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Glorificai a Deus no Vosso Corpo

Conceitos e Perspetivas da Teologia do Corpo


Nada obsta
Lisboa, 13 de agosto de 2015
Cónego Doutor José Manuel dos Santos Ferreira

Imprima-se
Lisboa, 24 de agosto de 2015
Cónego Francisco José Tito Espinheira
Vigário Geral – Patriarcado de Lisboa

Título
Glorificai a Deus no Vosso Corpo
Conceitos e Perspetivas da Teologia do Corpo
Autor
João Paulo Pimentel
Edição e copyright
Editorial Aster
Revisão Diogo Maria Pessoa
Design da capa Pedro Viana
Paginação Miguel Luiz
ISBN 978-972-9111-42-6
João Paulo Pimentel

Glorificai a Deus no Vosso Corpo


Conceitos e Perspetivas da Teologia do Corpo

EDITORIAL ASTER
Prólogo

Começo por pedir ao leitor que realize um pequeno esforço de memória


para considerar brevemente algumas referências da Sagrada Escritura sobre
o corpo humano. Sem qualquer pretensão de esgotar as citações, pensará,
com certeza, nas palavras do Prólogo do Evangelho de S. João: «O Verbo
fez-Se carne» (J o 1, 14); lembrar-se-á a seguir de Jesus, já adulto, que no
calor de uma forte discussão com os fariseus compara o templo de
Jerusalém ao seu Corpo, Corpo que, destruído, em três dias será reabilitado.
Recordará, evidentemente, tanto o sermão em Cafarnaúm quanto as palavras
da instituição da Eucaristia em que Jesus anuncia e dá aos Apóstolos o
Corpo e o Sangue como alimento. As enigmáticas palavras de Jesus a
Nicodemos em que a serpente de bronze que, ao ser olhada, curava os
israelitas picados por serpentes venenosas trazem logo à nossa cabeça as
horas passadas na Cruz, dando a vida pelos «amigos», pela sua salvação
eterna: o seu Corpo é a testemunha eloquente desse amor. Mas o cume dá-se
com a Ressurreição: o Senhor parece ter gosto em mostrar aos Apóstolos as
mãos e os pés, com as chagas que quis conservar: é pelo seu Corpo que O
podem reconhecer; um corpo glorificado que nunca mais deixará de existir.
Como é possível que Deus atribua tanto valor ao corpo humano? Como é
possível que nos diga tanto d’Ele através de um corpo?
Também alguns dos mistérios de Maria, que contribuem para entender as
verdades sobre Cristo, têm uma forte ligação à corporalidade. Basta pensar
nos dogmas da Maternidade divina, da Virgindade perpétua, da Assunção[1].
Os próprios sacramentos, instituídos por Cristo, mantêm uma forte
ligação com os sentidos: a água deve escorrer sobre a cabeça, as mãos devem
ser impostas, a testa deve ser benzida com óleos santos, recebemos Jesus
como alimento.
É também inevitável, neste esforço da memória, reler as palavras de
S. Paulo aos romanos, com as que dá a entender que o desejo de redenção
plena que sentimos em nós, também no corpo – pois estamos submetidos às
doenças, à concupiscência, à morte –, faz-nos intérpretes de toda a
desordem cósmica. Eis o que escreveu o grande Apóstolo: «Porque sabemos
que todas as criaturas gemem e estão como que com dores de parto até ao
presente. E não só elas, mas também nós, que possuímos as primícias do
Espírito, gememos inte-
riormente, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo» (Rom
8, 22-23)[2]. O corpo tem assim a capacidade de sentir e expressar o nosso
mais íntimo «eu». Ao mesmo tempo, é parte da criação visível, e está nele
inserido de algum modo um registo da desordem cósmica que tem a sua
causa última no pecado do homem.
Esta consideração do corpo como parte da criação visível ajuda a
entender que o homem pode relacionar-se com ele de modo similar a como
lida com as criaturas visíveis: pode desprezá-las, usando-as sem o menor
respeito, pode idolatrá-las, atribuindo-lhes um valor absoluto que não lhes
corresponde, ou pode olhar para elas com profundo agradecimento a Deus,
procurando avaliar qual o papel de cada uma no desígnio divino. Grande
parte dos erros do nosso tempo, em amplas áreas do agir humano, enfermam
dos dois desvios assinalados nas duas primeiras atitudes. Na minha opinião,
o homem de hoje tem de aprender a entender como que «por dentro» o
grande valor do corpo, e assim valorizar os gestos através dos quais se
relaciona com os outros e até mesmo com Deus. Ao mesmo tempo, o justo
respeito pela dimensão corpórea impede de idolatrá-la, convertendo-a em
fim último: por cima da saúde física ou psíquica, por cima da beleza corporal
ou da forma física ideal, há outros valores. Por isso Cristo e, na sua esteira,
os mártires puderam abdicar da sua vida terrena por amor a Deus e ao
próximo.
Até aqui o esforço da memória que pedi ao leitor.
Ao longo da leitura das catequeses de S. João Paulo II sobre a
denominada «teologia do corpo», surpreenderá o leitor o facto de encontrar o
corpo humano como «lugar» onde, de algum modo, se concentra a História
da salvação. É como que o palco ou terreno de ação dos acontecimentos
centrais da História da humanidade, naquilo que esta tem de mais essencial.
Assim, veremos como no corpo vivo do homem está como que
«gravada» a marca mais profunda da decisão criadora, o Amor, de onde
brotou a própria criação. No período anterior ao pecado original, o homem
sabia-se portador do amor de Deus e era um reflexo transparente dessa
amorosa decisão divina. Transportava em si a consciência do dom que
permeia toda a criação. Depois do pecado original, sente em si, no mais
profundo do seu ser e no próprio corpo, a catástrofe ocasionada por se ter
afastado do Criador. A vergonha corporal é a primeira experiência desse
afastamento. O homem padecerá – também no seu corpo, não apenas na
alma – o trágico resultado por desconfiar de Deus, da consciente rejeição do
amor gratuito que lhe havia sido oferecido. No seu corpo – por um lado,
frágil e exposto a dores e doenças e que inevitavelmente morrerá, e, por
outro, muitas vezes irrequieto e indisciplinado («quem me livrará deste
corpo de morte?», pergunta S. Paulo na Carta aos Romanos, 7, 24) – pode
descobrir, como já referi, o eco da desordem cósmica que ele próprio
desencadeou.
Quando o Verbo encarnou, assumindo a nossa natureza, mostrou pela
sua Santíssima Humanidade a magnitude do amor de Deus pelo homem. O
seu Corpo, ensanguentado e cravado na Cruz, mostrará a grandeza desse
amor e o valor que, para Deus, tem o ser humano. No Calvário, o corpo
humano «conquista» um significado impensável no horizonte da salvação,
pois é no Corpo de Cristo na Cruz que se manifesta, de modo definitivo,
aquele amor incomensurável de Deus pelo homem.
Depois, com o Corpo glorioso, Jesus mostrará para onde Deus quer
«conduzir» o nosso ser e qual o tipo de vida que nos quer doar por toda a
eternidade.
Unido a Cristo, o homem pode experimentar dentro de si os efeitos
curadores da Redenção, a que se opõe tenazmente a feroz concupiscência.
Jesus não deixará de advertir: «Ouvistes que foi dito: “Não cometerás
adultério”. Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher,
para a desejar, já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5, 27-28).
«Estas palavras, escutadas uma vez pelos ouvintes, em número limitado, daquele Sermão,
referem-se ao homem de todos os tempos e lugares e fazem apelo ao coração humano, no qual se
inscreve a mais interior e, em certo sentido, a mais essencial trama da história. É a história do
bem e do mal (cujo início está ligado, no livro do Génesis, à misteriosa árvore do conhecimento
do bem e do mal) e, ao mesmo tempo, é a história da salvação, cuja palavra é o Evangelho e cuja
força é o Espírito Santo, dado àqueles que acolhem o Evangelho com coração sincero»[3].

Sendo no coração do homem que essa luta se trava, tanto a vitória como
a derrota manifestam-se depois em todo o seu ser, também nos desejos e até
nos olhares. O homem que permite que Deus vença nele saberá «olhar bem»
e «desejar bem»: desde o seu íntimo, experimenta a vitória de Cristo. E
tentará então seguir Cristo com todo o seu ser, e em todas as suas ações.
A vitória definitiva, porém, terá lugar no momento da ressurreição da
carne, com a divinização e a espiritualização de todo o nosso ser – corpo
incluído. Experimentaremos com o corpo os efeitos da total e permanente
«imersão» em Deus, e experimentaremos como, no ser humano, o corpo não
só não limita o espírito como amplia a sua expressão. Claro que isto sucederá
no longínquo mundo da ressurreição mas, mesmo agora, o cristão pode
experimentar uma participação desses efeitos quando se deixa conduzir pela
graça de Deus, adquirindo o domínio sobre si próprio. Imerso em Deus e
sendo senhor de si – para isso é preciso rezar e clamar pelo auxílio divino,
pois «a carne é fraca» (Mt 26, 41; Mc 14, 38) –,
o homem pode viver os efeitos da redenção do corpo no matrimónio ou no
celibato pelo Reino. Em ambas as vocações, as manifestações corporais
jogam um papel fundamental. No casamento, os cônjuges tornam-se aptos
para manifestar com o corpo um amor de doação sem reservas; desse modo,
«elevam» o corpo, que assim pode «falar» o vocabulário do espírito, o do
amor mais puro. No celibato, o «silêncio corporal» manifesta, já agora, o
amor que é próprio dos tempos futuros da ressurreição e, sobretudo, o modo
de amar de Jesus Cristo que, sendo Quem mais amou, escolheu para Si a
virgindade.
Ora, se o corpo (o ser humano, entenda-se) é palco privilegiado da
Criação e da Redenção, se é como um microcosmos que reflete o que de mais
importante existe, então uma deformação no modo de atuar que contrarie as
marcas da Criação e da Redenção é, para quem adote essa deformação, uma
verdadeira catástrofe. É precisamente o que sucede na contraceção e no
divórcio. Não se trata «apenas», no primeiro caso, do recurso a uns artifícios
que facilitem a vida das pessoas em determinadas áreas – nomeadamente na
sua vida conjugal –, mas também de uma interpretação do corpo e da
sexualidade completamente contrária à verdade neles inscrita. Pretender
minimizar a importância da opção contracetiva, apresentando-a como algo de
menor relevo numa vida supostamente bem orientada nos restantes terrenos,
seria como, dadas as premissas enunciadas nos parágrafos precedentes,
engolir uma pequena dose de cianeto num prato de arroz com a frívola
esperança de que, no meio de tanto arroz, talvez não se notem os efeitos do
veneno. Se o corpo é «lugar» teológico, há determinadas opções que põem
em jogo os efeitos da Criação e da Redenção na pessoa. Não é apenas colocar
uma peça errada no puzzle, mas é como provocar um terramoto na mesa onde
se dispôs o puzzle.
De modo semelhante, desvalorizar a indissolubilidade do casamento é
não só desvalorizar a força e o alcance da liberdade humana, mas também
vulgarizar a capacidade expressiva do ato sexual. A Igreja ensina que, após o
pacto conjugal, a relação sexual entre os já cônjuges sela de modo
absolutamente indissolúvel a união entre os dois. De algum modo, o pacto
«fecha a porta», e o ato conjugal «dá a volta à chave». Pretender romper o
pacto, com o divórcio, é desvalorizar o projeto divino sobre o matrimónio, a
força da liberdade humana com a sua capacidade de comprometer para
sempre e, também, o profundo significado do ato conjugal. Assumida essa
desvalorização, torna-se muito difícil acreditar na bondade da proposta da
Igreja e na sua viabilidade.
Ao longo destas páginas, convido o leitor a regressar, uma vez e outra, às
seguintes palavras de S. João Paulo II:
«Só no mistério da Redenção de Cristo se encontram as “concretas” possibilidades do homem.
Seria um erro gravíssimo concluir […] que a norma ensinada pela Igreja é em si própria apenas
um “ideal” que deve posteriormente ser adaptado, proporcionado, graduado – dizem – às
concretas possibilidades do homem: segundo um “cálculo dos vários bens em questão”. Mas,
quais são as “concretas possibilidades do homem”? E de que homem se fala? Do homem
dominado pela concupiscência ou do homem redimido por Cristo? Pois é disso que se trata: da
realidade da Redenção de Cristo. Cristo redimiu-nos! O que significa que Ele nos deu a
possibilidade de realizar toda a verdade do nosso ser; Ele libertou a nossa liberdade do domínio da
concupiscência»[4].

Sim: de que homem estamos a falar? Quais são as autênticas


possibilidades humanas? Não poderá o homem redimido por Cristo viver de
um modo muito acima dos padrões estatísticos da nossa civilização? Não
quererá o homem sentir-se amado e valorizado por Deus? Não nos
entusiasma o grito com que S. Paulo deseja afastar os coríntios de uma vida
luxuriosa? «Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que
habita em vós, porque o recebestes de Deus, e que vós já não vos pertenceis?
Porque fostes comprados por um alto preço! Glorificai, pois, a Deus no vosso
corpo» (1 Cor 6, 19-20). Deus quer habitar em nós! Ama-nos com todo o
nosso ser, corpo e alma!
É sobre o homem e sobre a transformação de todo o seu ser pela graça do
Redentor que fala este livro.
A planetária difusão da mentalidade divorcista e contracetiva é, a meu
ver, um gemido da humanidade que espera pela redenção do corpo (cfr. Rom
8, 23).
A grande maioria preferiria, certamente, não ter de recorrer ao divórcio ou
aos contracetivos, mas vê neles recursos inevitáveis. Até mesmo muitos
católicos. Es-
pero que estas páginas, que procuram apoiar-se nas catequeses de S. João
Paulo II
sobre a teologia do corpo, contribuam, pelo menos, para fazer desejar que a
Redenção de Cristo possa chegar à última orla da vida de cada um, com as
inevitáveis consequências na vida conjugal e familiar.
Com esta apertada síntese, está vagamente delineado o programa a
seguir, que, na realidade, é o das catequeses de S. João Paulo II.
Como tive ocasião de explicar na breve intervenção do 4.º Congresso
Internacional da Teologia do Corpo, realizado em Fátima no ano 2013, as
minhas palavras não são tanto as de um académico, mas mais as de um
sacerdote que deseja ter em mente os problemas das pessoas. Procurei, em
cada capítulo, levantar uma ou várias questões que pudessem estar presentes
no coração das pessoas correntes e que tivessem que ver com o conteúdo das
audiências. Penso que esta metodologia pode facilitar que mais gente queira
ler e entender as catequeses, se souber que elas vão dar respostas a perguntas
concretas que estão no seu coração.
Precisamente por isso, não me senti na obrigação de resolver todas as
questões – interessantíssimas – relacionadas com as catequeses. Desejei, por
um lado, dar pistas e esquemas que facilitem a sua leitura integral, e, por
outro, levantar um pouco o véu deste magnífico corpo doutrinal. Embora
inicialmente tivesse o desejo de mostrar como muitas das afirmações de S.
João Paulo II têm precedentes nos Padres e Doutores da Igreja, cedo
renunciei a tão grande pretensão, por falta de recursos e porque, como
sacerdote apaixonado pela teologia do corpo, senti a necessidade de quanto
antes partilhar o que até ao momento tinha pesquisado.
Por fim, acrescento que o facto de pertencer ao Opus Dei foi também
de grande importância. S. Josemaria incentivou a procurar a intimidade com
Deus em tudo o que fazemos, porque é isso que o Senhor deseja de todos:
deixar-se encontrar por nós em cada instante da nossa vida, habitualmente
simples e rotineira. O leitor terá ocasião de comprovar como a teologia do
corpo contribui para saber encontrar Deus através de comportamentos que
muitos julgam ser meramente «materiais».
Desejo ainda acrescentar uma advertência prévia ao leitor. O livro, que
não é propriamente um manual sistematizado, é extenso. Duvidei se não
seria oportuno torná-lo mais sintético. Seria relativamente fácil simplificá-
lo, sobretudo se evitasse as longas citações das catequeses. No entanto, a
finalidade do livro é, justamente, colocar o leitor em contacto com elas. Já
existem várias obras, referidas na bibliografia final, que as esquematizam e
resumem de forma muito útil. Desse modo, facilitam a sua compreensão.
No entanto, pretendi não só esclarecer alguns aspetos como manter, tanto
quanto possível, a dimensão contemplativa das catequeses, que permite
elevar o espírito e leva a agradecer ao Senhor tudo o que fez em nós. Não
pretendo ter acertado na opção que, certamente, torna menos apetecível o
livro para leitores que desejam respostas mais sintéticas. Por este motivo,
agradeço ao editor a confiança que mostrou por tão arriscada opção.
Confio estas páginas a Nossa Senhora, Mãe do Amor Formoso, para que
sejam um pequeno contributo para que muitas mais pessoas desejem
experimentar em todo o seu ser, também no corpo, a Redenção que Cristo nos
alcançou.
Introdução

1.
Uma visão integral do homem

Sem constituírem uma maioria, há muitos católicos que vivem de acordo


com o que a Igreja Católica ensina sobre a transmissão da vida. Contudo,
alguns deles pelo menos – certamente, pressionados pela forte corrente
cultural –, parece que assumem essa atitude com timidez. Em certo sentido,
vivem a doutrina moral como um bom cristão que se enfrenta com uma
doença grave: resignadamente, aderindo até com contida alegria interior a
Cristo, mas não desejando que outros tenham de suportar o mesmo fardo. Isto
faz com que nem se atrevam a propor a outros este modo de vida.
Por outra parte, também existem aqueles que, vivendo ou não vivendo de
acordo com a proposta da Igreja, se interrogam sobre se a proibição dos
contracetivos não se assemelhará às antigas prescrições levíticas: tiveram a
sua função, mas, com o tempo, muitas delas deixaram de ter sentido. Por isso
– pensam –, quem ainda queira seguir esse ensinamento está no seu direito,
mas no fundo não se trata de algo essencial e que seja particularmente
decisivo para uma autêntica vida cristã.
O primeiro tipo de católicos pode chegar a interrogar se existe algum
modo de perceber e explicar de forma rápida a razoabilidade deste
ensinamento da Igreja. Pelo menos, para que a sua opção não pareça muito
estranha aos amigos e conhecidos. O segundo grupo desafia: onde se
encontra uma tal proibição na Bíblia?
Com toda a sinceridade, responderia: primeiro, não conheço receitas
rápidas para expor as razões da norma moral sobre os contracetivos. E,
segundo, não há um texto explícito na Bíblia que claramente justifique o
ensino perentório da Igreja[5]. A Igreja é consciente de que esta exigência
moral não se encontra literalmente expressa na Bíblia, ainda que saiba que o
fundamento da norma se encontra na visão do homem nela exposta:
«A Igreja ensina esta norma, embora ela não seja expressa formalmente (isto é, literalmente) na
Sagrada Escritura; e isto, na convicção de que a interpretação dos preceitos da lei natural é da
competência do Magistério.
Podemos contudo dizer mais. Embora a norma moral, formulada deste modo na encíclica
Humanae Vitae, não se encontre literalmente na Sagrada Escritura, porém pelo facto de estar
contida na Tradição e – como escreve o Papa Paulo VI –
ter sido “muitas vezes exposta pelo Magistério” (HV, 12) aos fiéis, resulta que esta norma
corresponde ao conjunto da doutrina revelada contida nas fontes bíblicas
(cfr. HV, 4)»[6].

Portanto, para o cristão que, justamente, queira fundamentar o que a


Igreja ensina, é necessário conhecer bem o conjunto da doutrina revelada.
Entre setembro de 1979 e novembro de 1984, S. João Paulo II dedicou as
audiências gerais das quartas-feiras a um amplo ciclo de catequeses a que o
próprio Pontífice denominou «teologia do corpo». São 129 intervenções,
divididas em seis (ou cinco, como explicarei) unidades temáticas. Quem leu
as intervenções fica maravilhado perante uma exposição tão deslumbrante
sobre o amor humano no plano divino. O que é que levou S. João Paulo II a
optar por esta temática, quase no início do seu pontificado?
Por uma vez, comecemos pelo fim. Na última das catequeses – a de 28
de novembro de 1984 –, obtemos uma resposta clara a essa pergunta. Dizia S.
João Paulo II que aquele corpo de doutrina era, no fundo, «um amplo
comentário à encíclica Humanae Vitae, publicada por Paulo VI, em julho de
1968».
Para o leitor mais jovem, recordo que a citada encíclica emite um juízo
moral definitivo sobre a ilicitude dos contracetivos. Fundamenta esse juízo
nas exigências mais profundas do amor humano. No entanto, a Humanae
Vitae não foi bem aceite, mesmo por setores católicos. E tal não sucedeu
apenas num primeiro momento. Essa atitude de contestação foi penetrando
na vida de muitos católicos e, com os anos, foi sedimentando, criando a
ideia de que, no fundo, a Igreja, um dia, haverá de rever e modificar a sua
posição «intransigente» sobre o assunto.
Esta contestação veio trazer ao de cima, entre muitas outras conclusões, a
necessidade de fundamentar melhor os ensinamentos da Igreja. A contestação
à Humanae Vitae em meios católicos significava que, para muitos, além do
esforço pessoal necessário para viver o seu conteúdo, havia um grande
desconhecimento da visão cristã do homem. A encíclica de Paulo VI parecia
uma formosa árvore, mas isolada, sem um jardim ou um bosque a enquadrá-
la.
S. João Paulo II deu-se rapidamente conta do problema, porque
realmente tratava-se (e trata-se) de um grande problema. No documento que
publicou em 1981, fruto do Sínodo sobre a Família (e, portanto, enquanto
ainda decorriam as catequeses), explicava ao mundo:
«A Igreja considera, todavia, que uma reflexão aprofundada de todos os aspetos de tais problemas
oferece uma nova e mais forte confirmação da importância da doutrina autêntica sobre a regulação
da natalidade, reproposta no Concílio Vaticano II e na encíclica Humanae Vitae.
Por isto, juntamente com os Padres Sinodais, sinto o dever de dirigir um urgente convite aos
teólogos a fim de que, unindo as suas forças para colaborar com o Magistério hierárquico, se
empenhem em iluminar cada vez melhor os fundamentos bíblicos, as motivações éticas e as razões
personalísticas desta doutrina. Será assim possível, no contexto de uma exposição orgânica, tornar
a doutrina da Igreja sobre este tema fundamental verdadeiramente acessível a todos os homens de
boa vontade, favorecendo uma compreensão cada dia mais luminosa e profunda: desta forma o
plano divino poderá ser sempre mais plenamente cumprido para a salvação do homem e para a
glória do Criador.
A esse respeito, o empenho concorde dos teólogos, inspirado pela adesão convencida ao
Magistério, que é o único guia autêntico do Povo de Deus, apresenta particular urgência mesmo
em razão da visão do homem que a Igreja propõe: dúvidas ou erros no campo matrimonial ou
familiar implicam um grave obscurecimento da verdade integral sobre o homem numa situação
cultural já tão frequentemente confusa e contraditória»[7].

Nas audiências das quartas-feiras a que me referi acima, o próprio Papa


João Paulo II mostrou-se pessoalmente empenhado «em iluminar cada vez
melhor os fundamentos bíblicos, as motivações éticas e as razões
personalísticas desta doutrina». A Humanae Vitae apelava à necessidade de
expor uma visão integral do homem. S. João Paulo II assumiu esse desafio.
Era por demais evidente que a falta de doutrina em muitos católicos os
levava a não aceitar a norma da Humanae Vitae. Mas essas lacunas doutrinais
não podiam deixar de ter muitas outras consequências. Sobretudo porque, ao
admitir como legítimo o princípio de que as exigências cristãs não têm por
que contagiar – não devem imiscuir-se em – certos âmbitos da vida corrente,
é fácil que aumente exponencialmente o fosso entre a fé e a vida: se Deus
nada tem a dizer quanto ao leito matrimonial, porque é que terá direito a
intervir nos domínios do pensamento, dos negócios ou da relação entre as
nações? Ao mesmo tempo, o âmbito do matrimónio é tão decisivo para a vida
das pessoas e dos povos que desconhecer as suas exigências intrínsecas não
pode deixar de influenciar toda a sua vida.
A questão era, pois, séria. Mesmo antes de ser Papa, o então cardeal de
Cracóvia tinha escrito:
«Pode parecer estranho que a resposta a uma pergunta concreta, realizada no terreno da moral
conjugal, possa ter tão fortes implicações antropológicas, que chegue a converter-se num campo
de batalha sobre o valor e o sentido da própria humanidade. Porém, a análise da Humanae Vitae
parece convencer-nos disso mesmo. […] Parece que é necessário considerar como o seu nível
mais profundo a controvérsia e a luta pelo próprio homem, pelo valor e sentido da humanidade,
isto é, pela visão básica do homem. Essa controvérsia e luta desenvolve-se de certo modo em cada
homem, e também entre os homens da atual etapa histórica. É necessário que nessa controvérsia
esteja presente a palavra de Cristo, Aquele de Quem o Concílio Vaticano II disse que “revela o
homem a si mesmo” (GS, 22). Certamente, também essa plenitude, afirmada pelo Vaticano II,
estava no ânimo do autor da encíclica quando se referia à visão integral do homem»[8].

Dito por outras palavras, a questão dos contracetivos é bastante mais


abrangente do que parece à primeira vista. Não se trata de uma questão
pontual. Ainda que à primeira vista pareça surpreendente, à medida que se vai
lendo as catequeses sobre a teologia do corpo entende-se – pela positiva – o
que na realidade é posto em causa com esta norma tão concreta.
Portanto, e a modo de resumo, as reflexões do Papa foram pensadas para
responder às interrogações que a encíclica levantou (e ainda levanta),
procurando expor de um modo completo os aspetos bíblicos e personalistas
que ajudem a fundamentar melhor a doutrina da Humanae Vitae. Em certo
sentido, S. João Paulo II foi bem consciente de um perigo para o qual,
recentemente, o Papa Francisco não deixou de alertar: insistir num aspeto
pontual da doutrina sem todo o enquadramento doutrinal (que já não é
possível dar por suposto, mesmo em países de tradição católica), e sem
mostrar a relação estreita que tem com o seguimento de Cristo e com os seus
ensinamentos essenciais, é correr o risco de dificultar a própria
evangelização[9].
Consolará o leitor considerar que, para os problemas deste género, a
solução da Igreja é sempre a de propor serenamente a verdade, sabendo que a
verdade se impõe por si própria[10]: a luz da verdade é suficiente para iluminar
os homens de boa vontade. Por isso, S. João Paulo II despendeu 129
catequeses para ajudar os seus contemporâneos (e os homens e mulheres das
décadas seguintes) a recuperar a autêntica visão cristã sobre o homem, o
amor humano e a sexualidade, mostrando a sua íntima relação com o coração
dos ensinamentos do Senhor. Com essa perspetiva, é mais fácil querer aderir
pessoal e convictamente à doutrina moral sobre a transmissão da vida
humana.
A amplidão da «teologia do corpo» faz pensar que a problemática
levantada pela Humanae Vitae não é um tema que se resolva com uma
simples fórmula explicativa, sobretudo quando o enquadramento cultural da
civilização se foi tornando cada vez menos católico e a docilidade para com a
Igreja e o seu Magistério foi decaindo na mente de muitos cristãos. Era
preciso um novo fôlego doutrinal, que «aconchegasse» a cabeça e o coração
dos crentes e, eventualmente, de todos os homens de boa vontade.
Esta conclusão propõe aos leitores que queiram aproximar-se da teologia
do corpo um primeiro desafio. Não se trata de aprender umas fórmulas
simples para argumentar ou de decorar umas normas morais. A teologia do
corpo é um convite à contemplação. Trata-se de adquirir, na medida das
limitações do ser humano, a visão que Deus nos oferece do homem que Ele
criou. Essa contemplação exige tempo e paciência. Exige estudo. Exige
mudanças na própria vida. Aliás, numa das catequeses, S. João Paulo II
referiu que a teologia do corpo deve ser acompanhada por uma «pedagogia
do corpo»: cada leitor deverá aprender a viver de acordo com o autêntico
valor do corpo.
Recordo que, numa das sessões sobre teologia do corpo, um dos
participantes me interrogou com espanto: «serão necessárias 129 aulas, ou o
equivalente “manual” de mais de 400 páginas, para que se “entenda” uma
encíclica? Não haverá nisto um certo exagero?» Boa pergunta! São estas
questões que ajudam a que aprendamos a matizar a linguagem e a não
descuidar as explicações menores… E então? Qual é a resposta?
A minha opinião sobre a necessidade da teologia do corpo para uma
correta e frutuosa leitura da Humanae Vitae – neste caso, trata-se de uma
mera opinião – é «sim e não». Por um lado, a encíclica é clara quanto baste, é
concreta, e oferece serenamente as razões do que se propõe que os cristãos
vivam. Qualquer leitor entenderá na perfeição cada uma das afirmações que
lá se enunciam. No entanto, o documento de Paulo VI reconhece a
necessidade de enfrentar a moralidade do problema «à luz da visão integral
do homem e da sua vocação, não só natural e terrena, mas também
sobrenatural e eterna»[11]. Por outras palavras, a solução do problema concreto
que a Humanae Vitae enfrenta não pode prescindir da visão global daquilo
que o homem é. Quando a sociedade que recebe o documento está, em maior
ou menor proporção, na posse dessa perspetiva, tudo parece fazer sentido. À
medida que «o ar que se respira» é cada vez menos católico e personalista,
em vez de faltar apenas uma peça do puzzle, parece que faltam quase todas.
Neste novo contexto, a encíclica surge como um enigma: qual é o lugar desta
peça no puzzle? Para que serve? De onde vem?
A resposta exige recomeçar a montagem do puzzle desde o princípio,
antes de colocar a peça que mais estranheza ocasiona. É preciso acrescentar
que o novo quadro desenhado por S. João Paulo II na teologia do corpo tem
contornos muito mais nítidos e deslumbrantes, e é muito mais amplo do que
aquele que nos era oferecido pelas gerações precedentes. Talvez antes não
fizesse tanta falta um quadro de tamanhas dimensões, um puzzle com tantas
peças novas. Talvez. Mas agora ele parece ser – no mínimo – muitíssimo
conveniente. Porque não se trata apenas de justificar um ensinamento prático.
É preciso deixar-se deslumbrar pelas exigências que conduzem a que a peça
do puzzle tenha aqueles contornos que a Igreja recordou.
A ampla moldura dentro da qual S. João Paulo II compôs o novo puzzle
com a visão integral do homem é sugerida por três passagens do Evangelho e
umas palavras da Carta de S. Paulo aos Efésios. A partir desses textos-base,
S. João Paulo II vai oportunamente recordando e analisando muitas outras
passagens da Sagrada Escritura, tal como os primeiros capítulos do Génesis.
Antes de referir os textos fundamentais que inspiram os cinco primeiros
ciclos da teologia do corpo (o sexto é um comentário a textos da própria
encíclica), respondo à segunda pergunta formulada no início: qual a base da
Escritura para a norma moral da Humanae Vitae? A resposta é dada
precisamente pelo amplo quadro do desígnio divino sobre o homem que os
textos selecionados por S. João Paulo II conseguem desenhar. De que modo?
Em certo sentido, S. João Paulo II segue um tipo de raciocínio presente na
Carta aos Efésios, raciocínio esse que o Papa explicitará no quinto ciclo: S.
Paulo apresenta num amplo contexto o que é ser cristão, para depois
concretizar de que modo a incorporação a Cristo pelo batismo (o tornar-se
cristão) afeta o comportamento das pessoas em concreto e, entre outros
âmbitos, o comportamento dos esposos cristãos.
Assim, a Carta aos Efésios começa por apresentar o plano eterno de
salvação do homem em Cristo, um desígnio presente desde a eternidade em
Deus. Cada ser humano é convidado a unir-se a Cristo pelo batismo. O
Senhor chama-nos a todos. Essa união ao Senhor é transformadora, de tal
modo que todos se devem «vestir» do homem novo, ser como que novas
criaturas, com um coração novo, que ama mais, como Cristo: «Exorto-vos,
pois, eu, o prisioneiro no Senhor, a que andeis de um modo digno da
vocação a que fostes chamados» (Ef 4, 1). Esse homem novo deve superar os
vícios e crescer nas virtudes correspondentes à vocação em Cristo: «Isto,
pois, vos digo e rogo no Senhor: não andeis mais como os gentios, que
andam na frivolidade dos seus pensamentos, que têm o entendimento
obscurecido, afastados da vida de Deus pela ignorância que há neles, por
causa da cegueira do seu coração, os quais, de consciência embotada, se
entregaram à libertinagem, para praticarem apaixonadamente toda a espécie
de impureza. Mas vós não é assim que aprendestes de Cristo» (Ef 4, 17-20).
Paulo exorta a que sejam «imitadores de Deus, como filhos amados», e
acrescenta ainda: «Caminhai no amor, como também Cristo nos amou e se
entregou por nós […] em sacrifício» (Ef 5, 1-2).
É a seguir que dá orientações mais concretas para aqueles que estão
unidos a Cristo: pelo facto de terem recebido tão grande dom, toda a sua vida
deve mudar, sendo de algum modo presidida por esse novo nascimento
espiritual. Assim, os maridos devem amar as suas mulheres como Cristo ama
a Igreja. O modo de entender o amor esponsal mudou, tem outra referência
que lhe confere uma inimaginável grandeza. Porque se é cristão… E tal
referência não só é um estímulo para se «comportar bem» como ajuda
também os cristãos a entender que, precisamente porque estão incorporados a
Cristo, tudo neles deve refletir esse «contacto» com Jesus. Quem pode sentir-
se inferiorizado no seu comportamento quando ele é o eco que tem a
incorporação a Cristo na vida concreta?
As catequeses de S. João Paulo II parecem – dizia antes – seguir um
trajeto semelhante ao da Carta aos Efésios. À luz do plano geral de Deus para
a humanidade, sobretudo no que se refere ao corpo e à sexualidade,
compreendem-se melhor e de um modo mais pleno as exigências morais
nesse âmbito. Elas aparecem aos nossos olhos como uma marca concreta da
deslumbrante vocação a que fomos chamados. Neste contexto, um cristão não
só não se envergonhará das suas opções como as apregoará «do alto dos
telhados».
Concretizando: é consensual que ter relações sexuais fora do casamento
ou usar contracetivos são comportamentos que guardam uma relação direta
com uma determinada visão do ser humano e, ao mesmo tempo, contribuem
marcadamente para a sua configuração. As perguntas devem, então, ser
formuladas assim: essa configuração aproxima-se ou afasta-se do tal
«modelo» que é Cristo? Pressupondo que se trata de opções deliberadas, a
que visão do ser humano correspondem esses comportamentos? Quando uso
um contracetivo para evitar ter filhos, estou a assumir uma atitude que se
compagina com o que Cristo me vem propor quando me convida a segui-lo
com todo o meu ser?
A sabedoria da Igreja reside em explicar a relação que, de facto, existe
entre os atos concretos e as grandes opções de seguimento do Senhor. É
preciso fazer compreender que se ama Cristo não tanto com declarações, mas
sim com a vida, com toda a vida. Ou então, apesar dos discursos, não se ama
o Senhor.
Ou, para expor o mesmo mas de modo mais positivo: se a Igreja
conseguir mostrar que o respeito pelas leis da transmissão da vida é um modo
real de se unir a Cristo, haverá muito mais gente que, apesar das dificuldades,
abraçará essas leis. S. João Paulo II conseguiu mostrar essa ligação através da
teologia do corpo. Com ela, muito mais gente aderiu aos ensinamentos da
Igreja, livremente e com gosto. E muita gente atreve-se a propô-los aos seus
contemporâneos.
Eu desejo unir-me aos muitos que já o fazem em todo o mundo.

2.
A regra de compreensão
Partindo então do princípio que o leitor, depois de lido o capítulo
anterior, tenha pelo menos admitido a possibilidade de que na Bíblia se
encontre o fundamento da norma da Humanae Vitae, isto é, a ilicitude do uso
dos contracetivos relacionado com o ato conjugal, é provável que, logo a
seguir, lhe ocupe a cabeça outra dúvida mais vivencial. Afirmar que é Cristo
quem está na base desta exigência proposta aos casais é algo que parece
chocar não só com a sua bondade e a sua misericórdia, como sobretudo com a
racionalidade de tal norma. A imagem que temos do Senhor é a de alguém
próximo dos doentes, dos marginalizados, que não condena mas antes perdoa,
e que fulmina leis que mais parecem atrapalhar a possibilidade de fazer o
bem como, por exemplo, a proibição de curar ao sábado. Será o mesmo
Cristo, que se zangou com quem o queria impedir de realizar um milagre para
curar, a impedir um casal pobre, com dificuldades de todo o género, de
recorrer a um simples contracetivo? Será sequer compreensível tal exigência?
Neste capítulo, gostaria de responder as estas questões.
S. João Paulo II apresenta a teologia do corpo como um «substrato
bíblico»[12] – uma espécie de visão panorâmica das Escrituras – cujos
princípios foram extraídos de palavras de Cristo e de S. Paulo. Nos textos
bíblicos que orientam a sistematização da teologia do corpo, «encontramos
decerto aquela “regra de compreensão”, que parece tão indispensável perante
os problemas de que trata a Humanae Vitae, e que está presente nesta
encíclica»[13]. Por outras palavras, S. João Paulo II defende que se pode
encontrar a mesma «regra de compreensão» tanto nos textos bíblicos quanto
na encíclica. Isto é, que não há oposição entre a racionalidade das exigências
de Jesus – captada, em concreto, nos textos de que a seguir falaremos – e a
proposta da Humanae Vitae. Ao mesmo tempo que exponho os grandes
ciclos de catequeses que compõem a teologia do corpo, pretendo deduzir
como se descobre a norma da compreensão nos textos evangélicos centrais de
cada ciclo. Depois, compararei essas manifestações da regra de compreensão
usada por Jesus com as próprias palavras de S. João Paulo II sobre como ela
se encontra na encíclica Humane Vitae.
Quais são, então, as palavras do Evangelho em que se apoia a teologia do
corpo e em que encontramos a regra de compreensão? Antes de responder,
relembro que o título principal da primeira das duas partes em que se dividem
as catequeses é, precisamente, «As palavras de Cristo». Com esta premissa, o
leitor entende facilmente que S. João Paulo II quer que nos centremos no
Senhor e entendamos que as exigências morais derivam do encontro com Ele.
Essa primeira parte está, pois, dividida em três ciclos. Cada um deles arranca
de uma breve passagem dos Evangelhos: (i) o diálogo de Cristo com os
fariseus, (ii) umas breves palavras do Sermão da Montanha, (iii) e o diálogo
com os saduceus.
Na primeira passagem, Cristo apela ao princípio, isto é, aos primeiros
momentos da História da humanidade. É aí que conhecemos o projeto inicial
de Deus sobre o ser humano – corpo e alma –, sobre a sexualidade, sobre a
união conjugal.
Com as palavras do Sermão da Montanha, Cristo apela ao coração
humano para que se entendam uma série de atitudes fundamentais sobre o
que a Igreja ensina: o coração do homem deve aprender a não olhar para uma
mulher de modo luxurioso.
E, finalmente, na conversa com os saduceus, Cristo apela à ressurreição:
também à luz do dogma da ressurreição dos corpos no final dos tempos,
torna-se possível compreender a transcendência do corpo humano.
Procuremos descortinar o tipo de «compreensão» presente em cada
passagem.
Comecemos com a passagem central do primeiro ciclo. Na conversa com
os fariseus, Jesus deve responder sobre a indissolubilidade do matrimónio.
Para alguns dos seus contemporâneos, só em caso de adultério se podia
repudiar a esposa. Para outros, era possível invocar razões de outro estilo,
muito menos graves, para optar pelo caminho do divórcio. Mas Jesus recorda
antes de mais que é necessário olhar para o princípio, para o desígnio original
do Criador, e aí encontrar a verdadeira resposta[14]. A partir das palavras do
«princípio», que nos chegaram através do Génesis, compreende-se que, no
projeto inicial de Deus, não estava contemplada a possibilidade de dissolver o
vínculo matrimonial. E é essa exigência que Jesus pretende que eles
compreendam. Tão surpreendente foi a resposta de Jesus que alguns
comentaram imediatamente que, em tais condições, seria preferível nem se
casar. Apesar de Cristo lhes ter dado os argumentos necessários para que eles
compreendessem a indissolubilidade, houve quem não a quisesse aceitar, pelo
menos, naquele momento. Mas a regra de compreensão a que S. João Paulo II
se refere está bem presente nas palavras do Senhor, pois elas oferecem o
fundamento e as razões para a indissolubilidade matrimonial.
No Sermão da Montanha, Jesus pede ao coração humano que em
nenhum caso dirija um olhar concupiscente a uma mulher. Um mero olhar
libidinoso leva a pessoa a cometer adultério no coração. Será porventura
possível pôr de parte que os homens que escutaram estas palavras dos lábios
de Jesus tenham tremido por dentro? Jesus afirma, como estudaremos mais
adiante, que nem sequer com um olhar pode o homem instrumentalizar a
mulher. Jesus quer que eles percebam a raiz da imoralidade do adultério e
que assim, de algum modo, se metam dentro da mente do Legislador para
aderirem aos seus ensinamentos com todo o seu ser. Jesus quer que percebam
a fundo a lei, a imoralidade do adultério e que o rejeitem logo ao primeiro
movimento interior. Também nesta ocasião dá-lhes uma regra para a
compreensão do mandamento.
Por fim, no diálogo com os saduceus – que não acreditavam na vida
depois da morte e menos ainda na ressurreição –, Jesus começa por denunciar
a crassa ignorância deles, afirmando que não conheciam as Escrituras que
julgavam conhecer tão bem, nem o poder do Deus todo-poderoso. Jesus
responde apoiado nos livros da Bíblia que eles aceitavam como sagrados (o
Pentateuco), argumentando, portanto, a partir dos fundamentos que eles
aceitavam. Esclarece que, na vida futura, os ressuscitados não se casarão, mas
hão de viver como os Anjos. Assim, Jesus «deita um balde de água fria»
também sobre os fariseus que assistiam ao diálogo e que admitiam que na
vida futura os casamentos prosseguiriam. Teria havido, a seguir, algum
entusiasmo nos fariseus e nos saduceus com as respostas de Cristo? Duvido;
mas Jesus quer que eles compreendam um pouco melhor como será a vida
pela eternidade fora. Desse modo, o papel do casamento neste mundo pode
ser melhor compreendido, como teremos ocasião de estudar.
Até aqui, a divisão das catequeses é bastante consensual. O seguinte
grupo é considerado na tradução portuguesa (tal como na versão italiana)
como um novo ciclo, mas, na versão de M. Waldstein de 2006, trata-se de
um subtema dentro do terceiro ciclo, isto é, dentro do apelo de Cristo à
ressurreição[15]. Nesse ciclo, S. João Paulo II regressa às palavras finais de
Jesus no diálogo com os fariseus. Jesus revela que há três tipos de
«eunucos»: os de nascença, os que foram feitos assim por outros e, surpresa
das surpresas, um terceiro tipo – os eunucos que a si mesmos se fazem
eunucos movidos pelo Reino dos Céus. Não se casar, como opção livre,
definitiva (a palavra «eunuco», ainda que usada por Jesus em sentido não
físico, não deixa margem para outras interpretações menos exigentes: não se
trata de um celibato para uns meses…) e por um motivo sobrenatural não
entrava, certamente, nos esquemas habituais de até então. Mas Jesus quer
que eles compreendam o seu valor. S. João Paulo II reconhece que esse
convite de Jesus a que haja eunucos pelo Reino dos Céus é feito com
palavras de mudança que «marcam um ponto de viragem»[16]: são uma
espécie de revolução de «toda a tradição do Antigo Testamento»[17]. Ora,
essa mudança tem uma razão: trata-se de uma opção, como também
estudaremos, «pelo Reino dos Céus»; não é um capricho irrefletido. Jesus
sempre procura tornar inteligíveis – compreensíveis – as suas propostas de
vida.
Vejamos agora como explica S. João Paulo II o sentido da expressão
«regra de compreensão», e como a encontra na encíclica de Paulo VI:
«Quem julga que o Concílio e a encíclica não têm suficientemente em conta as dificuldades
presentes na vida concreta, não compreende a preocupação pastoral que deu origem àqueles
documentos. “Preocupação pastoral” significa busca do verdadeiro bem do homem, promoção
dos valores gravados por Deus na própria pessoa; isto é, significa aplicação daquela “regra de
compreensão” que aspira à descoberta cada vez mais clara do desígnio de Deus sobre o amor
humano, na certeza de que o único e verdadeiro bem da pessoa humana consiste na realização
deste desígnio divino»[18].

Por isso, quando se invoca mais benevolência da Igreja para com os


casais, o que na realidade se deve esperar dela é que se preocupe em fazer
compreender o autêntico bem para os esposos, com ensinamentos claros, bem
fundamentados e sem ambiguidades. A Igreja atraiçoaria a sua missão e
afastar-se-ia do modo de proceder do seu Santíssimo Fundador se, para tornar
a sua mensagem mais tolerável, pactuasse com os padrões ateus de uma
época ou cultura determinada. A «intransigente» norma da Humanae Vitae é
profundamente racional, está intimamente ligada aos genuínos bens dos
esposos, e em nada se diferencia do teor das exigências evangélicas, das
exigências que comunicam qual o genuíno bem para o homem.
Se alguém pretendesse aplicar ao Senhor alguns critérios
contemporâneos, talvez O aconselhasse a moderar as palavras usadas nas
passagens referidas. Assim, não seria preferível condescender um pouco com
a debilidade humana e permitir o divórcio em determinadas circunstâncias,
como até mesmo Moisés tinha reconhecido ser conveniente? Não seria
preferível limitar-se a recordar a proibição do adultério, sem acrescentar
ulteriores exigências sobre os olhares e os desejos? Não seria preferível que
as pessoas descobrissem por si mesmas o valor do celibato, talvez através da
contemplação da vida do Senhor? Porquê ser tão explícito? Porquê dar tantas
razões que parecem «blindar» os ensinamentos, dificultando assim que se
possam atenuar as exigências que eles contêm?
A segunda parte da teologia do corpo intitula-se «O Sacramento», e
arranca de um longo texto da Carta aos Efésios. Também nesse texto, como
em muitos outros espalhados ao longo das catequeses e a que S. João Paulo II
faz referência, encontramos a tal «regra de compreensão». S. Paulo convida
os esposos a que se amem seriamente, sem fissuras, como Cristo ama a
Igreja. Ilumina, com razões sobrenaturais e humanas, as exigências
matrimoniais.
Ao ler as catequeses, vale a pena manter a consciência de que S. João
Paulo II deseja que não tiremos os olhos de Cristo, dos seus ensinamentos.
Tudo vem daí. Toda a teologia do corpo está ancorada na visão que Cristo
nos dá do homem e que S. Paulo tão bem soube transmitir. E tudo é racional
e apto a ser compreendido por todos os homens de boa vontade.

3.
O substrato bíblico

No capítulo anterior, transcrevi umas palavras de S. João Paulo II sobre o


modo como ele entendia as suas catequeses de teologia do corpo. Vale a pena
reler o pequeno parágrafo na sua integridade, para levantarmos uma nova
interrogação, a que deveremos responder antes de entrar propriamente no
conteúdo das catequeses:
«O facto de que todo o substrato bíblico, denominado “teologia do corpo”, nos ofereça, embora de
modo indireto, a confirmação da verdade da norma moral, contida na Humanae Vitae, prepara-nos
para considerar, mais a fundo, os aspetos práticos e pastorais do problema no seu conjunto»[19].

Estas palavras levam-me a transcrever uma nova questão que me foi


formulada em duas ocasiões, depois de algumas sessões sobre a teologia do
corpo. Na primeira vez, tratava-se de uma rapariga, filósofa, e, no segundo
caso, foi a vez de um jovem médico. Os dois eram assumidamente católicos.
Conto estas circunstâncias porque me parece que têm importância para
entender a seriedade da questão. Perguntaram-me se não havia um modo de
explicar «aquilo» (a teologia do corpo) a não crentes. No fundo, era como se
me dissessem: «tudo o que diz é lindíssimo, concordo absolutamente com o
conteúdo, mas os meus amigos ou amigas, em quem eu agora penso,
descartariam à partida toda essa argumentação apoiada nas palavras de Cristo
e de S. Paulo, porque simplesmente não são crentes». A frase traduz uma
intuição que, sem ser explícita, me encheu de alegria: «o que nos diz é tão
importante que os meus amigos e as minhas amigas, mesmo os que não têm
fé, deveriam poder conhecê-lo e vivê-lo. Mas como transmitir-lhes isso se as
premissas de que parte não são as deles?» Boa questão!
A minha resposta à pergunta sobre se não é possível explicar «aquilo»
sem recorrer à Bíblia poderia ser tríplice: «sim», «não» e «apesar do sim, não
sei se me interessa fazê-lo»[20]. Vamos por partes.
A compreensão da norma da Humanae Vitae, isto é, da ilicitude moral do
uso dos contracetivos, tem, como veremos mais adiante, um fundamento
humano baseado na própria natureza do ato conjugal e, «ainda mais
profundamente, na natureza dos mesmos sujeitos que atuam»[21], isto é, na
natureza do homem e da mulher. Sendo assim, se o fundamento da norma não
se apoia diretamente em razões contidas na Bíblia mas sim na observação da
natureza humana como tal, é lógico defender que possa ser justificada com
razões que todas as pessoas podem entender e abraçar. De facto, a obra de
Karol Wojtyla Amor e Responsabilidade, que trata de muitos dos temas
abordados nas catequeses de teologia do corpo, pertence sobretudo ao âmbito
filosófico. Quando, na última parte deste livro, nos detivermos na explicação
da norma moral, tanto os dois jovens que me questionaram como outros
leitores em situação semelhante comprovarão que há muitas razões que
qualquer pessoa de boa vontade, mesmo sem fé, pode aceitar. Portanto, a
minha primeira resposta foi sempre de caráter afirmativo, não deixando,
contudo, de acrescentar: «há muitas maneiras de abordar estas questões, mas
eu optei pela dimensão teológica. Outros são livres de seguir uma linha mais
filosófica e, desse modo, complementamo-nos uns aos outros».
A resposta negativa – o «não» – tem que ver com o que se quer explicar.
Se se pretende seguir à letra a proposta da Humanae Vitae (n.º 7), qualquer
leitor adverte que a resposta à pergunta formulada não pode ser resolvida
com um simples «sim, podemos explicar tudo isto sem um suporte bíblico».
A encíclica afirma:
«O problema da natalidade, como de resto qualquer outro problema que diga
respeito à vida humana, deve ser considerado numa perspetiva que transcenda
as vistas parciais – sejam elas de ordem biológica, psicológica, demográfica
ou sociológica – à luz da visão integral do homem e da sua vocação, não só
natural e terrena, mas também sobrenatural e eterna».
Se, para se obter a visão integral do homem, tal como a entendem Paulo
VI e S. João Paulo II, necessitamos de conhecer (minimamente) o que
sucederá na vida após a morte, então é absolutamente necessário ter em conta
o que Deus nos revelou sobre essa dimensão «oculta» para os meros recursos
intelectuais. Precisamos da fé para obter esses conhecimentos. Mas essa
necessidade ainda se torna mais premente quando, logo no início do estudo,
S. João Paulo II – tomando à letra as palavras de Cristo aos fariseus em que
os convida a olharem para o que sucedeu no «princípio» – nos faz penetrar no
projeto original de Deus para o homem. As únicas referências à vida no
«princípio», onde se torna possível vislumbrar o desígnio original de Deus,
estão contidas na Bíblia, sobretudo no livro do Génesis. Por muito simples
que seja o relato de Adão e Eva, é a única referência ao que sucedeu antes do
pecado original. Cada palavra do texto é relevante e não pode ser
desperdiçada. Só com esses versículos se torna possível reconstruir o que de
essencial sucedeu no «princípio». S. João Paulo II toma realmente a sério a
intenção de Cristo no diálogo com os fariseus: o Senhor queria mesmo que
eles refletissem bem sobre as palavras do Génesis e voltassem a adaptar a sua
conduta e o seu modo de pensar ao projeto divino original. Portanto, se para
termos a visão integral do homem necessitamos de recorrer ao Génesis,
torna-se mais difícil – se não mesmo impossível – prescindir da fé para se
alcançar essa visão. Será então necessária essa visão ampla para adotar um
comportamento concorde com a norma moral da Humanae Vitae, em síntese,
para que um casal renuncie ao uso de contracetivos? S. João Paulo II defende
que a visão bíblica confirma a norma e permite-nos ir mais fundo. Traduzidas
estas palavras em termos mais subjetivos, diria que o suporte bíblico é
importante para «confortar» intelectualmente a certeza sobre a bondade da
norma e, ao mesmo tempo, para se poder captar aspetos que sem esse suporte
não podem ser percebidos. Digamo-lo com clareza: se o que se pretende é
adquirir uma panorâmica sobre a verdade do homem e sobre o valor
definitivo da masculinidade e da feminilidade sem as reflexões derivadas da
fé, não me parece que tal seja possível.
Obviamente, sem fé é de todo impossível alcançar a deslumbrante
contemplação sobre o valor da vida humana que emerge de toda a teologia do
corpo. Aliás, não esqueçamos que, provavelmente, um dos objetivos das
catequeses é precisamente oferecer aos católicos uma base mais profunda,
que facilite a sua total adesão a uma doutrina contestada a todos os outros
níveis e que fez soço-
brar na fé não poucos cristãos. Penso que são os cristãos o «alvo número um»
de S. João Paulo II. Por isso, proclamou esta doutrina nas audiências de
quarta-feira, enquanto bispo de Roma. Tal não obsta a que um não crente
possa ler com fruto as reflexões de S. João Paulo II, mesmo que não consiga
manifestar uma adesão absoluta às premissas de onde elas partem, isto é, aos
textos da Bíblia. Pode lê-las com fruto, porque S. João Paulo II lê a Sagrada
Escritura «como um filósofo ou um teólogo sistemático»[22]. Interessa-lhe,
sobretudo, a verdade das coisas, e não se detém na génese dos textos bíblicos.
Isso pode facilitar que um não crente ultrapasse alguns dos obstáculos
derivados da ausência de fé. Além disso, em não poucas ocasiões, S. João
Paulo II recorre a argumentações que encontram confirmação na experiência
humana, o que facilita uma possível adesão ao seu conteúdo mesmo da parte
de quem não crê. Insisto, no entanto, que o conjunto das catequeses é uma
luminosa exposição que irradia de Cristo, da sua pessoa e das suas palavras –
e, em último termo, é necessária a fé para acreditar em Cristo.
Falta a terceira resposta, que expressei na forma do «apesar do sim, não
sei se me interessa fazê-lo». Logicamente, as palavras não pretendem ferir
ninguém, pois o meu desejo é simplesmente ajudar todas as pessoas o mais
que puder. Mesmo assim, considero que as devo ajudar expondo
honestamente e de forma global a total doutrina da Igreja. Para justificar esta
afirmação, será necessário fazer um certo rodeio teológico que, penso,
responderá de forma mais satisfatória ao meu casal de perspicazes
interrogadores.
Na sua primeira encíclica, O Redentor do Homem, o Papa João Paulo II
referiu-se à dimensão divina e à dimensão humana do mistério da Redenção.
A primeira é habitualmente mais conhecida: Jesus Cristo é a «imagem
visível do Deus invisível» (C o l 1, 15). Incomparavelmente por cima de
qualquer outra realidade sensível que evoque Deus – pensemos nas
paisagens deslumbrantes onde tanta gente reconhece experimentar a
proximidade de Deus, o seu dedo criador e omnipresente –, é preciso deter o
nosso entendimento nas palavras e na vida do Redentor: só n’Ele é possível
aproximarmo-nos de modo único da divindade. Ao contemplar cada um dos
seus gestos e palavras, é oferecido a cada homem o melhor caminho – o
caminho por excelência, o único caminho – para conhecer Deus. Não é
possível alcançar um conhecimento consistente e íntimo de Deus
omnipotente sem nos aproximarmos de Jesus. A sua mediação para o
conhecimento e a proximidade de Deus é indispensável. Esta é a dimensão
divina do mistério.
Mas, junto a esta revelação da divindade, há a outra dimensão do
mistério que S. João Paulo II não cessou de fazer notar ao longo do seu
fecundo pontificado: Cristo não só nos mostra o Pai, como nos apresenta
também o desígnio perfeito de Deus para o homem. Ele é o homem perfeito
e, portanto, o modelo para qualquer ser humano: «Cristo revela o homem ao
próprio homem»[23]. Não se trata de uma posição a priori, como se a Igreja,
entre muitos modelos possíveis, determinasse arbitrariamente um, Jesus
Cristo. Há uma profunda razão teológica que, para ser melhor intuída,
apresentarei com uma simples comparação. Imaginemos que um artista se
serve de um modelo para esculpir uma estátua; imaginemos que, após alguns
anos, a estátua, já considerada como uma obra de arte, é roubada e reaparece
mutilada no rosto; suponhamos que o artista já não se encontra entre nós, que
desapareceram as fotografias do original, mas que ainda é vivo o modelo que
o inspirou. Querendo reconstruir a estátua, um bom artista chamaria o modelo
e, com ele presente, poderia refazer o mais perfeitamente possível a obra de
arte.
Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. Dentro das enormes
limitações linguísticas, dizemos que o Pai plasmou o homem à imagem do
Verbo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, imagem perfeita do Pai.
Acontece, porém, que é esse Modelo que, por desígnio da Trindade, encarna,
fazendo-se homem[24]. Não é então difícil deduzir que Cristo é o homem
perfeito, o homem que sempre esteve na eterna mente de Deus quando, no
início dos tempos, criou o ser humano. Deste modo, compreende-se que é
necessário olhar para Ele e imitá-l’O se quisermos conhecer realmente quem
somos, alcançar o máximo das nossas potencialidades humanas e alcançar o
nosso fim último. Isso só acontecerá na medida em que nos aproximarmos
com a própria vida do Modelo que somos chamados a contemplar e a imitar.
Não deixa de comover a observação transcrita nos Evangelhos após a
aparatosa cura do paralítico, trazido até Cristo por quatro amigos: a multidão
rejubilou e «glorificaram a Deus por ter dado tal poder aos homens» (Mt 9,
8). Cristo não é visto como um estrangeiro, um alienígena que vive entre nós.
É visto como «um de nós», alguém que recebeu de Deus o poder de curar
(entende-se que quem proferiu as palavras ainda desconhecia que Cristo é
Deus). Assim é, assim quis Deus que fosse. Por isso pode ser «modelo»,
Alguém que não só nos causa uma profunda admiração como também nos
atrai para Ele e nos convida a que tenhamos um comportamento e uma forma
de ver a realidade o mais parecidos possível à d’Ele[25].
Por esta razão, penso que é mais honesto não deixar de propor o melhor
modo de vida possível, a imitação de Cristo. Negar a quem quer que seja a
possibilidade de se encontrar com o divino Modelo é privá-lo à partida de
descobrir não só os melhores comportamentos – os mais humanos, em
sentido pleno – como também o melhor fundamento para os mesmos. Por
isso, duvido que – mais ainda no meu caso, sendo sacerdote – «interesse»
limitar a exposição ao terreno estritamente filosófico.
O leitor terá intuído que este tema é essencial também para a
compreensão do que é a identidade cristã. Por vezes, pessoas com boa
vontade limitam o essencial do cristianismo a uma espécie de adorno ou
complemento de um homem já quase perfeito. Seria como uma gravata ou
uns brincos que, é certo, podem tornar a pessoa mais elegante, mas não
afetam a sua interioridade. Ora, viver como cristãos modifica-nos no mais
profundo do nosso ser, com consequências a todos os níveis. Se eu não
proponho este divino Modelo às pessoas, estou a privá-las de poderem
alcançar o seu melhor: os ideais mais altos, as melhores razões para entender
o mundo e o homem, o mais alto grau de amor. Definitivamente, não me
interessa não me apoiar em Cristo e não O propor às pessoas.
Considero, assim, que respondi à dupla pergunta formulada no início do
capítulo. Resumo as ideias: sim, é possível explicar o essencial da ética
sexual de modo a não apelar à teologia; não, não é possível fazê-lo se se quer
entender a fundo tudo o que está em jogo na compreensão do homem. Por
fim, eu, sacerdote, pela missão que me foi confiada, não devo deixar de
propor a visão teológica (completa) do ser humano, mesmo que alguns não
estejam em condições de aceitar as premissas de onde eu parto. É mais
honesto da minha parte apresentar desde já a minha posição.
Para concluir e para reforçar a ideia de que a imitação de Cristo nos torna
mais «humanos», gostaria de confrontar dois textos: um deles é das
catequeses da teologia do corpo; o outro pertence a Joseph Ratzinger, e
encontra-se na sua obra Introdução ao Cristianismo.
S. João Paulo II, explicando os primeiros capítulos do Génesis, faz notar
que, quando o livro sagrado afirma não ser bom para o homem estar só e, por
isso, necessita de uma ajuda, tal significa que desse modo não realiza
totalmente a essência humana, essência essa que é imagem de Deus e,
portanto, deve refletir o poder ser «dom para». O homem apenas pode
realizar plenamente a sua essência «com alguém», existindo «para
alguém»[26]. «Sentir-se só» e «ajuda» refletem, assim, o quão fundamental é
para o homem a comunhão de pessoas.
Mesmo sendo necessário pesar bem as palavras para que não se
entendam de forma incorreta, é possível aplicá-las ao próprio Cristo enquanto
Homem, tal como se explica num manual de teologia moral: «A vida humana
de Jesus, como indivíduo, já se cumpriu: Deus ressuscitou-O dos mortos.
Mas as outras criaturas são necessárias para a sua plenitude como chefe e
cabeça. O que é um chefe sem seguidores, uma cabeça sem corpo? […]
nenhum homem é perfeito em si; assim, para que Jesus seja perfeito, requer-
se a cooperação de outros seres humanos. É uma questão de tomar a sério a
Encarnação. O Verbo não criado fez-Se carne; uma criatura, um Homem
individual. Mas os homens individuais não existem sozinhos; existem com
outros e são completados por eles. No caso de Jesus, é a Igreja que O
completa, a comunidade dos seus amigos e seguidores, “o seu corpo, o
complemento d’ Aquele que preenche tudo em todos”» (Ef 1, 23)[27].
A Introdução ao Cristianismo assinala, entre os traços que devem
configurar o cristão, o «ser para». «Como a fé cristã requisita o indivíduo,
precisando dele não para si próprio mas para o todo, a verdadeira lei
fundamental da existência cristã encontra-se na expressão “ser para”»[28].
Bastaria recordar as palavras de Jesus na Última Ceia, ao apresentar aos
Apóstolos com Ele reunidos o Sangue derramado por muitos.
Confrontemos estas duas ideias: para S. João Paulo II, desde as origens,
a essência humana só se realiza se se é «para alguém». Joseph Ratzinger
escreve que o «ser para» é a essência do ser cristão. Poder-se-ia concluir que,
no fundo, ser cristão leva a humanidade à plenitude. Com certa ousadia, diria
que o cristianismo (a proposta para vivermos como cristãos) é, no fundo, a
humanidade tal como foi, desde sempre, concebida por Deus. Quanto mais
cristãos formos, mais humanos seremos, mais de acordo seremos com o plano
estabelecido por Deus para a humanidade. As consequências são numerosas,
mas, para limitar-me ao âmbito mais próprio deste livro, adiantaria uma das
conclusões que se tira ao estudar a teologia do corpo: seguir as exigências do
Senhor no terreno da sexualidade é ser plenamente homens e mulheres. Não é
uma restrição ou amputação da nossa humanidade, mesmo que o pecado nos
faça ver assim as coisas[29].
4.
Enraizando na Revelação
os ensinamentos proclamados pela Igreja[30]

Neste novo capítulo, gostaria de ir ao encontro da própria pessoa do


leitor que, levada por uma legítima curiosidade, se depara com as catequeses
de S. João Paulo II. Vamos supor que o nosso leitor não é católico ou é um
católico que há muito deixou de estudar os ensinamentos de Cristo. Estará ele
em condições de ler com proveito esses textos?
Adianto a minha opinião. Ainda que, eventualmente, os textos o possam
ajudar, parece-me que seria preferível ter antes umas luzes básicas da
doutrina cristã. Não só porque lhe facilitarão a compreensão das catequeses,
mas também por uma razão que a seguir tentarei explicar.
Há um par de anos, num encontro sobre teologia do corpo, um dos
intervenientes, com toda a boa vontade e com o intuito pedagógico de
convidar os assistentes a dedicar tempo a este corpo de doutrina, afirmava
que costumava desafiar quem quer que fosse a fazer-lhe todo o tipo de
perguntas sobre o cristianismo, pois ele saberia responder a qualquer delas
com argumentos da teologia do corpo. Repito que se tratou de um modo
simpático de convidar as pessoas a ler as catequeses. No entanto, algum
participante menos prevenido poderia ser levado a enganar-se com uma
afirmação destas, sobretudo se a tomasse ao pé da letra, absolutizando assim
a teologia do corpo.
As catequeses sobre O Amor Humano no Plano Divino[31], como de resto
qualquer novo contributo do magistério da Igreja, devem ser lidas «dentro»
da doutrina anterior da Igreja, como fluindo dela; e, uma vez assumidas, é
possível voltar a ler a mesma doutrina de sempre enriquecida com o novo
contributo. S. João Paulo II resumia esta atitude com uma palavra:
«integração». Era assim que propunha que se lessem os então recentes
documentos do Concílio Vaticano II[32].
Aliás, convém recordar que o Papa João Paulo II, logo a seguir a estas
catequeses que duraram quase cinco anos, iniciou umas magníficas
audiências sobre o Credo, que se prolongaram por um período quase três
vezes superior. Querer retirar do contexto da doutrina geral da Igreja a
teologia do corpo não só seria fonte de mal-entendidos como não faria justiça
ao pensamento do grande Papa, que em nenhum momento pretendeu criar um
corpo doutrinal desligado ou com função substitutiva da doutrina precedente.
Aliás, como teremos ocasião de recordar, a Humanae Vitae, documento que
estimulou a necessidade destas catequeses, transmite um ensinamento
constante da Igreja e mais não é do que uma explicitação, porventura mais
concreta, da doutrina de Cristo aplicada a um aspeto determinado. Dito por
outras palavras: a Humanae Vitae é um aspeto da doutrina da Igreja, na qual
está harmonicamente integrada.
Para ajudar a entender o que acabo de afirmar, proponho um exemplo,
dentre os muitos que se poderiam sugerir. Quando a teologia do corpo
descreve as feridas do pecado original, utiliza uma linguagem mais subjetiva
e experiencial, ao contrário da usada na teologia tradicional. Assim, para
descrever o «homem da concupiscência», o homem após a queda original, o
autor das catequeses apela à vergonha sentida, a qual teria uma tríplice
dimensão: cósmica (medo do Criador e da criação), imanente (constata que o
corpo deixou de tirar força do espírito, que o elevava até ao nível da imagem
de Deus; como consequência, o homem nota em si um ser dividido e, por
isso, avalia os seus membros de forma diferente, uns mais «decentes» do que
outros) e relacional (ou vergonha sexual). Ora, na carta Mulieris Dignitatem,
de 1988, o próprio S. João Paulo II retoma a descrição mais clássica e mais
objetiva (menos vivencial) das feridas resultantes do pecado original: «O
pecado opera a rutura da unidade originária, da qual o homem gozava no
estado de justiça original: a união com Deus como fonte da unidade no
interior do próprio “eu”, na relação recíproca do homem e da mulher
(communio personarum) e, enfim, face ao mundo exterior e à natureza»[33].
Portanto, não há qualquer pretensão de substituir a terminologia, mas
apenas um desejo de aprofundar na doutrina de sempre com uma linguagem
que poderíamos classificar como «mais vivencial» e, talvez por isso, mais
facilmente percetível. Aliás, o próprio S. João Paulo II, no decurso das
catequeses, teve o cuidado de explicar a linguagem que iria usar: «Estas
palavras referem-se ao dom da inocência original, revelando-lhe o caráter de
um modo, por assim dizer, sintético. A teologia, sobre esta base, construiu a
imagem global da inocência e da justiça original do homem, antes do pecado
original, aplicando o método da objetivação, característico da metafísica e da
antropologia metafísica. Na presente análise, procuramos sobretudo tomar em
consideração o aspeto da subjetividade humana; esta parece, aliás, encontrar-
se mais perto dos textos originais, especialmente da segunda narrativa da
criação, isto é, do texto javista[34].
Retomando a ideia inicial, para se entender a teologia do corpo convém
ter presente a doutrina anterior e, uma vez assimilado o novo contributo,
voltar a lê-la. Assim, por exemplo, ao voltarmos a estudar a perda da graça no
homem original, poderemos avaliar melhor a tradução subjetiva dessa perda,
sendo mais fácil compreender o que supõe a perda da graça e dos dons
preternaturais.
Para facilitar ao leitor o trabalho de ler a teologia do corpo, sugiro alguns
pontos do Catecismo da Igreja Católica que conviria ler antes de cada ciclo.

Teologia Catecismo da
do corpo Igreja Católica Textos-base
(por números)

PARTE I – As palavras de Cristo

Catequeses 1-23 Ciclo 1: 337-384 Mt 19, 3-8


Cristo apela ao 1700-1707
princípio. 1877-1879

Catequeses 24-63 Ciclo 2: 385-390 Mt 5, 27-28


Cristo apela ao 396-421
coração humano. 1707-1709
1762-1770
1808, 1853

Catequeses 64-72 Ciclo 3: 959 Mt 22, 24-30,


Cristo apela à 988-1005 Mc 12, 18-27 ou
ressurreição. 1027 Lc 20, 27-38

Catequeses 73-86 Ciclo 4: 496-507 Mt 19, 11-12


A continência pelo 1579
Reino dos Céus. 1618-1620

PARTE II – O sacramento

Catequeses 87-102 Ciclo 5: 1601-1617 Ef 5, 21-33


A. 1641-1651
A dimensão da
Aliança e da Graça.

Catequeses 103-113 B. 1625-1632 Ef 5, 21-33 (embora com


A dimensão do referências ao ritual do
sinal. matrimónio, ao Cântico dos
Cânticos e ao Livro de
Tobias)

Catequeses 114-129 Ciclo 6: 1652-1654 Alguns números da encíclica


Deu-lhes a lei da Humanae Vitae
vida por herança.

5.
Novas dificuldades

Consideremos agora um novo candidato à leitura das catequeses. O


convidado é agora uma pessoa já com conhecimentos doutrinais e com
vivência cristã. Estará ele livre de dificuldades na leitura? Como ler com mais
proveito essas meditações de S. João Paulo II? Que deverá ter em conta?
Consegui detetar três tipos de novas dificuldades para esse leitor. Foram,
sinceramente, as que identifiquei não tanto quando li as catequeses pela
primeira vez, mas quando as tive de explicar a outros. A leitura inicial foi de
grande deslumbramento, acompanhada de uma certa dúvida − reconheço −
sobre a possibilidade de veicular o seu conteúdo entre pessoas com escassos
estudos teológicos. Quando decidi tentar expor a teologia do corpo,
identifiquei os três obstáculos que referirei. Só pelo facto de os nomear,
suponho que ajudarei o leitor a saber lidar com eles.
Em primeiro lugar, a ordem seguida em cada ciclo nem sempre é de fácil
perceção. Em segundo lugar, S. João Paulo II usa expressões novas, cujo
sentido não se capta totalmente numa primeira leitura, até porque, com
frequência, o Papa não esgota a explicação do seu conteúdo na primeira vez
que as usa. Em terceiro lugar, os leitores mais ansiosos, com desejo de
encontrar nos textos respostas imediatas para as dificuldades às questões
levantadas por críticos à doutrina da Igreja sobre temas morais concretos,
podem sentir-se, pelo menos ao princípio, defraudados. Vou tentar
aprofundar brevemente cada um destes problemas.
a) A ordem seguida em cada ciclo
Como referi antes, nem sempre é imediatamente percetível a ordem que
S. João Paulo II segue dentro de cada ciclo. O método de exposição, «em
espiral», voltando uma e outra vez ao mesmo assunto mas com novas
perspetivas e novos matizes, torna, por vezes, árdua a compreensão do texto;
a dificuldade não deriva tanto do que diz em cada catequese – não
esqueçamos que elas foram proclamadas em audiências gerais, sendo
destinadas a pessoas de todas as proveniências e condições –, mas, sobretudo,
do encadeamento dos raciocínios. Não há dúvida de que o método favorece a
contemplação das verdades, pois elas vão sendo expostas de forma repetida e
com ligeiros acréscimos de nenhum modo supérfluos, terminando por
deslumbrar a mente e o coração. Não estamos, no entanto, diante de um
tratado sistemático e plenamente ordenado da teologia do corpo. Essa será
uma tarefa para o futuro. Os subtítulos que a edição de M. Waldstein
recuperou e decidiu incluir são um dos contributos para se entender a linha de
raciocínio de S. João Paulo II.
Devo acrescentar que esta dificuldade levanta, naqueles que pretendemos
aproximar as catequeses do grande público, a necessidade de uma opção
crucial na exposição:
1. Quando se opta por resumir em excesso a exposição, é possível
captar melhor os conceitos, mas corre-se o risco de vedar o horizonte
contemplativo que, por um lado, oferece uma belíssima panorâmica
teológica e, por outro, permite enfrentar as críticas à doutrina da Igreja
num nível de elevação distinto do habitual;
2. Quando, pelo contrário, se prefere uma certa «generosidade» na
exposição, inclinamo-nos para a dimensão mais contemplativa, mas é
mais difícil adquirir uma visão ordenada de cada tema e também
captar a ligação à vida diária.
Daí o equilíbrio entre a conveniente sistematização e o
deslumbramento contemplativo. Devo acrescentar, que, a meu ver, são
necessárias obras que optem por uma e outra soluções. Pessoalmente,
inclinei-me mais para a segunda opção, procurando, no entanto, «arrumar»
um pouco os conceitos de modo a que respondessem a questões bem
concretas e a facilitar ao leitor não se perder no objetivo de cada capítulo.
Mesmo assim, foi inevitável, em determinados capítulos, um pequeno
desvio do tema central, para evitar perder a riqueza dos conteúdos.
b) Neoexpressões
É relativamente frequente que, nas catequeses, apareçam expressões
próprias de S. João Paulo II; expressões inovadoras, que pedem uma
definição clara que ou não surge imediatamente no texto ou, simplesmente,
não é explícita. Expressões tais como «liberdade do dom», «sacramento
primordial», «pedagogia do corpo» ou «significado esponsal do corpo». Por
um lado, é bom que o leitor saiba que tais expressões não têm um sentido
óbvio, apesar de estarem compostas por palavras «comuns». Nalgum caso, é
necessária a leitura seguida de algumas catequeses até se obter uma ideia
melhor delimitada do conceito. É o caso do «significado esponsal do
corpo». Por isso, é de agradecer, por exemplo, a obra de Cristopher West,
intitulada Teologia do Corpo para Principiantes, que segue sabiamente a
opção de colocar um glossário no final do livro. Nesta obra, sempre que
aparecerem expressões desse estilo, procurei não passar à frente sem as
explicar.
c) Soluções nem sempre imediatas
Para uma mentalidade mais pragmática que, no fundo, quer soluções e
respostas breves, as catequeses do Papa João Paulo II podem gerar uma certa
impaciência. Parecerá que não se vai até às últimas dúvidas, que ficam
questões em aberto. Nas conferências que proferi sobre estes temas, esta
objeção apareceu em mais de uma ocasião: «por que é que o conferencista»,
perguntavam em voz baixa, «não resolve, de uma vez por todas, as questões
que todos nos colocamos, em vez de divagar?» Defendo que as palavras de S.
João Paulo II contêm a resposta para as questões mais agudas que se
levantam hoje em dia, mas não são uma «receita de uso imediato». Exigem
um esforço: o esforço de colocar os alicerces, de «edificar a casa sobre
rocha», seguindo a expressão evangélica. Sempre que me pareceu oportuno,
procurei – valha a expressão – «descer mais à terra» e mostrar de que modo
aquelas grandes ideias têm que ver com o nosso dia a dia. Insisto que a leitura
desta obra requer uma dedicação maior do que usar uma espécie de
«receitário moral». Mas o trabalho é essencial, se queremos ir ao fundo dos
«porquês» das normas morais, em concreto das que se referem a estes temas.
Na verdade, procurei começar cada capítulo com algumas questões que
ajudem o leitor, desde o início, a captar a importância do tema que se vai
expor.
Primeira parte

As palavras de Cristo
6.
O princípio da continuidade

De acordo com o esquema apresentado, quer as catequeses do primeiro


ciclo quer as do terceiro centram-nos num estado do ser humano para nós
desconhecido: o homem do «princípio», anterior a qualquer mal nele
presente, e o homem da ressurreição, que venceu inteira e definitivamente
qualquer espécie de mal. São duas situações para nós desconhecidas e que
nada parecem ter que ver connosco. No primeiro caso, talvez possa suscitar
uma exclamação pueril: «que bom teria sido viver assim, no Paraíso…», tal
como uma criança pode desejar entrar no mundo de um conto infantil.
Quanto à ressurreição, vem-nos à cabeça exclamar: «logo veremos como é o
futuro… Na verdade, qual o interesse de gastar tempo em aprofundar num
passado longínquo e num futuro tão misterioso? Ou, se quisermos mesmo
pensar nessas situações, será sensato extrair conclusões para a vida do
homem “real” (para a realidade que nós conhecemos)?»
Comecemos por um argumento de autoridade. Na conversa com os
fariseus acerca da indissolubilidade do matrimónio, é Cristo quem remete
para o princípio, em resposta a uma dúvida moral bem concreta. E, com os
saduceus, é Cristo quem, também em resposta a outra dúvida, talvez de
caráter mais doutrinal, remete para o estado final. Portanto, Cristo sabe que
é importante que olhemos tanto para o nosso passado originário como para
o nosso futuro definitivo (se a Ele formos fiéis). Desse «olhar» podem-se
extrair sérias conclusões para o comportamento das pessoas (como
veremos).
S. João Paulo II é explícito quanto à importância de adquirir esta dupla
perspetiva, pois é ela que nos permite obter a completa «revelação do corpo»:
«Estas duas “ampliações da esfera” da experiência do corpo (se assim se pode dizer) não são
completamente inacessíveis à nossa compreensão (obviamente teológica) do corpo. Aquilo que o
corpo humano é no âmbito da experiência histórica do homem não está totalmente desligado
daquelas duas dimensões da sua existência, reveladas mediante a palavra de Cristo»[35].

No fundo, há uma continuidade entre as três situações, a do homem do


princípio (Adão e Eva), a do homem histórico e a do homem ressuscitado.
Sem dúvida que a experiência do corpo que para nós é essencial é a do
homem histórico, a que todos temos «agora» (mesmo que essa experiência
exija séria reflexão). Mas o que S. João Paulo II dá a entender é que, se nos
apoiamos nas palavras de Cristo, podemos, partindo da experiência que
temos do corpo, proceder a uma
«reconstrução teológica do que poderia ter sido a experiência do corpo com base no “princípio”
revelado do homem, e também daquilo que ele será na dimensão do “outro mundo”. A
possibilidade de tal reconstrução, que amplia a nossa experiência do homem-corpo, indica, pelo
menos indiretamente, a coerência da imagem teológica do homem nestas três dimensões, que
conjuntamente concorrem para a elaboração da teologia do corpo»[36].

A reconstrução teológica de que fala o autor das catequeses não é apenas


do género a que chamaríamos «teórico ou descritivo». S. João Paulo II quer
apelar à experiência que cada um tem do corpo e, com as indicações de
Cristo, tentar encontrar nela recursos para perceber vitalmente qual pode ter
sido a experiência na «pré-história teológica»[37] e qual será a do tempo da
ressurreição.
Em certo sentido, isto torna-se possível porque, por um lado, trazemos
em nós a herança do homem do «princípio» e, por outro, no caso dos
batizados, o germe do homem da ressurreição. Deus «não fez delete» ao
homem primitivo após o pecado, recomeçando de novo do zero. E Deus não
anulará ou aniquilará o nosso «eu» depois da morte. Por isso se fala de
«ressurreição», e não tanto de uma nova criação de cada um[38].
Num dos textos do primeiro ciclo, S. João Paulo II chama a atenção,
como que de passagem, para a possibilidade de captar, em certas experiências
atuais do corpo, vestígios das do tempo da inocência original. São
significativas as suas palavras:
«Falando das experiências humanas originais, pensamos não tanto na sua distância temporal mas
antes no seu significado fundamental. O importante não é, por conseguinte, que estas experiências
pertençam à pré-história do homem (à sua “pré-história teológica”), mas que elas se encontrem na
raiz de toda a experiência humana. E isto é verdade, apesar de, no desenrolar-se da ordinária
existência humana, não se prestar muita atenção a essas experiências essenciais. Elas, de facto,
encontram-se tão ligadas às coisas ordinárias da vida que, em geral, não damos conta de serem
extraordinárias»[39].

A experiência da vergonha que sentimos perante a nudez ajuda a


entender o sentido desta tese. Ainda que num capítulo posterior nos
detenhamos mais neste assunto específico, vale a pena recorrer agora a ele
para aceitarmos a metodologia de S. João Paulo II e entendermos bem o
princípio da continuidade.
Por um lado, sentimos vergonha quando estamos nus. Por outro, pelas
palavras da Bíblia, sabemos que Adão e Eva se encontravam nus mas sem
se envergonharem. A análise do Papa levará a perguntar: por que razão nos
envergonhamos nós, e Adão e Eva não? «Por um certo temor», responder-
se-á.
Por temor a que a visão «do outro» não respeite a nossa pessoa e nos
instrumentalize (centrando o olhar em partes do nosso «eu» e não na nossa
pessoa). Assim sendo − segundo passo −, se Adão e Eva não sentiam
vergonha um do outro apesar da nudez, é porque no estado originário o seu
olhar não instrumentalizava o outro, mas antes o captava como pessoa.
Também nós captamos mais facilmente a pessoa enquanto tal quando se
encontra vestida. Assim – conclui S. João Paulo II –,
a vergonha é, por um lado, sinal de que algo se desarranjou e, por outro, um
recurso que reorganiza a deficiência. Ou, para usar uma imagem clara, a
vergonha é como a muleta ou a bengala do coxo: por um lado denuncia a
imperfeição física e, por outro, impede a queda, isto é, as consequências
negativas da imperfeição. Tendo nós o dado de que Adão e Eva, no jardim do
Éden, estavam nus e não se envergonhavam, é possível, através da nossa
própria experiência, compreender melhor a experiência originária, perceber
melhor o que eles sentiriam: de certo modo, tinham um do outro, mesmo
estando nus, uma perceção semelhante à que nós temos hoje diante de
pessoas honestamente vestidas[40].
No outro extremo, rumo ao mundo da ressurreição, quando S. João Paulo
II descreve alguns elementos do estado do corpo ressuscitado, em concreto a
sua espiritualização e divinização, não deixa de comparar esses elementos
com a possível espiritualização e divinização na situação presente[41], mesmo
esclarecendo que a situação do homem ressuscitado em Cristo se distingue da
situação presente não apenas em grau, mas essencialmente. Mas o facto é que
os dois conceitos podem e são experimentados neste mundo: é possível que
as forças do espírito impregnem as energias do corpo (espiritualização), ainda
que não de modo definitivo, e é possível um certo grau de divinização, de
uma grande intimidade com Deus[42]. S. João Paulo II explica, no terceiro
ciclo, dedicado à ressurreição do corpo, que, de acordo com S. Paulo, não só
levamos em nós as marcas de Adão mas também já transportamos connosco
uma imagem do novo Adão, Cristo:
«De facto, não há qualquer dúvida de que, se precisamente em todo o mundo visível (cosmos),
aquele único corpo que é o corpo humano leva em si a “potencialidade da ressurreição”, isto é, a
aspiração e a capacidade de se tornar definitivamente “incorruptível, glorioso, cheio de força,
espiritual”, isto acontece porque, persistindo desde o início na unidade psicossomática do ser
pessoal, ele pode acolher e reproduzir, nesta “terrena” imagem e semelhança de Deus, também a
imagem “celeste” do último Adão, Cristo. A antropologia paulina da ressurreição é cósmica e
universal ao mesmo tempo: cada homem leva em si a imagem de Adão e cada um é também
chamado a levar em si a imagem de Cristo, a imagem do Ressuscitado. Esta imagem é a realidade
do “outro mundo”, a realidade escatológica (São Paulo escreve: “levaremos”); mas, entretanto, ela
é já de certo modo uma realidade deste mundo, dado que foi revelada nele mediante a ressurreição
de Cristo. É uma realidade enxertada no homem “deste mundo”, realidade que nele se está
maturando até à consumação final»[43].

Não se trata «apenas» de uma imagem. Pela graça que nos foi alcançada
pela Redenção, como se explicou acima, experimentamos no nosso «eu»,
corpo incluído, já agora, esse processo de espiritualização e divinização:
participamos da força do Ressuscitado. Com esta experiência, e sobretudo
com o que o Novo Testamento nos diz sobre a Ressurreição de Cristo,
podemos vislumbrar o que sucederá ao nosso «eu» (corpo e alma) no futuro
escatológico.
Estes exemplos levam-nos a querer aprofundar nesta continuidade entre
o homem do princípio e o homem da ressurreição, e a tentar perceber
algumas das suas consequências. Para perceber melhor o princípio da
continuidade, é bom relembrar que o homem foi criado à imagem e
semelhança de Deus, e a imagem do Criador nele é sempre uma realidade,
ainda que o pecado tenha distorcido a semelhança[44]. Eis as palavras de S.
João Paulo II: «Embora existam diferenças profundas entre o estado de
inocência original e o estado de pecaminosidade hereditária do homem,
aquela “imagem de Deus” constitui uma base de continuidade e de
unidade»[45]. Mas, como vimos, se nos unirmos a Cristo, levamos também em
nós o germe da ressurreição. É deslumbrante refletir sobre o facto de Cristo
ser «o novo Adão», de acordo com a expressão paulina. Ela acentua a
continuidade do ser humano: Cristo não inicia a nova humanidade a partir do
nada, como se a sua natureza humana nada tivesse que ver com a humanidade
que precedeu a Encarnação temporalmente. Além disso, a expressão «novo
Adão» faz pensar que d’Ele recebemos uma herança, uma natureza “curada”,
“redimida”: quando a Ele nos unimos, participamos já agora das qualidades
do «novo Adão»[46].
Não se pense que estas afirmações carecem de suficiente relevo para a
vida prática. Por um lado, sabemos que transportamos todos a «carga» do
pecado original, com o peso da concupiscência que é essencial não
ignorar. Por outra parte, podemos, já agora, experimentar a força da
ressurreição de Cristo,
mesmo nos nossos corpos (quando, por exemplo, somos castos e, por isso,
não instrumentalizamos os outros nem sequer com um olhar,
experimentamos essa força).
Ao mesmo tempo, meditar sobre essa continuidade tem outras conse
quências. Quando, em 1993, S. João Paulo II publicou a encíclica O
Esplendor da Verdade, recordou que esta unidade e esta continuidade da
natureza humana oferecem à Igreja o fundamento para afirmar a
imutabilidade da lei natural e, consequentemente, a «existência de normas
objetivas de moralidade válidas para todos os homens do presente e do
futuro, como foram já para os do passado»[47]. O desenvolvimento do
raciocínio seguinte daquele ponto da encíclica é importantíssimo para o
presente estudo. Com efeito, S. João Paulo II acabará por estender esta
imutabilidade ao âmbito da pré-história teológica. Só esta afirmação permite
entender que Cristo tenha remetido os fariseus para o «princípio»,
contrariando desse modo a tese dos que afirmam que novos contextos sociais
e culturais exigem sempre uma nova moral, sem que haja necessidade de
conservar nenhuma das normas morais de um qualquer «passado longínquo».
Ora, no tempo de Jesus, «o contexto social e cultural da época tinha
deformado o sentido original e o papel de algumas normas morais»[48], em
concreto a que é objeto da pergunta dos fariseus – a indissolubilidade do
casamento. Nosso Senhor, porém, não deixa de apelar ao desígnio original do
Criador, transcrito nos primeiros capítulos do Génesis, para reafirmar a
validez do projeto inicial sobre o casamento. Jesus não reformula as
exigências morais adaptando-as à debilidade humana e às vicissitudes
históricas, como se o homem fosse agora “outro ser”. Isso foi o que Moisés
teve de fazer. Deus não atua desse modo. Deus sabe quais as potencialidades
do homem, que Ele criou.
Precisamente porque se trata sempre do mesmo homem, tem sentido o
anúncio da Redenção. Depois da tragédia do pecado original, Deus poderia
ter aniquilado o primeiro casal e começado tudo de novo. Que lhe custaria?
Ninguém ficaria a saber o que tinha sucedido «antes». Aliás, com a
multiplicação dos pecados, o livro do Génesis descreve uma iniciativa de
Deus que, para alguns, parece aproximar-se de uma solução radical: o
dilúvio. Na verdade, Deus não faz desaparecer o ser humano; escolhe um
pequeno grupo de pessoas (Noé e os seus familiares) para dar continuidade à
história iniciada com Adão e Eva.
A vontade de Deus é, pois, redimir o homem, libertá-lo das correntes
com que ele próprio se deixou prender. É verdade que, neste mundo, o
homem já não pode voltar à situação original do passado, quando Deus o
colocou no Paraíso; mas é esse o homem a quem o futuro glorioso foi
«aberto» pela promessa do Redentor. «Paulo, autor da Carta aos Romanos,
exprime esta perspetiva da redenção em que vive o homem “histórico”,
quando escreve: “[…] também nós, que possuímos as primícias do Espírito,
gememos interiormente aguardando […] a redenção do nosso corpo” (Rom
8, 23)»[49]. O próprio Cristo é a demonstração viva de que a condição do
homem deve ser outra, pode melhorar. A Carta aos Hebreus explica: «Por
isso, visto que os filhos participam da carne e do sangue, Ele também
participou igualmente das mesmas coisas, a fim de destruir pela morte aquele
que tinha o império da morte, isto é, o demónio, e para livrar aqueles que,
pelo temor da morte, estavam em escravidão toda a vida. Pois não veio Ele
em auxílio dos Anjos, mas veio em auxílio da descendência de Abraão. Daí
vem que Ele deveu em tudo ser semelhante a Seus irmãos» (Heb 2, 14-16):
Cristo adotou a mesma natureza e mostrou até onde ela – a natureza humana
– pode «ir»; porque o Cristo que viveu sem pecado, mas que se cansou,
sofreu e morreu assumindo as consequências da natureza ferida, que se
transfigurou e por fim ressuscitou é sempre o mesmo Cristo que, desde a
Encarnação, não deixou nunca mais de ser homem, não abandonou nunca a
natureza humana. E mostrou-nos assim o itinerário da redenção para cada
pessoa (que quiser ser fiel ao Senhor).
Continuemos com S. João Paulo II:
«É precisamente esta perspetiva da redenção do corpo que assegura a continuidade e a unidade
entre o estado hereditário do pecado do homem e a sua inocência original, se bem que esta
inocência tenha sido historicamente perdida por ele, de modo irremediável. É também evidente
que Cristo tinha todo o direito de responder à pergunta que Lhe foi feita pelos doutores da Lei e da
Aliança (como lemos em Mt 19 e em Mc 10) na perspetiva da Redenção, sobre a qual a própria
Aliança se baseia»[50].

Cristo pode remeter os interlocutores para a situação do homem prévia


ao pecado original, não só porque se trata do mesmo homem, imagem de
Deus (embora a semelhança que evoca a participação na natureza de Deus se
tenha perdido com o pecado), mas também porque veio para oferecer a
possibilidade real de recuperar essa semelhança. Por outras palavras, se
tivesse havido uma rutura total entre o homem da situação originária e o
chamado «homem histórico», as palavras de Cristo não passariam de uma
evocação lírica, sendo injustificado querer extrair delas conclusões
normativas. Cristo teria dado uma resposta sem um fundamento onde os
interlocutores se pudessem apoiar. Não é assim. Para tornar mais percetível
todo o raciocínio, podemos ordenar os passos ou etapas implícitos na
argumentação de Jesus:
1. Quando o Senhor sugere que se olhe para o «princípio», parece
querer fomentar nas nossas almas uma admiração pela situação
originária, admiração que induzirá não a que vivamos num saudosismo
desesperado, mas sim a que o nosso coração se encante e deseje
«regressar a casa», regressar ao lar de onde saiu e onde se sente
verdadeiramente bem. É como se dissesse «olhem para trás, muito para
trás, com veneração»;
2. Por que razão haveríamos de olhar para trás? «Porque aquele
amável passado é o vosso passado». Trata-se do mesmo ser humano
que transgrediu o pacto com o seu Criador e que prosseguiu na
História. Não houve um corte absoluto. Com o pecado, transmite-se a
nostalgia da situação da inocência original. S. Paulo expressará um
aspeto da nossa condição presente com uma dramática expressão: «Em
verdade, não compreendo o que faço; não faço o bem que quero, mas
pratico o mal que não quero» (Rom 7, 15). Com linguagem mais
vulgar, traduziríamos assim: «há qualquer coisa em mim que não bate
certo». Ao mesmo tempo, como já se transcreveu, o Apóstolo fala do
enorme desejo da redenção do corpo (cfr. Rom 8, 23): o ser humano
desejaria libertar-se da dor, dos sofrimentos, das debilidades, da morte.
O homem sente a nostalgia dum estado que não conheceu
pessoalmente mas que, se dele é informado, de algum modo considera
pertencer-lhe – porque o experimenta na sua natureza (não deveria
sofrer, não deveria morrer…). S. Paulo confirma a legitimidade desse
anseio, e fala assim do desejo de redenção do corpo. A redenção do
corpo é a redenção da pessoa, que é sempre alma e corpo, mas a
expressão paulina recorda que ela também alcança o corpo. O ser
humano procura, assim, alcançar a libertação do pecado e da morte.
Cristo confirma que é de alimentar esta nostalgia com consequências
efetivas;
3. Por fim, na referência ao «princípio», também é preciso incluir a
situação do homem decaído com a imediata esperança da redenção à
vista, prometida pelo Criador no denominado «protoevangelho»: a
serpente será
esmagada pela descendência da mulher (cfr. Gen 3, 16). Esse homem
profundamente ferido (Adão e Eva) viveu (ou terá tentado viver) de
acordo com o plano originário. Terá experimentado as dificuldades
para o fazer, mas a Escritura não dá a entender que Adão e Eva se
tenham «zangado» com Deus. Antes pelo contrário: quando Eva dá à
luz um dos seus filhos, reconhece neles um dom de Deus, a quem
agradece de todo o coração
(cfr. Gen 4, 1: «Adão conheceu Eva, sua mulher. Ela concebeu e deu à
luz Caim, e disse: “Adquiri um homem com o auxílio do Senhor”»).
Contudo, a descendência de Eva mostrará uma dificuldade crescente
para manter o olhar no seu Criador e viver de acordo com o plano
originário de Deus para
as suas vidas, em todas as dimensões – também, certamente, o
matrimónio.
Com Cristo, será possível retomar o plano originário, nomeadamente no
que ao matrimónio se refere. Como afirma perentoriamente S. João Paulo II,
«não podemos nunca esquecer que, no ensinamento de Cristo, a referência
fundamental à questão do matrimónio e ao problema do relacionamento entre
homem e mulher apela ao “princípio”. Tal apelo apenas pode justificar-se
pela realidade da Redenção. Fora desta, na verdade, restará unicamente a
tríplice concupiscência […]. Só a perspetiva da Redenção justifica o apelo ao
“princípio”»[51].
Christopher West oferece uma sugestiva comparação deste
encadeamento no raciocínio implícito na resposta aos fariseus, comparação
que adotei com ligeiras modificações. Imaginemos que vivemos num país
onde os carros têm todos as rodas vazias. Imaginemos que, para obviar os
problemas decorrentes dessa deformação dos pneus, se adaptou todo o
terreno: não pode haver o mínimo buraco nas estradas, todas as subidas e
descidas têm de ser com rampas suaves, nas ruas há esguichos de água que
diminuem a temperatura nos pneus, etc. Imaginemos que chega alguém, de
um longínquo país, e explica aos habitantes: «sabem, no meu país os carros
têm as rodas cheias de ar; andam mais rápido, com muito menos solavancos,
as rodas estragam-se menos e não são necessários esguichos de água. Ora
bem (segundo passo), caros amigos, esses carros têm uns pneus iguais aos
vossos, no fundo são até muito parecidos com os vossos carros; com a minha
ajuda (com a redenção!), podemos encher os pneus e circular de outra
maneira»[52].
No fundo, o Senhor convida os seus ouvintes a retomarem no coração o
projeto entregue diretamente por Deus ao primeiro casal e que, com tantos
intermediários pouco aptos, chegou com excessivas alterações à geração que
era sua contemporânea. No princípio, não era assim… Não se viveu assim…
Era tudo estupendo, e Cristo vai retomar esses planos e ajudar o mundo a
viver de acordo com eles. Acabará com as rampas e os esguichos de água nas
estradas porque os carros não mais necessitarão deles, pois poderão encher os
pneus sempre que quiserem.
Em resumo, a resposta de Cristo contém em si uma enorme força, pois
revela que Ele restaurará o coração humano, aproximando-o do estado
original que para os interlocutores do Senhor era, logicamente, um estado
ideal, pois era o reflexo imediato da vontade de Deus, com a total ausência do
mal no coração do casal primitivo.
As consequências para o dia a dia estão longe de ser neutras. Quando se
ignora que houve um plano ou desígnio divino para o homem – plano esse
que foi transtornado pelo próprio homem –, há reações que parecem
«normais», conaturais ao homem, sem que se reconheça nelas algo de que
seria conveniente libertar-se, vencer. Mesmo no terreno no qual nos vamos
centrar: por exemplo, é mais fácil identificar a desordem que supõe desejar
concupiscentemente uma mulher quando se é conhecedor de que nem tudo o
que sucede espontaneamente no interior do homem é «natural» e, portanto,
inevitável; se assim fosse, as únicas alternativas seriam ou dar rédea solta a
esses impulsos ou desencadear uma desumana repressão sobre o nosso ser.
Olhar para o princípio permite avaliar melhor o que é intrínseco à pessoa no
projeto original de Deus para ela – e, portanto, é de manter e cultivar –, e o
que se afastou desse desígnio – e, portanto, pode e deve ser abandonado, com
a graça de Deus.
Ao mesmo tempo, a visão do homem da ressurreição permite manter a
esperança de que as alterações ao projeto originário, tão nocivas para a
natureza humana, podem ser vencidas pois o próprio Deus quer que delas nos
libertemos.
As «três dimensões do homem» – na expressão de S. João Paulo II – são,
pois, essenciais para podermos entender bem o ser humano. Conhecendo-as,
aprendemos a importância da herança do princípio e a referência a esses
momentos iniciais; tornamo-nos conscientes do homem da concupiscência[53],
submetido a uma «força» nociva interior que o afasta da sua dignidade;
alegramo-nos ao saber que levamos já em nós o germe do homem da
ressurreição.
S. João Paulo II insiste que este modo de compreender o homem foi, é, e
será sempre essencial. Hoje em dia, os problemas com que muita gente lida
não são menores – antes pelo contrário – do que as questões dos
contemporâneos de Jesus. Também o homem de hoje ou de amanhã gostaria,
sem dúvida, de ouvir o próprio Cristo responder aos interrogantes; como
avaliar os segundos casamentos? Que diria Cristo das relações pré-
matrimoniais, dos contracetivos, das relações homossexuais? No final do
primeiro ciclo, S. João Paulo II responde de forma encantadora, quase
poética:
«A resposta de Cristo tem um significado histórico, mas não apenas histórico. Os homens de todos
os tempos interrogaram-se sobre o mesmo assunto. Fazem-no também os nossos contemporâneos
que, no entanto, não se referem à lei de Moisés, que admitia o libelo de repúdio, mas a outras
circunstâncias e a outras leis. Estas suas interrogações encontram-se carregadas de problemas,
desconhecidos dos interlocutores diretos de Cristo. Conhecemos as perguntas, a propósito do
matrimónio e da família, que foram dirigidas, no último Concílio, ao Papa Paulo VI,
e que são continuamente formuladas no período pós-conciliar, dia após dia, nas mais variadas
circunstâncias. Formulam-nas pessoas individualmente, casais, noivos e jovens, mas também
escritores, jornalistas, políticos, economistas, demógrafos, enfim, a cultura e a civilização
contemporâneas.
Penso que, dentre as respostas que Cristo daria aos homens do nosso tempo e às suas
interrogações, muitas vezes tão impacientes, seria ainda fundamental aquela que Ele deu aos
fariseus. Respondendo àquelas interrogações, Cristo referir-se-ia, antes de mais, ao “princípio”.
Fá-lo-ia, talvez, de forma tanto mais decisiva e essencial quanto a situação interior e
simultaneamente cultural do homem de hoje parece afastar-se daquele “princípio” e assumir
formas e dimensões que divergem da imagem bíblica do “princípio” em pontos, de forma
evidente, cada vez mais distantes.
Todavia, Cristo não ficaria “surpreendido” com nenhuma destas situações, e suponho que
continuaria a referir-se sobretudo ao “princípio”»[54].

Sim! Cristo continuaria a referir-se ao longínquo «princípio», registado,


em poucas palavras, no primeiro livro da sagrada Bíblia: o Génesis. Essas
palavras, às vezes tão simples – diríamos até ingénuas, a uma primeira leitura
– e com uma forte carga simbólica, constituem, contudo, o único registo
dessa «época dourada» e dos momentos iniciais que se seguiram à queda. Daí
que possamos dizer que, nesses capítulos do Génesis, cada palavra «vale
ouro» –, ou melhor, nem sequer tem preço. S. João Paulo II afirmará até que
o texto mais fundamental da Bíblia sobre o matrimónio se encontra
precisamente no segundo capítulo do Génesis: «Na Bíblia inteira pode ser
considerado o texto fundamental do matrimónio»[55]. Quem diria que, por
palavras tão simples e sintéticas, se transmitisse uma realidade de valor
incalculável?
Quando Cristo remete para o «princípio», remete para o Génesis, pois era
essa a referência dos interlocutores. Centremo-nos nós, então, no princípio.

7.
A solidão originária: o corpo revela a pessoa

Penso que o tema deste capítulo – centrado num dos três aspetos que,
segundo S. João Paulo II, definem a situação originária do homem –
responderá a dois tipos de questões que se levantam com frequência (os
outros dois aspetos serão estudados nos capítulo 8 e 9).
Segundo algumas pessoas, o comportamento animal pode servir de
referência para nós, humanos. Nas últimas décadas de modo particular, o
comportamento animal exerce uma espécie de fascínio sobre a mentalidade
contemporânea. Em parte, essa admiração tem fundamento, pois a criação,
bem contemplada, com o auxílio de magníficas técnicas de observação, não
deixa de ser deslumbrante, e o comportamento animal não deixa de
surpreender. Uma tal admiração – em si mesma compreensível, repito –,
adicionada a outras causas de índole bastante diversificada (o abandono das
raízes filosóficas e religiosas no estudo da antropologia, a divulgação
prática de um tipo de comportamento em determinados setores da
população que quase exclui o domínio sobre si próprio, etc.), levou a que
muitos se questionem: «se o homem tem tantas semelhanças com certos
primatas, não será legítimo inspirar-se em diversos comportamentos animais
para conhecer-se melhor? Em concreto, da sexualidade animal não será de
extrair indicações sobre o que é ou não natural ao homem? É muito bonito
falar da semelhança do homem com Deus», dizem, «mas, como sabemos,
Deus não tem corpo, é espírito. Por isso, talvez a referência à semelhança
com Deus possa ajudar em terrenos puramente espirituais, mas no que ao
corpo se refere parece preferível seguir outro tipo de referências, “mais à
mão” do que se pode observar».
Por sua vez, é frequente em certas correntes de pensamento distinguir
entre «pessoa» e «corpo apenas vivo» Porque – argumenta-se – pessoa é um
ser consciente e com autonomia de vida. Em consequência, segundo essa
interpretação, os embriões ou certos doentes mentais ou terminais não são
«pessoas». O corpo parece ter, pois, uma dignidade infrapessoal[56]. Se assim
é, quando o Génesis afirma que o homem foi criado à imagem e semelhança
de Deus está, certamente, a limitar-se à dimensão puramente espiritual do
homem, à sua alma: «então não poderei fazer com o meu corpo, ou com
corpo dos outros, se assim mo permitirem ou não se opuserem, o que me
apetece? Serão assim tão graves certos comportamentos que, no fundo,
apenas afetam o modo como se lida com o corpo, sem afetar o “eu” mais
profundo?»
As questões, como o leitor terá observado, são de excecional
importância. E, por isso, tem também um enorme relevo o modo como S.
João Paulo II explica a imagem e a semelhança do homem com Deus. Aliás,
na carta apostólica Mulieris Dignitatem, o Papa considera que «a verdade
revelada sobre o homem como “imagem e semelhança de Deus” constitui a
base imutável de toda a antropologia cristã»[57].
7.1. Os primeiros capítulos do Génesis: palavras que «valem ouro»
Comecemos com um breve preâmbulo. S. João Paulo II recorda que os
dois primeiros capítulos do Génesis procedem de duas fontes diferentes,
separadas no tempo por vários séculos. Essa constatação facilita a
compreensão do texto e centra a nossa atenção em pormenores que passariam
despercebidos de outra maneira. Em qualquer caso, convém voltar a insistir
na observação de M. Waldstein; a perspetiva essencial de S. João Paulo II é a
de procurar a verdade das coisas a partir dos textos da Bíblia: «Na realidade,
a verdade das coisas é muito mais interessante do que a verdade histórica
sobre os textos, ainda que a verdade histórica não deva ser negligenciada»[58].
Os dois primeiros capítulos do Génesis relatam a criação do homem.
Contudo, o primeiro capítulo procede de uma fonte mais tardia. Trata-se de
um texto mais objetivo, mais teológico, mais «frio». O segundo capítulo do
Génesis é mais antigo, mais arcaico[59]. Esse texto é correlativo ao primeiro
relato, mas expõe os factos de um modo mais subjetivo ou antropológico[60].
A solidão do homem, de que nos ocupamos agora, é, como veremos, um
exemplo particularmente demonstrativo desta dupla perspetiva. O versículo
sobre o qual nos centraremos pertence ao Génesis 2:
«Não é bom que o homem [‘adam] esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele» (Gen 2,
18).

O sentido mais óbvio da solidão é, reconhecidamente, a ausência da


mulher. Será ela a preencher a solidão de Adão. No entanto, recorrendo a
uma fina observação linguística, S. João Paulo II proporá um outro tipo de
solidão, comum ao homem e à mulher. Com efeito, convém ter em conta que
o termo «varão» (‘ish) só é usado na Bíblia após a criação da mulher e em
relação a ela (‘ishá), pois antes (cfr. Gen 2, 18) é usado um termo distinto
(‘adam, que se deve traduzir por «homem», ou por «humanidade»). Por isso,
é legítimo admitir que o versículo referido possa ser interpretado como
referência a uma certa solidão comum ao homem e à mulher (à humanidade).
Que significa, então, essa solidão?
Significa que o homem e a mulher não têm semelhantes na terra. A solidão é
o modo subjetivo de experimentar o que, em Génesis 1, se afirma de modo
solene e objetivo: que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus.
Diríamos que esta declaração expressa o modo como Deus vê o homem (à
sua imagem e semelhança), enquanto a de Génesis 2 traduz como o homem
se vê nesta terra: só, sem outro que se lhe assemelhe. Portanto, a solidão
expressa a consciência do seu caráter excecional no mundo.
Um exemplo claro da consciência da singularidade do ser humano
encontramo-lo na linguagem usada no Génesis para descrever o ato conjugal.
Fala-se de «conhecimento»: «Adão conheceu Eva, sua mulher» (Gen 4, 1).
Não se usa tal expressão referida aos animais. S. João Paulo II observará que,
com o termo «conhecimento», o relacionamento conjugal «foi elevado e
introduzido na dimensão específica das pessoas»[61]. Isto é, o termo usado
permite manter aquele ato humano dentro da visão global do homem, até
então delineada e assumida dentro do que S. João Paulo II denomina
«“arquétipo” do nosso modo de representar o homem corpóreo, a sua
masculinidade e a sua feminilidade e portanto o seu sexo»[62].
Mas essa solidão inicial do ser humano (homem e mulher) não deve ser
entendida como isolamento ou fechamento. Num comentário à teologia do
corpo, os autores insistem na ideia de que, para S. João Paulo II, essa solidão,
expressão subjetiva de se ser imagem e semelhança de Deus, traduz uma
abertura especial ao Criador: «A solidão original é abertura ao Absoluto; é o
alegre privilégio de estar situados face a face com o Dador original que criou
o universo»[63]. Traduzindo por outras palavras: Adão (e Eva) estava(m) só(s)
mas não se sentia(m) órfão(s). Faltavam «irmãos», mas não o Pai.
O livro do Génesis dá claras indicações de que ser criado à imagem e
semelhança de Deus aponta para a filiação divina de Adão. Em Génesis 3, 5,
afirma-se que Adão gerou «um filho à sua imagem e semelhança». Por isso, a
solidão de Adão e Eva é um modo de reafirmar a sua condição única, entre as
criaturas visíveis, de serem filhos do Criador. Não são «apenas» criaturas,
mas filhos. S. João Paulo II, nas catequeses, não insiste muito neste tema,
embora a ele se refira quando faz notar o estado em que os primeiros homens
foram criados:
«Os primeiros versículos da Bíblia […] falam não apenas da criação do mundo e do homem no
mundo, mas também da graça, isto é, da comunicação da santidade, do irradiar do Espírito, que
produz um especial estado de “espiritualização” naquele homem que, de facto, foi o primeiro. Na
linguagem bíblica, isto é, na linguagem da Revelação, a qualificação “primeiro” significa
precisamente “de Deus”: “Adão, filho de Deus” (cfr. Lc 3, 38)»[64].

Neste texto, S. João Paulo II está a referir-se ao estado de graça – à


participação da vida íntima de Deus – de que desfrutavam Adão e Eva antes
do pecado[65]. Mas, na verdade, tudo o que integra a natureza humana torna o
homem apto para ser chamado «filho de Deus». Certamente o espírito é o que
melhor reflete o Criador, mas o corpo do homem também pode ser reflexo da
sua origem. Obviamente, esta afirmação requer uma cuidadosa explicação,
porque Deus não tem corpo.
7.2. Uma criatura excecional: autoconhecimento, autodeterminação e
significado do corpo
Portanto, o homem está «só» porque é distinto de toda a criação visível.
Quais são os traços que o separam das restantes criaturas e que o fazem
imagem do Criador? S. João Paulo II assinala três características para definir
a subjetividade humana, o seu caráter único, deduzidas a partir da leitura dos
primeiros capítulos do Génesis. Entre elas, a que para o leitor será,
certamente, mais surpreendente é a terceira. São elas: (i) o autoconhecimento,
(ii) a autodeterminação, e (iii) o conhecimento e significado do corpo.
a) O autoconhecimento
«O homem deu nomes a todos os animais domésticos, às aves do céu e a todas as feras selvagens.
Mas não encontrou uma auxiliar semelhante a ele» (Gen 2, 20).
Ao dar um nome às restantes criaturas – isto é, ao conhecê-las –, verifica
quão diferente é do resto da criação e, assim, descobre também o que ele não
é, apesar de possuir um corpo material como as outras criaturas a que deu
nomes. Portanto, o conhecimento do mundo permite igualmente um certo
autoconhecimento. S. João Paulo II acrescenta ser legítimo supor que, ao
mesmo tempo, capte algo do que ele é (não só do que não é), ainda que
apenas venha a dar um nome a si próprio (‘ish) perante a mulher (‘ishá): por
isso, só diante dela parece concluir o que é ou, com mais precisão, quem é.
Mais reforçado ficará esse autoconhecimento quando Adão e Eva gerarem,
pela primeira vez, um filho, já depois do pecado original. A criança permitirá
ao homem e à mulher ampliar o conhecimento da feminilidade e da
masculinidade com a maternidade e a paternidade (capacidades incluídas no
seu ser). Ambos descobrem na maternidade e na paternidade um elemento
essencial da feminilidade e da masculinidade. Só através do «conhecimento»
conjugal do outro cada um deles pode ficar a conhecer, «com a ajuda do
Senhor», a enorme capacidade que o seu ser – o seu corpo – contém de gerar
outro ser humano. Quando se justifica, em Génesis 3, 20, que Adão dá o
nome «Eva» à sua esposa «por ser a mãe de todos os homens», torna-se
explícito que a geração acrescentou um conhecimento «novo» do outro. Por
isso, é-lhe dado um nome que expressa um novo conhecimento[66].
Em resumo, o primeiro elemento que distingue o homem das restantes
criaturas e o faz experimentar a sua condição única na terra é o
autoconhecimento.
b) A autodeterminação[67]
«O Senhor Deus deu ao homem este mandamento: “Podes comer de todas as árvores do jardim.
Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela
comeres terás de morrer”» (Gen 2, 16-17).
Já insistimos que a solidão do homem reflete o seu caráter excecional na
criação visível. Ela indica uma relação única com Deus. Ora, devido à
semelhança com Ele, torna-se possível um pacto do Criador com o homem,
pois o homem desfruta do dom da liberdade. Pelo contrário, os animais não
recebem de Deus qualquer mandamento, pois não têm capacidade para
obedecer livremente, sem estar totalmente condicionados ou por fatores
externos ou pelas suas necessidades internas. Portanto, Deus pode estabelecer
uma aliança de amor com o homem, isto é, um pacto, em que lhe peça que
use a liberdade para exercitar uma total confiança nas suas palavras e uma
obediência filial: o homem deverá multiplicar-se, dominar e cuidar a terra, e
não comer de uma determinada árvore do Paraíso terrestre. Para expressar a
capacidade de autodeterminação do homem, S. João Paulo II afirma que o
homem, na sua solidão, descobre o seu papel de «partner do Absoluto»[68].
Tudo isto tem muitas consequências, em concreto sobre o modo de
apresentar a lei de Deus: pelo facto de solicitar ao homem uma resposta
concreta através do seu comportamento, compreende-se que Deus conta com
a liberdade humana, trata-o como um ser livre. É legítimo extrair esta mesma
conclusão de qualquer aspeto da lei moral; também, portanto, da ilicitude
moral dos contracetivos: trata-se de uma proibição moral vinda d’Aquele que
só quer o bem do homem e que, por conseguinte, conta com a liberdade
humana para aderir ao preceito. Quando o homem responde «sim» a Deus,
seja em que matéria for, colabora com Ele na conquista do bem que lhe é
próprio, pois é por esse motivo que Deus requer a sua liberdade: para
favorecer o próprio bem do homem.
Ao longo das suas catequeses, S. João Paulo II afirmará recorrentemente
que Adão e Eva eram livres com a «liberdade do dom». A expressão
«liberdade do dom» não é, uma vez mais, uma expressão intuitiva. Na minha
opinião, seria mais percetível se fosse traduzida por «a liberdade que se
expressa como dom»: eram tão livres, tão donos de si, que se podiam doar
totalmente, um ao outro. O uso mais pleno da liberdade consiste,
paradoxalmente, no doação de si, sempre que se entenda a liberdade não
como mera capacidade de escolha, mas sim como compromisso efetivo que
alcança todo o nosso ser. Certamente, se eu decido almoçar às três da tarde,
exerço um ato de liberdade. Mas não há dúvida que o alcance da minha
liberdade é muito mais manifesto se decido arriscar a vida para retirar uma
criança de um edifício em chamas. E ainda exerço uma liberdade maior se
opto por entregar toda a minha vida a Deus ou a uma mulher, de forma
irreversível. Por agora, basta que se retenha o conceito de que Adão e Eva
eram livres com a liberdade do dom, isto é, maximamente livres[69].
c) O conhecimento e o significado do corpo
Centremo-nos agora num dos elementos mais decisivos das catequeses: o
papel do corpo. Consideremos o seguinte versículo do Génesis:
«O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e guardar» (Gen
2, 15).

Como é que o homem se apercebe do que não é, como é que se apercebe


da sua diferença em relação aos animais? «Pelo corpo», responde S. João
Paulo II. Ele «é corpo entre corpos»[70]. Ao comparar-se com os animais,
poderia, eventualmente, ter concluído que era «mais um» entre eles, de algum
modo semelhante a eles. Mas a conclusão não foi essa: a experiência do
próprio corpo não só não o levou a uma identificação com nenhum animal,
como o levou a concluir que se encontrava «só». É o corpo que o faz
entender, de forma clarividente, que está só no mundo. S. João Paulo II
afirma ser necessário vincular a solidão originária com o conhecimento do
corpo, pois por esse conhecimento o homem não hesita em separar-se dos
animais e reconhecer-se como «pessoa». Tem consciência do sentido do
próprio corpo «mediante o qual o homem se distingue de todos os animalia e
“se separa” deles, e também mediante o qual ele é pessoa»[71]. S. João Paulo
II reafirma, com uma bela expressão, a singularidade do corpo humano:
«Este, de facto, tinha sido, por assim dizer, marcado como fator visível da
transcendência, em virtude do qual o homem, enquanto pessoa, superava o
mundo visível dos seres vivos (animalia). Nesse sentido, o corpo humano
era, desde o princípio, testemunha fiel e verificação sensível da “solidão”
originária do homem no mundo»[72].
Mas de que modo concreto consegue o homem captar o abismo que o
separa dos animais através do corpo? As respostas podem variar[73]. A nós
interessa-nos seguir o raciocínio do autor das catequeses.
A consciência do corpo que singulariza o homem dos animais advém-
lhe, em boa parte, de ele executar um trabalho: a consciência de uma
perceção especial do significado do corpo «assenta exatamente no facto de só
ele [o homem] ser capaz de “cultivar a terra” e de “a submeter”»[74]. O
trabalho parece, assim, formar parte da definição do homem[75], pois a
Escritura apresenta-o como um elemento essencial na configuração de quem
ele é.
«A estrutura deste corpo é tal que lhe permite ser o autor de uma
atividade verdadeiramente humana. Nessa atividade, o corpo expressa a
pessoa»[76]. Pelo trabalho humano, é possível olhar para o corpo como
expressão da subjetividade humana. É certo que no homem há um elemento
imaterial – a alma, criada diretamente pelo «sopro» de Jahvé –, mas o corpo
não é um acessório, não é um elemento irrelevante na definição da pessoa
humana. Antes pelo contrário, é parte essencial do ser humano[77].
Uma das ideias fortes das catequeses é a afirmação de que o corpo não é
algo que se tem, mas algo que se é.
Para bem entender a importância do que aqui se afirma, será necessário
determo-nos no mistério da Encarnação. Não há dúvida que, como nos foi
comunicado na Revelação, o Verbo encarnou como consequência da infeliz
queda de Adão e Eva. No entanto, na sua infinita presciência, Deus sabia que
tal haveria de suceder. E, quando criou o homem à sua imagem e
semelhança, criou-o, corpo e alma, com a potencialidade de manifestar a
natureza divina. Deus é Espírito, mas pensou no homem como um ser capaz
de vir a ser imagem visível do invisível[78]. «Quem Me viu, viu também o
Pai» (Jo 14, 9), responde Jesus a Filipe. A resposta é surpreendente: é como
se o Senhor explicasse a Filipe não só que nada O separa do Pai, mas
também, como consequência, que mesmo através do seu corpo (que eles
veem, ouvem e tocam) podem chegar ao Pai. Naquele momento, o Corpo de
Cristo ainda não tinha sido glorificado, e o Senhor insiste na capacidade de
todo o seu ser, ainda passível, revelar o Maximamente Invisível. A grandeza
do ser humano, corpo e alma, só poderá ser vislumbrada neste mistério do
Deus Encarnado. Só contemplando a Cristo podemos convencer-nos da
importância de considerar o corpo como parte essencial do nosso «eu».
Um dos erros que está na base dos desvios morais no campo da
sexualidade tem que ver com a ideia puramente instrumental do corpo: «eu
tenho um corpo, que é meu, só meu, e faço com ele o que quero…». Sem
negar o domínio sobre o corpo, vale a pena perguntar o que se segue a tais
afirmações: «quando fazes com o corpo o que queres, o que é que acontece
contigo, com a tua pessoa?» Eu posso estragar uma camisola sem que me
suceda nada (fico um pouco mais pobre, se a camisola era boa); mas é
impossível adotar uma atitude de semelhante neutralidade para com o corpo.
Aliás, o sentido comum diz-nos precisamente isto: se alguém der uma
bofetada a outra pessoa e se justificar afirmando que se tratou apenas de um
encontro entre a própria mão e a cara do ofendido, e por isso não há razões
para que a pessoa fique melindrada, não terá muitas possibilidades de
convencer a vítima. Ou, em sentido contrário, se alguém sorri para outro, este
ficará reconfortado no seu ser pela atenção e pela complacência que crê
encontrar em quem lhe sorri[79].
Não é raro que, no nosso tempo, haja pessoas que se comportem como se
fossem Dorian Gray, a enigmática personagem de Wilde: ia fazendo o mal,
mas nada no seu corpo refletia a mínima perturbação, ao contrário das
horrendas transformações que se iam dando misteriosamente no quadro que
guardava na sua casa. Muitos optam por determinadas ações julgando que
elas não atingem o seu «eu» mais profundo: são infiéis à esposa mas
«continuam a amá-la», vivem luxuriosamente mas consideram que são
«plenamente donos de si». Não se apercebem de que o que fazem «com o
corpo» põe em jogo toda a sua pessoa[80].
Vale a pena ler de que modo Bento XVI, na sua primeira encíclica,
explica a importância deste tema:
«Hoje não é raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversário da corporeidade;
a realidade é que sempre houve tendências neste sentido. Mas o modo de exaltar o corpo, a que
assistimos hoje, é enganador. O eros degradado a puro “sexo” torna-se mercadoria, torna-se
simplesmente uma “coisa” que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se
mercadoria. Na realidade, para o homem, isto não constitui propriamente uma grande afirmação
do seu corpo. Pelo contrário, agora considera o corpo e a sexualidade como a parte meramente
material de si mesmo a usar e explorar com proveito. Uma parte, aliás, que ele não vê como um
âmbito da sua liberdade, mas antes como algo que, a seu modo, procura tornar simultaneamente
agradável e inócuo. Na verdade, encontramo-nos diante duma degradação do corpo humano, que
deixa de estar integrado no conjunto da liberdade da nossa existência, deixa de ser expressão viva
da totalidade do nosso ser, acabando como que relegado para o campo puramente biológico.
A aparente exaltação do corpo pode bem depressa converter-se em ódio à corporeidade. Ao
contrário, a fé cristã sempre considerou o homem como um ser unidual, em que espírito e
matéria se compenetram mutuamente, experimentando ambos precisamente desta forma uma nova
nobreza»[81].

A meu ver, este longo texto responde satisfatoriamente, por si só, às


perguntas iniciais do capítulo. O justo relevo dado ao corpo também é
importante para conhecer bem quem somos: por isso é tão decisivo «ouvir»
ou «ler» o que o corpo humano «diz» sobre o nosso ser. Continuemos, ainda,
na companhia de Bento XVI:
«Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero insistir num
ponto que – a meu ver –, hoje como ontem, é descurado: existe também uma ecologia do homem.
Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe
apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a
si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando
respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não criou
por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana»[82].

Quando estudarmos a imoralidade dos contracetivos e a legitimidade da


continência periódica, verificaremos a justeza destas palavras.
Numa outra intervenção, Bento XVI fala mesmo de um significado filial
do corpo:
«O corpo fala-nos de uma origem que nós não conferimos a nós mesmos. “Vós tecestes-me no
seio da minha mãe”, diz o Salmista ao Senhor (Sl 139, 13). Podemos afirmar que o corpo, ao
revelar-nos a Origem, traz consigo um significado filial, porque nos recorda a nossa geração que,
através dos nossos pais que nos transmitiram a vida, remonta a Deus Criador. Somente quando
reconhece o amor originário que lhe deu a vida, o homem pode aceitar-se a si mesmo, pode
reconciliar-se com a natureza e com o mundo»[83].

Resumamos o que foi exposto até aqui. Quando o Génesis nos transmite
a «solidão» do homem, afirma, com essa palavra, o caráter excecional desta
criatura de Deus, feita à sua imagem e semelhança. Quando se concretiza que
o autoconhecimento e a autodeterminação evocam essa semelhança, ninguém
se admira, pois Deus também «conhece» e «quer» (ama), ainda que tais atos
tenham, no Criador, características para nós pouco compreensíveis. No
entanto, além destas duas propriedades espirituais, existe um terceiro
elemento que define o ser humano na sua singularidade: o corpo. Será
possível afirmar que também pelo corpo o homem é semelhante a Deus,
sendo Deus absolutamente espiritual? Por mais estranho que pareça, a
resposta é afirmativa. Mas, para entender bem essa afirmação, é preciso
estudar o significado da unidade/dualidade originária, tema do seguinte
capítulo.
Não quero, no entanto, deixar de assinalar que, na minha opinião, se o
que nos distingue no mundo das criaturas visíveis são as três características
referidas, qualquer comportamento moralmente bom deverá potenciar essas
características. E qualquer comportamento mau sê-lo-á precisamente porque
atenta contra elas de algum modo. No momento próprio, recordaremos como
a sexualidade conjugal retamente vivida reforça o autoconhecimento, a livre
determinação dos esposos e o sentido mais profundo do próprio corpo. Num
casal fiel e aberto à vida, as relações favorecem o conhecimento próprio e do
cônjuge; favorecem, também, a autodeterminação, pois o amor exige uma
adaptação aos ritmos um do outro, adaptação essa que requer ser mais dono
de si para se entregar quando o outro pode receber; e, por fim, o casal
apercebe-se de como o corpo pode estar ao serviço da vocação mais essencial
do ser humano, a da entrega total ao outro. Este último aspeto será melhor
compreendido mais adiante. Para já, basta referir que o casal «sabe» (ou
«podia saber»…) que o seu ato conjugal pouco tem que ver com as relações
animais. Como veremos nos últimos capítulos do livro, esse ato pode e deve
ser um ato humanamente riquíssimo (o corpo está ao serviço do amor-
doação); pode e deve ser um ato profundamente «espiritual», uma cooperação
direta com Deus.
Pelo contrário, as opções de luxúria invertem profundamente essas
características. Talvez não seja difícil reconhecer que uma vida que atenta
contra a castidade mostra que se desconhece o valor da pessoa (pois esta é
usada como um mero «meio para») e se desvaloriza o corpo (que é visto
como algo que se usa para obter ou dar prazer), além de denotar pouco
domínio pessoal (dificuldade na autodeterminação).

8.
A unidade e a dualidade
originárias: a comunhão de pessoas

No segundo relato da criação, narra-se a criação da mulher. A solidão de


Adão, agora entendida no seu sentido mais óbvio, vai ser por fim
ultrapassada quando tiver Eva diante de si. As palavras centrais do relato são
estas:
«Então o Senhor Deus fez descer sobre o homem um sono profundo, e ele dormiu. Tomou uma
das suas costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, o
Senhor Deus modelou uma mulher e apresentou-a ao homem. Ao vê-la, o homem exclamou: “Esta
é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido
tirada do homem.” Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os
dois serão uma só carne» (Gen 2, 21-24).

Basta dar crédito ao relato para aniquilar imediatamente qualquer ideia


negativa sobre a diferenciação sexual. Deus criou o ser humano como homem
e mulher. A riqueza do ser humano está distribuída por dois sexos. Depois da
experiência e do significado da solidão originária, S. João Paulo II passa a
estudar a segunda grande experiência humana descrita no Génesis: a
experiência de ter diante de si alguém do outro sexo, alguém que partilha a
mesma natureza, ainda que com uma manifestação não exatamente igual mas
sim complementar; e, derivadamente, fala a seguir da experiência, intrínseca
a essa complementaridade, de poderem constituir uma certa unidade, «uma só
carne».
Mas, no ser humano, até que ponto a diferenciação sexual é decisiva e
verdadeiramente enriquecedora? Mais ainda: não será uma conquista da
civilização atenuar ou até eliminar as diferenças entre o homem e a mulher,
para que não sejam elas a condicionar o tipo de relação que se deseja ter com
alguém? Não será uma conquista da civilização libertar-se da «biologia» e
adotar, como seres livres, o comportamento sexual que se deseje assumir?
Por que é que tem de ser socialmente reconhecida apenas a atração entre
homem e mulher e não a que se dá entre pessoas do mesmo sexo? De um
modo cru, Robert P. George expõe a questão à qual nos interessa responder (e
à qual responde brilhantemente no seu livro) deste modo: por que razão os
parceiros do mesmo sexo não se poderão amar solicitamente ou por que razão
o seu amor será «de certa forma inferior à “expressão sexual” orgásmica de
casais que “ajustam a canalização de outra maneira”»[84]? Apesar de a
expressão raiar a brejeirice, será «apenas» uma questão da «canalização»?
Será o diferente «ajustamento da canalização» irrelevante para a união de
pessoas? As catequeses deste segundo elemento da experiência originária
oferecem uma boa base antropológica para responder à ideologia de género e
a outras questões anexas. Retenha o leitor que, primeiro, procuraremos extrair
lições acerca da criação dos dois sexos, e, depois, estudaremos a questão da
unidade dos dois, ainda que apenas com uma primeira abordagem. Em
capítulos sucessivos, o assunto voltará a surgir.
8.1. Homem e mulher: duas experiências complementares
da corporeidade
No belo e simples relato da criação de Eva, transcrito no início deste
capítulo, há duas ou três deduções que se tornam evidentes: a criação da
mulher é, como no caso do homem, de absoluta iniciativa divina. É certo que
antes se afirma que Adão se sente só. Falta-lhe alguém. Mas Adão sente-se só
não porque lhe falte alguém para dar largas a uma paixão descontrolada, algo
impensável para ele antes do pecado original. Em certo sentido, também não
lhe falta amor, pois sabe que é amadíssimo por Deus. Mas Adão comprova
que não se pode doar a outra criatura, não tem ninguém a quem difundir o
amor recebido. E ele foi criado com um chamamento para amar, para criar
comunhão com alguém. Não é imaginável que passasse pela cabeça de Adão
«reivindicar» a Deus alguém mais para companhia, e menos ainda que
«idealizasse» a mulher antes de a ver. A criação da mulher é de iniciativa
divina, ainda que o Criador tenha querido que o primeiro homem registasse e
transmitisse à humanidade futura a experiência da solidão: sem a mulher,
alguma coisa não estava bem nele. Até nem parecia saber exatamente quem
era, mas apenas o que não era, como já se explicou antes.
Talvez esta breve constatação possa servir também de advertência ao
homem de hoje: sem um conhecimento e abertura ao outro sexo, aos seus
valores intrínsecos, o homem ou a mulher ficam mais pobres, com um fraco
conhecimento de si mesmos. É o que nos explica o Papa Francisco: «Para se
conhecer bem e crescer harmoniosamente, o ser humano tem necessidade da
reciprocidade entre homem e mulher. Quando isto não se verifica, as
consequências são evidentes. Somos feitos para nos ouvir e ajudar
reciprocamente. Podemos dizer que sem o enriquecimento mútuo neste
relacionamento – no pensamento e na ação, nos afetos e no trabalho, mas
também na fé – os dois não conseguem nem sequer entender até ao fundo o
que significa ser homem e mulher»[85]. Portanto, tanto no terreno humano
como no sobrenatural, temos necessidade uns dos outros. Valeria a pena
meditar a fundo nas consequências de tudo isto.
Um outro dado, mais ou menos óbvio da leitura do relato, é a constatação
de que ambos, homem e mulher, têm a mesma natureza. O pormenor da
costela, por mais dificuldades de interpretação que cause, não sobra, é mesmo
relevante, pois deixa transparecer a íntima ligação entre os dois e o facto de
partilharem uma mesma «matéria»[86]. S. João Paulo II usará uma expressão
mais complicada para se referir a esse aspeto comum. Afirma existir uma
«homogeneidade de todo o ser de ambos»[87], mas, por esta ser
particularmente evidente no corpo, falará de «homogeneidade somática»:
apesar das diferenças físicas, ela, logo no primeiro encontro, é para Adão
«osso dos meus ossos». Essa mesma homogeneidade será reconhecida na
transmissão aos descendentes[88].
A homogeneidade somática parece uma constatação óbvia, sem mais
consequências. E, porém, é bem mais importante do que parece à primeira
vista.
A reflexão sobre essa homogeneidade, comum a todos os seres humanos,
deveria facilitar o entendimento entre os povos, pois com frequência, nos
conflitos, o outro é visto quase como um alienígena, com quem nada temos
em comum. Um gravíssimo erro! Mas o que mais interessa agora é considerar
que qualquer relação entre homem e mulher não pode esquecer este dado.
Quanto mais diferentes nos vemos, mais fácil é instrumentalizar a pessoa. É
sintomático que um rapaz que não se importa de ter um relacionamento
frívolo com as raparigas defenda a sua irmã de rapazes com atitude idêntica à
sua. Não será necessário que veja as outras raparigas em primeiro lugar como
irmãs?
No quinto ciclo das catequeses, há um comentário ao Cântico dos
Cânticos que, muito embora não apele diretamente à homogeneidade (ser
irmão tem muito mais em comum do que a homogeneidade somática), pode
ser relacionado com este dado antropológico, na medida em que mostra a
importância de captar o que é comum. Por essa razão, acrescento aqui os
parágrafos que se seguem, também com a ideia de que o leitor não perca de
vista consequências práticas imediatas.
Nesse comentário – dizia –, o Papa faz notar que os noivos (ou esposos)
do Cântico dos Cânticos se dirigem um ao outro com os termos «irmão» ou
«irmã» (cfr. Ct 8, 1-10). Ambos parecem querer como que retroceder no
tempo, expressando o desejo de terem tido um passado comum, de terem
vivido sempre juntos, como irmãos. Esta manifestação de um amor puro,
total e desinteressado entre os noivos tem, certamente, consequências. Em
concreto, um dos modos de tornar de algum modo realidade a entrega de si ao
outro, incluindo nessa entrega o «passado» que se deseja comum, é a
proteção da virgindade. É um modo de «dizer» que não foram de mais
ninguém, que há uma importante dimensão do seu passado que é comum aos
dois. Mas, para a questão que nos ocupa agora, é interessante o comentário de
S. João Paulo II: «Neste ponto, podem vir à nossa mente as frases de Génesis
2, 23-25, que parecem revelar pela primeira vez a experiência do “eu”
feminino e masculino, nascida do sentimento comum de pertença ao Criador
como Pai comum. Na sua presença, com toda a verdade do seu corpo, da
masculinidade e da feminilidade, eram, sobretudo, “irmão” e “irmã”, na união
da mesma humanidade»[89].
Pode parecer estranha esta observação aplicada aos noivos. Ajudará
muito, no esforço por evitar a instrumentalização da pessoa, desejar ver-se
como irmãos: sobre essa base – sobre o «sentimento comum de pertença ao
Criador como Pai comum» –, torna-se mais fácil edificar um relacionamento
puro, o mais afastado possível da instrumentalização do outro, e que oriente
para a comunhão de pessoas como esposos. Em resumo, reconhecer e assumir
convictamente o que une homem e mulher, o que é comum, é muito mais
relevante do que possa parecer à primeira vista. É relevante considerar a tal
«homogeneidade somática» e, partindo dela, reforçar a clara ideia de uma
origem comum, de um mesmo Pai e Criador.
Diante de Eva, Adão adquire um conhecimento mais exato de si próprio,
ao mesmo tempo que conhece a mulher. A homogeneidade somática é um
conceito que apela às semelhanças. Mas, obviamente, apesar das
semelhanças, Adão e Eva são somaticamente diferentes. Há dois sexos. Por
isso, também há, como vimos, dois nomes semelhantes (‘ish e ‘ ishá). S. João
Paulo II afirma com clareza que a masculinidade e a feminilidade expressam
não só o duplo aspeto da constituição somática do ser humano (a dupla
modalidade de «ser corpo») – o que é óbvio –, mas também
«são como que duas “encarnações” da mesma solidão metafísica diante de Deus e do mundo –
como duas formas de “ser corpo” e ao mesmo tempo ser homem, que se completam
reciprocamente – como duas dimensões complementares da autoconsciência e da
autodeterminação e, ao mesmo tempo, como duas consciências complementares do significado do
corpo»[90].
A expressão «duas consciências complementares de “ser corpo”» tem
uma enorme transcendência. S. João Paulo II sublinha a sua importância com
uma sintética conclusão: o sexo «é, em certo sentido, “constitutivo da pessoa”
(não apenas um “atributo da pessoa”)»[91].
8.2. Sobre a ideologia de género
Aprofundemos nesta ideia. Qualquer leitor entende que S. João Paulo II
quer chamar a atenção não só para a importância que a sexualidade tem na
pessoa como também para o risco de ser mal avaliada, reduzida a um mero
atributo, como é a cor dos olhos ou a altura da pessoa. Não é que essas
características não tenham importância, mas não configuram tanto a pessoa
como o facto de se ser homem ou mulher. Basta considerar que o nome da
pessoa é habitualmente adaptado ao sexo. Ninguém chama Ana a um rapaz.
Curiosamente, é habitualmente à Igreja que se acusa de dar pouca
importância ao papel da sexualidade na vida da humanidade. Será assim? A
resposta é negativa, mas é fundamental entender bem a sexualidade como
constitutiva da pessoa.
Uma consequência do lamentável erro de não a considerar assim é a
ideologia de género. Em traços gerais, essa ideologia afirma que, apesar das
inquestionáveis diferenças biológicas entre o homem e a mulher, o realmente
decisivo no âmbito da sexualidade é o comportamento livremente assumido,
com as suas variantes: heterossexual masculino ou feminino, homossexual ou
lésbica, bissexual…
Por um lado, a biologia é praticamente irrelevante na definição da
sexualidade assim entendida; por outro, a sexualidade fica reduzida à atração
e à atividade sexuais.
Opera-se assim uma dupla redução: por um lado, e começando pelo segundo
aspeto referido, toda a sexualidade é essencialmente restringida à orientação
sexual que se assume e que até pode variar com o tempo (portanto, ficam de
fora da sexualidade modos de fazer ou pensar mais masculinos ou
femininos); por outro, essa orientação não deve ficar condicionada pelo facto
de se ser homem ou mulher (portanto, tornam-se quase irrelevantes os dados
biológicos, embora não totalmente, porque o nome das variantes é dado em
função desses dados: assim, por exemplo, a homossexualidade é a atração por
pessoas do mesmo sexo biológico).
Esta posição manifesta assim um desprezo absoluto pela reflexão
filosófica apoiada nos dados do ser. Traduzindo esta posição «em miúdos»,
poder-se-ia ouvir: «não me importa o que eu sou sexualmente, mas apenas o
que faço ou o que me atrai sexualmente» (e, de modo mais radical: «eu sou
apenas o que faço ou o que me atrai»).
Em certo sentido, esta é uma posição comparável a quem afirmasse que é
filho de quem quiser. A filiação seria, então, uma opção da pessoa,
selecionada pela própria e não algo que é dado com a existência. Certamente,
uma pessoa pode renegar as consequências da sua filiação, e há
circunstâncias variadas (dramáticas ou não) que levam a pessoa a ver como
pai ou mãe quem não é seu pai ou mãe biológicos. Mas seria insensato
afirmar que é totalmente indiferente quem a gerou. Se, apesar disso, surgisse
uma ideologia que defendesse a primazia da filiação opcional, determinando
ser essa a decisiva, que importância teria então aquilo a que habitualmente
chamamos «filiação»? Seria distinguível a figura do pai da de um amigo,
tutor, coach ou mestre? Isto é, a filiação assim entendida (como opcional)
não ficaria então empequenecida com respeito à filiação natural? Quantos
«pais» se poderia ter? Durante quanto tempo duraria a filiação a este ou
àquele «pai»?
O exemplo, com as suas limitações, serve simplesmente para explicar
como, na ideologia de género, se acaba por empequenecer o valor da
sexualidade: se, à primeira vista, a classificação em géneros sexuais parece
ampliar a importância da sexualidade ao ponto de ser ela a definir a pessoa
(«fulano é homossexual»), na realidade, a sexualidade assim entendida é
apenas uma parcela (e, em muitos casos, alterada) da autêntica sexualidade da
pessoa, do seu ser homem ou mulher. No fundo, a sexualidade deixa de ser
algo constitutivo da pessoa para passar a ser algo secundário, uma mera
opção da liberdade sem condicionalismos biológicos, um mero tender
sexualmente para um tipo de pessoas ou para um tipo de atividade sexual (ora
isso pertence ao campo do atuar e não do ser do homem, que, insisto, inclui o
dado biológico). Encontramo-nos, pois, diante de um dualismo: por um lado,
o corpo, e, por outro, o mundo da liberdade – que em nada deve estar
condicionado pelo que a pessoa é sexualmente falando (homem ou mulher).
Quando não se entende a sexualidade como algo que determina toda a
personalidade («duas consciências complementares do significado do corpo»)
e se reduz a sexualidade a uma das suas dimensões (ao atuar sexual) que fica
à mercê da mera opção sem limites, destrói-se o seu valor intrínseco com a
pretensão de transferir, de modo quase exclusivo, para o âmbito da liberdade
o que natural e predominantemente pertence ao âmbito do que a suporta. É
inegável que a pessoa se pode comportar (fisicamente falando), por exemplo,
como homossexual. Mas esse comportamento não é indiferente ao que a
pessoa é sexualmente falando, não a melhora como homem ou mulher.
Que me perdoem os leitores mais um exemplo. Se alguém defendesse
que pertencer a uma espécie (homem, macaco, porco, etc.) devia ser resultado
de uma opção e se, apoiado em semelhante delírio, optasse por ser macaco
(pondo de parte, neste momento, a impossibilidade real de uma tal
transformação), comendo amendoins, vivendo em árvores, estando
totalmente nu, etc., isto é, se transferisse para o âmbito da liberdade o que
pertence à condição sine qua non para que ela exista – ser humano, dotado de
inteligência e vontade –, acabaria por empequenecer a sua condição, com o
pretexto de a exaltar[92]. Nem todas as opções livres são boas.
Passemos a palavra a Bento XVI, que, com a sua habitual clareza, se
refere a
«uma pseudoliberdade que se baseia numa banalização do corpo, que inevitavelmente inclui a
banalização do homem. O seu pressuposto é que o homem pode fazer de si o que quer: o seu
corpo converte-se deste modo em algo secundário, manipulável desde o ponto de vista humano,
que se pode utilizar como se quer. A libertinagem, que se apresenta como descoberta do corpo e
do seu valor, é na realidade um dualismo que despreza o corpo, deixando-o por assim dizer fora
do autêntico ser e da autêntica dignidade da pessoa»[93].
Aqueles que assumem esta atitude parecem afirmar: «não me interessa o
corpo enquanto parte do meu “eu”, apenas quero usá-lo».
Em resumo: na ideologia de género, defende-se a ideia de que, a par do
sexo, limitado à diferenciação biológica, haveria o género, definido pelo
comportamento sexual que cada um escolhe. Os seus defensores aceitam que
essa escolha possa ser condicionada pela cultura, mas nunca pela biologia.
Qual é, então, o erro? Ainda que haja certamente uma influência da cultura
no comportamento humano, não se pode afirmar que a biologia careça de
relevo para a identidade sexual. Homem e mulher, como vimos, são
diferentes não só fisicamente como também no modo de sentirem o mundo
(como «duas dimensões complementares da autoconsciência e da
autodeterminação» e, ao mesmo tempo, como «duas consciências
complementares do significado do corpo») Por isso, é muito interessante
delinear não só as características do «génio feminino» – adotando a expressão
de S. João Paulo II[94] – como também as do «génio masculino». Vale a pena
não esquecer que o homem e a mulher podem satisfazer uma necessidade
fundamental do outro: a de se tornarem mutuamente conscientes de serem
chamados à comunhão, e de serem capazes da entrega mútua. Como veremos
ao estudar o significado esponsal do corpo, a sexualidade humana manifesta a
disposição para o outro quando este outro é de sexo diferente. Embora seja
necessário fundamentar melhor o que a seguir refiro, a opinião de alguns
pensadores (entre os quais me incluo) é a de que a relação de tipo
homossexual manifesta, sobretudo, um amor ao próprio «eu» na pessoa de
outro[95].
Contudo, na perspetiva da ideologia de género há, a meu ver, a
perceção correta de um dado. É um dado infeliz, mas real: há pessoas que
têm de facto comportamentos homossexuais, bissexuais, etc. Não desejo
entrar agora na génese de tais tendências. Mas tanto a doutrina da Igreja
como a ideologia referida admitem que alguém possa «querer» ter relações
com pessoas do mesmo sexo, sinta ou não essa atração. Existe, neste campo,
uma grande diferença entre os homens e os animais. Esta perceção de que
também no campo da sexualidade há no homem algo de muito diferente dos
animais é correta. Nos macacos ou nos cães, aqueles comportamentos não se
registam naturalmente. O homem, porém, tem a possibilidade de não viver a
sua sexualidade de acordo com o que biologicamente é. Pode optar por
alguma «criatividade» sexual ou ser induzido a ela por outros. Mas,
precisamente porque o sexo é constitutivo da pessoa, nem todas as variantes
sexuais são de igual valor. Todas podem obedecer ao exercício da liberdade
(entendendo «liberdade» em sentido fraco, isto é, como a possibilidade de
fazer «isto» ou «aquilo», e não como capacidade de atualizar a natureza
humana de acordo com a sua dignidade intrínseca), mas este exercício pode
opor-se ao que é constitutivo no homem. O homem «pode» atuar contra a sua
natureza. Pretender que todas as opções no comportamento sexual são
igualmente válidas é «esquecer» – como recordávamos com Bento XVI – a
dimensão corporal e sexuada do homem. E é, no fundo, anular a sexualidade
constitutiva reduzindo-a a um mero «atributo» descartável, absolutizando
arbitrariamente um aspeto parcial (a atração sexual).
Consulte o leitor a arrepiante história de Bruce Reimer, o rapaz vítima de
um dos expoentes da ideologia do género – o doutor John Money –, que
mudou o sexo de Bruce quando este tinha dois anos e tinha sido vítima de
uma desastrosa operação ao pénis. Fê-lo, com o consentimento dos pais,
tendo como fundamento a convicção de que a orientação sexual seria algo
meramente cultural e dependente da educação: Bruce serviria para
exemplificar essa tese. Não só lhe mudou os órgãos sexuais e lhe fez
«terapia» hormonal, como induziu os pais a «educar» a criança como
rapariga, apesar da sua resistência. Depois da adolescência, Bruce (ou
Brenda, como passou a ser chamado) acabaria por se suicidar, e anos mais
tarde também o irmão gémeo faria o mesmo. Quem conhecer a tragédia não
pode deixar de sentir uma profunda revolta[96].
Recentemente, o Papa Francisco deixou no ar uma interrogação bem
sugestiva a propósito da difusão da ideologia do género. No fundo, não
derivará ela da incapacidade de reconhecer e aceitar as diferenças do outro
sexo, com as suas riquezas intrínsecas? Eis as palavras do Papa: «Pergunto-
me se a chamada teoria do gender não é também expressão de uma frustração
e resignação, que visa cancelar a diferença sexual porque já não sabe
confrontar-se com ela. Sim, corremos o risco de dar um passo atrás. Com
efeito, a remoção da diferença é o problema, não a solução»[97].
8.3. A unidade dual
Centremo-nos um pouco mais na complementaridade dos dois sexos.
Que razões teria Deus para nos criar assim, sexualmente «duplos»?
S. Agostinho acrescenta um dado, talvez com um matiz politicamente
incorreto para a mentalidade hodierna. Afirma que a mulher foi dada ao
homem «para a geração dos filhos». Com uma visão influenciada,
provavelmente, pelo tempo em que viveu, defende que, se a mulher tivesse
sido criada de modo principal para colaborar no trabalho, teria sido preferível
outro varão. E chega a sugerir que, se se tratava apenas de retirar o varão da
sua solidão, bem poderia Deus ter criado outro homem, «pois quão mais
conveniente não é para a convivência e a conversa a reunião de dois amigos
do que a companhia de um homem e de uma mulher?»[98] Assim, para o bispo
de Hipona, parece claro que a mulher aparece no mundo para permitir a
geração dos filhos, «tal como a terra é uma ajuda para a semente, já que de
uma e outra nascem as plantas»[99]. Antes que o leitor – e, sobretudo, a leitora
– se insurja contra este modo de apresentar o plano divino, vale a pena refletir
sobre ele para pôr em relevo o que tem de nuclear. Pois, na realidade, há uma
verdade decisiva nestas afirmações. Onde melhor e mais facilmente se capta
a complementaridade dos sexos é na transmissão da vida: ambos os sexos
são necessários para alcançar esse dom.
O homem e a mulher necessitam um do outro para transmitir a vida (pelo
menos de modo natural, tal como sucedeu na humanidade até agora.
Abandonemos, para já, os problemas do tenebroso Admirável Mundo Novo,
de Huxley). É fundamental, a meu ver, reter uma verdade elementar que,
realmente, está presente nas palavras do bispo de Hipona: o amor conjugal
inclui, como um elemento específico seu, a possibilidade da transmissão da
vida. É esse fator que caracteriza de forma definitiva o amor entre os esposos
e distingue claramente tal amor de muitos outros, como o amor entre pais e
filhos, e lhe confere um estatuto singular. Mesmo que o modo de se expressar
de S. Agostinho possa levantar algum amuo, na sua essência é
profundamente correto. A vontade de doação entre Adão e Eva é tal que nos é
lícito afirmar que inclui em si a vontade de transmitir a vida, como expressão
de um amor sem reservas, de um amor que visa a eternidade. E, realmente,
desde o início, o Génesis fala do «crescei e multiplicai-vos» – um projeto
divino que, no ser humano, tem uma perspetiva muito distinta da mesma
ordem dada aos animais, porque deles não se diz que foram criados à imagem
e semelhança de Deus. O homem é chamado a colaborar com Deus (que cria
«do nada» cada alma) para multiplicar o número de pessoas, cada uma à
imagem e semelhança do Criador; como veremos, até no próprio processo da
geração o homem pode evocar essa imagem de Deus, sempre que o processo
for uma genuína expressão de um amor sem reservas, de um verdadeiro amor
espiritual que se traduz também corporalmente.
Ainda que possa parecer uma questão meramente teórica, poder-se-ia
especular se Adão teria reagido com a mesma alegria se, em vez de Eva,
comparecesse diante dele outro homem, por exemplo, uma imagem
confecionada pelo demónio. De acordo com a lógica da criação, seria
impossível que Adão tivesse uma reação semelhante à descrita. O homem e a
mulher sabem que são um para o outro pelo corpo. O corpo traz consigo o
apelo à doação mútua, precisamente pela sua complementaridade. O homem
e a mulher têm a mesma natureza, possuem uma «igualdade essencial do
ponto de vista da humanidade»[100] e, portanto, igual dignidade. No entanto,
não são idênticos. Se fossem iguais em tudo, poderiam ser companheiros,
poderiam formar uma «associação de colaboradores para o aperfeiçoamento
do mundo», mas nunca conseguiriam constituir uma unidade capaz de uma
virtualidade específica: o anúncio da fecundidade é a prova definitiva do que
Adão e Eva captam intuitivamente, isto é, do facto de ambos poderem
enriquecer o outro (e ficarem enriquecidos) pela entrega mútua. Ambos
obtêm um dom que nunca poderiam obter nem de modo isolado nem
colaborando como simples parceiros: o filho é uma nova existência, à sua
própria imagem e semelhança, com igual dignidade.
É óbvio que a constatação da complementaridade não se reduz ao âmbito
da geração dos filhos. Muitas tarefas humanas se veem enriquecidas pelo
facto de serem exercidas por homens e mulheres. Cada um traz o seu dom a
essas tarefas e, em muitos casos, a visão complementar ou as diferentes
sensibilidades sobre o modo de trabalhar é uma enorme mais-valia (sempre
que não se «masculinize» a mulher ou «feminilize» o homem, pois então
desapareceria a riqueza da complementaridade). Mas, admitindo com
entusiasmo que a riqueza dos dois sexos tem múltiplas manifestações, a
geração dos filhos é capital para se entender que os dois sexos são
complementares, no sentido em que ambos, com as suas diferenças, são
necessários para algo único: a transmissão da vida. Na transmissão da vida, a
complementaridade é particularmente verificável.
A dualidade sexual no ser humano é também decisiva para se poder
entender um pouco melhor o amor de Deus. Interessa-nos agora analisar o
amor humano entre homem e mulher como um modo de entender melhor o
próprio Deus. Uma teóloga contemporânea escreveu que se «poderia afirmar
que Deus não criou o homem como varão e mulher para gerarem novos seres
humanos, mas, precisamente ao contrário, eles têm essa capacidade de gerar
para perpetuarem a imagem divina que se reflete na sua condição
sexuada»[101]. Como é óbvio, é necessário acrescentar, para evitar confusões
rudes, que
«à geração eterna do Verbo de Deus não se podem atribuir qualidades humanas, nem a
paternidade divina possui carateres “masculinos” em sentido físico, contudo, o modelo absoluto de
toda a “geração” dos seres humanos no mundo deve ser procurado em Deus. [Por isso,] todo o
“gerar” na dimensão das criaturas encontra o seu primeiro modelo no gerar que em Deus é de
modo completamente divino, isto é, espiritual»[102].

