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3.3.2.

A antropologia do NT

Tal como no Antigo Testamento, em que nefesh e ruah são


frequentemente equivalentes, também em Paulo «espírito» (pneuma)
apresenta um sentido análogo a «alma» (psyché) (cf. 1 Cor 16,18; 2 Cor
2,13; 7,5; Gal 6,8; Fil 4,23). A par desta dimensão preponderantemente
antropológica, pneuma aparece também em Paulo a traduzir o hebraico
ruah, denotando o espírito comunicado por Deus (cf. 1 Cor 10,12). Trata-se
de uma noção que põe em relevo a força, a relação do ser humano com
Deus; é sempre uma realidade recebida1. É nesta perspectiva que se deve
interpretar a contraposição «carne» (sarx) – «espírito» (pneuma). O
vocábulo sarx designa, antes de mais, tal como o hebraico basar, a natureza
humana, o homem em sua condição nativa, a sua esfera constitutivamente
débil e caduca2. Daí que a fórmula «segundo a carne» (cf. Rm 1,3; 4,1; 9,3;
1 Cor 10,18; Gal 4,23.29) aluda à descendência biológica e à consequente
solidariedade com um grupo humano. Mas a par deste sentido em
consonância com a antropologia do Antigo Testamento veiculada pela
versão dos LXX, Paulo dá ao termo sarx o sentido de debilidade moral. O
homem «segundo a carne» é o ser humano propenso ao pecado ou colocado
na sua esfera de influência. Trata-se mais de uma pretensa auto-suficiência,
algo que pertence ao homem muito mais do que uma potência exterior.
Nesta linha situa-se a oposição paulina entre «carne» e «espírito»
(sarx/pneuma), amplamente desenvolvida em Rm 8,5-11 e Gal 6, 16-24.
Em jeito de conclusão acrescenta Ruiz de la Peña, apresentando a sua
leitura pessoal: «Este duplo uso de sarx manifesta que a conexão carne-
pecado não tem a ver com o dualismo metafísico ou antropológico do tipo
matéria-espírito ou alma-corpo, mas com a tensão – já conhecida pelo
Antigo Testamento – entre a carne, o que procede do homem, e o espírito, o
que procede de Deus, ou a dimensão transcendente do ser humano» 3. É
ainda na perspectiva de uma antropologia unitária que Ruiz de la Peña
interpreta 1 Cor 2,14; 3,1; 15, 44, em que o adjectivo sarkikós (carnal) se
apresenta como sinónimo de «anímico» (psychikós). «Psíquico» aqui não
se opõe ao corpóreo mas ao espiritual, ao homem que vive na esfera da
acção do Espírito divino. O homem psíquico, como o homem carnal, é
aquele, que privado da relação vivificante com Deus e com o seu Espírito,

1
Cf. M. BOUTTIER, «Incarnation, incorporation, inspiration en I Corinthiens»,
in J. BETOULIÈRE – F. WILDER (ed.), Le corps et le corps du Christ dans la
première épître au Corinthiens», Paris 1983, 262; L. CAZA, «Antropología bíblica»,
488.
2
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 72.
3
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 73-74.

69
leva uma existência «animal», ou seja, só dinamizada pelas suas forças e
recursos naturais, meramente terrenos e, enquanto tais, limitados4.
Ruiz de la Peña partilha da opinião comumente aceite pela actual
exegese de que sôma designa em Paulo o homem inteiro, a pessoa em sua
totalidade. Nesta tendência exegética ressoa a tese de Rudolf Bultmann,
segundo a qual, o homem não tem corpo, mas é corpo5. Apesar desta
aproximação bultmaniana, nem por isso se poderá afirmar que Ruiz de la
Peña se apresenta como um seguidor incondicional do exegeta alemão.
Segundo R. Bultmann, o homem pode ser chamado corpo na medida em
que tem uma relação consigo próprio. Esta concepção de homem como
identidade solipsisticamente referida a si própria é criticada por alguns
exegetas, com os quais se alinha Ruiz de la Peña6. Contra a interpretação de
Bultmann, parece, pois, impor-se a compreensão de sôma como sujeito de
uma variada gama de relações: consigo próprio, com os outros, com o
mundo e, finalmente, com Deus7. Sôma apresenta-se, portanto, como um
conceito relacional, um princípio de solidariedade e de comunhão a
significar a dimensão comunitária do homem. É o conceito pelo qual Paulo
expressa a permanência da identidade relacional da pessoa, suportada e
garantida pelo Espírito do Ressuscitado (cf. 1 Cor 15,42-43).
A cristologia reforça a condição corpórea do próprio homem. O
destino crístico interpreta, valoriza e plenifica as estruturas adâmicas, das
quais a corporeidade é decisiva, pois quando o Criador decide tornar-se
4
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 74; E. COTTENET, «Corps
psychique, corps spirituel», in A. M. TRIACCA – A. PISTOIA (ed.), Liturgie et
anthropologie, Roma 1990, 48.
5
R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, Tubinga 19655, 196,
citado pelo Autor em ID, 74. Partilham da mesma tese também J. A. ROBINSON, Le
corps. Études sur la théologie de S. Paul, Lyon 1966, 48-52; H. CONZELMANN,
Théologie du Noveau Testament, Genebra 1969, 189; E. SCHWEIZER, «Sôma», in G.
KITTEL – G. FRIEDRICH (ed.), Grande Lessico del Nuovo Testamento, XIII, Bréscia
1981, 699-757. Evidencia bem este significado de sôma a correspondência corpo-
pronome pessoal das passagens Rm 12,1-2= 6,13; 1 Cor 6,13-20=7,4-5). Em 1 Cor 15,
39-50, sarx alterna com sôma (cf. Rm 12,16); sarx toma aqui o seu sentido neutro, não
pejorativo. Aspecto destacado pelo Autor nesta passagem, é o facto de que sôma
garante, precisamente, a continuidade do mesmo eu na existência terrena e na existência
ressuscitada. Tal é, para o nosso Autor, mais uma prova de quanto Paulo se distancia do
esquema dualista alma-corpo; aspecto igualmente presente em 2 Cor 5,6-10, em que as
fórmulas «habitar no corpo» e «sair do corpo» significam permanecer na existência
terrena, ou sair da existência terrena: cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 75-
76.
6
R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, 196s, citado por Ruiz de la
Peña em Imagen de Dios, 76. Salientam-se, particularmente, as posições críticas de
Käsemann, Robinson, Schweizer, Morissette. Por isso mesmo afigura-se não ser justo
afirmar que Ruiz de la Peña segue com radicalidade a tese bultmaniana, como julga M.
TABET, recenseando Imagen de Dios: Divus Thomas 92-93 (1990) 147.
7
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 76.

70
criatura, torna-se carne (cf. Jo 1,14). A «carne» é, por excelência, o lugar
da habitação e da presencialização da própria glória de Deus no mundo
pela humanização (encarnação) do próprio Filho. Na corporeidade da
condição humana. Deus radicaliza e consuma a sua comunhão com os
homens. O mistério da Encarnação é a base da valorização teológica de
uma antropologia da corporeidade. O limite, o fracasso, o biológico, a
materialidade e a morte da condição carnal do homem são divinamente
assumidas e divinizadas na pessoa do Filho de Deus, Jesus Cristo.
Consequentemente, este Deus-encarnado-humanado é a imagem de Deus
por antonomásia, e a encarnação será, mediante a ressurreição, o seu
estatuto definitivo, a forma de existência permanente do ser do Deus Filho.
A partir daí, este estatuto de encarnação não pode ser visto senão como
definitório do humano8.

2.1. A problemática histórica

Não foi fácil para o cristianismo traduzir a visão antropológica


unitária, própria da Escritura, na cultura greco-romana, marcada por fortes
correntes dualistas. A antropologia dominante, de base platónica,
representava um perigo para a fé, pois comprometia a bondade da condição
criatural (e corpórea) do homem, o realismo somático da Encarnação e a
esperança na ressurreição. Estes aspectos, constituintes da fé cristã, de
modo nenhum poderiam ser comprometidos e apresentam-se como uma
instância crítica a todas as tentações dualizantes que atravessaram o
cristianismo. Todavia, a par da afirmação incontornável do valor da
corporeidade em sua fundamentação cristológica, verificou-se também que
nem sempre o equilíbrio de uma antropologia unitária, fiel ao dado da
Escritura, foi integralmente mantido tanto na reflexão teológica como na
espiritualidade cristã. É, precisamente, a tensão entre a corrente unitária e a
corrente dualizante, ao longo da história do cristianismo, que
procuraremos, seguidamente, enunciar.

3.2.1 O problema alma-corpo na Patrística

Perante o perigo das heresias maniqueias e gnósticas, marcadas por


uma desvalorização e desprezo do corpo, porque matéria corruptível, os
Padres da Igreja vão reagir vigorosamente, estabelecendo a base de uma
antropologia da corporeidade. O fundamento da sua argumentação é a
reivindicação intransigente do realismo da Encarnação e da base
antropológica da mesma, a condição corpórea do ser humano. No seu

8
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 83.

71
esforço de inculturação da fé, os Padres da Igreja vão submeter a cultura do
tempo (de base dualizante) a uma rigorosa crítica, mas onde não se deixa
de notar, ao mesmo tempo, uma certa influência da cultura da época. A
sistematização teológica distingue, nessa evolução da inculturação da fé no
mundo greco-romano, duas escolas, que vão marcar, sucessiva e
decisivamente, a compreensão antropológica cristã: a tradição africano-
asiática, que sublinhará a formação unitária do ser humano a partir do pó da
terra (perspectiva mais unitária); e a tradição alexandrina-ocidental, que
acentuará o elemento anímico e espiritual (a alma) do ser humano
(perspectiva mais dualizante).

2.1.1.1. A tradição africano-asiática

O Padre Apologeta Justino (100-165), na sua apologia da fé cristã,


mantém-se fiel à antropologia bíblica. Conhece, certamente, a concepção
corrente do homem como composto de corpo e alma, e não a rejeita.
Rejeita sim a concepção platónica da imortalidade da alma, que não é
divina, pois é criada por Deus. Em sua concepção, o destino do homem diz
respeito a todo o seu ser e não apenas a uma parte, a alma. Sem a sua união
com o corpo a existência da alma perderia sentido. Em Justino o termo
psyché conserva ainda o sentido bíblico de nefesh. Na obra De
resurrectione, cuja atribuição a Justino hoje se discute, é o homem inteiro
(«o homem carnal: anthrópos sarkikós») que é imagem de Deus; e a
criação não é fruto de uma queda originária:

«Façamos o homem a nossa imagem e semelhança» (Gn 1,26). Qual homem? É


claro que alude àquele carnal [...]: «E Deus tomou o pó da terra e plasmou o
homem» (Gn 2,7). Evidentemente o homem enquanto plasmado à imagem de Deus
era carnal. Por outro, é absurdo afirmar que a carne modelada por Deus à sua
imagem seja desprezível e sem valor. Porque é evidente que diante de Deus a carne
é qualquer coisa de precioso; antes de mais por ter sido plasmada por Ele, como
imagem que lhe resulta agradável a quem a modela e a pinta9.

