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Auxílio homilético de Rm 8.

1-11
1. Introdução

Nas séries antigas de perícopes, que serviam de base para os estudos em Proclamar Libertação, o texto de
Rm 8.1-11 era tema de pregação para o Domingo de Pentecostes. Como tal, foi analisado duas vezes nesta
coleção: no v. l, p. 39ss., e no v. 14, p. 253ss. Na nova série ABC, ainda não foi tema de análise específica.
Os textos paralelos foram enfocados em PL 21 (Mt 20.17-28), respectivamente em PL 23 (Os 5.15-6.2),
ambos como texto de pregação para o 4° Domingo da Quaresma.

Qual a relação desses textos entre si e com a época da Quaresma? Em Oséias e Mateus a relação com a
Quaresma é clara: Oséias trata da penitência e Mateus aborda um episódio durante a caminhada para
Jerusalém, logo após uma nova referência de Jesus à sua morte iminente, em que ele acentua que o
seguimento dele implica a disposição ao sofrimento e, principalmente, a atitude de serviço. Já o texto de
Romanos não tem esta evidência clara. Não se fala em penitência nem nas implicações do discipulado. Ou
será que o andar segundo a carne/inclinar-se para a carne, em contraposição ao andar segundo o Espírito
/inclinar-se para o Espírito (vv. 4-5), quer ser tal referência à penitência? Olhemos primeiramente mais a
fundo o texto do apóstolo Paulo e, depois, vejamos a relação que há entre as diferentes leituras e a data
proposta.

2. Antes de falar — ouvir: o texto em seu contexto

A Carta aos Romanos, diferentemente das demais cartas de Paulo, é mais um tratado teológico do que uma
carta. Por isso cada parte está na sequência da argumentação anterior. Assim, os caps. 5 a 8 são uma
fundamentação, sempre sob nova ótica, da tese central da Carta e de toda a mensagem cristã: a justificação
por graça (3.21 28). Esta senha é sempre retomada na passagem para um novo enfoque: 5.1 justificados
mediante a fé (...) por meio de Jesus Cristo nosso Senhor; 5.21 — justiça para a vida eterna mediante Jesus
Cristo nosso Senhor; 6.23 — o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor; 8.1 — já
não há condenação para os que estão em Cristo Jesus (cf. Nygren, p. 253-257).

Esta é a tese — nenhuma condenação para os que estão em Cristo Jesus — que é fundamentada a seguir
(observe que quatro vezes é usada a conjunção gar porque [vv. 2, 3, 5 e 6]. Esta tese é retomada numa
segunda parte, agora diretamente dirigida aos leitores: vv. 6s.! E, como na primeira parte, com nova
fundamentação. Desta vez, no entanto, não com a conjunção causal gar, mas em forma de orações
condicionais (ei/eiper. que também aparece quatro vezes: v. 9 |2x], 10, 11). Assim, o texto está claramente
estruturado:

Tese: nenhuma condenação para os que estão em Cristo Jesus — v. l.

Fundamentação: a) a lei do Espírito da vida livrou da lei do pecado e da morte — v. 2;


b) assumindo a fraqueza da carne, o Filho venceu o pecado da carne e trouxe a justificação do Espírito —
vv. 3-4;
c) carne e Espírito se contradizem — v. 5;
d) carne produz morte, Espírito produz vida — vv. 6-7;

Conclusão: os que estão na carne não podem agradar a Deus — v. 8.

Complementação da tese: vós não estais na carne, mas no Espírito — v. 9a.

Fundamentação:
a) quem não tem o Espírito não está em Cristo — v. 9c;
b) o corpo está morto, mas o Espírito é vida — v. 10;
c) quem ressuscitou Jesus dos mortos vivificará os corpos mortais — v. 11.

Esta estruturação já nos mostra que o texto está carregado de termos teológicos centrais que são
mencionados diversas vezes: sarx/carne — 10 x pneuma/Espírito — 9 x; hamartia/pecado — 5 x; nomos/lei
— 4 x; zoe/vida — 3 x (duas vezes junto com paz e justiça, em conexão com Espírito); thanatosl morte — 2
x, ambas em conexão com carne ou pecado. Portanto, em jogo está a contraposição entre dois conjuntos que
marcam o ser humano: ou Espírito — vida, paz e justiça ou carne — lei, pecado e morte.

