expressando um voto:
«Que o meu poema lhe seja agradável; quanto a mim, eu me alegro com
Iahweh» (Sl 104,34). A beleza da criação de Deus é a razão da alegria do
salmista, do seu júbilo que transborda em cântico orante. A criação é
portadora de uma alegria, porque é expressão da alegria da gratuidade e do
amor vivificante de Deus. Tudo o que existe é manifestação de alegria,
porque criado na alegria de Deus. Por isso o salmista, num excesso de
lirismo, pode convocar a criação inteira para expressar a alegria pela
soberania de Deus: «Que o céu se alegra! Que a terra exulte! Estronde o
mar, e o que ele contém. As árvores da selva gritem de alegria» (Sl 96,11-
12). Do mesmo modo se expressa o salmo 98: «Batam palmas todos os
rios, e as montanhas gritem de alegria diante de Iahweh, pois Ele vem
julgar a terra» (Sl 98,7-9). E ainda: «Aclamai a Iahweh terra inteira, servi a
Iahweh com alegria, ide a Ele com gritos jubiloso» (Sl 100,1-2)4. Toda a

4
Comentando este salmo afirma Agostinho, Esposizione sul salmo 99, XXVII/1,
453-549, passim.: «O júbilo é a voz de um coração inundado de alegria que, tanto
quanto consegue, quer manifestar os seus sentimentos, ainda que sem compreender o
significado» (citado por C. SCORDATO – E. BOLAZZI, «Agostinho: cantando,

30
criação é portadora de uma dimensão festiva. As expressões antropológicas
de festa (palmas, gritos de júbilo) são transferidas para a criação. A festa da
criação é o canto silencioso das criaturas, que o homem dá voz na sua
oração e no seu louvor5.

Livro de Job

No livro de Job o apelo ao Deus criador é solução para o problema que


o mal coloca e, consequentemente, para uma justa compreensão de Deus. O
próprio Deus argumenta a partir da realidade da criação, para que Job
reconheça o amor do Criador na sua história de homem sofredor. O apelo
ao Deus criador é o apelo àquele Deus que salva. Interroga Deus a Job,
provocando a partir da sua criação: «Onde estavas, quando lancei os
fundamentos da terra? Diz-me, se é que sabes tanto» (Job 38,4); «Terá pai a
chuva? Quem gera as gotas do orvalho?» (Job 28); «Acaso é obre a tua
ordem que a águia remonta o voo e estende as suas asas em direcção ao
Sul» (Job 39,27). E Job reconhece, por fim: «Falei de coisas que não
entendia, de maravilhas que me ultrapassam (…). Conhecia-te só de
ouvido, mas agora viram-te os meus olhos» (Job 42,3.5).

Livro da Sabedoria

Também o livro da Sabedoria relaciona a manifestação de Deus na


criação, através da sua Sabedoria (cf. Sab 7,21, 8,5; 9,12), com a
manifestação de Deus na história salvífica (cf. Sab 10,18-19). O ponto de
partida desta reflexão sapiencial é o problema do mal que afecta o homem,
particularmente o justo. Enquanto criatura, o homem é querido por Deus;
está marcado por um destino de vida (incorruptibilidade) e não de morte.
Numa perspectiva mais cosmológica do que antropológica, a contemplação
do cosmos torna possível a contemplação do Criador: «(…) a grandeza e a
beleza das criaturas fazem, por analogia, contemplar o seu Autor» (Sab
13,5). Todas as coisas criadas são expressão da benevolência do amor de
Deus, Senhor da vida: «Sim, tu amas tudo o que criastes, não te aborreces
com nada do que fizeste; se alguma coisa tivesses odiado, não a terias
feito» (Sab 11,24). Tudo o que existe é, pois, querido por Deus e encontra
no seu amor o fundamento ontológico do seu ser e da sua subsistência: «E
como poderia subsistir alguma coisa, se não a tivesses querido? Como
conservarias a sua existência, se não a tivesses chamado?» (Sab 11,25).
Fica por esclarecer que o livro da Sabedoria preconiza uma criação a partir

suonando...», in C. SCORDATO – E. BOLAZZI (ed.), Cantando, suonando, danzando.


Itinerario di antropologia teologica, Palermo 1996, 65.
5
Sobre a alegria no AT cf. A. RIDOURAD – M.-F. LACAN, “Alegria”, in X.
LÉON-DUFOUR (ed.), Vocabulário de teologia bíblica, Petrópolis 19874, 21-23.