Também Ireneu de Lião (130-200), na sua luta antignóstica, constrói


uma antropologia à volta do corpo. Conhece e utiliza a definição corrente
do homem como composto de corpo e alma, mas esta não lhe parece
suficiente para fundar a sua visão teológica. Na sequência de Paulo, o
Bispo de Lião introduz uma dimensão pneumatológica: só o Espírito dado
ao homem o pode conduzir à perfeição. O homem, para Ireneu, tem uma
dimensão tripartida, pois é carne, alma e Espírito. A primazia é dada ao

9
De resurrectione 7, citado por A. ORBE, “La definición del hombre en la
teología del s. II”, Gregorianum 48 (1967) 538.

72
Espírito que salva. A alma ocupa um lugar intermédio entre o Espírito e a
carne:

Eles [os heréticos gnósticos] não compreendem que três coisas, como
mostrámos, constituem o homem perfeito: a carne, a alma e o Espírito (perfectus
homo constat, carne, anima et spiritu). Uma delas salva e forma, ou seja o Espírito;
uma outra é salva e formada, ou seja a carne; e outra, por fim, situa-se entre ambas,
ou seja a alma, que tanto segue o Espírito e a Ele se eleva, como se deixa persuadir
10
pela carne e cai nas cobiças terrestres (terrenas concupiscentias) .

O homem é composto de carne e alma (temperatio). Mas a semelhança com


Deus está na carne, pois Deus modelou-a através das suas mãos, o Filho e o
Espírito Santo. O homem tem uma dimensão trinitária; é ícone (imagem)
da Trindade em todo o seu ser. O Espírito é, sem dúvida, um elemento
transcendente que o homem recebe enquanto unidade de alma e corpo. O
Espírito de Deus não se coloca, portanto, ao nível dos componentes
propriamente antropológicos. O aspecto problemático em Ireneu está no
facto de que aparece já uma certa cisão no homem, pois é «composto»
(temperatio), onde se sugere a ideia de fusão de elementos em si diversos e
independentes. O próprio termo psyché (alma) parece já não manter o
trasfundo da nefesh hebraica, enquanto princípio vital do homem em sua
totalidade. Alguns estudiosos apontam em Ireneu uma certa orientação já
dualizante do conceito de psyché, uma espécie de «substancialização» da
alma. Ao mesmo tempo verifica-se, na linha da tradição filosófica grega, a
identificação da alma com o intelecto, o pensamento, o noûs11.
No norte de África, o presbítero Tertuliano (160-220) partilha com
Ireneu a luta antignóstica. Perante o perigo de escorregamento do conceito
de anima num sentido de desencarnação, Tertuliano coloca todo o peso no
seu oposto, o corpo/a carne (cardo). É sua a célebre sentença: «A carne é o
eixo da salvação: Caro salutis est cardo)»12. O homem é, antes de mais,
todo o corpo, a carne, pois nela Deus insuflou a alma com o seu próprio
sopro. Antes desta efusão, numa leitura literal de Gn 2,7, o homem (ou seja
o corpo) já estava formado. O corpo é o substrato comum tanto a Adão
como a Cristo, como é igualmente o elemento comum à situação do homem
na vida presente («corpo animal») e aquando da ressurreição («corpo
espiritual»). Cristo é homem porque é carne. Adão e Cristo são semelhantes
pela carne, pois a carne é o homem em primeiro lugar:

Pois se o primeiro homem, Adão, é carne e não alma, ele que finalmente se
tornou alma vivificante, também o último homem, Cristo, é Adão porque é
homem, e homem porque é carne, e não porque é alma. E se [Paulo] acrescenta:

10
IRENEU DE LIÃO, Adversus Haereses, V, 8.
11
Cf. A. VACCARO, Perchè rinunziare all’anima?, Bolonha 2001, 80-81.
12
TERTULIANO, De carnis resurrectione, 8.

73
«Não está primeiro o que é espiritual, mas o que é animal, e só depois o que é
espiritual», referindo-se aos dois Adões, não te parece que distingue um corpo
animal e um corpo espiritual na mesma carne, distinção que ele estabeleceu
precedentemente num e noutro homem. Por qual substância são, de facto, Cristo
e Adão semelhantes? Evidentemente pela carne. Entendo bem que eles são
também pela alma, mas é por causa da carne que eles são homens ambos os dois.
Pois é a carne que é homem em primeiro lugar13.

Em Tertuliano a antropologia não se separa da cristologia. Recordemos a


citação de GS 22: «Quando Deus modelava o homem do pó da terra, era
em Cristo, homem futuro, que pensava»14. Apesar da veemência em
valorizar o corpo, contra a heresia gnóstica, não deixa de estar presente em
Tertuliano uma certa ideia de instrumentalização do corpo, e uma primazia
dada à alma. A carne concorre a título de serva. Esta tendência, aqui ainda
suave, radicalizar-se-á com Orígenes e Agostinho, e permanecerá sempre
como uma sombra nas antropologias cristãs que operam com uma
concepção de homem como composto de corpo e alma.

2.1.1.2. A tradição alexandrina-ocidental

A chamada escola de Alexandria desenvolve-se no seguimento da


filosofia de Filão: A imagem de Deus nada tem a ver com o corpo, pois é
imagem do Lógos não encarnado (asarkós), situando-se no que há de mais
alto no homem, a sua alma intelectual (logikos) ou no seu espírito (noûs),
onde reside a verdadeira humanidade do homem. Este homem espiritual
deve procurar libertar-se dos limites da existência corpórea, pela ascese,
para alcançar a «semelhança com Deus». Orígenes, um dos expoentes da
Escola de Alexandria, figura marcante na espiritualidade oriental da Igreja
Antiga, dirige-se sobretudo, em suas obras, a cristãos tomados pelo desejo
de perfeição intelectual, moral e espiritual. Luta também contra o
gnosticismo, mas não deixará de estabelecer com as correntes gnósticas
uma vontade de diálogo. Foi um intelectual profundamente marcado pela
filosofia neoplatónica de Plutino, de quem foi discípulo. Defende a
preexistência das almas, uma dupla criação (a primeira espiritual e perfeita,
a segunda carnal e pecadora), a identidade entre o estado inicial e o estado
final (apokatástasis).
Na sua antropologia, a essência do homem é a alma racional, livre,
que caiu no mundo material em consequência do pecado. O fundamental no
13
TERTULIANO, De carnis resurrectione, LIII, 12-14.
14
TERTULIANO, De carnis resurrectione, 6: «Quodcumque enim limus
exprimebatur, Christus cogitabatur homo futurus». Cf. L. F. LADARIA, «Cristo,
“perfecto hombre” y “hombre perfecto”», in Sentire cum Ecclesia. Homenaje al Padre
Karl Josef Becker, Valência 2003, 176.

74
homem é o «homem interior», não aquele que recebemos por causa do
pecado. E a salvação consistirá, consequentemente, na libertação deste
mundo e da matéria, e no retorno ao estado original:

Aquele que foi «feito à imagem de Deus», é o nosso homem interior, invisível,
incorpóreo, incorruptível e imortal (interior homo noster est, invisibilisi et
incorporalis et incorruptus atque imortalis). Pois são estas qualidades que se
reconhece mais justamente [conforme] à imagem de Deus. Imaginar-se que é o ser
corpóreo que foi feito à imagem e à semelhança de Deus, é deixar supor que o
próprio Deus é corpóreo e possui forma humana: uma tal ideia de Deus é em toda a
15
evidência um sacrilégio (quod sentire de Deo manifestissime impium est) .

Orígenes conhece uma antropologia tripartida: o espírito, a inteligência (o


noûs) e o corpo. O primeiro indica a participação do homem na vida divina,
mas não se identifica com o Espírito Santo, ao contrário de Ireneu. A
inteligência caracteriza-se sobretudo pela liberdade; é a parte superior da
alma, na sequência da tradição filosófica platónica, e a sede do livre
arbítrio. A imagem de Deus coloca-se apenas na alma, e o corpo é o
degredo da mesma, pois em consequência do pecado a alma cai no corpo.
O corpo aparece em estreita relação com o pecado, e por isso não participa
na dignidade de ser imagem divina. Além de uma total desvalorização do
corpo, Orígenes não esclarece a relação entre a criação do homem
(antropologia) e a encarnação do Verbo (cristologia). O homem é um
terreno de combate entre a alma e o corpo, e por isso deverá libertar-se das
tendências inferiores do corpo (as paixões).
Com Orígenes faz estrada, e larga, a concepção do homem como
composto de alma e corpo, que se torna a antropologia dominante na Igreja.
Mas mais e pior: Concentra-se a imagem de Deus na alma, na dimensão
racional, intelectual e interior, excluindo por completo o corpo. Lamenta-se
já a perda de uma inspiração decisivamente bíblica na definição cristã do
homem e a clara adopção de uma antropologia dualista. O pensamento de
Orígenes teve uma larga difusão entre nos ambientes intelectuais tanto
gregos como latinos. O monaquismo egípcio e palestinense e, em
consequência, toda a tradição monástica posterior, encontrarão em
Orígenes um mestre espiritual. A ascese monástica e, praticamente, toda a
ascese cristã estiveram marcadas pelas teses originistas (o dualismo alma-
corpo, o combate contra o corpo, as paixões e os demónios que não eram
senão figurações das mesmas paixões).
No Ocidente latino, com Agostinho, a antropologia perde o seu
enquadramento cristológico. O homem é um composto de corpo e alma
racional. O corpo não está ao nível da alma; é-lhe secundário. Mas tanto o
corpo como a alma não são senão partes do homem, que é um todo:

15
ORIGÈNE, Homélies sur la Genése, I, 13: SC 7, Paris 1976, 57-58.

75
Somos um composto de corpo e alma [ex anima et corpore nos esse compositos
(...)]. Qual das duas substâncias que mencionei a que constitui realmente o
homem? São as duas, ou o corpo unicamente, ou só a alma? O corpo e a alma
são duas realidades distintas e nem uma nem a outra é o homem; não é o corpo
16
sem a alma que o anima, nem a alma sem o corpo que lha dá vida .