Assim, não parece lógico afirmar que Deus tenha «inventado» o


matrimónio e, «depois», tenha recorrido a ele «para» ilustrar o amor
intratrinitário e o seu amor por nós. A sequência caminha em sentido
inverso. À imagem do seu amor infinito, Deus criou o ser humano como
homem e mulher, e «inventou» o casamento como ícone privilegiado do
amor (doação total, gerador de vida, etc.). A diferença de sexos, que permite
o complemento mútuo, é um caminho essencial, ou pelo menos muito
conveniente, para se captar o amor divino. Portanto, é preciso descobrir e
revalorizar tudo o que é genuinamente masculino e genuinamente feminino,
pois essa diferença, que faz referência ao que há de mais profundo no nosso
ser, sendo, pois, constitutiva da pessoa humana, é essencial pela sua
complementaridade, tendo em vista o arquétipo de um amor de doação[103].
Além de ajudar a entender o amor divino (voltaremos a esse ponto), a
diferença sexual não deixa de ser igualmente importante para se entender
outros atributos divinos, dado que o Criador, na revelação que fez de Si
próprio, quis recorrer a essa linguagem dual por Ele próprio «inventada». Na
sua obra Jesus de Nazaré, Bento XVI questiona-se sobre a razão que leva a
Bíblia a não se referir a Deus como «Mãe», mas apenas como «Pai». A
questão é tanto mais pertinente quando se considera que, em certas
expressões bíblicas, o amor de Deus é descrito com nomenclatura feminina:
«Como a mãe que anima o seu filho, também Eu vos confortarei» (Is 66, 13).
Que razões podem justificar esta opção do Deus das Escrituras para Se
descrever a Si próprio «apenas» como Pai? Bento XVI sugere uma hipótese:
«Porquê? Só como quem caminha às apalpadelas podemos procurar compreendê-lo.
Naturalmente, Deus não é homem nem mulher, mas sim Deus, o Criador do homem e da mulher.
As deusas-mães, que circundavam o povo de Israel bem como a Igreja do Novo Testamento,
revelavam uma imagem da relação entre Deus e o mundo claramente contrária à imagem bíblica
de Deus. Incluíam sempre – e talvez inevitavelmente – conceções panteístas, nas quais
desaparecia a diferença entre Criador e criatura. Partindo deste pressuposto, o ser das coisas e dos
homens aparece necessariamente como uma emanação do ventre materno do Ser que, entrando na
dimensão do tempo, se concretiza na pluralidade das realidades existentes.
Pelo contrário, a imagem do pai era e é adequada para exprimir a alteridade entre Criador e
criatura, a soberania do seu ato criador. Somente através da exclusão das deusas-mães é que o
Antigo Testamento podia levar à maturidade a sua imagem de Deus, a pura transcendência de
Deus»[104].
A par desta dedução baseada em dados dos textos bíblicos, S. João Paulo
II faz notar com agudeza que, «em diversas passagens da Sagrada Escritura
(especialmente no Antigo Testamento), encontramos comparações que
atribuem a Deus qualidades “masculinas” ou “femininas”. Encontramos
nessas comparações a confirmação indireta da verdade de que ambos, tanto
o homem como a mulher, foram criados à imagem e semelhança de Deus.
Se existe semelhança entre o Criador e as criaturas, é compreensível que a
Bíblia tenha usado, a esse respeito, expressões que lhe atribuem qualidades
quer “masculinas” quer “femininas”»[105].
Em resumo, podemos concluir que até para nos tentarmos aproximar da
natureza de Deus – de quem é Deus – torna-se essencial recorrer às
diferenças entre homens e mulheres. O facto de não se usar indistintamente
«Pai» e «Mãe» para Deus é mais um dado a reter sobre a importância que o
próprio Deus atribui à distinção de sexos e às funções específicas do homem
e da mulher.
A importância da dualidade sexual é ainda reforçada na resposta de
Cristo à pergunta dos saduceus sobre a ressurreição dos corpos. «As
palavras: “Nem tomarão mulher nem marido” parecem, ao mesmo tempo,
afirmar», insiste S. João Paulo II, «que os corpos humanos, recuperados e
também renovados na ressurreição, manterão a sua peculiaridade masculina
ou feminina»[106]. Esta afirmação, dotada de aparente falta de consequências
para a vida corrente, é no entanto fundamental quando se aprofunda na razão
decisiva do «porquê» da dualidade de sexos. Se, na vida futura, continuarão
a existir dois sexos apesar de não existir mais o matrimónio, então talvez
seja possível vislumbrar desde já que o matrimónio não é certamente a única
explicação para essa dualidade. O matrimónio mostra, no tempo presente, a
eficácia da complementaridade, mas a razão mais profunda da mesma deve
ser buscada em «algo» de que o matrimónio é uma expressão privilegiada
sem que, porém, esgote essa realidade. Em seu momento, voltarei ao tema,
que fica desde já referido.
Por agora, é possível referir uma consequência destes ensinamentos. No
celibato pelo Reino dos Céus, quem opta por esse modo de vida é homem ou
mulher, e por isso não renuncia à masculinidade ou à feminilidade, que são
constitutivos do seu ser[107]. O facto de se renunciar aos atos sexuais (e à
constituição de uma família) não significa que a pessoa adote uma atitude
quase andrógina. Seria antinatural. Aliás, de algum modo, faz parte dessas
vocações a sua condição sexuada. A Igreja espera do padre, por exemplo, que
mantenha a sua masculinidade: no autoconhecimento, na autodeterminação e
também nos gestos e modos de ser corporais: que se comporte como alguém
que toma a Igreja como esposa, protegendo-a e alimentando-a. E as irmãs
evocam visivelmente a maternidade da Igreja[108]. Quando estudarmos o
celibato pelo Reino, regressaremos também a esta questão.
Centremo-nos por agora nas palavras finais do texto em estudo e,
portanto, não já na dualidade mas sim na unidade dos dois – a unidade dual –,
que é consequência direta da dualidade tal como foi explicada: «Por esse
motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois
serão uma só carne» (Gen 2, 24).
Como já foi referido, S. João Paulo II recorda que «na Bíblia inteira
[este] pode ser considerado o texto fundamental do matrimónio»[109]. Por
alguma razão, Cristo recorda essas palavras no diálogo com os fariseus (cfr.
Mt 19, 5) e S. Paulo apela a esse texto na Carta aos Efésios (passagem central
do quinto ciclo das catequeses sobre a teologia do corpo) para concluir que a
união de Cristo com a Igreja está impregnada do original desígnio sobre o
matrimónio (cfr. Ef 5, 31).
A expressão «uma só carne» possui uma enorme força. Trata-se, sem
dúvida de uma união que envolve o corpo, mas não só[110]. S. João Paulo II
explica que, mesmo aplicando a expressão ao âmbito da união sexual, ela não
pode ser entendida fora da comunhão de pessoas que essa união física
representa e consuma; deve ser expressão de algo que brota do mais profundo
do ser humano: «O corpo, na sua masculinidade e feminilidade é, “desde o
princípio”, chamado a tornar-se a manifestação do espírito. Isso também é
realizado na união conjugal do homem e da mulher, quando se unem de
modo a formarem “uma só carne”»[111].
Portanto, a expressão deve ser entendida dentro da comunhão de pessoas,
tal como se pode deduzir da leitura atenta de todo o versículo do Génesis:
«Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e
os dois serão uma só carne» (Gen 2, 24). A união entre o homem e a mulher
para formar «um só» levá-los-á a deixar os pais. A ligação conjugal torna-se,
assim, mais forte do que a ligação natural a quem nos deu a vida. Um ato de
livre escolha, uma eleição deliberada, um exercício de autodeterminação, fará
com que o homem conquiste uma união mais consistente do que a que o
ligava aos pais. Ora, parece óbvio deduzir que nunca se usaria a expressão de
Génesis 2, 24 para descrever uma mera e descomprometida união sexual, pois
para tal não é necessário abandonar os pais. Aliás, Cristo, na conversa com os
fariseus, usará o texto do Génesis para concluir que, por serem um só, já não
é lícito separar o que Deus uniu. Portanto, a união «numa só carne», no
desígnio original de Deus, expressa uma comunhão indissolúvel de pessoas
que é «confirmada» (selada) pelo próprio Deus.
Tocamos aqui um dos assuntos mais surpreendentes para o homem de
todos os tempos. Como é possível que um ato material tenha «tanto poder»,
possa «dizer» tanto, expressar um compromisso espiritual tão decisivo? Não
haverá, nesta dúvida do homem de todos os tempos, uma real desconfiança
no poder do seu corpo? Se um homem e uma mulher realmente «soubessem»
que «aquele» ato foi pensado para expressar uma comunhão total e
indissolúvel entre eles, esse homem e essa mulher desvalorizariam de tal
forma o seu corpo e, portanto, o seu ser, reduzindo um ato de tanta riqueza a
um gesto que não expressa mais do que um desejo do instinto? Quando, um
dia, aqueles que desvalorizaram o ato sexual quiserem realmente entregar-se
sem reservas, como é que expressarão externamente esse desejo profundo?
Certamente terão relações, mas, dado que já as tiveram sem um significado
sério e definitivo, que valor darão agora a esse ato já realizado de forma banal
ou pouco comprometida? Poderão recuperar o seu valor? Sempre cabe o
arrependimento, e a graça de Deus tudo poder curar. Mas vale a pena fazer
constar que a banalização da sexualidade com a intrínseca desvalorização do
corpo é uma doença séria, que torna difícil recuperar de modo íntimo o valor
do corpo. Quando falarmos sobre o ato conjugal, insistirei que um dos erros
cruciais sobre o sexo é justamente a sua banalização.
Resumindo este ponto: a união «numa só carne», de acordo com a Bíblia,
corresponde ao fruto da eleição de uma pessoa com quem se deseja entrar em
comunhão para toda a vida, e não ao resultado da escolha de um ato. Na
expressão bíblica de Génesis 2, 24, escolhe-se amar alguém e não «fazer
alguma coisa» com alguém. Não há dúvida que uma pessoa libertina que
escolhe ter relações com outra também o faz por sua própria vontade. Mas é-
lhe impossível orientar todo o seu ser para a outra, não se doa realmente a
ela. Por isso, em rigor, não corresponde à verdade que esse tipo de atos
sexuais seja expressão de uma plena e boa autodeterminação, pois a vontade
em jogo não orienta toda a pessoa, com todo o seu ser, mas apenas orienta um
ato dessa pessoa. A união «numa só carne» deve expressar a união das
pessoas. Teremos pensado, alguma vez, que uma união fisicamente
transitória como é o ato sexual tem a capacidade, se os esposos viverem na
verdade, de expressar a comunhão perene entre um homem e uma mulher?
Que misterioso poder quis Deus atribuir a esse ato?
A expressão «numa só carne» ultrapassa a mera descrição física, embora
pareça evocar, de modo imediato, essa dimensão. Vimos que ela se refere a
uma união de pessoas mediada pelo corpo, ou, dito de outra maneira, o corpo
é o substrato dessa união; a expressão não se restringe, pois, a uma junção de
órgãos. A união conjugal apela, assim, a uma viva consciência do significado
unitivo do corpo, tal como existia em Adão e Eva: ambos eram chamados a
uma união íntima das suas pessoas – a uma comunhão de pessoas –, união
essa traduzida, não só mas também, pela união dos corpos.
Pelo uso que Cristo faz da expressão no diálogo com os fariseus, a união
«numa só carne» define a indissolubilidade do matrimónio. A união física,
que «quase» transforma os dois num só, deve expressar, pois, uma união de
vontades que se estende muito além do momento concreto. Pela vontade,
cada um diz ao outro que se entrega confiadamente com todo o seu ser, sem
nada reservar para si. A união sexual deve ser o modo inequívoco de o corpo
participar nessa doação definitiva, para lá do tempo. A grandeza da união
reside, então, em ser intérprete de uma vontade, diríamos, de duração
«infinita».
A união «numa só carne» tal como foi exposta faz entender, de um modo
novo e estimulante, a descrição do homem como «imagem e semelhança de
Deus», presente no capítulo primeiro do Génesis. O homem é semelhante a
Deus não só através da sua humanidade, como também – e ainda de modo
mais transparente – através da comunhão de pessoas. O homem e a mulher
são imagem e semelhança de Deus no momento da comunhão de pessoas
porque refletem a eterna comunhão das Pessoas divinas. A bênção da
fecundidade que deriva dessa união reafirma ainda mais a semelhança, tal
como explicaremos adiante[112].
Numa autêntica comunhão conjugal, estão de tal maneira unidas e
interpenetradas a doação e a aceitação mútuas que ela pode refletir a
comunhão trinitária. Para se entender esta analogia, vale a pena transcrever as
palavras do Concílio de Florença sobre o mistério trinitário, que o Catecismo
da Igreja Católica recorda: «Por causa desta unidade, o Pai está todo no
Filho e todo no Espírito Santo: o Filho está todo no Pai e todo no Espírito
Santo: o Espírito Santo está todo no Pai e todo no Filho»[113].
S. João Paulo II faz uma profunda análise da doação e da aceitação
mútuas entre Adão e Eva, descrevendo-as de modo sequencial, como que
fotograma a fotograma. Apesar da sua densidade e extensão, merece a pena
reproduzir esse texto, em que S João Paulo II vai mostrando como no amor
há uma progressiva e imparável espiral de enriquecimento de quem ama e é
amado: um enriquecimento que advém do facto de receber alguém na vida e
também do facto de se ser recebido por esse alguém sem qualquer reserva ou
condição, isto é, de se ser recebido na vida do outro «por si próprio», sem
qualquer instrumentalização, que é o modo mais correto de atribuir a uma
pessoa todo o seu valor. Eis as palavras do Pontífice:
«Se a mulher, no mistério da criação, é aquela que foi “dada” ao homem, este, por seu lado,
recebendo-a como dom na plena verdade da sua pessoa e feminilidade, assim a enriquece e, ao
mesmo tempo, também ele, nesta relação recíproca, fica enriquecido. O homem enriquece-se não
apenas por meio dela, que lhe dá a sua pessoa e feminilidade, mas também mediante a doação de
si próprio. A doação por parte do homem, em resposta à da mulher, é para si próprio um
enriquecimento. De facto, aí se manifesta quase a essência específica da sua masculinidade que,
através da realidade do corpo e do sexo, alcança a íntima profundidade da “posse de si”, graças
à qual é capaz tanto de dar-se a si mesmo como de receber o dom do outro. O homem, assim, não
apenas aceita o dom, mas é ao mesmo tempo acolhido como dom pela mulher, no revelar-se da
essência espiritual interior da sua masculinidade, conjuntamente com toda a verdade do seu corpo
e sexo. Assim aceite, por esta aceitação e acolhimento do dom da própria masculinidade, ele
enriquece-se. Em seguida, a aceitação na qual o homem se encontra a si mesmo através do “dom
sincero de si” torna-se nele fonte de um novo e mais profundo enriquecimento da mulher consigo.
A troca é recíproca, e nisso se revelam e crescem os efeitos mútuos do “dom sincero” e do
“encontro de si”»[114].

No fundo, vão crescendo os efeitos mútuos do dom sincero e do


encontro. A título de pequena nota, ao ler esta análise da espiral do amor
sincero, o leitor pode intuir como a indissolubilidade matrimonial é muito
mais do que uma mera obediência a uma lei externa. O casamento está
chamado a instituir uma realidade maravilhosamente unitária. Para pessoas
com sensibilidade espiritual, estas linhas servem de pauta para um exame
centrado na veracidade de amor pelo outro, pois levam-nas a questionar-se se
esse amor, também nas manifestações externas, se vai assemelhando, de
algum modo, à intimidade trinitária. Logicamente, é preciso estar
deslumbrados pelo Amor incriado e eterno para tomá-l’O como constante
ponto de referência.
S. João Paulo II chega, inclusive, a defender que precisamente pelo facto
de o homem trazer no seu corpo o apelo à doação, ao amor, é semelhante a
Deus também pelo corpo. Deus é, obviamente, espírito puro, sem qualquer
vestígio material. Mas o corpo humano, com o seu apelo à comunhão, evoca
a intimidade amorosa de Deus.

9.
A nudez sem vergonha:
liberdade do dom ou nudismo puro e simples?

O terceiro aspeto que permite traçar o quadro antropológico do homem


da pré-história teológica é a experiência da nudez sem vergonha.
S. João Paulo II aprofunda no significado da nudez sem vergonha
comparando o texto anterior à queda com aquele que descreve a consciência
do primeiro casal, logo após o pecado original. Os dois textos que interessa
reter na memória durante as páginas seguintes são estes:
«Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha» (Gen 2, 25);
«Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de
figueira umas às outras e cingiram-se» (Gen 3, 7).

A relação entre a nudez e a vergonha faz parte da experiência comum


dos mortais. Mesmo em situações em que é necessário tirar a roupa, como
por exemplo numa consulta médica, ninguém se sente particularmente
cómodo. Por outra parte, é sabido como, em atrozes campos de concentração
do passado, retiravam a roupa aos prisioneiros para os fragilizar, não apenas
física mas também moralmente, atingindo-os na sua dignidade. Por que razão
a nudez forçada pode ferir a dignidade pessoal?
Por contraste com estes exemplos, têm aumentado em certas regiões do
globo as zonas turísticas de nudistas. Poderia, porventura, ser este costume
entendido como um feliz regresso ao Paraíso? Não se deverá modificar o
pudor a que todos nos acostumámos, cultivando um à-vontade com a
exposição do corpo, sem tabus derivados, talvez, de costumes ultrapassados?
Retrocedamos ao passado, ao tal período da pré-história teológica, para
responder a estas perguntas.
9.1. A vergonha
S. João Paulo II faz duas observações aos textos referidos que, sendo
facilmente compreensíveis uma vez explicadas, não são no entanto óbvias.
Por um lado, para S. João Paulo II, a experiência da não-vergonha (mas
sobretudo a da vergonha após o pecado) é o «primeiro registo da
consciência humana»[115]. Para um leitor mais desprevenido, pareceria uma
mera descrição «externa» da situação do primeiro casal: «antes estavam
nus, depois taparam-se». S. João Paulo II quer que nos centremos no modo
como eles viveram, ou melhor, experimentaram a sua situação: primeiro,
não sentem vergonha, mas depois enchem-se dela. Por outro lado,
comparando Génesis 2, 25 com Génesis 3, 7, isto é, com a situação após a
queda, afirma que a vergonha se apresenta como a experiência de limite ou
«de confim»[116], que traduz a mudança da situação derivada do pecado. Dito
por outras palavras: logo após o pecado, surgiu uma nova condição do
homem. Quase de modo instantâneo, o homem regista uma experiência até
então desconhecida: a vergonha, com a inerente necessidade de cobrir o
corpo, de se tapar. Há, portanto, uma mudança do estado de consciência:
Adão e Eva não parecem registar uma imediata experiência de culpa, mas
sim um efeito dessa culpa que mudou a relação com Deus, com o mundo e
entre os dois. No livro do Génesis, não se diz que ficaram com remorsos ou
arrependidos pela desobediência cometida, mas apenas que se «sentem
incómodos» sem roupa, com vontade de se esconderem de Deus e um do
outro. Aliás, dentro da simplicidade do relato, encontramos, de algum
modo, a nossa própria experiência. Quando procedemos mal, nem sempre
advertimos logo a malícia das nossas opções mediante um rigoroso processo
de dedução lógica. Muitas vezes «experimentamos» os efeitos da má
escolha: «sentimo-nos» animicamente mal – sentimos uma certa tristeza,
por exemplo –, sem conseguir identificar logo a causa; outras vezes,
tornamo-nos mais irritáveis sem ser plenamente conscientes da razão para
isso, etc.
Adão e Eva sentem vergonha. Ambos a experimentam. Que terá
sucedido para uma mudança tão brusca? S. João Paulo II sugere uma
tentativa de «reconstrução» dessa mudança e, para tal, apela ao que denomina
«a posteriori histórico»[117]. Que significa exatamente esta expressão? Trata-
se de reconstruir a experiência da situação originária (não sentiam vergonha)
a partir da situação posterior (em que sentem vergonha), que nos é bem mais
conhecida. Isto é: se conseguirmos perceber a razão mais profunda da
vergonha que habitualmente experimentamos por nos encontrarmos sem
roupa (e que essencialmente não deve ser diferente da que sentiram Adão e
Eva após a queda), será possível deduzir o que sucedia antes da queda, isto é,
o que fazia com que essa razão para ter vergonha pela nudez não se
verificasse.
Sirva-nos o exemplo a que já aludimos no capítulo 6: se nunca na vida
tivéssemos visto um homem (vamos supor que éramos um Anjo que
contemplava a terra pela primeira vez), e os primeiros que víssemos usassem
muletas para andar e não cair e se, ao mesmo tempo, nos dissessem que em
tempos idos aqueles homens não usavam muletas e andavam, poderíamos
deduzir que, nesse tempo passado, as pernas dos homens teriam condições
que lhes permitiam andar sem cair; estudaríamos então como seriam antes as
pernas agora lesionadas, para que os homens que tínhamos diante pudessem
prescindir das muletas. Desse modo, por dedução, conseguiríamos intuir
como seria o homem (e as condições das suas pernas) na anterior ausência de
doença.
Vamos analisar qual o motivo da vergonha quando nos encontramos sem
roupa (por que razão o homem sem muletas não anda e cai). A seguir,
rejeitaremos soluções que interpretam erroneamente a não-vergonha inicial
(por exemplo, os homens teriam asas). Finalmente, chegaremos à
compreensão mais correta do motivo dessa não-vergonha (as pernas tinham
outras características).
Por que nos envergonhamos quando estamos sem roupa? O que é
exatamente a vergonha? Se nos detivermos brevemente nessa reação que
(quase) todos experimentamos, não será difícil concordar que se trata de um
certo temor, sobretudo de um temor do outro, mesmo que não saibamos dizer
ao certo qual é a razão. Com um pouco mais de reflexão, podemos perceber
que o motivo do temor é que o outro possa avaliar de modo deformado e
instrumentalizador o nosso corpo[118]. Esta seria uma primeira resposta. Sem
roupa sentimo-nos mais «desprotegidos». Quando nos tapamos com a roupa,
pretendemos que a nossa pessoa não seja reduzida à curiosidade própria de
um objeto.
A mulher é mais sensível à nudez do que o homem, provavelmente
porque, por um lado, sente uma maior ameaça à divisão do seu ser pelo
homem, cuja concupiscência é, em geral, mais agressiva e descarada; por
outro, porque, em minha opinião, leva no mais íntimo da feminilidade a
marca da unidade do seu ser de um modo muito mais vincado do que o
homem.
Explico a tese. Se contemplarmos a geração de um novo ser, ele vive na
mulher, dentro dela; o homem contempla «desde fora» o crescimento
durante os primeiros nove meses do seu filho. Na natureza feminina, está
gravada a unidade com o filho, com a vida: o que é mais valioso «está
dentro» dela; tudo acontece dentro da mulher, dentro do seu ser. Como não
entender que terá, assim, mais vincada em si a defesa dessa característica?
Como não reconhecer na mulher uma particular sensibilidade à sua unidade
e integridade? Um claro exemplo de como a mulher capta de um modo
muito mais rigoroso as faltas de unidade encontramo-lo em Herodíade, a
esposa de um irmão de Herodes, com quem o rei acabou por conviver
sexualmente. João Batista censurava Herodes, mas este, apesar de o manter
preso, tolerava as críticas. Não foi assim com Herodíade, que, na primeira
oportunidade, induziu o seu assassinato. Para ela, não era tolerável a censura
a uma parte da sua vida (cfr. Mt 14). O homem consegue, para o bem e para o
mal, ter mais facilmente uma vida dupla (digo «para o bem» no sentido em
que às vezes, noutros assuntos que não são moralmente relevantes, é bom não
ficar obcecados com uma determinada situação não resolvida, sendo possível
e até desejável conviver com ela, sem dramatismos).
Talvez uma imagem possa servir para reforçar a tese. Comparemos duas
atitudes: a da pessoa que vai fazer uma visita à casa de um amigo de longa
data a quem já não vê há tempos, e a do próprio anfitrião. Nos dois, existe o
desejo de «causar boa impressão», de não «cometer nenhuma gafe», de tornar
agradável esse momento. Mas há uma diferença. Quem visita apenas tem de
cuidar da sua presença, do modo de vestir, de falar, de estar. Quem recebe,
pelo contrário, além do aspeto pessoal, deve cuidar do arranjo da casa e da
refeição a ser servida, preparar os familiares para receberem bem o
convidado, etc. São mais elementos a controlar, e basta que um deles «falhe»
ou se torne defeituoso – pensemos no caso de o jantar vir mal apresentado –
para que surja a sensação de fracasso: «as coisas correram mal!», dirá para si
o anfitrião. Se o visitante é imagem do homem, quem recebe reflete mais o
aspeto feminino. A importância dada à harmonia do conjunto é maior na
mulher. Ela sente mais quando algo corre mal, quando algo destoa do todo.
Quando existe uma instrumentalização – portanto, uma falta de sintonia no
modo como os outros lidam com o seu «eu» –, a mulher apercebe-se mais
facilmente do dano que isso faz ao conjunto da sua pessoa.
Retomo o fio condutor do capítulo, sobre a vergonha em geral. Um dos
aspetos que a vergonha corporal trás ao de cima é o facto de o ser humano,
homem e mulher, depois do pecado, estar como que dividido interiormente.
Isto reflete-se nas manifestações de pudor: não tapamos todo o corpo, mas
sobretudo as partes mais específicas de nosso caráter sexual. S. Paulo refere
este dado de modo delicado, numa das suas epístolas:
«Mas Deus dispôs cada um dos membros do corpo segundo a sua vontade. […] Pelo contrário,
quanto mais fracos parecem ser os membros do corpo tanto mais são necessários, e aqueles que
parecem ser os menos honrosos, a esses rodeamos de maior honra, e aqueles que são menos
decentes, nós os tratamos com mais decoro; os que são decentes não têm necessidade disso. Mas
Deus dispôs o corpo, de modo a dar maior honra ao que dela carecia para não haver divisão no
corpo e os membros terem a mesma solicitude uns para com os outros» (1 Cor 12, 18 e 22-25).

Alguns membros são «mais vis», «menos decentes», não devido a algum
aspeto somático – tudo o que Deus fez é bom –, mas sim devido,
precisamente, ao facto de o homem os captar de modo diferente ao modo
como capta os outros membros. Precisamente por isso acaba por tratá-los
com maior respeito. O que está em jogo é, pois, o modo como se avalia o
corpo, como se experimenta o corpo: não se avalia nem se experimenta cada
parte do corpo de modo unitário.
Assim, no homem histórico, a vergonha aparece ligada à desunião do
corpo, com o pudor corporal a ser especialmente dirigido aos membros que
determinam somaticamente a feminilidade e a masculinidade. O pudor dos
membros «mais débeis», que faz com que sejam revestidos de maior
dignidade, é o nosso modo de reequilibrar a desunião do corpo, permitindo
recuperar, até certo ponto, a visão unitária do corpo. A roupa é a nossa
muleta.
Daqui podemos extrair uma conclusão óbvia: se o pudor leva a tapar
alguns dos membros para manter a unidade da pessoa, para que a pessoa
possa ser «vista» unitariamente, então, na situação originária, estava presente
essa visão unitária mesmo sem a roupa. O homem não se sentia desunido
interiormente, avaliava de modo igual todos os seus membros. Além disso,
nada temia na sua nudez, pois assim como olhava o outro na sua unidade –
como pessoa –, sentia-se igualmente avaliado como pessoa, sem
experimentar qualquer fragmentação no seu ser pelo olhar alheio.
9.2. O que mudou com o pecado?
Detenhamo-nos agora na sequência do relato do Génesis 3, em concreto
nos versículos 10 e 11, onde se narra o que sucede após o pecado. «E ele
[Adão]respondeu: “Ouvi o barulho dos vossos passos no jardim e, cheio de
medo, escondi-me porque estou nu”. O Senhor Deus disse: “Quem te revelou
que estavas nu? Terias tu porventura comido do fruto da árvore que eu te
havia proibido de comer?”». Pela voz do Criador, deduzimos que a causa da
mudança – da vergonha que surge – é a transgressão do preceito. A
desobediência ocasionou algo terrivelmente novo na consciência de Adão.
Por isso, S. João Paulo II explica que a mudança reflete algo muito mais
profundo do que uma mera constatação intelectual da situação corporal, de
um mero conhecer que estão sem roupa. Ela traduz uma mudança radical do
significado da nudez (a doença que levou o homem do exemplo anterior a ter
de usar muletas) do homem perante a mulher e vice-versa. Essa «mudança
refere-se diretamente à experiência do significado do próprio corpo diante do
Criador e das criaturas»[119]. Por isso escondem a sua nudez ao ouvir a voz de
Deus, e por isso Adão e Eva sentem a necessidade de cobrir o que é mais
especificamente identificador do sexo, o que os distingue mais um do outro.
Adão e Eva «sentem-se» nus, desprotegidos e fragilizados nos seus corpos,
porque algo sucedeu no seu coração.
Portanto, antes do pecado, o corpo nu tinha um significado, ou melhor, o
homem e a mulher experimentavam um significado determinado no seu
corpo; e, depois da queda, passam a ter uma outra perceção do corpo. Qual
seria então a perceção original? Descartemos duas respostas. A primeira
sugere que a nudez sem vergonha corresponderia a uma desvergonha ou
despudor; a segunda equivale a um género de ingenuidade infantil.
A primeira possibilidade é facilmente descartável. O despudor do corpo
pode ser definido como o modo de comportar-se de uma pessoa «que põe em
primeiro plano os valores do sexo, de modo que eles ocultem o valor
essencial da pessoa»[120]. Trata-se, pois, de uma banalização do próprio corpo
e da sua sexualidade. Mas, se antes do pecado fossem despudorados e,
depois, passassem a viver instintivamente o pudor, a queda tê-lo-ias situado
num patamar moral superior. Ora, todo o texto caminha em sentido oposto:
na nudez inicial, nada havia dessa atitude provocativa para criar no outro uma
espécie de dependência, mesmo à custa de o próprio provocador (ou a
provocadora) correr o risco de ser instrumentalizado (ou instrumentalizada).
Depois da queda, houve um retrocesso na moralidade. Adão e Eva sabem que
estão nus e sentem-se mal assim porque o seu coração piorou, moralmente
falando.
Um observador pouco atento pode insistir na conclusão oposta,
afirmando que a situação originária – da nudez sem vergonha – seria bem
mais semelhante à desvergonha dos nudistas do que a situação habitual de
proteção do corpo pelas roupas: «nos dois casos», diria, «tratar-se-ia de
pessoas sem tabus culturais impostos». Seria, no entanto, um grande erro
pensar assim, equiparando a inicial nudez sem vergonha com a desvergonha
dos nudistas.
Dietrich Von Hildebrand recorre a S. Agostinho para desmontar
conclusões parecidas noutros âmbitos. Vale a pena transcrever o seu
raciocínio:
«Em muitos âmbitos do ser encontramos a mesma situação, isto é, coisas aparentemente
semelhantes na realidade diferem mais entre si do que daquela de que ambas se distinguem com
clareza. S. Agostinho menciona no De Civitate Dei que tanto um membro paralisado como um
corpo transfigurado são insensíveis à dor, mas por razões opostas, já que esses dois tipos de
insensibilidade diferem claramente entre eles mais do que difere cada um comparado com o corpo
são que pode sentir dor. O corpo paralisado está por debaixo do são; o transfigurado está acima
desse nível. Um animal não pode pecar, assim como não pode pecar um santo no Céu. Mas,
certamente, esta incapacidade de pecar é radicalmente diferente em cada caso. Uma deve-se à
ausência de perfeição, a outra a uma perfeição eminente. […] Poderiam ser referidos muitos
outros casos que confirmam esta verdade»[121].

Outro exemplo, bem intuitivo, apesar de ser mais pedagógico do que


estritamente verdadeiro, é apresentado por Ronald Knox: tanto um analfabeto
como um bispo assinam com uma cruz. A explicação e o significado da cruz
num e noutro caso é muito diferente[122]. Talvez assim se compreenda que
nada tem que ver a nudez sem vergonha de Adão e Eva com a nudez dos
desenvergonhados. Em ambos os casos há uma nudez voluntária, que não
parece incomodar, mas as explicações para umo e outro são diametralmente
opostos.
O que, na minha opinião, não é tão fácil descartar é a segunda hipótese (a
da inocência infantil própria das crianças que, estando nuas, não se
envergonham), até porque alguns Padres da Igreja sugeriram, para Adão e
Eva, um contexto que poderia fazer pensar na tese da ingenuidade. A tese de
que Adão era, intelectualmente falando, uma criança, foi defendida, por
exemplo, por S. Ireneu[123]. Não é certamente a tese de S. João Paulo II, que a
rejeita liminarmente, pelo menos quanto à justificação da nudez sem
vergonha. Leiamos as suas palavras:
«Em primeiro lugar é preciso deixar claro que se trata de verdadeira não-presença de vergonha, e
não da sua carência ou de uma sua realidade subdesenvolvida. Não podemos sustentar aqui, de
algum modo, uma “primitivização” do seu significado. Portanto, o texto de Génesis 2, 25 não
exclui apenas, decididamente, a possibilidade de se pensar numa “falta de vergonha”, ou seja, de
impudência [desvergonha], mas mais ainda exclui a possibilidade de a explicar através da analogia
com algumas experiências humanas positivas como, por exemplo, as da idade infantil ou da vida
das denominadas populações primitivas. Essas analogias são não só insuficientes como podem
mesmo ser enganadoras. As palavras de Génesis 2, 25, “não sentiam vergonha”, não expressam
uma carência, mas, antes pelo contrário, servem para indicar uma plenitude de consciência e de
experiência, sobretudo a plenitude de compreensão do significado do corpo, ligada ao facto de que
“estavam nus”»[124].

Com estas palavras, S. João Paulo II dá-nos a resposta ao «porquê» da


não-vergonha. Mas que significa ao certo a «plenitude de compreensão do
significado do corpo»? Como já anteriormente se referiu, Adão e Eva captam
a sua radical diferença em relação aos restantes seres da criação visível. A
perceção desse caráter excecional de que foram dotados é captado pelo corpo.
É através do corpo que Adão capta quem é «carne da sua carne» e o que não
o é (toda a restante criação). A nudez
com a qual Adão e Eva se captam um ao outro não engana sobre o que eles
são.
Mas S. João Paulo II amplia notavelmente o conteúdo da «plenitude da
compreensão do significado do corpo». O conhecimento mútuo não se limita
apenas ao que «veem». Adão e Eva estão nus, um perante o outro, sem sofrer
qualquer tipo de incómodo, porque possuem uma total confiança um no
outro. Eles estão, de algum modo, nus do ponto de vista interior. Como o
corpo expressa a pessoa, sem qualquer fissura, ao exporem o corpo na sua
nudez expõem a sua intimidade. E fazem-no sem temor, porque sabem que
podem confiar todo o seu ser ao outro. A diferença sexual, a feminilidade e a
masculinidade, com a sua complementaridade, convida à entrega e à
aceitação mútuas do «eu» de cada um, entrega e aceitação que se realizam
com total confiança. Eles olham-se, e não veem apenas um corpo nu, mas sim
uma pessoa, que quer depositar no outro o seu ser e que aceita o outro sem
reserva. S. João Paulo II afirmará que ambos se veem com um olhar próximo
do olhar divino que tudo perscruta, com amor e admiração pelas suas
criaturas. Trata-se, pois, de um olhar que capta o interior da pessoa,
aceitando-a tal como é, recebendo-a em si mesma. Não existe nem sequer
uma aproximação à instrumentalização do outro.
Na realidade, poderíamos dizer que é esse olhar que gostaríamos de
receber dos outros: não um olhar desconfiado, não um olhar invejoso, não
um olhar interesseiro, mas sim um olhar de admiração e de aceitação plenas.
Perante um tal olhar, poderíamos estar «sem defesas», «nus». Eis as palavras
de S. João Paulo II
que descrevem aquilo a que chama a «inocência original do conhecimento»
(isto é, descrevem como Adão e Eva se conheciam plenamente, não apenas
por uma completa perceção externa mas também num clima de mútua
comunhão, de plena intimidade):
«Este verem-se recíproco não é só participação na “exterior” perceção do mundo, mas tem, além
disso, uma dimensão interior de participação na visão do próprio Criador – daquela visão de que
fala várias vezes o capítulo primeiro: “Deus viu tudo o que tinha feito: era tudo muito bom” (Gen
1, 31). A “nudez” significa o bem original deste ver de Deus. […]
Vendo-se reciprocamente, como que através do próprio mistério da criação, o homem e a mulher
veem-se a si próprios mais plenamente e mais distintamente do que através do sentido da visão,
isto é, através dos olhos do corpo. Veem-se de facto e conhecem-se a si próprios, com toda a paz
do olhar interior, que cria precisamente a plenitude da intimidade de pessoas»[125].

São palavras densas e muito sugestivas. Retenhamos, por agora, que a


plenitude da visão original, que lhes permitia estar nus sem se
envergonharem, leva-nos a deduzir que se olhavam com um olhar que se
assemelha ao do Criador (também neste sentido foram criados à imagem e
semelhança de Deus: podem «ver» segundo Deus), tendo um conhecimento
não apenas «exterior», semelhante ao que se pode ter diante de qualquer
outra criatura, mas fruto de uma comunhão a que são convidados pela sua
situação de óbvia complementaridade[126].
Nas suas catequeses, S. João Paulo II estende-se longamente para
justificar a visão do outro segundo Deus. Este conhecimento, que se
assemelha, de alguma maneira, ao conhecimento divino, não deriva de um
mero esforço intelectual.
Para nos aproximarmos do pensamento de S. João Paulo II,
perguntemo-nos: como é que Deus «veria» Adão e Eva? Que dados nos
foram dados que permitam, de modo rigoroso, responder a tão difícil
questão? No final do relato da Criação, no sexto dia, lê-se: «Deus viu tudo o
que tinha feito: era tudo muito bom» (Gen 1, 31). Não se acrescenta apenas
que era bom, como se vai afirmando em cada nova etapa da criação; agora –
«depois da criação do homem»[127], – é tudo muito bom. O livro do Génesis
refere ainda que a seguir, ao sétimo dia, Deus descansou. A interpretação de
S. Ambrósio, reproposta por S. João Paulo II na encíclica Evangelium Vitae,
dar-nos-á o elemento decisivo para responder à questão formulada:
«A glória de Deus resplandece no rosto do homem. Nele, o Criador encontra o seu repouso, como
comenta, maravilhado e comovido, Santo Ambrósio: “Terminou o sexto dia, ficando concluída a
criação do mundo com a formação daquela obra-prima, o homem, que exerce o domínio sobre
todos os seres vivos e é como que o ápice do universo e a suprema beleza de todo o ser criado.
Verdadeiramente deveremos manter um silêncio reverente, já que o Senhor repousou de toda a
obra do mundo. Repousou no íntimo do homem, repousou na sua mente e no seu pensamento; de
facto, tinha criado o homem dotado de razão, capaz de O imitar, émulo das suas virtudes,
desejoso das graças celestes. Nestes seus dotes, repousa Deus que disse: “Sobre quem repousarei
senão naquele que é humilde, pacífico e teme as minhas palavras?” (I s 66, 1-2). Agradeço ao
Senhor nosso Deus que criou uma obra tão maravilhosa que nela encontra o seu repouso”»[128].

Assim, de acordo com esta leitura do Génesis, a relação de Deus com o


homem e a mulher recém-criados não é uma relação de um artista que olha
de fora para a obra das suas mãos para nela se recriar, ou a do espetador,
consolado com o que está a ver. Deus manteve com o ser humano uma
relação de intimidade. Não o vê apenas «de fora», mas de algum modo
aproxima-se dele, quer que o homem esteja unido a Ele. Fá-lo participar da
sua vida íntima, pois criou o homem em estado de graça. Ora, a graça é a
comunhão com Deus. Era tudo muito bom, especialmente para o homem,
porque ele formava uma comunhão com o próprio Deus.
Em sentido análogo, também o homem e a mulher, na situação
originária, viviam em comunhão, à imagem dessa intimidade que Deus lhes
permitia ter com Ele. Por isso, não se viam mutuamente apenas «desde fora»,
como podiam ver as restantes criaturas. Viviam numa comunhão,
«desencadeada e promovida» pela complementaridade, mas que ultrapassa
em muito a dimensão física que é, pois, apenas uma parcela (e uma
expressão) dessa global comunhão[129].
A ausência de vergonha expressa, portanto, uma plenitude de
conhecimento, plenitude essa que consiste num conhecimento em que a
interioridade de um é livremente confiada ao outro e por ele totalmente
aceite. Assim, Adão participa da vida de Eva, pois é a ele que ela se confia, e
vice-versa. Porque haveriam de ter vergonha um do outro se, de algum modo,
o que é dela é dele e o que é dele é dela? A essa liberdade interior, que não
experimenta qualquer coação do corpo – antes pelo contrário, é favorecida
pelo corpo – e que se expressa como dom de si ao outro, S. João Paulo II
denomina «liberdade do dom». Eles eram livres com a liberdade do dom,
com a liberdade que se expressa como dom de si. Poder-se-á, então, afirmar
que o olhar entre Adão e Eva é um olhar que transmite doação, abertura do
«eu» e aceitação completa do outro. Estavam nus sem vergonha porque se
viam de um modo semelhante a como Deus via o mundo e os via a eles,
acolhendo-os em Si.
Poderemos nós, de alguma maneira, aproximar-nos interiormente da
experiência original de Adão e Eva? Conseguiremos vislumbrar o que é
«ver alguém na sua interioridade», tornando-se esta, de algum modo,
também nossa? Penso que, até certo ponto, a resposta é afirmativa. Por
exemplo, nas pessoas habituadas a ter intimidade com Cristo, há pelo menos
uma situação onde podemos intuir como terá experimentado Adão a nudez
de Eva, e vice-versa. Basta pensar no modo como nos situamos diante da
Cruz de Cristo, diante do corpo nu do Senhor. O crucifixo não gera em nós
uma sensação de desagrado ou repugnância, e menos ainda um olhar
sensual. Olhando para o corpo nu do Senhor, vêm-nos à cabeça o seu amor
por nós, a sua doação sem reservas, a sua fidelidade ao Pai. Não nos
limitamos (se a pessoa tiver vida espiritual, insisto) a «olhar» para um
objeto feito por mãos humanas, com um mero significado artístico ou
decorativo – em qualquer caso, com um significado que não afeta o nosso
coração. Na realidade, é até como se penetrássemos no coração de Jesus.
Essa contemplação gera em nós o desejo de entrega, despojando-nos das
nossas «defesas» que nos impediam, até então, de «entregar-nos», e de fazer
do nosso «eu» uma doação sincera a Deus. A atitude que adotamos numa
contemplação profunda de Cristo na Cruz pode ajudar-nos a que nos
aproximemos do modo como Adão e Eva se olhavam. Dedicaremos o
capítulo 11 a desenvolver um pouco mais este tema.
Num sentido menos místico, a experiência de um casal que se ama de
verdade também tende a aproximar-se da de Adão e Eva.
Mas que sucedeu depois da queda? Por que razão passam a ter vergonha
dos seus corpos nus? «Se a “vergonha” traz consigo uma específica limitação
do ver com os olhos do corpo, isto acontece sobretudo porque a intimidade
pessoal é como que perturbada e quase “ameaçada” por tal visão»[130]. Depois
do pecado, depois de terem assumido uma atitude de desconfiança face a
Deus, Adão e Eva «desbotam» a semelhança com o Criador[131]. Deixam de se
olhar com o olhar da paz interior concedida pela participação no olhar divino.
E sabem que o olhar do outro também não é límpido. Aparece a desconfiança
e a necessidade imediata de se protegerem. É como se gritassem: «falta-nos
algo!» A imediata necessidade de se taparem expressa uma carência. A partir
desse momento, a roupa tornar-se-á, para o homem, num complemento
necessário precisamente para lhe restituir, tanto quanto for possível, a sua
dignidade. A roupa contribui para que o homem possa ser olhado em toda a
sua dignidade de pessoa, evitando olhares de apropriação, de «coisificação»
da pessoa[132]. É essa a interpretação de S. Paulo, na certeira análise sobre o
que consideramos como membros «menos decentes» (cfr. 1 Cor 12, 18 e 22-
25). Em boa verdade, penso que é correto afirmar que a causa de tapar os
órgãos sexuais não é por lhes atribuir um antivalor – por serem «maus» ou
«sujos» –, mas sim porque receamos que não sejam suficientemente
avaliados, tornando-se em objetos de curiosidade ou de prazer para outros, e
não em elementos enquadrados no ser da pessoa e cuja visão, por
conseguinte, deveria contribuir para conhecer melhor e respeitar a mesma
pessoa[133].
9.3. O pudor e a inalienabilidade da pessoa
A esta interpretação, presente nas audiências de teologia do corpo, é
necessário acrescentar umas palavras do autor de Amor e Responsabilidade
que ampliam a interpretação da vergonha com uma explicação mais
«metafísica», que acaba por justificar um pouco melhor a sua razão de ser.
Recordo-me que, numa sessão sobre a teologia do corpo em que expus o
que acabei de transcrever, uma jovem rapariga, talvez com 25 anos e com
namoro estável, me perguntou por que razão ela também sentia que devia
cuidar o pudor diante das suas irmãs, das quais obviamente não tinha
qualquer «medo». Trata-se de uma boa questão, que justifica a necessidade
de evocar alguns elementos de Amor e Responsabilidade. Em síntese, Karol
Wojtyla afirma nessa obra que, embora a vergonha esteja ligada a um certo
temor, a sua essência é sobretudo um sinal da inalienabilidade da pessoa.
Leiamos as suas palavras:
«O temor está, pois, ligado ao pudor, mas, em relação a ele, não é senão marginal e indireto. A
essência do pudor é mais do que temor e não pode perceber-se senão caindo bem na conta […]
que a pessoa possui uma interioridade que pertence a ela só. Daqui nasce a necessidade de
esconder ou de manter fechados na própria interioridade certos valores e certos factos»[134].
Por isso, pode suceder o que sucedia com a rapariga diante das suas
irmãs: não é que tivesse «medo» delas, mas não via qualquer necessidade
de «ceder» algo do seu «eu» inalienável por um qualquer motivo banal
(sem necessidade alguma).
Paremos aqui para esclarecer o leitor. Recordo, em primeiro lugar, que,
na obra citada, o futuro Papa centra-se na situação do homem tal como é
agora, sem se dedicar a compará-la com a situação originária no Paraíso.
Mas, se então o tivesse feito, e se, em tal caso, em vez de se referir apenas ao
temor e à sua ausência antes do pecado, ampliasse a comparação centrando-
se também na manifestação da inalienabilidade da pessoa (na defesa do «eu»
mais íntimo) antes e depois da queda original, a resposta viria a ser
sensivelmente a mesma: antes do pecado, não existia a vergonha não apenas
porque nenhum deles tinha a temer a instrumentalização por parte do outro,
mas também – e esta é a minha interpretação – porque cada um abria o seu
mundo pessoal como expressão da doação da sua pessoa. Cada um sabia que
o seu «eu» continuava a ser «inalienável», mesmo que estivesse «nas mãos»
de outro.
Ao falarmos do significado esponsal do corpo, entender-se-á melhor a
lógica desta afirmação, mas adiantamos brevemente algo do que se explicará,
acrescentando um esclarecimento também presente em Amor e
Responsabilidade:
«A pessoa é senhora de si mesma; ninguém, exceto Deus-Criador, pode ter sobre ela algum
direito de propriedade. Ela pertence-se, a si, tem o direito de autodeterminação; portanto,
ninguém pode atentar contra a sua independência. Ninguém pode tornar-se dono dela como
propriedade, a não ser que ela consinta, dando-se por amor[135].

Não parece ousado inferir destas palavras que, antes do pecado, cada um
dos esposos consentia em entregar-se ao outro por amor, com a convicção de
que não perdia a inalienabilidade, não deixava de ser ele mesmo. Karol
Wojtyla, num parágrafo posterior, explicará «a lei da absorção da vergonha
pelo amor»: quando um casal se ama realmente, os valores sexuais não
ofuscam o valor da pessoa e, por isso, mesmo sem a defesa da roupa não
existe (ou pode não existir) o temor de perder a inalienabilidade e a
inviolabilidade[136]. Esse temor estava ausente em Adão e Eva porque não se
instrumentalizavam e sabiam que o seu «eu» mais íntimo era «para» o outro e
no outro «estava em muito boas mãos».
Acrescento igualmente que, do mesmo modo que o temor à
instrumentalização pelo outro (sobretudo pelo outro sexo) passou a ser uma
lei frequente no chamado «homem histórico», também a ocultação dos
valores sexuais é intrínseca à inviolabilidade da pessoa. Em situações
normais, por um e outro motivo (por medo e por proteger a inalienabilidade
do seu «eu»), será necessário usar a roupa e a pessoa sentir-se-á incómoda
sem ela. Apenas como ilustração de que o temor à instrumentalização por
parte do outro sexo não explica tudo, pensemos que, quando uma pessoa vai
ao médico, mesmo quando tenha toda a confiança num clínico de outro sexo,
não se sente cómoda sem roupa. Está justificada essa nudez; é necessária (na
medida em que o for realmente, e procurando reduzir ao mínimo essa
exposição, tanto na duração como nas partes expostas), mas permanece a
experiência de a pessoa não se sentir à vontade assim.
Prossigamos a reflexão sobre a vergonha. Já se referiu que, em Adão e
Eva, a vergonha é sintoma de algo que sucedeu no mais profundo do seu ser.
No comentário à décima estação da Via Sacra – «Jesus é Despojado das Suas
Roupas» –, o então cardeal Ratzinger evocava a vergonha original: «Esse
momento recorda-nos também a expulsão do Paraíso: o esplendor de Deus
diminuiu no homem que, agora, se encontra ali, despido e exposto, nu, mas
com vergonha. Deste modo, Jesus assume uma vez mais a situação do
homem caído. O Jesus espoliado recorda-nos o facto de que todos nós
perdemos a “primeira veste”, isto é, o esplendor de Deus»[137].
De modo sintético, fica claro que a vergonha inicial indica uma perda e
que, com essa perda, fica esbatida a semelhança com Deus, inicialmente tão
diáfana. Indiretamente, percebemos que, quando o homem perde a visão da
semelhança com Deus, em si e nos outros, corre o risco de os «coisificar»,
atribuindo-lhes um valor idêntico ao que atribui ao resto da criação. Por isso,
serão necessários recursos para proteger o homem de si próprio, da sua visão
deformada, incapaz de ver o outro com os olhos do Criador. Como, de facto,
se perdeu em parte a semelhança com o Criador – e, portanto, também se
tornou bem mais difícil captá-la em si e nos outros –, é necessário educar o
homem a revalorizar o seu corpo, todo o seu ser. Isso fez Cristo com a sua
vida e a sua morte. O corpo padecente até à morte do Senhor expressa o
infinito amor de Deus por nós. O corpo humano fica revestido da veste do
Amor.
Respondamos, então, à pergunta inicial. Por que não promover o
nudismo como expressão de regresso à situação originária, sobretudo quando
parece haver ocasiões onde pequenas comunidades convivem pacificamente
com uma tal situação? A resposta completa só será possível depois do
comentário à vergonha dentro do segundo ciclo, sobre o homem da
concupiscência ou homem histórico. Adiantemos, no entanto, algumas
reflexões. De entrada, a maioria das pessoas não se sentirá cómoda numa tal
proposta. O senso comum quanto a este terreno ainda é, mais ou menos,
consensual. No entanto, é necessário reconhecer que, pelo menos por alguns
exemplos, é possível «ultrapassar» o pudor, ao menos com o comportamento
externo. Mas a questão decisiva é: interessa fazê-lo? Isso aproximar-nos-ia da
situação originária ou produziria um afastamento ainda maior dela? A
resposta, como o leitor terá deduzido à luz dos ensinamentos da teologia do
corpo, parece clara: afasta grosseiramente as pessoas desse plano. Porquê?
Apesar da semelhança externa, a visão de um corpo nu não provoca, em
quem o vê, um apelo à doação de si e ao respeito pela pessoa nua mas, pelo
contrário, impele à apropriação. O nudista não pretende dar glória a Deus
com o seu corpo, nem tem a mínima intenção de que os outros se aproximem
da visão de Deus: muitas vezes pretende chamar a atenção sobre si, talvez
com a intenção de manipular o interesse dos outros. A nua
complementaridade sexual sem mais não provoca o desejo de entrega
sacrificada (do dom de si) mas, quando muito, uma instintiva excitação, que
mais não é do que um modo de instrumentalizar alguém ou de desejar ser
instrumentalizado.
Pelo contrário, e seguindo os ensinamentos de S. Paulo, a roupa ajuda
de forma decidida a manter o olhar puro sobre os outros, e pode até ajudar a
que a pessoa expresse melhor a sua intimidade, o seu «eu» masculino ou
feminino, a importância que dá à situação em que se encontra (veste-se
melhor quanto mais importância tem para ela um encontro), etc. Por isso,
vestir-se de forma modesta é, depois do pecado, o modo mais fácil de nos
aproximarmos do plano originário de Deus sobre o corpo humano: distingue-
nos dos outros seres e contribui para revelar o nosso «eu», mantendo a
dignidade da pessoa, sem facilitar os desejos de instrumentalização. E é
também um modo de reconhecer que nos «falta algo» da semelhança
originária com Deus. Em certo sentido, a roupa cumpre uma função
semelhante à da ciência médica, que se ocupa em lidar com a doença,
também ela consequência do pecado original. Assim, querer estar sem roupa
com o pretexto de viver como Adão e Eva nos seus melhores tempos é tão
absurdo como prescindir de qualquer medicamento, vacina e outra medida
preventiva para querer imitar Adão e Eva no Paraíso, que eram imunes à
doença e à dor. Precisamente, é usando as medidas de prevenção e
terapêuticas que, até certo ponto, conseguimos ultrapassar outra das feridas
do pecado original: a perda da imunidade ao sofrimento.
Há ocasiões em que o uso da roupa manifesta com particular clareza o
modo de exteriorizar o que se é. Pensemos no traje sacerdotal. O sacerdócio
não é um «trabalho», mas sim um ministério, um serviço permanente. Bento
XVI lembrou: «A primeira coisa que devemos aprender é a sua [do
sacerdote] total identificação com o próprio ministério. Em Jesus, tendem a
coincidir Pessoa e Missão: toda a sua ação salvífica era e é expressão do seu
“Eu filial” que, desde toda a eternidade, está diante do Pai em atitude de
amorosa submissão à sua vontade. Com modesta mas verdadeira analogia,
também o sacerdote deve ansiar por esta identificação»[138]. Identificação essa
que se deve efetuar no coração do sacerdote. O permanente uso do traje
eclesiástico certifica e recorda, ao próprio e aos outros, que se deseja essa
plena identificação a todas as horas. Sobretudo porque, ao contrário das
profissões, o traje pretende realçar mais o que se é do que aquilo que se está a
fazer em tal momento. O sacerdote deve sê-lo não apenas quando celebra a
Missa ou prega, mas também em cada instante: deve ter a consciência de ser
mediador em Cristo entre Deus e os homens. O permanente uso do traje
eclesiástico evidencia esse querer.
Em suma: no homem da concupiscência, a roupa é necessária e
conveniente, e pode até ajudar a mostrar quem somos.

10.
A revelação e a descoberta
do significado esponsal do corpo

Até agora, apercebemo-nos de que, de acordo com os ensinamentos de


S. João Paulo II, a experiência que Adão e Eva tinham do corpo difere da que
nós temos. Não experimentavam qualquer tipo de dualismo no seu ser. O
corpo expressava o que eles eram de uma maneira exata. Expressava na
perfeição os dois modos de «ser homem», com a complementaridade
geradora de comunhão. Poder-se-á definir o que eles realmente
experimentavam no corpo de um modo sintético e verdadeiro? Se a resposta
for afirmativa, ser-nos-á possível aproximar-nos dessa experiência, não
apenas concetualmente (como faremos a seguir), mas também
vivencialmente? Será possível mudar o modo como «experimentamos o
corpo» aproximando-nos da situação originária? São estas as questões a que
desejaria responder neste capítulo.
S. João Paulo II introduz um conceito que é, talvez, o mais importante
de toda a teologia do corpo[139]. Trata-se do significado esponsal do corpo. E
define-o assim:
«O corpo humano, com o seu sexo, a sua masculinidade e feminilidade vistos no próprio mistério
da criação, é não apenas fonte de fecundidade e de procriação, como em toda a ordem natural,
mas contém também, desde “o princípio”, o atributo “esponsal”, isto é, a capacidade de exprimir
o amor; precisamente aquele amor em que o homem-pessoa se torna dom e – através deste dom –
realiza o próprio sentido do seu ser e existir»[140].

Viver desse significado implica – ainda em palavras de S. João Paulo II


– «que a doação criadora, que emana do amor, atingiu a consciência original
do homem, que se torna experiência de um dom recíproco»[141]. No fundo, é
como se o homem captasse no seu corpo o amor presente na criação: «eu
“sou para”, o meu corpo diz-me que “sou para”; estou chamado a difundir o
amor pelo qual fui criado».
Para explicar bem este conceito-chave da teologia do corpo, S. João
Paulo II recorrerá ao seguinte texto da Gaudium et Spes: «Quando o Senhor
Jesus pede ao Pai “que todos sejam um […], como Nós somos um” (Jo 17,
21-22), sugere – abrindo perspetivas inacessíveis à razão humana – que há
uma certa analogia entre a união das Pessoas divinas entre si e a união dos
filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança torna manifesto
que o homem, única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si
mesma, não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si
mesmo»[142].
O texto é de uma enorme importância, pois sublinha o que é mais
específico da pessoa e delineia a sua dignidade. «O mundo das pessoas»,
escreveu o então cardeal Wojtyla, «tem as suas próprias leis de existência e
de desenvolvimento»[143]. O texto da Gaudium et Spes indica duas leis
fundamentais: a norma personalista, indicada na frase «o homem é a única
criatura da terra querida por Deus por si mesma»; e a lei do dom, sintetizada
pela afirmação «o homem não se pode encontrar plenamente a não ser no
sincero dom de si mesmo». Na Mulieris Dignitatem, S. João Paulo II explica
sinteticamente o elo entre as duas leis:
«O homem – tanto homem como mulher – é o único ser entre as criaturas do mundo visível que
Deus Criador “quis por si mesmo”: é portanto uma pessoa. O ser pessoa significa tender à própria
realização (o texto conciliar diz “encontrar-se”), o que não se pode alcançar “senão por um dom
sincero de si mesmo”. Modelo de tal interpretação da pessoa é Deus mesmo como Trindade, como
comunhão de Pessoas. Dizer que o homem é criado à imagem e semelhança deste Deus quer dizer
também que o homem é chamado a existir “para” os outros, a tornar-se um dom»[144].

S. João Paulo II explica ainda que o texto conciliar que contém a


verdade sobre o homem «parece precisamente apreender a condição original
ligada a esse mesmo “princípio” do homem no mistério da criação»[145]. É
lógico que assim seja. Se elas são leis intrínsecas ao ser humano, brilharão
logo no homem recém-criado por Deus, pois, não havendo na situação
originária fissuras entre o corpo e a alma, também no corpo se «registavam»
com nitidez essas leis que afetam o homem todo.
Por isso, o corpo deve ter a potencialidade de expressar o dom de si, e
deve ter também a potencialidade de afirmar a pessoa do outro por si
mesma, sem qualquer instrumentalização, expressando o acolhimento do
outro, sem reservas.
Veremos assim como esse texto conciliar permite uma releitura dos
capítulos iniciais do Génesis, contribuindo para uma melhor compreensão do
significado esponsal do corpo.
Será mais fácil para o leitor entender a grandeza desta potencialidade do
corpo se, fazendo um pequeno rodeio, nos detivermos na norma personalista
e na lei do dom para, a seguir, explicarmos melhor como se expressam essas
leis através do corpo e para, depois, entendermos melhor o que é o
significado esponsal do corpo.
10.1. A norma personalista
A norma personalista proíbe de «violar em si e nos outros o mistério da
pessoa, proibição que leva também consigo [a proibição de] transformar a
pessoa em objeto»[146]. Karol Wojtyla, em Amor e Responsabilidade, dedica
longos parágrafos a sublinhar a importância da norma. Eis um deles:
«Esta norma, no seu conteúdo negativo, revela que a pessoa é um bem que não se coaduna com a
utilização, visto que não pode ser tratada como um objeto de prazer, portanto como um meio. O
seu conteúdo positivo aparece paralelamente: a pessoa é um bem tal que só o amor pode ditar a
atitude adaptada e válida a seu respeito»[147].

Portanto, a norma opõe-se frontalmente ao princípio utilitarista que


pretende converter a pessoa em mero instrumento. No domínio da
sexualidade esse «uso» visa, muitas vezes, o prazer («quero estar com aquela
pessoa apenas ou sobretudo porque com ela obtenho prazer»), mas também
pode consistir numa certa instrumentalização da pessoa para impressionar
terceiros, posicionar-se socialmente, sentir segurança, etc. Como o nome
indica, o utilitarismo trata sempre de usar a pessoa, sem ter realmente em
conta o que ela é, o que ela vale por si mesma. Reside aqui, como teremos
ocasião de constatar, o grande campo de conflitos com a moral que a Igreja
ensina. A doutrina de Cristo insiste em recordar que nunca é um bem para o
homem converter a pessoa, seja ela quem for, num «meio para», mesmo que
ela consinta em tal, ou mesmo que ignore que alguém a usa como meio.
Centrando-nos na sua formulação afirmativa, é preciso acrescentar que
querer uma pessoa como fim (amá-la), e não como um mero meio, supõe que
devemos ter em conta o seu ser, a sua liberdade, a sua consciência: não é um
instrumento inerte, sem fins próprios ou irrelevantes. Nunca tratar uma
pessoa como um mero meio para outro fim significa que ela tem fins
próprios, e quem se relaciona com ela deve tê-los em conta.
Bento XVI recorda o mesmo princípio logo no primeiro ponto da sua
encíclica Caritas in Veritate: «Em Cristo, a caridade na verdade torna-se o
rosto da Sua Pessoa, uma vocação a nós dirigida para amarmos os nossos
irmãos na verdade do seu projeto[148]». Não posso amar verdadeiramente o
outro se não amo, respeito e até procuro que alcance o seu próprio fim.
Ao longo das páginas de Amor e Responsabilidade, a formulação da
norma vai-se tornando progressivamente mais contundente:
«Este princípio tem um alcance absolutamente universal. Ninguém tem o direito de servir-se duma
pessoa, de usá-la como um meio; nem sequer Deus seu Criador. Da parte de Deus isto é, aliás,
absolutamente impossível, porque, ao dotar a pessoa duma natureza racional e livre, concedeu-lhe
o poder de indicar, ela mesma por si só, os fins da sua ação, excluindo com isto toda a
possibilidade de reduzi-la a não ser mais do que um instrumento cego ao serviço de fins alheios.
Por conseguinte, quando Deus tem a intenção de dirigir o homem para certos fins, fá-lo antes de
tudo conhecer esses fins para que possa torná-los próprios e tender para eles livremente. Nisto se
funda a própria lógica da Revelação: Deus permite ao homem conhecer o fim sobrenatural, mas
deixa à sua vontade a decisão de tender para ele, de escolhê-lo. Por isso Deus não salva o homem
sem a sua livre participação»[149].

É certo que na própria Escritura se afirma que Deus nos utiliza como
seus instrumentos. Deus explica ao temeroso Ananias que deseja contar com
Saulo para grandes coisas: «Vai, porque este é um instrumento escolhido por
Mim para levar o meu nome aos gentios, aos reis e aos filhos de Israel» (Act
9, 15). No entanto, está fora de questão duvidar da liberdade de S. Paulo para
responder a Deus, e também não há qualquer dúvida de que, ao cumprir a
missão que Deus lhe confia, ele alcança o seu próprio fim. É o próprio Paulo
que, anos mais tarde, perante a alternativa de ser chamado por Deus à vida
eterna e assim estar com Cristo para sempre, por um lado, e o prolongamento
da sua missão aqui na terra, por outro, afirma escolher o segundo (como se
dele dependesse a escolha) pois sabe que, ao aproximar outros de Cristo, ele
próprio não se afastará do seu fim: «Sinto-me num dilema: tenho o desejo de
partir para estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor; mas o
permanecer na carne é preferível por amor de vós. E, persuadido disto, sei
que ficarei e que permanecerei com todos vós para vosso proveito e alegria
da vossa fé» (Fil 1, 23-25).
Esta referência a S. Paulo permite esclarecer que a afirmação de que
Deus ama o homem por si mesmo não significa que o homem não tenha outro
fim além do próprio homem. Deus quer que ele O ame, a Ele – Deus é o fim
último de cada ser humano –, mas quer que O ame livremente, tenda para Ele
com a própria vontade (se autodetermine para Deus), pois só assim o homem
alcançará a sua plenitude. Como se traduz, então, o amor ao outro por si
mesmo, e nunca como um mero meio? Tenho de ter presente que estou diante
de um ser livre, possuidor de bens e fins próprios, que eu não devo ignorar.
Querer uma pessoa por si mesma é estar disposto a englobar o seu próprio
fim no fim da minha ação, ou contar com que ela passe a querer livremente o
fim proposto, fazendo-o também seu, pois permite ser englobado no que é o
seu próprio bem.
Exemplifiquemos: a relação com uma prostituta é, sem margem para
dúvidas, um ato em que se usa uma pessoa sem ter em conta o fim dela. A
mulher é apenas um meio para o prazer próprio do «cliente». Não é correto
afirmar que ela «também quer» esse ato desde que seja recompensada
monetariamente.
A sua perfeição pessoal, a sua dignidade, não fica protegida com o
pagamento. De modo paralelo, um operário explorado no seu trabalho torna-
se um mero meio para o empresário que lhe retribui muito aquém do esforço
realizado[150], apesar de o contrato ter sido voluntário. Já Paulo VI, evocando
a encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, explicava que, «em condições
demasiado diferentes, o consentimento das partes não basta para garantir a
justiça do contrato»[151]. De facto, nessas condições, o querer da pessoa usada
é escravo da própria indigência. A parte mais avantajada devia preocupar-se
em atuar de acordo com a norma personalista.
Deixo no ar, a modo de reflexão, uma questão pastoral: quando um
homem se acusa na confissão de ter frequentado um bordel talvez lhe pese o
facto de ter cedido às paixões e ter ido contra o sexto mandamento; ao acusar-
se, ter-se-á arrependido de ter «magoado» espiritualmente uma pessoa, de a
ter tratado mal, como se fosse um instrumento? Não será que até no
arrependimento a situação da mulher por ele usada é-lhe indiferente, como se
pertencesse à sua natureza ser um objeto? Não terá o sacerdote de ajudar o
penitente a que se arrependa também por ter colaborado na destruição de uma
pessoa?
É preciso pensar nos bens (fins) objetivos das pessoas com quem nos
relacionamos, nos seus fins intrínsecos: «que lhes sucederá no futuro?
Realizar-se-ão como pessoas com as ações que lhes proponho? A sua
dignidade está protegida? Podem ocupar-se das suas famílias? Têm um
mínimo de liberdade para amar a Deus e se santificarem?» Um empresário
pode legitimamente contratar um operário; mas o que não pode é reduzi-lo a
meio de produção e de lucro.
A contratação deve estar permeada pelo amor ao próximo. Por isso, deve
pensar não só no que o operário pode dar com o seu trabalho, mas também se
daquela forma pode proteger os seus fins pessoais, isto é, os fins a que ele
não deve querer renunciar pelo facto de ser pessoa: não pode nem renunciar a
cuidar da sua família, nem violar a própria consciência ou arruinar a saúde.
Ao mesmo tempo,
seria desejável que o operário contratado «quisesse», também ele, o fim da
empresa: encontrar sistemas para que tenha participação nos lucros da
empresa é um dos modos de contribuir para esse querer livre, pois trata-se de
um sinal de que é tratado como uma pessoa com quem realmente se conta,
em quem se pensa, a quem se pretende valorizar corretamente a sua
liberdade, o seu «eu» mais
íntimo[152]. Além, obviamente, de ser quase sempre uma questão de justiça153.
Diariamente, a todos nos faria um grande bem ter presente a norma
[153]

personalista, que estimula e orienta a correta relação com os outros e


permite que os tratemos sempre com a caridade a que a norma impele[154].
Basta pensar numa situação tão simples como a de ser atendido por um
empregado de café. A norma personalista impede-me de contar com o
empregado apenas para me trazer um café e um bolo. Ele não é um robot
que me está a servir, é uma pessoa. Tem direito a um olhar, a um sorriso, a
um agradecimento. Esses pequenos gestos impedem-me de o tratar como
um simples meio e impedem-no de se sentir como um simples instrumento
de outros. Aliás, rezar pelos outros é uma atitude que, além de lhes obter
graças do Céu, é um verdadeiro antídoto contra a tentação de manipular
quem quer que seja, mesmo por breves momentos, e de procurar ter em
conta o bem deles. A oração por uma pessoa pressupõe e atualiza a
consciência de que tem um destino eterno, tem um Pai que é Deus e que a
ama «por si mesma». Esta breve consideração trava, rapidamente, qualquer
redução da pessoa às minhas conveniências.
Será de mais afirmar que o incumprimento desta norma é a raiz dos
piores males do mundo? Não será urgente propor que, no campo educativo,
se formem as crianças para nunca utilizarem ninguém sob um qualquer
pretexto?
A norma personalista deveria impregnar tanto o nosso ser que nos levasse a
rejeitar, imediata e instintivamente, a possibilidade de a transgredir, mesmo
que essa transgressão se reduzisse a um olhar ou a um pensamento: a
dignidade da pessoa é tão grande que nem sequer interiormente deveria
permitir-me a tentação de usar quem quer que fosse como mero
instrumento. Quando alguém utiliza voluntariamente os outros – pense-se
na adição à pornografia, por exemplo, em que se utilizam as pessoas
fotografadas para o próprio prazer doentio –, torna-se quase impossível que,
na vida corrente, não termine também por instrumentalizar aqueles com
quem se relaciona mais diretamente; acabam por ser pessoas que
constantemente têm nas suas cabeças perguntas do género: «que posso tirar
deste colega? Que me pode dar agora e mais tarde?» Quando se adota este
posicionamento para com os outros, a barreira ou o travão a esse uso é
apenas a lei ou um enquadramento social que impede de proceder assim no
imediato.
No fundo, usar o que quer que seja apenas como um meio é partir do
princípio de que o seu fim é apenas aquele que nós, com as nossas ações ou
pensamentos, determinarmos: é apenas o nosso fim. Obviamente, essa
atitude é a correta quando se trata de «coisas», pois elas são meros «meios
para». Por exemplo, usamos uma cadeira para nos sentarmos. Aliás, a
cadeira não tem outro fim além do de conceder-nos a possibilidade de uma
posição cómoda. Podemos usar a cadeira para outro fim distinto, por
exemplo, para nos manter afastados de um cão que nos ameaça. O uso que
dela faça pode ser mais ou menos racional, mas não tenho de pedir-lhe
licença ou desculpa, ao usá-la de um modo
ou de outro.
Com alguns matizes, que para o caso não é relevante destacar, o mesmo
poderíamos afirmar dos animais[155]: eu posso ter um cão para me guardar a
casa. O cão pode manifestar aversão a estar atado, mas não faço mal quando
o prendo por necessidade: o fim daquele cão é o que eu lhe atribuí, sempre
tendo em conta a sua natureza própria e evitando ao animal «sofrimentos»
desnecessários. Mas, no caso do ser humano, o «seu fim» não pode nunca
ser apenas o fim que outro deseje para ele, para benefício ou consolo de
quem tem esse desejo. Não instrumentalizar alguém, amar a pessoa por si
mesma, pressupõe, então, amá-la com o seu bem próprio e respeitá-la no seu
querer.
É preciso acrescentar ao mesmo tempo que, ainda que se trate do fim
último objetivo da pessoa (isto é, do fim do ser humano enquanto tal,
independentemente de alguém o querer mesmo como seu fim último ou não),
posso propor-lho, facilitar-lhe que o queira alcançar; mas em condições
normais não posso prescindir do seu querer explícito. Deste modo, e tendo
presente que a atitude para com a pessoa deve ser o amor, entendemos que o
amor consiste em querer o outro como ser livre que é, contando com o seu
querer, mesmo quando se dá o caso de ter orientado a vida para um mau fim.
Não posso impor a ninguém que ame a Deus, mesmo sabendo que será
felicíssimo quando assim proceder. Logicamente, o que podemos e devemos
fazer é dar-lhe elementos para que possa e queira corrigir-se e amar a Deus.
Precisamente porque sei que é livre, devo apresentar razões que lhe permitam
querer mudar o rumo.
São luminosas as palavras de Bento XVI sobre a caridade cristã e o
modo de atuar na difusão da fé, bem supremo que os cristãos pretendem
colocar ao alcance de todos, sem imposições:
«A caridade não deve ser um meio em função daquilo que hoje é indicado como proselitismo. O
amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins. Isto, porém, não significa que a ação
caritativa deva, por assim dizer, deixar Deus e Cristo de lado. Sempre está em jogo o homem todo.
Muitas vezes, é precisamente a ausência de Deus a raiz mais profunda do sofrimento. Quem
realiza a caridade em nome da Igreja nunca procurará impor aos outros a fé da Igreja. Sabe que o
amor, na sua pureza e gratuidade, é o melhor testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual
somos impelidos a amar»[156].

Resumindo, mesmo querendo para outro um bem objetivamente tão


decisivo como é o dom da fé, devo contar sempre – tanto pelas exigências
intrínsecas da própria fé, que sempre requer um ato livre, como pelo facto de
amar sinceramente a pessoa que gostaria que acreditasse em Cristo – com o
seu querer, rezando e procurando dar-lhe elementos que o ajudem a querer
aderir ao Senhor. O exemplo constante de Cristo é paradigmático. Basta reler,
nesta perspetiva de respeito pelo querer livre da pessoa, o encontro com o
jovem rico (cfr. Mt 19, 17-22). Cristo pretende, sem dúvida, que o jovem
alcance a vida eterna. Mas o jovem deve querer com vontade eficaz e sincera
essa meta. Não a pode alcançar de modo forçado ou com uma vontade débil,
incapaz de ultrapassar dificuldades e renúncias. Na realidade, esse pouco
empenho equivale a um não querer.
Para concluir e insistir na dimensão mais positiva da norma, transcrevo
umas valiosas palavras (mais umas) de Bento XVI:
«Josef Pieper mostrou, no seu livro sobre o amor, que o homem só se pode aceitar a si mesmo se
for aceite por outra pessoa qualquer. Precisa que haja outra pessoa que lhe diga, e não só por
palavras: “É bom que tu existas”. Somente a partir de um “tu” é que o “eu” pode encontrar-se a si
mesmo. Só se for aceite é que o “eu” se pode aceitar a si mesmo. Quem não é amado também não
se pode amar a si mesmo. Este saber-se acolhido provém, antes de tudo, doutra pessoa. Entretanto,
todo o acolhimento humano é frágil; no fim de contas, precisamos de um acolhimento
incondicional; somente se Deus me acolher e eu estiver seguro disso mesmo é que sei
definitivamente: “É bom que eu exista; é bom ser uma pessoa humana”»[157].

10.2. A lei do dom


Já tivemos ocasião de ler o modo como o Concílio Vaticano II formula
esta lei essencial à natureza humana: o homem «não se pode encontrar
plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo».
Permita-se-me narrar um episódio a que tive a graça de assistir ao
vivo.
S. João Paulo II tinha este ensinamento sobre a lei do dom tão incorporado
que, aproveitando um momento informal no termo de um dos distendidos
encontros UNIV[158], comentou da seguinte maneira a letra de uma alegre
canção italiana, então muito na moda, que lhe tinha sido cantada durante o
referido encontro: «Dirijo-me, em primeiro lugar, aos que cantaram em
italiano Si Può Dare Di Più. Parece-me que aqui se encontram umas palavras
muito apropriadas, muito profundas, que dizem o seguinte: “pode-se dar
mais, porque há dentro de nós”. Isto é muito importante: pode-se dar mais,
porque [perchè; o Santo Padre sublinhou de modo expressivo esta palavra] há
dentro de nós. Significa que, quando somos capazes de dar, encontramo-nos
depois com mais dentro de nós. Portanto, isto quer dizer que dar, oferecer,
significa enriquecer-se. Enriquecemo-nos dando. Trata-se de uma estrofe
muito profunda»[159].
Estas palavras espontâneas do «Papa da família» confirmam o conteúdo
da referência conciliar onde se explica que a lei do dom conduz ao
aperfeiçoamento do ser humano. Para melhorar como pessoa, o homem deve
doar-se.
Como já se explicou acima, o concílio fundamenta a lei do dom no
facto de o homem ter sido criado à imagem de Deus Uno e Trino[160]. Essa
união dos filhos de Deus não se realiza sem amor, sem doação, à
semelhança como na Trindade sucede uma inesgotável e mútua doação das
Pessoas. Assim, para justificar a lei do dom no ser humano, por um lado,
recorremos ao conhecimento que é possível ter do inesgotável mistério
trinitário, mas, por outro, ela é confirmada pelas seguintes palavras de
Cristo: «Quem se prende à sua vida perdê-la-á, e quem perder a sua vida por
meu amor, achá-la-á» (Mt 10, 39).
A lei do dom não só não é algo extravagante, mas é um convite a que o
homem viva de acordo com a sua natureza, criada á imagem e semelhança
de Deus, que é Amor.
Na verdade, Deus deixou plasmada em toda a Criação e em toda a
Redenção a profunda marca do dom.
Nas catequeses de teologia do corpo, depois de descrever a tríplice
experiência de Adão e Eva na sua situação originária, S. João Paulo II afirma
que vai reler essa experiência à luz da «hermenêutica do dom»[161]. Toda a
Criação deve ser entendida como dom e, sob essa luz, torna-se mais
percetível a essência e o fim do homem. Além disso, a vontade de doação de
Deus é como que o elo comum entre a Criação e a Redenção, e assim
aproxima esses dois âmbitos no nosso modo de compreender a realidade,
facilitando a compreensão sobre a importância da lei do dom presente no
homem, que, nessa ampla perspetiva teológica, adquire todo o seu sentido e
grandeza: ela reflete algo da vontade criadora e da vontade redentora de
Deus[162]. Atuar de acordo com essa lei de algum modo «diviniza» o homem.
Embora, intuitivamente, a lei do dom tenha pleno sentido – porventura
por vivermos numa civilização de matriz cristã –, se nos detivermos um
pouco nela surgem interrogações consistentes. Devemos, porventura, tornar-
nos escravos? Alienar o «eu»? Será sempre correta a expressão «dom de si»
para expressar a doação efetiva? Em Amor e Responsabilidade, o então
futuro Papa João Paulo II delimita o enquadramento legítimo para esta
doação. É explícito ao afirmar que a pessoa é, por essência, inalienável:
«É portanto não só senhora de si mesma (sui iuris), mas nem sequer se pode alienar ou dar. A
natureza da pessoa opõe-se ao dom de si mesma. De facto, na ordem da natureza, não se pode
falar de dom duma pessoa a outra, sobretudo no sentido físico da palavra. O que há de pessoal em
nós está acima de toda a forma de dom, seja de que maneira for e acima de qualquer apropriação
em sentido físico. A pessoa não pode, como se fosse apenas coisa, ser propriedade doutra»[163].
Negar esta explicação seria negar, implicitamente, a norma
personalista.
Ninguém se deve autoescravizar, renunciar à totalidade da sua liberdade,
entregar o exercício dessa liberdade a outro, desresponsabilizando-se pelas
próprias opções de vida: não se pode nunca alienar o «eu» mais íntimo pelo
motivo que seja.
Mas então como compaginar isto com a lei do dom – como entendê-la,
sobretudo – depois de já termos afirmado que o máximo expoente do
exercício da liberdade é a liberdade do dom, a liberdade que se expressa
como dom? Ou, para falarmos num «terreno» mais concreto: dado que tanto
no casamento como no celibato pelo Reino a pessoa abraça um modo de vida
que é para sempre, renuncia, então, à liberdade?
Um exaustivo estudo de alguns teólogos sobre o pensamento de S.
Josemaria Escrivá oferece pistas para um correto entendimento destas
questões. Afirma-se nessa obra:
«“Eu não consigo explicar a liberdade sem a entrega, nem a entrega sem a liberdade: cada uma
delas sublinha e reafirma a outra” (S. Josemaria Escrivá, Carta 31-V-1954, n.º 24). As primeiras
palavras contêm diretamente a ideia […] [de que] a liberdade se realiza ou alcança o seu pleno
sentido com a entrega a Deus, isto é, com o amor a Deus manifestado na dedicação da própria
vida ao cumprimento da sua vontade. Essa dedicação aumenta a raiz da liberdade porque
“quando nos decidimos a responder ao Senhor: a minha liberdade para Ti, encontramo-nos
libertos de todas as cadeias que nos atavam a coisas sem importância, a preocupações ridículas, a
ambições mesquinhas. E a liberdade – tesouro incalculável, pérola maravilhosa que seria triste
lançar aos animais […] – emprega-se inteiramente em aprender a fazer o bem” (S. Josemaria
Escrivá, Amigos de Deus, n.º 38). […] A entrega a Deus deve ser livre: não só no início, na
primeira decisão, mas permanentemente livre. Neste sentido […] S. Josemaria convida a servir a
Deus com “voluntariedade atual” (Forja, n.º 396). Esta disposição da vontade aumenta a raiz da
liberdade»[164].

Para reforçar o primeiro elemento do binómio, que é o que mais


perplexidades causa na mentalidade hodierna – «como é possível ser livre se
me comprometo com alguém e assim diminuo a capacidade de poder vir a
escolher» –, acrescenta-se:
«Aos que pensam que entregar-se a Deus e ao serviço dos outros é “perder a liberdade” e, por isso,
querem “conservá-la”, de modo que, em vez de escolher a entrega por amor, preferem manter a
liberdade como possibilidade de dar-se ou não dar-se, [S. Josemaria] faz-lhes notar que ao atuar
assim estão a converter a liberdade em fim em si mesmo, num objeto inerte […], e na realidade
estão a arruiná-la. “São almas que fazem barricadas com a liberdade. A minha liberdade, a minha
liberdade! Têm-na e não a seguem; olham para ela e põe-na como um ídolo de barro dentro do seu
entendimento mesquinho. É isso liberdade? Que aproveitam dessa riqueza sem um compromisso
sério, que oriente toda a existência?” (Amigos de Deus, n.º 29)»[165].

Suponho que o leitor vai entendendo toda a complexidade envolvida no


mo-
do de explicar bem como é que «dar-se» é a expressão mais perfeita da
liberdade.
Continuemos a balizar o conceito. Seria contra o bem objetivo da pessoa
deixar absolutamente o seu destino nas mãos de outro, querer ser como uma
marioneta de outrem, ou um escravo (no sentido literal do termo), sem opção
para qualquer exercício da liberdade pessoal. Quando, por exemplo, a Igreja
trata do tema dos transplantes, depois de elogiar a atitude de quem, sob
determinadas condições, deseja doar os órgãos para benefício de terceiros,
recorda que a doação em vida só é legítima quando «não envolva uma
diminuição física grave e irreparável para o dador»[166]. Não seria bom «doar»
tudo, neste sentido físico.
No campo conjugal, a esposa não deve entregar-se ao marido para que
ele faça com ela o que desejar; nem vice-versa. Realmente, ambos têm de
opor-se decididamente a eventuais propostas de atos imorais, contra a
natureza. Os esposos devem, como a seguir veremos, doar-se mutuamente,
renunciando a grandes áreas da sua esfera pessoal, mas essa doação nunca
pode ser universal. Quando falarmos da totalidade da doação que deve estar
presente no amor conjugal, devemos entender essa totalidade como referida
a tudo o que a pessoa pode doar: pode entregar o tempo, os afetos, a
primazia do coração, o futuro com certas opções inerentes, os bens materiais,
os projetos e até a própria vida corpórea (em casos-limite de martírio); mas
não pode prescindir do «eu», pois, se assim fosse, cessaria a possibilidade de
se doar daí para a frente, visto que já não seria dona de si própria, condição
necessária para efetuar essa constante doação. Por isso, não é lícito que
alguém ceda no que respeita ao seu eterno destino em Deus, mesmo que
pretenda fazê-lo em nome de outro. Para seguir com o mesmo exemplo, não
é lícito à esposa condescender em atos imorais com o marido, pensando ser
preferível tê-lo contente e sossegado em vez de proteger a sua própria
intimidade com Deus. Nesse e noutros casos semelhantes, se houvesse
cedências desse estilo, a pessoa expor-se-ia a fechar a possibilidade de amar
por toda a eternidade, em oposição às suas exigências mais íntimas; e, já
aqui na terra, a sua capacidade de dar-se, que provém de Deus, fonte de todo
o dom, ver-se-ia seriamente comprometida.
Na minha opinião, é muito importante considerar que a doação total do
«eu», a Deus ou ao próximo, deve ser entendida como uma doação que
mantém em ato a própria doação, isto é, exige a permanente autoposse do
«eu», para se entregar continuamente ao outro. O ser humano tem a
capacidade de renunciar a certas opções futuras por amor, como sucede no
casamento: os esposos renunciam livremente a outros possíveis
enamoramentos porque desejam ser um do outro até à morte. Mas esse
compromisso reclama o esforço por manter a doação do seu «eu» ao cônjuge
num sentido dinâmico. Uma atitude estática, de inércia, do estilo «paciência,
casei-me há 10 anos e agora aguento isto», não corresponde plenamente à
doação prometida. Não se trata, nessa infeliz situação, de procurar o
divórcio, mas sim de voltar ao primeiro amor, redescobrindo
os motivos para viver aquilo a que se comprometeram, e assim voltarem a
doar-se um ao outro.
Até no Céu, como se estudará no ciclo dedicado à ressurreição, esta lei se
verificará. Não nos diluiremos num ser infinito, descaracterizando-nos. Pelo
contrário, o «eu», pelo amor que de Deus recebe, «transbordará» numa
resposta eterna de amor sem reservas ao próprio Deus e aos outros: cada um
sentir-se-á plenamente querido por si mesmo e responderá livremente com
uma doação total de si. Experimentar-se-á o «eu» mais do que nunca, pois
cada um fica plenamente afirmado pelo amor de Deus que nos diz: «quero
que existas para sempre».
Portanto, no dom que a pessoa faz de si, «encontramos uma prova clara
da posse de si mesma»[167]. A pessoa só se pode doar porque é livre, porque é
dona de si própria. No final da catequese de 16 de janeiro – essencial para se
entender o significado esponsal do corpo –, S. João Paulo II oferece um
argumento adicional que ajuda a comprovar que a liberdade humana é
condição para uma tal doação, e que é essa plena doação livre que se verifica
(ou se deve verificar) no matrimónio e no celibato pelo Reino. Ao evocar os
que se entregaram pelo Reino dos Céus, afirma:
«Se Cristo revelou ao homem e à mulher, acima da vocação do matrimónio, uma outra vocação –
a de renunciar ao matrimónio em vista do Reino dos Céus –, com esta vocação sublinhou
exatamente a mesma verdade acerca da pessoa humana. Se um homem ou uma mulher são
capazes de fazerem doação de si próprios pelo Reino dos Céus, isto prova por sua vez (e
porventura até mais ainda) que há a liberdade do dom no corpo humano»[168].

Por outras palavras: o matrimónio não é um fatalismo ou um formalismo


que «veste» socialmente uma relação genericamente inevitável, na qual um
homem deveria estar sempre com uma mulher e vice-versa. A existência da
opção pelo celibato reafirma que também o matrimónio é uma opção livre, é
uma resposta livre para uma doação de si.
Interessa-nos agora aprofundar no conteúdo da lei do dom, ou melhor,
nos modos concretos em que se expressa. Na prática, como se realiza este
dom da pessoa? É provável que a primeira resposta que nos venha à cabeça
seja a palavra «sacrifício». Mediante o sacrifício de si, a pessoa é dom para
outros. Encontramos um belo exemplo de amor sacrificado entre esposos no
romance Corpos e Almas. O protagonista, Michel Doutreval, um jovem
médico, algo fútil, enamora-se de uma doente de tuberculose, a frágil e
delicada Évelyne. Contra a vontade do pai, uma sumidade em medicina,
acaba por casar-se com ela. O pai, furibundo, deserda-o. Com o tempo,
Michel deverá renunciar igualmente a sugestivos projetos profissionais para
defender o amor à esposa. No final do romance, o autor faz uma magnífica e
explícita apologia da lei do dom:
«O amor do homem e da mulher não será, pois, também, como o resto da vida humana, o
símbolo, o reflexo duma grande obra de resgate? É por isso que o amor tem essa exigência e esta
promessa: “Renuncia a ti mesmo, e encontrar-me-ás”. Fez-se mister que o marido de Évelyne
renunciasse, se despojasse do egoísmo e, como querem as Escrituras, se sacrificasse por aquela
com quem casou. Resgatou-se. E hoje, purificado de tudo quanto lhe restava de material e
terreno, ama com outra indestrutível ternura e pode declarar ao ente querido: “Amo-te!”»[169].

O exemplo-cume do sacrifício como expressão do amor-doação é o


martírio e, dentre os martírios, a morte de Cristo na Cruz. O próprio Cristo
esclarece: «Não há maior amor do que dar a própria vida pelos seus amigos»
(Jo 15, 13).
No entanto, além do sacrifício por amor, há outros modos de autodoação
com enorme relevância. O professor Colosi assinalou brilhantemente um
desses modos, que se traduz em múltiplas concretizações:
«O sacrifício é apenas um dos modos do dom de si, e sendo certamente uma dimensão importante
do casamento, não é a forma do dom de si que predomina em K. Wojtyla/João Paulo II, em Amor
e Responsabilidade e na teologia do corpo.
O nome para esse tipo do dom de si poderia ser denominado “revelação” [revealing]. A revelação
difere do sacrifício como forma de dom de si, porque no sacrifício o dom que é dado perde-se
[…], mas na revelação o bem que é dado não se perde, mas é antes partilhado ou apresentado a
outro»[170].

Subentende-se que a revelação de si é um modo de concretizar a doação


de si, sem que tal signifique que qualquer abertura da intimidade seja sinal de
dom (pode ser pura vaidade exibicionista, por exemplo), do mesmo modo que
o «sacrifício» em sentido amplo, enquanto disposição para suportar um
sofrimento, nem sempre é sinónimo de que o amor é a sua causa (há quem
padeça sofrimentos para se poder vingar). Mas há aberturas de intimidade
que são verdadeiros dons. Por exemplo, quando um amigo confia a outro um
importante segredo da sua vida; ou quando um sacerdote abre a sua alma
numa pregação expondo as luzes que Deus lhe deu num tempo de oração, etc.
É necessário reconhecer a importância da revelação como dom de si, e é
fácil fazer a ligação com um dos pontos do Catecismo da Igreja Católica,
quando afirma: «Toda a vida de Cristo é revelação do Pai»[171]. Isto é, Cristo,
desde a Conceção até à Ascensão, mostra-nos constantemente Deus. «Quem
Me viu, viu também o Pai» (Jo 14, 9), explica Jesus a Filipe. E S. Paulo
insiste: «Ele [Cristo] é a imagem do Deus invisível» (Col 1, 15). A
consideração da revelação como manifestação do dom de si consegue fazer-
nos entender, de modo mais intuitivo do que é habitual, que Cristo é, Ele
mesmo, o dom de Deus, o dom de Si aos homens. Esse dom, é certo, alcança
o cume no sacrifício da Cruz, mas toda a vida de Jesus é dom também pelo
facto de ser «revelação», abertura da intimidade de Deus aos homens. Em
qualquer momento da sua vida, Cristo está sempre a ser dom de Si em ato.
Por isso, qualquer passagem dos Evangelhos deve ser lida com profundo
agradecimento a Deus, que nos vai demonstrando o seu amor por nós,
revelando-nos a sua intimidade em Cristo, e doando-nos, de algum modo,
essa intimidade[172]. Aliás, o próprio Jesus afirma aos Apóstolos que um sinal
claro de que os ama e os trata como amigos e não como escravos é o facto de
lhes ter dado a conhecer «tudo o que ouvi de Meu Pai» (Jo 15, 15).
Perceber os conteúdos do amor-doação aproxima-nos do modelo
trinitário, em que não há «reservas» quanto à doação mútua das Pessoas
divinas, a ponto de a fé nos dar a certeza de que Deus é um só. Ao mesmo
tempo, o que distingue as Pessoas divinas não tem intercâmbio possível: o
Filho nunca será o Pai, por exemplo. Esta brevíssima consideração
(necessitada de muitos matizes) ajuda a entender mais corretamente o dom de
si, ao mesmo tempo que permite perceber a razão pela qual o ser humano,
para alcançar a sua perfeição máxima, deve doar-se: «perdendo» assim a sua
vida, a sua intimidade, não só não se despersonaliza como vê reforçado o seu
«eu», à imagem das Pessoas divinas e à imagem de Cristo, que, dando a sua
vida, a recuperou com características singulares. A nossa entrega por amor
faz entender que o que é «dado» por amor é recebido por outros e, no fundo,
sempre o é por Deus, fonte de todo o amor, que sempre «insufla» nova vida a
quem assim ama.
Além de ter sido necessário delinear com certa precisão o que é a lei do
dom e como se pode manifestar e concretizar, convém proceder a uma nova
anotação, que facilita penetrar um pouco mais na sua compreensão. O facto
de o homem só encontrar a plenitude na entrega de si próprio aos outros não
significa que possa prescindir de ser amado. Por outras palavras, a lei do dom
não pressupõe que o homem deva renunciar à vontade de ser acolhido e
amado, coisa antinatural e desumana. Na encíclica Deus Caritas est, Bento
XVI, com o realismo do senso comum, explica:
«O homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. Não pode
limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em
dom. Certamente, o homem pode – como nos diz o Senhor – tornar-se uma fonte donde correm
rios de água viva (cfr. Jo 7, 37-38); mas, para se tornar semelhante fonte, deve ele mesmo beber
incessantemente da fonte primeira e originária que é Jesus Cristo, de cujo coração trespassado
brota o amor de Deus (cfr. Jo 19, 34)»[173].

Ainda de modo mais conciso, na Mensagem para a Quaresma de 2007,


insistia na ideia de que até em Deus se pode falar de um certo eros, pois Deus
quer o nosso amor. Em que sentido? No sentido em que, para Deus, a nossa
resposta não Lhe é indiferente. Por maiores que sejam as dificuldades em
explicar esta realidade – bem difícil de entender –, Cristo mostra-nos que
deseja o nosso amor: «Na Cruz é o próprio Deus que mendiga o amor da sua
criatura»[174]. Deus quer o nosso amor. É importante trazer aqui esta
explicação para que, quando nos voltarmos a centrar no «princípio», na
situação originária, não queiramos traduzir a lei do dom (tão nítida nesses
momentos puros de graça) como uma lei que prescinde da resposta do
outro[175].
Se, na norma personalista, o que se opunha à pessoa era a sua
instrumentalização – ser convertida em mero «meio para» –, o que será
aquilo que mais se opõe à lei do dom? A resposta deverá ser: tudo o que se
oponha às características do dom. Por exemplo – e sem pretensões de esgotar
essas características –, como o dom é gratuito e oferecido livremente, opõe-se
a esta característica o que se adquire por negócio ou aquilo que a pessoa é
forçada a «dar», seja por coação física seja por coação moral. Assim, a Igreja
alenta a doação de órgãos depois da morte como uma manifestação de dom
de si, exortando a que seja realmente dom, evitando o aspeto de um negócio
de compra e venda[176].
O dom é feito de pessoa a pessoa; opõe-se a esta característica o
esbanjamento indiferente ou uma transação comercial onde importa pouco a
quem se dá, a não ser na medida em que isso condicione o lucro. Ninguém
duvida de que, na pornografia, em que o corpo da pessoa é colocado à
disposição de muitos, não há propriamente um dom de si, um ato de
generosidade que pressupõe pensar no bem dos destinatários.
O dom envolve um elemento de surpresa, de algo imprevisivelmente
grato. Pelo contrário, quando, por exemplo, se trata de negociações, qualquer
elemento de surpresa é fator de estranheza e desconfiança. No aniversário de
alguém, é tradicional que se pretenda surpreender a pessoa, dar-lhe mais do
que aquilo que espera. Pelo contrário, na ausência de amor procura-se,
quando se trata de alguém justo, dar exatamente o que o outro espera, nem
mais nem menos.
Concluamos as reflexões sobre a lei do dom com duas referências
adicionais: a primeira pertence ao então cardeal Wojtyla, nos exercícios
espirituais que pregou à Cúria Romana, em março de 1976; a segunda é de
Bento XVI.
No primeiro texto, vislumbramos, por um lado, o alcance que a lei do
dom deve ter e, por outro (o que, na minha opinião, é ainda mais
surpreendente), o modo cativante como é apresentada esta lei, que não é mais
do que a irradiação do Amor:
«Este “Dom do alto”, o Espírito Santo, devolveu aos homens, às relações humanas, ao
matrimónio, à família, aos diversos ambientes sociais, às nações e aos Estados, o sentido
fundamental do dom e de ser “doação”. Semelhante consciência é um fruto do Espírito de Cristo;
é resultado da irradiação do Amor, que dá um perfil fundamentalmente diverso a todas estas
relações e sistemas. Desta consciência tem de derivar uma cultura diferente e uma diferente
civilização, diferentes relações de produção e de distribuição de bens»[177].

Na linha desta “irradiação do dom” com a sua a expressão social, seria


interessante aprofundar no «princípio da gratuidade», referido por Bento XVI
em diversas passagens da encíclica Caritas in Veritate. Repete com
insistência que ele deve estar profundamente inserido em todas as etapas da
vida económica e social, e não ser introduzido apenas no final da cadeia de
produção, depois de cumpridas as exigências da justiça. A gratuidade deve
estar presente em todo o processo e deveria ser considerado um princípio que
condicionasse o comportamento habitual[178].
10.3. O significado esponsal do corpo
As considerações sobre a norma personalista e a lei do dom permitem
uma mais frutuosa releitura da situação originária no Paraíso, de modo a
entender melhor o que é, ao certo, o significado esponsal do corpo.
Como já referi, esse significado traduz a capacidade que tem o corpo de
expressar o que é essencial ao ser humano: com o corpo, o homem pode
expressar o amor-doação e a capacidade de acolhimento do outro por si
próprio. Vejamos com mais pormenor estas duas características do
significado do corpo, tal como este se contempla na situação originária
descrita no livro do Génesis.
O homem e a mulher eram, cada qual, um dom sincero para o outro. Dos
versículos precedentes à criação de Eva, fica patente para o leitor que Deus
vai fazer um dom ao homem, ainda que facilmente se deduza que se trata
também de um dom à mulher recém-criada, pois também ela recebe o homem
como dom. O dom que é cada um para o outro pressupõe – a natureza
humana inclui a liberdade – que cada um queira ser dom para o outro, queira
expressar a sua liberdade, doando-se mutuamente e sem reservas. Por isso,
eles estão nus, isto é, apresentam-se «em toda a realidade e verdade do seu
corpo e sexo»[179] e, ao mesmo tempo, não padecem de vergonha, pois
experimentam a plena libertação «de qualquer constrangimento do corpo e do
sexo»[180].
É como se dissessem um ao outro: «não tenho nada a esconder, pois o
que eu sou é para ti; não tenho de defender-me de ti nem tenho de defender-te
de mim». De acordo com o que referimos anteriormente, na situação
originária, a própria nudez enquanto revelação da pessoa é uma expressão da
doação da intimidade ao outro. Essa doação é plenamente possível pelo facto
de serem livres, com a liberdade do dom (a liberdade que se expressa como
dom), liberdade essa que pressupõe um pleno autodomínio, pois só assim
podem doar-se plenamente a si próprios.
Essa plena liberdade é o fundamento do sentido esponsal do corpo: sem
o perfeito domínio de todo o seu ser, não seriam plenamente livres para poder
expressar com o corpo a doação total. Ao longo dos capítulos seguintes,
veremos como a recuperação do significado esponsal do corpo, que cada um
é chamado a realizar mediante a graça redentora de Cristo, tem uma estreita
ligação com
a liberdade.
Antes do pecado, a doação não envolvia «sacrifício», conceito alheio a
um estado que era isento de qualquer sofrimento. De que modo se poderia
então concretizar a doação? Certamente, o amor-doação, nos tempos da pré-
história teológica, estaria na linha do que antes se referiu: a revelação do
«eu», da intimidade, entendida como doação de si. Adão entrega-se a Eva (e
vice-versa) comunicando-lhe o seu interior, o seu «eu» mais profundo, o «eu»
a que Eva não teria acesso se ele não lho mostrasse e entregasse sem medo.
Por isso, a nudez corporal, a não necessidade de se cobrirem à vista do outro,
manifesta a íntima disposição de nada reservar na entrega: «o que sou está à
vista, revelo-to sem nada esconder». Na minha opinião, é neste contexto, de
revelação do «eu» como manifestação de doação ao outro, que se insere a
união conjugal (o ato sexual). É importante entender bem que o significado
esponsal do corpo não se manifesta apenas na união conjugal, ainda que ela
esteja integrada nessa doação e seja uma sua expressão privilegiada no casal.
Em Tríptico Romano, S. João Paulo II afirma que Adão e Eva sabem que
são dom um para o outro, mesmo antes de alcançarem a doação física:
«[Adão e Eva] vivem conscientes do dom, embora não saibam exprimi-
lo»[181].
Integrado na doação ao outro, que o corpo reflete, o ato conjugal é então
entendido como entregar parte do «eu» íntimo, do «eu» a que o outro não
teria acesso se não fosse doado. Mesmo fisicamente, Adão deposita em Eva
uma parte do seu «eu», precisamente aquela parte que não só permite a Eva
«conhecer» quem é o seu marido e as riquezas que tem para entregar, como
lhe permite igualmente conhecer-se melhor a si própria, pois o que o marido
lhe entrega faz brotar nela o que de melhor pode dar. Não sabemos se essa
expressão da entrega se realizou antes do pecado original. O livro do Génesis
só fala dela depois do pecado, pois foi apenas então que Eva concebeu. Mas
nada impede de pensar que, antes do pecado, essa expressão de doação se
tivesse realizado, de modo semelhante ao que se descreve quanto à
alimentação: o primeiro alimento explicitamente referido é fruto da árvore da
ciência do bem e do mal; significará isso, porventura, que antes não comeram
nada?
A união física dos dois reforça e esclarece a característica da doação
mútua. É ainda S. João Paulo II a descrever poeticamente as consequências
de uma tal doação: «E quando se tornam “um só corpo” – ó admirável união
– no horizonte deste conúbio desabrocham a paternidade e a maternidade. – É
então que atingem as fontes da vida, que neles se encontram»[182].
A união física ajuda a explicar a importância da complementaridade.
Essa união do homem com a mulher faz encontrar dentro de cada um deles
potencialidades escondidas, que só com o outro podem desabrochar. Perante
a mulher, o homem descobre virtualidades presentes nele e que, sem a
presença da mulher, não se concretizariam. E vice-versa.
Esta afirmação é absolutamente inequívoca nos casos da paternidade e da
maternidade. Mas também há outras características da experiência comum
que ensinam o modo como, perante as virtualidades femininas, o homem
aprende a reagir «de outra maneira». E ao contrário. Não se trata de imitar a
mulher (ou que a mulher imite o homem), mas sim de saber que há aspetos
no seu ser que, na presença do outro sexo, fazem desabrochar nele elementos
mais perfeitos. Perante a mulher – um rapazinho junto da mãe, por exemplo
–, o homem aprende com mais facilidade o que é a ternura ou a compaixão
pelo semelhante. Ele tem essa capacidade, mas tem de aprender a cultivá-la.
E a presença feminina é sumamente favorecedora. Algo parecido sucede na
mulher junto do homem em relação a outras virtualidades.
Até aqui a releitura do livro do Génesis tendo presente a lei do dom. E
que dizer dessa releitura partindo agora da norma personalista? Ao estarem
cheios do amor de Deus, Adão e Eva podiam receber-se um ao outro à
imagem do amor de Deus por cada um, isto é, recebendo a pessoa do outro
sem qualquer tipo de instrumentalização, por si mesma. Se o homem e a
mulher se acolhem reciprocamente tal como o Criador os quer, tal como o
Criador os ama, isto é, por si mesmos, nutrem um profundo respeito por tudo
o que é próprio de cada um. Portanto, Adão nutria um profundo respeito pela
feminilidade de Eva, e Eva pela masculinidade de Adão[183]. O corpo expressa
esse acolhimento do outro sem reservas e com reverência.
Precisamente porque Adão «sabe» que Eva o receberá assim, respeitando
o seu ser mais íntimo, não sente qualquer receio perante a esposa; e Eva não
sente nenhum receio diante de Adão. Por isso, não têm vergonha um do
outro. Ou seja, à revelação do «eu» como manifestação do amor-doação
corresponde o total acolhimento do outro, que é recebido sem fissuras ou
«dissecações». Adão começa por reconhecer que Eva é «carne da sua carne»:
reconhece-a, portanto, como pessoa, e é como pessoa que a vai receber. E
recebe-a em todo o seu ser, também com a sua capacidade de ser mãe.
Agora, podemos finalmente especificar melhor o significado esponsal do
corpo. É, sem dúvida, a capacidade para expressar o amor no qual o homem
se converte em dom, mas também é capacidade e disponibilidade para a
«afirmação da pessoa» que é acolhida à imagem do amor do Criador, que a
quer por si mesma, como alguém único e irrepetível, como alguém escolhido
pelo Amor eterno.
Existe ainda um aspeto adicional que pertence ao significado esponsal
do corpo. Trata-se da dimensão beatificante – de profundo contentamento –,
consequência da própria doação e do próprio acolhimento recíprocos: é fonte
de profunda alegria dar-se a outro sem reservas, sentir-se acolhido sem
reservas e acolher o outro sem reservas.
É patente, no texto do Génesis, a ligação entre a experiência do
significado esponsal do corpo e a felicidade originária do homem, traduzida
pela exultante exclamação de Adão ao ver Eva. O significado esponsal é,
pois, beatificante, explica a felicidade originária do homem, pois o homem
encontra a sua plenitude na doação de si e, ao mesmo tempo, na plena
afirmação da sua pessoa, pois foi criado com a necessidade de ser e saber-se
querido por si, sem ser nunca instrumentalizado. A alegria que marca o
despertar de Adão perante Eva é um eco do próprio contentamento de Deus
quando viu que tudo era muito bom. Adão participa desse contentamento,
pois participa igualmente da vontade de doação.
Portanto, o significado esponsal do corpo, no seu sentido pleno, significa
a capacidade que tem o corpo para expressar a doação de si. Significa
igualmente a capacidade de receber o outro por si mesmo; e, ao fazê-lo, gera
no homem um estado de peculiar felicidade porque essa doação e esse
acolhimento correspondem à mais profunda verdade do seu ser, nele
inscritos pelo ato criador[184].
S. João Paulo II insiste muito na íntima relação entre o significado
esponsal e o amor consolidado. O aspeto beatificante, de profunda alegria, é
decisivo para essa conclusão: «A felicidade é o enraizar-se no Amor. A
felicidade original fala-nos do “princípio” do homem, que surgiu do Amor e
deu início ao amor»[185]. Apesar da dificuldade envolta na afirmação,
podemos observar algo muito prático: descobrir o significado esponsal do
próprio corpo nada tem que ver com uma descoberta de supostas forças
ocultas ínsitas em nós, mediante uma qualquer filosofia ou religião de sabor
oriental. Na realidade, quando, por exemplo, um casal se ama de verdade,
vive de acordo com esse significado mesmo que não tenha o conceito dele –
como, presumivelmente, não o tinham nem Adão nem Eva.
S. João Paulo II sentiu a necessidade de explicitar, ao longo das
catequeses, que descobrir o significado esponsal do corpo – tarefa essencial
para qualquer ser humano, sobretudo se quisermos experimentar no corpo os
efeitos da Redenção de Cristo – não é apenas entender um conceito, uma
ideia. Trata-se de aprender a viver de acordo com esse significado. Adão e
Eva «viviam» de acordo com ele. Por isso, estando nus, não experimentavam
qualquer vergonha. Com expressão própria, S. João Paulo II afirma que «o
significado esponsal do corpo […] na situação da inocência original
constituía a medida do coração de ambos, do homem e da mulher»[186]. A
capacidade de o corpo expressar a doação plena era vivida como que «desde
dentro» pelo homem e a mulher. O seu coração sentia e atuava de acordo com
o significado pleno do corpo. O homem e a mulher viviam espontaneamente
como mútuo dom e aceitavam-se sem reservas.
Repito que, para termos um desejo sincero de aproximar-nos desse
significado vivido de forma diáfana por Adão e Eva, é mister ter bem
presente que «o “significado” do corpo não é apenas algo concetual. […] é
simultaneamente aquilo que determina a atitude: é o modo de viver o corpo.
É a medida que o homem interior – isto é, aquele “coração” ao qual Cristo
se refere no Sermão da Montanha – aplica ao corpo humano em relação à
sua masculinidade/feminilidade (e, portanto, à sua sexualidade)»[187]. Com
estas densas palavras, podemos intuir que, quando o homem aplica ao corpo
a real capacidade de amar (dar-se e receber o outro), vive de acordo com as
suas possibilidades reais. Quando, pelo contrário, aplica ao corpo uma
medida menor, convertendo-o em mero instrumento de satisfações, o corpo
(próprio e do outro) passa a significar apenas «uma coisa», um objeto.
Por isso, S. João Paulo II insistiu em que o conjunto doutrinal destas
catequeses é não só uma teologia do corpo mas, sobretudo, uma pedagogia
do corpo, a qual visa autoeducar o homem[188]. É preciso aprender a viver o
significado esponsal inerente ao corpo. A explicação intelectual é uma
premissa que facilitará descobrir esse significado no mais íntimo do nosso
ser, para facilitar que se viva de acordo com ele. Mas não basta.
A teologia do corpo tem, assim, uma missão educativa, não meramente
teórica. Aliás, se se quiser entender bem a teologia do corpo não basta
«estudar» o seu conteúdo: é necessário procurar viver de acordo com ele.
Todos podem e devem fazê-lo.
Concordo com Mary Healy quando afirma que, a «um nível natural, o
casamento é a expressão mais completa do significado esponsal do corpo. A
comunhão que existe no casamento é única, pois o dom de si é total e
exclusivo. A sua expressão corporal é o sinal de uma aliança inquebrantável,
na qual os esposos se comprometem entre si numa união para a vida»[189]. No
entanto, importa acrescentar que o significado esponsal do corpo não se vive
apenas no matrimónio, e menos verdadeira ainda seria a dedução de que,
dentro dele, a única expressão desse significado seria o ato conjugal. S. João
Paulo II reafirma explicitamente o contrário no ciclo final: mesmo entre os
esposos, o significado esponsal tem várias manifestações de afeto; entre elas
encontra-se, certamente, o ato conjugal, que – ao contrário de outras
manifestações – está intrinsecamente ligado ao significado procriativo do
corpo: «A emoção provocada por outro ser humano como pessoa, embora no
seu conteúdo emotivo seja condicionada pela feminilidade ou pela
masculinidade do “outro”, não tende de per si para o ato conjugal, mas
limita-se a outras “manifestações de afeto”, nas quais se exprime o
significado
esponsal do corpo, e que todavia não contêm o seu significado
(potencialmente) procriativo»[190]. Por agora, basta constatar que, mesmo
entre esposos, há manifestações do significado esponsal do corpo além do ato
sexual.
Por tudo isto, o significado esponsal pode (e deve) ser experimentado por
todos os que amam e se entregam, seja no casamento seja no celibato.
Permanece, no entanto, válida a intuição da importância do casamento para se
obter o conceito, sobretudo se tivermos em conta que é a partir desse âmbito
originário que se capta o seu conteúdo. Como vimos, S. João Paulo II, de
facto, deduz o seu conteúdo da contemplação das páginas iniciais do livro do
Génesis. Contudo, numa das audiências do ciclo seguinte, acrescenta: «A
experiência do significado esponsal do corpo está subordinada, de modo
particular, ao apelo sacramental, mas não se limita a este. Este significado
qualifica a liberdade do dom que […] pode realizar-se não só no matrimónio,
mas também de modo diverso»[191].
Digamo-lo por outras palavras: é pelo matrimónio – em particular pelo
matrimónio originário, com a intrínseca experiência da nudez sem vergonha –
que se descobre a potencialidade do corpo para expressar o amor-doação e o
seu poder para manifestar o acolhimento do outro por si próprio. No entanto,
essa descoberta é, muitas vezes, intuitiva a todos aqueles que tiveram a graça
de viver numa família onde puderam ver um amor esponsal autêntico. Viam
que os pais se entregavam um ao outro com toda a força do seu ser. Depois,
uma vez explicado a essas pessoas o conceito de «significado esponsal», é
possível consciencializarem-se de que essa expressão de amor, que o corpo
pode manifestar, tem por base uma capacidade que não se esgota no amor dos
esposos e menos ainda na sua expressão especificamente conjugal. Basta
pensar no celibato pelo Reino dos Céus, que, como veremos, é (deve ser)
também ele manifestação do significado esponsal do corpo[192]. Mas podemos
acrescentar que a descoberta pessoal desse significado permite-lhes
consciencializar-se progressivamente que o corpo tem potencialidade para
expressar o que de mais nobre e profundo pertence ao nosso «eu». Com
gestos simples do corpo, podemos transmitir doação e acolhimento ao outro.
Não teremos comprovado tantas vezes como um mero sorriso pode sossegar
alguém e fazê-lo sentir-se querido? Não foi isso que aprendemos desde
pequenos no nosso lar?
Convido o leitor a deter-se num poema de Karol Wojtyla, inspirado no
encontro de Jesus com a samaritana, descrito no capítulo quarto do
Evangelho de S. João. Os versos que seguem evocam a recordação da mulher
a seguir ao encontro com Jesus. A beleza das palavras é sublime:
«O seu rosto era / como a luz da água do poço: / um espelho e, como o poço, luminiscência
profunda… / Não precisou de sair de si mesmo, / nem de erguer os olhos, para adivinhar. / Viu-
me, acolheu-me dentro de si, / assenhoreou-se de mim sem nenhuma dificuldade; / fez brotar em
mim a vergonha / e os mais arcanos pensamentos. / Parecia que me tinha tocado as pulsações nas
fontes. / E de súbito aliviou-me do meu imenso cansaço, / com que delicadeza!»[193]

A mulher sente-se acolhida pelo olhar e as palavras de Jesus, e encontra


a verdade sobre si própria. Eis um sugestivo e grandioso exemplo do que é
acolher a pessoa por si mesma.
Mas a descoberta e revelação do significado esponsal do corpo na
situação originária exige ainda uma explicação adicional. Qual é a causa que
permite a Adão e Eva viverem plenamente de acordo com o significado
esponsal dos seus corpos? Por que razão não existe neles qualquer
instrumentalização do outro? Por que razão não padecem qualquer vestígio
de vergonha? S. João Paulo II explica sinteticamente o motivo na sua obra
poética Tríptico Romano: «“Ele os criou homem e mulher.” Por graça de
Deus receberam um dom. Assumiram em si na dimensão humana – aquela
mútua doação que existe nele. Ambos nus… Não sentiam vergonha,
enquanto permanecia este dom»[194].
Adão e Eva, na situação de inocência originária, vivem em estado de
doação recíproca e de mútuo acolhimento. Eles irradiam, com todo o seu ser,
o amor que Deus derramou em seus corações. Foram criados à imagem e
semelhança do Deus que é Amor. E, de algum modo, tornam visível, um para
o outro, o amor de Deus, com a sua carga de gratuidade, incondicionalidade,
abundância, surpresa, etc. A mútua doação sem reservas é, pois, uma
expressão da graça que inunda os seus corações, pois eles participam
realmente da vida de Deus, que é puro amor.
S. João Paulo II afirmará que o matrimónio originário é o sacramento
primordial[195]:
nessa relação de amor exclusivo, Adão e Eva transmitem ao mundo visível o
eterno amor de Deus.
A comunhão do homem e da mulher, fruto da mútua doação, é «sinal
que transmite eficazmente ao mundo visível o mistério invisível oculto em
Deus desde a eternidade. Este é o mistério da Verdade e do Amor, o mistério
da Vida divina, na qual o homem participa realmente. Na história do homem,
é a inocência original que inicia esta participação e é também fonte da
felicidade original»[196]. É difícil não se deixar entusiasmar com esta
perspetiva, que situa o desígnio de Deus sobre a corporeidade e a
sexualidade num contexto inimaginável. Em suma, através do corpo
humano, é possível captar o amor de Deus. Não me parece ousado
acrescentar uma pergunta: se tal não acontecesse, como se poderia justificar a
Encarnação? Como teria sido possível que Deus assumisse a natureza
humana se a sua dimensão física não contivesse em si a tal potencialidade?
Que o homem não consiga muitas vezes vislumbrar sequer essa
potencialidade pelas nefastas consequências do pecado é uma coisa; outra,
totalmente oposta e até anacrónica para um cristão, seria adotar uma visão
pessimista sobre o corpo humano, atribuindo-lhe a causa de todos os males.
Insiste S. João Paulo II:
«O homem aparece no mundo visível como a mais alta expressão do dom divino, porque
transporta em si a dimensão interior do dom. E, com ela, transporta no mundo a sua particular
semelhança com Deus, graças à qual transcende e domina também a sua “visibilidade” no mundo,
a sua corporeidade, a sua masculinidade ou feminilidade, a sua nudez. Um reflexo desta
semelhança é também a consciência primordial do significado esponsal do corpo, permeada pelo
mistério da inocência original»[197].

Depois do pecado original, o significado esponsal do corpo não está


«perpassado» pelo mistério da inocência, sendo então mais difícil descobrir e
tomar consciência do mesmo, e tornando mais árduo viver fielmente esse
significado.
Detenhamo-nos um pouco mais nesta explicação da inocência original
exposta de modo subjetivo, isto é, desde o ponto de vista daquilo que Adão e
Eva poderiam experimentar. Tal como já se explicou, a base das afirmações
anteriores continua a ser a constatação da nudez sem vergonha. O homem e a
mulher não tinham vergonha dos seus corpos nus porque, como já se
explicou, pelo corpo manifestavam a vontade de doação plena de um ao outro
e o correspondente acolhimento sem reservas e sem qualquer desejo de
instrumentalização. Esta doação plena de si mesmos, que manifesta a límpida
consciência do sentido esponsal do corpo, era fruto da graça de Deus, da
doação do próprio Deus ao coração humano. Qual é a razão desta afirmação?
Dado que toda a Criação é um dom, expressão e difusão do amor de Deus, a
vontade de o homem irradiar a doação do seu ser deve ser vista como uma
particular participação do amor criador do próprio Deus.
E o corpo é como que transparente a esse amor eterno, isto é, manifesta «sem
fissuras» essa vontade de doação presente na alma, no coração do homem do
Éden. Adão e Eva experimentam, em certa medida, tanto no amor ao outro
como no amor do outro, o amor de Deus. Sentem-se amados por esse amor,
ainda que de modo humano, e sentem que amam com um amor semelhante
ao do amor criador, com a límpida vontade de comunicar vida. Encarnam, um
para o outro, o amor incondicional de Deus, um amor derramado nos seus
corações, no mais íntimo do seu ser[198]. Daí, do mais profundo do seu ser,
brota o amor mútuo. Eles não querem dar algo ao outro (uma espécie de
presente), mas desejam antes dar-se um ao outro, sem reservas.
Assim, o «estado de doação» em que o homem vivia era um efeito
permanente da graça que atua ao nível mais íntimo e profundo do ser
humano, o que graficamente denominamos «coração». A graça, isto é, «a
ação sobrenatural de Deus»[199], produz a retidão ou pureza do coração, que se
revela na doação sem reservas. O homem e a mulher da inocência original
vivem uma plena fidelidade ao sentido esponsal do corpo, pois a isso impele
o seu coração puro, inundado pela graça de Deus.
Permita-se-me uma pequena reflexão prática. Todos aqueles que
procuram viver na graça de Deus terão experimentado, com os limites da
condição humana, algo de parecido à situação originária: quem está na graça
de Deus tem vontade de dar o que tem dentro, de ser dom para o outro. Por
isso, a ausência de vontade para evangelizar ou para viver as obras de
misericórdia é um grave sintoma espiritual. Por uma parte, poder-se-ia
perguntar se uma pessoa assim está realmente na graça de Deus. Por outra, a
vontade de entrega aos outros não sucede apenas «por dentro», no que se
sente. O corpo deve reforçar e intensificar esse desejo, mesmo através de
gestos bem simples, como o sorriso ou a amabilidade no modo de falar, que
são sinais do respeito pelo outro e do desejo de lhes darmos algo de nós.
Prossigamos no terreno teológico. Que sucedeu depois do pecado
original? Que sucede com o significado esponsal do corpo em todos nós?
Respondendo de um modo abreviado, pode-se dizer que o significado
esponsal não surge espontaneamente na consciência, embora continue
presente no mais profundo do coração humano como eco da situação
originária. E esse significado, muitas vezes meio escondido e pouco evidente,
recordará ao homem que o ethos do corpo humano – a atitude ética para a
qual o homem, com o seu corpo, se deve orientar – é o ethos do dom.
Leiamos umas palavras de S. João Paulo II, e terminemos o capítulo com
algumas reflexões sobre o significado esponsal do corpo hoje:
«O homem e a mulher, depois do pecado de origem, perderam a graça da inocência original. A
descoberta do significado esponsal do corpo deixará de ser para ambos uma simples realidade da
revelação e da graça. Todavia, esse significado permanecerá como dever conferido ao homem
pelo ethos do dom, inscrito no profundo do coração humano, como eco longínquo da inocência
original. Desse significado esponsal se formará o amor humano, na sua verdade interior e na sua
autenticidade subjetiva. E o homem – mesmo através do véu da vergonha – aí se descobrirá
continuamente a si mesmo, enquanto guardião do mistério do sujeito, isto é, da liberdade do dom,
de forma a defendê-la de qualquer redução a uma posição de puro objeto»[200].

A citação é longa mas é uma fonte de esperança. Pensemos bem nestas


palavras.
Apesar de sofrer deformações ao longo da história devido à herança do
pecado original, o significado esponsal do corpo não deixa, pois, de estar
presente no coração de cada ser humano. Basta considerar algumas situações
desagradáveis. Consideremos o modo como são vividos na pessoa os ultrajes
e abusos ao seu corpo: são sempre algo horrível, que a humilham e magoam
de forma muito profunda, muito além da dor física. A pessoa, violada na sua
integridade – por exemplo, quando é despida contra a sua vontade – «sabe»
que algo de totalmente contrário ao seu ser aconteceu, algo que se situa nos
antípodas de uma doação livre, de uma receção de todo o seu ser. Mas saberá
explicar ela – ou nós – por que razão um tal ato se apresenta como uma
violência repugnante, ou por que razão é vivido como algo tremendamente
ultrajante? Passando a um exemplo positivo de como o significado esponsal
está presente no nosso interior, é fácil admitir que todos nós experimentamos
uma profunda alegria quando damos algo nosso a alguém que o recebe com
utilidade e agradecimento.
O significado do corpo exige ser revelado e anunciado com insistência,
até porque «por aqui passa igualmente o caminho que vai do mistério da
criação à “redenção do corpo” (cfr. Rom 8, 23)»[201]: isto é, com a redenção do
corpo, o homem recupera a consciência do sentido esponsal do corpo e
procura viver de acordo com ele. Quando a pessoa abraça a Redenção
alcançada por Cristo, quando recebe as graças da Redenção, descobre a
capacidade que tem o seu ser para amar plenamente, para se doar sem
reservas. E sabe que o corpo é capaz de expressar essa doação. S. Agostinho
explica como a pureza – ou, para dizê-lo doutro modo, o efeito da Redenção
na sexualidade –, reconstrói a pessoa[202], tornando-a capaz de se doar.
Michael Waldstein sintetiza a situação do homem histórico, do homem
depois do pecado original: trata-se de um estado em que «tem lugar uma
batalha entre a concupiscência e o sentido esponsal do corpo»[203].
Um dos sinais que, aparentemente de modo paradoxal, certifica a
verdade do significado esponsal do corpo no homem histórico tem que ver
com a possibilidade admitida pelo Senhor de uma vocação de renúncia ao
matrimónio pelo Reino dos Céus. Essa vocação reafirma a verdade sobre a
pessoa humana.
A possibilidade de a pessoa se doar pelo Reino dos Céus demonstra que
existe nela a liberdade do dom, e que o corpo humano não está fatidicamente
impelido a uma união conjugal. A liberdade do dom é um elemento essencial
do significado esponsal do corpo: se o homem carecesse dessa liberdade que
se manifesta como dom total, o corpo não poderia ter um significado
esponsal, expressar uma doação de si impossível[204]. Voltaremos a este tema
ao falar do celibato pelo Reino, no capítulo 18.
Mas talvez o que mais chame a atenção, ao confrontarmos a descrição da
situação original com a sociedade hodierna (e o que, por sua vez, torna essa
sociedade realmente paradoxal) é o facto de, numa civilização em que o
corpo está exposto de forma muitas vezes crua e com muito mais frequência
do que em tempos passados, o seu significado mais profundo e verdadeiro ser
incompreensível para a maior parte das pessoas. Os corpos expostos em nada
evocam o dom de si, antes pelo contrário: representam uma usurpação por
parte de outros, que desfrutam instrumentalmente das suas vítimas, ultrajando
a sua dignidade em troca, no melhor dos casos, de bens materiais. Deste
modo, também se aplicam as palavras de Nosso Senhor ao presente contexto:
«E cumpre-se neles a profecia de Isaías, que diz: “Olhareis com os vossos
olhos e não vereis”» (Mt 13, 14).
A perda do olhar puro de Adão e Eva é para nós um motivo para chorar
as consequências do pecado e desejar a Redenção. Quando se olha de um
modo luxurioso para alguém, não se vê nele um ser irrepetível, único, com
uma riqueza própria. Pense-se na destruidora experiência da prostituição ou
da pornografia: que lhe importam as pessoas que se prostituem ou são usadas
como material visual e pornográfico? Que lhe importam as suas vidas e a sua
intimidade: quem são elas, de onde vêm, de que problemas padecem, que
perspetivas têm da vida? Apenas se pretende delas que ofereçam um prazer
fugaz. E, para isso, tanto faz que seja A ou B. Mas, então, A e B não são
tratadas como pessoas. Quem assim olha o seu semelhante não transmite a
paz do olhar interior e, como consequência inevitável, torna-se incapaz de
pressentir sequer que alguém o pode olhar com essa visão de respeito sereno.
Será fácil mudar esta perceção da realidade? Não, não é. Foi necessária a
Redenção para abrir a possibilidade de se recuperar, de facto, a consciência
do significado do corpo. Esta última dimensão do estudo do significado
esponsal do corpo – a fidelidade de Adão e Eva, na vivência desse
significado intrínseco à sua natureza, por efeito da graça de Deus – ajuda a
perceber que, para vivermos de acordo com ele, necessitamos da graça de
Deus.
Mas, antes de prosseguir, detenhamo-nos brevemente nalgumas
considerações à volta do Corpo de Cristo. Elas permitirão responder melhor a
questões do estilo: «como posso exercitar-me no significado esponsal do
corpo, isto é, experimentar em mim esse significado e viver de acordo com
ele?»; ao mesmo tempo, «como posso consciencializar-me de que o corpo
dos outros tem um significado esponsal e, por isso, deve ser sumamente
respeitado por mim?»

11.
Cristo na Cruz: uma releitura
à luz do significado esponsal do corpo

Relembrámos, no capítulo anterior, que o mero facto de se apresentar o


corpo humano nu não evoca o seu significado esponsal. Muito pelo contrário
(e com dramática frequência): nesses casos, o corpo humano é apresentado de
modo instrumental, ao serviço de uma curiosidade doentia, de um prazer
obsessivo. Quase poderíamos falar hoje em dia de um significado
«antiesponsal» do corpo. No entanto, mantemos que o significado esponsal
pertence à natureza humana e, por conseguinte, deve ser possível reavivar em
nós a consciência de tal significado. Como?
Na minha opinião, a contemplação do Corpo de Cristo na Cruz é
essencial para recuperar o pleno sentido do corpo como dom. No capítulo 9,
já apresentei brevemente esta ideia. Através do santo Corpo, dilacerado e
ultrajado, o corpo humano é chamado, finalmente, a reconquistar o seu
sentido de dom e o seu lugar pleno na História humana. Ao contemplarmos
Cristo morto na Cruz, e sabendo Quem é e por que está ali pendurado, os
sentidos parecem sofrer uma comoção, comoção essa que parece necessária
para se poder voltar a captar, de forma clarividente, o sentido esponsal do
corpo. O Corpo de Cristo, nu, volta a «falar» do amor, de uma inequívoca e
livre doação de si, de um acolhimento universal de cada homem[205].
Comentando a Carta aos Efésios, S. João Paulo II recordará:
«O dom feito ao homem por parte de Deus em Cristo é um dom “total”, ou seja, “radical”, como
indica precisamente a analogia do amor esponsal: é, em certo sentido, “tudo” o que Deus “pôde”
dar de si mesmo ao homem, consideradas as faculdades limitadas do homem-criatura»[206].

Antes de nos determos numa contemplação da Paixão com a luz recebida


do estudo sobre o «princípio», é preciso acrescentar ainda que S. João Paulo
II
referir-se-á ao nexo entre o significado redentor do corpo e o significado
esponsal. O texto chave é, neste contexto, e uma vez mais, o capítulo 5 da
Carta aos Efésios, onde lemos: «Maridos, amai as vossas mulheres, como
Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela, para a santificar, purificando-a, no
banho da água e pela palavra, para a apresentar a Si mesmo toda gloriosa,
sem mancha nem ruga, nem algo semelhante, mas santa e imaculada» (Ef 5,
25-27). A doação de Cristo à Igreja purifica-a. Escreve S. João Paulo II:
«O significado esponsal do corpo na sua masculinidade e feminilidade, que se manifestou pela
primeira vez no mistério da criação no quadro da inocência original do homem, está ligado, na
imagem da Carta aos Efésios, com o significado redentor, e deste modo fica confirmado e em
certo sentido “novamente criado”»[207].
Não podemos falar, pois, sem mais, do significado esponsal do corpo,
sobretudo se o entendermos apenas como o encontrámos no estado de
inocência. Com Cristo, o significado esponsal do corpo aparece unido –
«refeito», poderíamos dizer – com o significado redentor (transformador e
libertador) do corpo.
E é esse significado esponsal, renovado pelo significado redentor, que o
homem está chamado a redescobrir. Não apenas o homem casado, mas
também no celibato – em que «ambas as dimensões do amor, esponsal e
redentor, se unem reciprocamente num modo diverso do matrimonial,
segundo as diversas proporções»[208]. Na verdade, até «nos diversos caminhos
da vida e nas diferentes situações»[209] ele está, de algum modo, presente. Na
minha opinião, isto significa que, quando estamos unidos a Cristo, o amor-
doação, traduzido em gestos corporais que muitas vezes envolvem sacrifício,
visa também purificar e elevar aquele ou aqueles a quem nos doamos. No
próprio casamento, os esposos devem considerar que a sua união mútua visa
uma mútua santificação, um melhoramento dos dois.
Feita esta ressalva, detenhamo-nos agora na Paixão do Senhor, onde o
significado esponsal, intimamente renovado pela força da Redenção, brilha
de forma eminente.
A contemplação atenta do Corpo de Cristo na Cruz faz reaparecer com
uma peculiar luz os três aspetos que definiam o ser humano na situação
originária. Assim, em Cristo na Cruz encontramos uma peculiar solidão:
«Perto da hora nona, exclamou Jesus com voz forte: “Eli, Eli, lemá
sabachtani?”, isto é: “Meu Deus, Meu Deus, porque Me abandonaste?”» (Mt
27, 46). Jesus declara, deste modo, a sua «solidão». Também ela, tal como a
solidão de Adão, acentua a excecionalidade de Jesus. Só há um Redentor.
«Não há salvação em nenhum outro, porque não há sob o céu nenhum outro
nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos» (Act 4, 12), explicará
S. Pedro[210].
Haverá então algo a dizer sobre o autoconhecimento de Jesus, a sua
autodeterminação e o sentido do Corpo? A condição de Cristo é única pois é
o único Filho de Deus por natureza. Cristo tem um perfeito
autoconhecimento de Si, tal como se pode ler na conversa noturna com
Nicodemos: «Ninguém subiu ao Céu, senão Aquele que desceu do Céu, o
Filho do Homem, que está no Céu»
(Jo 3, 13). Ao mesmo tempo, a Cruz e o Sangue nela derramados são sinais
da aliança: Cristo na Cruz é o partner absoluto do Pai na obra da salvação
dos homens (usando o sentido de partner já explicado no capítulo 7). O
Senhor demonstra um perfeito autodomínio, que O leva a querer colaborar
inteiramente com o desígnio do Pai: «Pai, se quiseres, afasta de Mim este
cálice; não se faça, contudo, a minha vontade, mas a tua» (Lc 22, 42). Por
fim, o seu Corpo expressa todo o seu ser: tudo o que sucede no seu Corpo
deve ser «relido», tem também um significado espiritual; por exemplo, os
autores espirituais sempre descobriram na sede fisiológica, manifestada por
Cristo na Cruz (cfr. Jo 19, 28), uma expressão da sua sede de almas. O seu
Corpo sempre nos fala de «algo mais».
Em segundo lugar, somos convidados a olhar Cristo na Cruz com a luz
da unidade/dualidade originária. Jesus está só, cravado voluntariamente na
Cruz – uma Cruz que abraçou durante o percurso da Via Sacra –, e no
Calvário observamos dois momentos significativos (dentre muitos outros).
Por um lado, pouco antes de morrer, diz à sua Mãe: «Mulher, eis o teu filho»
(Jo 18, 26). Parece haver assim uma «geração»: «nasce» um filho, um irmão
de Jesus, que é fruto da sua entrega total[211]. Por outro lado, é clássico o
comentário de que do seu lado aberto, de onde jorra sangue e água, nasce a
Igreja: Jesus «adormece» (morre) e, quando despertar, terá diante de Si, e
para sempre, «a esposa», a Igreja. Jesus quer que tenhamos parte na sua
natureza, que formemos uma só coisa com Ele, e não hesita em definir-se
como o esposo[212]. Quer ser um só connosco: «Assim como num só corpo
temos muitos membros, e nem todos os membros desempenham a mesma
função, assim, ainda que muitos, somos um só corpo em Cristo» (Rom 12, 4-
5). Esse desejo de formar connosco uma unidade reforça a certeza de que
Cristo assumiu, de facto, a nossa natureza humana. Portanto, essa unidade
connosco permite-nos conhecê-l’O melhor, pois fazemo-lo a partir da nossa
própria natureza, que Ele assumiu integralmente. Ao mesmo tempo, e tal
como Adão perante Eva descobre quem é, também nós, diante de Cristo, que
nos convida à união com Ele, podemos identificar-nos melhor: somos filhos
de Deus e fomos criados para sermos um só com Ele.
Assim, em Cristo na Cruz, no cume da Redenção, o corpo humano
readquire finalmente o seu pleno sentido esponsal. Bento XVI não hesitou em
explicá-lo: «É para mim muito importante que, na carta de São Paulo aos
Efésios, as núpcias de Deus com a humanidade através da encarnação do
Senhor se realizem na Cruz, na qual nasce uma nova humanidade, a Igreja. O
matrimónio cristão nasce precisamente nestas núpcias divinas. É, como diz
São Paulo, a concretização sacramental do que acontece neste grande
Mistério»[213].
Cristo entrega-se por nós ao Pai com a total liberdade do dom. O seu
sereno e confiante diálogo na Cruz com o Pai e, sobretudo, a sua
Ressurreição – manifestação do modo pleno como o Pai recebeu o sacrifício
do Filho – testemunham que é querido «por Si mesmo». A Ressurreição
certifica-nos que a sua morte não foi «apenas» instrumental (a linguagem
toca os limites do inexprimível); isto é, a sua morte por amor alcança, sim, a
possibilidade da nossa salvação, mas ela «trouxe» para o próprio Cristo-
Homem uma felicidade inesgotável, eterna.
Finalmente, em terceiro lugar, a Cruz apresenta-nos o Corpo nu (ou
seminu, tal como costuma ser representado, não apenas por respeito mas
também com certo fundamento histórico) de Jesus. O Senhor não afasta essa
humilhação porque, realmente, todo o seu corpo é-nos oferecido como dom.
Jesus não reserva nada para si, oferece por nós até a última gota do seu
sangue, tal como nos é sugerido pela insistência de S. João: «Um dos
soldados trespassou-Lhe o lado com uma lança e imediatamente saiu sangue
e água» (Jo 19, 34). A nudez de Cristo «devolve» ao corpo humano – para
expressá-lo de alguma maneira – a sua profunda unidade: todos os membros
de Cristo nos falam do seu amor de doação e entrega. Os seus braços abertos,
acolhedores, manifestam a disposição de receber cada um «por si mesmo»: o
bom ladrão acolhe-se a esse amor, sabe que tem a seu lado o Rei que lhe pode
outorgar o maior dos dons, a vida eterna, não pelos méritos que tenha
adquirido em vida, mas sim pela benevolência daquele mesmo Rei, quase
morto, que saberá valorizar um pedido humilde e sincero. O bom ladrão
descobre no Corpo de Cristo um amor incondicional, que não levanta
reservas para o acolher. No fundo, não é essa a descoberta que cada um de
nós tem de fazer diante da Cruz de Cristo? Quantas vezes não teremos
beijado um crucifixo com a convicção de que o Senhor acolherá esse simples
e tosco beijo? O crucifixo convida a uma aproximação de todos os que se
sentem plenamente acolhidos pelo Homem-Deus na Cruz. Cristo apresenta-
Se nu ao mundo, como que gritando a cada um de nós: «sou todo teu, não
fico com nada para mim». «Tudo está consumado» (Jo 19, 30).
A Cruz – a entrega dolorosa até à morte –, tão contrária aos desejos da
natureza humana, só se justifica pelo amor. Jesus teve de afirmar
explicitamente o motivo da sua Paixão, para que todos o soubessem: o grão
de trigo que deve morrer para ser fecundo (cfr. Jo 12, 24-25); ninguém tem
maior amor do que aquele que dá a vida pelos amigos (cfr. Jo 15, 13); quando
o filho do homem for elevado vai atrair todos a Ele (cfr. Jo 12, 32); a «hora»
de Jesus é comparada com a dolorosa hora da mulher que dá à luz (uma dor
de quem ama) (cfr. Jo 16, 21). E, o mais importante de tudo, a Última Ceia,
antecipação sacramental da sua paixão e morte: eis o meu Corpo, eis o meu
Sangue que é entregue por vós e por todos… (cfr. Lc 22, 19). A Cruz
consumará e tornará efetiva essa declaração de entrega até ao extremo da
Última Ceia. A partir de então, a contemplação do Corpo de Cristo fala-nos
do Amor de Deus por nós. O Corpo de Jesus «fala» de um modo único desse
amor.
Admito que este longo raciocínio necessite de explicações mais
pormenorizadas; mas apresento-o com o desejo de que o leitor entenda
rapidamente como a releitura de verdades de fé à luz dos ensinamentos de
teologia do corpo de S. João Paulo II permite avançar na compreensão dessas
verdades[214]. A teologia do corpo fornece uma nova luz para focar com maior
intensidade aspetos já conhecidos, mas que, deste modo, ficam realçados com
uma beleza particular.
Estas considerações não deixam de ter consequências para a vida
corrente. Na última das audiências, S. João Paulo II fez notar que há aspetos
da teologia do corpo que ficaram de fora das catequeses, em concreto –
acrescenta –, «o problema do sofrimento e da morte, tão relevante na
mensagem bíblica»[215]. Mas, de facto, se olharmos brevemente para a
experiência do sofrimento à luz dos conceitos estudados, rapidamente nos
daremos conta que a dor, com frequência, «facilita» uma aproximação à
situação original. Uma grave doença, por exemplo, causa no homem uma
intensa solidão: o homem sente, muitas vezes, que ninguém o pode
acompanhar na sua dor. É uma boa ocasião para se situar diante do Criador,
Aquele que tem a chave da sua vida. Quando o sofrimento é intenso, o
homem fica como que nu, sem vergonha; não receia exteriorizar a sua
fragilidade, mais ainda quando sabe que é compreendido. Os doentes, mesmo
os doentes graves, não perdem necessariamente o pudor, mas adivinham que,
quando os médicos olham o seu corpo nu, não o instrumentalizam. Mais
ainda: adivinham, muitas vezes, que devem expor a sua nudez para poderem
ser ajudados pelos médicos e enfermeiras. Além disso, os cristãos são
chamados a fazer da sua doença uma ocasião de identificação com Cristo. O
corpo que padece pode ter gestos de amor, de entrega: de uma entrega de
algum modo redentora (unida à Redenção de Cristo). E, se assim for, podem
encontrar-se a si próprios, saber que aquele sofrimento é aceite por Deus e,
portanto, que não são algo que caiu no esquecimento, como peões errantes e à
deriva no tempo e no espaço. Deus recebe a oferenda que o
doente faz de si próprio pela aceitação serena e confiada dos sofrimentos, em
favor do seu corpo que é a Igreja. E, assim, o corpo nu, indefeso, pode ser um
gesto eloquente de amor, aproximando-se de Cristo na Cruz[216].
A partir das considerações anteriores, ressalta imediatamente que a
teologia do corpo nada tem que ver com qualquer proposta naturalista do
corpo: depois do pecado original, para a experiência plena do sentido
esponsal do corpo, será necessária a redenção do corpo, quer dizer, uma
certa participação nos mistérios de Cristo.
Apenas sob esta luz, tornou-se admissível que o corpo nu possa
expressar o amor. Os artistas são chamados a conseguir que quem olha para
uma representação nua do corpo contemple amor e beleza. É possível tal
coisa? É. O discurso de S. João Paulo II aquando da reabertura da Capela
Sistina é suficientemente esclarecedor:
«Parece que Miguel Ângelo, a seu modo, se tenha deixado guiar pelas sugestivas palavras do
Livro do Génesis que, a respeito da criação do homem, varão e mulher, observa: “Estavam ambos
nus, mas não sentiam vergonha” (Gen 2, 25).
A Capela Sistina é precisamente o santuário da teologia do corpo humano.
Ao dar testemunho da beleza do homem criado por Deus, como homem e mulher, ela exprime
também, de certo modo, a esperança de um mundo transfigurado, o mundo inaugurado por Cristo
ressuscitado, e antes ainda por Cristo do Monte Tabor […]. Com esta lógica, no âmbito da luz que
provém de Deus, também o corpo humano conserva o seu esplendor e a sua dignidade. Se o
desprendermos dessa dimensão, ele torna-se de certo modo um objeto, que muito facilmente é
aviltado, porque só diante dos olhos de Deus o corpo humano pode permanecer nu e descoberto e
conservar intacto o seu esplendor e a sua beleza»[217].