31
de uma matéria pré-existente, como, à primeira vista, poderá sugerir a Sab
11,17: «criara o mundo da matéria informe» (to.n ko,smon evx
avmo,rfou). Esta expressão tanto poderá inspirar-se na filosofia platónica
de uma matéria pré-existente, indiferenciada, anterior à harmonia e
organização cósmica da criação; como poderá ser apenas mera referência a
caos original de Gn 1,1. Contudo um outro texto do período helenista,
embora exterior ao livro da Sabedoria, aponta para uma criação «a partir do
nada» (ex nihilo): «Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os
fez» (evx o;ntwn evpoi,hsen auvta. o` qeo,j) (2 Mac 7,28). Esta
expressão é um modo de afirmar que tudo o que existe está sob do domino
universal de Deus.

d. Algumas conclusões
- Há uma total identidade entre o Deus criador e o Deus salvador. O
Deus de Israel não é um Deus particularista mas universal. A sua
gratuidade estende-se «ao céu e à terra» inteira. Tudo está sob a protecção
de Deus: o tempo (do primeiro ao sétimo dia) e o espaço (o céu, a terra, os
abismos marinhos...)
- Os textos fazem uma solene proclamação de um absoluto
monoteísmo: a fé num Deus único, de poder ilimitado. Toda a realidade
procede da acção gratuita de Deus, e não de uma vontade de possessão ou
de domínio. Aí radica, também, a proclamação da autonomia do mundo. O
mundo é secular porque é criatural. Contemplando a gratuidade das
criaturas o homem experimenta a alegria criadora de Deus, a beleza do
criado como espelho da sua própria bondade.
- Encontramos também a afirmação de um optimismo da história. Há
uma valorização positiva do tempo, da história como processo com um
começo, um crescimento e um fim. Uma história única, progressiva e
dinâmica.

1.1.2. A centralidade cristológica da criação no NT

A novidade decisiva do NT em relação à fé na criação está na relação


que estabelece entre esta e o mistério de Cristo. Esta centralidade
cristológica da criação aparece, sobretudo, em Paulo e em João, marcada
por dois aspectos: Por um lado Cristo aparece como a plenitude da obra de
Deus iniciada na criação e, por outro, como o mediador da mesma obra da
criação desde o princípio; e, por isso, é, ao mesmo tempo, o fim para o qual
toda a criação se orienta.

a. A fé na criação em Paulo
Para Paulo Cristo é o centro de toda a criação, a sua origem, a sua
subsistência e o seu fim, como proclama o hino cristológico da Carta aos

32
Colossences (Col 1,13b-20)6. Este hino oscila entre a divindade a
humanidade de Cristo, entre o cósmico e soteriológico, o que torna difícil a
sua exegese. Apesar das várias hipóteses sugeridas para a sua divisão,
optamos por aqueça que o divide em duas estrofes, deixando bem claro o
paralelismo entre a protologia e a soteriologia. A primeira estrofe está
centrada na criação (vv. 15-17) e a segunda na ressurreição, o
acontecimento que inaugura a nova criação (vv. 18-20).
Cristo é exaltado como cabeça do universo (protótokos),
«primogénito de toda a criação» (v. 15b). Esta afirmação, de carácter
cósmico, radica no acontecimento histórico da cruz e da ressurreição:
«N’Ele aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude e reconciliar por Ele e
para Ele todos os seres, os da terra e os dos céus, realizando a paz pelo
sangue da sua cruz» (v. 20). Por isso Cristo é «o primogénito de entre os
mortos» (v. 18). É na compreensão de Cristo salvador da humanidade. Pela
sua reconciliação na cruz, que se fundamenta e se desenvolve o seu papel
cósmico, enquanto Senhor de toda a criatura.
Primogénito (protótokos) está em paralelismo com princípio (arkhé),
palavras sinónimas, como indica a sua justaposição no próprio texto: «Ele é
o princípio (arkhé), o primogénito (prototókos) dos mortos» (v. 18b).
Ambas as palavras significam origem, princípio. Cristo torna-se, assim, o
destino da própria humanidade, a primícia que inaugura a série, a nova
criação em que a morte é vencida. E daí se parte para uma aplicação
retrospectiva. Cristo, o Senhor ressuscitado, é também o princípio de toda a
criação. A sua primazia soteriológica resulta da sua primazia cósmica.
Cristo tudo redime porque n’Ele tudo foi criado e n’Ele subsiste. Ele é a
causa exemplar do universo inteiro e a causa final, enquanto pólo de
convergência teleológica. Por isso «primogénito» traduz e interpreta o
senhorio de Cristo, a sua glória de ressuscitado e exaltado à direita do Pai.
No homem Jesus, o Cristo, Deus pronuncia plenamente a sua palavra
criadora e realiza definitivamente o seu plano sobre a criação.
Um outro texto paulino, 1 Cor 8,5-6, apresenta-nos Cristo como o
mediador da criação: «Para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de
quem tudo procede (ex oú tà pànta) e para quem nós somos, e um só
Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe (di’ oú tà pánta) e por quem nós
somos». O que caracteriza a originalidade do texto é que pela primeira vez
Cristo aparece ao lado do Pai como criador. Mas se ambos são criadores na
possessão da mesma divindade, as suas acções, enquanto pessoas distintas,
são diferenciadas. O Pai é o princípio, a origem absoluta (ex); Cristo é o
mediador da criação (dia) porque o é da salvação.
Tal como no Antigo Testamento, também nos Escritos Paulinos a
criação é inserida na história; é integrada na redenção e esta é extensiva a

6
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 71-69.