Começa a afirmar-se com Agostinho que o corpo e alma são


substâncias, concepção que se desenvolverá na escolástica e será corrigida
por S. Tomás. Porém mantém-se ainda um certo equilíbrio: Alma e corpo
ordenam-se mutuamente, pois não são duas realidades distintas (coisa que o
conceito de substância poderia indicar). Nem uma nem outro é o homem.
Nem a alma funciona sem o corpo nem o corpo sem a alma. Todavia é
indiscutível o primado e a superioridade da alma em relação ao corpo: «O
sumo bem do corpo não é, pois, o prazer, nem a falta de dor, nem a força,
nem a agilidade, nem nada corpóreo, mas unicamente a alma. Ela é, de
facto, o que com a sua presença comunica ao corpo tudo o que acabo de
referir, e, além disso, a vida, que é o melhor de tudo»17. Há uma grandeza
própria do corpo, que lhe vem da alma, porque lhe comunica a vida, o vigor
e a força. Agostinho não desvaloriza o corpo, estando longe de um
dualismo radical.
Todavia, o bem do homem não é o corpo mas a alma. O homem é
uma alma racional que se serve de um corpo (instrumentalidade do corpo
pela alma), porque a imagem de Deus reside na parte superior da alma (o
intelecto: intelectus mentis)18. Assim se vai afirmando e consolidando uma
antropologia que acentua a dimensão racional do homem, enquanto alma,
com uma conotação imaterial, supra-sensível e incorpórea. E é na alma
racional que reside a imagem da Trindade, sendo por isso imortal: «Anima
hominis, id est rationali, sive intellectual imago Creatoris»19. Mas a
racionalidade não é o único aspecto da semelhança da alma a Deus. É,
antes de mais, a análise do amor que leva Agostinho a colocar na alma
humana a imagem divina. A alma é imagem d’Aquele que ama, do Amado
e do Amor20. Se a alma é, em Agostinho, uma herança platónica e
aristotélica, nem por isso deixa de haver um conversão do conceito (a fé
introduz aqui uma crítica). Mais do que um conceito ontológico, a alma em
Agostinho é um conceito relacional; expressa a capacidade do homem
conhecer e amar a Deus. Este aspecto é decisivo para uma compreensão da
16
S.TO AGOSTINHO, De moribus ecclesiae catholica, I, 4,6, in Obras de San
Augustín, IV, BAC, Madrid 19752, 207.
17
S.TO AGOSTINHO, De moribus ecclesiae catholica, I, V, 6.
18
Cf. S.TO AGOSTINHO, De Genesi ad litteram, VI, 12, 22, in Obras de San
Augustín, XV, BAC, Madrid 1957, 873-8 75.
19
S.TO AGOSTINHO, De Trinitate, XIV, 4,6.
20
Cf. S.TO AGOSTINHO, De Trinitate, XIV, 12,15.

76
pessoa como subjectividade e abertura relacional a Deus, fonte de todo o
amor. Podemos apontar os exageros de Agostinho numa não suficiente
valorização do corpo. Podemos denunciar aquilo que se tornará uma
constante na antropologia cristã: A subordinação da alma em relação ao
corpo. Mas não podemos deixar de reconhecer no Bispo de Hipona a
radical afirmação da capacidade do homem para amar a Deus e a Ele se
assemelhar pelo amor. Ainda que o corpo seja excluído, à partida, dessa
capacidade fontal e ontológica, que reside na alma.

3.2.2 O problema alma-corpo na Escolástica medieval

A escolástica medieval retoma a doutrina agostiniana de que o


homem é, propriamente, alma, possuindo esta maior dignidade do que o
corpo. A salvação consiste na visão de Deus e diz respeito sobretudo à
alma. Com este pressuposto é difícil ver como entra o corpo na salvação da
pessoa. E mais difícil se torna salvaguardar a radical unidade do homem.
Duas heranças filosóficas se confrontam na escolástica medieval: a
herança antropológica de Aristóteles e a herança dualizante de Agostinho.
Aristóteles, em De anima II, define a alma como «a entelequeia primeira de
um corpo natural organizado», ou seja, o princípio de ser e de agir de um
ser vivo. A alma não é uma substância no sentido de sujeito subsistente; é a
forma substancial, o princípio de ser pela sua função de enformar a matéria.
É a alma que determina ontologicamente a matéria. E se alma é definida
como a forma substancial do corpo, importa dizer que não há corpo fora da
relação matéria-forma. O corpo resulta da matéria informada pela alma. O
perigo do aristotelismo era o de «naturalizar» a alma, que pereceria com o
próprio corpo. Segundo Gilberto de la Porrée, o homem não é corpo nem
alma, mas a união de ambos. Alma e corpo são partes do homem. A
essência da alma é incorporar-se no corpo. E a morte, com o seu estado de
alma separada, é a dissolução do homem enquanto existência. Por isso a
ressurreição será reabilitação do homem todo. Será, todavia, com
Guilherme de Auxerre que as categorias aristotélicas entram na reflexão
teológica. A alma é «forma e perfeição do homem» (anima est forma et
perfectio hominis). É pela alma que o corpo adquire forma e realidade. Tal
como Gilberto de la Porrée, também para Guilherme a alma não é o
homem, mas parte de si: anima non est persona. Por isso a ressurreição é
necessária para que a alma realize a sua tendência de se incorporar.
Na herança agostiniana a alma e o corpo são consideradas duas
substâncias. Para esta tradição filosófico-antropológica o aristotelismo era
visto com suspeita, pois ao reduzir a alma a forma substancial do corpo
colocava em perigo a sua imortalidade. E se o corpo e a alma são duas
substâncias não se vê como se possam unir enquanto matéria e forma. A

77
tese hilemorfista tinha, pois, grandes opositores na escolástica. Hugo de S.
Victor será o máximo expoente desta corrente. Seguindo a esteira dos
alexandrinos, afirma que a alma é o que foi criado à imagem e à
semelhança de Deus, que por isso é imortal. O corpo não entra, portanto, na
razão da pessoa; o homem é, fundamentalmente, alma. Daí que mesmo
numa situação de alma separada após a morte, esta continua a ser pessoa na
sua totalidade. O próprio S. Boaventura defendia a dupla substancialidade
do corpo e da alma. A doutrina de inspiração platónica põe em perigo a
unidade do homem. Caberá a S. Tomás fazer a síntese destas duas
correntes.
A relação alma-corpo é desenvolvida por S. Tomás na sua Suma
Teológica, questão 76. Esta questão não se compreenderá senão como uma
tomada de posição entre dois sistemas, o averrroísmo, por um lado, e o
platonismo por outro. O primeiro, interpretando Aristóteles, apresentava o
intelecto, o único princípio pensante, como uma espécie de «alma
universal». O segundo distinguia no interior de cada homem o princípio
pensante e o corpo duas realidades distintas. Para S. Tomás nem um nem
outro sistema dão razão da unidade do homem21. Recorrendo à linguagem
hilemórfica, para S. Tomás a forma (a alma) é a determinação da matéria,
que por si própria é indeterminada. Nem a forma nem a matéria existem
uma sem a outra, pois ambas são co-princípios do mesmo e único ser real.
Nem a matéria nem a forma têm realidade senão pela sua união, e nenhum
joga o seu papel separado do outro. Com Aristóteles, S. Tomás afirma que
o intelecto (a alma) é a forma do corpo; o princípio imediato da vida do
corpo é a alma. Contra o platonismo, responde S. Tomás que o corpo e o
entendimento estão unidos, pois não é possível sentir sem o corpo. Contra o
averroísmo, defende que a alma é a única forma substancial do corpo:
«Como a forma é acto e a matéria potência, não há modo de que o
composto de matéria e forma possa ser em sua total identidade forma de
outro sujeito». Todavia no pensar há uma separação do corpo. Contudo, a
alma intelectiva não forma senão um único ser com a matéria, de tal modo
que o ser que é o do composto todo inteiro, é igualmente o ser da alma.
Com a tradição agostiniana e platónica, S. Tomás não rejeita a
imortalidade da alma. A alma permanece no seu ser uma vez destruído o
corpo com a morte. Todavia esta tese apresenta-se problemática na
coerência do sistema hilemórfico, porque é próprio da alma estar unida ao
corpo do qual é forma substancial. Mas mesmo separada, a alma conserva a
sua aptidão e inclinação natural de se unir ao corpo22. Sendo a alma a única
forma substancial do corpo, no corpo a alma já está incluída: «No que eu
chamo corpo a alma está incluída como seu acto (...). A alma dá por sua
vez o ser a um corpo, e dá ser organizado». O corpo resulta da união da
21
Cf. S.TOMÁS D’AQUINO, Sum. Theologicae I, q. 76, a. 1.
22
Cf. S.TOMÁS D’AQUINO, Sum. Theologicae I, q. 76, a. 2.

78
alma com a matéria; resulta corpo organizado pela enformação da alma. A
alma dá a especificidade ao corpo como corpo humano próprio. O corpo
pertence ao ser próprio da alma, como o sentir do corpo pertence ao ser da
alma. Enquanto forma do corpo, a alma não tem um ser distinto do ser do
corpo; ela é-lhe unida imediatamente pelo seu ser23. E por estar unida ao
corpo em sua qualidade de forma, a alma está em todo o corpo e em cada
uma das suas partes. É precisamente por isso que é «forma substancial» (a.
8).
Para S. Tomás, o elemento espiritual do homem, a alma, continua a
ter a primazia. Neste ponto segue inteiramente a tradição cristã precedente.
Mas a corporeidade não tem nenhuma dimensão negativa. O homem é
corpo e alma. O sujeito que é o homem exprime-se simultaneamente como
ser corporal e espiritual. Há no homem uma unidade irredutível. Unidade
que é explicada pelo recurso à expressão «a alma é a única forma
substancial do corpo». Deste modo fecha-se o caminho a qualquer intento
dualista, que considerasse a alma unida ao corpo só de forma acidental. O
homem não é um composto de corpo e alma, como se tratassem de duas
substâncias separadas. Estas são dois princípios de ser que mutuamente se
apelam. Alma e corpo existem somente enquanto unidos. O corpo é a
actualidade da alma, que lhe dá o ser. Não há, consequentemente, corpo se
não há alma. Como não existe um ser da alma independente do corpo.
Além disso a unidade alma-corpo coloca em destaque a mundanidade e a
historicidade do homem. É pelo corpo que nos relacionamos com os outros
e com o mundo. Mas a alma, pela sua natureza espiritual e incorruptível,
encontra-se separada do corpo depois da morte. O que é um estado
«contra-natura», contra a natureza da alma que é estar unida ao corpo. Para
S. Tomás a alma separada nem sequer é pessoa, nem em rigor é o eu de
nenhum homem.
A antropologia tomista tornou-se vinculante na definição
antropológica cristã, tendo sido adoptada pelo Concílio de Viena (1312). A
síntese de S. Tomás pressupõe um notável progresso e não deve ser
facilmente descartável. A sua intuição de fundo permanece válida e
irrenunciável. O seu mérito está na acentuação da unidade do homem e na
valorização do corpo, na exclusão de uma compreensão «coisicista» de
corpo e alma como entidades separadas. S. Tomás adequa a linguagem
cultural do tempo à concepção bíblica de uma antropologia radicalmente
unitária.