A pergunta que se levanta é a seguinte: será possível ver o corpo humano


com os olhos de Deus? A visão perfeita está reservada para o final, para o
mundo da ressurreição; mas, já agora, a pureza de coração permite-nos, até
certo ponto, ver os outros segundo Deus[218]. Pelo menos, à luz dos mistérios
de Cristo – em particular o Mistério da entrega total de Cristo na Cruz –, e
com a sua graça, devemos encaminhar o nosso modo de ver os outros de
acordo com essas verdades. E sob essa luz e com essa graça é-nos oferecida a
possibilidade de experimentar em nós próprios o significado esponsal do
nosso corpo.

12.
O ato conjugal e o significado
procriativo do corpo: conhecimento e procriação

Entre os nossos contemporâneos, há opiniões diametralmente opostas


sobre o significado do ato sexual. Para uns, talvez para a maioria nas
sociedades chamadas «ocidentais» (ou de «cultura ocidental»), esse ato é,
no melhor dos casos, uma expressão de um amor que não tem por que ser
definido pela sua temporalidade, e às vezes nem sequer por um qualquer
compromisso prévio; basta que duas pessoas gostem uma da outra e
entendam manifestar assim a complacência mútua. No pior dos casos, é
entendido como um legítimo e normal exercício lúdico, apto para qualquer
pessoa que ultrapassou a puberdade, desde que se tomem as «medidas de
precaução» para evitar filhos ou ser contagiados por doenças sexualmente
transmissíveis. Para estes, a pergunta que emerge é do género das
seguintes: «por que não normalizar (banalizar) o ato sexual e retirá-lo dos
tabus que o reservam apenas para o matrimónio? Por que se continua a dar
tanta importância à ligação desse ato com a procriação? Alguma vez na
vida», prosseguem na sua argumentação, «um casal pode querer ter filhos
[com frequência entende-se “alguma” no sentido mais estrito de “uma”],
mas, no horizonte do ato sexual, quase nunca paira a ideia de os ter.
Portanto, por que não libertar-se definitivamente desse lastro ideológico
que acaba por pesar em muitas consciências, impedindo-as de desfrutar à
vontade de um ato sexual?»
Nos antípodas, encontramos os que consideram que o ato sexual deve
ser reservado apenas para a geração dos filhos, porque pensam que é esse o
ensinamento da Igreja sobre o ato conjugal.
Procuremos responder a uns e outros.
12.1. Sobre a bondade do ato conjugal
Comecemos por uma afirmação básica. O ato conjugal foi pensado por
Deus. Portanto, trata-se de algo em si mesmo bom. Talvez a maioria dos
leitores se admire com umas palavras de S. Tomás de Aquino, em pleno
século XIII. Afirma o Doutor Angélico que o ato conjugal pode ser
«meritório» no sentido mais nobre deste termo, isto é, pode servir aos
esposos unidos em Cristo para adquirir «méritos» que possam apresentar
diante do Senhor no dia do juízo; ou seja, o ato conjugal, como qualquer ato
honesto livre, pode estar ao serviço da santificação. Eis as palavras do santo
Doutor: «O ato conjugal em quem se encontra em graça é necessariamente ou
pecaminoso ou meritório, porque nenhum ato deliberado é indiferente […].
Com efeito, o ato conjugal é meritório quando se realiza por impulso de uma
virtude, seja pela justiça para cumprir o débito conjugal, seja pela religião
tendo em vista procriar filhos e consagrá-los ao culto de Deus»[219].
Além disso (e como teremos ocasião de o repetir), embora o que
constitua o matrimónio seja o consentimento mútuo (no presente, isto é, não
se trata de uma promessa para dias futuros) dos noivos perante a Igreja, este
consentimento verbal «pede» a consumação para que o matrimónio seja
constituído na sua plena realidade. Afirma S. João Paulo II:
«O sinal do sacramento do matrimónio é constituído pelo facto de que as palavras proferidas pelos
novos esposos retomam a mesma “linguagem do corpo” como no “princípio” […]. Deste modo, a
perene e sempre nova “linguagem do corpo” é, não apenas o “substrato” mas, em certo sentido, o
conteúdo constitutivo da comunhão das pessoas. As pessoas – o homem e a mulher – tornam-se
de per si um dom recíproco; e tornam-se esse dom na sua masculinidade e feminilidade,
descobrindo o significado esponsal do corpo e referindo-o reciprocamente a si mesmas de modo
irreversível: na dimensão de toda a vida»[220].

Portanto, o ato conjugal realizado após o consentimento consolida esse


mesmo consentimento. Em certo sentido, palavras tão profundas do espírito
como são as do mútuo consentimento – palavras de amor, de doação, de
fidelidade – reclamam uma adequada linguagem do corpo. Sem essa
linguagem as próprias palavras correm o risco de perder o seu sentido visto
que, no casamento, o corpo faz parte do «conteúdo da comunhão de
pessoas»: não se trata apenas de um requisito para a comunhão;
habitualmente, forma realmente parte dessa comunhão[221]. E, em sentido
negativo, se um dos esposos realiza um ato sexual com outra pessoa, comete
uma infidelidade, que habitualmente é avaliada – e com razão – como uma
traição ao amor conjugal. Não se trata de um «deslize», de um ato transitório
e sem consequências no amor conjugal.
Na penúltima das audiências de teologia do corpo, ao referir-se à
importância da virtude da castidade e do dom da piedade, que reforçam o
respeito para com tudo o que vem do Criador, S. João Paulo II faz notar que,
entre cônjuges, essa virtude e esse dom impedem que se esvazie o alto
conteúdo do ato conjugal. No último capítulo centrar-nos-emos na substância
dessa audiência, em que
S. João Paulo II expressa a grandeza com que vê o ato conjugal[222].
É difícil, à luz destas palavras, ignorar como a Igreja avalia
positivamente o ato conjugal em si mesmo e como entende a sua
importância. Não esqueçamos que tal ato, com a sua intrínseca abertura à
fecundidade, é decisivo para identificar o amor matrimonial, distinguindo-o
de outros amores que, eventualmente, até podem ser mais intensos, como o
amor de uma mãe pelo filho. Nem sempre a intensidade com que se vive o
amor nupcial é superior à de outros amores, mas é sempre especificamente
peculiar, pois trata-se de um amor capaz de gerar novas vidas.
Com todas estas explicações, interessa interrogar: por que motivo o
estudo sobre a fecundidade aparece apenas no final do primeiro ciclo de
catequeses?
S. João Paulo II faz notar que, embora o mandato da transmissão da vida
esteja registado nos textos já estudados, do ponto de vista histórico ele só se
concretiza no homem depois do pecado[223]. O início do capítulo 4 do Génesis
descreve sinteticamente não só a relação conjugal como também a reação de
Eva ao dar à luz: «Adão conheceu [uniu-se a] Eva, sua mulher. Ela concebeu
e deu à luz Caim, e disse: “Adquiri um homem com o auxílio do Senhor”. A
seguir, deu também à luz Abel» (Gen 4, 1-2). É preciso acrescentar que o
estudo destes versículos situa-se, com pleno direito, dentro do olhar
retrospetivo que Cristo convida a fazer no seu diálogo com os fariseus. Os
primeiros passos do homem histórico, do homem depois do pecado,
correspondem plenamente ao «princípio», aos primeiros passos do género
humano, ainda que o nosso olhar tenha ido além do limite do homem
histórico e tenha penetrado no período da inocência original. S. João Paulo II
reforça, uma vez mais, a ideia da continuidade entre as duas situações: é o
mesmo homem que atravessa a situação da inocência original e, por culpa
própria, se situa no período histórico – o período do homem da
concupiscência, tal como o descreve repetidamente S. João Paulo II no
seguinte ciclo de catequeses.
Além do motivo cronológico invocado pelo Papa para justificar a ordem
da sua exposição, devo acrescentar que, também do ponto de vista da
compreensão do amor humano, a sequência dos temas é a mais apropriada,
pois deste modo a dimensão procriativa do amor conjugal fica bem
enquadrada dentro do amor conjugal. Evita-se, assim, o possível equívoco de
subordinar instrumentalmente o amor conjugal ao fim procriativo («devo
amar o meu cônjuge para ter filhos»), esquecendo que o amor é o motor que
gera esse fim («porque amo o meu cônjuge, desejo ter filhos com ele») e os
outros fins do casamento («porque amo o meu cônjuge, quero ajudá-lo a
alcançar o seu bem, a sua felicidade; e, também porque o amo, o egoísmo da
concupiscência pode ser dissolvido na entrega que lhe faço»). Como
consequência, também se compreende melhor que o ato conjugal deve estar
inserido no contexto do amor entre os esposos, da doação plena de um ao
outro. Evita-se, desse modo, o equívoco de limitar exclusivamente à
procriação o fim do ato conjugal, com o grave risco de se poder ficar com a
impressão da instrumentalização da pessoa humana[224]: «eu “só” quero da
relação com a minha esposa que ela me dê filhos». Como veremos
detidamente no último ciclo das catequeses, quando a Igreja defende a
ilicitude dos contracetivos não está a defender nem a subordinação do amor
nupcial à procriação («eu amo a minha esposa para poder ter filhos») nem a
redução do fim do ato conjugal à procriação, embora, para que o fim se
alcance, seja absolutamente necessária a abertura de cada ato à fecundidade
do momento[225].
Na minha opinião, tudo o que contribua para fazer entender a grandeza
do ato conjugal, sem obviamente o idolatrar, é uma das chaves para
recuperar a visão correta da sexualidade. A banalização da sexualidade é
uma fonte de dis-
torções na vida pessoal e social. Na encíclica Evangelium Vitae, S. João
Paulo II é perentório ao diagnosticar que essa banalização está na raiz do
desprezo da vida humana concebida:
«De modo particular, é necessário educar para o valor da vida, a começar das suas próprias
raízes. É uma ilusão pensar que se pode construir uma verdadeira cultura da vida humana se não
se ajudam os jovens a compreender e a viver a sexualidade, o amor e a existência inteira no seu
significado verdadeiro e na sua íntima correlação. A sexualidade, riqueza da pessoa toda,
“manifesta o seu significado íntimo ao levar a pessoa ao dom de si no amor”. A banalização da
sexualidade conta-se entre os principais fatores que estão na origem do desprezo pela vida
nascente: só um amor verdadeiro sabe defender a vida. Não é possível, pois, eximir-nos de
oferecer, sobretudo aos adolescentes e aos jovens, uma autêntica educação da sexualidade e do
amor, educação essa que requer a formação para a castidade, como virtude que favorece a
maturidade da pessoa e a torna capaz de respeitar o significado “esponsal” do corpo»[226].

Tomemos bem nota destas palavras, que apresentam o respeito pelo


significado esponsal do corpo como o antídoto contra a banalização sexual.
Detenhamo-nos, então, em cada um dos elementos dos versículos do
livro do Génesis acima indicados (cfr. Gen 4, 1-2), incluídos na tradição
javista, com a carga antropológica característica desta tradição. Nesses
versículos, podemos assinalar dois elementos principais: por um lado, o ato
conjugal deve ser inserido no conhecimento mútuo dos esposos para o qual o
próprio ato contribui; por outro lado, a fecundidade que resulta dessa união
reforça ainda mais o conhecimento mútuo, pois faz com que os esposos
descubram a maternidade e a paternidade, dimensões essenciais da
feminilidade e da masculinidade.
12.2. O ato conjugal: um mútuo conhecimento
A palavra usada pela Bíblia nesses versículos para descrever o ato
conjugal é significativa: «conhecer». Em parte, o seu uso deve-se à pobreza
de linguagem, explica S. João Paulo II; mas essa limitação cultural da região
e do tempo tornou-se, no fundo, numa fonte providencial para se entender
melhor a grandeza do ato conjugal. No subtítulo recuperado na edição de
Waldstein, lê-se como resumo: «Entre a Pobreza da Expressão e a
Profundidade do Significado». Acrescentemos de passagem, também com S.
João Paulo II, que o sentido do verbo utilizado não expressa um mero
conhecimento intelectual, mas sim uma experiência concreta, equivalente,
por exemplo, à experiência do sofrimento[227]: conhecer o sofrimento não é
apenas ter o conceito intelectual do mesmo, mas implica, de acordo com o
sentido do «conhecer» bíblico, uma certa experiência vital dele[228]. Por isso,
entende-se que há como que um «conhecimento vivencial» do outro pela
união conjugal. Este modo singular de descrever a união entre o homem e a
mulher reforça a diferença que há face às relações entre animais, nunca
descritas com este termo.
S. João Paulo II faz duas observações, a meu juízo complementares,
sobre a importância de se descrever com o termo «conhecimento» a relação
conjugal[229]. Em primeiro lugar, «da própria pobreza da linguagem parece
emergir uma específica profundidade de significado, que deriva
precisamente de todos os significados analisados até aqui»[230]. Portanto, para
se entender plenamente o que segue, é preciso ter em conta tudo o que os
anteriores capítulos do Génesis já nos explicaram sobre a natureza humana e,
em concreto, sobre o significado esponsal do corpo. No ato conjugal, o
homem e a mulher experimentam «de modo particular o significado do
próprio corpo»[231], ou seja, alcançam um conhecimento mais profundo desse
significado talvez não tanto num sentido abstrato, mas sim na dimensão
pessoal e vivencial: o marido encontra-se em condições de revelar o seu
«eu» na doação (o mesmo sucede com a mulher) e de conhecer o «eu» da
esposa graças à sua doação. O ato conjugal parece acentuar um particular
conhecimento da pessoa do cônjuge, conhecimento apenas possível porque a
pessoa se entrega, deixando-se, assim, conhecer no seu «eu». Aliás, como
diremos um pouco mais abaixo, é precisamente essa união que faz com que
o homem descubra a sua paternidade e a mulher a sua maternidade –
dimensões intrínsecas, que necessitam do outro para desabrocharem.
A segunda observação – ainda mais significativa, porque dá conteúdo à
exigência de ter presente tudo o que foi estudado anteriormente – é a
afirmação de que, com o termo «conhecimento», a relação conjugal, isto é,
«o facto de se tornarem […] “uma só carne” foi elevado e introduzido na
dimensão específica das pessoas»[232]; o termo permite manter aquele ato
humano dentro da visão global do homem até então delineada e assumida, ou
seja, dentro do que S. João Paulo II denomina «“arquétipo” do nosso modo
de representar o homem corpóreo, a sua masculinidade e a sua feminilidade, e
portanto o seu sexo»[233].
Permita-me o leitor uma pequena reflexão pessoal. O modo como se
descreve ou se fala das realidades humanas não é de pouca importância. Há
expressões que, por si sós, traduzem um respeito grande pelo sagrado. Basta
considerar o modo como nos referimos reverentemente a Jesus Cristo como
«Nosso Senhor», ou à sua santíssima Mãe como «Nossa Senhora». Quanto
ao corpo e à sexualidade, há também uma atitude de respeito, fruto do dom
de piedade (como explicará S. João Paulo II em ciclos ulteriores), que
necessariamente se reflete no modo como nos referimos a essas realidades.
Não se trata de andar com rodeios pudicos. Mas há modos de falar que
introduzem essas realidades na dimensão da pessoa, permitindo assim
entender mais facilmente como elas participam da mesma dignidade da
pessoa. Pelo contrário, há outras formas que agridem a dignidade pessoal e
empurram os ouvintes ou leitores para um âmbito muito abaixo da dignidade
humana. A vulgarização e a trivialização de realidades tão elevadas
dificultam o olhar de admiração que é próprio ter perante esses dons.
Um exemplo: a expressão «fazer amor», ainda que se aplique apenas ao
ser humano e neste sentido distinga o ato humano do equivalente nos
animais, é o perfeito contraexemplo da linguagem bíblica. Precisamente
porque o amor não se faz: manifesta-se, exprime-se, etc. O ato conjugal
deve ser tudo menos uma ação de «fabrico» («poiética», diriam os filósofos
gregos), um «fazer». O que se faz são objetos ou mesmo obras de arte; mas
sempre produtos do homem. No ato conjugal, não se pretende (pelo menos
uma pessoa honesta não pretende) manipular o outro, convertê-lo em
matéria dos desejos pessoais. «Fazer amor» é uma má expressão, ou pelo
menos é equívoca. Por alguma razão, se bem repararmos, pessoas com uma
visão cristã da sexualidade nunca a utilizam. Um dos caminhos para manter
a realidade do corpo e da sexualidade dentro do nível humano é cuidar a
linguagem. Bastaria uma atitude de reverência sincera para nos fazer
encontrar expressões adequadas ao «arquétipo» que corresponde ao ser
humano.
Ao mesmo tempo, o cuidado na linguagem aproxima-nos da verdade
integral do amor humano. Numa das obras de Fulton Sheen, o autor explica
que, embora para poder amar-se o casal deva conhecer-se, o facto é que,
depois, o amor mútuo leva a um melhor conhecimento de cada um, um
conhecimento mais intuitivo, que permite saber aquilo de que cada um gosta
ou não gosta, intuir no que está a pensar, etc. Até aqui é provável que todos
concordem. Mas, a seguir, defende a tese de que o casal que se ama de
verdade e, portanto, tem o tal conhecimento que é dado pelo amor, tende a
esquivar-se de discussões vulgares sobre sexo, em boa parte porque sabem
que o conhecimento que advém da intimidade, pela sua própria natureza, não
é facilmente comunicável: «É demasiado sagrado para ser profanado. É um
facto psicológico que aqueles cujo conhecimento da sexualidade se
transformou no amor unificador do casamento estão menos inclinados a
retirá-la do âmbito do seu mistério íntimo para o da discussão pública. Não é
porque se sintam desiludidos com a sexualidade, mas sim porque ela se
transformou em amor, e só os dois podem partilhar os seus segredos. Pelo
contrário, aqueles cujo conhecimento da sexualidade não foi sublimado no
mistério do amor, e que portanto se sentem mais frustrados, são aqueles que
falam incessantemente sobre matérias sexuais. […] Aqueles que presumem
saber muito sobre sexo na realidade nada sabem sobre o seu mistério»[234].
Não se trata de não falar sobre o que é necessário falar; mas, além do que se
escreva (e que deve ser sempre feito com sumo respeito e delicadeza), é bom
que se saiba que há um mistério da sexualidade integrada no amor-doação
que não pode nem deve ser devassado. Quando se procede sem essa
consciência, deforma-se o seu sentido e o seu valor: é como se alguém tivesse
diante dos olhos as múltiplas peças de um relógio e o manual de instruções
para o montar, mas não soubesse realmente qual o significado do movimento
final.
Prossigamos. No diálogo com os fariseus em que defende a
indissolubilidade do matrimónio, Jesus repete-lhes o versículo do Génesis
que afirma que o homem e a mulher serão uma só carne. Porque Deus os
uniu, conclui o Senhor, já não se podem separar. Sem querer entrar em
complicadas questões exegéticas, é preciso fazer notar que a expressão
bíblica que se traduz por «uma só carne» deve ser entendida no sentido de
«uma só pessoa», pois a «carne» indica a pessoa inteira. A expressão indica
que Deus quis o matrimónio monogâmico e indissolúvel: os dois constituem
como que uma só pessoa. É esse o sentido com que devemos ler o versículo
do Génesis, tal como Cristo o fez no diálogo sobre o matrimónio. Também é
habitualmente aceite que esta expressão, mesmo sem se referir direta ou
exclusivamente à relação conjugal, sem dúvida que a inclui[235]. Nos nossos
dias, quando se houve a expressão «uma só carne» pensa-se imediatamente
na relação conjugal; e, na verdade, não há inconveniente em fazê-lo porque
ela expressa e consuma a união indissolúvel das pessoas. No fundo, toma-se a
parte pelo todo; sendo uma parte tão relevante, não me parece existir
qualquer problema, sobretudo se pensarmos no que se diz a seguir.
Se antes se afirmou que o corpo expressa a pessoa, a união dos corpos
deve expressar a união das pessoas, a comunhão entre elas. E se
anteriormente referimos que o que distingue o ser humano dos restantes ser
vivos é não apenas o corpo, mas também o autoconhecimento e o
autodomínio, podemos acrescentar que essa união corporal deverá traduzir
uma união de entendimentos e vontades e, portanto, reafirmar o valor da
pessoa. Nesse ato, cada um dos esposos deve ver reforçada a sua
«pessoalidade». É lógico que assim seja se, de verdade, o ato conjugal se
aproximar do desígnio original: cada um doa-se a si mesmo e recebe o outro
por si mesmo, sem se instrumentalizarem mutuamente. O respeito com que se
é recibido não deixará de reforçar o próprio «eu» que se doa, pois cada um vê
que é aceite com tudo o que é, com todo o seu ser. E, ao ver-se reforçado o
«eu», mantem-se a possibilidade da doação permanente: nenhum perde nada
do que dá ao outro, visto que são um só. Trata-se de um ciclo onde o dar e o
receber dos dois como que se fundem.
O «conhecimento» conjugal reforça a noção da irrepetibilidade da
pessoa. Tal não sucede no mero conhecimento intelectual, chamado a ser
plenamente partilhado por vários. Ao contrário, pela relação conjugal, marido
e mulher conhecem-se de modo único e exclusivo. Quando se procura a
pessoa na sua totalidade, esse conhecimento é «único», propriedade apenas
dos dois. Só o esposo conhece assim a esposa e só a esposa conhece assim o
esposo. No conhecimento conjugal, cada esposo é, de algum modo,
introduzido dentro do ser do outro, até onde tal é possível, mas bem mais do
que sucede no mero conhecimento intelectual, em que apenas a «forma» do
objeto conhecido é introduzida na mente de quem conhece.
Isto é assim porque a relação conjugal, para se situar no arquétipo
pessoal proposto pelo Génesis, deve ser um conhecimento do outro: «De
modo único, a mulher “é dada” de forma cognitiva ao homem, e ele a
ela»[236]. Realmente, no relato do Génesis, apesar de os acontecimentos se
desenrolarem na fase posterior ao pecado, dom e conhecimento coincidem,
porque, na descrição feita pelo livro sagrado, o dom físico (sexual), mesmo
com as limitações derivadas da nova situação pós-pecado, continua a
expressar o dom interior da pessoa. O homem conhece a mulher que a ele se
doa (e vice-versa) e a quem ele se entrega, e é por ela conhecido. Claro que se
a doação não for total – no fundo se não for doação, mas sim uma espécie de
«empréstimo», com termo temporal à vista –, se não corresponder à entrega
de si, o conhecimento também não será pleno, porque a pessoa é conhecida
na medida em que se doa, em que abre o seu «eu» ao «eu» do outro. Só nessa
medida se pode falar de conhecimento da pessoa. Em caso contrário,
conhece-se o aspeto físico da pessoa mas, como ele foi intencionalmente
dissociado da dimensão pessoal, do seu passado ou futuro ou dos seus
sentimentos e quereres mais profundos, não se conhece a pessoa. No relato
do Génesis referido, essa quebra ainda não parece notar-se.
Talvez tudo isto possa parecer excessivamente teórico aos leitores.
Permitam-me uma orientação mais prática. Depois de o casal se ter unido
conjugalmente, pode ser útil que cada um se pergunte com que tipo de
sentimento ficou. O que é que predomina na memória acerca desses
momentos? O esposo ou a esposa «sentem» que tiveram um bom momento,
uma experiência gratificante, um alívio de tensão? Ou, pelo contrário, o que
domina é a consciência de se ter unido mais ao cônjuge, de o conhecer
melhor, de ter por ele ainda mais afeto? Em duas palavras: os esposos retêm o
gosto que eventualmente experimentaram, ou têm antes um sentimento que se
aproxima mais de quem praticou uma «boa ação» ou teve um gesto de
generosidade? Ficam a pensar no bem que foi feito ao outro ou no bem que se
extraiu do outro? Também pelo modo como se olha para o que sucedeu no
ato conjugal é possível deduzir o valor que cada um atribui a esse ato.
Para que se entenda melhor a relação entre o conhecimento e o dom, é
útil ter presente uma das reflexões de S. João Paulo II sobre o livro bíblico
do Cântico dos Cânticos, onde a mulher aparece para o marido como «jardim
fechado, fonte selada» (C t 4, 12), isto é, como dona do seu mistério
feminino[237].
Este é um mistério a que o esposo tem acesso apenas quando a mulher «abre
o jardim», revelando o seu «eu» sem reservas. Portanto, o conhecimento só é
verdadeiramente tal na medida em que a pessoa se doa ao outro. Então, ele
pode conhecê-la, porque o mistério que ela traz consigo é confiado sem
reservas a quem ela ama. Ao mesmo tempo, ela pode confiar nele porque o
foi conhecendo, sabe quem é e como a respeita.
A dimensão física do conhecimento conjugal, parte integral e essencial
do mesmo, torna impossível essa comunicação total a terceiros (deixaria de
ser total). O homem conhece a mulher, e vice-versa, porque se dão um ao
outro, de forma que cada um deles conhece o outro e sente-se conhecido pelo
outro vivencial e fisicamente, poderíamos dizer. Ambos conhecem-se
mutuamente também através da dimensão sexual: cada um é conhecido pelo
outro «porque o corpo e o sexo entram diretamente na estrutura e no próprio
conteúdo deste “conhecimento”»[238], não são um mero sinal dele.
Se houver uma união total, homem e mulher transformam-se num só,
como se fossem um só sujeito daquele ato. Quando o homem conhecia os
animais, «tomava posse» deles, de algum modo. Quando conhecemos uma
coisa, fazemo-la, em parte, propriedade nossa. No conhecimento conjugal
sucede algo bem mais rico. Se ele for genuíno, homem e mulher identificam-
se um com o outro: naquele momento existe, em certa medida, um só
conhecimento, um único querer, uma só carne. As três características que
definem o ser humano como que se unificam naquele ato[239]. Merece a pena
recordar que a união do entendimento e das vontades é sinal do amor
genuíno. O Papa Bento XVI recorda: «Querer a mesma coisa e rejeitar a
mesma coisa é, segundo os antigos, o autêntico conteúdo do amor: um tornar-
se semelhante ao outro, que leva à união do querer e do pensar»[240]. Bento
XVI concretiza este amor no amor entre Deus e o homem. Se bem que essa
identidade de vontades possa verificar-se em qualquer tipo de amor genuíno
entre duas pessoas, quando se trata do amor entre esposos ele alcança até a
dimensão corporal no ato conjugal, onde a união de entendimentos e
vontades se expressa «numa só carne». E assim, ainda uma vez mais, vemos
o corpo como expressão da pessoa, como expressão do mais íntimo da
pessoa[241].
Já se vê, portanto, que o «conhecimento» conjugal ultrapassa a vulgar
relação entre sujeito e objeto, própria de qualquer outro conhecimento. Por
esse ato, no contexto de uma vontade de entrega total, fica definitivamente
consumada a situação de esposa e esposo:
«Mediante o corpo, a pessoa humana é “esposo” e “esposa” e, simultaneamente, nesse particular
ato de “conhecimento”, através da feminilidade e masculinidade pessoais, parece alcançar-se
também a descoberta da “pura” subjetividade do dom, isto é, a mútua realização de si no
dom»[242].

Deveria ser objeto de uma profunda meditação considerar que o «toque»


definitivo da total indissolubilidade matrimonial é alcançado por um gesto
corporal; o corpo intervém num «efeito» espiritual de primeira categoria: a
indissolubilidade matrimonial, reafirmada de modo explícito pelo Senhor na
conversa com os fariseus.
A banalização de um ato que, aliado a uma firme decisão interior, pode
ter tão elevadas consequências espirituais é, entre outras causas, o fruto de
uma má avaliação do corpo. Não deixa de causar perplexidade o facto de
grande parte da civilização hodierna se ter tornado «incapaz» de perceber o
alcance «espiritual» do ato conjugal. Essa cegueira só se justifica, como fica
dito, por uma muito deficiente compreensão do corpo, incompreensão essa
que, em muitos casos, salta à vista com a tentativa de comparação com o ato
sexual dos animais. A semelhança externa não deveria levar a um engano tão
grosseiro. No ser humano, o ato conjugal tem um significado bem diferente: é
(deveria ser) expressão da doação da pessoa. Rebaixá-lo a uma mera união
física, a um encontro de prazeres ou utilidades, é tornar difícil a compreensão
de quem realmente somos, do significado e da potencialidade do nosso corpo.
12.3. A homogeneidade somática do filho
O segundo aspeto do ato conjugal que importa destacar é a sua possível
consequência: a geração. Embora ela nem sempre aconteça em cada ato, a
dimensão potencialmente procriativa do ato conjugal está-lhe intrinsecamente
ligada. Aliás,
o que é realmente específico do ato conjugal é a sua abertura à procriação: «A
pro-
criação continua a ser o fim natural das relações conjugais, mesmo que o ato
sexual realizado num momento de infecundidade natural da mulher não possa
consegui-lo. A vida conjugal, considerada objetivamente, não é uma simples
união das pessoas, mas uma união das pessoas em relação com a
procriação»[243]. Por outro lado, esta finalidade deve ser procurada no
contexto do amor conjugal e como condição para esse mesmo amor: «Nas
relações conjugais entre o homem e a mulher, duas ordens se encontram: a da
natureza, cujo fim é a procriação, e a ordem das pessoas, que se exprime no
amor e tende para a sua mais perfeita realização. Estas duas ordens não se
podem separar, porque uma depende da outra; a atitude com respeito à
procriação é a condição para a realização do amor»[244]. Teremos ocasião de
aprofundar nesta afirmação, nomeadamente no capítulo 23. Por agora,
releiamos o versículo do Génesis:
«Ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: “Adquiri um homem com o auxílio do Senhor”» (Gen 4,
1).

Estas palavras confirmam o que S. João Paulo II denomina como


«homogeneidade somática do homem e da mulher», já referida na expressão
«carne da minha carne». Agora é a mulher que afirma essa mesma
homogeneidade, quando nasce Caim. Ao mesmo tempo, Eva é consciente da
decisiva intervenção do Criador na geração do novo ser[245]. As suas palavras
expressam, além disso, uma profunda alegria e um profundo agradecimento a
Deus.
Ao ser gerada, a criança permite ao homem e à mulher ampliar o
conhecimento da feminilidade e da masculinidade com a maternidade e a
paternidade, capacidades essas incluídas no seu ser, e «agora» (Gen 4, 1)
descobertas, completando assim o mistério da sexualidade humana. A mulher
descobre na sua maternidade um elemento essencial da sua feminilidade, e
descobre também na paternidade do esposo um elemento essencial da sua
masculinidade. E no homem sucede algo idêntico.
Se, ao estudarmos a unidade/dualidade originária, afirmávamos que, no
momento do «encontro» de Adão com Eva, o homem não só reconhecia o
que não era (o que sucedia no momento da solidão originária) como também
aperfeiçoava o próprio conhecimento (quem era de facto), com o nascimento
do filho essa afirmação fica reforçada. Apenas pelo «conhecimento» conjugal
do outro cada um deles pode ficar a conhecer a enorme capacidade que o seu
ser – o seu corpo – contém de gerar outro ser humano «com a ajuda do
Senhor». Passam, assim, a conhecer de modo mais profundo o significado
dos seus corpos[246]. Quando, em Génesis 3, 20, se justifica que Adão dá o
nome «Eva» à sua esposa «por ser a mãe de todos os homens», torna-se
explícito que a geração acrescenta um conhecimento «novo» do outro; daí o
novo nome. Podemos, pois, insistir em que a maternidade demonstra a
enorme potencialidade feminina, apenas vislumbrada na forma do corpo[247].
Além do aprofundamento do conhecimento mútuo, o filho assegura e
contribui para consolidar uma união que parece inalcançável. É luminosa a
tese de Fulton Sheen, bem sintetizada nas seguintes palavras de William
Newton: «Sheen explica como a criança permite ultrapassar uma frustrante
limitação no mútuo amor dos esposos. O desejo de se tornarem uma só carne
– uma autêntica parte do amor conjugal – torna-se em parte realidade na
relação conjugal mas, como os esposos são dois corpos, a união numa só
carne é fugaz e a completa satisfação do desejo é sempre de alguma maneira
esquiva. A criança torna este desejo de união real e permanente: o seu amor
tornou-se carne e habitou entre eles»[248].
S. João Paulo II completa o estudo do ato que gera a criança com duas
ulteriores análises. Por um lado, deseja comparar as palavras de Eva, que
expressam o conhecimento do novo ser, com o conhecimento que Adão
manifestou dos animais ao pôr-lhes um nome. Tratar-se-á do mesmo tipo de
conhecimento? No caso dos animais, o homem passa a ter um certo domínio
sobre eles. A imposição do nome revela uma certa posse sobre eles. Será
deste género o conhecimento da mulher e o conhecimento do filho? O
homem «possui» a mulher? E a mulher «possui» o filho ao dar-lhe o nome
«homem»? S. João Paulo II reconhece que se pode falar de uma certa posse,
mas não no sentido com que esta se aplica ao conhecimento dos animais, no
qual se dá uma relação sujeito-objeto. A mulher não é objeto do homem (nem
vice-versa), nem o filho é objeto da mulher. Essa não é a relação querida por
Deus, e não a encontramos nas primeiras páginas do Génesis. Encontrá-la-
emos no decorrer da História, pela dureza do coração humano. Será
necessária uma atenção permanente para que não se subverta o conhecimento
que estamos a tratar. De facto, acontecerá que a mulher será possuída pelo
homem (e vice-versa) nas modalidades mais brutais.
Também o filho será «possuído» pelos pais: as técnicas de fecundação in
vitro, nas quais o filho é gerado «fora» do ato conjugal (uma das formas
essenciais do conhecimento mútuo dos pais), converte-o, com frequência
(mesmo sem ser essa a intenção dos progenitores), num objeto que se domina
e de quem se «pode exigir» uma determinada qualidade, como é próprio do
conhecimento-posse. Ora, o ser humano «não pode ser querido e concebido
como o produto de intervenção de técnicas médicas e biológicas: isto
equivaleria a reduzi-lo a tornar-se objeto da técnica científica. Ninguém pode
submeter a vinda ao mundo de uma criança a condições de eficiência técnica
a serem avaliadas segundo parâmetros de controlo e de domínio»[249]. De
modo semelhante a como a mulher que aprecia a sua própria dignidade se
rebela legitimamente quando sente que está a ser usada como objeto, também
o recém-concebido tem direito a não ser «conhecido» desse modo, como um
produto da técnica. O ato conjugal é o único «santuário» onde a criança deve
ser concebida, longe de manipulações geradas por motivações muito variadas
e incontroláveis.
A segunda reflexão é uma breve consideração sobre o que S. João Paulo
II denomina a «última etapa do ciclo bíblico do conhecimento-geração»: o
nascimento do filho. O Papa faz notar que ela tem lugar, de algum modo,
quase no mesmo momento em que o homem passa a ter no seu horizonte a
perspetiva do sofrimento e da morte, consequência do pecado. O mesmo
homem toma consciência do significado gerador do seu corpo, unido ao
significado esponsal, e toma consciência tanto da morte a que passa a estar
submetido – «Porque tu és pó e em pó te hás de tornar» (Gen 3, 19) – como
do sofrimento que o acompanhará – «Multiplicarei os sofrimentos da tua
gravidez, com dor darás à luz os teus filhos» (Gen 3, 16).
É necessário incluir o horizonte da morte no ciclo conhecimento-
geração, enraizando-o nas potencialidades do corpo humano. Isto é: o corpo
humano não só tem aquelas capacidades como também está submetido à lei
do sofrimento e da morte. Apesar disso, a capacidade de gerar é como um
selo impresso no homem que assegura que o plano divino inicial de dar a
vida não ficou arruinado pelo pecado[250]. Deus não quis aniquilar o homem.
O homem histórico repara que a sua vida foi limitada depois do pecado.
Ao mesmo tempo, essa vida é-lhe como que dada de novo em cada ciclo de
conhecimento-geração. E, assim, cada homem traz em si o mistério do seu
«princípio» (Deus quer que o homem viva) intimamente ligado à consciência
do significado generativo do corpo[251].
Adão e Eva são conscientes desse significado. Sabem agora que «a
masculinidade encerra em si o significado da paternidade e a feminilidade o
da maternidade»[252]. Portanto, a consciência do significado esponsal do
corpo (expresso na diferenciação masculino-feminino) e a consciência do seu
significado gerador (expresso na maternidade-paternidade) estão
relacionadas. Não parece difícil deduzir das próprias palavras de S. João
Paulo II que o significado esponsal do corpo encerra em si, de algum modo, o
significado gerador do corpo. Mas, seguindo as catequeses, estudaremos essa
relação no último ciclo.
Em suma, quando o marido e a mulher propõem «conhecer-se», com
todos os sentidos que fomos descobrindo para este verbo no âmbito bíblico,
de algum modo renovam em si aquela apaixonante visão de Deus dirigida ao
homem; reconhecem a bondade do outro, que merece ser amado por si
mesmo, e reconhecem a bondade do ser humano, que «merece» ser gerado,
vir ao mundo.
Cada vez que os esposos se unem no ato conjugal, podem considerar que
estão os dois a sós com Deus, renovando a experiência do «princípio» e
sendo convidados não só a redescobrir-se a si próprios mas também a
descobrir a visão e o poder criador de Deus, bem como a sonhar com a vida
que se prolongará muito além das capacidades do próprio corpo que, mais
tarde ou mais cedo, se tornará em pó. Ora, converter um ato de tamanha
grandeza num desporto lúdico, sem outro significado que o de um prazer
momentâneo, é impedir que o homem se torne consciente de quem realmente
é e daquilo a que está chamado, e é algo que contradiz de modo flagrante o
significado mais nobre do ato conjugal.
As seguintes palavras de Bento XVI são como que uma «chancela de
ouro»:
«O verdadeiro fascínio da sexualidade nasce da grandeza deste horizonte que se abre: a beleza
integral, o universo da outra pessoa e do “nós” que nasce na união, a promessa de comunhão que
nela se oculta, a nova fecundidade, o caminho que o amor abre a Deus, fonte do amor. Então, a
união numa só carne faz-se união de toda a vida, até que o homem e a mulher se tornem um único
espírito»[253].

13.
Desejar a redenção

«Ouvistes o que foi dito: “Não cometerás adultério”. Eu, porém, digo-
vos que todo aquele que olhar para uma mulher, para a desejar, já cometeu
adultério com ela no seu coração» (Mt 5, 27-28). Quando Cristo, no Sermão
da Montanha, pronuncia estas palavras, não está certamente a dirigir-se ao
mesmo homem da situação originária, onde o primeiro casal vivia em
sublime comunhão. Trata-se de uma advertência de Jesus que nos situa no
mundo que, infelizemente, nos é familiar: o mundo do homem depois do
pecado original. Esta é a passagem do Evangelho que guia o segundo ciclo de
catequeses de teologia do corpo (o mais numeroso: ao todo são
40 intervenções), e sobre o qual nos vamos deter nos seguintes capítulos (13
a 16).
É provável que muitos dos nossos contemporâneos não conheçam sequer
estas palavras de Jesus. Mas, se as ouvirem, é igualmente provável que
questionem o seu sentido: «qual é o mal de desejar uma mulher?» (às vezes
até: «qual é o mal de ter relações com uma mulher, seja ela quem for, desde
que esta consinta?»); «não se trata, porventura, de algo tão frequente que
quase poderíamos dizer que é conatural à natureza humana ter desejos e
olhares luxuriosos? Por que razão deveríamos reprimir aspetos intrínsecos ao
nosso ser?» Responderemos a estas perguntas neste capítulo e no seguinte.
Para desejar a redenção, além de acreditar que ela é realizável, torna-se
necessário identificar o mal a eliminar. Cristo fá-lo sempre, sem qualquer
ambiguidade. Junto d‘Ele é impossível que o mal «se esconda»: nem os atos
maus passam despercebidos, nem muito menos se pode ocultar o «pai da
mentira»; diante de Jesus, os endemoninhados ficam identificados e são
curados.
Ao mesmo tempo, não duvidamos que, se Cristo propõe um determinado
modo de viver, é porque ele é realmente possível. Nosso Senhor não se limita
a identificar o mal, mas oferece a cura para ele.
As palavras do Senhor transcritas no início do capítulo tiveram, é certo,
interlocutores bem concretos, pertencentes a um determinado âmbito cultural
e religioso; conheciam a lei, sabiam o que significava o adultério, e não lhes
era estranho o juízo sobre o desejo luxurioso[254]. Mas as palavras dirigem-se
também a todos nós:
«Com essas palavras, Cristo dirige-se também, de modo indireto mas real, a todo o homem
“histórico” (entendendo este adjetivo sobretudo em função teológica).
E este homem é precisamente o “homem da concupiscência”, cujo mistério e cujo coração são
conhecidos de Cristo (“Ele próprio conhecia o interior de cada homem” [Jo 2, 25]). As palavras do
Sermão da Montanha permitem-nos estabelecer um contacto com a experiência interior deste
homem, praticamente em todas as latitudes e longitudes geográficas, nas mais variadas épocas e
nos diversos condicionamentos sociais e culturais. O homem do nosso tempo sente-se chamado
pelo nome por este enunciado de Cristo, não menos do que o homem de “então”, a quem o Mestre
se dirigiu diretamente»[255].

13.1. Unir o nosso coração ao amor do Legislador Supremo


Detenhamo-nos nas palavras de Cristo referidas. À primeira vista, um
leitor bem-intencionado limitar-se-ia a captar nelas uma nova exigência, que
se acrescentaria à já presente na Antiga Lei. Cristo falaria, assim, da malícia
do olhar libidinoso, o qual se adicionaria à proibição do adultério, um ato
externo bem definido. Mas S. João Paulo II propõe uma leitura mais correta e
profunda. Insiste o Pontífice que, com estas palavras, Jesus quer apelar ao
coração humano. Aliás, é este o título do segundo ciclo da primeira parte da
teologia do corpo: «Cristo Apela ao Coração Humano».
Para se entender melhor em que consiste este «apelo», convém recordar
a leitura que S. João Paulo II faz do episódio da mulher apanhada em
flagrante adultério e que é levada diante de Cristo, para que Ele diga de sua
justiça o que fazer com ela. Como é sabido, se, naquele caso, a lei fosse
estritamente aplicada, a mulher seria apedrejada. Se o Messias negasse essa
pena, seria fácil acusá-lo de desprezo pela Lei; se a mantivesse, apadrinharia
um ato que não deixaria de ser visto como bárbaro e, muito provavelmente,
marcadamente impopular.
Cristo fica silencioso, escrevendo no chão. Sugestivamente, S. João
Paulo II contempla assim esses instantes: «Jesus está tranquilo, recolhido,
pensativo. A sua consciência, aqui como no colóquio com os fariseus (cfr. Mt
19, 3-9), não estará talvez em contacto com o mistério do “princípio”, quando
o homem foi criado homem e mulher, e a mulher foi confiada ao homem com
a sua diversidade feminina, e também com a sua potencial maternidade?
Também o homem foi confiado pelo Criador à mulher»[256].
Sabemos qual foi a dupla resposta de Jesus, aos acusadores e à mulher.
Qualquer dos acusadores da mulher que se sentisse sem pecado (entendem
muitos intérpretes que Jesus se referia a «esse» pecado, isto é, ao adultério)
poderia lançar a primeira pedra, iniciando a execução da pena prevista para
aquela transgressão. Assim, Cristo obriga os presentes a olhar para a própria
consciência, para o próprio coração:
«Quando eles deixam cair no chão as pedras e se afastam, diz à mulher: “Vai e doravante não
tornes a pecar” (Jo 8, 11). Cristo identifica, portanto, claramente o adultério com o pecado.
Quando, pelo contrário, se dirige àqueles que queriam lapidar a mulher adúltera, não apela para as
prescrições da lei israelita, mas exclusivamente para a consciência. O discernimento do bem e do
mal inscrito nas consciências humanas pode mostrar-se mais profundo e mais correto do que o
conteúdo de uma norma legal»[257].
Note-se – procurando seguir o pensamento de S. João Paulo II – que
Cristo não invoca a consciência «contra» a lei. O adultério é um pecado e
deve ser evitado. Mas o apelo que Cristo faz às consciências dos acusadores –
ao seu coração – para enfrentar o mal cometido e procurar repará-lo é mais
eficaz do que uma severa e desumana aplicação da pena devida à transgressão
cometida. Com o apelo ao coração de pessoas que, apesar da dureza,
pareciam manter um certo respeito pela verdade (ao menos diante de Jesus),
Nosso Senhor manifesta a confiança no Homem e ensina como se pode
alcançar um bem maior mesmo partindo de um mal já realizado, como era o
do adultério cometido. É com esta chave que nos podemos debruçar sobre o
texto-pivô da segunda parte das audiências.
Quando Cristo adverte sobre o modo de olhar para uma mulher (e a
mulher para o homem, mesmo que não o mencione assim), quer chegar ao
núcleo da lei: deseja que os interlocutores não se limitem a cumpri-la (talvez
contrafeitos), mas que entendam também o seu sentido e, assim, se
aproximem da «mente do Legislador». Desse modo, se a entendem e
assumem, podem eles próprios querer essa «lei» desde o mais íntimo do seu
ser, desde o seu coração. O apelo ao coração do homem não é, pois, uma
atitude que se oponha à lei, mas é o modo de conseguir que a lei queira ser
vivida pelo homem, porque a razão de ser da própria lei é entendida a fundo,
em toda a sua verdade. Só assim o coração do homem – o seu núcleo mais
íntimo e pessoal – melhorará e, consequentemente, se evitarão as
interpretações meramente extrínsecas ou legalistas, sempre abertas à
casuística e às exceções. Foi com base numa atitude semelhante, unida à
dureza do coração dos homens – como explica Cristo no diálogo com os
fariseus já estudado nos capítulos anteriores –, que Moisés acabou por
permitir o divórcio em certos casos[258].
Eis as palavras de S. João Paulo II, inequívocas quanto ao que pretende
afirmar com o «apelo ao coração»:
«A lei, de facto, é sobretudo um meio, meio indispensável, para que possa “superabundar a
justiça” (palavras de Mateus 5, 20, na antiga tradução). Cristo quer que essa justiça “supere a dos
escribas e dos fariseus”. Ele não aceita a interpretação que, ao longo dos séculos, estes foram
dando ao autêntico conteúdo da Lei, enquanto submeteram, em certa medida tal conteúdo, ou seja,
o desígnio e a vontade do Legislador, às mais variadas fraquezas e limites da vontade humana,
derivadas precisamente da tríplice concupiscência. Essa era uma interpretação casuística, tendo-se
sobreposto à visão original do bem e do mal, ligada à Lei do Decálogo. Se Cristo tende à
transformação do ethos, fá-lo sobretudo para recuperar a clareza fundamental da interpretação:
“Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogá-la mas dar-lhe pleno
cumprimento” (Mt 5, 17). Condição para o cumprimento é a justa compreensão. E isto aplica-se,
entre outras coisas, ao mandamento “não cometerás adultério”»[259].

Se pensarmos bem, algo semelhante sucede com o uso dos contracetivos.


Se não se entendem bem as razões da sua ilicitude moral, vai germinando a
tendência a encontrar motivos para que a lei moral – sempre entendida como
uma obrigação extrínseca e arbitrária do legislador (seja ele quem for) – não
se aplique em tal caso ou em tal outro. A Igreja, e em concreto S. João Paulo
II com a sua teologia do corpo, pretende lançar um apelo ao coração humano,
para que este entenda como as razões da ilicitude estão enraizadas no mais
fundo do coração: a norma vai ao encontro dos anseios mais profundos do ser
de cada pessoa. Não é uma lei «fria», insensível à condição concreta de cada
um, que se aplica «desde cima», a bem ou a mal, como se estivéssemos a usar
uma calçadeira para meter um sapato de número 38 num pé de número 42. A
Igreja deseja que cada fiel – e cada pessoa de boa vontade – perceba que ela
«está do seu lado», e é por isso que insiste na ilicitude dos contracetivos: na
verdade – como se verá cada vez melhor ao longo destas páginas –, é
justamente a mentalidade contracetiva que se situa contra a pessoa, contra a
norma personalista e contra a lei do dom, todas elas dimensões essenciais ao
ser humano.
Sintetizando: o que Cristo pretende transmitir com aquelas palavras do
Sermão da Montanha é o desejo de que o homem novo abunde «em justiça»
(Mt 5, 20). Para tal, procura transmitir tanto uma plena compreensão do
mandato (ao ser compreendido em profundidade, leva-nos a estar
profundamente agradecidos ao Legislador), como também o modo de o
cumprir adequadamente: entendê-lo, desejá-lo de todo o coração e,
consequentemente, vivê-lo sem ficar num mero cumprimento extrínseco,
alheio à identificação com o Legislador. Este aspeto é muito importante para
tudo o que segue.
13.2. Vencendo os «mestres da suspeita»: a redenção é necessária
e possível
A plena redenção do coração faz com que o homem novo queira o que
Deus quer. Sejam ou não difíceis de viver, as exigências do Senhor são
vistas pelo homem redimido como um suave mandato, uma luz para o
caminho, ainda que este seja árduo. Cristo quer que aprendamos a perceber
o núcleo da lei para a conseguirmos assumir com todo o nosso ser, pois
assinala o nosso verdadeiro bem; um bem de que nos podemos aproximar
com Cristo. Só assim adquirimos um novo ethos, uma nova atitude
existencial e espiritual consolidada: o ethos da Redenção.
Não é pouco comum encontrar pessoas que contrapõem Cristo à lei, a
qualquer lei. Mas, como acabámos de ler no episódio da mulher adúltera,
Cristo não retira importância ao adultério cometido (à lei). Exige da mulher
que não volte a pecar. Ao mesmo tempo, faz saber que o pecado – que, de
facto, existiu – ficou perdoado. Desejar a redenção pressupõe reconhecer que
ela é absolutamente necessária. Todos necessitamos do perdão de Cristo
pelas faltas cometidas e do seu alento para não voltar a cair. Ambos são
veiculados habitualmente pelo ministério da Igreja, pelos seus sacramentos e
pelos seus ensinamentos.
No entanto, o que se afirmou até ao momento não resolve a questão
inicial: o leitor «rebelde» aos ensinamentos da Igreja poderá, eventualmente,
concordar genericamente com a ideia de que não basta o cumprimento
externo de uma lei e de que é necessário que o nosso coração coincida com o
de Cristo, mas continuará a questionar por que razão o olhar libidinoso – tão
frequente – é um mal: «Cristo quererá mesmo julgar negativamente cada um
desses olhares?»
S. João Paulo II referir-se-á ao risco de avaliar a transgressão moral
como algo intrínseco à condição humana, a tal ponto que não se entende
sequer como uma transgressão moral. Mas, em tal perspetiva, que
necessidade há de uma «redenção»? Redenção de quê? Recolhendo uma
expressão filosófica clássica,
S. João Paulo II evoca os defensores paradigmáticos dessa atitude,
chamando-lhes «mestres da suspeita»; são eles Nietzsche, Freud e Marx[260].
Nas interpretações que estes «mestres» fazem do homem, há uma
convergência e uma divergência fundamentais com a visão bíblica. A
convergência deve-se ao facto de também eles julgarem e acusarem o
coração do homem. Em certo sentido, acusam-no, ou seja, diagnosticam
ao coração humano o que, na linguagem da Primeira Carta de S. João, se
denomina «tríplice concupiscência»: «A concupiscência da carne, a
concupiscência dos olhos e a soberba de vida» (1 Jo 2, 16). Simplificando
um pouco as suas teses, Nietzsche acusa o coração humano de estar
inevitavelmente marcado pela soberba de vida; Marx pela concupiscência
dos olhos e Freud pela concupiscência da carne. Para
cada um deles, o ser humano «é» assim, com essas tendências que lhe
seriam intrínsecas, sem apelo nem salvação e que, portanto, é necessário
aprender a «gerir». Mas a semelhança com a interpretação bíblica acaba
nesta certa parecença no diagnóstico sobre o que sucede no homem. Para
os «mestres da suspeita», como essas forças são intrínsecas ao ser humano
– pertencem-lhe por direito próprio –, não são moralmente «más», e,
quando ocasionam – ou parecem ocasionar – estragos em si ou nos outros,
adotar-se-ão apenas soluções extrínsecas à pessoa, que se limitem a evitar
as suas consequências negativas. Nunca se oferecerá como proposta de
solução uma mudança dessas tendências no coração humano[261].
As ideias dos «mestres da suspeita» não se limitaram a marcar presença
em manuais ou ensaios, pois foram sendo paulatinamente disseminadas na
opinião pública. Pensemos, por exemplo, como a visão freudiana se tornou
presente no modo de apresentar o preservativo como um meio indispensável
para evitar gravidezes ou diminuir a transmissão de certas doenças. Com
frequência, nem sequer se admite a proposta – a mais óbvia de todas – da
abstenção de relações sexuais. O preservativo é apresentado como essencial
para a sobrevivência civilizacional. Os instintos do homem parecem, assim,
não ter solução, parecem não poder ser dominados desde dentro, pelo
próprio homem. A concupiscência teria sempre a última palavra. Entende-
se, agora, por que razão Freud pode ser apresentado como «mestre da
suspeita»? O homem que sente a concupiscência não poderá mais do que
usar um preservativo?
As palavras de Cristo no Sermão da Montanha revelam outra perspetiva
da condição humana. Elas não são tanto uma acusação, mas sim um apelo
ao homem histórico.

«Tal hermenêutica [dos “mestres da suspeita”] é muito diferente, é radicalmente diferente


daquela que redescobrimos nas palavras de Cristo no Sermão da Montanha. Estas palavras
revelam, não apenas um outro ethos, mas também uma outra visão das possibilidades do
homem. É importante que ele, precisamente no seu “coração”, não se sinta apenas
irrevogavelmente acusado e entregue como presa à concupiscência da carne, mas que, nesse
mesmo coração, se sinta chamado com energia. Chamado precisamente àquele supremo valor
que é o amor. Chamado como pessoa na verdade da sua humanidade, portanto também na
verdade da sua masculinidade e feminilidade, na verdade do seu corpo»[262].

Cristo apela ao coração do homem, para que ele deseje viver de acordo
com o significado esponsal do corpo e não de acordo com a tríplice
concupiscência da qual o olhar libidinoso é uma clara manifestação.
«O homem não pode deter-se colocando o “coração” em estado de contínua e irreversível
suspeita por causa das manifestações da concupiscência da carne e da libido […]. A Redenção
é uma verdade, uma realidade, em nome da qual o homem deve sentir-se chamado, e “chamado
com eficácia”. Ele deve dar-se conta desse chamamento também mediante as palavras de Cristo
segundo Mateus 5, 27-28, relidas no pleno contexto da revelação do corpo. O homem deve
sentir-se chamado a redescobrir, mais, a realizar o significado esponsal do corpo, e a exprimir
deste modo a liberdade interior do dom, isto é, daquele estado espiritual e daquela força
espiritual que derivam do domínio da concupiscência da carne»[263].

A «redenção do corpo» – expressão de S. Paulo presente na Carta aos


Romanos (8, 23) e usada recorrentemente por S. João Paulo II nas suas
catequeses – ajudará a recuperar a consciência do significado esponsal e a
querer viver de acordo com esse significado. Ajudará, portanto, a querer
olhar para uma mulher/para um homem sem a/o instrumentalizar nem sequer
com os mais íntimos desejos.
É, então, possível adotar esse tipo de olhar puro, sem qualquer desejo de
posse? O apelo de Cristo ao coração humano não é uma proposta utópica, tal
como não o é o convite para recuperar a original indissolubilidade
matrimonial. Ao longo das duas vezes milenar História da Igreja, milhões de
pessoas viveram exemplarmente a fidelidade ao cônjuge, assim como
também milhões de pessoas souberam orientar a maioria dos movimentos
mais íntimos do seu ser de acordo com a dignidade da sua pessoa e das
outras pessoas, em particular as do sexo oposto. A graça da Redenção tornou
definitivamente possível optar por olhar para uma mulher (e a mulher para o
homem) sem a instrumentalizar. Isso não significa, obviamente, que não seja
necessária uma ascese interior para assim proceder. Muitas vezes, para não
se instrumentalizar ninguém, será necessário escolher não olhar, sobretudo
quando a pessoa se sente incapaz de o fazer com um olhar limpo, respeitador
do outro. Com a graça da Redenção, é perfeitamente possível viver assim.
S. João Paulo II insiste uma e outra vez na esperança que o homem
histórico deve ter nas palavras do Salvador:
«As palavras de Cristo pronunciadas no Sermão da Montanha não são um apelo lançado no
vácuo. Não são dirigidas ao homem que está completamente absorvido pela concupiscência da
carne, incapaz de procurar outra forma de relacionamento recíproco no âmbito da atração perene
que acompanha a história do homem e da mulher exatamente “desde o princípio”. As palavras de
Cristo testemunham que a força original (portanto também a graça) do mistério da criação se
torna, para cada um deles, na força (isto é, graça) do mistério da Redenção. Isto diz respeito à
própria “natureza”, ao próprio substrato da humanidade da pessoa, aos impulsos mais profundos
do “coração”. Não sente acaso o homem, juntamente com a concupiscência, uma profunda
necessidade de conservar a dignidade das relações recíprocas, que encontram expressão no corpo,
graças à sua masculinidade e feminilidade? Não sente acaso a necessidade de impregná-las de
tudo o que é nobre e belo? Não sente acaso a necessidade de lhes conferir o valor supremo que é
o amor?»[264].

Identificar o que está mal, por que razão está mal e saber que existe
u m remédio capaz de curar esse mal faz parte dos recursos que Cristo nos
deixou.
O apelo ao coração é, já o lemos antes, de particular eficácia. Também a
Igreja tem de saber tocar o coração do homem de hoje, com a força perene
das palavras do Senhor, que continuam a conter uma particular força
redentora.
Até agora, basta-me que o leitor (mesmo se ainda incrédulo) suspeite que
há olhares que podem degradá-lo (porque degradam a quem olha) e que pode
ser importante descobrir a sua malícia para experimentar o efeito
transformador da graça de Cristo nos corações. Essa transformação permitirá
olhar de outro modo para as pessoas, com um olhar contemplativo, que não
vise apropriar-se delas mas respeitá-las como são. Quem não desejaria olhar
habitualmente assim? E que mulher não ambiciona que a olhem como pessoa,
no seu todo, sem fazer com as partes do seu corpo um comércio virtual?

14.
A corrupção do significado esponsal
do corpo: vergonha e insaciabilidade

É necessário aprofundar nas consequências do pecado original no campo


da sexualidade para dirimir a questão ainda sem resposta definitiva: será
assim tão mau olhar para uma mulher com desejos de a possuir, mesmo para
uma mulher ausente que não «sinta» esse olhar, como, por exemplo, as
protagonistas de revistas pornográficas?
A pergunta obriga-nos a recuar no tempo (seguiremos os passos
propostos por S. João Paulo II), começando por indagar o que sucedeu logo
após o pecado original. No final do capítulo, entender-se-á a gravidade da
desordem que a concupiscência ocasiona.
14.1. A concupiscência: uma grave carência, uma redução
intencional
Adiantando as conclusões, acrescento que S. João Paulo II descreve a
concupiscência de várias maneiras:
• «Carência»[265];
• «“Constrangimento ‘sui generis’ do corpo”, [que] limita interiormente
e restringe o autodomínio de si, e por isso mesmo, em certo sentido,
torna impossível a liberdade interior do dom»[266];
• «Limitação, infração ou verdadeira deformação do significado esponsal
do corpo»[267];
• Consequentemente, nos atos que sucedem no relacionamento com o
outro encontramos uma «“redução” intencional, quase uma restrição
ou encerramento do horizonte do espírito e do coração»[268].
A expressão «redução intencional» é, na minha opinião, particularmente
certeira: o olhar concupiscente é como que um ofuscamento que cega para o
resto da realidade. Na mira só fica o alvo, uma pequena parcela da pessoa.
O resto, naquele momento, não existe. Assim, o desejo concupiscente, que se
une a esse olhar, é um modo amputador de se relacionar com o outro. Pieper,
na sua obra sobre as virtudes, para ilustrar o que ocasiona no homem a
obsessão por desfrutar do prazer sexual, evoca a comparação de S. Tomás,
em que o santo se refere «ao leão, que ao aparecer-lhe diante um veado não é
capaz de ver nele mais do que o seu caráter de presa. Num coração luxurioso
o ângulo de visão fixou-se num determinado sentido»[269].
Há atitudes que bloqueiam para o resto da realidade. Carência,
constrangimento, deformação do significado esponsal, redução intencional –
miopia extrema! Como entendemos nós a concupiscência? Não deixa de ser
curioso constatar que, na cultura atual, a concupiscência desatada e selvagem
– a luxúria – é apresentada como uma força libertadora. Em muitos filmes, o
protagonista, a par de ações heróicas (ou, pelo menos, apresentadas como
tais) e de esquecimento de si em prol de outros, desenvolve uma vida
libertina, apresentada ela mesma como parte da grandeza do personagem. A
Bíblia, por contraste, apresenta-nos heróis como Sansão e David, capazes de
grandes façanhas, mas não deixa de reconhecer a gravidade das suas
cedências à luxúria. Na Bíblia, essas cedências são fraquezas, das quais os
heróis terão de arrepender-se.
A meu ver, é um grande passo para a cura espiritual – mais
corretamente, para a redenção do coração – entender a fundo a deformação
ocasionada pela concupiscência. Submetido a ela, o homem não se vê nem a
si próprio nem aos outros de modo verdadeiro – nem é autenticamente livre.
O esforço de S. João Paulo II em descrever o «homem da concupiscência»,
isto é, o homem que se vê submetido a essa deformação – no fundo, todos
nós – é essencial para desejar ansiosamente a redenção. S. Paulo mostra uma
profunda clarividência ao escrever: «Nós, que possuímos as primícias do
Espírito, gememos interiormente, aguardando a adoção de filhos, a redenção
do nosso corpo» (Rom 8, 23). É bom pedir ao Senhor que as reflexões de S.
João Paulo II nos conduzam serenamente a estes gemidos interiores.
As consequências do pecado original foram muito bem descritas pelo
Magistério da Igreja. S. João Paulo II, em breves palavras, recorda os pontos
essenciais: «Este homem, segundo as fórmulas do ensino teológico da Igreja,
foi privado dos dons sobrenaturais e preternaturais que faziam parte da sua
“dotação” antes do pecado e, além disso, sofreu uma perda no que pertence à
própria natureza, à humanidade na plenitude original “da imagem de
Deus”»[270]. Mas o Papa não quer limitar-se à descrição objetiva do que
sucedeu. Interessa-lhe averiguar o que terão experimentado Adão e Eva após
a queda: «Que estado de consciência se pode manifestar nas palavras “estava
com medo, porque estou nu, e escondi-me”? A que verdade interior
correspondem? Que significado do corpo testemunham?»[271]
Há dois versículos do terceiro capítulo do Génesis que atraem a atenção
do Papa, pois visam responder a essas questões e permitem deduzir as
terríveis mudanças sofridas pelo primeiro casal. Não esqueçamos que a nossa
finalidade é descrever o novo estado (o do homem histórico, ou da
concupiscência), e perceber bem a enorme carência que este representa
quando comparado com o anterior estado de inocência. Só a essa luz se
tornam clarividentes as palavras de Cristo sobre o olhar libidinoso, proferidas
no Sermão da Montanha.
14.2. Precisamos das folhas da figueira
O primeiro desses versículos descreve o súbito aparecimento da
vergonha, que, como já se explicou anteriormente, deve ser entendida como
um certo temor: «Ele [Adão] respondeu: “Ouvi o ruído dos teus passos no
jardim, tive medo porque estou nu, e escondi-me”» (Gen 3, 10). S. João
Paulo II entrevê diversas dimensões da vergonha que, para efeitos
pedagógicos, podem ser agrupadas em dois aspetos: a vergonha relativa a
Deus, mas que se traduz também no medo e na insegurança diante da criação
(é como que a vergonha cósmica); e a vergonha sexual ou relacional, que os
leva a tapar a sua identidade sexual com folhas de figueira (cfr. Gen 3, 7).
No entanto, esta segunda dimensão brota da vergonha imanente, que está na
sua raiz[272]. Veremos, pouco a pouco, cada um destes medos ou vergonhas,
os quais permitem descrever, de um ponto de vista mais subjetivo do que a
descrição tradicional, em que consiste ao certo a carência derivada do
pecado original e como podemos pressenti-la no nosso «eu».
A vergonha, para S. João Paulo II, caracteriza a nova situação do homem e
da mulher, substituindo a serena situação anterior: «Substituiu a confiança
absoluta ligada ao anterior estado de inocência original na relação recíproca
entre o homem e a mulher»[273].
No entanto, para compreender qual é o fundamento e a razão da
vergonha, necessitamos da outra referência bíblica. Essa nova referência,
chave para o nosso tema, faz parte do elenco de consequências do pecado,
que o próprio Deus anuncia ao primeiro casal: «Disse também à mulher:
“Multiplicarei os sofrimentos da tua gravidez, com dor darás à luz os teus
filhos. O teu instinto te impelirá para o teu marido, mas ele dominar-te-á”
(Gen 3, 16)». Se a vergonha parece estar mais centrada no âmbito da
perceção e, além disso, parece ser comum ao homem e à mulher (pois ambos
sentem a necessidade de se tapar,) o segundo aspeto (a ser estudado no
subcapítulo 14.3.) parece revelar mais a fraqueza da vontade e indicia uma
certa diferença nas consequências do pecado para o homem e para a mulher.
Comecemos pelo início, pelo próprio pecado original. O elemento
decisivo que ocasiona a queda de Adão e Eva é a opção de ambos, induzidos
pelo tentador, de desconfiar da bondade do Criador, cortando assim a íntima
relação com Ele e ficando privados da graça. O momento-chave da
transformação, explica S. João Paulo II, é a cedência à tentação insinuada
pela serpente: «“Não, não morrereis; mas Deus sabe que, no dia em que o
comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer
o bem e o mal” […]. Esta motivação inclui claramente pôr em dúvida o Dom
e o Amor, nos quais a criação é originada como dádiva. No que diz respeito
ao homem, este recebe como dom o “mundo”, e ao mesmo tempo a “imagem
de Deus”, isto é, a humanidade mesma em toda a verdade da sua duplicidade
masculina e feminina»[274]. Se, para o homem tentado pela serpente, deixa de
haver um Dador magnânimo, o mundo deixa de ser um dom (quem poderia
«dar» de modo desinteressado?), e o próprio homem deixa de se ver como
imagem do Criador – diante de Quem, a partir desse momento, se sente em
oposição. De facto, se o máximo (e único) expoente da doação sem reservas
passa a ser visto como um tirano concorrente do homem, a própria doação
generosa desaparece do horizonte humano, tornando muito mais difícil captar
o elemento da doação em Deus e no outro.
Abre-se, assim, diante do olhar do homem, por um lado um deus cuja
majestade não ocasiona confiança filial mas sim temor e, por outro, uma
mulher ou um homem cuja diferença gera desconfiança (veremos porquê),
bem como um mundo hostil – ou pelo menos não-amigável –, que parece
resistir a ser bem conhecido (ao contrário do tempo em que lhe era fácil dar
nome às criaturas) e a ser moldado pelo ser humano. Ao contrário da situação
primitiva, onde o trabalho (com o domínio da criação) nada tinha de
doloroso, agora passará a ser realizado com ardor e esforço.
Analisemos cada um destes elementos, começando pela perturbação no
relacionamento com Deus, quando Adão, escondido e temeroso, ouve a voz
do Criador: «Onde estás?» A reação de vergonha (medo) denota, no fundo,
uma certa carência, que uma simples comparação ajuda a intuir: quase todos
nós sentimos vergonha quando tivemos de falar perante desconhecidos –
pessoas com quem não sabemos ao certo o que temos em comum.
Que sucedeu com Adão e Eva? Põem em dúvida o desígnio de Deus,
que, sob a insinuação da serpente (Satanás), é apresentado como uma
limitação invejosa. Note-se que não é só o significado do valor da árvore do
bem e do mal que é posto em causa pela serpente: é a própria situação deles
no mundo e o próprio conhecimento da essência de Deus que fica em xeque.
No fundo, são colaboradores do Deus-Amor ou devem libertar-se de um deus
tirano? Ao claudicarem perante a insinuação da serpente, rejeitam o dom da
graça, a participação do amor de Deus na sua vida. De repente, perdem
«algo» de essencial, algo que lhes permitia manter a familiaridade com o
Criador.
Tal como explica S. João Paulo II, a vergonha diante de Deus esconde o
que realmente sucedeu:
«Damo-nos conta que aqui está em jogo algo mais profundo do que a mera vergonha corporal,
ligada a uma recente tomada de consciência da própria nudez. O homem procura cobrir com a
vergonha da própria nudez a origem autêntica do medo, indicando o seu efeito, para não chamar
pelo nome a causa que o provocou»[275].

O homem sente-se nu diante de Deus pois sente a falta de algo que o


assemelhava ao Criador: a graça. Não esqueçamos que, na idade da inocência
original, o corpo humano, «fator visível da transcendência, […] levava em si,
no mistério da criação, um sinal inquestionável da “imagem de Deus” e
constituía também a fonte específica da certeza daquela imagem, presente em
todo o ser humano»[276]. Isto é, no estado de inocência originária, o homem
experimentava no corpo a capacidade de transmitir para o mundo visível a
fonte da decisão criadora, o amor-doação[277].
De algum modo, o homem «vivia» no corpo o mistério da criação. Sabia-
se criatura de Deus, mas, sobretudo, era consciente de ser «intérprete» e
arauto da profunda razão criadora. O seu corpo era testemunha inequívoca de
que a chave da criação era o amor. E o homem experimentava-o.
Com o pecado, o homem perde a certeza daquela imagem divina
impressa em todo o seu ser, também no corpo. A diferença com as restantes
criaturas ficou esbatida, pois o homem já não vê no corpo um sinal
inequívoco de transcendência. E, diante de Deus que chama, o homem sente a
necessidade de esconder-se, pois desaparece a clara certeza de ter algo de
decisivo em comum com Ele.
Na realidade, no modo de avaliar o próprio corpo sucede algo
semelhante ao modo de ver o resto da Criação. O homem tem dificuldade,
por um lado, em conhecer-se e, por outro, em ter o perfeito domínio de si.
Se não existe um Deus que é Amor, que imagem reflete então o ser
humano? Como pode o homem descobrir e viver de acordo com o
significado esponsal do seu corpo se a fonte desse significado – Deus-
Amor – deixou de estar no horizonte? Por perder a clara imagem do
Bondoso Criador impressa no seu ser, perde a referência transcendente,
ou, pelo menos, esta torna-se menos percetível – e o homem vê-se incluído
entre a amálgama de todos os restantes seres, dos quais terá de defender-
se. Numa tentativa de explicar este medo da Criação de outro modo,
poderíamos sugerir que, ao perder a semelhança com o seu Criador, o
homem deixa de se considerar “representante” de Deus no mundo visível,
participante do seu domínio sobre ele. De modo gráfico, poderíamos
sugerir que o homem é como o domador de feras que entra na jaula com o
chicote, sinal visível da diferença e do domínio sobre os animais e, de
repente, o chicote, que os mantinha à distância dele sem esforço,
desaparece
da mão.
Ao mesmo tempo que sente a dificuldade em conhecer-se, sente
dificuldade em dominar o próprio corpo. Vê surgir em si contradições
resultantes da fraqueza do espírito: «Dá-se conta pela primeira vez de que o
seu corpo cessou de beber da força do espírito que o elevava ao nível da
imagem de Deus»[278]. Portanto, a par da rutura com Deus e com a Criação,
o homem nota dentro de si uma rutura interior. Este desequilíbrio interior –
já referido anteriormente (cfr. 9.1.) – é reconhecido por S. Paulo quando, na
sua Carta aos Coríntios, explica que, aos membros do corpo «que parecem
ser os menos honrosos, a esses rodeamos de maior honra, e aqueles que são
menos decentes, nós os tratamos com mais decoro» (1 Cor 12, 23). A
observação de S. João Paulo II a esta descrição paulina é esclarecedora:
«A “desunião no corpo”, cujo resultado é que alguns membros são considerados “mais fracos”,
“menos honrosos”, portanto “menos decorosos”, é a ulterior expressão da visão do estado interior
do homem depois do pecado original, isto é, do homem “histórico”. O homem da inocência
original, varão e mulher, de que lemos em Génesis 2, 25 “estavam nus […] mas não sentiam
vergonha”, não experimentava nem sequer aquela “desunião no corpo”»[279].

Como consequência imediata desta divisão interior, torna-se difícil para


o homem captar o corpo como expressão do seu «eu», e então trata-o como
um instrumento, como algo que tem, em vez de o assumir como formando
parte do seu «eu», pois o homem é também corpo, como sabemos. A defesa
apresentada frequentemente pelo libidinoso para as suas opções é
clarividente: «que mal tem eu fazer o que quero com o meu corpo?» Parece
estar-lhe vedada a pergunta essencial: «ao fazer o que quero com o corpo, em
que pessoa me transformo? Quando olho para uma mulher, desejando-a,
quem passo a ser eu?» Jesus responde: «um adúltero!»
S. João Paulo II assinala outro sintoma da dificuldade de o homem captar
o corpo como expressão da pessoa: a catalogação da beleza corporal com
padrões quantitativos – altura, peso, cintura, etc. – ou qualitativos – cor dos
cabelos, dos olhos, etc. A pessoa passa, assim, a ser avaliada a partir de
padrões muito parecidos aos que julgam o valor de um objeto ou de um
animal.
A beleza humana deveria ser captada de acordo com parâmetros bem
mais elevados. Não se trata de uma utopia, porque, em muitos casos de
enamoramento, os critérios adotados são bem superiores ao dos «cânones
malditos», típicos dos concursos de misses. Essa objetivação do corpo é um
dos sintomas de que se perdeu a noção que ele é expressão da pessoa,
perdendo-se concomitantemente a defesa contra a instrumentalização do
corpo. Avaliar assim o corpo humano é afunilar, de modo míope, o modo
como se olham os seres humanos. Nesse contexto, é fácil que o corpo –
levado, de algum modo, «a leilão» – acabe por ser terreno de apropriação.
Podíamos perguntar se esse diagnóstico sobre a propensão a
instrumentalizar o corpo humano (a pessoa) infeta inevitavelmente qualquer
representação artística do corpo humano. Na resposta, S. João Paulo II dirá
que não, sob certas condições. Para isso, evoca as obras de arte que «trazem
em si, praticamente oculto, um elemento de sublimação que leva o espetador,
através do corpo, a todo o mistério pessoal do homem». E acrescenta qual é o
possível efeito no espetador: «Em contacto com essas obras, em que não nos
sentimos determinados pelo seu conteúdo para o “olhar para desejar” de que
fala o Sermão da Montanha, apreendemos, em certo sentido, aquele
significado esponsal do corpo que é o correspondente e a medida da “pureza
de coração”»[280].
Destas palavras deduz-se ser necessária alguma «ajuda» que facilite o
olhar puro do homem, o olhar que não conduza à objetivação do corpo e que
não traga consigo um desejo de manipulação e domínio; deduz-se também
que a mera visão da nudez do corpo humano, em si mesma, não é
naturalmente pernicio-
sa. Seria um contrassenso afirmar o contrário, dado que o corpo foi criado
por Deus e, portanto, é bom em si. Mas, para olhá-lo sem o objetivar, são
necessários elementos que, de um modo ou de outro, induzam o homem a não
perder de vista que está diante de alguém. É isso que sucede, por exemplo,
perante as nuas personagens da Capela Sistina, pintadas por Miguel Ângelo.
Mas a necessidade de cultivar um olhar puro é posta à prova diariamente,
diante das pessoas concretas que vemos. Depois do pecado original, tornou-
se mais fácil manter a visão da pessoa na sua totalidade quando se apresenta
vestida. A roupa facilita que se mantenha sobre as pessoas um olhar
(diríamos) unitário, sem as fracionar com atenções excessivamente dirigidas a
uma ou outra parte do corpo. Na presente situação, é, no mínimo, temerário
pensar em olhar ou exibir corpos nus ou seminus com o pretexto de elevar o
homem até à contemplação do Criador. A situação após o pecado não
permite, habitualmente, um olhar desinteressado, meramente contemplativo,
sem desejos de posse. Poderíamos acrescentar que as folhas de figueira, com
as quais Adão e Eva se cobriram no instante a seguir à queda, ou as peles
com que carinhosamente Deus os vestiu mais tarde (cfr. Gen 3, 21)
simbolizam a necessidade de «algo mais» que permita manter o olhar puro
das origens. Se é certo que, muitas vezes, nem com esses condicionalismos
tal sucede, porém, sem esse «ambiente» adicional – seja a roupa ou, no caso
das obras de arte, um enquadramento que facilite o olhar sobre a globalidade
da pessoa representada –, torna-se praticamente inviável o tal olhar puro, o
olhar que não instrumentaliza ninguém. É muito importante reconhecer
humildemente a nossa situação, e não prescindir frivolamente de todos os
meios convenientes para que a relação entre homens e mulheres se aproxime
da originária.
Recordemos, para melhor entender esta conclusão, como desde o instante
a seguir à queda o homem passou também a ter de lidar com a doença, sendo
necessário tomar as precauções para não a padecer. Seria pouco prudente
querer viver como Adão e Eva no Paraíso, fazendo de conta que se é imune
às enfermidades. De modo paralelo, a concupiscência acompanhará o
homem, e, muito embora ela possa ser habitualmente dominada quando
permitimos que a graça de Deus nos envolva e transforme os nossos
corações, precisamente porque reconhecemos que esse domínio é dom de
Deus, não nos aventuremos em situações que põem à prova o comum dos
mortais. Seria imprudente ir para praias onde os trajes de banho são muito
«económicos» com o pretexto de contemplar o ser humano em toda a sua
realidade.
Há situações onde a nudez é menos perturbadora. Por exemplo, notamos
uma menor resistência a tirar a roupa quando sabemos e confiamos que quem
nos vai ver não vai, de modo nenhum, desejar o nosso «eu», tal como sucede
ao sermos vistos pelo médico, tal como já se exemplificou.
No entanto, numa das conferências que dei sobre teologia do corpo,
procurei explicar que, na perspetiva referida, pode ser legítimo que os artistas
recorram a modelos para pintar o corpo humano. Umas das assistentes
cursava Belas-Artes e, obviamente, tinha desenhado modelos. A sua pergunta
foi profunda: «Muito bem», disse ela, «é legítimo olhar um nu para o pintar,
sem maus desejos; mas, à pessoa que se expõe, às vezes diante de tantos
alunos, e que tantas vezes demonstra um olhar entristecido, como tratá-la?» A
resposta não é fácil, até porque se adivinha que, com frequência, quem assim
se expõe não o faz por uma vontade altruísta de ajudar os artistas (ou
aprendizes) a captar a beleza do corpo humano, mas por meras razões
económicas. Escolherá alguém livremente, como inclinação profissional, a
profissão de modelo nu? Não são difíceis os conselhos a dar aos estudantes
que estudam artes: que rezem pela pessoa, que se esforcem por não se centrar
em pormenores do corpo que possam despertar desejos inconvenientes, que
se concentrem no seu trabalho profissional (desenhar bem) e, se são mais
espirituais, que procurem fazer o seu trabalho de modo a levar o hipotético
espetador que um dia contemplará os seus quadros a ver ali uma pessoa, não
apenas um corpo. Também aconselhei a que, no final, os alunos agradeçam
ao modelo o seu trabalho.
Para ser sincero, teria mais dificuldade em aconselhar alguém que exerce
como modelo: deve continuar a expor-se? Ao apresentar-se nu, pode ter
presente que o corpo não tem nada de mal e que, em princípio, quem o vai
desenhar «apenas» quer anunciar a beleza de alguém que Deus criou de modo
primoroso. Mas essas razões serão suficientes? Poderá realmente confiar na
reta intenção dos artistas? Não favorecerá a concupiscência, se não no pintor,
pelo menos nos futuros espectadores? Serviram-me de consolo para as
minhas dúvidas sobre o tema mais umas palavras de S. João Paulo II, pelas
quais o Papa reconhece que todo o tema da representação artística do corpo
gera diversas perplexidades:
«Trata-se de um problema muito delicado, com diversos níveis de intensidade consoante os vários
motivos e circunstâncias, tanto em relação à atividade artística quanto em relação ao
conhecimento da obra de arte ou da sua reprodução. O facto de este problema ter sido levantado
não significa que o corpo humano, na sua nudez, não possa tornar-se tema da obra de arte, mas
apenas que este problema não é puramente estético nem moralmente indiferente»[281].

S. João Paulo II explica que «o homem tem pudor do corpo por causa da
concupiscência. Mais, tem pudor, não tanto do corpo, quanto precisamente da
concupiscência: tem pudor do corpo por causa da concupiscência»[282]. Nesta
vida, o homem pode dominar mais ou menos a concupiscência, mas não
eliminá-la totalmente. Sempre se corre o risco de querer servir-se do outro,
extrair dele apenas o que nos interessa no momento, retirá-lo da sua dimensão
global, isolando-o no tempo («só enquanto me for útil») ou nos aspetos
materiais ou afetivos («apenas aqui, e naquilo que me causa prazer»). Pode
até haver uma mútua troca de interesses: instrumentalizar e deixar-se
instrumentalizar. Mas esse «pacto» pontual nada tem que ver com a
comunhão de pessoas – única atitude verdadeiramente concorde com a
dignidade humana.
Sendo assim, centremo-nos de modo mais explícito na vergonha
relacional ou sexual. Adão e Eva, com as folhas da figueira, tapam o que os
distingue sexualmente. «A diversidade, ou seja a diferença de sexo,
masculino e feminino, foi bruscamente sentida e compreendida como
elemento de contraposição recíproca de pessoas»[283]. Se antes as diferenças
sexuais constituíam naturalmente e sem dificuldade o substrato para a
comunhão de pessoas, passam agora a ser avaliadas como fonte de
insegurança[284], como algo que as divide em vez de as chamar à união. A
razão desta enfermiça perceção tem que ver com a dificuldade do homem em
identificar-se com o corpo: «A concupiscência traz consigo uma quase
constitutiva dificuldade de identificação com o próprio corpo, e não só no
âmbito da própria subjetividade, mas ainda mais a respeito da subjetividade
do outro ser humano: da mulher para o homem e do homem para a
mulher»[285]. Tornou-se mais difícil para o homem ver a pessoa quando olha
para uma mulher. O olhar concupiscente é, em resumidas contas, um olhar
espiritualmente míope, desfocado, incapaz de captar realmente a pessoa.
Desde o início, Adão e Eva procuraram corrigir esse olhar e equilibrar, de
alguma maneira, o desequilíbrio que experimentavam na mútua relação. E
fazem-no tapando os valores sexuais de cada um. Essa é uma das missões da
roupa. «A necessidade espontânea de esconder os valores sexuais é uma
maneira natural de permitir que se descubram os valores da própria
pessoa»[286]. Habitualmente, a roupa parece exercer uma função unificadora
do corpo, facilitando um olhar mais global. Só no contexto de um olhar
dirigido à pessoa (e não a partes dela) se torna realmente possível uma
comunhão de pessoas, sem possuidores ou possuídos.
Talvez este último passo exija uma explicação mais cuidada. Perguntam-
nos com frequência qual é o mal de olhar para partes da pessoa. Por que
razão esse olhar deforma tão poderosamente a relação entre as pessoas? Ou,
se quisermos ser ainda mais específicos (e pedindo antecipadamente perdão
ao leitor pela vulgaridade da pergunta), ousaria formulá-la da seguinte
maneira: quando um rapaz diz a uma rapariga que tem uns bonitos olhos,
ninguém interpretará maliciosamente tal piropo; o rapaz centra-se numa
qualidade da rapariga sem que, à partida, se possa formular por isso um juízo
negativo sobre as intenções do rapaz; mas, e se, em vez dos olhos, se referir
aos seios? Nenhum rapaz sério se atreverá habitualmente a referi-los e
nenhuma rapariga honrada escutará tal «elogio» sem corar e afastar-se
perante essa grosseria. Qualquer leitor sabe que há uma diferença substancial
entre os dois «elogios», mesmo quando a sua interpretação não seja igual à
minha. No entanto, é possível justificar a diferença?
A questão assim formulada permite-nos intuir que está ainda por
esclarecer a verdadeira malícia da concupiscência. Há, pois, vergonha mútua
do que é especificamente sexual, mas falta explicar melhor qual o motivo
para isso. Jesus fala do desejo, gerado pela concupiscência (pelo olhar
concupiscente), que já em si é adultério. Mas que desejo é esse? Por que
razão é «mau»?
14.3. Vontade de domínio e insaciabilidade da união
Para responder, é necessário voltar a recordar o segundo versículo do
Génesis: «O teu instinto te impelirá para o teu marido, mas ele dominar-te-á»
(Gen 3,
16). S. João Paulo II sintetiza esta deformação na relação com duas noções:
a lei do domínio e a insaciabilidade da união. Ambas afetam o homem e a
mulher, embora no homem se pareça notar mais a primeira e na mulher a
segunda.
Procuremos analisar de que modo o pecado afetou a vontade do ser
humano, com a inerente ferida à capacidade de doação pessoal. Na Primeira
Carta de S. João, lemos uma descrição do estado do homem histórico com a
tríplice concupiscência: a da carne, a dos olhos e a soberba de vida. Tudo
isso não vem do Pai mas do mundo (cfr. 1 Jo 2, 16-17). Simplificando, com
intuitos meramente pedagógicos, a soberba de vida – a excelência do amor
ao próprio «eu» sobre todas as coisas, a autossuficiência – equivale à
desconfiança para com Deus com o intuito de prescindir dos seus dons;
subjaz a ideia de que o homem basta-se a si mesmo. A concupiscência dos
olhos sintetiza a desordem em relação à criação em geral. Esta deixa de ser
captada como um dom de Deus ao homem e, como dela necessita em maior
ou menor medida, o homem padece da sofreguidão de a possuir de modo
egoísta e a qualquer custo. Encontramos uma reação desse género, por
exemplo, nos casais obcecados por ter um filho, consentindo inclusive em
eliminar outras crianças concebidas no mesmo processo de reprodução
artificial, contanto que adquiram uma criança sobre quem, depois, correm
o risco de se sentir donos absolutos. Por fim, a concupiscência da carne
traduz, de algum modo, a dificuldade no domínio de si, e traz como
consequência a maior dificuldade em doar-se a outro: se alguém não se
possui, como poderá doar-se? Sem o domínio de si, a liberdade do dom – o
cume do exercício da liberdade, isto é, a capacidade de doação pessoal –
fica seriamente comprometida: «O corpo humano na sua
masculinidade/feminilidade quase perdeu a capacidade de exprimir esse
amor, em que o homem-pessoa se torna dom, conforme a mais profunda
estrutura e finalidade da sua existência pessoal»[287]. É fácil concluir que a
concupiscência da carne introduz no homem uma limitação. Mas como
explicar melhor essa limitação para que seja percebida como tal em quem
experimenta os efeitos da concupiscência? Só se for captada assim, como
uma forte restrição às mais nobres capacidades humanas, se torna mais fácil
desejar neutralizar os seus efeitos.
A descrição bíblica do que sucederá nas relações entre o homem e a
mulher a partir do pecado é, na sua simplicidade, certeira. Doravante, manter-
se-á, como antes, a perene atração dos sexos, mas essa atração corre o risco
de ser radicalmente diferente do impulso original que ambos sentiam para se
entregarem e receberem mutuamente, sinal de uma perfeita comunhão dos
dois. Passa a existir, sim, uma atração, mas que leva o homem a querer
dominar a mulher. Predomina no seu coração o «és minha» em vez do «sou
teu». O Papa explica de forma encantadora que os pronomes «meu» e
«minha» na linguagem do amor até são legítimos, sempre que os
mantenhamos dentro do sentido analógico, isto é, em parte semelhantes e em
parte diferentes do significado comum. É assim que, por exemplo, são usados
pelos noivos do Cântico dos Cânticos («Minha pomba, escondida nas fendas
dos rochedos» [Ct 2, 14]; ou «O meu amado é para mim e eu sou para ele»
[Ct 2, 16]). Mas, no homem da concupiscência, os pronomes possessivos
correm o risco de serem usados na sua aceção comum, segundo os quais o
sujeito manipula e usufrui de um objeto[288].
O desejo de posse – de domínio – é, pois, muito similar ao que se pode
sentir perante um «objeto», ainda que se guardem algumas aparências ou
formas, consoante a cultura onde se vive. Trocando por miúdos, em muitos
ambientes (excluímos agora a referência à prostituição), nenhum homem
pede à mulher que «a deixe usar» durante algumas horas. Dir-lhe-á que a ama
mais do que todas as outras, que se quer entregar a ela sem reservas.
Certamente, alguns meses mais tarde poderá dizer exatamente o mesmo a
outra, e depois a outra… A personagem feminina de um famoso romance, no
momento em que o homem (casado) com quem conviveu decide regressar à
esposa, acusa-o de falsidade pelas suas antigas palavras de promessas eternas.
Ele justifica-se, assegurando que, no momento das promessas, fora
profundamente sincero. Ao que a protagonista replica, com uma certeira dose
de ironia, que no fundo ele tinha «sinceridades sucessivas»[289].
No fundo, esse género de «sinceridades sucessivas» em contextos bem
semelhantes é uma cobertura para o uso que se faz de alguém.
Além do desejo de posse, a união corre o risco de não satisfazer
plenamente ninguém: «não era isto que eu queria; desejava mais». É como se
um deles
(a mulher, habitualmente) não fosse plenamente recebido na sua integridade,
e como se o outro não comprometesse nessa união todo o seu ser. Essa
perceção é muitas vezes correta e deve-se à falta de capacidade para viver a
liberdade do dom. O ser humano passou a experimentar maior dificuldade
para doar-se sem reservas, incondicionalmente. O corpo não é avaliado como
algo que se é, e corre-se o risco de dele se servir, sem (portanto)
comprometer todo o ser. Aparece igualmente a resistência para aceitar sem
reservas o outro. Torna-se possível, por essa incorreta perceção do valor do
corpo, limitar-se a unir os dois corpos, com a sensação prazenteira que isso
produz, sem a vontade de expressar com o corpo que se deseja receber
alguém na própria vida. Como se disse no início deste subcapítulo, e mesmo
sendo verdade que ambas as deformações (a lei do domínio e a
insaciabilidade da união) são comuns ao homem e à mulher, a primeira
parece ser mais comum no homem, enquanto a segunda parece ser captada de
modo mais agudo na mulher[290].
As palavras do Génesis sobre este aspeto são dirigidas à mulher. S. João
Paulo II faz notar este certo desequilibro nas funções do homem e da mulher,
explicando que, mesmo sendo honesto reconhecer alguma influência da visão
masculina no texto por razões de índole social da época, há uma verdade
perene na descrição bíblica. Detenhamo-nos nesta assimetria[291]. Tanto as
palavras de Cristo no Sermão da Montanha quanto o anúncio feito por Deus
em Gen 3, 16 («ele dominar-te-á») centram-se primariamente na atitude do
homem. Por isso, escreve o Pontífice:
«O homem, “desde o princípio”, teria de ser guardião da reciprocidade do dom e do seu autêntico
equilíbrio. A análise daquele “princípio” (Gen 2, 23-25) mostra exatamente a responsabilidade do
homem em acolher a feminilidade como dom e corresponder num recíproco e bilateral
intercâmbio. Contrasta abertamente com isto retirar da mulher o próprio dom, mediante a
concupiscência. Se bem que a manutenção do equilíbrio do dom pareça ter sido confiada a ambos,
cabe sobretudo ao homem uma especial responsabilidade, como se dele maiormente dependesse
que se mantenha ou se quebre o equilíbrio ou mesmo – se já quebrado – eventualmente o seu
restabelecimento»[292].

14.4. As feridas no homem e na mulher


S. João Paulo II faz também notar, apoiado agora nas palavras dirigidas à
mulher (e que resumiu com a noção de insaciabilidade da união), que ela
parece ressentir-se mais do que o homem da incapacidade de união plena[293].
Isto é, a mulher parece sofrer mais quando o modo de viver o corpo se afasta
da medida inscrita desde o início no coração humano[294].
Devemos, no entanto, perguntar-nos se é possível perceber melhor qual o
fundamento destas assimetrias entre o homem e a mulher. Um artigo de 1969,
redigido por Karol Wojtyla e por um grupo de moralistas, ilumina as
observações supracitadas. Começa por enumerar brevemente as diferenças
óbvias entre o homem e a mulher no ato sexual e na geração dos filhos.
Recorda, neste sentido, que o ato sexual tem lugar «dentro» da mulher. Por
outro lado, a gravidez e o parto, com as dores e os incómodos inerentes,
pertencem à mulher; nos primeiros anos, os principais cuidados do filho
acabam por recair, em boa parte, sobre ela. Além disso, em condições
normais, o homem é sempre fértil, ao passo que a mulher só o é durante
alguns dias; e, habitualmente é o homem que toma a iniciativa nas relações.
Perante estas constatações, o artigo conclui: «Todas estas desigualdades
biológicas no homem e na mulher, tanto no ato sexual, como nas dores da
geração ou ainda nos deveres que recaem na mulher pela atividade sexual
(incomparavelmente maiores do que os do homem), impõem ao homem uma
maior responsabilidade»[295]. O artigo aplica estes princípios ao uso da
contraceção, fazendo notar a escravidão que resultará para a mulher, pois
trata-se de algo que a retira do contexto de transmissão da vida e da
responsabilização por essa transmissão. Teremos ocasião de aprofundar este
ponto; mas, na minha opinião, o que melhor esclarece o raciocínio é a
iluminadora citação da Populorum Progressio que se encontra nesse artigo
em pé de página: «Em condições demasiado diferentes, o consentimento das
partes não basta para garantir a justiça do contrato, e a regra do livre
consentimento permanece subordinada às exigências do direito natural»[296].
Aplicando-o ao contexto que nos interessa agora, o trecho significa que não
basta um igualitário consentimento do homem e da mulher num momento
determinado para que se possa dizer que o ato foi justo ou bom: o homem
pensou bem nas consequências que aquele ato podia ter para a mulher? Se
não é casada, pensou no ónus que sobre ela pode pesar no caso de não se
concretizar o matrimónio e engravidar? Ambos devem pensar nas
consequências, mas o homem, se for cavalheiro, deve medir bem as possíveis
consequências para a mulher, seja ou não sua esposa[297].
Na leitura dos textos do Génesis, talvez não seja conclusiva (pois não é
explícita) a maior responsabilidade do homem neste âmbito. Mas, se
utilizarmos o recurso ao a posteriori histórico e reparamos que, depois do
pecado, a mulher parece ser mais sensível à falta de comunhão («O teu
instinto te impelirá para o teu marido, mas ele dominar-te-á» [Gen 3, 16])
enquanto o homem parece ter maior inclinação para dominar e
instrumentalizar a mulher, deduziremos que, antes da queda, a mulher
deveria viver mais intensamente a comunhão de pessoas enquanto o homem
deveria ter sido o principal guardião da reciprocidade do dom. Depois do
pecado, esse gosto pela comunhão deriva numa facilidade para a
insatisfação do que não é perfeito, e, em vez da proteção da reciprocidade, o
homem sente dificuldades em não «escorregar» para a vontade de domínio.
Aliás, quando um casal se aproxima do modelo originário, o amor fica bem
alicerçado: o marido é de facto cavalheiro e vela de modo particular pelos
momentos em que pode ser mais fácil um genuíno intercâmbio do dom, e a
mulher sabe pôr em relevo a beleza e a grandiosidade da união, cultivando-a
de modo especial.
Tudo isto é redescoberto num dos versículos do Cântico dos Cânticos,
um livro que parece desenvolver o encanto inicial de Adão por Eva[298]. Reza
assim o texto sagrado: «És jardim fechado, minha irmã, esposa, nascente
fechada, fonte selada» (Ct 4, 12). Jardim fechado, fonte selada – é assim que
o esposo do cântico se dirige à jovem esposa ou noiva. Ele sabe que é o
guardião da atmosfera do dom, e deseja, acima de tudo, não desafinar na
sinfonia da doação. Por isso, para diante daquela que ama, reconhecendo nela
um mistério a respeitar, a não violar. S. João Paulo II chega a ver nestas
palavras do Cântico dos Cânticos uma chave interpretativa de todo o
poema[299], explicando que a esposa «fala com o que parece mais
profundamente escondido do seu “eu” feminino […] A esposa apresenta-se
aos olhos do marido como dona do seu próprio mistério»[300]. Quando a
esposa comprova a delicadeza do esposo e o respeito que por ela manifesta,
não teme entregar-se (revelar-se) a ele: «O meu amado é para mim e eu sou
para ele» (Ct 2, 16). S. João Paulo II distingue bem entre as atitudes
contrapostas da introdução ao mistério da pessoa e a da violação desse
mistério[301].
Para a vida prática, atrevo-me a propor aos homens uma atitude de fundo
que proteja as relações mútuas da deformação da concupiscência: é bom
pedir-lhes, simplesmente, que sejam cavalheiros para com as mulheres. Esta
atitude, assumida tanto para com a esposa como para com as outras mulheres,
tem inúmeras consequências e deve ser cultivada. As gestas atribuídas aos
cavaleiros dos romances medievais para proteger as donzelas dos perigos
deveriam voltar a estar na moda.
Ainda sobre a perturbação nas relações entre homem e mulher, S. João
Paulo II, na carta apostólica Mulieris Dignitatem, faz outras reflexões bem
sugestivas. Por exemplo, explica que essa perturbação não se cinge à relação
entre homem e mulher no campo matrimonial: é muito mais extensa. E, em
muitos casos,
a amplitude da perturbação causou fortes discriminações ao longo da história:
«Essas palavras referem-se diretamente ao matrimónio, mas indiretamente abrangem os diversos
campos da convivência social: as situações em que a mulher permanece em desvantagem ou é
discriminada pelo facto de ser mulher. A verdade revelada sobre a criação do ser humano como
homem e mulher constitui o principal argumento contra todas as situações que, sendo
objetivamente prejudiciais – isto é, injustas – contêm e exprimem a herança do pecado que todos
os seres humanos trazem em si»[302].

A conclusão para qualquer cristão é óbvia: por um lado, combater essa


injusta discriminação é uma consequência da dinâmica da Redenção[303]. Por
outro lado, esse esforço não será justo se, em vez de se aceitar a mulher com
toda a sua riqueza, se pretende eliminar a discriminação propondo-lhe que se
masculinizasse:
«A mulher – em nome da libertação do “domínio” do homem – não pode tender à apropriação das
características masculinas, contra a sua própria “originalidade” feminina. Existe o temor fundado
de que por este caminho a mulher não se “realizará”, mas poderia, ao invés, deformar e perder
aquilo que constitui a sua riqueza essencial. Trata-se de uma riqueza imensa»[304].

14.5. Meros desejos libidinosos


Prossigamos o fio condutor das catequeses, concentrando a nossa
atenção na perturbação relacional entre o homem e a mulher.
Qual é a diferença essencial, na perene atração dos sexos[305], entre o
clima originário (antes do pecado original) e o clima do homem que olha para
a mulher para «cometer adultério com ela no seu coração»? S. João Paulo II,
comparando ambas as situações, define a segunda como uma «redução
intencional»[306]. Eis a sua explicação:
«Quando afirmamos que o “desejo”, em confronto com a atração recíproca original da
masculinidade e da feminilidade, representa uma “redução”, temos em mente uma “redução”
intencional, quase uma restrição ou encerramento do horizonte do espírito e do coração. Uma
coisa, de facto, é ter consciência de que o valor do sexo faz parte de toda a riqueza de valores,
com que ao varão aparece o ser feminino; e uma outra coisa é “reduzir” toda a riqueza pessoal
da feminilidade àquele único valor, isto é, ao sexo, como objeto idóneo à satisfação da própria
sexualidade. […] A “redução” intencional é, como se vê, de natureza sobretudo axiológica. Por
um lado, a eterna atração do homem para a feminilidade (cfr. Gen 2, 23) liberta nele – ou
talvez, deveria libertar – uma diversidade de desejos espirituais-carnais de natureza sobretudo
pessoal e “de comunhão” (cfr. a análise do “princípio”), aos quais corresponde uma hierarquia
proporcional de valores. Por outro lado, o “desejo” limita essa diversidade, ofuscando a
hierarquia dos valores que caracteriza a atração perene da masculinidade
e da feminilidade»[307].
A explicação merece ser longamente meditada. Servirá como antídoto
para evitar deixar-se manipular pela concupiscência. Na cultura atual, os
comportamentos libidinosos, próprios de quem «desata» a concupiscência e
a «põe à solta», são apresentados como uma «força», enquanto a castidade
como uma «amputação». Nada mais falso. O desejo libidinoso contém em si
uma parcela da «verdade»: Deus criou dois sexos e entre eles existe uma
perene atração, um fascínio querido pelo próprio Deus que permite admirar
as virtualidades do sexo complementar e experimentar por ele uma certa
inclinação. O outro sexo tem muito para nos ensinar[308]… A perceção da
diferença e das virtudes do
outro sexo, que naturalmente atrai as atenções, contém em si uma verdade
perene e uma bondade a reconhecer. Ainda pior do que o não reconhecimento
das
virtualidades do sexo oposto e absolutamente contrário à verdade bíblica
seria olhar para o outro sexo como uma constante fonte de perigo ou de
perversão. Como já referimos, essa atitude maniqueísta não corresponde,
nem de perto nem de longe, à doutrina da Igreja. A pergunta que se coloca
então é como manter a perene atração dentro do horizonte da comunhão de
pessoas, e não a limitar a um dos aspetos, hipertrofiando-o, pois, de facto, a
concupiscência reduz drasticamente essa ampla atração a um só valor – o
sexual – que conduz a um só gesto: possuir.
Conclui o Santo Padre: «A concupiscência da carne orienta, porém, esses
desejos para a satisfação do corpo, frequentemente em detrimento de uma
autêntica e plena comunhão das pessoas»[309].
Em que consiste, ao certo, a «satisfação do corpo»? S. Tomás de Aquino
responde sinteticamente que os deleites sexuais pertencem ao tato![310] A
concupiscência orienta, pois, para um certo registo tátil. Quem por ela se
deixou dominar será consciente desse aspeto tão básico?
É um grande passo na luta contra o desejo libidinoso tomar plena
consciência do empobrecimento a que ele conduz[311]. Ao adquirir a
consciência do efeito redutor da concupiscência, percebe-se que ela não é na
verdade uma «força», mas sim uma grave perturbação do nosso «eu».
Pressupõe uma falta de domínio (uma falta da «força» de vontade) da pessoa,
que impede o reconhecimento cabal de todos os valores presentes no outro,
os quais ficam ofuscados pelos impulsos selvagens da concupiscência.
O então cardeal Wojtyla descrevia, em Amor e Responsabilidade, o
conteúdo do perigo moral envolto na concupiscência do corpo:
«Conduz a um “amor” que não é amor, que é um erotismo que tem por “fundamento” unicamente
o desejo sensual e a sua satisfação, um amor que se limita ao corpo e ao sexo e não atinge a
pessoa, um amor não integrado. Por outras palavras, o perigo moral consiste aqui não só numa
deformação do amor, mas também num desperdício dos seus “materiais”. Com efeito, a
sensualidade fornece matéria ao amor, mas é a vontade que o produz. Sem ela não há amor. Ficam
os “materiais” que a concupiscência do corpo utiliza, esgotando-se no seu uso. Praticam-se então
atos internos e externos que têm por objeto só os valores sexuais. […] O que aí se manifesta é a
atitude utilitária a respeito da pessoa, que se torna objeto de prazer»[312].

E que sucede com a pessoa que se deixa dominar por essa atitude? «O
“eu”, considerado como sujeito, torna-se egoísta, quando cessa de ver o seu
posto objetivo entre os outros seres […]. O egoísmo exclui o amor, mas
admite os cálculos e o compromisso; embora não haja nada de amor, é
sempre possível uma acomodação bilateral entre os egoísmos»[313]. O facto de
dois desejos libidinosos se encontrarem e disfrutarem juntos não transforma
essa união carnal numa comunhão de pessoas. É um grave engano pensar que
uma junção de interesses possa ser um ato de amor.
Estas explicações seriam suficientes para que uma pessoa de bem se
decidisse, de uma vez por todas, a lutar por erradicar os movimentos egoístas
do seu coração. Realmente, haverá algo mais desprezível do que
instrumentalizar alguém? Quando Cristo, no Sermão da Montanha, apela ao
coração do homem, quer que ele se dê conta da necessidade de velar pelo
coração, de modo a que, desde o movimento mais ténue que se gere nele, não
haja nenhum desejo de possuir ou instrumentalizar o outro. Nem sequer no
olhar isso deve suceder.
Os confessores deveriam ter isto bem presente quando lhes aparece um
penitente consumidor de pornografia. Convém fazer o penitente considerar
que, além do pecado pessoal, está a colaborar na (e a perpetuar a)
instrumentalização das pessoas, com todas as feridas e dores que elas
possam padecer. Os penitentes não podem deixar de se arrepender também
pelas consequências sociais do seu vício privado.
A vontade firme de se comportar bem, sem desejar instrumentalizar
pessoas, levará, com frequência, a que um homem não olhe para uma mulher
quando comprova que esse olhar desencadeará nele desejos possuidores. Em
tais circunstâncias, o melhor modo de respeitar os valores femininos é,
precisamente, não fixar o olhar para não avaliar a mulher de modo fracionado
(esta parte do corpo…). Quando se trata de atitudes agressivamente
provocadoras por parte da mulher (o que vulgarmente se chama «sedução»),
que apelam para o olhar dirigido e redutor do homem, é preferível nem
sequer olhar, pois se a própria mulher renunciou – por razões talvez até
dramáticas, que não nos compete julgar – à sua dignidade, o homem, pelo
contrário, deve recusar infringir a sua dignidade de filha de Deus, nem
mesmo com um simples olhar.
Não esqueçamos que um gesto de respeito pela pessoa – um gesto de
cavalheirismo – pode contribuir para devolver à mulher transformada em
objeto uma parcela da sua dignidade, como se lhe disséssemos: «não me
interessam tanto as medidas do teu corpo, mais sim todo o teu ser, por isso
rezo pelo bem da tua pessoa». Se todos procedessem assim, acabariam
ignóbeis profissões que, por razões monetárias, exploram a dignidade das
pessoas, sem temor a que fiquem arrasadas. Conselhos paralelos, com a
especificidade própria, deveriam ser dirigidos à mulher que, insisto, padece
igualmente a concupiscência ainda que esta, com frequência, se manifeste de
outra maneira.
Retomo o conselho anterior dirigido ao homem: é preciso educar para o
cavalheirismo. Desde a infância. Na educação clássica, sempre se dizia aos
rapazes que não se bate numa menina nem sequer com uma flor. É
conveniente continuar a educar no maior respeito pelo outro sexo. Devo
acrescentar que, pessoalmente, quando uns pais propõem à sua filha de dois
ou três anos que me cumprimentem com um beijinho e ela não se aproxima
por seu próprio pé, por vergonha ou temor, nunca me passa pela cabeça
avançar eu com o beijinho. Apesar dos seus dois ou três anos, penso sempre
que deve ser respeitada neste seu querer, mesmo que motivado por uma birra
ou por um amuo. Também uma criança é «dona do seu mistério». E deve ser
consciente desse dom o mais cedo possível.
Procuremos concluir o capítulo. Se, por um lado, a vergonha parece estar
enraizada numa equívoca perceção do corpo, através da explicação de S.
João Paulo II ficamos a saber, por outro lado que a raiz principal dessa
vergonha é, sobretudo, uma certa deformação na capacidade de querer. Eis
algumas palavras adicionais de S. João Paulo II a este respeito:
«Parece que, nas palavras dirigidas por Deus-Jahvé à mulher [cfr. Gen 3, 16], se encontra uma
ressonância mais profunda da vergonha que ambos começaram a experimentar depois da rutura
da original Aliança com Deus. Nelas encontramos, além disso, uma mais plena motivação dessa
vergonha. De modo muito discreto e, apesar disso, bastante decifrável e expressivo, Génesis 3, 16
atesta como aquela original e beatificante união conjugal das pessoas será deformada no coração
do homem pela concupiscência. Estas palavras são dirigidas diretamente à mulher, mas referem-se
ao homem, ou antes, aos dois juntos»[314].

Que significam ao certo estas palavas? Como vimos, a vergonha


encontra a sua raiz mais profunda no impulso para dominar e na
insaciabilidade da união. De alguma maneira, o homem tem vergonha – o
mal está no seu espírito, não o esqueçamos – porque deseja dominar a mulher
e sabe que não lhe pode oferecer a união que ela espera. A mulher, por sua
vez, tem vergonha porque receia o domínio do homem e sente que não é
capaz de se entregar totalmente nem de recebê-lo sem reservas ou condições.
Estas inclinações podem e devem ser combatidas com o auxílio da graça da
Redenção. Mas devem ser reconhecidas, para se desejar com verdadeira
urgência essa graça, recorrendo às suas fontes, sobretudo à Confissão e à
Eucaristia.
Ao concluir a sua densa análise e ao descrever quais as características
essenciais do homem da concupiscência, o autor das catequeses sintetiza-as
com uma única expressão, essencial na terminologia da teologia do corpo:
existe, no homem da concupiscência, uma corrupção do significado esponsal
do corpo. Deduzimos esta conclusão quando verificamos que a comunhão das
pessoas ficou deformada, tal como ficou claro ao analisar a «vergonha»
experimentada após o pecado. «Se, na sua experiência pessoal (que o texto
bíblico nos permite seguir), essa forma original [da comunhão de pessoas] foi
alvo de desequilíbrio e deformação – como procurámos demonstrar por meio
da análise da vergonha – deverá igualmente ter sido deformado o significado
esponsal do corpo, que na situação da inocência original constituía a medida
do coração de ambos, do homem e da mulher»[315]. Por outras palavras, se
depois do pecado se verifica em Adão e Eva um temor mútuo que pouco tem
que ver com a anterior comunhão de pessoas, em que o corpo servia de
substrato perfeito, esse temor deriva da deformação do coração humano. A
«medida do coração» (é também uma expressão de S. João Paulo II) mudou.
«O “significado” do corpo não é apenas algo de concetual. […] É
simultaneamente aquilo que determina a atitude: é o modo de viver o corpo.
É a medida que o homem interior, isto é aquele “coração” ao qual Cristo se
refere no Sermão da Montanha, aplica ao corpo humano em relação à sua
masculinidade/
/feminilidade (e portanto quanto à sua sexualidade)»[316]. No princípio, essa
medida era o significado esponsal: o homem vivia o corpo em plena
harmonia com o espírito, e desejava doar-se a outro e receber o outro por si
mesmo. Mas o coração do homem mudou. E a medida que aplica ao corpo é
outra. É uma medida que deriva da mudança ocasionada pela concupiscência
no coração. O homem passou a correr o grave risco de viver o corpo como
algo instrumental, fora da dignidade da pessoa, sujeito à manipulação: «O
substrato natural e somático da sexualidade humana manifestou-se como uma
força quase autónoma, marcada por um certo “constrangimento do corpo”,
atuando segundo uma dinâmica própria, que limita a expressão do espírito e a
experiência do intercâmbio do dom da pessoa»[317]. Ou, de modo ainda mais
radical: «A concupiscência em geral – e a concupiscência do corpo em
particular – afeta precisamente este “dom sincero”: subtraem ao homem,
poder-se-ia dizer, a dignidade do dom, que é expressa pelo seu corpo
mediante a feminilidade e a masculinidade. Em certo sentido
“despersonalizam” o homem, fazendo-o objeto “para o outro”»[318].
Que aconteceu realmente no coração humano? Indo mais a fundo, S.
João Paulo II afirma que a «concupiscência implica a perda da liberdade
interior do dom. […] A concupiscência, que se manifesta como
“constrangimento ‘sui generis’ do corpo”, limita interiormente e restringe o
autodomínio de si, e por isso mesmo, em certo sentido, torna impossível a
liberdade interior do dom»[319]. Se a liberdade do dom era a máxima
expressão da liberdade – a liberdade em grau máximo, o melhor que podia
atingir –, o homem foi atingido no seu centro nevrálgico. Não quererá o
homem de hoje, e de todos os tempos, recuperar parte dessa capacidade? Dar-
se-á realmente conta que viver ao sabor da concupiscência, em vez de ser
uma expressão da liberdade, é um aprisionamento indigno da sua condição?
Havemos de aprofundar a dificuldade que experimenta o homem em
aperceber-se com clareza da prisão da concupiscência e, correlativamente, da
libertação que Cristo oferece. Para já, com esta longa análise, entendemos
melhor a lamentável transformação ocasionada pelo pecado original e como
ela é negativa, quando é confrontada com o plano originário. Uma tal análise
torna mais fácil desejar a redenção, sabendo que esta nos permite diminuir as
consequências desse pecado e voltar a recuperar, mesmo que
imperfeitamente, a experiência das capacidades mais nobres do corpo. O
homem deve sempre procurar que o seu coração aplique ao corpo uma
medida bem mais próxima do sentido originário: deve viver o corpo
consciente de que o máximo que ele pode «dar de si» é ser um dom e um
lugar de acolhimento do outro. O que estiver abaixo dessa medida é indigno
do homem.
O convite a descobrir a grandeza do nosso ser é uma forte motivação
para o homem de hoje, tão cioso do que «sente». Não quererá esse homem
descobrir no seu ser «forças» e capacidades até ao momento desconhecidas?

15.
Velar pelo coração: desejar bem

A mais polémica das audiências gerais de teologia do corpo foi a de 8


de outubro de 1980. O Papa prosseguia as reflexões sobre as palavras de
Cristo no Sermão da Montanha. A primeira leitura, mais óbvia, sobre o que
é ao certo o adultério do coração leva a entender que este se torna numa
infeliz realidade quando um homem deseja sexualmente uma mulher que
não é a sua esposa.
S. João Paulo II admite, porém, numa «segunda leitura», um nível mais
profun-
do do sentido das palavras de Cristo, baseado não tanto nas exigências
jurídicas do matrimónio mas antes na dignidade das pessoas[320]. E é
possível adivinhar uma nova leitura das palavras de Cristo se repararmos
como começa a sentença: «Mas Eu, porém, digo-vos» (Mt 5, 27).
S. João Paulo II insistirá muito em que a nova perspetiva, que amplia a
interpretação, certamente rigorosa, da leitura em primeira instância, obedece
à vontade de Jesus de propor um novo ethos, uma consciência nova do que a
força da Redenção pode ocasionar nos corações[321]. E assim, no novo
patamar interpretativo das palavras de Jesus, S. João Paulo II levantou um
coro de protestos ao afirmar que também é possível cometer o «adultério do
coração» com a própria esposa.
Eis as palavras que desencadearam uma autêntica tempestade nalguns
meios de comunicação daquele tempo:
«O adultério “no coração” é cometido não apenas porque o homem “olha” dessa maneira para a
mulher que não é sua esposa, mas precisamente porque olha dessa maneira para uma mulher.
Mesmo se olhasse desse modo para a mulher que é sua esposa cometeria idêntico adultério “no
coração”»[322].

À primeira vista, estas palavras parecem contradizer tudo o que foi dito
anteriormente sobre a bondade da sexualidade. Então o marido não pode
desejar unir-se sexualmente com a sua esposa? Não a pode olhar? Não se
estarão a levantar problemas morais onde não existem? Mesmo ainda sem a
compreensão exata do sentido daquelas palavras, o leitor atento das
catequeses adivinhará que S. João Paulo II se limita a expor a integridade das
exigências do Mestre, com a sua inerente dimensão libertadora. Suspeitará
imediatamente que deve haver algum matiz que clarifica as palavras do
Pontífice. Devo acrescentar, todavia, que estas palavras me parecem cruciais
para toda a teologia do corpo. Espero justificar plenamente esta afirmação.
Antes de responder a estas perplexidades, é útil ler um outro texto, em
que
S. João Paulo II chama a atenção para o risco de se confundir o amor com o
desejo concupiscente:
«O significado esponsal do corpo não se tornou totalmente estranho àquele coração: não ficou
nisso totalmente sufocado por parte da concupiscência, mas só habitualmente ameaçado. O
“coração” tornou-se campo de batalha entre o amor e a concupiscência. Quanto mais a
concupiscência domina o coração, tanto menos este experimenta o significado esponsal do corpo,
e tanto menos se torna sensível ao dom da pessoa que, nas relações recíprocas do homem e da
mulher, exprime precisamente esse significado. Certamente, também aquele “desejo” de que fala
Cristo em Mateus 5, 27-28 aparece no coração humano sob múltiplas formas. Nem sempre é
evidente e óbvio, às vezes é obscuro, de tal forma que se faz passar por “amor”, embora modifique
o seu perfil autêntico e obscureça a limpidez do dom na relação recíproca das pessoas. Quer
forçosamente isto dizer que tenhamos o dever de desconfiar do coração humano? Não! Quer
somente dizer que devemos mantê-lo sob controlo»[323].

Na prática, o que significará esta vigilância e este domínio do coração?


Confrontamo-nos, então, com duas grandes questões, ambas centradas
no desejo concupiscente. Resumamo-las desta maneira: como distinguir o
amor verdadeiro de um mero desejo concupiscente, mesmo que se dê dentro
do casamento? Será possível manter «sob controlo» o coração humano, de
modo a que o desejo – mesmo não exteriorizado – esteja sempre de acordo
com a dignidade humana? Ou – é uma pergunta implícita na anterior –
devemos adotar um comportamento necessariamente repressivo, dizendo um
«não» contínuo aos desejos mais íntimos?
15.1. Identificar um mau desejo, mesmo para com a esposa
No Sermão da Montanha, Jesus diz: «Porque Eu vos digo que, se a vossa
justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos
Céus» (Mt 5, 20). Cristo quer mais do que o mero cumprimento externo da
lei. «A justiça», explica S. Josemaria, «não consiste na mera submissão a
uma regra: a retidão deve nascer de dentro, deve ser profunda, vital, porque o
justo vive da fé»[324]. Jesus deseja o nosso coração: o nosso «eu» mais íntimo
deve estar em sintonia com o querer de Deus. De facto, o amor tende para
esse único querer, como bem explica Bento XVI:
«Idem velle atque idem nolle – querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa é, segundo os
antigos, o autêntico conteúdo do amor: um tornar-se semelhante ao outro, que leva à união do
querer e do pensar. A história do amor entre Deus e o homem consiste precisamente no facto de
que esta comunhão de vontade cresce em comunhão de pensamento e de sentimento e, assim, o
nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais: a vontade de Deus deixa de ser para
mim uma vontade estranha que me impõem de fora os mandamentos, mas é a minha própria
vontade, baseada na experiência de que realmente Deus é mais íntimo a mim mesmo de quanto o
seja eu próprio. Cresce então o abandono em Deus, e Deus torna-Se a nossa alegria (cfr. Sal 73/72,
23-28)»[325].

Porque o amor pressupõe essa identificação com quem se ama, para


amarmos realmente a Deus, o nosso querer, mesmo o mais íntimo, deve
identificar-se com o que Ele quer. Tal não significa que, aqui na terra, não se
experimentem tentações, por definição contrárias aos desígnios de Deus. É
certo que elas aparecerão. No entanto, quando se ama de verdade a Deus,
torna-se mais fácil identificar esses desordenados desejos incipientes como
contrários ao querer de Deus – contrários ao bem – e, por conseguinte,
combatê-los na sua raiz. Essa luta contra nós próprios não é repressão, mas
sim desvio para um bem mais alto – o bem verdadeiro. Dito com palavras
simples: quando um homem deseja uma mulher de forma libidinosa, a luta
não visa tanto anular ou negar o desejo, mas sim tomar consciência do que o
desejo significa e reencaminhá-lo noutra direção.
Na prática, como proceder? O desejo de algo, mesmo o desejo
libidinoso, recorda-nos que não somos autossuficientes: não temos tudo em
nós. Há bens fora de nós e – se forem bens verdadeiros – podemos e devemos
tender para eles. Certamente que esses bens não coincidem com a satisfação
sensual, o mero prazer do contacto físico com alguém. Mas, apesar disso,
contêm algo «bom». É ilustrativa a conhecida frase, erroneamente atribuída a
Chesterton, que quase parece uma heresia: «O jovem que toca à campainha
da porta do bordel está inconscientemente à procura de Deus»[326]. Suponho
que o leitor terá entendido o sentido da expressão. Não se trata de uma
bênção para o desejo luxurioso, mas sim de um apelo a fazer notar que o
homem que assim procede procura algo fora de si que em si não tem – e nisto
a intuição é certeira –, ainda que o procure de modo equívoco, absolutizando
uma parte do seu desejo e, por uns instantes, idolatrando uma criatura a quem
parece disposto a tudo dar desde que obtenha uma satisfação passageira[327].
Esse homem, como qualquer homem ou mulher, precisa de Deus – precisa do
Amor –, mas, por razões variadas, pensa encontrá-lo na satisfação da sua
sensualidade.
Como é possível um erro tão crasso como o do exemplo dado?
De modo genérico, com palavras certeiras dos livros sapienciais, S.
João Paulo II recorda a que situação conduz o desejo libidinoso. Leiamos um
impressionante texto do Eclesiástico: «Uma paixão ardente como fogo aceso
não se acalmará antes de devorar alguma coisa. O homem que abusa do seu
próprio corpo não terá sossego enquanto não o devorar uma fogueira. Para o
homem impuro todo o pão é apetitoso, e não se cansará de pecar até à morte.
O homem que desonra o seu leito conjugal diz no seu coração: “Quem me
vê? As trevas cercam-me, as paredes escondem-me, ninguém me vê, e a
quem temerei? O Altíssimo não se lembrará dos meus pecados”. Não
considera que os olhos de Deus veem todas as coisas, que um semelhante
temor humano afasta de si o temor de Deus. Só teme os olhos dos homens. E
não sabe que os olhos do Senhor são muito mais luminosos do que o Sol;
veem todos os caminhos dos homens, e penetram as profundezas do abismo
e os corações dos mesmos homens até aos seus mais íntimos recônditos.
Assim também perecerá toda a mulher que deixar o seu marido, e lhe der
como herdeiro um filho adulterino» (Ecl 23, 17-22). S. João Paulo II
comenta: «O autor bíblico justamente constata que o homem, cuja vontade
está empenhada em satisfazer os sentidos, não encontra sossego nem se
encontra a si mesmo, antes pelo contrário, “consome-se”. A paixão procura
satisfação, por isso ofusca a capacidade reflexiva e não atende à voz da
consciência»[328]. A concupiscência
pode, portanto, cegar a pessoa, impedindo-a de procurar o verdadeiro Amor.
Ora, essa cegueira também pode acontecer entre esposos. Também o
marido e a mulher correm o risco de se deixarem condicionar por uma certa
mentalidade utilitarista nas relações[329]. O matrimónio não dá «carta
branca» ao marido para tratar a esposa como lhe passar pela cabeça (ou
vice-versa), ou ver nela apenas um meio para a sua imperiosa satisfação
sexual. Nota-se que isso sucede quando, por exemplo, passa por cima de
uma doença ou um incómodo da mulher, contanto que obtenha o que deseja.
Ou também quando não manifesta qualquer atenção para com ela durante o
dia e à noite deseja o seu corpo. Com tais premissas, nenhuma mulher ficará
particularmente satisfeita com o pedido para se unir conjugalmente ao
marido. S. João Paulo II vem ao encontro dessas faltas de amor sincero, que
colocam o ato conjugal fora da autêntica comunhão de pessoas.
É verdade que, tradicionalmente, se usou a expressão «débito conjugal»
para recordar a obrigação de os esposos não recusarem o ato mais específico
do casamento para expressar a mútua entrega. Mesmo que a expressão tenha
caído em desuso, talvez por ser demasiado fria e despersonalizante (algo
com o qual concordo totalmente), mantém-se o ensino sobre a
obrigatoriedade moral dos cônjuges nesta matéria pois, de facto, ambos se
comprometeram a serem um do outro. O próprio S. Paulo escreveu: «Dê o
marido a sua mulher o que lhe deve; e, da mesma maneira, a mulher
também ao marido» (1 Cor 7, 3). Isto a tal ponto que a teologia moral
ensinou que a recusa injustificada a ter relações pode ser pecado mortal[330].
No entanto, o facto de a esposa ter a obrigação de manter relações com o
marido sempre que este lhas peça razoavelmente não significa que o marido
não se deva examinar a si próprio, no sentido de assegurar-se de que, com
esse ato, quer expressar a doação à esposa e não instrumentalizá-la como
objeto de satisfação sexual (o mesmo se aplica à mulher, se instrumentalizar
o marido). Logicamente, esta atitude de amor sincero e respeitoso exclui
qualquer tipo de relações não naturais, e exclui igualmente o uso dos
contracetivos: esses comportamentos revelariam que se tinha admitido a
instrumentalização do outro. Como veremos, em relações deste género, nem
a doação nem a aceitação do outro são totais: apenas há o interesse de usar
parte do cônjuge (o seu corpo, a sua sexualidade), com exclusão de outras (a
feminilidade,
a capacidade de maternidade, etc.).
Nas variadas atitudes egoístas entre esposos, pode surgir num deles ou
nos dois o «adultério do coração», quer dizer, uma tal deformação do desejo
do outro que, em vez de criar o clima da comunhão de pessoas mediado pela
união dos corpos, a união acabe por gerar uma reles instrumentalização. A
médio prazo, se não se corrige, conduzirá a uma enorme insatisfação,
quando não a uma revolta da parte da pessoa a quem é pedido para dar o
melhor e o mais íntimo de si, em troca de um mero momento de aparente
interesse que não corresponde a um amor sincero, pois apenas se pretende
satisfazer uma suposta
«necessidade» pessoal.
Conviria que o leitor recordasse aqui o que foi dito sobre a mulher
como «dona do seu mistério», no capítulo 9. O marido não deve perder
nunca de vista esta realidade. Quando deixar de tratar a esposa como «dona
do seu mistério», convertê-la-á num «objeto» para ele. Portanto, é sempre
necessário velar pela bondade do desejo do outro (mesmo o da própria
esposa ou esposo), para que não se converta no desejo de uma parte do
outro (apenas um tempo, apenas o contacto corporal, etc.), o que conduziria,
consciente ou inconscientemente, a uma infeliz instrumentalização, mais
grave ainda por ser a própria esposa, a última pessoa do mundo a quem um
bom marido quereria tratar assim.
Mas, se é necessário velar pelo coração, como encaminhar corretamente
os desejos que dele brotam? Como educar esses desejos? Desde já, gostaria
de fazer notar que dificilmente se conseguirá a mudança do coração com
meros raciocínios, mesmo que muito bem elaborados. É a graça de Deus
que transforma um coração de pedra, insensível ao outro, num coração de
carne que ame de verdade, respeitando desde a sua profundidade a norma
personalista. Deter-nos-emos no capítulo seguinte no estudo da
transformação que Cristo faz em nós. Por ora, basta recordar o que a
teologia sempre explicou a propósito da Nova Lei, ou Lei da Graça, ou de
Cristo: é uma lei eminentemente interior, gravada pelo Espírito Santo nos
nossos corações[331]. Os ensinamentos de S. João Paulo II
sobre a necessidade de o desejo mais interior do homem pela sua esposa ser
um desejo de amor (de doação total e de aceitação de toda a pessoa do
outro), e nunca um desejo instrumentalizador, é uma bela e consistente
ilustração desse ensinamento constante da Igreja: o cristão, inundado pela
graça, ama como Cristo ama[332].
Recordemos ainda que a graça de Deus conta com a nossa livre
correspondência. Por isso, convém averiguar como se deve querer e o que se
deve evitar ao certo, no desejo para corresponder à graça com todos os nossos
recursos. S. João Paulo II centra-se em três aspetos que respondem a estas
questões e que, bem entendidas, permitem avançar na cura que o Senhor pode
fazer em nós. Resumamo-los em seguida.
É compreensível a necessidade de evitar «maus desejos». Mas esse
esforço nunca pode levar à absurda conclusão de que o corpo humano ou a
mulher desejada são «maus». Tratar-se-ia do erro maniqueísta[333];
Uma vez que se reafirmou a bondade do corpo e do sexo contra o erro
maniqueísta, poder-se-ia ser tentado a concluir que, se o corpo e o sexo são
bons e a pessoa não os deve rejeitar, então o coração está irremediavelmente
condenado a desejar mal, pois essa parece ser a condição normal do coração.
É a tentação dos «mestres da suspeita», a que já nos referimos. Como o leitor
recordará, respondeu-se que a realidade não é assim: com a força da
Redenção, o coração humano pode mudar, pode desejar de outro modo;
A terceira tentação é a de considerar que, sendo a mudança possível –
pode-se «desejar bem» –, ela irá sempre contra o que é espontâneo no
homem. Conclui-se com amargura que o homem «bom» deve reprimir
constantemente os impulsos genuínos do seu coração. Ou não será assim?
Também aqui a resposta é negativa. Trata-se de adquirir uma nova
espontaneidade.
Sintetizemos: nem há uma condenação do corpo, nem – como se se
tratasse de uma necessária alternativa – uma condenação do coração, que
seria então incorrigível, sem poder desejar bem. O desejo mau tem cura e o
homem não deve desistir de o corrigir com o auxílio da graça, a qual dará ao
homem uma nova espontaneidade, que não instrumentaliza ninguém.
15.2. As interpretações maniqueístas
Analisemos, ponto por ponto, o que acabou de ser enunciado.
O chamado «erro maniqueísta» parece estar longe do horizonte diário.
Em teoria, ninguém pensa que o corpo seja mau ou que a mulher (ou o
homem) seja má (mau). No entanto, é inegável que, ao tentar explicar as
severas palavras de Jesus que estamos a analisar, existe o risco de transferir
para o «objeto» do desejo concupiscente a maldade desse modo de desejar.
É como se o marido infiel, emaranhado nas suas paixões, se queixasse dos
atrativos da mulher com quem se envolveu. Este modo de ver as coisas
assume muitas vezes como premissa (para o tal marido) que, enquanto a
mulher existir ou mantiver os seus atrativos, pouco há a fazer. A mudança
que se vislumbra como necessária para retomar a fidelidade parece ficar
condicionada à mudança da mulher ou, se tal não sucede, ao momento em
que, pelas circunstâncias, o marido decidir condená-la porque já não lhe dá
o que esperava (então é fácil dizer: «ela era mesmo má!»); mas, entretanto,
não pensa na mudança decisiva, a do próprio coração, uma mudança que
pode acontecer «já» e que só depende do próprio. Ao marido infiel parece-
lhe estar condenado a querer o que, no fundo, sabe que não deve querer.
S. João Paulo II insiste em que o enérgico apelo a vencer a
concupiscência deve ir unido a uma maior consciência do valor do corpo e
da sexualidade. Dessa maneira, o homem toma consciência de que, quando
se deixa condicionar pelo desejo concupiscente, entre outras consequências,
empequenece o corpo, a sexualidade – e a mulher assim desejada é vista
como alguém incapaz de ser contemplado como uma pessoa, alguém à prova
de qualquer instrumentalização.
Apresento um novo exemplo. Quando se aconselha um rapaz a não
olhar para uma rapariga vestida de forma provocante, é importante medir as
palavras. Seria evidentemente um grave erro enunciar um tipo de juízo
negativo universal: «não olhes para as raparigas que são todas umas
ordinárias». Uma frase do género seria um mau conselho pois pretender-se-
ia alcançar um fim bom (evitar o desejo concupiscente) com uma falsidade.
Mesmo limitando a frase à pessoa concreta que vai mal vestida, convém não
induzir o rapaz a concluir que, se ela vai vestida de forma provocante, então
é «má». Nem a mulher nem o seu corpo são maus. É, sem dúvida,
lamentável o seu modo de vestir desadequado (mesmo que possa não ser
culpada, por não ser plenamente consciente do que faz); e, pela debilidade
do rapaz em questão, tal atitude pode provocar nele um desejo utilitarista.
Para evitar esse desejo, o rapaz deve tentar não olhar para a rapariga, mas, ao
mesmo tempo, deve esforçar-se por pensar que ela está chamada por Deus à
santidade, que tem uma alma imortal e que, já que chama a sua atenção, seria
de aproveitar esse «apelo» para rezar por ela enquanto desvia o olhar: «cuida
dela, Senhor, faz com que mude de atitude».
Por isso, é tão necessário combater os desejos desordenados como
cultivar a convicção da bondade da mulher (ou do homem, quando se trata
de um juízo formulado pela mulher), do corpo e da sexualidade. S. João
Paulo II explica o perigo de se deixar levar pelo maniqueísmo:
«Se a vitória sobre o mal deve consistir no desapego deste (daí as severas palavras no contexto de
Mateus 5, 27-28), trata-se, todavia, apenas de desapegar-se do mal do ato (no caso em questão,
do ato interior da “concupiscência”), e nunca de transferir o caráter negativo de tal ato para o
seu objeto. Semelhante transferência significaria uma certa aceitação – talvez não plenamente
consciente – do “antivalor” maniqueísta. Isto não constituiria uma verdadeira e profunda vitória
sobre o mal do ato, que é mau pela sua essência moral, portanto um mal de natureza espiritual.
Pelo contrário, esconder-se-ia aí o grande perigo de justificar o ato em detrimento do objeto
(nisto consiste propriamente o erro essencial do ethos maniqueísta)»[334].

O desejo concupiscente dirigido a uma mulher, ao gerar no homem um


movimento interior que a instrumentaliza, impede-o de avaliar corretamente
o valor da mulher: «O “adultério cometido no coração” pode e deve ser
entendido como “desvalorização” ou empobrecimento de um valor autêntico,
como intencional privação daquela dignidade à qual corresponde o valor
integral da feminilidade na pessoa em questão. As palavras de Mateus 5, 27-
28 contêm um apelo a descobrir esse valor e essa dignidade, e a reafirmá-
los»[335].
Esquecer as diferentes perspetivas – o homem deve combater o mau
desejo porque instrumentaliza a mulher e também porque impede uma
avaliação correta da mulher – seria renunciar à vitória que Cristo nos
convida a alcançar. Porque, como prossegue S. João Paulo II, as palavras de
Cristo no Sermão da Montanha, mais do que uma acusação ao coração
humano são um convite:
«Deste modo, devemos precisar a diferença entre a “acusação” e o “apelo”, dado que a acusação
dirigida ao mal da concupiscência é, simultaneamente, um apelo para o vencer.
Consequentemente, esta vitória deve unir-se a um esforço para descobrir os autênticos valores do
objeto, a fim de que no homem, na sua consciência e na sua vontade, não se enraíze o “antivalor
maniqueísta”»[336].