33
todo o cosmos. Porque na pessoa do Filho ressuscitado se cumpre em
plenitude o destino de toda a humanidade e de toda a criação. Porque o
homem e a criação são solidários do mesmo destino de pecado e de
glorificação. Daí que o dom da comunhão filial seja oferecido também à
criação inteira. Tudo procede de Deus e tem em Deus a sua glória, isto é, a
plenitude da sua finalidade, mediante a reconciliação cósmica de Cristo,
princípio e fim de toda a criação: «Pois a criação em expectativa anseia
pela revelação dos filhos de Deus. De facto, a criação foi submetida à
vaidade – não por seu querer, mas por vontade daquele que submeteu – na
esperança de ela também ser liberta da escravidão da corrupção para entrar
na liberdade dos filhos de Deus» (Rm 8,19s).

b. A fé na criação em João

A teologia joanina do «lógos» fundamenta-se num substracto tanto


helenístico como judaico. Na filosofia grega, o lógos é compreendido como
alma universal que rege o universo e está presente na razão humana; é o
princípio cósmico e antropológico de inteligibilidade, espécie de
intermediário entre Deus e o homem. No judaísmo veterotestamentário, o
«lógos» é a «Palavra de Iahweh», que funda tanto a criação (cf. Gn 1)
como a história de Israel (cf. Ex 34,27). O tema da Palavra relaciona-se,
nos escritos sapienciais, com o tema da sabedoria. Esta aparece num
dinamismo de personificação com traços pessoais: A sabedoria estava
presente quando Deus fazia o mundo (cf. Sab 9,9), pré-existente à criação:
«Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes da origem da
terra» (Pr 8,22). A Sabedoria é enviada à terra para aí revelar os segredos
da vontade divina, regressando a Deus depois de ter cumprido a sua
missão. A Sabedoria aparece como pré-existente às demais criaturas,
embora não deixe de ser ela própria também criatura; surge ao lado do
criador como «mestre de obras» (Pr 9,22-20).
É neste substracto helenístico e judaico que se situa o Prólogo de
João, o qual interpreta o acontecimento de Cristo à luz da Sabedoria e da
Palavra de Deus, atributos próprios de Deus e que preexistem à criação do
mundo. O Verbo, o próprio projecto de Deus, a sua Palavra em acção de
acontecer. Para João, o Verbo estava em Deus, é preexistente, divino e
eterno (Jo 1,1-2), veio ao mundo (vv. 9-14): É enviado pelo Pai para aí
realizar a mensagem da salvação (v.12) e volta de novo ao Pai (v.18). «No
princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus»
(v.1): Com este versículo João quer relacionar o seu evangelho com o
relato da criação (cf. Gn 1,1ss), oferecendo já uma interpretação do texto
das origens. O Evangelho é a acção criadora do Pai a realizar-se na pessoa
do Filho, pela força do ruah, o Espírito de vida.

34
O Verbo, a Palavra original do Pai, é o seu desígnio criador posto em
acção de acontecer. O Verbo é o projecto de Deus, que consiste em chamar
os homens à comunhão consigo. A Encarnação do Verbo é a plena
realização desse desígnio, de tornar os homens filhos de Deus (v.12). E do
desconhecimento desse projecto divino, o amor do Pai que o Filho
enquanto Palavra encarnada revela, leva os dirigentes judeus a matarem
Jesus: «Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam» (v.11). Fora
dessa Palavra, projecto original de Deus desde toda a eternidade concebido
e revelado no tempo da encarnação-glorificação, nada existe, pois nada
existe fora da vontade universal de Deus: «Tudo foi feito por meio d’Ele e
sem Ele nada foi feito» (v.3s). O lógos/O Verbo é deslocado do âmbito das
criaturas para o mundo divino, pois o «Verbo era Deus». O Verbo é aqui o
Filho em sua eternidade de comunhão com o Pai, através do qual acontece
a criação. Não há criatura alguma que não seja expressão do amor divino,
gerador de vida. Pois o conteúdo dessa Palavra é a vida, a qualidade divina
por excelência. É essa a missão de Jesus, comunicar a vida divina até à
plenitude, a vida da geração filial, finalizando, assim, a obra criadora de
Deus, o seu projecto vivificador. Todo o Evangelho de João é o
desenvolvimento desta ideia.
A Palavra incriada encarna, torna-se criatura. A mediação do Verbo
na criação («o mundo foi feito por meio dele»: v. 10) está relacionada com
a mediação do Verbo na redenção, consequência da sua encarnação na
história («o mundo não o conheceu»: v. 10; «Veio para o que era seu mas
os seus não o receberam»: v. 11). Há no Prólogo um paralelismo e uma
unidade entre criação e redenção centradas na mediação do Verbo, primeiro
em sua condição de pré-existente depois na condição de encarnado, quais
dimensões complementares da mesma acção do Pai realizada através do
seu Verbo, o Filho.

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