23
Cf. S.TOMÁS D’AQUINO, Sum. Theologicae I, q. 76, a. 6-8.

79
3.2.3 O problema alma-corpo no Magistério da Igreja

As declarações do Magistério da Igreja apenas tocam


tangencialmente o problema da alma e do corpo. Tal questão não é central,
surgindo apenas como um recurso linguístico para se justificar e consolidar
verdades essenciais e irrenunciáveis sobre a condição divina e salvífica do
homem. E, na maior parte dos casos, o recurso ao binómio alma-corpo não
tem directamente uma aplicação antropológica, mas sim cristológica. A sua
dimensão antropológica surge como uma consequência cristológica. Tal
como era a preocupação dos Padres da Igreja, determinar a natureza
humana a partir da encarnação do Verbo, essa foi também a preocupação
primeira do Magistério conciliar da Igreja antiga na sua luta contra as
heresias cristológicas. No Concílio de Éfeso (431) declara-se a unidade na
distinção da natureza humana e divina: «O Verbo tendo unido a si,
enquanto segunda hipóstase ou pessoa, a carne animada de alma racional,
se fez homem de modo inefável e incompreensível» (Dz 111a).
O Concílio de Toledo (400), na sua luta antiprisciliana, declara que o
corpo de Jesus não é «imaginário» mas real, «sólido e verdadeiro», «sentiu
a dor, chorou e sofreu as demais calamidades do corpo» (Dz 20). O
priscilianismo, com forte desenvolvimento na Península Ibéria, foi,
sobretudo, um movimento de radicalismo espiritual, que, negando a
condição carnal e corpórea do homem, atingia o núcleo constitutivo do
dogma cristológico. Tirando as consequências antropológicas da
corporeidade de Cristo, o Concílio de Toledo afirma ainda a ressurreição
do corpo e recusa que a alma humana seja uma «porção de Deus» (Dz
30;31). O priscilianismo levava tão longe o seu desprezo pelo corpo e pela
carne, que considerava diabólico tudo quanto fosse carnal. Contra tal
posição declara o I Concílio de Braga (561): «Se alguém diz que a criação
de toda a carne não é obra de Deus, mas dos anjos malignos, como diz
Prisciliano, seja anátema» (Dz 243). No Oriente, um sínodo realizado em
Constantinopla (543), condena a tese originista da preexistência da alma
(cf. Dz 203).
Depois da tese tomista da alma como forma do corpo (anima
corporis forma) ter sido condenada como falsa pelo bispo e pela
Universidade de Paris, em 1277 e em 1285 respectivamente, acaba por ser
consagrada pelo Magistério no Concílio de Viena (1311-1312):
«Reprovamos como errónea e inimiga da verdade católica toda a doutrina
ou proposição que propriamente afirme ou ponha em dúvida que a
substância da alma racional ou intelectiva não é verdadeiramente e por si
forma do corpo» (Dz 481). À semelhança dos concílios antigos, também o
Concílio de Viena fundamenta as suas posições antropológicas na
cristologia do Verbo encarnado. Em sua união hipostática, Cristo assumiu a
natureza humana em todas as suas «partes», segundo a linguagem do

80
Concílio: O corpo passível, sujeito ao sofrimento, e a alma racional. Estas
partes são a expressão de toda a condição humana, que o Verbo assumiu. A
verdade da humanidade de Cristo reside, portanto, na sua condição
corpórea. «Sendo verdadeiro Deus [o Filho] fizera-se verdadeiro homem,
isto é, corpo humano passível e alma intelectiva ou racional que por si
mesma verdadeira e essencialmente informa o próprio corpo» (Dz 480).
Com a expressão «por si mesma» o Concílio quer afirmar que a função
informante da alma se exerce directa e imediatamente, sem recurso a
quaisquer outras mediações; com a expressão «essencialmente» quer-se
sublinhar que a essência da alma não é senão informar o corpo. Daí que o
resultado dessa união seja substancial, isto é, ontológico e não meramente
acidental.
Viena reafirma aquela verdade fundamental da condição humana,
que a Escritura revela: O homem é uma unidade biológica e espiritual,
corpórea e anímica. Mantendo esta perspectiva bíblica de fundo e dando
continuidade à antropologia unitária dos primeiros séculos, o Concílio de
Viena formula esse conteúdo tradicional nas categorias filosóficas do
tempo, o hilemorfismo aristotélico-tomista. Importa dizer que este foi um
recurso de linguagem, meramente instrumental, com o qual a Igreja
expressou e actualizou a sua fé. Nos séculos posteriores quer a teologia
quer o Magistério não fizeram mais do que repetir a tese tomista
sancionada por Viena. Será preciso esperar pelo Concílio Vaticano II para
vermos o problema alma-corpo novamente reformulado.
No Concílio Vaticano II (1962-1965) a linguagem bíblica é, de novo,
reassumida e proposta em perspectivas actuais, sem se renunciar ao
tradicional esquema alma-corpo: «Na unidade de corpo e alma, o homem,
pela sua própria condição corporal, é a síntese do universo material» (GS
14). Por esta sua condição corpórea, não é lícito ao homem «desprezar a
vida corporal»; pelo contrário tem a obrigação de «ter por bom e digno de
honra o seu corpo». É inerente à própria dignidade da pessoa «glorificar a
Deus no seu corpo». O corpo é o lugar do louvor ao Deus criador, porque é
a expressão da condição criada do homem. No seu corpo, o homem faz a
experiência da sua relação com o mundo, com os outros e com Deus. O
corpo é, portanto, um lugar teológico, porque é expressão e revelação do
destino relacional a que o homem é chamado.
Se, por um lado, o Concílio a firma a dimensão material, a existência
corpórea do homem enquanto «síntese do universo», por outro, procura
salvaguardar a mesma condição corpórea do perigo do reducionismo
materialista: «O homem, porém, não se engana quando se reconhece
superior às coisas materiais». Esta superioridade vem-lhe do facto de
possuir uma «interioridade». A interioridade, sinónimo de alma, é aquela
dimensão íntima e profunda da existência humana, pela qual a pessoa é
mais do que matéria, é vocação de transcendência, precisamente por ser

81
habitada, na sua dimensão mais íntima, pelo próprio espírito de Deus, «o
mais íntimo do meu próprio íntimo», no dizer de Agostinho. Mantendo
embora a linguagem tradicional do corpo e da alma, o Vaticano II traduz e
actualiza em linguagem contemporânea esses dois termos com as
expressões «condição corporal» e «interioridade». O homem define-se,
pois, numa dupla referência: a Deus, através da sua «interioridade», e ao
mundo, através da sua «condição coporal». Há uma dupla dimensão na
condição histórica e concreta da existência humana: Uma visibilidade
corpórea, expressão de um existir-no-mundo, e uma interioridade,
expressão de uma subjectividade, de um «ser-em-si», que se torna
comunhão, «ser-para-os-outros» e sobretudo «ser-para-Deus». No corpo e
pelo corpo presencializa-se e objectiva-se a interioridade do homem. Pela
interioridade a própria matéria transcendentaliza-se e o homem pessoaliza-
se, realiza-se como pessoa, aberto ao mistério do amor, a Deus e aos
irmãos.
Concluímos, citando Ruiz de la Peña:

A trajectória seguida pelas declarações do Magistério representa uma progressão


crescente face à afirmação da unidade do homem, através de três grandes
marcos: a) os textos magisteriais, até Latrão inclusive, falam de uma natureza
humana que consta de (ou está constituída por) alma e corpo; b) Viena dá mais
um passo quando ensina que alma e corpo se unem substancialmente; todavia o
sujeito do seu asserto é ainda a alma (anima forma corporis); c) por fim, o
Vaticano II (GS 14) assevera categoricamente que «o homem é uno em corpo e
alma» (corpore et anima unus)24.

2.2. Actualização da questão

2.2.1. O homem ser unitário

Na sua existência concreta, fenoménica, o homem é uma realidade


única, um todo ontológico; é, simultaneamente, corpo e alma, sendo
impossível estabelecer quaisquer fronteiras entre ambos. Todas as suas
acções são simultaneamente corpóreas e espirituais, psico-orgânicas.
Existem actos preponderantemente espirituais ou preponderantemente
corporais, mas não existem actos puramente espirituais nem puramente
corporais25. Os gestos corporais denunciam a interioridade do eu até ao
ponto de singularizar e de tornar reconhecível a pessoa. Este é o milagre
quotidiano da existência humana pelo qual o nosso corpo nasce,

24
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 129.
25
Cf. X. ZUBIRI, Sobre el hombre, Madrid 1985, 482.

82
incessantemente, para o espírito e este igualmente para o corpo 26. As
próprias funções vegetativas não se realizam no ser humano de maneira
animal. Pelo contrário, as mais biológicas das actividades humanas (a
alimentação, o sexo, a morte) têm sido sempre as mais impregnadas de
símbolos, as mais ideologizadas, as mais «espiritualizadas».
O próprio acto redentor de Cristo compreendeu uma dimensão
interior - a vontade de entrega amorosamente livre - e a plasmação
corpórea desta disposição anímica nos acontecimentos da paixão27. Toda a
experiência humana é a experiência da única e mesma pessoa em sua
unidade psicossomática. A espiritualidade não é uma dimensão paralela à
encarnação, mas envolve a vida toda da pessoa unificando todas as suas
dimensões na relação. O espiritual pertence à corporeidade; constitui uma
dimensão essencial da mesma, específica do ser humano; a nossa própria
carne é histórica, mas a sua história é espiritual28. O corpo é a testemunha
do espírito em nossa historicidade carnal. Por isso mesmo o corpo é o
mediador permanente da revelação do espírito no acontecer do humano. O
espírito não está por detrás do corpo, mas habita-o; o corpo não se serve do
espírito, mas insere-o no mundo, fá-lo comunicar com o mundo29.
Por isso, pode dizer-se com a Bíblia: «o homem é alma, o homem é
corpo». Mas com a condição de que quando dizemos «alma» entendemos
por ela não um espírito puro, mas um co-princípio da realidade humana,
cuja razão de ser é a encarnação. E que quando dizemos «corpo», estejamo-
lo pensando como o que é: uma porção de matéria animada,
espiritualizada30. A antropologia cristã separa-se, assim, do dualismo,
afirmando a unidade ontológica e existencial do homem. A alma não é uma
entidade preexistente ao corpo, como propunham os velhos dualismos, nem
este uma mera porção de matéria inerte e corrupta. Aquela encarna-se no
corpo, sendo a corporeidade a sua própria manifestação; o corpo é sempre
corpo animado, habitado por uma interioridade, por uma espiritualidade.
Na sua radical experiência unitária, o homem reconhece-se e realiza-se
permanentemente como espírito encarnado e como corpo animado. Por isso
a distinção corpo-alma não é adequada, pois em cada um dos seus membros
já está implicado o outro31. A corporeidade implica e comporta sempre a
própria espiritualização da matéria, o ser corpo pela encarnação do espírito.
Por essa mesma razão o corpo não assinala uma direcção oposta à da alma.