Outro tanto deveríamos acrescentar sobre o valor do corpo e da


sexualidade. O facto de se experimentar no corpo um intenso e desordenado
desejo sexual não significa nem que o corpo seja mau nem que o sexo seja
mau. Já se reafirmou anteriormente a bondade destas realidades criadas por
Deus. Recordemos como o corpo é expressão da pessoa, e como a união
conjugal deve ser manifestação da comunhão de pessoas: «O corpo, na sua
masculinidade e feminilidade, é “desde o princípio” chamado a tornar-se a
manifestação do espírito. Isso também é realizado através da união conjugal
do homem e da mulher, quando se unem de modo a formarem “uma só
carne”»[337].
S. João Paulo II mostrará ainda, de modo inequívoco, a verdade do que
se acaba de afirmar ao evocar o texto de Efésios (sobre o qual haveremos de
deter-nos) em que S. Paulo fala da união mística entre Cristo e a Igreja. Faz
notar que o Apóstolo «não hesita em estender a analogia da união de Cristo
com a Igreja no amor esponsal, delineada de modo tão “absoluto” e
“escatológico”, ao sinal sacramental do pacto esponsal do homem e da
mulher. […] Não hesita em estender aquela mística analogia à “linguagem
do corpo”, relida na verdade do amor esponsal e da união conjugal dos dois.
É necessário reconhecer a lógica deste texto estupendo, que liberta
radicalmente o nosso modo de pensar dos elementos de maniqueísmo ou de
uma consideração não personalista do corpo»[338]. Portanto, não só não é
indigno evocar a união dos esposos em temas santos, como se comprova que
ela tem a capacidade de esclarecer uma realidade mística como é a relação
de Cristo com a Igreja.
Reafirmada a bondade da sexualidade, do corpo e da união conjugal, a
pergunta que talvez surja ao leitor pode muito bem ser deste estilo: «tudo
isto é muito bonito de dizer, mas como fazer para ter sempre diante dos
olhos a pessoa e o amor?» Se não quer olhar para o outro com o olhar do
leão que olha para a sua presa, o homem deve cultivar o espírito
contemplativo, o hábito de ver além do imediato. Por exemplo, Cristo vê e
ensina a ver nos lírios do campo um sinal da Providência divina. Não é que
se sirva dos lírios apenas como imagem do que é a Providência: cada lírio
«fala» realmente dessa Providência, torna-a presente aqui e agora, é uma
expressão viva do cuidado de Deus pelas suas criaturas (cfr. Mt 6, 28-30).
Ora, para se adquirir este olhar contemplativo, é necessária a graça de Deus
e o esforço humano. É também S. João Paulo II
quem recorda como o caminho para a santidade, classicamente descrito em
três grandes etapas (purgativa, iluminativa e unitiva), tem consequências
diretas neste modo de olhar:
«Com o passar do tempo, se o homem seguir com perseverança o Mestre que é Cristo, sentirá
cada vez menos dentro de si o peso da luta contra o pecado e passará a gozar sempre mais da luz
divina que penetra toda a criação. Isto é extremamente importante, porque permite ao homem sair
duma situação em que, no seu interior, se sente constantemente exposto ao risco de pecar –
embora, sobre esta terra, um tal risco esteja sempre presente em medida maior ou menor –,
passando a mover-se com uma liberdade cada vez maior no meio de todo o mundo criado. Esta
liberdade e esta simplicidade, conserva-as ele igualmente face aos outros seres humanos,
incluindo os de sexo oposto; a luz interior ilumina os seus atos e apresenta-lhe como vindo da
mão de Deus todo o bem do mundo criado»[339].
Para deixar-se guiar constantemente por esta luz divina é, pois,
necessário, se não ultrapassar pelo menos avançar na via purgativa, vencendo
o mal moral nas suas diversas formas, procedendo a uma purificação
interior[340]. Seria um lamentável engano pretender ter adquirido essa visão
contemplativa sem uma persistente e prolongada negação de si próprio.
Neste terreno, vejo pessoalmente um certo perigo, que pode ser fruto de
um excessivo otimismo na eficácia da teologia do corpo. Não há dúvida de
que todos estes ensinamentos contribuem – e de que maneira! – para se
caminhar para a etapa mais contemplativa, onde se torna mais fácil «olhar
bem», sem desejos utilitaristas. Mas seria um engano pensar que, pelo facto
de se saber estas verdades, tudo fica resolvido no coração humano. Por isso,
é muito necessário que o homem negue à vista o gosto de continuar a olhar
para uma mulher quando nota que o seu olhar está prestes a gerar um mau
desejo. Essa negação faz parte da luta que o homem terá de travar dentro
de si. A teologia do corpo dá-lhe uma motivação adicional: não se olha
porque não se quer instrumentalizar nenhuma mulher, nem sequer com um
olhar. O homem não olhará então para a mulher que o perturba, não porque
ela seja má mas sim porque sabe que, naquele momento, o seu olhar não
expressaria o significado esponsal do corpo.
Continuando a expor a minha opinião nesta matéria mais prática,
defendo que é altamente ingénuo insinuar que basta a leitura das catequeses
e a sua compreensão para que um qualquer olhar seja limpo. Para se manter
a consciência da grandeza da mulher, o homem terá de dizer muitas vezes
«não» ao desejo mau de olhar, mais ainda quando se trate de imagens
pornográficas. A natureza humana está suficientemente enfraquecida; está
também consciente de que, perante um modo erótico de apresentar a mulher,
será difícil que aquilo que predomine na cabeça do homem seja a
preocupação pelo bem definitivo das mulheres assim expostas, rezando por
elas e tendo pena pela instrumentalização a que se deixaram submeter.
Nesses casos, respeitará a dignidade da mulher se souber não olhar.
Aliás, é sempre assim que um cavalheiro atua: se uma rabanada de vento
levanta a saia de uma mulher, desviará elegantemente o olhar, como se nada
acontecesse e, se porventura viu algo mesmo sem querer, não fará qualquer
referência ao assunto. O olhar de paparazzi é impróprio de um cavalheiro.
É esclarecedora a breve cena do Slumdog Millionaire em que o jovem Jamal
respeita escrupulosamente a intimidade de Latika enquanto esta toma banho;
ela, ao reparar na atitude, agradece e diz-lhe que ele é de facto muito bom
amigo.
Concluindo: cada pessoa deve ser sincera consigo própria e perguntar-
se: «por que é que olho?» Um critério útil para os que estão casados ou
optaram pelo celibato seria perguntar-se: «a minha esposa gostaria deste
olhar? Este olhar é compatível com alguém que entregou todo o seu ser a
Deus?»
15.3. Redimindo o desejo
A frequência com que a luta contra a concupiscência se apresenta levará
alguns a questionar-se: «o ser humano está irremediavelmente condenado a
ser dominado pela concupiscência?» Essa seria a tese dos chamados «mestres
da suspeita», que consideram o ser humano como estando condenado ao
domínio da concupiscência dos olhos, da soberba de vida ou da
concupiscência da carne. Para cada um dos «mestres», essa tendência não
seria «má», mas sim apenas «humana», e tentar combatê-la seria o mesmo
que renunciar à natureza humana. A concupiscência seria normal e, por isso,
não seria necessário «vencê-la».
Na linguagem corrente, é fácil ouvir-se a expressão «isto é humano»
como manifestação de que se aprova ou desculpa um comportamento imoral.
O Papa Bento XVI explica-o do seguinte modo: «Assim também a expressão
habitual “isto é humano” pode querer dizer “este homem é bom, realmente
age como deveria agir um homem”. Mas “isto é humano” também pode
significar falsidade: o mal é normal, é humano. O mal parece ter-se tornado
numa segunda natureza. Esta contradição do ser humano, da nossa história,
deve provocar, e provoca também hoje, o desejo de redenção»[341].
Cristo convida o homem a libertar-se do olhar concupiscente, a lutar
contra o adultério de coração. Portanto, se Cristo nos pede essa atitude, é
realmente possível manter para com a mulher uma relação sempre pura, sem
qualquer instrumentalização, nem sequer no desejo interior mais íntimo. A
Redenção convida a mudar o interior e a recuperar o significado esponsal do
corpo desde os movimentos mais íntimos.
Assim,
«na base da realidade denominada “Redenção” e, por conseguinte, na base do ethos da redenção
do corpo, não podemos deter-nos apenas na acusação do coração humano devido ao desejo e à
concupiscência da carne. O homem não pode deter-se colocando o “coração” em estado de
contínua e irreversível suspeita devido às manifestações da concupiscência da carne e da libido
que, entre outras coisas, um psicanalista descobre mediante a análise do inconsciente […]. A
Redenção é uma verdade, uma realidade, em nome da qual o homem deve sentir-se chamado, e
“chamado com eficácia”. Ele deve dar-se conta desse chamamento também mediante as palavras
de Cristo segundo Mateus 5, 27-28, relidas no contexto pleno da revelação do corpo. O homem
deve sentir-se chamado a redescobrir, mais, a realizar o significado esponsal do corpo, e a
exprimir deste modo a liberdade interior do dom, isto é, daquele estado espiritual e daquela força
espiritual que derivam do domínio da concupiscência da carne»[342].

O ser humano sabe que esta proposta vai ao encontro das aspirações
mais íntimas do seu ser. As palavras de Cristo têm eco no nosso interior. O
homem sabe que deve libertar-se de um olhar libidinoso que o desonra como
pessoa, e que deve afastar de si qualquer desejo «predador». Um tal olhar ou
desejo não corresponde à sua verdade mais íntima, e afasta-o da experiência
do deslumbrante significado esponsal do corpo, que lhe permite aproximar-
se das pessoas da única maneira digna de cada uma: pelo amor verdadeiro.
Daí que S. João Paulo II insista:
«O significado do corpo é, em certo sentido, a antítese da libido freudiana. O significado da vida é
a antítese da hermenêutica “da suspeita”. Tal hermenêutica é muito diferente, radicalmente
diferente daquela que redescobrimos nas palavras de Cristo no Sermão da Montanha. Estas
palavras revelam, não apenas um outro ethos, mas também uma outra visão das possibilidades do
homem. É importante que ele, precisamente no seu “coração”, não se sinta apenas
irrevogavelmente acusado e entregue como presa à concupiscência da carne, mas que, nesse
mesmo coração, se sinta chamado com energia. Chamado precisamente àquele supremo valor que
é o amor»[343].

A Igreja não se cansa de repetir esse enérgico chamamento ao amor,


«contra ventos e marés». Não deixa de chamar a um modo de vida
plenamente de acordo com a existência humana. Não pode deixar de
convidar, por exemplo, a que não se usem os contracetivos, que, como
veremos com mais pormenor, são um modo de contrariar o sentido esponsal
do corpo e aceitar o engano da con-
cupiscência.
15.4. Querer mesmo o bem
Chegados a este ponto, impõe-se uma nova e perturbante questão – a
última deste capítulo. Se o que se trata é de vencer a concupiscência, de
«querer sempre bem», não existirá o risco de anular qualquer tipo de
espontaneidade no ser humano, como se tudo devesse ser resultado de um
frio raciocínio teológico?
A resposta é negativa mas requer uma certa elaboração.
Num manual de teologia do corpo para adolescentes, propõe-se um
exemplo esclarecedor: duas jovens amigas vão assistir a um espetáculo de
ballet: o Lago dos Cisnes. Uma delas é bailarina, amante da música e
frequentadora habitual de espetáculos similares. A outra, pelo contrário,
presencia pela primeira vez um ballet. É ela que, uns 20 minutos após o
começo, em pleno espetáculo, decide telefonar ao namorado para trocar
com ele apenas umas breves palavras. Logo a seguir, sente fome e resolve
levantar-se para ir comprar uma coca-cola e pipocas. Antes de o fazer,
pergunta à amiga se deseja algo. Estupefacta, a bailarina puxa-a quando a
outra já se tinha levantado e previne-a de que não é permitido nem telefonar
nem beber ou comer durante o bailado. Ela não fazia a mínima ideia –
explica sussurrando – mas, além disso, começa a ficar aborrecida com as
danças. A diferença entre o comportamento das duas é evidente: a bailarina
foi ensinada desde pequena a compreender o ballet, aprendeu a interessar-se
e a gostar do que vê, e entende o silêncio e o sossego desses momentos
como algo que faz parte dela. Ao vivê-los, aprecia muito melhor o
espetáculo[344]. É verdade que vive de acordo com umas «regras» mas, de
facto, elas estão incorporadas no seu ser e o seu modo de se comportar é
espontâneo, corresponde exatamente ao que ela quer. De nenhuma maneira
se sente «presa» pelas regras, antes pelo contrário. Ao vivê-las, desfruta
mais do espetáculo. Para a segunda amiga, por contraste, as regras são
apenas indicações externas que chocam com o que ela quer mesmo; se tem
mesmo de obedecer a essas leis, sente-se presa.
S. João Paulo II defende a tese de que é possível viver uma
espontaneidade que coincida com a atitude moral boa. Para isso, serve-se de
uma interpretação filosófica que evoca um conceito de eros proposto por
Platão que decididamente se afasta do significado habitual associado aos
movimentos da concupiscência. Ambos os sentidos – o que S. João Paulo II
atribui ao filósofo grego e o de uso corrente – evocam um amor espontâneo
mas, «segundo Platão, o Eros representa a força interior, que arrasta o
homem para tudo o que é bom, verdadeiro e belo. Esta “atração” indica,
nesse caso, a intensidade de um ato subjetivo do espírito humano. No sentido
comum, pelo contrário – como também na literatura – essa “atração” parece
ser, antes de tudo, de natureza sensual»[345].
A tese de S. João Paulo II é, pois, a seguinte: ao entendermos e
admitirmos que há um modo espontâneo de tender para tudo o que é bom e
belo, então devemos fomentar essa espontaneidade, evitando a outra, a dos
movimentos da concupiscência.
O ponto-chave é saber como é que, em cada pessoa, o movimento
interior do eros em sentido concupiscente pode ser transformado no eros
que se aproxime do conceito atribuído a Platão, de modo a que a
espontaneidade vise o bom, o belo, a verdade. Ora, essa transformação não
se alcança por uma mera opção intelectual a favor do conceito platónico do
eros. S. João Paulo II insiste neste ponto:
«Se o homem quer responder ao apelo expresso por Mateus 5, 27-28, deve aprender, com
perseverança e coerência, que coisa é o significado do corpo, o significado da feminilidade e
da masculinidade. Deve aprender isso, não apenas através de uma abstração objetivizante
(embora também isso seja necessário) mas, acima de tudo, na esfera das reações interiores do
seu próprio “coração”. Esta é uma “ciência” que não pode ser aprendida só a partir dos livros,
por-
que se trata aqui, em primeiro lugar do “conhecimento” profundo da interioridade
humana»[346].
Também Bento XVI explicou que, mais do que suprimir o eros, trata-se
de «educá-lo»:
«São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia.
Isto não é rejeição do eros, não é o seu “envenenamento”, mas a cura em ordem à sua verdadeira
grandeza.
Isto depende primariamente da constituição do ser humano, que é composto de corpo e alma. O
homem torna-se realmente ele mesmo quando corpo e alma se encontram em íntima unidade; o
desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado, quando se consegue esta
unificação»[347].

Por outras palavras, o homem deve cultivar uma nova espontaneidade,


que lhe facilite a tendência para o seu verdadeiro bem, e não uma
espontaneidade que se oponha a ele[348].
Como se processa este amadurecimento? Entre outras atitudes, será
necessário dizer «não» muitas vezes – não olhar, não desejar – quando os
olhares ou os desejos se opõem ao verdadeiro bem do outro. O esforço por
querer olhar e «desejar bem» deve, pois, estar fundamentado em querer amar
de facto as pessoas e não ver-se preso pelos impulsos instintivos que
impedem de manter com elas relações verdadeiramente humanas.
É necessária uma profunda transformação do coração do homem, para
que a força interior de atração pelo outro corresponda à de um coração
redimido, um coração que deseje «espontaneamente» o bem do outro:
«Ao consolidar esta descoberta na consciência, como convicção, e na vontade, como orientação,
quer das possíveis opções quer dos simples desejos, o coração humano torna-se participante, por
assim dizer, de uma outra espontaneidade da qual muito pouco ou nada sabe o “homem
carnal”»[349].

Na realidade, à pessoa que nunca procurou dominar-se parece-lhe que as


exigências morais de Cristo ou são irrealizáveis ou implicam uma contínua
repressão dos movimentos do «eu», a tal ponto que lhe pode passar pela
cabeça que, se os assumisse, deixaria de ser ela própria.
Troquemos isto por uma linguagem simplificada. Que deve fazer um
homem casado quando sente uma atração sensual por outra mulher? Negar
essa atração? Seria mentir. Cortar essa atração, considerando que aquela
mulher é uma tentação? Sim, deve cortar, mas sem atribuir o mal à mulher:
seria maniqueísmo. Não querendo escorregar para atitudes maniqueias, deve
conformar-se com a atração considerando-a inevitável? Seria freudianismo.
Que fazer, então?
Em Amor e Responsabilidade, o autor oferece uma boa pista:
«Ambos [Aristóteles e S. Tomás de Aquino] sublinharam que, no campo sensual e afetivo da
vida interior, é preciso aplicar uma tática adequada, e até uma certa diplomacia; o uso do
imperativo é aqui pouco eficaz, e pode até provocar o efeito oposto àquele que se desejava obter.
Este modo de ver as coisas denota a experiência da vida. Com efeito, todo e qualquer homem
deve saber utilizar as energias latentes da sua sensibilidade e da sua afetividade, para que elas o
ajudem a tender para o verdadeiro amor em vez de lhe porem obstáculos. Esta faculdade de
transformar inimigos em aliados é talvez mais característica da essência da temperança e da
virtude da castidade do que da pura continência»[350].

Exemplifiquemos. Quando um homem casado se sente atraído por outra


mulher há uma parte da situação que deve ser tomada em conta porque é
verdadeira: o ser humano precisa de amar, dar-se, sair de si. A mentira, neste
caso, consiste em considerar que essa forte atração é «amor». O modo de
desfazer intelectualmente a situação é passar a considerar qual o autêntico
bem da pessoa que «eu» digo amar. Por exemplo, se ela for casada, o seu
bem é manter-se ser fiel ao marido; se for solteira, o bem é manter-se virgem
e descobrir a sua vocação. Se um gesto pessoal destruísse esses valores
intrínsecos àquela mulher, não passaria de puro egoísmo: por dar rédea solta
ao que sente, está disposto a (e sente-se no direito de) pôr em jogo o bem
daquela pessoa que diz amar (e, eventualmente, o da sua família).
Ao mesmo tempo, o homem deve perceber que esse forte impulso que
experimenta pela nova mulher que irrompe na sua vida é uma capacidade que
ele tem dentro de si e que deve ser aproveitada, mas, para isso, deve ser
dirigida para a própria esposa. Isto é, essa tentação tem de o tornar mais
consciente de que deve dar mais de si na relação com a esposa, porque de
facto esse «mais» está dentro dele. Em suma, é vital pôr de parte a tentação,
«aproveitando» o que nela houver de positivo, neste caso a descoberta de que
tem «mais» dentro si, mas esse mais é para ser dado à esposa.
Aconselho a ver, nesta perspetiva, a cena final do filme de Michael
Curtiz Casablanca. Naquele tempo, os verdadeiros heróis ainda sabiam o que
era amar. Ao preço que fosse. A mulher de quem o protagonista – Rick – se
tinha enamorado quando jovem, e de quem não consegue deixar de gostar,
deve ficar para sempre com aquele com quem entretanto se casou. Rick sabe
que poderia ser correspondido, mas evita valentemente qualquer iniciativa de
infidelidade da mulher. E separam-se para sempre, para que ela seja para
sempre feliz com o seu marido. Tudo em Rick é genuíno e até «espontâneo»,
mesmo que, por querer o bem daquela de quem ainda gosta, tenha de
contrariar um impulso interior.
Embora, como vimos, uma certa tática seja útil, ela não é suficiente para
uma tão profunda transformação no coração humano. Mas, com o tempo,
com a graça de Deus e com a correspondência a essa graça que exigirá
sempre uma luta séria (com renúncias), haverá, cada vez mais, uma plena
identificação do coração do homem com a lei de Deus. O homem quer e ama,
com espontaneidade, o que Deus quer. Haverá tentações, mas elas serão
advertidas como tal pelo homem que já desfruta de uma sã espontaneidade
habitual, que o empurra para o bem verdadeiro.
Na realidade, um processo semelhante de transformação do «eu» sucede
no amor humano. Basta pensar em dois cônjuges profundamente enamorados.
O espontâneo neles é querer o bem do outro. Entregam-se e desejam-se na
medida da doação. A sua união física é expressão da comunhão de pessoas.
Habitualmente não precisam de evocar uma lei (que existe!) para se amarem,
rejeitando qualquer tipo de instrumentalização do outro. No matrimónio é,
pois,
mais fácil apercebermo-nos da verdade e da exequibilidade das palavras do
Papa. Como fará notar numa das posteriores audiências, «o matrimónio é o
lugar de encontro do eros com o ethos e do seu recíproco compenetrar-se no
“coração” do homem e da mulher, como também em todas as suas relações
recíprocas»[351]. Se o marido «amar bem», desejará doar-se sem reservas à sua
mulher e aceitá-la-á também sem reservas. E todo o seu ser, corpo incluído,
participa nesse desejo tão ético
quanto espontâneo.
A purificação do eros não é possível sem a graça de Deus. É chave para
a compreensão profunda do modo como a purificação sucede no matrimónio
a leitura da última das audiências sobre o sinal sacramental. Nessa densa
intervenção (de 4 de julho de 1984), S. João Paulo II começa por explicar que
Tobias, na noite de núpcias, reza com Sara, para que Deus purifique a sua
intenção ao casar-se com ela: Tobias quer que o seu motivo para se casar
corresponda ao desígnio divino sobre o matrimónio. A seguir, o autor das
catequeses afirma que os sacramentos (e em concreto o sacramento do
matrimónio) «inserem a santidade no terreno da humanidade do homem:
penetram a alma e o corpo, a feminilidade e a masculinidade do sujeito
pessoal, com a força da santidade»[352].
Apoiando-se nos ensinamentos de S. Paulo sobre a castidade
matrimonial, o Papa descreve, a seguir, a vida dos cônjuges que se deixam
penetrar pela graça: «Deste modo, através da virtude e ainda mais através do
dom (“vida segundo o Espírito”), amadurece espiritualmente o recíproco
fascínio da masculinidade e da feminilidade. Ambos, o homem e a mulher,
afastando-se da concupiscência, encontram a justa dimensão da liberdade do
dom, unida à feminilidade e à masculinidade no verdadeiro significado
esponsal do corpo»[353]. Nessas condições, através da linguagem do corpo
(conceito a explicar mais adiante), «na linguagem da prática do amor, da
fidelidade e da honestidade conjugal, ou seja, no ethos radicado na
“redenção do corpo” (cfr. Rom 8, 23)»[354], os esposos podem trazer para as
suas vidas o grande mistério do amor de Cristo pela Igreja. Portanto, para
que o eros se identifique com o ethos, para que a espontaneidade se dirija
para o que é bom, verdadeiro e belo, não basta a compreensão dos conceitos,
não basta uma fraca boa vontade, mas, na situação do homem caído, é
necessária a imersão nas forças da Redenção.
É muito o que está em jogo no coração humano. Ou, com a graça de
Deus, ganhamos a batalha nos mais íntimos movimentos que dependem do
nosso querer, ou a cedência em instrumentalizar pessoas conquistará terreno
no nosso coração – podendo alcançar patamares de malícia inimagináveis.
Apesar de muita gente reconhecer como horríveis a pedofilia ou o turismo
sexual, há a tendência a esquecer que, cedendo conscientemente em olhares
luxuriosos, admite-se o veneno (o «joio») que conduz a tais comportamentos
dentro de cada um.
Bento XVI não omitiu a referência a comportamento abjetos: «Com
frequência, estas [as populações locais] são confrontadas com
comportamentos imorais ou mesmo perversos, como no caso do chamado
“turismo sexual”, em que são sacrificados muitos seres humanos, mesmo de
tenra idade. É doloroso constatar que isto acontece frequentemente com o
aval dos governos locais, com o silêncio dos governos donde provêm os
turistas e com a cumplicidade de muitos agentes do setor»[355]. Bastaria este
doloroso parágrafo para agradecer a Cristo o seu apelo dirigido ao coração
humano para que não «deseje mal». Trata-se de um apelo de gigantescas
consequências, muitas delas no terreno social.
É muito, repito, o que se joga no coração humano com um olhar, com
um desejo. Temos de fazer com que muita mais gente sinta esse apelo de
Cristo, que é dirigido a cada coração. Para bem próprio e de milhares de
inocentes.

16.
Os gigantescos horizontes abertos pela pureza

Abramos o capítulo com uma bela citação da encíclica Veritatis


Splendor:
«De forma admirável, o mesmo S. Agostinho sintetiza a dialética paulina sobre a lei e a graça:
“Portanto, a lei foi dada para se invocar a graça; a graça foi dada para que se observasse a lei”.
O amor e a vida segundo o Evangelho não podem ser pensados primariamente em termos de
preceito, porque o que eles pedem supera as forças do homem: apenas são possíveis como fruto de
um dom de Deus, que restaura, cura e transforma o coração do homem através da Sua graça»[356].

A proposta de Cristo no Sermão da Montanha só poderá ser alcançada


com a graça divina. Mas, se o que se propõe excede a força humana como tal,
poderíamos então questionar-nos: a luta pela castidade que Cristo propõe é
realmente possível ou trata-se apenas de oferecer uma vaga orientação
espiritual ao homem para ele não se afastar demasiado do ideal proposto?
Quando alguém não se sente com forças para cultivar a castidade, não será
possível, de algum modo, compensar essa lacuna com outras virtudes?
Porventura não sucede com frequência que existem pessoas exemplares no
terreno profissional ou na intervenção social e política, ainda que tenham
renunciado à castidade? Não se aproximarão muito mais de Cristo do que
outros que vivem a castidade mas não parecem fazer nada mais? E ainda: no
caso de a pessoa querer viver como Cristo propõe, deixando-se transformar
pelas forças que brotam da Redenção, até onde pode ser conduzido, que
efeitos terá esta no seu corpo?
16.1. Reabilitar a castidade
É a estas perguntas que se pretende responder no presente capítulo. Ao
fazê-lo, contribuímos, tal como nos capítulos precedentes, para responder ao
desafio que já Karol Wojtyla fazia seu, seguindo Scheler: como reabilitar a
castidade? Como devolver a esta virtude o direito de cidadania de que, por
agora, não parece desfrutar? Aquele ou aquela que se atreva a proclamar que
quer viver castamente é visto, no mínimo, como um extraterrestre, como um
alien. Dado que a sociedade aceita diversas atitudes consideradas bizarras,
em muitos casos, é certo, também tolera a opção extremista da castidade,
tomando-a como sinal de uma proposta civilizacional já em plena decadência,
apenas vivida por uns poucos saudosistas ou alienados. Mas, se uma tal
atitude ganhar terreno na vida social, será oportunamente rejeitada: porquê
dar-lhe um direito de cidadania no universo dos valores quando parece situar
quem a vive fora da dimensão do amor entre pessoas?
«Scheler achava que era necessário reabilitar a virtude, porque tinha descoberto no homem
contemporâneo uma atitude espiritual contrária à sua verdadeira estima. Chamou a esta atitude
“ressentimento”. […] O ressentimento […] não só deforma a imagem do bem mas, para que o
homem não se sinta obrigado a elevar-se trabalhosamente até ao verdadeiro bem e a fim de que
possa “com toda a segurança” reconhecer como bem o que lhe convém e o que lhe é mais
cómodo, desacredita os valores que merecem estima […] Se há alguma virtude que, por causa do
ressentimento, perdeu o seu direito de cidadania na alma, na vontade, no coração do homem, é
precisamente a castidade»[357].

Num documento papal, redigido muitos anos mais tarde, S. João Paulo II
voltava a insistir: «Num tal contexto, torna-se mais difícil, mas também mais
urgente, uma educação para a sexualidade que seja verdadeira e plenamente
pessoal e que, portanto, dê lugar à estima e ao amor pela castidade, como
virtude que desenvolve a autêntica maturidade da pessoa e que a torna capaz
de respeitar e promover o “significado nupcial” do corpo»[358].
As respostas às questões levantadas no início do capítulo virão pela
pluma de S. Paulo. À luz de textos do Apóstolo, torna-se mais fácil querer
viver a castidade, porque se percebe a sua intrínseca relação com o
seguimento de Cristo. S. Paulo consegue mesmo que se deseje
ardentemente viver assim, como expressão qualificada de que
pertencermos ao Senhor e somos templos do Espírito Santo.
Devo prevenir o leitor de que, neste capítulo, me foi difícil abandonar
as citações explícitas do Apóstolo – em muitos casos extensas – e também
as palavras literais das catequeses. Se o fizesse, penso, omitiria uma boa
parte da beleza deste corpo doutrinal. O leitor reconhecerá, à medida que for
avançando na leitura, que a castidade não só não é um conjunto de lúgubres
negações mas, pelo contrário, é uma virtude que unifica a pessoa e a conduz
a experimentar com alegria o significado esponsal do corpo.
Na sessão em que sintetiza o seu pensamento sobre este tema, S. João
Paulo II desenha o panorama deslumbrante para o homem que se deixa
guiar pela pureza:
«A pureza […] abre também o caminho para uma descoberta cada vez mais perfeita da dignidade
do corpo humano; o que está organicamente ligado à liberdade do dom da pessoa na
autenticidade integral da sua subjetividade pessoal, masculina ou feminina. Deste modo, a
pureza, no sentido de temperança, amadurece no coração do homem que a cultiva e tende a
descobrir e a afirmar o sentido esponsal do corpo na sua verdade integral. Esta verdade deve ser
conhecida interiormente. De certo modo, deve ser “sentida com o coração”, para que as relações
recíprocas do homem e da mulher – e até mesmo o simples olhar – readquiram aquele conteúdo
autenticamente esponsal dos seus significados. E é precisamente este conteúdo que, no
Evangelho, é indicado com a expressão “pureza de coração”»[359].

16.2. Livres da concupiscência para poder amar


Procuremos então, com o auxílio das palavras de S. Paulo, aproximar-
nos deste ideal, que deve portanto ser vivido ou experimentado por dentro.
Como temos vindo a assinalar com insistência (pois este aspeto é realmente
decisivo), dificilmente alguém será casto se apenas se deixa guiar por umas
leis que vê como extrínsecas à sua pessoa.
No texto da Carta aos Romanos, capítulo 8 (19-23), já repetidamente
citado, S. Paulo deixa entrever a importância da pureza – mesmo que não se
limite apenas à castidade: trata-se da pureza no sentido amplo de bondade
moral – como efeito da Redenção no homem. S. Paulo refere que gememos
interiormente, «esperando a redenção do nosso corpo» (Rom 8, 23).
Em todo o nosso ser – também no corpo – se devem fazer sentir os
efeitos da graça alcançada por Cristo. Ora, com frequência, quando
meditamos no apelo de Cristo no Sermão da Montanha para não nos
deixarmos dominar por olhares concupiscentes, constatamos que o nosso
coração não está completamente «curado» e, se formos sinceros, devemos
reconhecer o veneno que nele existe. Essa conclusão não nos deve desanimar,
mas antes servir para implorar e esperar a redenção, tal como S. Paulo nos
diz.
Nos capítulos anteriores, aprendemos que, se o homem expurgar esse
veneno com a graça da Redenção, experimentará de novo o significado
esponsal do seu corpo. No entanto, não deverá fazê-lo ocasionalmente, mas
sim de forma habitual, estável, constante. Só então o corpo poderá expressar
o amor que é doação, e acolher o outro com todo o seu ser, sem selecionar
apenas o prazer que pode dar. Ao abraçarmos a Redenção de Cristo em nós,
experimentaremos de
verdade o enorme raio de ação da liberdade humana que pode então
manifestar-se na plena vontade de doação (a liberdade do dom), raiz do
significado esponsal do corpo. A graça da Redenção devolve ao homem a
plena liberdade, que lhe permite arrancar os condicionalismos da
concupiscência e viver o autêntico amor. Aliás, é esta a proposta do
Catecismo da Igreja Católica, nomeadamente quando convida à castidade,
transcrevendo palavras do bispo de Hipona: «A castidade recompõe-nos;
reconduz-nos à unidade que perdemos quando perdemos o domínio de nós
(cfr. Santo Agostinho, Confissões 10, 29)»[360].
S. João Paulo II sugere que o caminho para essa verdadeira libertação
evoca, de alguma maneira, o dia em que Adão se encontrou com Eva, saindo
da sua solidão: por fim podia amar uma criatura. Trata-se de uma sugestiva
referência, que ajuda a entender como a graça vai ao encontro do que de mais
profundo existe no coração humano. Não lhe impõe um fardo. Liberta-o, para
que possa amar de verdade, pois a concupiscência não nos abre aos outros
apesar de nos atrair para eles. Na órbita da influência libidinosa, os outros são
apenas uma variação do «eu». Portanto, a castidade não tem como meta um
estoico autocontrolo, mas sim um domínio de si que permite a verdadeira
entrega de si. Só quem é plenamente dono de si próprio pode entregar-se
totalmente a outro, pode amar realmente.
Eis as expressivas palavras do Pontífice:
«O caminho do apelo à pureza do coração, tal como foi expresso no Sermão da Montanha, é, em
todo o caso, uma reminiscência da solidão original, da qual o homem-varão foi libertado através
da abertura ao outro ser humano, a mulher.
A pureza de coração explica-se, no fim de contas, pela relação com o outro sujeito, que é original
e perenemente “co-chamado”.
A pureza é uma exigência do amor. É a dimensão da sua verdade interior no “coração” do
homem»[361].

Se o homem da concupiscência aceitar as palavras de Cristo no Sermão


da Montanha mais como um apelo do que como uma acusação, entenderá que
Cristo o convida a sair da solidão do seu «eu», onde tudo gira doentiamente à
sua volta e o outro não é mais do que uma variante desse egocentrismo. O
egoísta não recebe o outro como tal: pretende, apenas, obter dele o que
interessa no momento. O homem assim afetado, se cair em si, experimentará
o lamento de Adão quando não encontrava um complemento, alguém a quem
pudesse amar. Dominava a Criação mas não podia doar-se a nenhum dos
seres até então criados. O homem libidinoso pode «possuir» outros, mas não
os amará; e sempre acabará por sentir-se sozinho.
Para vencer a concupiscência, é necessário estar convencidos da
necessidade de a vencer logo aos primeiros sintomas: «Cristo indica com
clareza que o caminho para atingir este objetivo deve ser o caminho da
temperança e do domínio dos desejos, e isto na própria raiz, na esfera
puramente interior (“todo aquele que olhar para desejar […]”)»[362]. Nesse
caminho de domínio de si que a pessoa percorre, ao princípio – seguindo a
comparação por nossa conta – poderá parecer que Deus lhe retira uma
costela, algo intimamente seu[363], quando no fundo lhe dá, não propriamente
uma mulher a quem amar (Eva), mas sim a capacidade de se entregar, que é o
que corresponde à sua natureza mais profunda, o que a pessoa realmente está
chamada a realizar.
Portanto, quando o homem acolhe em si a graça da Redenção e vai
cultivando a virtude da castidade, notará um progressivo domínio de si que,
por essa razão, viabiliza e aumenta a capacidade de se doar plenamente por
amor, de acordo com o pleno significado esponsal do corpo: «O domínio de
si é ordenado para o dom de si»[364]. Esta observação impede de ver a
castidade como um valor desligado da relação com os outros, como se se
tratasse de adquirir uma forte e singular personalidade.
Também o fundador do Opus Dei soube explicar bem esta ligação entre
o domínio de si e a entrega:
«Por vocação divina, alguns terão de viver essa pureza no matrimónio; outros, pelo contrário,
renunciarão aos amores humanos, para corresponderem única e apaixonadamente ao amor de
Deus. Nem uns nem outros devem ser escravos da sensualidade, mas senhores do seu corpo e do
seu coração para os poderem dar sacrificadamente aos demais»[365].

S. João Paulo II esclareceu de que modo a castidade facilita a abertura


ao amor e como a concupiscência leva o homem a amar menos:
«A continência não se limita a opor resistência à concupiscência da carne, mas, mediante esta
resistência, abre-se igualmente àqueles valores, mais profundos e mais maduros que estão
intimamente ligados ao significado esponsal do corpo na sua feminilidade e masculinidade, como
também à autêntica liberdade do dom na recíproca relação das pessoas. A própria concupiscência
da carne, enquanto procura antes de tudo a satisfação carnal e sensual, torna o homem, em certo
sentido, cego e insensível aos valores mais profundos que surgem do amor e que ao mesmo tempo
constituem o amor na verdade interior que lhe é própria»[366].

Esta abertura para amar (no sentido verdadeiro da palavra) que é


protegida e favorecida pela castidade comprova-se em todos os âmbitos onde
a entrega aos outros é necessária, por exemplo no trabalho de evangelização.
Num comentário ao pensamento de S. Josemaria, lemos: «Como a
sexualidade diz particularmente respeito à “aptidão para estabelecer vínculos
de comunhão com outro” (Catecismo da Igreja Católica, n.º 2332), quem não
sabe governar a tendência sexual tem um impedimento para se entregar aos
outros. Poderá prestar alguns serviços, mas a falta de limpeza interior tenderá
a turvar as relações, como uma deformação da perceção que o levará a ver as
outras pessoas em função da própria satisfação. S. Josemaria centra-se num
aspeto central para o cristão quando escreve: “Sem a santa pureza não se
pode perseverar no apostolado” (S. Josemaria Escrivá, Caminho, n.º
129)»[367].
Como é óbvio, o apostolado requer pensar no bem próprio dos outros,
prescindindo da satisfação pessoal que estar com alguém, falar com ele,
ajudá-lo, etc. possa ou não ocasionar. Sem a castidade, esta disposição estável
de não ver os outros em função de si próprio é quase impossível. Ao mesmo
tempo, esta lição é talvez o estímulo mais consistente para querer viver a
castidade: o desejo de poder amar mais os outros.
16.3. Frutos do Espírito e obras da carne
Outra maneira de «ouvir» a bondade do apelo de Cristo ao coração
humano para que se liberte da tirania da concupiscência é constatar o
paralelismo que há entre a Primeira Carta de S. João, que separa o que vem
do mundo – a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a
soberba de vida (cfr. 1 Jo 2, 16-17) – do que vem de Deus, com a Carta aos
Gálatas, onde S. Paulo apresenta a oposição entre a carne e o Espírito Santo:
«Digo-vos, pois: andai segundo o Espírito e não deis satisfação aos desejos da carne.
Efetivamente, a carne tem desejos contrários ao Espírito, e o Espírito desejos contrários à carne;
estas coisas são contrárias entre si, para que não façais tudo aquilo que quereis» (Gal 5, 16-17).

S. João Paulo II insiste em que, no texto paulino, se deve ler «Espírito»


com maiúscula, isto é, a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade[368]. Aliás, é
bem significativo que o título das catequeses para este longo subcapítulo
dedicado à pureza seguindo os textos de S. Paulo seja, justamente: a pureza
como «Vida de Acordo com o Espírito»[369].
Insistamos neste ponto, que é de suma importância. Entende-se com esta
expressão que viver a castidade não é uma espécie de atividade mais ou
menos virtuosa mas setorial no que respeita à totalidade do ser humano.
Como, no fundo, se a castidade fosse uma «habilidadezinha» de alguns
(poucos) cristãos; ou como algo que se pode compartimentar ou isolar, e
colocar «de quarentena», sem comunicar com o que a pessoa é na sua
globalidade. No referido capítulo da Carta aos Gálatas, S. Paulo enumera as
obras da carne e os frutos de quem se deixa guiar pelo Espírito[370]:
«Se, porém, sois guiados pelo Espírito, não estais debaixo da Lei. Ora as obras da carne são
manifestas: são a fornicação, a impureza, a luxúria, a idolatria, os malefícios, as inimizades, as
contendas, os ciúmes, as iras, as rixas, as discórdias, as divisões, as invejas, a embriaguez, as
orgias e outras coisas semelhantes, sobre as quais vos previno, como já vos disse, que os que as
praticam não possuirão o Reino de Deus. Ao contrário, o fruto do Espírito é caridade, gozo, paz,
longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança [domínio de si]» (Gal 5, 18-23).

O contraste entre as obras da carne e os frutos do Espírito evoca bem


tudo o que foi descrito a propósito das palavras de Cristo que guiam este
capítulo. Há uma batalha no coração humano entre o bem e o mal:
«Sem entrar nos problemas de uma exegese pormenorizada deste texto [da Carta aos Gálatas],
pode dizer-se que a tensão entre a “carne” e o “espírito” é imanente, mesmo que não esteja
reduzida a este nível. Ela manifesta-se no seu coração como um “combate” entre o bem e o mal.
Aquele desejo de que Cristo falou no Sermão da Montanha (cfr. Mt 5, 27-28) embora seja um ato
interior, permanece certamente – segundo a linguagem paulina – uma manifestação da vida
“segundo a carne”. Simultaneamente, aquele desejo permite-nos constatar como, no interior do
homem, a vida “segundo a carne” se opõe à vida “segundo o Espírito”, e como esta última, no
estado presente do homem devido à sua pecaminosidade hereditária, está constantemente exposta
à fraqueza e insuficiência da primeira, à qual muitas vezes cede, se não está interiormente
reforçada para fazer precisamente aquilo “que o Espírito quer”. Podemos deduzir que as palavras
de Paulo, que tratam da vida “segundo a carne” e “segundo o Espírito”, são, simultaneamente,
uma síntese e um programa; é necessário entendê-las com esta chave»[371].

Basta reparar no elenco das «obras da carne» enumeradas na Carta aos


Gálatas para advertir que nem todas as obras correspondem à concupiscência
da carne. Por exemplo, a idolatria é uma opção – um pecado – «espiritual».
Por isso, S. João Paulo II insiste em que as obras da carne não correspondem
exatamente aos pecados vulgarmente chamados «da carne», mas sim a tudo o
que deriva das três desordens que há no homem, bem sintetizadas por S.
João. E, assim, o verdadeiro contraste com as obras da carne não é tanto com
ações espirituais (no sentido estrito de serem apenas interiores à pessoa), mas
sim com aquelas em que a pessoa se deixa guiar pelo Espírito. As obras da
carne são, pois, todas as que brotam da desordem do coração humano,
contaminado pela tríplice raiz do mal que procede do «mundo»; opõe-se a
elas tudo o que procede da atuação do Espírito Santo em nós.
Também aqui é de notar a preocupação de S. João Paulo II em tornar ex-
plícito que S. Paulo não usa a expressão «obras» referidas ao Espírito, mas
sim «frutos»: trata-se de vincar o predomínio da iniciativa divina nestas ações
humanas[372]. Se o homem se deixar guiar de verdade pelo Espírito, será muito
mais fácil viver o domínio de si.
Certamente que nem todos os frutos da ação do Espírito no cristão se
reduzem à castidade. Mas tanto as obras da concupiscência como o resultado
de se deixar guiar pelo Espírito nesta área estão bem presentes em S. Paulo.
A temperança (domínio) no apetite sexual, chamada «castidade», é um dos
sinais de que o homem não quer ser guiado pelo que «vem do mundo», mas
sim por Deus.
Estas explicações não se reduzem a uma mera interpretação exegética,
sem alcance para a vida prática. Com elas, começamos a responder a uma das
questões levantadas no início do capítulo. Algumas pessoas, mesmo
reconhecendo que os atos da concupiscência não são o que mais enobrece o
homem, não veem neles um «grande mal». Um homem pode ser luxurioso e
continuar a ser «boa pessoa». Ou ainda, para quem assim pensa, o facto de se
cometer uma ocasional infidelidade para com a esposa não significa que a
orientação da vida matrimonial tenha mudado substancialmente.
Ora, de acordo com S. Paulo, há duas opções: deixar-se guiar pela carne
(pelo «mundo» da Segunda Carta de S. João) ou pelo Espírito. Quando
alguém, por exemplo, comete um ato de fornicação, fecha-se ao Espírito:
deixa de ter o Espírito Santo nele, enquanto não se arrepender. São
ilustrativos, a este respeito, os sinais ou sintomas de alarme de algumas
doenças: há pequenas manchas na pele que denotam lepra. Sim, é só uma
«pequena mancha», mas se não houver tratamento o desfecho é previsível. O
mesmo sucede com quem pactua com o pecado de luxúria: ou se trata
imediatamente, pedindo a Deus que o elimine na raiz, ou torna-se impossível
permanecer em Cristo. É importante, por exemplo, que um casal cristão em
quem se insinua a possibilidade de começar a usar contracetivos pense bem
na opção que vai fazer: vai escolher as «obras da carne» ofuscando o
significado esponsal do corpo, rejeitando a fidelidade ao Espírito Santo – a
qual, como veremos, permite manter a consciência viva desse significado
esponsal.
A vitória da castidade na vida de uma pessoa deve estar enquadrada na
vitória da Redenção alcançada por Cristo. Seria um erro isolá-la desta
perspetiva de união com Ele. S. João Paulo II insiste com clareza neste ponto.
Assim, por exemplo, afirma:
«Nesta contraposição entre a “carne” e o Espírito (Espírito de Deus), e entre a vida “segundo a
carne” e a vida “segundo o Espírito”, está contida a teologia Paulina acerca da justificação, isto é,
a expressão de fé no realismo antropológico e ético da Redenção operada por Cristo, que Paulo,
no contexto já nosso conhecido, chama também de “redenção do corpo”. […] É precisamente
neste homem, no seu “coração”, e consequentemente em todo o seu comportamento, que frutifica
a Redenção de Cristo»[373].

Quando isto sucede, nas ações do homem brilham os frutos do Espírito


descritos em Gálatas, entre os quais encontramos o domínio de si (enkráteia)
[374]
. Ele é possível graças ao poder do Espírito: «Nesta luta entre o bem e o
mal, o homem torna-se mais forte graças ao poder do Espírito Santo que,
operando dentro do espírito humano, faz realmente com que os seus desejos
frutifiquem em bem. Portanto, estes não são unicamente – e não tanto –
“obras” do homem, quanto “fruto”, isto é, efeito da ação do “Espírito” no
homem»[375].
Como já referimos, esta luta entre o bem e o mal tem o seu campo de
batalha no coração humano. É aí que o bem – a Redenção – tem de vencer o
inimigo, pois só então até mesmo os desejos mais íntimos estarão em sintonia
com a liberdade que Cristo nos conquistou para podemos amar com a entrega
alegre do nosso «eu».
É facilmente compreensível que a luta pela castidade fique situada no
pleno seguimento de Cristo, na identificação com o seu Coração – assim
como a vida de cedência à concupiscência é uma clara oposição a Cristo e ao
seu Espírito: não se vai contra «uma regra», mas sim contra alguém, contra o
próprio Deus e contra os homens e mulheres. Perder esta ampla perspetiva
levaria ao legalismo, onde se torna mais ou menos possível obedecer a umas
normas, tal como o faziam os contemporâneos do Senhor, mas não
corresponde a velar pelos desejos e olhares mais íntimos, que sempre vão
além das normas legais. O ethos evangélico abraça a totalidade da pessoa,
pois Cristo veio redimir o homem todo. Quererá o homem ser realmente
redimido?
16.4. Manter o corpo em santidade e respeito
Dentro desta ampla perspetiva, é possível reler e aprofundar o trecho da
Primeira Carta aos Tessalonicenses, onde S. Paulo se refere à pureza no seu
sentido mais específico, a castidade (e não apenas como um bem moral
genérico). S. Paulo convida os destinatários a «manter o corpo em santidade e
respeito». Eis as palavras:
«Esta é, na verdade, a vontade de Deus: a vossa santificação; que vos afasteis da luxúria, que
cada um de vós saiba manter o seu corpo em santidade e respeito, sem se deixar levar pelas
paixões luxuriosas, como os pagãos que não conhecem Deus […]. Deus não nos chamou à
impureza, mas à santificação. Quem despreza estes preceitos, não despreza um homem, mas o
próprio Deus que vos dá o seu Espírito Santo» (1 Tess 4, 3-5 e 7-8).

Na cuidadosa análise destas palavras, S. João Paulo II faz notar que,


junto ao domínio das paixões, encontra-se uma proposta com um tom mais
positivo e que dá todo o sentido à virtude da castidade:
«Esse texto paulino dirige a nossa atenção para uma outra função da virtude da pureza, para uma
outra dimensão – poder-se-ia dizer – mais positiva que negativa. Pois bem, essa tarefa da pureza,
que o autor da Carta parece realçar acima de tudo, é não apenas (e não tanto) a abstenção da
“luxúria” e daquilo que a ela conduz, portanto a abstenção das “paixões luxuriosas”, mas ao
mesmo tempo, o manter o próprio corpo – e, indiretamente, também o corpo dos outros – em
“santidade e respeito”.
[…] Em consequência, pode admitir-se que manter o próprio corpo (e, indiretamente, o corpo do
outro) em “santidade e respeito” confere adequado significado e valor a essa abstenção. […]
Considerando tudo isto, parece que a imagem paulina da virtude da pureza – imagem que emerge
do confronto muito eloquente da função da “abstenção” (isto é, da temperança) com a do “manter
o corpo em santidade e respeito” – é profundamente justa, completa e adequada. Talvez esta
plenitude se deva apenas ao facto de que Paulo considera a pureza não apenas como capacidade
(isto é, aptidão) das faculdades subjetivas do homem, mas, simultaneamente, como manifestação
concreta da vida “segundo o Espírito”, na qual a capacidade humana é interiormente fecundada e
enriquecida por aquilo que Paulo, na Carta aos Gálatas 5, 22 chama “fruto do Espírito”. O
respeito, que nasce no homem para com tudo aquilo que é corpóreo e sexual, quer em si, quer
noutro homem qualquer, varão ou mulher, é visto como a força mais essencial para manter o corpo
“em santidade”»[376].

Uma vez mais, comprovamos que viver de acordo com os ensinamentos


da Igreja engrandece a visão que se tem do corpo e da sexualidade. Mas
como se manifesta esse «manter o corpo em santidade e respeito»? De muitas
maneiras. S. João Paulo II considera que é à luz desta atitude de respeito pelo
corpo que se devem ler as outras palavras de S. Paulo presentes na Primeira
Carta aos Coríntios, às quais já anteriormente nos referimos (cfr. 1 Cor 12, 18
e 22-25). Trata-se da passagem em que S. Paulo fala dos membros mais
débeis do nosso corpo, que rodeamos de maior cuidado. Nessa passagem o
«respeito é visto precisamente em relação à sua componente do pudor»[377].
S. Paulo atribui valores diferentes aos membros do corpo, sinal da
divisão resultante do pecado original, tal como já se estudou. Este modo de
descrever o corpo já é, ele próprio, um sinal do respeito: «A descrição paulina
do corpo corresponde precisamente à atitude espiritual de “respeito” para
com o corpo humano, resultante da “santidade” (cfr. 1 Tess 4, 3-5 e 7-8) que
brota dos mistérios da Criação e da Redenção. A descrição paulina está
igualmente afastada quer do desprezo maniqueísta do corpo, quer das várias
manifestações de um “culto do corpo” naturalista»[378]. S. Paulo não expressa
um juízo negativo sobre esses membros, como faria a atitude maniqueísta,
nem se limita a uma descrição física, como se todos os membros fossem
avaliados de idêntica forma pelo homem: essa descrição naturalista seria
falsa. S. Paulo, com estas palavras que realçam a desunião interior do corpo,
deixa entrever que tem bem presente a inocência original, onde tal desunião
não se dava: o homem sente, assim, uma espécie de nostalgia pela situação de
inocência, e herda dos primeiros pais a vergonha sentida logo após o pecado
original[379].
O facto de se manter este tipo de avaliação diferenciada dos membros do
corpo – que, sendo manifestação do respeito, conduz também a tratar com
cuidados redobrados os «membros mais débeis» – obedece à visão de Deus,
que deseja que não haja desunião no corpo. Explico. Depois do pecado
original, a diferente avaliação dos membros e, a partir desta, o tratamento
diferenciado dado a alguns deles, colaboram para manter a unidade do
próprio corpo. O facto de os membros diretamente ligados aos valores
sexuais serem mais tapados corresponde à nossa maneira de reequilibrar os
valores do corpo, procurando deste modo que todos sejam alvo do respeito e
do apreço que merecem:
«Na mesma “descrição”, Paulo também indica o caminho que (precisamente sobre a base do
sentido da vergonha) conduz à transformação desse estado até à gradual vitória sobre aquela
“desunião no corpo”, vitória que pode e deve atuar no coração do homem. Este é precisamente o
caminho da pureza, ou seja, do “manter o próprio corpo em santidade e respeito”»[380].

O respeito para com o corpo e a sexualidade, que levam em si o mistério


da Criação e da Redenção, faz com que o homem reconheça que existe, de
facto, uma divisão no seu ser, e que para reequilibrar essa divisão atribua
distintos valores aos seus membros – de modo a compensar, com uma atitude
de maior cuidado para com os membros mais débeis, o que a desunião
original ocasionou. Com palavras simples, o homem e a mulher hão de
resguardar os membros essenciais da sua identificação sexual, justamente
porque são os mais débeis, aqueles que podem induzir o próprio ou o outro a
transformar a pessoa num objeto, sendo assim instrumentalizada.
16.5. O corpo, templo do Espírito Santo
A castidade engloba, pois, não só a dimensão (mais conhecida) de
domínio sobre a impureza do coração, mas também as atitudes de santidade e
respeito para com o corpo e a sexualidade. Esta dupla dimensão da pureza
levará S. João Paulo II a reforçar que, além da dimensão de virtude (em que o
esforço humano é decisivo), existe a carismática (de dom), onde se percebe
ainda melhor o resultado direto da ação do Espírito Santo na pessoa:
«A pureza é uma “capacidade” centrada na dignidade do corpo, isto é, na dignidade da pessoa
em relação ao seu próprio corpo, na feminilidade ou masculinidade que se manifesta neste corpo.
A pureza, entendida como “capacidade”, é precisamente a expressão e o fruto da vida “segundo o
Espírito” no pleno significado da expressão, ou seja, como nova capacidade do ser humano, no
qual frutifica o dom do Espírito Santo»[381].

As duas dimensões são postas em relevo num outro texto paulino que já
nos é familiar: «Fugi da fornicação! Qualquer outro pecado que o homem
cometa é exterior ao seu corpo, mas o que comete fornicação peca contra o
próprio corpo. Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que
habita em vós, porque o recebestes de Deus e que vós já não vos pertenceis?
Porque fostes comprados por um alto preço! Glorificai, pois, a Deus no vosso
corpo» (1 Cor 6, 18-20).
Com estas palavras, torna-se claro que, além da dignidade do corpo
derivada da sua participação na semelhança com Deus, há uma nova fonte da
dignidade da pessoa, que deriva diretamente da Redenção: ser templo do
Espírito Santo. O Espírito Santo recriou-nos de alguma maneira, pelo que o
homem submetido às forças da Redenção recebe um duplo dom: o facto de
ser templo do Espírito Santo faz com que o todo o seu ser – corpo incluído –
tenha sido como que «restaurado» com uma nova dignidade.
«Através da Redenção, cada homem recebeu de Deus, como que de novo, a si próprio e o próprio
corpo. Cristo inscreveu no corpo humano – no corpo de cada homem e de cada mulher – uma
nova dignidade, dado que, n’Ele, o corpo humano foi admitido, juntamente com a alma, à união
com a pessoa do Filho-Verbo. Com esta nova dignidade, através da “redenção do corpo”, nasceu
simultaneamente também uma nova obrigação, relativamente à qual Paulo escreve, de modo
conciso, mas muitíssimo comovente: “Porque fostes comprados por um alto preço!” (1 Cor 6, 20).
O fruto da Redenção é, de facto, o Espírito Santo, que habita no homem e no seu corpo como num
templo. Neste Dom, que santifica cada homem, o cristão recebe-se novamente a si mesmo como
dom de Deus. E este novo, duplo dom obriga»[382].

Não esqueçamos que, com a Encarnação, a dignidade do ser humano foi


sumamente elevada[383]. O corpo de Cristo é o corpo do Homem-Deus!
Quando o homem se incorpora a Cristo pelo Batismo, está chamado a viver
com todo o seu ser de acordo com uma nova dignidade; há, pois, uma nova
medida dessa dignidade. «A redenção do corpo implica a instauração, em
Cristo e por Cristo, de uma nova medida da santidade do corpo. Paulo refere-
se precisamente a esta “santidade” na primeira Carta aos Tessalonicenses (4,
3-5), quando escreve que se deve “manter o seu corpo em santidade e
respeito”»[384].
Assim, cada homem e cada mulher devem velar pelo seu corpo e pelo
corpo dos outros como templos do Espírito Santo. Anteriormente já tínhamos
afirmado, perante a objeção segundo a qual o «corpo é meu e faço com ele o
que quero», que era necessário ajudar a compreender que o corpo participa
por direito próprio na dignidade da pessoa, não é um instrumento da pessoa,
algo que se usa. Agora, é necessário acrescentar que o corpo está chamado a
expressar a dignidade da pessoa que foi redimida por Cristo, redimida ao
preço da morte cruenta do Homem-Deus. Por isso, os pecados de impureza
são pecados contra a dignidade do ser humano, e um cristão deve considerá-
los como «profanações do templo de Deus»[385]. A uma tão alta dignidade
conferida ao ser humano corresponde uma nova medida de exigência. O
cristão tem mais responsabilidades, até porque, como veremos, tem ajudas
adicionais e essenciais para manter e ajudar a manter o seu corpo e o dos
outros em santidade e respeito.
Permita-se-me uma pequena história familiar. Há muitos anos, fui com
os meus pais e os meus irmãos ao Museu do Prado, em Madrid. A minha
irmã mais nova devia ter uns cinco anos. Fomos andando de sala em sala,
contemplando algumas das obras de arte expostas. Numa das salas (creio
recordar que se tratava de uma sala com vários quadros de Goya), já depois
de certo tempo passado no museu, e enquanto olhávamos para outro quadro,
essa minha irmã avançou por sua conta até um quadro e fez o que a maioria
das crianças costuma fazer: ousou tocar com um dedo (alguma sensibilidade
tinha…) num Goya! De imediato, apareceu um dos guardas do museu, que
repreendeu asperamente os meus pais por tamanha desatenção. Sim, o guarda
tinha o dever de proteger as obras de arte. Nenhuma delas se pode considerar
tecnicamente algo «sagrado»; mas, realmente, é algo único, e todos os
cuidados são poucos para as resguardar de tudo o que não seja a
contemplação das mesmas. Esta é a atitude a tomar perante aquilo que se
considera único e de valor inestimável.
Cada ser humano vale infinitamente mais. É irrepetível, nunca haverá
outra pessoa igual, vale mais do que a melhor das obras de arte. E é, ou está
chamado a ser, templo de Deus. Um templo onde Deus «habita». Essa
consciência levará a não querer tocar sequer com um dedo – com um olhar
instrumentalizador, com um desejo de posse – o que não é nosso mas sim de
Deus. Experimentar um olhar concupiscente deveria apelar imediatamente
em nós ao que está além do que se vê: na pessoa, para a qual se olha dessa
maneira, habita ou pode habitar Deus como em sua casa! Eu tenho de admirar
a pessoa, agradecer o dom da sua existência e cortar em mim o que desdiga
do olhar contemplativo que alcança toda a obra de arte que é cada ser
humano, e não apenas o que os sentidos dela conseguem captar. Ao mesmo
tempo, sou templo de Deus, e não está bem que me comporte para com
alguém de um modo que o próprio Deus não faz: devo olhar como Deus olha.
Quando um homem deseja uma mulher libidinosamente, fá-la «adúltera
dentro de si». Para tal homem essa mulher já é adúltera no seu coração
luxurioso – que, por isso mesmo, deixa de ter Deus como hóspede.
Por isso, a luta por ultrapassar a concupiscência inclui o esforço por ser
mais contemplativo, saber ver além do que os sentidos nos transmitem. A fé
convida-nos a olhar cada pessoa como um templo de Deus. Com todas as
consequências.
São significativas as palavras do Evangelho de S. João que descrevem o
Corpo de Cristo como um templo (cfr. Jo 2, 18-22). O Corpo de Cristo é um
templo: «lugar» onde Deus habita. E é também o «lugar» onde todos são
acolhidos pelo amor e se sabem amados por si mesmos. Em Cristo, todos
podem sentir-se acolhidos e receber amor. Em Cristo, entende-se
perfeitamente a expressão do que é ser templo do Espírito Santo. E entende-
se que, de alguma maneira, o corpo como templo evoca o significado
esponsal do corpo. Quando tomamos consciência de podermos ser templos de
Deus, sentimo-nos no dever de abrir o nosso ser ao nosso próximo: todos têm
direito a ser acolhidos pela nossa palavra, ou pelo nosso sorriso e bonomia.
Ao mesmo tempo, sentimo-nos empurrados a dar o melhor de nós próprios
que, para um cristão, é precisamente o amor de Deus, que foi derramado no
seu coração.
E como os outros também são, ou estão chamados a ser, templos de
Deus, quereremos aprender a olhá-los sempre assim, e respeitar cada pessoa
sem nunca a profanar, nem sequer com um breve olhar intrusivo.
Para adquirirmos esta sensibilidade e a consciência de sermos templos de
Deus não são suficientes as próprias forças: «Deus concede a santa pureza
aos que Lha pedem com humildade»[386]. Para viver a castidade, sempre serão
necessários os meios sobrenaturais, a graça que todos devemos implorar de
Deus com constância e humildade. Os parágrafos que seguem oferecem uma
noção mais nítida do que pedimos ao Senhor: não apenas a força para dizer
«não» às tentações da concupiscência, mas também o dom de uma constante
atitude de admiração e respeito por cada pessoa, pelo corpo e pela
sexualidade.
16.6. O dom da piedade e a veneração pela obra de Deus
O Espírito Santo, ao habitar em nós, concede-nos os seus dons,
«disposições permanentes que tornam o homem dócil aos impulsos do
Espírito Santo»[387]. Classicamente, esses dons foram comparados às velas
que permitem ao barco ser empurrado pelo vento. Com os dons, a pessoa
torna-se muito mais dócil às graças do Espírito Santo: é-lhe mais fácil atuar
de acordo com o que Deus quer para ela, mesmo que, nalguns casos, se trate
de sugestões que ultrapassam as forças naturais da pessoa; alguns martírios
são exemplo clarividente do dom da fortaleza. Entre os sete dons clássicos
atribuídos ao Espírito Santo, S. João
Paulo II vê no dom da piedade aquele que mais relação guarda com a pureza,
«tornando o sujeito humano sensível àquela dignidade que é própria do corpo
humano em virtude do mistério da Criação e da Redenção»[388]. Graças a esse
dom, o homem é empurrado pelo Espírito a manter um profundo respeito por
tudo o que é de Deus[389]. E entende como são verdadeiras as palavras de S.
Paulo aos coríntios: sabe-se templo de Deus. Talvez a partir de agora o leitor
queira pedir ao Paráclito que lhe aumente esse dom na sua alma, de modo a
experimentar um respeito cada vez maior por tudo o que vem de Deus.
S. João Paulo II voltará a referir-se ao dom da piedade no último ciclo
das catequeses, ao desenvolver o tema da espiritualidade conjugal, cumprindo
o plano já anunciado nas catequeses que nos ocupam (segundo ciclo): «A
ligação da pureza com o amor e também a ligação da mesma pureza, no
amor, com aquele dom do Espírito Santo que é a piedade, constitui uma
trama pouco conhecida da teologia do corpo, que merece todavia um
aprofundamento particular»[390].
Vale a pena darmos agora «uma espreitadela» (ainda que a elas
regressemos no capítulo final) a essas audiências finais em que S. João Paulo
II procura aprofundar o tema da castidade conjugal. Nessas intervenções
explica que os esposos que se deixam guiar pelo Espírito e são sensíveis ao
dom de piedade experimentam um profundo respeito para com o que de Deus
procede e, assim, respeitam, por exemplo, a íntima ligação entre o significado
procriativo e o significado unitivo do ato conjugal[391].
O alcance e as consequências práticas desta doutrina são gigantescos.
Pelo dom de piedade, os esposos entendem a importância do ato conjugal
como uma peculiar manifestação de afeto mútuo ligada, de algum modo, ao
desígnio divino. Daí que nasça nos esposos um vivo sentido de
responsabilidade por esse ato:
«A virtude da castidade conjugal, e ainda mais o dom do respeito por aquilo que vem de Deus,
modelam a espiritualidade dos cônjuges a fim de proteger a particular dignidade deste ato, desta
“manifestação de afeto”, em que a verdade da “linguagem do corpo” só pode ser expressa
salvaguardando a potencialidade procriativa»[392].
Como explica também S. João Paulo II, não se trata de uma espécie de
veneração platónica para com o ato conjugal teoricamente equacionado.
Trata-se, sim, de não privar esse ato de todo o seu conteúdo, o qual inclui
elementos pessoais, éticos e religiosos[393]. Religiosos? Sim:
«A veneração à majestade do Criador, único e último depositário da fonte da vida, e ao amor
esponsal do Redentor. Tudo isto cria e alarga, por assim dizer, o espaço interior da mútua
liberdade do dom em que se manifesta plenamente o significado esponsal da masculinidade e da
feminilidade»[394].

O casal pode, assim, amar mais e melhor; torna-se consciente de poder


transmitir ao outro (e receber dele), para dizê-lo de alguma maneira, a
potência criadora inscrita no seu ser e a força unitiva que brota do amor de
Cristo. Marido e mulher podem «experimentar» que o que têm para dar é
mais do que aquilo que procede apenas das suas forças naturais, e que
recebem muito mais do que aquilo que procede das forças naturais do outro.
Em resumo: podem amar-se muito mais. O que limita essa doação é a
concupiscência que reduz o outro a um qualquer objeto de prazer. «O respeito
por aquilo que é criado por Deus liberta desta constrição, liberta de tudo o
que reduz o “outro eu” a mero objeto: corrobora a liberdade interior do
dom»[395].
Como atua o dom de piedade? «Este dom comporta uma profunda e
universal atenção à pessoa na sua masculinidade e na sua feminilidade,
criando assim o clima interior idóneo para a comunhão pessoal»[396]. Dessa
maneira o amor entre os cônjuges vê-se reforçado, pois ambos entendem que,
para se amarem, devem respeitar o que no outro vem de Deus, e o que na
comunhão pessoal vem de Deus. Crescem a mútua admiração e a
complacência no outro, não por meras considerações humanas, mas sim sob o
influxo do dom da piedade.
Sob tal influxo, nenhum esposo quererá ver a esposa privada de algo
íntimo, que é, de algum modo, sagrado e que a configura profundamente: a
potencial maternidade. Por isso, gera-se nele um peculiar respeito pelo que é
intrinsecamente feminino; e ele entende perfeitamente que, para eliminar um
hipotético conflito entre o amor e a dificuldade grande para ter mais um filho,
basta mudar o próprio comportamento, por muito que custe. O
comportamento é bem menos sagrado do que a potencial maternidade (ou
paternidade).
Num antigo romance português, uma beata e um fanático decidem cortar
os inocentes (mas perigosos, para eles) caracóis loiros de uma rapariguinha.
Qualquer leitor se sente revoltado por tamanha estupidez (atitude fomentada
também pelo modo como está contado): como é possível que privem uma
inocente criatura de algo tão seu? Trata-se de uma atitude do leitor que é
justificada. Mas o que é que fazem os contracetivos? Não privam a mulher de
algo muito mais seu? O dom da piedade reforça de modo «instintivo» a
defesa do outro, do que lhe é intrínseco.
16.7. Pureza, sabedoria e síntese final
Para terminar o capítulo, é necessário abordar brevemente a íntima
ligação entre a pureza e a sabedoria, que se encontra nalguns textos
sapienciais do Antigo Testamento. O paralelismo com os ensinamentos de S.
Paulo permite reforçar a ideia da pureza como vida segundo o Espírito. Com
efeito, alguns textos referem-na como condição para alcançar a sabedoria.
«A pureza é, de facto, a condição para encontrar a sabedoria e para a
seguir […] “dirigi para ela [sabedoria] a minha alma, e na pureza a encontrei”
(Ecl 51, 20)»[397]. Não deixa de ser sintomático que o mesmo livro da Bíblia,
ao referir-se a Salomão, comece por enaltecer a sua deslumbrante sabedoria:
«Quão sábio foste na tua juventude! Foste cheio de sabedoria como um rio!»
(Ecl 47, 14). No entanto, o mesmo livro não esconde a luxúria de Salomão,
classificando como «loucura» o seu comportamento (cfr. Ecl 47, 19-20): ao
não viver a pureza, acabou por viver nesciamente, em oposição à sua
sabedoria[398].
No seguimento deste texto bíblico, atrevo-me a responder à questão
proposta no início do capítulo sobre a possibilidade de haver pessoas boas
sem esta virtude e de haver pessoas medíocres que a vivem: a minha opinião
é que a impureza tem repercussões em tudo o que a pessoa faz. Mesmo que
se realizem obras externamente notáveis, a marca da impureza faz pensar
sempre que nessa pessoa há algo sério que não está bem. De facto, quando se
trata de alguém que não quer mesmo viver a castidade (não me refiro,
portanto, aos que querem mas experimentam dificuldades), é difícil que a
«licença para instrumentalizar outros» não tenha graves repercussões nos
diversos relacionamentos que mantém. Julgo ser perfeitamente possível
suceder que uma pessoa casta seja medíocre noutras virtudes e até egoísta –
mas a verdade é que se encontra em boas condições para não o ser.
Posto isto, chegou o momento de procurar sintetizar os imensos valores
ligados à virtude da castidade, em nada coincidentes com uma visão
deformada que pretende apresentá-la como um comportamento repressivo ou
como algo que visa amputar a personalidade humana.
Aprendemos, com S. João Paulo II, que se trata de empreender um
caminho de libertação; um caminho que conduza o homem a sair de si, da sua
solidão egoísta, para poder amar realmente, dando-se aos outros. Com a
castidade, o homem recupera a consciência do significado esponsal do seu
corpo e do dos outros, significado esse que está enraizado na liberdade do
dom: só uma pessoa livre pode expressar essa liberdade com a doação de si.
Se for escrava das suas paixões desregradas, nunca experimentará essa
liberdade e, por conseguinte, nunca suspeitará sequer das potencialidades do
seu corpo. Fará «coisas» com ele, mas não amará com o corpo porque não
sabe como fazê-lo.
A castidade é, sobretudo, um dom de Deus; consiste em levar uma vida
de acordo com o Espírito Santo que habita na alma em graça. É um deixar-se
guiar por Ele, permitindo que a sua força leve a pessoa a vencer o combate
entre o bem e o mal no terreno de batalha que é o coração humano. Trata-se
de uma batalha «épica», gigantesca, com consequências devastadoras ou
deslumbrantes – consoante o desfecho – para a vida da pessoa. Tanto é assim
que S. João Paulo II afirma que deixar brilhar na vida os frutos do Espírito,
entre os quais encontramos o domínio de si, é «uma síntese e um
programa»[399]. Como preferirão viver as pessoas? Deixando na vida um rasto
de misérias – de fornicação, de impureza, de luxúria, de idolatria, de
inimizades, de contendas, de ciúmes, de ira, de invejas, de embriaguez, etc. –,
ou permitindo que Deus faça aparecer na sua vida a caridade, o gozo, a paz, a
bondade, a mansidão?
É a vitória da Redenção de Cristo em nós, no nosso ser, no nosso corpo,
que está em jogo: «A grandeza da mensagem», explicava o cardeal Ratzinger
em 1964, «reside precisamente no facto de Deus não estar só a falar da vida
depois da morte, e de não estar só a falar das almas, mas de estar a invocar o
corpo, todo o ser humano na sua encarnação e na sua inclusão na História e
na comunidade»[400].
A vida segundo o Espírito tem consequências bem concretas, que se notam na
vida concreta do dia a dia e que, sem se resumirem à castidade, a têm como
elemento essencial. Quando a pessoa se deixa guiar pelo Espírito,
compreende, no que à castidade se refere, que se trata de manter o corpo em
«santidade e respeito».
O respeito pelo corpo conduz a saber identificar valores diferentes nos
membros corporais, para lhes prestar certos cuidados que permitam
reequilibrar harmoniosamente o seu lugar no corpo humano. O pudor no
vestir tem que ver com uma maior sensibilidade, afastando-se assim da falsa
visão naturalista que pretende apresentar todos os membros do corpo de igual
maneira. Ora, isto é falso quando aplicado a uma qualquer pessoa normal:
ninguém se importa de mostrar os olhos ou os cabelos, mas tal não sucede
com outras partes do corpo. Estas diferenças, experimentadas por quase
todos, não correspondem a um mero influxo cultural, mas têm uma séria base
teológica, enraizada na condição humana depois do pecado original – quando
confrontada com o desígnio de Deus para com o homem. Deus não quer que
o ser humano seja instrumentalizado, e a proteção aos membros mais
«débeis» ajuda a evitar esse perigo.
O respeito para com o corpo é sobretudo fruto do dom da piedade. Sob a
influência deste dom, o homem mantém uma profunda relação filial com
Deus e, a partir desta relação filial, mantém uma fundada admiração para com
tudo o que traz em si o mistério da Criação e da Redenção. Os casais em que
brilha esse dom descobrem no ato que os une corporalmente o seu caráter
quase sagrado e, ao protegerem a realidade do ato como Deus o quis,
experimentam a profunda alegria de poderem expressar o melhor de si com o
corpo.
Por fim, aprendemos que a pureza predispõe e favorece a sabedoria,
ajudando a que o homem não perca a visão global da vida. São notáveis as
consequências de uma vida casta na relação com Deus. Por isso, afirma S.
João Paulo II:
«A pureza como virtude, ou seja, capacidade de “manter o próprio corpo em santidade e respeito”,
aliada ao dom da piedade, qual fruto da habitação do Espírito Santo no “templo” do corpo, realiza
neste uma tal plenitude de dignidade nas relações interpessoais, que o próprio Deus é em vós
glorificado. A pureza é glória do corpo humano diante de Deus. É a glória de Deus no corpo
humano, através do qual se manifestam a masculinidade e a feminilidade. Da pureza brota aquela
singular beleza que permeia toda a esfera da convivência recíproca do homem, e que permite
expressar nela a simplicidade e a profundidade, a cordialidade e a irrepetível autenticidade da
confiança pessoal»[401].

Reafirmemos ainda que esta vida pura proposta por Cristo é uma
possibilidade real, para qualquer homem ou mulher. É dirigida, precisamente,
ao homem da concupiscência de todos os tempos e lugares. S. João Paulo II
não deixa, ele próprio, de apelar ao coração de todos para que se abram a esta
graça:
«Mas as palavras de Cristo são realistas. Não procuram obrigar o coração humano a regressar ao
estado de inocência original, que o homem já tinha deixado para trás de si no momento em que
cometeu o pecado original. Pelo contrário, indicam-lhe o caminho para uma pureza de coração,
que lhe é possível e acessível igualmente no estado da pecaminosidade hereditária. É a pureza do
“homem da concupiscência”, que apesar de tudo se encontra inspirado pela palavra do Evangelho
e aberto “à vida segundo o Espírito” (em conformidade com as palavras de São Paulo), isto é, a
pureza do “homem da concupiscência” que está inteiramente envolvido pela “redenção do corpo”
realizada por Cristo. Por este motivo encontramos nas palavras do Sermão da Montanha a
referência ao “coração”, isto é, ao homem interior.
O homem interior deve abrir-se à vida segundo o Espírito para que possa participar na pureza de
coração evangélica: a fim de que ele reencontre e realize o valor do corpo, libertado dos vínculos
da concupiscência através da redenção»[402].

Termino o capítulo com uma bela citação de S. Josemaria sobre a


castidade de S. José que resume, de um modo admirável, a visão positiva da
castidade, encarnada na vida do Santo Patriarca:
«Não estou de acordo com a forma clássica de representar S. José como um homem velho, apesar
da boa intenção de se destacar a perpétua virgindade de Maria. Eu imagino-o jovem, forte, talvez
com alguns anos mais do que a Virgem, mas na pujança da vida e das forças humanas.
Para viver a virtude da castidade, não é preciso ser-se velho ou carecer de vigor.
A castidade nasce do amor; a força e a alegria da juventude não constituem obstáculo para um
amor limpo. Jovem era o coração e o corpo de S. José quando contraiu matrimónio com Maria,
quando conheceu o mistério da sua Maternidade Divina, quando viveu junto d’Ela respeitando a
integridade que Deus queria oferecer ao mundo como mais um sinal da sua vinda às criaturas.
Quem não for capaz de compreender um amor assim conhece muito mal o verdadeiro amor e
desconhece por completo o sentido cristão da castidade»[403].

17.
Sexo e eternidade

S. João Paulo II assumiu as sugestões dadas na encíclica Humanae Vitae.


Entre elas, podemos ler uma perspetiva menos conhecida:
«O problema da natalidade, como de resto qualquer outro problema que diga respeito à vida
humana, deve ser considerado numa perspetiva que transcenda as vistas parciais – sejam elas de
ordem biológica, psicológica, demográfica ou sociológica – à luz da visão integral do homem e da
sua vocação, não só natural e terrena, mas também sobrenatural e eterna»[404].

Na esteira desta sugestão, o Papa dedicou nove audiências à vida do


homem depois da morte, em concreto ao dogma da ressurreição da carne com
o qual os cristãos estão familiarizados[405]. Todos os domingos, ao rezarmos o
Credo na Missa, manifestamos total adesão a essa verdade da revelação.
Aqueles que morrerem em Cristo ressuscitarão em Cristo. Mas teremos
pensado, alguma vez, nas consequências que essa verdade de fé tem na nossa
vida?
Talvez alguém se sinta tentado, ao ler esta primeiras palavras do
capítulo, a saltar para o seguinte. Afinal, que se sabe ao certo do Além? E
mesmo o que se pode conhecer, que influência tem no dia a dia?
Trata-se de um pensamento apressado. Bem vistas as coisas, a verdadeira
vida do homem – aquela de que desfrutará pela eternidade fora, se quiser ser
fiel a Deus, que convida todos a viverem n’Ele – será precisamente assim: a
vida de ressuscitados.
Logo no início do novo ciclo, S. João Paulo II afirma: «Convém agora
referirmo-nos às palavras do Evangelho em que Cristo fala sobre a
ressurreição, palavras que têm importância fundamental para entender o
matrimónio no sentido cristão e também “a renúncia” à vida conjugal pelo
“Reino dos Céus”»[406]. Antes de formularmos as perguntas relacionadas com
estas audiências, permita-se-me mostrar a importância de conhecer como será
o homem ressuscitado recorrendo a um exemplo de como uma hipótese sobre
o futuro pode influenciar o presente. S. Agostinho assinala e rejeita o erro
grosseiro dos que afirmavam que, na ressurreição, todos, homens e mulheres,
ressuscitariam como homens. «Alguns, baseados nas palavras: “Até que
todos alcancemos o estado de adultos, o desenvolvimento pleno de Cristo”
(Ef 4, 13) e nas outras: “Parecidos à imagem do Filho de Deus”, pensam que
as mulheres não ressuscitarão no sexo feminino, mas que todos o farão no do
varão»[407]. Eis a réplica do santo bispo de Hipona a este assexualismo
escatológico: «Parecem-me mais corretos aqueles que não duvidam que
ressuscitarão ambos os sexos, já que então não existirá a libido, que é a causa
da confusão. Antes de pecarem, o homem e a mulher estavam nus e não se
envergonhavam. Tirar-lhes-ão os vícios dos corpos, mas conservar-se-á a
natureza»[408]. Duvidará alguém das consequências que poderia ter, para este
nosso mundo, a convicção de que o sexo feminino estaria «a prazo» ou que o
modelo definitivo do ser humano é ser homem?
17.1. O Deus da vida
S. João Paulo II assinala com admirável precisão a transcendência de
conhecer o melhor possível o homem ressuscitado, e convida a prestar
atenção às seguintes palavras de S. Paulo: «E assim como trazemos a imagem
do homem terreno, assim levaremos também a imagem do celeste» (1 Cor
15, 49). Explica o Pontífice que, em todo o mundo visível, o corpo humano é
o único corpo que leva em si a potencialidade da ressurreição, a capacidade
de se tornar realmente um dia incorruptível, glorioso, cheio de poder,
espiritual. Por que razão sucede assim? Na sua unidade psicossomática, o
homem «pode acolher e reproduzir, nesta “terrena” imagem e semelhança
de Deus, também a imagem “celeste” do último Adão, Cristo»[409].
A imagem celeste – a imagem do novo Adão, Cristo – é, diz o Papa, «a
realidade “do outro mundo”, a realidade escatológica (S. Paulo escreve:
“levaremos”); mas, entretanto, ela é já de certo modo uma realidade deste
mundo, dado que foi revelada nele mediante a ressurreição de Cristo. É uma
realidade enxertada no homem “deste mundo”, realidade que nele se está
maturando até à consumação final»[410]. Por isso interessa tanto olhar para o
outro mundo: para conhecermos aquilo de que somos portadores e
redescobrirmos, também por esta via, a grandeza do homem e do seu corpo.
Mas há mais. S. João Paulo II não hesita em atribuir ao conhecimento da
ressurreição um papel definitivo nas conclusões de S. Tomás de Aquino
sobre a natureza humana:
«Foi a reflexão sobre a ressurreição que levou Tomás de Aquino a abandonar na sua antropologia
metafísica (e ao mesmo tempo teológica) a conceção filosófica de Platão sobre a relação entre a
alma e o corpo, e a aproximar-se da conceção de Aristóteles. De facto, a ressurreição atesta, pelo
menos indiretamente, que, no conjunto do composto humano, o corpo não está unido à alma de
forma apenas temporária (como se fosse a sua “prisão” terrena, como julgava Platão), mas que
constitui, juntamente com a alma, a unidade e a integridade do ser humano, precisamente como
ensinava Aristóteles, diversamente de Platão. Se São Tomás aceitou, na sua antropologia, a
conceção de Aristóteles, fê-lo atendendo à verdade sobre a ressurreição. Com efeito, a verdade
sobre a ressurreição afirma com clareza que a perfeição escatológica e a felicidade do homem não
podem entender-se como um estado da alma sozinha, separada (segundo Platão: “liberta”) do
corpo, mas devem ser entendidas como o estado do homem definitiva e perfeitamente “integrado”
através de uma união tal da alma com o corpo, que qualifica e assegura definitivamente a referida
integridade perfeita»[411].
Além desta observação, veremos como as consequências da
«antropologia da ressurreição»[412] para o modo de entender tanto o
matrimónio como a vida de celibato pelo Reino dos Céus são decisivas[413]. A
primeira pergunta deste capítulo consiste, precisamente, em saber quais são
essas consequências. Mas há mais questões a ter em conta. No fundo, que
importância têm os gestos corporais? Às vezes pode parecer que há
demasiado formalismo nos ensinamentos
da Igreja, como se não fosse mais importante o que a pessoa é «por dentro» e
se avaliasse em excesso os gestos do corpo, tanto em questões morais («será
assim tão relevante que um casal use um par de vezes o preservativo, um
bocado de látex?») como em gestos litúrgicos («por que razão há tanta
“etiqueta” no modo de rezar: levantar-se, ajoelhar, voltar a levantar-se,
etc.?»). Procuremos dar resposta a estas inquietações.
Como já se referiu nos primeiros capítulos, o texto central deste ciclo de
audiências é a conversa de Jesus com os saduceus. Essa passagem do
Evangelho, recolhida pelos três sinópticos, constitui a terceira parte do
tríptico que constitui a base evangélica da teologia do corpo. Por isso, tal
como as outras duas, é também «essencial e constitutiva»[414] deste corpo
doutrinal. Transcrevo a versão de S. Lucas:
«Aproximaram-se depois alguns saduceus, que negam a ressurreição, e fizeram-Lhe a seguinte
pergunta: “Mestre, Moisés deixou-nos escrito: ‘Se morrer o irmão de algum homem, tendo
mulher, e não deixar filhos, case-se com ela o seu irmão, para dar descendência ao irmão’. Ora,
havia sete irmãos. O primeiro casou, e morreu sem filhos. Casou também o segundo com a viúva,
e morreu sem filhos. Casou depois com ela o terceiro. E assim sucessivamente todos os sete; e
morreram sem deixar filhos. Morreu enfim também a mulher. Na ressurreição, de qual deles será
ela mulher, pois que o foi de todos os sete?” Jesus disse-lhes: “Os filhos deste mundo casam e
são dados em casamento, mas aqueles que forem julgados dignos de participar do outro mundo e
da ressurreição dos mortos, nem se casam, nem são dados em casamento, porque já não podem
morrer: são semelhantes aos Anjos e, sendo filhos da ressurreição, são filhos de Deus. Que os
mortos hajam de ressuscitar, o mostrou também Moisés no episódio da sarça, quando chamou ao
Senhor ‘o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, e o Deus de Jacob’. Ora Deus não é Deus de mortos,
mas de vivos, pois para Ele, todos são vivos”» (Lc 20, 27-38).

Antes de passarmos propriamente ao conteúdo doutrinal das palavras de


Jesus, é necessário recordar alguns apontamentos que justificam o desenrolar
do diálogo. Interessa-nos, sobretudo, entender qual era a perspetiva errada
que tinham os saduceus, para evitar cair em erros semelhantes.
Quem eram os saduceus? Em que acreditavam? Em nota a uma das
audiências, S. João Paulo II fornece os elementos necessários:
«No judaísmo daquele período não foi claramente formulada uma doutrina acerca da ressurreição;
existiam apenas as diversas teorias propostas pelas várias escolas. Os fariseus, que cultivavam a
especulação teológica, desenvolveram fortemente a doutrina sobre a ressurreição, vendo alusões à
mesma em todos os livros do Antigo Testamento. Entendiam todavia a futura ressurreição de
modo terrestre e primitivo, prenunciando por exemplo um enorme crescimento da colheita e da
fertilidade na vida depois da ressurreição. Os saduceus, pelo contrário, polemizavam com tal
conceito, partindo da premissa de que o Pentateuco não fala da escatologia. […] O caso
apresentado pelos saduceus ataca diretamente a conceção farisaica da ressurreição. De facto, os
saduceus julgavam que Cristo estava de acordo com esta posição. A resposta de Cristo corrige
igualmente quer as conceções dos fariseus, quer as dos saduceus»[415].

Percebe-se, assim, que os saduceus pretendessem demonstrar, mediante


um caso hipotético, como a conceção rival levaria a ter de admitir a
poliandria, essa sim totalmente contrária à Lei de Deus. Jesus faz-lhes ver
que, por um lado, não conhecem bem as Escrituras e, pior ainda,
desconhecem a omnipotência de Deus,
da qual dá fé a própria Escritura: padecem de um erro metodológico, ao
interpretarem demasiado literalmente as Escrituras (ou melhor: a parte das
Escrituras que aceitavam, o Pentateuco), e também de um erro de fundo: o
desconhecimento do poder de Deus, consequência daquele modo deficiente
de ler a Bíblia[416].
O Senhor mostra-lhes os erros, evocando referências do próprio
Pentateuco e não de outras passagens do Antigo Testamento cuja autoridade
eles não reconheciam; partindo de premissas contidas nos livros sagrados que
eles reconheciam como tais, os saduceus poderiam aceitar melhor a
conclusão: se Deus é o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, então é um Deus de
vivos. Deus não é como que um «colecionador de cadáveres». É um Deus
que dá a vida. É a Vida!
S. João Paulo II explica que, em rigor, se nos esquecêssemos do contexto
em que Jesus fala, as suas palavras «apenas» demonstrariam a imortalidade
da alma. Mas os saduceus «não conheciam o dualismo do corpo e da alma,
aceitando apenas a unidade bíblica psicofísica do homem que é “o corpo e o
sopro de vida”. Por isso, segundo eles, a alma morre juntamente com o corpo.
A afirmação de Jesus, segundo a qual os patriarcas vivem, para os saduceus
podia significar unicamente a ressurreição com o corpo»[417].
Cristo não quis fazer referência à sua futura Ressurreição, argumento
definitivo contra a falta de fé dos saduceus. S. Paulo, anos mais tarde,
recorrerá a esse facto determinante contra os que duvidavam da ressurreição
dos corpos: «Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como dizem
alguns entre vós que não há ressurreição dos mortos?» (1 Cor 15, 12). Aos
saduceus, o Senhor convida-os a terem fé no poder de Deus para aceitar a
ressurreição: «Cristo recorre precisamente àquele poder, que acompanha pari
passu o testemunho do Deus Vivo, que é o Deus de Abraão, de Isaac e de
Jacob e o Deus de Moisés.
O Deus que os saduceus “privam” deste poder já não é o Deus verdadeiro dos
seus Pais, mas o Deus das suas hipóteses e interpretações. Cristo, pelo
contrário, veio dar testemunho do Deus da Vida em toda a verdade do Seu
poder, que se revela na vida do homem»[418].
Antes de analisarmos com cuidado as implicações das palavras de
Cristo que, junto com o testemunho da sua própria Ressurreição, permitem
traçar o perfil do homem escatológico, detenhamo-nos, por alguns instantes,
nestas últimas palavras de S. João Paulo II. Cristopher West aproveita-as para
comparar o erro dos saduceus com quem utiliza contracetivos. Também esses
casais, afirma, se fecham à perspetiva de uma nova vida: «Eles podem, tal
como os saduceus, “privar” Deus do seu poder de dar vida. E então, em vez
[de a união conjugal] […] se tornar um sinal verdadeiro da aliança da vida,
eles (sabendo-o ou ignorando-o) tornam-se num contrassinal dessa aliança. E
Deus, como no caso dos saduceus, torna-se “no Deus das suas hipóteses e
interpretações” e não no “Deus verdadeiro dos seus Pais”»[419]. À primeira
vista o argumento pode parecer demagógico, um mero jogo de palavras; mas,
na realidade, não o é. Na minha opinião, a observação de West não só é
acertada como toca num ponto crucial da vida cristã.
Obviamente, não se está a querer dizer que quem usa contracetivos
assumiu as premissas dos saduceus, isto é, a negação da ressurreição com
base numa má leitura da Bíblia. No entanto, assemelha-se ao saduceus pelo
facto de não aceitar Deus como Ele é.
Acontece que a fé é uma resposta de todo o nosso ser a Deus, que Se
revela[420]. Não basta a resposta intelectual, embora essa seja crucial. Ora,
isto significa que, quando alguém diz acreditar num dos dogmas, por
exemplo, na Encarnação, essa adesão deve ter eco também na vida da
pessoa. Seria absurdo que o facto de o Verbo ter encarnado «apenas» tivesse
repercussão no que a pessoa «sabe» e não nas suas opções de vida. Por isso,
uma pessoa de fé é alguém que vive como Cristo e não apenas que está
informada do que Cristo fez e disse. Neste sentido, há comportamentos que
confirmam ou contrariam o que a pessoa diz acreditar. Por exemplo, a pessoa
que afirma acreditar na presença real de Cristo na Eucaristia e nunca olha
para um Sacrário nem se ajoelha diante do Senhor, na verdade não acredita,
apesar de ter a informação sobre o dogma. A sua vida desmente aquilo em
que diz acreditar. Ora, um casal que usa contracetivos não deixa que Deus
possa dar a vida a um novo ser durante a sua união conjugal. Opõe-se de
modo prático a que, no lugar e no momento em que Deus poderia dar uma
nova vida, o possa realmente fazer. Não trata Deus como verdadeiro Deus,
com «direito» a intervir na vida conjugal e a confiar ao casal uma nova vida
no momento previsto por Ele.
Aprofundemos ainda nesta questão. Num artigo de Karol Wojtyla,
publicado após a Humanae Vitae, o futuro Papa «fazia finca-pé» no n.º 8 da
encíclica, onde se lê: «O amor conjugal exprime a sua verdadeira natureza e
nobreza quando se considera na sua fonte suprema, Deus que é Amor, “o Pai,
do qual toda a paternidade nos céus e na terra toma o nome”»[421]. Há, pois,
uma ligação entre a revelação de Deus como amor e como Pai. No
comentário, Wojtyla defende que a encíclica «responde basicamente a uma
única questão: que características deve ter o amor conjugal para se descobrir
nele o eterno plano de Deus sobre o amor? Sob que condições reflete o amor
conjugal o seu primeiro modelo, que é Deus como Amor e Deus como Pai? É
a este nível que devemos considerar a totalidade da encíclica e os
ensinamentos do amor conjugal nela contidos»[422].
Não esqueçamos tudo o que já foi dito sobre o papel do amor conjugal
nos planos divinos. A comunhão de pessoas no matrimónio, incluída a sua
expressão mais específica que é a união física «numa só carne», está chamada
a ser um reflexo do amor de doação de Deus. Teologicamente, não é possível
separar a revelação sobre Deus-Amor da revelação sobre a plena paternidade
de Deus – ambas pertencentes, de modo pleno, ao Novo Testamento. É certo
que, no Antigo Testamento, Deus Se apresenta com características paternas e
maternas, mas é com Cristo que a paternidade de Deus é claramente afirmada
e ensinada como essencial na relação dos homens com Ele. É Jesus quem nos
ensina o «Pai-Nosso». Mas mais importante ainda é o facto de que a
paternidade de Deus dentro da Trindade só então é revelada.
Quando um casal priva o ato que é chamado a ser reflexo do amor-
doação da potencial paternidade e maternidade, como poderá refletir ainda o
amor? Não é verdade que introduziu a vontade de não se dar nesse ato?
Intercalo um mero exemplo: a bandeira nacional foi pensada para, de algum
modo, ser uma certa representação do país. Quando a vemos hasteada,
lembra-nos o nosso país. Mas que sucede se for amarrotada, enlameada e
atirada para uma sarjeta? Trata-se apenas de um pano velho que se atirou
fora, ou é o país que, de algum modo, foi humilhado? Que sucede, então,
quando se usa a «bandeira» do amor-doação como um trapo ao qual nenhuma
reverência é prestada?
O casal que, por opção própria, nega a Deus a possibilidade de ser
novamente Pai, rejeita uma das grandes possibilidades de experimentar o
amor de Deus nas suas vidas. E se o Deus-Amor não pode entrar nas vidas,
então que Deus é esse? Ficará reduzido ao «deus» das suas hipóteses e
interpretações. Será o «deus» que os cônjuges disserem. E, assim, já não se
trata do Deus verdadeiro, mas apenas a imagem que d’Ele desenham com as
suas opções e gestos. O «deus» dos casais que usam contracetivos é um
«deus» a quem privam do direito de entrar na vida íntima, pois veem-no
como um intruso, quando o Deus verdadeiro, pelo contrário, é a fonte do
amor autêntico.
Regressemos à visão antropológica que Jesus apresenta na resposta aos
saduceus. De acordo com os ensinamentos de Jesus, qual a condição dos
corpos ressuscitados? Que ilações tiramos da conversa com os saduceus
sobre o homem da eternidade?
17.2. No Céu não haverá casamento… E então o amor?
Por um lado, lemos que o matrimónio não terá lugar na eternidade, é
uma realidade deste mundo. Veremos porquê. Por outro lado, se nos
perguntarmos sobre o estado dos corpos ressuscitados com base nessas
palavras de Jesus, entendemos que se mantém a dualidade de sexos e que
haverá uma espiritualização e divinização dos corpos. Detenhamo-nos, pois,
no caráter provisório do casamento e, a seguir, nas condições dos corpos
ressuscitados, com as consequências a elas inerentes.
Não nos deveria admirar o caráter provisório do casamento
(reconhecendo ao mesmo tempo a sua enorme importância), enquanto
realidade ligada apenas à vida do homem nesta terra. Aliás, o mesmo sucede,
por exemplo, com a Eucaristia. S. Tomás explica muito bem por que razão
não será necessária a Eucaristia no Céu. Interessa-nos a sua resposta porque
permite entender melhor uma das duas razões que S. João Paulo II aponta
para justificar o caráter provisório (isto é, que não existirá no mundo
definitivo, o mundo da ressurreição) do casamento. Afirma S. Tomás:
«Receber Cristo neste Sacramento [Eucaristia] está destinado, como a seu
fim, à fruição d’Ele na pátria, onde os Anjos já d’Ele usufruem. E, dado que
as coisas destinadas a um fim estão subordinadas a esse fim, conclui-se que o
ato de receber Cristo, pelo qual comungamos com Ele neste Sacramento, está,
de certa maneira, subordinado àquele ato de receber mediante o qual os Anjos
usufruem de Cristo na pátria. Por isso se diz que o homem come o Pão dos
Anjos, porque, primeiro e principalmente, pertence aos Anjos usufruírem
d’Ele tal como Se encontra no seu estado natural e, depois, aos homens, que
recebem Cristo neste Sacramento»[423].
Retenhamos esta argumentação e comparemo-la com as seguintes
palavras de Amor e Responsabilidade. Nessa obra, o autor explica que a
união nupcial é o modo de concretização mais frequente do profundo desejo
de plena doação presente no coração humano:
«A necessidade mesma do amor nupcial, a de dar-se a outra pessoa e unir-se a ela, é mais
profunda e está ligada ao ser espiritual do homem. A união com um ser humano não o satisfaz
totalmente. O matrimónio, visto sob o aspeto da vida eterna da pessoa, é só uma tentativa de
solução do problema da união das pessoas, por meio do amor»[424].

Na ressurreição, a necessidade de ser amado e de amar fica plenamente


satisfeita pelo amor de Deus, para o qual o amor nupcial aponta: através do
amor nupcial, muitos aprendem o que é o amor e, se o viverem bem,
vislumbram, também com esse amor humano, o que é ser amado pelo Amor e
poder amar o Amor. Mas, dado que na vida eterna o coração humano fica
plenamente preenchido, uma das razões de ser do matrimónio desvanece-se.
Como o leitor terá percebido, assim como a Eucaristia antecipa e prepara para
o encontro definitivo com Cristo (não sacramental), o matrimónio ajuda a
antever e a preparar o definitivo ser amado e amar. Em ambos os casos, há
sempre uma certa insatisfação, ou pelo menos a consciência de que é possível
uma maior união, um maior amor.
Eis como S. João Paulo II explica este ponto:
«Aqueles que participarem no “mundo futuro”, isto é, na perfeita comunhão com o Deus Vivo,
gozarão de uma subjetividade perfeitamente madura. Se, nesta perfeita subjetividade, mesmo
conservando no seu corpo ressuscitado (isto é, glorioso) a masculinidade e a feminilidade, “não
tomarão mulher nem marido”, isto explica-se não apenas com o fim da história, mas também – e
sobretudo – com a “autenticidade escatológica” da resposta àquele “comunicar-se” do Sujeito
Divino, que constituirá a experiência beatificante do dom de Si mesmo por parte de Deus,
absolutamente superior a toda a experiência própria da vida terrena.
O recíproco dom de si mesmo a Deus – dom em que o homem concentrará e exprimirá todas as
energias da própria subjetividade pessoal e ao mesmo tempo psicossomática – será a resposta ao
dom de Si mesmo por parte de Deus ao homem. […] Assim, pois, aquela situação escatológica, na
qual “não tomarão mulher nem marido”, tem o seu sólido fundamento no estado futuro do sujeito
pessoal, quando, como consequência da visão de Deus “face a face”, nascer nele um amor de tal
profundidade e força de concentração sobre o próprio Deus, que absorverá completamente a sua
inteira subjetividade psicossomática»[425].

A sede de comunhão do homem encontrar-se-á, então, plenamente


satisfeita.
Nestas palavras, S. João Paulo II alude também ao outro motivo que faz
compreender a não continuação do casamento na vida futura: a História terá
terminado, o que significa que já não entrarão nela novos protagonistas.
Numa outra audiência, explicita essa razão:
«Aquele “outro mundo” de que fala Lucas (20, 35) significa o cumprimento definitivo do género
humano, o encerramento quantitativo daquele círculo de seres que foram criados à imagem e
semelhança de Deus para que, multiplicando-se através da conjugal “unidade no corpo” de
homens e mulheres, subjugassem a si mesmos a terra. Aquele “outro mundo” não é o mundo da
terra, mas o mundo de Deus o qual, conforme sabemos pela Primeira Carta de Paulo aos Coríntios,
o encherá inteiramente, tornando-se “tudo em todos” (1 Cor 15, 28)»[426].

Em resumo: os fins e os bens do matrimónio perdem a sua razão de ser,


que é precisamente a de nos prepararem para o Amor. Esta mera observação
deveria levar os cônjuges a pensar que, dada a gigantesca capacidade de
abertura que o ser humano tem para amar e ser amado, não é de estranhar
que, pelo menos nalguns momentos, notem que o seu casamento ainda não
alcançou o nível máximo do amor. Esse realismo levará a aceitar a situação
da vida presente, procurando ao mesmo tempo crescer no amor mútuo e ter
sempre em vista o amor definitivo. Pelo contrário, seria uma erradíssima
conclusão pensar que a notada ausência de plena felicidade e comunhão num
determinado momento da vida matrimonial se alcançará com outra pessoa;
trata-se de uma pura miragem, um engano, que esquece o ensinamento cristão
acerca do matrimónio baseado no que de mais profundo há no coração
humano[427].
É necessário acrescentar ainda que a sede de comunhão, plenamente
vivida na união com Deus, é também complementada com um perfeito amor
aos irmãos. S. João Paulo II falará de perfeita intersubjetividade. Teremos
ocasião de referir essa realidade dentro do estado dos corpos ressuscitados,
no qual nos centraremos em seguida.
17.3. Haverá homens e mulheres
Há três aspetos essenciais que as palavras de Cristo permitem deduzir
sobre os corpos ressuscitados:
a) Haverá homens e mulheres;
b) Os corpos serão espiritualizados, adquirindo um perfeito domínio
da dimensão espiritual;
c) Os corpos serão divinizados e estarão, por isso, imersos em Deus.
Com base nestas características, interessará perguntar o que sucede com
o significado esponsal do corpo (permanecerá ou não?), estabelecer uma
comparação com a situação do tempo anterior ao pecado original e,
finalmente, procurar vislumbrar como será a experiência do corpo no mundo
definitivo.
Recordemos as palavras de Jesus aos saduceus: «Mas aqueles que forem
julgados dignos de participar do outro mundo e da ressurreição dos mortos,
nem se casam, nem são dados em casamento» (Lc 20, 35). Portanto, mesmo
sabendo que o casamento cessará, haverá homens e mulheres. Manter-se-á,
pois, a «perene diferenciação dos sexos». Obtemos idêntica conclusão
quando se segue a versão de Marcos: «Quando ressuscitarem de entre os
mortos, nem eles se casarão, nem elas serão dadas em casamento, mas serão
como Anjos no Céu» (Mc 12, 25)[428].
Em três ocasiões, S. João Paulo II reafirma a diferenciação sexual no
mundo escatológico:
«As palavras […] parecem, ao mesmo tempo, afirmar que os corpos humanos, recuperados e
também renovados na ressurreição, manterão a sua peculiaridade masculina ou feminina, e que o
sentido de ser no corpo homem ou mulher será no “outro mundo” constituído e entendido de modo
diverso daquilo que foi desde “o princípio”, e depois em toda a dimensão da existência
terrena»[429].

Esta dedução é plenamente coerente com o facto de o sexo ser, em


palavras de S. João Paulo II já estudadas, constitutivo do ser humano e não
um mero atributo. Se se nega que na ressurreição haverá homens e mulheres
ou que cada um ressuscitará com os seus atributos sexuais (de homem ou
mulher), será necessário ou negar a sexualidade como configuradora da
pessoa ou então, no caso de se querer manter essa tese, pôr em causa a
afirmação de que se ressuscita com a mesma identidade que se tinha antes de
morrer.
Estas simples observações fazem pensar que o desígnio de Deus para a
diferenciação dos sexos não se esgota no casamento. Trata-se de um ponto
importante, bem sintetizado por S. João Paulo II:
«O significado original e fundamental de ser corpo, como também de ser, enquanto corpo, varão e
mulher – isto é, precisamente aquele significado “espon-
sal” – está unido ao facto de o homem ser criado como pessoa e chamado à vida in communione
personarum. Em si mesmos, o matrimónio e a procriação não determinam definitivamente o
significado original e fundamental do ser corpo, nem de ser, enquanto corpo, varão e mulher. O
matrimónio e a procriação dão apenas realidade concreta àquele significado nas dimensões da
história»[430].

Portanto, o fundamental para se entender a razão dos dois sexos não é


tanto o casamento mas sim algo que se situa mais fundo e que permite
entender o próprio casamento. O ser humano foi criado para viver a
comunhão de pessoas.
A maneira mais imediata e habitual de viver essa comunhão na vida presente
é o casamento. E também é o modo mais intuitivo e rápido de se entender o
que é uma comunhão de pessoas.
Esta mera consideração ajudará a enquadrar o sentido do celibato como
uma situação que em nada contraria o que há de essencial no homem (não é
contra a sua natureza: contra a natureza humana seria a negação da
possibilidade de realizar uma comunhão de pessoas). Mas pode também
ajudar aquelas pessoas que não conseguiram casar-se e pensam que, por tal
motivo, as suas vidas ficarão sem sentido, incompletas. Sem retirar nem a
esperança de que um dia possam vir a casar-se nem a importância dessa
opção para a maioria das pessoas, elas podem, se quiserem, dar um sentido à
sua existência mesmo na sua situação de «celibato forçado» – desde que não
se fechem numa vida de «solteirões» ou «solteironas» egoístas, que não
sabem partilhar os problemas de ninguém. Se souberem amar os familiares e
estabelecer um sã convivência com outras pessoas, poderão realizar a sua
vocação essencial à comunhão.
17.4. Um corpo espiritual: harmonia total
Recordemos mais algumas palavras da resposta aos saduceus: «Porque já
não podem morrer: são semelhantes aos Anjos e, sendo filhos da ressurreição,
são filhos de Deus» (Lc 20, 36). Tais palavras permitem centrar-nos numa
característica dos corpos ressuscitados (a segunda acima referida): serão
como os Anjos; os corpos encontrar-se-ão «espiritualizados». Que significa
esta expressão? De modo resumido, a «ressurreição significa uma nova
submissão do corpo ao espírito»[431]. Portanto, fica descartada uma espécie de
«angelização», onde não existisse corpo. Também seria errado entender a
espiritualização como uma «derrota» do corpo e uma «vitória» da alma.
Na ressurreição, o homem deixará por fim de experimentar a realista
queixa de S. Paulo: «Percebo outra lei nos meus membros, a lutar contra a lei
da minha razão» (Rom 7, 23). O homem deixará de sentir como que «duas
leis» dentro de si: «O homem já não experimentará a oposição entre o que
nele é espiritual e o que é corpóreo. A “espiritualização” significa não
apenas que o espírito dominará o corpo mas, diria, que ele permeará
inteiramente o corpo, e que as forças do espírito permearão as energias do
corpo»[432].
Poder-se-á, então, afirmar que se vai regressar ao momento inicial da
Criação do homem? Não. Entre outras diferenças, cabe notar que na origem
existia, de facto, uma perfeita integração entre alma e corpo, mas o homem
não estava isento de uma possível desintegração, tal como veio a suceder.
Em certo sentido, entre a harmonia «alma-corpo» do ser humano do
princípio e a do ser humano da ressurreição verifica-se a mesma diferença
que há entre a imortalidade prévia ao pecado original e a imortalidade da
ressurreição. De modo pedagógico, a teologia ensina que, no primeiro caso,
a imortalidade era como um «poder não morrer», enquanto, no segundo, a
descrição mais adequada é a de um «não poder morrer». Também no caso da
integração entre o corpo e a alma, descrevemos a situação original como
«podendo não haver oposição entre corpo e espírito», enquanto no estado
escatológico o que se afirma é que «não pode haver oposição entre o corpo e
o espírito». Além de que, pelo que contemplamos em Cristo ressuscitado, a
perfeição dessa integração é ainda mais perfeita do que a do homem no
estado original.
No período do homem histórico, tornou-se possível, tal como já vimos,
um progressivo domínio do espírito sobre o corpo com o auxílio da graça,
ainda que ele nunca seja completo: «Na vida terrena, o domínio do espírito
sobre o corpo – e a simultânea subordinação do corpo ao espírito – pode,
como fruto de um perseverante trabalho sobre nós mesmos, exprimir uma
personalidade espiritualmente amadurecida; todavia, o facto de as energias do
espírito conseguirem dominar as forças do corpo não remove propriamente a
possibilidade da recíproca oposição entre elas»[433]. S. João Paulo II não deixa
de assinalar que entre as duas situações (a dos ressuscitados e a do homem
histórico) há uma diferença essencial, e não só de grau[434].
Obviamente, descarta-se por completo a hipótese de não haver corpo, a
qual resulta de uma interpretação errada das palavras de Jesus que
estabelecem uma comparação entre o novo estado eterno dos homens e a
natureza dos Anjos, que não têm corpo ou matéria. Além de que, nessa
hipótese, nem sequer se poder falar de «ressurreição»; ela contraria o estado
de Cristo ressuscitado. Jesus diz aos Apóstolos: «“Olhai para as minhas mãos
e para os meus pés, porque sou Eu mesmo; apalpai e vede, porque um
espírito não tem carne, nem ossos, como vós vedes que Eu tenho”. Dito isto,
mostrou-lhes as mãos e os pés» (Lc 24, 39-40).
Ao mesmo tempo, o domínio do espírito não significa nem que o corpo
não conte realmente nem que se torne numa espécie de «marioneta» do
espírito. Nessa explicação transpira um certo dualismo. S. João Paulo II é
bem claro a este respeito:
«De facto, no ser composto, psicossomático, que é o homem, a perfeição não pode consistir numa
oposição recíproca entre o espírito e o corpo, mas numa profunda harmonia entre eles, na
salvaguarda do primado do espírito. No “outro mundo”, tal primado será realizado e manifestar-
se-á numa perfeita espontaneidade, privada de qualquer oposição por parte do corpo. Todavia isto
não deve ser entendido como uma “vitória” definitiva do espírito sobre o corpo. A ressurreição
consistirá na perfeita participação de tudo o que no homem é corpóreo naquilo que nele é
espiritual»[435].

S. Leão Magno apoia-se numa das bem-aventuranças – a da mansidão –


para expor o que sucederá nos corpos ressuscitados: «Portanto, a terra
prometida aos mansos e que será dada aos pacientes refere-se aos corpos dos
santos que, como prémio da sua humildade, serão transformados na bem-
aventurada ressurreição e revestidos na glória da imortalidade. Esta carne,
assim revestida de imortalidade, em nada será contrária ao espírito, mas
estará sempre em unidade perfeita e consentimento pleno com a alma. Então
o homem exterior será domínio santo e pacífico do homem interior»[436]. Para
melhor vislumbrar como será essa harmonia, é conveniente recordar o que foi
dito anteriormente sobre a possibilidade de o eros e o ethos confluírem na
pessoa: quando tal sucede, existe uma espontaneidade que brota do mais
íntimo da pessoa e que coincide com as exigências éticas. Na ressurreição,
essa espontaneidade será perfeita.
Interessa-nos agora começar a perguntar sobre a influência que pode ter
o conhecimento da ressurreição na nossa vida de agora. Se nele meditarmos
serenamente, deduziremos que o nosso esforço de agora por ser mais
humanos não pretende anular as potências do corpo, mas sim colocá-las ao
serviço do bem integral da pessoa. É sempre uma luta positiva e de
integração. Por exemplo, o Catecismo ensina que «a perfeição moral consiste
em que o homem não seja movido para o bem só pela vontade, mas também
pelo apetite sensível, segundo esta palavra do Salmo: “O meu coração e a
minha carne exultam no Deus vivo” (Sl 84, 3)»[437]. Isto é, devemos procurar
(mesmo que, muitas vezes, não o consigamos) que todas as nossas potências
se centrem no Senhor, sem nos contentarmos com um cumprimento frio e
distante, como que alheio ao nosso ser mais profundo.
Regressando uma vez mais ao estado dos ressuscitados em Cristo, são
esclarecedoras umas palavras de S. Tomás – sobre as quais nos voltaremos a
debruçar no subcapítulo seguinte – que deixam perceber como no estado de
corpo ressuscitado todas as potências nos centrarão em Deus, ainda que
respeitando a natureza de cada uma. Assim, por exemplo, ao falar da vista,
diz o Aquinate que, em sentido literal, não se poderá ver Deus com os olhos,
pois Deus é Espírito e a vista só pode captar o que é material[438].
Portanto, «espiritualização» não significa que haja mudança na natureza
do corpo. Mesmo que dotado de certas peculiaridades ao ser comparado com
a situação atual – por exemplo, seremos impassíveis, sem possibilidade de
sofrer –, teremos de facto um corpo. S. Paulo chama-o «corpo espiritual» (1
Cor 15, 44).
17.5. Imersos em Deus
A que se deve esta espiritualização do ser humano? S. Tomás de Aquino
explica-a com base na divinização. Porque a alma se encontra imersa em
Deus, dão-se as mudanças descritas nas relações entre o corpo e a alma[439].
Por isso, interessa-nos falar agora da divinização da humanidade.
Em certo sentido, e para reforçarmos a ligação com os capítulos
anteriores, podemos encontrar um certo paralelismo na dupla dimensão do
«manter o corpo em santidade e respeito» com a espiritualização e a
divinização do corpo (da pessoa) no estado escatológico. O homem histórico,
para manter o corpo em santidade e respeito, deve, auxiliado pela graça de
Deus, aumentar o domínio de si, onde os movimentos do corpo se submetem
cada vez mais ao espírito (o homem vai ficando mais «espiritualizado»). Ao
mesmo tempo, o corpo é templo do Espírito Santo, um preâmbulo da
definitiva divinização da pessoa, do mundo da ressurreição – em que agora
nos vamos centrar[440].
O que se entende, então, por divinização da pessoa no mundo da
ressurreição?
«A participação na natureza divina, a participação na vida interior do próprio Deus, penetração e
permeação daquilo que é essencialmente humano por parte do que é essencialmente divino,
atingirá então o seu auge, pelo que a vida do espírito humano alcançará uma tal plenitude que
antes lhe era absolutamente inacessível. Esta nova espiritualização será portanto fruto da graça,
isto é, do comunicar-Se de Deus na sua própria divindade, não apenas à alma, mas a toda a
subjetividade psicossomática do homem”»[441].

O homem fica, assim, imerso em Deus, sem que tamanho dom anule a
subjetividade da pessoa. Perante a comunhão com o Ser Eterno, alguém
poderia ser levado a pensar num processo de algum modo ilustrado pela gota
de água que cai no oceano, onde aquela se dilui totalmente e perde a sua
identidade. Não será assim com o homem; nada mais afastado do que
realmente sucederá.
A sua subjetividade será reforçada como nunca o foi[442]. Talvez um exemplo
possa esclarecer o reforço da identidade de cada um. Quando alguém vai
trabalhar para uma empresa onde descobre que sabem o seu nome,
reconhecem as suas qualidades, apreciam o valor do que faz e respeitam a
sua iniciativa, essa pessoa sente-se muito mais «ela própria» do que numa
situação onde trabalhava como se fosse apenas uma peça mais de uma
engrenagem. Em Deus, que nos criou pessoalmente e nos conhece pelo
nosso nome[443], fica reforçada, até ao limite, a consciência da própria
subjetividade: tudo em nós «faz sentido», tudo tem razão de ser diante do (e
imersos no) nosso Criador, que pensou em nós tal como seremos na
eternidade – mergulhados no seu Amor.
17.6. O corpo manterá o seu significado esponsal mesmo sem
o casamento?
Agora que já conhecemos as características do corpo ressuscitado,
interessa responder à pergunta do subcapítulo. Em caso de resposta
afirmativa («o corpo ressuscitado mantém o seu significado esponsal»), como
experimentará o homem esse significado?
A divinização do homem ensina-nos que todo o seu ser estará
harmoniosamente centrado em Deus. Escrevo «harmoniosamente» porque as
potências humanas serão respeitadas na sua natureza. Vale a pena retomar
agora a observação de S. Tomás de Aquino referida no subcapítulo anterior: é
certo que, no Céu, o entendimento – elevado (engrandecido) por uma nova
capacidade dada por Deus e que os teólogos denominam lumen gloriae («a
luz da glória») – captará diretamente Deus. A isso se chama «ver a Deus cara
a cara». Mas quando se trata de averiguar se, com os nossos olhos, e não só
com o entendimento, veremos ou não a Deus, S. Tomás responde que em
rigor não se pode «ver» a Deus com os olhos; se o homem ressuscitado visse
a Deus, Espírito puro, com os olhos, então isso significaria que a vista (o
órgão sensorial) teria deixado de ser vista, pois o que ela capta são corpos
sensíveis[444]. E S. Tomás defende que o sentido da vista manterá a sua
natureza específica após a ressurreição, isto é, continuará a captar entidades
sensíveis, não realidades espirituais. São palavras que ilustram os
ensinamentos da teologia do corpo: o corpo não será anulado. A seguir,
acrescenta ainda que, como o sentido da vista será especificamente o mesmo
no corpo glorioso, «não pode acontecer que se veja a essência divina como
sensível próprio. Vê-la-á como visível per accidens na medida em que, por
um lado, a visão corporal contemplará a glória de Deus nos corpos,
principalmente nos gloriosos e de um modo especial no Corpo de Cristo; por
outro lado, o entendimento verá Deus com tanta clareza que O captará nas
coisas vistas corporalmente, tal como na fala se capta que há vida. Ainda que
o nosso entendimento não há-de conhecer Deus através das criaturas [fá-lo
diretamente, como já se explicou], porém vê-l’O-á corporalmente nas
criaturas vistas [isto é, naquelas que os olhos captam]»[445].
Portanto – e esta é a conclusão que agora nos interessa –, também o
corpo ressuscitado participa da experiência de Deus. E acrescentamos desde
já que as características do significado esponsal do corpo também se vão
manter, e manifestar-se-ão em primeiro lugar na união do homem com Deus.
Em tal união, o homem será plenamente acolhido como pessoa pelo Amor
Trinitário, e responderá à doação de Deus à sua pessoa com todas as energias
do seu ser, entregando-se sem reservas ao Amor dos amores. Portanto, as
características do significado esponsal do corpo são todas vividas em união
com o Criador: o homem todo, também com o seu corpo, experimentará que
é recebido em Deus e que o próprio Deus a ele Se entrega; logicamente, o
homem responderá, dando-se a Deus com todo o seu ser: «O recíproco dom
de si mesmo a Deus – dom em que o homem concentrará e exprimirá todas as
energias da própria subjetividade pessoal e ao mesmo tempo psicossomática
– será a resposta ao dom de Si mesmo por parte de Deus ao homem»[446].
De forma complementar, existirá no Céu uma perfeita união com todos
os ressuscitados. S. João Paulo II fala da «redescoberta de uma nova e
perfeita intersubjetividade de todos»[447], relacionando a fé na comunhão dos
santos com a fé na ressurreição dos mortos[448]. Suponho que as seguintes
palavras de S. Tomás (que visam explicar o relacionamento dos santos em
Deus) facilitam o esclarecimento dessa relação, que S. João Paulo II
denomina «perfeita intersubjetividade»: «A vida eterna consiste finalmente
na ditosa comunhão de todos os bem-aventurados, comunhão sumamente
agradável, porque cada um terá todos os bens com todos os outros bem-
aventurados. Cada um amará os outros como a si mesmo e por isso se
alegrará com o bem dos outros como [se fosse o] seu próprio bem. E, assim,
será tanto maior a alegria e felicidade de cada um quanto maior for a
felicidade de todos»[449].
Eis um dos resumos de S. João Paulo II sobre o significado esponsal no
estado escatológico:
«Naquele Reino que é o “outro mundo” da ressurreição, “nem eles se casarão, nem elas serão
dadas em casamento” (Mc 12, 25), porque Deus será “tudo em todos”
(1 Cor 15, 28). Esse modo de ser homem, varão e mulher, indica portanto a “virgindade”
escatológica do homem ressuscitado, no qual se revelará, diria, o absoluto e eterno significado
esponsal do corpo glorificado em união com o próprio Deus, mediante a visão d’Ele “face a face”;
e glorificado, também, mediante a união de uma perfeita intersubjetividade, que unirá todos os
“participantes do outro mundo”, homens e mulheres, no mistério da comunhão dos santos»[450].

Não poderia deixar de ser assim. Se o corpo não participasse plenamente


do fim do homem, seria difícil entender por que razão se diz existir uma
unidade perfeita entre o corpo e a alma.
Mas então, se o significado esponsal do corpo alcança a sua realização
mais «acabada» no estado escatológico, onde não existe casamento, a razão
mais profunda desse significado não pode ser plenamente justificada pelo
casamento. Na realidade, o significado esponsal do corpo, que é
«descoberto» no mistério da Criação através da relação entre homem e
mulher, é levado à sua perfeição e «descoberto» nas suas raízes no estado do
homem glorificado. Releiamos, uma vez mais, a importante explicação de S.
João Paulo II sobre a questão: «Em si mesmos, o matrimónio e a procriação
não determinam definitivamente o significado original e fundamental do ser
corpo, nem de ser, enquanto corpo, varão e mulher. O matrimónio e a
procriação dão apenas realidade concreta àquele significado nas dimensões
da história»[451]. Mesmo nessa dimensão, como estudaremos no capítulo
seguinte, não o esgotam, pois com o celibato também se vive o significado
esponsal.
Em suma, o significado mais fundamental de ser corpo e de ser homem e
mulher só se descobrirá plenamente no mundo escatológico:
«A glorificação do corpo, como fruto escatológico da sua espiritualização divinizante, revelará o
valor definitivo daquilo que desde o princípio devia ser um sinal distintivo da pessoa criada no
mundo visível, também como um meio do recíproco comunicar-se entre as pessoas e uma
autêntica expressão da verdade e do amor, pela qual se constrói a communio personarum»[452].

O significado esponsal do corpo alcançará o seu zénite na glorificação do


corpo. S. João Paulo II não hesita em acrescentar que o homem glorificado
encontrará em si, sem qualquer uma das limitações presentes na sua condição
histórica, a completa «liberdade do dom» que alimentará «cada uma das
comunhões que formarão a grande comunidade da comunhão dos santos»[453].
Numa das sessões sobre estas audiências, foi-me feita uma boa pergunta:
«com base nesta explicação, é mesmo possível afirmar a necessidade dos dois
sexos para a comunhão de pessoas no mundo escatológico? Ou, de modo
mais direto: continuam a ser necessários os dois sexos para a união esponsal
com Deus ou para a completa intersubjetividade com os outros?» Já
afirmámos que a duplicidade de sexos é necessária porque o sexo é
constitutivo da pessoa e, como tal, deve permanecer no mundo da eternidade,
quanto mais não fosse por uma questão de identidade da pessoa. No entanto,
o que se questiona agora é se a divisão dos sexos influi na comunhão com
Deus e com os outros ou se é completamente indiferente.
A resposta não é dada nas catequeses. Podemos, no entanto deixar
algumas pistas de reflexão. Uma primeira resposta consistiria em afirmar que,
embora a divisão de sexos no mundo escatológico não seja, em bom rigor,
necessária para a comunhão das pessoas, mantém-se como lembrança perene
da história de cada pessoa e da própria História da salvação, isto é, ficará
como lembrança perene do modo mais habitual como, na História, Deus
imprimiu no homem a vocação à doação pessoal. Sem forçar o paralelismo,
também sabemos que Cristo quis conservar as suas chagas após a
Ressurreição: não era necessário que o fizesse, mas foi muito conveniente[454].
No entanto, pode haver outras respostas, de que nos podemos aproximar
levantando novas questões, seja quanto ao relacionamento dos santos com
Deus seja quanto ao relacionamento entre si. Por exemplo: na vida eterna dos
ressuscitados em Cristo, a relação de comunhão com Deus será igual no
homem e na mulher? Se a doação do ser tem no corpo modos diferentes de se
expressar no homem e na mulher (no homem está mais vincada a doação
propriamente dita, na mulher o acolhimento), não sucederá que na comunhão
com Deus essa diferença também se manifestará? Uma resposta afirmativa
poderia dar pistas sobre a espiritualidade do homem e da mulher.
Também é útil questionar se, na referida intersubjetividade entre os glori-
ficados, haverá alguma diferença na relação com os santos do outro sexo,
excluindo, como é óbvio, qualquer tipo de relacionamento sensual. Não
encontrei qualquer fundamento credível para uma resposta positiva, mas a
minha convicção é afirmativa. Se o sexo é tão determinante na configuração
da pessoa, e se, na vida gloriosa, a identidade pessoal estará definitivamente
vincada, não vejo por que razão a relação entre homens e mulheres não
haverá de manter uma certa diferença face àquela que existirá entre as
pessoas do mesmo sexo – até porque, dessa maneira, cada pessoa será sempre
valorizada no seu ser: poderia uma mulher sentir-se bem, mesmo no mundo
glorioso, se os homens não a tratassem como mulher? Também neste campo
a pergunta não é supérflua. Há, certamente, aspetos no relacionamento entre
pessoas de sexo diferente que não é bom fazer desaparecer. E não se trata
apenas de medidas de prudência básicas, mas sim de algo mais substancial. A
diferença no modo de se relacionar, se for bem cultivada, contribui para
reafirmar a plena identidade pessoal de cada um e reforça a convicção clara
da riqueza de cada sexo e da absoluta necessidade de ambos na vida da
humanidade.
Como se vê, a resposta àquela difícil questão sobre este aspeto pode
oferecer matéria de séria reflexão para a vida diária.
17.7. Aprender do futuro
A meditação sobre o mundo escatológico tem necessariamente
repercussões no nosso dia a dia. Apresento alguns campos onde se deveria
notar a fé na ressurreição.
a) Na liturgia – A oração litúrgica convida-nos a rezar com todo o
nosso ser. Portanto, também com o corpo se pode e deve amar a Deus.
Por isso, na minha opinião, é um erro privar as crianças da consciência
de se poderem dirigir a Deus também com o corpo. Há pais que
parecem ter medo de as ensinar a rezar de joelhos à noite. Não é
certamente um pecado rezar na cama, e é até muito bom prosseguir aí
as orações. Mas retiram-se recursos vitais às crianças quando não se dá
valor a uma posição que as ensina a situar-se com o corpo diante de
Deus. No caso dos adultos, se é certo que não convém de modo
nenhum escorregar para um formalismo (dar mais importância ao
exterior do que ao interior, que é, realmente, a dimensão decisiva) ou
para um mero ritualismo, queremos todavia louvar a Deus com todo o
nosso ser – também com o corpo. Daí a importância de cuidar os
gestos litúrgicos, a voz, as posições. Pensemos na atitude de ajoelhar
durante a Consagração: trata-se de um gesto único, perante a grandeza
do Mistério. Não se trata só de uma expressão da nossa fé; contribui
também para reforçar a consciência de estarmos perante o Mistério. Se
o formalismo é um erro porque despreza o coração e a interioridade,
que é o que o Senhor realmente quer de nós («os verdadeiros
adoradores que adoram a Deus em espírito e verdade», como Jesus
explica à samaritana em Jo 4, 23), o desprezo das formas enquanto
desprezo de uma parte do nosso «eu» é, também ele, um sério erro:
não só porque deixamos de louvar o Senhor com todo o nosso ser, mas
também porque torna menos percetível e eficaz a oração em comum
com outros (afasta-nos da tal perfeita intersubjetividade que existe no
Céu), facilitando um individualismo excessivo. Além do mais, rouba-
nos uma série de recursos que facilitam o diálogo com Deus[455].
Reflitamos com atenção na razão que oferece S. Agostinho para a
tríplice confissão de S. Pedro, após a segunda pesca milagrosa: «À
tríplice negação corresponde a tríplice confissão, para que a língua
não sirva menos ao amor do que ao temor, e não pareça que a
iminência da morte o obrigou a falar mais do que a presença da
vida»[456]. Jesus oferece a Pedro a possibilidade de Lhe manifestar
todo o seu amor (que, evidentemente, já tinha no coração) com a
boca, isto é, com o corpo.
b) No dia a dia – Na homilia de S. Josemaria «Amar o Mundo
Apaixonadamente», lemos: «O sentido cristão autêntico – que
professa a ressurreição de toda a carne – sempre combateu, como é
lógico, a desencarnação, sem receio de ser julgado materialista. É
lícito, portanto, falar de um materialismo cristão, que se opõe
audazmente aos materialismos fechados do espírito. Que são os
Sacramentos – vestígios da Encarnação, como afirmaram os antigos –
senão a mais clara manifestação deste caminho que Deus escolheu
para nos santificar e levar para o Céu? Não vedes que cada
sacramento é o amor de Deus, com toda a sua força criadora e
redentora, que se nos dá servindo-se de meios materiais?»[457]. É uma
pista interessante: o Senhor, para nos santificar, conta com todo o
nosso ser. Habitualmente, concede as suas graças unindo o dom a
elementos materiais, permitindo assim que, através dos sentidos, se
torne mais fácil a nossa aproximação das realidades suprassensíveis.
Os ensinamentos de S. João Paulo II permitem conviver bem melhor
com o «materialismo cristão». Também a matéria deve ser, de algum
modo, «absorvida» na dinâmica da Redenção.
c) Na defesa da vida humana – Desde a conceção, Deus tem um
projeto para o novo ser que, de um modo ou outro, se cumprirá: uma
vez concebido, vai viver eternamente. Deus é o Deus da vida! Vai
possibilitar-lhe que participe da sua vida eterna. Aquele corpo, apesar
de passar pela morte, está feito para a imortalidade. Nós, humanos,
podemos «imitar» Deus, até onde tal é possível, contribuindo para
manter a vida (protegendo a vida, curando, evitando os males, ainda
que só Deus os anule por completo, depois desta vida).
Contemplemos e amemos cada vida humana: o amor deseja para o
outro a eternidade. E o contrário? Quando se elimina uma vida
humana inocente, mesmo que tenha apenas umas horas, faz-se uma
oposição radical ao Deus da vida. A quem se assemelha quem assim
procede? Ao demónio; ele é assassino desde o início, dirá o Senhor.

18.
A importância do celibato

S. João Paulo II dedicou 14 audiências a falar da continência ou celibato


pelo Reino dos Céus. Quais são as questões que se podem levantar sobre este
modo de vida?
Durante o ciclo em que tratámos do homem do «princípio», recordámos
como o Génesis apresenta o próprio Deus a dizer que não era bom para o
homem permanecer só. E, com tão sucinta justificação, criou a mulher.
Optar pelo celibato não será, então, voltar a uma situação que Deus,
objetivamente, não quis que durasse? As palavras de S. Paulo presentes no
capítulo 7 da Primeira Carta aos Coríntios afirmam o que a Igreja depois
ensinará constantemente: que o celibato pelo Reino dos Céus é
objetivamente superior ao casamento. Significa então que o matrimónio, no
fundo, não é uma boa solução? Ou, se o é, tal como lemos no discurso de
Jesus aos fariseus em que repõe o maravilhoso desígnio original sobre o
matrimónio, por que é que o celibato é melhor? Não haverá, nesse juízo,
uma certa desconfiança face à sexualidade?
Antes de penetrarmos nas palavras de S. João Paulo II, vale a pena ler
um sugestivo texto de S. Agostinho, que permite vislumbrar a importância
de se entender bem o ensinamento da Igreja neste tema. Escreveu o santo
bispo
de Hipona:
«Nem nós louvamos nas virgens o serem virgens, mas o facto de estarem consagradas a Deus,
com piedosa continência. Porque – posso dizê-lo sem temeridade – a mulher casada parece-me
mais feliz do que uma virgem com anseios de se casar. Aquela possui o que esta todavia ainda
busca, sobretudo se ainda nem é noiva. Aquela esforça-se para agradar a um único homem, a
quem ela pertence. Esta anda insegura, procurando agradar a muitos, não sabendo a quem
escolher»[458].

Como facilmente se infere destas palavras, não é a mera abstenção a


causa da superioridade do celibato.
É importante advertir, desde já, qual é o entendimento habitual dos
Padres da Igreja e dos autores espirituais das palavras de Jesus sobre o
terceiro grupo de «eunucos». Para eles não corresponde nem à mera
abstenção sexual transitória – própria de um cristão que ainda não se casou
mas que deseja vir a fazê-lo – nem à situação derivada da impossibilidade de
encontrar alguém a quem amar. Em relação a este segundo caso – e por muito
meritório que seja diante de Deus a castidade perfeita vivida em tal situação,
e mesmo que se possa inspirar e apoiar nas palavras do Senhor –, ele não
corresponde exatamente ao que a Igreja entende como «celibato pelo Reino
dos Céus». Poder-se-ia falar, talvez, de uma «castidade pelo Reino», mais do
que de «celibato pelo Reino». A expressão que Jesus usa – «fazer-se eunuco»
– evoca um compromisso voluntária e deliberadamente definitivo, não uma
situação transitória ou involuntariamente sofrida que corresponde aos outros
tipos de «eunucos». S. Tomás de Aquino é bem claro quando trata de explicar
o aspeto essencial da virgindade: «A decisão de se abster, para sempre, de tal
deleite [venéreo] é o elemento formal e aperfeiçoador da virgindade»[459].
Os versículos do Evangelho que guiam as respostas às questões deste
capítulo – e que são o eixo à volta do qual giram as audiências que tratam do
celibato pelo Reino – referem-se às palavras de Jesus proferidas na
continuação da resposta aos fariseus sobre o casamento: «Disseram-Lhe os
discípulos: “Se tal é a condição do homem a respeito de sua mulher, não
convém casar”. Ele respondeu-lhes: “Nem todos compreendem esta
linguagem, mas apenas aqueles a quem isso é dado. Há eunucos que
nasceram assim do seio materno, há os que se tornaram eunucos pela
interferência dos homens, e há aqueles que se fizeram eunucos a si mesmos
pelo Reino dos Céus. Quem puder compreender, compreenda”» (Mt 19, 10-
-12)[460]. Podemos extrair alguns ensinamentos destas extraordinárias palavras
a partir do próprio contexto em que foram proferidas e a partir dos próprios
versículos.
Sobre estes últimos, teremos de deter-nos muito mais, como seria de esperar.
18.1. Ilações sobre o celibato derivadas do contexto em que Jesus fala
Recordemos então o contexto. Como já se referiu, Jesus acaba de
afirmar, perante os fariseus, o valor do matrimónio. Propõe o celibato depois
de fazer notar que se mantém o plano divino para a indissolúvel união entre o
homem e a mulher:
«A questão da continência para o Reino dos Céus não é contraposta ao matrimónio, nem se baseia
num juízo negativo acerca da sua importância. Afinal, Cristo, falando anteriormente sobre a
indissolubilidade do matrimónio, tinha-se referido ao “princípio”, isto é, ao mistério da criação,
indicando assim a primeira e fundamental fonte do seu valor. Por conseguinte, para responder à
pergunta dos discípulos, ou antes, para esclarecer o problema por eles colocado, Cristo recorre a
um outro princípio. Aqueles que, na vida, escolhem a continência “pelo Reino dos Céus” fazem-
no não por um “não ser conveniente casar-se”, ou seja, por um suposto valor negativo do
matrimónio, mas em vista do valor particular ligado a essa escolha que é necessário descobrir
pessoalmente como vocação própria. Por essa razão Cristo diz: “Quem puder compreender,
compreenda” (Mt 19, 12)»[461].
A Igreja sempre entendeu a bondade do matrimónio e até o perigo de
considerar em pouca estima essa indissolúvel união entre os esposos, mesmo
com o pretexto de exaltar o celibato:
«Historicamente sempre sucedeu que à rejeição do matrimónio como bem em si mesmo, como
coisa santa e sacramento, antecedeu em poucos anos a rejeição da virgindade como virtude. Não é,
pois, fruto do acaso que os que mais defenderam a dignidade do matrimónio tenham sido, ao
mesmo tempo, os grandes defensores da virgindade […] Quem defende que o homem tem forças
para amar tão desinteressadamente que renuncie a qualquer prazer sexual – virgindade – defenderá
também que nas relações homem-mulher o amor é capaz de integrar o eros, sem naufragar na
dialética do prazer»[462].

S. Agostinho também afirmou o mesmo de modo bem claro: «Há erro de


um lado e de outro. Há erro em igualar o casamento à virgindade consagrada
e erro em condená-lo»[463].
S. João Paulo II insiste em esclarecer que, nas palavras de Jesus, nada
há que insinue sequer um menor apreço pelo matrimónio, e observa também,
agudamente, que o comentário final dos ouvintes de Jesus às suas palavras
sobre o sacramento denotam um forte sabor utilitarista. «Disseram-Lhe os
discípulos: “Se é essa a situação do homem perante a mulher, não é
conveniente casar-se”»
(Mt 19, 10). Como se dissessem: «não nos convém casar nessas condições tão
rígidas; que será do nosso bem-estar se a esposa se torna menos digna?» É
óbvio que o comentário é de homens, que nem sequer se esforçam por ver as
coisas também na perspetiva da esposa. Ora, prossegue S. João Paulo II, o
modo de responder de Cristo é tal que não pode ser interpretado como uma
espécie de sequência a um tão infeliz comentário. Ninguém pode pensar que
o Senhor estivesse a dizer uma coisa parecida a: «dado que o matrimónio é
tão gravoso e pesado, alguns poderão optar pelo celibato». As palavras do
Senhor não admitem tal interpretação. Ninguém é convidado ao celibato para
se furtar aos trabalhos do matrimónio[464].
«O Mestre afasta-se explicitamente dessa colocação do problema, e por conseguinte, ao falar da
continência “pelo Reino dos Céus”, não indica por que vale a pena, desta maneira, renunciar ao
matrimónio, a fim de que aquele “convém” não soe aos ouvidos dos discípulos com alguma nota
utilitarista. Diz apenas que esta continência é, por vezes, exigida, ou mesmo indispensável, pelo
Reino de Deus. E, com isto, salienta que essa continência constitui, no Reino pregado por Cristo e
para o qual apela, um valor particular em si mesma. Aqueles que a escolhem voluntariamente
devem escolhê-la em consideração por esse valor, e não em resultado de qualquer outro
cálculo»[465].
Sendo este o ensinamento da Igreja, é lógico deduzir que ninguém deve
assumir uma vocação ao celibato para fugir do matrimónio (nem vice-versa).
Aliás, quase no final das catequeses sobre a virgindade, S. João Paulo II
perguntar-se-á como se gera a vocação ao celibato numa pessoa. Na
realidade, a pergunta é formulada de forma mais complexa: «De que modo no
homem, ao qual “foi concedido” o apelo à continência pelo Reino, tal apelo
se forma sobre a base da consciência do significado esponsal do corpo na sua
masculinidade e feminilidade, e, além disso, como fruto dessa consciência?
De que modo se forma, ou antes, se “transforma”?»[466] Por outras palavras:
como se consciencializa um homem – que sabe que o seu corpo, pelo
matrimónio, pode expressar uma doação total a uma mulher – de que não
perde tal capacidade de doação total ao seguir o celibato pelo Reino (ainda
que essa mesma capacidade se expresse de maneira tão distinta à do
matrimónio)?
S. João Paulo II assinala, como contributo para uma resposta que afirma
necessitar de um estudo mais aprofundado, ser essencial que a pessoa faça
duas «descobertas». Por um lado, que seja consciente dessa possibilidade de
doação total, dado que ela se encontra inscrita no seu ser. Em segundo lugar,
a pessoa que renuncia ao matrimónio pelo Reino dos Céus não só não deverá
negar o valor essencial do matrimónio, como deverá entender que «a
continência serve indiretamente para sublinhar aquilo que, na vocação
conjugal, é mais perene e mais profundamente pessoal»[467]. Por outras
palavras, quem opta pelo celibato deverá ter consciência do que há de mais
profundo na entrega matrimonial (isto é, o que está na raiz dessa entrega),
que é a expressão mais corrente do significado esponsal do corpo neste
mundo (mas não esgota esse significado, como já se explicou). Como
veremos, o significado esponsal também está presente na opção pelo celibato,
sendo logicamente diferente o modo de expressão.
Mas não é só do ponto de vista antropológico que é necessário ter
presente o valor do matrimónio para uma correta opção pelo celibato. Do
inteiro discurso com os fariseus concluímos igualmente que o matrimónio é
essencial para o Reino dos Céus. Jesus não contrapõe a motivação para o
celibato – pelo Reino dos Céus – às motivações que conduzem ao
matrimónio, como se nunca tivessem que ver com o Reino de Deus. O que
Cristo propõe é um modo de viver excecional – menos frequente e de
notável importância – que, se for assumido em resposta à elevada motivação
referida, oferece um contributo essencial para o Reino. Isto é, uma vez
reafirmada a necessidade do matrimónio para os desígnios de Deus, e
portanto para a edificação do Reino (se for vivido no sentido originário[468]),
Cristo revela que a opção do celibato pelo Reino tem um valor único nessa
edificação.
Uma das consequências destes ensinamentos é a convicção clara de que
expor a beleza e a grandeza do matrimónio, também no seu contributo de
edificação pelo Reino, não só não impedirá vocações ao celibato como
ajudará a que essa opção seja mais consciente e «voluntária»[469].
Logicamente, é essencial explicar e realçar o valor que o celibato tem em si
mesmo.
Por fim, analisando ainda o contexto das palavras de Jesus, é necessário
uma última observação, repleta de consequências práticas. Trata-se de uma
dedução do que já se referiu sobre a necessidade de não perder de vista o
valor do matrimónio. Cristo acaba de reafirmar aos fariseus a vigência do
plano original do Criador sobre o matrimónio. Isso significa que reafirmou as
dimensões essenciais do ser humano, imprescindíveis para que o matrimónio
se possa concretizar: o homem é um ser dual (homem e mulher) e tem
inscrito na sua natureza o apelo à comunhão de pessoas. O celibato pelo
Reino não pode, portanto, cancelar nenhuma destas verdades. Em concreto, o
homem não pode renunciar, em nenhum caso, à sua condição sexual – até
porque o sexo é constitutivo da pessoa, e não um mero atributo. Por isso,
quem opta pelo celibato nunca renuncia à sua
masculinidade ou feminilidade. E também não poderá negar a sua vocação à
comunhão[470]. Dito por outras palavras: se a continência é de facto «pelo
Reino», tudo o que forem valores «do Reino», tal como a verdade da própria
humanidade, com o seu ser duplo e o apelo à comunhão, não pode ser
anulado.
Vem a propósito recordar as palavras de um documento da Congregação
para a Educação Católica sobre os candidatos ao sacerdócio, que, certamente
se podem estender a outras vocações semelhantes:
«À luz de tal ensinamento, este Dicastério, de acordo com a Congregação para o Culto Divino e a
Disciplina dos Sacramentos, considera necessário afirmar claramente que a Igreja, embora
respeitando profundamente as pessoas em questão, não pode admitir ao Seminário e às Ordens
sacras aqueles que praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais
profundamente radicadas ou apoiam a chamada “cultura gay”.
Estas pessoas encontram-se, de facto, numa situação que obstaculiza gravemente um correto
relacionamento com homens e mulheres. De modo nenhum se hão de transcurar as consequências
negativas que podem derivar da Ordenação de pessoas com tendências homossexuais
profundamente radicadas»[471].

Não se trata «apenas» de evitar os perigos que daí derivam, penosamente


confirmados da forma mais dramática e injusta que se poderia alguma vez
imaginar, mas também do facto de, como explicam as palavras supracitadas,
alterar, no seu âmbito mais profundo, o relacionamento com as pessoas de
um e outro sexo.
Esta não é a única consequência da necessária identidade sexual das
pessoas que optam pelo celibato pelo Reino. Por exemplo, no caso do
sacerdote, o seu relacionamento com as mulheres não pode ser igual ao que
tem com os homens. Seria não respeitar a verdade do seu ser. Com as
mulheres, o sacerdote, consciente da sua condição de homem, deve ser muito
mais respeitoso, sem uma excessiva familiaridade geradora de equívocos (no
melhor dos casos). Penso que teriam sido poupadas muitas situações tristes
com estas noções elementares de antropologia. Como é óbvio, tal não impede
que o sacerdote cultive para com as mulheres um sentimento de fraternal
amizade.
Todos os que tivemos irmãs sabemos bem que há âmbitos do mundo
feminino onde o homem deve ser sumamente cuidadoso. Nem o meu irmão
nem eu entrávamos no quarto das nossas irmãs, cinco e dez anos mais novas,
sem bater à porta. Esse respeito nunca nos tornou menos amigos nem nos
impediu de ter com elas a cumplicidade própria de irmãos.
Permita-me o leitor que acrescente mais um breve testemunho pessoal.
Fui durante mais de 25 anos capelão de residências ou colégios femininos;
apesar de falar com elas praticamente apenas na direção espiritual ou
nalguma aula ocasional, conheci-as bem, sabia do que gostavam e do que não
gostavam, posso dizer que as tinha no coração, quase como irmãs, mas nunca
as confessei em confessionários sem grade. Reconheço ter aprendido a
proceder assim com S. Josemaria Escrivá, que por sua vez o aprendeu de toda
a sabedoria milenar da Igreja (que de modo rudimentar, ou talvez não, tem
bem presente toda a antropologia do ser humano caído e redimido…).
Ao mesmo tempo, consentâneo com a sua condição masculina, é bom
que o sacerdote se mantenha cavalheiro: às vezes compreendo a deferência
para com a condição sacerdotal e devo ceder para agradar a quem assim
procede, mas garanto que, por minha iniciativa, nunca passarei uma porta à
frente de uma senhora.
18.2. Compreensão do celibato à luz das palavras de Jesus aos
fariseus
Uma vez analisado o contexto, passemos agora ao estudo do próprio
texto. Para abrir o apetite do leitor, podemos dizer desde já que será difícil
encontrar palavras que tenham tido tantas consequências na História da
humanidade quanto as que se referem à continência pelo Reino dos Céus e as
que reafirmam a indissolubilidade matrimonial. A revolução ocasionada com
as palavras de Jesus sobre o celibato, confirmadas com a sua própria opção
de vida, é extraordinária. Nos 20 séculos seguintes, milhares de pessoas
optaram por «compreender» com as suas vidas essa opção. Antes de Cristo,
tal não sucedeu.
18.2.1. Eunucos que se fizeram eunucos a si próprios
Comecemos por uma glosa de S. João Paulo II aos três tipos de eunucos
que Cristo refere: «Como se quisesse dizer – sei que tudo o que agora vos
direi despertará uma grande dificuldade na vossa consciência, no vosso modo
de entender o significado do corpo; falar-vos-ei, de facto, da continência e,
sem dúvida, isso será associado por vós ao estado de deficiência física, seja
inata ou adquirida por causa humana. Eu, pela minha parte, quero dizer-vos
que a continência pode também ser voluntária e escolhida pelo homem “pelo
Reino dos Céus”»[472].
Trata-se de uma novidade radical? Na verdade, sim. No Antigo
Testamento, o celibato não é apresentado como um ideal. O casamento e a
fecundidade eram o verdadeiro ideal. Deus tinha prometido a Abraão que
seria pai de uma multidão de povos. Para isso, era necessário que houvesse
mais gente. Além de que o Messias anunciado seria filho de David, estímulo
mais do que suficiente para gerar crianças, sobretudo nos que já eram seus
descendentes e esperavam contribuir para a sua vinda. Como explica S. João
Paulo II, «tudo contribuía a favor do matrimónio, não apenas as razões de
natureza humana, mas também as do Reino de Deus»[473]. Mais difícil de
avaliar é o ambiente que, sobre o tema, surge no período intertestamentário,
mesmo que se possa afirmar que os movimentos nesse sentido se situam à
margem do judaísmo oficial. No entanto, como explicará S. João Paulo II
numa audiência fora do âmbito da teologia do corpo, «nalguns ambientes
judaicos começa-se a manifestar uma orientação positiva para com a
Virgindade»[474]. Por exemplo, na comunidade do Qumran, onde «viviam em
celibato ou limitavam o uso do matrimónio por causa da vida em comum e
para procurar uma maior intimidade com Deus»[475], ou no Egito, onde uma
comunidade de mulheres – as terapeutas – seguiam a espiritualidade essénia e
«dedicavam-se à contemplação e procuravam a sabedoria»[476]. Nessa
audiência, em que S. João Paulo II dissertava em concreto sobre o propósito
de virgindade de Nossa Senhora, refere-se ainda o caso de S. João Batista,
que provavelmente viveu o celibato e era tido em grande estima pelo povo.
Em qualquer caso, não parece ser ousado afirmar que o terceiro tipo de
«eunucos» a que o Senhor se refere – aqueles que optam pelo celibato pelo
Reino dos Céus – não está no horizonte habitual dos ouvintes de Jesus. Por
isso, sem hesitação, S. João Paulo II defende que aquelas são palavras que
vão determinar uma mudança decisiva[477]. As palavras são reforçadas de
forma contundente pelo facto de o Senhor ter escolhido para Si essa
opção[478].
Como podemos entender com maior profundidade as palavras de Jesus
sobre o terceiro tipo de «eunucos»? S. João Paulo II referir-se-á a um aspeto
objetivo das palavras e a uma dimensão subjetiva, que tem que ver com a
motivação de quem opta pelo celibato: a pessoa que faz tal opção deverá
interiorizar e assumir como seus os valores objetivos do celibato.
Comecemos pela análise objetiva do texto. O modo objetivo de nos
debruçarmos sobre o celibato pelo Reino permite entender a resposta de S.
Agostinho a Joviniano, que justificava o idêntico valor do celibato e do
matrimónio apoiado no facto de que alguns casados eram mais santos. S.
Agostinho replica que a comparação deve situar-se no plano axiológico e não
do das pessoas concretas: «Por isto, os que corrompem os bons costumes com
falsas doutrinas, com vã e simulada astúcia dizem ao fiel cristão continente,
que renuncia ao casamento: tu és melhor do que Abraão? Não se perturbe
ouvindo isto, nem ouse dizer que é melhor, mas não arrede do seu propósito
[…] Diga simplesmente: eu não sou melhor do que Abraão; mas é melhor a
castidade dos célibes do que a castidade dos casados»[479]. A resposta ajuda a
entender que existe uma dimensão objetiva do celibato pelo Reino cujo
conteúdo merece ser analisado: independentemente de quem abraçou o
celibato pelo Reino, que valores é que ele expressa?
O terceiro tipo de «eunucos» não deriva nem de uma deficiência física
nem de uma mutilação. O facto de Jesus usar uma palavra com ressonâncias
tão fortes significa que se trata sempre de uma decisão firme, radical e
definitiva, e não de uma situação transitória, como não o é a situação dos
eunucos dos dois primeiros tipos. O homem ou a mulher que adotam o
celibato pelo Reino dos Céus renunciam voluntariamente ao matrimónio e a
tudo o que este envolve. Renunciam, portanto, à geração. A palavra usada
pelo Senhor – «eunucos» – não esconde que se trata de um sacrifício, de uma
renúncia:
«Ele [Jesus] compreendeu a importância deste sacrifício também em relação ao bem que o
matrimónio e a família constituem em si mesmos, por serem de instituição divina. Portanto,
através da forma como pronunciou estas palavras, faz compreender que aquela saída do círculo
do bem, que Ele próprio chama “pelo Reino dos Céus”, está ligada a um certo sacrifício de si
mesmo. Essa saída torna-se o início de sucessivas renúncias e sacrifícios voluntários de si, que
são indispensáveis se a primeira e fundamental escolha for coerente na dimensão de toda a vida
terrena; e só graças a essa coerência aquela escolha é interiormente razoável e não
contraditória»[480].