Vejamos inicialmente o segundo conjunto. Toda a argumentação do apósto¬lo, nas diversas


fundamentações, vai na direção de demonstrar que os que andam segundo a carne são determinados pela
carne (v. 5), têm a morte como seu fim (v. 6), são por isso inimigos de Deus (v. 7) e não podem agradar a
Deus (v. 8). Por quê? Porque a carne abusa da lei para perverter o seu sentido original de expressão da boa
vontade de Deus, transformando-a em meio de levar o ser humano a agir justamente contra a vontade de
Deus (7.7ss.).

Assim, fica evidente que a carne representa um poder, uma força que determina toda a maneira de ser da
pessoa. Carne não são, como esta acostumados a pensar por influência do pensamento grego, os instintos
carnais, geralmente identificados com a sexualidade. Carne é uma força que determina a pessoa
integralmente, também as suas ideias, seu espírito, seus ideais muito nobres. Em suma, carne é toda a
realidade que vive em oposição a Deus (v. 7) e, conseqüentemente, não agrada a Deus (v. 8). Por isso ela é
idêntica ao pecado e leva à morte.

Mas Deus venceu a oposição a ele, entrando no arraial do inimigo. Deus não vence o poder da carne
eliminando-a, mas destruindo o seu poder dentro da sua própria área (enviando o seu próprio Filho em
semelhança de carne pecaminosa — v. 3). Em meio a um ambiente hostil, Jesus destrói a força dessa
realidade mediante a obediência total a Deus e, assim, restabelece a possibilidade de vivência segundo a
vontade de Deus (v. 4).

Como isso foi possível? Porque um outro poder foi determinante no próprio Filho: o Espírito. À semelhança
de carne, Espírito também não significa apenas os pensamentos nobres em contraposição às paixões
inferiores. Espírito' ' é igualmente um poder, uma força que determina toda a pessoa. É o poder de Deus que
orienta toda a maneira de ser da pessoa. Por isso ele significa vida e paz (v. 6). Portanto, em jogo estão estas
duas possibilidades: viver segundo a carne ou viver segundo o Espírito.

Chama a atenção o fato de que Paulo usa o termo nomos em conexão com Espírito e não apenas com carne
(v. 2). Isso se deve à argumentação do cap. 7, em que o apóstolo reflete sobre a validade da lei diante do
evento da cruz. Já ali Paulo destaca que a lei é boa, santa e espiritual (vv. 12, 14). Aqui o apóstolo retoma
essa avaliação positiva da lei, destacando que os crentes encontram a boa vontade de Deus expressa na lei
nesta maneira de ser que nasce do Espírito vivificador de Cristo (v. 4). Logo, o viver segundo o Espírito, que
dá vida e paz (v. 6), é um viver que cumpre a vontade de Deus, justamente por ser movido e orientado pelo
Espírito de Deus.

Interessante é observar como o apóstolo varia a maneira de falar sobre o Espírito nos vv. 9-11. Fala de
Espírito de Deus (v. 9b), Espírito de Cristo (v. 9c) e Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os
mortos (v. 11). Além disso, no v. 10, mesmo não falando do Espírito, continua a mesma ideia ao usar a
expressão Cristo em vós. Conforme Ez 37.5s., o Espírito de Deus é a força que dá nova vida em meio à
morte. Por isso o crucificado, que foi ressuscitado pelo poder do Espírito de Deus, é o verdadeiro
representante deste Espírito de Deus, e por isso esse Espírito de Jesus também determina a maneira de ser
dos que lhe pertencem (cf. Stuhlmacher, p. 112). Aqui e agora, mesmo continuando a viver na carne e a ter
este corpo, aqueles em quem Cristo está vivem uma nova realidade: sob a força e a orientação do Espírito,
eles vivem uma vida nova. Este é o critério para se saber quem é e quem não é dele (v. 9c). Mas isso não é
um critério definitivo no sentido de nós podermos determinar, já aqui e agora, quem são os de Cristo e os
definitivamente excluídos. Por isso, no v. II, o apóstolo aponta para a concretização definitiva desse viver
em Cristo. O verbo no futuro — vivificará — aponta para a consumação. Na fé essa esperança já é uma
certeza. E por isso ela se torna constantemente o impulso e o critério para a vivência sob o Espírito de
Cristo.