26
Cf. J.-L. CHRÉTIEN, La voix nue. Phénoménologie de la promesse, Paris
1990, 15.
27
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 130.
28
Cf. Y. LEDURE, Trascendenze. Saggio su Dio e il corpo, Bolonha 1991, 88;
J.-L. CHRÉTIEN, La voix nue, 28.
29
Cf. F. CHIRPAZ, Le corps, Paris 1963, 116.
30
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 130.
31
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, «Visión cristiana....», 303-304.

83
A corporeidade encontra o seu fundamento não em si própria mas na
espiritualidade que a envolve, sendo absolutamente verdadeira a afirmação
de Kierkegaard: «Quanto mais o homem se apreende como espírito, mais
ele se apreende ao mesmo tempo como corpo»32.
Ser-alma assinala mais a irredutibilidade interior e subjectiva da
pessoa à sua pura materialidade orgânica; ser-corpo expressa a visibilização
e a exteriorização de tal interioridade no concreto da existência histórica e
mundana da pessoa. O homem é alma na medida em que essa totalidade
una está dotada de uma interioridade, de uma densidade e profundidade tais
que não se esgotam na superficialidade do facto físico-biológico. É corpo
na medida em que dita interioridade se visibiliza, se comunica e se auto-
elabora historicamente no tempo e no espaço33. O homem é, pois, uma
unidade substancial de espírito e matéria. Ambos princípios, sendo
essencialmente diversos, estão intrínseca e mutuamente referidos, e isso
significa que o que se diga de qualquer dos dois, se diz da unidade
substancial por eles constituída34. O homem inteiro é corpo e é alma. A
unidade existencial e metafísica do homem não anula a afirmação da
relação entre os dois momentos estruturais e estruturantes da sua unidade
ontológica e existencial, o ser corpo e o ser alma.

2.2.1.1. O homem como dualidade

Partindo, embora, de uma concepção antropológica unitária, não se


pode prescindir de uma linguagem dual (alma-corpo, espírito-matéria;
interioridade-exterioridade). Tal linguagem é necessária para assinalar
aspectos complementares e inseparáveis da unidade ontológica da pessoa.
Neste sentido, nem toda a linguagem alma-corpo é sem mais dualista. Pois
uma coisa é distinguir os momentos estruturais diversos de uma realidade
única, e outra enumerá-los como se fossem unidades somáveis. O dualismo
tem que ver não com a afirmação de alma e corpo, mas com um
determinado modo de interpretar a sua relação mútua35. Assim se rejeitam
as teses monistas da redução do humano ao material e da pura identificação
do homem com o corpo, compreendido este meramente como processo
físico-químico e biológico. Contudo não se pode ignorar que a linguagem
dual é comum também às antropologias dualistas. O problema está,
precisamente, quando se apresenta a alma como princípio ontológico

32
Citação encontrada em A. FOREST, L’avènement de l’âme, Paris 1973, 107-
108.
33
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 131.
34
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 256.
35
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 132.

84
imaterial e extracorpóreo36. A antropologia cristã, por seu lado, mostra a
legitimidade da linguagem dual, quando suportada por uma antropologia
unitária. Consequentemente, não tem sentido afirmar que o corpo procede
de uma causa intramundana enquanto à alma se atribui uma criação
imediata de Deus. É, antes, o homem que possui, em si próprio, uma dupla
causalidade. E o que se diz de um dos princípios, diz-se do homem no seu
todo, porque os mesmos não existem em separado. «O homem inteiro foi
criado pelo mesmo e único Deus»37.
Todo o homem é corporeidade trespassada pelo anímico e
espiritualidade que toma forma no corpóreo. O corpo, enquanto matéria
informada pela alma, é a sua expressão visível, a sua auto-realização. No
homem coexistem duas dimensões complementares e inseparadas,
intrinsecamente ligadas na mesma e única unidade substancial, o ser corpo
e o ser alma, cuja distinção é apenas lógica e jamais existencial. Ser
espiritual e corpóreo, o homem é a criatura onde o espírito se «materializa»
ao exteriorizar-se, e a matéria se «espiritualiza» interiorizando-se38. A
corporeidade é a visibilização e a materialização do espírito; este não existe
em estado puro mas na sua concretização material (encarnação), na sua
interiorização na matéria. Eis porque o cristianismo não impõe uma censura
prévia nem ao espírito nem à matéria. Pelo contrário, procura abarcar a
ambos numa síntese coerente. E o lugar privilegiado dessa síntese é,
precisamente, o homem onde as duas possíveis formas de ser criatural se
encontram para unir-se substancialmente. Deste modo a antropologia abre-
se à cristologia, a condição criatural do homem anuncia o encontro
definitivo entre a criatura e o Criador: Deriva daí o carácter representativo
do homem, que o converte em interlocutor do diálogo entre o Criador e a
criatura e que antecipa a síntese última entre ambos que terá lugar em
Cristo. A afirmação da unidade do homem supõe, pois, a distinção dos dois
factores estruturais, corpo e alma. A distinção corpo-alma não é somente
possível, mas também exigida e justificada pelo próprio dogma cristão39.
Exigida na medida em que é necessário salvaguardar a irredutibilidade do
homem ao mundano e ao material, afirmando, precisamente, a sua
capacidade relacional, a sua abertura à transcendência, evocada pelo termo
«alma». Mas importa, de imediato, acrescentar que esta dualidade não é
mais do que dimensões complementares da unidade original que é o
homem40.

36
Objecção colocada por P. LAÍN ENTRALGO, Cuerpo y alma, Madrid
1995.2ª, 333.
37
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 92.256.
38
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, El hombre y su muerte. Antropología teológica
actual, Burgos 1971, 366.
39
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 133.
40
Cf. L. F. LADARIA, Antropologia teologica, 145.

85
Daí que seja difícil eliminar do discurso antropológico todo o rasto
de dualidade. Tal dificuldade pode-se constatar no facto de que nenhum
idioma expressa todo o homem com uma única série de termos, anímicos
ou corpóreos. Perguntemo-nos, fará a dualidade parte integrante da
compreensão da unidade do homem, ou será, apenas, uma limitação de
linguagem? O certo é que a limitação da linguagem humana traduz essa
impossibilidade de afirmar a unidade e a totalidade do homem de outro
modo senão em termos duais, numa relação dialéctica de dimensões
complementares, sem nunca excluir o risco, sempre presente, de se
radicalizar um dos contrários ou quebrar a dinâmica da reciprocidade.
Nesta limitação de conceptualização, o dualismo apresenta-se sempre como
uma sombra da qual a reflexão antropológica tem de precaver-se. Mas
eliminar um dos pólos comporta um risco ainda maior, o monismo sempre
redutor.
Uma certa confusão entre alma e espírito tem caracterizado tanto a
filosofia como a teologia ocidentais, com a consequência de reduzir
espírito, aqui identificado com alma, a um princípio meramente
antropológico. É certo que a afinidade etimológica entre anima e spiritus é
inegável. Ambos remetem para a realidade da respiração, do sopro vital e
se apresentam como princípio de vida. Mas não se pode ignorar também a
respectiva diferença: enquanto anima remete para uma dimensão
exclusivamente antropológica, referindo à exalação e à respiração, spiritus
reenvia-nos para a inspiração e refere-se ao ar que se respira. Há uma
exterioridade própria do spiritus, acolhido como dom de vida por parte do
homem. Spiritus é mais do que um dinamismo antropológico; há nele uma
dimensão transcendente na medida em que se refere ao sopro divino. A
mesma perspectiva encontra-se no ruah hebraico, que evoca o sopro
divino, ligado à ideia de força e de dinamismo. É, essencialmente, recebido
do Criador e muito raramente aplicado ao homem, enquanto criatura. Em
termos bíblicos, espírito implica sempre uma referência directa a Deus, ao
dom da vida que o homem acolhe41.
A recuperação do sentido propriamente bíblico da noção de espírito,
enquanto realidade divina através da qual Deus se comunica e se relaciona
com o homem, só terá vantagens para a antropologia teológica 42. Não só
ajudaria a compreender melhor a relação do homem com Deus, enquanto
acolhimento e doação da vida como dom divino, como ajudaria também a

41
Cf. H. W. WOLFF, Antropología del Antiguo Testamento, 52-61.
42
A recuperação da dimensão bíblica, teologal, de espírito só muito
recentemente aconteceu no âmbito da antropologia teológica: cf. L. F. LADARIA,
Antropologia teologica, 14; G. COLZANI, Antropologia teologica, 388; X. LACROIX,
Le corps de chair, 265-266; J. MOLTMANN, L’avvento di Dio, 90.

86
integrar o corpo nessa mesma relação43. A interioridade da relação não
anula a expressividade corpórea; antes a exige como condição da sua
própria realização. Pelo dom do Espírito, que nos pessoaliza, o corpo entra
no dinamismo vital da relação filial. O espiritual não é um estádio exterior
nem alheio à corporeidade; pertence, antes, à essência da própria
corporeidade, vivida e percebida na lógica do dom44. A vida espiritual, que
é entrada no dinamismo do dom, traduz-se numa nova maneira de viver o
corpo, pois é pelo dom do próprio corpo que o dom da vida se torna
realidade. «Tornar-se espiritual é viver o seu corpo como dom e feito para
o dom»45. Em suma, o homem não é só corpo nem só alma, nem tão pouco
é corpo mais alma, ao modo de duas entidades completas em si mesmas e
encostadas uma à outra.

2.2.1.2. O homem é corpo

A experiência primeira que o homem faz de si mesmo é a da sua


corporeidade, de alguém que se relaciona com os outros e com o mundo e
descobre a sua alteridade pela fronteira intercomunicativa e relacional que
é o seu próprio corpo. Mas a realidade corpo escapa a toda a tentativa de
definição e de conceptualização, porque não é possível reduzir o corpo a
um objecto exterior ao homem. O homem é corpo, não tem corpo. Para
poder definir o seu corpo, o homem teria que distanciar-se dele e, assim,
abarcá-lo para delimitá-lo (defini-lo). Toda a definição, naquilo que em si
condensa de análise e de síntese, traduz e explicita um processo de
conhecimento só possível na distinção entre um sujeito, que conhece, e um
objecto, que é conhecido. Ora tal distinção não é possível na realidade
humana, pois o corpo não é um objecto que o homem possui, mas pertence
à identidade do seu próprio ser. Sendo corpo, o ser humano identifica-se
com ele. O definidor não pode entrar no definido, a não ser que pretenda
ser ao mesmo tempo sujeito e objecto de uma mesma operação. Como
afirma Ruiz de la Peña, corpo é, pois, uma dessas protopalavras abarcantes
que resistem a ser adequadamente explanadas em fórmula precisa e
compreensiva46.