Portanto, o celibato pelo Reino envolve sempre uma renúncia


consciente. A pessoa que opta pelo celibato deve saber que está a colocar-se
fora do círculo dos bens familiares; diz «não» a um amor humano exclusivo,
a legítimas compensações afetivas, aos prazeres ligados à sexualidade, aos
filhos e a todas as alegrias e penas que eles trazem consigo; deve ser bem
consciente daquilo a que renuncia e, ao mesmo tempo, do imenso bem que é
o matrimónio. E deve tomar a sua decisão por amor ao Reino dos Céus, isto
é, com uma clara finalidade sobrenatural, sem a qual não se poderia falar
deste estilo de vida que Cristo propõe, mesmo que fosse escolhido
voluntariamente[481].
18.2.2. Por amor do Reino dos Céus
Quais são os valores positivos que o celibato abraça?
Fundamentalmente, eles giram em duas órbitas, que necessariamente
confluem. Por um lado, oferece uma particular semelhança com Cristo, que
optou por esse modo de vida, que o propôs de forma explícita e que a ele
associou grandes bens (o cêntuplo e a vida eterna). Por outra parte, o
celibato evoca a situação dos bem-aventurados – no Reino dos Céus todos
viverão o celibato, como estudámos no capítulo anterior – e permite, por
isso, mostrar, já aqui neste mundo (do homem histórico), a força da
Redenção de Cristo; em certo sentido, o celibato adianta o tempo, permitindo
que se vislumbre qual o resultado final do corpo no Reino dos Céus[482].
Como foi dito, estas duas órbitas confluem, porque tal antecipação foi
realizada por Cristo. Com palavras sintéticas de S. João Paulo II, podemos
dizer que «este sinal carismático do “outro mundo” exprime a força e a
dinâmica mais autêntica do mistério “da redenção do corpo”: mistério que
foi inscrito por Cristo na história terrena do homem e profundamente
enraizado por Ele nesta história. Assim, portanto, a continência “por amor do
Reino dos Céus” contém, sobretudo, a marca da semelhança com Cristo,
que na obra da Redenção fez, Ele mesmo, essa escolha “pelo Reino dos
Céus”»[483]. Ou, em palavras de um autor mais recente: «A continência
voluntária antecipa o estado em que nós todos entraremos após a
ressurreição dos corpos. Por esta razão, ela tem uma função de sinal:
testemunha que o Reino de Deus não é apenas uma realidade futura, que
chegará no último dia, mas é já uma realidade atual, visto que em matéria de
sexualidade o homem [que optou pelo celibato] já vive o mistério do Reino
em plenitude, tanto quanto é permitido ao ser de carne que ele é. É este o
sentido do celibato de Cristo, e aqueles que neste aspeto desejam caminhar
em pós de Cristo devem dar o mesmo significado ao seu celibato
pessoal»[484].
Inserida na ótica da semelhança com Cristo, o celibato pelo Reino
assegura uma particular fecundidade espiritual. A Encarnação de Jesus no
seio da sempre Virgem Maria ilustra de modo único a potência dessa
fecundidade. Também Nossa Senhora assumiu o celibato pelo Reino. Afirma
o Papa: «A graça da união hipostática está ligada precisamente com esta,
diria, absoluta plenitude da fecundidade sobrenatural, fecundidade no
Espírito Santo, participada por uma criatura humana, Maria, na ordem da
“continência pelo Reino dos Céus”.
A divina maternidade de Maria é também, em certo sentido, uma
superabundante revelação daquela fecundidade do Espírito Santo à qual o
homem submete o seu espírito quando, livremente, escolhe a continência “no
corpo”: precisamente, a continência “pelo Reino dos Céus”»[485].
Temos assim, na dimensão objetiva do celibato por amor ao Reino, três
elementos que merecem a nossa atenção:
• Peculiar semelhança com (e união a) Cristo;
• Antecipação da virgindade escatológica;
• Fecundidade espiritual.
Detenhamo-nos um pouco mais em cada um destes aspetos.
Quando olhamos para quem optou por este estilo de vida, é possível
vislumbrar diversas facetas da potência da Redenção. Quem vive o celibato
pelo Reino torna-se numa recordação vivencial constante de que Jesus passou
por esta terra; torna-se sinal vivo da mudança que Ele ocasionou quanto ao
valor da própria continência. Ao mesmo tempo, o celibato inspira no povo
cristão uma particular confiança, pois permite entender melhor a potência da
Redenção de Cristo derramada numa pessoa. E, quando se «tocam» os efeitos
da Redenção de um modo tão real, é mais fácil manter a esperança na vitória
de Cristo.
Quem vive o celibato é, ao mesmo tempo e tal como o foi Cristo por
excelência, um anfitrião do Reino dos Céus na sua fase definitiva[486].
Permita-se-me então afirmar, como comparação meramente pessoal, que
viver o celibato é, de algum modo, repetir a subida de Cristo ao Tabor. Aí,
Jesus transfigurou-se diante dos Apóstolos, antecipando por momentos, no
seu Corpo, a vitória que alcançaria com a entrega na Cruz. Com o celibato, o
povo de Deus contempla a luminosa transformação do corpo pela graça de
Deus, sente-se mais próximo da eficácia da Redenção que envolve alguém
que lhe é próximo, e é convidado a escutar de um modo atento aqueles que
subiram tão alto. O celibato é, assim, uma espécie de união à transfiguração
de Cristo, uma vitória antecipada, que fortalece e infunde esperança a todo o
povo cristão.
O celibato pelo Reino infunde ainda nos fiéis uma esperança de
fecundidade espiritual. Quando se participa, por exemplo, numa cerimónia de
ordenação sacerdotal, todos sonham com os frutos apostólicos que a vida
daqueles sacerdotes gerará. A vida de Cristo deixou na Igreja essa marca.
18.2.3. Nem todos compreendem estas palavras: amados para amar
Centremo-nos agora na dimensão subjetiva do celibato, isto é, na
motivação que deve estar presente em quem abraça este modo de vida. A
pessoa deve entender a importância do celibato e deve querê-lo pelo Reino.
S. João Paulo II diz com clareza que,
«se Cristo, na sua afirmação, salienta, antes de mais, a finalidade sobrenatural daquela
continência, fá-lo, não apenas em sentido objetivo, mas também explicitamente subjetivo. Isto é,
indica a necessidade de uma tal motivação que corresponda, adequada e plenamente, à finalidade
objetiva incluída na expressão “pelo Reino dos Céus”. Para alcançar o fim em causa – isto é, para
redescobrir na continência
aquela particular fecundidade espiritual que provém do Espírito Santo – é necessário querê-la e
escolhê-la em virtude de uma fé profunda»[487].

Concretizemos. Que deve entender a pessoa que abraça o celibato? Que


deve querer ao certo? O próprio Cristo afirma que nem todos entendem esta
proposta. Por todo o contexto, parece fácil aceitar que Jesus está a referir um
entendimento prático. Isto é, não há dúvida de que muitos poderão
«entender» teoricamente a importância excecional do celibato pelo Reino,
desde que esta seja bem fundamentada. Mas do que Cristo fala agora é de um
entendimento capaz de orientar a decisão pelo celibato[488]. Expliquemo-lo
com palavras mais simples: qualquer pessoa com fé pode (e deve) entender a
importância do celibato pelo Reino. Bastará, por exemplo, ler o que nos
parágrafos anteriores se referiu acerca do sentido objetivo das palavras de
Jesus, para ficar convencida do seu valor. No entanto, não é apenas este
entendimento que Cristo refere. Trata-se de um entendimento que inclui a
motivação[489]. Isto é, não basta afirmar: «que bonito e que importante é o
celibato… para outros». Cristo fala de um entendimento que é dado – trata-se
de um dom – e que leva a escolher para si o celibato. A pessoa entende que,
assim, se identifica com Cristo de um modo particular e contribui para tornar
presente o dinamismo da Redenção no mundo através do seu próprio corpo:
«Quem quer que escolha, conscientemente, essa continência, escolhe, em
certo sentido, uma particular participação no mistério da redenção [do
corpo]. Quer, de modo particular, completá-la, por assim dizer, na sua
própria carne (cfr. Col 1, 24), encontrando nisso, também, a marca de uma
semelhança com Cristo»[490].
Em resumo, a pessoa «sabe» que pode amar mais, dar-se mais através
dessa opção. E sabe-o porque Cristo, que foi quem mais amou, adotou para si
essa condição. Ao mesmo tempo, entende a renúncia que se dispõe a fazer.
«Sabe» que ela sai fora da órbita do amor matrimonial e «sabe» também que
este amor é o modo normal de contribuir para o Reino dos Céus[491].
Aqueles que abraçam o celibato querem dar-se, amar. Não se trata, como
já se referiu, de uma fuga utilitarista: «como o matrimónio dá muito trabalho,
opto por uma vida sem os sobressaltos que derivam da convivência íntima
com outros». Nada mais afastado do que Cristo propõe. Aquele ou aquela que
vivem o celibato fazem sua a finalidade objetiva do mesmo. Querem uma
especial identificação com Jesus, que escolheu para Si esta vida; desejam
uma vida plena de fecundidade espiritual, confiando que a graça do Senhor
fará com que, através deles, muitos nasçam para a vida cristã. S. Paulo
confirma, com a sua vida, essa fecundidade espiritual: «De facto, ainda que
tenhais dez mil pedagogos em Cristo, não tendes todavia muitos pais, pois fui
eu que vos gerei em Cristo Jesus por meio do Evangelho» (1 Cor 4, 15). A
pessoa que opta pelo celibato quer também que, através da sua opção, muita
gente possa aceitar melhor, como algo real, a condição definitiva dos que
viverão para sempre em Cristo.
Por tudo isto, o desejo de uma particular identificação com Cristo pelo
celibato exclui opções de vida e comportamentos que, não atentando contra o
celibato, poderiam insinuar que se trata, no fundo, de uma opção de pouco
amor. Assim, por exemplo, o então cardeal Ratzinger explicava:
«Creio que, desde este ponto de vista, o celibato adquire o seu grande significado como abandono
de um futuro país terreno e de um ambiente de vida familiar próprio, tornando-se precisamente
indispensável para a entrega a Deus poder permanecer fundamental e ganhar a sua realidade
concreta. Isto significa, bem entendido, que o celibato impõe as suas exigências em relação a
todas as formas de organização de vida. E não pode atingir o seu significado pleno se, para o
resto, seguirmos as regras da propriedade e do jogo da vida comummente aceites. Sobretudo, não
poderá haver estabilidade se não fizermos da nossa proximidade a Deus o centro da nossa
vida»[492].

Será difícil perceber bem o celibato como escolhido pelo Reino dos Céus
se quem o abraça se encontra habitualmente indisponível para os outros e
com forte inclinação para egoístas satisfações meramente pessoais. Assim, do
ponto de vista subjetivo, é interessante considerar que alguém que opta pelo
celibato e se «contenta» com a mera renúncia à conjugalidade, sem se
esforçar por levar a doação pessoal até ao fim, está a atraiçoar a proposta de
Cristo e encarna então a figura do «solteirão» egoísta, que nada tem que ver
com a entrega pelo Reino dos Céus.
Mas importa assinalar algo ainda mais decisivo. É certo que quem opta
pelo celibato quer identificar-se com Cristo. Mas tal identificação não
consiste numa simples imitação de alguém que se admira muito e cujo estilo
de vida se deseja copiar; é muito mais do que isso. A pessoa deseja unir-se de
forma particular a Cristo, entregar todo o seu ser ao Senhor, amá-l’O com um
amor exclusivo. E deseja fazê-lo porque «sabe», de algum modo, que Cristo a
quer amar de um modo «especial», quere-a para Si de um modo esponsal.
É compreensível a resistência de muitos em definir a sua união a Cristo
em termos de relação esponsal. Para vencer essa resistência, torna-se
necessário entender bem o significado esponsal do corpo e entender que,
também pelo corpo, se pode expressar a doação de amor total no celibato, de
um modo diferente ao do casamento. Isto é, o essencial é a doação total a
alguém e a aceitação total desse alguém na vida[493]. A expressão mais comum
e conhecida desse amor reside no casamento, mas o celibato comunga do
elemento essencial do amor-doação. Logicamente, a expressão corporal é
diferente num caso e no outro. Mas é essencial que quem opta pelo celibato
se sinta «possuído» por Cristo – se sinta, de algum modo, d’Ele – e perceba
que Cristo quer ser amado por ele com todo o seu ser. Por isso, mesmo
sabendo que quem vive o celibato deve aprender a dizer «não» a tudo o que
contradiga essa entrega por amor – olhares, afetos do coração, etc. –,
a pessoa em causa fá-lo-á porque percebe que Deus está interessado em
c a d a olhar seu, em cada afeto seu, na atenção que Lhe devota, e no
entusiasmo por Ele e pelas suas obras. Deus quer que Lhe manifestemos o
nosso amor também com expressões corporais.
O próprio S. João Paulo II defende a perspetiva nupcial desse amor:
«E, portanto, naquele apelo para a continência “por amor do Reino dos Céus”, primeiro os
próprios discípulos e, depois, toda a Tradição viva da Igreja, cedo descobrirão o amor com que
Cristo se refere a Si mesmo como Esposo da Igreja, Esposo das almas, às quais Ele se deu a Si
mesmo totalmente, no mistério da sua Páscoa e da Eucaristia.
Deste modo, a continência “por amor do Reino dos Céus”, a opção pela virgindade ou pelo
celibato para toda a vida, tornou-se, na experiência dos discípulos e dos seguidores de Cristo, o
ato de uma resposta particular ao amor do Esposo Divino e, por conseguinte, adquiriu o
significado de um ato de amor esponsal: isto é, de um dom esponsal de si, a fim de retribuir, de
modo particular, o amor esponsal do Redentor»[494].
Na prática, como se traduz, na vida da pessoa, o amor esponsal por
Cristo? Sem dúvida que o Senhor deve ocupar o lugar decisivo no coração
de quem faz tal opção. Estar com Jesus – na Eucaristia, na oração – torna-se
o momento alto do dia. Ao mesmo tempo, e porque se ama o Senhor, essa
opção permite estar de alma e corpo «nas coisas do Senhor», como diz S.
Paulo: «O que está sem mulher cuida das coisas que são do Senhor, como há
de agradar a Deus» (1 Cor 7, 32). S. João Paulo II faz notar que as palavras
de Cristo, no âmbito do diálogo com os fariseus, não concretizam de que
modo a vida de quem vive o celibato contribui decisivamente para o
crescimento do Reino: «Alguma coisa mais ouviremos a este propósito de
Paulo de Tarso (cfr. 1 Cor 7), e o resto será completado pela vida da Igreja no
seu desenvolvimento histórico, guiado pela corrente da autêntica
Tradição»[495].
Sintetizemos a dimensão subjetiva de quem opta pelo celibato. Dissemos
que se trata de um dom pelo qual a pessoa sabe que, com essa escolha, pode
contribuir mais para o crescimento do Reino. Deseja uma profunda e íntima
união a Cristo e sabe que, pelo celibato, manifesta com todo o seu ser –
também com o corpo – uma doação total ao Senhor; é consciente que o
celibato assim assumido é expressão do significado nupcial do seu corpo.
Não se trata de um mero «silêncio» corporal (embora também o inclua). Essa
abstenção expressa uma total e exclusiva entrega do seu ser a Cristo. A
pessoa sabe-se particularmente unida a Ele e procurará agradar-lhe em tudo.
Tem a firme esperança de que essa união dará à sua vida uma particular
fecundidade espiritual, pois permite «gerar filhos» para Deus. Sabe também,
e assim o deseja, que, vivendo de modo exemplar o celibato, a sua vida
transporta a força da Redenção como que «concentrada» no seu corpo, e esse
testemunho é uma fonte de esperança para toda a Igreja. Afinal, não
encontramos o triunfo da Redenção apenas no Além, no final dos tempos,
mas já aqui e agora, na vida concreta de milhares de pessoas. E esse triunfo
transforma realmente as vidas. A pessoa que opta pelo celibato sabe muito
bem (ou devia saber) que não saiu deste mundo, que é alguém que, como
todos os outros, está submetido ao império da tríplice concupiscência, mas,
ao mesmo tempo, confia que as forças da Redenção permitirão a vitória sobre
esse império. E essa vitória regista-se também no corpo. A pessoa sabe ainda
que manifesta o significado esponsal do seu corpo como homem ou mulher
que é: o celibato não anula a sua identidade sexual. Antes pelo contrário:
confirma-a, e confirma que ela deve ser mantida na medida em que é
intrínseca à natureza humana. O homem que opta pelo celibato manifesta o
seu amor a Deus e aos seus semelhantes como homem que é. Também as
mulheres o fazem, como mulheres, potenciando os dotes de feminilidade que
se expressam em toda a sua vida. O homem e a mulher que optam pelo
celibato sabem que são livres com a liberdade do dom, desejam doar-se sem
reservas ao Senhor e, por Ele, aos irmãos.
18.3. Celibato e matrimónio: a complementaridade
Para oferecer uma explicação cabal da excelência do celibato, é
conveniente começar por realçar a complementaridade dos dois tipos de
vocação, o matrimónio e o celibato pelo Reino, na vida da comunidade cristã.
As duas opções de vida iluminam-se mutuamente[496]. Assim, o
casamento recorda, aos que optam pelo celibato cristão, a exclusividade do
amor e a necessidade da permanência no amor para este ser autêntico. A
grande maioria dos que abraçam o celibato tem, de facto, esse modelo nos
seus corações, pois contemplou-o feito vida nas suas famílias, com a
fidelidade diária de seus pais. Logicamente, é o casamento que permite fazer
entender que o celibato pelo Reino é de natureza esponsal:
«Em definitivo, a natureza de um e outro amor é “esponsal”, ou seja, expressa-se através do dom
total de si. Um e outro amor tendem a expressar aquele significado esponsal do corpo que, “desde
o princípio”, se encontra inscrito na própria estrutura pessoal do homem e da mulher»[497].

Portanto, a primeira iluminação que o matrimónio oferece aos que


optam pelo celibato pode ser expressa do seguinte modo: «vocês também
hão de viver uma relação pessoal com Alguém». Não esqueçamos que o
celibato é proposto depois da reafirmação do valor do matrimónio. Isto
significa que Cristo deseja que ele seja entendido depois de reafirmar o
significado esponsal do corpo, que é primariamente captado na vocação
matrimonial, tal como foi estudado na primeira parte das catequeses. Esta
observação é importante porque permite entender que, na base da
compreensão do celibato, não se encontra a referência ao instinto sexual mas
sim a liberdade do dom – que pode ser expressada corporalmente. Se nos
esquecêssemos da liberdade do dom, não entenderíamos a continência pelo
Reino. Isto é, se na base do matrimónio estivesse apenas ou de maneira
principal o instinto, e o matrimónio fosse então uma mera organização desse
instinto, a continência voluntária seria um mero processo repressivo.
Portanto, entender bem o matrimónio ilumina o ângulo através do qual se
deve interpretar a opção pelo celibato. Estas observações não são teóricas,
pois convidam a que, ao propor a vocação ao celibato, se assegure que a
pessoa tem a maturidade para descobrir em si a liberdade do dom e o sentido
esponsal do corpo, expressão dessa liberdade. Traduzido em linguagem
simples, diríamos que a pessoa deve saber que pode ser um dom para outro e
que o corpo tem um papel verdadeiramente importante na expressão dessa
doação: por isso o celibato, que envolve o corpo, é expressão do que se dá e
não tanto do que não se dá; não é tanto um mero não falar; é como o silêncio
da boca que não emite sons mas beija afetuosamente: o corpo de quem vive
o celibato pelo Reino deve expressar a entrega ao seu Senhor. Só com a
consciência da entrega plena responderá plenamente ao convite da
continência pelo Reino. Só assim se está em condições de «entender» que,
sendo renúncia a certos valores, a continência é, sobretudo, uma afirmação
do que há de mais essencial na pessoa. Jamais «afoga» ou «reprime» a
vocação essencial ao amor, o máximo exercício da liberdade que se faz
dom[498].
O matrimónio recorda também que o verdadeiro amor é chamado a ser
fecundo; é até essa fecundidade que, de algum modo, confirma o caráter
único do amor esponsal – um amor que deseja projetar-se em novas vidas[499].
A ausência de fecundidade espiritual (ou, pelo menos, do desejo de
fecundidade) poderia significar uma ausência de amor verdadeiro a Cristo.
Por sua vez, o celibato ajuda a recordar aos que estão casados que o
mais essencial da fecundidade humana é gerar filhos em Cristo; e, assim, os
esposos esmerar-se-ão ainda mais na educação cristã dos filhos[500]. Além
disso, o celibato torna mais explícito aos casados que a sua vocação é
expressão da liberdade do dom[501]. Detenhamo-nos neste último aspeto, ao
qual fizemos uma breve referência nas linhas anteriores.
Há correntes que pretendem explicar o matrimónio com a categoria do
instinto sexual. Seria um modo de organizar esse instinto de forma
socialmente aceite. Em linguagem freudiana, o matrimónio seria uma
«sublimação» do instinto sexual. S. João Paulo II reafirma que uma tal visão,
naturalista, deforma e empequenece o matrimónio. A categoria que permite
entender a fundo o matrimónio é a liberdade do dom. A consciência do
significado esponsal do corpo traduz essa liberdade[502]. Por isso, para que
duas pessoas se casem, a motivação-chave deve ser a de querer entregar-se ao
outro sem reservas e aceitar que o outro entre plenamente na sua vida. Trata-
se de partir para o casamento com a clara consciência da entrega, incluída a
disposição de se sacrificar pelo outro. Não se deve partir nunca para o
casamento com a ideia de adquirir uma espécie de «carta branca» para uma
mútua instrumentalização, nem com a ideia egoísta de cada um ser feliz à
custa do outro. Ora, o celibato pelo Reino, ao tornar mais evidente que a
vocação para amar exige, neste mundo, a disposição de se sacrificar por
quem se ama, pode facilitar uma maior consciência vocacional nos que se
casam. A prova de que assim é encontramo-la na exortação de S. Paulo aos
maridos cristãos.
Qual é o modelo para o qual S. Paulo pede que olhem? É Cristo! «Maridos,
amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela»
(Ef 5, 25).
Em resumo: um dos contributos do celibato pelo Reino para a vida dos
casais deve ser, precisamente, o de acentuar e tornar mais presente que a
pessoa se casa para se entregar ao outro.
18.4. A superioridade do celibato pelo Reino dos Céus
Afirmada a complementaridade, procuremos penetrar um pouco mais nas
razões que levaram a Tradição a insistir na superioridade do celibato pelo
Reino. Insistamos, uma vez mais, que não existe na Igreja qualquer
desvalorização do casamento[503].
Aliás, desde o princípio do capítulo que insistimos neste ponto e
acrescentámos, transcrevendo palavras de S. João Paulo II, que tanto um dom
como o outro estão enraizados no significado esponsal do corpo. Por isso, a
superioridade do celibato não deriva da mera abstenção sexual (pelo menos
enquanto tomada em si mesma). Qualquer pessoa entende que um
«solteirão», mesmo na hipótese de viver plenamente a abstenção sexual, não
tem uma vida mais plena do que um bom esposo e pai de família. Daí a
insistência de S. João Paulo II em que a superioridade objetiva do celibato
pelo Reino – «objetiva» significa que não toma-
mos em conta o modo como cada pessoa responde, mas centramo-nos na
condição como tal, em abstrato – deriva, necessariamente, da expressão «pelo
Reino dos Céus»[504]. De forma honesta, S. João Paulo II reconhece que as
palavras de Jesus que guiam este ciclo não afirmam, «preto no branco», que o
celibato seja superior ao casamento. Jesus afirma que se trata de uma opção
excecional, para alguns a quem é dado entender, e que é importante e
necessária para o seu Reino. É S. Paulo quem dirá explicitamente que, se a
opção pelo matrimónio é boa, a do celibato é melhor (cfr. 1 Cor 7, 38)[505]. De
qualquer forma, se Jesus apresenta a necessidade do celibato pelo Reino – e
Ele próprio a escolheu para a sua vida – é porque a renúncia ao matrimónio,
cuja bondade acabara de reafirmar no diálogo com os fariseus, pode oferecer
um contributo maior para o Reino. Se assim não fosse, para quê renunciar a
algo bom[506]?
Continua a ser necessário explicar por que razão o celibato é superior ao
casamento em termos objetivos, isto é, independentemente de quem opta e de
como vive a sua opção. Karol Wojtyla, em Amor e Responsabilidade
explicava assim a superioridade: «A tendência para a união com Deus-Pessoa
é aqui [na virgindade] mais pronunciada do que no matrimónio; a virgindade
adianta-se, em certo sentido, a esta união no plano da existência temporal e
física da pessoa humana. Nisto precisamente consiste o seu alto valor. O seu
valor não se deve ao facto negativo da renúncia ao matrimónio e à vida
familiar. Muitas vezes falseia-se a essência da virgindade, vendo nela
exclusivamente uma solução imposta pela vida, a sorte de pessoas desiludidas
ou inadaptadas à vida conjugal e familiar»[507]. Retenhamos desta citação as
palavras que sublinhei. S. João Paulo II explicará melhor esta perspetiva no
extenso comentário ao capítulo 7 da Primeira Carta aos Coríntios, onde
aborda o tema em questão. Em concreto, são de grande importância as
seguintes palavras do Apóstolo: «Ora eu quereria que vivêsseis sem
inquietação. O que está sem mulher cuida das coisas que são do Senhor,
como há de agradar a Deus. Mas, quem é casado, cuida das coisas que são do
mundo, como há de dar gosto à sua mulher, e está dividido. Igualmente a
mulher não casada e a virgem cuidam das coisas que são do Senhor, para
serem santas de corpo e de espírito. Mas a que é casada cuida das coisas que
são do mundo, de como agradará ao marido» (1 Cor 7, 32-34).
Existem, pois, segundo estes versículos, dois motivos para o celibato: 1)
a pessoa não casada pode ocupar-se das coisas do Senhor, no fundo, da
Igreja; 2) e, ao mesmo tempo, o que tem no coração é o desejo de agradar ao
Senhor. S. João Paulo II afirma que ambos os motivos – a realidade objetiva
do Reino de Deus e a realidade subjetiva[508] – estão ligados entre si:
«Parece que ambas as partes da expressão paulina se sobrepõem: de facto, a preocupação com o
que “pertence ao Senhor”, com as “coisas que são do Senhor”, deve “agradar ao Senhor”. Por
outro lado, aquele que agrada a Deus não pode fechar-se em si mesmo, mas abre-se ao mundo, a
tudo o que há de ser reconduzido a Cristo. Estes são, evidentemente, apenas dois aspetos da
mesma realidade de Deus e do Seu Reino»[509].

A segunda parte parece ser a mais relevante: quem vive o celibato deseja
exclusivamente agradar ao Senhor, até porque S. Paulo aplica ao celibato o
padrão nupcial. O homem ou a mulher celibatários devem ter para com
Deus uma orientação da sua vida semelhante à que os casados têm com o
cônjuge. S. João Paulo II é explícito neste ponto:
«O “agradar ao Senhor” tem como fundamento o amor. Este fundamento emerge de uma ulterior
comparação: quem não está casado preocupa-se em como agradar a Deus, enquanto o homem
casado deve preocupar-se também em como satisfazer a mulher. Aqui aparece, em certo sentido,
o caráter esponsal da “continência pelo Reino dos Céus”. O homem procura sempre agradar à
pessoa que ama. O “agradar a Deus” não é, portanto, privado deste caráter que distingue a relação
interpessoal dos esposos»[510].

É crucial, tal como já se referiu anteriormente, que quem opta pelo


celibato se aperceba realmente, tanto no momento da decisão como ao longo
do caminho, que não se trata de renunciar ao casamento para «fazer coisas
boas», até porventura muito boas. Uma redução meramente funcional do
celibato acabaria por suscitar dúvidas sobre a sua excelência. Só quem
entende que o que Deus oferece é a possibilidade de manter com Ele uma
relação de amor que abraça todo o ser da pessoa pode compreender de
verdade a proposta para imitar Jesus no celibato. A superioridade do celibato
deriva sobretudo da possibilidade de configurar a relação com o Senhor ao
modo nupcial: o coração de quem assim vive deve dirigir-se diretamente para
o Senhor. Deus deve ocupar, de modo proeminente, os seus pensamentos e
afetos. E até o corpo, mediante a perfeita continência, manifestará a sua total
pertença a Deus. Mesmo tendo em conta que a fundamental relação com
Deus de um batizado é de género filial – somos filhos de Deus –, no caso de
quem assume o celibato são-lhe acrescentados novos elementos de
relacionamento com o Senhor, precisamente de tipo esponsal.
As consequências desse modo de relacionamento com Deus para o dia a
dia de quem recebe e abraça o celibato pelo Reino são infindáveis. Pode
muito bem inspirar-se nos exemplos heróicos dos cônjuges fiéis para
orientar-se no modo de viver o seu amor pelo Senhor. Assim como, por
vezes, um dos cônjuges se queixa de que o outro trabalha pela família mas
parece ter esquecido o que são as atenções do amor, também um sacerdote,
como advertiu S. João Paulo II, pode andar tão absorvido no trabalho do
Senhor que se esqueça do Senhor do trabalho. Ou, pela positiva, assim
como marido e mulher devem ter períodos em que estão a sós para
renovarem o seu amor, também quem opta pelo celibato deve ter bons
momentos com Quem ama. Referindo-se ao celibato dos sacerdotes, Bento
XVI afirmou:
«O sacerdote pode e deve dizer também hoje com o levita: Dominus pars hereditatis meae et
calicis mei. O próprio Deus é a minha parte de terra, o fundamento externo e interno da minha
existência. Esta teocentricidade da existência sacerdotal é necessária precisamente no nosso
mundo totalmente funcionalista, no qual tudo está fundado sobre prestações calculáveis e
verificáveis. O sacerdote deve conhecer verdadeiramente Deus a partir de dentro e assim levá-lo
aos homens: este é o serviço prioritário do qual a humanidade de hoje tem necessidade. Se,
numa vida sacerdotal, se perde esta centralidade de Deus, esvazia-se pouco a pouco também o
zelo do agir. No excesso das coisas externas, falta o centro que dá sentido a tudo e o reconduz à
unidade»[511].

É certo, tal como lemos em cima, que o «agradar o Senhor» tem como
expressão principal ocupar-se das suas coisas. Também isso é amor. Mas a
relação direta com Deus é essencial para não desvirtuar o sentido mais
profundo do celibato pelo Reino. Sem uma amorosa atenção do coração ao
próprio Deus, poder-se-ia dar a imagem de uma certa «burocratização» do
celibato, algo que certamente não é o que Cristo deseja para quem se
entrega a Ele. A pessoa celibatária por amor de Deus deve, portanto, velar
constantemente pelo seu coração, perguntando-se com frequência: «amo
Deus? Os meus melhores afetos são para o Senhor? Penso n’Ele e, por Ele,
nas suas coisas? Quantos atos explícitos de amor fiz hoje? Descanso o
coração na sua presença, em concreto diante da Eucaristia? Quando algum
outro amor se insinua furtivamente no meu coração, dou-me rapidamente
conta de que aquele lugar do coração já está definitivamente ocupado pelo
Senhor?» Eis algumas (entre outras muitas) perguntas possíveis, que, no fim
de contas, se podem resumir nesta: «sou e vivo como uma pessoa
enamorada de Deus?»
É, sobretudo, o amor a Deus que unifica tudo o resto e que nunca deve
estar excluído do coração. Dito por outras palavras: mesmo que uma pessoa
que vive o celibato não esteja, num momento determinado, com as mãos
num trabalho apostólico – porque está a descansar, por exemplo –, não
deixa de ser alguém que pertence a Deus e cujo coração deve estar em Deus.
Se tal não sucedesse, poderia introduzir-se uma divisão interior na pessoa.
Explica-o também S. João Paulo II:
«Paulo observa, no entanto, que o homem ligado pelo vínculo matrimonial “se encontra
dividido” (1 Cor 7, 34) por causa das suas obrigações familiares (cfr. 1 Cor 7, 34). Desta
verificação, parece, por conseguinte, resultar que a pessoa solteira deveria ser caracterizada por
uma integração interior, por uma unificação que lhe permitiria dedicar-se completamente ao
serviço do Reino de Deus em todas as suas dimensões. Esta atitude pressupõe a abstenção do
matrimónio, exclusivamente “pelo Reino dos Céus”, e uma vida dirigida unicamente para essa
finalidade. De outro modo, “a divisão” pode furtivamente entrar também na vida de um solteiro
que, estando privado, por um lado, da vida matrimonial e, por outro, de uma clara finalidade
pela qual deveria renunciar a ela, poderia encontrar-se diante de um certo vazio»[512].

Mas não nos afastemos da pergunta concreta: qual o motivo da


superioridade do celibato? Uma primeira resposta poderia ser: no celibato,
Deus permite ter com Ele um novo tipo de relação, em que todo o ser da
pessoa deve estar primeiramente orientado para Ele – também o corpo,
mediante a continência. Pelo celibato, entendemos que para Deus os nossos
corpos não são indiferentes. Deus também quer que O amemos através do
corpo, com um «silêncio» corporal em determinado âmbito. O estudo antes
realizado sobre a ressurreição dos corpos confirma esta dedução: no mundo
escatológico, Deus quer que O amemos também com os nossos corpos. No
mundo dos novos céus e da nova terra, amaremos Deus de todo o coração,
com toda a nossa natureza humana. De qualquer maneira, é necessário
vincar que o que traduz essa espécie de silêncio corporal é a total pertença a
Deus. A pureza moral expressa, portanto, uma entrega total a Deus[513].
No mesmo capítulo da Primeira Carta aos Coríntios, S. Paulo refere
também a caducidade deste mundo: «Os que usam deste mundo, vivam
como se dele não usassem, porque a figura deste mundo passa» (1 Cor 7,
32). Ainda que o matrimónio possa e deva ser vivido com vista ao
chamamento escatológico, a verdade é que se trata de uma realidade imersa
neste mundo. Sem negar o valor do casamento, o certo é que o celibato traz
a este mundo a condição para a qual todos tendem. Esse é também outro
motivo da sua superioridade:
«E embora o matrimónio esteja ligado à aparência deste mundo que passa e, por isso, imponha,
em certo sentido, a necessidade de “fechar-se” nesta caducidade; a abstenção do matrimónio,
pelo contrário, poderia dizer-se, está livre dessa necessidade. Exatamente por isto, o Apóstolo
declara que “faz melhor” aquele que escolhe a continência. Embora a sua argumentação prossiga
neste caminho, coloca-se todavia, decididamente, em primeiro lugar (como já verificámos),
sobretudo o problema de “agradar ao Senhor” e de “preocupar-se com as coisas do
Senhor”»[514].

S. João Paulo II insiste, uma e outra vez, que S. Paulo não se inclina de
maneira nenhuma para posições maniqueístas quando fala do matrimónio. O
matrimónio não é mau para ele. O Apóstolo é, sim, sumamente realista
quando se refere ao casamento, pois não deixa de dar a entender que nem
tudo é fácil entre os esposos: muitas vezes é «um amor difícil»[515]. Mas,
dentro desse são realismo, S. Paulo entende o casamento, tal como o celibato,
como um dom: «Porque eu quereria que todos fossem como eu; porém, cada
um tem de Deus o seu próprio dom: um de um modo e outro de outro» (1 Cor
7, 7). Ao apresentar-se o panorama vocacional aos cristãos, é essencial
manter esta perspetiva genuinamente evangélica. Não estaria de acordo com
o pensamento de Cristo retirar valor ao matrimónio, até porque essa é a
vocação da maior parte dos cristãos.
S. Josemaria Escrivá escreveu, nos anos 30 do século passado, algo que
pode ajudar-nos a compreender o que aqui se acha em causa: «Ris-te porque
te digo que tens “vocação matrimonial”? Pois é verdade: assim mesmo,
vocação. Pede a São Rafael que te conduza castamente ao termo do
caminho, como a Tobias»[516]. Portanto – nunca é de mais repeti-lo –,
quando se trata de explorar as razões pelas quais o celibato pelo Reino tem
um lugar de excelência nos projetos divinos, de nenhum modo se pode
legitimamente negar ou diminuir o valor da vocação matrimonial. Aliás,
como S. João Paulo II explica na última das audiências dedicadas a este
ciclo, o longo diálogo de Jesus com os fariseus evoca uma autêntica
teologia da esperança. Tanto a indissolubilidade matrimonial bem vivida
como o celibato pelo Reino contribuem para mostrar a eficácia da graça de
Deus, que frutifica de modo tão admirável na natureza humana, tanto num
como no outro caso. E ambas contribuem, à sua maneira, para gerar no
homem a esperança da redenção do corpo[517].
Certamente, o celibato leva a pensar na futura ressurreição do corpo,
mas também traz consigo uma «lufada de ar puro» para todos os que lutam
por dominar as desordens do seu corpo, dos seus olhos, do seu coração. O
contacto com pessoas que optaram por ele e comprovar até que ponto a
Redenção tem eficácia diária na vida de tanta gente é uma fonte de
esperança para as diárias batalhas pela castidade: a Redenção pode, de
facto, derrotar as forças da concupiscência. Diz S. João Paulo II:
«Na sua vida quotidiana, o homem deve retirar do mistério da redenção do corpo a inspiração e
a força para superar o mal que está adormecido em si, sob a forma da tríplice concupiscência. O
homem e a mulher, ligados pelo matrimónio, devem desempenhar diariamente a tarefa da
indissolúvel união daquela aliança que estabeleceram entre si. Mas, também, um homem ou uma
mulher que voluntariamente tenha escolhido a continência pelo Reino dos Céus deve dar
diariamente um testemunho vivo da fidelidade a essa escolha, segundo as diretrizes de Cristo no
Evangelho e as do Apóstolo Paulo na Primeira Carta aos Coríntios. Em cada caso, trata-se da
esperança de cada dia que, na medida dos normais encargos e das dificuldades da vida humana,
ajuda a vencer “o mal com o bem” (Rom 12, 21)»[518].

Concluamos, aprofundando na resposta à questão de como nasce na


pessoa que opta pelo celibato a convicção de que, com esse caminho,
também se expressa o sentido esponsal do corpo[519]. Já lemos acima dois
elementos para essa resposta: ser consciente da própria capacidade de
doação total que o corpo pode expressar e ter bem presente que não se opta
pelo celibato contra o matrimónio, mas afirmando o que de mais essencial há
na vocação matrimonial. Quando uma pessoa que recebeu este dom faz a si
mesma essa pergunta, talvez não consiga responder assim. No entanto, se
olhar com atenção para a sua vida e talvez usar outras palavras, é provável
que chegue a esta conclusão.
A maior parte das pessoas descobre o amor-doação através do
casamento dos pais. Percebe, intuitivamente, que os seus progenitores se
entregaram realmente um ao outro, que têm um só coração e uma só alma.
Quando a pessoa amadurece, considera que essa capacidade de amor
exclusivo também está presente nela, no seu ser. Aliás, na adolescência, é
comum ansiar por um amor «único», ansiar pela «tal» pessoa. Depois (na
pessoa que acabará por abraçar o celibato), será necessário concluir que há
um outro modo de amar, em que o corpo também será envolvido – e de
modo decisivo –, embora com uma expressão bem diferente da do
casamento. Mas a pessoa «saberá» que não se trata de «não amar» ou de
«amar menos». Também lhe é pedida a entrega sem reservas, sem limites,
no futuro; e o corpo pode (mais ainda: deve) participar dessa doação, com
um silêncio cheio de amor, expressão de que se é de – se pertence a –
Deus. A pessoa é toda d’Ele.
Segunda parte

O Sacramento

19.
O projeto de Deus para o matrimónio

A segunda grande parte das catequeses de teologia do corpo está


centrada no matrimónio, em concreto no matrimónio como sacramento.
Como assinalei no capítulo 4, esta segunda parte divide-se em dois ciclos. O
primeiro, que gira à volta dos versículos 21 a 33 do capítulo 5 da Carta de S.
Paulo aos Efésios, estuda o matrimónio em si e aborda, por sua vez, dois
aspetos. S. João Paulo II explica essa divisão: «Primeiro, na dimensão da
Aliança e da graça; e, em seguida, na dimensão do sinal sacramental»[520].
O segundo ciclo desta parte e último das catequeses, que tem como título
«Deu-lhes a Vida como Herança», detém-se em passagens da Humanae Vitae
e versa sobre a fecundidade conjugal.
Suponho que o leitor médio, ao enfrentar-se com os subtítulos de S. João
Paulo II para o primeiro ciclo, talvez não tenha ficado totalmente esclarecido
sobre o que se vai tratar ao certo. É sobre o matrimónio, obviamente, mas
qual é o enfoque pretendido? Antes de formular a grande pergunta deste
capítulo, permita-se-me sugerir alguns sinónimos àqueles subtítulos de S.
João Paulo II.
Falar do matrimónio na dimensão da Aliança e da graça é, penso,
enquadrar o sentido do matrimónio na «epopeia» da Redenção. Que quis
Deus com o matrimónio? Qual é o seu papel na história da Redenção? A
seguir, na dimensão do signo sacramental, interessa estudar o matrimónio na
sua dimensão humana, ou talvez seja melhor dizer como realidade concreta,
isto é, como «acontece» o matrimónio. Para esta segunda secção, S. João
Paulo II comenta de forma lindíssima dois livros do Antigo Testamento: o
Cântico dos Cânticos e o Livro de Tobias. Centrar-nos-emos neles nos
capítulos seguintes.
As audiências gerais da primeira parte deste ciclo, que decorreram entre
28 de julho e 15 de dezembro de 1982 (17 audiências no total) são, na minha
opinião, as mais difíceis de todas. São particularmente densas, e confesso ao
leitor que ainda não fui capaz de as sintetizar ordenadamente nem de extrair
d e l a s todas as consequências. Por isso, limitar-me-ei a alguns dos
ensinamentos dessas ricas intervenções que permitem responder a uma
grande questão: como explicar a muita gente que o matrimónio não é uma
mera «formalidade» («um papel», dizem alguns com desprezo)? Ou, expondo
pela positiva: como explicar que o matrimónio é uma vocação?
A resposta é de urgente atualidade pois, mesmo entre católicos, difundiu-
se a opção pela vida em comum sem um compromisso para toda a vida. Se
em muitos casos seria fácil encontrar no egoísmo irresponsável as razões para
uma tal opção, é também necessário acrescentar que há muitos a quem não
lhes foi bem explicado por que motivo o sacramento do matrimónio tornaria
tão diferente o sentido da vida comum que já assumiram. Vamos tentar
justificar esta afirmação com palavras de S. João Paulo II.
19.1. Efésios 5: algumas considerações
Como já foi referido, o texto-base em que agora nos centramos encontra-
se nos versículos 21 a 33 do capítulo 5 da Carta de S. Paulo aos Efésios.
Esses versículos centram-nos na visão de S. Paulo sobre o matrimónio.
Apesar da sua extensão, convém transcrevê-los, para que o leitor possa seguir
comodamente as explicações sobre o texto:
«Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo. As mulheres sejam submissas aos seus
maridos como ao Senhor, pois o marido é cabeça da mulher, como também Cristo é a Cabeça da
Igreja, Seu corpo, do qual Ele é o Salvador. E como a Igreja está submetida a Cristo, assim
também as mulheres se devem submeter em tudo a seus maridos. Maridos, amai as vossas
mulheres, como também Cristo amou a Igreja e por Ela Se entregou, para a santificar, purificando-
a no banho da água e pela palavra, para a apresentar a Si mesmo toda gloriosa, sem mancha nem
ruga, nem algo semelhante, mas santa e imaculada. Assim devem também os maridos amar as suas
mulheres, como o seu próprio corpo. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. De facto,
ninguém jamais quis mal à própria carne;
pelo contrário, nutre-a e dela cuida, como também Cristo faz com a Igreja; porque somos
membros do Seu corpo. Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, unir-se-á à sua mulher e serão os
dois uma só carne. Grande é este mistério; eu interpreto-o em relação a Cristo e à Igreja. De
qualquer modo, também vós: cada um ame a sua mulher como a si mesmo; e a mulher respeite o
seu marido».

Antes de penetrarmos no texto, e seguindo o raciocínio das catequeses,


convém ter presente a orientação geral da Carta aos Efésios. Não se trata,
como é sabido, de uma carta sobre o matrimónio, mas sim de uma carta sobre
a Redenção e as suas consequências. Desde o início, S. Paulo recorda-nos que
fomos chamados à santidade (cfr. Ef 1, 4) e à filiação divina em Cristo (cfr.
Ef 1, 5). Fomos por Ele redimidos (cfr. Ef 1, 7). Ele, Cristo, é a cabeça da
Igreja, que é seu corpo
(cfr. Ef 1, 22). Nós, os cristãos, somos incorporados nesse corpo pelo
Batismo, e essa incorporação reclama que todo o nosso ser seja reflexo da
nossa nova condição. S. Paulo pede ao Pai que faça crescer em nós o homem
interior (cfr. Ef 3, 16) e exorta a que nos revistamos «do homem novo, criado
segundo Deus na justiça e na santidade verdadeiras. Pelo que, renunciando à
mentira, fale cada um a seu próximo a verdade, pois somos membros uns dos
outros» (Ef 4, 24-25). Ou ainda: «Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos
muito amados. Caminhai no amor, como também Cristo nos amou e se
entregou por nós a Deus, como oferenda e sacrifício de suave odor» (Ef 5, 1-
2).
A incorporação a Cristo não é um mero título: tem repercussões em toda
a vida do cristão. Bastaria ler com um mínimo de atenção a Carta aos Efésios
para desfazer com um sopro a vontade de ser um «cristão não praticante». Tal
conduta não corresponde à nova situação e, quando adotada, causa um dano
objetivo a todo o corpo, que é a Igreja.
Neste amplo contexto é apresentado o texto que se refere ao matrimónio.
Ser cristão afeta todo o nosso ser, toda a nossa vida e, portanto, nos casados,
afeta também o ser «marido» e o ser «esposa». A vida conjugal não se situa
fora da condição do cristão, como se de uma espécie de offshore
espiritual se tratasse, onde cada cônjuge enquanto tal «esquecesse» a sua
condição de batizado.
É deslumbrante comprovar como S. Paulo – que inicia a carta falando do
mistério escondido em Deus (cfr., por exemplo, Ef 3, 8-9) – passa a
concretizar ao pormenor as consequências dessa verdade no dia a dia.
O cristão não pode deixar de situar a sua condição concreta no
gigantesco plano da Redenção, pois a luz de Cristo ilumina toda a realidade e,
em concreto, aquela parcela que agora nos interessa: o amor esponsal. A
Carta aos Efésios mostra como as relações entre marido e mulher ficam
profundamente afetadas e engrandecidas por essa incorporação dos dois no
grande mistério de salvação, revelado e executado em Cristo.
Tanto o marido como a esposa, afirma S. Paulo, hão de procurar a
inspiração do amor pelo outro no próprio Cristo: «Maridos, amai as vossas
mulheres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela» (Ef 5, 25). Sim, o
amor de Cristo pela Igreja serve de modelo ao amor esponsal, fazendo com
que os esposos aprendam a relacionar-se um com o outro em sintonia com
esse amor. Quanto mais «espirituais» forem os esposos, quanto mais
intimidade com Cristo tiverem, melhor saberão o que é amar o cônjuge.
S. João Paulo II tem o cuidado de explicar bem o espinhoso tema da
submissão da mulher, que tanto incomoda algum setor feminino (a ponto de
rejeitar com frequência este belo texto como possível leitura na cerimónia de
casamento). O Pontífice concede que podem existir no texto «influências
masculinas», fruto da cultura do tempo, mas, mesmo assim, as palavras de S.
Paulo não permitem concluir que entre marido e esposa haja uma espécie de
contrato de compra e venda ou que o marido seja «dono» da mulher[521]: entre
os dois há, sim, como que uma dupla submissão, tendo por modelo a
submissão da Igreja a Cristo[522].
Mesmo a palavra «submissão» deve, neste caso, ser destituída de carga
negativa. Sim, a esposa deve submeter-se ao marido e o marido deve amar a
esposa. Até se pode afirmar, como deduz S. João Paulo II, o seguinte:
«Embora os cônjuges devam ser “submissos uns aos outros no temor de Cristo” (isto foi posto em
evidência no primeiro versículo do texto citado: Ef 5, 21-23), todavia de seguida o marido é
sobretudo aquele que ama e a mulher, por sua vez, aquela que é amada. Poder-se-ia mesmo
arriscar a ideia de que a “submissão” da mulher ao marido, entendida no contexto da inteira
passagem da Carta aos Efésios 5, 22-23, signifique sobretudo “provar o amor”. Tanto mais que
esta “submissão” se refere à imagem da submissão da Igreja a Cristo, que certamente consiste em
provar o Seu amor»[523].

Para não fugir, no entanto, à pergunta óbvia («submissão da mulher, sim


ou não?»), acrescento a minha opinião. Como se depreendeu, há dois fatores
a considerar. Por um lado, a submissão deve ser mútua e, por outro, a
submissão não é para ser entendida como uma espécie de vassalagem. Tendo
em conta estes dois elementos, importa reconhecer que o modo de submissão
é, a meu ver, diferente no homem e na mulher. Talvez externamente mais
marcado na mulher, mas não menos exigente no homem. Também ele deve
submeter a sua vida ao serviço da esposa. Não veio Cristo servir-nos a todos
e submeter-se às nossas dificuldades? Que sucede na Eucaristia, onde Cristo
se submete à voz e às mãos do sacerdote? Será assim tão horroroso qualquer
tipo de «submissão»?
19.2. Que quis Deus ao «inventar» o matrimónio?
O matrimónio cristão ilumina o mistério de Cristo e o seu amor pelos
homens e, ao mesmo tempo, recebe uma intensa luz do amor de Cristo pela
Igreja. S. João Paulo II sintetiza assim esta dupla e mútua iluminação:
«A relação esponsal que une os cônjuges, marido e mulher, deve – segundo o autor da Carta aos
Efésios – ajudar-nos a compreender o amor que une Cristo e a Igreja, aquele amor recíproco de
Cristo e da Igreja, em que se realiza o eterno plano divino da salvação do homem. Todavia, o
significado da analogia não se esgota aqui. A analogia usada na Carta aos Efésios, esclarecendo o
mistério da relação entre Cristo e a Igreja, revela, ao mesmo tempo, a verdade essencial sobre o
matrimónio: isto é, que o matrimónio corresponde à vocação dos cristãos só quando reflete o amor
que Cristo-Esposo dá à Igreja Sua Esposa, e que a Igreja (à semelhança da mulher “submetida”,
portanto plenamente doada) procura devolver a Cristo. Este é o amor redentor, salvador, o amor
com que o homem desde a eternidade foi amado por Deus em Cristo: “N’Ele nos escolheu antes
da criação do mundo, para sermos santos e imaculados na sua presença” (Ef 1, 4)»[524].
Ao longo das audiências agora em estudo, S. João Paulo II repete uma
expressão que nos situa perante o desígnio de Deus sobre o matrimónio logo
nos inícios da História. O matrimónio, afirma, é «realização e revelação do
mistério da salvação»[525]. Desde o início, no tempo do Génesis, o matrimónio
já desvelava o plano salvífico.
S. João Paulo II denomina o matrimónio das origens de «sacramento
primordial». Consideramo-lo como sacramento (em sentido lato), pois traz
para o mundo o amor invisível de Deus: um amor sem reservas, incondicional
e fecundo[526], e que devia difundir às gerações posteriores «os frutos
sobrenaturais da eterna eleição do homem por parte do Pai no Filho
eterno»[527].
Já não é tão fácil entender o alcance exato de «primordial». Por um
lado, o próprio S. João Paulo II explica que o matrimónio é sacramento
primordial enquanto «parte integral e, diria, ponto central do “sacramento da
criação”»[528].
O homem foi criado num estado de santidade: o seu corpo refletia essa
santidade, e o homem era consciente da sua união com o Criador; o
matrimónio é, como acabámos de ler, um elemento essencial nesta global
dimensão sacramental dos inícios.
Mas com esta explicação não fica esgotado o sentido de «primordial». S.
João Paulo II faz notar que «todos os sacramentos da Nova Aliança em certo
sentido encontram no matrimónio, como sacramento primordial, o seu
protótipo»[529]. O maior de todos os sacramentos é a Eucaristia, fonte e
cume da vida cristã. O termo «primordial» significa antes «mais antigo» ou
«fundacional»[530].
Que significa ao certo essa expressão? Christopher West afirma que
cada um dos sete sacramentos está imbuído de um caráter nupcial, porque
cada um deles, à sua maneira, nos une «na carne» com Cristo, o nosso
esposo. Quando nós, como esposos, estamos abertos ao dom, os sacramentos
infundem-nos vida divina. Em todos se recebe a doação de Cristo, os
cuidados de Cristo[531]. Bastante sugestivo. Nalguns dos sacramentos é bem
evidente essa interpretação. Assim, a Eucaristia renova a total doação de
Cristo ao Pai até à morte na Cruz pela sua Esposa, a Igreja, e esse Corpo é-
nos doado a cada um na Comunhão. Pelo Batismo, Cristo faz de cada um de
nós o seu corpo. Nos outros sacramentos seria necessário proceder a uma
reflexão mais meticulosa para descobrir neles o modelo nupcial.
Passemos então à fase seguinte do matrimónio. Com a queda original, o
matrimónio perde em parte as suas características nítidas, onde o amor entre
os dois era inquestionável, era um límpido reflexo do amor de Deus; mas,
como
S. João Paulo II afirma,
«no estado de pecaminosidade hereditária do homem, o matrimónio nunca deixou de ser a figura
daquele sacramento, sobre o qual lemos na Carta aos Efésios
(5, 22-33) e que o autor não hesita em definir como “grande mistério”. Não podemos porventura
deduzir que o matrimónio tenha permanecido como plataforma da realização dos eternos
desígnios de Deus, segundo os quais o sacramento da criação tinha aproximado os homens e os
tinha preparado para o sacramento da redenção, introduzindo-os na dimensão da obra da
salvação? A análise da Carta aos Efésios, e em particular do capítulo 5, versículos 22-33, parece
propender para tal conclusão»[532].

Na prática, o que pode significar ter permanecido como «plataforma»


dos desígnios de Deus? O matrimónio, mesmo ferido no seu inicial projeto
grandioso pela dureza do coração humano, preparou para a plena
realização do tal mistério escondido em Deus. Se, em vez de «apenas»
deformado, se tivesse eclipsado da vida social, como poderia depois Cristo
apresentar-se como esposo?
Se durante séculos apenas tivessem permanecido haréns ou uniões de
facto, como se vislumbraria sequer um amor incondicional e total? Que
apoio humano teríamos então para explicar o amor de Deus?
Felizmente, existe uma terceira etapa na história do matrimónio. O cume
dessas realização e revelação (depois da fase inicial antes do pecado original,
e depois do pecado em que o matrimónio permanece como «plataforma» dos
desígnios divinos) dá-se, por fim, na união de Cristo com a Igreja:
«O sacramentum magnum (o texto grego diz: tò mystérion toûto méga estín) da Carta aos Efésios
fala da nova realização do Mistério escondido desde a eternidade em Deus; realização definitiva
do ponto de vista da história terrena da salvação. Fala, além disso, de “torná-lo [o mistério]
visível”: da visibilidade do Invisível»[533].

Agora podemos entender os dois polos de comparação do texto paulino:


o matrimónio do princípio, entre Adão e Eva, e a união entre Cristo e a Igreja.
O casamento dos cristãos participa do amor entre Cristo e a Igreja e retoma o
projeto incluído no matrimónio do princípio. E, porque participa daquele
amor, os cristãos hão de pautar o amor conjugal pelo amor de Cristo pela
Igreja[534].
Bastaria o que foi dito até agora (e que, no entanto, requer explicações
adicionais) para respondermos à pergunta inicial sobre a relevância deste
sacramento. O matrimónio ocupa um lugar ímpar na «epopeia» da
Redenção. Se os esposos cristãos tiverem presente que são chamados a ser a
face visível da união entre Cristo e a Igreja, união essa que é o cume da
realização e da revelação do grande Mistério do amor de Deus pelos
homens, não entenderão nunca o matrimónio como uma mera formalidade.
De facto, não é uma formalidade assumir com agradecimento na própria
vida esse protagonismo querido por Deus para o matrimónio.
Nada disto é pura abstração ou mera teoria, pois é patente como os
cônjuges que assumem o matrimónio como um projeto vocacional de enorme
transcendência, e sabem que o seu amor mútuo é reconfortado pelo amor de
Cristo pela Igreja, cultivam habitualmente um lar fiel e fecundo e oferecem
um modelo visível do que é um amor incondicional, no qual se pode confiar.
Transcrevo um longo texto das audiências, onde se expõe o que até agora
foi explicado:
«É possível deduzir do contexto imediato da Carta aos Efésios que a citação do Livro do Génesis
(cfr. Gen 2, 24) é necessária não tanto para recordar a unidade dos cônjuges, definida “desde o
princípio” na obra da Criação, mas sobretudo para apresentar o mistério de Cristo e da Igreja, do
qual o autor deduz a verdade da unidade dos cônjuges. Este é o ponto mais importante de todo o
texto, em certo sentido, a pedra angular. O autor da Carta aos Efésios encerra nestas palavras tudo
o que disse precedentemente, traçando a analogia e apresentando a semelhança entre a unidade
dos cônjuges e a unidade de Cristo com a Igreja. Referindo as palavras do Livro do Génesis (cfr.
Gen 2, 24), o autor coloca em relevo que as bases dessa analogia devem procurar-se na linha que,
no plano salvífico de Deus, une o matrimónio, como a mais antiga revelação (e “manifestação”)
desse plano no mundo criado, com a revelação e “manifestação” definitiva, isto é, a revelação de
que “Cristo amou a Igreja e Se entregou por Ela” (Ef 5, 25), conferindo ao Seu amor redentor
índole e sentido esponsais. […]
Tratava-se de transmitir não só a “boa nova” sobre a salvação, mas de iniciar ao mesmo tempo a
obra de salvação, como fruto da graça que santifica o homem para a vida eterna na união com
Deus. Precisamente no percurso desta revelação-realização, São Paulo põe em relevo a
continuidade entre a mais antiga aliança que Deus estabeleceu constituindo o matrimónio na
obra da criação, e a Aliança definitiva em que Cristo, depois de amar a Igreja e de se ter
entregado a Si mesmo por ela, se une com ela de modo esponsal, correspondendo à imagem dos
cônjuges.
Esta continuidade da iniciativa salvífica de Deus constitui a base essencial da grande analogia
contida na Carta aos Efésios. A continuidade da iniciativa salvífica de Deus significa a
continuidade e mesmo a identidade do mistério, “grande mistério”, nas diversas fases da sua
revelação – portanto, em certo sentido da sua “manifestação” – e ao mesmo tempo da sua
realização; na fase “mais antiga” do ponto de vista da história do homem e da salvação, e na fase
da “plenitude do tempo” (Gal 4, 4)»[535].

Resumindo o primeiro dos três grandes temas a tocar neste capítulo,


afirmamos que o matrimónio sempre fez parte dos planos de Deus, não só
como imagem (revelação) do amor de Deus pelo homem, mas também como
realização, no tempo, desse amor. No princípio, recordemo-lo, Adão e Eva
amavam-se também com o amor do próprio Deus. E cada um deles descobria
no amor do outro o amor do Criador por ele. É impressionante considerar que
Deus, apesar das vicissitudes do casamento ao longo da História, não
renunciou ao «projeto matrimonial» para iluminar o amor com que nos ama.
19.3. O amor redentor
Um segundo grande tema que S. João Paulo II foca e que contribui para
esclarecer a grande questão do capítulo é o do amor redentor de Cristo pela
Igreja. O autor das catequeses, como já referi atrás, assinala em múltiplas
ocasiões, junto ao significado esponsal do corpo, o seu significado redentor:
Cristo ama a sua Igreja com um amor redentor. Que significa ao certo o
«amor redentor»? Adiantemos que anda ligado sobretudo com a remissão dos
pecados[536]. Convém, no entanto, contemplar à luz da Carta aos Efésios esta
dimensão do amor de Cristo.
Como é sabido, no texto de Efésios a Igreja é apresentada como esposa
de Cristo e corpo de Cristo. As duas comparações são complementares e
necessárias. A primeira reforça o facto de haver uma «bi-subjetividade»[537]
(Cristo e a Igreja) que é possível identificar sem nenhuma confusão, apesar
da íntima união entre Cristo e a Igreja; a segunda ilustra a íntima união de
Cristo com a Igreja, e a identificação de Jesus com os seus membros (tanto a
cabeça como o corpo são de um mesmo sujeito). As duas analogias são
importantes para entender a dimensão redentora do amor esponsal de Cristo,
pela qual Cristo limpa, purifica e eleva a Igreja. Da cabeça brota a graça
redentora para o corpo.
Ora, a verdade é que, em Efésios 5, S. Paulo aplica a imagem de «Cristo
cabeça» ao matrimónio cristão. Essa comparação realça a força da unidade
que há entre os esposos, não sendo, porém, uma unidade física que anule o
facto de serem dois, mas sim uma unidade intencional, em palavras de S.
João Paulo II:
«Se os maridos devem amar as suas esposas como o seu próprio corpo, isto significa que aquela
uni-subjetividade se funda sobre a base da bi-subjetividade, e não tem por isso caráter real, mas
intencional: o corpo da mulher não é o próprio corpo do marido, mas deve ser amado como o
próprio corpo. Trata-se portanto da unidade, não no sentido ontológico, mas sim moral: da
unidade por amor»[538].

No entanto, a analogia da cabeça e do corpo reforça a verdade e a


intensidade da união: «Assim devem também os maridos amar as suas
mulheres, como o seu próprio corpo. Quem ama a sua mulher, ama-se a si
mesmo. De facto, ninguém jamais quis mal à própria carne; pelo contrário,
nutre-a e dela cuida, como também Cristo faz com a Igreja» (Ef 5, 28-29).
Sobre o amor redentor de Cristo pela Igreja ninguém duvida. Mas será que o
«amor redentor» se aplica à relação entre os esposos? Isto é, os esposos
devem amar-se também com um amor que redime e eleva, como o de Cristo
pela Igreja? A resposta, de algum modo (em sentido análogo), é afirmativa.
Eis o que afirma S. João Paulo II:
«A analogia usada na Carta aos Efésios, esclarecendo o mistério da relação entre Cristo e a
Igreja, revela, ao mesmo tempo, a verdade essencial sobre o matrimónio: isto é, que o
matrimónio corresponde à vocação dos cristãos só quando reflete o amor que Cristo-Esposo dá à
Igreja, Sua Esposa, e que a Igreja (à semelhança da mulher “submetida”, portanto plenamente
doada) procura devolver a Cristo. Este é o amor redentor, salvador, o amor com que o homem
desde a eternidade foi amado por Deus em Cristo […] O matrimónio corresponde à vocação dos
cristãos enquanto cônjuges apenas se, precisamente, aquele amor nele se espelha e se
realiza»[539].

Afirmámos acima que S. João Paulo II refere um significado redentor do


corpo junto ao significado esponsal. Independentemente da exata
compreensão de como se articulam ambos os significados, é patente, no
pensamento de
S. João Paulo II, que a união de Cristo com a Igreja não só assume a estrutura
do matrimónio primordial (em que o corpo tem um significado esponsal),
como o refaz em certo sentido, com as forças da Redenção. Assim, é à luz da
união entre Cristo e a Igreja que os esposos devem modelar o seu casamento,
e não apenas à luz da união de Adão e Eva.
Penso que podemos deduzir, das palavras do Pontífice, aplicações
práticas para os cristãos casados. Ao participarem do amor que une Cristo e a
Igreja, participam também, de certo modo, da dimensão redentora do amor.
Cada um dos cônjuges deve velar pela santidade do outro. Sim, é certo que se
devem entregar e aceitar sem reservas, em sintonia com o significado
esponsal dos seus corpos; mas devem considerar que, pelo facto de serem
cristãos, o que têm para entregar ao outro é mais do que se não fossem
cristãos. O significado esponsal foi elevado pelo significado redentor do
corpo (foi redimido por Cristo), de modo que o que há para dar ao outro é
muito mais do que a mera doação natural, e o que do outro se recebe é
também muito mais. Pelo amor, cada um deles é chamado a corresponder
com uma entrega que se assemelha à de Cristo, que nos abraça e nos purifica.
Marido e mulher não podem perder de vista que Deus conta com cada um
para santificar o outro, isto é, para o fazer amar mais a Deus e ao próximo.
Leiamos um trecho de S. João Paulo II que se situa (de modo algo
abstrato, é certo) na linha destas considerações:
«Mediante o matrimónio como sacramento (como um dos sacramentos da Igreja) ambas as
dimensões do amor, a esponsal e a redentora, juntamente com a graça do sacramento, penetram
na vida dos cônjuges. O significado esponsal do corpo na sua masculinidade e feminilidade, que
se manifestou pela primeira vez no mistério da criação no quadro da inocência original do homem,
está ligado, na imagem da Carta aos Efésios, com o significado redentor, e deste modo fica
confirmado e, em certo sentido, “novamente criado”»[540].

Portanto, no presente, não é possível entender o plano de Deus para o


matrimónio sem a referência à união e ao amor entre Cristo e a Igreja. Aliás,
em sentido mais amplo, não é possível entender o homem sem olhar para o
Redentor.
É Ele e só Ele, como não se cansou de repetir S. João Paulo II durante o seu
Pontificado, quem mostra o homem ao próprio homem[541]. Assim como não
basta olhar para o Modelo para o seguirmos – é necessário unirmo-nos a Ele
mediante a fé e os sacramentos –, assim também não é possível que um
homem e uma mulher cristãos se unam realmente – e sobretudo vivam de
acordo com o novo padrão de amor – sem penetrarem nesse amor mediante o
sacramento.
Desenvolver mais em que consiste a influência redentora no significado
esponsal seria um tema bem interessante. Por agora, contentemo-nos em reler
uma bela e sugestiva síntese, presente na Familiaris Consortio:
«A comunhão entre Deus e os homens encontra o seu definitivo cumprimento em Jesus Cristo, o
Esposo que ama e se doa como Salvador da humanidade, unindo-a a Si como seu corpo.
Ele revela a verdade originária do matrimónio, a verdade do “princípio” e, libertando o homem
da dureza do seu coração, torna-o capaz de a realizar inteiramente.
Esta revelação chega à sua definitiva plenitude no dom do amor que o Verbo de Deus faz à
humanidade, assumindo a natureza humana, e no sacrifício que Jesus Cristo faz de si mesmo
sobre a Cruz pela sua Esposa, a Igreja. Neste sacrifício descobre-se inteiramente aquele desígnio
que Deus imprimiu na humanidade do homem e da mulher, desde a sua criação; o matrimónio
dos batizados torna-se assim o símbolo real da Nova e Eterna Aliança, decretada no Sangue de
Cristo. O Espírito, que o Senhor infunde, doa um coração novo e torna o homem e a mulher
capazes de se amarem, como Cristo nos amou. O amor conjugal atinge aquela plenitude para a
qual está interiormente ordenado: a caridade conjugal, que é o modo próprio e específico com
que os esposos participam e são chamados a viver a mesma caridade de Cristo que se doa sobre a
Cruz»[542].

Estas palavras ajudam a entender que o novo significado esponsal, já


imbuído da dimensão redentora, permite um amor verdadeiro, disposto a ir
até às últimas consequências, como o de Cristo na Cruz. Talvez se possa
afirmar que a união nupcial de Cristo com a Igreja não só reassume o
matrimónio da Criação como o dota de um sentido redentor que os esposos
cristãos não devem ignorar. Na minha opinião, a dimensão redentora
significa que o amor foi purificado; elevado pela graça, tornou-se capaz de
entrega total e também – no meu modo de interpretar, insisto – capaz de
facilitar a santificação do outro. A consciência do significado redentor nos
seus corpos facilitará aos esposos encarar o seu matrimónio como uma
vocação, um chamamento de Cristo a ocuparem a sua missão singular dentro
da Igreja.
Para que se entenda bem o sentido redentor do corpo, importa
acrescentar que S. João Paulo II retoma, nestas catequeses, o tema do celibato
para explicar como naqueles que por ele optaram em resposta ao chamamento
divino também estão presentes a dimensão redentora e a esponsal, numa
proporção idêntica à do próprio Cristo, pois foi essa a opção de vida do
Senhor[543].
Penso seguir o pensamento do Papa ao afirmar que, no celibato pelo
Reino e em comparação com o matrimónio, a dimensão redentora é mais
pronunciada. Por um lado, no sentido passivo, isto é, na graça recebida que
fortalece o significado esponsal do corpo para se manifestar de um modo
singular (o corpo é redimido para poder amar de um modo semelhante ao de
Cristo). Por outro lado, também no sentido ativo é mais acentuado, dada a
possibilidade de quem vive o celibato pelo Reino contribuir de modo
particular para a santificação de outros, se por eles se entregar ao Senhor
(com a totalidade da vida, corpo e alma, entregue a Deus, a pessoa ajuda a
santificar).
Com uma visão que se vai ampliando, S. João Paulo II faz notar que os
ensinamentos da Carta aos Efésios ensinam-nos a necessidade de chegar «ao
mistério da Criação através da realidade do mistério da Redenção»[544]. A
carta centra-se sobretudo na realidade do matrimónio, mas a «união de
Cristo com a Igreja consente-nos compreender de que modo o significado
esponsal do corpo se completa com o significado redentor, e isto nos diversos
caminhos da vida e nas diversas situações: não apenas no matrimónio ou na
“continência” (seja virgindade ou celibato), mas também, por exemplo, no
multiforme sofrimento humano, aliás, nos próprios nascimento e morte do
homem»[545].
Portanto, a união de Cristo com a Igreja ajuda a entender a união do
significado esponsal redentor, e ajuda a constatar como ambos estão
presentes nas distintas situações da vida do homem: não só no matrimónio e
na continência, mas também no sofrimento e na morte.
Como se manifesta, por exemplo, no sofrimento? Qualquer cristão pode
sofrer unindo-se aos sofrimentos redentores de Cristo e, assim, fazer de si
próprio uma doação a Deus. Pensemos num doente acamado, cheio de
feridas, que se une a Jesus beijando ou apertando um crucifixo, sem queixas
supérfluas, pensando na eficácia santificadora da oferenda da sua vida unida à
de Cristo. Também nele se confirma o significado esponsal do corpo, que se
acha impregnado pelo significado redentor, pois está unido ao sacrifício do
Salvador e contribui para aplicar os méritos da Redenção de Cristo à
Igreja[546].
O facto é que a dimensão redentora está de algum modo presente (ou
pode estar) nas diferentes realidades humanas que Cristo «tocou»: no
matrimónio cristão (que, de certo modo, ilumina a forma como assume e
eleva as outras realidades), no celibato, no sofrimento (em que o homem
pode amar com o amor e a entrega de Cristo, participando nesse amor) e até
na morte (onde o homem pode identificar-se com o Redentor, dando a esse
momento único um significado novo).
Em qualquer caso, como vimos, a importância do matrimónio na própria
Redenção é essencial. É uma realidade que nos oferece a chave para nos
aproximarmos do amor de Cristo pela humanidade, a quem Cristo convida a
unir-se com Ele para sempre. É como se o matrimónio fosse a «palavra» que
Deus criou para ilustrar de que modo se quer unir connosco: com um amor
perpétuo, fiel, fecundo… e redentor – que eleva a nossa possível resposta de
amor, de modo a poder ser, também ela, perpétua, fiel, fecunda e cooperadora
da santidade dos outros. Penso também ser legítimo concluir que
descobrimos o significado redentor do corpo em Cristo, no seu sacrifício de
amor pela Igreja, a quem santifica. Não parece ser possível entendê-lo sem o
significado esponsal do corpo, pois assume-o e eleva-o para uma outra
dimensão do amor.
19.4. O ethos que deriva do matrimónio restaurado por Cristo
O terceiro grande tema em torno da grandeza e da especificidade do
matrimónio tem que ver com as exigências éticas que derivam do matrimónio
renovado por Cristo. Para isso, convém que, como S. João Paulo II,
releiamos, à luz da Carta aos Efésios, as três passagens do Evangelho que
constituem o tríptico da primeira parte das catequeses.
a) Releitura do diálogo com os fariseus sobre o matrimónio
do princípio: a indissolubilidade é «formadora»
Ao recordar a conversa de Cristo com os fariseus sobre a
indissolubilidade do matrimónio, o Pontífice faz notar o seguinte:
«Se Cristo […] confirma o matrimónio como sacramento instituído pelo Criador “no princípio”
–, se, em conformidade com isto, exige a sua indissolubilidade – com isto mesmo abre o
matrimónio à ação salvífica de Deus, às forças que brotam da “redenção do corpo” e que ajudam
a superar as consequências do pecado e a construir a unidade do homem e da mulher segundo o
eterno desígnio do Criador»[547].
Por outras palavras: pelo facto de restabelecer o plano originário de Deus
quanto à indissolubilidade do matrimónio, Cristo não estabelece apenas uma
exigência radical, mas confirma também um novo dom, fruto da Redenção,
que modificará o homem de tal maneira que a dureza de coração que tinha
aberto (ou talvez seja melhor escrever «escancarado») a porta ao divórcio
poderá ser, por fim, curada. Essa cura é fruto da Redenção, que, tal como já
se referiu em capítulos anteriores, traz consigo um novo ethos, uma nova
atitude moral, que inclui certamente a defesa da indissolubilidade mas é bem
mais ampla[548].
O novo ethos da Redenção permite entender a enorme dignidade do ser
humano e do corpo, e é esta dignidade que está na raiz da indissolubilidade.
Porque o homem foi redimido, porque o seu corpo também foi redimido, o
matrimónio restabelecido por Cristo reclama que as pessoas sejam amadas de
acordo com o indefetível amor de Cristo pela Igreja[549]. Ao restabelecer a
indissolubilidade, Cristo não apenas repropõe a exigência do plano divino das
origens como certifica também, indiretamente, que o amor humano e a
dignidade do corpo «sobem» para níveis muito mais elevados do que os de
até então.
b) Releitura do apelo do Sermão da Montanha ao olhar puro:
exigências ao alcance do homem histórico
Na exortação dirigida por Cristo no Sermão da Montanha para que não
se olhe a mulher com luxúria, não há uma referência explícita ao matrimónio;
mas seria porventura possível o apelo ao coração do homem sem essa
referência? Como estudámos em capítulos anteriores, Cristo quer que nem
mesmo com o mais íntimo desejo ou com o mais leve olhar o homem
instrumentalize a mulher, nem sequer a própria esposa. Esta exigência ética
tem sentido porque o olhar ou o desejo próprios da atração sexual devem
sempre estar orientados para o
(e enquadrados no) marco da entrega e aceitação totais da mulher, que se
verifica (ou se deve verificar) no matrimónio. Só dentro desta perspetiva o
desejo está incluído numa atitude de amor-doação, a única que respeita as
dignidades própria e alheia. E só reconhecendo a grandeza dessa perspetiva
se entende o empobrecimento que é para o homem não se importar de usar a
mulher com o seu olhar ou o consentimento do seu desejo sensual.
Assim, escreve S. João Paulo II:
«Embora elas [as palavras de Cristo no Sermão da Montanha] não se refiram diretamente ao
matrimónio como sacramento, não é difícil constatar que elas alcançam o seu próprio e pleno
significado na relação com o sacramento: quer o primordial, que está unido com o mistério da
Criação, quer aquele em que o homem “histórico”, depois do pecado e em consequência da sua
pecaminosidade hereditária, deve encontrar de novo a dignidade e a santidade da união conjugal
“no corpo”, com base no mistério da Redenção»[550].

Portanto, o matrimónio recriado por Cristo é um dom, mas também é


«formador» de atitudes. Aliás, esta é uma perspetiva que mereceria a pena ser
desenvolvida: procurar fundamentar as exigências gerais da castidade a partir
da realidade do matrimónio. O que S. João Paulo II refere é altamente
sugestivo: partindo da indissolubilidade matrimonial, torna-se muito mais
compreensível a necessidade de respeitar a mulher (e o homem).
Citemos, ainda, outras palavras esclarecedoras de S. João Paulo II:
«O matrimónio – como sacramento nascido do mistério da Redenção e renascido, em certo
sentido, no amor esponsal de Cristo e da Igreja – é uma eficaz expressão do poder salvífico de
Deus, que realiza o seu eterno desígnio mesmo depois do pecado e apesar da tríplice
concupiscência, escondida no coração de cada homem, varão e mulher. Como expressão
sacramental daquele poder salvífico, o matrimónio é também uma exortação a dominar a
concupiscência (como diz Cristo no Sermão da Montanha). Fruto deste domínio é a unidade e a
indissolubilidade do matrimónio, e também o aprofundado sentido da dignidade da mulher no
coração do homem (como também da dignidade do homem no coração da mulher), quer na
convivência conjugal, quer em todos os outros âmbitos das relações recíprocas»[551].

Simplifiquemos estas afirmações. Uma das passagens do Evangelho que


melhor delineia a grandeza da dignidade do ser humano, homem e mulher, é
o diálogo com os fariseus em que Jesus repõe a indissolubilidade perdida,
retomando o projeto inicial sobre o matrimónio. Mas, de alguma maneira, Ele
assume-o em primeira pessoa, dado que Ele é o Esposo. Desde essa sua
condição de Redentor e Esposo da Igreja, Ele oferece à humanidade a
possibilidade de o homem e a mulher se poderem unir, à imagem dessa
perpétua união de Deus com a humanidade. Portanto, Cristo afirma que tal
projeto é possível para o homem da concupiscência, quando permeado pelas
forças da Redenção que fluem do Seu abraço amoroso à Igreja. Então, à luz
dessa grande dignidade que permite ao homem amar assim, dominando a
concupiscência que o poderia levar à instrumentalização do outro e do seu
próprio corpo, faz ainda mais sentido a exortação do Sermão da Montanha,
que se configura por isso como um apelo ao coração do homem redimido:
«vocês podem mesmo não se deixar dominar pela concupiscência! Podem
olhar para uma mulher sem a instrumentalizar! Podem desejar estar com a
vossa esposa sem a instrumentalizar!». Os casamentos que vivem de acordo
com essa medida alta da graça concedida à humanidade são uma fonte de
esperança para todos, e são também uma constante lembrança sobre o sentido
da atração sexual: ou está integrada num verdadeiro amor, ou é uma mera
instrumentalização de outros.
c) Releitura do diálogo com os saduceus: motivo de esperança
As palavras seguintes, que introduzem na releitura da conversa de Cristo
com os saduceus, acrescentam um argumento à importância do matrimónio
cristão:
«O matrimónio, como sacramento primordial e como sacramento nascido do mistério da redenção
do corpo, do amor esponsal de Cristo e da Igreja, “vem do Pai”. Não é “do mundo”, mas sim “do
Pai”. Por conseguinte, também o matrimónio, como sacramento, constitui a base da esperança
para a pessoa, ou seja, para o homem e para a mulher, para os pais e os filhos, para as gerações
humanas. Por um lado, de facto, “o mundo passa e a sua concupiscência”, por outro, “aquele que
faz a vontade de Deus permanece eternamente” (1 Jo 2, 17). Com o matrimónio, como
sacramento, está ligada a origem do homem no mundo, e nele está também inscrito o seu futuro, e
isto não só nas dimensões históricas mas também nas escatológicas»[552].

Mesmo que, como vimos, o matrimónio pertença à realidade deste


mundo e não do mundo da ressurreição, no entanto ele tem um papel crucial
para o mundo escatológico, dado que, por ele, vêm ao mundo os seres
chamados a viver eternamente: «O matrimónio dado ao homem como graça,
como “dom” destinado por Deus precisamente aos cônjuges, e ao mesmo
tempo a eles proporcionado como ethos – aquele matrimónio sacramental
completa-se e realiza-se na perspetiva da esperança escatológica»[553].
Poder-se-ia objetar que qualquer criança que vem ao mundo tem o direito
legítimo de esperar tal futuro, mesmo sem ser fruto de um matrimónio. É
certo, e o Papa nada afirma contra isso. Apenas acentua que o matrimónio,
que é explicitamente querido por Deus, mesmo que em si mesmo não subsista
no mundo da ressurreição, leva inscrito nos seus genes que o seu serviço
fundamental é gerar novas vidas para a vida eterna.
Também nesta perspetiva, o matrimónio é formador de um novo ethos.
Os cônjuges cristãos, conhecedores desta perspetiva escatológica, veem
engrandecida a sua vocação matrimonial (colaboram com Deus, para que
novas pessoas vivam eternamente no Seu Amor); ela ajuda-os a perceber
melhor que o amor esponsal fiel e indissolúvel é essencial para tão excelsa
missão: não basta que os filhos se formem, tenham um trabalho e se casem;
os pais, enquanto puderem, muitas vezes «apenas» com a oração, devem
velar para que os filhos queiram caminhar na direção da vida eterna. O
sacramento do matrimónio confere a graça para os esposos viverem bem essa
missão.
Tenho a esperança de que estes breves apontamentos, sobre umas
audiências que importa reler várias vezes, possam dar pistas para que os
casais católicos percebam um pouco melhor que é mesmo essencial casar-se
na Igreja.
O Papa Francisco concluiu uma das suas audiências sobre a família com
uma bela sugestão, que sintetiza o desejo de todos os que entendem a beleza
do sacramento do matrimónio: «Caros irmãos e irmãs, não tenhamos medo de
convidar Jesus para as bodas, de o convidar para vir à nossa casa, a fim de
permanecer ao nosso lado e preservar a família. E não tenhamos receio de
convidar também a sua Mãe Maria! Quando se casam “no Senhor”, os
cristãos são transformados num sinal eficaz do amor de Deus»[554]. Convidar
Jesus e Maria para o casamento…
Um belo resumo.

20.
Reler a linguagem do corpo na verdade

Todos os que procuramos viver o cristianismo sabemos bem que nos


encontramos sempre a caminho. Há tropeços, imperfeições e pecados dos
quais nos devemos arrepender diante de Deus. Não nos conformamos com os
desvios, mas tão-pouco desesperamos, porque sabemos que a graça de Deus
nos levará ao arrependimento e a ir vencendo no amor, mesmo que
lentamente e sem um curriculum espiritual particularmente brilhante (não é o
que se procura). Porém, algo radicalmente distinto é a proposta de
compaginar o seguimento de Cristo com atitudes inequivocamente opostas ao
seu amor. Por exemplo, quem diz que ama muito Jesus mas depois não
dispensa uma boa bebedeira ao fim de semana ou uma concessão à
sensualidade, seja ela virtual ou física. Uma desculpa que é costume
apresentar para justificar certos comportamentos imorais é a de que, noutros
campos da vida, as pessoas em causa até são (ou dizem ser) exemplares:
trabalham bem, rezam, dedicam tempo a certas ações de voluntariado…
Nesse contexto global, será assim tão relevante uma pequena «escorregadela»
aqui e acolá? Essas cedências não formarão parte de uma vida equilibrada?
Não é fácil desmascarar a mesquinhez e o egoísmo de tais atitudes, e
mostrar a enorme malícia de quem opta voluntariamente (e decide continuar a
proceder assim) por cadenciadas ações imorais, programadas e assumidas
como fazendo parte da vida, mesmo que espaçadas no tempo. Quando sou
confrontado com atitudes desta índole, depois de procurar explicar, até à
exaustão, as razões pelas quais a pessoa deve mudar, depois de a tentar
entusiasmar com as luzes e graças que receberia caso decidisse «render-se»
perante o Senhor neste ou naquele aspeto, depois de lhe apresentar
testemunhos de santos… sem nada conseguir (pelo menos aparentemente),
costumo acrescentar: «portanto, quando estiveres casado(a) ficarás
satisfeito(a) se a tua esposa (marido) te for fiel 29 dias por mês e, ao 30.º, se
entregar a outro(a)! No fundo, é apenas uma pequena percentagem da
dedicação que se vê afetada… Não te importarás, não é verdade?» Nunca
encontrei ninguém que manifestasse ser-lhe indiferente a hipotética
infidelidade do cônjuge, mesmo se limitada a raras ocasiões.
No fundo, a fidelidade conjugal é um padrão essencial que ilumina
muitos aspetos da vida. Donde derivará o seu «prestígio» e, ao mesmo tempo,
a convicção de que é um valor a proteger (pelo menos numa discussão
teórica: é raríssimo o casal que afirma gostar que o outro cônjuge tenha
«escapadelas» ou que elas em nada o afetam)?
Neste capítulo, interessa-nos aprofundar no sinal matrimonial: a que
s e comprometem duas pessoas que se casam no Senhor? O que é que
«define» ou estrutura um casamento? Que tipo de amor se espera entre os
cônjuges?
S. João Paulo II enquadrou as audiências que agora comentaremos com o
subtítulo «O Matrimónio na Dimensão do Sinal». Se, no capítulo anterior,
enquadrámos o matrimónio no plano da salvação, agora interessa-nos
penetrar na sua dimensão concreta. Veremos que, à luz destas palavras, se
entenderá melhor a dimensão unitiva do ato conjugal e a interligação com a
dimensão procriativa, problema que S. João Paulo II tinha deixado pendente
no primeiro ciclo. Na verdade, estas audiências iluminam toda a dimensão
unitiva do matrimónio, e não só a do ato conjugal.
Referência obrigatória das audiências que estudaremos neste capítulo são
as palavras centrais do rito de celebração do matrimónio. Para que os futuros
cônjuges as pronunciem, é necessário que releiam na verdade a linguagem do
corpo.
É justamente a correta compreensão dessa linguagem, inerente ao ser
humano, que leva S. João Paulo II a evocar alguns textos dos Profetas, bem
como a comentar o Cântico dos Cânticos e o Livro de Tobias. Esses três
grandes blocos de comentários bíblicos delineiam os diferentes aspetos da
linguagem que é central para a celebração do matrimónio e para a sua
aprofundada compreensão.
Se os textos dos Profetas que referiremos desvelam a realidade da
linguagem do corpo, o Cântico dos Cânticos amplia os recursos dessa
linguagem, enquanto, de certo modo, o Livro de Tobias os situa num mais
vasto panorama real. Apesar das páginas dedicadas ao Cântico serem
enormemente sugestivas e belas, S. João Paulo II parece inclinar a sua
preferência (não tanto estética, mas no sentido de um são realismo) para o
Livro de Tobias. Este livro, por um lado, recorda dramaticamente a
necessidade absoluta de Deus para o bom êxito do amor humano, e, por outro,
descreve como manifestação consistente do amor humano a firme eleição
pelo outro, e não apenas a mera atração sensível, que aparece muito mais em
destaque no Cântico. Estes dois livros da Bíblia permitem que a linguagem
do corpo seja também linguagem da liturgia, como veremos, mas de modo
diferente num e no outro: «A oração dos jovens esposos do Livro de Tobias
parece certamente confirmar isso de uma maneira diferente à do Cântico dos
Cânticos, e também de modo que, sem dúvida, comove mais
profundamente»[555].
20.1. Palavras comprometedoras
Recordemos, para os leitores que há já algum tempo não foram
convidados para um casamento, as palavras centrais da celebração do
matrimónio: «Eu, N., recebo-te por meu esposo (minha esposa) a ti, N., e
prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e
na doença, todos os dias da nossa vida»[556].
Uma vez pronunciadas estas palavras, os noivos tornam-se, até à morte
de um deles, marido e mulher. Tornam-se marido e mulher um para o outro,
diante da Igreja, da sociedade e, sobretudo, de Deus. Tornam-se, pois, num
sinal para a Igreja e para o mundo. A Igreja entende que o sinal está completo
quando os dois se unem numa só carne, como marido e mulher. Esse é o ato
específico de ser esposo ou esposa. Na verdade, ninguém entende o pacto
matrimonial como uma espécie de compromisso perpétuo de mera amizade.
Na teoria, «podem» duas pessoas comprometer-se a ser amigas até ao fim dos
seus dias? Sim, são livres de o fazer. Mas, caso se realizasse uma espécie de
«pacto de amizade», teria essa palavra uma força idêntica à do casamento?
Duvido que alguém consiga defender tal tese. Há, na longa história da
humanidade, belíssimos e comovedores exemplos de amizade inabalável.
Mas, mesmo atendendo a esses casos, não há reivindicações no sentido de
institucionalizar uma amizade incondicional.
Portanto, no casamento existe «algo mais» do que um compromisso de
lealdade perpétua, por muito nobre que este seja. Esse «algo mais» tem que
ver necessariamente com o desígnio divino para o casamento. Ao mesmo
tempo, é fácil intuir a excecionalidade do compromisso matrimonial pelo
facto de ele estar associado ao ato que é exclusivo (ou deveria sê-lo, como
veremos) dos esposos. A consumação do casamento mediante o ato conjugal,
realizado após o compromisso mútuo (isto é, quando já são marido e
mulher), torna realidade as palavras pronunciadas:
«Assim, pois, das palavras com as quais o homem e a mulher exprimem a sua disponibilidade
para se tornarem “uma só carne”, segundo a eterna verdade estabelecida no mistério da criação,
passamos à realidade que corresponde a estas palavras. Um e outro elemento são importantes no
que diz respeito à estrutura do sinal sacramental»[557].

Seria certamente uma pobre compreensão do matrimónio reduzi-lo ao ato


conjugal, ou afirmar que ele seria, sobretudo, o contexto mais favorável
dentro do qual o ato conjugal se realizaria com um maior consenso de
aprovação social. Os esposos não se casam apenas para realizar esse ato. A
comunhão conjugal é (ou deveria ser) caracterizada por uma enorme riqueza:
as manifestações da vida em comum dos cônjuges são polifacetadas e não se
esgotam numa única manifestação. Contudo, não há dúvida de que, na
comunhão de pessoas que é o matrimónio, esse ato é o que mais
especificamente identifica a união matrimonial; e a Igreja até reconhece que
ele contribui de forma decisiva na, chamemos-lhe assim, «blindagem»
definitiva do matrimónio católico[558].
S. João Paulo II afirma que as palavras pronunciadas pelos noivos «não
constituiriam, de per si, o sinal sacramental do matrimónio se não houvesse
uma correspondência entre as mesmas palavras e a subjetividade humana do
noivo e da noiva, e simultaneamente a consciência do corpo, ligada à
masculinidade e à feminilidade do esposo e da esposa»[559]. Isto é, para as
palavras produzirem o seu efeito é necessário que os noivos estejam
realmente decididos a uma entrega mútua e saibam, com clareza, que essa
entrega deverá ser manifestada também pelo corpo, com um ato que a traduz.
O Código de Direito Canónico define essas exigências necessárias para um
válido consentimento[560].
20.2. A perene linguagem do corpo
S. João Paulo II usa repetidamente uma complexa expressão para
descrever o que fazem os esposos ao celebrar o matrimónio. Afirma que eles,
antes de emitirem o consentimento mútuo, devem fazer uma releitura na
verdade da linguagem dos seus corpos[561]. Isso significa, por um lado, que o
corpo tem uma linguagem, pode «falar»; por outro, que tanto os noivos como
os cônjuges devem dominar («aprender a ouvir e a falar», diríamos) essa
linguagem, para falarem a verdade e darem o seu mútuo consentimento. A
riqueza da linguagem do corpo é desenvolvida no Cântico dos Cânticos em
forma de diálogo amoroso, mas a sua expressão mais ampla no homem[562] é
delineada no Livro de Tobias.
Comecemos por explicar o que é a perene «linguagem do corpo»[563] –
sobretudo a que é decisiva para a celebração do casamento –, para depois nos
centrarmos na sua releitura pelos esposos.
É mais ou menos intuitivo que o corpo «fala», ou antes, que o homem
fala através do corpo. Obviamente, fá-lo quando usa a boca para emitir
palavras. Mas aqui não se trata disso. O corpo fala também com gestos: um
beijo ou um aperto de mãos, por exemplo, significam um certo afeto; o
sorriso convida-nos a entrar no espaço da pessoa e, pelo contrário, uma cara
mal-humorada afasta-nos de quem quer que seja. Mas S. João Paulo II
convida a que nos centremos, sobretudo, na linguagem do corpo que é
assumida pelos contraentes na celebração do matrimónio. Para se referir a
essa linguagem, utiliza a expressão «profetismo do corpo», que, para o Papa
polaco, encerra um denso significado e necessita de uma explicação
articulada, da qual prescindirei em parte para evitar que o leitor se afaste do
tema dominante do capítulo.
O termo «profetismo» é cunhado, antes de mais, em memória dos
Profetas que recorrem à expressão corporal para expressar a união de Deus
com o seu povo; mas também expressa o próprio conteúdo dessa linguagem,
pois o corpo anuncia («profetiza») algo que vem de Deus[564].
Aliás, os dois sentidos andam a par. De modo semelhante a como os
Profetas usavam essa linguagem para expressar a fidelidade ou infidelidade a
Deus – o adultério «fala» da infidelidade e da idolatria –, os esposos, ao
pronunciarem as palavras do consentimento, evocam a mesma terminologia
adotada pelos Profetas. Estas palavras confirmar-se-ão mediante o amor, a
fidelidade ao outro e a honestidade conjugal, e falsificar-se-ão com atitudes
contrárias[565].
De modo complementar a estas explicações, e para reforçar ainda mais
a expressão «profetismo do corpo», S. João Paulo II faz notar que o corpo
se assemelha aos Profetas no sentido em que, tal como eles, fala em nome
de outro, em concreto, em nome da pessoa (da qual faz parte). Detenhamo-
nos nestas palavras:
«O homem – varão ou mulher – não apenas fala com a linguagem do corpo, como, em certo
sentido, permite que o corpo fale “por ele” e “da parte dele”, diria, em seu nome e com a sua
autoridade pessoal. Também o conceito de “profetismo do corpo” parece ser fundado deste modo;
com efeito, o “profeta” é aquele que fala “por” e “da parte de”: em nome e com a autoridade de
uma pessoa»[566].
Esta explicação oferece uma nova luz sobre o profetismo do corpo.
S. João Paulo II insiste na ideia de que o «corpo humano fala uma
“linguagem” de que não é o autor»[567]. O autor é cada pessoa que se expressa
através dessa linguagem. Mais ainda, o homem necessita do corpo para se
poder expressar, pois é um ser uni-dual, como já vimos. Sem o corpo não
pode expressar-se convenientemente, e isto tanto no casamento como na
continência pelo Reino dos Céus. Através de gestos e atitudes que envolvem
o corpo, o homem pode expressar grandes decisões interiores. Mas, como
insiste S. João Paulo II, para o fazer é necessário «reler» essa linguagem na
verdade, ou seja, é preciso tomar consciência de que há uma gramática e uma
semântica a conhecer. Um homem não pode expressar o amor à sua mulher
procurando outras mulheres para ter relações. Haveria uma mentira, mesmo
que evocasse a razão de não «cansar» a esposa. Ela nunca veria nesses gestos
qualquer tipo de amor.
20.3. O corpo pode falar a verdade ou mentir
Permita o leitor uma comparação absurda: se eu digo em grego «odeio-
te», qualquer grego entendê-lo-á como expressão de inimizade, mesmo que
eu tenha pronunciado essa palavra porque me parece foneticamente evocativa
de uma declaração de amor. De modo semelhante, desde a Criação que a
relação conjugal – e é precisamente nisso que os Profetas se apoiam – deve
manifestar um amor total e incondicional. Deve… mas fá-lo-á sempre?
O beijo é, em geral, um sinal de proximidade afetiva da pessoa.
Porém… e o beijo de Judas? Não é uma mentira? Precisamente porque se
trata de uma linguagem, o homem pode dizer a verdade com o corpo ou pode
mentir, expressando com o corpo o contrário do que pensa e quer. Por isso, a
relação sexual pode ser verdadeira ou, pelo contrário, pode ser um ato
mentiroso quando o corpo «diz» algo que não reflete a relação existente
entre as pessoas. Uma relação adulterina, por exemplo, não é um ato de
entrega incondicional, mesmo que os corpos estejam comprometidos com
uma manifestação física que significa esse tipo de entrega: os corpos
«dizem» uma coisa que não corresponde ao que sucede entre as pessoas.
Os Profetas não deixaram de fazer notar essa dupla possibilidade do
corpo (de afirmar a verdade ou mentir). O adultério era visto como sinal de
traição a Deus, como idolatria, isto é, como uma mentira a Deus por parte do
povo escolhido, como um «não Te amo»: «Nos textos dos Profetas, que
veem no matrimónio a analogia da aliança de Jahvé com Israel, o corpo diz a
verdade mediante a fidelidade e o amor conjugal, e quando comete
“adultério” diz uma mentira, comete a falsidade»[568]. As consequências são
importantes. Não se trata de comparações bonitas ou meramente ilustrativas.
À luz da analogia, entendem-se as faltas de fidelidade a Deus como o que
realmente são: uma quebra no amor, não apenas nem principalmente uma
infração a determinadas regras. S. João Paulo II
não deixa de insistir nesta consequência: «A rutura da aliança significa não
apenas a infração do “pacto” ligada à autoridade do supremo Legislador, mas
também a infidelidade e a traição: um golpe que inclusive fere o seu coração
de Pai, de Esposo e de Senhor»[569]. Nesta perspetiva, entende-se a
importância que Deus dá a esta linguagem, e como «trabalhou», através da
Revelação, para que o homem a percebesse e soubesse expressar-se com ela.
Além de pôr em xeque a compreensão do amor de Deus por nós, a
releitura na verdade da linguagem do corpo permite entender as graves
consequências de uma falsa releitura dessa linguagem. Tal sucede quando se
usam «as palavras» da linguagem com um sentido que fica muito aquém do
que elas deveriam expressar.
Leiamos com atenção um texto da Familiaris Consortio:
«Por consequência, a sexualidade, mediante a qual o homem e a mulher se doam um ao outro com
os atos próprios e exclusivos dos esposos, não é em absoluto algo puramente biológico, mas diz
respeito ao núcleo íntimo da pessoa humana como tal. Esta realiza-se de maneira verdadeiramente
humana, somente se é parte integral do amor com o qual homem e mulher se empenham
totalmente um para com o outro até à morte. A doação física total seria falsa se não fosse sinal e
fruto da doação pessoal total, na qual toda a pessoa, mesmo na sua dimensão temporal, está
presente: se a pessoa se reservasse alguma coisa ou a possibilidade de decidir de modo diferente
para o futuro, só por isto já não se doaria totalmente»[570].

É esta mentira que está presente, por exemplo, nas relações pré-
matrimoniais. Aí, a linguagem corporal está a «dizer»: «sou todo teu (ou toda
tua), e recebo-te com tudo o que tu és». Mas nada disso sucede. Não se
entregou o futuro, que permanece em aberto até ao casamento; e, na maioria
dos casos, não se está disposto a entregar ou a receber a potencial paternidade
ou maternidade. Pode até haver um desejo sincero de um dia vir a entregar o
futuro. Mas há uma diferença entre o desejo de entregar toda a vida (desejo,
aliás, cuja autenticidade seria necessário verificar), futuro incluído, e a
entrega efetiva de toda a vida. Nessas condições, os noivos mentem com o
corpo, mesmo que desejem que isso seja verdade. Relembro o exemplo da
palavra grega: não basta querer dizer alguma coisa numa linguagem
determinada; é preciso escolher as palavras que realmente expressam essa
realidade.
O corpo tem a magnífica capacidade de expressar a diferença entre o
noivado e o casamento se – esta é a condição – a linguagem corporal for
relida na verdade. Na celebração do sacramento, os noivos assumem essa
linguagem, expressam-na primeiro em palavras e, posteriormente, no ato
conjugal que, então sim, expressa a perfeita comunhão dos esposos. A
máxima união corporal manifesta a máxima união espiritual entre um homem
e uma mulher que se comprometem em partilhar a sua vida para sempre.
Quando os noivos banalizam o ato sexual tendo relações antes do
casamento, é normal que aumente a dificuldade de se aperceberem da
transcendência do casamento e reforcem a convicção de que é uma mera
formalidade: «perante as convenções tradicionais, passamos a estar em
regra». Para uma tal miopia contribui, sem dúvida, a banalização sexual, pois
«despe» o corpo da gigantesca capacidade de expressar uma entrega total.
Para os que se envolvem em relações antes do casamento, o corpo apenas
«expressa» o desejo mútuo, nada mais.
Assim sendo, os noivos retiram a eles próprios o elemento pessoal que lhes
permitiria entender como que «por dentro» o que é uma entrega
incondicional, total e fecunda.
Permita-se-me uma má comparação. É como se alguém se ufanasse por
conseguir fazer de uma nota de 500 euros um elaborado aviãozinho de papel
que se aguenta no ar uns cinco minutos e depois cai num rio; «Fantástico!»,
responderíamos, «mas sabias que com esse “avião” comprarias um iPad?»
Vale a pena convidar os noivos a guardarem a nota de 500 para o máximo
que ela pode expressar.
E se os noivos, entretanto, talvez após contactarem pessoas que lhes
fazem ver o erro em que estão metidos (talvez depois de lerem estas
páginas…), decidirem passar a viver a castidade no namoro? Será então
possível recuperar plenamente o valor dos seus corpos e do ato sexual?
Certamente a pessoa pode arrepender-se e obter o total perdão de Deus.
Não sei se, mesmo assim, a límpida informação que o corpo daria caso se
tivesse respeitado a linguagem própria pode ser totalmente recuperada. A
pessoa conseguirá, sem dúvida, expressar um amor total, mas ficará sempre a
dúvida sobre o que se experimentaria no corpo caso não tivesse sido usado
para fazer o tal avião: continuariam a existir os pensamentos e avaliações
negativas sobre o sexo que de vez em quando atormentam a doação física?
Não se entenderia porventura mais facilmente essa linguagem, objetivamente
querida por Deus, quase como uma oração? Não seria mais acessível dominar
uma certa destemperança no prazer sexual que, em ocasiões, ameaça
atropelar o cônjuge? Será mesmo tudo recuperável? Rezemos sempre a Deus
para que realize esse milagre em todos aqueles que ficaram com feridas do
passado. Deus pode curar os corações na sua raiz.
Só mesmo Deus o pode fazer.
20.4. Os esposos diante de Deus
Centremo-nos nos noivos e na celebração matrimonial. Com as palavras
do consentimento, os noivos declaram que nos seus corpos está inscrito o
significado esponsal. É como se dissessem: «eu posso receber-te como esposa
(como esposo), porque o meu corpo está preparado para te aceitar com todo o
teu ser, e eu posso entregar-me como esposo (como esposa), porque o meu
corpo pode expressar a entrega da minha vida». O consentimento conjugal
proclama uma verdade que foi inscrita por Deus na natureza humana:
«Na base das palavras proferidas pelos ministros do sacramento do matrimónio está a perene
“linguagem do corpo”, à qual Deus “deu início” criando o homem como varão e mulher, uma
linguagem que foi renovada por Cristo. Esta perene “linguagem do corpo” comporta em si toda a
riqueza e profundidade do mistério: primeiro da Criação, depois da Redenção»[571].

Quando os esposos emitem o consentimento mútuo recorrem a uma


linguagem inscrita nos seus corpos, linguagem essa que foi proferida pelo
próprio Deus, desde o Génesis até à Carta aos Efésios, passando pelos
profetas[572]. A linguagem do corpo está profundamente enraizada na
Revelação.
A oração de Tobias na noite de núpcias, como veremos no capítulo 22, é
demonstrativa do que está em jogo no casamento. Assim como, no relato da
criação, Adão foi «convidado» por Deus a dar nome aos animais criados (cfr.
Gen 2, 19-
-20), assim também o homem – certamente guiado pelo próprio Criador –
sentiu-se «convidado» a traduzir em palavras aquela comunhão de pessoas
que, desde o início, se expressou também pelo corpo. Pode parecer trivial esta
breve consideração, mas na verdade ela não deixa de ser relevante: as
palavras seguem a realidade, mesmo que depois sejam elas a permitir à
realidade ajustar-se ao modelo inicial. Tobias, na sua oração, torna explícito
que é necessário assumir o plano originário sobre o casamento, plano escrito
em primeiro lugar nos seus corpos e abertamente revelado pela Sagrada
Escritura. De maneira paralela, quando os noivos pronunciam as palavras do
sacramento, hão de ser conscientes de que assumem, naquele momento e nas
suas vidas, o perene desígnio de Deus sobre o casamento. Os seus corpos (as
suas vidas) expressá-lo-ão mais tarde, mas as palavras «adiantam-se» e, ao
pronunciá-las com plena consciência, os esposos reconhecem através delas o
significado do que depois realizarão. Se quisermos uma imagem, as palavras
são como os subtítulos de toda a vida dos esposos daí em diante, incluído o
ato
conjugal que, de algum modo, sintetiza fisicamente o compromisso
assumido.
Prossigamos na tarefa de entender melhor o alcance do consentimento
matrimonial. Com ele, esclarece ainda S. João Paulo II, os esposos não
anunciam a mera possibilidade de os corpos expressarem o significado
esponsal de acordo com a linguagem perene neles inscrita. Trata-se de uma
decisão que torna realmente efetiva essa potencialidade, isto é, faz com que
ela se realize, aqui e agora. Além disso, o consentimento conjugal é o que
permite descobrir o significado esponsal do corpo. Pensemos por uns
instantes que não existia o casamento, mas apenas uniões transitórias: seria
impossível encontrar no corpo um significado que revelasse uma entrega
total, um dom completo.
Por fim, S. João Paulo II acrescenta que o sinal dado pelo consentimento
conjugal não é passageiro; é antes um «sinal que aponta para o futuro, que
reproduz um efeito duradouro, ou seja, o vínculo conjugal, único e
indissolúvel (“todos os dias da minha vida”, isto é, até à morte)»[573]. Esse
sinal deve ser como que preenchido durante todos os dias da vida dos
cônjuges, com gestos verdadeiros de entrega e amor mútuos, com a fidelidade
diária e também, dentro desta perspetiva, com o desejo de perpetuar esse
amor nos filhos. Portanto, os gestos de amor e respeito mútuos entre os
cônjuges, as atitudes de fidelidade mútua – sejam em sentido negativo
(evitar cedências sexuais externas ou internas com outras pessoas) ou em
sentido positivo (alimentando e cultivando os gestos de amor exclusivo) – e a
abertura à vida preenchem o conteúdo das palavras de consentimento. O ato
conjugal, eco das palavras de consentimento, é chamado a «sintetizar» de
alguma maneira toda a vida orientada para o outro: anuncia que, nessa
relação, há algo único entre os dois, e reforça essa unicidade. Manifesta assim
a existência de um vínculo único e exclusivo.
Se os esposos forem fiéis a esta realidade, cada vez que se unirem
conjugalmente serão sempre conscientes do amor a que estão chamados. Não
se trata apenas de passarem um bom momento juntos, mas também de
atualizarem o compromisso de entrega total um ao outro e de se recordarem
mutuamente de que o seu amor está aberto ao futuro, não é para cessar nunca.
As palavras do consentimento deveriam estar sempre presentes, como música
de fundo, nesses momentos únicos do casal, pois elas não só abrem a porta
para o amor total como facilitam que os esposos «situem», com plena
consciência, o seu relacionamento físico no quadro geral do amor sem
reservas, sem condições.

21.
A riqueza e a santidade da linguagem do corpo

S. João Paulo II dedicou várias audiências a comentar o Cântico dos


Cânticos. Em concreto, interessava-lhe mostrar a riqueza da linguagem do
corpo que aquele livro da Bíblia expõe. Essas magníficas audiências
levantam um pequeno problema para o leitor que deseja conhecer a totalidade
da teologia do corpo.
O Papa dedicou-lhe três audiências, embora de facto haja outras três que não
chegaram a ser lidas mas que foram publicadas tanto na versão italiana, que
compilou todo o corpo catequético, como na versão espanhola e, mais
recentemente, na versão inglesa da responsabilidade de Waldstein[574]. Ainda
que o essencial se mantenha na versão realmente lida pelo Papa (as tais três
audiências), não há dúvida de que se descobrem novos pormenores quando se
tem diante dos olhos a versão alongada (com as seis audiências). Partindo do
princípio que esta versão esclarece melhor o pensamento de S. João Paulo II,
tal como já expliquei anteriormente em nota de pé de página, uso-a sem
grandes preocupações sobre qual a autoridade magisterial em jogo.
Neste breve capítulo, em que interessa ressaltar o conteúdo das
audiências sobre o Cântico dos Cânticos, com o desenvolvimento da
linguagem do corpo, veremos como se tornam ainda mais claros assuntos já
explicados anteriormente. Ofereço ao leitor, desde já, três exemplos:
1. Basta ler as descrições pormenorizadas da beleza da noiva e dos
seus atributos, tal como o noivo os contempla, para desfazer qualquer
tentação de que a visão cristã da sexualidade possa ter traços
maniqueístas: «O teu umbigo é uma taça feita ao torno, que nunca está
desprovida de licores. O teu ventre é como um monte de trigo cercado
de lírios. Os teus dois seios parecem dois filhotes gémeos de uma
gazela. O teu pescoço, uma torre de marfim. Os teus olhos são como as
piscinas de Hesebon» (Ct 7, 3-5). Apesar de as comparações nos
poderem levar a sorrir, o facto é que o noivo não hesita em reparar e
descrever entusiasmado todo o corpo da noiva. O dado relevante é que
estas descrições estão incluídas num livro sagrado, o que só por si é
altamente significativo[575];
2. Também se tornará mais evidente como entender a harmonia
entre eros e ethos, sobretudo no contexto matrimonial (ou pré-
matrimonial). O noivo e a noiva movem-se com toda a
espontaneidade, sempre dentro de uma atitude de profundo respeito de
um pelo outro. Não se trata de um amor oculto ou envergonhado:
«Encontraram-me as sentinelas que rondavam a cidade e eu perguntei-
lhes: “Vistes porventura aquele que o meu coração ama?”» (Ct 3, 3);
3. A complementaridade sexual fica definitivamente vincada. Os
noivos/
/esposos estão profundamente enamorados um pelo outro, mas
expressam os seus mútuos entusiasmo e amor de modo
diferenciado[576].
Na tentativa de encontrar um interrogante que unifique o comentário a
estas audiências, pareceu-me que talvez o que se segue fosse o mais
apropriado. No capítulo 15, recordámos a polémica audiência em que o Papa
explicou como, em determinadas condições, existe a lamentável possibilidade
de olhar e desejar a própria esposa de modo inapropriado à sua dignidade.
Acrescentei, nesse capítulo, que tais palavras esclareciam que o casamento
não era uma espécie de «salvo-conduto» para fazer da esposa o que passasse
pela cabeça do marido. As audiências sobre o Cântico dos Cânticos
permitem, de algum modo, delinear a moldura esponsal dentro da qual se
vive, na verdade, a linguagem do corpo. Não se trata tanto de expor o que não
é legítimo, mas sobretudo de saber dar resposta às seguintes questões: entre
esposos, em que contexto e de que maneira se relê e se expressa a linguagem
do corpo de modo a que seja verdadeira? Que disposições devem cultivar
os noivos/esposos para expressar mutuamente um sincero amor esponsal?
As perguntas orientadoras do capítulo são, pois, estas, embora seja
honesto advertir o leitor para o facto de a intenção de S. João Paulo II
continuar relacionada com o sinal sacramental. Isto é, o que o leva a estudar o
Cântico prende-se com a declaração de que o sinal realizado pelas palavras
do consentimento conjugal cria um vínculo perene entre os esposos; mas,
depois, os esposos «têm de preencher aquele sinal de conteúdos múltiplos
proporcionado pela comunhão conjugal e familiar das pessoas, e também
daquele conteúdo que, tendo origem na “linguagem do corpo”, é
continuamente relido na verdade»[577]. O estudo do Cântico dos Cânticos é um
modo de aprofundar nesses «conteúdos múltiplos», analisando a riqueza da
linguagem do corpo contida naquelas páginas. Respondamos, então, às
questões acima enunciadas, que, com esta breve interpolação, ficam mais
centradas: que disposições devem cultivar os noivos e, sobretudo, os esposos,
para expressar o amor mútuo, sabendo que elas não são como que um «luxo»
do amor conjugal, mas sim um certificado da autenticidade desse amor?
Ao estudar o Cântico dos Cânticos, podemos deduzir que, no amor entre
os noivos e, por maioria de razão, entre os esposos:
• deve haver um mútuo fascínio;
• deve cultivar-se o desejo de que tudo o que é de um deles seja também
do outro;
• deve saber-se respeitar a intimidade do outro, esperando pela livre
iniciativa da doação;
• deve existir um amor forte como a morte, vencendo as limitações
humanas.
Detenhamo-nos em cada um destes elementos.
21.1. O mútuo deslumbramento: glosando o cântico de Adão
Mesmo que o Cântico dos Cânticos seja lido por um leitor pouco
cultivado, é patente o entusiasmo mútuo dos noivos. S. João Paulo II assume
a íntima relação deste livro da Bíblia com o primeiro cântico nupcial da
História, colocado na boca de Adão após o sono misterioso induzido por
Deus para dele criar Eva: «Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da
minha carne» (Gen 2, 23). «O que no capítulo 2 do Génesis [23-25] foi
expresso em poucas palavras, simples e essenciais, aqui desenvolve-se num
amplo diálogo, ou antes num dueto, em que as palavras do esposo se
entrelaçam com as da esposa e se completam reciprocamente»[578].
Quando se relê o Génesis à luz do Cântico, desaparece o risco de
interpretar as palavras de Adão tanto num sentido narcisista (como se Adão
se admirasse a si próprio em Eva: «aí está a beleza do meu “eu”») quanto
numa perspetiva sensual, própria do homem da concupiscência.
No Cântico dos Cânticos, o fascínio mútuo dos noivos/esposos é
complementar e não idêntico: é certo que todas as expressões deles obedecem
«à moção interior dos corações»[579], mas cada um centra-se no que é mais
específico do outro. S. João Paulo II afirma: «É possível que o esposo-
homem expresse mais diretamente a beleza da esposa e a sua capacidade de
atração captando tudo isso sobretudo com os olhos do corpo; a esposa, pelo
contrário, olha sobretudo com os olhos do coração, através do seu amor»[580].
Quanto à admiração do esposo, serve-nos a citação já transcrita antes (cfr. Ct
7, 2-4). Bastariam essas palavras para descartar a interpretação narcisista. O
elogio aos seios ou ao fino pescoço descarta qualquer admiração do género
«espelho». Adão é atraído por alguém que tem tudo a ver com ele, mas que
não é um sósia. As diferenças da mulher são essenciais para o fascínio. De
maneira idêntica, a noiva elogia a masculinidade corporal (cfr. Ct 5, 10-16),
mas o que nela predomina parece ser a vontade de ser amada: «No meu
descanso, durante a noite, procurei aquele que o meu coração ama» (Ct 3, 1;
cfr., ainda, vv. seguintes).
S. João Paulo II faz notar também que a mútua admiração não fica
reduzida à dimensão física (uma mera atração sensual), mas antes é
alimentada pelo desejo de entrega mútua. Trata-se, diz S. João Paulo II, de
uma «linguagem do coração»: «Ambos – ele e ela – expressam, em
uníssono, nas estrofes do Cântico, maravilha e admiração, não apenas pelo
“eu” do outro na sua “revelação” feminina ou masculina, mas também pelo
amor através do qual aquela “revelação” se realiza»[581]. Portanto, não se
trata de uma espécie de mútuo êxtase sensual.
S. João Paulo II é cuidadoso ao reafirmar, uma e outra vez, que se trata de
uma linguagem de amor, certamente mediada pelo corpo. Mas o fascínio
leva ao amor e o «amor além disso desencadeia uma particular experiência
do belo, que se concentra naquilo que é visível, mas envolve
contemporaneamente toda a pessoa. A experiência da beleza gera o prazer,
que é recíproco»[582]. Essa experiência é traduzida pelo noivo em palavras
poéticas e metáforas inspiradas por toda a Criação. S. João Paulo II não
deixa passar por alto esta dimensão, afirmando que «a “linguagem do
corpo” procura apoio e confirmação em todo o mundo visível»[583]. Não
desenvolve muito mais a ideia mas, pessoalmente, penso que seria
necessário relacioná-la com a hermenêutica do dom, como chave para se
entender a Criação. Em certo sentido, toda a Criação leva em si a marca do
dom, do amor do Criador. Talvez seja essa marca o que permite ao noivo
recorrer, sem temor, ao mundo visível para expressar o seu amor.
Detenhamo-nos neste aspeto. Já referimos que S. João Paulo II pro-
curava, com esta análise do Cântico dos Cânticos, tornar mais claro o sinal
sacramental. É agora mais evidente que o envolvimento corporal é
intrínseco ao matrimónio. É normal que os noivos e os esposos
experimentem um mútuo fascínio, e que os corpos de um e do outro
reforcem e acentuem a vontade de se doarem e receberem. Mas o fascínio
dos esposos é para estar presente durante toda a vida e não apenas na noite
de núpcias. Seria um erro desleixar esta dimensão do matrimónio. Por isso, é
normal e virtuoso que, por amor, os esposos se esforcem por manter – na
medida possível e razoável – uma adequada «forma física», que facilite o
mútuo fascínio.
De modo bem pastoral e prático, S. Josemaria Escrivá não deixou de
insistir neste aspeto. Eis umas palavras suas, dirigidas às esposas: «À medida
que uma pessoa, que deve viver no mundo, vai avançando em idade, mais
necessário se torna melhorar não só a vida interior como – precisamente por
isso – procurar estar apresentável. Evidentemente, sempre em conformidade
com a idade e com as circunstâncias. Costumo dizer, por brincadeira, que as
fachadas, quanto mais envelhecidas, mais necessidade têm de reparação. É
um conselho sacerdotal. Um velho refrão castelhano diz que la mujer
compuesta saca al hombre de otra puerta [“a mulher arranjada tira o homem
de outra porta”]»[584]. Através da dimensão corporal, expressa-se e reforça-se
a mútua doação. Não se trata de algo acessório e secundário no amor
conjugal, pois contribui muito para esse amor.
21.2. A questão fraterna: o amor tudo quer abraçar
Uma segunda lição tem a ver com o facto de o noivo/esposo se dirigir à
noiva/esposa como irmã, e ela a ele como irmão. É o que se pode designar
como a «questão fraterna»[585]. Eis dois exemplos: «És jardim fechado,
minha irmã, esposa, jardim fechado, fonte selada» (C t 4, 12). A noiva é
porventura mais explícita no desejo de ver o noivo como irmão: «Quem me
dera que fosses meu irmão, amamentado aos seios de minha mãe!
Encontrando-te em público, beijar-te-ia sem que ninguém me desprezasse»
(Ct 8, 1). Ambos desejariam ter um passado comum.
Antes de prosseguir aprofundando nas razões dadas por S. João Paulo II
para estes termos («irmão», «irmã»), penso que poderá ajudar o leitor um
breve mas substancial episódio. Em certa ocasião, assisti a um recital caseiro
de um casal americano, recém-casado. Ambos cantavam e tocavam bem
guitarra e outros instrumentos. E compunham canções. Antes de cantarem
uma melodia, explicavam qual a origem da composição ou, no caso de
músicas de terceiros, em que circunstâncias se tinham afeiçoado a essas
melodias. Durante o recital, às vezes falava ele, outras vezes falava a jovem
esposa. As palavras que fixei foram dela. Explicou, com toda a naturalidade,
que a seguinte canção estava relacionada com Paris. Ela tinha estudado
durante algum tempo naquela cidade e, na semana anterior ao recital em que
nos encontrávamos, tinha lá regressado com o (já) marido. Nessa recente
viagem, empenhou-se em mostrar-lhe os lugares de Paris onde tinha estado
aquando de solteira e que mais a tinham marcado. Muitos deles não eram
locais turísticos, mas formavam parte de um grato passado que ela, agora,
queria que também pertencesse ao marido. «Aqui está uma esposa
verdadeiramente enamorada», pensei eu. «Deseja que o seu passado pertença
também ao marido.»
Sintetizemos as razões que S. João Paulo II descobre para o uso de
«irmã» ou «irmão» entre os protagonistas do Cântico. Por um lado, os termos
voltam a evocar o encontro inicial entre Adão e Eva, em que os dois são, em
primeiro lugar, irmãos, com um «sentimento de pertença comum ao Criador
como Pai comum»[586]. Os noivos do Cântico dos Cânticos desejariam ter
estado sempre juntos. Esse desejo, como o leitor deduz pelo testemunho do
casal, corresponde a um verdadeiro amor. O amor nupcial quer dar-se
totalmente, com tudo o que se é e será. E, se fosse possível, também com
tudo o que a pessoa foi. Não será então a virgindade prévia ao casamento, no
homem e na mulher, uma maneira «física» de tornar mais verdadeiro esse
desejo? Não quererá o esposo ou a esposa poder dizer ao outro, no dia do
casamento: «guardei-me para ti, o meu passado é teu»? Ou «nada há no meu
passado que não possa ser teu»? Defender a virgindade até ao casamento é,
assim, um modo prático de, no dia do casamento, poder entregar ao cônjuge o
passado que, de algum modo, foi vivido com a consciência de que algures
havia já um irmão ou irmã, que seria o cônjuge para a vida.
Devo acrescentar duas observações. A primeira corresponde a uma
pergunta que me fizeram. Muito lógica, por certo. Que sucede então com uma
viúva que se volta a casar? Nesse novo casamento é evidente que não se
entrega todo o passado e provavelmente não se deseja mesmo entregar. A
viúva não tem por que dizer ao novo marido «eu quereria ter sido apenas
tua», renegando assim o amor ao anterior marido.
No entanto, é certo que parte desse passado pode formar parte da nova
vida conjugal. Se a viúva teve filhos, por exemplo, eles também formarão
parte do novo lar e ela quererá que, na nova família, sejam considerados e
tratados como filhos pelo novo marido. E o marido deverá aceitar «esse
passado» (os filhos) da sua esposa, como se fosse dele e não como algo
alheio à sua pessoa, sem nada ter que ver com ele. Seria um mau casamento
se assim procedesse. Se a amar deveras, acabará por ver os filhos dela
também como seus. E assim, ainda que de um modo diferente do que ocorre
com os noivos virgens, também neste caso se abraçará o passado.
Ao mesmo tempo, este tipo de perguntas impede de absolutizar um tipo
de concretização da doutrina de S. João Paulo II como o que acabei de sugerir
(um motivo para a virgindade até ao casamento) e delimitar melhor o que
afirmei. Aquilo que o casamento «pede» é a entrega do presente e do futuro,
isto é, o que realmente está nas mãos – na liberdade – da pessoa. Os cônjuges
entregam-se mutuamente com tudo o que são. A possível extensão dessa
entrega ao passado, que é uma das razões que leva os noivos/esposos do
Cântico dos Cânticos a usarem os termos «irmão» e «irmã», sempre se
situará ao nível intencional (da intenção). Apenas quis insinuar que a
virgindade até ao casamento é um dos modos de «entregar» o passado. Não é
a única maneira, tal como ficou ilustrado com o episódio do casal americano.
Estas observações preparam para a nova pergunta: que fazer quando já se
perdeu a virgindade e se está arrependido dessa opção? Em certo sentido,
Deus, mediante a sua graça, pode devolver a virgindade espiritual à pessoa
que se arrependeu. E o noivo ou a noiva, se amam o outro de verdade, podem
e devem desculpar essas atuações de um passado leviano, porventura
derivadas da pouca consciência moral nesse campo. O corpo (sobretudo o
feminino) não será testemunha de um passado que se deseja entregar, mas,
para uma pessoa cristã, o arrependimento sincero fá-la apresentar-se virgem,
como se nada do negro passado se quisesse verdadeiramente. Deus, com as
suas graças, pode recompor espiritualmente a pessoa. Então, nessas
circunstâncias, também pode e deve dirigir-se ao cônjuge como «irmão» (ou
«irmã»), até como expressão de um desejo intenso de que a vida com ele (ou
ela) tivesse sido realidade desde a mais tenra infância. Aliás, pode-se dizer
que ambos comungam da mesma rejeição do que aconteceu para trás na vida
de um deles (ou de ambos).
Mas que sucede quando não há arrependimento e alguém até se sente
feliz pelas desordens do passado? Nesse caso, essa pessoa não quer mesmo
que algo importante do seu passado (algo da sua vida que ela considera
importante) tenha que ver com o futuro cônjuge. Provavelmente, nem sequer
entenderá a perspetiva fraterna. Pessoalmente, não auguro nada de bom para
esse casamento.
S. João Paulo II oferece outras razões para a escolha destes termos
(«irmão», «irmã») na relação entre os noivos. Uma delas, também com
aplicações práticas, é o facto de esse sentimento de irmandade atenuar –
equilibrar – uma relação que poderia dar a entender que a linguagem do
corpo é excessivamente marcada pela líbido:
«Este termo parece superar, de modo simples mas firme, a determinação originária daquela
“linguagem” [do corpo] (e daquele amor) unicamente através da líbido e abre o seu conteúdo
total, de modo completamente original, à expressão “esposa”, quando tal expressão na boca do
esposo vai unida ao termo “irmã”»[587].

Obviamente, a relação entre esposos não é a mesma que entre irmãos.


Mas as palavras do Cântico e os comentários de S. João Paulo II convidam os
esposos e os noivos a perguntarem-se: «eu vejo a minha esposa ou a minha
noiva também como irmã?» Christopher West afirma que, quando dirigiu esta
pergunta às suas audiências, comprovou que as respostas das mulheres eram
quase sempre afirmativas, mas as dos homens eram habitualmente
negativas[588]. Não tive ocasião de comprovar se assim é. Mas, de qualquer
maneira, e pressupondo que possa ter razão, não deixa de ser uma
advertência aos homens. Se não virem a futura esposa também como irmã,
como alguém que nunca se deseja magoar e se respeita por cima de prazeres
pessoais, corre-se o risco de se entender mal o que é o casamento. O noivo
do Cântico aceita a proposta de se verem como irmãos retrocedendo ao
passado – «temos uma irmãzinha, que ainda não tem seios» (Ct 8, 8) –,
abraçando quem ama, «alma e corpo, com uma ternura desinteressada»[589].
E a noiva reconhece nesse amor uma fonte de paz: «também sou aos seus
olhos aquela que encontrou a paz» (Ct 8, 10).
Reitero que os homens, desde muito novos, deveriam ser formados para
ver nas mulheres, em primeiro lugar, irmãs. É preciso recuperar um certo
cavalheirismo do passado, não de fachada, mas sim um cavalheirismo dos
sentimentos. Uma boa maneira é esforçar-se por ver em qualquer mulher uma
irmã. E com mais urgência naquela com quem se quer casar ou já se está
casado[590].
Impõe-se ainda uma ulterior nota sobre a «questão fraterna» e,
sobretudo, sobre o facto de o termo «irmã» ou «irmão» poder atenuar uma
visão demasiado focada na sensualidade. S. João Paulo II oferece uma
profunda justificação: sim, é certo, o termo «irmã» reforça o sentimento de
união na humanidade; mas, na boca do esposo, também «fala da diversidade
e originalidade feminina no que diz respeito não só ao sexo, mas também ao
modo mesmo de ser pessoa. Assim», conclui S. João Paulo II, «o termo
“irmã” parece exprimir de modo mais simples a subjetividade do “eu”
feminino na relação pessoal com o homem, isto é, na sua abertura aos
outros, que devem ser entendidos e percebidos como “irmãos”»[591].
É difícil de entender? Talvez possamos aproveitar esta densa explicação
para uma simples sugestão: não seria bom que todos os homens olhassem
para as mulheres em primeiro lugar como irmãs? Não deveria ir neste sentido
a proposta formativa dos adolescentes? «Tu tens de olhar para as raparigas
como irmãs; quando não o conseguires, não olhes, e percebe que se o fizesses
se trataria de um olhar deficitário» (o tal olhar do leão para com a presa…).
Uma das consequências – uma atitude a cultivar, porque para muitos não
brotará espontaneamente – será olhar todas as mulheres, altas ou baixas,
louras ou morenas, novas ou velhas, sãs ou doentes, com admiração. Se os
homem o conseguirem, será sinal de que, por um lado, não olham a mulher
apenas nos aspetos sexuais (muitas carecem de atributos para chamar a
atenção desse modo) e, ao mesmo tempo, evitam cair no erro maniqueísta.
Quando um rapaz tem dificuldade em «guardar a vista», uma das lutas que se
pode sugerir é precisamente a seguinte: «olha para as mulheres que te atraem
menos, para as velhinhas, para as que te parecem feias… e admira-as…
admira-as na sua feminilidade».
Logicamente, também o homem casado beneficiará com este
entendimento. O amor à esposa não ficará escravo dos aspetos mais sexuais,
mas de toda a pessoa da esposa, de toda a sua feminilidade, que o marido
aprenderá a admirar, mesmo naqueles que lhe parecerão (e talvez o sejam
realmente) defeitos. Quando alguém se casa, é, pois, necessário manter
sempre uma admiração e um respeito mútuos.
21.3. O mistério feminino e o amor que espera e respeita
O terceiro aspeto, também ele fundamental para se captar a riqueza da
linguagem do corpo como parte do sinal do matrimónio, poderia sintetizar-se
com uma (mais uma) bela expressão de S. João Paulo II: «A noiva apresenta-
se aos olhos do homem como dona do seu próprio mistério»[592]. Os
versículos do Cântico dos Cânticos a serem agora comentados apontam não
tanto para o caráter fraterno, já assumido, mas principalmente para o mais
específico da relação conjugal: com as novas metáforas, como veremos, fica
confirmada a trama fraterna, mas, ao mesmo tempo, elas vão mais longe[593].
O Cântico dos Cânticos não refere diretamente esse encontro, mas sugere-o, e
sem dúvida que o tem em conta. As palavras, aliás já transcritas – «És jardim
fechado, minha irmã, esposa, nascente fechada, fonte selada»
(Ct 4, 12) – «revelam a presença de outra visão diferente do mesmo “eu”
feminino»[594].
Em resumo: o esposo detém-se diante do mistério da esposa. Reconhece
a existência desse mistério e respeita-o. Sabe que a esposa tem uma
intimidade sagrada. Apesar do incómodo que é para o leitor o exagero das
citações, este é um dos casos em que de nenhum modo me atreveria a
substituir as palavras do autor:
«A “ irmã-esposa” é, para o homem, senhora do seu mistério como “nascente fechada” e “fonte
selada”. A “linguagem do corpo” relida na verdade anda a par com a descoberta da
inviolabilidade interior da pessoa»[595].

Já num capítulo anterior, explicámos que o casamento não é uma licença


gratuita para se fazer o que se quer com o corpo do outro. A não descoberta
da inviolabilidade da pessoa (por parte do homem, a não descoberta da
mulher como dona do seu mistério) falsificaria a linguagem do corpo, que
deve expressar a entrega total e também a aceitação do dom do outro.
Aceitação, não usurpação ou «conquista». O casamento não é um contrato de
compra-venda mútuo. Quem assim o entendesse, poderia eventualmente
começar a queixar-se logo na noite de núpcias, caso não obtivesse o prazer
idealizado anteriormente. Quando a noiva do Cântico se vê respeitada,
quando vê que o noivo se detém perante o mistério da sua feminilidade,
entrega-se a ele com toda a confiança. Ainda S. João Paulo II:
«Em certo sentido ela responde com essas palavras às palavras do esposo, com as que ele a
reconheceu como senhora do seu próprio mistério. Quando a esposa diz: “O meu amado é para
mim”, quer dizer ao mesmo tempo: é aquele a quem me entrego a mim mesma; por isso diz “e eu
sou para ele”» (Ct 2, 16)[596].

Com aquelas duas metáforas («nascente fechada» e «fonte selada»), o


esposo/
/noivo expressou o respeito pelo mistério. E a esposa/noiva «responde-lhe
com as palavras do dom, isto é, com a entrega de si mesma. Como senhora da
própria escolha, diz: “Eu sou para o meu amado”»[597]. Ou, com palavras que
denotam a perenidade dessa vontade, diz: «Grava-me como um selo no teu
coração, como um selo no teu braço, porque o amor é forte como a morte»
(Ct 8, 6).
Portanto, reler na verdade a linguagem do corpo passa por entender este
respeito pelo mistério da pessoa. Insiste ainda S. João Paulo II: «E a
aproximação [dos esposos/noivos] significa a iniciação no mistério da pessoa
sem, porém, incluir a sua violação»[598]. Aqui recordamos o que foi explicado
sobre a liberdade do dom como fundamento da entrega mútua.
O esposo no dia do casamento deve contribuir para que a esposa queira
entregar o seu «eu» mais profundo, o seu ser, porque confia plenamente que o
mistério da sua intimidade será respeitado. Não forçará nunca a esposa e
saberá esperar, se for o caso. O que classicamente se denomina ius in corpus
(«direito ao corpo»), fruto do compromisso matrimonial, deve ser sempre
relido na verdade. É certo que os esposos têm uma grave obrigação de
também se entregarem através das relações conjugais. No entanto, impõe-se
uma distinção: que cada um experimente essa obrigação derivada do amor é
uma coisa; a outra atitude, que, na minha opinião, contradiz a verdade da
linguagem do corpo, é fazer constar ao outro (pior ainda quando se reivindica
com tom agressivo) que se tem sobre ele como que um «direito adquirido». O
matrimónio não foi instituído para que «eu», o marido, possa possuir a minha
esposa, mas sim para que «eu», o marido, me possa entregar a ela e recebê-la
como dom (e vice-versa).
S. João Paulo II reafirma esta perspetiva quando, na parte final do
ciclo de audiências sobre o Cântico dos Cânticos, faz notar que muitos dos
versos fazem-nos «refletir sobre a causa da procura e da inquietação que
acompanham a consciência de ser um do outro»[599]. Uma das
consequências indiretas que se deduz ao indagarmos sobre essa causa – e
que é relevante para o tema que agora consideramos –, é a «quase
impossibilidade de que uma pessoa possa apropriar-se e apoderar-se de
outra. A pessoa é alguém que supera todas as medidas de apropriação e de
domínio, de posse e de satisfação, que emergem da mesma “linguagem do
corpo”»[600]. Os esposos terão sempre de confiar um no outro, na vontade
de doação do cônjuge e na sua própria vontade de se darem.
A consumação do matrimónio não muda a necessidade do mútuo respeito e,
da parte do homem, de considerar sempre a esposa como «senhora do seu
mis-
tério feminino».
Apenas como um aparte, sugiro que se cultive nas raparigas a
consciência de serem portadoras dum grande mistério (também pelo modo
recatado com que se aprendem a vestir, por exemplo), e os rapazes, como já
referi, sejam educados num refinado cavalheirismo, próprio de quem
reconhece com admiração o mistério do outro sexo. Parece-me pouco
apropriado que um rapaz cumprimente uma rapariga com uma sonora
pancada nas costas; tem de saber distinguir entre o modo de tratar um amigo
ou uma amiga. Ou, para dar mais um exemplo, não é delicado aproveitar-se
de uma posição hierárquica (porque é o chefe do gabinete ou da empresa)
para tomar a liberdade de certas «festinhas» nos cabelos. Infelizmente, é
frequente que muitas raparigas se queixem de que colegas de trabalho, ao
passar por elas, se sentem no direito de proceder a uma «amável carícia».
Qualquer que seja a intenção, mais paterna (para pensar na melhor possível)
ou mais luxuriosa, em geral não é algo que suponha um grande apreço para
com a mulher, muito mais ciosa do que o homem do seu «espaço físico»,
parte essencial do seu «eu» feminino.
21.4. A força do amor humano, ciúmes, indissolubilidade
As últimas reflexões de S. João Paulo II sobre o Cântico dos Cânticos
começam por fazer notar como o amor entre os noivos se manifesta tanto
através da linguagem do corpo (que, porém, tem os seus limites) quanto
através do desejo mútuo (também ele nunca plenamente saciado e, por isso,
com limitações).
S. João Paulo II também refere que, da parte do noivo, há o desejo de
encontrar na noiva a perfeição, a «beleza da alma e do corpo»[601].
Sobre este último aspeto basta acrescentar uma breve referência: o autor
das catequeses relaciona as palavras do noivo – «Abre-me, minha irmã,
minha amiga, pomba minha, minha perfeita» (Ct 5, 2) – com o versículo da
Carta aos Efésios onde se afirma que Cristo, Esposo da Igreja, deseja vê-la
sem mancha, nem ruga, nem algo semelhante, mas sim santa e imaculada
(cfr. Ef 5, 27)[602]. Seria fácil concretizar orientações para os noivos a partir do
desejo de que o outro alcance a beleza máxima, no corpo e na alma. Aliás, no
casamento cristão, os esposos sabem que, por cima dos restantes bens que
desejam para o cônjuge, devem ajudar-se no caminho da santidade, a
suprema beleza espiritual. É uma missão inerente ao sacramento do
matrimónio: «Pela graça do sacramento do matrimónio […] [os cônjuges
cristãos] auxiliam-se mutuamente para chegar à santidade pela vida conjugal
e pela procriação e educação dos filhos»[603]. Os noivos deveriam ser
formados para facilitar, pela oração, pelo exemplo e pelo amor humano, o
crescimento mútuo na santidade.
Mas centremo-nos então no tema final desta secção, que analisa a
dinâmica do amor e a sua articulação com a linguagem do corpo. É possível
que o corpo não acompanhe plenamente o amor entre os esposos? Já
explicámos como em certas ocasiões a pessoa mente com o corpo pois usa
gestos corporais que vão além da realidade concreta do amor (por exemplo,
as relações pré-matrimoniais). Mas agora o que interessa averiguar é o
oposto: o corpo consegue refletir sempre e de modo perfeito o amor mútuo
que os esposos experimentam?
Sobre as insuficiências das manifestações do amor entre os noivos, e
como que lançando uma ponte para a seguinte reflexão, centrada no Livro de
Tobias, S. João Paulo II mostra os limites da linguagem do corpo expostos no
Cântico: o amor parece querer ir além do que o corpo consegue expressar. A
linguagem do corpo tem, pois, limitações. Entre outras, existe nos noivos a
consciência profunda da intensidade do seu amor, que «é forte como a morte»
(Ct 8, 6): «Estas palavras expressam a potência do amor, a força do eros na
sua união amorosa, mas dizem também (pelo menos indiretamente) que na
“linguagem do corpo” este amor encontra o seu fim na morte»[604]. Por outras
palavras: os esposos querem amar-se para sempre, mas o corpo não pode
refletir de modo exato esse desejo de eternidade pois dissolver-se-á com a
morte. Claro que, como já atrás se referiu, a transmissão da vida é um dos
modos de ultrapassar essa limitação, prolongando o amor de modo físico nos
filhos. Os filhos prolongam o amor dos pais para lá da sua morte. Mas
permanece uma certa limitação do corpo da pessoa. Podemos perceber assim
como a linguagem do corpo, que «suporta», de algum modo, um autêntico
amor conjugal, não o esgota. O amor verdadeiro, o dom de pessoa a pessoa,
«atinge os últimos limites da “linguagem do corpo” para os superar»[605].
Sirva esta observação para ajudar os noivos a manter a perspetiva de que
o amor não deve ter fim à vista. Um amor deliberadamente «a prazo» não é
amor nenhum. Pelo menos, não é o amor de entrega total entre duas pessoas.
Bento XVI, na sua primeira encíclica, explicou sintética e
magistralmente tanto esta característica do verdadeiro amor como uma outra,
também ela relacionada com as limitações que se encontram no amor dos
noivos do Cântico dos Cânticos:
«Faz parte da evolução do amor para níveis mais altos, para as suas íntimas purificações, que ele
procure agora o caráter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da exclusividade – “apenas
esta única pessoa” – e no sentido de ser “para sempre”. O amor compreende a totalidade da
existência em toda a sua dimensão, inclusive a temporal. Nem poderia ser de outro modo, porque
a sua promessa visa o definitivo: o amor visa a eternidade»[606].

O amor conjugal não só visa a eternidade, que é contrariada pela morte,


como é exclusivo; se é certo que o corpo regista essa exclusividade, apenas o
faz em parte e daí surgem os ciúmes que se, por um lado podem proteger esse
amor, por outro refletem uma imperfeição que nele existe. Sigamos o
elaborado raciocínio de S. João Paulo II. No Cântico dos Cânticos diz-se que
«o amor não é apenas “forte como a morte”, mas é também ciumento: “O
ciúme é implacável como o abismo”» (Ct 8, 6)[607]. S. João Paulo II extrai
desta advertência duas conclusões. A primeira está em plena sintonia com as
características do amor conjugal.
A segunda é uma deficiência que pode acompanhar esse amor: por mais que
se desejem um ao outro, por mais que tenham consciência da doação mútua,
pode permanecer neles uma procura constante e como que um temor a que o
amor do outro fraqueje. Eis as palavras do Papa:
«Os ciúmes confirmam, em certo sentido, a exclusividade e a indivisibilidade do amor – indicam,
pelo menos indiretamente, a irreversibilidade e a profundidade subjetiva da eleição esponsal. É, no
entanto, difícil negar que os ciúmes manifestam ainda outra limitação do amor, uma limitação de
natureza espiritual»[608].