3. Antes de falar — ouvir novamente: o texto em nosso contexto

Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. Esta é a verdade revolucionária
do evangelho. Nisto se resume o cerne do Novo Testamento. Mas essa verdade se torna, para algumas
pessoas, motivo de inquietação; para outras, motivo de auto-suficiência. Auto-suficientes se tornam aqueles
que, podendo mostrar sinais evidentes da presença espetacular do Espírito, vêem nisso a comprovação do
viver segundo o Espírito ou de que de fato o Espírito de Deus habita neles (v. 9). Inquietos se tornam
aqueles que não podem comprovar tais feitos espetaculares. Intranqüilos se tornam também aqueles que,
preocupados com coisas bem concretas da vida, tais como a sobrevivência, o trabalho, a preservação da
natureza, a saúde, o bem-estar das pessoas, uma sociedade mais justa e igualitária, se perguntam se tais
preocupações não são por demais carnais e pouco espirituais. Será que o Espírito de Deus habita em nós?

Para quem considera a manifestação espetacular do Espírito como prova do andar segundo o Espírito, cabe
lembrar que isso em si não é critério último, conforme o apóstolo Paulo desenvolve extensamente em l Co
12-14. Pode ser, no fundo, um cogitar as coisas da carne (v. 5). Porque não visa a edificação do próximo,
mas a promoção pessoal.

Para os que se preocupam com a promoção da vida, cabe perguntar pela motivação última de todo o
engajamento. Preocupar-se com tais coisas pode ser profundamente carnal, isto é, um viver segundo a carne,
quando a motivação para tal não nasce do agradecimento a Deus, mas da autopromoção, do egoísmo. E aí
não será a lei do Espírito da vida, mas a lei do pecado e da morte que estará determinando o seu ser. Por
outro lado, a motivação será profundamente espiritual e, portanto, um viver segundo o Espírito quando a
pessoa se sabe agraciada por Deus. Quando todo o seu engajamento por vida plena não visa conquistar esta
vida, mas nasce da certeza de que ela já é dádiva recebida em Cristo Jesus.

Com esta observação final chegamos ao cerne da questão: em Cristo Jesus. Vale observar quantas vezes o
texto faz referência ao evento fundante Jesus: para os que estão em Cristo Jesus — v. 1; Espírito da vida em
Cristo Jesus — v. 2; isso fez Deus enviando seu próprio Filho em semelhança de carne — v. 3; se alguém
não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele — v. 9; Cristo está em vós — v. 10; o seu Espírito que em
vós habita — v. 11. Estas múltiplas referências destacam que esse evento é o ponto central e o critério
último. Por outro lado, também vale que ter consciência disso nunca será conquista pessoal nossa. Isto terá
que ser dito a nós. Será sempre algo que vem de fora para dentro de nossa realidade: Porquanto o que fora
impossível à lei (...) isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne. Entre a auto-
segurança de uns e a incerteza de outros, cabe destacar repetidamente esta verdade cristalina que o
evangelho ousa anunciar de graça e para todas as pessoas que a quiserem ouvir: Não há mais condenação
para os que estão em Cristo Jesus. Quem está em Cristo Jesus? Todas aquelas pessoas que se deixam
presentear por ele: que foram balizadas em seu nome; que crêem nele; que abrem seus ouvidos
constantemente a esse anúncio.