43
Situam-se nesta linha os contributos de S. MCFAGUE, The Body of God. An
Ecological Theology, Londres 1992, 141-150; J. MOLTMANN, Dieu dans la création,
22-34; G. MÜLLER - RENHOLZ, El Espíritu de Dios. Transformar un mundo en
crisis, Santander 1996, 21-56.
44
Cf. Y. LEDURE, Trascendenze, 88.
45
X. LACROIX, Le corps de chair, 271. Cf. G. COLZANI, Antropologia
teologica, 390.
46
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 134.

87
Superando a separação cartesiana entre o corpo, identificado como
mero objecto de conhecimento (res extensa), e o sujeito pensante (o cogito
ou a res cogitans), a fenomenologia inscreve o corpo na esfera do ser do
homem. O corpo não deixa de ser realidade física e biológica, mas não se
reduz a estas. No homem, «a subjectividade é real e o corpo é
subjectivo»47. A existência humana é uma permanente existência corpórea.
O sentimento corpóreo é inseparável da identidade da pessoa. Enquanto
corpo o homem é ser-no-mundo; ser-no-tempo; ser mortal; ser sexuado;
expressão comunicativa do eu. Como se pode verificar, estamos perante
uma reflexão marcadamente filosófica, mas que não deixa de ter
consequências teológicas48.
Mais do que um estar-no mundo, o homem é-no mundo. Este não é
para o homem um mero complemento circunstancial de lugar, mas sim um
elemento constitutivo. A inserção do homem nos cosmos não é algo de
violento mas de natural. A realidade corpo não tem fronteira na própria
pele; é, em certo sentido, co-extensiva ao mundo. Corpo e mundo são
grandezas que se co-implicam mutuamente. O mundo torna-se como que o
«corpo dilatado do homem», e, por seu lado, o corpo é «o eixo do mundo»,
«a estrutura através da qual a existência humana particulariza o
universo»49. Esta mútua implicação corpo-mundo não é uma novidade da
filosofia fenomenológica. Já as narrativas da criação a referem: Enquanto
corpo, o homem é adam da adamah (Gn 2); está ligado à terra por uma
dupla relação de origem e de destino; é constitutivamente mundano e
temporal50.
Enquanto corpo, o homem está imerso nessa duração contínua e
sucessiva que chamamos tempo. Em consequência da sua condição de
encarnação, o homem nunca poderá dispor-se totalmente de si num único
acto definitivo, nem realizar-se de imediato e irreversivelmente. A
condição corpórea significa itinerância. Por isso mesmo, porque ser-no-
tempo, a realidade humana consiste num ir fazendo-se progressivamente. O
homem é caminhante (homo viator). Em cada momento do tempo, nada
está inexoravelmente perdido ou ganho. Só no final do tempo que lhe foi
dado, alcança o homem a sua própria identidade51, a sua definitiva
corporeidade.
A morte desmundaniza e destemporaliza o homem, subtraindo-o ao
âmbito espacio-temporal que o constituía. Por isso a morte é o fim do
homem inteiro. Supor que o sujeito do verbo morrer é o corpo, não o

47
M. HENRY, Philosophie et phénoménologie du corps, 261.
48
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 134-138.
49
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 135.
50
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Creación, gracia, salvación, Santander 1993,
52; ID., «Antropología cristiana», Estudios Trinitarios 22 (1988) 416.
51
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 135.

88
homem, equivale a ignorar que o homem é corpo. A banalização da morte
como fenómeno epidérmico, além de chocar com a intuição de que todos
temos da sua terribilidade, é uma forma de regressão ao dualismo
antropológico52. Porque o homem é corpóreo, mundano e temporal, a morte
tem de ser tomada a sério, pois todas aquelas dimensões ficam
radicalmente afectadas por esta.
Já os relatos bíblicos da criação insistiam no facto de que a entidade
homem realiza-se na polaridade complementar de varão e mulher. Na
corporeidade está implica uma diferenciação sexual, o que confere ao ser
humano uma dupla tonalidade afectiva, um duplo modo de instalação
mundana e de relação social correlativamente diferentes. A ideia de homem
não tem uma correspondência real-concreta senão através da sua colocação
num ou noutro sexo; colocação que é por sua vez biológica, biográfica,
social e histórica. Essa é a razão pela qual o cristianismo sempre se opôs ao
mito do andrógino, no qual late a tendência à unicidade incomunicável
como paradigma do humano (em vez do paradigma da comunidade
dialógica) e à interpretação do amor como amor-próprio (e não como
comunicação de si). O ser humano criado por Deus, é sua imagem
enquanto varão e mulher, entre quem vigora, como entre as pessoas
trinitárias, a distinção na união53.
Contudo, através do corpo, o homem diz-se a si mesmo. O corpo é,
assim, a mediação de todo o encontro, o sacramento ou o símbolo da
realidade pessoal. Ainda que todo o corpo expresse essa função
comunicativa, todavia ela condensa-se no rosto, em cuja nudez se reflecte
sempre uma interpelação e uma chamada à responsabilidade. O rosto é,
assim, o lugar onde, por excelência, a natureza se torna porosa à pessoa54. E
o rosto de Cristo, «rosto dos rostos», é o espaço da hierofania absoluta:
«Quem me vê, vê ao Pai» (Jo 14,9). O único modo de ver o outro
verdadeiramente é vendo nele Cristo; se assim não for, está-se vendo algo,
não alguém; está-se recusando captar a interpelação em que consiste o rosto
do outro.
Ainda no âmbito da descrição fenomenológica do ser corpo enquanto
expressão comunicativa, é oportuno introduzir a seguinte citação de Ruiz
de la Peña: «O homem evidência no e pelo seu corpo o que é, na
expressividade da figura e do gesto, na palavra corporalmente articulável e
perceptível. Durante a existência terrestre, essa automanifestação não
alcança a claridade sem ambages; é, ou pode ser, ambígua, equívoca»55. Se
o corpo é a expressividade de uma subjectividade que se exterioriza e,

52
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 136.
53
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 136.
54
Cf. E. LEVINAS, Totalité et infini. Essai sur l’extériorité, Paris 1996, 211-
242; a edição original é de 1971.
55
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La otra dimensión, Santander 19863, 213.

89
assim, se comunica, nunca haverá uma plena identificação entre a
subjectividade e a expressividade corpórea. A nossa condição corpórea é,
pois, portadora de uma ambiguidade. A pessoa jamais se identificará
totalmente com a sua existência corpórea, porque pertence também à
condição corpórea a opacidade, essa profunda distância entre o ser e o
aparecer, entre a interioridade e a sua manifestação. Pela irrenunciável
constituição orgânica da pessoa, inscreve-se no seu ser-corpo uma
dimensão involuntária e indeterminada, que se apresenta como limite e
condicionante da própria realização pessoal56.
A reflexão fenomenológica, resgatando o corpo da sua redução a
objecto, introdu-lo na esfera do ser. Para além da mera descrição
fenomenológica, pensamos ser perfeitamente possível inserir uma abertura
metafísica na reflexão sobre o homem enquanto ser-corpo, se distinguirmos
os conceitos de corpo e de corporeidade. Reservamos o conceito de corpo
para designar a expressão concreta, fenoménica e encarnada, da condição
corpórea da pessoa, conotada sempre com a realidade espacio-temporal e
com o indeterminado e o involuntário do orgânico e do biológico.
Corporeidade, por seu lado, trata-se de um conceito bastante usado pela
filosofia fenomenológica para indicar aquela condição originária do ser
humano, a sua autopercepção de ser corpo57. Remete-nos, de imediato, para
a subjectividade, que é anterior a toda a expressividade e exteriorização
corpórea mas que só se actualiza através dela.
A corporeidade constitui, assim, o princípio de unidade interna do
sujeito; define e qualifica ontologicamente o homem. Nesse sentido,
apresenta-se como uma dimensão metafísica da pessoa, distinta de corpo
em sua realidade espacio-temporal, em sua objectividade material. A
corporeidade é a condição de expressividade do próprio corpo, da sua
pessoalização pela relação. Porque se identifica com a própria
56
Cf. P. RICOEUR, Philosophie de la volonté, I, Paris 1988, 136.
57
Não se trata, porém, de um termo exclusivo da fenomenologia; o mesmo
aparece já no âmbito da filosofia tomista (corporeitas) que, ao contrário da
fenomenologia, não tem um uso exclusivamente antropológico. Para S. Tomás, a alma
intelectual é a corporeidade do homem, enquanto forma substancial da sua realidade
corpórea (Sum. contra Gentiles IV, c. 81, Quod vero secundo: «Oportet igitur quod
corporeitas, prout est forma substantialis, non sit aliud quam anima rationalis». Cf. B.
C. BAZÁN, «La corporalité selon Saint Thomas», Revue Philosophique de Louvain
401-402). No que diz respeito à concepção fenomenológica de corporeidade, a nossa
reflexão apoia-se em C. ROCCHETTA, «Corpo», 634-636; R. KÜHN, «Le corps
retrouvé. Une phénoménologie radicale appliqué à une investigation sur la corporeité»,
Revue de Sciences Philosophiques et Théologiques 72 (1988) 561-563; Y. LEDURE,
Trascendenze, 55-56; S. PALUMBIERI, L’uomo questa meraviglia. Trattato sulla
costituizione antropologica, Roma 1999, 103-106; G. VAN RIET, «Une nouvelle
ontologie phénoménologique», Revue Philosophique Louvain 64 (1966) 447-450; R.
ZAVOLLONI, «Linee di svilluppo nella concezione della “corporeità” umana»,
Antonianum 56 (1990) 362-363.