Procuremos expressar o mesmo com palavras mais simples. Por um lado,


o amor esponsal é exclusivo e os esposos têm disso plena consciência: há
olhares, afetos, atenções, iniciativas que se têm só com o cônjuge, ao mesmo
tempo que dele se espera e firmemente se deseja uma permanente atitude
idêntica. Desse «ciúme salutar» e positivo faz eco S. Paulo quando se dirige
aos de Corinto: «Tenho por vós um ciúme de Deus, porque desposei-vos para
vos apresentar como virgem pura, a um único esposo, a Cristo» (2 Cor 11, 2)
[609]
.
Por outro lado, o significado negativo dos ciúmes de que fala S. João
Paulo II pode ter que ver com faltas de confiança ou medos vagos e não
fundamentados. Essa faceta dos ciúmes ajuda a entender a dinâmica do amor,
que não se identifica com um tomar posse de algo. Muitas vezes as pessoas
sentem-se seguras quando possuem ou agarram os bens de que precisam.
Essa segurança serve para os bens materiais, mas não é a que corresponde ao
amor entre pessoas. É verdade que há entre os esposos o desejo de um
recíproco pertencer-se, mas essa união nunca se pode assemelhar à posse de
uma coisa, pois existe «a quase impossibilidade de apropriar-se e apoderar-
se da pessoa por parte de outra»[610]. O amor exige a confiança no outro, a
confiança no seu desejo constante de entrega; mas o corpo não assegura por
si e totalmente o amor fiel; essa limitação é registada no corpo como uma
espécie de «doença»: «O amor mostra-se maior do que aquilo que o “corpo”
é capaz de expressar. É então quando a sua debilidade se converte, em certo
sentido, em “linguagem do corpo”: “Estou doente de amor” (Ct 5, 8), diz a
esposa, como se quisesse dar testemunho da fragilidade do sujeito que
transporta o amor de ambos»[611]. Os ciúmes são assim como que a
constatação de que não há um modo físico de «atar» o amor, sem contar com
a entrega do outro. Ora, a dinâmica do amor pede um remédio para essa
limitação manifestada pelos ciúmes: é necessário um «salto» no amor que
liberte os que amam do mero registo do corpo e aumente a plena confiança na
vontade exclusiva de autodoação do cônjuge.
É pena que as seguintes palavras de S. João Paulo II se encontrem apenas
nas catequeses não lidas. O Papa comenta o seguinte versículo do Cântico:
«Põe-me como um selo sobre o teu coração, qual selo sobre o teu braço,
porque o amor é forte como a morte» (Ct 8, 6); e afirma que são como os
«acordes finais da “linguagem do corpo”», que
«concluem e coroam tudo o que inicia no Cântico dos Cânticos com a metáfora do “jardim
fechado” e da “fonte selada”. No momento em que a esposa do Cântico, esposa-irmã, pura na mais
profunda experiência do homem-esposo, dona do íntimo mistério da própria feminilidade, pede:
“Grava-me como um selo no teu coração” (Ct 8, 6), toda a delicada estrutura do amor esponsal
fecha-se, por dizê-lo de algum modo, no seu ciclo interpessoal interior. É nesta clausura que
amadurece o sinal visível do sacramento perene, nascido da “linguagem do corpo”, relido, por
assim dizer, como o fim na verdade do amor esponsal entre homem e a mulher»[612].

A esposa expressa que quer ser inteiramente do esposo, quer ficar como
que «gravada» na mais íntima dimensão do esposo. Desse amor, pois, flui a
indissolubilidade. Para chegar a esse grau, o amor deve crescer.
Esse salto deverá ser o desfecho do amor, tal como explica, mais uma
vez, Bento XVI:
«Embora o eros seja inicialmente sobretudo ambicioso, ascendente – fascinação pela grande
promessa de felicidade – depois, à medida que se aproxima do outro, far-se-á cada vez menos
perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez
mais dele, doar-se-á e desejará “existir para” o outro. Assim se insere nele o momento do ágape;
caso contrário, o eros decai e perde mesmo a sua própria natureza»[613].

Veremos como no Livro de Tobias é muito mais fácil encontrar esta


dimensão do amor, explicitamente enunciada na belíssima oração do capítulo
8.
É muito importante a constatação de que as exigências de unidade e
fidelidade do amor conjugal emergem da própria dinâmica do amor, não de
um código externo. Com esta perspetiva, poderíamos reler com maior
profundidade a resposta de Cristo aos fariseus. Cristo, naquela conversa,
«limitar-se-ia», sobretudo, a declarar o que de facto é, e sempre foi, o amor
conjugal. A indissolubilidade não é algo que Cristo tenha imposto como uma
regra externa. Jesus «apenas» retirou do horizonte dos ouvintes a tal «dureza
de coração» que os impedia de captar as exigências intrínsecas desse amor –
tão bem descritas neste livro da Bíblia –, e assegurou a graça da Redenção
que torna o homem capaz de assumir e viver sem recortes o grande amor que,
no fundo, deseja.
Na Familiaris Consortio, S. João Paulo II explica de forma notável o
valor da indissolubilidade matrimonial:
«Enraizada na doação pessoal e total dos cônjuges e exigida pelo bem dos filhos,
a indissolubilidade do matrimónio encontra a sua verdade última no desígnio que Deus
manifestou na Revelação. É Ele quem quer e concede a indissolubilidade matrimonial como
fruto, sinal e exigência do amor absolutamente fiel que Deus-Pai manifesta pelo homem e que
Cristo vive para com a Igreja.
Cristo renova o desígnio primitivo que o Criador inscreveu no coração do homem e da mulher, e,
na celebração do sacramento do matrimónio, oferece um “coração novo”. Assim, os esposos
podem não só superar a “dureza do coração”, mas também e sobretudo partilhar o amor pleno e
definitivo de Cristo, nova e eterna Aliança feita carne»[614].

Talvez a explicação e a meditação sobre o amor possam, então, ser


essenciais para aqueles que se querem casar. Ou veem e experimentam o
amor assim, para sempre e com aquela pessoa, ou pura e simplesmente não
amam com o amor que deve ser mais forte do que a morte.
Obviamente, no caso dos esposos cristãos conta-se com a graça de
Cristo: «Ao redimir o amor humano da maldição do pecado, Cristo permite
aos seus discípulos viver a utopia do Cântico, tal como era no jardim do
Génesis 2. Com certeza, à espera da ressurreição, da redenção completa, mas
já na realidade concreta da vida quotidiana»[615].
Concluamos com as palavras de um estudo bíblico sobre o Cântico dos
Cânticos que sintetizam o que foi exposto.
«O poema valoriza certamente a dimensão físico-espiritual do amor, contemplado, não como algo
pecaminoso e vulgar, mas sim como uma realidade gozosa e festiva, dotada de beleza e
sublimidade. Por outro lado, esta valorização é feita dentro de uma conceção da pessoa que reflete
os ensinamentos das primeiras páginas da Bíblia, que falam da bondade do homem e da mulher
enquanto criados por Deus à sua imagem e semelhança, participando, portanto, da sua capacidade
de amar no grau mais elevado. […] O autor do Cântico quis concentrar a sua atenção precisamente
nessa capacidade de amar que existe no homem e na mulher, delineando a sua grandeza e as suas
dificuldades. Para tal, sublinhou com grande maestria que o amor humano é uma realidade digna
da santidade de Deus, que o colocou no coração do homem, ainda que, para que seja autêntico,
deva ser íntegro, isto é, deva impregnar toda a pessoa de um modo pleno e definitivo.
Por este motivo, o autor do Cântico distancia-se da poligamia: a mulher do Cântico é única, como
também é único o amado (cfr. Ct 6, 8-9; 5, 10). À exclusividade une, como valores
inquestionáveis, a fidelidade e a indissolubilidade, que propõe com uma imagem altamente
eloquente: “Grava-me como um selo no teu coração, como um selo no teu braço, porque o amor é
forte como a morte” (Ct 8, 6). Ainda que o Cântico não toque diretamente o tema da instituição
matrimonial, o amor que apresenta tem todas as características do amor nupcial: exclusivo, fiel e
casto. De facto, exalta-se a castidade e a doação de si mesmo»[616].

22.
Inserindo a santidade no matrimónio[617]

Tendo em conta que se trata de aprofundar no sinal sacramental do


matrimónio, o capítulo anterior poderia lançar uma certa dúvida sobre a
importância e a necessidade de que a realização do matrimónio tenha lugar
na Igreja. Sim, é certo que o Cântico dos Cânticos é, como toda a Bíblia, um
livro sagrado: o que ali se descreve tem como que «a chancela» de Deus.
Mas é tão pouco explícita a referência a Deus que um leitor mais crítico
poderia interrogar-se: «mesmo querendo casar-me, porquê ir à Igreja?
Porquê recorrer explícita e externamente a Deus quando o facto de me
querer unir a alguém para sempre já pressupõe que aceito o desígnio divino?
Aliás, se o amor humano bem entendido – como o do Cântico – é santo, por
que razão multiplicar a declaração dessa santidade?» Um leitor ainda mais
crítico (pouco ou nada crente) destas linhas, e que tivesse lido o Cântico,
poderia concluir também: «sim, reconheço que é tudo lindíssimo mas,
excetuando o facto de ser um livro da Bíblia, o que ali está poderia ser
assumido por qualquer casal verdadeiramente enamorado. Porquê Deus no
matrimónio?»
Tobias e S. João Paulo II com ele vão responder.
O Livro de Tobias (uma narração que, agora em palavras de Bento XVI,
«contém um sentido muito elevado da família e do matrimónio»[618])
acrescenta elementos essenciais às lições dadas pelo Cântico. De modo
sintético, antes de nos determos em cada um deles, apresentemos o elenco de
temas que nos interessa focar com base na meditação de S. João Paulo II
sobre o Livro de Tobias[619]:
1. O livro ensina que o amor humano se manifesta mais por uma
escolha meditada e responsável do que por um êxtase. O Livro de
Tobias acrescenta realismo e profundidade ao amor dos
noivos/esposos do Cântico. Esse realismo surge em toda a sua
dramaticidade pelo facto de Tobias e Sara terem de enfrentar uma
prova de vida ou morte logo na noite de núpcias. Nos casamentos,
como é sabido, nem tudo são rosas. Serão os esposos conscientes de
que haverá dificuldades na vida conjugal? E, quando elas surgirem,
estarão dispostos a enfrentá-las procurando soluções? Estarão mesmo
dispostos a vencer o mal que se pode introduzir no casal?
2. Tobias e Sara ensinam que, para derrotar o mal que ameaça o
seu amor, precisam de Deus. E rezam. Na belíssima oração da noite
nupcial (cfr. Tb 8, 5-8), Tobias manifesta a sua fé plena no desígnio de
Deus sobre o casamento – é o «credo conjugal», como lhe chama S.
João Paulo II[620] – e pede o auxílio do Criador. Não se apoia, pois, no
que sente por Sara, mas antes sabe que necessita de um auxílio do Céu.
Os esposos cristãos deverão aprender com Tobias a reconhecer que o
projeto matrimonial é excessivamente grandioso para o poderem
realizar sem Deus.
3. É necessário, portanto, o recurso à linguagem litúrgica, que nos
situa diante do Criador, para que a linguagem do corpo possa
finalmente «falar» o que o Criador sempre quis que expressasse. Na
liturgia, os noivos são ministros de Deus, intérpretes e executores do
plano de Deus para o matrimónio; só eles o podem tornar efetivo pelas
suas palavras. Só eles podem, depois, torná-lo vivo mediante a
linguagem do corpo, que recebe de Deus a força para poder ser
verdadeira no dia a dia. A linguagem do corpo, purificada pelo amor
de Deus, torna-se a continuação da linguagem litúrgica.
Vejamos então, com certa perspetiva, cada um destes elementos, e
procuremos, como no capítulo anterior, extrair conclusões práticas para os
nossos dias.
22.1. Tobias e Sara: a história
Pressuponho que o leitor conhece a história de Tobias. Em breves
palavras, Tobias é enviado pelo pai – homem justo e irrepreensivelmente
honesto, que entretanto tinha ficado cego – a casa de um familiar que vivia
longe, para lhe cobrar uma dívida de havia 20 anos. Ao mesmo tempo que o
pai elevava súplicas a Deus pela sua penosa situação, Sara – a rapariga da
história –, que vivia bem longe, suplicava a Deus que lhe valesse, pois tinha
casado já sete vezes e os maridos tinham morrido todos na noite do
casamento, devido a um demónio de nome «Asmodeu». A ponte entre Tobias
e Sara vai ser feita pelo arcanjo Rafael, enviado por Deus em atenção às suas
preces para solucionar os problemas existentes na vida de cada um deles.
Tobias partirá com Rafael, cuja identidade desconhece até ao fim, e não só
cobra a dívida como, «pelo caminho», se enamora de Sara e decide casar
com ela. Rafael anima-o a não ter medo de assumir esse compromisso,
apesar da tétrica história dos precedentes maridos, até porque Sara é israelita
(esse tinha sido um dos conselhos do pai: acontecesse o que acontecesse,
Tobias deveria casar com uma rapariga do povo de Israel). Rafael dá-lhe
valiosos conselhos na noite de núpcias para vencer o demónio assassino, mas
sobretudo sugere a Tobias que ambos orem a Deus antes da união conjugal.
E diz-lhe: «Não temas: ela foi-te destinada desde a eternidade, e tu a salvarás
e ela te acompanhará» (Tb 6, 18).
Tobias e Sara casam-se e, na noite do casamento, decidem rezar juntos. É
sobre essa extraordinária oração (cfr. Tb 8, 5-8) que nos haveremos de deter.
Para o leitor curioso, resta acrescentar que tudo acabou bem. Sobreviveram
ambos à ameaça que matou os sete maridos de Sara, Tobias cobrou a dívida,
regressou casado ao lar paterno com uma israelita magnífica e, além disso, o
Arcanjo curou a cegueira do pai. Um comovedor happy end que, suponho,
animará à leitura integral desta joia bíblica.
Antes de passarmos em revista os três temas enunciados, gostaria de
acrescentar um pequeno comentário ao versículo já transcrito, em que Rafael
sossega Tobias revelando-lhe o desígnio de Deus sobre ambos (cfr. Tb 6, 18).
Não é a primeira vez que aparece esse desígnio no relato, pois já
anteriormente se advertiu o leitor de que os maridos morriam porque Sara
«era destinada a Tobias, de preferência a todos os pretendentes» (Tb 3, 17).
Em muitas ocasiões, rapazes e raparigas questionaram-me sobre um assunto
que tem a ver com os desígnios da Providência: «a rapariga que eu procuro
está reservada por Deus para mim?»; «como sei que aquele é o rapaz que
Deus pensou para mim?»
Desde já adianto que não vou expor nenhum «dogma». Apenas darei a
minha opinião sobre o assunto. Aliás, embora admita que a resposta seja
afirmativa, que Deus tem realmente pensado um rapaz para uma rapariga
determinada e vice-versa, penso ser arriscado e fonte de mal-entendidos
querer identificar a vontade de Deus «antes» do tempo: «só pode mesmo ser
aquela!»; mas, depois, «não era», ou, pelo menos, «não se casou porque
entretanto se apaixonou por outro». Outra atitude errada, que poderíamos
denominar como «providencialite», seria a de quem espera no seu quarto que
o príncipe ou a princesa entrem pela janela e digam: «Deus mandou-me vir
ter contigo!» Como em quase tudo, Deus não poupa ao trabalho de procurar
esposa ou esposo, como não poupará ao trabalho de construir um casamento
feliz, às vezes superando várias dificuldades. Após o casamento, então sim,
penso que é legítimo ouvir no nosso interior as palavras do Arcanjo Rafael
(«era destinada a Tobias, de preferência a todos os pretendentes»). Antes, é
melhor que palavras semelhantes não sejam um pretexto que dificulte tomar
as medidas de prudência habituais para conhecer bem aquele ou aquela com
quem se deseja casar.
Dito isto, gostaria de acrescentar que, em primeiro lugar, para um
católico que conta de facto com a Providência e o amor de Deus, o normal é
que peça a Deus para encontrar a pessoa com quem pode constituir
matrimónio. Deus é nosso Pai, o casamento foi desenhado por Ele e Ele é
quem melhor sabe a importância de um bom casamento. À partida, ninguém
deve pensar que escorrega para o egoísmo quando suplica a Deus aquela
graça. Está a pedir ajuda a Deus – pressupondo que a vocação da pessoa é a
matrimonial – para encontrar a pessoa com quem pode levar à prática um
projeto ancestral do próprio Deus, que tão excelentes frutos deu ao longo da
História da humanidade.
Em segundo lugar, desejo transcrever, para os jovens leitores, umas
palavras de S. João Paulo II, que equilibrarão as minhas advertências iniciais
e darão uma perspetiva muito mais animadora. Trata-se de uma carta do
jovem sacerdote Karol Wojtyla a uma rapariga. A carta, transcrita na
magnífica biografia de George Weigel sobre S. João Paulo II, diz assim:
«Depois de muitas experiências e de muito ter pensado, estou convencido de que o ponto de
partida (objetivo) para o amor é aperceber-me que faço falta a alguém. A pessoa que
objetivamente mais precisa de mim é também, para mim, a pessoa de quem mais preciso. Isto é
um fragmento da lógica profunda da vida e também um fragmento da nossa confiança no Criador
e na Providência»[621].

Em suma: na questão de encontrar a pessoa certa para o matrimónio, é


preciso confiar na Providência, mas sem que ninguém se poupe ao esforço
tanto de procurar a pessoa certa como de a conhecer bem, evitando interpretar
antes de tempo os desígnios da Providência. Uma vez celebrado o casamento,
os esposos podem e devem agradecer a Deus tê-los unido.
22.2. Um amor decidido e realista, disposto a vencer o mal
Como referi acima, a primeira lição do casamento de Tobias e Sara é a
de que o encontro entre os dois é muito mais sereno do que o descrito no
Cântico dos Cânticos. Ambos estão decididos a casar rapidamente, mas
ambos sabem também que pairou sobre os casamentos de Sara uma sombra
de infortúnio e morte. Mesmo assim, decidem casar. «Por conseguinte, a
verdade do amor dos esposos do Livro de Tobias não é confirmada pelas
palavras expressas pela linguagem do transporte amoroso como no Cântico
dos Cânticos, mas sim pelas escolhas e pelos atos que assumem todo o peso
da existência humana na união de ambos»[622].
Bastariam estas palavras para descomplicar muitas jovens noivas e
esposas (e também noivos e esposos). Às vezes, gasta-se demasiado tempo a
querer analisar se o «nível de transporte amoroso» que se sente (ou não) é o
adequado ao namoro ou ao casamento: «não deveria sentir mais qualquer
coisa?» Na realidade, não existe um «termómetro» (seria melhor falar de
«amorómetro») para responder. Nem sei se interessa muito. Pelo contrário,
importa responder seriamente a outras questões: «vou disposta ou disposto a
amá-lo ou amá-la com tudo o que posso e sou, dando o meu melhor?
Continuo a querer amá-lo ou amá-la quando me confronto com os seus
defeitos ou limitações?» A resposta afirmativa a estas disposições é bem
mais decisiva e mais certeira sobre a qualidade
do amor em jogo.
S. João Paulo II faz notar como se manifesta o amor entre Tobias e Sara:
«Encontra a sua expressão sobretudo na rapidez em partilhar a sorte e de permanecer juntos “na
prosperidade e na adversidade”. Não é o eros que caracteriza o amor de Tobias por Sara mas,
desde o princípio, este amor é confirmado e validado pelo ethos, isto é, a vontade e a escolha dos
valores»[623].

Quando marido e mulher decidem amar-se custe o que custar, quando


estão firmemente dispostos a proteger o amor conjugal frente a qualquer
inimigo (contrariedades de todo o género, doenças, choque de feitios, um
certo cansaço mútuo), então estamos diante de um amor verdadeiro, de total
doação e aceitação mútuas.
Não é mau que os chamados «filmes românticos» bebam com a
suficiente discrição e modéstia do Cântico dos Cânticos e do seu arrebato de
amor. Mas seria desejável, na minha opinião, que abundassem mais os filmes
em que os espectadores pudessem admirar um casamento como o de Sara e
Tobias, um amor em que se sabe ser necessário enfrentar dificuldades.
Aliás, atrasar em excesso (note-se bem que escrevo «em excesso»!) os
casamentos apenas porque não se dominam completamente todas as situações
(o emprego ainda não é estável, ainda não se alcançou o grau profissional
ambicionado, etc.) é, no mínimo, uma falta de amor pelo outro. O casamento
é também para enfrentar dificuldades a dois.
Voltemos à dificuldade de Tobias. Nada pequena, por certo. A sua vida
podia terminar na noite de núpcias, com mais um trauma para Sara. Além de
a decisão de ambos transmitir de modo inequívoco a autenticidade do amor,
há uma outra importante lição nesta atitude, um outro sentido do amor
matrimonial para esta prova de vida ou morte que os dois são chamados a
enfrentar. S. João Paulo II explica que, ao contrário de uma visão
excessivamente positiva dos noivos do Cântico dos Cânticos (talvez pela
força do próprio amor, sugere), onde o mal não parece estar no horizonte,
quando Tobias e Sara se casam «encontram-se na situação em que as forças
do bem e do mal se combatem e se medem reciprocamente»[624]. No relato, do
lado do mal está não só o demónio Asmodeu, que se assemelha a um serial
killer especializado, mas também a dimensão luxuriosa que, de acordo com
as palavras da oração de Tobias, os sete antecessores de Tobias tinham do
casamento e que os tornou presa fácil de Asmodeu. Do lado do bem temos o
desígnio de Deus, a cura proposta por Rafael para atravessar incólume a
difícil noite e a sintonia de Tobias e Sara com os desígnios do Criador. «A
verdade e a força do amor manifestam-se na capacidade de colocar-se entre
as forças do bem e do mal, que combatem no homem e em redor dele, porque
o amor confia na vitória do bem e está pronto a fazer tudo para que o bem
vença»[625].
S. João Paulo II afirma que este tipo de manifestação do amor, em que
predomina uma eleição, uma opção vital, é também ele «linguagem do
corpo». Este esclarecimento é, na minha perspetiva, essencial, pois evita
entender essa linguagem como um «ballet amoroso»[626]. Tobias escolhe
enfrentar a prova de vida ou morte. E a morte é, também, uma palavra que
pertence à linguagem do corpo, a última das palavras e que manifesta «a
contingência do ser humano»[627]. Tobias sabe o que lhe pode suceder, mas
não foge do perigo, porque ama Sara e, sobretudo, confia na proteção de
Deus.
Da leitura do livro sagrado, rapidamente se conclui que Tobias vence o
mal porque se apoia em Deus. A meditação destas páginas bíblicas bem pode
servir para que marido e mulher desejem estar preparados para enfrentar
qualquer mal que os venha a ameaçar, cultivando a esperança de vencer
apoiados em Deus. Em concreto, devem estar dispostos a vencer os males
que podem envenenar o amor conjugal[628]. Entre as ameaças ao casamento,
estão por exemplo as infidelidades e também os contracetivos. Não são
menos perigosos para o aniquilamento do amor do que o demónio Asmodeu.
Os noivos, perante o futuro casamento, hão de estar firmemente dispostos a
recorrer a Deus para derrotar esses venenos, que às vezes atuam lentamente
mas sempre de modo inexorável. Teremos ocasião de voltar demoradamente
a este assunto, sobretudo no que à contraceção se refere, no longo capítulo
seguinte.
Portanto, perante o perigo que os ameaça, Tobias e Sara decidem confiar
decididamente em Deus. Eis, finalmente, o momento de ler a extraordinária
oração de Tobias:
«Então Tobias levantou-se do leito e disse a Sara: “Levanta-te, minha irmã; vamos rezar, pedindo
ao Senhor que nos conceda a sua misericórdia e nos salve”. Ela levantou-se e começaram a rezar,
pedindo ao Senhor que os salvasse. Disse Tobias:
“Bendito sois, Deus dos nossos pais. Bendito é o vosso nome por todos os séculos dos séculos.
Louvem-Vos os céus e todas as criaturas, por todos os séculos dos séculos. Vós criastes Adão e
lhe destes Eva por esposa, como auxílio e amparo; e de ambos nasceu o género humano. Vós
dissestes: ‘Não é bom que o homem esteja só; façamos-lhe uma auxiliar semelhante a ele’.
Senhor, bem sabeis que não é por paixão [luxuriae causa], mas com intenção pura, que tomo esta
minha irmã como esposa. Tende piedade de mim e dela e fazei que cheguemos juntos a uma
ditosa velhice”. E disseram ambos: “Ámen. Ámen”. Depois deitaram-se para passar a noite» (Tb
8, 4-9).

Não resisto a transcrever um clarividente e sintético comentário de


Christopher West a esta oração: «Reparem que, tal como Cristo dirá aos
fariseus para fazerem, Tobias e Sara apoiam o seu coração no original plano
de Deus para o casamento. Reparem que Tobias chama-a “irmã”, tal como o
esposo do Cântico. Reparem que contrapõe a concupiscência ao sincero dom
de si. Reparem como pensa passar toda a vida com ela (“O que Deus uniu
não o separe o homem”).
E reparem que Tobias sabe como não pode viver este chamamento sublime
sem o auxílio da graça de Deus»[629].
A oração de Tobias é uma esplendorosa lição. Por um lado, no seu
diálogo com Deus, Tobias e Sara fazem referência a decisivas verdades de fé:
aquilo em que acreditam torna-se oração. As palavras que dirigem a Deus
«expressam plenamente o que preenche os seus corações»[630]. Desse modo,
enunciam o que S. João Paulo II chamou «credo conjugal», como referimos
acima. Ao mesmo tempo, aquilo em que acreditam é luz e guia para os seus
passos. Tobias decide atuar com base nessas verdades; diz que não quer casar
como aqueles que não conhecem Deus e os seus desígnios. Em concreto, o
Deus a quem se dirige é o Criador do mundo e de todas as criaturas. É o
Criador do homem e da mulher, ambos criados por Deus um para o outro. É o
Criador do matrimónio, para o qual tem um desígnio determinado. Tobias
sabe que a união é para sempre, e ambos contam com a bênção de Deus para
o matrimónio. Eis sumariamente delineado o conteúdo do credo conjugal.
Tobias e Sara desejam profundamente «chegar a ser um novo anel da
corrente que teve início na existência do homem. No momento em que os
esposos, já que se casaram um com o outro, devem ser, como marido e
mulher, “uma só carne”, procuram ler em conjunto, na sua fonte divina, a
“linguagem do corpo” própria do seu estado»[631]. Logo a seguir a estas
palavras, sobre as quais nos vamos deter em breve, S. João Paulo II remata
com a terceira ideia, que nos ocupará a seguir e que é, talvez, o conteúdo
mais difícil destas catequeses sobre o Livro de Tobias: «Deste modo, a
“linguagem do corpo” transforma-se em linguagem da liturgia: fica ancorada
do modo mais profundo possível, isto é, situada no mistério do
“princípio”»[632].
22.3. Casar-se no Senhor (cfr. 1 Cor 7, 39)
Deixemos momentaneamente em suspenso a ligação entre a linguagem
do corpo e a linguagem litúrgica, bem como as consequências daí derivadas,
e concentremo-nos na oração de Tobias e Sara. É sumamente conveniente
que os noivos tenham plena consciência de que o casamento não é uma
espécie de plano «a dois» com um alcance também «a dois». Não se trata
igualmente de uma «cobertura social bonita» para atividades privadas. Pelo
matrimónio, os esposos cristãos devem saber que se inserem no desígnio de
Deus sobre o casamento: são um elo de uma corrente que vai desde o
primeiro homem até à última geração sobre a terra. Não há outra instituição
com longevidade semelhante. Ao mesmo tempo, o novo casal fica inserido,
enquanto casal, na vida social e na vida da Igreja.
O amor mútuo entre os cônjuges não é, para dizê-lo de alguma maneira,
meramente «privado». Uma amizade entre amigos pode ser privada, mas não
configura por si só nenhuma instituição nem reclama uma instituição para a
apadrinhar. Não é assim com o amor dos cônjuges. É um amor de entrega
total e que é declarado como tal à vista de todos: é assumido um
compromisso diante de todos, sobretudo diante de Deus. Trata-se de um
compromisso que muda, ou deve mudar, as relações entre os familiares dos
cônjuges, que se tornarão mais próximos uns dos outros. São duas famílias
que se aproximam e de algum modo se tornam numa família maior. Para a
Igreja, os esposos participam e tornam visível o amor fiel e fecundo de Cristo
pela Igreja. E o próprio Deus abençoa e dá ao vínculo criado entre os esposos
uma solidez inimaginável. Por isso, os esposos fiéis colocam diante dos olhos
de todos a exequibilidade de um amor incondicional, fiel, fecundo.
Decididamente, o matrimónio não é um assunto meramente «privado», apesar
de se apoiar numa realidade íntima que só os dois conhecem bem.
Os esposos cristãos devem interiorizar o credo conjugal. Ao casarem-se,
sabem realmente o que fazem? Se tiverem plena consciência do papel
transcendente do seu casamento, se forem conscientes de que Deus olha para
cada casamento com o mesmo «olhar» e «interesse» com que inventou o
primeiro de todos, é normal que brote do mais profundo do coração dos
esposos, no dia do seu casamento, uma súplica sincera dirigida a Deus. O
ideal é tão sublime e as barreiras que se podem levantar são tantas que
ninguém deve prescindir da oração.
É pena que, por vezes, se subordine a cerimónia litúrgica à festa que se
segue. Nada – nada mesmo – da celebração deveria ficar à mercê do «copo
de água»: nem a localização, nem o tempo da celebração. No fim de contas,
quem de facto pode assegurar o bom êxito do casamento é Deus, não os 150
ou 200 convidados para o banquete de núpcias, por muito importante que
possa ser o seu papel na vida dos cônjuges. No casamento, em «provas de
vida ou morte» (e não só), o auxílio definitivo virá sempre do Senhor. Por
isso, no dia das bodas, sugiro que os noivos procurem de verdade ter o
coração em Deus e no seu desígnio, não deixem de reconhecer o futuro
cônjuge como um dom de Deus e, ao mesmo tempo, se entreguem nas mãos
de Deus para que possa deles fazer um dom ao outro. Em resumo, devem
pedir ao Senhor que o sacramento lhes aumente tanto a vontade de ser dom
como de aceitar incondicionalmente (na saúde e na doença…) o dom que é o
outro.
23.4. Linguagem litúrgica e inserção no desígnio divino
Passamos ao tema mais difícil, já resumido num dos parágrafos
introdutórios do capítulo, em que S. João Paulo II fala das relações entre a
linguagem litúrgica e a linguagem do corpo.
Que entende ao certo S. João Paulo II por «linguagem litúrgica»? É «a
língua do sacramento e do “mysterium”»[633]. O que S. João Paulo II explicará
é a continuidade cíclica (ou, com maior exatidão, a possibilidade dessa
continuidade) entre a linguagem do corpo e a linguagem litúrgica. Dito de um
modo algo simplificado, a linguagem do corpo deve transformar-se em
liturgia, e a linguagem litúrgica deve traduzir-se e prolongar-se na linguagem
do corpo, já elevada e purificada pelo momento litúrgico.
Concretizemos estas transformações contemplando a história de Tobias.
Na noite de núpcias, antes de o corpo «falar», Tobias e Sara falam juntos a
Deus: rezam! Na sua oração, Tobias evoca o desígnio divino sobre o
matrimónio tal como foi descrito no Génesis e que, como bom israelita, bem
conhecia. Ao fazê-lo, deseja purificar o seu amor, deseja que a linguagem do
corpo seja verdadeira, indo para isso à fonte donde brota essa linguagem: ao
«princípio», ao próprio Deus. De facto, ele declara ao seu Senhor que o
motivo que o leva a casar não é o desejo concupiscente, mas sim uma reta
intenção, uma intenção de acordo com o modelo do princípio, que
vincadamente acaba de evocar. Tobias e Sara necessitam de Deus, e com a
oração «abrem-se ao Deus vivo»[634], ao Deus da vida, e chegam até à «fonte
divina»[635], donde brota a linguagem do corpo. Sabem que necessitam de uma
purificação, de uma graça, que lhes permita falar de forma verdadeira essa
linguagem. No momento em que, mediante o seu credo conjugal, se situam
na fonte divina de onde procede a linguagem do corpo, ela transforma-se em
«linguagem da liturgia»: fica ancorada do modo mais profundo possível, isto
é, estabelecida no mistério do «princípio»[636]. Assim, já não são só eles a
falar com o corpo; também Deus pode «falar» através da linguagem dos seus
corpos. Mediante o amor encarnado dos esposos e ancorado em Deus, cada
um deles pode «tocar» uma parcela do amor de Deus.
A oração de Tobias, diz ainda S. João Paulo II, «é o mais profundo
modelo da liturgia, cuja palavra é palavra de força. É palavra de força que
brota das fontes da aliança e da graça. É o poder que liberta do mal e que
purifica». E, acrescenta, «é nesta palavra da liturgia que o sinal sacramental
se cumpre»[637].
Retenhamos a exposição da catequese a partir de umas breves
considerações. Um casal cristão deveria ser consciente da necessidade de
purificar o seu coração de modo a que o amor mútuo seja sempre verdadeiro.
Sabemos que um amor verdadeiro exclui qualquer sombra de utilização do
outro, risco que não está ausente nem sequer no matrimónio. Para não
incorrer nessa degradação do amor, não basta a intensidade do sentimento
mútuo por ocasião da celebração do casamento. Não basta a alegria e o
entusiasmo do dia do enlace para se amarem por toda uma vida, numa
autêntica comunhão de amor, com um amor fiel e um desejo de fecundidade,
com uma plena abertura à vida. As meras forças humanas são, na maior parte
das vezes, insuficientes para um projeto tão grandioso como é o matrimónio.
S. João Paulo II expressa com maior rigor esta afirmação. Entende o Pontífice
que os noivos do Cântico apresentam a linguagem do corpo relida numa
dimensão subjetiva, ao passo que Tobias e Sara, com a referência ao desígnio
divino sobre o amor conjugal e à vida vivida em união, releem essa
linguagem num sentido objetivo. Os primeiros «declaram mutuamente, com
palavras ardentes, o seu amor humano», ao passo que Tobias e Sara «pedem a
Deus que saibam responder ao amor»[638]. Ambas as dimensões são
necessárias[639].
Em certo sentido, a declaração de entrega mútua do rito do matrimónio é
como que uma aproximação à dimensão de aliança e graça do matrimónio, à
fonte do verdadeiro amor conjugal. A imersão nessa fonte é realizada num
clima de oração, num ambiente sagrado, que ajuda a tomar consciência do
que se está a fazer. Uma celebração do rito matrimonial demasiado «liberal»,
com «invenções» profanas, por melhor que seja a intenção, não ajuda à
interiorização dos cônjuges. Naquele momento, eles devem rezar a Cristo,
que trouxe ao homem a possibilidade de se casar de acordo com o plano do
«princípio», que brotou puro das mãos do Criador.
Recordo-me de que, na preparação de um casamento ao qual presidi, os
noivos quiseram saber a minha opinião sobre a possibilidade de se cantar, no
momento da apresentação das oferendas, uma canção de uma banda musical
em moda que os tinha aproximado. O facto de me perguntarem mostra a sua
inocência e boa vontade. Evidentemente, respondi-lhes que não era oportuno
ouvi-la naquele momento sagrado. Compreenderam na perfeição as razões e
aderiram sem reservas ao que lhes disse. Serão assim todos os casos?
Purificados pela oração, os noivos tornam-se mais conscientes da
grandeza de serem ministros do sacramento[640]. Sabem que, com o seu
querer, vão tornar presente, nas suas vidas, o eterno e amoroso plano de Deus
para o amor humano: «A “linguagem do corpo” torna-se linguagem dos
ministros do sacramento conscientes de que no pacto conjugal se exprime e
se atua o mistério que tem a sua fonte em Deus mesmo»[641]. No amor dos
esposos cristãos, como já se viu, o amor de Cristo pela sua Igreja é chamado
a tornar-se presente.
Prevejo que o leitor continue a pensar que ainda é necessário explicar de
que modo, no Livro de Tobias, a linguagem da liturgia, que «eleva o pacto
conjugal […] às dimensões do mistério»[642], se transforma em linguagem do
corpo. Embora S. João Paulo II insinue essa «transformação» através da
oração de Tobias, na realidade tem de ir além do episódio. A linguagem
litúrgica transforma-se em linguagem do corpo porque o sinal sacramental
não significa apenas a realização do casamento, mas significa também toda a
vida conjugal. Na oração de Tobias, pede-se que os dois cheguem juntos à
velhice (cfr. Tb 8, 7) e, nesse sentido, fica delineada a perspetiva de como a
liturgia «prevê» que o que se acaba de assumir deva prolongar-se por toda a
vida. Como referi, excedendo os ensinamentos do Livro de Tobias, S. João
Paulo II explica:
«A língua litúrgica confia a ambos, ao homem e à mulher, o amor, a fidelidade e a honestidade
conjugal mediante a “linguagem do corpo”. Confia-lhes a unidade e a indissolubilidade do
matrimónio na “linguagem do corpo”. Confia-lhes como dever todo o “sacrum” da pessoa e da
comunhão de pessoas, e igualmente a sua feminilidade e masculinidade, precisamente nesta
linguagem. Em tal sentido afirmamos que a língua litúrgica torna-se “linguagem do corpo”»[643].
Por outras palavras, pela liturgia os esposos recebem de Deus toda uma
perspetiva e um modo de viverem o seu casamento: o amor mútuo encontra-
se elevado e santificado para se poder expressar na verdade da linguagem do
corpo. E também sucede que os cônjuges vislumbram através do seu
casamento a dimensão sagrada que os rodeia: uma dimensão real, e que lhes
dará a verdadeira consciência da grandeza do dom recebido.
Termino com as próprias palavras de S. João Paulo II a este respeito:
«A “linguagem do corpo”, como continuidade ininterrupta da língua litúrgica, exprime-se não
apenas como o fascínio e o prazer recíproco do Cântico dos Cânticos, mas também como uma
profunda experiência do “sacrum”, que parece estar infundido na mesma masculinidade e
feminilidade através da dimensão do “mysterium”: o “mysterium magnum” da Carta aos Efésios,
cujas raízes mergulham precisamente no “princípio”»[644].

Apesar da densidade destas catequeses, cujo amplo significado é apenas


aflorado nestas linhas, espero que o leitor fique profundamente convicto de
que um casamento sem Deus, ou onde Deus é tratado como um adorno
convencional para tal ocasião, é um casamento em que os cônjuges não
parecem saber ao certo o que fazem. Ou, pela positiva, um casamento cristão
é de uma tal riqueza que o dia do casamento deverá ser, em primeiro lugar, a
ocasião para uma forte experiência de Deus na vida dos cônjuges. Só assim,
como na experiência de Tobias e Sara, o casamento pode enfrentar as provas
de vida e morte… e sair vencedor. Deus vencerá nos cônjuges que se
convertem em intérpretes do seu amor pela humanidade.

23.
Contraceção – Por que não?[645]

Já referimos, num dos capítulos introdutórios, que S. João Paulo II, na


última das audiências dedicadas à teologia do corpo, confessa que todas
aquelas catequeses mais não são do que «um amplo comentário à doutrina
contida na […] encíclica Humanae Vitae»[646].
Mais recentemente, em 2008, ano em que a encíclica de Paulo VI
perfazia 40 anos, o Papa Bento XVI interveio em pelo menos duas ocasiões
para a ela se referir, em concreto nos dias 10 de maio e 2 de outubro. Numa
dessas intervenções, afirmou:
«O meu Predecessor de venerada memória, o Servo de Deus Paulo VI, a 25 de julho de 1968,
publicou a carta encíclica Humanae Vitae. Aquele momento tornou-se depressa sinal de
contradição. […] Quarenta anos depois da sua publicação, aquele ensinamento não só manifesta a
sua verdade inalterada, mas revela também a clarividência com a qual o problema é tratado. […]
O Magistério da
Igreja não pode exonerar-se de refletir de modo sempre novo e aprofundado sobre os princípios
fundamentais que dizem respeito ao matrimónio e à procriação. O que era verdade ontem
permanece verdadeiro também hoje. A verdade expressa na Humanae Vitae não muda»[647].

Há dúvidas e problemas que surgiram, no âmbito católico, aquando


da publicação da encíclica, e que permanecem. Não sei dizer se, tomado na
globalidade, o problema é hoje menor do que era há mais de 40 anos.
Gostaria de responder afirmativamente, mas receio que, neste campo, ainda
haja um longo caminho a percorrer. Aliás, como demonstração de que o
problema se mantém, transcrevo a resposta do então prefeito da
Congregação para a Doutrina
da Fé, presente no livro de entrevistas O Sal da Terra, a uma pergunta
inteligentemente formulada:
«Senhor Cardeal, muitos fiéis não compreendem a atitude da Igreja em relação à contraceção.
Compreende que não a compreendam?
Sim, claro que compreendo, porque é um tema um pouco complicado. Com as dificuldades do
mundo atual, pelo tamanho das habitações e por outras muitas razões, em princípio parece
razoável que o número de filhos não seja muito elevado. Precisamente por essa razão, não se pode
questionar este assunto a partir da casuística individual, mas temos de o considerar conhecendo
primeiro quais as intenções da Igreja a este respeito»[648].

Depois de mostrar compreensão pela dificuldade, refere três aspetos que


é necessário ter em consideração para que se entenda o que a Igreja ensina.
Resumidamente:
• É preciso mudar a atitude da humanidade no que diz respeito ao
número de filhos, e esta atitude deverá ser radicalmente positiva;
• É preciso voltar a recuperar o nexo íntimo entre a sexualidade e a
procriação. Este é o ponto fundamental da encíclica, e é sobretudo
nele que nos vamos deter, conscientes de que é um assunto realmente
mal entendido por muitos;
• Por fim, é preciso ajudar a entender que os graves problemas morais
nunca se podem solucionar pela técnica: os problemas morais
solucionam-se por via moral, isto é, mudando de vida. S. João Paulo
II, como veremos, refere esta ideia no ciclo que estamos a estudar
(estudá-la-emos no ponto 11 deste capítulo).
Antes de passarmos ao assunto-chave do capítulo, que fica portanto bem
delimitado (o nexo entre sexualidade e procriação), convém não deixar passar
por alto o primeiro dos aspetos. O professor William Newton, num tão breve
como acutilante inciso no final de uma das suas conferências num dos
congressos internacionais de teologia do corpo, advertiu: «Don’t forget the
baby». As catequeses de teologia do corpo, como é óbvio, aprofundam muito
na realidade do amor humano, mas não abarcam todos os temas relacionados
com a família, e alguns desses temas, como por exemplo o da geração dos
filhos, devem ser estudados com maior extensão a partir de outras fontes.
Basta referir dois documentos de S. João Paulo II: a exortação apostólica
Familiaris Consortio (n.º 14 e n.º 28, por exemplo) e a Carta às Famílias (n.º
16, por exemplo), onde se dedica atenção à fecundidade. Do primeiro deles,
convido o leitor a reler as palavras que seguem:
«Assim, a tarefa fundamental da família é o serviço à vida. É realizar, através da história, a bênção
originária do Criador, transmitindo a imagem divina pela geração de homem a homem.
A fecundidade é o fruto e o sinal do amor conjugal, o testemunho vivo da plena doação recíproca
dos esposos»[649].

Na obra Amor e Responsabilidade, por sua vez, S. João Paulo II


incentiva os casais a superarem os dois filhos:
«Uma vez que a família é uma instituição de educação, importa que tenha, se é possível, vários
filhos, porque, para que um novo homem forme a personalidade, é muito importante que não seja
filho único, que esteja rodeado tanto de irmãos e (ou) irmãs como dos pais. Diz-se às vezes que é
mais difícil educar vários filhos do que um filho único, mas diz-se também que dois não fazem um
ambiente social, são só dois filhos “únicos”. Os pais têm na educação a função dirigente, mas sob
a sua égide os filhos educam-se também a si mesmos, graças sobretudo ao facto de serem
obrigados a desenvolver-se no quadro da sociedade infantil dos irmãos e das irmãs»[650].

São suficientes estes parágrafos para fazer constar a importância do


primeiro dos aspetos referidos na entrevista ao então cardeal Ratzinger. De
alguma maneira, como pano de fundo de tudo o que se dirá sobre o segundo
aspeto, brilham as palavras da Gaudium et Spes: «Por sua própria índole, a
instituição matrimonial e o amor conjugal estão ordenados para a procriação
e a educação da prole, que constituem como que a sua coroa»[651]. Se os filhos
não fossem vistos como uma joia preciosa, um dom incomensurável, seria
bem mais difícil captar a grandeza da sexualidade[652].
Devo acrescentar ainda que, neste capítulo, além de responder à questão
central, transcrita no título («Por Que Não Usar Contracetivos?»), pensei que
deveria reunir de modo sintético as variadas dúvidas que se levantam sobre o
tema, às quais responderei. No entanto, antes de as apresentar, e para começar
de imediato a delinear a resposta, começo por reafirmar que o problema
identificado pelo cardeal Ratzinger nessa entrevista é crucial. Por mais que
custe aos ouvidos modernos, é realmente urgente restabelecer a relação entre
a sexualidade e a procriação.
Já em Amor e Responsabilidade Karol Wojtyla se expressava com
clareza: «As pessoas podem nutrir um afeto recíproco sem que nelas atue o
impulso [sexual]. Torna-se assim evidente que o amor do homem e da mulher
não é determinante para a finalidade intrínseca do impulso. O seu verdadeiro
fim, o seu fim per se, é alguma coisa supraindividual: é a existência da
espécie homo, o prolongamento contínuo da sua existência»[653].
Significa isto que o amor entre o homem e a mulher é «secundário»? A
resposta é negativa, como qualquer leitor da obra de K. Wojtyla sabe
perfeitamente: o amor não é secundário, mas «desenvolve-se nos limites
desta finalidade, no seu quadro, se assim se pode dizer; nasce dos elementos
que o impulso lhe fornece. Não pode, pois, estar normalmente constituído
senão na medida em que toma forma em estreita harmonia com a finalidade
essencial do impulso»[654]. No amor conjugal a perspetiva de ter filhos é
essencial.
Vai ser necessário fundamentar o que se acaba de afirmar, até para que
não se fique com a ideia – errada – de que as relações entre os esposos devem
visar apenas a procriação, transmitindo desse modo a ideia de que se
instrumentaliza a sexualidade, e por conseguinte a pessoa, para servir a
espécie. Não é obviamente isso que Karol Wojtyla defende, como veremos.
23.1. Objeções teóricas e práticas à Humanae Vitae
Formulemos, então, as questões ligadas à doutrina da Igreja contida
n a Humanae Vitae. Distribuí academicamente essas questões por três
grupos de pessoas:
a) Há fiéis que vivem o que a Igreja ensina nesta matéria, aceitando
tudo com resignação, tal como uma pessoa de espírito cristão aceita
uma doença. Não é uma atitude errada mas, por exemplo, dificulta
muito propor a outros esse seu estilo de vida, tal como um cristão
doente pode servir-se dos seus padecimentos para benefício espiritual,
mas não os deseja para outros. Estas pessoas veem a doutrina como
uma «exigência» do seu «clube» (entenda-se, da Igreja), talvez algo
bizarra e atípica, mas, como pertencem ao setor minoritário que,
apesar de tudo, ainda sabe que convém obedecer à Igreja, acabam por
acatar a orientação. Nelas, porém, algumas das seguintes questões – b)
e c) – estão bem presentes, e ser-lhes-ia de grande proveito que as
resolvessem no seu interior, não só para estarem mais convencidos de
que o que vivem os torna mais humanos (e, portanto, também mais
cristãos), mas para se atreverem ainda a propor a outros (não cristãos
incluídos) esse modo de vida, com a plena certeza de que será para seu
bem e felicidade. É essa certeza que lhes falta;
b) Em segundo lugar, encontramos os cristãos que não vivem a
norma moral exposta na Humanae Vitae (a imoralidade no uso dos
contracetivos) e olham-na quase como os primeiros cristãos passaram
a considerar (neste caso, com plena justificação) as leis rituais do
Levítico: algo já ultrapassado, que alguns, se quiserem, podem viver
(«coitados!»), e que no fundo nada tem a ver com o ser cristão nem
com o seguimento de Nosso Senhor. Os ensinamentos da Humanae
Vitae seriam algo marginal, se não mesmo irrelevante, para a vivência
cristã. Não se posicionam explicitamente contra, mas encontraram uma
«resposta» a dar à exigência moral: no fundo – pensam – trata-se de
uma exigência «a prazo», em vias de extinção, ligada a uma geração
que acabará por morrer. Não acreditam que Deus «se meta» em temas
destes. Na realidade, talvez sem disso se aperceberem, selecionam por
sua conta os terrenos onde responder a Deus tem relevância e onde não
a tem. Como seria de esperar, nos outros temas onde o ser cristão pode
supor igualmente uma mudança de vida mais ou menos complicada,
muitas destas pessoas aplicam o mesmo raciocínio já aplicado ao leito
matrimonial: «entrada reservada», até mesmo para Deus;
c) Além das duas atitudes precedentes, existe um rol de objeções à
encíclica que leva a que haja muitos que a ela se oponham
ferozmente. Com toda a sinceridade, procurei sintetizar de modo
exaustivo essas críticas. Devo acrescentar ainda que o próprio
documento de Paulo VI
recolhe algumas das questões (cfr. n.º 3). Eis os problemas a que
devemos responder:
• Sabendo que as relações conjugais favorecem a fidelidade e o amor
conjugal, não seria conveniente rever a posição moral que parece
erguer uma barreira ao amor conjugal (que se manifesta no ato
sexual), a não ser que os esposos enfrentem enormes sacrifícios?
Explico: com a moral da Igreja, parece que os casais, na maior parte
do tempo das suas vidas, ou não se podem amar a sério pois
precisam de se abster em excessivas ocasiões, ou ficam obrigados a
ter filhos mesmo em situações dificílimas. Não se poderá então
invocar o princípio do «mal menor»? Isto é, mesmo que não seja o
mais adequado, não será preferível manter o uso dos contracetivos e,
assim, evitar lesar o amor dos esposos?
• Certamente que os filhos são um bem; mas não bastará defender esse
bem na totalidade da vida conjugal, sem ser necessário descer ao
juízo moral de cada ato concreto? E se durante cinco anos se usar
contracetivos e nos restantes 30 se prescindir deles: qual é o mal?
• Se a Igreja reconhece a legitimidade da continência periódica (o
recurso aos períodos infecundos) entre os esposos quando existem
«motivos graves»[655] para a ela recorrer, porquê tanta objeção aos
meios artificiais quando estão presentes as mesmas razões sérias?
• A Igreja, ao ser tão radical, ao estabelecer de forma irreversível o
princípio da ilicitude moral dos contracetivos, não terá afastado fiéis
da Igreja? Não haverá um certo autismo ou, pelo menos, uma certa
insensibilidade da parte da Igreja para com a vida de tantos casais?
Por que não cede a Igreja neste ponto, o qual, aliás, não parece ter
tanto relevo que justifique uma defesa tão intransigente?
• Mas, afinal, que pretende defender realmente a Igreja? Trata-se de
uma preocupação pela demografia negativa em países de maioria
católica, ou é algo mais profundo?
Talvez ao leitor lhe venham à cabeça outras dúvidas sobre o tema, como
por exemplo: não será melhor deixar o leito matrimonial fora do
cristianismo? Apesar de poder haver mais questões, tenho a esperança de que
o capítulo possa contribuir para ir ao encontro de todas elas, tenham ou não
sido aqui formuladas.
23.2. Uma norma humanista que conta com a graça de Deus
Antes de nos debruçarmos propriamente sobre os princípios morais da
encíclica Humanae Vitae, vale a pena recordar que eles são expressão de uma
profunda preocupação pastoral, isto é, que não obedecem a uma abstrata lei
impiedosa e fria, distante das pessoas concretas. Por isso, S. João Paulo II
mostra como os ensinamentos morais da encíclica não só fluem da Revelação
mas são também expressão da lei natural (comentarei a seguir estas ideias).
Explica igualmente como eles estão harmonicamente ligados com os
restantes ensinamentos da Igreja: por exemplo, existe uma plena
concordância entre a encíclica e a constituição pastoral Gaudium et Spes, do
Concílio Vaticano II.
Recordemos ainda que, do ponto de vista metodológico, este último ciclo
das catequeses sobre a teologia do corpo gira explicitamente à volta da
Humanae Vitae. Das 15 catequeses (a 16.ª é uma espécie de conclusão de
toda a teologia do corpo), as primeiras oito estão mais centradas no problema
moral, enquanto as restantes se centram na espiritualidade conjugal, um
aspeto também insinuado pela encíclica e ao qual dedicaremos o capítulo 24.
Para nos aproximarmos da dimensão pastoral da Humanae Vitae,
comecemos por ler um pequeno parágrafo do documento:
«A doutrina da Igreja sobre a regulação dos nascimentos, que promulga a lei divina, parecerá, aos
olhos de muitos, de difícil, ou mesmo de impossível atuação. Certamente que, como todas as
realidades grandiosas e benéficas, ela exige um empenho sério e muitos esforços, individuais,
familiares e sociais. Mais ainda: ela não seria de facto viável sem o auxílio de Deus»[656].

Qualquer pessoa bem-intencionada entende que a Igreja não pretende


dizer algo do estilo: «tomem a norma e arranjem-se como puderem». S. João
Paulo II, referindo este número da encíclica, reafirma que Paulo VI teve
sempre diante de si as pessoas concretas[657]. E reafirma também que a lógica
orientadora dos ensinamentos da Igreja sobre a regulação da natalidade está
ligada aos ensinamentos de Cristo, concretizados nalguns aspetos por S.
Paulo e que foram estudados ao longo das catequeses. Seguindo essa mesma
lógica, a Igreja adotou para os seus ensinamentos a «regra de compreensão»
(cfr. capítulo 2), procurando torná-los compreensíveis e mostrando o seu
fundamento nas citadas fontes.
O facto de a Igreja ter seguido tal regra não significa que a sua proposta
seja entendida por todos, e menos ainda que agrade a todos. Devo
acrescentar, no entanto, que a minha experiência é a de que, quando há um
mínimo de abertura a viver de acordo com o que Deus pede, e portanto com a
disposição de mudar o que for necessário na vida conjugal, as pessoas
agradecem profundamente a exposição desta doutrina. No princípio do livro,
fiz notar que as longas catequeses de teologia do corpo visavam facilitar a
compreensão da encíclica: a Igreja quis e quer dar motivos e horizontes
amplos para que cada um compreenda e deseje viver de acordo com esta
proposta.
Seria ingénuo, no entanto, pensar que basta conhecer os ensinamentos da
Igreja para torná-los vida. Isso seria intelectualismo. S. Tomás explica que
alguém é bom quando tem boa vontade, «pois pela vontade dispomos de tudo
o que há em nós. Por isso, não se chama homem bom ao que é inteligente,
mas ao que tem boa vontade»[658]. Sem dúvida que é necessário conhecer o
bem, mas, como em tudo o resto, mais necessário ainda é contar com a graça
de Deus e com o esforço pessoal por a ela corresponder, pondo em jogo a
nossa liberdade. Sem a oração e a vida sacramental – sem o auxílio da graça –
torna-se muito difícil adotar uma vida moral reta, mais ainda neste terreno
(não é fácil nem mesmo para alguém perito em teologia do corpo). Por isso,
junto ao trabalho de explicar estes temas aos cristãos e às pessoas de boa
vontade, a Igreja não pode deixar de exortar à intimidade com Deus,
suplicando ao Senhor a sua graça, que nos chega, em primeiro lugar, através
dos Sacramentos. Só assim o cristão pode assumir as exigências morais no
âmbito conjugal (e em todos os restantes âmbitos).
As palavras da Humanae Vitae são elucidativas:
«Não pretendemos, evidentemente, esconder as dificuldades, por vezes graves, inerentes à vida
dos cônjuges cristãos: para eles, como para todos, de resto, “é estreita a porta e apertado o
caminho que conduz à vida”. […] Os esposos […] implorem com oração perseverante o auxílio
divino; abeirem-se, sobretudo pela Santíssima Eucaristia, da fonte de graça e de caridade. E se,
porventura, o pecado vier a vencê-los, não desanimem, mas recorram com perseverança humilde à
misericórdia divina, que é outorgada no sacramento da Penitência»[659].

Definidas estas premissas (existe a preocupação da Igreja de que todos


possam entender o bem que supõe para as suas vida a doutrina moral da
Humanae Vitae, bem como a exequibilidade de viver conforme a doutrina, se
os casais contarem com o auxílio da graça), apresento finalmente alguns dos
passos fundamentais na exposição de S. João Paulo II.
23.3. A inseparabilidade antropológica dos significados unitivo e
procriativo do ato conjugal
É útil que o leitor tenha diante de si as palavras exatas da Humanae Vitae
que enunciam a norma moral. O número 12 da encíclica apresenta os
fundamentos da norma:
«Esta doutrina, muitas vezes exposta pelo Magistério, está fundada sobre a conexão inseparável,
que Deus quis e que o homem não pode alterar por sua iniciativa, entre os dois significados do ato
conjugal: o significado unitivo e o significado procriativo.
Na verdade, pela sua estrutura íntima, o ato conjugal, ao mesmo tempo que une profundamente os
esposos, torna-os aptos para a geração de novas vidas, segundo leis inscritas no próprio ser do
homem e da mulher. Salvaguardando estes dois aspetos essenciais, unitivo e procriativo, o ato
conjugal conserva integralmente o sentido de amor mútuo e verdadeiro e a sua ordenação para a
altíssima vocação do homem para a paternidade»[660].

Importa esclarecer desde já que «significados» e «funções» não são


sinónimos. A encíclica fala da inseparabilidade dos significados unitivo e
procriativo do ato conjugal. Não fala da inseparabilidade das funções. Esta
inseparabilidade seria manifestamente falsa, pois há muitos atos conjugais
não fecundos, isto é, atos cuja função unitiva não vai unida à função
procriativa. Seria absurdo que a encíclica negasse uma inseparabilidade que
realmente se verifica. É certo que o significado procriativo tem a sua raiz na
função, mas ele pode dar-se como significado (na consciência e na vontade
humana) mesmo nos casos em que a função seja impossível, por exemplo
num casal estéril: «Os esposos podem amar-se de tal modo que não se
oporiam a tê-lo a ele ou a ela como pai ou mãe do seu filho caso estivesse nas
suas mãos escolher essa possibilidade»[661]. Mas, então, em que instância
devem estar presentes ambos os significados? Na consciência e na vontade
dos cônjuges. Os esposos, por razões que explicaremos, devem querer unir-se
fisicamente com a clara consciência de que se trata de um momento de
profunda comunhão, e querer ter filhos ou, pelo menos, querer não se opor à
sua vinda, pois essa expressão física de comunhão total não é compatível com
uma decidida oposição à vinda de novos filhos[662].
Não conclua o leitor que se está a falar da intenção dos cônjuges no ato
de contraceção; aqui estamos centrados no objeto moral do ato, que deve ser
entendido tal como explica a encíclica Veritatis Splendor, quando o distingue
do processo meramente físico e oferece, do objeto, a seguinte definição:
«Aquele [o objeto moral] é o fim próximo de uma escolha deliberada, que
determina o ato do querer da pessoa que age»[663]. Dito por outras palavras:
independentemente das ulteriores razões que levam a usar contracetivos,
quem os usa quer decididamente ter relações e não ter filhos. A intenção
pode ser por não querer mais trabalhos e gastos com filhos, evitar problemas
de saúde, etc.; como veremos, as intenções podem ser legítimas, mas o objeto
mostra que a ação é desordenada, pois, como é sabido, os fins não justificam
os meios.
Uma vez que se distinguiu entre «significados» e «funções» do ato
sexual, é preciso explicar agora que o princípio da inseparabilidade dos dois
significados do ato conjugal é muito mais do que uma mera indicação moral,
do género: «não separem os dois significados». O que se ensina é algo de
mais profundo.
A encíclica enuncia, em primeiro lugar, uma verdade antropológica: para que
um dos significados do ato conjugal se realize de facto, o outro tem de estar
presente na vontade dos cônjuges, não pode ser eliminado do seu querer
antes, durante ou depois da união conjugal. Caso se opte por anular um dos
significados, separando-o assim do outro, ambos naufragam conjuntamente.
Isto é, o sentido unitivo não se mantém incólume se os esposos pretenderem
eliminar, num determinado ato conjugal, o seu significado procriativo. Não se
pode separar um significado do outro sem destruir o conjunto. Para manter o
ato como expressão de verdadeiro amor – doação e união –, é necessário
defender a inseparabilidade, pois existe uma relação de inclusão recíproca
que é constitutiva de cada um deles[664].
Justificarei esta afirmação de seguida. Mas antes, e embora não seja o
caso que nos ocupa (a contraceção), convém perguntar que sucederia se um
dos esposos afastasse da consciência e da vontade o significado unitivo. Por
exemplo, se o marido quisesse ter relações apenas para obter da esposa um
herdeiro capaz de gerir os seus negócios, sem a vontade de se unir
estreitamente a ela. Embora seja bastante atípico na civilização ocidental
hodierna, transcrevo um diálogo de um romance brasileiro em que um rude e
pouco escrupuloso fazendeiro anda à procura de esposa para perpetuar, pelos
filhos, o governo das suas terras. Dialoga com uma idosa, tia de uma jovem
rapariga que ele conheceu em duas breves ocasiões, e procura aplanar terreno
sobre a eventualidade de a sobrinha se casar com ele. A tia manifesta os
cuidados que é necessário ter para evitar um casamento desastroso, e
sentencia uma condição que a ela lhe parece vital. A resposta de Paulo
Honório – o fazendeiro, disposto a casar custe o que custar – é ilustrativa de
quem não sente qualquer escrúpulo em instrumentalizar pessoas:
«[Tia] – Quanto a mim, acho que em questões de sentimento é indispensável haver reciprocidade.
[Paulo Honório] – Qual reciprocidade! Pieguice. Se o casal for bom, os filhos saem bons; se for
ruim, os filhos não prestam. A vontade dos pais não tira nem põe. Conheço o meu manual de
zootecnia»[665].
O diálogo parece exagerado para ser tomado a sério. Mas ilustra bem as
consequências de uma mentalidade que apenas desejasse a relação para obter
um filho. A mulher seria apenas um instrumento desse desejo. É patente que,
em tais condições, o pleno significado unitivo não está presente (é importante
afirmar isso, pois facilita o entendimento de que o significado unitivo não é
equivalente à união física; é uma união de pessoas através da união física).
Mas que sucede com o significado procriativo numa tal união? Realmente,
não se pode dizer que fique aniquilado, mas sim que o filho pretendido e
gerado não é visto como uma pessoa a ser amada por si mesma; é apenas um
descendente que se assemelha mais a um «instrumento adquirido» para
satisfação e utilidade do pai; não é alguém querido por si mesmo, que é o
próprio da geração humana: geram-se e criam-se seres livres e autónomos,
que bem podem não desejar «ocupar-se da fazenda»[666]. Que faria então
Paulo Honório com ele, se a opção do filho acabasse por ser outra que não a
de fazendeiro?
Portanto, sem um significado unitivo claro, que seja expressão da
comunhão de pessoas, o significado procriativo fica alterado. Contudo, a
nossa questão é a oposta: que sucede com o significado unitivo quando, com
a contraceção, se exclui o significado procriativo? Leiamos os parágrafos da
Humanae Vitae onde, depois de expor o fundamento da norma moral sobre a
contraceção, se enuncia a própria norma, distinguindo-a, a seguir, de um
outro comportamento que pode ser, pelo contrário, moralmente legítimo: a
continência periódica. Esta distinção, como o leitor sabe, causa uma enorme
confusão a muita gente que não a consegue perceber porque, no fundo, não
percebe o «porquê» da imoralidade da contraceção. Eis o que diz a encíclica:
«Em conformidade com estes pontos essenciais da visão humana e cristã do matrimónio,
devemos, uma vez mais, declarar que é absolutamente de excluir, como via legítima para a
regulação dos nascimentos, a interrupção direta do processo generativo já iniciado, e, sobretudo, o
aborto querido diretamente e procurado, mesmo por razões terapêuticas.
É de excluir de igual modo, como o Magistério da Igreja repetidamente declarou, a esterilização
direta, quer perpétua quer temporária, tanto do homem como da mulher.
É, ainda, de excluir qualquer ação que, quer em previsão do ato conjugal, quer durante a sua
realização, quer no desenrolar das suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como
meio, tornar impossível a procriação»[667].

Detenhamo-nos, sobretudo, no último parágrafo. A que recursos


concretos se está a referir a encíclica? Refere-se, por exemplo, aos
medicamentos que impedem a ovulação, aos preservativos e diafragmas, ao
coito interrompido, aos dispositivos intrauterinos, às pílulas do dia seguinte e,
obviamente, ao aborto. Basta uma olhadela a este elenco para compreender
que, no caso do coito interrompido, não existe um meio «artificial», não
deixando por isso de ser moralmente ilegítimo. Ao mesmo tempo, a encíclica
faz notar que esses recursos não passam a ser bons pelo facto de serem
usados como «meios para». Por exemplo, se uma mulher utilizar um
contracetivo porque o médico a adverte de que a seguinte gravidez poderia
colocar em perigo a sua saúde, a contraceção seria um meio para a defesa da
saúde, mas não deixaria de ser contraceção e, como tal, desaconselhável. A
solução, nesses casos por vezes bem difíceis, é evitar as relações pelo menos
no período fértil, sempre que for possível que este seja bem determinado.
Nalgum caso poderia ser necessário a abstenção total.
Com estes dados, podemos adiantar já uma definição de «contraceção»,
isto é, daquele comportamento que a encíclica exorta a não seguir. O que se
entende por «ato contracetivo»? «É uma ação que impede que os próprios
atos sexuais, livremente consentidos, causem a conceção de uma nova
vida»[668].
Tendo bem presente esta definição, entende-se imediatamente que a
continência periódica, de que falaremos a seguir, não é contraceção. Em
rigor, a contraceção é um tipo de ação humana com uma dupla
intencionalidade: por um lado, escolhe-se ter relações conjugais, mas por
outro existe a vontade eficaz (como meio ou como fim) de impedir as
consequências procriativas dessas mesmas relações. Por isso, é
completamente errado referir-se à continência periódica como um «método
natural» de contraceção. Por um lado, como também se explicará, o que a
Igreja propõe não é propriamente um mero «método». Mas sobretudo não é,
de todo, contraceção. Por outra parte, o adjetivo «natural» parece dar a
entender que a bondade da continência periódica residiria na não utilização
de procedimentos físicos ou químicos no ato conjugal. Como já se referiu, o
coito interrompido é um ato de contraceção, apesar de não haver nele nada
químico ou físico; no campo oposto – na continência periódica –, não existe
qualquer problema em utilizar procedimentos químicos para determinar a
fase do ciclo da mulher. Portanto, o uso de expressões como «meios
artificiais» e «meios naturais» deve, pelo menos, ser bem esclarecido.
23.4. A contraceção, mesmo esporádica, é uma desordem moral
É necessário recordar que a encíclica está a referir-se a qualquer ato
contracetivo – mesmo isolado – e não quer restringir o juízo negativo apenas
aos casos de uma atitude contracetiva generalizada no casal. O documento é
explícito em rejeitar uma tal interpretação[669].
Talvez seja este um dos temas mais difíceis de explicar: por que razão é
tão grave um ato contracetivo? Será que Deus julga esse ato de modo tão
negativo como o faz a Igreja? Para uma justificação completa da resposta
afirmativa – «sim, julga» –, é necessário que o leitor tenha presente o
seguinte: em primeiro lugar, a Igreja sempre ensinou a existência de ações
intrinsecamente más, isto é, ações que, independentemente das motivações ou
circunstâncias, sempre supõem uma desordem moral[670]. Em segundo lugar,
um ato contracetivo é um desses atos e é gravemente desordenado[671].
Mas por que razão se trata de um pecado mortal (em rigor, um pecado
em que a matéria é grave[672]) e é sempre um ato intrinsecamente
desordenado? Como já se foi explicando, é muito sério e comprometedor o
que está em jogo na sexualidade.
Se o leitor leu pacientemente os capítulos precedentes, certamente não
se admirará pelo facto de a Igreja ensinar que um ato contracetivo é algo
moralmente mau. As palavras de Jesus que orientam o segundo ciclo das
catequeses de teologia do corpo, e que fazem referência ao olhar
concupiscente, são claras. Jesus não se refere ao hábito desordenado de
olhar luxuriosamente para as mulheres. Quem dirija um olhar desses a
uma mulher comete no coração um adultério. Basta, pois, um olhar. Aliás,
procurar «tapar» uma ação má, hipervalorizando as que são bem feitas,
incluídas as da mesma área, é um tipo de raciocínio que é prontamente
rejeitado noutras situações. Retomando um exemplo já exposto, nenhuma
esposa fica satisfeita se o marido lhe disser que lhe é fiel habitualmente,
embora uma ou outra vez tenha relações com outras mulheres. Mesmo que
apenas o tenha feito uma vez, a esposa (ou o esposo, se o caso for ao
contrário) não se conformará. A própria Igreja aceita que o cônjuge
atraiçoado possa solicitar a separação perpétua (não o divórcio,
logicamente) por esse motivo[673]. Não é que não possa ser perdoado, mas
o que agora quero mostrar é que a gravidade de certos atos isolados não
desaparece pelo facto de serem isolados. Outros exemplos ainda mais
claros virão à cabeça do leitor: não basta que alguém rejubile por tratar
quase sempre bem uma pessoa, mesmo que uma vez a tenha enviado para
o hospital vítima de um gesto agressivo da sua parte; ou todos sabemos o
que pode suceder numa relação de amizade quando uma vez um amigo nos
mente deliberadamente. Mesmo que o perdoemos (e devemos fazê-lo), a
relação com ele manter-se-á exatamente igual, sobretudo se ele
desvaloriza a mentira e não pede perdão por ela? Em resumo: quando se
trata de assuntos graves, o que se pede a qualquer pessoa de bem é que
nunca ceda.
A questão sobre a gravidade do ato contracetivo não fica ainda
completamente esclarecida com este tipo de argumentações. Fica, no entanto,
entendido que a Igreja não se limita a ensinar que a vida do casal deve ser
globalmente fecunda, mas insiste também que cada ato conjugal tornado
deliberadamente infecundo é um mal para o amor conjugal, para cada um dos
cônjuges e também para a vida em sociedade. É este o ponto que interessa
aprofundar.
Quando se adota a contraceção, introduz-se no amor conjugal um
veneno. Parece, talvez, uma pequena mentira, uma pequena «batota» às
regras, aliás com conhecimento e assentimento de ambos. Parece algo
pequeno, ou sem grande alcance. Parece. Como pode parecer ao marido
infiel (e rude) que só um adultério pouco modifica o conjunto do amor; ou a
uma atriz pode parecer que cedendo apenas uma vez numa cena de despudor
não sucede nada de grave. Mas o facto é que,
nestes casos, já se introduziu como válida a premissa de que a dignidade do
matrimónio e do corpo não são invioláveis. Há gestos isolados que causam
graves danos.
Logicamente, num ato contracetivo, o mal é inoculado pelo coração (pela
vontade e a anuência) e no coração. Se uma mulher, por engano, tomasse um
contracetivo, não haveria qualquer lesão no amor conjugal (nem qualquer
pecado). Aliás, o n.º 15 da Humanae Vitae esclarece que, quando se toma um
contracetivo como tratamento de uma doença (por exemplo, de pele), não
existe qualquer desordem moral[674]. Não é o mero ato físico que causa a falta
de amor: é, sim, o ato físico como expressão do bloqueio no coração da
doação ao outro e da aceitação do outro sem reservas.
23.5. Quando a continência é amor
Tudo se entenderá ainda melhor com o parágrafo da Humanae Vitae
sobre a legitimidade da continência periódica no caso de haver circunstâncias
sérias. Merece a pena transcrever uma passagem extensa do n.º 16:
«A Igreja é a primeira a elogiar e a recomendar a intervenção da inteligência, numa obra que tão
de perto associa a criatura racional com o seu Criador; mas afirma também que isso se deve
fazer respeitando sempre a ordem estabelecida por Deus.
Se, portanto, existem motivos sérios para distanciar os nascimentos, que derivem ou das
condições físicas ou psicológicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores, a Igreja ensina
que então é lícito ter em conta os ritmos naturais imanentes às funções geradoras, para usar do
matrimónio só nos períodos infecundos e, deste modo, regular a natalidade, sem ofender os
princípios morais que acabamos de recordar (cfr. Pio XII, AAS 43 [1951], p. 846).
A Igreja é coerente consigo própria, quando assim considera lícito o recurso aos períodos
infecundos, ao mesmo tempo que condena sempre como ilícito o uso dos meios diretamente
contrários à fecundação, mesmo que tal uso seja inspirado em razões que podem parecer
honestas e sérias. Na realidade, entre os dois casos existe uma diferença essencial: no primeiro,
os cônjuges usufruem legitimamente de uma disposição natural; enquanto no segundo eles
impedem o desenvolvimento dos processos naturais. É verdade que em ambos os casos os
cônjuges estão de acordo na vontade positiva de evitar a prole, por razões plausíveis, procurando
ter a segurança de que ela não virá; mas é verdade também que somente no primeiro caso eles
sabem renunciar ao uso do matrimónio nos períodos fecundos, quando, por motivos justos, a
procriação não é desejável, dele usando depois nos períodos agenésicos, como manifestação de
afeto e como salvaguarda da fidelidade mútua»[675].

Glosarei estas palavras, relançando a questão fulcral sobre esta matéria:


no fundo, qual é a diferença entre a contraceção e o recurso à abstenção das
relações fora dos períodos infecundos? Pelas próprias palavras do
documento, comprovamos que a diferença não radica nos motivos. Se
compararmos um casal que usa os contracetivos com outro que recorre à
continência periódica, à partida não podemos afirmar que os motivos do
primeiro sejam ilegítimos. Ambos podem ter motivos legítimos para não
terem mais filhos. Porém, o primeiro casal procede mal, ao passo que o
segundo não.
Permita-se-me uma comparação. Se um marido está constipado, pode ser
legítimo não beijar a esposa com o fim de não a contagiar. Isso equivaleria ao
casal que, por motivos sérios, se abstém durante o período fértil da mulher.
Se, para não beijar a esposa doente, beija a vizinha, não faz bem. Este seria o
caso do casal que, tendo motivos válidos, procede mal, pois usa
contracetivos, fazendo algo objetivamente errado. Se nem sequer está
constipado e não lhe apetece beijar a esposa, não faz bem. Trata-se do casal
que, sem motivo, recorre à continência periódica, embora a gravidade dessa
omissão não se compare à de ir beijar a vizinha para, diz ele, «compensar a
carência afetiva».
Portanto, que sucede se ambos os casais carecerem de motivos válidos
para evitar a prole? O primeiro procede mal e o segundo deixou entrar um
certo egoísmo nas suas vidas. No entanto, a gravidade moral do primeiro é
essencialmente distinta. É certo que os dois casais manifestam pouca
generosidade e até egoísmo na vida conjugal. O primeiro casal, porém,
manifesta esse egoísmo com atos de particular gravidade: tem maus motivos
e usa maus meios (pois o objeto moral dos atos contracetivos é desordenado).
O segundo casal, sem motivos que justifiquem a opção pela continência, é
pouco generoso, mas omitir as relações em determinados momentos não é em
si mesmo algo moralmente desordenado.
S. João Paulo II reconhece que a opção pela continência sem «motivos
graves» que justifiquem evitar os nascimentos, embora seja um problema
moral diferente do recurso à contraceção, pode, no entanto, tornar menos
percetível a diferença entre as duas atitudes, ainda que ela seja realmente
muito grande[676]. Mais adiante, retomaremos esta questão.
A encíclica, como lemos acima, fala de uma «diferença essencial» entre
as duas atitudes. É sobre essa diferença que nos interessa insistir agora. Por
que razão são tão diferentes?
Uma primeira resposta poderia resumir as duas posições do seguinte
modo: com a opção contracetiva, o casal «faz» uma coisa moralmente má
(mesmo que o motivo seja válido), enquanto o casal que opta pela
continência periódica omite algo bom (ter relações sem um calendário rígido)
por um motivo sério. Nunca é aceitável empurrar para a água uma pessoa de
quem não se gosta com o fim de que se afogue; mas, se algum dia ela for
vista aflita entre as ondas e a tal pessoa que não simpatiza com ela a vir ao
longe, não souber nadar e não tiver recursos para a ir buscar, não há
propriamente uma obrigação moral de realizar um ato heróico
(e que até poderia revelar-se inútil) para a salvar. Procuremos, no entanto,
aprofundar na distinção entre «contraceção» e «continência periódica».
As palavras que seguem, extraídas da exortação apostólica Familiaris
Consortio, ajudar-nos-ão a perceber melhor as diferenças. O documento
afirma que, na contraceção, os cônjuges comportam-se como «árbitros» do
plano divino, ao contrário do recurso à continência periódica, em que se
portam como «ministros» desse plano. Talvez esta terminologia, em
linguagem coloquial, não seja intuitiva. Mas suponho que se capta bem o
sentido: ser árbitro é, neste caso, ver-se como dono do plano divino sobre a
sexualidade, juiz que decide o que está bem sem olhar para o que Deus
inscreveu na natureza humana. Os ministros, pelo contrário, são os que estão
«ao serviço de», sabem que existe uma realidade prévia a ter em conta e
atuam respeitando as indicações supremas. Eis as palavras textuais da
exortação apostólica:
«Quando os cônjuges, mediante o recurso à contraceção, separam estes dois significados que Deus
Criador inscreveu no ser do homem e da mulher e no dinamismo da sua comunhão sexual,
comportam-se como “árbitros” do plano divino e “manipulam” e aviltam a sexualidade humana, e
com ela a própria pessoa e a do cônjuge, alterando desse modo o valor da doação “total”. Assim, à
linguagem nativa que exprime a recíproca doação total dos cônjuges, a contraceção impõe uma
linguagem objetivamente contraditória, a do não doar-se ao outro: deriva daqui não somente a
recusa positiva de abertura à vida, mas também uma falsificação da
verdade interior do amor conjugal, chamado a doar-se na totalidade pessoal.
Quando pelo contrário os cônjuges, mediante o recurso a períodos de infecundidade, respeitam a
conexão indivisível dos significados unitivo e procriativo da sexualidade humana, comportam-se
como “ministros” do plano de Deus e “usufruem” da sexualidade segundo o dinamismo originário
da doação “total”, sem manipulações e alterações»[677].

Não se trata apenas, portanto, de uma diferença no modo de atuar. O que


está por trás de uma e outra opção – a maneira de entender a sexualidade e a
própria pessoa humana – é radicalmente antagónico num caso e no outro:
«Trata-se de uma diferença bastante mais vasta e profunda de quanto
habitualmente se possa pensar e que, em última análise, envolve duas
conceções da pessoa e da sexualidade humana irredutíveis entre si»[678]. Esta
advertência merece ser tomada a sério. Antes de qualquer discussão sobre a
moralidade da contraceção, cada interveniente deveria responder com
completa sinceridade: «o que é de facto para mim a sexualidade? Trata-se de
um jogo, de um exercício, de um modo de aliviar tensões, de um direito
absoluto sobre uma área “sagrada” do meu egoísmo?
É realmente uma entrega, uma doação de quem eu sou, ou, pelo contrário, é
uma usurpação daquilo que me interessa no outro? Entendo que existe um
plano divino para a sexualidade, que é importante conhecer e viver?»
Portanto, do ponto de vista «teórico», quem usa contracetivos tem um
outro entendimento da sexualidade e do seu significado, bem diferente
daquele que é exposto nos ensinamentos da Igreja. Além disso, existe uma
deficiência séria no campo das virtudes, ligada à falta do domínio de si. S.
João Paulo II refere que, nesta distinção, é preciso olhar, portanto, tanto para
a dimensão sacramental ou teológica (o significado dos atos, que se estudará
no ponto 6 deste capítulo) quanto para a dimensão personalista do problema
(a visão que se tem da pessoa, de que me ocuparei no ponto 7 do mesmo)[679].
Detenhamo-nos em cada um destes aspetos, fazendo notar, com S. João
Paulo II, que ambos fazem parte da «global “revelação do corpo”»[680] que
está a ser estudada nestas páginas.
23.6. Dois modos de entender o significado das relações conjugais
Quem recorre aos contracetivos aceita que é moralmente legítimo ter
relações com o cônjuge e, ao mesmo tempo, escolhe que esses atos não
tenham consequências procriativas. Uma tal opção revela que, para esses
casais, a sexualidade não traduz a capacidade de o corpo expressar um amor
incondicional, de doação e aceitação do outro, sem reservas. Ou, pelo menos,
revela que o casal – pelo menos nalguns atos – não parece interessado em
viver de acordo com a capacidade, intrínseca à sexualidade, de abertura à
vida. Portanto, para os casais que adotam a contraceção, a sexualidade
aproxima-se mais a uma «atividade» – algo que se faz (a dois) –, em vez de
ser expressão de quem se é. Ao eliminar a dimensão procriativa do ato, o
casal elimina o que é realmente específico do exercício da sexualidade: a
possível transmissão da vida. Quando isso sucede, é difícil, por exemplo,
captar a diferença moral entre as relações sexuais e outros modos de mútua
excitação sexual. A dificuldade que quem usa ou defende o uso de
contracetivos sente em explicar essa diferença faz pensar que o conceito que
se forjou sobre a sexualidade está ligado à instrumentalização do corpo (seu e
do outro) e, por isso, afasta-se da verdade sobre a pessoa e a sexualidade. Se
a instrumentalização é aceitável, não importa o modo como sucede, pelo
menos se houver mútuo acordo. Com tal atitude, o amor conjugal, com a sua
expressão corporal mais específica, já nada tem que ver com a possibilidade
de evocar o incondicional amor
de Deus pela humanidade.
Para perceber melhor esta afirmação, aprofundemos na verdade do ato
conjugal. Já se referiu que o corpo «fala» uma linguagem que o homem não
se deu a si próprio, e que essa linguagem deve ser verdadeira. O ato conjugal
expressa fisicamente uma doação mútua total: «eu sou todo teu (ou toda tua),
para sempre». O corpo participa desse amor grandioso à sua maneira e,
assim, é inserido (ou melhor, a pessoa é inserida com todo o seu ser, também
mediante a sexualidade) no amor-doação a outro. Se o leitor recordar a
repetida afirmação de que «o sexo é constitutivo da pessoa e não mero
atributo», entenderá de modo intuitivo a razão pela qual se afirma que o ato
conjugal expressa a doação da pessoa: a mútua entrega da feminilidade ou
masculinidade é a expressão profunda da entrega do «eu», para que os dois
expressem corporalmente a peculiar comunhão das suas pessoas;
precisamente porque o sexo não é um mero atributo, mas sim algo
constitutivo da pessoa, ao doarem a masculinidade ou a feminilidade os
esposos podem dar o mais profundo do seu «eu» (se realmente for expressão
da entrega total do «eu»).
Também já se explicou que nem sempre o casal respeita essa linguagem,
pois pode dar-se, mesmo entre casados, um ato conjugal «mentiroso»: se o
marido é infiel à esposa, quando tem uma relação com ela não está a
expressar uma doação exclusiva; ou quando a trata mal e só a quer à noite
para ter relações, esse ato também não corresponde à sua verdadeira natureza.
O mesmo sucede quando se usam contracetivos. O ato conjugal não expressa
apenas uma doação (e aceitação) da pessoa, mas expressa igualmente a
vontade de que o amor se prolongue[681]. Existe no ato conjugal algo que o
diferencia de outros atos de doação, e que está intrinsecamente ligado à
potencial transmissão da vida. Aliás, é esse significado procriativo que o
torna no sinal distintivo da aliança matrimonial. Há muitas maneiras de
manifestar o amor a uma pessoa; a intensidade do amor entre dois amigos,
por exemplo, pode ser notável. O específico do amor conjugal não é tanto a
intensidade do amor (muito desejável): é antes a potencial abertura à prole,
manifestação não só dessa intensidade mas também da especificidade do
amor conjugal. Por isso, se «o ato conjugal “significa” não apenas o amor
mas também a potencial fecundidade»[682], poderíamos traduzir o seu
significado global com as seguintes afirmações: «entrego-me, a ti, sem
reservas»; «recebo-te, a ti, sem reservas; e, por isso, vejo com bons olhos um
novo ser, que encarne e prolongue a nossa doação e a nossa aceitação
mútuas». É isto que, através do corpo, os cônjuges dizem um ao outro.
Como já se referiu, para que os dois significados do ato conjugal – o
unitivo e o procriativo – sejam verdadeiros, nenhum dos dois pode ser
voluntariamente suprimido. Se «eu» decido apenas ter descendentes sem
querer manter uma comunhão real com a minha esposa, não só a
instrumentalizo como altero o significado procriativo do ato, pois o filho
querido não é o prolongamento de um amor conjugal (inexistente ou pouco
verdadeiro), mas sim de uma mera ambição ou utilidade pessoal.
Em sentido inverso, quando decido eliminar os efeitos procriativos do
ato conjugal, além de eliminar diretamente o significado procriativo, também
causo um notável rombo ao significado unitivo. Porquê? Porque, na prática, a
total união do meu ser com o do outro desaparece quando decido não entregar
a minha possível paternidade (uma parte importante do meu «eu») e não
aceitar a sua possível maternidade; seleciono, pois, a parte da pessoa que,
naquele momento, me interessa receber, e a parte do meu «eu» que me
interessa dar. Isso já não é comunhão de pessoas, mas sim comunhão de
interesses. Não é o mesmo. Não esqueçamos que «o ato conjugal não
expressa apenas a união entre os esposos, mas significa também a aceitação
por parte dos esposos do dom da fecundidade»[683]. Por isso, «como a abertura
à fecundidade não é apenas uma consequência do amor conjugal, mas é
também parte integrante desse amor, todas as dimensões do amor entre os
esposos ficam afetadas se essa abertura for impedida»[684].
No caso da continência periódica, em cada ato conjugal realizado, os
cônjuges dão tudo o que têm nesse momento. O recurso aos ritmos da
mulher, com o esforço por conhecer esses ritmos, não é uma maneira de
«biologizar» a ética como se, de modo automático e sem contar com a
vontade dos esposos, tudo passasse a ser bom. S. João Paulo II adverte para
essa acusação:
«Todos os esforços, também dos consultores familiares e, enfim, dos próprios cônjuges
interessados, não têm o objetivo de “biologizar” a linguagem do corpo (“biologizar a ética”, como
erroneamente consideraram alguns), mas exclusivamente de assegurar a verdade integral àquela
“linguagem do corpo”, com que os cônjuges devem exprimir-se de modo maduro perante as
exigências da paternidade e da maternidade responsáveis»[685].

Mas então, se não se trata de um «aproveitamento biológico», qual é a


verdade sobre a sexualidade que nos é transmitida pelo facto de existir um
ciclo na mulher?
Durante alguns dias do mês, a mulher não pode entregar a sua
capacidade de ser mãe. Como também não a pode dar novamente no caso de
já estar grávida. A Igreja nunca ensinou que só fosse moralmente honesto ter
relações nos dias férteis, nem negou a legitimidade de as ter mesmo quando a
mulher está grávida, sempre que elas não representem um sério incómodo
para a mulher ou um perigo para a criança. A leitura que a Igreja faz é
simples: em tais circunstâncias, o marido e a mulher dão ao outro tudo o que
são e têm, mesmo sabendo que a mulher, naquelas circunstâncias, tem menos
para dar, objetivamente falando. No entanto, importa sublinhar que esse ato
conjugal não se vê falsificado, como no caso dos contracetivos, pela
introdução de um ato da vontade contrário às consequências possíveis da
relação, ou seja, um ato de não doação de algo próprio. Mesmo que não se
queira de facto ter filhos, em cada relação o casal dá de si tudo o que
objetivamente pode dar. Por isso, onde se poderia levantar a questão da
legitimidade moral da continência periódica é na omissão dessa manifestação
de entrega nos dias em que a mulher é fértil. Essa omissão pode e deve ser
avaliada moralmente: é bom que aquele casal não queira ter relações nesses
dias? Porquê? Quando há «motivos graves», o casal concordará em não
manter relações nos dias férteis, mas, nos outros, quando as tem, está sempre
a dar o máximo subjetivamente possível. Os «motivos graves» advertem, de
algum modo, que há um impedimento objetivo para uma determinada mulher
disponibilizar a capacidade de ser mãe (em certo sentido, não a «pode»
disponibilizar) e, por isso, as relações limitadas aos períodos inférteis
expressam o que realmente pode dar. É como se dissesse: «quando puder
dizer com o corpo que dou tudo, então tenho relações».
Leiamos, uma vez mais, o contraste com a visão da sexualidade de quem
recorre aos contracetivos, com as palavras certeiras de S. João Paulo II:
«No ato conjugal não é lícito separar artificialmente o significado unitivo do significado
procriativo, porque um e o outro pertencem à verdade íntima do ato conjugal: realizam-se
juntamente um com o outro e em certo sentido um através do outro. Assim ensina a encíclica (cfr.
HV, 12). Por conseguinte, neste caso, o ato conjugal privado da sua verdade interior, porque
privado artificialmente da sua capacidade procriativa, deixa também de ser ato de amor»[686].

23.7. Duas visões do ser humano irredutíveis


O outro elemento de distinção entre as duas atitudes tem que ver, não já
com o entendimento do ato conjugal, mas sim com a dimensão personalista –
pois não é «apenas» a visão da sexualidade que difere. O próprio
entendimento sobre o que é o homem não coincide. Duvido que quem use
contracetivos aceite integralmente a visão do homem ensinada na teologia do
corpo e que tenho procurado explicar ao longo destas páginas. Para os
defensores dos contracetivos, o corpo expressará realmente a pessoa? Será
mesmo para ser tomado «tão a sério»? Perceberão a advertência de Jesus
sobre a gravidade dos olhares concupiscentes? Entenderão e acreditarão na
ressurreição dos corpos tal como Cristo a explica, sem que haja, no futuro,
casamento ou atos conjugais? Acreditam mesmo que o ato conjugal deve
refletir o compromisso de entrega sem reservas que os cônjuges expressaram
no rito do matrimónio? Poderiam ser suscitadas muitas outras questões desde
género, esperando uma resposta honesta de quem usa ou defende os
contracetivos.
Voltemos a insistir que a continência periódica não se reduz a um
método ou a uma técnica. Os esposos devem adquirir um sério domínio de si,
que lhes permita viver a abstinência nos períodos férteis da mulher. A virtude
da continência é parte essencial desta atitude. É manifesto que, nos casos em
que haja razões sérias para não engravidar, a Igreja nunca aconselhou que,
nos dias férteis da esposa, o marido deveria ir viver com a mãe ou para um
hotel. A eficácia de tais opções para evitar a gravidez seria de 100%, mas elas
não corresponderiam à verdade do amor. Os esposos devem ficar juntos sem
ter relações. Para isso, devem exercitar a virtude da continência.
Esta virtude protege, de algum modo, a verdade da linguagem do corpo:
«O homem é pessoa precisamente porque é senhor de si e se domina a si mesmo.
De facto, sendo senhor de si mesmo, pode “dar-se” ao outro. E é esta dimensão da liberdade do
dom que se torna essencial e decisiva para aquela “linguagem do corpo”, na qual o homem e a
mulher se exprimem reciprocamente na união conjugal»[687].

A continência periódica ajuda a cultivar nos cônjuges um verdadeiro


domínio de si, domínio esse que é essencial para a verdade do ato conjugal,
quando realizado. Se um dos cônjuges não fosse dono de si, dos seus
impulsos por exemplo, correria o risco de, no ato conjugal, manifestar não
tanto a entrega mas mais uma mera incapacidade de domínio, melhor ou pior
«gerida». Por exemplo, quando a esposa estiver adoentada e lhe custar muito
ter relações, para um marido incontinente esse dado pode ser irrelevante: quer
ter as relações «porque precisa». Expressará amor uma tal atitude?
A contraceção não exige o domínio de si. É como se dissesse: «não te
esforces em dominar os impulsos, pois com uma mera pastilha o teu
problema de não querer a gravidez fica resolvido». A seriedade do assunto
radica no que se destrói com uma simples pastilha (ou com um
preservativo). É toda a visão do ser humano que fica alterada. O corpo já
não é expressão da pessoa, mas sim um instrumento a ser usado. A
sexualidade já não tem, então, o poder de
expressar o meu «eu» total, mas expressa apenas o impulso do momento: já
não digo que «a amo» com o meu corpo, mas apenas que «desejo unir-me
fisica-
mente a ela». Nada mais do que isto. A contraceção «contradiz a verdade
integral do ato sexual enquanto expressão própria do amor conjugal» e
«opõe-se à virtude da castidade matrimonial»[688].
Voltaremos a falar sobre a continência no seguinte capítulo, a propósito
da vida espiritual dos cônjuges. Na verdade, a virtude exigida é uma das
manifestações específicas da espiritualidade conjugal.
23.8. Os «motivos sérios» para que a continência periódica seja
moralmente boa
Interessa-nos esclarecer agora, tanto quanto possível, um aspeto do
ensinamento da Igreja sobre a legitimidade moral do recurso dos cônjuges
aos períodos infecundos. Recordámos que a encíclica faz notar que, para
essa bondade moral, são necessários «motivos sérios» (ou justos, ou graves;
a versão portuguesa da encíclica usa estas três palavras)[689]. Dessa exigência
fluem rapidamente várias conclusões.
Na vida de casal, o normal (pressupondo que não há motivos contra tal
procedimento, como falaremos a seguir) deveria ser estarem abertos à vida.
Os esposos são convidados, no fundo, a manter as relações de um modo em
parte «despreocupado» ou, se quisermos, ocupado em que nesses atos se
renove de facto o amor de doação, em plenitude de entrega mútua,
incluindo, por conseguinte, a abertura à vida. O «veredito» sobre a
fecundidade ou não de um determinado ato fica confiado à sabedoria do
Criador. Quando um casal assim procede torna-se mais fácil reconhecer
nos filhos gerados um dom de Deus.
O casal viverá então mais facilmente com o coração agradecido. Eis o que
S. João Paulo II afirma na Familiaris Consortio:
«Na sua realidade mais profunda, o amor é essencialmente dom. O amor conjugal, levando os
esposos ao “conhecimento” recíproco que os torna “uma só carne”, não se esgota no interior do
próprio casal, já que os habilita para a máxima doação possível, pela qual se tornam cooperadores
com Deus no dom da vida a uma nova pessoa humana. Deste modo os esposos, enquanto se dão
entre si, dão além de si mesmos um ser real – o filho, reflexo vivo do seu amor, sinal permanente
da unidade conjugal e síntese viva e indissociável do seu ser pai e mãe»[690].
Ao mesmo tempo, insisto, os ensinamentos da Igreja admitem que possa
haver razões para espaçar os nascimentos. Refere-se, como líamos antes,
«motivos sérios» (ou justos, ou graves) para isso[691].
Que se entende por «motivos sérios»? Podemos dizer, ainda de modo
genérico, que são motivos que Deus quer que sejam tidos em conta antes de
se realizar um ato suscetível de gerar um novo ser. A encíclica refere mesmo
que são
motivos «justos», pelos quais «a procriação não é desejável». São, por
exemplo, motivos de saúde ou devidos a condições externas, pelos quais o
casal, humildemente, entende «captar» uma indicação de Deus que os
dispensa de ter filhos nessas circunstâncias. Portanto, o casal deve usar todos
os meios ao seu alcance (rezar, aconselhar-se com os respetivos diretores
espirituais – caso os tenham –, falar com outros casais cristãos fiéis ao
Magistério, além de, logicamente, o marido e a mulher falarem muito entre
si) para se assegurar de que não está a ter uma atitude de pouca generosidade
ou de falta de confiança em Deus.
Quando se aconselha um casal cristão a que «tenha os filhos que Deus
quiser», não significa que os dois não devam pensar o que Deus quer para
eles naquelas circunstâncias. Pode suceder que, através delas, lhes esteja a
indicar que é preferível não terem filhos durante uma temporada. Uma
objeção rigorista diria: «se Deus não quer que tenham filhos, fará com que
os não tenham, apesar das relações». No entanto, seria útil fazer ver aos
rigoristas que não é essa a atitude habitual em todas as outras situações da
vida: ninguém que seja sensato dirá que não pensa ir ao médico tratar de
uma doença pois, se Deus quiser curá-lo, fá-lo-á sem a intervenção do
médico. Deus serve-se de circunstâncias variadas para que, com o uso da
razão, o casal conclua humildemente que o Seu desígnio para ele, nessa
altura, indique ser preferível que não tenham filhos. É óbvio
que pode haver erros na avaliação das circunstâncias e também faltas de
generosidade. Como, em sentido inverso a essas faltas, pode dar-se uma
ingénua interpretação de confiança na Providência. Se um médico prudente
adverte uma mulher submetida a cesarianas sucessivas de que uma gravidez,
nos próximos dois anos, a colocará em perigo de vida, seria uma
irresponsabilidade não tomar a sério essa advertência. Logicamente, o único
modo moralmente legítimo para evitar esse perigo é não ter relações no
período fértil.
Em suma: Deus conta com o nosso uso dos meios disponíveis, sempre
que esses meios respeitem o bem da pessoa. Em certas circunstâncias, o
casal pode entender que Deus lhe diz: «agora, procurem amar-se
mutuamente sem ter relações (nalguns dias), aprendendo e cultivando uma
doação mútua mais espiritual». Em certo sentido, os casais podem, se o
desejarem, olhar então para o amor-doação dos que vivem o celibato, pois
veem neles a possibilidade de amar muito, mesmo sem determinados gestos
do corpo (em si mesmos bons, como já se explicou até à exaustão)[692].
Por outra parte, se um casal restringisse habitualmente as relações aos
períodos inférteis, por abstratos motivos económicos ou de saúde, poderia
suceder que apenas uma ou duas vezes na vida realizasse o ato conjugal com
um desejo sério de ter filhos. Será isto que Deus quer? Um documento do
Conselho Pontifício para a Família faz notar que, hoje em dia, «o
cumprimento de atos conjugais potencialmente procriativos não é mais do
que uma espécie de soma de breves parêntesis dentro de uma inteira vida
conjugal tornada deliberadamente estéril. O facto indica, evidentemente, um
grave eclipse do valor da procriação»[693]. As palavras do documento
referem-se a todo o tipo de procedimentos para evitar os filhos; mas, mesmo
no caso de uma tal atitude se dar num casal que se limita aos métodos de
planeamento familiar natural, é preciso reconhecer uma vez mais que, com
tal atitude, é mais difícil mostrar, pelo menos de forma intuitiva, as
diferenças entre a continência periódica e o recurso aos contracetivos –
embora, de facto, elas continuem a existir e sejam muito relevantes.
Que razões podem ser consideradas «graves»? Como se disse, é o casal
que deve julgar em consciência se o são ou não, dadas as circunstâncias
pessoais de cada um. Antes de dar uma resposta orientadora, vale a pena ter
presente que o modo como se avalia a bondade de ter filhos condiciona muito
o que se considera sério para não promover a natalidade. Já considerámos,
neste capítulo, a importância do bem da prole[694].
Se os filhos são vistos como o grande bem do matrimónio – a «coroa» –,
então as razões para os evitar devem ser realmente graves, por exemplo: o
perigo de vida ou um risco grave para a saúde da mãe; uma crise económica
anormalmente difícil e sem termo à vista; uma conflitualidade social
perigosa. A Igreja não concretiza demasiado. Serão os esposos que terão de
pensar seriamente, diante de Deus e aconselhando-se prudentemente, o que
fazer. Insisto que, quando se tem em pouca conta o valor dos filhos, é fácil
encontrar motivações banais para não se fomentar a prole. A título de
exemplo, e deixando claro que se trata de uma opinião pessoal, em geral
parece-me pouco lógico que um casal se case sabendo que nos primeiros dois
anos não quer filhos, para facilitar que um dos dois alcance um determinado
grau académico. Nessas circunstâncias, eu aconselhá-los-ia a atrasarem a data
do casamento (e também a meditarem seriamente no que a Gaudium et spes
[n.os 48 e ss.] ensina sobre o casamento).
A exigência de motivos «graves» para recorrer à continência periódica
recebe uma luz diáfana quando se lê o que a encíclica entende por
«paternidade responsável». Como é sabido, a expressão é abusivamente
utilizada no sentido de restringir os nascimentos, a qualquer preço. Não é este
o sentido a defender.
A explicação de Paulo VI clarifica e enquadra os motivos graves:
«Em relação com os processos biológicos, “paternidade responsável” significa “conhecimento e
respeito pelas suas funções”: a inteligência descobre, no poder de dar a vida, leis biológicas que
fazem parte da pessoa humana (cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II.ae, q. 94, a. 2.).
Em relação às tendências do instinto e das paixões, a paternidade responsável significa o
necessário domínio que a razão e a vontade devem exercer sobre elas.
Em relação às condições físicas, económicas, psicológicas e sociais, a paternidade responsável
exerce-se tanto com a deliberação ponderada e generosa de fazer crescer uma família numerosa,
como com a decisão, tomada por motivos graves e com respeito pela lei moral, de evitar
temporariamente, ou mesmo por tempo indeterminado, um novo nascimento.
[…] Na missão de transmitir a vida, eles não são, portanto, livres para procederem a seu próprio
bel-prazer, como se pudessem determinar, de maneira absolutamente autónoma, as vias honestas a
seguir, mas devem, sim, conformar o seu agir com a intenção criadora de Deus, expressa na
própria natureza do matrimónio e dos seus atos e manifestada pelo ensino constante da
Igreja»[695].

Por entender com exatidão o que a encíclica afirma, S. João Paulo II


exclui liminarmente da atitude de «paternidade responsável» o uso dos
contracetivos[696]. De facto, é sempre uma enorme irresponsabilidade optar
por cometer ações gravemente imorais.
Os «motivos graves» parecem, pois, fundamentados no parágrafo em que
acrescentei o itálico. Nos atos em que se transmite a vida, há sempre uma
responsabilidade diante de Deus. O leito matrimonial, como já se afirmou
atrás, não é uma espécie de «offshore caseiro», um âmbito onde as opções
morais nada têm que ver com Deus, e onde seja moralmente indiferente
qualquer comportamento. Com essa perspetiva, Deus não poderia «entrar» no
leito matrimonial – como se nele existisse um biombo à prova do omnisciente
olhar de Deus –, e menos ainda emitir algum juízo ou indicação para aquelas
ações dos esposos que são, recordemo-lo, ações livres. Seria absurdo que um
católico pensasse assim, pois qualquer ato livre está sujeito à moralidade: é
bom ou mau, ou nos aproxima de Deus ou nos afasta d’Ele.
E se realmente os motivos que um casal encontra para recorrer à
continência periódica não forem «graves»? Uma tal atitude não é moralmente
neutra. Não favorece nem o amor dos esposos nem a confiança em Deus, e
demonstra que, nesse casal, o dom dos filhos deve ser mais valorizado. No
entanto, apesar de ser uma má opção moral, porventura com tonalidades de
egoísmo, não se equipara à gravidade da contraceção, ainda que esta fosse
realizada num contexto em que houvesse motivos sérios para não ter filhos.
Isto é, e para que fique bem claro: usar contracetivos, mesmo que haja
motivos de peso para evitar a gravidez, é gravemente imoral. Recorrer à
continência periódica por motivos banais ou pouco relevantes pode equivaler
a um egoísmo em maior ou menor grau, ainda que sem a relevância moral do
primeiro caso[697].
Tal como já se referiu antes, S. João Paulo II reconhece que, quando não
se explica a doutrina em toda a sua amplitude e se reduz a questão a um
problema de «método», pode tornar-se mais difícil captar a diferença tão
radical entre os contracetivos e a continência. Merece a pena ler a
advertência:
«A verdade da paternidade-maternidade responsável, e a sua prática, estão unidas à maturidade
moral da pessoa, e é aqui que muitas vezes se revela a divergência entre aquilo a que a encíclica
atribui explicitamente o primado e aquilo que a este é atribuído pela mentalidade comum.
Na encíclica é colocada em primeiro plano a dimensão ética do problema, salientando o papel da
virtude da temperança retamente entendida. No âmbito desta dimensão, existe também um
adequado “método” para agir. No modo comum de pensar, ocorre com frequência que o
“método”, separado da dimensão ética que lhe é própria, é praticado de modo meramente
funcional, e até mesmo utilitário. Separando o “método natural” da dimensão ética, deixa-se de
perceber a diferença que existe entre este e os outros “métodos” (meios artificiais) e chega-se a
falar dele como se se tratasse apenas de uma diversa forma de contraceção»[698].

Esta chamada de atenção é essencial para os educadores. Quando se quer


ajudar de verdade as pessoas, não basta explicar tecnicamente como se
procede para determinar de modo fiável o período fértil da mulher, mas é
necessário expor o enquadramento moral da opção pela continência.
Nesta linha, o casal que necessite de recorrer à continência periódica
deverá entender que esse comportamento é um exercício de virtude e um
modo de reforçar a convicção profunda de que Deus deve estar presente em
toda a vida, mesmo nos âmbitos mais íntimos. Também aí se joga o ser ou
não ser cristão, seguir ou não seguir Cristo.
Tal como lemos na oração de Tobias na noite do casamento com Sara, o
casal que opta pela continência há de entender que, ao viver assim, deseja
obedecer à lei que Deus colocou no seu coração e, portanto, obedecer ao
próprio Deus. As palavras de S. João Paulo II não permitem dúvidas:
«A regulação moralmente reta é também denominada “regulação natural da fertilidade”, o que
pode ser explicado na conformidade com a “lei natural”. Por “lei natural” entendemos aqui a
“ordem da natureza” no campo da procriação, enquanto ela é compreendida pela reta razão: tal
ordem é a expressão do Plano do Criador sobre o homem. […] o caráter virtuoso do
comportamento, que se exprime na “natural” regulação da fertilidade, é determinado não tanto
pela fidelidade a uma impessoal “lei natural” quanto ao Criador-pessoa, fonte e Senhor da ordem
que se manifesta em tal lei.
Deste ponto de vista, a redução à mera regularidade biológica, separada da “ordem da natureza”,
isto é, do “plano do Criador”, deforma o autêntico pensamento da encíclica Humanae Vitae (cfr.
HV, 14).
O documento pressupõe decerto aquela regularidade biológica, melhor, exorta as pessoas
competentes a estudá-la e a aplicá-la de modo ainda mais aprofundado, mas entende sempre tal
regularidade como a expressão da “ordem da natureza”, isto é, do providencial Plano do
Criador, em cuja fiel execução consiste o verdadeiro bem da pessoa humana»[699].

Uma última observação sobre os «motivos graves» que a Igreja convida


a reconhecer: esta condição torna claramente patente, aos olhos de qualquer
observador imparcial, que a Igreja tem em muito boa conta as relações
conjugais, como expressão de amor entre os esposos. Por isso, não se trata de
as suprimir ou de propor essa abstenção como um ideal. Elas fazem parte do
relacionamento entre os cônjuges e só devem estar habitualmente ausentes
quando existe uma causa considerada «grave». E mesmo o modo em que se
concretiza essa abstenção não deve eliminar a proximidade dos cônjuges,
como já referimos.
23.9. «Atuabilidade» e inteligibilidade da norma moral ensinada
na Humanae Vitae
É conveniente recordar agora dois aspetos que constituem uma parte
importante da moldura da norma moral. Por um lado, é necessário reafirmar a
possibilidade de viver de acordo com estas exigências do verdadeiro amor – o
que hoje em dia nunca é de mais sublinhar. Por outro, interessa reafirmar
quais os fundamentos da norma moral, isto é, em que é que se apoia a Igreja
para propor este comportamento de um modo tão contundente.
a) É possível viver segundo a Humanae Vitae
Logo no início da encíclica, Paulo VI faz-se porta-voz das dificuldades
que o comportamento proposto pode requerer:
«Assim, dadas as condições da vida hodierna e dado o significado que têm as relações conjugais
para a harmonia entre os esposos e para a sua fidelidade mútua, não estaria indicada uma revisão
das normas éticas vigentes até agora, sobretudo se se tem em consideração que elas não podem ser
observadas sem sacrifícios, por vezes heróicos?»[700].

Portanto, a Igreja é consciente de, nalgum caso, estar a pedir aos


esposos
heroísmo na sua conduta. Pela mesma razão, não deixa de reconhecer,
agradecida, o heroísmo de tantos e tantos casais que, de modo silencioso – e
ao mesmo tempo contra uma opinião pública agressiva e hostil –, assumiram
nas suas vidas, convicta e resolutamente, estas exigências da lei divina e do
amor humano. Quantas mulheres não foram enxovalhadas nos hospitais
quando davam à luz o terceiro filho (já não falemos do sexto…)! Quantas
foram ilegitimamente pressionadas para laquearem as trompas! Quantas
famílias sofreram até o desprezo de familiares próximos, que as censuravam
pela vinda ao mundo de mais um filho!
A propósito, e para introduzir uma maior leveza no texto, seja-me
permitido um curto relato. Verídico. Uma mãe de família ia ter o seu quinto
filho. A sogra – uma avó atenta e carinhosa, reconheçamo-lo – decidiu falar
com ela para a prevenir da veleidade de novas gravidezes. Não se importou
com o facto de, na sala onde teve lugar o aconselhamento, estar presente a
segunda neta mais velha, na altura com nove anos. Estava entretida a
garatujar alguma coisa. No final da fogosa sessão de «esclarecimento», com
uma nora já indiferente, calejada perante uma tão monótona argumentação e
sem vontade de responder para não gerar conflitos, a jovem neta ergueu-se,
aproximou-se da avó e perguntou-lhe candidamente: «avozinha, e qual de nós
preferias que não tivesse nascido?» Apesar de, em anos sucessivos, terem
vindo mais dois netos, nunca mais voltou a levantar qualquer objeção. No
fundo, tinha boa vontade e limitava-se a repetir, de modo pouco crítico, o que
pulula na opinião pública. Mas o episódio serve como pequeno testemunho
dos muitos sacrifícios que os casais cristãos enfrentam, mesmo dentro da
própria família. A Igreja está-lhes imensamente agradecida, pois são eles que
mostram que os ensinamentos não são utópicos.
S. João Paulo II, nas catequeses, reforça a ideia de que a norma moral
não se destina a extraterrestres. Não se trata de uma norma oriunda de uma
misteriosa estratosfera, um tanto ou quanto irracional, a ser violentamente
incorporada na vida dos casais. O Papa dedica longos parágrafos a mostrar a
continuidade e a harmonia entre a encíclica e a constituição pastoral Gaudium
et Spes, tão pacificamente aclamada, também por setores que, anos mais
tarde, aquando da publicação da encíclica, a ela se opuseram[701]. Ao mesmo
tempo, S. João Paulo II mostra como a teologia do corpo torna ainda mais
compreensível o documento de Paulo VI. Leiamos alguns longos mas
esclarecedores parágrafos:
«A relevância destas interrogações [cfr. Humanae Vitae, n.º 3] supõe uma resposta
proporcionalmente ponderada e profunda. Se, portanto, por um lado é justo esperar uma intensa
exposição da norma, pelo outro também se pode esperar que não menos peso seja dado aos
argumentos pastorais, que dizem respeito de modo mais direto à vida dos homens concretos,
daqueles, precisamente, que põem as perguntas mencionadas no início.
Paulo VI teve sempre diante dos olhos estes homens. […]
O facto de que a lei deva ser de “possível” atuação pertence diretamente à natureza mesma da lei,
e está contido, portanto, no quadro da “não-contrariedade normativa”. Todavia, a “possibilidade”,
entendida como “exequibilidade” da norma, pertence também à esfera prática e pastoral. No texto
citado o meu Predecessor fala, precisamente, deste ponto de vista.
Pode-se acrescentar aqui uma consideração: o facto de que todo o substrato bíblico, denominado
“teologia do corpo”, nos ofereça, embora de modo indireto, a confirmação da verdade da norma
moral contida na Humanae Vitae, prepara-nos para considerar, mais a fundo, os aspetos práticos
e pastorais do problema no seu conjunto. […]
Quem julga que o Concílio e a encíclica não têm suficientemente em conta as dificuldades
presentes na vida concreta, não compreende a preocupação pastoral que deu origem àqueles
Documentos. “Preocupação pastoral” significa busca do verdadeiro bem do homem, promoção
dos valores gravados por Deus na sua pessoa»[702].

As palavras são suficientemente claras e requerem apenas um breve


resumo: é necessário explicar a racionalidade da norma moral – assunto sobre
o qual voltaremos a refletir –, mas tão importante quanto isso é ajudar a
entender que, além de racional, é razoável: com a graça de Deus, pode
perfeitamente ser vivida. Não se trata de uma bonita e lógica utopia. Assim,
quando se tratar de expor a doutrina da Humanae Vitae, os catequistas devem
ter bem presente ambas as dimensões; não basta demonstrar que o raciocínio
que conduz à norma moral parte de premissas inatacáveis e segue silogismos
sem erros, mas é igualmente necessário apresentar a doutrina como o que é:
uma proposta excelente para os esposos, que vai ao encontro dos seus anseios
mais profundos. Talvez possamos acrescentar – trata-se de uma opinião
pessoal – que a teologia do corpo reforça extraordinariamente esta segunda
dimensão.
b) De onde procede a norma?
Passemos aos fundamentos da norma moral. O que leva a Igreja a ensinar
com tanta certeza que o uso dos contracetivos é contrário ao desígnio de Deus
para o homem e, portanto, contrário ao próprio bem do homem? É absurdo
admitir sequer a hipótese de uma decisão arbitrária da Igreja, mesmo baseada
em boas motivações. Essa infeliz hipótese soa mais ou menos assim: «do
mesmo modo que a Igreja foi variando o tempo previsto para o jejum
eucarístico, apoiada na ideia da reverência à presença do Senhor na
Eucaristia, assim também a Igreja desaconselha os contracetivos para evitar
um descalabro em matéria sexual». Obviamente, se fosse este o fundamento,
seria possível, e até razoável, encontrar várias exceções à regra. Até porque,
como sempre ensinou a Igreja, as leis humanas não obrigam sob grave
incómodo. Isto é, se fosse uma mera lei humana, sempre poderiam existir
condições a tornar tão pesado o seu cumprimento que se justificasse a
suspensão da lei nalguns casos. É o que sucede, por exemplo, com a
obrigação de participar na Missa dominical, que constitui um preceito grave;
mesmo assim, quando, por exemplo, a pessoa está doente sem poder sair de
casa ou tem de cuidar de um doente às horas das celebrações da Missa, não
comete qualquer pecado não indo, precisamente porque as leis humanas
(mesmo eclesiásticas, como é o caso) não obrigam em circunstâncias
particularmente gravosas.
Sucede, no entanto, que a imoralidade dos contracetivos não é uma lei
positiva da Igreja, mas antes tem o seu fundamento na lei natural e na
Revelação. Por ser expressão da lei natural, pode e deve ser ensinada a todos
os homens e mulheres, mesmo não cristãos, porque vai ao encontro do que
está presente nos seus corações. A natureza humana é a mesma em todos os
tempos e lugares, pois, se assim não fosse, não se lhe aplicaria o conceito de
natureza. Desse comum denominador de toda a humanidade brotam todos os
preceitos de lei natural, como é o caso que nos ocupa (o mal que o uso dos
contracetivos ocasiona a todos). Ao mesmo tempo, este ensinamento é
reforçado e iluminado pela visão do homem que a Bíblia e a Tradição
oferecem. Aliás, toda a teologia do corpo mostra como essa visão do homem
concorda com os comportamentos morais que a Igreja ensina[703]. Mesmo que
a proibição dos contracetivos não seja explícita na Bíblia, os ensinamentos
sagrados apresentam e «desenham» a natureza humana – cuja expressão mais
perfeita é Cristo – com umas exigências morais incompatíveis com o
comportamento contracetivo.
Estes fundamentos (lei natural e Revelação) da norma moral em causa
têm uma harmónica ligação, no sentido em que, através da Sagrada Escritura,
é possível reencontrar e perceber melhor as exigências da lei natural. Não
significa isto que um ateu não possa entender as razões da norma – pode e
deve –, mas a verdade é que a sua compreensão torna-se mais acessível para
um crente. Pelo menos, este terá mais recursos para a compreensão. É o que
S. João Paulo II explica:
«A norma da encíclica Humanae Vitae diz respeito a todos os homens, enquanto é norma da lei
natural e se baseia na conformidade com a razão humana (quando, bem entendido, esta procura a
verdade). Com maior razão diz respeito a todos os crentes membros da Igreja, dado que o caráter
razoável desta norma encontra indiretamente confirmação e sólido apoio no conjunto da
“teologia do corpo”. Sob este ponto de vista falámos, nas análises precedentes, do “ethos” da
redenção do corpo.
A norma da lei natural, baseada neste “ethos”, encontra não só uma nova expressão, mas também
um pleno fundamento antropológico e ético quer na palavra do Evangelho, quer na ação
purificadora e corroborante do Espírito Santo»[704].

Nas catequeses de teologia do corpo, S. João Paulo II não se detém a


explicar o que se entende por «lei natural». Fá-lo-á, anos mais tarde, na
encíclica Veritatis Splendor. Interessa-nos, por isso, introduzir um breve
inciso sobre o que é (e não é)
a lei natural, bem como sobre o que ela nos diz sobre a questão que nos
ocupa.
Encontramos a clássica definição de «lei natural» na Suma Teológica de
S. Tomás. A referida encíclica moral inclui estas linhas «de ouro»:
«Em relação às outras criaturas, a criatura racional está sujeita de um modo mais excelente à
divina Providência, enquanto ela também se torna participante da Providência ao cuidar de si
própria e dos outros. Por isso, ela participa da razão eterna, graças à qual tem uma inclinação
natural para o ato e o fim devidos; esta participação da lei eterna na criatura racional é chamada
“lei natural”»[705].

Há diversas questões sobre o modo de entender bem o que seja esta


lei[706]. Permita-me o leitor expor alguns dos seus elementos que são, a meu
ver, relevantes para a compreensão da norma moral que estamos a estudar.
Pelas palavras de S. Tomás, percebemos que Deus como que deixou
vestígios do plano que tem para o homem no próprio homem. Essas
indicações inscritas na natureza humana não são mecanismos automáticos.
São como um «mapa do tesouro» das antigas histórias de piratas – o texto da
Comissão Teológica afirma que a natureza do homem é «portadora de uma
mensagem ética»[707] – que o homem, por um lado, deve «descobrir» e, por
outro, «executar». É certo que poderia reconhecer o «mapa» e não se
encaminhar para o tesouro, como também sucede que muitas vezes se
encaminha para esse tesouro (o seu fim) sem ser plenamente consciente da
existência do mapa.
Metáforas à parte, o que é em concreto o «mapa»? Como pode o homem
ler uma mensagem que lhe chega desde a eternidade e que nele próprio
repousa? Com palavras do texto da Comissão Teológica, a participação no
homem da lei eterna (isto é, a lei natural) é «mediada, por um lado, pelas
inclinações da natureza, expressão da sabedoria criadora, e, por outro lado,
pela luz da razão humana que as interpreta e que é ela mesma uma
participação criada à luz da inteligência divina»[708]. As inclinações
fundamentais da natureza humana não são meros desejos cegos.
Tradicionalmente, consideram-se três grandes grupos de inclinações que, de
alguma maneira, ajudam a especificar aquele que é o preceito mais básico no
campo da atuação: o bem deve ser feito e o mal deve ser evitado. Mas o que é
o bem para o homem? S. Tomás deduz esse bem a partir dos tais três grupos
de inclinações: (i) a inclinação a conservar a vida e a desenvolver a própria
existência; (ii) a inclinação à reprodução para perpetuar a espécie; (iii) e a
inclinação a conhecer a verdade sobre Deus e a viver em sociedade. O
terceiro grupo é exclusivo dos seres racionais[709]. Os anteriores são comuns a
outros seres, embora no homem, para que essas inclinações contribuam para
o aperfeiçoamento moral, não basta que se cumpram instintivamente. Seria
irracional e absurdo, por exemplo, que um homem, para viver o segundo tipo
de inclinações, «deixasse» descendência em todas as mulheres com quem se
encontrasse. Por isso, é particularmente relevante o que explica S. Tomás nas
respostas às objeções dessa questão. Em concreto, afirma:
«Todas as inclinações de qualquer parte da natureza humana, como a concupiscível e a irascível,
na medida em que se submetem à ordem da razão, pertencem à lei natural e são reconduzidas a
um único primeiro preceito [nomeadamente o preceito segundo o qual o bem deve ser realizado e
o mal evitado]».
E a seguinte, respondendo à objeção de que a lei natural deveria então ter
apenas um preceito, insiste:
«Ainda que seja uma em si mesma, a razão deve ordenar todos os assuntos que dizem respeito ao
homem. E, neste sentido, caem sob a lei da razão todas as coisas suscetíveis de uma ordenação
racional»[710].

Nestas palavras estão contidos os dois aspetos da lei natural que é


importante considerar agora e que a encíclica Veritatis Splendor assinala
convenientemente.
É necessário olhar para as inclinações do corpo e da alma e, a partir delas
(segundo aspeto), é necessário concretizar quais os comportamentos ligados
a essas inclinações que supõem na realidade um aperfeiçoamento integral da
pessoa. Deste modo, por um lado descarta-se a posição de quem não
considera o corpo como fonte de informação moral (seria apenas uma
matéria sobre a qual se atuaria, mas que não teria nada a dizer sobre como se
deve atuar); por outro lado, e nos antípodas, rejeita-se qualquer atitude que
pretenda deduzir da mera inclinação um comportamento moral unívoco.
Aplicada ao assunto sobre o qual nos debruçamos, a primeira atitude levaria
a julgar como bom qualquer relacionamento sexual que as pessoas
quisessem ter, e a segunda poderia levar a concluir, por exemplo, que sempre
que o casal sentisse uma mútua atração deveria ter relações, fosse ou não
conveniente que um filho pudesse ser gerado.
Antes de ler alguns dos parágrafos-chave da encíclica sobre esta matéria,
convido o leitor a centrar-se em dois aspetos que o podem guiar nessa leitura.
Em primeiro lugar, é importante afirmar que todos os elementos do ser
humano – portanto, também o corpo – trazem em si uma espécie de «código»
que permite deduzir alguns bens essenciais para o homem. Esta verdade
apoia-se no facto de o homem ser uma criatura e de o Criador ter «inscrito»
nele indicações básicas que permitem conhecer orientações fundamentais
para algumas decisões morais. Quando alguns acusam Deus de nada fazer
para eliminar o mal no mundo, esquecem-se de que um dos grandes dons
concedidos a cada ser humano é precisamente ter gravado em si a lei natural.
Se todos a seguissem, o mal moral desapareceria. É curioso que os mesmos
que censuram Deus por não acabar com os males recusam, ao mesmo tempo,
que Ele deva intervir ou que o homem se deva deixar guiar por uma lei
divina. Apetece perguntar: «em que ficamos, então? Deus deve intervir ou
não?» Esquecem-se que o modo habitual de Deus intervir é dar a cada um os
meios para poder escolher o bem. Assim sendo, não seria útil voltar a trazer
para o debate público o problema de saber o que é que, em certas questões,
pode estar ou não em concordância com a lei natural? Não deveríamos
indagar serenamente quais são as indicações intrínsecas ao homem dadas
pela sabedoria divina e que estão inscritas na sua natureza?
Em segundo lugar, interessa-nos entender bem que «lei natural» não
equivale a «lei biológica». Ou seja, não se trata de converter em norma moral
as inclinações naturais (por exemplo: «eu tenho a inclinação para me
alimentar; logo, sempre que me alimento faço um coisa boa»). Tendo em
conta essas inclinações, importa, sim, saber como devem elas ser reguladas
racionalmente para que me levem sempre para o meu verdadeiro bem (se
«eu» me alimento à toa e apenas de acordo com o meu paladar, sem ter em
conta o que pode fazer bem à saúde ou esquecendo que a comida que existe à
mesa também é para os restantes comensais, não faço algo bom, algo que me
aperfeiçoe realmente).
Na encíclica Veritatis Splendor, o subcapítulo que nos interessa é
introduzido com umas sugestivas palavras da Carta aos Romanos: «O que a
lei ordena está escrito nos seus corações» (Rom 2, 15). Leiamos com atenção
as palavras da encíclica a este respeito:
«A alma espiritual e imortal é o princípio de unidade do ser humano, é aquilo pelo qual este
existe como um todo –“corpore et anima unus” – enquanto pessoa. Estas definições não
indicam apenas que o corpo, ao qual é prometida a ressurreição, também participará da glória;
elas lembram igualmente a ligação da razão e da vontade livre com todas as faculdades
corpóreas e sensíveis. A pessoa, incluindo o corpo, está totalmente confiada a si própria, e é na
unidade da alma e do corpo que ela é o sujeito dos próprios atos morais. A pessoa, através da
luz da razão e do apoio da virtude, descobre no seu corpo os sinais prévios, a expressão e a
promessa do dom de si, de acordo com o sábio desígnio do Criador.
É à luz da dignidade da pessoa humana – que se afirma por si própria – que a razão depreende o
valor moral específico de alguns bens, aos quais a pessoa está naturalmente inclinada. E tendo
em vista que a pessoa humana não é redutível a uma liberdade que se autoprojeta, mas comporta
uma estrutura espiritual e corpórea determinada, a exigência moral originária de amar e respeitar
a pessoa como um fim e nunca como um simples meio implica também, intrinsecamente, o
respeito de alguns bens fundamentais, sem os quais se cai no relativismo e no arbitrário.
Uma doutrina que separe o ato moral das dimensões corpóreas do seu exercício é contrária aos
ensinamentos da Sagrada Escritura e da Tradição. Essa doutrina faz reviver, sob novas formas,
alguns dos velhos erros sempre combatidos pela Igreja, porquanto reduz a pessoa humana a uma
liberdade “espiritual”, puramente formal. Esta redução desconhece o significado moral do corpo e
dos comportamentos que a ele se referem (cfr. 1 Cor 6, 19)»[711].

A leitura racional do corpo permite chegar às conclusões da Igreja. Ou


melhor: a Igreja, ajudada pela luz da Revelação, faz também essa leitura
racional que a todos propõe.
A partir dos conceitos tratados nos capítulos precedentes, recordamos
que está inscrita no homem a «lei do dom», e que essa exigência (e grandeza)
moral abrange todo o seu ser, de modo que também o corpo pode e deve
participar na doação de amor de uma pessoa. No caso dos cônjuges, o ato
sexual acompanha, confirma e expressa a doação e a aceitação totais e sem
reservas que há entre os dois. Se o casal opta por dar «outra interpretação» ao
ato conjugal, muito abaixo de um ato de doação total – por exemplo,
eliminando o significado procriativo com o uso de contracetivos –, fez uma
má leitura do significado do seu corpo. Provavelmente, tem do corpo a ideia
de algo que se possui, em vez da clara consciência de que a pessoa também é
corpo, de tal modo que o que faz com o corpo compromete todo o seu ser. A
persistência em atos com tal leitura distorcida acabará por gravar na
consciência um significado falso do corpo, muito aquém do que ele pode e
deve expressar, desvalorizando as consequências na vida pessoal e conjugal
do que se faz corporalmente, etc.
Leiamos as palavras de S. João Paulo II a este propósito, extraídas das
catequeses:
«“Pela sua estrutura íntima, o ato conjugal, ao mesmo tempo que une profundamente os esposos,
torna-os aptos para a geração de novas vidas, segundo leis inscritas no próprio ser do homem e da
mulher” (HV, 12).
Observamos que a frase precedente do texto acabado de citar trata sobretudo do “significado”,
enquanto a frase seguinte trata da “estrutura íntima” (isto é, da natureza) da relação conjugal.
Definindo esta “estrutura íntima”, o texto faz referência às “leis inscritas no próprio ser do homem
e da mulher”.
A passagem da frase que exprime a norma moral para a frase que a explica e motiva é
particularmente significativa. A encíclica induz a procurar o fundamento da norma, que determina
a moralidade das ações do homem e da mulher no ato conjugal, na natureza deste mesmo ato e,
ainda mais profundamente, na natureza dos mesmos sujeitos que atuam.
Deste modo, a “estrutura íntima” (ou seja, a natureza) do ato conjugal constitui a base necessária
para umas adequadas leitura e descoberta dos significados, que devem transferir-se para a
consciência e para as decisões das pessoas que atuam, e também a base necessária para estabelecer
a adequada relação destes significados, isto é, a sua inseparabilidade. Dado que o “ato conjugal
[…] une profundamente os esposos”, e, ao mesmo tempo, “os torna aptos para a geração de novas
vidas”, e tanto uma coisa como a outra acontecem “pela sua estrutura íntima”, daqui deriva que a
pessoa humana (com a necessidade própria da razão, a necessidade lógica) deve ler
contemporaneamente os “dois significados do ato conjugal” e também a “conexão inseparável
entre os dois significados do ato conjugal”.
Não se trata aqui de outra coisa senão de ler na verdade a “linguagem do corpo”, como foi dito
diversas vezes nas precedentes análises bíblicas. A norma moral, ensinada constantemente pela
Igreja neste âmbito, recordada e reconfirmada por
Paulo VI na sua encíclica, deriva da leitura da “linguagem do corpo” na verdade»[712].

É difícil, à luz desta glosa de S. João Paulo II ao n.º 12 da Humanae


Vitae, acusar de «biologismo» a encíclica de Paulo VI, como se da fisiologia
feminina
se extraíssem cegamente normas morais. Um dos argumentos que
permitem rejeitar essa acusação à encíclica de Paulo VI é a afirmação da
legitimidade da continência periódica quando, racionalmente, se deduz que
em determinadas circunstâncias é preferível não ter filhos.
Como já se insistiu, a lei natural é uma leitura racional de todo o nosso
ser, corpo e alma. Uma má interpretação do que é a lei natural, que a vê
como uma espécie de automatismo extraído da biologia, poderia conduzir a
conclusões erradas[713].
Em suma, e voltando ao âmbito que nos interessa neste livro: a leitura
racional do corpo e da sexualidade, ajudada pela luz da Revelação, fez-nos
entender que há dois significados no ato conjugal e que é um bem para o ser
humano mantê-los unidos na consciência e na vontade de quem se une
conjugalmente. A defesa dessa inseparabilidade é uma proteção da dignidade
da pessoa e, em concreto, do corpo e da sexualidade, pois evita
instrumentalizações da pessoa e assegura que o homem e a mulher mantêm o
seu corpo aberto à gigantesca possibilidade de expressar um total dom de si,
elemento-chave de qualquer realização verdadeiramente humana. Essa
inseparabilidade assumida permite que o ser humano experimente em si o
significado esponsal do corpo e, como que «fluindo» dele, o significado
procriativo. Se assim não for, o corpo não expressa a doação ao outro e a
aceitação do outro sem reservas, condição absoluta para que aquele ato seja
colocado no patamar superior das ações humanas, pois só assim fica, de
facto, ligado ao amor-doação.
A mesma leitura racional (e bíblica) do corpo e da sexualidade permite
tirar ilações (com consequências morais) do facto de a mulher ter um ciclo
biológico, e não ser sempre fértil. Que terá querido Deus dizer-nos com isso?
Que indicações nos deu para o comportamento humano? A partir da releitura
do corpo e, em concreto, da fisiologia feminina – do facto de nem todos os
atos conjugais serem aptos para gerar vida –, a Igreja ensina que é possível
manter na consciência e na vontade dos esposos a inseparabilidade das duas
dimensões do ato conjugal, mesmo quando as consequências procriativas são
impossíveis. Não ensina que só seja moralmente bom ter relações no período
fértil da mulher, ou que elas não sejam lícitas em caso de esterilidade ou até
quando a mulher já está grávida (repita-se: sempre que não existam riscos
nem para a mulher nem para a criança, nem um grave incómodo para a
mulher). Em todas essas situações, é possível manter a vontade de se dar e
aceitar totalmente, sem reservas, mesmo sabendo que, quanto à função
procriativa, o que se pode dar é «zero». Perdoe-se-me uma pobre
comparação: suponhamos que é hábito de um filho manifestar a sua sincera
amizade ao pai com um forte abraço com os dois braços; suponhamos agora
que o filho tem um braço ao peito; o abraço nessas condições far-se-á apenas
com um dos membros, mas isso não lhe retira força afetiva; suponhamos
ainda que, pudendo abraçar com os dois braços, apenas lhe dá uma
palmadinha nas costas com um deles – não perguntaria o pai «que se passa
hoje contigo»?
23.10. Amor (sempre) sem barreiras
É apoiado nesta lógica que o Magistério da Igreja ensina a
inseparabilidade dos dois significados do ato conjugal: o significado unitivo
e o procriativo. A Igreja, apoiada numa «leitura» racional do corpo, ensina
que não é moralmente indiferente manter ou não manter unidos esses
significados no ato conjugal. Como é que uma pessoa deixa de manter
unidos os dois significados num determinado ato conjugal? Rejeitando um
deles, isto é, «escolhendo» eliminar desse mesmo ato um dos significados; é
isso que sucede quando faz alguma coisa que torna impossível (ou quase) a
sua expressão. Assim, se a pessoa quer ter a relação mas não quer mesmo
que nela seja concebido um novo ser (quer eliminar o significado
procriativo), escolhe usar contracetivos.
Para casos extremos, é fácil captar rapidamente a desumanidade de uma
tal atitude. Suponhamos que um marido diz à esposa: «olha, há uma parte de
ti que me parece maçadora; quero estar contigo a sós mas nem pensar em ter
um filho teu. Arranja-te»; ou pensemos na situação oposta: «olha, eu quero
filhos teus mas detesto as relações, pelo que tratamos do assunto através do
nosso médico». Não é verdade que, nos dois casos, a mulher se sentiria – e
com razão! – instrumentalizada?
É claro que os exemplos dados não cobrem a maioria das situações
reais. Por exemplo, é habitual que os dois, de comum acordo, optem pela
contraceção e, provavelmente, haverá períodos em que prescindam dos
contracetivos. Não bastaria então que a tal união dos significados se
mantivesse como opção habitual, mesmo sabendo que, em determinados
momentos, ela seria sacrificada em nome de um bem maior? Não, como já
respondemos atrás (cfr. 23.4.); tal como Jesus condena qualquer olhar
luxurioso, e não apenas uma atitude luxuriosa genérica.
Apresento agora uma nova justificação para a resposta negativa. Quando
se admite que é possível (moralmente falando) eliminar um dos significados,
eles deixam automaticamente de ser indissociáveis na cabeça e no coração
de quem assim procede. A leitura racional do corpo e da sexualidade humana
não conclui apenas que há dois significados no ato conjugal, mas também
que eles estão mutuamente imbricados: quando se lesa um, naufraga também
parte do outro. Ora, se se admite que essa associação não é intrínseca, até nos
momentos em que o casal que já recorreu aos contracetivos mantém os dois
significados (porque passa um período sem os usar), o homem e a mulher
não vivem essas dimensões como realmente indissociáveis. É certo que, no
momento em que o casal interrompe o uso de contracetivos, os dois
significados voltam a estar presentes no ato conjugal, mas, enquanto se
mantiver aberta a possibilidade de que um deles não esteja presente, nenhum
dos significados estará nos cônjuges como deveria estar: passam apenas a ser
dois significados justapostos, separados um do outro, e que acidentalmente
podem coincidir num ato (ou não). Assim, se alguém nega a
indissociabilidade dos dois significados, não admite que, para a sua
plenitude, o outro significado tem de estar presente. Concretizando: se, em
geral, «eu» admito que, para o significado unitivo estar presente, não é
necessário que esteja o procriativo, sendo este eliminável consoante a minha
vontade, então o segundo não está verdadeiramente incluído no primeiro, e
quando quero unir-me não me uno com tudo o que sou. Pode estar presente a
função procriativa, mas o pleno significado unitivo, que também foi lesado
com o uso dos contracetivos («não me entrego com tudo o que posso neste
momento»), não é recuperado pelo facto de se querer naquele momento a
função procriativa. Permita-se-me retomar o exemplo já indicado antes: se o
marido pensa que é aceitável o adultério, e é esporadicamente infiel, quando
tiver relações com a esposa não estará a dar tudo o que ele é, pelo menos
enquanto não excluir sem hesitações essa atitude. Neste caso, a
exclusividade do amor é abalada e o amor conjugal sofre, ainda que sejam
«poucas vezes», momentos de infidelidade. Enquanto «a porta estiver
aberta» para a infidelidade, o amor não fica curado.
É quase desnecessário acrescentar que, se o casal que habitualmente usa
contracetivos os puser de lado por uma temporada, quando tem as relações
abertas à vida não está a pecar. O que digo é que, apesar de externamente os
cônjuges se comportarem então segundo as exigências morais, uma má
leitura racional da sexualidade, com a ilação de que é possível separar os dois
significados (quando assim o entenderem fazer), não fica corrigida enquanto
não houver arrependimento. E uma má leitura do corpo e da sexualidade não
deixa de ter consequências, mesmo se circunstancialmente não se faz uso
desse erro.
23.11. O domínio de si ausente na contraceção
É possível oferecer mais uma explicação para a compreensão da
imoralidade dos contracetivos, aprofundando no domínio de si. Deste modo,
faremos uma ponte para o seguinte capítulo. No seu estilo luminoso,
Chesterton sentenciava: «O verdadeiro e normal controlo da natalidade
chama-se “controlo de si mesmo”»[714].
Detenhamo-nos, com um pouco mais de atenção, na audiência de 22 de
agosto, que resume, de modo condensado, ensinamentos anteriores e
essenciais. Aliás, aconselho a que se leia e releia pausadamente essa
audiência, que me parece particularmente importante para o tema em questão.
Começa assim:
«Qual é a essência da doutrina da Igreja acerca da transmissão da vida na comunidade conjugal,
daquela doutrina que nos foi recordada pela Constituição pastoral do Concílio Gaudium et Spes e
pela encíclica Humanae Vitae do Papa Paulo VI?
O problema consiste em manter a adequada relação entre o que é definido como “domínio… das
forças da natureza” (HV, 2) e o “domínio de si” (HV, 21) indispensável à pessoa humana. O
homem contemporâneo manifesta a tendência de transferir os métodos próprios do primeiro
âmbito para os do segundo. “O homem fez progressos admiráveis no domínio e na organização
racional das forças da natureza – lemos na encíclica – de tal maneira que tende a estender esse
domínio ao seu próprio ser global: ao corpo, à vida psíquica, à vida social e até mesmo às leis que
regulam a transmissão da vida” (HV, 2).
Tal extensão da esfera dos meios de “domínio… das forças da natureza” ameaça a pessoa humana,
para a qual o método do “domínio de si” é e permanece específico. Ele – o domínio de si – de
facto corresponde à constituição fundamental da pessoa: é precisamente um método “natural”.
Pelo contrário, a transposição dos “meios artificiais” infringe a dimensão constitutiva da pessoa,
priva o homem da subjetividade que lhe é própria e faz dele um objeto de manipulação»[715].

Apesar de o termos encontrado antes, na entrevista ao cardeal Ratzinger,


este não é, na verdade, um argumento ao qual se costume recorrer. Na minha
opinião, talvez porque não foi bem explorado. Em qualquer caso, é
evidentemente necessário explicar bem a tese de fundo.
Ninguém nega, por exemplo, que, se um pai de família está «com os
nervos à flor da pele» e se zanga com todos, bate nos filhos, insulta a
mulher, etc., será certamente preferível exercitar-se no domínio de si em vez
de tomar ansiolíticos. Mas, se os tomar e eles forem eficazes para o domínio
do mau-humor, terá feito algo imoral? Por que razão não se olha os
contracetivos com semelhante indulgência? Sim, seria preferível dominar-
se; mas, se faltam as forças, por que não recorrer aos químicos ou ao látex?
Será grave fazê-lo? A comparação proposta não é a melhor e é facilmente
desmontável: no caso da irascibilidade, o marido terá sempre de se dominar,
embora com menos esforço devido aos medicamentos; em certo sentido,
também é legítimo que a mulher tome um regulador do ciclo (não
contracetivo) para ser mais fácil recorrer à continência periódica. Talvez o
exemplo seguinte se aproxime mais do caso dos contracetivos: admitamos
que, quando o marido começa a irar-se, lhe «disparam», de acordo com a
sua prévia vontade, um hipnótico que o faça dormir durante umas horas.
Como se compreende, essa medida só seria legítima no caso de o marido
padecer fortes perturbações patológicas, colocando em risco a vida de
alguém. Mesmo assim, a comparação não é perfeita, pois, entre outros
motivos, no caso das relações conjugais o domínio de si é essencial para a
verdade das mesmas, isto é, para que a linguagem do corpo seja verdadeira:
só sendo senhoras de si é que as pessoas podem, de facto, dar-se totalmente
uma à outra, sobretudo na singular concretização dessa doação que é a
união sexual entre os esposos. Quando este falta ou é desvalorizado, isso é
sinal de que não se interiorizou a falsidade de um ato conjugal sem o querer
decidido de dar-se totalmente ao outro. Neste caso, o ato não expressa uma
comunhão de pessoas, mas apenas uma união de instintos ou de órgãos. Ora,
a escolha pelos contracetivos denota que o casal não parece decidido a
«apostar» no domínio de si ou, pelo menos, não lhe dá o relevo que merece.
S. João Paulo II é cauteloso ao explorar o argumento da Humanae Vitae.
Logo no início, fala da necessidade de manter uma «adequada relação» entre
o âmbito do domínio da natureza e o do domínio de si. Toda a argumentação
que se segue mostrará que, com os contracetivos, o âmbito do domínio da
natureza «invade» o âmbito do domínio de si, quer dizer, substitui este
domínio que é essencial para a verdade da relação conjugal.
Os passos do raciocínio são, grosso modo, os seguintes: se alguém não
é dono de si – e o uso dos contracetivos mostra que, pelo menos nessa
esfera, renunciou a estar disposto a que a dominadora sobre os impulsos
seja sempre a vontade –, fica privado do que é mais «seu», a sua
subjetividade, e expõe-se a ser objeto de uso (mesmo que se trate de um uso
mútuo entre os dois cônjuges)[716]. Quem não é dono de si deixa,
consequentemente, de poder dar-se (totalmente) ao outro, pois ninguém
pode dar do que não tem: é o próprio corpo que
«puxa» a pessoa, que a deixa seguir ao sabor dos instintos, sem que
necessariamente haja uma opção consciente de manifestar, aqui e agora, a
doação total de si ao outro[717].
A tónica da argumentação não é de modo nenhum estoica (do género: «é
preciso dominar-se para se ser bom»). O domínio de si, como já referimos, é
essencial para assegurar que a linguagem do corpo é verdadeira, pois só
assim a relação expressará uma autêntica comunhão de pessoas. O peso da
argumentação está apoiado na convicção da excecional importância da
relação conjugal. Convido o leitor a deter-se nas palavras que seguem:
«Como ministros de um sacramento que se constitui mediante o consenso e se aperfeiçoa
mediante a união conjugal, o homem e a mulher são chamados a exprimir aquela misteriosa
“linguagem” dos seus corpos em toda a verdade que lhe é própria. […]
O homem e a mulher desenvolvem na “linguagem do corpo” aquele diálogo que – segundo o
Génesis 2, 24-25 – teve início no dia da Criação. E, precisamente ao nível desta “linguagem do
corpo” – que é algo mais do que a exclusiva reatividade sexual e que, como autêntica linguagem
das pessoas, está subordinada às exigências da verdade, isto é, a normas morais objetivas –, o
homem e a mulher exprimem-se reciprocamente a si mesmos no modo mais pleno e mais
profundo, enquanto lhes é consentido pela mesma dimensão somática da masculinidade e da
feminilidade: o homem e a mulher exprimem-se a si mesmos na medida de toda a verdade da sua
pessoa»[718].

Em resumo: o domínio de si é essencial para que a linguagem dos corpos


na relação conjugal não se afaste da verdade. Se este não existir, ou se for
secundarizado e substituído por uma técnica, se o corpo for tratado como
mais um elemento da natureza a ser «domado» a partir de fora, então a
relação conjugal, que está chamada a expressar uma doação íntima da pessoa
– o mais sério e valioso que pode fazer nesta terra, ou seja, amar – torna-se
falsa. O atentado à verdade da pessoa e do amor conjugal é o mal essencial da
contraceção, ainda que não seja fácil expressar de forma clara a gravidade
dessa desordem. Proponho, para tal, que se leia a conclusão da audiência
referida:
«Pode-se dizer que, no caso de uma separação artificial destes dois significados, no ato conjugal
realiza-se uma real união corpórea, mas ela não corresponde à verdade interior nem à dignidade da
comunhão pessoal: communio personarum. Tal comunhão exige de facto que a “linguagem do
corpo” seja expressa reciprocamente na verdade integral do seu significado. Se faltar esta verdade,
não se pode falar nem da verdade do domínio de si, nem da verdade do dom recíproco e da
recíproca aceitação de si por parte da pessoa. Tal violação da ordem interior da comunhão
conjugal, que mergulha as suas raízes na ordem mesma da pessoa, constitui o mal essencial do ato
contracetivo»[719].

Como já se explicou no capítulo 12, um dos grandes problemas para se


entender a doutrina da Igreja neste terreno é o facto de se ter o ato sexual em
pouca conta. Saber explicar o seu caráter singular, o seu alto significado na
vida do homem, a sua capacidade de expressar uma autêntica comunhão de
pessoas e a sua importância no sacramento do matrimónio pertence à visão
do homem oferecida pela Revelação. Além de sólidas razões antropológicas,
é necessário que a Igreja saiba apresentar a união entre os esposos na sua
genuína grandeza, a grandeza que foi «concebida» pelo Criador. Só nesse
contexto se entenderá a grave desordem que os contracetivos introduzem na
vida dos esposos e, por conseguinte, os motivos que levam a Igreja a não se
cansar de exortar os esposos a
viver um amor de plena doação em cada relação conjugal.