Uma vez ouvido esse anúncio, o texto se reporta às consequências desse evento: viver segundo a carne ou
viver segundo o Espírito. No início desta segunda parte já apontávamos para essa dialética, mais sob o
enfoque da certeza /incerteza de se ter ou não o Espírito Santo. Vejamos novamente essa dialética sob outro
enfoque: compreensão de carne e Espírito em nosso dias. Por vivermos num mundo fortemente marcado por
uma compreensão dualista do ser humano, carne/viver segundo a carne ainda é identificado com paixões
inferiores: tudo o que diz respeito ao corpo humano e especialmente à sexualidade. Logo, viver segundo a
carne é ser dominado por tais paixões mundanas. Por outro lado, viver segundo o espírito significa negar e
anular todos esses desejos do corpo e, em lugar disso, dedicar-se puramente a coisas transcendentais, não
corporais, não deste mundo. Urge ajudarmos a redescobrir a dimensão global da vida e do ser humano,
assim como se nos apresenta na compreensão bíblica e como também está na base deste texto. Carne e
espírito não são duas partes distintas do ser humano ou da realidade do mundo. São, ao contrário, duas
grandezas que determinam integralmente a pessoa. Cuidar de sua corporalidade, viver a sua sexualidade não
significa estar vivendo segundo a carne. Da mesma forma, dedicar-se a causas nobres ou levar uma vida
totalmente entregue ao fomento da cultura e do intelecto não significa viver segundo o espírito. Em toda a
nossa vida e em relação à integralidade da vida e de todo o mundo, o que importa é a partir de onde
entendemos a nossa vida: a partir de nós mesmos, fazendo de nós mesmos o critério e finalidade de tudo
que, para Paulo, é a lei do pecado c da morte. Ou a partir da dádiva da vida como presente incondicional,
válido para todos indistintamente, que, para Paulo, é a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus''.

Qual a relação disso tudo com a Quaresma? Essa relação reside no fato de que, enquanto vivemos entre o
evento da cruz e a parúsia, vivemos nesta dialética: já e ainda não. Já temos totalmente a salvação a partir do
Batismo. Mas ainda vivemos em um mundo sob o domínio da morte. Quaresma é, portanto, conscientizar-se
desta dupla realidade: já justificados no Batismo/na fé/no evento da cruz, mas ainda não plenamente
perfeitos/ainda vivemos na carne e expostos às tentações da carne.

4. Depois de ouvir — falar: a pregação sobre o texto

Estamos na época da Quaresma. É tempo de preparação, de reflexão, de concentração naquele evento que
mudou toda a história — o evento da cruz. Como comunidade cristã nós vivemos já agora desse evento, pois
fomos batizados no nome de Jesus Cristo — já não há mais nenhuma condenação para os que estão em
Cristo Jesus. Ou, como diz o v. 9, retomando esta tese: Vós não estais na carne, mas no Espírito. Mesmo
assim, nós não vivenciamos esta realidade em sua plenitude — ainda permanecemos na carne. Por isso a
época da Quaresma é momento propício para refletir sobre essa dialética que marca a vida cristã: já — ainda
não. O texto, sem dúvida alguma, destaca a primeira parte — o já: já não há mais condenação para os que
estão em Cristo Jesus — v. 1; vós não estais na carne, mas no Espírito— v. 9. Este deve ser o destaque
fundamental da pregação: anunciar com toda a ênfase esta nova realidade criada pela ação exclusiva de
Deus, em Jesus Cristo (v. 3!). Importa igualmente fundamentá-la assim como Paulo o faz neste texto,
destacando a contraposição entre a antiga realidade: viver sob a lei do pecado e da morte (v. 2); o domínio
sob a carne que é contrária a Deus (v. 7) e que leva para a morte (v. 6) — e a nova realidade: andar segundo
o Espírito (v. 4) ou viver sob o Espírito que significa vida e paz (v. 6). Ou seja, cabe destacar que, na fé, nós
já vivemos totalmente no céu, integralmente determinados pela realidade divina.

Num segundo momento, cabe apontar para o ainda não — o céu ainda não é realidade plena (v. 11). Ainda
vivemos na carne. E aí pode-se estabelecer facilmente a referência à Quaresma: viver o ainda não é seguir
Jesus para a cruz, é estar disposto ao sofrimento (referência ao texto de Mateus). Viver segundo o Espírito,
mas constantemente sob a tentação de deixar-se determinar segundo a carne, é conscientizar-se da
necessidade de penitência constante (referência ao texto de Oséias).

Bibliografia
NYGREN, Anders. La Epistola a los Romanos. Buenos Aires : La Aurora, 1969.
STUHLMACHER, Peter. Der Brief an die Römer. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1989. (Das Neue Testament
Deutsch, 6).
WILKENS, UIrich. Der Brief an die Römer. Benziger/Neukirchener, 1980. (Evangelisch-Katholischer Kommentar zum
Neuen Testament, IV/2).
WINTZER, Friedrich. Meditação sobre Rm 8.1-2(3-9)10-11. In: Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart : Calwer, 1984. vol.
6B, p. 21-28.

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