90
subjectividade, é anterior a toda a objectivação fenoménica e corpórea,
embora através desta se revele. O corpo só é expressão da pessoa e sua
condição de relação porque há uma estrutura ontológica interna, subjectiva,
unificante do sujeito e da sua intencionalidade, que é a corporeidade.
Corporeidade é, portanto, um conceito metafísico diverso do conceito de
corpo, que comporta uma objectividade orgânica e expressiva, embora
constitua o princípio imanente da sua unidade, da sua inserção no mundo e
da sua capacidade relacional58. Deste modo se salvaguarda a inevitável
distância entre o ser e o aparecer, entre a subjectividade e a exteriorização,
entre a corporeidade e o corpo. Esta distância é a condição necessária da
afirmação daquele reduto ontológico inviolável que é a subjectividade
pessoal, irredutível ao fenoménico e ao orgânico. Salvaguardando a
dualidade necessária, corporeidade-corpo, pessoal-puramente material,
evita-se todo o possível desvio dualizante para uma entidade exterior ao
corpo e que nela se encarnaria. Pelo contrário, a encarnação é o modo
originário próprio do ser corpo, o modo de se experimentar e de se
expressar o ser relação próprio da corporeidade.
A par da actual preocupação pela não desvalorização do corpo,
importa alertar para um outro excesso, o da «ressacralização pagã do
corpo». Fazendo uma crítica à actual tendência cultural de reabilitação do
corpo, escreve Ruiz de la Peña: «Na realidade, essa pretendida recuperação
do corpo é uma leitura selectiva da corporeidade; não se glorifica o corpo
enquanto tal, mas sim os corpos belos, jovens e sãos da beautiful people»59.
As actuais campanhas de reabilitação do corpo são portadoras de um
clamoroso reducionismo, ao traduzirem a corporeidade por sexualidade, e
esta pela genitalidade. Tal implica, na reflexão de Ruiz de la Peña, um
«assolapado idealismo», o qual procura obter uma imagem arquetípica do
corpo, seleccionando uns aspectos do mesmo e retendo outros. Não se
aceita o corpo nos seus limites; finge-se-lo atemporal, asséptico, atlético,

58
Com o recurso ao termo «corporeidade» não ficaria de modo nenhum
comprometido o necessário substrato ontológico nem a dimensão relacional e
axiológica presentes na ideia de alma. Segundo M. HENRY, Philosophie et
phénoménologie du corps, 70, a corporeidade, ou o corpo subjectivo, enquanto ego
fenomenológico originário, é a «realidade da alma». Cf. ID., «Le concept de l’âme a-t-il
un sens?», Revue Théologique de Louvain 64 (1966) 30; R. KÜHN, «Le corps
retrouvé», 562: «La corporeité (...) c’est la subjectivité en tant que cet être-vivant, c’est-
a-dire en tant qu’ “âme”».
59
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 138. Esta leitura coincide com
a do sociólogo D. LE BRETON, Anthropologie du corps et modernité, Paris 1990, 10.
Cf. ainda M.-A. DESCAMPS, Le corps haï et adoré. Psycho-histoire des idées sur le
corps: sa haine et sa réhabilitation, Paris 1988; J. GRITTI, «Le corps aujourd’hui.
Approche sociologique», Études 361/5 (1984) 475-482; S. SPINSANTI, Il corpo nella
cultura contemporanea, Bréscia 19903; «L’utopie du corps parfait. Entretien avec
Lucien Sfez», Esprit 2 (1997) 143-155.

91
ilimitadamente jovem, viçosamente belo, invulneravelmente é. Estas
campanhas, no fundo, revelam a patética indigência das antropologias para
as quais o homem é só corpo, confiando apenas na aeróbica, na cosmética e
nos progressos da cirurgia plástica. Por tal razão, pensa Ruiz de la Peña,
não tem sentido, para a fé cristã, reabilitar algo (o corpo) que está
habilitado, de antemão, para a ressurreição gloriosa: «A fé na ressurreição,
e não o culto pagão e idealista do corpo, é a mais alta forma de fidelidade a
este e o mais eficaz antídoto contra a sua depreciação»60.
São inegáveis as ambiguidades e os reducionismos antropológicos
desta reabilitação contemporânea da dimensão corpórea da pessoa, que faz
do corpo um ídolo. A exaltação de uma estética do corpo faz-se
sacrificando uma ética integral da condição corpórea. Mas, sinceramente,
não cremos que a actual reabilitação do corpo se possa reduzir a uma
estética selectiva e redutora. Pelo contrário, sem em nada retirar às suas
evidentes ambiguidades, a actual revalorização da condição corpórea
constitui um dos sinais mais significativos da cultura do nosso tempo, que
importa acolher com serenidade e interpretar em toda a sua complexidade.
Ligada à redescoberta do corpo está hoje a afirmação do valor da festa e do
lazer, como reacção a toda uma cultura tecnocrata que reduz o corpo a
mera força produtiva61. As actuais psicoterapias com o corpo propõem-se
ajudar a libertar a pessoa do seu stress, abrindo caminho à expressão das
suas energias interiores, através de um processo terapêutico que assume o
corpo como registo da inteira história pessoal62. No campo da saúde e em
reacção à expropriação do corpo pela medicina convencional reduzido a
objecto de laboratório e de intervenção, reivindica-se hoje uma gestão
pessoalizada da própria doença e da sua cura. As medicinas alternativas e
homeopáticas são cada vez mais procuradas63.
A redescoberta do valor do corpo também não é, de modo nenhum,
fenómeno estranho à actual experiência crente. Muitos cristãos passaram a
ler e a interpretar a Escritura a partir do prisma da corporeidade. A própria
vida espiritual faz hoje uma reapropriação do corpo como lugar de oração e
de contemplação, recorrendo a técnicas meditativas de diversas tradições
religiosas, que vão desde o cristianismo ortodoxo ao budismo zen 64. Alguns
movimentos de espiritualidade promovem uma libertação do gesto nas
celebrações litúrgicas e experimentam o valor terapêutico da oração
comunitária. A própria liturgia é toda ela uma acção corpórea. O corpo é o
sujeito do rito; o rito é o corpo que descansa perante o silêncio. A

60
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 138..
61
Cf. A. MARTINS, «A festa, o amen da criação», Communio 16 (1999) 17-30.
62
Vão nessa linha os trabalhos do psicanalista norte-americano A. LOWEN, La
depressione e il corpo, Roma 1980; La spiritualità del corpo, Roma 1991.
63
Cf. S. SPINSANTI, «Corps», 202-209.
64
Cf. A. GENTILI, Le ragioni del corpo, Milão 1996.

92
identidade sacramental da Igreja é, antes de mais, uma identidade corpórea
e relacional. A liturgia e a celebração dos sacramentos da Igreja são a
epifania do corpo do homem como «corpo salvo»65.
Mas não é só a prática dos cristãos a assumir positivamente o valor
da corporeidade. A própria reflexão teológica tem feito do corpo um lugar
hermenêutico e epistemológico do próprio discurso teológico. Não é em
vão ou apenas por circunstanciais motivos de contemporização que se se
pode afirmar que toda a teologia cristã é teologia sobre o corpo66.
Inscrevem-se nessa linha tanto as teologias da libertação, que advogam a
libertação histórica das estruturas opressoras sociopolíticas, como as
recentes teologias de inspiração feminista, que proclamam a superação de
uma linguagem sexista e a reconciliação entre espírito e corpo, entre corpo
e natureza67. Em estreita conexão com as teologias feministas e as teologias
processuais norte-americanas, situam-se também as propostas das teologias
ecológicas, que apresentam o universo como God’s body ( «corpo de
Deus»)68. Partilham, igualmente, da reabilitação do corpo todos os recentes
esforços teológicos de valorização e compreensão das minorias socialmente
excluídas e marginalizadas, em que quer o acolhimento quer a recusa
significam sempre aceitação ou rejeição do outro em sua condição
corpórea69. E não podemos de modo nenhum ignorar o actual esforço
profético do Magistério da Igreja em afirmar e proclamar o valor
incondicional da vida humana e da condição corpórea que a manifesta e a
encarna em todas as fases do seu desenvolvimento, desde a concepção à
morte70.

65
G. GIRARDI, «Il corpo celebrante e l’esperienza della salvezza», Rivista
Liturgica 89 (2002) 66. A. GRILLO – G. MAZZOCHI, «Il corpo nel pensiero teologico
contemporaneo. Nuovi percorsi teorici e prospettive significative per la scienza
liturgica»: Ibidem, 13-39.
66
M. R. MILES, «Body Theology», in A. RICHARDSON – J. BOWEN (ed.), A
New Dictionary of Christian Theology, Londres 1983, 77.
67
Cf. J. MILBANK, «Théologie de la libération», in J.-Y. LACOSTEE,
Dictionnaire critique de théologie, Paris 1998, 650-561; I. ELLACURÍA, «Liberación»,
in C. FLORISTÁN – J. J. TAMAYO (ed.), Conceptos fundamentales del cristianismo,
Madrid 1993, 690-710, R. R. RUETHER, Per una teologia della liberazione, della
donna, del corpo, della natura, Bréscia 19922; ID., «Feminist Theology», in J. A.
KOMONCHAK – M. COLLINS - D. A. LANE (ed.), The New Dictionary of Theology,
Dublin 1990, 391-396. Entre nós é de assinalar os recentes trabalhos: M. SILVA (ed.),
Dizer Deus-Imagens e linguagens. Os textos da fé na leitura das mulheres, Lisboa
2004; M. J. N. JÚLIO, Jesus e as mulheres dos Evangelhos, Lisboa 2003.
68
Cf. S. MCFAGUE, The Body of God. An Ecological Theology, Londres 1993.
69
Cf. J. B. NELSON, Body Theology, Louisville-Kentucky 1992; J. AUDINET,
«Frontera del cuerpo, fronteras sociales», Concilium 280 (1999) 249-258.
70
Cf. JOÃO PAULO II, Encíclica «Evangelium vitae», Acta Apostolica Sedis 87
(1995) 401-522. Lembramos, a este propósito, a série de catequeses semanais sobre o
amor humano no início do seu pontificado (cf. GIOVANNI PAOLO II, Teologia del

93
A revalorização da condição corpórea da pessoa e as consequências
políticas, sociais, ecológicas, relacionais e afectivas, que a mesma implica,
constitui hoje um dos campos mais fecundos e promissores da actual
reflexão teológica. O corpo constitui mesmo um autêntico lugar teológico e
epistemológico, onde as diferentes áreas da teologia têm a feliz
oportunidade de se confrontarem e se completarem mutuamente.
Concluímos este rápido apanhado sobre a revalorização da corporeidade
por parte da experiência crente e da reflexão teológica, citando S.
Spinsanti: «A verdadeira redescoberta do corpo não é, portanto, uma
operação redutora. É, ao contrário, uma obra de integração»71. Integração
pessoal, comunitária e ecológica, ao nível da experiência crente; integração
de todo o discurso teológico, ao nível da inteligência da fé.
Não ignoramos que não é tarefa fácil «manter a medida e o tom
justo» em todo o discurso ligado ao corpo, incluindo o teológico72. Mas a
dificuldade não nos poderá conduzir à demissão de procurar a justa medida.
A crítica frontal a uma reabilitação selectiva e idealizante, quando não
pagã, do corpo, não poderá esquecer os aspectos positivos que a actual
tendência de revalorização da condição corpórea apresenta, acolhidos,
como vimos, tanto pela experiência crente como pela reflexão teológica. A
função crítica da hermenêutica teológica não pode passar unicamente pela
denúncia daquilo que subverte e deturpa a mensagem cristã; passa também
pela afirmação positiva de todos aqueles valores em sintonia com o
Evangelho, capazes de oferecer à existência crente uma maior consciência,
teórica e prática, da riqueza do mesmo.