24.
A espiritualidade conjugal

O último grande tema das catequeses pode ser sintetizado com uma
expressão usada frequentemente por S. João Paulo: «espiritualidade
conjugal».
É também uma dimensão essencial da vida de marido e mulher. A verdade é
que nalguns cristãos, que tomam conhecimento da norma da Humanae Vitae,
paira a dúvida sobre se essa indicação não transformará a vida conjugal em
algo «técnico», como se a Igreja desse um «manual de instruções para o bom
comportamento dos esposos» ou um «manual de etiqueta sexual».
Caricaturando: «aprenda os ritmos do ciclo feminino; veja se há razões para
se absterem; se as há, abstenham-se alguns dias por mês»… Tudo isto terá
mesmo que ver com a missão da Igreja? Cristo teria gastado tempo com esta
temática? E será assim tão fundamental para que os esposos sigam Cristo?
Não seria preferível dar umas sugestões genéricas e abster-se de intrusões na
vida conjugal com conselhos tão excessivamente concretos?
As últimas sete catequeses respondem a estas perguntas e a outras pare-
cidas[720]. Além disso, é sintomático como nelas se procura responder à
objeção de quem teme que a norma da Humanae Vitae possa lesar o amor
entre os cônjuges[721], objeção essa que está subentendida nas perguntas
anteriores. Desejo acrescentar ainda que estas últimas catequeses oferecem
pistas para responder a uma preocupação que encontrei em pessoas prestes a
casar (logicamente que também estará presente nos casados, só que não foi
deles que escutei esse dilema). Eis um modo de a formular: «dizem-me que
devo amar a Deus sobre todas as coisas e, portanto, também aquela (aquele) a
quem entreguei a minha vida; dizem-me que devo amar mais a Deus do que à
minha esposa (ao meu esposo); mas eu não vejo as coisas assim. Amo a
minha futura esposa (o meu futuro esposo), e quero casar-me. Claro que Deus
entrará na nossa vida; mas não será o “número um” em tudo». Adianto que,
perante tal tomada de posição, sempre recordei ao interlocutor que é mesmo
importante corrigir a sua visão, porque só se Deus for o amor «número um»
ele (ou ela) poderá amar a sério – com o amor de Cristo – a futura esposa (ou
esposo), e evitará considerar o casamento como o fim de toda a vida,
esquecendo que é um modo para alcançar o amor total e sem defeitos, só
possível de alcançar no Céu. Espero que este capítulo ajude a reforçar bem
esta ideia.
Logo na primeira das catequeses dedicadas a esta temática[722], a
transcrição quase completa do n.º 25 da Humanae Vitae e o comentário de S.
João Paulo II aos diferentes parágrafos seria suficiente para desfazer
equívocos sobre o cuidado da Igreja pelo amor dos esposos. Convido o leitor
a ler na íntegra esse número. Paulo VI dirige-se diretamente aos esposos
cristãos:
«A Igreja, ao mesmo tempo que ensina as exigências imprescritíveis da lei divina, anuncia a
salvação e abre, com os sacramentos, os caminhos da graça, a qual faz do homem uma nova
criatura, capaz de corresponder, no amor e na verdadeira liberdade, aos desígnios do seu Criador e
Salvador e de achar suave o jugo de Cristo».
Paulo VI segue a lógica da Carta aos Efésios: aos esposos que são
cristãos
é-lhes pedido que identifiquem nos ensinamentos da Igreja os desígnios de
Deus e respondam, com amor, a esses requerimentos. Portanto, o autor da
encíclica sabe que se trata de um assunto que tem que ver nada menos do que
com a salvação dos esposos! A seguir, no mesmo número da encíclica,
detém-se na vocação e na missão dos esposos. Fala-lhes da grandeza do
sacramento do matrimónio e das graças que os esposos recebem:
«Por ele os cônjuges são fortalecidos e como que consagrados para o cumprimento fiel dos
próprios deveres e para a atuação da própria vocação para a perfeição e para o testemunho cristão
próprio deles, que têm de dar frente ao mundo. […] Foi a eles que o Senhor confiou a missão de
tornarem visível aos homens a santidade e a suavidade da lei que une o amor mútuo dos esposos
com a sua cooperação com o amor de Deus, autor da vida humana».

Todos os cristãos são chamados ao cume da santidade, à perfeição do


amor. Isso significa amar a Deus e ao próximo em todas as circunstâncias.
Aos mais próximos, as possibilidades de demonstrar mais amor tornam-se
maiores e mais concretas. O amor entre os esposos tem, pois, exigências
concretas, e algumas delas são tratadas na Humanae Vitae. Essas exigências
são, portanto, uma manifestação de amor, e devem ser propostas a todos os
casais. Aos católicos, a quem se torna mais fácil conhecer esses
requerimentos, é-lhes pedido que, também através da sua vida (e não só das
suas palavras), mostrem que é bom viver assim. Paulo VI inclui, portanto,
entre a missão eclesial dos esposos cristãos, dar testemunho de como é bom
querer cooperar com Deus na transmissão da vida humana. Não será esta uma
proposta de índole espiritual (e não «técnica»)? O Papa recorda ainda que o
convite dirigido aos esposos, como toda a proposta de santidade, não é fácil:
«Não pretendemos, evidentemente, esconder as dificuldades, por vezes graves, inerentes à vida
dos cônjuges cristãos: para eles, como para todos, de resto, “é estreita a porta e apertado o
caminho que conduz à vida”».

S. João Paulo II fala do «realismo cristão» da Humanae Vitae[723]. Paulo


VI é consciente das dificuldades dos esposos para viver bem a sua vocação
matrimonial. Precisamente por isso, recorda os meios de que dispõem para
prosseguir o seu caminho: a oração, a Eucaristia e, quando tropeçam, o
sacramento da Penitência. Em nenhum momento a Humanae Vitae desliga a
exigência moral ensinada dos meios que mostram ser suave o jugo (mas que
não deixa de ser um jugo!) de Cristo:
«Os esposos, pois, envidem os esforços necessários, apoiados na fé e na esperança que “não
desilude, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações, pelo Espírito que nos foi
dado” (Rom 5, 5); implorem com oração perseverante o auxílio divino; abeirem-se, sobretudo pela
santíssima Eucaristia, da fonte de graça e da caridade. E se, porventura, o pecado vier a vencê-los,
não desanimem, mas recorram com perseverança humilde à misericórdia divina, que é outorgada
no sacramento da Penitência. Assim, poderão realizar a plenitude da vida conjugal, descrita pelo
apóstolo: “Maridos, amai as vossas mulheres tal como Cristo amou a Igreja”»[724].

Basta esse número da Humanae Vitae para se perceber qual é o clima


espiritual da encíclica e afastar a ideia de que se trata de um «manual de
instruções para a vivência sexual dos cristãos»[725].
A densidade do comentário de S. João Paulo II, bem como as inúmeras
sugestões e trilhos que abre, estão ao nível das restantes catequeses. Por isso,
desejando sobretudo responder às questões formuladas, refiro apenas uma
breve explicação do que S. João Paulo II entende ser a «espiritualidade
conjugal» e três dos elementos aos quais convém prestar atenção, que são: (i)
a importância do amor entre os cônjuges; (ii) as virtudes da continência e da
castidade para proteger esse amor e orientar para o bem dos esposos tanto a
excitação quanto as emoções; (iii) e, por fim, o impacto da ação do Espírito
Santo na vida do casal.
24.1. O que é a espiritualidade conjugal?
S. João Paulo II já tinha introduzido o tema da espiritualidade conjugal
na última audiência do ciclo anterior, depois de explicar a ligação entre a
linguagem litúrgica e a linguagem do corpo: a liturgia assume a linguagem
do corpo relida na verdade e coloca-a na dimensão do mistério; ao mesmo
tempo, a linguagem da liturgia, que se move portanto no âmbito do mistério,
traduz-se em linguagem corporal[726]. Ou seja, o corpo pode «falar» uma
linguagem espiritual, para dizê-lo de alguma maneira. Assim o afirma o
autor das catequeses: esta transformação da linguagem litúrgica em
linguagem corporal «significa uma série de factos e de deveres que
formam a “espiritualidade” do matrimónio, o seu “ethos”. Na vida
quotidiana dos cônjuges, estes factos tornam-se deveres, e os deveres,
factos. Estes factos – como também os compromissos – são
de natureza espiritual, todavia exprimem-se ao mesmo tempo com a
“linguagem do corpo”»[727].
O que os esposos «falam» na liturgia deve traduzir-se na vida do seu dia
a dia, incluídos os momentos de intimidade conjugal. Na medida em que a
expressão corporal é realmente fiel à linguagem litúrgica – porque é
verdadeira e reflete o desígnio de Deus presente no amor dos cônjuges –, ela
é espiritualmente relevante: configura e expõe a espiritualidade dos cônjuges.
Por isso, quando
S. João Paulo II afirma que vai traçar um esboço da espiritualidade conjugal,
não está a sugerir «atividades espirituais» que os esposos possam realizar –
como rezarem juntos o «Terço» ou coisas santas semelhantes. A
espiritualidade conjugal aponta para a potencialidade que tem o
comportamento dos cônjuges enquanto cônjuges para intensificar e
manifestar a sua intimidade com Deus – portanto, em e através da sua vida
conjugal. S. João Paulo II é perentório na explicação do que entende ser o
eixo da espiritualidade conjugal:
«É conveniente recordar aqui o que foi dito sobre a relação orgânica entre a teologia do corpo e a
pedagogia do corpo. Tal “teologia-pedagogia”, de facto, constitui já de per si o núcleo essencial da
espiritualidade conjugal»[728].
Em síntese: o núcleo da espiritualidade conjugal é viver e amar de
acordo com o significado esponsal e redentor do corpo. Nesta perspetiva,
torna-se mais percetível, por exemplo, que a paternidade responsável,
concretizada por vezes na continência periódica, não seja, de todo, uma
«técnica», mas sim um elemento da espiritualidade conjugal. Quando os
esposos, procurando sinceramente perscrutar a vontade de Deus a seu
respeito sobre os filhos a ter (ou a não ter), concluem que, num momento
determinado, convém evitar os nascimentos, dispõem-se a submeter
amorosamente os seus corpos a essa vontade suprema. Atuar procurando
cumprir a vontade de Deus é, sem dúvida, uma profunda atitude espiritual.
Profundamente espiritual é também o modo de ver a maternidade que
S. João Paulo II propõe na carta apostólica Mulieris Dignitatem. Começa por
recordar que a Nova Aliança de Deus com a humanidade tem início no seio
da Santíssima Virgem Maria. Deus quis a sua maternidade. E depois
acrescenta (que as mães leiam devagar estas palavras!):
«Na ordem da Aliança, que Deus realizou com o homem em Jesus Cristo, foi introduzida a
maternidade da mulher. E cada vez, e todas as vezes que a maternidade da mulher se repete na
história humana sobre a terra, permanece sempre em relação com a Aliança que Deus estabeleceu
com o género humano, mediante a maternidade da Mãe de Deus. […] a maternidade é sinal da
Aliança com Deus que “é Espírito” (Jo 4, 24). Tal é sobretudo a maternidade da Mãe de Deus.
Também a maternidade de qualquer mulher, entendida à luz do Evangelho»[729].
Quando uma mulher cristã se torna mãe, terá sempre presente o profundo
significado espiritual da sua maternidade? Através da sua maternidade, Deus
quer reforçar a sua Aliança connosco, mostra que conta connosco, que confia
em nós.
24.2. O primeiro elemento da espiritualidade conjugal: o amor entre
os cônjuges

A chave da espiritualidade conjugal é o amor[730] que, em palavras de S.


Paulo, foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo (cfr. Rom 5, 5).
S. João Paulo II explica que o amor é força. Recordemos o comentário ao
Cântico dos Cânticos no qual se fala do amor mais forte do que a morte, e o
Livro de Tobias, onde se vê realmente como o amor vence a morte. São
estimulantes as palavras do «Papa da família» na Familiaris Consortio, com
as quais reforça o papel do amor para uma autêntica comunhão familiar: «O
princípio interior, a força permanente e a meta última de tal dever [viver
fielmente a realidade da comunhão, num constante empenho por fazer crescer
uma autêntica comunidade de pessoas] é o amor: como, sem o amor, a
família não é uma comunidade de pessoas, assim, sem o amor, a família não
pode viver, crescer e aperfeiçoar-se como comunidade de pessoas»[731].
Portanto, o amor deve vivificar toda a vida dos cônjuges e, como tal, levar a
múltiplas manifestações que não se esgotam numa delas (o ato conjugal), por
mais importante que seja. Agradeço que o leitor tenha bem presente o que
acabo de afirmar, pois interessa-me descrever a seguir alguns modos de como
se expressa a força do amor entre os esposos, sem ter a pretensão de tocar
todos os aspetos. Centrar-me-ei apenas nos que mais diretamente se
relacionam com a teologia do corpo.
Para explorarmos algumas das manifestações da força do amor entre os
cônjuges, irei glosando de forma intercalada um sugestivo e extenso
parágrafo da catequese de 10 de outubro de 1984:
«O amor é – do ponto de vista subjetivo – “força”, ou seja, capacidade do espírito humano, de
caráter “teológico” (ou antes “teologal”). Esta é, portanto, a força dada ao homem para
participar daquele amor com que o próprio Deus ama nos mistérios da Criação e da
Redenção»[732].
Aos esposos cristãos é dado poderem amar-se mutuamente, não apenas
com o seu amor natural mas também com o amor de Cristo pela Igreja. Este é
o padrão ou referência do amor dos esposos. Os que se casam devem partir
para o casamento com a ideia clara de que vão poder amar a esposa ou o
esposo com um amor que lhes será dado no sacramento para se entregarem
verdadeiramente ao outro, como Cristo pela Igreja. Os esposos podem
experimentar em si, no amor pelo outro, «algo» do amor de Deus pelo mundo
criado e redimido.
Prossegue S. João Paulo II:
«É aquele amor que “rejubila com a verdade” (1 Cor 13, 6), ou seja, em que se exprime a alegria
espiritual (o “frui” agostiniano) de todo o autêntico valor: alegria semelhante à alegria do próprio
Criador, o qual no princípio considerou a sua obra “muito boa” (Gen 1, 31)»[733].

O olhar do esposo para a esposa e da esposa para o esposo deve partilhar


as características do olhar do Criador: alegria pela existência do cônjuge («é
bom que tu existas»), desejo de o contemplar em todo o seu ser, e um olhar
que transmita paz. Estes são os elementos que devem presidir à vida
conjugal, e que bem poderiam servir para que os esposos examinassem
ciclicamente as suas disposições de fundo para com o cônjuge: «quando
regresso a casa e vejo a minha esposa, alegro-me por vê-la? Tenho gosto em
olhar para o meu marido? Entendemo-nos com um mero olhar?»…
Numa ulterior catequese, S. João Paulo II, evocando o efeito do dom da
piedade na pessoa – dom que, como veremos, se manifesta no profundo
respeito pelas obras de Deus (e, portanto, ao respeitar essas obras, reverencia-
se o próprio Deus) – explica o que sucede nos cônjuges que estão repletos do
Espírito Santo:
«Este dom, de facto, corrobora e desenvolve nos cônjuges uma singular sensibilidade a tudo
aquilo que na sua vocação e convivência traz o sinal do mistério da Criação e da Redenção; a
tudo aquilo que é um reflexo criado da sabedoria e do amor de Deus. Portanto, aquele dom parece
iniciar o homem e a mulher de modo particularmente profundo no respeito dos dois significados
inseparáveis do ato conjugal, de que fala a encíclica (cfr. HV, 12), em relação ao sacramento do
matrimónio. O respeito dos dois significados do ato conjugal só pode desenvolver-se plenamente
com base numa profunda referência à dignidade pessoal daquilo que na pessoa humana é
intrínseco à masculinidade e à feminilidade, e inseparavelmente em referência à dignidade pessoal
da nova vida, que pode nascer da união conjugal do homem e da mulher. O dom do respeito de
quanto é criado por Deus exprime-se precisamente em tal referência»[734].

Portanto, os cônjuges cristãos não estão a obedecer a uma lei que lhes
seja estranha. Como manifestação do dom da piedade, o amor mútuo leva a
que tenham um respeito reverencial pelo mistério da feminilidade e da
masculinidade, cortando pela raiz qualquer manipulação do outro. Um
primeiro efeito desse amor, repleto de reverência e respeito, no terreno da
sexualidade é não separar os dois significados do ato conjugal. Os esposos
sabem que o amor pelo outro leva a manter unidos, na sua consciência e na
sua vontade, os dois significados. Sabem que, se eliminam um deles, amarão
menos o outro e afastar-se-ão do tal olhar do Criador. Temem, sobretudo,
«violar ou degradar o que traz em si o sinal do mistério divino da Criação e
da Redenção. Deste temor fala o autor da Carta aos Efésios: “Sujeitai-vos
uns aos outros no temor de Cristo” (Ef 5, 21)»[735].
Ainda antes de prosseguir, vale a pena meditar na dimensão
profundamente espiritual que pode e deve existir na vida dos cônjuges,
quando imploram o (e vivem do) dom de piedade. Quando assim procedem, o
ato conjugal é uma oração: uma oração a dois (como a de Sara e Tobias),
através da qual se reverencia o Criador pela masculinidade e feminilidade e
onde se deseja manifestar com o corpo, em breves e densos momentos, um
amor sem reservas cujo modelo-cume, nesta terra, se encontra na doação de
Cristo na Cruz. Através do ato conjugal guiado pelo dom de piedade, os
esposos abrem-se à ação criadora de Deus e manifestam, com a sua total
doação, um amor sem reservas – à semelhança do amor redentor de Cristo.
Por isso, partir para a vida conjugal preocupados com o que é que se
«pode fazer» com o cônjuge para sentir mais prazer, às vezes até obcecados
sobre se determinadas práticas, veiculadas até à exaustão por certos meios de
comunicação, são ou não legítimas, é, à partida, renunciar a descobrir os
valores profundos que o ato conjugal encerra. Em vez do olhar reverencial do
Criador, os cônjuges que se deixam guiar pela concupiscência, considerando
que a manifestação mais genuína do amor é – sempre segundo essa visão
deformada – usufruir e oferecer o máximo grau de prazer a qualquer custo,
desconhecem o que é o amor.
É essencial, do meu ponto de vista, formar os que se vão casar tanto
para um amor que se traduza em admiração e respeito pelo outro e pela sua
sexualidade quanto no desejo de aprender a entregar-se sem reservas. O
prazer associado a essa entrega será bem-vindo na medida em que facilite o
encontro[736]; mas em nenhum caso deveria ser a motivação dominante,
mesmo que seja o «detonador» de um processo. Isto se, repito, os esposos se
quiserem de facto amar, e descobrir nesse amor a marca do Criador e
Redentor. Mas, então, os esposos terão de ler as 129 catequeses de teologia
do corpo para se amarem? Não digo isso. Digo apenas que o ato conjugal
tem um potencial «espiritual» relacionado com a verdade do próprio ato.
Quanto melhor os esposos entenderem isto, mais conteúdo encontrarão no
ato específico da sua condição de esposos, e mais fácil lhes será elevar a
mente a Deus.
Mas, como sabemos, o grande inimigo do amor é a concupiscência. Na
referida audiência de 10 de outubro, S. João Paulo II vai explicando como o
amor dos esposos afasta esse perigo, em concreto permitindo que o corpo
«fale» verdade:
«Se as forças da concupiscência tentam afastar a “linguagem do corpo” da verdade, isto é, tentam
falsificá-la, a força do amor, pelo contrário, corrobora-a sempre de novo naquela verdade, para
que o mistério da redenção do corpo possa frutifi-
car nela»[737].

O amor sincero também se manifesta com o corpo. Quando dois amigos


se encontram depois de um longo período de ausência, é normal que deem
um forte abraço; quando um pai ou uma mãe querem manifestar o amor pelos
filhos, pelo menos nalgumas ocasiões, beijá-los-ão, acariciá-los-ão, etc.
Assim, o corpo traduz o nosso querer mais profundo e, portanto, «fala»
verdade, porque esses gestos correspondem ao amor sincero e à saudosa
amizade. No caso do amor conjugal, dado que existe uma expressão da
linguagem do corpo que, se for verdadeira, traduz o amor total, sem reservas,
os esposos que se amam quererão assumi-la para expressar com o corpo esse
amor. Até aqui não há novidades, como, de facto, também não as há no que
se segue, embora se trate, de algum modo, de colocar uma peça no puzzle
cuja ausência, mesmo sem impedir de ver o quadro, lhe retirava alguma
compreensão. A «peça» necessária é esta: um dos grandes efeitos do amor
entre os esposos, o amor capaz de vencer a tal «antiforça» que dificulta e até
impede a entrega mútua – a concupiscência –, é o de manter unidos os dois
significados do ato conjugal:
«O mesmo amor […] é ao mesmo tempo força, ou seja, capacidade de caráter moral orientada
ativamente para a plenitude do bem e, por isso mesmo, para todo o bem verdadeiro. E portanto a
sua tarefa consiste em salvaguardar a unidade inseparável dos “dois significados do ato conjugal”,
de que trata a encíclica (HV, 12), quer dizer, em proteger quer o valor da verdadeira união dos
cônjuges (isto é, da comunhão pessoal), quer o da paternidade e maternidade responsáveis (na sua
forma madura e digna do homem)»[738].

Manter, no «eu» mais íntimo, a vontade de não separar os dois


significados do ato conjugal é, pois, uma manifestação de amor amadurecido,
do amor que de nenhum modo deseja lesar o bem do cônjuge. A plena
aceitação da fertilidade do outro (ou, pelo menos, a sua não-rejeição) faz
parte da verdadeira doação e da verdadeira aceitação da pessoa. Se o casal
não permitir que a concupiscência o atraiçoe, o amor manifestado através do
ato conjugal expressar-se-á mantendo unidos em cada cônjuge os dois
significados do ato: ambos querem dar-se e aceitar-se um ao outro sem
reserva alguma. Será precisamente esse desejo de não mentir com o corpo
faltando ao amor mútuo que, no caso de ser conveniente a continência
periódica, levará a que o casal se abstenha durante alguns dias. O que o
verdadeiro amor não permite é que um dos dois diga no seu coração: «desta
vez, e apenas desta vez, não quero de todo a potencialidade procriativa que
ela (ele) tem para me dar». Quem ama de verdade o cônjuge nunca permitirá
excluir do ato mais íntimo de união física uma parcela do ser do outro.
Seja-me permitido um novo inciso. Cristo encarnou e viveu nesta terra
como homem. A sua vida é redentora e inspira a vida de todos os que O
seguem. Não foi necessário que desempenhasse todas as profissões para que
cada pessoa soubesse que, com a própria profissão, pode imitá-l’O nos seus
anos ocultos de Nazaré ou no supremo trabalho da Cruz. Não há dúvida, no
entanto, que há dimensões da vida em que se torna mais fácil exemplificar
como imitar Jesus. Assim, os filhos devem ser «submissos» aos pais, como
Cristo o era a Maria e a José. Seja mais ou menos fácil procurar o modelo de
Cristo para uma determinada atuação, um cristão deve ter o Senhor por
modelo em tudo. É significativa, por exemplo, a solução de S. Tomás quando
deseja procurar um modelo para a nossa fé. Cristo não precisava de fé,
porque «via» a divindade também com o seu intelecto humano. Então Cristo
não serve de modelo para a nossa fé? Serve. A solução de S. Tomás é a
seguinte: a fé é a obediência do entendimento que se verga perante verdades
que não capta por si mesmo. Ora Cristo foi obedientíssimo. Assim, a nossa fé
tem por modelo a obediência de Cristo. Então Cristo é também nosso modelo
de fé? Sim, porque a incondicional obediência de Jesus ao Pai serve para que
compreendamos como devemos acreditar[739].
Que sucede com a vida do casal? Os esposos podem legitimamente
perguntar-se: «se o amor humano é (pode ser) santo, pois até é consagrado
num sacramento, como posso imitar Jesus quando amo o meu cônjuge? Sim,
claro, posso rezar por ele, sacrificar-me por ele, servi-lo no dia a dia. Mas
quando estou a sós com ele, quando desejamos unir-nos fisicamente, devo
fazer uma pausa no seguimento de Cristo? Porque Cristo viveu o celibato…».
A resposta é um sonoro «não». Também no ato conjugal se deve poder imitar
Jesus[740]. Como? Remeto o leitor para o capítulo 11 deste livro, e peço que
me seja consentida uma pequena ousadia: quando Cristo diz ao Pai que
prefere ver afastado da sua vida o cálice que Ele lhe entrega para beber, em
certo sentido quer continuar unido ao Pai, mas a sua vontade humana
preferiria não ter de carregar com o peso da Cruz, que é o peso de todos nós.
Cristo, com o seu «sim» incondicional ao Pai, abre o seu coração à Redenção
universal, capaz de gerar milhões de filhos. Mas era necessária a entrega sem
reservas ao amor do Pai pela humanidade. Esse é o modelo para as relações
entre os cônjuges, ato conjugal incluído: «quero amar-te sem reservas
nenhumas, sem poupar-me, sem reservar nada para mim».
No entanto, e como já foi referido, há ocasiões em que os esposos veem
dian-
te de Deus que devem abster-se pelo facto de existirem razões sérias. Dado
que o ato conjugal manifesta e reforça o amor entre os esposos, a sua omissão
não poderá abrir uma ferida no amor conjugal? S. João Paulo II insiste em
responder a esta objeção que, para os críticos da encíclica de Paulo VI, é
talvez a principal:
«A força do amor – autêntica, no sentido teológico e ético – exprime-se no sentido em que o amor
une corretamente “os dois significados do ato conjugal”, excluindo não só na teoria, mas
sobretudo na prática, a “contradição” que poderia verificar-se neste campo. Tal “contradição” é o
mais frequente motivo de objeção à encíclica Humanae Vitae e ao ensinamento da Igreja»[741].

Para os críticos, se o casal não pode dissociar a seu bel-prazer esses dois
significados, ou pelo menos se os não pode dissociar quando houver razões
sérias para isso, então existe um grande risco – sempre na perspetiva dos tais
críticos – de que, com a omissão frequente do ato conjugal, o amor entre os
cônjuges se veja seriamente lesado. Obviamente, é preciso começar por dar
razão à preocupação de base: mesmo quando não é possível ter filhos, o amor
entre o casal não deve esmorecer. Assim sendo, é justo formular a questão:
existe ou não o risco de que, com a omissão do ato conjugal, o amor entre o
casal possa «esfriar»? Existe essa possibilidade ou é um falso problema?
Poderíamos começar por responder que a Igreja sabe que o problema
existe. O facto de ser necessário omitir o ato conjugal nalguns dias não
significa que, nesses mesmos dias, se suprimam as manifestações de afeto e
ternura que alimentam o amor do casal. A insistência de S. João Paulo II em
distinguir, nas catequeses que estamos a estudar, «excitação» de «emoção» é
necessária para se entender bem que a Humanae Vitae não atenta contra o
amor entre os cônjuges (antes pelo contrário, como se verá): se a pessoa for
casta, pode dirigir as suas emoções (e não só a «fria» vontade de ser fiel ao
outro, sem mais) para o cônjuge, mesmo nos dias de continência. Não só
pode como deve.
Mas procuremos proceder com ordem. S. João Paulo II defende que não
existe nenhuma contradição entre afirmar a inseparabilidade dos dois
significados do ato conjugal (unitivo e procriativo) e admitir a necessidade de
suspender o ato em certas ocasiões, sem que essa continência cause um mal
ao amor entre os cônjuges[742]. Não existe contradição, mas existe uma
dificuldade[743]. E essa dificuldade tem a sua origem na concupiscência, que
acompanha o homem desde o pecado original. Quando o homem não a
domina, parecer-lhe-á impossível que, omitindo tantas vezes o ato conjugal,
quando é o caso de optar pela continência periódica, a união com o cônjuge
não se veja realmente afetada. Convém que o leitor repare como S. João
Paulo II distingue entre «contradição» e «dificuldade»:
«É necessária uma análise bem aprofundada, e não só teológica mas também antropológica
[procurámos fazê-la em toda a reflexão], para demonstrar que não se deve falar aqui de
“contradição”, mas apenas de “dificuldade”. Pois bem, a própria encíclica sublinha tal
“dificuldade” em várias passagens.
E esta deriva do facto de que a força do amor é inserida no homem insidiado pela concupiscência:
nos sujeitos humanos o amor embate com a tríplice concupiscência (cfr. 1 Jo 2, 16), e em
particular com a concupiscência da carne, que deforma a verdade da “linguagem do corpo”. E,
portanto, o amor não está em condições de se realizar na verdade da “linguagem do corpo”,
senão mediante o domínio sobre a concupiscência»[744].

24.3. A castidade, chave do êxito da continência periódica


S. João Paulo II quis responder à grande objeção que se levanta à norma
moral defendida pela Humanae Vitae, que é, como sabemos, a de poder pôr
em risco o amor entre os esposos. Isso levou-o a uma extensa análise da
virtude da castidade e do dom da piedade. Se o homem cultivar essa virtude e
for dócil a esse dom que lhe vem do Espírito Santo, comprovará que não
existe qualquer contradição entre o amor conjugal e a norma moral – e, por
conseguinte, a dificuldade será gradualmente ultrapassada, porque os
cônjuges aprenderão e melhorarão as diversas manifestações de amor
mútuo[745]. Convém que, sucintamente, procuremos perceber bem o
raciocínio do autor das catequeses, ainda que em capítulos anteriores já
tenha sido exposta longamente a importância da castidade[746].
Neste subcapítulo, interessa apenas entender por que motivo a compreensão
do que é a castidade faz desaparecer a contradição que alguns veem na
norma da Humanae Vitae e ultrapassar, assim, a «dificuldade».
Seguindo o raciocínio das catequeses, comecemos por referir a distinção
entre «excitação» e «emoção», dois tipos de reações sensíveis que se dão
entre os esposos (logicamente também noutras situações entre homem e
mulher, mas nas quais não nos centraremos). Não percamos de vista que a
distinção é essencial para se perceber como, nos períodos em que o casal
deve abster-se (quando vê ser necessário recorrer à continência periódica), as
manifestações de amor não devem diminuir, mesmo que não incluam as
relações, com a excitação inerente. Eis as palavras de S. João Paulo II:
«Nas relações interpessoais em que se exprime o influxo recíproco da masculinidade e
feminilidade, liberta-se no sujeito psicoemotivo, no “eu” humano, ao lado de uma reação
qualificável como “excitação”, outra reação que pode e deve ser chamada “emoção”. Embora
estes dois géneros de reações apareçam juntos, é possível distingui-los experimentalmente e
“diferenciá-los” a respeito do conteúdo, ou melhor, do seu “objeto”.
A diferença objetiva entre um e o outro género de reações consiste no facto de que a excitação é
antes de tudo “corpórea” e neste sentido “sexual”; a emoção por sua vez – embora suscitada pela
recíproca reação da masculinidade e da feminilidade – refere-se sobretudo à outra pessoa
entendida na sua “integralidade”. Pode-se dizer que esta é uma “emoção causada pela pessoa”,
em relação à sua masculinidade ou feminilidade»[747].

S. João Paulo II explica que, se as pessoas viverem a castidade, com o


domínio de si que lhe é inerente, é possível não só dominar a excitação mas
também amar o cônjuge com a sensibilidade, orientando e intensificando as
emoções para com ele em momentos de «ausência sexual», ou seja, sem a
excitação. Essa ternura para com o cônjuge é igualmente manifestação do
significado esponsal do corpo que, portanto, e como já se referiu, não se
esgota no ato sexual. Eis as importantes palavras da catequese:
«A excitação procura, antes de tudo, exprimir-se na forma do prazer sensual e corpóreo, ou seja,
tende para o ato conjugal que (dependente dos “ritmos naturais de fecundidade”) comporta a
possibilidade de procriação. Pelo contrário, a emoção provocada por outro ser humano como
pessoa, embora no seu conteúdo emotivo seja condicionada pela feminilidade ou pela
masculinidade do “outro”, não tende de per si para o ato conjugal, mas limita-se a outras
“manifestações de afeto”, nas quais se exprime o significado esponsal do corpo, e que todavia não
contém o seu significado (potencialmente) procriativo»[748].

Em Amor e Responsabilidade, Karol Wojtyla, com uma abordagem um


pouco mais pormenorizada, faz notar a diferença entre a ternura com as suas
manifestações externas, por um lado, e a sensualidade, por outro. A ternura
brota da afetividade, que, ao contrário da sensualidade, «está orientada para o
homem e não para o corpo e o sexo; não se trata para ela de gozar, mas de
sentir-se perto»[749]. A ternura – acrescenta o autor – pode ser completamente
desinteressada, mas também pode não o ser, que é o que sucede quando
«diversas manifestações de ternura servem sobretudo para satisfazer as
nossas próprias exigências de afetividade»[750]. Claro que um certo
«interesse» próprio é sempre razoável e normal, dada a condição limitada do
ser humano. Mas – e era aqui que me interessava chegar – é necessário
educar a ternura. Essa educação faz parte da educação para o amor, e tem
que ver com a castidade e a continência, pois é necessário o domínio de si
para que a ternura não se desvirtue:
«Enquanto a sensualidade incita para o prazer e o homem dominado por ela não vê sequer a
possibilidade doutro sentido e doutro estilo de relações entre o homem e a mulher, a ternura
revela, de certo modo, este sentido e este estilo, vigiando em seguida para que não se
percam»[751].

O então futuro Papa fala da ternura e também dos sentimentos que


alimentam e facilitam a duração do amor:
«São eles que aproximam a mulher e o homem, e criam uma atmosfera interior de harmonia e de
recíproca compreensão. […] É necessária muita ternura no matrimónio, nessa vida comum, em
que não só um corpo precisa doutro corpo, mas sobretudo um ser humano preciso doutro ser
humano. […] A ternura é a arte de “sentir” o homem todo inteiro, toda a sua pessoa, todos os
movimentos da sua alma, mesmo os mais ocultos, pensando sempre no seu verdadeiro bem»[752].

Mas, para que a ternura seja o que deve ser, é absolutamente necessário
que o homem exercite a virtude da continência:
«Não pode haver verdadeira ternura sem verdadeira continência. […] Sem a continência, as
energias naturais da sensualidade, e as da afetividade atraída para a sua órbita, tornar-se-ão
unicamente “matéria” para o egoísmo dos sentidos, ou eventualmente para o dos sentimentos. […]
O crente vê nisto o mistério do pecado original, cujas consequências parecem pesar de modo
muito particular na esfera do sexo, e ameaçam a pessoa, o bem mais importante do universo
criado»[753].

É conveniente ter presentes estas considerações para, por uma parte, não
se concluir erradamente que as emoções referidas pela teologia do corpo (que
giram na órbita dos afetos e da ternura) são necessariamente «boas» e
altruístas. Também elas devem ser orientadas. Por outra parte, estas palavras
ajudam a perceber e a avaliar melhor a importância das múltiplas
manifestações de ternura genuína na vida do casal.
Lendo as palavras anteriores, o leitor reconhece, certamente, que reduzir
o afeto entre marido e mulher ao ato conjugal seria empobrecedor. Podemos
dizer que «há mais vida», mais factos na vida conjugal, além do ato sexual –
por muito importante que este seja.
A castidade não atua isoladamente, mas deve antes deixar-se guiar
p e l o amor. Como já foi referido, se se tratasse «apenas» de resistir à
excitação durante uns dias, um dos cônjuges poderia ausentar-se e afastar-se
do outro. Mas, logicamente, os cônjuges querem continuar a manifestar o
amor mútuo, tal como a Igreja confirma e aconselha vivamente. Como a
pessoa casta tem domínio sobre si e sobre as suas emoções, consegue
descobrir a riqueza das suas capaci-
dades afetivas:
«A continência não se limita a opor resistência à concupiscência da carne, mas, mediante esta
resistência, abre-se igualmente àqueles valores, mais profundos e mais maduros, que estão
intimamente ligados ao significado esponsal do corpo na sua feminilidade e masculinidade,
como também à autêntica liberdade do dom na recíproca relação das pessoas. A própria
concupiscência da carne, enquanto procura antes de tudo a satisfação carnal e sensual, torna o
homem, em certo sentido, cego e insensível aos valores mais profundos que surgem do amor e
que ao mesmo tempo constituem o amor na verdade interior que lhe é própria»[754].

Assim, libertando-se da concupiscência, que cega e insensibiliza para a


riqueza das manifestações de amor, os esposos que, por razões sérias,
recorrem à continência periódica, ao reforçarem a virtude veem aumentada a
capacidade de se amarem. O amor não só não é lesado como adquire
também as potencialidades mais genuinamente humanas.
Isso significa que omitir o ato conjugal deve ser um ideal a atingir? Não,
de modo nenhum. A abstinência para evitar os filhos, como se referiu, tem de
dever-se a razões graves. Até se pode afirmar que se trata de um mal a
suportar, ainda que não impeça o crescimento do amor mútuo e das suas
manifestações.
Por outro lado, quando o casal que vive a castidade realiza o ato
conjugal, fá-lo com uma renovada consciência tanto da importância do
significado procriativo como do significado unitivo, porque, como faz notar
com agudeza S. João Paulo II, «o ato conjugal é também uma “manifestação
de afeto” (HV, 16), mas uma “manifestação de afeto” particular, porque, ao
mesmo tempo, tem um significado potencialmente procriativo. Por
conseguinte, ele é orientado para exprimir a união pessoal, mas não só
esta»[755]. Por outras palavras: quando um casal que vive a castidade quer ter
relações, sabe (e quer) que se trata de uma manifestação de afeto e também
de uma manifestação da disponibilidade de entregar toda a capacidade de
fertilidade que possui nesse momento. O casal atua de acordo com a verdade
do seu corpo.
Ao mesmo tempo, a dimensão unitiva do ato também é – ou, para
sermos mais sinceros, também pode ser – reforçada:
«O dever da castidade conjugal, e ainda mais precisamente o da continência, não consiste só
em proteger a importância e a dignidade do ato conjugal em relação ao seu significado
potencialmente procriativo, mas também em tutelar a importância e a dignidade próprias do ato
conjugal enquanto expressão da união interpessoal, revelando à consciência e à experiência dos
cônjuges todas as outras possíveis “manifestações de afeto” que exprimam aquela sua
comunhão profunda»[756].

Exemplificando. A pessoa casta, quando quer manifestar a ternura para


com o cônjuge, não segue apenas o impulso que, num momento determinado,
a pode «empurrar» para o ato conjugal. Mas, como tem a capacidade de
domínio, não tem inconveniente em se perguntar se o gesto de ternura que o
cônjuge espera naquele momento, o gesto que mais agradecerá e que melhor
ajudará a saber-se amado, é mesmo o ato conjugal ou é outro tipo de
manifestações afetivas. Se se der conta de que, naquele momento, são
preferíveis outras manifestações, saberá adaptar-se ao outro, sem erigir o seu
próprio impulso como critério supremo do modo de exteriorizar o amor.
Mesmo que a continência periódica possa facilitar o exercício da
castidade e abra ao casal o horizonte de possibilidades para manifestar o
amor, é lógico que o leitor se pergunte se as consequências são sempre tão
positivas: o casal que recorre à continência periódica experimentará sempre
um reforço do afeto mútuo e da consciência do significado plenamente
unitivo do ato conjugal?
A pergunta só pode ser respondida genuinamente quando ambos estão
plenamente convencidos da necessidade de recorrer à continência periódica.
Quando um dos cônjuges aceita a continência de má-vontade, é provável que
não advirta e/ou reconheça então benefícios no afeto pelo outro cônjuge.
Portanto, só encontraremos uma resposta sincera no caso em que os dois
optem conscientemente pela continência periódica. Pergunta-se: garantida a
condição que acabo de referir, ela é sempre vantajosa para o amor entre o
casal?
Kimberly Hahn, fiel defensora da doutrina da Igreja, numa das suas
obras sobre estes temas, transcreve casos – poucos – onde os resultados,
pelo menos em determinada fase do casal, não foram favoráveis ao são
relacionamento. Em concreto, uma mulher queixa-se de que nos longos
períodos de abstinência o marido tem desejos impuros; outros falam de uma
tensão interior por receio de que o método não seja eficaz; uma mulher
lamenta que o momento em que mais vontade teria de se unir ao marido é
quando não o pode fazer e, quando o faz, «o corpo» não pede esse tipo de
união[757]. Recorde o leitor que S. João Paulo II já tinha chamado a atenção
para este tipo de dificuldades[758]. No entanto, a mesma autora acrescenta,
logo a seguir, que, na maioria dos casos, os benefícios da continência
periódica na relação entre o casal são reais e, nalguns deles, até sur-
preendentes. Eventuais dificuldades como as exemplificadas são uma
lembrança da necessidade do auxílio divino para o homem da
concupiscência.
Recordo-me de um casal que, ao explicar a outros o que sucedia no
relacionamento entre os dois cônjuges nos momentos de ausência sexual,
dizia que, em certa medida, era como voltar ao tempo do namoro (dando por
assente que se viveu um namoro casto).
Acrescento ainda uma pequena observação pessoal de caráter genérico.
Saber que, quando se vive de acordo com o que Deus nos propõe, nem tudo
corre necessária e imediatamente de modo idílico recorda aos cristãos que
nem sempre há uma relação direta entre praticar o bem e obter benefícios
imediatos. Pode suceder que uma pessoa vá à Missa ao domingo e seja
atropelada, por exemplo. Mas fez bem em ter ido. Se um casal tem de
recorrer à continência periódica e sente que o amor se vai esfriando,
cometeria um grave erro se decidisse recorrer aos contracetivos, mesmo que
estes trouxessem, pelo menos inicialmente, um certo bem-estar conjugal. Se
pretendemos que a lei de Deus seja luz para os nossos passos, é necessário
amar realmente a Deus, confiar nos seus ensinamentos e na sua graça,
recordando que o benefício imediato de obedecer-Lhe, vivendo o primeiro
dos mandamentos, é o próprio Deus. O resto será dado por acréscimo.
As limitações recordam igualmente que o casal deve amadurecer no
amor e na castidade. Este amadurecimento no exercício da castidade liberta
da prisão da concupiscência e permite a descoberta dos valores mais
espirituais ligados ao amor entre os cônjuges. Mais uma vez, o leitor pode
deduzir que a continência periódica por motivos sérios não é, pois, uma
«técnica», mas sim uma atitude perante a sexualidade que abre aos valores
espirituais na relação entre os cônjuges. Neste sentido, lemos ainda nas
catequeses:
«Se a castidade conjugal (e a castidade em geral) se manifesta primeiro como capacidade de
resistir à concupiscência da carne, em seguida, ela, gradualmente, revela-se como singular
capacidade de perceber, amar e atuar [pôr em prática] aqueles significados da “linguagem do
corpo”, que permanecem inteiramente desconhecidos à própria concupiscência e que
progressivamente enriquecem o diálogo esponsal dos cônjuges, purificando-o, aprofundando-o e
ao mesmo tempo simplificando-o.
Por isso aquela ascese da continência, de que fala a encíclica (HV, 21), não comporta o
empobrecimento das “manifestações afetivas”, pelo contrário, torna-as mais intensas
espiritualmente, e por conseguinte comporta o seu enriquecimento»[759].

As «dificuldades» em viver a norma ensinada na Humanae Vitae


derivam da concupiscência, que impele a pessoa para as manifestações
sexuais sem se aperceber bem dos significados do ato conjugal (ou, pelo
menos, não os assumindo na vida, mesmo que os compreenda
intelectualmente). Além disso, derivam do desconhecimento (ou do
conhecimento pouco esclarecido) de outras manifestações afetivas que os
cônjuges podem e devem ter entre eles, na medida em que os ajudem a
cultivar as emoções que mais unem o casal.
Por conseguinte, se os cônjuges realmente se amam, procurarão cultivar
a virtude da castidade para que, com esse domínio de si, possam escolher
realmente as manifestações afetivas que melhor se adaptem a cada
circunstância. Quando não for conveniente realizar o ato conjugal (porque o
casal quer viver a continência periódica, porque a esposa está adoentada, ou
por outra razão qualquer) nenhum dos dois se zangará (nem com o outro,
nem com a vida, nem com a Igreja, e muito menos com Deus), porque
entende que o essencial da relação – dar-se ao outro, aceitá-lo como é, criar
uma verdadeira comunhão de pessoas – também pode ser alcançado através
de outras atenções afetivas. Estas, sem alimentarem excitações indevidas,
permitem criar um clima de ternura desinteressada. Ora, o crescimento na
virtude da castidade e do amor ao outro, bem como o domínio da
concupiscência, são atitudes «espirituais». Amar o esposo como a si próprio
é um ato espiritual. Por isso, a «espiritualidade conjugal» aponta, sem
dúvida, para o crescimento no amor a Deus, mas também para um amor mais
elevado e sincero entre os esposos.
24.4. A docilidade ao Espírito Santo na vida do casal
Por fim, S. João Paulo II introduz um outro elemento no «desenho» que
propõe sobre a espiritualidade conjugal. Aos esposos que vivem na graça de
Deus, o Espírito Santo orienta-os mediante o dom da piedade, gerando neles,
entre outros efeitos, uma reverência para tudo o que no matrimónio vem de
Deus. Guiados por esse dom, os esposos – como já se explicou anteriormente
(cfr. 24.2) – identificam o que na sua vocação e na sua convivência leva a
marca da Criação e da Redenção. Ora, os dois significados do ato conjugal e
a sua inseparabilidade têm essa marca. Por isso, os esposos que são dóceis ao
dom – no fundo, aqueles que tudo fazem para permanecer na graça de Deus –
respeitarão a unidade dos dois significados: não quererão separá-los na sua
consciência, não só porque sabem que é o modo de se entregarem e aceitarem
mutuamente, sem manipulações, mas também porque sentem crescer neles o
respeito pelo desígnio de Deus sobre o corpo humano e a sexualidade. Ao
procederem com essa delicadeza mútua, honram o próprio Criador[760].
O respeito pelo que tem a marca de Deus faz com que o homem cultive
uma peculiar reverência pelo que é intrinsecamente feminino ou masculino.
No clássico romance de Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, entra em
cena uma enternecedora rapariguinha, de tenra idade, dotada de uma
esplendorosa cabeleira loira e encaracolada. No desenrolar da história,
quando o leitor já se afeiçoou à inocente beleza da rapariga, por obra de uma
beata e de um fanático, são-lhe cortados os caracóis. Estes são fonte de
eventuais tentações para os homens, segundo sentenciam eles. Toda a
passagem é revoltante, até porque o autor acentua até ao limite o fanatismo
desapiedado: «como é possível que privem a rapariguinha de algo tão seu»,
pergunta, com toda a razão, o leitor indignado? Ora, que fazem os
contracetivos femininos (e masculinos)? Não é verdade que privam a mulher
(o homem) de algo que lhe é intrínseco, mesmo que temporalmente (o
crescimento dos cabelos também se pode resolver com o tempo…). Nenhum
homem quererá ver a sua esposa privada de algo que é dela, de algo que
configura o seu ser, muito menos quando essa privação é inútil – pois basta
estar disposto a mudar o próprio comportamento para evitar essa medida. O
dom da piedade reforça este natural sentido do respeito com uma reverência
por motivos sobrenaturais, pois uma ofensa à dignidade da pessoa é uma
ofensa ao Criador e Redentor.
As considerações de S. João Paulo II sobre a espiritualidade conjugal em
geral e, em particular, sobre o papel do dom de piedade na vida dos cônjuges
não servem apenas para enquadrar o ambiente espiritual e humano onde a
continência periódica é realmente um ato de amor. Todas as manifestações do
amor conjugal ganham um novo sentido. S. João Paulo II afirma, por
exemplo, que o respeito sagrado pela obra do Criador e Redentor nos corpos
dos cônjuges
«contribui para fazer com que o ato conjugal não seja desvalorizado nem privado da
interioridade no conjunto da convivência conjugal – que não se torne “hábito” –, que nele se
exprima uma adequada plenitude de conteúdos pessoais e éticos, e também de conteúdos
religiosos, isto é, a veneração à majestade do Criador, único e último depositário da fonte da
vida, e ao amor esponsal do Redentor. Tudo isto cria e alarga, por assim dizer, o espaço interior
da mútua liberdade do dom em que se manifesta plenamente o significado esponsal da
masculinidade e da feminilidade»[761].

Assim, a espiritualidade conjugal permite viver o ato conjugal com a


máxima intensidade de significado[762]. Só esta afirmação seria suficiente
para corrigir a visão de quem pretende realizar o ato conjugal para obter dele
o máximo prazer. Por isso, como já referi antes, algumas das questões de
moral sexual (se os casais «podem» ou não fazer isto ou aquilo) serão mais
facilmente resolvidas se os esposos adotarem a seguinte atitude de fundo:
«no ato conjugal não vou procurar maneiras mais ou menos bizarras de obter
um prazer maior; vou, sim, viver a máxima reverência a Deus, ao meu
cônjuge e a mim mesmo». Essa reverência permite responder a perguntas
como esta: «como poderá o meu interior experimentar tudo o que o ato
conjugal significa?» S. João Paulo II insinua a resposta: «O respeito por
aquilo que é criado por Deus liberta desta constrição [da concupiscência],
liberta de tudo o que reduz o outro “eu” a mero objeto: corrobora a liberdade
interior do dom»[763]. A espiritualidade conjugal leva também, portanto, a que
o casal viva o ato sexual como autêntica expressão da comunhão de pessoas,
e não como mero encontro de corpos. No momento íntimo dessa comunhão
de pessoas, cada um dos cônjuges sabe que Deus está ali, nesse amor. E
ambas sabem que não têm que ter vergonha, nem um do outro nem de Deus.
Em certo sentido, vivem, na intimidade, o oposto ao episódio depois da
queda original: não se escondem nem de Deus nem um do outro.
Quando a união conjugal é um momento de verdadeira comunhão, o
casal sente-se mais unido, mais atento entre si. Pelo contrário, um ato
conjugal com pouca reverência «separa o casal»: «ela não me deu todo o
prazer que tinha idealizado»; ou «ele não me ama com toda a atenção que eu
desejo»; etc.
Vale a pena ressaltar a referência de S. João Paulo II aos «conteúdos
religiosos» do ato conjugal: é possível venerar nele não só o Criador, fonte
única da vida (o casal está habitualmente disposto a colaborar com o poder
criador de Deus), mas também o amor nupcial do Redentor. No fundo, o ato
conjugal pode ser uma oração, tal como se referiu ao seguir o comentário das
catequeses sobre o Livro de Tobias. E é bom procurar que assim seja. Fazer
do ato conjugal apenas um momento de prazer mútuo é reduzir o seu
significado e dificultar-lhe que «ensine» a amar, contribua para formar os
esposos no amor e os aproxime de Deus precisamente com o e através do seu
amor mútuo.
Merece ainda especial destaque aquilo que o autor de Amor e
Responsabilidade designa «justiça para com o Criador», e que ocupa a quarta
parte da obra. Realmente, cada cônjuge deveria ter sempre presente que o
outro é para ele um dom do próprio Deus:
«Não basta que o homem e a mulher se deem reciprocamente no matrimónio. Uma vez que cada
um deles é, ao mesmo tempo, propriedade do Criador, é preciso que também Ele os dê um ao
outro, ou mais exatamente, aprove o seu dom de si recíproco aceite no quadro da instituição do
matrimónio[764].

Se cada esposo for plenamente consciente desta realidade, em nenhum


momento desligará a relação mútua do seu relacionamento com Deus. A
marca da indissolubilidade fá-lo ter em conta que a aprovação de Deus ao
dom mútuo é contínua. Cada dia, Deus diz: «sim, ele (ou ela) é para ti;
protege-o (ou protege-a), ama-o (ou ama-a)». O modo como se concretiza
esse amor é variadíssimo; mas o relacionamento não pode nunca anular a
norma personalista: os esposos não podem em nenhum caso utilizar o outro
como instrumento. Seria não só uma injustiça para com ele – que, como
pessoa, merece ser amado por si próprio (recorde o leitor o que foi dito a
propósito da norma personalista) –, mas também uma injustiça para com o
Criador, que confia os cônjuges um ao outro para serem amados, não
utilizados.
Também se vive a justiça para com o Criador quando se procura
respeitar a natureza do ato conjugal, com os seus dois significados e a
inseparabilidade estrutural entre eles. Volto a transcrever as palavras de uma
das audiências:
«O caráter virtuoso do comportamento, que se exprime na “natural” regulação da fertilidade, é
determinado não tanto pela fidelidade a uma impessoal “lei natural” quanto ao Criador-pessoa,
fonte e Senhor da ordem que se manifesta em
tal lei»[765].

No capítulo 4 de Amor e Responsabilidade, Karol Wojtyla explica mais


extensamente o seu pensamento a este propósito. Para ele remeto o leitor.
Não quero, no entanto, deixar de transcrever algumas ideias que possam
ajudar os esposos a ter em conta que viver bem a moral conjugal protege,
logicamente, o amor mútuo, mas também o amor a Deus. Amar a Deus
significa ter bem presente que Ele é o nosso Criador e Redentor, sendo
necessário dar-Lhe aquilo a que tem direito. Quando os esposos se amam
verdadeiramente, vivem o que Deus deseja na relação entre pessoas; quando
se esforçam por conformar a sua vida conjugal com as leis intrínsecas à
natureza humana criada por Deus, além de protegerem o amor mútuo
aprendem a respeitar filialmente, e com todo o seu ser, o desígnio
sapientíssimo de Deus sobre a sexualidade:
«A justiça do homem para com o Criador compreende, pois, dois elementos: a obediência à
ordem da natureza e a salvaguarda do valor da pessoa. […] O homem que procede corretamente
perante toda a realidade criada adota por isso mesmo, indiretamente, uma atitude correta a
respeito do Criador, é por princípio justo para com Deus. Não pode haver justiça para com o
Criador se falta a atitude correta com respeito às criaturas, e sobretudo com respeito aos homens.
Voltamos assim à norma personalista. O homem só é justo para com Deus-Criador na medida em
que ama os homens. Este princípio aplica-se à vida sexual, de sorte que todas as nossas
considerações centradas no amor e na responsabilidade vêm a ser ao mesmo tempo uma análise
dos deveres de justiça para com
o Criador»[766].

Estas palavras não só ajudam a entender o que já foi referido atrás – que
não é possível deixar Deus «fora do leito conjugal» (seria uma injustiça,
entre outros graves defeitos) –, mas também oferecem pistas para que os
cônjuges amem profundamente a Deus, ao amarem-se verdadeiramente um
ao outro e ao respeitarem as leis que Deus gravou neles com tanto amor.
Em direção inversa, S. João Paulo II sublinha o eco que a vida espiritual
tem no amor humano entre os esposos, contribuindo para a riqueza das
manifestações afetivas:
«A atitude de respeito pela obra de Deus, que o Espírito suscita nos cônjuges, tem um enorme
significado para aquelas “manifestações afetivas”, porque pari passu com ela surge a capacidade
da profunda satisfação, da admiração, da desinteressada atenção à “visível” e ao mesmo tempo
“invisível” beleza da feminilidade e da masculinidade, e por fim um profundo apreço pelo dom
desinteressado
do “outro”»[767].

Ao relermos estas páginas, bem como as da Humanae Vitae para as


quais
S. João Paulo II não cessa de remeter, perguntamo-nos com pena como foi
possível que um documento que exalta de tal maneira a beleza e a
grandiosidade do amor humano tivesse ficado reduzido, na mente de muitos,
a uma espécie de «código sexual» que diz «não» à contraceção e apoia a
continência periódica.
S. João Paulo II também lamenta interpretações redutoras da encíclica:
«Certamente releria e interpretaria de modo errado a encíclica Humanae Vitae aquele que
apenas visse nela a redução da “paternidade e da maternidade responsáveis” exclusivamente
aos “ritmos biológicos de fecundidade”. O autor da encíclica energicamente desaprova e
contesta toda a forma de interpretação redutora (e em tal sentido “parcial”), e repropõe com
insistência o entendimento integral. A paternidade-maternidade responsável, entendida
integralmente,
não é mais do que um importante componente de toda a espiritualidade conjugal e familiar, isto
é, daquela vocação de que fala o citado texto da Humanae Vitae, quando afirma que os
cônjuges devem realizar a “própria vocação para
a perfeição” (HV, 25)»[768].

A perspetiva da espiritualidade conjugal que a encíclica assinala é


suficientemente atrativa para merecer uma leitura atenta e meditada,
sobretudo da parte dos esposos. Há elementos dessa espiritualidade que
devem ser eles a descobrir, concretizar e propor. O caminho da santidade
para os esposos, como aliás para qualquer pessoa, não é fácil, mas pode e
deve ter um grande atrativo. Os esposos podem e devem compreender que o
amor humano que os preenche, e para o qual vivem diariamente, faz parte
do plano divino para eles. E não têm de «fechar» a sua vida espiritual
(fazendo uma espécie de «intervalo na relação com Deus») quando se unem
intimamente. Toda a teologia do corpo pode ensinar a compreender como
Deus está muito mais próximo das suas vidas, também nos momentos mais
íntimos, do que a eles lhes possa parecer.
Termino este capítulo com umas consoladoras palavras da encíclica
d e Paulo VI, que sintetizam bem a importância dos vários aspetos
estudados, seguindo sempre as reflexões de S. João Paulo II:
«Uma prática honesta da regulação da natalidade exige, acima de tudo, que os esposos adquiram
sólidas convicções acerca dos valores da vida e da família e que tendam a alcançar um perfeito
domínio de si mesmos. O domínio do instinto, mediante a razão e a vontade livre, impõe,
indubitavelmente, uma ascese, para que as manifestações afetivas da vida conjugal sejam
conformes com a ordem reta e, em particular, concretiza-se essa ascese na observância da
continência periódica. Mas, esta disciplina, própria da pureza dos esposos, longe de ser nociva ao
amor conjugal, confere-lhe pelo contrário um valor humano bem mais elevado. Requer um esforço
contínuo, mas, graças ao seu benéfico influxo, os cônjuges desenvolvem integralmente a sua
personalidade, enriquecendo-se de valores espirituais: ela acarreta à vida familiar frutos de
serenidade e de paz e facilita a solução de outros problemas; favorece as atenções dos cônjuges,
um para com o outro, ajuda-os a extirpar o egoísmo, inimigo do verdadeiro amor, e enraíza-os no
seu sentido de responsabilidade. Além disso, os pais adquirem com ela a capacidade de uma
influência mais profunda e eficaz para educarem os filhos; as crianças e a juventude crescem
numa estima exata dos valores humanos e num desenvolvimento sereno e harmónico das suas
faculdades espirituais e sensitivas»[769].

Ao reler estas palavras, apetece sugerir aos casais que já tiveram esta
experiência que não deixem de a transmitir aos outros. São muitos os bens
que estão em jogo.

Reflexões finais

«Eu, agora, alegro-me nos meus sofrimentos por vós e completo na minha carne o que falta à
Paixão de Cristo pelo Seu corpo, que é a Igreja» (Col 1, 24).

Bastariam estas palavras de S. Paulo para aniquilar qualquer vestígio de


uma antropologia dualista em que o corpo é visto ou como estorvo para as
coisas espirituais ou, em sentido oposto mas com o mesmo erro de base,
como o fim último do nosso existir (seja na modalidade que for; obter o
máximo prazer sensível, por exemplo).
Ao longo destas páginas, guiados pelos ensinamentos de S. João Paulo
I I , fomos vendo o corpo não só como «lugar» de comunicação entre os
homens mas também, em Cristo, como «lugar» excelso da proximidade de
Deus.
Com o corpo, o ser humano pode manifestar e difundir os mais elevados
graus de amor, como também Deus, em Cristo, os manifestou: «Isto é o Meu
Corpo, que é dado por vós» (Lc 22, 19). Em Cristo, desde a Encarnação até à
Ascensão, a natureza humana, corpo e alma, foi restaurada e elevada a uma
altura inimaginável para o homem ferido pelo pecado. Deus não desdenhou
assumir a nossa natureza, manifestar-Se na nossa natureza através de palavras
e gestos humanos: «explicou-nos», com a sua Paixão e Morte, o grau de amor
que nos tem, carregando o peso dos pecados de toda a humanidade pecadora
na sua carne e na sua alma humanas. Com a sua Ressurreição, Deus mostra-
nos a potencialidade da natureza humana:
«A Ressurreição de Jesus não é um acontecimento singular que possamos menosprezar e que
pertença apenas ao passado, mas sim uma espécie de “mutação decisiva” (expressão equívoca,
mas usada aqui analogicamente), um salto de qualidade. Na Ressurreição de Jesus, foi alcançada
uma nova possibilidade de ser homem, uma possibilidade que interessa a todos e abre um futuro,
um novo género de futuro para os homens»[770].

Por fim, com a sua Ascensão e a promessa do regresso no final dos


tempos, ficamos estupefactos perante a certeza de que a Santíssima
Humanidade de Jesus perdurará para sempre: pela Encarnação, Deus
comprometeu-se definitivamente com o homem, mostrou-nos quanto nos ama
e mostrou também como a natureza humana, tão frágil, pode participar da
eternidade divina.
Com a sua teologia do corpo, S. João Paulo II «abriu-nos uma janela
panorâmica» para o modo como Deus vê o homem e, portanto, para quem
realmente o homem é. Com este entendimento teológico, aproximamo-nos
muito mais do valor que realmente tem o corpo e a sexualidade do homem,
bem como o amor humano. Como foi dito nestas páginas, um dos grandes
problemas da sociedade atual é, ao contrário do que possa parecer, a falta de
estima pelo homem, que conduz à leviana instrumentalização da pessoa e à
banalização da sexualidade. Recuperar o valor que o corpo, a sexualidade e o
amor humano têm aos olhos de Deus é, também, tarefa da evangelização –
sob pena de, se tal não suceder, esta ficar reduzida a uma súmula de palavras
abstratas, sem consequências para a vida do dia a dia.
Não resisto a transcrever ainda dois breves testemunhos dos primeiros
séculos sobre o valor que o cristianismo dava ao corpo. Escreveu Tertuliano:
«A tal ponto é a carne o eixo da salvação que por ela a alma se ligou a Deus; é a carne que torna
possível a eleição da alma por Deus. Por exemplo, a carne é lavada para que a alma seja
imaculada; a carne é ungida para que a alma seja consagrada; a carne é assinalada com a cruz para
que também a alma seja protegida; a carne é coberta pela imposição das mãos para que a alma seja
iluminada pelo Espírito; a carne alimenta-se do Corpo e Sangue de Cristo, de modo a que a alma
também seja repleta de Deus»[771].

O outro texto é de S. Ireneu de Lião:


«Portanto, quando o cálice de vinho misturado com a água e o pão natural recebem a Palavra de
Deus, transformam-se na Eucaristia do Sangue e do Corpo de Cristo. São eles que alimentam e
revigoram a substância da nossa carne. Como é possível negar que a carne é capaz de receber o
dom de Deus, que é a vida eterna, essa carne que se alimenta com o Sangue e o Corpo de Cristo e
se torna membro do seu corpo? O santo Apóstolo diz na Carta aos Efésios: “somos membros do
seu Corpo” (Ef 5, 30), da sua carne e dos seus ossos (cfr. Gen 2, 23); não é de um homem
espiritual e invisível que ele fala – o espírito não tem carne nem ossos (cfr. Lc 24, 39) –, mas sim
do organismo verdadeiramente humano, que consta de carne, nervos e ossos, que se nutre com o
cálice do seu Sangue e se robustece com o pão que é seu Corpo.
O ramo da videira, plantado na terra, frutifica no tempo próprio, e o grão de trigo, caído na terra e
dissolvido, multiplica-se pelo Espírito de Deus que sustenta todas as coisas. Em seguida, pela arte
da fabricação, são transformados para uso do homem. Recebendo a Palavra de Deus, tornam-se
Eucaristia, isto é, o Corpo e o Sangue de Cristo. Assim também os nossos corpos, alimentados
pela Eucaristia, depositados na terra e nela desintegrados, ressuscitarão a seu tempo, quando o
Verbo de Deus lhes conceder a ressurreição para a glória do Pai. É Ele quem reveste com a sua
imortalidade o corpo mortal, e dá gratuitamente a incorruptibilidade à carne corruptível»[772].

Não estará o cristão de hoje necessitado de recuperar estes


ensinamentos? Além disso, como foi referido pelo próprio S. João Paulo II, a
teologia do corpo deve ser acompanhada por uma «pedagogia do corpo». É
útil que o leitor, ao aprofundar nas catequeses de S. João Paulo II, se pergunte
como aplicar cada ensinamento à sua vida. Obviamente, é necessário
entender o que lá se diz, mas não é menos importante perguntar: «como
posso viver este aspeto?»
Ao longo destas páginas, procurei dar exemplos bem concretos, que
abrangem um amplo leque da vida das pessoas. Com a graça de Deus, espero
que os leitores e o autor destas linhas tentem prosseguir esta tarefa,
conscientes de que desse modo nos aproximaremos do pensamento e do
Coração de Cristo e poderemos levar a muita gente a certeza de que podem
amar com o corpo, rezar com o corpo, expressar-se com o corpo, manifestar
amizade com o corpo.
Aos seguidores da teologia do corpo, é-nos particularmente cara a festa
da Assunção de Nossa Senhora, na qual a contemplamos no Céu, junto do seu
Filho, em corpo e alma. Como Ele. E assim, mais até do que a melhor
intercessora, vemo-la como Mãe.

Bibliografia

Para uma bibliografia muito bem selecionada e sistematizada,


recomendo que se utilize a que se recolhe no volume das Catequeses de
Teologia do Corpo (Teologia do Corpo – O Amor Humano no Plano
Divino, ed. coordenada pelo
P. Miguel Pereira, Alêtheia, Lisboa, 2013), pp. 698 e ss. Nestas páginas,
limi-
to-me a referir obras que podem ajudar aqueles que desejem familiarizar-se
com a teologia do corpo.

I. Obras de S. João Paulo II

Catequeses de teologia do corpo


Teologia do Corpo – O Amor Humano no Plano Divino, ed. coordenada
pelo
P. Miguel Pereira, Alêtheia, Lisboa, 2013.
Man and Woman He Created Them – A Theology of the Body, tradução,
introdução e índice de Michael Waldstein, Pauline Books & Media,
Boston, 2006. (Acrescento esta edição pela sua magnífica introdução e
pelo facto de incorporar aquelas catequeses que, embora preparadas por
S. João Paulo II, não chegaram a ser proferidas. Como se diz no corpo
do texto, elas facilitam a compreensão de alguns aspetos.)
Varón y Mujer, Palabra, Madrid, 1995; La Redención del Corazón, Palabra,
Madrid, 1996; El Celibato Apostólico, Palabra, Madrid, 1995;
Matrimonio, Amor
y Fecundidad, Palabra, Madrid, 1998. (Reúne, em quatro volumes, o
conjunto das catequeses. Tal como a edição de Waldstein, inclui as
catequeses não publicadas. Para as citações dessas catequeses, o texto-
base que utilizei foi traduzido com base nesta edição, embora fosse
ocasionalmente necessário cotejá-la com a edição de Waldstein.)
Uomo e Donna lo Creò – Catechesi Sull’Amore Umano, Città Nuova
Editrice – Libreria Editrice Vaticana, Roma, 1985. (Recebeu sucessivas
reimpressões até 2006.)
Exortações apostólicas, cartas encíclicas e outras cartas com relevo
para o estudo de teologia do corpo
Carta encíclica Redemptor Hominis, 15-3-1979.
Carta encíclica Laborem Exercens, 15-9-1981.
Carta encíclica Redemptoris Mater, 25-3-1987.
Carta encíclica Veritatis Splendor, 6-8-1993.
Carta encíclica Evangelium Vitae, 25-3-1995.
Exortação apostólica Familiaris Consortio, 22-11-1981.
Exortação apostólica Redemptoris Custos, 15-8-1989.
Exortação apostólica Pastores Dabo Vobis, 25-3-1992.
Carta apostólica Familia a Deo Instituta, 9-5-1981, em forma de motu
proprio
(com o qual foi constituído o Pontíficio Conselho para a Família).
Carta apostólica Salvifici Doloris, 11-2-1984.
Carta apostólica Mulieris Dignitatem, 15-8-1988.
Carta às Famílias, 2-2-1994.
Carta às Mulheres, 29-6-1995.
Carta aos Artistas, 4-4-1999.
Outras intervenções
Discurso no Encontro sobre Procriação Responsável, Promovido pela
Universidade do Sacro Cuore, 5-6-1987.
Discurso aos Representantes das Conferências Episcopais no Encontro
Organizado pelo Pontifício Conselho para a Família por Ocasião do
20.º Aniversário da Publicação da Humanae Vitae, 7-11-1988.
Discurso aos Participantes do 2.º Congresso Internacional de Teologia
Moral, 12-11-1988.
Discurso ao Congresso Internacional Sobre a Sida, 15-11-1989.
Discurso na Capela Sistina, 8-4-1994.
Livros de S. João Paulo II
Tríptico Romano, Paulinas, Lisboa, 2004.
Memória e Identidade, Bertrand, Lisboa, 2005.
II. Intervenções de outros Papas
Papa Francisco, carta encíclica Lumen Fidei, 29-6-2013, n.º 52.
Papa Francisco, carta encíclica Laudato Si’, 24-5-2015, n.os 65-92, 115-121,
155, 238-240.
Papa Francisco, Audiências Gerais sobre a Família, Iniciadas a 12-12-2014,
(em particular, são significativas para a teologia do corpo as que vão de
15-4-2015 a 6-5-2015).
Papa Francisco, Discurso aos Participantes no Encontro Internacional sobre
a Complementaridade entre Homem e Mulher, Promovido pela
Congregação para a Doutrina da Fé, 17-11- 2014.
Bento XVI, carta encíclica Deus Caritas est, 25-12-2005 (sobretudo a 1.ª
parte).
Bento XVI, carta encíclica Caritas in Veritate, 29-6-2009 (sobretudo os
capítulos 4 e 5).
Bento XVI, Discurso aos Participantes num Encontro Promovido pelo
Pontifício Instituto S. João Paulo II Para os Estudos Sobre Matrimónio e
Família, 13-5-2011.
Bento XVI, Discurso aos Participantes no Congresso Internacional do
40.º Aniversário da Encíclica Humanae Vitae, 10-5-2008.
Bento XVI, Discurso à Cúria Romana, 21-12-2012.
Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, 25-7-1968.
Pio XI, carta encíclica Casti Connubii, 31-12-1930.
III. Catecismo da Igreja Católica

Entre outros: n.os 279-324 (criação em geral); n.os 355-421 (criação do


homem e queda); n.os 988-1019 (ressurreição da carne); n.os 1730-1802
(liberdade; moralidade dos atos humanos; moralidade das paixões; a
consciência); n.os 1949-
-2005 (a lei e a graça); n.os 1601-1666 (matrimónio); n.os 2331-2400 e n.os
2514-
-2553 (sexto e nono mandamentos).
IV. Congregação para a Doutrina da Fé
Instrução Donum Vitae, 22-2-1987.
Instrução Dignitas Personae, 8-9-2008.
V. Pontifício Conselho para a Família
Sexualidade Humana – Verdade e Significado, 8-12-1995.
Vademecum para os Confessores Sobre Alguns Temas de Moral
Relacionados com a Vida Conjugal, 12-2-1997.
Família, Matrimónio e «Uniões de Facto», 21-11-2000.
Famiglia e Procreazione Umana, 13-5-2006.
VI. Conselho Pontifício para a Pastoral da Saúde
Carta dos Profissionais da Saúde, 1994.
VII. Congregação para a Educação Católica
Instrução Sobre os Critérios de Discernimento Vocacional Acerca das
Pessoas com Tendências Homossexuais e da Admissão ao Seminário e
às Ordens Sacras, 4-11-2005.
VIII. Obras de Karol Wojtyla que podem ajudar na compreensão
das catequeses
Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999.
La Renovación en Sus Fuentes, BAC, vol. 430, Madrid, 1982.
Signo de Contradicción, BAC, vol. 50, Madrid, 1978.
El Don del Amor – Escritos Sobre la Familia, Palabra, Madrid, 2000.
Persona y Acción, Palabra, Madrid, 2011.
IX. Livros sobre a teologia do corpo
Healy, Mary, Os Homens e as Mulheres são do Éden, Encontro da Escrita,
Lisboa, 2013.
West, Christopher, Teologia do Corpo para Principiantes, Paulinas, Lisboa,
2009.
Semen, Yves, A Sexualidade Segundo S. João Paulo II, Princípia, Cascais,
2008.
West, Christopher, Heaven’s Song, Ascension Press, West Chester,
Pensilvânia, 2008.
West, Christopher, Theology of the Body Explained – A Commentary on John
Paul II’s Theology of the Body, Pauline Books & Media, Boston, 2003.
Anderson, Carl e Granados, José, Criados para o Amor, Princípia, Cascais,
2014.
Evert, Jason & Crystalina e Butler, Brian, Theology of the Body for Teens,
Ascension Press, EUA, 2006.
Northrop, Anastasia, The Freedom of the Gift, Resurrection Publications,
Minooka, Illinois, 2005.
Weigel, G., Testemunho de Esperança, Bertrand, Lisboa, 2000. (O capítulo
10, «Os Caminhos da Liberdade», pp. 272-281, contém um excelente
resumo das catequeses; aconselharia a sua leitura a quem quer iniciar o
seu estudo sobre teologia do corpo.)
X. Obras que podem ajudar a entender o pensamento
de S. João Paulo II
Buttilione, Rocco, El Pensamiento de K. Wojtyla, Encuentro, Madrid, 1992.
Burgos, Juan Manuel, La Filosofía Personalista de K. Wojtyla, Palabra,
Madrid, 2007.
Scola, Angelo, Homem-Mulher – O Caso Decisivo do Amor, Princípia,
Cascais, 2005.
Newton, William, «Rereading Theology of the Body Through the Spousal
Meaning of the Body», in 3.º Simpósio Internacional de Teologia do
Corpo, Londres, 2011; «What Exactly is the Redemption of the Body?»,
in 4.º Simpósio Internacional de Teologia do Corpo, Fátima, 2013. (Dois
artigos extraordinários que facilitam muito a compreensão das
catequeses.)
XI. Manuais e obras de teologia moral
Colom, E. e Luño, A. Rodríguez, Elegidos en Cristo para ser Santos –
Curso de Teología Moral Fundamental, Palabra, Madrid, 2001.
Luño, A. Rodriguez, Scelti in Cristo per Essere Santi, vol. 3: «Morale
Speciale», Edusc, Roma, 2008.
Fernandez, Aurelio, Compendio de Teología Moral, Palabra, Madrid, 1995.
Haro, Ramón García de, Cristo – Fundamento de la Moral, Eunsa,
Barcelona, 1990.
Rhonheimer, M., Ética de la Procreación, Rialp, Madrid, 2004.
Grisez, G., The Way of the Lord Jesus, vol. 2. (Edição online.)
Grisez, G., Shaw, Russel, La Vida Realizada en Cristo, Palabra, Madrid,
2009.
Newton, William, Maryvale Course Book – Marriage as a Sacrament, 2011.
Caffarra, Carlo, Etica Generale della Sessualità, Edizioni Ares, Milão, 1992.
Alexander Pruss, One Body, University of Notre Dame, Indiana, 2013.
XII. Obras de Padres da Igreja e de S. Tomás de Aquino
Encontramos uma valiosa coletânea dos temas que nos ocupam em vários
Padres, nomeadamente em AAVV, Masculinidad y Feminidad en la
Patrística, Instituto de Ciencias para la Familia, Universidad de Navarra,
Pamplona, 1989.
Santo Agostinho, A Santa Virgindade.
Santo Agostinho, Dos Bens do Matrimónio.
Santo Ambrósio, A Virgindade.
S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, sobretudo: I.a, qq. 75-83 e 90-102; I-
II.ae,
qq. 1-3, 6-34, 93-94; II-II.ae, qq. 23, 25-27, 144, 151-156, 163-165, 169;
III.ª, qq. 28-29, suplemento e qq. 41-49.
XIII. Textos de S. Josemaria Escrivá
«O Matrimónio – Vocação Cristã», in Cristo que Passa, Prumo/Rei dos
Livros, 4.ª ed., Lisboa, 1997.
«Porque Verão a Deus», in Amigos de Deus, ed. Prumo/Diel, 4.ª ed., Lisboa,
2010.
Caminho, capítulos Santa Pureza e Coração, Diel, 22.ª ed., Lisboa, 2008.
«A Mulher na Vida do Mundo e da Igreja», in Temas Atuais do Cristianismo,
Prumo/Aster, 2.ª ed., Lisboa, 1973.

Índice
Prólogo 5
Introdução 13
1. Uma visão integral do homem 13
2. A regra de compreensão 23
3. O substrato bíblico 29
4. Enraizando na Revelação os ensinamentos proclamados pela
Igreja 39
5. Novas dificuldades 43
Primeira parte – As palavras de Cristo 47
6. O princípio da continuidade 47
7. A solidão originária: o corpo revela a pessoa 59
7.1. Os primeiros capítulos do Génesis: palavras que «valem
ouro» 60
7.2. Uma criatura excecional: autoconhecimento, autodeterminação
e significado do corpo 63
8. A unidade e a dualidade originárias: a comunhão de pessoas 75
8.1. Homem e mulher: duas experiências complementares
da corporeidade 76
8.2. Sobre a ideologia de género 80
8.3. A unidade dual 85
9. A nudez sem vergonha: liberdade do dom ou nudismo puro e
simples? 95
9.1. A vergonha 96
9.2. O que mudou com o pecado? 100
9.3. O pudor e a inalienabilidade da pessoa 108
10. A revelação e a descoberta do significado esponsal do corpo 113
10.1. A norma personalista 116
10.2. A lei do dom 123
10.3. O significado esponsal do corpo 134
11. Cristo na Cruz: uma releitura à luz do significado esponsal do
corpo 149
12. O ato conjugal e o significado procriativo do corpo: conhecimento
e procriação 157
12.1. Sobre a bondade do ato conjugal 158
12.2. O ato conjugal: um mútuo conhecimento 162
12.3. A homogeneidade somática do filho 170
13. Desejar a redenção 175
13.1. Unir o nosso coração ao amor do Legislador Supremo 176
13.2. Vencendo os «mestres da suspeita»: a redenção é necessária
e possível 180
14. A corrupção do significado esponsal do corpo: vergonha e
insaciabilidade 185
14.1. A concupiscência: uma grave carência, uma redução
intencional 185
14.2. Precisamos das folhas da figueira 187
14.3. Vontade de domínio e insaciabilidade da união 197
14.4. As feridas no homem e na mulher 200
14.5. Meros desejos libidinosos 204
15. Velar pelo coração: desejar bem 211
15.1. Identificar um mau desejo, mesmo para com a esposa 213
15.2. As interpretações maniqueístas 219
15.3. Redimindo o desejo 224
15.4. Querer mesmo o bem 226
16. Os gigantescos horizontes abertos pela pureza 233
16.1. Reabilitar a castidade 234
16.2. Livres da concupiscência para poder amar 236
16.3. Frutos do Espírito e obras da carne 240
16.4. Manter o corpo em santidade e respeito 244
16.5. O corpo, templo do Espírito Santo 247
16.6. O dom da piedade e a veneração pela obra de Deus 250
16.7. Pureza, sabedoria e síntese final 253
17. Sexo e eternidade 259
17.1. O Deus da vida 260
17.2. No Céu não haverá casamento… E então o amor? 267
17.3. Haverá homens e mulheres 270
17.4. Um corpo espiritual: harmonia total 272
17.5. Imersos em Deus 275
17.6. O corpo manterá o seu significado esponsal mesmo sem
o casamento? 277
17.7. Aprender do futuro 282
18. A importância do celibato 285
18.1. Ilações sobre o celibato derivadas do contexto em que Jesus
fala 288
18.2. Compreensão do celibato à luz das palavras de Jesus aos
fariseus 293
18.2.1. Eunucos que se fizeram eunucos a si próprios 293
18.2.2. Por amor do Reino dos Céus 296
18.2.3. Nem todos compreendem estas palavras: amados para
amar 299
18.3. Celibato e matrimónio: a complementaridade 305
18.4. A superioridade do celibato pelo Reino dos Céus 308
Segunda parte – O Sacramento 317
19. O projeto de Deus para o matrimónio 317
19.1. Efésios 5: algumas considerações 318
19.2. Que quis Deus ao «inventar» o matrimónio? 321
19.3. O amor redentor 326
19.4. O ethos que deriva do matrimónio restaurado por Cristo 332
20. Reler a linguagem do corpo na verdade 337
20.1. Palavras comprometedoras 339
20.2. A perene linguagem do corpo 341
20.3. O corpo pode falar a verdade ou mentir 343
20.4. Os esposos diante de Deus 346
21. A riqueza e a santidade da linguagem do corpo 349
21.1. O mútuo deslumbramento: glosando o cântico de Adão 352
21.2. A questão fraterna: o amor tudo quer abraçar 354
21.3. O mistério feminino e o amor que espera e respeita 358
21.4. A força do amor humano, ciúmes, indissolubilidade 361
22. Inserindo a santidade no matrimónio 369
22.1. Tobias e Sara: a história 371
22.2. Um amor decidido e realista, disposto a vencer o mal 373
22.3. Casar-se no Senhor (cfr. 1 Cor 7, 39) 377
23.4. Linguagem litúrgica e inserção no desígnio divino 378
23. Contraceção – Por que não? 383
23.1. Objeções teóricas e práticas à Humanae Vitae 387
23.2. Uma norma humanista que conta com a graça de Deus 389
23.3. A inseparabilidade antropológica dos significados unitivo e
procriativo do ato conjugal 391
23.4. A contraceção, mesmo esporádica, é uma desordem
moral 397
23.5. Quando a continência é amor 400
23.6. Dois modos de entender o significado das relações
conjugais 404
23.7. Duas visões do ser humano irredutíveis 408
23.8. Os «motivos sérios» para que a continência periódica seja
moralmente boa 410
23.9. «Atuabilidade» e inteligibilidade da norma moral ensinada
na Humanae Vitae 416
23.10. Amor (sempre) sem barreiras 428
23.11. O domínio de si ausente na contraceção 430
24. A espiritualidade conjugal 435
24.1. O que é a espiritualidade conjugal? 438
24.2. O primeiro elemento da espiritualidade conjugal: o amor entre
os cônjuges 441
24.3. A castidade, chave do êxito da continência periódica 449
24.4. A docilidade ao Espírito Santo na vida do casal 458
Reflexões finais 465
Bibliografia 469

[1]
Também na Imaculada Conceição poderíamos descortinar uma relação com a corporalidade.
Leia-se o interessante artigo de Fr. Paul M. Haffner, S.T.D., «The Anthropological Significance of the
Dogma of the Immaculate Conception», in The Virgin Mary and the Theology of the Body, Donald H.
Calloway MIC (editor), Marian Press, Massachusetts, 2005, pp. 163-188.
[2]
Para as citações bíblicas, procurei manter a versão usada na tradução portuguesa das
catequeses ou em outros documentos pontifícios. Para as citações do Novo Testamento não incluídas
nas catequeses, usei habitualmente a 3.ª ed. da Editorial A. O., Braga, com o texto base do
P. Matos Soares; para as do Antigo Testamento, usei os textos contidos nos lecionários da liturgia. No
entanto, ocasionalmente, optei por ligeiras correções tendo em conta a versão em latim da neovulgata.

[3]
AG 8-4-1981, n.º 1. (AG significa «audiência geral»; quando se tratar das audiências de S.
João Paulo II, omitirei o nome do Papa.)

[4]
S. João Paulo II, carta encíclica Veritatis Splendor, n.º 103.

[5]
O episódio de Onan, filho de Judá, descrito em Gen 38, 9-10, não é conclusivo sobre o tema:
«Os autores discutem se nesse texto o que se condena é o onanismo [coito interrompido], ou o facto de
não se cumprir a lei do levirato» (Augusto Sarmiento, El Matrimonio Cristiano, Eunsa, Pamplona,
1997, p. 384). Onan não queria que a viúva do seu irmão, com quem a lei o obrigava a casar para
procurar dar descendência ao irmão defunto, tivesse filhos, porque não seriam legalmente seus (cf. Gen
38, 9). Em Gen 38, 10, lemos: «Por isso, o Senhor o feriu de morte, porque fazia uma coisa detestável».
O que era realmente detestável: o não cumprimento da lei (dar filho ao irmão) ou o modo como os
evitava? A Humanae Vitae em nenhum momento recorre a esta passagem para fundamentar a
imoralidade dos contracetivos, como também não o fazem as catequeses de teologia do corpo, o
Catecismo da Igreja Católica, etc. Ao contrário, leia-se, por exemplo, a carta encíclica de Pio XI Casti
Connubi (n.º 56), que transcreve a opinião de S. Agostinho sobre o ato de Onan: «Não admira pois que,
segundo atesta a Sagrada Escritura, a Majestade divina odeie sumamente este nefando crime e algumas
vezes o tenha castigado com a morte, como recorda Santo Agostinho: “Ainda com a mulher legítima, o
ato matrimonial é ilícito e desonesto quando se evita a conceção da prole. Assim fazia Onan, filho de
Judá, e por isso Deus o matou” (S. Agostinho, De Conjug., livro II, n.º 12; cfr. Gen 38, 8-10.)».
Modernamente, também é partidário desta interpretação Alexander Pruss, One Body, University of
Notre Dame, Indiana, 2013, pp. 280-281: os seus argumentos são convincentes, mas é preciso insistir
que não há unanimidade nessa interpretação, pelo menos por agora.

[6]
AG 18-7-1984, n.º 3. Cfr., também, AG 25-7-1984, n.º 6.

[7]
S. João Paulo II, exortação apostólica Familiaris Consortio, n.º 31. (O itálico é meu.)
[8]
K. Wojtyla, «La Visión Antropologica de la Humanae Vitae», in K. Wojtyla, El Don del Amor
– Escritos sobre la Familia, Palabra, Madrid, 2000, pp. 307-308. (Salvo indicações em contrário,
as traduções de livros com título não português são da minha autoria. Nesta citação, o itálico é meu.)

[9]
Cfr. Papa Francisco, exortação apostólica Evangelii Gaudium, n.º 34: «No mundo atual, com
a velocidade das comunicações e a seleção interessada dos conteúdos feita pelos mass media, a
mensagem que anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns
dos seus aspetos secundários. Consequentemente, algumas questões que fazem parte da doutrina moral
da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá sentido. O problema maior ocorre quando a mensagem
que anunciamos parece então identificada com tais aspetos secundários, que, apesar de serem
relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo. Portanto, convém
ser realistas e não dar por suposto que os nossos interlocutores conhecem o horizonte completo
daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso discurso com o núcleo essencial do
Evangelho que lhe confere sentido, beleza e fascínio».

[10]
Cfr. Concílio Vaticano II, declaração Dignitatis Humanae, n.º 1.

[11]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 7.
[12]
Cfr. AG 25-7-1984, n.º 6.

[13]
AG 25-7-1984, n.º 6. É bom ter presente a tradução inglesa, que refere «the rule of
understanding» e que torna mais percetível o que S. João Paulo II deseja explicar. Devo acrescentar
que João Paulo II só recorre a este conceito de modo explícito quando fala da Humanae Vitae na
audiência de 25-7-1984 e quando fala da virgindade pelo Reino dos céus em AG 10-3-1982, n.º 4 e
AG 31-3-1982, n.º 5. Nos restantes casos que aqui refiro trata-se de uma aplicação da minha autoria.

[14]
Desde já faço notar que, com a referência ao «princípio», Cristo não está a dizer que se deva
procurar no princípio uma lei externa, entretanto perdida. A referência ao «princípio» é um apelo à
consciência do homem ainda pura e sem a contaminação do pecado, um apelo ao ser do homem quando
criado por Deus: no homem sem pecado encontramos de forma diáfana a verdade do seu ser, do seu
corpo, da sua sexualidade, e a verdade do matrimónio. Como bem explica Caffarra: «O significado
fundamental do apelo de Jesus ao “princípio” é o apelo à verdade na relação homem-mulher, existente
não pela força de uma imposição, mas simplesmente pela força do seu ser pessoa humana-masculina e
pessoa humana-feminina» (Carlo Caffarra, «Ontologia Sacramentale e Indissolubilità del Matrimonio»,
in Permanere nella Verità di Cristo, Cantagalli, Siena, 2014, p. 164).

[15]
O motivo da discrepância, como bem explica Waldstein, é o seguinte: Waldstein defende a
tese de que, «na própria divisão do texto de S. João Paulo II, a virgindade é vista sobretudo através das
lentes da ressurreição na medida em que é um sinal antecipador da ressurreição». Na versão italiana, e
também na que C. West apresenta, «é visto de forma predominante como um estado de vida» (Man and
Woman He Created Them – A Theology of the Body, tradução, introdução e índice de Michael
Waldstein, Pauline Books & Media, Boston, 2006, p. 113). Ambas as posições, como reconhece
Waldstein, têm a sua lógica e a sua utilidade com vista à compreensão do texto. Embora, pessoalmente,
concorde mais com Waldstein quanto ao que pode ter sido o pensamento de S. João Paulo II, adotei o
critério da versão portuguesa tendo em vista os leitores de língua portuguesa que, ao lerem as
catequeses na versão do nosso país, seguirão essa divisão.

[16]
AG 17-3-1982, n.º 5.
[17]
AG 17-3-1982, n.º 2.

[18]
AG 25-7-1984, n.º 6. (Modifiquei ligeiramente a versão portuguesa, por motivos de
clareza.)

[19]
AG 25-7-1984, n.º 6. (Pode ajudar o leitor, para entender melhor a expressão que em
português foi traduzida por «substrato», ter presente as diferentes traduções; em espanhol:
retrovisión bíblica; em italiano: retroterra bíbico; em inglês: biblical background.)

[20]
Para perceber melhor a articulação entre o conhecimento natural e aquele que advém da fé,
pode ajudar ler os n.os 7-8 da instrução Dignitas Personae, da Congregação para a Doutrina da Fé, de 8
de novembro de 2008. Em concreto: «É convicção da Igreja que tudo o que é humano não só é acolhido
e respeitado pela fé, mas por esta é também purificado, elevado e aperfeiçoado. Deus, depois de ter
criado o homem à sua imagem e semelhança (cfr. Gen 1, 26), qualificou a sua criatura como “muito
boa” (Gen 1, 31), para depois assumi-la no Filho (cfr. Jo 1, 14). O Filho de Deus, no mistério da
Encarnação, confirmou a dignidade do corpo e da alma, constitutivos do ser humano. Cristo não
desdenhou a corporeidade humana, mas revelou plenamente o seu significado e valor: “Na realidade, o
mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente”.
Tornando-se um de nós, o Filho faz com que possamos tornar-nos “filhos de Deus” (Jo 1, 12),
“participantes da natureza divina” (2 Pd 1, 4). Esta nova dimensão não está em contraste com a
dignidade da criatura que todos os homens reconhecem como racional, mas eleva-a a um ulterior
horizonte de vida, que é a própria vida de Deus, e permite refletir mais adequadamente sobre a vida
humana e sobre os atos que a constituem.
À luz destes dados da fé, ainda mais se acentua e se reforça o respeito pelo indivíduo humano,
que a razão exige. Por isso, não há contradição entre a afirmação da dignidade e a da sacralidade da
vida humana. “As diversas maneiras como, na história, Deus cuida do mundo e do homem, não só não
se excluem entre si, mas, pelo contrário, apoiam-se e compenetram-se mutuamente. Todas elas derivam
e terminam no sábio e amoroso desígnio eterno com que Deus predestina os homens ‘a serem
conformes à imagem do Seu Filho’” (Rom 8, 29).
A partir do conjunto destas duas dimensões, a humana e a divina, compreende-se melhor o
porquê do valor inviolável do homem: este possui uma vocação eterna e é chamado a partilhar o amor
trinitário do Deus vivo».
[21]
AG 11-7-1984, n.º 5. Na audiência seguinte, 18-7-1984, n.º 3, acrescenta: «O autor da
encíclica [Paulo VI] sublinha que a norma pertence à “lei natural”, quer dizer, que ela é conforme à
razão como tal».

[22]
Man and Woman He Created Them – A Theology of the Body, tradução, introdução e índice
de Michael Waldstein, Pauline Books & Media, Boston, 2006, p. 19.

[23]
S. João Paulo II, carta encíclica Redemptor Hominis, n.os 8 e 10.
[24]
Cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, III.ª, q. 3 a. 8. S. Tomás explica por que razão era
conveniente que fosse a Segunda Pessoa divina a que encarnasse, depois de, no artigo 5, ter explicado
que qualquer das outras Pessoas divinas poderia ter encarnado. Transcrevo parte da primeira razão de
conveniência: «Era muito conveniente que fosse a Pessoa do Filho que encarnasse. Em primeiro lugar,
do ponto de vista da união. É conveniente unir coisas que são semelhantes. Ora, a própria Pessoa do
Filho, que é o Verbo de Deus, tem, em primeiro lugar, uma certa semelhança com a totalidade das
criaturas. De facto, o verbo ou conceito (ideia) do artista é a semelhança exemplar de tudo o que ele
cria. Daí que o Verbo de Deus, que é o seu conceito eterno, constitua a ideia exemplar de todas as
coisas criadas. Por isso, como as criaturas, pela participação nesse arquétipo, foram colocadas nas
respetivas espécies, ainda que de modo variável, assim era conveniente que, não através da
participação, mas antes pela união pessoal com o Verbo, a criatura fosse restaurada e constituída na
sua perfeição eterna e imutável: de facto, mesmo um artista, quando a sua obra sofreu um estrago,
repara-a recorrendo ao modelo mental que lhe serviu para a produzir». Cfr., também, Bento XVI,
homilia de 24-12-2010:
«S. Paulo, nas cartas aos Colossenses e aos Efésios, ampliou e aprofundou a ideia de Jesus como
primogénito: Jesus – dizem-nos as referidas cartas – é o primogénito da criação, o verdadeiro
arquétipo segundo o qual Deus formou a criatura-homem. O homem pode ser imagem de Deus, porque
Jesus é Deus e Homem, a verdadeira imagem de Deus e do homem».

[25]
De modo bem mais sintético, o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica explica-o assim:
«Só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem, predestinado
a reproduzir a imagem do Filho de Deus feito homem, que é a perfeita “imagem de Deus invisível”»
(n.º 67).

[26]
Cfr. AG 9-1-1980, n.º 2.

[27]
G. Grisez e Russel Shaw, La Vida Realizada en Cristo, Palabra, Madrid, 2009, p. 230. Talvez
fosse necessário matizar a palavra «perfeito»; no entanto, penso que se entende bem o que os autores
querem afirmar.
[28]
J. Ratzinger, Introdução ao Cristianismo, Princípia, Cascais, 2005, p. 183. (A versão
portuguesa usa a expressão «em prol de». Optei pela expressão «ser para», que se encontra na versão
espanhola e me parece mais percetível.)

[29]
O tema de fundo é deveras interessante: «Adivinha-se já nesta obra [K. Wojtyla, A
Renovação nas Suas Fontes] os terrenos pelos quais circulará mais tarde a ação magisterial de João
Paulo II, bem como as suas grandes linhas mestras. Uma delas, – de forte sabor conciliar […] –, é a
afirmação da unidade e continuidade entre a ordo creationis e a ordo redemptionis no desígnio divino,
plenamente realizado em Cristo, e como consequência, entre a “identidade humana” e a “identidade
cristã” do fiel batizado. Entre ser homem e ser homem cristão não há nem rutura nem uma separação
artificial, mas sim continuidade e progresso em direção à plenitude do
primeiro no segundo» (Antonio Aranda, «La Unidad entre Cristología y Antropología en Juan Pablo
II – Un Análisis del Tema en sus Catorce Encíclicas», in Scripta Theologica, vol. 39 (2007/1),
p. 60. Vale a pena acrescentar que o texto conciliar mais citado nas encíclicas de S. João Paulo II
é a GS, n.º 22; nesse texto, já transcrito nestas páginas, afirma-se que «Cristo, imagem do Pai, revela o
homem ao próprio homem; Cristo uniu-se com a sua Encarnação a todo o homem». Cfr., também, S.
João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 9: «À luz da Revelação, criação significa ao
mesmo tempo início da história da salvação».

[30]
Cfr. AG 28-11-1984, n.º 3.

[31]
É outro dos títulos com que S. João Paulo II designa estas catequeses. O mais exato, contudo,
parece ser A Redenção do Corpo e a Sacramentalidade do Matrimónio. Cfr. AG 28-11-1984, n.º 1.
[32]
Cfr. K. Wojtyla, La Renovación en Sus Fuentes, BAC, vol. 430, Madrid, 1982 (o original
polaco é de 1972), p. 31. Na belíssima intervenção de M. Waldstein no 1.º Simpósio Internacional de
Teologia do Corpo, intitulado Three Kinds of Personalism: St. John of the Cross, Kant, Scheler and
John Paul II, Gaming, Áustria, maio de 2007, o autor afirma a mesma ideia: «Theology of the body is a
catechesis by the Bishop of Rome for the universal Church. Like all magisterial texts, it must be read in
the context of the Church’s whole teaching through the ages and, conversely, the Church’s traditional
teaching must be reread in the light of theology of the body».

[33]
S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 9.

[34]
AG 13-2-1980, n.º 1.

[35]
AG 16-12-1981, n.º 5.
[36]
AG 16-12-1981, n.º 6. (Modifiquei ligeiramente os termos da tradução portuguesa.)

[37]
Cfr. AG 26-9-1979, n.º 2.

[38]
Cfr. a conferência do prof. William Newton, What Exactly is the Redemption of the Body?, no
4.º Simpósio Internacional da Teologia do Corpo, Fátima, 2013. O texto explica de que modos se pode
entender que o corpo do ressuscitado é numericamente o mesmo que teve na vida terrestre. A
explicação clássica defende que o que permite afirmar que o meu corpo atual é o mesmo que aquele
com que nasci (e será o mesmo depois da ressurreição) é que em cada caso o meu corpo tem o mesmo
ato de ser (esse) comunicado pela minha alma. Mesmo aceitando esta hipótese, o professor Newton
sugere que possa haver alguma continuidade material no corpo, mesmo que seja apenas por meio de
uns poucos átomos.

[39]
AG 12-12-1979, n.º 1.
[40]
Insisto que voltarei à nudez sem vergonha uns capítulos mais adiante, para explicar o
«porquê» desse fenómeno das origens.

[41]
Cfr. AG 9-12-1981, n.os 1-4.

[42]
Cfr. E. Burkart e J. Lopes, Vida Cotidiana y Santidad en la Enseñanza de San Josemaría, vol.
2, Rialp, 3.ª ed., Madrid, 2012, p. 164: «A plenitude da vida cristã é a “vida eterna” ou a “vida futura”
[…] e a ressurreição do corpo é parte integrante dela. […] O cristão possui já agora uma antecipação
real dessa vida futura e eterna, que se manifesta no corpo e em todas as realidades materiais da vida
humana. Ao passar do pecado à graça, “ressuscitou com Cristo” (Col 3, 1; cfr. 1 Jo 3, 14), e toda a sua
vida está “escondida com Cristo em Deus” (Col 3, 3; cfr. Ef 2, 5). A “fé diz-nos que uma alma em
estado de graça é verdadeiramente uma alma divinizada; […] Mas essa divinização, pelo influxo da
alma em graça, também se estende ao corpo, como antecipação da ressurreição gloriosa” (S. Josemaria
Escrivá, Carta 24-III-1931, n.º 3)».

[43]
AG 3-2-1982, n.º 4.

[44]
Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.os 705, 708, 720, 734, 1161, 2566, 2572 e 2784.
[45]
AG 12-3-1980, n.º 7.

[46]
Em AG 13-1-1982, n.º 3, S. João Paulo II reafirma essa identidade: «Se no princípio Deus “os
criou homem e mulher” (Gen 1, 27), se nesta dualidade relativa ao corpo prevê também uma unidade
tal que “os dois serão uma só carne” (Gen 2, 24), se ligou esta unidade à bênção da fecundidade, ou
seja, da procriação (cfr. Gen 1, 29), e se agora, falando da futura ressurreição diante dos saduceus,
Cristo explica que “no outro mundo […] não tomarão marido nem mulher” – então é claro que se trata
aqui de um desenvolvimento da verdade sobre o próprio homem. Cristo indica a sua identidade,
embora esta identidade se realize na experiência escatológica de modo diverso da experiência do
“princípio” e da experiência da história. E todavia o homem será sempre o mesmo, tal como saiu das
mãos do seu Criador e Pai».

[47]
S. João Paulo II, carta encíclica Veritatis Splendor, n.º 53. As palavras transcritas são usadas
na encíclica no contexto inverso, isto é, para explicar que quem não aceita a imutabilidade da natureza
humana também não aceita as normas objetivas da moralidade. Ao usá-las em sentido formalmente
simétrico, afirmo exatamente o mesmo que o autor da encíclica.

[48]
S. João Paulo II, carta encíclica Veritatis Splendor, n.º 53.
[49]
AG 26-9-1979, n.º 3.

[50]
AG 26-9-1979, n.º 3.

[51]
AG 3-12-1980, n.º 3.

[52]
Cfr. C. West, Theology of the Body Explained – A Commentary on John Paul II’s Theology of
the Body, Pauline Books & Media, Boston, 2003, p. 126.
[53]
Como a palavra «concupiscência» reaparece continuamente no texto, pode ajudar a clarificar
bem em que consiste a leitura do Catecismo da Igreja Católica, n.º 2515: «Em sentido etimológico,
“concupiscência” pode designar todas as formas veementes de desejo humano. A teologia cristã deu-lhe
o sentido particular de impulso do apetite sensível, contrários aos ditames da razão humana. […]
Procede da desobediência do primeiro pecado. Desregra as faculdades morais do homem e, sem ser
nenhuma falta em si mesma, inclina o homem para cometer pecado».

[54]
AG 2-4-1980, n.º 2.

[55]
AG 8-9-1982, n.º 1. Trata-se de Gen 2, 24: «Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe
para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne».
[56]
Cfr. a magnífica explicação da posição secularista neste terreno na obra de Robert P. George,
Choque de Ortodoxias, Tenacitas, Coimbra, 2008, p. 58.

[57]
S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 6. Tem interesse acrescentar que
essa afirmação remete para obras de vários Padres da Igreja: em concreto, S. Ireneu, S. Gregório de
Nissa e S. Agostinho.

[58]
Man and Woman He Created Them – A Theology of the Body, tradução, introdução e índice
de Michael Waldstein, Pauline Books & Media, Boston, 2006, pp. 19 e 21.
[59]
Cfr. S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 6: «Na segunda descrição da
criação do homem (cfr. Gen 2, 18-25), a linguagem em que se expressa a verdade sobre a criação do
homem e, especialmente, da mulher é diversa; em certo sentido é menos precisa; é – poder-se-ia dizer –
mais descritiva e metafórica, mais próxima da linguagem dos mitos então conhecidos. Todavia, não se
encontra qualquer contradição essencial entre os dois textos».

[60]
Cfr. AG 24-10-1979, n.º 2: «O homem está “só”: isto quer dizer que ele, através da própria
humanidade, através daquilo que ele é, é ao mesmo tempo constituído numa única, exclusiva e
irrepetível relação com o próprio Deus. A definição antropológica contida no texto javista aproxima-se,
por seu lado, daquilo que exprime a definição teológica do homem, que encontramos no primeiro relato
da criação (“Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” [Gen 1, 26])».

[61]
AG 5-3-1980, n.º 3.

[62]
AG 5-3-1980, n.º 3.
[63]
Carl Anderson e José Granados, Called to Love, Doubleday, Nova Iorque, 2009, p. 84.

[64]
AG 30-1-1980, n.º 1.

[65]
O Catecismo da Igreja Católica insiste que a «semelhança» do homem com Deus tem que
ver sobretudo com o estado de graça. A imagem estaria mais relacionada com a sua condição natural,
isto é, com o facto de ter entendimento e vontade. Neste sentido, leia-se, por exemplo, n.º 705:
«Desfigurado pelo pecado e pela morte, o homem permanece “à imagem de Deus”, à imagem do Filho,
mas está “privado da glória de Deus” […], privado da “semelhança”. A promessa feita a Abraão
inaugura a “economia da salvação”, no termo da qual o próprio Filho assumirá “a imagem” […] e
restaurá-la-á na “semelhança” com o Pai, voltando a dar-lhe a glória, o Espírito “que dá a vida”». Cfr.,
também, n.º 2566: «Mesmo depois de, pelo pecado, ter perdido a semelhança com Deus, o homem
continua a ser à imagem do seu Criador».

[66]
É muito interessante o que explica Fulton Sheen, sintetizado por William Newton em
Maryvale Course Book – Marriage as a Sacrament, 2011, p. 108. Este progressivo conhecimento de si
e da esposa também se dá, de alguma maneira, em cada casal: «Then, seeing his wife is now a mother,
the husband finds new depths in his wife and vice-versa. This then matures into the mystery of
parenting».

Uma vez mais, estamos diante de um conceito apenas parcialmente intuitivo. Vale a pena ter
[67]
em conta um claro resumo do conceito, realizado por dois moralistas, com base na análise de Karol
Wojtyla em Pessoa e Ação: «A ideia da autodeterminação expressa fielmente, a meu ver, a essência do
ato livre. Diz, com efeito, que em cada ação livre sou eu (e não outra pessoa ou uma necessidade
interna) quem decide ou determina, e que, além disso, decido ou me determino acerca
de mim mesmo. O primeiro aspeto (sou eu quem decide, e não outro em meu lugar) é o específico do
próprio conceito de liberdade. Mas o segundo não é menos importante: em cada ação livre, mesmo
quando se trate de uma ação que incide sobre outra pessoa ou sobre uma matéria externa, decido sobre
mim próprio, modifico e forjo o meu modo de ser pessoa» (Colom e A. Rodríguez Luño, Elegidos en
Cristo Para Ser Santos – Curso de Teología Moral Fundamental, Palabra, 1.ª ed., Madrid, 2001, p.
273.

[68]
AG 24-10-1979, n.º 2. A tradução portuguesa usa a expressão «companheiro do Absoluto».
Optei por seguir tanto a tradução espanhola como a inglesa que, em minha opinião, deveria manter-se
na portuguesa, porque é uma expressão específica do Papa. É também minha opinião que, querendo
traduzi-la, talvez fosse melhor optar por «aliado» ou «colaborador» de Deus.
No relato do Génesis, o homem recebe o mandato de trabalhar e guardar o jardim onde fora
colocado. Os verbos usados no original – explica um dos manuais que apresenta um estudo introdutório
sobre o Génesis – «trazem à cabeça, primeiro, a ideia de uma atividade real e livre, mas na dependência
de Deus (o verbo é utilizado para indicar um serviço que se presta a outro); e depois, a ideia de um
cuidado assíduo, atento e responsável, sobre uma posse alheia ou não adquirida definitivamente» (M.
A. Tábet, Introducción al Antiguo Testamento, vol. 1: «Pentateuco y Libros Históricos», Palabra,
Madrid, 2004, p. 104). Comparando este relato com outras narrações extrabíblicas da antiga cultura do
Médio Oriente, além do caráter mitológico e politeísta destas, encontramos, nalgum caso, uma
referência ao trabalho do homem, mas com uma enorme carga pessimista: no poema mesopotâmico
Enuma Elish, um dos deuses decide criar o homem para que este trabalhe em vez das divindades, que
assim poderiam descansar (cfr. ibid, p. 95). Não existe, por conseguinte, a ideia bíblica de que o
homem é colaborador de Deus.
De qualquer maneira, como em tantas outras comparações que se possam fazer, a palavra
partner tem os seus limites. O homem nunca está em pé de igualdade com Deus. A isto se referia o
cardeal Ratzinger ao escrever, num artigo de 1988: «Quando a relação do homem com Deus, quando a
abertura da alma para Deus se diz com a palavra “fé”, então exprimimos que na relação do eu humano
com o Tu divino não desaparece a enorme distância entre o Criador e a criatura. Significa isso que o
modelo de “parceria”, que hoje nos diz muito, não vale na relação com Deus, porque não acentua
suficientemente a grandeza de Deus e a Sua misteriosa ação em nós» (J. Ratzinger, Credo Para Hoje,
Editorial Franciscana, Braga, 2007, pp. 64-65.)
[69]
Sobre o facto de a liberdade admitir graus de expressão, ajuda ler a carta encíclica Veritatis
Splendor, de S. João Paulo II. Leia-se, em concreto, os n.os 85 e 87: «Cristo crucificado revela o sentido
autêntico da liberdade, vive-o em plenitude no total dom de Si e chama os discípulos a tomar parte na
Sua própria liberdade. […] Deste modo, a contemplação de Jesus crucificado é a “via-mestra” pela qual
a Igreja deve caminhar cada dia se quiser compreender todo o sentido da liberdade: o dom de si no
serviço a Deus e aos irmãos. Mais: a comunhão com o Senhor crucificado e ressuscitado é a fonte
inesgotável, onde a Igreja se sacia incessantemente para viver na liberdade, doar-se e servir.» Na sua
obra Amor e Responsabilidade, Karol Wojtyla, depois de recordar que o ser humano deve encaminhar-
se para a plenitude do ser e que esta se obtém mediante o amor, afirma: «Ora o amor mais completo
exprime-se precisamente no dom de si, no facto de dar em total propriedade este “eu” inalienável e
incomunicável» (Amor e Responsabilidade, Lisboa, 1999, Rei dos Livros, p. 87). (Os sublinhados são
meus.) Ser livres com a liberdade do dom é, portanto, ser maximamente livres, ser autenticamente
livres.

[70]
AG 24-10-1979, n.º 3.
[71]
AG 24-10-1979, n.º 3.
[72]
AG 14-5-1980, n.º 3. (O sublinhado é meu.)

[73]
Cfr., por exemplo, S. Tomás de Aquino, Suma Teológica I.ª, q. 91, a. 3, ad. 3, onde se
justifica que o corpo do homem, pelo facto de estar em posição vertical, manifesta que o homem tem
uma natureza superior à dos animais. Não interessa agora o tipo de argumentação, mas sim recordar
que a excelência do corpo humano faz parte do ensinamento dos teólogos desde há vários séculos. S.
João Paulo II ressalta a excelência do corpo pelo que o homem «faz» com ele. Esta diferente
abordagem é melhor entendida com a leitura da obra de K. Wojtyla Pessoa e Ação.

[74]
AG 31-10-1979, n.º 1.
[75]
S. João Paulo II insiste nesta ideia na carta encíclica Laborem Exercens. Logo na
introdução, escreve: «O trabalho é uma das características que distinguem o homem do resto das
criaturas, cuja atividade, relacionada com a manutenção da própria vida, não se pode chamar
trabalho. […] Só o homem tem capacidade para o trabalho e só o homem o realiza completando com
ele a sua existência sobre a terra». Todo o capítulo 2 da encíclica é um comentário a esta passagem
do Génesis. Por exemplo, no n.º 6, diz-se: «O homem deve submeter a terra, deve dominá-la, porque,
como “imagem de Deus”, é uma pessoa; isto é, um ser dotado de subjetividade, capaz de agir de
maneira programada e racional, capaz de decidir por si próprio e de realizar-se a si mesmo. É como
pessoa, pois, que o homem é sujeito do trabalho». (O sublinhado é meu.)

[76]
AG 31-10-1979, n.º 2.

[77]
A doutrina da unidade do corpo e da alma no ser humano foi definida no IV Concílio de
Latrão, em 1215, contra os albigenses e os cátaros (cfr. Denzinger-Hünermann, n.º 800) e no
Concílio Vaticano I, em 1870, na constituição dogmática Dei Filius (cfr. Denzinger-Hünermann, n.º
3002). É certo que o Magistério não se alongou em concretizar essa unidade, talvez mais preocupado,
sobretudo no Concílio Vaticano I, em explicitar a parte espiritual do homem. Vale a pena ler também a
constituição pastoral Gaudium et Spes, n.º 14, do Concílio Vaticano II, sobre a constituição do homem.
Aí, a dimensão corporal adquire um maior relevo. O que chama a atenção, pois, é que a doutrina não é
nova; é um dos muitos exemplos de como é necessário aprofundar no conteúdo doutrinal de muitas
verdades contidas na Revelação, para extrair delas a riqueza que contêm.

[78]
A primeira formulação filosófica e sistemática consistente sobre esta possibilidade de haver
uma certa visibilidade (uma imagem) do invisível é da autoria de S. Agostinho. Cfr. Oitenta e Três
Questões Diversas, q. 74.
[79]
Cfr. P. Colosi, «A Response to Waldstein – A Person that Expresses a Body: Max Scheler’s
Impact on John Paul II’s Theology of the Body», in 1.º Simpósio Internacional de Teologia do Corpo,
Gaming, Áustria, maio de 2007.

[80]
G. Grisez, em The Way of The Lord Jesus, vol. 2, capítulo 9, E, 6, e, faz notar também as
consequências que tem para a fé do cristão o facto de se considerar como boa prática tratar o corpo
como um instrumento: «When a Christian habitually degrades his or her own body and the bodies of
others to the status of mere sex objects and instruments of satisfaction, he or she tends to carry this
attitude over into other relationships, eventually depersonalizing everyone’s body and the human body
as such. Once depersonalized, the body seems to lack personal significance, to be only an instrument,
perhaps dispensable and, if so, better dispensed with. Gradually this implicit acceptance of body-soul
dualism makes it difficult to see why one should hope for one’s own bodily resurrection, centre one’s
faith on Jesus’ resurrection, regard his bodily presence in the Eucharist as real, consider his virgin birth
significant, or even regard as meaningful the teaching that original sin is transmitted by propagation.
Indeed, once the body is depersonalized, it no longer seems credible – unless one supposes that God
himself is a mere object and instrument – that a bodily human individual could be divine, that “the
Word became flesh and lived among us” (Jn 1.14), and that one should live in the hope of seeing and
touching “what we have seen with our eyes, what we have looked at and touched with our hands” (1 Jn
1.1). Thus, when sexual immorality becomes an accepted part of a Christian’s life, it subverts the
incarnationalism and sacramentalism at the heart of Catholic faith. More than that, it subverts faith in
God the creator. For insofar as sense satisfaction is so highly valued that one is willing to violate
intelligible goods for its sake, one tends to regard only two realities as important: the conscious
experience in which that satisfaction is obtained and the instruments – the alienated body and
desacralized world – used to bring about the satisfaction. Everything transcending immediate
experience, including truth and virtue and God himself, begins to seem less real, perhaps completely
irrelevant and even unreal». (O sublinhado é meu.)

[81]
Bento XVI, carta encíclica Deus Caritas est, n.º 5. (O itálico é meu.) Cfr., também, sobre a
importância deste tema em S. João Paulo II, a carta encíclica Veritatis Splendor, n.º 48.

[82]
Bento XVI, Discurso ao Parlamento Federal, Berlim, 22-9-2011. (O itálico é meu.)
[83]
Bento XVI, Discurso aos Participantes num Encontro, Pontifício Instituto João Paulo II
para os Estudos sobre Matrimónio e Família, 13-5-2011. (O itálico é meu.) Na já mencionada obra de
Carl Anderson e José Granados, Called to Love, Doubleday, Nova Iorque, 2009, os autores exploram o
«significado filial do corpo», expressão que, como tal, não aparece nas catequeses de S. João Paulo II.
Nas pp. 168-169, lemos: «O corpo tem um triplo padrão. Em primeiro lugar, o corpo é filial, porque
representa a solidão do homem diante de Deus e a abertura do homem a Ele; o corpo é o lugar de
encontro do homem com Deus Pai». A seguir, falam dos significados esponsal e procriativo do corpo,
sobre os quais nos haveremos de deter, e concluem: «O corpo, portanto, traz um chamamento a ser uma
criança, um esposo, e um progenitor, e um caminho para percorrer este chamamento». Na minha
opinião, trata-se de uma bonita explicação, embora me pareça que é um dos aspetos a ser aprofundados.
Não está tão delineado no seu conteúdo como o significado esponsal do corpo.

[84]
Robert P. George, Choque de Ortodoxias, Tenacitas, Coimbra, 2008, p. 102.

[85]
Papa Francisco, AG 15-4-2015. Nessa mesma audiência, acrescenta ainda o Papa: «Ainda
não entendemos em profundidade aquilo que nos pode proporcionar o génio feminino, o que a mulher
pode oferecer à sociedade e também a nós: a mulher sabe ver tudo com outros olhos, que completam o
pensamento dos homens».

[86]
Cfr. Papa Francisco, AG 22-4-2015: «A mulher não é uma “réplica” do homem; ela deriva
diretamente do gesto criador de Deus. A imagem da “costela” não exprime de modo algum uma
inferioridade ou subordinação mas, pelo contrário, que o homem e a mulher são da mesma substância,
são complementares, e que também possuem esta reciprocidade».
[87]
AG 7-11-1979, n.º 4.

[88]
Cfr. AG 12-3-1980, n.º 6.

[89]
TOB 110, n.º 3. É de notar que a edição portuguesa não incorporou quatro catequeses que
estavam preparadas mas que, por razões variadas, não foram usadas por S. João Paulo II. Assim sendo,
não fazem parte do seu magistério. No entanto, como de facto ajudam a entender o seu pensamento,
sempre que me pareceu oportuno recorri a essas catequeses, que foram publicadas, por exemplo, tanto
na edição espanhola da Palabra como na edição de língua inglesa de Waldstein, 2006. Escolhi a
numeração da edição de Waldstein, por ser mais conhecida. Por conseguinte, a partir de agora, sempre
que aparecer «TOB» seguido de um número, o leitor saberá que se trata de uma catequese não
pronunciada.

[90]
AG 21-11-1979, n.º 1. Cfr. K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa,
1999, p. 38: «O homem não tem as propriedades que a mulher possui nem vice-versa. Por conseguinte,
cada um deles pode não só completar as próprias com as da pessoa do sexo oposto, mas pode às vezes
sentir vivamente a necessidade dum semelhante complemento. Se o homem se examinasse bastante em
profundidade através desta necessidade, compreenderia mais facilmente os próprios limites e a própria
insuficiência, e até, indiretamente, o que a filosofia chama a contingência do ser (contingentia)».
Esta profunda reflexão pode contribuir para que cada um dos sexos seja mais sensível à riqueza
presente no outro, sem avaliar as diferenças quase como excentricidades. Uma boa caricatura de uma
visão deformada da mulher do ponto de vista masculino encontramo-la na boca do professor Higgens,
no esplêndido e conhecido filme de G. Cukor My Fair Lady, nomeadamente na canção Why Can’t a
Woman Be More Like a Man?
Obviamente, estas reflexões terão de ser completadas no capítulo dedicado ao celibato
apostólico; mas podemos adiantar desde já que, no caso de alguém que se comprometeu
vocacionalmente com o celibato pelo Reino dos Céus, para «experimentar» essa contingência deverá
distinguir cuidadosamente entre o que tem uma base de verdade (nenhum de nós se completa a si
mesmo sozinho) e o que poderia ser, no seu caso, uma traição ao projeto de vida que foi assumido. Essa
insuficiência pessoal é, em tais casos, complementada por um particular amor de Deus. Cristo mostrou
e disse que, com Ele, a tal insuficiência passou a poder ser satisfeita por uma particular entrega a Deus.
[91]
AG 21-11-1979, n.º 1.

[92]
O exemplo não se destina a insultar quem quer que seja. Serve apenas para ilustrar que não é
sensato fazer caso omisso dos dados do corpo.
[93]
Bento XVI, Discurso na Basílica de S. João de Latrão, na abertura do congresso eclesial da
diocese de Roma «Família e Comunidade Cristã – Formação da Pessoa e Transmissão da Fé», 7-06-
2005.

[94]
Cfr. S. João Paulo II, Carta às Mulheres, n.os 10 e 11.

[95]
São interessantes as observações de Von Hildebrand, sintetizadas por William Newton em
Maryvale Course Book – Marriage as a Sacrament, 2011, p. 104: «One important consequence of
emphasizing the “I”-“thou” character of conjugal love is that it gives credibility to the impossibility of
having same-sex marriage […]. Hildebrand calls male and female “two types” of mankind […]. As two
different types, they can be an “I” and a “thou” and in this way profoundly encounter each other,
because they truly encounter another (another type of humanity). Two people of the same sex do not
encounter another type in encountering each other and so cannot form an “I” and “thou” partnership. So
such persons cannot possibly say they love each other with conjugal love, so nor can they marry».

[96]
Cfr., para uma leitura rápida, http://www.aleteia.org/pt/saude/noticias/ menino-de2-anos-
obrigado-a-se-transformar-em-menina-uma-tortura-documentada58681380170 62912. Também se
pode ler o livro de John Colapinto As Nature Made Him – The Boy Who Was Raised as a Girl.
[97]
Papa Francisco, AG 15-4-2015. Cfr. carta encíclica Laudato Si’, n.º 155.
[98]
S. Agostinho, De Genesi ad Litteram, capítulo V.

[99]
S. Agostinho, De Genesi ad Litteram, capítulo III.

[100]
S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 6.
[101]
Jutta Burggraf, entrada «Género», Léxico da Família, Conselho Pontifício da Família,
Princípia, Cascais, 2010.

[102]
S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 8.

[103]
Cfr. Bento XVI, carta encíclica Deus Caritas est, n.º 2: «Em toda esta gama de significados,
porém, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre
ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor
por excelência, de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se
ofuscam».

[104]
Bento XVI, Jesus de Nazaré, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2007, p. 187.
[105]
S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 8.

[106]
AG 2-12-1981, n.º 4. Cfr., também, o n.º 1 da mesma AG, bem como AG 13-1-1982, n.º 3.
S. Tomás de Aquino defende que, na ressurreição, cada um ressuscitará com o seu sexo (cfr. Suma
Teológica, suplemento, q. 81, a. 3).

[107]
Cfr. AG 7-4-1982, n.º 1.

[108]
Vale a pena ler S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.os 15-16, em que se
mostra como reagem as mulheres do Evangelho à pregação de Jesus. No n.º 16, o autor escreve:
«Desde o início da missão de Cristo, a mulher demonstra para com Ele e o seu mistério uma
sensibilidade especial que corresponde a uma característica da sua feminilidade».

[109]
AG 8-9-1982, n.º 1.

[110]
A propósito do sentido em que a expressão «uma só carne» inclui a relação conjugal, leia-se,
por exemplo, A. Sarmiento, El Matrimonio Cristiano, Eunsa, Pamplona, 1997, pp. 80-81. M. A. Tábet,
na sua obra Introducción al Antiguo Testamento, vol. 1: «Pentateuco y Libros Históricos», Palabra, 2.ª
ed., Madrid, 2008, p. 106, insiste apenas em que a expressão indica a força do vínculo, mais firme do
que os vínculos de sangue com os pais. No entanto, André Wénin, em D’Adam à Abraham ou les
Errances de l’Humain, Cerf, Paris, 2007, p. 83, sugere que «uma só carne» faria referência a um novo
ser, à criança; e, em nota de pé de página, cita outro autor que mantém que, no Antigo Testamento, o
termo hebraico basar («carne», em português) não designa nunca a união carnal dos esposos. Não me é
possível resolver aqui a questão. Mas, mesmo que a hipótese de Wénin seja correta, o facto de «uma só
carne» se referir à criança gerada indicaria implicitamente, também, o meio pelo qual ela é gerada – o
ato conjugal.

[111]
AG 22-10-1980, n.º 2.
[112]
De um modo muito sintético, dizia Paulo VI no Discurso às Equipas de Nossa Senhora, 4-5-
1970: «A dualidade de sexos foi querida por Deus, para que o homem e a mulher conjuntamente sejam
imagem de Deus e, como Ele, uma fonte de vida». Bem mais explícito é S. João Paulo II, na sua carta
apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 7: «O facto de o homem, criado como homem e mulher, ser imagem
de Deus não significa apenas que cada um deles, individualmente, é semelhante a Deus, enquanto ser
racional e livre; significa também que o homem e a mulher, criados como “unidade dos dois” na
comum humanidade, são chamados a viver uma comunhão de amor e, desse modo, a refletir no mundo
a comunhão de amor que é própria de Deus, pela qual as três Pessoas se amam no íntimo mistério da
única vida divina».

[113]
Catecismo da Igreja Católica, n.º 255.

[114]
AG 6-2-1980, n.º 6.

[115]
AG 12-12-1979, n.º 3.

[116]
Cfr. AG 12-12-1979, n.º 4.

[117]
Cfr. AG 30-1-1980, n.º 5; AG 6-2-1980, n.os 2 e 6; AG 13-2-1980, n.º 3.

[118]
A este propósito, leia-se o seguinte trecho de K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei
dos Livros, Lisboa, 1999, p. 173: «Sabemos que, subjetivamente, a vergonha é um sentimento
negativo que se assemelha um pouco ao temor. Porque a vergonha é o temor ligado aos valores
sexuais».
[119]
AG 12-12-1979, n.º 5.

[120]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 176.

[121]
Dietrich Von Hildebrand, El Corazón, Palabra, Madrid, 1996, pp. 75-76. Um novo
exemplo de atos físicos iguais mas com significados diferentes encontramo-lo em K. Wojtyla, Amor e
Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pp. 194-195: «Sem a continência, as energias naturais
da sensualidade, e as da afetividade atraída para a sua órbita, tornar-se-ão unicamente “matéria” para o
egoísmo dos sentidos, ou eventualmente dos sentimentos […] Em certo sentido, este perigo diz respeito
ao amor; com efeito, os mesmos materiais podem servir para construir o verdadeiro amor, união de
pessoas, e o amor aparente, que não é senão um véu que dissimula a atitude interior de prazer e
egoísmo contrário ao verdadeiro amor». (O itálico é meu.)

[122]
Cfr. Ronald Knox, O Credo, Aster, Lisboa, 1966, p. 114.
[123]
Cfr. S. Ireneu, Adv. Haer., III, 22, 4. Cfr. Pedro Langa, «Antropología Patrística en los
Relatos de la Creación», in Masculinidad y Feminidad en la Patrística, Servicio de Publicaciones de la
Universidad de Navarra, S. A., Pamplona, 1989, pp. 218-219 Neste artigo, o autor refere que a mesma
tese, de Adão e Eva terem sido criados numa idade infantil, foi defendida por
S. Teófilo de Antioquia e Procópio de Gaza. Desconheço, no entanto, se algum desses autores refere
explicitamente a inocência infantil como causa da não-vergonha.

[124]
AG 19-12-1979, n.º 2. (O sublinhado é meu.) Na versão oficial, em vez de «carência», é
utilizada a palavra «insuficiência», que me parece ficar aquém do que S. João Paulo II quis dizer. A
versão espanhola usa carencia e a inglesa lack of. Por seu turno, suponho que a palavra «impudência» é
desconhecida para a maior parte dos leitores. Por isso, permiti-me acrescentar entre parêntesis o
sinónimo mais familiar: «desvergonha».

[125]
AG 2-1-1980, n.º 1.

[126]
Cfr. Carl Anderson e José Granados, Called to Love, Doubleday, Nova Iorque, 2009, p.
93: «Viver na nudez original significa simplesmente aprender a captar a imago Dei com os olhos do
Criador, que sempre vê a união do corpo com a totalidade da pessoa que este expressa».
[127]
AG 12-9-1979, n.º 5.

[128]
S. João Paulo II, carta encíclica Evangelium Vitae, n.º 35.

[129]
A palavra «comunhão» expressa para o então jovem K. Wojtyla uma união muito peculiar:
trata-se de uma união que implica o dom de si. Ao falar da Igreja, explica: «Assim entendida, a
“communio” constitui a comum e recíproca pertença ao Corpo Místico de Cristo, em que todos são
“membros entre si” (K. Wojtyla, La Renovación en Sus Fuentes, BAC, vol. 430, Madrid, 1982, p.
96). E, mais adiante, na mesma obra, insiste: «Da mesma maneira que as pessoas se encontram a si
mesmas mediante o dom de si, através das relações interpessoais que chamamos communio, assim
também cada uma das “partes” encontra-se e confirma-se a si mesma na comunidade da Igreja, na
medida em que todas “levam os seus próprios dons às outras partes” e a toda a Igreja. […] Através do
dom que cada um faz de si, o bem de uma das partes converte-se de alguma maneira no bem de todos
(ib., pp. 108-109)». É neste sentido que S. João Paulo II fala da communio entre Adão e Eva: o bem
dela pertence-lhe a ele pela própria doação dela, e o bem dele pertence-lhe a ela porque ele se lhe
entregou sem reservas.

[130]
AG 2-1-1980, n.º 1.
[131]
Cfr., uma vez mais, Catecismo da Igreja Católica, n.os 705, 708, 720, 734, 1161, 2566, 2572
e 2784, em que se insiste que o pecado quebra a semelhança com Deus, e o perdão e a graça recuperam
essa semelhança.

[132]
Na minha opinião, não se trata apenas do risco de apropriação. Pensemos no corpo de um
doente, de alguém disforme ou de uma pessoa velha. A nudez não produz qualquer atração, mas, pelo
contrário, talvez até repulsa. Nestas situações, a roupa protege a pessoa da repulsa alheia, permite que
dela se aproximem mais facilmente. A reação de repulsa não deixa de ser igualmente o fruto de uma
«coisificação» do corpo, mesmo que em sentido inverso ao da atração instrumental: não se vê alguém,
mas apenas algo que me incomoda e do qual desejo afastar-me.

[133]
Cfr. C. West, Theology of the Body Explained – A Commentary on John Paul II’s Theology
of the Body, Pauline Books & Media, Boston, 2003, pp. 219-220.

[134]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 164. Mais adiante, o
autor acrescenta: «Esta inalienabilidade objetiva da pessoa e a sua inviolabilidade encontram expressão
precisamente no fenómeno do pudor sexual, que não é senão um reflexo natural da essência da pessoa»
(p. 167).
[135]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 167. (O itálico é
meu.)
[136]
Cfr. K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 172.

[137]
J. Ratzinger, Via Sacra, Sexta-feira Santa de 2005, décima estação.

[138]
Bento XVI, Carta para a Proclamação de um Ano Sacerdotal por Ocasião do 150.º
Aniversário do Dies Natalis do Santo Cura de Ars, 16-VI-2009.
[139]
Vale a pena ler ou ouvir a magnífica conferência de William Newton sobre conceitos-chave
da teologia do corpo «Rereading Theology of the Body Through the Spousal Meaning of the Body», in
3.º Simpósio Internacional de Teologia do Corpo, Londres, 2011. Na conferência, o Prof. Newton
mostra como o conjunto das catequeses pode ser entendido com base neste conceito: «The solution I
would like to offer here is to read the Theology of the Body in the light of a single concept – the key
concept of the Theology of the Body – namely the spousal meaning of the body. This is the key that
unlocks the text and makes sense of the other numerous concepts in the catechesis». Cfr.
http://tobinternationalsymposia.com/wp-content/uploads/2011/11/Dr.-William-Newton.mp3.
Também o índice da tradução de Waldstein refere que o conceito é repetido 117 vezes ao longo
das catequeses (entrada «Body», p. 682). E, na introdução da sua obra, Waldstein afirma que o
significado esponsal do corpo «é o conceito central da teologia do corpo tomada no seu todo» (Man
and Woman He Created Them – A Theology of the Body, tradução, introdução e índice de Michael
Waldstein, Pauline Books & Media, Boston, 2006, p. 116).
[140]
AG 16-1-1980, n.º 1.

[141]
AG 9-1-1980, n.º 5. Na versão portuguesa, usa-se a expressão «dar criador» em vez de
«doação criadora», a qual me parece literariamente mais elegante e por isso a adotei.

[142]
Concílio Vaticano II, constituição pastoral Gaudium et Spes, n.º 24.

[143]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 87.
[144]
S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 7.

[145]
AG 16-1-1980, n.º 3.

[146]
Rocco Buttilione, El Pensamiento de K. Wojtyla, Encuentro, Madrid, 1992, p. 68.

[147]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 31.
[148]
Bento XVI, carta encíclica Caritas in Veritate, n.º 1.

[149]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 18. (O sublinhado é
meu.) Na página anterior, o autor explica como os fins da pessoa que é objeto da ação devem ser
objetivamente bons: quem atua deve pensar nos bens objetivos da pessoa, mesmo que os não possa
impor, pelo que acabámos de transcrever. Por exemplo, se a pessoa tem por fim suicidar-se, eu não
posso facilitar-lhe o objetivo. Não seria de facto uma «ajuda».

[150]
Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.º 2424.

[151]
B. Paulo VI, carta encíclica Populorum Progressio, n.º 59.
[152]
Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.º 2434. Cfr., também, Pontifício Conselho Justiça e
Paz, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n.º 281: «A relação entre trabalho e capital expressa-se
também através da participação dos trabalhadores na propriedade, na gestão e nos seus frutos. É esta
uma exigência descurada demasiado frequentemente, que, pelo contrário, deve ser valorizada ao
máximo: poder-se-á falar de socialização somente quando fica assegurada a subjetividade da sociedade,
quer dizer, quando “cada um dos que a compõem tiver garantido com base no próprio trabalho o pleno
direito a considerar-se coproprietário do grande ‘banco’ de trabalho em que se empenha juntamente
com todos os demais”».
São particularmente clarividentes as palavras de S. João Paulo II presentes na carta encíclica
Laborem Exercens, n.º 15: «Em geral o homem que trabalha deseja não só receber a remuneração
devida pelo seu trabalho, mas deseja também que seja tomada em consideração, no mesmo processo de
produção, a possibilidade de que ele, ao trabalhar, ainda que seja numa propriedade comum, esteja
cônscio de trabalhar “por sua conta”. Esta consciência fica nele abafada, ao encontrar-se num sistema
de centralização burocrática excessiva, na qual o trabalhador se vê sobretudo como peça duma
engrenagem num grande mecanismo movido de cima; e ainda – por várias razões – mais como um
simples instrumento de produção do que como um verdadeiro sujeito do trabalho, dotado de iniciativa
própria.
O ensino da Igreja exprimiu sempre a firme e profunda convicção de que o trabalho humano não
diz respeito simplesmente à economia, mas implica também, e sobretudo, valores pessoais. O próprio
sistema económico e o processo de produção auferem vantagens precisamente do facto de tais valores
pessoais serem respeitados. No pensamento de S. Tomás de Aquino, é sobretudo esta razão que depõe a
favor da propriedade privada dos meios de produção. […] o argumento personalista, contudo, não
perde a sua força, nem ao nível dos princípios, nem no campo prático. Toda e qualquer socialização
dos meios de produção, para ser racional e frutuosa, deve ter este argumento em consideração. Deve
fazer-se todo o possível para que o homem, mesmo num tal sistema, possa conservar a consciência de
trabalhar “por sua própria conta”».
[153]153
Cfr. Josef Pieper, Virtudes Fundamentales, Rialp, Madrid, 1976, p. 111§1.

[154]
Em Amor e Responsabilidade, distingue-se «norma personalista» de «caridade». «A norma
personalista é um princípio (norma fundamental) que constitui a base do mandamento do amor» (p. 31).
Para amar alguém, devo seguir a norma personalista, e nunca a instrumentalização. Assim, a norma é
como que o habitat onde o amor ou caridade se exercita: se eu me perguntar que devo fazer agora, com
esta pessoa, para viver de acordo com a norma personalista, obterei como resposta orientações
concretas para lhe manifestar amor. Ou, também, se a quiser amar mais, posso questionar-me sobre
como respeitar a norma personalista aqui e agora, e descobrirei meios concretos para um amor mais
cuidado.

[155]
Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.os 2416-2418, sobre a atitude correta para com os
animais. Não é certamente a mesma que se tem para com objetos inertes, ainda que, para o raciocínio
que segui, a diferença não seja excessivamente relevante: mesmo podendo ser instrumentalizados, há
meios que devem ser tratados com maior cuidado. «No caso dos objetos [leia-se: dos seres que estão no
mundo sensível e que não são seres humanos], é suficiente que o homem os utilize de acordo com as
suas características imanentes, respeitando a beleza e o bem neles contidos, sem devastações ou
crueldades inúteis» (R. Buttiglione, El Pensamiento de K. Wojtyla, Encuentro, Madrid, 1992, p. 111).
Cfr. um importante matiz assinalado pelo Papa Francisco, carta encíclica Laudato Si’, n.º 69. As
palavras do Papa significam que a instrumentalização das outras criaturas não pode ser arbitrária, mas
isso não impede a sua racional instrumentalização.
[156]
Bento XVI, carta encíclica Deus Caritas est, n.º 32. Cfr. também, Papa Francisco,
exortação apostólica Evangelii Gaudium, n.º 14: «Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os
cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova
obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um
banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas “por atração”». Cfr., igualmente, n.os
171-172.

[157]
Bento XVI, Discurso à Cúria Romana, 22-12-2011.

[158]
Designam-se assim os encontros internacionais em Roma, durante a Semana Santa, de
muitos jovens, sobretudo universitários, dos cinco continentes. Na sua origem, em 1968, foi
impulsionado diretamente por S. Josemaria Escrivá, fundador do Opus Dei. Durante vários anos,
enquanto o permitiu a saúde de S. João Paulo II, na tarde do Domingo de Páscoa costumava haver um
encontro informal no Cortile di San Damaso, em pleno Vaticano, onde os milhares de jovens reunidos
cantavam ao Papa, davam testemunhos da evangelização em todas as partes do mundo, etc. No fim, S.
João Paulo II costumava dirigir umas breves palavras reflexivas e de despedida.
[159]
S. João Paulo II, Encontro com o UNIV no Cortile di San Damaso, 19-4-1987. Numa das
questões da Suma Teológica, S. Tomás pergunta se a caridade pode aumentar infinitamente, sem
limite. E a resposta é afirmativa: tanto pela caridade em si (que é participação da caridade infinita
que é o Espírito Santo), como pela causa do aumento (a potência infinita de Deus), como ainda – e é
o que nos interessa para entender melhor a resposta de S. João Paulo II – por parte do sujeito, da
pessoa que ama. Porquê? «Porque, na medida em que a caridade aumenta, aumenta sempre mais a
capacidade para um crescimento ulterior. Por isso, concluímos que não é possível estabelecer
nenhum limite ao aumento da caridade nesta vida» (Suma Teológica,
II-II.ae, q. 24, a. 7). Portanto, quanto mais amamos (e nos damos), mais aptos ficamos para amar e
dar mais. Ao amar, não só não perdemos nada como enriquecemos a capacidade de continuar a amar.

[160]
Cfr. Concílio Vaticano II, constituição pastoral Gaudium et Spes, n.º 24.

[161]
Cfr. AG 2-1-1980, n.º 2.

[162]
Cfr. S. João Paulo II, carta encíclica Redemptoris Mater, n.º 37. O Papa afirma que o
Magnificat de Nossa Senhora «proclama a não ofuscada verdade acerca de Deus: O Deus santo e
omnipotente, que desde o princípio é a fonte de todas as dádivas, Aquele que “fez grandes coisas” nela,
Maria, assim como em todo o universo. Ao criar, Deus dá a existência a todas as realidades; e, ao criar
o homem, dá-lhe a dignidade da imagem e semelhança consigo, de modo singular em relação a todas as
demais criaturas terrestres. Não se detendo na sua vontade de doação, apesar do pecado do homem,
Deus dá-se no Filho: “Amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito” (Jo 3, 16). Maria é a
primeira testemunha desta verdade maravilhosa, que se realizará plenamente mediante “as obras e os
ensinamentos” (Act 1, 1) do seu Filho e, definitivamente, por meio da sua Cruz e Ressurreição». (O
sublinhado é meu.)
[163]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 86.

[164]
E. Burkhart e J. Lopes, Vida Cotidiana y Santidad en la Enseñanza de San Josemaría, vol.
2, Rialp, Madrid, 2011, pp. 229-230.

[165]
E. Burkhart e J. Lopes, Vida Cotidiana y Santidad en la Enseñanza de San Josemaría, vol.
2, Rialp, Madrid 2011, p. 230.

[166]
Conselho Pontifício para a Pastoral da Saúde, Carta dos Profissionais da Saúde, n.º 86. Cfr.,
também, n.º 88: «Do ponto de vista ético, nem todos os órgãos podem ser objeto de doação.
Encontram-se excluídos o encéfalo e as gónadas, que garantem, respetivamente, a identidade e a função
reprodutora do indivíduo. Trata-se de órgãos que consubstanciam o caráter único e inalienável do
indivíduo que a medicina tem, aliás, por missão proteger».

[167]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 87.

[168]
AG 16-1-1980, n.º 5.
[169]
Maxence Van Der Meersh, Corpos e Almas, Minerva, 5.ª ed., Lisboa, 1970, p. 480.

[170]
Peter Colosi, «A Response to Waldstein – A Person That Expresses a Body: Max Scheler’s
Impact on John Paul II’s Theology of the Body», in 1.º Simpósio Internacional de Teologia do Corpo,
Gaming, Áustria, maio de 2007.

[171]
Catecismo da Igreja Católica, n.º 516.

[172]
No comentário a um ponto da constituição dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II,
Karol Wojtyla explicava que «a revelação de si mesmo e a vontade de salvar o homem formam, como
se vê, um ato único da parte de Deus» (K. Wojtyla, La Renovación en Sus Fuentes, BAC, vol. 430,
Madrid, 1982, p. 44.) Na Dei Verbum, n.º 2, lemos: «Em virtude desta revelação, Deus invisível (cfr.
Col 1, 15; 1 Tim 1, 17), na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos (cfr. Ex 33, 11; Jo 15,
14-15) e convive com eles (cfr. Bar 3, 38), para os convidar e admitir à comunhão com Ele». (O itálico
é meu.)
[173]
Bento XVI, carta encíclica Deus Caritas est, n.º 7.

[174]
Bento XVI, Mensagem para a Quaresma, 2007, n.º 4.

[175]
É muito interessante a «acusação» feita por Waldstein a M. Scheler de apresentar um
personalismo antitrinitário. Precisamente porque Scheler defenderia que a pessoa humana só tem de
doar-se, nada deve esperar de fora de si própria, nem sequer a recompensa eterna. Cfr. M.
Waldstein, «Three Kinds of Personalism – St. John of the Cross, Kant, Scheler and John Paul II», in 1.º
Simpósio Internacional de Teologia do Corpo, Gaming, Áustria, maio de 2007. Cfr., também, a
explicação dada na introdução de Man and Woman He Created Them – A Theology of the Body,
tradução, introdução e índice de Michael Waldstein, Pauline Books & Media, Boston, 2006, p. 73.

[176]
Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.os 2296 e 2301. Leia-se, também, Conselho Pontifício
para a Pastoral da Saúde, Carta dos Profissionais da Saúde, n.º 90: «A realização da transplantação
pressupõe a prévia tomada de decisão, livre e consciente, do dador ou do seu legítimo representante
[…]. “Trata-se de uma decisão de, sem qualquer recompensa, fazer dádiva de uma parte do próprio
corpo, para melhorar a saúde e o bem-estar de outro indivíduo. Neste sentido, o ato clínico de
transplantação torna possível o ato de oblação do dador, enquanto dádiva sincera de si próprio que
exprime o apelo essencial ao amor e à comunhão” (João Paulo II, Aos Participantes do 1.º Congresso
Internacional sobre Transplante de Órgãos, 20 de junho de 1991)». Em nota de pé de página,
acrescenta-se uma intervenção de Pio XII em que o Papa não exclui que, sem deixar de prevenir
abusos, se possa admitir uma certa retribuição. No entanto, para o assunto que nos interessa, há uma
clara insistência na gratuidade: é ela que permite captar a bondade da doação.
[177]
K. Wojtyla, Signo de Contradicción, BAC, Madrid, 1978 p. 76. Sobre a expressão social da
lei do dom, penso que poderia ser interessante estudar a confluência com o princípio da gratuidade,
referido por Bento XVI na carta encíclica Caritas in Veritate (por exemplo, no n.º 38, quando o autor
afirma que a gratuidade não pode intervir no final da cadeia de produção depois de cumpridas as
exigências da justiça. A gratuidade deve estar presente em todo o processo).

[178]
Cfr., por exemplo, Bento XVI, carta encíclica Caritas in Veritate, n.º 38. No n.º 36 podemos
ler: «O grande desafio que temos diante de nós […] é mostrar, a nível tanto de pensamento como de
comportamentos, que não só não podem ser transcurados ou atenuados os princípios tradicionais da
ética social, como a transparência, a honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas relações
comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e
devem encontrar lugar dentro da atividade económica normal».

[179]
AG 16-1-1980, n.º 1.
[180]
AG 16-1-1980, n.º 1.

[181]
S. João Paulo II, Tríptico Romano, Paulinas, Lisboa, 2004, p. 27.

[182]
S. João Paulo II, Tríptico Romano, Paulinas, Lisboa, 2004 p. 27.

[183]
Cfr. AG 16-1-1980, n.º 3.
[184]
Em certo sentido, e para sintetizar melhor, é legítimo definir o significado esponsal do corpo
como a capacidade de o homem poder expressar com o corpo o amor-doação, dado que acolher o outro
por si mesmo é também, de algum modo, uma doação: a doação do próprio acolhimento.

[185]
AG 30-1-1980, n.º 2. (A afirmação é, no meu entender, de difícil compreensão. Acrescento
as traduções em italiano, francês, espanhol e inglês: «La felicità è il radicarsi nell’Amore»; «Le
bonheur, c’est l’enracinement dans l’amour»; «La felicidad es el arraigarse en el amor»; «Happiness is
being rooted in Love»).