3.3.1.2. O homem é alma

Em reacção contra a tendência reducionista da actual reabilitação do


corpo, não se pode deixar de sublinhar, precisamente, o outro pólo do
binómio: o homem não é só corpo, é também alma 73. O que antes se disse a
propósito do corpo, a sua indefinibilidade de protopalavra, vale igualmente
agora para o termo alma, usado e abusado, carregado de uma forte
ambiguidade, com uma comprometida credibilidade. Todavia, alma trata-se

corpo, I-II, Roma 1982) e a homília pronunciada aquando da inauguração do restauro


dos frescos da Capela Sistina [cf. L’Osservatore Romamo 16 (16.04.1994) 7].
71
S. SPINSANTI, «Corps», 216. Cf. ID., Il corpo nella cultura contemporanea,
27.
72
M. DESPLAND, Christianisme, dossier corps, Paris 1987, 119.
73
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, «Antropología cristiana», 417.

94
de uma ideia, independentemente do termo pelo qual é designada,
insubstituível para a teologia, porque com ela se expressam e se tutelam
uma série de mínimos antropológicos inegociáveis para a fé cristã74. Com
este conceito, a antropologia cristã procura significar a absoluta
singularidade do ser humano e a sua abertura constitutiva a Deus75.
Na tradição cristã, a alma é um conceito que deve ser compreendido
com uma valência mais relacional do que propriamente ontológica. A alma
é a capacidade de referência do homem à verdade, ao amor eterno76.
Teologicamente falando, com a ideia de alma expressa-se a capacidade de
relação do homem com Deus, numa dimensão simultaneamente existencial
e soteriológica. É, pois, não só lícito como também iniludível, entender por
alma o momento ôntico transmaterial (irredutível aos momentos físico-
químicos-biológicos) da realidade humana, que funda objectivamente o
valor do homem e a sua capacidade teologal77, o seu carácter de
interlocutor de Deus. Alma é, neste sentido, um conceito estritamente
cristão, em que o dialógico tem o primado sobre o ontológico. Por essa
mesma razão é um conceito irrenunciável para a teologia. Classifica-se,
assim, de funcional esta asserção relacional-teológica de alma, pois está em
função do valor absoluto do único ser criado enquanto imagem de Deus78.
Consequentemente, sem esta concepção funcional de alma, acabar-se-ia por
não dar razão da ressurreição79. A relação com Deus permanece mesmo na
morte porque permanece um substracto ontológico não aniquilado pela
morte, a que tradicionalmente se denomina alma.
Porém a concepção funcional (relacional e axiológica) de alma
reclama uma ulterior fundamentação ontológica, sem a qual o próprio
conceito de alma seria inconsistente. A afirmação axiológica apela, para se
sustentar, a uma afirmação ontológica; o plus de valor há-de estar apoiado
num plus de ser. A vocação teologal do homem está pedindo uma
dimensão ontológica, constitutiva do seu ser; a mais-valia axiológica há-de
derivar do seu excesso ontológico80. Em termos ontológicos, por alma há
que se entender, ao menos, o co-princípio espiritual do ser uno do homem.
«A diversidade funcional, estrutural, qualitativa do ser corpo, própria do
homem, está exigindo uma peculiaridade entitativa, ontológica, do mesmo
ser homem: “um quid superestrutural”, “um princípio essencialmente
74
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 139.
75
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 139.
76
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 140. Cf. J. RATZINGER, «Entre
muerte y resurrección», Communio (Madrid) 3 (1980) 286.
77
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 141.
78
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, «Sobre el problema mente-cerebro», Dialogo
Filosofico 12 (1996) 39; ID., «Antropología cristiana», 419.
79
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, «Sobre el problema mente-cerebro», 40.
80
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dio, 139; ID., «Sobre el problema
mente-cerebro», 39.

95
transestrutural e transorgânico”»81. O homem vale mais porque é mais.
Tanto o valor único e irredutível da pessoa como a sua capacidade teologal,
a sua radical abertura a Deus, fundam-se nesse «momento ôntico»
transmaterial, especificamente humano, assinalado pelo conceito de alma.
Após as afirmações sobre a exigência de um momento ôntico do ser
humano, expresso pelo conceito de alma, apresentamos uma descrição
fenomenológica do ser alma em três aspectos: O homem enquanto alma é:
ser mundano na forma de transcendência em relação ao mundo; ser
temporal na forma de transcendência em relação ao tempo e ser mortal na
forma de transcendência em relação à morte82.
O homem é-no-mundo (é corpo) transcendendo o mundo e a matéria.
Apercebe-se, por sua vez, como mundano e perante o mundo, de modo que
ele e o mundo nunca fazem parte de um «nós». Homem e mundo não se
confundem jamais. Existe, portanto, uma transcendência do homem em
relação do mundo. Isto mesmo se reflecte a nível biológico: enquanto o
homem está aberto a todo o mundo, o animal tem meio especializado, um
circomundo. Enquanto ser mundano, o homem capta os objectos que
constituem o seu mundo mas sem deixar-se captar por eles. E o reflexo
psicológico-existencial desta transcendência está na capacidade do homem
tender a todo o bem e a toda a verdade, essa sua aspiração de absoluto, sem
jamais se contentar com bens ou verdades parciais. Esta qualidade emerge
vivencialmente na experiência constante e intransponível da insatisfação.
Pela sua corporeidade o homem experimenta-se como ser no mundo; pela
sua espiritualidade o homem experimenta-se como ser perante o mundo83.
O homem enquanto corpo é no tempo, mas transcendo-o enquanto
84
alma . Comunica ao tempo uma pulsão peculiar que obriga a distinguir o
tempo físico do tempo vivido ou encarnado. Esta temporalidade
transcendida é experimentada nos fenómenos do aborrecimento e da
impaciência. Essa sensação de um tempo sem devir e sem meta, convertido
em puro nada, ou de falta de tempo. Há um permanente desajuste entre o
homem e o tempo. Longe de suportá-lo em sua pura facticidade, o ser
humano é-no-tempo modelando-o criativamente, acunhando-o à sua
medida, dispondo dele segundo o modo com que o assume a cada
momento. No homem o tempo vivido subtraí-se à fugacidade do tempo
físico. O tempo vivido torna-se no homem história, processo unitário
articulado e finalizado. O tempo-quantidade reveste-se de uma qualidade
humanizada. «A transcendência do homem em relação ao tempo emerge no

81
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 140. Cf. P. LAÍN ENTRALGO,
Antropología medica, Madrid 1984, 67.
82
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 141-144.
83
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 141; J. ALFARO, Hacia una
teología del progreso humano, Barcelona 1969, 45.
84
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 142-143.

96
próprio facto do homem aspirar a uma definitividade salva de toda a
caducidade; o ser humano sabe-se temporal e, contudo, deseja-se eterno.
Com outras palavras, não se resigna a ser-para-a-morte»85.
O homem é ser mortal na forma de transcendência em relação à
morte. Sendo a mortalidade uma das dimensões do ser humano enquanto
corpo, esta não é o seu último destino. Mas tal certeza não brota da
evidência fenoménica do ser-corpo. Este ponto de argumentação é já de
natureza teológica e situa-se no âmbito da esperança cristã que é a
ressurreição; no âmbito da exclusiva transcendência que é Deus, em sua
acção criadora e salvadora: Deus não criou o homem para a morte, mas
para a vida86. A fé cristã espera uma vitória sobre a morte. A teologia
tematiza essa esperança com a ajuda das categorias de imortalidade e de
ressurreição. Todavia «morte», «imortalidade» e «ressurreição»
significarão algo completamente distinto segundo se parta de uma
antropologia dualista ou unitária. Numa antropologia dualista, a morte é a
separação da alma (imortal) do corpo (mortal), ou a libertação da alma que
continua a existir já não afectada pela morte, pois é imortal por natureza.
Em tal posicionamento, a ressurreição será a devolução à alma de um
aditamento exterior, o corpo, sem o qual poderia passar perfeitamente.
Imortalidade significaria aqui, literalmente, não morte, negação idealista da
letal gravidade de morrer.87 Numa antropologia unitária, a morte significa a
morte do homem inteiro. E a promessa de futuro é a ressurreição, isto é, um
recuperar a vida em todas as suas dimensões, e também na corporeidade.
Neste caso resultaria problemático o conceito de imortalidade. Todavia a
categoria cristã chave num contexto de esperança sobre a morte, é
ressurreição e não imortalidade88, o que não significa prescindir deste
último conceito.
A imanência fenomenológica do ser corpo e a transcendência
dialógica do ser alma não constituem no homem duas entidades justapostas,
mas uma única realidade. Ainda que seja apenas o fenoménico corpóreo
que se torna aparição, ele é sempre acontecimento revelador de uma
interioridade, expressão de espiritualidade, daquela invisibilidade que
habita o homem e, por isso, o transcende. A imanência constitui o meio
fenomenológico originário da revelação da própria transcendência89. O
corpo é, pois, a manifestação da alma. Na realidade da condição corpórea
da pessoa inscreve-se simultaneamente uma imanência e uma
transcendência: a imanência da sua abertura ao mundo e aos outros; a
transcendência da sua abertura a Deus. Mas a mundanidade, importa dizê-

85
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 143.
86
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 143.
87
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 144.
88
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 144.
89
Cf. M. HENRY, Essence de la manifestation, Paris 1963, 314.

97
lo, não é um exclusivo do ser corpo nem a espiritualidade um apanágio do
ser alma. É o homem no todo do seu ser que é, ao mesmo tempo, mundano
e espiritual, mundano enquanto espiritual e espiritual enquanto mundano,
sendo, portanto, a corporeidade o seu modo próprio de experimentar e
expressar a sua espiritualidade. A própria condição corpórea apela a uma
metafísica para se sustentar enquanto expressão e actualização da estrutura
relacional da pessoa. Sendo o corpo o acontecer fenoménico da alma, esta
apresenta-se como o fundamento metafísico que o resgata da sua redução
ao material e o inscreve no específico da condição dialógica da pessoa. É,
pois, pela dimensão metafísica que o ser alma introduz no fenoménico
corpóreo que nos é permitido pensar a natureza ontológica específica do
próprio corpo humano90.

90
Cf. A. FOREST, L’avènement de l’âme, 117.

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