[186]
AG 25-6-1980, n.º 6.

[187]
AG 25-6-1980, n.º 5. Cfr., também, AG 23-4-1980, n.º 2. Na sua obra La Renovación en Sus
Fuentes, BAC, vol. 430, Madrid, 1982, p. 165, Karol Wojtyla define com precisão o que entende e não
entende por «atitude»: «Em síntese, podemos dizer que a atitude é uma relação ativa, mas não é
propriamente a ação como tal. […] Trata-se de um “tomar posição” e, ao mesmo tempo, ter uma
disponibilidade para atuar de acordo com a posição tomada. Em certa medida, a atitude contém o que a
psicologia tomista inclui na categoria do habitus e até de habitus operativus, embora não se
identifiquem entre si».
[188]
Cfr. AG 8-4-1981, n.os 2-3.

[189]
Mary Healy, Os Homens e as Mulheres são do Éden, Encontro da Escrita, Lisboa, 2013, pp.
42-43.

[190]
AG 31-10-1984, n.º 6. (O sublinhado é meu.)

[191]
AG 10-9-1980, n.º 5. Já no primeiro ciclo, S. João Paulo II deixava entrever que o
significado esponsal do corpo tinha dimensões muito profundas: «O corpo humano, orientado
interiormente pelo “dom sincero” da pessoa, revela não só a sua masculinidade e feminilidade no plano
físico, mas revela também um valor e uma beleza tais que ultrapassam a dimensão simplesmente física
da “sexualidade”» (AG 16-1-1980, n.º 4).

[192]
Cfr., por exemplo, S. João Paulo II, exortação apostólica Pastores Dabo Vobis, n.º 29: «Na
virgindade e no celibato, a castidade mantém o seu significado originário, o de uma sexualidade
humana vivida como autêntica manifestação e precioso serviço ao amor de comunhão e de entrega
interpessoal. Este mesmo significado subsiste plenamente na virgindade, que realiza, mesmo na
renúncia ao matrimónio, o “significado esponsal” do corpo mediante uma comunhão e uma entrega
pessoal a Jesus Cristo e à Igreja, que prefiguram e antecipam a comunhão e entrega perfeita e definitiva
do Além».

[193]
K. Wojtyla, A Pedreira e Outros Poemas, «Cântico do Esplendor da Água», Paulinas,
Lisboa, 2014, p. 29.
[194]
S. João Paulo II, Tríptico Romano, Paulinas, Lisboa, 2004, p. 26.

[195]
Cfr. AG 20-2-1980, n.º 4. Cfr. G. Grisez, The Way of the Lord Jesus, vol. 2, capítulo 9, C, 1,
b: «God creates out of gratuitous love, to manifest his goodness and share his happiness with created
persons […]. So, created reality as such is, in a wide sense, a sacrament, inasmuch as it is a visible sign
of God’s love. Within this sacrament, human persons, as male and female, manifest God’s goodness in
a special way, for he creates them in his own image and likeness
(Gn 1, 26-27)». E mais adiante acrescenta-se: «The words of Genesis 2, 24, “a man […] cleaves to his
wife and they become one flesh”, spoken in the context of this original reality in a theological sense,
constitute marriage as an integral part and, in a certain sense, a central part of the “sacrament of
creation”. They constitute – or perhaps rather, they simply confirm, the character of its origin.
According to these words, marriage is a sacrament inasmuch as it is an integral part and,
I would say, the central point of “the sacrament of creation”. In this sense it is the primordial
sacrament». (O sublinhado é meu.) Assim sendo, a explicação para a expressão «sacramento
primordial», segundo Grisez, é uma comparação com o caráter sacramental do resto da Criação, da qual
o matrimónio é o expoente rei.
Merece a pena ler ainda uma explicação sobre a condição primordial da sacramentalidade do
matrimónio em relação ao resto da Criação: «Thus, from the beginning of creation, marriage expresses
God’s plan that humankind should “be holy and blameless before him in love”
(Eph 1, 4) and should not only manifest divine goodness, as all creation does, but personally share in
God’s love and freely respond to it».
[196]
AG 20-2-1980, n.º 4. (Inverti a ordem de algumas palavras para tornar mais claro o seu
conteúdo.)

[197]
AG 20-2-1980, n.º 3.

[198]
Cfr. AG 30-1-1980, n.º 3: «Tal inocência pertence à dimensão da graça contida no mistério
da criação, isto é, àquele misterioso dom oferecido ao íntimo do homem – ao “coração” humano – que
permite a ambos, varão e mulher, existirem desde o “princípio” na recíproca relação do dom
desinteressado de si mesmos».
[199]
S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 5.

[200]
AG 20-2-1980, n.º 2.
[201]
AG 16-1-1980, n.º 5.

[202]
Leia-se, por exemplo, as palavras das Confissões, citadas no Catecismo da Igreja Católica,
n.º 2340: «A continência, na verdade, recolhe-nos e reconduz-nos àquela unidade que tínhamos
perdido, dispersando-nos na multiplicidade».

[203]
Man and Woman He Created Them – A Theology of the Body, tradução, introdução e índice
de Michael Waldstein, Pauline Books & Media, Boston, 2006, p. 121.
[204]
Cfr. S. João Paulo II, exortação apostólica Familiaris Consortio, cap. 2. Cfr., também, AG
16-1-1980, n.º 5.

[205]
É muito interessante ler o comentário de Joseph Ratzinger ao crucificado disforme pintado
por M. Grünewald, sobretudo no significado que ele teve para os doentes de lepra. Aquele corpo
falava-lhes de amor: «A representação da dolorosa morte de Cristo na Cruz é, sem dúvida, uma
novidade, contudo, ela não deixa de representar Aquele que sustentou as nossas dores, Aquele cujos
vergões foram a nossa Salvação. Mesmo na extrema dor, ela representa o amor redentor de Deus.
Ainda que a crucifixão na pintura da imagem de altar do Grünewald radicalize até ao extremo o
realismo do sofrimento, facto é que, para os doentes da peste, cuidados pelos Antoninos, ela foi a
imagem da consolação que lhes permitiu reconhecer a identificação de Deus com o seu destino; ver que
Ele desceu para dentro do seu sofrimento e sentir o seu sofrimento inserido no sofrimento d’Ele». (J.
Ratzinger, Introdução ao Espírito da Liturgia, pp. 93-94; o itálico é meu.)

[206]
AG 29-9-1982, n.º 4.

[207]
AG 15-12-1982, n.º 4. Cfr., também, AG 18-8-1982, n.º 6: «Nesta expressão [Ef 5, 25], o
amor redentor transforma-se, diria, em amor esponsal: Cristo, dando-se a si mesmo pela Igreja, com o
mesmo ato redentor uniu-se de uma vez para sempre com ela, como o esposo com a esposa, como o
marido com a mulher, dando-se através de tudo o que de uma vez para sempre está incluído naquele
seu “dar-se a si mesmo” pela Igreja. Deste modo, o mistério da redenção do corpo esconde em si, de
algum modo, o mistério das núpcias do Cordeiro» (cfr. Ap 19, 7). Para melhor entender a
compenetração do significado redentor com o significado esponsal, cfr. ainda, AG 27-10-1982, n.º 7:
«A Redenção significa de facto uma “nova criação” – significa a assunção de tudo aquilo que é
criado».
Podem oferecer um ulterior esclarecimento sobre o significado redentor do Corpo de Cristo, que
assume e se expressa também como significado esponsal, as seguintes palavras de Bento XVI: «O
motivo pelo qual as antigas traduções da Bíblia não falam de Aliança, mas de Testamento, deve-se ao
facto de não serem dois contraentes de nível igual que se encontram, mas entra em ação a distância
infinita entre Deus e o homem. Aquilo que designamos por nova ou antiga Aliança não é um ato
acordado entre duas partes iguais, mas dom meramente de Deus que nos deixa em herança o seu amor,
nos deixa a Si mesmo. E com certeza Ele, superando toda a distância através deste dom do seu amor,
torna-nos depois verdadeiramente seus “parceiros” e realiza-se o mistério nupcial do amor» (Bento
XVI, Homilia da Missa In Coena Domini, 2009). Portanto, para uma aliança nupcial com Deus, devo
ser antes redimido e elevado. Retenhamos este dado, que nos será útil ao falar do significado redentor
do corpo.
[208]
AG 15-12-1982, n.º 6.
[209]
AG 15-12-1982, n.º 8.

[210]
Cfr., também: Rom 5, 12-13; 15-16; e 17-19. Nestas passagens, S. Paulo refere-se
repetidamente ao caráter excecional de Jesus e da sua missão. Note-se as inúmeras vezes que repete
«um só»: «Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte,
assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram. […] Mas o dom não é como o delito,
porque, se pelo delito de um só homem morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom que vem
pela graça de um só homem, Jesus Cristo, são concedidos abundantemente a todos. […] Com efeito, se
pelo pecado de um só a morte reinou por um só, muito mais reinarão na Vida por um só, que é Jesus
Cristo, os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça. Por isso, assim como pelo pecado de
um só incorreram todos os homens na condenação, assim pela justiça de um só recebem todos os
homens a justificação que dá a Vida. Porque, assim como pela desobediência de um só homem todos se
tornaram pecadores, assim pela obediência de um só
todos virão a ser justos». (O itálico é meu.)

[211]
Cfr. Bento XVI, AG 3-11-2010: «Ela [Margarida de Oingt] afirma que a cruz de Cristo é
semelhante ao leito do parto. A dor de Jesus na Cruz é comparada com a de uma mãe. Ela escreve: “A
mãe que me trouxe no ventre sofreu enormemente ao dar-me à luz, por um dia ou por uma noite, mas
Tu, bom e dócil Senhor, por mim foste atormentado não apenas por uma noite ou por um dia, mas por
mais de trinta anos […] como padeceste amargamente por causa de mim, durante toda a tua vida! E
quando chegou o momento do parto, o teu sofrimento foi tão doloroso que o teu santo suor se
transformou como que em gotas de sangue que desciam por todo o teu Corpo até ao chão”».

[212]
Cfr. Mt 9, 15; Mc 2, 19; Lc 5, 34; Mt 25, 1 e ss; e Jo 3, 30.
[213]
Bento XVI, Discurso Durante o Encontro com os Sacerdotes da Diocese de Albano, Castel
Gandolfo, 31-8-2006. Cfr., também, S. João Paulo II, exortação apostólica Familiaris Consortio, n.º 13:
«Os esposos são, portanto, para a Igreja recordação permanente do que aconteceu sobre a Cruz». Cfr.,
ainda, por exemplo, Bento XVI, AG 8-9-2010: «Com os traços característicos da sensibilidade
feminina, Hildegarda, exatamente na secção central da sua obra, desenvolve o tema do matrimónio
místico entre Deus e a humanidade, realizado na Encarnação. No madeiro da Cruz, realizam-se as
núpcias do Filho de Deus com a Igreja, sua esposa, cheia de graça e tornada capaz de doar a Deus
novos filhos, no amor do Espírito Santo».

[214]
Relembre-se o que explicámos no capítulo 4: na Igreja, nunca será possível desligar um
ensinamento concreto, mais ou menos extenso, da doutrina geral. Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.º
114, sobre a analogia da fé.

[215]
AG 28-11-1984, n.º 1.

[216]
Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.os 1503 e 1505.
[217]
S. João Paulo II, Discurso na Capela Sistina, 8-4-1994.

[218]
Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.º 2519.

[219]
S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, suplemento, q. 41, a. 4, respondeo. (Tradução do
autor.) («Débito conjugal» significa a obrigação que os cônjuges têm de se entregarem conjugalmente
um ao outro, sempre que razoavelmente solicitados, dado que, em certo sentido, «pertencem» um ao
outro. Essa obrigação moral é uma realidade, embora a expressão «débito», usada durante muito tempo,
tenha sido abandonada há anos: é demasiado fria e pouco personalista.) Convém acrescentar ainda que,
na minha opinião, os dois exemplos de S. Tomás não esgotam as razões que tornam o ato conjugal
meritório; pelo mesmo raciocínio, se o que leva ao ato conjugal for a virtude do amor ao outro, o desejo
de se entregar fisicamente também será meritório.

[220]
AG 5-1-1983, n.º 5. De modo bem sintético, na AG 22-8-1984, n.º 4, o Papa afirma: «Como
ministros de um sacramento que se constitui mediante o consenso e se aperfeiçoa mediante a união
conjugal».

[221]
Em qualquer leitor atento surgirá a interrogação sobre o matrimónio de Nossa Senhora e S.
José. Certamente não existiu nunca a união física, mas tratou-se de um verdadeiro matrimónio. S. João
Paulo II reafirma isso mesmo, por exemplo, na exortação apostólica Redemptoris Custos, n.º 7, com
várias citações de S. Agostinho e S. Tomás cujas referências omito para facilitar a leitura. Escreve S.
João Paulo II: «O filho de Maria é também filho de José, em virtude do vínculo matrimonial que os
une: “Por motivo daquele matrimónio fiel, ambos mereceram ser chamados pais de Cristo, não apenas a
Mãe, mas também aquele que era seu pai, do mesmo modo que era cônjuge da Mãe, uma e outra coisa
por meio da mente e não da carne”. Neste matrimónio não faltou nenhum dos requisitos que o
constituem: “Naqueles pais de Cristo realizaram-se todos os bens das núpcias: a prole, a fidelidade e o
sacramento. Conhecemos a prole, que é o próprio Senhor Jesus; a fidelidade, porque não houve
nenhum adultério; e o sacramento, porque não se deu nenhum divórcio”.
Analisando a natureza do matrimónio, quer Santo Agostinho, quer Santo Tomás de Aquino
situam-na constantemente na “união indivisível dos ânimos”, na “união dos corações” e no “consenso”;
elementos estes, que, naquele matrimónio, se verificaram de maneira exemplar».
Cfr. também, AG 24-3-1982. No entanto, como se compagina a realidade do matrimónio com a
deliberada ausência do ato conjugal? A teologia do corpo consegue oferecer uma resposta mais
profunda a esta questão, como o demonstra o excelente artigo de Gloria Falcão Dodd, STD., «The
Nuptial Meaning of the Body in the Marriage of Mary and Joseph», in The Virgin Mary and the
Theology of the Body, Donald H. Calloway MIC (editor), Marian Press, Massachusetts, 2005,
pp. 107-124. Nesse artigo, pergunta a autora: «Como expressavam Maria e José o seu amor conjugal
num casamento virginal? Havia duas formas principais: afeto e trabalho. […] Os sinais de afeto
incluiriam provavelmente saudações, pequenas ofertas, ou fazer a tarefa do outro. Em segundo lugar
[citando Redemptoris Custos, n.º 22], “o trabalho era a expressão diária do amor na vida da Família de
Nazaré”. […] Ao mesmo tempo, o seu casamento foi precisamente o que permitiu a Maria
viver a dimensão procriativa do significado esponsal do corpo dando à luz Jesus como seu Filho».
[222]
Cfr. AG 21-11-1984, n.º 3.
[223]
Cfr. AG 5-3-1980, n.º 1.

[224]
K. Wojtyla adverte para este possível risco de instrumentalização em Amor e
Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pp. 223-4: «Voltando ainda à opinião citada antes,
de que as relações conjugais não são admissíveis nem justas senão na medida em que podem levar à
procriação, salientamos que semelhante atitude pode ocultar uma certa dose de utilitarismo
(a pessoa, meio que serve para conseguir um fim) e estar em desacordo com a norma personalista. As
relações conjugais têm a sua origem, e é preciso que a tenham, no amor conjugal recíproco, no dom de
si que um faz ao outro. São necessárias ao amor e não só à procriação».

[225]
Cfr. K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 220: «A
disposição para a procriação, nas relações conjugais, protege o amor, é a condição indispensável duma
verdadeira união das pessoas. Esta pode realizar-se no amor, fora das relações sexuais. Mas quando se
realiza por meio delas, o seu valor personalista não pode ser garantido senão pela disposição para a
procriação». Teremos ocasião de justificar melhor esta afirmação.

[226]
S. João Paulo II, carta encíclica Evangelium Vitae, n.º 97.
[227]
Cfr. AG 5-3-1980, n.º 2.

[228]
Cfr. AG 5-3-1980, n.º 2, nota 3.

[229]
Cfr. AG 5-3-1980, n.º 2, nota 3. Para ser honesto, é preciso acrescentar, tal como faz o
Pontífice na referida nota, que a Sagrada Escritura utiliza o mesmo verbo para as relações ilícitas.
[230]
AG 5-3-1980, n.º 2.

[231]
AG 5-3-1980, n.º 4.

[232]
AG 5-3-1980, n.º 3.

[233]
AG 5-3-1980, n.º 3.
[234]
Fulton Sheen, Three to Get Married, Scepter, Nova Iorque, 1996 (reimpressão em 2013), p.
17. Aliás, todo o livro deveria ser «revisitado», dada a sua clareza e concisão.

[235]
Já anteriormente, no capítulo 8, acrescentámos uma nota sobre como entender a expressão
«uma só carne».

[236]
AG 5-3-1980, n.º 4.

[237]
Cfr. AG 30-5-1984, n.º 4.
[238]
AG 5-3-1980, n.º 5.

[239]
Essa união é expressa pelo versículo que refere que os dois se tornam uma só carne.
Contudo, S. João da Cruz, o místico carmelita bem conhecido de S. João Paulo II, tem passagens da
sua obra onde fala da união de amor que se dá também entre a alma e Deus. Por exemplo: «Mas, sobre
este esboço da fé, há um outro esboço de amor na alma do amante, e é segundo a vontade, na qual de
tal maneira se esboça a figura do Amado e tão conjunta e vivamente se retrata, quando há união de
amor, que é verdade dizer que o Amado vive no amante [aquele a quem ama] e o amante [aquele que
ama] no Amado; e tal semelhança causa o amor na transformação dos Amados, de tal modo que se
pode dizer que cada um é o outro e que ambos são um só. A razão é porque na união e transformação
de amor um dá posse de si ao outro, e cada um se deixa e troca pelo outro; e assim cada um vive no
outro e um é o outro e ambos são um por transformação de amor» (S. João da Cruz, Cântico
Espiritual, canção XII, 7). Note-se que o carmelita espanhol se refere ao amor em geral para explicar
que a união da alma com Deus é uma particular forma de união de amor.

[240]
Bento XVI, carta encíclica Deus Caritas est, n.º 17.

[241]
Cfr. também K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Lisboa, 1999, Rei dos Livros, p. 137:
«Os contactos, e mais ainda a vida em comum, de duas pessoas de sexo diferente implicam toda uma
série de atos em que um é o sujeito e o outro o objeto. O amor suprime esta relação entre sujeito e
objeto substituindo-o por uma união de pessoas em que o homem e a mulher têm o sentimento de serem
um só sujeito de ação. Este sentimento é a expressão do seu estado de consciência subjetivo, que, aliás,
é um reflexo da sua união objetiva: as suas vontades unem-se porque desejam o mesmo bem tomado
como fim, os seus sentimentos confundem-se porque experimentam em comum os mesmos valores.
Quanto mais madura e profunda é esta união, tanto mais o homem e a mulher têm o sentimento de
constituir um só sujeito de ação». O autor não se está a referir exclusivamente ao ato conjugal, ainda
que, evidentemente, o inclua. Se os esposos aprofundarem nestas densas palavras, poderão encontrar
nelas mais um motivo para a abertura à vida na relação: essa abertura facilita o fim comum e, por isso,
torna mais fácil a união de vontades.

[242]
AG 12-3-1980, n.º 3.

[243]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Lisboa, 1999, Rei dos Livros, p. 215.
[244]
K. Wojtyla, Amor e Rresponsabilidade, Lisboa, 1999, Rei dos Livros, p. 216.

[245]
Cfr. AG 12-3-1980, n.º 6.

[246]
Cfr. Anastasia Northrop, The Freedom of the Gift, Resurrection Publications, Minooka,
Illinois, 2005, p. 54.

[247]
Cfr. AG 12-3-1980, n.º 3.
[248]
William Newton, Maryvale Course Book – Marriage as a Sacrament, 2011, p. 108.
Transcrevo o parágrafo completo: «The desire to become one flesh – an authentic part of married love –
is realized to some extent in marital sexual intercourse, but as the spouses are two bodies this one flesh
union is fleeting and the full satisfaction of this desire is always somewhat elusive. The child makes
this desire for union real and permanent: their love was made flesh and dwelt amongst them».

[249]
Congregação para a Doutrina da Fé, instrução Donum Vitae, 22-2-1987, II, B, 4.

[250]
Cfr. AG 26-3-1980, n.º 5.

[251]
Cfr. AG 26-3-1980, n.º 6.
[252]
AG 26-3-1980, n.º 6.

[253]
Bento XVI, Discurso aos Participantes num Encontro Promovido pelo Pontifício Instituto
João Paulo II para os Estudos sobre Matrimónio e Família, 13-5-2011.

[254]
S. João Paulo II justifica este conhecimento com citações do Antigo Testamento que mais
adiante apresentarei ao leitor, e que eram bem familiares aos interlocutores de Jesus.

[255]
AG 6-8-1980, n.º 3.
[256]
S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 14.

[257]
AG 13-8-1980, n.º 5. Cfr. S. João Paulo carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 14: «No
fim Jesus diz-lhe: “não tornes a pecar”; mas, primeiro ele desperta a consciência do pecado nos
homens que a acusam para apedrejá-la, manifestando assim a sua profunda capacidade de ver as
consciências e as obras humanas segundo a verdade. Jesus parece dizer aos acusadores: esta mulher,
com todo o seu pecado, não é talvez também, e antes de tudo, uma confirmação das vossas
transgressões, da vossa injustiça “masculina”, dos vossos abusos?» S. João Paulo II faz notar a seguir
que situações similares, em que a mulher fica «só» com o pecado de dois, repetem-se ao longo da
história.

[258]
Para entender melhor a importância da insistência de S. João Paulo II no «apelo ao coração»,
pode ajudar ler as diferenças entre duas perspetivas da moral católica: a moral casuística pós-tridentina
e a moral essencialmente tomista. Sobre este tema, aconselho a leitura de uma boa síntese do problema,
também com bibliografia esclarecedora: E. Colom e A. Rodríguez Luño, Elegidos en Cristo para Ser
Santos – Curso de Teología Moral Fundamental, Palabra, 1.ª ed., Madrid, 2001, pp. 409-413.

[259]
AG 13-8-1980, n.º 1.
[260]
Cfr. AG 29-10-1980, n.º 1.

[261]
Para ser verdadeiro e justo, seria necessário analisar em profundidade cada um dos mestres
da suspeita em profundidade sob este ângulo. Provavelmente seria necessário matizar um pouco o que
escrevi. Sirva isto, no entanto, para se perceber a ideia de fundo sobre a possibilidade da redenção da
natureza humana.

[262]
AG 29-10-1980, n.º 6. Também na carta encíclica Veritatis Splendor, n.º 103, S. João Paulo
II se insurge contra a visão redutora das possibilidades morais do ser humano: «Só no mistério da
Redenção de Cristo se encontram as “concretas” possibilidades do homem. “Seria um erro gravíssimo
concluir […] que a norma ensinada pela Igreja é em si própria apenas um ‘ideal’ que deve
posteriormente ser adaptado, proporcionado, graduado – dizem – às concretas possibilidades do
homem: segundo um ‘cálculo dos vários bens em questão’. Mas, quais são as ‘concretas possibilidades
do homem’? E de que homem se fala? Do homem dominado pela concupiscência ou do homem
redimido por Cristo? Pois é disso que se trata: da realidade da redenção de Cristo. Cristo redimiu-nos!
O que significa que Ele nos deu a possibilidade de realizar toda a verdade do nosso ser; Ele libertou a
nossa liberdade do domínio da concupiscência”»

[263]
AG 29-10-1980, n.º 4.
[264]
AG 29-10-1980, n.º 5.

[265]
AG 14-5-1980, n.º 2.

[266]
AG 23-7-1980, n.º 6. Cfr. também K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros,
Lisboa, 1999, p. 139: «[A concupiscência] procura a sua satisfação no corpo e no sexo através do
prazer. Logo que o consegue, toda a atividade do sujeito a respeito do objeto acaba, e o interesse
desaparece até que o desejo desperte novamente».

[267]
AG 25-6-1980, n.º 6.
[268]
AG 17-9-1980, n.º 3.

[269]
Josef Pieper, Virtudes Fundamentales, Rialp, Madrid, 1976, p. 241.

[270]
AG 14-5-1980, n.º 2. Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.os 396-409.
[271]
AG 14-5-1980, n.º 3.

[272]
Cfr. AG 28-5-1980, n.º 2: «Embora à luz daquela singular frase determinante de Géne-
sis 3, 7 a resposta à pergunta pareça manter sobretudo o caráter referencial da vergonha original,
contudo, a reflexão sobre todo o contexto mais imediato permite descobrir-lhe o seu fundo mais
imanente».

[273]
AG 18-6-1980, n.º 1.
[274]
AG 30-4-1980, n.º 4.

[275]
AG 14-5-1980, n.º 1.

[276]
AG 14-5-1980, n.º 3.

[277]
Cfr. AG 20-2-1980, n.º 5: «O sacramento do mundo, e o sacramento do homem no mundo,
provém da fonte divina da santidade, e é simultaneamente instituído para a santidade. A inocência
original, ligada à experiência do significado esponsal do corpo, é a mesma santidade que permite ao
homem exprimir-se profundamente com o próprio corpo, e isto, precisamente, mediante o “dom
sincero” de si mesmo. A consciência do dom condiciona, neste caso, “o sacramento do corpo”: o
homem, no seu corpo de varão e de mulher, sente-se sujeito de santidade».
[278]
AG 28-5-1980, n.º 2. (A versão portuguesa diz: «Cessou de alcançar a força do espírito»; a
versão inglesa diz: «Drawing on the power of the spirit».)

[279]
AG 4-2-1981, n.º 6.

[280]
AG 6-5-1981, n.º 5.

[281]
AG 22-4-1981, n.º 1.
[282]
AG 28-5-1980, n.º 5. De modo mais simplificado, já S. Tomás justificava do seguinte modo
a necessidade que sentiram Adão e Eva após o pecado: «O vestido é necessário na vida presente por
dois motivos […]; segundo, para ocultar a torpeza dos membros em que principalmente se manifesta a
rebelião da carne contra o espírito. Estas duas necessidades não existiam no estado original. O corpo
humano não podia ser ferido por agentes externos, e também não existia qualquer torpeza que os
enchesse de rubor» (Suma Teológica, II-II.ae, q. 164, a. 2, ad. 8). Anteriormente definiu a vergonha
como o «temor de atos em matéria torpe» (cfr., por ex., Suma Teológica II-II.ae, q. 144, a. 2).

[283]
AG 4-6-1980, n.º 2.

[284]
Cfr. AG 4-6-1980, n.º 5: «Daí a necessidade de se esconderem diante do “outro” com o
próprio corpo, com aquilo que determina a própria feminilidade/masculinidade. Esta necessidade
demonstra a carência fundamental de confiança, o que por si só indica o colapso da relação original «de
comunhão».

[285]
AG 4-6-1980, n.º 4.
[286]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Lisboa, 1999, Rei dos Livros, p. 168.

[287]
AG 23-7-1980, n.º 3.

[288]
Cfr. AG 30-7-1980, n.os 3-4.
[289]
M. Van Der Meersch, Corpos e Almas, Minerva, Lisboa, 1970, p. 441.

[290]
Cfr. AG 25-6-1980, n.os 3-4: «Ao mesmo tempo, o homem é aquele pelo qual a vergonha,
unida à concupiscência, se tornará impulso para “dominar” a mulher (“Ele dominar-te-á”). Em
seguida, a experiência deste domínio é manifestada mais diretamente na mulher, como o desejo
insaciável de uma união diferente. Desde o momento em que o homem a “domina”, à comunhão de
pessoas – feita de uma plena unidade espiritual dos dois sujeitos que se dão reciprocamente – sucede
uma relação recíproca diversa, isto é, uma relação de posse do outro como objeto do próprio desejo.
Se este impulso prevalece por parte do homem, os instintos que a mulher dirige para ele, segundo a
expressão de Génesis 3, 16, podem assumir – e assumem – um caráter semelhante. Talvez, por vezes,
estes até se antecipem ao “desejo” do homem, ou tendam a despertá-lo e impulsioná-lo.
O texto de Génesis 3, 16 parece indicar sobretudo o homem como aquele que “deseja”,
analogamente ao texto de Mateus 5, 27-28, que constituiu o ponto de partida das presentes
meditações; no entanto, tanto o homem como a mulher se tornaram um “ser humano” sujeito à
concupiscência. E, por isso, ambos têm como sorte a vergonha, que com a sua profunda ressonância
toca o íntimo das personalidades masculina e feminina, ainda que de
modo diverso».
[291]
Cfr. S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 10.

[292]
AG 30-7-1980, n.º 2.

[293]
Cfr. AG 30-7-1980, n.º 1: «Ambos os seres humanos tornam-se quase incapazes de atingir a
medida interior do coração, voltada para a liberdade do dom e para o significado esponsal do corpo,
que lhe é intrínseco. As palavras de Génesis 3, 16 parecem sugerir que isto acontece sobretudo à custa
da mulher, e que, em todo o caso, ela o sente mais do que o homem».
[294]
Eis umas sugestivas palavras de E. Stein: «Eu penso que a relação entre a alma e o corpo não
é completamente a mesma, que a união natural ao corpo é, regra geral, mais íntima na mulher. Parece-
me que a alma da mulher vive e está presente com maior força em todas as partes do corpo e que fica
afetada interiormente por tudo o que acontece no corpo». «Christliches Frauenleben», in Die Frau –
Gragestellungen und Reflexionen, Edith Stein Gesamtausgabe 13, Herder, Friburgo, 2000, 86; cit. em
Juan de Dios Larrú, «El Significado Personalista de la Experiencia del Pudor», in La Filosofía
Personalista de K. Wojtyla, Juan Manuel Burgos (ed.), Palabra, Madrid, 2007, p. 100. (Tradução feita a
partir da edição espanhola.)

[295]
K. Wojtyla et al., The Foundations of the Doctrine of the Church Concerning the
Principles of Conjugal Life (edição original: Cracóvia, 1969; traduzida por Father Roger Landry).

[296]
B. Paulo VI, carta encíclica Populorum Progressio, n.º 59.

[297]
Cfr. G. Grisez, The Way of The Lord Jesus, vol. 2, capítulo 9, D, 3, e: «While both spouses
can engage in manipulation, rewarding and punishing each other, they do so in different ways, each
perverting his or her distinctive marital role. For example, the wife may withhold marital intercourse
or refuse to cook dinner; the husband may resort to physical abuse or spend his evenings away from
home. For sheer survival, however, wives generally depend more on their husbands’ performance and
forbearance than vice versa, and this difference is accentuated when the wife is pregnant or nurturing
small children. Therefore, as sin drives out love, a wife all too often learns by experience what is
meant by the scriptural passage which John Paul II cites in explaining male domination: “Your desire
shall be for your husband, and he shall rule over you” (Gn 3, 16)». (O itálico é meu.)

[298]
Cfr. TOB 111, n.º 4.

[299]
Cfr. AG 30-5-1984, n.º 4.
[300]
TOB 110, n.º 7.

[301]
Cfr. AG 6-6-1984, n.º 1.

[302]
S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 10.

[303]
Cfr. S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 10. É muito interessante a
nota n.º 33, na qual o Santo Padre recorda intervenções de vários Padres da Igreja contra a injusta
discriminação da mulher vigente na sociedade em que viviam (no século IV).
[304]
S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 10.

[305]
Cfr. AG 17-9-1980, n.º 2.

[306]
A palavra «intencional» tem, neste contexto, um matiz filosófico que não coincide com o
uso vulgar da mesma. S. João Paulo II não está a referir-se a uma «redução na intenção», mas sim a
uma redução no que é o objeto da potência, a uma diminuição no campo do que se vê ou se entende ou
se quer.

[307]
AG 17-9-1980, n.º 3.
[308]
São sintomáticas as improvisadas palavras do Papa Francisco aos jovens das Filipinas, ao
constatar que havia poucas raparigas nos representantes que lhe dirigiram as perguntas: «Um aparte…
sobre a reduzida representação das mulheres. Demasiado pouco! As mulheres têm muito a dizer-nos na
sociedade atual. Às vezes somos demasiado machistas, e não deixamos espaço à mulher. Mas a mulher
sabe ver as coisas com olhos diferentes dos homens. A mulher sabe fazer perguntas que nós, homens,
não conseguimos compreender. Senão vede… Ela [indica Glyzelle] fez hoje a única pergunta que não
tem resposta. E não lhe vinham as palavras, teve de a dizer com as lágrimas. Assim, quando vier o
próximo Papa a Manila, que haja mais mulheres!» (Papa Francisco, Discurso na Universidade de São
Tomás, Manila, 18-1-2015.)

[309]
AG 25-6-1980, n.º 3.

[310]
Cfr., por exemplo, S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II.ae, q. 155, a. 2.

[311]
A experiência mostra que é necessário tomar consciência e lutar contra essa inclinação torpe;
mas esse mero saber e querer, na maior parte dos casos, não é suficiente. Falaremos a seguir da
necessidade da graça.

[312]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 140.

[313]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 146.
[314]
AG 18-6-1980, n.º 4.

[315]
AG 25-6-1980, n.º 6.

[316]
AG 25-6-1980, n.º 5.

[317]
AG 23-7-1980, n.º 2.

[318]
AG 23-7-1980, n.º 4.

[319]
AG 23-7-1980, n.º 6.

[320]
Cfr. AG 1-10-1980, n.º 7: «Cristo não considerou apenas o estatuto jurídico concreto do
homem e da mulher em questão. Cristo fez depender a valorização moral do “desejo”», acima de tudo,
da própria dignidade pessoal do homem e da mulher. E isto tem a sua importância, tanto quando se trata
de pessoas não casadas, como – e talvez mais ainda – quando são esposos, mulher e marido».

[321]
Cfr. AG 8-10-1980, n.º 6: «A nova dimensão do ethos está sempre ligada à revelação dessa
profundidade, que é chamada “coração”, e à libertação da “concupiscência”. De tal modo que, naquele
coração, possa resplandecer mais plenamente o homem, varão e mulher, em toda a verdade interior do
seu recíproco “para”».
[322]
AG 8-10-1980, n.º 2.

[323]
AG 23-7-1980, n.º 3.

[324]
S. Josemaria Escrivá, Cristo que Passa, n.º 41.

[325]
Bento XVI, carta encíclica Deus Caritas est, n.º 17.
[326]
Numa das páginas web da American Chesterton Society, transcrevem-se citações que
poderiam ter sido de Chesterton. Uma delas é a que foi repetida com frequência: «O homem que bate à
porta de um bordel está à procura de Deus». A citação correta é a que transcrevi no texto, e pertence à
obra The World, The Flesh, and Father Smith, de Bruce Marshall (1945), p. 108.

[327]
Cfr., também, S. Agostinho, Confissões, livro 10.

[328]
AG 10-09-1980, n.º 2.

[329]
Nesta mesma linha, podemos ler as seguintes palavras de S. Agostinho: «O uso natural do
matrimónio, quando ultrapassa os limites da necessidade da procriação, é escusável com a própria
esposa, mas pecaminoso com uma meretriz; o uso antinatural da esposa é mais execrável do que o uso
antinatural de uma meretriz» (S. Agostinho, Dos Bens do Matrimónio, 11, 212; coleção patrística,
Paulus, S. Paulo, 2000, p. 44). Interessa-nos sobretudo a segunda parte da frase: quando não há
qualquer dúvida de que se trata de uma instrumentalização (como é o caso do uso antinatural), é mais
grave proceder dessa maneira com a esposa, pois ela merece um amor maior, um maior cuidado. S.
João Paulo II, em consonância com as palavras de Jesus no Sermão da Montanha, radicaliza as
possibilidades de concretização da instrumentalização da esposa: até com um olhar ela é possível.

[330]
Cfr. D. Prümmer, Manuale Theologiae Moralis, 15.ª ed., Herder, Barcinone, Friburgui
Brisg., Roma, 1961, vol. 3, n.os 694-697. Ou, bem mais recente, a obra de A. Rodriguez Luño, Scelti in
Cristo per Essere Santi, vol. 3: «Morale Speciale», Edusc, Roma, 2008, p. 392.
Cfr., ainda, Pio XI, carta encíclica Casti Connubii, n.º 19: «O segundo bem do matrimônio,
mencionado por Santo Agostinho, como dissemos, é o bem da Fé, que é a mútua fidelidade dos
cônjuges no cumprimento do contrato matrimonial, de sorte que tudo o que compete, por este contrato,
sancionado pela lei divina, só ao cônjuge, não lhe seja negado nem permitido a terceira pessoa».

[331]
Cfr., por exemplo, S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II.ae, q. 106, a. 1.
[332]
É totalmente inovadora esta lição que S. João Paulo II nos dá? Só até certo ponto. No
capítulo 12 recordei como S. Tomás de Aquino explicava que o ato sexual pode ser meritório
(cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, suplemento, q. 41, a. 4, respondeo). No mesmo artigo da
Suma Teológica em que afirma isso, acrescenta que, se dentro do casal o ato for procurado apenas por
prazer, é um pecado venial (cfr., também, ad. 3). É interessante a distinção entre o ato conjugal
realizado por força de uma virtude e o mesmo ato escolhido por mero egoísmo, pois pode ajudar a
reforçar o que S. João Paulo II afirma sobre a possibilidade de o homem instrumentalizar a sua mulher
(ou vice-versa), quando a (o) procura apenas como meio para algo egoísta (a satisfação do prazer), sem
contar verdadeiramente com a pessoa. Por isso, é bom combater qualquer atitude que instrumentalize
quem quer que seja. De qualquer modo, em muitos casos não parece prudente inquietar as consciências
dos esposos, até porque frequentemente o motivo não é apenas obter prazer, ainda que este tenha um
grande peso: no fundo, os esposos querem estar juntos maritalmente e isso em si mesmo é bom.
Logicamente, sempre se pode e deve purificar um pouco mais a intenção, acentuando o desejo de
entregar-se ao outro.

[333]
«O maniqueísmo dividia o mundo em um reino de maldade, o da matéria, e um reino de
bondade, o do espírito. Para os maniqueus, a ideia de que as coisas materiais pudessem comunicar bens
espirituais era um completo absurdo» (Thomas E. Woods Jr., Como a Igreja Católica Construiu a
Civilização Ocidental, Quadrante, S. Paulo, 2008, p. 111, nota 1).

[334]
AG 22-10-1980, n.º 4.

[335]
AG 22-10-1980, n.º 5.
[336]
AG 22-10-1980, n.º 5.

[337]
AG 22-10-1980, n.º 2.

[338]
AG 4-7-1984, n.os 1-2.

[339]
S. João Paulo II, Memória e Identidade, Bertrand, Lisboa, 2005, p. 37.
[340]
S. João Paulo II, Memória e Identidade, Bertrand, Lisboa, 2005, p. 36.

[341]
Bento XVI, AG 3-12-2008.

[342]
AG 29-10-1980, n.º 4.
[343]
AG 29-10-1980, n.º 6.

[344]
Cfr. Jason & Crystalina Evert e Brian Butler, Theology of the Body for Teens, Ascension
Press, Pennsylvania, 2006, pp. 71-72.

[345]
AG 5-11-1980, n.º 2. É provável que haja filósofos que não concordem com a interpretação
de S. João Paulo II sobre o eros em Platão, apesar das explícitas referências bibliográficas incluídas na
audiência geral. Para o que nos interessa, basta admitir uma distinção entre o eros entendido como pura
concupiscência e o eros «purificado» ou sublimado; a citação de Bento XVI que se segue inclui essa
noção de eros «purificado» sem remeter para Platão, cuja evocação, neste assunto, é totalmente
secundária.

[346]
AG 12-11-1980, n.º 4.
[347]
Bento XVI, carta encíclica Deus Caritas est, n.º 5.

[348]
Cfr. Carl Anderson e José Granados, Called to Love, Doubleday, Nova Iorque, 2009,
p. 159: «Há uma diferença crucial entre a espontaneidade caótica em que tudo vale e a verdadeira
espontaneidade, que deriva da integração dos sentimentos e desejos corporais na esfera do amor».

[349]
AG 12-11-1980, n.º 5.

[350]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 187.
[351]
AG 1-12-1982, n.º 3.

[352]
AG 4-7-1984, n.º 2.

[353]
AG 4-7-1984, n.º 5.

[354]
AG 4-7-1984, n.º 6.
[355]
Bento XVI, carta encíclica Caritas in Veritate, n.º 61.

[356]
S. João Paulo II, carta encíclica Veritatis Splendor, n.º 23.

[357]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pp. 133-134.

[358]
S. João Paulo II, exortação apostólica Pastores Dabo Vobis, n.º 44.
[359]
AG 1-4-1981, n.º 6.

[360]
Catecismo da Igreja Católica, n.º 2340.

[361]
AG 3-12-1980, n.º 7.
[362]
AG 3-12-1980, n.º 4.

[363]
Cfr. AG 3-12-1980, n.º 6. Sobre a impressão de «perda» que experimenta quem começa a
querer viver a castidade, leia-se K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999,
pp. 185-187: «É notório que a prática da temperança e da virtude da castidade vem acompanhada –
sobretudo nas suas primeiras fases – dum sentimento de frustração, de renúncia a um valor. É um
fenómeno natural, que mostra até que ponto o reflexo da concupiscência está solidamente ancorado na
consciência e na vontade do homem. À medida que se desenvolve o verdadeiro amor da pessoa, este
reflexo torna-se mais fraco, porque os valores recuperam o posto que lhes é devido. Assim, pois, a
virtude da castidade e o amor condicionam-se mutuamente».

[364]
Catecismo da Igreja Católica, n.º 2346.

[365]
S. Josemaria Escrivá, Cristo que Passa, n.º 5. (O itálico é meu.)
[366]
AG 24-10-1984, n.º 2. Cfr. K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa,
1999, pp. 158-162. Nessa obra, sublinha-se com clareza que a castidade é para o amor: «É necessário
sublinhar muito mais o laço estreito existente entre a castidade e o amor. Não se pode compreender a
castidade senão em relação com a virtude do amor (da pessoa). Tem como missão libertar o amor da
atitude de prazer. […] O desenvolvimento insuficiente da virtude da castidade traduz-se no facto de
tardar a afirmar o valor da pessoa, e de deixar a supremacia dos valores do sexo que, apoderando-se da
vontade, deformam a atitude de respeito da pessoa de sexo oposto.
A essência da castidade consiste em não se deixar “distanciar” do valor da pessoa e em elevar ao seu
nível toda a reação aos valores do corpo e do sexo. Isto exige um esforço considerável, interior e
espiritual, porque a afirmação do valor da pessoa só pode ser fruto do espírito».

[367]
E. Burkhart e J. Lopes, Vida Cotidiana y Santidad en la Enseñanza de San Josemaría, vol.
2,
Rialp, Madrid, 2011, pp. 454-455.

[368]
Cfr. AG 10-12-1980, n.º 5 e AG 17-12-1980, n.º 1.

[369]
Cfr. Man and Woman He Created Them – A Theology of the Body, tradução, introdução e
índice de Michael Waldstein, Pauline Books & Media, Boston, 2006, p. 326.
[370]
Trata-se de um modo de descrever o amplo leque de atuações na correspondência à graça:
«Do homem depende, em definitivo, a contínua correspondência ao dom divino, que se manifesta na
decisão sempre atual de viver, por cima de qualquer outro interesse, como santo em Cristo Jesus.
Este desejo de viver em Cristo implica dois aspetos: afastar tudo quanto nos afasta do Senhor e
praticar tudo quanto nos aproxima d’Ele. […] Na Carta aos Gálatas, o primeiro momento é
considerado como luta contra os desejos da carne; o segundo, como vida segundo o Espírito» (E.
Colom e A. Rodríguez Luño, Elegidos en Cristo Para Ser Santos – Curso de Teología Moral
Fundamental, Palabra, 1.ª ed., Madrid, 2001, p. 112.
[371]
AG 17-12-1980, n.º 2.

[372]
Cfr. AG 17-12-1980, n.º 5, com a nota respetiva.

[373]
AG 7-1-1981, n.º 1. Cfr. 17-12-1980, n.os 3-4, com o comentário certeiro ao já clarividente
texto de Rom 8, 5-10.
[374]
Cfr. AG 14-1-1981, n.º 5: «No entanto, quando [S. Paulo] contrapõe “o fruto do Espírito” a
estas obras, não fala diretamente de “pureza”, mas nomeia apenas o “domínio de si”, a enkráteia [Gal
5, 22]. Este “domínio” pode ser reconhecido como virtude no que diz respeito à continência no âmbito
de todos os desejos dos sentidos, sobretudo na esfera sexual. Está, portanto, em contraposição à
“fornicação, impureza e libertinagem” e também à “embriaguez” e às “orgias”. Poderia, portanto,
admitir-se que o “domínio de si” paulino contém o que se expressa no termo “continência” ou
“temperança”, correspondente ao termo latino temperantia». Nestas palavras, S. João Paulo II faz
equivaler «temperança» e «continência»; a tradição católica não as identifica totalmente, ainda que
sejam virtudes que vão a par. Ajudará o leitor a leitura da Suma Teológica, sobretudo II-II.ae, q. 155, a.
1 e a. 3, bem como ad. 1 e ad. 3. Leia-se o seguinte trecho: «A continência é parte potencial da
temperança [versa sobre a mesma matéria] mas radica na vontade, não no apetite concupiscível como a
temperança: a sua missão é resistir aos movimentos da concupiscência, enquanto a temperança modera
o desejo dos prazeres sensíveis».

[375]
AG 17-12-1980, n.º 6.

[376]
AG 28-1-1981, n.os 3-4. Cfr. K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa,
1999, p. 158. Nessa obra, o futuro Papa distingue «capacidade» e «aptidão»: «Aptidão é mais do que
capacidade. A virtude é uma aptidão “permanente”; se fosse passageira não seria virtude. […] Porque a
virtude é a aptidão para ter sempre em equilíbrio o apetite da concupiscência graças a uma atitude
habitual a respeito do verdadeiro bem definido pela razão».

[377]
AG 11-2-1981, n.º 1.
[378]
AG 4-2-1981, n.º 3.

[379]
Cfr. AG 4-2-1981, n.º 4.

[380]
AG 4-2-1981, n.º 7.

[381]
AG 11-2-1981, n.º 1.
[382]
AG 11-2-1981, n.º 4.

[383]
Sobre as consequências práticas desta elevação, remeto para o primeiro capítulo do meu
livro Maternidade e Vida à Luz do Evangelho, Diel, Lisboa, 1997.

[384]
AG 11-2-1981, n.º 4.

[385]
Cfr. AG 11-2-1981, n.º 3.
[386]
S. Josemaria Escrivá, Caminho, n.º 118.

[387]
Catecismo da Igreja Católica, n.º 1830.

[388]
AG 18-3-1981, n.º 2. Apenas na audiência de 24-10-1984, n.º 1, S. João Paulo II evoca outro
dos dons do Espírito Santo em ligação com a virtude da continência: «Esta “submissão recíproca” [dos
esposos] significa a comum solicitude pela verdade da “linguagem do corpo”; a submissão “no temor
de Cristo”, pelo contrário, indica o dom do temor de Deus (dom do Espírito Santo) que acompanha a
virtude da continência».
[389]
Cfr. AG 14-11-1984, n.º 2.

[390]
AG 18-3-1981, n.º 3.

[391]
Cfr. AG 14-11-1984, n.os 4-5. Explicaremos estes significados num capítulo posterior,
embora o leitor já possa deduzir qual é o sentido de ambos: cada ato conjugal é um convite a expressar
a doação total e o acolhimento mútuo do casal – doação e acolhimento esses que trazem em si a
potencial capacidade de se ser pai ou mãe.

[392]
AG 21-11-1984, n.º 2. Dedicaremos um dos capítulos ao específico problema moral dos
contracetivos. No presente contexto, basta referir como o dom de piedade permite manter para com o
ato conjugal uma atitude de enorme respeito, por se saber que tem uma profunda ligação com um
desígnio divino.
[393]
São sugestivas as palavras de Janet Smith, The Universality of Natural Law and the
Irreducibility of Personalism: «Throughout Love and Responsibility, John Paul II speaks of the need
for those who would engage in the sexual act to be “conscious” of the reality that the sexual act not
only may make babies but also may make parents out of those engaging in it. Those who would engage
in sex with each other should be prepared to be parents with each other; they should have the virtues,
or be growing in the virtues, needed to be good parents. To have sex with a person and not be open to
having a child with that person would be to deny the reality that sexual intercourse leads to lifetime
relationships; it would be to use rather than to love the other». (O itálico é meu.)

[394]
AG 21-11-1984, n.º 3.

[395]
AG 21-11-1984, n.º 3.

[396]
AG 21-11-1984, n.º 5.
[397]
AG 18-3-1981, n.º 4.

[398]
S. Josemaria Escrivá descreve de modo incisivo a ligação entre a castidade (neste caso, pela
negativa) e uma vida de fé estável, sinal de sabedoria: «Seguiu o caminho da impureza com todo o seu
corpo […] e com toda a sua alma. A sua fé foi-se esbatendo […], embora bem saiba que não é
problema de fé» (Sulco, n.º 837).

[399]
AG, 17-12-1980, n.º 2.
[400]
J. Ratzinger, Do Sentido de Ser Cristão, Princípia, Cascais, 2009, p. 25.

[401]
AG 18-3-1981, n.º 3.

[402]
AG 1-4-1981, n.º 5.
[403]
S. Josemaria Escrivá, Cristo que Passa, n.º 40.

[404]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 7.

[405]
Se o leitor não estiver familiarizado com os ensinamentos da Igreja neste terreno, aconselho
a leitura dos números 988 a 1004 do Catecismo da Igreja Católica.

[406]
AG 11-11-1981, n.º 1.
[407]
S. Agostinho, De Civitate Dei, XXII, 17 (citado em Pedro Langa, «Antropología Patrística
en los Relatos de la Creación», in Masculinidad y Feminidad en la Patrística, p. 208).

[408]
S. Agostinho, De Civitate Dei, XXII, 17 (citado em Pedro Langa, «Antropología Patrística
en los Relatos de la Creación», in Masculinidad y Feminidad en la Patrística, p. 228). (Cfr., também,
S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, suplemento, q. 81, a. 3.)

[409]
AG 3-2-1982, n.º 4.

[410]
AG 3-2-1982, n.º 4.
[411]
AG 2-12-1981, n.º 6.

[412]
AG 2-12-1981, n.º 6.

[413]
O celibato pelo Reino dos Céus será estudado no capítulo seguinte.

[414]
Cfr. AG 11-11-1981, n.º 1.
[415]
AG 18-11-1981, n.º 3, nota 1.

[416]
Cfr. AG 18-11-1981, n.º 3.

[417]
AG 18-11-1981, n.º 4, nota 1. Cfr., também, a explicação dada por Mary Healy,
Catholic Commentary on Sacred Scripture – The Gospel of Mark, Baker Academic, Washington, 2008:
«Deus não poderia apresentar-se como o Deus de Abraão, Isaac e Jacob se não fosse o seu protetor e
defensor – o que inclui salvá-los da morte no sentido mais profundo da eterna separação d’Ele próprio.
Mais ainda, dado que os seres humanos são corpóreos, a salvação da morte é impossível à margem do
corpo. No pensamento bíblico, o corpo não é apenas um componente da pessoa, é a pessoa na medida
em que está presente no mundo visível. Finalmente, estar vivo é estar vivo como uma pessoa completa,
corpo e alma».
[418]
AG 18-11-1981, n.º 7.

[419]
C. West, Theology of the Body Explained – A Commentary on John Paul II’s Theology of
the Body, Pauline Books & Media, Boston, 2003, p. 245.

[420]
Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.º 150: «Antes de mais, a fé é uma adesão pessoal do
homem a Deus. Ao mesmo tempo, e inseparavelmente, é o assentimento livre a toda a verdade
revelada por Deus». Cfr., também, n.º 143.
[421]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 8.

[422]
K. Wojtyla, «The Teaching of the Encyclical Humanae Vitae on Love, Person &
Community – Selected Essays», in C. West, Theology of the Body Explained – A Commentary on John
Paul II’s Theology of the Body, Pauline Books & Media, Boston, 2003, p. 414.

[423]
S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, III.ª, q. 80, a. 2, ad. 1.

[424]
K. Wotyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 243.
[425]
AG 16-12-1981, n.os 2-3. (Escrevi «como consequência da visão de Deus», de acordo com a
versão inglesa, em vez de «depois da visão de Deus», presente na versão portuguesa.)

[426]
AG 2-12-1981, n.º 2.

[427]
São muito interessantes as reflexões de Fulton Sheen a este propósito: se os cônjuges
idolatram o amor conjugal, se pretendem que o outro seja Deus, acabarão por sentir-se defraudados,
pois o outro não pode ser Deus e alguns irão à procura d’Ele noutro companheiro ou companheira. Pelo
contrário, a constatação de que o amor matrimonial não é o cume do Amor, mas pode encaminhar os
cônjuges para o Amor, fará com que tirem a seguinte conclusão: «Ambos queremos um Amor que
nunca morra e não tenha momentos de ódio ou fastio. Esse amor vai além de nós; apoiemo-nos, pois,
no nosso amor conjugal de um pelo outro, para este nos conduzir para o amor perfeito e felicíssimo,
que é Deus» (cfr. Fulton Sheen, Three to Get Married, Scepter, Nova Iorque, 1996 [reimpressão em
2013], p. 38.)

[428]
Cfr. a breve explicação desta passagem em Mary Healy, Catholic Commentary on Sacred
Scripture – The Gospel of Mark, Baker Academic, Washington, 2008, p. 244: «“Quando ressuscitarem
de entre os mortos, nem eles se casarão, nem elas serão dadas em casamento”. Jesus usa a voz ativa e
passiva do verbo “casar”, usada respetivamente para os homens e as mulheres, o que significa que os
ressuscitados continuarão a ser homens e mulheres».
[429]
AG 2-12-1981, n.º 4. Leia-se, ainda, AG 2-12-1981, n.º 3, e AG 13-1-1982, n.º 3: «Cristo
diz: “Não tomarão mulher nem marido”, mas não afirma que este homem do “mundo futuro” não será
varão e mulher como o foi desde “o princípio”».

[430]
AG 13-1-1982, n.º 4.

[431]
AG 2-12-1981, n.º 5.
[432]
AG 9-12-1981, n.º 1.

[433]
AG 9-12-1981, n.º 2.

[434]
Cfr. AG 9-12-1981, n.º 2.
[435]
AG 9-12-1981, n.º 2.

[436]
S. Leão Magno, Sermão Sobre as Bem-Aventuranças, sermão n.º 95, «Ofício de Leituras do
Sábado da 22.ª Semana do Tempo Comum».

[437]
Catecismo da Igreja Católica, n.º 1770.

[438]
Cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, suplemento, q. 92, a 2.

[439]
S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II.ae, q. 4, a. 6: «Por isso diz S. Agostinho na Carta
ad Dioscorum: “Deus fez a alma de uma natureza tão potente que da sua plena bem-aventurança
redundará o vigor da imortalidade [que é um dos sinais da espiritualização] para a natureza inferior”».
Cfr., também, AG 9-12-1981, n.º 3: «Os “filhos da ressurreição” – como lemos em Lucas 20, 36 – não
apenas “são semelhantes aos Anjos”, mas também “são filhos de Deus”. Pode-se tirar daí a conclusão
de que o grau de espiritualização, próprio do homem “escatológico” terá a sua fonte no grau da sua
“divinização”, incomparavelmente superior àquela que se pode conseguir na vida terrena. É necessário
acrescentar que se trata não só de um grau diferente, mas em certo sentido de outro género de
“divinização”».

[440]
Cfr., por exemplo, o que, com simplicidade, afirma S. Josemaria Escrivá a este propósito
numa das suas homilias: «A fé diz-nos que o homem, em estado de graça, está endeusado. Somos
homens e mulheres; não anjos. Seres de carne e osso, com coração e paixões, com tristezas e alegrias;
mas a divinização envolve o homem todo, como antecipação da ressurreição gloriosa» («Cristo Vive no
Cristão», in Cristo que Passa, n.º 103).

[441]
AG 9-12-1981, n.º 3.

[442]
Clarividentes a este respeito são as palavras de Bento XVI (na carta encíclica Deus Caritas
est, n.º 10), que não se referem explicitamente ao estado escatológico, mas sim à desejada relação do
homem com Deus: «Na verdade, existe uma unificação do homem com Deus – o sonho originário do
homem –, mas esta unificação não é um confundir-se, um afundar-se no oceano anónimo do Divino; é
unidade que cria amor, na qual ambos – Deus e o homem – permanecem eles mesmos, embora
tornando-se plenamente uma só coisa: “Aquele, porém, que se une ao Senhor constitui, com Ele, um só
espírito” – diz São Paulo (1 Cor 6, 17)».
[443]
Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.º 2158: «Deus chama a cada um pelo seu nome».

[444]
Cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, suplemento, q. 92, a. 2.

[445]
S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, suplemento, q. 92, a. 2. Nas respostas às objeções,
escreve ainda, em ad. 2, que não é que vejamos «Deus com os olhos da carne, mas sim que veremos
Deus vivendo na carne».
[446]
AG 16-12-1981, n.º 3. Cfr. Mary Healy, Os Homens e as Mulheres são do Éden, Encontro
da Escrita, Lisboa, 2013, p. 87: «Os nossos corpos tornar-se-ão expressão de uma união esponsal com o
próprio Deus que transcenderá infinitamente a união terrena numa só carne entre marido e mulher».

[447]
AG 16-12-1981, n.º 4.

[448]
Cfr. AG 16-12-1981, n.º 4.
[449]
S. Tomás de Aquino, Collationes Super Credo in Deum – Opuscula Theologica, vol. 2.
(Tradução da Liturgia das Horas, «Ofício de Leitura do Sábado da 33.ª Semana do Tempo Comum».)

[450]
AG 24-3-1982, n.º 1

[451]
AG 13-1-1982, n.º 4. Ajudam a entender o pensamento de S. João Paulo II umas palavras
suas de Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 22: «Não é a sexualidade que
desperta na mulher e no homem a necessidade de dar-se ao outro; pelo contrário, esta necessidade, que
existe em cada pessoa, encontra a sua solução na união física e à base da tendência sexual. Mas a
necessidade mesma do amor nupcial, a de dar-se a outra pessoa e unir-se a ela, é mais profunda e está
ligada ao ser espiritual do homem. A união com um ser humano não o satisfaz totalmente. O
matrimónio, visto sob o aspeto da vida eterna da pessoa, é só uma tentativa de solução ao problema da
união das pessoas, por meio do amor. É necessário reconhecer que é a solução escolhida pela maior
parte das pessoas». (O sublinhado é meu.)

[452]
AG 13-1-1982, n.º 6.
[453]
AG 13-1-1982, n.º 6.

[454]
Cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, III.ª, q. 54, a. 4. Na realidade, várias das razões
dadas por S. Tomás não se relacionam estritamente com a situação no mundo glorioso: as chagas que
Cristo conservou no seu Corpo beneficiam sobretudo a Igreja militante. No entanto, a primeira das
razões é a exceção, pois é válida no mundo escatológico: «Para levar sempre as honras do triunfo da
sua vitória».

[455]
Lemos um belo exemplo de tudo isto na audiência de Bento XVI de 1-2-2012: «Jesus
prostrou-se com a face por terra: é uma posição da oração que exprime a obediência à vontade do Pai, o
abandonar-se com plena confiança nele. É um gesto que se repete no início da Celebração da Paixão, na
Sexta-Feira Santa, assim como na profissão monástica e nas Ordenações diaconal, presbiteral e
episcopal, para expressar na oração, inclusive corporalmente, o confiar-se completo a Deus, o confiar
nele». Cfr., também, AG 27-6-2012: «A genuflexão diante do Santíssimo Sacramento, ou o pôr-se de
joelhos na oração exprimem precisamente a atitude de adoração perante Deus, também com o corpo.
Daqui a importância de realizar este gesto não por hábito e à pressa, mas com consciência profunda.
Quando nos ajoelhamos diante do Senhor, professamos a nossa fé nele, reconhecemos que Ele é o
único Senhor da nossa vida».

[456]
S. Agostinho, Tratado Sobre o Evangelho de S. João, 123, 5 (versão da Liturgia das Horas,
«Ofício de Leitura do Dia 6 de Dezembro: Dia de S. Nicolau»).
[457]
S. Josemaria Escrivá, «Amar o Mundo Apaixonadamente», in Temas Atuais do
Cristianismo, 2.ª ed., Aster, Lisboa, 1973, n.º 115.
[458]
Santo Agostinho, A Santa Virgindade, 10. Em abono da verdade, diga-se que nem tudo o
que S. Agostinho afirma sobre a virgindade cristã coincide na perfeição com o que o Magistério da
Igreja ensina. Por exemplo, ib. 9, 9: «Então, quem tiver capacidade para compreender a santa
virgindade que a compreenda (cfr. Mt 19, 12), e somente se case quem não puder guardar a continência
(cfr. 1 Cor 7, 9)». Nesta perspetiva, o matrimónio é sempre uma segunda opção: só serve para quem
não consegue viver a continência. De facto, não é assim que a Igreja explica a opção pela virgindade,
nem a vocação matrimonial. Neste meu livro, no entanto, interessa-me encontrar os pontos de
coincidência com a teologia do corpo de S. João Paulo II.

[459]
S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II.ae, q. 152, a. 1. (O itálico é meu.) Nas respostas
às objeções deste artigo também fica claro que o essencial da virgindade é a decisão de se abster, pelo
que em caso de violação, por exemplo, a virgindade mantém-se.
No final do n.º 16 da exortação apostólica Familiaris Consortio, onde se explica o valor da
virgindade pelo Reino, S. João Paulo II afirma: «Estas reflexões sobre a virgindade podem iluminar e
ajudar os que, por motivos independentes da sua vontade, não se puderam casar e depois aceitaram a
sua situação em espírito de serviço». É necessário acrescentar que houve quem defendesse que as
palavras de Jesus sobre o terceiro tipo de eunucos se refeririam justamente a quem teria de viver o
celibato pelo facto de o casamento ter corrido mal. A este propósito, leia-se por exemplo, A. Miralles,
El Matrimonio, Palabra, Madrid, 1996, p. 201: «Que se possam incluir, nesta terceira classe de eunucos
pelo Reino dos Céus, os maridos que se separaram de forma justa das suas esposas adúlteras e que se
encontram moralmente obrigados a viver o celibato, pode ser defendido com razão; mas manter que as
palavras do Senhor se referem apenas a eles é uma restrição forçada, contrária à exegese tradicional
deste texto». Pode encontrar-se outro exemplo desta tese em Stromata, II, c. 6, onde Clemente de
Alexandria aplica as palavras de Cristo àqueles que se tinham separado de uma mulher porque esta
tinha tido um comportamento adúltero, mas não podiam voltar a casar-se. Seria interessante estudar a
fundo por que razão não foi esta a interpretação habitual da Tradição. Suponho que, além dessa
situação se assemelhar mais aos casos anteriores dos eunucos por situações forçadas, o exemplo da
opção de Cristo pelo celibato pode ter sido decisivo para se entender aquilo a que Ele realmente queria
referir-se.
De qualquer maneira, será consolador para muitos ler as seguintes palavras de um reputado
moralista que, a meu ver, acentua de modo conveniente o valor da castidade bem vivida por quem é
solteiro por amor a Nosso Senhor: «Since those who are neither married nor committed to complete
continence for the kingdom’s sake usually can and should look forward to making one commitment or
the other, their vocation now is to prepare to fulfill whichever they may eventually make. This requires
not only maintaining their bodies’ capacity for self-giving by not abusing them sexually but employing
that capacity, somewhat as faithful priests and religious do, in unselfish interpersonal relationships. In
doing this, they should not suppose their effort to be chaste will bear fruit only in the future, in relation
to those with whom they will enter into more specific communion later; for it has present benefits for
those with whom they live now in the general communion of Christian life. Moreover, their unselfish
relationships and sexual self-control already manifest the value of the kingdom for which they hope and
the power of the Spirit by whom they walk. Of course, that is true of every aspect of a faithful
Christian’s life, but it is especially true of this one. Not every Catholic adolescent, for instance, has
occasion to bear witness as St. Maria Goretti did, yet the example of unembarrassed chastity given by a
cheerful and outgoing Catholic boy or girl is a powerful proclamation of the gospel in the contemporary
world and a great encouragement to other Christians, not least those already committed to marriage or
complete continence for the kingdom’s sake» (G. Grisez, The Way of The Lord Jesus, vol. 2, capítulo 9,
E, 8, f). O facto de haver pessoas que optaram livremente pelo celibato pode e deve ser um consolo e
uma fonte de inspiração para os que, pelas razões que forem, devem viver uma vida celibatária. Se só
existisse como opção de vida válida o matrimónio, quem não se casasse poderia sentir-se frustrado ou
fracassado. Mas a vida dos que optaram pelo celibato ajuda a compreender que esse tipo de vida pode
ter um alto valor se a viverem com alegria e por amor ao Senhor. Seria necessário, por isso, explorar
este novo motivo para o celibato pelo Reino: a solidariedade espiritual com todos os que, por uma razão
ou outra, devem viver assim.
[460]
«Eunuco», do grego eunochos, significa «guardião da cama». De facto, eune significa
«cama». A origem grega do nome tem que ver com a função que os homens castrados exerciam em
certas culturas (por exemplo, na Mesopotâmia). Leia-se, a este propósito, John L. McKenzie, sj,
Dictionary of the Bible, The Bruce Publishing Company Milwaukee, Chicago, 1965, p. 252: «A razão
da escolha de eunucos para criados e administradores do palácio, em particular do harém, é evidente».

[461]
AG 10-3-1982, n.º 3.

[462]
Lucas Mateo-Seco, «Masculinidad y Feminidad en los Padres Griegos», in Masculinidad y
Feminidad en la Patrística, p. 114.
[463]
Santo Agostinho, A Santa Virgindade, 19, 19.

[464]
Cfr. AG 21-4-1982, n.º 5, e também Santo Agostinho, A Santa Virgindade, 19, 19.
S. Agostinho desfaz a interpretação de que a virgindade seria útil neste mundo por poupar esforços a
quem por ela opta, ao contrário dos trabalhos que o casamento traz consigo.

[465]
AG 21-4-1982, n.º 5.

[466]
AG 5-5-1982, n.º 5.
[467]
AG 5-5-1982, n.º 6.

[468]
Cfr. AG 31-3-1982, n.º 2: «Cristo, na sua resposta, indicou indiretamente que o matrimónio,
fiel à instituição original do Criador (recordemos que o Mestre, exatamente neste ponto, se referia ao
“princípio”), possui uma plena congruência e valor pelo Reino dos Céus, valor que é fundamental,
universal e ordinário. Por seu lado, a continência possui, para este Reino, um valor particular e
“excecional”. Trata-se obviamente da continência escolhida conscientemente por motivos
sobrenaturais».

[469]
Coloco as aspas em «voluntária» porque, embora a pessoa queira de facto viver o celibato,
fá-lo convicta de que se trata de uma resposta à iniciativa de Deus, que lhe quis dar esse dom.

[470]
Cfr. AG 7-4-1982, n.º 1: «Aquele que, em conformidade com as palavras de Cristo,
“compreende” de modo adequado o convite à continência pelo Reino dos Céus, segue-o e conserva
assim a verdade integral da própria humanidade, sem perder, com o passar do tempo, nenhum dos
elementos essenciais da vocação da pessoa criada “à imagem e semelhança de Deus”».
[471]
Congregação para a Educação Católica, Instrução sobre os Critérios de Discernimento
Vocacional acerca das Pessoas com Tendências Homossexuais e da Admissão ao Seminário e às
Ordens Sacras, 4-11-2005.

[472]
AG 17-3-1982, n.º 4.

[473]
AG 17-3-1982, n.º 3.

[474]
AG 24-7-1996, n.º 3.
[475]
AG 24-7-1996, n.º 3.

[476]
AG 24-7-1996, n.º 3.

[477]
Cfr. AG 17-3-1982, n.º 4
[478]
Cfr. AG 24-3-1982, n.º 4.

[479]
Santo Agostinho, Dos Bens do Matrimónio, 22, 27.

[480]
AG 7-4-1982, n.º 3.

[481]
Cfr. 17-3-1982, n.º 5 e AG 5-5-1982, n.º 2. Nesta última audiência, podemos ler: «As
palavras de Cristo aludem indubitavelmente a uma renúncia consciente e voluntária ao matrimónio.
Essa renúncia só é possível quando existe uma autêntica consciência daquele valor que é constituído
pela disposição esponsal da masculinidade e feminilidade para o matrimónio. Para que o homem possa
estar plenamente consciente daquilo que escolhe (a continência por amor do Reino), deve também estar
plenamente consciente daquilo a que renuncia (trata-se aqui precisamente da consciência do valor em
sentido “ideal”; porém esta consciência é totalmente “realista”). Cristo exige certamente, deste modo,
uma escolha madura».
[482]
A ligação entre o celibato e o mundo futuro não a encontramos no diálogo de Jesus com os
fariseus, mas deduzimo-la daquele que manteve com os saduceus, tal como explica S. João Paulo II.
Cfr. AG 10-3-1982, n.º 5: «Com base no contexto imediato das palavras sobre a continência pelo Reino
dos Céus na vida terrena do homem, é necessário ver, na vocação para essa continência, um tipo de
exceção ao que é preferencialmente uma regra geral desta vida. Cristo põe sobretudo em relevo esta
excecionalidade. Que essa exceção encerre, pois, em si a antecipação da vida escatológica privada de
matrimónio e própria do “outro mundo” (isto é, do estádio final do “Reino dos Céus”), Cristo não o diz
aqui diretamente. Trata-se, na verdade, não de continência no Reino dos Céus, mas de continência
“pelo Reino dos Céus”. A ideia da virgindade ou do celibato como antecipação e sinal escatológico
deriva da associação das palavras aqui pronunciadas com as que Jesus proferirá noutra ocasião, no
diálogo com os saduceus, quando proclamar a futura ressurreição dos corpos».

[483]
AG 24-3-1982, n.º 1.

[484]
P. Grelot, La Coppia Umana Nella Sacra Scrittura, Vita e Pensiero, 3.ª ed., Milão, 1987, p.
87.

[485]
AG 24-3-1982, n.º 3.
[486]
Não é só o celibato pelo Reino que é sinal do Reino definitivo. Outras realidades da Nova
Aliança anunciam aspetos diversos desse Reino. Pense-se, por exemplo, na Eucaristia, que é penhor da
eterna glória. Ou, de modo mais abrangente, S. Tomás (na Suma Teológica, I.ª, q. 1, a. 10) afirma o
seguinte, a propósito dos diferentes sentidos da Sagrada Escritura: «Tal como diz o Apóstolo na Carta
aos Hebreus 7, 19, a Antiga Lei é figura da Nova; e a Nova Lei é figura da futura glória».

[487]
AG 31-3-1982, n.º 3.
[488]
Cfr. AG 31-3-1982, n.º 4.

[489]
Cfr. AG 31-3-1982, n.º 4.

[490]
AG 31-3-1982, n.º 3.
[491]
Cfr. AG 21-4-1982, n.º 5.

[492]
J. Ratzinger, O Caminho Pascal, Lucerna, Lisboa, 2006, p. 160. Cfr., também, Bento XVI,
Discurso à Cúria Romana, 22-12-2006: «As razões apenas pragmáticas, a referência à maior
disponibilidade, não são suficientes: esta maior disponibilidade de tempo poderia facilmente tornar-
se também uma forma de egoísmo, que se poupa aos sacrifícios e às fadigas exigidas pelo aceitar-se,
pelo suportar-se reciprocamente no matrimónio; poderia assim levar a um empobrecimento espiritual
ou a uma dureza de coração. O verdadeiro fundamento do celibato pode estar contido apenas na frase
“Dominus pars” (“Tu és a minha terra?”). Pode ser apenas teocêntrico.
Não pode significar permanecer privados de amor, mas deve significar deixar-se arrebatar pela
paixão por Deus, e aprender depois, graças a um estar com Ele mais íntimo, a servir também os
homens».
[493]
Cfr. AG 28-4-1982, n.º 6: «Como recordamos das análises anteriores, realizadas com base
no livro do Génesis (cfr. Gen 2, 23-25), essa relação recíproca da masculinidade e feminilidade,
aquele recíproco “para” do homem e da mulher, só pode ser compreendido de modo apropriado e
adequado no processo dinâmico do sujeito pessoal. As palavras de Cristo em Mateus (19, 11-12)
mostram consequentemente que este “para”, presente “desde o princípio” na base do matrimónio,
pode também estar na base da continência “pelo” Reino dos Céus! Com base na mesma disposição
do sujeito pessoal, graças à qual o homem se redescobre plenamente através do dom sincero de si
(cfr. Gaudium et Spes, n.º 24), o homem (varão ou mulher) é capaz de escolher a doação pessoal de si
próprio, feita a outra pessoa no pacto conjugal em que se tornam “uma só carne”, e é também capaz
de renunciar livremente a essa doação de si a outra pessoa, para que, optando pela continência “pelo
Reino dos Céus”, possa doar-se a si mesmo totalmente a Cristo. Com base na mesma disposição do
sujeito pessoal, e com base no mesmo significado esponsal do ser enquanto corpo, varão ou mulher,
pode plasmar-se o amor que compromete o homem no matrimónio para toda a sua vida (cfr. Mt 19, 3-
10), tal como pode também plasmar-se o amor que empenha o homem por toda a vida na continência
“pelo Reino dos Céus” (cfr. Mt 19, 11-12)».

[494]
AG 21-4-1982, n.º 9. Cfr., também, S. João Paulo II, carta apostólica Novo Millenio
Ineunte, n.º 33.
Em E. Burkhart e J. Lopes, Vida Cotidiana y Santidad en la Enseñanza de San Josemaría, vol. 2,
Rialp, Madrid, 2011, pp. 495-506, encontramos um interessante apêndice sobre «O Amor Filial e o
Amor Esponsal». Resumindo, os autores explicam como, ao longo da espiritualidade cristã, se usou a
comparação ou metáfora do amor esponsal sob três perspetivas: 1) a de qualquer batizado, casado ou
não, na medida em que se trata de uma aliança com Deus que «reclama a indissolubilidade e se ordena
à fecundidade, à transmissão da vida sobrenatural»; 2) a da opção de vida dos consagrados; e 3) uma
última ligada ao sacerdócio, embora neste caso se apoie no sacramento da Ordem que, de certa maneira,
faz do sacerdote esposo da Igreja – pois faz as vezes do Esposo. Interessa-nos agora a segunda
perspetiva, que é a mais vinculada ao celibato. Os autores defendem que a imagem esponsal foi
aplicada desde o início aos consagrados e está vinculada a um certo afastamento do mundo. Assim
sendo, a imagem esponsal poderia não ser a mais apropriada para um leigo que tivesse optado pelo
celibato. O tema é muito interessante e merece, a meu ver, mais investigação teológica. Desejo apenas
sublinhar que S. João Paulo II, nas catequeses de teologia do corpo, aplica a imagem da união esponsal
a quem optou pelo celibato pelo Reino, sem fazer qualquer distinção entre consagrados ou não.
Embora seja verdade, como referem os autores
(p. 503, cit. 771), que S. João Paulo II afirma, na Mulieris Dignitatem, n.º 25, o caráter do amor
esponsal de Deus por cada batizado (primeira perspetiva), não é menos certo que, no mesmo
documento, reafirmara antes a segunda perspetiva da metáfora esponsal, aplicando-a a quem escolhe o
celibato pelo Reino. Por exemplo, no n.º 20, podemos ler: «Portanto, o celibato por amor do Reino dos
Céus é fruto não só de uma escolha livre da parte do homem, mas também de uma graça especial da
parte de Deus, que chama determinada pessoa para viver o celibato. Se este é um sinal especial do
Reino de Deus que deve vir, ao mesmo tempo serve também para dedicar de modo exclusivo todas as
energias da alma e do corpo, durante a vida temporal, ao Reino escatológico». Mais adiante, aplicando
a tese à mulher célibe, acrescenta: «Na virgindade livremente escolhida, a mulher confirma-se como
pessoa, isto é, como criatura que o Criador desde o início quis por si mesma, e, ao mesmo tempo,
realiza o valor pessoal da própria feminilidade, tornando-se “um dom sincero” para Deus que se
revelou em Cristo, um dom para Cristo Redentor do homem e Esposo das almas, um dom “esponsal”.
Não se pode compreender corretamente a virgindade, a consagração da mulher na virgindade, sem
recorrer ao amor esponsal: é, de facto, num amor como esse que a pessoa se torna um dom para o
outro. De resto, de modo análogo deve ser entendida a consagração do homem no celibato sacerdotal
ou no estado religioso». Insisto que, embora neste último parágrafo se possa afirmar que S. João Paulo
II apenas se refere à consagração religiosa (portanto, à segunda perspetiva da metáfora esponsal), penso
que traduz o seu entender do que é o celibato pelo Reino em geral – o que o leva a concluir o número
do documento com a distinção de quem fica solteiro: «Isso não pode ser comparado ao simples
permanecer solteiros ou celibatários, porque a virgindade não se restringe ao simples “não”, mas
contém um profundo “sim” na ordem esponsal: o doar-se por amor de modo total e indiviso». Em
qualquer caso, nas catequeses, S. João Paulo II fala do celibato pelo Reino sem o vincular
necessariamente à consagração religiosa.
Gostaria de acrescentar algo mais sobre o tema em si. No que se refere à primeira perspetiva da
metáfora esponsal, os autores insistem que o mais próprio da condição do batizado é ser filho, até
porque aqui não se trata de uma mera metáfora mas de uma analogia, porque somos incorporados a
Cristo, que é o Filho natural de Deus. Os autores sugerem que a metáfora esponsal neste campo
ajudaria a acentuar o caráter de filiação adotiva, em contraste com a filiação natural do Verbo
encarnado. Pessoalmente, concordo que a nossa filiação a Deus é o que melhor caracteriza a nossa
condição de batizados: é essa, por exemplo, a mensagem de Cristo ressuscitado a Maria Madalena
(«Mas vai a meus irmãos e diz-lhes que subo para meu Pai e vosso Pai» [Jo 20, 17]) e essa é também a
imagem que Cristo dá de Deus na parábola do Filho Pródigo: mesmo as palavras finais que o Pai dirige
ao filho mais velho – «Tudo o que é meu é teu» – que, fora de contexto, poderiam ter uma conotação
esponsal, são ditas na perspetiva da paternidade. Isto é, se entendêssemos bem o significado da filiação
a Deus, talvez pudessem sobrar outras comparações. No entanto, na minha opinião, o recurso à
metáfora esponsal acentua em nós um elemento que, não deixando de poder estar presente na filiação,
dada a nossa situação neste mundo, é mais visível no amor esponsal, a saber: a doação. Não somos
filhos que «apenas» recebem do Pai, mas somos filhos que devem «dar» e dar-se ao Pai. A imagem da
esponsalidade contribui para que entendamos melhor a necessidade de corresponder com um amor que
se apoia em todos os nossos recursos. Além disso, a meu ver, o caráter esponsal sublinha a relação
pessoal que Deus quer manter com cada um. Esse mesmo entendimento da metáfora esponsal pode ser
aplicado ao caso do celibato pelo Reino, no qual a pessoa recebe uma graça que lhe permite dar-se a
Deus com uma tónica de exclusividade, que inclui também a doação do corpo, e um caráter livremente
definitivo – que, na analogia filial, pelo menos subjetivamente falando, podem não estar tão marcados.
Ao mesmo tempo, como se pode ler na Mulieris Dignitatem, n.º 21, também é sugestivo o caráter da
maternidade espiritual que fica vincada no celibato pelo Reino.
Outro assunto interessante seria verificar em que medida a imagem esponsal é aplicada
indiferentemente a homens e mulheres célibes, pois aparece muito mais ligada a mulheres. S. João
Paulo II também não se refere a este assunto nas catequeses.
[495]
AG 21-4-1982, n.º 3.

[496]
Cfr. AG 14-4-1982, n.º 2: «O matrimónio e a continência nem se contrapõem um ao outro,
nem dividem de per si a comunidade humana (e cristã) em dois campos (digamos, dos “perfeitos”, em
virtude da continência, e dos “imperfeitos”, ou menos perfeitos, devido à realidade da vida conjugal).
Mas estas duas situações fundamentais, ou, como se costuma dizer, estes dois “estados”, explicam-se
ou completam-se reciprocamente, em certo sentido, quanto à existência e à vida [cristã] dessa
comunidade».

[497]
AG 14-4-1982, n.º 4.

[498]
Cfr. AG 28-4-1982, n.os 3-4.
[499]
Cfr. AG 14-4-1982, n.º 5.

[500]
Cfr. AG 14-4-1982, n.º 5.

[501]
Cfr. AG 28-4-1982, n.os 3-4.

[502]
Cfr. AG 28-4-1982, n.os 3-5.
[503]
Cfr. AG 7-4-1982, n.º 6. «A “superioridade” da continência sobre o matrimónio não
significa nunca, na autêntica Tradição da Igreja, uma depreciação do matrimónio ou uma diminuição
do seu valor essencial. Nem significa tão-pouco um desvio, nem sequer implícito, para as posições
maniqueístas, ou um apoio a formas de avaliar e agir que se fundam na compreensão maniqueísta do
corpo e do sexo, do matrimónio e da geração. A evangélica e autenticamente cristã superioridade da
virgindade, da continência é, portanto, ditada por motivo do Reino dos Céus. Nas palavras de Cristo
referidas por Mateus (19, 11-12), encontramos uma base sólida para admitir apenas esta superioridade».
Cfr., também, K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pp. 244-5: «Muito
menos se deve crer, embora muita gente assim pense, que o mero predomínio dos valores espirituais
sobre os valores físicos é que determina o verdadeiro valor da virgindade. Segundo esta conceção, a
vida conjugal equivaleria à prevalência, se não à escolha exclusiva, dos valores físicos no matrimónio,
enquanto a virgindade seria a preferência da superioridade do espírito sobre o corpo e sobre a matéria.
É fácil confundir assim um elemento de verdade com a oposição maniqueísta entre o espírito e a
matéria. O matrimónio não é de modo nenhum só uma “questão de corpo”. Para alcançar o seu pleno
valor é necessário basear-se, como a virgindade ou o celibato, numa eficaz mobilização das energias
espirituais do homem. […] o critério da superioridade do espírito sobre o corpo não permite apreciar o
valor da virgindade. O valor, antes a superioridade da virgindade sobre o matrimónio, salientada na
Epístola aos Coríntios (1 Cor 7) e sempre defendida na doutrina da Igreja, provém da função
particularmente importante por ela desempenhada na realização do Reino dos Céus na terra. Os homens
vão-se tornando pouco a pouco dignos da união eterna com Deus, graças à qual o desenvolvimento
objetivo do homem atinge o seu ponto culminante. A virgindade enquanto dom de si, que a pessoa
humana faz por amor de Deus, adianta-se a esta união e indica o caminho a seguir. Cfr., ainda, S. João
Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 22.

[504]
Cfr. AG 14-4-1982, n.º 1: «Ele propõe aos seus discípulos o ideal da continência e o apelo a
esta, não por motivo de inferioridade ou em prejuízo da “união” conjugal “no corpo”, mas só “pelo
Reino dos Céus”».

[505]
Cfr. AG 7-4-1982, n.º 5.

[506]
Cfr. AG 21-4-1982, n.º 3: «Assim, portanto, na continência pelo Reino de Deus coloca-se
em evidência, como já mencionámos, a renúncia a si mesmo, o tomar a própria cruz, dia após dia, e
seguir Cristo (cfr. Lc. 9, 23), que pode chegar até ao ponto de renunciar ao matrimónio e a uma família
própria. Tudo isto deriva da convicção de que, deste modo, é possível contribuir em maior medida para
a realização do Reino de Deus, na sua dimensão terrena, com a perspetiva da realização escatológica».
(O sublinhado é meu.)

[507]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos livros, Lisboa, 1999, pp. 244. (O sublinhado
é meu.)

[508]
Cfr. AG 30-6-1982, n.os 8 e 9.
[509]
AG 30-6-1982, n.º 10.

[510]
AG 7-7-1982, n.º 1. Na versão inglesa, a palavra traduzida por «fundamento» é background;
em espanhol, é trasfondo. Talvez fosse mais exato usar a expressão «pano de fundo».

[511]
Bento XVI, Discurso à Cúria Romana, 22-12-2006.

[512]
AG 7-7-1982, n.º 2.
[513]
Cfr. AG 7-7-1982, n.º 5.

[514]
AG 14-7-1982, n.º 2.

[515]
AG 30-6-1982, n.º 3.

[516]
S. Josemaria Escrivá, Caminho, n.º 27.
[517]
S. João Paulo II refere a «esperança de cada dia» como a «esperança na vitória sobre o
pecado» (cfr. AG 21-7-1982, n.º 6 e a citação correspondente à nota seguinte).

[518]
AG 21-7-1982, n.º 7

[519]
Cfr. AG 5-5-1982, n.º 5.

[520]
AG 28-7-1982, n.º 6.
[521]
Cfr. AG 11-8-1982, n.º 3.

[522]
Cfr. AG 11-8-1982, n.º 4.

[523]
AG 1-9-1982, n.º 6.

[524]
AG 18-8-1982, n.º 2.
[525]
Cfr. AG 18-8-1982, n.º 1 e AG 13-10-1982, n.º 5. Há diversas intervenções que esclarecem
bem o pensamento de S. João Paulo II sobre o termo «realização». Vejam-se, por exemplo: AG 29-9-
1982, n.º 1; AG 13-10-1982, n.os 1-3; e AG 15-12-1982, n.º 8.
[526]
Convém recordar que já Pio XI, na encíclica Casti Connubii, n.º 83, sublinhou o aspeto
sagrado do matrimónio natural: «Principalmente, quem queira investigar os antigos monumentos da
história, interrogar a imutável consciência dos povos e consultar as instituições e os costumes de todas
as gentes pode deduzir claramente, ainda que só à luz da razão, ser inerente ao próprio matrimónio
natural qualquer coisa de sagrado e religioso, “não sobrevinda mas congénita, não recebida dos homens
mas fazendo parte da natureza”, visto o matrimónio ter “Deus por autor e ter sido desde o princípio tal
ou qual imagem da Encarnação do Verbo de Deus” (Leão XIII, carta encíclica Arcanum, 10-2-1880)».

[527]
AG 6-10-1982, n.º 7.

[528]
AG 6-10-1982, n.º 6.
[529]
AG 20-10-1982, n.º 2.

[530]
Cfr. Mary Healy, Os Homens e as Mulheres são do Éden, Encontro da Escrita, Lisboa,
2013, p. 100.

[531]
Cfr. C. West, Theology of the Body Explained – A Commentary on John Paul II’s Theology
of the Body, Pauline Books & Media, Boston, 2003, p. 362.

[532]
AG 13-10-1982, n.º 1.
[533]
AG 13-10-1982, n.º 5. S. João Paulo II faz notar que vai usar o termo «sacramento» num
sentido mais amplo do que aquele habitualmente usado em teologia. Explica-o numa longa nota de pé
de página, publicada na AG 8-9-1982 e que conclui assim: «O sacramento é aqui entendido – em
conformidade com o seu significado originário – como realização do eterno plano divino relativo à
salvação da humanidade». No texto das catequeses, na AG de 20-10-1982, n.º 8, encontram-se também
palavras bem esclarecedoras: «Em relação a este significado tão circunscrito [o habitual e que se aplica
aos sete sacramentos], servimo-nos nas nossas considerações de um significado mais amplo e mais
fundamental do termo “sacramento”. A Carta aos Efésios, e particularmente Ef 5, 22-33, parece
autorizar-nos de modo particular a isto. Sacramento significa aqui o próprio mistério de Deus, que está
escondido desde a eternidade, todavia não na sua ocultação eterna, mas, primeiramente, na sua própria
revelação e realização (também: na revelação mediante realização). Neste sentido se falou também do
sacramento da criação e do sacramento da Redenção». (A versão portuguesa, em vez de «realização»,
usa «atuação», palavra que, a meu ver, é menos compreensível.)

[534]
Cfr. AG 18-8-1982, n.º 3: «Na essência do matrimónio encerra-se uma parcela do mistério.
De outro modo toda esta analogia ficaria suspensa no vácuo». Como veremos, os esposos cristãos
participam, através do sacramento do matrimónio, do amor de Cristo pela Igreja. Este amor não é
apenas um modelo externo a imitar. Cada cônjuge cristão, se permanecer em graça, ama o outro
também com o amor de Cristo.

[535]
AG 8-9-1982, n.os 1 e 3.

[536]
Cfr. AG 13-10-1982, n.º 3.
[537]
Cfr. AG 25-8-1982, n.º 4.

[538]
AG 1-9-1982, n.º 5. É claro que os esposos não se transformam ontologicamente num único
ser quando têm relações. Mas a verdade é que o vínculo matrimonial, que une perpetuamente os
esposos, tem caráter ontológico e não meramente moral. Eles quiseram unir-se (consentimento), mas o
resultado desse querer é o vínculo que, no matrimónio cristão, os une entre eles e, de um modo
singular, os une ao amor de Cristo pela Igreja. A realidade dessa união já não depende das suas
vontades, ainda que possa ser bem ou mal vivida. Suponho que, com as palavras sobre a unidade de
tipo moral e não ontológico, S. João Paulo II quer realçar sobretudo que os esposos não perdem a sua
identidade e que a sua união física não anula essa identidade. No entanto, insisto, a união entre os
esposos vai além do mero querer deles. Cfr. Carlo Caffarra, «Ontologia Sacramentale e Indissolubilità
del Matrimonio», in Permanere nella Verità di Cristo, Cantagalli, Siena, 2014, pp. 155-167.

[539]
AG 18-8-1982, n.os 2-3.

[540]
AG 15-12-1982, n.º 4.

[541]
Cfr., por exemplo, a sua primeira carta encíclica (Redemptor Hominis), sobretudo o capítulo
2.

[542]
S. João Paulo II, exortação apostólica Familiaris Consortio, n.º 13. (Os sublinhados são
meus.)

[543]
Cfr. AG 15-12-1982, n.º 6.

[544]
AG 15-12-1982, n.º 8. Releia-se o que dissemos sobre este tema no final do capítulo 3,
nomeadamente na última citação do mesmo.
[545]
AG 15-12-1982, n.º 8.

[546]
Cfr. S. João Paulo II, carta apostólica Salvifici Doloris, n.º 19: «Todo o homem tem uma sua
participação na Redenção. E cada um dos homens é também chamado a participar naquele sofrimento,
por meio do qual se realizou a Redenção; é chamado a participar naquele sofrimento, por meio do qual
foi redimido também todo o sofrimento humano. Realizando a Redenção mediante o sofrimento, Cristo
elevou ao mesmo tempo o sofrimento humano ao nível de Redenção. Por isso, todos os homens, com o
seu sofrimento, se podem tornar também participantes do sofrimento redentor de Cristo».
É preciso acrescentar que, na última das catequeses (AG 28-11-1984, n.º 2), S. João Paulo II
reconhece que o conceito de teologia do corpo não abrange apenas os temas tocados nelas – a redenção
do corpo e a sacramentalidade do matrimónio –, mas também outros aspetos, tais como o problema do
sofrimento e da morte, que são tão decisivos na mensagem bíblica. Em relação à possibilidade de
iluminar a morte, leia-se o Catecismo da Igreja Católica, n.º 1011:
«É por isso que o cristão pode experimentar, em relação à morte, um desejo semelhante ao de
S. Paulo: “Desejaria partir e estar com Cristo” (Fl 1, 23). E pode transformar a sua própria morte num
ato de obediência e amor para com o Pai, a exemplo de Cristo (cfr. Lc 23, 46)».
[547]
AG 24-11-1982, n.º 2.

[548]
Cfr. AG 24-11-1982, n.º 4: «Se o matrimónio como sacramento é sinal eficaz da ação sal-
vífica de Deus “desde o princípio”, ao mesmo tempo […] este sacramento constitui também uma
exortação dirigida ao homem, varão e mulher, a participar conscienciosamente na redenção do
corpo».

[549]
Cfr. AG 24-11-1982, n.º 3.
[550]
AG 24-11-1982, n.º 6.

[551]
AG 1-12-1982, n.º 1.

[552]
AG 1-12-1982, n.º 7. (O sublinhado é meu.)
[553]
AG 1-12-1982, n.º 10.

[554]
Papa Francisco, AG 29-4-2015.

[555]
AG 27-6-1984, n.º 5.

[556]
Ritual Romano, «Celebração do Matrimónio».
[557]
AG 5-1-1983, n.º 3.

[558]
Como é sabido, a Igreja Católica aceita que em determinados casos, e apenas pela
intervenção do Romano Pontífice, um matrimónio celebrado validamente («rato», como se diz em
terminologia derivada do latim) mas não posteriormente consumado (isto é, sem ter havido nenhuma
relação sexual) possa ser dissolvido. No entanto, se o matrimónio é rato e consumado, a Igreja afirma
que nenhuma intervenção humana pode dissolver a união (Cfr. Código de Direito Canónico, cânones
1141-1142). É de notar que apenas no matrimónio sacramental existem efeitos jurídicos derivados da
relação conjugal (para o matrimónio civil, a relação conjugal nada muda do ponto de vista jurídico).
Além do percurso histórico que levou a Igreja a esta conclusão, seria interessante, partindo deste dado,
refletir sobre o relevo que a Igreja atribui ao ato sexual no casamento.

[559]
AG 5-1-1983, n.º 4.

[560]
Cfr. Código de Direito Canónico, cânones 1096, 1099 e 1101-1103.
[561]
Cfr. AG 5-1-83, n.º 6: «A administração do sacramento consiste no seguinte: no momento
em que contraem matrimónio, o homem e a mulher, com as palavras adequadas e na releitura da perene
“linguagem do corpo”, formam um sinal, um sinal irrepetível, que também tem um significado de
perspetiva [a versão inglesa diz: «also has a future-oriented meaning»]: “todos os dias da minha vida”,
ou seja, até à morte». Cfr., também, por exemplo: AG 19-1-1983, n.º 2; TOB 108, n.º 1; TOB 109, n.º
5; TOB 110, n.º 6; TOB 111, n.º 2; e TOB113, n.º 6.

[562]
Cfr. TOB 115, n.º 4. Talvez mais significativas sejam as palavras da AG 4-7-1984, n.º 2: «A
liturgia, a língua litúrgica, eleva o pacto conjugal do homem e da mulher, baseado na “linguagem do
corpo”, relida na verdade, às dimensões do “mistério” e, ao mesmo tempo, consente que aquele pacto
se realize nas citadas dimensões através da “linguagem do corpo”». Como teremos ocasião de estudar, a
expressão «língua litúrgica» entra em cena no comentário ao Livro de Tobias.

[563]
Cfr., por exemplo, AG 5-1-1983, n.º 6.

[564]
Cfr. AG 12-1-1983, n.º 1.
[565]
Cfr. AG 12-1-1983, n.º 8.
[566]
AG 26-1-1983, n.º 1.

[567]
AG 12-1-1983, n.º 7 e AG 19-1-1983, n.º 2.

[568]
AG 12-1-1983, n.º 8. (Modifiquei ligeiramente a versão portuguesa cotejando-a com a
versão inglesa, para tornar o texto mais claro.) Bento XVI, na sua primeira carta encíclica (Deus
Caritas est), recordou a analogia. Lemos no n.º 9: «Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel
descreveram esta paixão de Deus pelo seu povo, com arrojadas imagens eróticas. A relação de Deus
com Israel é ilustrada através das metáforas do noivado e do matrimónio; consequentemente, a idolatria
é adultério e prostituição». E, de modo ainda mais sugestivo, no n.º 11: «À imagem do Deus monoteísta
corresponde o matrimónio monogâmico. O matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-
se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a
medida do amor humano. Esta estreita ligação entre eros e matrimónio na Bíblia quase não encontra
paralelos literários fora da mesma».

[569]
AG 12-1-1983, n.º 3.

[570]
S. João Paulo II, exortação apostólica Familiaris Consortio, n.º 11. (O sublinhado é o meu.)
A expressão «parte integral» é significativa: por um lado, significa que sem essa parte o amor fica sem
algo que lhe é próprio; por outro lado, significa que deve estar integrado num todo, não é um acessório
que se possa usar isoladamente. Cfr., também, Alexander Puss, One Body, University of Notre Dame,
Indiana, 2013, p. 319, onde é usado um argumento interessante: «The physical is not infinitely elastic;
it does not adapt to our wishes; it can be recalcitrant. […] And this recalcitrance includes the fact that
certain physical things have innate meanings. And they had better – otherwise communication could
not get off the ground, since some gesture or sound had to have innate meanings in order to avoid the
regress in which every gesture or sound is defined in terms of another».

[571]
AG 19-1-1983, n.º 4.

[572]
Cfr. AG 19-1-1983, n.º 4.
[573]
AG 19-1-1983, n.º 6. (Modifiquei ligeiramente a versão portuguesa.)

[574]
Tanto a versão portuguesa das catequeses como as versões espanhola e italiana presentes no
site do Vaticano referem-se aos protagonistas do Cântico como «esposos». A edição inglesa de
Waldstein usa bride e bridegroom, o que se aproxima mais de «noiva» e «noivo». Mantive a tradução
portuguesa nas citações originais das catequeses, mas nos comentários pessoais senti-me na liberdade
de optar pelas palavras «noivo» ou «noiva». Até porque parecem aplicar-se melhor ao contexto do
Cântico dos Cânticos.

[575]
Cfr. TOB 109, n.º 2: «A presença destes elementos neste livro que faz parte do cânon da
Sagrada Escritura demonstra que eles e a “linguagem do corpo” afim contêm um primordial e essencial
sinal de santidade».

[576]
Cfr. TOB 109, n.º 1.
[577]
AG 19-1-1983, n.º 6. (Ainda que o Cântico dos Cânticos não fale explicitamente de
«matrimónio», as palavras dos noivos dificilmente poderiam ser entendidas fora de um horizonte
esponsal.)
[578]
AG 23-5-1984, n.º 2.

[579]
AG 23-5-1984, n.º 2.

[580]
TOB 109, n.º 1.
[581]
TOB 109, n.º 1.

[582]
AG 23-5-1984, n.º 3.

[583]
AG 23-5-1984, n.º 4.

[584]
S. Josemaria Escrivá, Temas Atuais do Cristianismo, Prumo/Aster, 2.ª ed., Lisboa, 1984, n.º
107.
[585]
AG 30-5-1984, n.º 4. (A versão portuguesa usa a expressão «contexto fraterno»; a versão
inglesa usa fraternal theme; a versão espanhola cuestión fraterna, e a versão italiana trama fraterna.
Escolhi usar indistintamente as expressões «trama fraterna» e «questão fraterna», por me parecerem
mais exatas do que «contexto fraterno». O próprio Papa, ao enunciar o tema seguinte, refere que vai
propor não tanto um outro contexto, mas sim um «outro substrato de conteúdo». Portanto, são dois
assuntos – um deles o fraterno – e não tanto dois contextos.)

[586]
TOB 110, n.º 3.

[587]
TOB 109, n.º 6.

[588]
Cfr., por exemplo, C. West, Heaven’s Song, Ascension Press, West Chester, Pennsylvania,
2008, p. 60.
[589]
AG 30-5-1984, n.º 3.

[590]
S. João Paulo II retoma esta ideia numa audiência posterior (TOB 114, n.º 2), ao comentar a
passagem do Livro de Tobias em que o pai de Sara, ao entregá-la como esposa a Tobias, afirma que
será sua irmã. E conclui: «Isto significa que entre os jovens deve formar-se, através do matrimónio, um
amor recíproco similar ao que une a irmã com o irmão».

[591]
AG 30-5-1984, n.º 2.

[592]
TOB 110, n.º 7.
[593]
Cfr. TOB 110, n.º 6.

[594]
TOB 110, n.º 6.

[595]
AG 30-5-1984, n.º 4. (Modifiquei ligeiramente a tradução, por motivos de clareza.)

[596]
AG 30-5-1984, n.º 5.
[597]
AG 30-5-1984, n.º 5.

[598]
AG 6-6-1984, n.º 1.

[599]
AG 6-6-1984, n.º 3.
[600]
AG 6-6-1984, n.º 3. (Modifiquei ligeiramente a tradução portuguesa da primeira frase.)

[601]
AG 6-6-1984, n.º 2.

[602]
Cfr. TOB 112, n.º 3.

[603]
Concílio Vaticano II, constituição dogmática Lumen Gentium, n.º 11. Cfr., também,
Catecismo da Igreja Católica, n.º 1641. No último capítulo do livro, tocaremos o tema da
espiritualidade conjugal.
[604]
TOB 112, n.º 5.

[605]
AG 6-6-1984, n.º 3.

[606]
Bento XVI, carta encíclica Deus Caritas est, n.º 6.

[607]
TOB 113, n.º 1. A expressão da neovulgata diz assim: «Dura sicut inferno aemulatio». As
traduções variam muito.
[608]
TOB 113, n.º 1.

[609]
Tanto no amor humano como na união de Cristo com a alma cristã, o ciúme que manifesta a
vontade de que esse amor não seja atraiçoado é algo bom (cfr. M. A. Tábet, Introducción al Antiguo
Testamento, vol. 3: «Libros Poéticos y Sapienciales», Palabra, Madrid, 2007, p. 154.)

[610]
AG 6-6-1984, n.º 4.

[611]
TOB 112 n.º 6. (O sujeito é o corpo, como o leitor terá entendido.)
[612]
TOB 111 n.º 6.

[613]
Bento XVI, encíclica Deus Caritas est, n.º 7.

[614]
S. João Paulo II, exortação apostólica Familiaris Consortio, n.º 20.

[615]
G. Barbieri, Cantico dei Cantici – I libri biblici 24, Paoline, Milão, 2004, p. 445 (citado em
M. A. Tábet, Introducción al Antiguo Testamento, vol. 3: «Libros Poéticos y Sapienciales», Palabra,
Madrid, 2007, p. 154).
[616]
M. A. Tábet, Introducción al Antiguo Testamento, vol. 3: «Libros Poéticos y Sapienciales»,
Palabra, Madrid, 2007, p. 153.

[617]
Cfr. AG 4-7-1984, n.º 2: «Os sacramentos inserem a santidade no terreno da humanidade do
homem: penetram a alma e o corpo, a feminilidade e a masculinidade do sujeito pessoal, com a força da
santidade».

[618]
Bento XVI, AG 3-8-2011.
[619]
Tal como nas audiências sobre o Cântico dos Cânticos, há uma divergência entre o que foi
lido e o que estava preparado. S. João Paulo II dedicou apenas uma audiência a comentar o Livro de
Tobias (a de 27 de junho de 1984). A edição inglesa a que me tenho referido, em paralelo com o texto
lido, apresenta as três audiências preparadas (numeradas nessa edição como «TOB 114», «TOB 115» e
«TOB 116»), que S. João Paulo II sintetizou em apenas uma. Tal como procurei fazer no capítulo
precedente, sempre que for possível citar a audiência lida fá-lo-ei. No entanto, quando há ideias e
palavras que estão contidas apenas nas audiências não lidas, não deixo de me apoiar nelas, pois
permitem aprofundar no pensamento de S. João Paulo II.

[620]
Cfr. TOB 116, n.º 2.

[621]
G. Weigel, Testemunho de Esperança, Bertrand, Lisboa, 2000, p. 89.

[622]
AG 27-6-1984, n.º 3.
[623]
TOB 115, n.º 1.

[624]
AG 27-6-1984, n.º 3.

[625]
AG 27-6-1984, n.º 3.

[626]
Cfr. TOB 115, n.º 3.
[627]
TOB 115, n.º 3.

[628]
Cfr. C. West, Theology of the Body Explained – A Commentary on John Paul II’s Theology
of the Body, Pauline Books & Media, Boston, 2003, pp. 406-407.

[629]
C. West, Theology of the Body Explained – A Commentary on John Paul II’s Theology of
the Body, Pauline Books & Media, Boston, 2003, p. 407.

[630]
TOB 116, n.º 2.
[631]
TOB 116, n.º 2.

[632]
TOB 116, n.º 2.

[633]
AG 4-7-1984, n.º 5.
[634]
TOB 115, n.º 6.

[635]
TOB 116, n.º 3.

[636]
Cfr. TOB 116, n.º 2.
[637]
TOB 115, n.º 6.

[638]
AG 27-6-1984, n.º 5.

[639]
Cfr. AG 27-6-1984, n.º 5.

[640]
Como o leitor certamente sabe, na Igreja Católica latina os ministros do sacramento do
matrimónio são os próprios contraentes. O sacerdote é, nesse rito, uma testemunha qualificada que
recebe, em nome da Igreja, o compromisso mútuo dos esposos. O sacerdote também ajuda a que os
contraentes tenham a consciência de «executar» o compromisso conjugal diante de Deus. Cfr.
Catecismo da Igreja Católica, n.º 1623: «Segundo a tradição latina, são os esposos quem, como
ministros da graça de Cristo, mutuamente se conferem o sacramento do Matrimónio, ao exprimirem,
perante a Igreja, o seu consentimento». A referência ao rito latino é importante porque, nas tradições
orientais, a bênção do sacerdote é também necessária para que o casamento se realize.
[641]
AG 27-6-1984, n.º 4.

[642]
AG 4-7-1984, n.º 2.

[643]
AG 4-7-1984, n.os 2-3.

[644]
AG 4-7-1984, n.º 3. (Modifiquei ligeiramente a versão portuguesa, cotejando-a com a
inglesa).
[645]
O título deste capítulo corresponde ao de uma extraordinária conferência da professora Janet
Smith, da qual foi distribuído mais de um milhão de cópias. O leitor pode encontrar com facilidade o
texto na Internet (cfr., por exemplo: http://janetsmith.excerptsofinri.com/).

[646]
AG 28-11-1984, n.º 2.

[647]
Bento XVI, AG 10-5-2008. A 12 de fevereiro de 1997, foi publicado, pela Congregação para
a Doutrina da Fé, o Vademecum para os Confessores, onde se afirma que o núcleo moral da referida
encíclica contém «uma doutrina definitiva e irreformável» (cfr. n.º 2.4).

[648]
Joseph Ratzinger (entrevistado por Peter Seewald), O Sal da Terra, Multinova, Lisboa,
1997, pp. 157-158. (No entanto, segui sobretudo a tradução da versão espanhola, por motivos de
clareza.)
[649]
S. João Paulo II, exortação apostólica Familiaris Consortio, n.º 28.

[650]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 232. Cfr., também, a
sugestiva intervenção do Papa Francisco, AG 18-2-2015: «Em família, entre irmãos, aprendemos a
convivência humana, como devemos conviver na sociedade. Talvez nem sempre estejamos conscientes
disto, mas é precisamente a família que introduz a fraternidade no mundo! A partir desta primeira
experiência de fraternidade, alimentada pelos afetos e pela educação familiar, o estilo da fraternidade
irradia como uma promessa sobre a sociedade inteira e sobre as relações entre os povos».

[651]
Concílio Vaticano II, constituição pastoral Gaudium et Spes, n.º 48.

[652]
Sobre este assunto, permito-me remeter o leitor também para o meu livro Maternidade e
Vida à Luz do Evangelho, Diel, Lisboa, 1997.
[653]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 41.

[654]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 43.

[655]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 16.

[656]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 20. (O itálico é meu.)
[657]
Cfr. AG 25-7-1984, n.º 4.

[658]
S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I.ª, q. 5, a. 4, ad. 3.

[659]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 25.

[660]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 12.
[661]
Cfr. M. Rhonheimer, Ética de la Procreación, Rialp, Madrid, 2004, p. 74. (O autor
transcreve essas surpreendentes palavras de B. Häring, que não aceitou a doutrina da Humanae Vitae.)

[662]
Cfr. K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 227: «As
relações sexuais entre o homem e a mulher no matrimónio só têm o valor de amor, isto é, de uma união
de pessoas, quando nem um nem outro renunciam total ou deliberadamente, recorrendo a meios
artificiais, à possibilidade de procriar; quando as suas relações vão acompanhadas, na consciência e na
vontade, pelo menos da disposição geral para a procriação que concretiza a suposição livremente aceite:
“poderei ser pai”, “poderei ser mãe”. Se faltasse esta disposição deveriam renunciar às relações
conjugais».

[663]
S. João Paulo II, encíclica Veritatis Splendor, n.º 78. Cfr., também, n.os, 76-78.

[664]
Cfr. M. Rhonheimer, Ética de la Procreación, Rialp, Madrid, 2004, p. 70. Cfr., também,
Alexander Puss, One Body, University of Notre Dame, Indiana, 2013, p. 275: «[Na relação conjugal]
the person’s body is striving for reproduction. But on a voluntary level, the person is actively set
against it. Thus the biological striving is not reflective of the person as a whole. On the contrary, the
person as a whole is crucially disunited from the body. But if in sexual act the two persons are
supposed to be united through their bodies, then in being disunited from their bodies, the persons are
thereby disunited from each other. Hence the deliberately contracepted sexual act fails to unite the
persons as persons, since it disunites the persons from the act by which they are supposed to be united».
(Transcrevo a argumentação no original, para evitar que se percam matizes.) Cfr., também, pp. 275-
276. De certa forma, podemos dizer que a abertura à conceção assegura a vontade da real doação de um
ao outro, e isso manifesta que se quer realmente a união das pessoas; acontece que, quando apenas se
procura o prazer (mesmo que seja dar prazer ao outro), como o prazer do homem não é o da mulher,
nem vice-versa, a coincidência de prazeres não é expressiva de uma comunhão de pessoas. Aliás,
infelizmente é frequente este intercâmbio de prazeres em relacionamentos não conjugais, pois
realmente não traduzem um amor de total doação. Cfr., também,
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pp. 217-218: «O amor conjugal
recíproco exige a união das pessoas. Mas esta não se identifica com a união no ato sexual. Este não
alcança o nível pessoal senão no momento em que, na consciência e na vontade dos sujeitos, vai
acompanhado desse estado geral criado no momento de contrair o matrimónio e destinado a durar por
todo o tempo em que as relações conjugais são possíveis: “posso ser pai”, “posso ser mãe”. Esta atitude
é tão importante e decisiva que sem ela não pode ser realizada a ordem das pessoas nas relações
conjugais: em vez da verdadeira união das pessoas só se dá uma união completamente despojada do
pleno valor personalista quando falta aquela atitude. […] Seria preciso dizer que aquela união seria
fundada unicamente nos valores do sexo e não na afirmação da pessoa, porque não é possível dissociá-
la do estado de consciência e da vontade: “posso ser pai”, “posso ser mãe”. […] Se se exclui das
relações conjugais radical e totalmente o elemento potencial de paternidade e maternidade, transforma-
se com isso a relação recíproca das pessoas. A união no amor passa a ser um prazer comum ou, para
melhor dizer, um prazer dos dois coparticipantes».

[665]
Graciliano Ramos, S. Bernardo, Record, 67.ª ed., S. Paulo, 1997, p. 87.

[666]
Cfr. S. João Paulo II, Carta às Famílias, n.º 9: «Os cônjuges desejam os filhos para si, vendo
neles o coroamento do seu amor recíproco. Desejam-nos para a família, qual dom preciosíssimo [cfr.
Concílio Vaticano II, constituição pastoral Gaudium et Spes, n.º 50]. É um desejo, em certa medida,
compreensível. Todavia, no amor conjugal e no amor paterno e materno, deve inscrever-se a verdade
do homem, expressa de maneira sintética e precisa pelo Concílio com a afirmação de que Deus “quer o
homem por si mesmo”. É necessário, por isso, que a vontade dos pais se harmonize com o querer de
Deus: neste sentido, eles devem querer a nova criatura humana como a quer o Criador, “por si
mesma”».
[667]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 14.

[668]
M. Rhonheimer, Ética de la Procreación, Rialp, Madrid, 2004, p.140. Em rigor, seria
conveniente introduzir uma pequena alteração na definição: trata-se de uma ação que quer impedir
que os atos sexuais, livremente consentidos, causem a conceção de uma nova vida; porque,
realmente, essa ação pode falhar, e mesmo assim é preciso dizer que estava presente no casal uma
atitude contracetiva. Cfr. Alexander Puss, One Body, University of Notre Dame, Indiana, 2013, pp.
264-265. O autor insiste que, para que haja um ato de contraceção, é indiferente o meio usado, a sua
eficácia e a sua plausibilidade. E exemplifica: se um homem pensa que as cenouras diminuem a
motilidade dos espermatozoides evitando assim a conceção, e come cenouras antes de realizar o ato
sexual com essa intenção, realmente está a cometer um ato contracetivo. Penso que Puss tem toda a
razão. Talvez a sua tese se torne mais percetível com o seguinte exemplo: se alguém usa um
contracetivo, o mecanismo deste falha e a mulher fica grávida, realmente marido e mulher
cometeram, apesar do «erro técnico», um ato de contraceção quando tiveram tais relações.
Parafraseando o Senhor, diríamos que cometeram um ato de contraceção nos seus corações.

[669]
Cfr. B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 14: «Não se podem invocar, como
razões válidas para a justificação dos atos conjugais tornados intencionalmente infecundos, o mal
menor, ou o facto de que tais atos constituiriam um todo com os atos fecundos, que foram realizados
ou que depois se sucederam, e que, portanto, compartilhariam da única e idêntica bondade moral dos
mesmos. Na verdade, se é lícito, algumas vezes, tolerar o mal menor para evitar um mal maior, ou
para promover um bem superior, nunca é lícito, nem sequer por razões gravíssimas, fazer o mal, para
que daí provenha o bem; isto é, ter como objeto de um ato positivo da vontade aquilo que é
intrinsecamente desordenado e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo se for praticado com
intenção de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares, ou sociais. É um erro, por
conseguinte, pensar que um ato conjugal, tornado voluntariamente infecundo, e por isso
intrinsecamente desonesto, possa ser coonestado pelo conjunto de uma vida conjugal fecunda».
(Talvez seja mais percetível para o leitor usar outra palavra, como «justificado» ou
«desculpabilizado», em vez de «coonestado».)

[670]
Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.º 1756. Dá-se aí como exemplos «a blasfémia, o jurar
falso, o homicídio e o adultério. Não é permitido fazer o mal para que dele resulte um bem». Muito
esclarecedora e convincente é a deslumbrante terceira parte da carta encíclica Veritatis Splendor, de S.
João Paulo II. O documento recorda, por exemplo, que muitos mártires preferiram não ceder num
comportamento intrinsecamente desonesto, sendo conscientes de que iriam morrer por Cristo ao
procederem assim. Cfr., por exemplo, n.º 91: «[São] inumeráveis os mártires que preferiram as
perseguições e a morte a cumprir o gesto idólatra de queimar incenso perante a estátua do imperador
(cfr. Ap 13, 7-10). Rejeitaram inclusive simular um tal culto, dando assim o exemplo do dever de
abster-se até de um mero comportamento exterior contrário ao amor de Deus e ao testemunho da fé. Na
obediência, eles confiaram e entregaram, como Cristo, a sua vida ao Pai, Àquele que os podia livrar da
morte (cfr. Heb 5, 7).
A Igreja propõe o exemplo de numerosos santos e santas que testemunharam e defenderam a
verdade moral até ao martírio ou preferiram a morte a um só pecado mortal. Elevando-os à honra dos
altares, a Igreja canonizou o seu testemunho e declarou verdadeiro o seu juízo, segundo o qual o
amor de Deus implica obrigatoriamente o respeito dos seus mandamentos, inclusive nas
circunstâncias mais graves, e a recusa de atraiçoá-los, mesmo com a intenção de salvar a própria
vida».
[671]
Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.º 2370, que introduz assim as palavras referidas à
contraceção do n.º 14 da Humanae Vitae: «Em contrapartida, é intrinsecamente má “qualquer ação
que, quer em previsão do ato conjugal […]”». Cfr. Conselho Pontifício para a Família, Vademecum
para os Confessores, 12-2-1997, n.º 2.4: «A Igreja ensinou sempre a malícia intrínseca da
contraceção, isto é, de todo o ato conjugal tornado, intencionalmente, infecundo. Deve reter-se este
ensinamento como uma doutrina definitiva e irreformável. A contraceção opõe-se gravemente à
castidade matrimonial, é contrária ao bem da transmissão da vida (aspeto procriativo do
matrimónio), e à doação recíproca dos cônjuges (aspeto unitivo do matrimónio), lesa o verdadeiro
amor e nega a função soberana de Deus na transmissão da vida humana». (O itálico é meu.) Sobre a
gravidade dos atos contracetivos, cfr., também, o n.º 3.11 do mesmo Vademecum para os
Confessores. S. João Paulo II, na carta encíclica Veritatis Splendor, n.º 80, reafirma que a
contraceção é um ato intrinsecamente mau, ou seja, que é por si próprio não ordenável a Deus, «pelo
próprio objeto, independentemente das posteriores intenções de quem age e das circunstâncias».

[672]
Para a definição de pecado mortal, cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.os 1857 e ss.
[673]
Cfr. Código de Direito Canónico, cânone 1152.

[674]
Cfr. B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 15: «A Igreja, por outro lado, não
considera ilícito o recurso aos meios terapêuticos, verdadeiramente necessários para curar doenças do
organismo, ainda que daí venha a resultar um impedimento, mesmo previsto, à procriação, desde que
tal impedimento não seja, por motivo nenhum, querido diretamente». Perante esta afirmação, a
pergunta que todos fazem a seguir é: «mas se a mulher estiver em idade fértil e for casada, pode ou não
ter relações nesses casos?» As respostas dos moralistas (que aceitam a doutrina da encíclica) variam:
para uns – talvez a maioria –, não existe qualquer problema, pelo menos se o medicamento não for
abortivo; para outros, deveriam cessar as relações enquanto durar o tratamento; outros pensam que será
mais fácil manter a retidão da vontade se os esposos seguirem um esquema de continência periódica,
como se a mulher fosse fértil em certos dias. A minha opinião inclina-se para esta terceira forma de
atuar, que me parece assegurar melhor que os esposos não querem mesmo o efeito contracetivo, mesmo
que este se dê. No entanto, devo reconhecer que a posição da encíclica parece seguir claramente a
primeira posição. Seria interessante aprofundar nesta questão e noutras relacionadas, mas exigiria
aumentar muito a extensão do livro.

[675]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 16.

[676]
Cfr. AG 5-9-1984, n.º 4 e AG 8-8-1984, n.º 3: «Poder-se-ia observar, neste ponto, que os
cônjuges que recorrem à regulação natural da fertilidade poderiam não ter os motivos válidos, de que
antes se falou; isto, porém, constitui um problema ético à parte».

[677]
S. João Paulo II, exortação apostólica Familiaris Consortio, n.º 32. Cfr., também, AG
29-8-1984, n.º 5.

[678]
S. João Paulo II, exortação apostólica Familiaris Consortio, n.º 32. Vale a pena ler a
conclusão do parágrafo citado: «A escolha dos ritmos naturais, de facto, comporta a aceitação do ritmo
biológico da mulher, e com isto também a aceitação do diálogo, do respeito recíproco, da
responsabilidade comum, do domínio de si. Acolher, depois, o tempo e o diálogo significa reconhecer o
caráter conjuntamente espiritual e corpóreo da comunhão conjugal, como também viver o amor pessoal
na sua exigência de fidelidade. Neste contexto, o casal faz a experiência da comunhão conjugal
enriquecida daqueles valores de ternura e afetividade, que constituem o segredo profundo da
sexualidade humana, mesmo na sua dimensão física. Desta maneira a sexualidade é respeitada e
promovida na sua dimensão verdadeira e plenamente humana, não sendo nunca “usada” como um
“objeto” que, dissolvendo a unidade pessoal da alma e do corpo, fere a própria criação de Deus na
relação mais íntima entre a natureza e a pessoa».

[679]
Cfr. AG 22-8-1984, n.º 3.

[680]
AG 22-8-1984, n.º 3.
[681]
Cfr. Bento XVI, carta encíclica Deus Caritas est, n.º 6.

[682]
AG 22-8-1984, n.º 6.

[683]
Carl Anderson e José Granados, Called to Love, Doubleday, Nova Iorque, 2009, p. 182.

[684]
Carl Anderson e José Granados, Called to Love, Doubleday, Nova Iorque, 2009, p. 192.
[685]
AG 5-9-1984, n.º 2.

[686]
AG 22-8-1984, n.º 6.

[687]
AG 22-8-1984, n.º 5.

[688]
S. João Paulo II, carta encíclica Evangelium Vitae, n.º 13.
[689]
Cfr. B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 10 e n.º 16. É interessante ler Alexander
Puss, One Body, University of Notre Dame, Indiana, 2013, p. 303: «Que seja necessária uma razão
grave é claro, dado que ao evitarem a procriação estão a evitar cooperar em alcançar um grande bem,
uma nova pessoa à imagem e semelhança de Deus. Evitar esse bem, especialmente no contexto de uma
relação em parte dirigida a alcançar esse bem […], requer certamente poderosas considerações em
sentido contrário».

[690]
S. João Paulo II, exortação apostólica Familiaris Consortio, n.º 14.

[691]
Cfr. B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 16.
[692]
Cfr., por exemplo, Augusto Sarmiento, El Matrimonio Cristiano, Eunsa, Pamplona,
1997: «Nas razões sérias e graves [os esposos] descobrem que a fidelidade ao desígnio de Deus
pede-lhes a decisão de não transmitir a vida. Não são eles, portanto, os que em última instância
decidem». Cfr., também, G. Grisez, The Way of The Lord Jesus, vol. 2, capítulo 9, f, b: «In times
past, some faithful Catholics thought (and a few still do), that a couple can be sure of acting in
accord with God’s will by entirely rejecting family planning and trusting in providence. Certainly
married couples should trust in providence. But providence has given the Christian couple reason
enlightened by faith and the power to act in accord
with it. Neglecting these gifts would not be pious submission to God’s will, but presumptuous
irreverence».

[693]
Conselho Pontifício para a Família, Famiglia e Procreazione Umana, 13-5-2006, n.º 17.

[694]
Cfr. Concílio Vaticano II, constituição Pastoral Gaudium et Spes, n.os 48 e 50.

[695]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 10. (O itálico é meu.)
[696]
Cfr. AG 29-8-1984, n.º 1.

[697]
Cfr. AG 8-8-1983, n.os 2-3.

[698]
AG 5-9-1984, n.º 4.

[699]
AG 29-8-1984, n.º 6.
[700]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 3.

[701]
Cfr., por exemplo, R. de Mattei, O Concílio Vaticano II – Uma História Nunca Escrita,
Caminhos Romanos, Porto, 2012, pp. 465-468. (Embora me pareça que o livro possa ser questionável
quanto ao modo de relatar o Concílio, não há dúvida que oferece dados valiosos, em concreto sobre o
tema que nos interessa.)

[702]
AG 25-7-1984, n.os 4-6.

[703]
Cfr. AG 18-7-1984, n.º 3: «O autor da encíclica sublinha que tal norma pertence à “lei
natural”, quer dizer, que ela é conforme à razão como tal. A Igreja ensina esta norma, embora ela não
seja expressa formalmente (isto é, literalmente) na Sagrada Escritura; e isto na convicção de que a
interpretação dos preceitos da lei natural é da competência do Magistério.
Podemos contudo dizer mais. Embora a norma moral, formulada deste modo na encíclica
Humanae Vitae, não se encontre literalmente na Sagrada Escritura, não obstante o facto de que está
contida na Tradição e – como escreve o Papa Paulo VI – foi “muitas vezes exposta pelo magistério”
(HV, 12) aos fiéis, resulta que esta norma corresponde ao conjunto da doutrina revelada contida nas
fontes bíblicas (cfr. HV, 4)». O n.º 4 da Humanae Vitae transcreve, em nota de rodapé, tanto as
intervenções do Magistério em que se defende a competência do mesmo para interpretar a lei natural
quanto as suas anteriores declarações acerca da natureza do matrimónio e do reto uso dos direitos e
deveres conjugais.
[704]
AG 18-7-1984, n.º 5.

[705]
S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II.ae, q. 90, a. 4, ad. 1. Citado em S. João Paulo II,
carta encíclica Veritatis Splendor, n.º 43. (O sublinhado é meu.)

[706]
Em dezembro de 2008, a Comissão Teológica Internacional publicou um extenso
documento: À Procura de uma Ética Universal – Um Novo Olhar Sobre a Lei Natural. Para a teologia
do corpo, parecem-me particularmente interessantes os n.os 42-82.
[707]
Comissão Teológica Internacional, À Procura de uma Ética Universal – Um Novo Olhar
Sobre a Lei Natural, n.º 69. (Tradução do autor a partir da versão italiana.)

[708]
Comissão Teológica Internacional, À Procura de uma Ética Universal – Um Novo Olhar
Sobre a Lei Natural, n.º 63.

[709]
Cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II.ae, q. 94, a. 2. Cfr., também, Comissão
Teológica Internacional, À Procura de uma Ética Universal – Um Novo Olhar Sobre a Lei Natural, n.º
46.

[710]
S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II.ae, q. 94, a. 2, ad. 2 e ad. 3. (O itálico é meu.)
Ajudará o leitor um breve esclarecimento de um autorizado manual contemporâneo de moral sobre o
princípio «que fundamenta todo o pensar prático: o bem deve fazer-se, deve ser perseguido; o mal deve
ser evitado. Isto não nos diz o que devemos fazer, mas indica-nos o que é básico para qualquer ação.
Quando se pensa em fazer algo, temos de pensar com a ideia de fazer e alcançar o que é bom e evitar o
que é mau. Em caso contrário não teríamos nenhuma razão para atuar. Os bens humanos básicos
oferecem o conteúdo a este princípio». (G. Grisez e R. Shaw, La Vida Realizada en Cristo, Palabra,
Madrid, 2009, p. 91). Cfr., também, A. R. Luño, Ética General, Eunsa, 6.ª ed., Pamplona, 2010, p. 244.
[711]
S. João Paulo II, carta encíclica Veritatis Splendor, n.os 48-49.

[712]
AG 11-7-1984, n.os 5-6.

[713]
Cfr. S. João Paulo II, carta encíclica Veritatis Splendor, n.º 50: «Pode-se agora compreender
o verdadeiro significado da lei natural: ela refere-se à natureza própria e original do homem, à
“natureza da pessoa humana”, que é a pessoa mesma na unidade de alma e corpo, na unidade das suas
inclinações tanto de ordem espiritual como biológica, e de todas as outras características específicas,
necessárias para a obtenção do seu fim. “A lei moral natural exprime e prescreve as finalidades, os
direitos e os deveres que se fundamentam sobre a natureza corporal e espiritual da pessoa humana.
Portanto, não pode ser concebida como uma tendência normativa meramente biológica, mas deve ser
definida como a ordem racional segundo a qual o homem é chamado pelo Criador a dirigir e regular a
sua vida e os seus atos e, particularmente, a usar e dispor do próprio corpo”. Por exemplo, a origem e
o fundamento do dever de respeitar absolutamente a vida humana devem-se encontrar na dignidade
própria da pessoa, e não simplesmente na inclinação natural para conservar a própria vida física.
Assim, a vida humana, mesmo sendo um bem fundamental do homem, ganha um significado moral
pela referência ao bem da pessoa, que deve ser sempre afirmada por si própria: enquanto é sempre
moralmente ilícito matar um ser humano inocente, pode ser lícito, louvável ou até mesmo obrigatório
dar a própria vida (cfr. Jo 15,
13) por amor do próximo ou em testemunho da verdade. Na realidade, só fazendo referência à pessoa
humana na sua “totalidade unificada”, ou seja, ”alma que se exprime no corpo e corpo informado por
um espírito imortal”, pode ser lido o significado especificamente humano do corpo. Com efeito, as
inclinações naturais adquirem dimensão moral apenas enquanto se referem à pessoa humana e à sua
autêntica realização, a qual, por seu lado, pode acontecer sempre e somente na natureza humana.
Rejeitando as manipulações da corporeidade que alteram o seu significado humano, a Igreja serve o
homem indicando-lhe o caminho do verdadeiro amor, o único onde ele pode encontrar o verdadeiro
Deus.
A lei natural, assim entendida, não deixa espaço à divisão entre liberdade e natureza. De facto,
estas estão harmonicamente ligadas entre si, e intimamente aliadas uma à outra». (O itálico é meu.)

[714]
G. K. Chesterton, «Social Reform versus Birth Control» (1926), in El Amor o la Fuerza del
Signo, Rialp, 4.ª ed., Madrid, 2000, p. 252.

[715]
AG 22-8-1984, n.º 1.
[716]
Cfr. AG 22-8-1984, n.º 1: «Ele [o domínio de si] de facto corresponde à constituição
fundamental da pessoa: é precisamente um método “natural”. Pelo contrário, a transposição dos “meios
artificiais” quebra a dimensão constitutiva da pessoa, priva o homem da subjetividade que lhe é própria
e faz dele um objeto de manipulação».

[717]
Cfr. AG 22-8-1984, n.º 5.

[718]
AG 22-8-1984, n.º 4.

[719]
AG 22-8-1984, n.º 7. (Como o leitor pode compreender, a expressão «artificial» não tem a
ver apenas com meios químicos ou físicos; S. João Paulo II está a referir-se a meios que não
correspondem ao que deveria ser natural no homem, e que incluem o domínio de si.)
[720]
Para ser mais preciso, as catequeses que respondem a estas perguntas são as «penúltimas
sete», dado que a última é uma espécie de conclusão de toda a obra.

[721]
Na exortação apostólica Familiaris Consortio (n.º 33) encontramos a mesma preocupação:
«Por isso a Igreja nunca se cansa de convidar e de encorajar para que as eventuais dificuldades
conjugais sejam resolvidas sem nunca falsificar e comprometer a verdade: ela está de facto convencida
de que não pode existir verdadeira contradição entre a lei divina de transmitir a vida e a de favorecer o
autêntico amor conjugal».

[722]
Cfr. AG 3-10-1984.

[723]
Cfr. AG 3-10-1984, n.º 4.
[724]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 25.
[725]
Cfr., também, a exortação apostólica Familiaris Consortio, n.º 33: «Não há dúvida de que
entre estas condições devem elencar-se a constância e a paciência, a humildade e a fortaleza de espírito,
a filial confiança em Deus e na sua graça, o recurso frequente à oração e aos sacramentos da Eucaristia
e da Reconciliação. Assim fortalecidos, os cônjuges cristãos poderão manter viva a consciência do
influxo singular que a graça do sacramento do matrimónio exerce sobre todas as realidades da vida
conjugal, e, portanto, também sobre a sua sexualidade: o dom do Espírito, acolhido e correspondido
pelos cônjuges, ajuda-os a viver a sexualidade humana segundo o plano de Deus e como sinal do amor
unitivo e fecundo de Cristo pela Igreja».

[726]
Cfr. AG 4-7-1984, n.º 2.

[727]
AG 4-7-1984, n.º 3.
[728]
AG 3-10-1984, n.º 2. É extraordinário, a meu ver, o comentário-síntese de William Newton,
em Maryvale Course Book – Marriage as a Sacrament, 2011, pp. 111 e ss., ao artigo de David S.
Crawford, «Humanae Vitae and the Perfection of Love», in Communio, 25 (1998), n.º 3, pp. 414-438:
«Crawford makes three propositions:
(1) Marriage is not just a context in which one lives and gets holy, it is a way of life
specially designed to make one holy.
(2) Since marriage is a specific form of life ordered to sanctification, what is specific about
marriage must be part of this way to sanctification.
(3) Authentically loving one’s spouse in conjugal intercourse is a particularly important
way to love God in loving our spouse.»
Sobre a segunda afirmação, William Newton escreve: «Crawford’s second proposition follows
the first. Having shown that marriage is a special path to sanctification, Crawford claims that this
sanctification must take place (at least in part) in what is specific to marriage, namely sexual
intercourse. Hence, marital spirituality and marital sexual morality must be closely related.
If marriage really is a special way to holiness – a state of life – then what is special about
marriage surely has to enter into this. And what is special about marriage – compared to other ways of
life – is the orientation towards procreation. Ultimately, he argues that marital spirituality must be
closely related to the vision of marital morality set forth in Humanae Vitae. He is making a connection
between spirituality and morality. To be holy you need to be good. This might seem rather obvious but,
in fact, it is denied quite commonly. In Veritatis Splendor, John Paul II notes: “No damage must be
done to the harmony between faith and life: the unity of the Church is damaged not only by Christians
who reject or distort the truths of faith but also by those who disregard the moral obligations to which
they are called by the Gospel (cfr. 1 Cor 5, 9-13). The Apostles decisively rejected any separation
between the commitment of the heart and the actions which express or prove it (cfr. 1 Jn 2, 3-6)”.
In bringing together marital spirituality and morality, Crawford is supported by Vatican II and
specifically Gaudium et Spes». (O sublinhado é meu.)
[729]
S. João Paulo II, carta apostólica Mulieris Dignitatem, n.º 19.

[730]
Cfr. AG 10-10-1984, n.º 5.

[731]
S. João Paulo II, exortação apostólica Familiaris Consortio, n.º 18.

[732]
AG 10-10-1984, n.º 1.
[733]
AG 10-10-1984, n.º 1.
[734]
AG 14-11-1984, n.º 4.

[735]
AG 14-11-1984, n.º 5.

[736]
Cfr. G. Grisez, The Way of the Lord Jesus, vol. 2, capítulo 9, E, 1, c: «The pleasurable
sensations of sexual activity culminating in orgasm are in themselves a private and incommunicable
experience. Hence, to focus attention on this experience and strive to intensify it as much as possible
tends to make the other person into a means, a “sex object”. So, the Church teaches that spouses should
pursue sexual gratification only in subordination to marital love. Marital chastity, by making the marital
good itself central, makes it possible for the experience of loving cooperation in one-flesh communion
to predominate and enjoyable sensations to take their proper, subordinate place in marital intercourse.
Thus subordinated, erotic pleasure no matter how intense, is morally good (cfr. S.T., II-II.ae, q. 153, a.
2, ad. 2)».

[737]
AG 10-10-1984, n.º 1.

[738]
AG 10-10-1984, n.º 2.

[739]
Cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, III, q. 7, a. 3, ad. 2.

[740]
Aconselho a leitura pausada de todo o n.º 13 da exortação apostólica Familiaris Consortio,
onde S. João Paulo II fala do amor ou caridade conjugal. Num dos parágrafos explicita:
«E o conteúdo da participação na vida de Cristo é também específico: o amor conjugal comporta uma
totalidade na qual entram todos os componentes da pessoa – chamada do corpo e do instinto, força do
sentimento e da afetividade, aspiração do espírito e da vontade –; o amor conjugal dirige-se a uma
unidade profundamente pessoal, aquela que, além da união numa só carne, não conduz senão a um só
coração e a uma só alma; ele exige a indissolubilidade e a fidelidade da doação recíproca definitiva e
abre-se à fecundidade (cfr. carta encíclica Humanae Vitae, n.º 9). Numa palavra, trata-se de
características normais do amor conjugal natural, mas com um significado novo que não só as purifica e
as consolida, mas eleva-as também, a ponto de as tornar a expressão dos valores propriamente
cristãos». (O sublinhado é meu.)
[741]
AG 10-10-1984, n.º 4. Cfr., também, AG 24-10-1984, n.º 4.

[742]
Cfr. AG 24-10-1984, n.º 6: «Trata-se, de facto, de não causar dano à comunhão dos
cônjuges no caso em que, por justas razões, eles devam abster-se do ato conjugal».

[743]
S. João Paulo II faz notar que o autor da carta encíclica Humanae Vitae é plenamente
consciente dessa dificuldade. Por exemplo, logo no n.º 3 pode ler-se: «Dadas as condições da vida
hodierna e dado o significado que têm as relações conjugais para a harmonia entre os esposos e para a
sua fidelidade mútua, não estaria indicada uma revisão das normas éticas vigentes até agora, sobretudo
se se tem consideração que elas não podem ser observadas sem sacrifícios, por vezes heróicos?» Cfr. G.
Grisez, The Way of The Lord Jesus, vol. 2, capítulo 9, F, 1, h: «Thus, the Council Fathers make it clear
that they have paid attention to the evidence that in many cases, when sexual abstinence is prolonged, a
husband and a wife become irritable with each other and express their feelings by treating the children
badly; they may be tempted to commit adultery, at least in thought; their love cools, and they are
unlikely to welcome another child.
Still, these evils are not inevitable, for they do not stem precisely from not engaging in marital
intercourse but from one or both spouses’ frustrated desire to engage in it. Many couples whose sexual
urges are subordinated to their marital love do not suffer bad consequences when they abstain. […]
Consequently, Vatican II, having noted that abstinence can have bad consequences, does not conclude
that couples should not abstain when necessary. Instead, the Council teaches that conjugal love and the
responsible transmission of life can be harmonized; but it points out: “Such a goal cannot be achieved
unless the virtue of conjugal chastity is sincerely practiced”
(GS, 51)». (O sublinhado é meu.)
[744]
AG 10-10-1984, n.º 4. Cfr., também, AG 24-10-1984, n.º 4 e AG 14-11-1984, n.º 5.

[745]
Quando explica tanto os efeitos da virtude da castidade como os do dom da piedade do
Espírito Santo, S. João Paulo II reforça, além da não-contradição existente na norma, a possibilidade de
ultrapassar a dificuldade que o exercício da norma moral poderia trazer para o amor entre os esposos.
Assim, cfr. AG 24-10-1984, n.º 4: «Analisando deste modo a continência, na dinâmica própria desta
virtude (antropológica, ética e teológica), damo-nos conta que desaparece aquela aparente
“contradição” que é muitas vezes apresentada como objeção à carta encíclica “Humanae Vitae” e à
doutrina da Igreja sobre a moral conjugal». Cfr., também, AG 14-11-1984, n.º 5: «O dom do respeito
daquilo que é criado por Deus faz com que a aparente “contradição” nesta esfera desapareça e a
dificuldade proveniente da concupiscência seja gradualmente superada, graças à maturidade da virtude
e à força do dom do Espírito Santo».

[746]
Convém advertir o leitor de que há uma clássica distinção entre «continência» e
«castidade». S. João Paulo II é consciente dessa distinção, como se lê em Amor e Responsabilidade,
Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pp. 183-184: «É difícil falar das diversas formas do domínio de si
mesmo no campo sexual. É preciso reconhecer em todo o caso que sem ele não se pode ser casto.
Podemos, contudo, procurar definir os principais métodos para consegui-lo e levá-lo à prática.
Pronuncia-se muitas vezes a este propósito a palavra “continência”. Este termo sugere que o método
principal tem alguma coisa de comum com a ação de conter. […] Na primeira parte deste capítulo,
afirmámos todavia que refrear os movimentos da concupiscência do corpo ou das reações sensuais,
repelindo para o subconsciente o seu conteúdo, não constitui ainda virtude. […] E a virtude deve ser
uma força espiritual. Esta força não pode existir sem a razão, que distingue a verdade essencial
acerca dos valores e coloca o da pessoa e do amor acima dos valores do sexo e do prazer que dele
depende. Mas, precisamente por esta razão, a castidade não pode consistir numa continência cega. A
continência, aptidão para controlar a concupiscência do corpo mediante a vontade, para moderar as
reações sensuais e a afetividade, é uma condição indispensável do domínio de si mesmo. Mas não
basta para que se realize a virtude, pois a continência não pode ser um fim em si mesma».
Ainda que de modo muito esquemático, interessa expor como S. Tomás julgava a diferença entre
as duas virtudes que versam sobre a mesma «matéria» (os prazeres do tato). (Cfr., sobretudo: Suma
Teológica II-II.ae, q. 155 e q. 151, a. 1- a. 3; I-II.ae, q. 56, a. 4; q. 58, a. 3 e ad. 2; e q. 70, respondeo).
Para S. Tomás, a continência permite dominar as paixões de modo a que estas obedeçam à razão. A
continência pertence à vontade (o seu sujeito é a vontade), enquanto a castidade reside no apetite
concupiscível, ou seja, «informa» a potência que é responsável pelas tendências sensíveis. Assim, pode
haver uma pessoa que seja continente mas não casta, na medida em que domina as paixões, submete-as
à razão, mas não existe uma espécie de estabilidade no apetite concupiscível. Para alguns
comentadores, essa é a razão pela qual pode haver uma certa tensão áspera na pessoa que é
«continente» mas ainda não tem a virtude da castidade. Na pessoa casta (não só continente) o domínio
nessa matéria está como que incorporado no apetite concupiscível, que se «habitua» a obedecer à razão
desde o mais leve movimento. Na pessoa casta o domínio da castidade é rápido e alegre, coisa que não
sucede com aquele que apenas possui a continência. S. João Paulo II não se preocupa em ser
terminologicamente exato nas catequeses de teologia do corpo e por vezes usa o termo «continência»
onde a terminologia clássica usaria «castidade». No entanto, está presente a ideia principal de que não
basta um mero freio à concupiscência (o que corresponde mais à continência) para falarmos de virtude
em sentido pleno. Cfr. AG 24-10-1984, n.º 1: «O sujeito pessoal para chegar a dominar tal estímulo e
tal excitação deve empenhar-se numa progressiva educação do autocontrolo da vontade, dos
sentimentos, das emoções, que deve desenvolver-se a partir dos gestos mais simples, nos quais é
relativamente fácil traduzir em ação a decisão interior. Isto supõe, como é óbvio, a clara perceção dos
valores expressos na norma e a consequente maturação de sólidas convicções que, se acompanhadas
pela respetiva disposição da vontade, dão origem à correspondente virtude. Tal é precisamente a
virtude da continência (domínio de si)». Mas logo a seguir, no n.º 3, o Papa fala de «castidade
conjugal». Seria necessária uma investigação mais aprofundada para certificar se S. João Paulo II
assumiu sem glosas os conceitos tomistas ou existe alguma nuance adicional sua na diferença que
estabelece entre «castidade» e «continência». Em qualquer caso, convém ter presente que S. João Paulo
II não usa «castidade» e «continência» sem qualquer distinção. Mesmo que não consigamos captar com
clareza como distingue cada uma, há, sem dúvida, diferenças – ainda que, a meu ver, não lhe pareça
relevante fazer notar tais diferenças durante as catequeses. O que é relevante para S. João Paulo II é que
«continência» não se resume a um mero «freio». Encontramos um exemplo de como o Papa distingue
os conceitos na AG 14-11-1984, n.º 1: «Os esposos recebem este dom [o amor] no Sacramento, com
uma particular “consagração”. O amor está unido à castidade conjugal, que, manifestando-se como
continência, realiza a ordem interior da convivência conjugal». (O sublinhado é meu.)
[747]
AG 31-10-1984, n.º 4. Nesta temática, é muito útil e esclarecedora a leitura do capítulo
«Ternura e Sensualidade», de Amor e Responsabilidade. A ele faço referência na exposição.

[748]
AG 31-10-1984, n.º 6.

[749]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 190.
[750]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 190.

[751]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 191.

[752]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 194.

[753]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pp. 194-195.
[754]
AG 24-10-1984, n.º 2.

[755]
AG 24-10-1984, n.º 6.

[756]
AG 24-10-1984, n.º 6.

[757]
Cfr. K. Hahn, O Amor que dá Vida, Quadrante, S. Paulo, 2012, pp. 150-152.
[758]
Cfr. AG 24-10-1984, n.º 6.

[759]
AG 24-10-1984, n.º 3. (O sublinhado é meu.) Cfr. K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade,
Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 231: «O amor do homem e da mulher não perde nada com a renúncia
temporária própria da continência periódica. Pelo contrário, ganha. Porque a união das pessoas torna-se
mais profunda por se fundar sobretudo na afirmação do valor da pessoa e não só num apego sensual».

[760]
Cfr. AG 14-11-1984, n.º 4. (Já transcrito em 22.2.)

[761]
AG 21-11-1984, n.º 3.
[762]
Cfr. G. Grisez, The Way of The Lord Jesus, vol. 2, capítulo 9, E, 1, d: «By enabling the
couple both to come together when appropriate and to abstain when appropriate, marital chastity
empowers them to engage in sexual acts which truly embody love, rather than merely manifest an urge
for self-satisfaction».

[763]
AG 21-11-1984, n.º 3.

[764]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 213.
[765]
AG 29-8-1984, n.º 6.

[766]
K. Wojtyla, Amor e Responsabilidade, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pp. 237-238.

[767]
AG 21-11-1984, n.º 4. (Introduzi ligeiras variantes à edição portuguesa.)

[768]
AG 3-10-1984, n.º 3.
[769]
B. Paulo VI, carta encíclica Humanae Vitae, n.º 21.

[770]
Bento XVI, Jesus de Nazaré – Da Entrada em Jerusalém até à Ressurreição, Princípia,
Cascais, 2011, p. 199.

[771]
Tertuliano, De Resurrectione Carnis, capítulo 8.

[772]
S. Ireneu, Adversus Haereses, 5, 2. (A tradução baseia-se na versão online presente em
www.liturgiadashoras.org, mas conta com ligeiras alterações pessoais.)

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